Você está na página 1de 258

IH! ! EBiM o pensamentoaindavive.

ianieIBensald
Com a ajuda do fim do comunismo de
estado, Daniel Bensaidnos oferece um Marx
complexo, arrebatador.Um Marx livre."

LeMondedesLivres

ll@ lãHiEll;M, Marx é um


pioneiro das revoluções científicas futuras
e seu pensamento está em sintonia com
as controvérsias contemporâneas."

Marx. Intent festivo

FSEN 85-20S-0481-4

335.401
B474trt

"Elra#s20! o04814 CIVILIZAÇÃO

.b
13RASILE.IRA
O colapso das ditaduras do Leste
Europeunão é apenasuma boa nova
política. É também uma boa nova
parao pensamento,sobretudoparaa
tradição crítica que, há séculos, se es-
força para esclarecer
os fundamentos
do reino da mercadoria.Durante mui-
to tempo, Marx foi consideradoo
analista mais perspicazdesse poder. E
então o dogmatismo se apoderou de
sua lenda, construiu para ele um mau-
soléu e se apropriou de suaobra.

Não esperemos no entanto deste livro


a revelaçãode um pensamento puro,
enfim livre de suasmarcaspolíticas.
Pois, olhando de perto, percebemos
claramente que Marx teria passadoa
vida brigando com sua sombra, lutan-
do com seus próprios fantasmas. E
aqui trata-sebem menosde opor um
Marx original a suas falsificações do
que de sacudir o sono prolongado das
ortodoxias para libertar a coerência
teórica de uma empreitada crítica
cuja atualidade é inquestionável: pois
não é verdade que o fetichismo mer-
cantil conquistou os mais remotos
cantos do planeta?

O autor mostra, em primeiro lugar. o


que com certeza o pensamento de
Marx não é: nem uma filosofia do fim
da história, nem uma sociologia em-
pírica de classesanunciando a vitória
Inevitável do proletariado, nem uma
ciência capaz de conduzir os povos do
mundo pelo caminho do progresso
inexorável. Essastrês críticas -- da
razão histórica, da razão económica,
do positivismo científico -- respon-
dem e completam umasàs outras. Elas
estão no centro da empreitada crítica
de Marx, formando portanto, de ma-
neira lógica, a estrutura destelivro.

Explica em seguida, ao mesmo tempo,


para que pode servir hoje em dia a
releitura das grandes textos (principal-
mente O Capita/), em quê estes con-
tribuem para responder às interro-
gações contemporâneas sobre o senti-
do da história e a representação do
tempo, sobre as relaçõesentre ascon-
tradições sociaise as outras formas de
conflito (de gênero, nacionalidade, re-
ligião), sobre a validade do modelo
científico dominante, abalado pelas
próprias práticascientíficas.

Deste Marx intempestivo-- que não


hesitou, durante sua vida, em destruir
os cânonescientíficose políticosmais
difundidos, e que foi ressuscitado
quando se pensavaque suascinzas
haviam sido dispersadas-- era preciso
traçar o retrato. É o que Daniel Bensaid
<

faz aqui, com maestria,espírito lógi-


co e veia crkica.

Daniel Bensaid é professar de filosofia


na Universidade de ParasVlll (Saint-
Pontifícia Univl
BIBLIOTEC. Denis). Publicou diversos livros, den-
tre os quais Eü, a Neva/uçâo,/embran-
ças de um bicentenário indigno
(1 989), Wa/ter Berl/am/n, senfíne/a
messiânica (1 99Q). jeanne, cansada de
guerra (1991) e .4 d/scordánc/a dos
rampas(199S).

capa EwÇn.Gwmach
bto Popperloto intercontinental P
Marx, o intempestivo
Dance! BensaTd

Marx, o
intempestivo
Grandezas e misérias de
uma aventura crítica
(séculos XIX e XX)

TRADUÇÃO DE
Lula Cavaicanti de M. Guerra

BIBLIOTECA NGK-PUC/SP

100223394
11

e
Rio de Janeiro
1999
COPYRIGHT
© Librairie Plon, 1997 Sumário
HTULO ORIGINAL FRANCÊS

Marx I'intempestif: grandeurset misêresd'une aventurecritique


CAPA

Et,eiyn Gmmacb

PROJaOGRÁFICO
Evelyn Gmmaçb e Joga de Sal,lzaLeite
O trovão inaudíve], :Z]
PREPARAÇÃODE ORIGINAIS
Hemtínia Mana ToHI de Castra PRIMEIRAPARTE: DO SAGRADO AO PROFANO

MARX CRÍTICODA RAZÃO HISTÓRICA


EDITORAÇÃO ELnRÓNICA

Minion Tipogra$a Edita?ia! 1. Uma nova escrita da história, 2:Z


MISÉRIASDO POPPERISMO.
25
CIP-BRASIL. CAIALOGAÇÁO-NA-FONTE
OALFABETODA NOVAESCRITA.34
SINDICATONACIONAL DOS EDHORES DE LIVROS, N
MACACOS, CONDES E HOMENS. 46
BensaTd,Daniel
B41 8m Marx, o intempestivo : grandezas e misérias DESCONSTRUIR
A HISTÓRIAUNIVERSAL56
de uma aventura crítia(séculos XIX e XX)/ Daniel Bensald
tradução de Luiz Cavalcanti de MenezesGuerra.
- Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1999.
512p. 2. Os tempos em discordância (A propósito do marxismo analí.
taco), 63
Tradução de: Marx I'intempestif : grandeurs et misêres
d'une aventurecritique MARX tEÓRico DA NORMA HISTÓRICA?.67
Inclui bibliografia
ISBN 85-200-04844. CORRESPONOÊNCIAS
E 0TiMAUOAOE. 7.f
INTERMITÊNCIAS
E CONTRATEMPOS,
80
1. Marx, Kart, 181 8-1883 - Crítica e interpretação.
2. Marxismo- 3. Filosofia marxista. 4. Ciência política. NECESSIDADEHiStÓRiCA E POSSIBILIDADESEFETivAS. 84
1.Título.CaIrIa PROGRESSO
soB BENEFÍCIODe INVENTÁRIO,93
CDD - 335.4
98-1649 CDU- 330.85
3. Uma nova escuta do tempo, í03
Todos os direitos reservados.Proibida a reprodução, armazenamento ou SONHOS E PESADELOSDA HISTÓRIA. Í 05
transmissão de partes destelivro, atravésde quaisquer meios, semprévia
autorização por escrito. o roMPOCOMOREI.AÇÃO
SOCIAL.
l ll
TEMPO MENSURADO E MENSURAN'rE. ] Í8
lk)dos os direitos desta edição adquiridos pela BCD União de Editoras S.A.
Av Rio Branco, 99/ 20' andai 20040-004, Rio de Janeiro, RJ, Brasil CRÍTICAONTOLÓGICA E CRÍTICA MESSIÂNICA. 123
Telefone (021) 263-2082. Fax / Venda (021) 2634604 A POLínCA PASSA DORAVANTE À FRENTE OA HISTÓRIA. :13Í

PEDIDOSPELO REEMBOUO POSTAL:

Caixa Postal 23052, Rio de Janeiro, RJ, 20922-970 SEGUNDA PARTE:'A LUTA E A NECESSIDADE

Impresso no Brasil MARXCR[TICODARAZÃOSOCIOLÓGICA


1999
MARX. O INTEMPESTIVO SUMÁRIO

41IAs c]assesou o sujeito perdido, ]4] 9. A angústia da lógica histórica, 363


À SOCIOLOGIA QUE NÃO SE POOL ACHAR. ]44 CAUSAUOADE HISTÓRICA E POSSIBIUDADE 0BJETiVA. 366
PRODUÇÃOE REL.AÇÃO
DE EXPLORAÇÃO.
Í 53 CAUSA
INTnANSiTiVA
EuvncNECESSIDADE.
37]
CIRCULAÇÃO E TRABALHO PRODUTIVO. Í55 NECESSIDADE
WEcANiCA E NECESSIDADE
PERMISSIVA.37.S

A REPRODUÇÃOGLOBAL E O ENIGMA DO CAPÍTULO INACABADO. ]S8 NECESSIDADES iNCUNANTeS E LEIS TENDENCIAIS.393


CLASSES
SOCIAISE REPRESENTAÇÃO
POLITICA,Í 64

10. Coreografias caóticas, 399


5. Lutar não é jogar (Marx em face das teorias dos jogos e da OSTRAÇOS
OOCAOS,402
justiça), :Z75 A CRISE DAS CIÊNCIAS CUROPÉIAS. 406
UMA CONCEPÇÃONÃO JURÍDICA 0A JUSTIÇA, iZ79 LÓGICAS TUnBILHONANTES. 4Í3
JOGO FINITO. JOGO INFINITO. Í 87 o BAILE OE MÁSCARAS DAS MERCADORIAS. 420
AQUÉU E ALÉM DA JUSTIÇA.19Í
ADEUS. VALOR, TRABALHO ABSTRAT0-« 20Í ll. Os tormentos da matéria (Contribuição à crítica da ecolo
OS EQUÍVOCOS DA EQÜiDAOE. 2Í3 gia política), 43=Z
o DETERMINISMOSEREVOLTA.223 UM SER NATURAL HUMANO. 434
EM BUSCA DA ENERGIA DISSIPADA. 453

6. Mas onde estão as classesde outrora?, 229 TRABALHO FÍSICO.TRABALHOSOCiAl. 464


UMA TEORIA GERAL DA EXPLORAÇÃO,232 0ESRAZÓESECOLÓGICASDA RAZÃO ECONÓMICA. 474
O PORRETEDAS CLASSESMÉDIAS.244 A MISERÁVELMEDIDA OETODA RIQUEZA.482
QUEM EXPLORAQUEM?. 25Í
o PnoLerÁRio NÁO É MAIS VERMELHO?.259 BIBUOGRAnA.497

TERCEIRAPARTE:A ORDEMDA DESORDEM


MARX CKITiCO DA POSITIVIDADECIENTÍFICA

7. Fazer ciência de outra maneira, 281


A CIÊNCIA NO SENTIDO ALEMÃO. 284
AS FONTES DA CIÊNCIA ALEMÃ. 29Í
PERMANÊNCIAS
DACRÍTICA.
3Í 2

8. Uma nova iminência, 331


TOTAUDADE ABERTA E coNTRADiçÃO. 335

A DETERMINAÇÃOCOMO Arnv,4çHO, 342


UMA CIÊNCIADO CONCRETO
PARTICULAR.349
ORDEM LÓGICA. ORDEM HISTÓRICA. 353

6
Pata Hippolyte
l

OTROVÃOINAUDIVEL

Qua do O Capital í#rerromPeo corsoe dí/acena


o !ácidode
todo essemovimento histórico, é como Hma ttouoada inaudí-
t,el,um silêmclo,#lnzamargem.[Gérard Granel, Prefácio a Crise
iüs ciê cüs eKropéias, de Husserl.]

O Capital é uma obra essencla/me fe s#buersiua.E medospor-


que cona diria, Feios caminhos da objetiuidade científim, à
consequência necessária da revolt+ção do qKe por incluir, sem
qlmsef07mKtá-ta, Hma maneira de pensar teórica qHe SHbuer-
te a própria idéfa de ciêlzcia.[Maurice Blanchot, "Les Trois
Parolos de Marx", em l,'Amifié.]

"Todo pensamento", escrevesutilmente lsabelle Stengers,"trai pelas


traições que suscita e indica por isso mesmo os terrenos onde manter-
se fiel a ele é aprender a resistir-lhe." Fincados nessaresistênciapara
com Marx e ao que ele aceitou em sua época, temos buscada "o atual
ainda ativo" na pluralidade de suaspalavras.
Essaatualidade é antes de tudo a da universalização e da vitalidade
mórbida do próprio capital. Tornando-se ehtivamente planetário, ele é
mais do que nunca o espírito de nossa época sem espírito e o poder
impessoal do reino da mercadoria. Nosso nublado horizonte e nosso
triste quinhão. Enquanto o capital continuar dominando as relações
sociais,a teoria de Marx permaneceráatual, e sua novidade sempre

11
MARX. O INTEMPESTIVO O TROVÃOINAUDíVEL

recomeçadaconstituirá o reversoe a negaçãode um fetichismo mercan- incoerente ou inconsistente. O núcleo do seu programa de pesquisa
til universal. ainda permite que interroguemos nosso universo dentro da perspecti-
"Escrevendo em preto-e-branco algo vermelho", O Cáfila/ pâs va de mudar o mundo. Ele não se contenta quase com colagenseclé-
em crise "a humanidade européia".i Longe de abafar esse"trovão inau- ticas e bricolagens mediáticas. Nenhuma doutrina, portanto, mas a
dível", as conturbaçõesaceleradasdo mundo permitem enfim que ele teoria de uma prática suscetívelde várias leituras. Não de qualquer
seja ouvido. leitura. Nem tudo é permitido em nome da livre interpretação,nem
tudo tem valor. O texto e o contexto definem restrições, delimitam
um campo de variantes compatíveis com suaspróprias aporias e con-
seqüentemente invalidam o que indique contra-senso.
AS TRÊSCRÍTICASDE MARX A teoria de Marx é, assim,ora definida como uma filosofia da his-
tória, uma filosofia do sentido e do remate da história; ora como uma
Não se trata de opor um Marx original e autêntico às suas contratações, sociologia das classese um método de classificação;ora, enfim, como
nem de restabeleceruma verdade há muito confiscada, mas de sacudir o um ensaio de economia científica. Nenhuma dessastesesresistea uma
pesado sono das ortodoxias. Uma obra tão múltipla vive da diversidade leitura rigorosa. Senão é fácil dizer em que consiste a teoria de Marx,
e dos contrastes de suas interpretações. A pluralidade contraditória dos podemos pelo menos lançar algumas luzes sobre aquilo que ela não é.
"marxismos" instituídos inscreve-sena dificuldade relativa de tomar Ela não é, por exemplo, uma filosofia especulativada história.
decisõesquanto a um texto que liga de modo indissolúvel a decifração Desconstrução declarada da História universal, a teoria de Marx dá
crítica dos hieróglifos sociais e a subversão prática da ordem estabeleci- passagema uma história que não promete qualquer salvação, não re-
da. Salientando uma fala crítica direta, uma fala política "sempre exces- para absolutamente a injustiça, não mordisca sequernossa nuca. Essa
siva, já que o excessoé sua única medida", e uma fala indireta do discur- "história profana" apresenta-sea partir de então como um devir in-
so científico, Maurice Blanchot~,observaque "a discrepânciamantém certo, determinado tanto pela luta quanto pela necessidade. Não se
unidos" essesdiscursos: eles não se acham justapostos, mas enredados, trata assim de fundar uma nova filosofia da história em seusentido
misturados. A diversidade dos registros não seconfunde com o ecletismo único, mas de explorar "uma nova escrita da história" cujo alfabeto
r
vulgar e "Marx não vive comodamentecom essapluralidade de lingua- vem proposto nos Grundrfsse. O Capffa/, portanto, põe em ação uma
gens que estão sempre se chocando e dissociando nele". nova representação da história e uma organização conceptual do tem-
Dividido entre seu fascínio pelo modelo físico da ciência positiva po como relação social: ciclos e rotações, ritmos e crises,momentos e
e sua fidelidade à "ciência alemã", entre o canto sedutor das sereias contratemposestratégicos.A antiga filosofia da história extingue-se,
do progresso e a recusa dos seus paraísos artificiais, Marx desenten- por um lado,.na crítica do fetichismo mercantil e, por outro, na sub-
de-se por um nada com sua própria sombra e esperneia nas mãos dos versão)olítica da ordem estabelecida.
próprios espectros.Atravessado por contradições não resolvidas, seu A teoria de Marx não é tampouco uma sociologia empírica das
pensamento não se mostra inteiramente homogêneo. Nem por isso é classes. Contra a racionalidade positiva, que ordena e classifica, organi-
za inventário e repertório, apazigua e pacifica, ela retira a dinâmica do
l Gérard Granel, prefácio a l,a Crise des sciefzcese topéen#es, de Edmund Hus. conflito social e torna inteligível a fantasmagoria mercantil. Não que os
serl, Paria, Gallimard, 1989. diversosantagonismos(sexuais, hierárquicos, nacionais) sejam redutí-

12 13
MARX. O INTEMPESTIVO O TROVÃOINAUDÍVEL

vensà relação de classe.A diagonal da frente de classe relega-ose con- BATELEIROS DO POSSÍVEL
diciona semconfundi-los. De um tal ponto de vista, o outro(estrangeiro
pela religião, tradições, origem, grupo ou igrejinha) pode sempre tor- Em seu esboço de uma nova escrita da história, Marx sublinha o papel
nar-se um outro si-mesmo num processo de universalização real. Esseo do contratempoou da não-contemporaneidade
entre esferaseconó-
motivo por que as classesnunca são objetos ou categorias de classifica- micas, jui:ídicas,.estéticas. A dinâmica do conflito trabalha nas falhas
ção sociológica, antes a própria expressãodo devir histórico. e nas fratura$ dessadiscordância dos tempos. O pensamento mesmo
A teoria de Mlarx não é, enfim,'tuna ciência positiva da economia de Marx inscreve-seno ponto de encontro em que a herança metafí-
de acordo com Q paradigma então dominante da física clássjça. Con- sica do atomismo grego, da física aristotélica, da lógica hegeliana é
temporânea das ciências da evolução e dos progressos da termodinâ- submetida à prova do modelo epistemológico newtoniano, do impul-
mica, ela resiste à racionalidade fragmentada e unilateral da divisão so das disciplinas.bbjstÓricas,dos desenvolvimentos impetuosos do
do trabalho científico. Tanto mais que a estranhacoreografia das mer- conhecimento do ser vivo. Profundamente ancorado em seu presente,
cadorias e das moedas orienta-a para as lógicas ainda desconhecidas ele o excede e ultrapassa na direção do passado e do (uturo. Essa a
dos sistemase da informação. Tanto seria anacrónico fazer de Marx razão por que o som de seu discurso é praticamente i#azidDe!..gos
o pioneiro conscienteda epistemologiamais recente,quanto é claro contemporâneosinsensíveisà arte do contratempo. Era mais fácil para
que o comportamento irregular do capital arrasta-o para caminhos os herdeiros e epígonos traduzi-lo na pequena música do positivismo
não batidos. Marx encontra aí, paradoxalmente, as ambições sintéti- dominante e nas tranqülizadoras odes ao progresso.
cas da velha metafísica, que ele reivindica de maneira explícita como Na interseção de pistas tipicamente não contemporâneas, hoje,
"ciência alemã" (deufscbem Wfsse7zscba/}). Essa tradição ressuscitada ao contrário, Marx aparececomo um audacioso bateleiro do possível.
permite-lhe abordar as lógicas não lineares, as leis tendenciais, as Quando se remove a crosta das ortodoxias, a hora é propícia para o
necessidadescondicionais daquilo que Gramsci designará sutilmente despertar de virtualidades há muito desprezadasou ignoradas. Em
como "uma nova imanência". .,.,.---. ,- "''"''"\ busca desseMarx, o extemporâneo, solicitado entre presente, passa-
Essas três críticas -- da razão histórica, da razão~econâmiçá, da do. e porvir, atravessamosa .pqlsagemcontrastante de um século de
positividade científica -- respondem uma à outra e completam-se. leituras q.comentários..Asabordagensde Kart Kautsky ou de Rosa
Inscrevem-se, em condições iguais, nas interrogações de nossa época Luxemburgo, as de Nikolai Bukharin ou de Karl Korsch, as de Louis
sobre o fim da história e a representaçãodo tempo, sobre a relação da Althusser ou de Roman Rosdolsky não conduzem ao mesmo Marx. É
luta de classes com os outros modos de estabelecer conflitos, sobre a preciso portanto que cada qual escolha o seu caminho e a sua compa-
sorte das ciências exatas trabalhadas pelas incertezasdas ciências nhia. Quanto a nós, privilegiamos dois outros grandesbateleiros:
narrativas. Nem filosofia da história, nem sociologia das classes,nem Walter.Penjamine Aqlonio Gramsci.Seusdestinostrágicosde o#l-
ciência da economia, que vem a ser entãoq: teoria de Mata? Digamos siders permitiram-lhes ouvir o que permanecia inaudível para a mai-
provboriamente: não um sistemadoutrinária;mas-uma teoria'êiítica\ otieLdos discípl41ç)SLd$clarados,.:cheios
de pressa em traduzir as pala-
dg.114QsociaLa-da.mudança do mundo! vras in$élitas dc Maré numa linguagem familiar, que é forçosamente
a da ideologiadominante.Contra o culto sonolentodo progressoe
suas promessas quase sempre ilusórias, ambos vão ao encontro de Marx
por caminhos notavelmente convergentes,árduos e pouco freqüenta-

14 IS
MARX. O INTEMPESTIVO O TROVÃOINAUDÍVEL

dos. Do Diário de Mosco# (1927) às Teses sobre o coPzceifo de õísló-


da economia política e a teoria d4 história, a análise do conflito social
rfa (1939), Benjamin soube aprofundar a crítica messiânica da abstra- e a compreensão do devir histórico. Sua identidade apressadamente
ção temporal. No mesmomomento, na experiênciada derrota, Gra- plk)élamadateria servido para justificar cientificamente a necessidade
msci soube, em seus Caderfzos do cárcere (1930-1936), tirar as de uma alternativa socialista, tirando o "marxismo histórico" o seu
consequências da indecisão intrínseca do conflito: "$é se podgprever poder mítico e os seus efeitos de crença desse liame indemonstrável.
a luta." Daí resulta uma noção da política como estratégia e uma noção Entretanto, a fusão da história, da ciência, da moral caracteriza mais
do erro como risco inelutável da decisão. os catecismospositivistas e a franco-maçonaria da razão de Estado do
que o pensamento subversivo de Marx. O que na verdade está mor-
A vitalidade de uma teoria seprova pelas refutaçõesque ela sofre e rendo é o culto histórico da modernidadejcujos marxismos instituí-
pelas mutações de que é capaz sem desagregam-se.Jogando essejogo dos não foram, em suma, senão variantes.
da contradição, privilegiamos frequentementeo confronto com Karl Incerta; a história não promete nem garante nada.
Popper e com a corrente do chamado "marxismo analítico". Indecisa, a luta não repara inteiramente as injustiças.
-- Com Popper,porque sua crítica, a nossover pouco fundada, A ciência sem moral não prescreve o bem em nome do verdadeiro.
do historicismo marxiano, impregnou a contra-ofensiva ideológica dos
anos 70, preparando a contra-reforma social, política e moral cujos- As três partes do livro retomam as três grandescríticas (da razão
danos hoje podemos avaliar. Discutível, a epistemologia de Popper é hi$tóljg,. da razãoeconêmicanda positividade científica).Mas, a fim
sem dúvida melhor que suafilosofia aproximativa, e o próprio pensa- de satisfazeraos limites do gênero, tivemos de fazer escolhas,expon-
dor melhor que o popperismo vulgar reduzido a um lugar-comum ideo- do-nos ao perigo de suscitar críticas por termos negligenciado esseou
lógico. aquele aspecto.zAchamos igualmente por bem deixar os textos fala-
-- Com o marxismo analítico anglo-saxânico(Gerry Cohen, Jon rem. A polissemia deles é mais esclarecedoraque o comentário. Tal
Elster, John Roemer, Eric Olin Wright). Essesautores tiveram o mé- decisão não é portanto acadêmica: a montagem e o encontro dos frag-
rito de levantar, ao longo de toda a décadade 1980, questões funda- mentos permitem traçar a constelação de uma época, despertar ecos
mentais sobre a história, o progresso e as classesà luz das experiên- e ressonâncias sob o choque do presente.
cias trágicas do século 20. Têm realizado um grande esforço para salvar Agradeço a todos aqueles a quem este livro deve, sob todas as
Marx de seusarcaísmos,formulando uma teoria geral da história formas por que se apresentaram suas contribuições: conselhos e críti-
(Cohen) ou uma teoria geral da exploração (Roemer), alimentadas cas,artigos e trabalhos, informações bibliográficas ou pura e simples-
ambas pelos desenvolvimentos recentes das teorias dos jogos e da
justiça. Daí resulta uma desintegraçãometódica, e assim reivindicada, 2 Aconselhamosa leitores mais insaciáveisnosso trabalho l.a Discorcü ce des
do núcleo teórico central (teoria do valor, trabalho abstrato, relação remos, essals s#r /es crises, les classes,/'bísroite, publicado no outono de 1995
entre valor e preço), que ilustra a incompatibilidade entre um indivi- nas Éditions de la Passion. Ali encontrarão especialmentecapítulos sobre as cri-
dualismo metodológico radical e uma teoria crítica do conflito social. sese as ondas longas que ilustram a "nova escuta do tempo" aqui introduzida;
A derrocada daspolíticas de Estado conduzidas em nome de Marx assim como capítulos sobre as castas e a burocracia, sobre as relações sociais de
sexo ou sobre o elo entre mundialização e dobras identitárias. l.a Dfscorda#ce
desde o fim da década de 1920 demonstraria mais geralmente a im- desremos constitui de algum modo o contraponto e o complemento deste Àlazx,
possibilidade de conjugar dois programas de pesquisadistintos: a crítica o extemporâneo.

16 17

l
MARX. O INTEMPESTIVO

mente bate-papos. Em especial: Antoine Artous, Michel Husson, Sa-


muel Joshua, Vincent Jullien, GeorgesLabica, Nicole Lapierre, Fran-
cisco louça, Michaêl Lõwy, Henri Maler, SophieOudin, Edwy Ple-
nel, Miguel Romero, Pierre Rousset, Catherine Samary, lsabelle
Stenger$ Stavros Tombazos, Charles-André Udry, Robert Went. Sou
igualmente grato a Olivier Bétourné por suas pertinentes recomenda-
çoes
Este livro deve muito, enfim, a François Maspero, Gulaatividade
editorial salvou do esquecimentoou da indiferença tantos textos fun-
damentais. Contribuiu assim transmitindo-nos uma memória teórica PR-MoiRA
PAR"Do sagrado ao profano
e abrindo os horizontes para uma controvérsia pluralista.

Marx crítico da razão histórica

A História não faz nada.'


Engcls, A sagrada áam ia

18
1. Uma nova escrita da história
Marx costuma ser acusadode pecar ora por determinismo económi-
co, ora por teleologia histórica. Essespecados capitais traduzir-se-iam,
em termos práticos, por um voluntarismo ardoroso, precipitando o
curso da história num garantido bappy efzd,ou por uma passividade
burocrática confiante nas engrenagensdo progresso.
Os pecadostêm suasvirtudes. A predestinaçãocalvinista esteve
na origem de um forte impulso prático e um certo determinismo pede
evoluir como "espírito de iniciativa e como tensãoextremade vonta-
de política". A confiança no porvir liberada foi igualmente uma "for-
midável força de resistência moral" e "uma vontade disfarçada em
ato de fé". Gramsci interpreta essaambivalência como a expressãode
uma religiosidade popular profunda, cuja fé obstinada resiste ao po-
der intelectual da argumentação discursiva.'
É verdadeque alguns "marxistas" entreteceramde bom grado a
metáfora do "Tribunal da História", de seus "caminhos" e "mean-
dros", como se uma via de mão única conduzisseao pé do carvalho
onde a justiça última é feita. De acordo com essarepresentaçãoreligio-
sa, o extemporâneo torna-se desvio, e o erro complâ. A derrocada dos
regimes burocráticos oferece hoje a oportunidade de reler Marx, derru-
bando o muro desse"marxismo" petrificado em ideologia, cuja ortodo-
xia constituiu-se em boa parte na ignorância do seu pensamento.Marx
adereà perspectivade um fim da história? O horizonte da sociedade
sem classes, da extinção do Estado, da satisfação ilimitada das necessi-

l Antonio Gramsci, Cabíer de prison ]0, Paras,Gallimard, 1971, p. 71; Cabier


]l, p. 187; Cabfer13, p. 408.

23
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

dades pode encorajar uma resposta afirmativa: "Deveríamos ser leva- e sempreuma história sagrada,que supostamenteage no lugar dos
dos a pensar que uma sociedadesocialista assim concebida poderia homens e às suas costas. Uma história filosófica e especulativa. Uma
constituir uma sociedadefe7mi/za/que já não precisaria de qualquer história de ideólogos. A história profana não tem fins próprios.
evolução ulterior e na qual não se manifestada mais nenhum impulso Essasfórmulas ardorosas saem da pena de Engels. Mas A sagrada
para uma sociedadefutura. Marx não usa essestermos para enunciar áamí71aé um texto a quatro mãos cujo principal autor é Marx. Um
sua visão do socialismo, mas em nada impede uma tal possibilidade de ano maio tarde .A idem/og/aa/emã volta à insistir no assunto. Não se
exposição.Que uma interpretaçãocomo essaseja permitida é o que deve "acreditar que a história que,está-por vir seja a meta da história
sugere o pensamento que entendeo socialismo como a supressãode passada". Essa descrença declarada é grávida de consequências. Dera
todas as fontes de conflitos entre os homens e/ou como uma condição rubar a ditadura dos fins é desmoralizar a história (renunciar de um4
na qual a vida empírica realiza o homem em sua essência." Ele próprio vez por todas a que ela tenha uma moral). Desmoralizá-la é politizá{
apresentao comunismo como "o enigma resolvido da história e vê em la, torna-la aberta a um pensamento estratégico. Conceber a supres-
si mesmo essasolução". A solução do enigma não significaria "o fím da são do capital não como "o fim da história" mas como o fim da "pré-
história"?z Sociedadeterminal? Fim da história?Tais fórmulas não são história" não é uma jogada literária nem um jogo de palavras.
as de Marx. Pertencem exclusivamente aos seus comentadores. A desig- Ruge já tinha entrevisto essa mudança: "A evolução não é mais
nação do comunismo como "enigma resolvido" vem de uma época em abstrata, o temPOé PO/ítfco,embora ainda falte muito para que ele o
que Marx deixa claro que ele não entende por comunismo senão o seja suficientemente", mas foi incapaz de tirar daí todas as conseqüên-
"movimento real".3A chavedo mistério residiriaportanto no "movi- cias. Em 1847 constatava Kierkegaard por seu turno, para lamenta-lo
mento real" pelo qual a história é indissociavelmente história que se faz amargamente, que "tudo, nestes tempos, é político". Quanto a Marx,
não tirará mais os dentes de sua presa. O resto é uma outra história.
e teoria crítica de seu próprio desenvolvimento.
Desde 1845 Engels recusa categoricamente qualquer personificação
da história erigida em poder autónomo: "A blsfória não Áaz.!mda,ela
não dispõe de grandes riquezas, ela não decide os combates! É ao con-
MISÉRIAS DO POPPERISMO
trário õlhomem,a homemreal e vivo, quem faz tudo isso,possuitudo
isso e decide todos essescombates; não é 'a história', podem estar certos
No julgamento da teleologia histórica, Kart Popperdesempenhao papel
disso, que usa o homem como meio para ea/luar -- como se ela fosse
do promotor inflexível.s Hegel e Marx estão no banco dos réus. A
uma pessoaà pare -- seuspróprios fins; ela é atentasa anuidade do
comem que z/aiem busm dos Plzsdelemesmo."4 Pois "a primeira pres' farsa hegeliana de uma história devotada ao cumprimento de uma
causafinal, diz ele, já "durou o bastante". Uma "sociedade aberta" e
suposição da história dos homens é naturalmente a existência de indiví-
duos humanos vivos". Difícil recusarde maneira mais firme a represen- uma história fechada (cuja última palavra já estaria escrita) são in-
conciliáveis. Derradeiro avatar coerente do historicismo hegeliano e
tação fetichista da História. A História que "faz" alguma coisa é ainda
"quinta-coluna intelectual" no campo do humanismo, o "marxismo"
z Leszek Kolakowski, Hfsroire d mafxisme, Paras,Fayard, 1987, t. 1, p. 200. deve ser urgentementeaniquilado. Marx apareceriacomo o falso pro-
Aqui, como no quese segue,os grifos são meus.D. B.
3 Karl Marx, L'Jdéo/arie a/lema#de,Pauis,Éditions sociales,1960, p. 64.
s Karl Popper, La Sociéfé o#t/erre ef ses e##emis, 2 vais., Paria, Seuil, 1979
4 Friedrich Engels,La SainfeFa ille, Paras,Éditions sociales,1970, p. 1 16.

24 2S
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

teta da "forma mais pura, mais difundida e mais temível de historicis- Marx não tem lugar nessaconstrução. Suspeitode ativismo, ele
mo que o mundo já conheceu". Ele seria especialmente responsável deveriaalinhar-se no campo antinaturalista. Inversamente, seu inte-
pela confusão entre "previsão social" e "predição histórica" e pela ressepelas leis da física e da química o arrastariam para o campo
redução da causalidadehistórica ao modelo da causalidadenatural. protonaturalista.8 Popper julga resolver o problema incriminando a
Revertendo a causa eficiente original em causa final, submetendo o aliança paradoxal entre historicismo e utopia, entre a submissãoàs
presente ao poder despótico da história, ele teria habilmente utilizado leis da história e a temerária vontade de forçar-lhe o curso. Sob pre-
a autoridade do determinismo científico a serviço do finalismo histó- texto de rigor epistemológico, trata-se então de opor duas políticas: o
rico. Semessaconfusão,a idéia razoávelsegundoa qual a evolução voluntarismo historicista de qualquer projeto revolucionário e a "re-
das sociedadesé governada por certas causasnão teria conduzido ao paraçãofragmentária" de um reformismo razoável. "Via principal para
historicismo e aos seusdanos práticos. levar a resultadospráticos nas ciências sociais e nas ciênciasnatu-
O historicismo é, segundo Popper, uma religião da salvação terres- rais", a humilde tarefa de retomada e remendo acha-seassim enobre-
tre: os julgamentos de Deus ali se revelam através da história. Ora, "na cida pela paciente exatidão científica.
acepçãohabitualmente dada a esta palavra", a história "não existe". Desde a década de 1970 e a carreira exitosa da À lséria do blsfor/cis-
Não história como estrutura significativa unificada, nem, portanto, sen- mo, essaargumentação tornou-se o fundo comum do antimarxismo con-
tido (nem significação nem seta direcional) da história.ó Se a História temporâneo. Na realidade, o gosto pelas leituras cientificistas de Marx
devesseser nosso juiz, ela celebraria indefinidamente o fato consumado. favoreceu em compensação sua crítica epistemológica. Popper apareceu
Seusinistro tribunal seria antecipadamenteassimilado pelo campo dos então como o mais bem preparado para refutar a exorbitante pretensão
vencedores, cuja arrogante dominação ela perpetuada. do marxismo oficial em fazer ciência e anexar a verdadeà história.
Até quea vitória mudassede campo.
Levando consigo na bagagem a justiça e os juízes. poeira de citações que servem aos seus propósitos, colhidas em Comte ou Stuart
Reduzindo a ciência social à história definida como o estudo "das Mill, mais do que em Marx ou Hegel IKarl Popper, À4fsêrede /'#isrorlcfsme, Paris,
Prestes Pocket, 1988).
leis da evolução social", o historicismo dividir-se-ia em duas corren-
' Em geral Popper revela um conhecimento muito superficial e incerto do
tes: antinaturalista e protonaturalista. Ativa, a primeira quereria do- pensamento de Mare: "0 materialismo histórico de Marx, ou pelo menos o que
brar à sua vontade o curso da história. Passiva,a segunda submetes- vimos dele até aqui, tem dois componentes:o historicismo, que eu recuso,e o
se-ia às leis da evolução. Incapazes de saber se essasleis aplicam-se economicismo-- ou seja, a afirmação de que a organização económica da socie-
dadeé o favor fundamental da história de todas as instituições sociais --, que me
para além dos períodos de observação, nunca teríamos certeza de
pareceao contrário bastante defensável desdeque não Ihe confiramos um caráter
possuir uma lei fixa e universal. O poder sem limites da história con- muito absoluto. [-.] Mas Marx deu ao economicismo um caráter absoluto, sob a
duziria a um relativismo devastadorpara o conhecimento.' influência da velha distinção hegeliana entre realidade e aparência e da distinção
correlativa entre essenciale acidental." Ou ainda: "0 Cáfila/ é, em ampla medi-
6 "Devemos aprender a encontrar uma justificação em nosso trabalho e em nos- da, um tratado de moral social, mas esta não é nunca defendida ali dessemodo"
sas ações,não num sentido da história que não existe. [-.] Embora a história não (Àflsêre de /'blsforfcisme, op. cit., pp. 74 e 133). Num pequeno ensaio intitulado
tenda a nada, podemos conferir-lhe fins; embora ela seja desprovida de sentido, tour I'ilzceNain (Paras,Syllepsc, 1990), Jean-Loup Englander esforça-sepor cor-
podemos dar-]he uma significação. [-.] Somos nós que trazemos uma meta e um rigir as tentaçõescientifiçistas de Marx pela epistemologia popperiana. Seria mais
sentido" (Kart Popper,op. cit., t. 11,p. 184). judiciosa revisitar Maré à luz dos desenvolvimentos contemporâneos da ciência
7 Para desmascarara "miséria do historicismo", Popper exibe uma mon- do 'que "popperizá-lo" sem questionar a epistemologia do próprio Popper.

26 27
UARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

Em sua controvérsia na década de 1930 com Carnap e o Círculo de mo e do historicismo". Aponta como prova disso a Lógica de Stuart
Viena, ele censuravao positivismo lógico por deixar escaparo momento M.ill, que visa a "descobrir a lei do progresso por um estudo e uma
privilegiado da descoberta e a audácia das conjeturas. A purificação análise dos fatos gerais da história". "Uma vez estabelecida, essa lei",
lógica da ciência pela eliminação dos enunciados desprovidos de sentido explica ele, "deve tornar-nos capazes de predizer os acontecimentos
decorria de uma ilusão. Para limitar-se a uma exigência não relativista, futuros, do mesmo modo que, a partir de um pequeno número de ter-
uma concepçãocrítica e dinâmica do conhecimentocientífico devia mos de uma série infinita em álgebra, somos capazesde discernir o
submeter-seà prova da refutação. De acordo com essaepistemologia do princípio de regularidade da sua formação e de predizer o resto da série
risco, a irrefutabilidade constitui o próprio vício do saber.Um discurso até não importa que número desejado de termos." As leis de sucessão

"que não pode ser falseada" (o do marxismo ou o da psicanálise), que histórica enunciadas por Comte ou por Mill assemelham-serealmente a
não submete suaspredições à prova do desmentido e encontra sem ces- «uma coleção de metáforas aplicadas de maneira inadequada".
sar novas justificações, caracteriza precisamente a não-ciência. Que devemos concluir disso? Que o conhecimento dos fenóme-
De uma incontestável fecundidade, a epistemologia popperiana nos sociais, psíquicos, históricos pertencem para sempre ao domínio
da Lógica da pesquisa científica, do Conhecimento objetivo, de Con- tenebrosoda ideologia oü do mito? Erigir a refutabilidade em critério
jeluras e refwfaçõesmergulha entretanto na ideologia quando reduz exclusivo da'ciência convida a uma tal conclusão. Na tradição de
toda cientificidade aosseuspróprios critérios. A mesquinhafilosofia Rickert e de Dilthey, Popper distingue dentro do conhecimento cien-
da À41sérfa do bisfoticismo (escrita,é bom lembrar, em 1943-1945, tífico as ciências explicativas das ciências compreensivas.As primei-
no momento em que o marxismo achava-seamplamente identificado ras tratariam do geral e do quantificável, as segundas do singular e do
com a ortodoxia stalinista) e da Sociedadeabe la ilustra essaconfu- qualitativo: "Defenderei portanto a concepção tão freqüentemente
são. Quando ele sustentaque um mundo, no qual o conhecimento atacadacomo fora de moda pelos historicistas, segundo a qual a his-
objetivo existe como progresso social sem sujeito soberano, é incom- tória caracteriza-se antes por seu interesse pelos acontecimentos reais,
pletamente determinado e parcialmente impredizível, Popper encon- singulares ou particulares do que pelas leis e as generalizações."
tra-se todavia menos afastado de Marx do que imagina. O sonho de uma capacidade de predição comparável à das ciên-
Se os conhecimentos humanos são cumulativos, "nós não pode- cias naturais seria o pecado capital comum a todas as variantes de
mos", diz ele, "antecipar hoje o que só conheceremosamanhã". O historicismo. Popper admite que o desenvolvimento social e histórico
aumento dos conhecimentosmodifica o caminho à medida da marcha. é puramente aleatório: "As tendências existem ou, mais precisamente,
Não seria portanto possível, "por razões de estrita lógica, predizer o a suposição dessastendências é quase sempre um artifício estatístico
curso futuro da história". Por seuconhecimentoreflexivo, o desenvol- útil." O importante serianão confundi-las com leis físicas.Não fazer
de tendências lei.
vimento histórico produz o intrinsecamentenovo, cujo papel e sentido
nunca são fixados imediatamente, mas provisoriamente dados, sujeitos Para além de Comte ou Stuart Mill, essaprofissão de fé visa "ao
a correções e interpretações posteriores. É verdade que Marx declara marxismo". Ora, Marx não está atrás desseideal de previsibilidade
procurar na economia leis tão rigorosas quanto as das ciências ditas histórica. O Cáfila/ não é a ciência das leis da história, mas a "crítica
exatas, mas está sempre se chocando contra a lógica recalcitrante, não da economia política". Ele não quer saber de verificar a coerência de
linear, de "leis tendenciais". Ora, a confusão entre leis e tendências seria uma História universal, antes desembaralhar tendências e temporali-
segundo Popper responsável pelas "doutrinas cento?is do evolucionis-
dadesque se contrariam sem se abolirem. Os textos consagradosa

29
28
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

conjunturas históricasparticulares (as revoluçõesde 1848, a Guerra lhas unicamenteà história".to A exemplo da mão invisível de Smith ou
de Secessão,a Comuna de Paras)respondemponto por ponto às inter- da colmeia de Mandeville, a História desempenharia em Marx o papel
pelações de Popper. São não apenas obras-primas literárias (opinião de grande ordenadora do destino coletivo;êóndenandábs indivíduos a
com que se concorda de bom grado), mas ainda exemplos de conhe- cumprir seu grande desígnio mesmo sem saber. Elster vê nisso o resul-
cimento da história em processo.Estepresentehistórico não é um elo taãiltia estreita relação entre uma (arte inclinação pela explicação fun-
no encadeamento mecânico dos efeitos e das causas, mas uma atuali- cional e a filosofia da história: "É certamente porque acreditava que a
dade repleta de possíveis, onde a política supera a história na decifra- história estava dirigida para uma meta -- o advento da sociedade co-
ção de tendências que não fazem lei. munista -- que Marx pensava justificado explicar não apenas os modos
Anuncia-se assim um outro conhecimento, rebelde aos cânones da Úecomportamento, mas também os eventosparticulares em função de
física newtoniana. Ele produz por outro lado um saber efetivo e uma suacontribuição para essefim.T': Os textos de juventude manifestari-
aptidão a agir sobre o real. Popper admite que toda explicação causal de am portanto ".uma atitude teleológica perfeitamente coerente"
um evento singular pode "ser dita histórica". Explicar por que e como Elster deve entretanto admitir que A sagrada Áamí//a e A ídeo/o-
ele se produziu é em suma "contar sua história". Fiéis à investigação gfa a/emãcontradizem explicitamente essaproblemática. Como leitor
sinalizadora que caracteriza originariamente a História, as "ciências leal, ele não saberiaignorar o "ajuste de contas" de 1845-1846com
narrativas" furtam-seassim ao veredicto simplificador da refutação. a velha consciência filosófica: ".A blslórfa /zão é mais qz/ea szlcessão
Elas admitem vários relatos da mesmahistória e postulam que o plura- dasgeraçõesq e z/êmwma após ozJfrae onde cada uma delas explora
lismo narrativo não anula a consistência do narrado. Da crítica da eco- os materiais, os capitais, as forças produtivas legadas por todas as
nomia política à psicanálise, passando pelas disciplinas da evolução, um geraçõç!.pllçççdçntes; poLaonseguinüelccada uma delas continua, por
sem-número de ciências ditas humanas praticam essetipo de saber. A um lado, a advidade tradicional em circunstânciasinteiramentemo-
polêmica contra sua pretensão "historicista" a predizer o futuro aparece dific?.dase,.por outro, modifica as antigas condições por uma ativida-
então como uma querela mesquinha. Se uma predição é "um evento de totalmente diferente. Graças a arll/feios esPecu/afaz/os,pode-se Áazer-
social que pode entrar em interação com outros eventos sociais, e entre noé acreditar que a~bi?teria tiindguta .é a.meta-.da bistóTia passada.
estese aquele que ela prediz", ela pode igualmente contribuir para criar, Assim,por exemplo,atribui-se um propósito à descobertada Améri-
apressar ou conjurar o evento anunciado.s ca, o de ter permitido o-desencadeamento da Revolução Francesa."'2
Ou ainda: "De acordo com esseprocedimento [de Stirner], é infinita-
Mais surpreendenteainda é ver um leitor tão atento ao texto de Marx mentefácil dar à história orientações únicas. Basta descreverseu ver-
como Jon Elster, eminente representante da escola anglo-saxânica do dadeiramenteúltimo resultado e considera-lo a tarefa que ela se pro-
marxismo analítico, retomar as mesmasqueixas. Ele aplica-sea recen- pôs desdea origem." Dessemodo, a "tarefa" que se teria proposto
sear os artigos que evocam "a noção funcionalista de intenções flutuan- desdea origem o sistema da propriedade fundiária seria a evicção dos
tes, de desígniosque não se saberiaatribuir a nenhum ator específico, homenspara substituí-los por carneiros, como se vê na Escória; ou

9Diderot não consideraqueo conhecimentohistórico sejaprobabilista por falta.


A probabilidadeé inerente à aplicaçãodo cálculo quantitativo a um objcto in- '' Jon Elster, Kar/ À4arx, ne ifzterpréfallo# ana/yffq e, Pauis,PUF, 1989, p. 36
trinsecamente aleatório: "A quantidade considerada na possibilidade dos eventos n Jon Elster, Kar/ À4arx-., op. cit., p. 52.
propicia a arte de conjeturar, de onde nasce a análise dos jogos de azar." iz Kart Marx, l,'Jdéo/ogieal/emafzde,
op. cit., pp. 65-66.

30 31
MARX. O INTEMPESTIVO
DO SAGRADO AO PROFANO

ainda o advento dos Capetos se teria "proposto como tarefa" condu-


zir Luís XVI ao cadafalso.A fórmula ritual do "agora enfim, agora É pensar no presente, não no futuro anterior.
podemos dizer" é a palavra de passe dessavisão apologética.13 Confrontado com o desmentido formal dos textos, Elster não
Difícil imaginar secularizaçãomais radical da história, rejeição desiste.Marx não teria nunca considerado "que o advento do comu-
mais vigorosa de seus "artifícios especulativos" e de suas ilusões re- nismo pudesse ser prematuro e que, a exemplo do modo de produção
trospectivas!A história presentee vindoura não é a meta da história asiático, se tornasse um beco sem saída da história".ÍÕ Toda a sua
passada.Banal "sucessãode gerações", ela não tem mais sentido que abordagemda história "deixa-se fa/uezacolhersob a rubrica mais
a monótona genealogiadas baleias. Desdeessesanos de muda, quan- geral da teleologia. A mão invisível.gu! detém o capital é uma das
do se livra da velhapele,Marx não tem nada de um "posterâmano". duas grandes formas de :teleQlogia em M:iõx, a outra sendo a necessi-
Não se encaminhaàs promessasfinais e ao juízo final. Sua crítica dadeque o processo acabe no final das contas por se destruir". Pru-
inscreve-se nas dores do presente: "Se construir o futuro e traçar pla- dentee pudico fa/I'ez, pois as provas oferecidas não se acham à altura
nos para a eternidade não é o nosso negócio, o que lemos de eaJlzar da conjetura.
lzo presemfenão pode ser mais claro; ou seja, a crítica radical a toda Elas limitam-se a algumas cartas e artigos de circunstância. Fazer da
a ordem existente."i4 Elster cita essestextos contraditórios em sua Rússiaou da burguesiainglesapersonagens,erigir a história em "fado
própria tese para logo desembaraçar-se deles, apresentando-os como moderno" são procedimentos jornalísticos correntes. Pode-se ver nisso
acidentais e incoerentes.Ele admite apenasnão ter nenhuma explica- o sinal de uma representaçãoantropomórfica da história, mas é no
ção "para o contrasteimpressionanteentre 4 ideQIQgÃCa/emã
e as mínimo abusivo encontrar aí a prova irrefutável de uma concepçãote-
outras obras". Como se se tratasse de uma espéciede enorme lapso leológica cristalizada. A noção de "necessidade histórica" pode remeter
teórico; li)gõ õbliterado em favor do esquemade desenvolvimento que tanto a uma problemática determinista quanto finalista; ela pode ainda
"vai do porvir ao presentee não no outro sentido". Essaexplicação exprimir uma "tendência" ou "lei tendencial", cujo conceito é explora-
mostra-se ainda mais inconsistentequando sabemosque A fdeo/agia do em O Gzpíla/. Que é efetivamente uma necessidadebfstórica aberta
a/emã retoma e sistematiza os temas da Sagrada áamafa. às singularidades factuais? Em 1849, Marx exorta na Noz/a Gazela
Os do "ajuste de contas". Ora, ajustar as contas com a velha Remmíz operários e pequenos-burgueses a sofrerem na sociedade bur-
consciênciafilosófica do ponto de vista da luta de classese da crítica guesa moderna, "cuja indústria cria os meios materiais necessários à
da economia política é também ajusta-las com a/;/osoPa espec lal/z/a fundaçãode uma sociedadenova que libertará a todos", em vez de
da bfsfórfa. É derrubar "a história sagrada", com seusparaísosper- voltar a "uma forma social superadaque de novo mergulharia a nação
didos e suas terras prometidas, em nome da "história profana"!'s inteira numa barbárie de medievo". Projetando em Marx a sombra de
sua posteridade e a interpretação dos epígonos, a leitura retrospectiva
i3 Ibid., p. 169. de Elster quer ver ali o rascunho das prédicas stalinianas sobre o sentido
i4 Kart Marx, carta a Arnold Ruge, setembro de 1843. da história: "Basta substituir a pequena burguesia pelo campesinato e a
is Marx acusa precisamenteProudhon de ficar sobre o terreno da história sociedadeburguesa moderna pela acumulação socialista primitiva para
sagradae de uma genealogia formal das idéias: "Em uma palavra, essavelharia obter a justificação clássicado stalinismo."i'
hegeliana não é uma história: não é uma história profana -- história dos homens
é uma história sagrada das idéias." Carta a Annenkov, Cof'respolzdance,t. l,
n 449 i' Jon Elster,Kat/ Àfarx-., op. cit., p. 417.
i7 Jon Elster, Kar/ À4arx-., op cit., p. 167

32
33
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

Marx "tinha fé, não duvido, numa sociedade aberta", escreve a herança hegeliana. Posteriormente ao "ajuste de contas" já não se
Popper. Deveríamos, reforça Elster, "conservar o respeito pelo indiví- encontranele traço de uma filosofia da história. Não é mais seu pro-
duo que se acha no âmago da teoria marxiana do comunismo, mas não blema. Ele mudou de terreno.
essafilosofia da história que permite que se menosprezeo indivíduo A sagrada Áamí7iae A idem/agia a/emã dão portanto definitiva-
antes do advento do comunismo para trata-los como lameiros condu- menteas costasa qualquer idéia de transcendência histórica. A religi-
zidos ao abatedouro".í8 A despeito das incompreensões e das caricatu- osidade histórica é metodicamente liquidada: "A /i/oso#a da blslórla
ras, essapreocupaçãotrai uma dificuldade real. Popper e Elster recu- de Hegel é a última expressão consequente, levada à sua 'mais pura
sam-sea tomar Marx em bloco. Não podem com efeito estabelecer
a expressão',de toda essamaneira que têm os alemãesde escrevera
coerência entre a filosofia da história que eles !be atribuem e a teoria história e na qual não se trata de interessesreais, nem mesmode in-
abe#a do co/z/7ílo qwe /be recolzbecem. Ficam assim reduzidos a fazer de teressesPO/bicos, mas de idéias P ras; essa história não pode então
Marx um pensador ecléticoe incoerente.Como conciliar a "fé na soci- deixar de aparecer em São Bruno [Bauer] como uma seqiiência de ]déias
edadeaberta" e o culto da história fechada,o primado comunistado onde uma devora a outra, naufragando finalmente na 'Consciência de
indivíduo e a indiferença histórica para com as massas? si', e em SãoMax [Stirner], que não sabe nada de toda a história real,
Marx utiliza uma "teleologia imanente" incompreendida pela essamzzrcbada bisfórfa devia aparecer, com muito mais lógica ainda,
maioria de seuscríticos que não conhecemSpinoza. Quanto à utopia, como uma simples história de cavaleiros, bandidos e fantasmas, a cuja
ela sobrevive à custa de sutis metamorfoses não como invenção arbi- visão não se consegue naturalmente escapar senão pelo gosto do sa-
trária do futuro, mas como "intenção orientada para o verdadeiro". ctüêgio. Essa concepção é realmente religiosa."z'
Daqui para a frente, nada de cidade futura, nada de mundo melhor. Em 1844, Stirner denuncia as insurreições humanistas contra Deus
Mas uma lógica da emancipaçãoenraizada no conflito.'P como "insurreições teológicas" e os ateus convertidos ao culto do Ho-
memabstrato como "gente piedosa". Não se acabou nunca com a reli-
giosidadedeles! Nunca se vai bastante longe no laicalismol Marx por
seuturno desafia "o Único" no terreno da secularização. Ele bate impi-
O ALFABETO DA NOVA ESCRITA
edosamente nos filósofos para quem a história é o cumprimento de uma
Idéia, e o passado,o caminho traçado para o coroamento do presente:
Enquanto Marx é vilipendiado como filósofo da história, suasinter- "Quando chega o momento da teoria tratar dos temas verdadeiramente
venções sobre a questão pertencem ao período em que ele rompe com históricos, como o século XVlll, por exemplo, essesfilósofos só ofere-
i8 Kart Popper, La Socíéféouz,erreet ses ennemis, op. cit., p. 134. Jon Elster, Kar/ cem a história das representações, destacada dos fatos e dos desenvolvi-
Àlarx-., op. cit., p. 168. Louis Dumont e Michel Henry vêemna obra de Marx mentos práticos que constituem sua base, e, além disso, só oferecem essa
uma teoria radical da individualidade. Consultar Louis Dumont, Homo aeq alas história com o proPósífo de representar a IOoca em questão como #ma
1, Paras,Gallimard, 1977; e Michel Henry, Maré, #ne pbflosopAfe de /a réa/ifé, ptimeiía etapaimperfeita, como a anunciadora ainda limitada da ueTda-
2 vais., Paras, Gallimard, 1976.
deíra é»om bfsfórica, ou seja, da época da luta dos filósofos alemãesde
í9Kart Marx, l,'ldéologie a//emafzde,
op. cit. Ver Yirmiyahu Yovel, SPfnoza
et a ires béréffqKes,Paria, Seuil, 1991. Sobre as aventuras da utopia na obra de 1840 a 1844. O objetivo delesé portanto escreveruma história do
Marx, consultar a tese sutil de Henri Males, Conuojfer /'impossib/e, Paras,Albin
Michel, 1995. zoKarl Marx, L'ldéo/ogfea//emande,op. cit., p. 71

34 35
DO SAGRADOAO PROFANO
MARX. O INTEMPESTIVO

dascoisas;aqui o mundo dos pensamentosdomina o mundo dascoisas.


passadopara fazer resplendercom o maior brilho possívela glória e as O objetivo é evidentemente apresentar, no fim da história, a dominação
imaginaçõesde uma pessoaque não é histórica, e está de acordo com
que o mundo dos pensamentos exerce desde o começo da história como
esseobjetivo não evocar os acontecimentosrealmente históricos nem a dominação real e efetiva dos pensadores sobre o mundo das coisas, de
mesma as intrusões realmente históricas da política tza história, e aíet-
tal forma que bastaria a São Max combater apenas os pensamentos e as
tar, em compensação, uma /zarraf/z/a que não se baseia em nenhum es-
representações dos ideológicos e triunfar sobre eles para erigir-se em
tudo sério, mas em mo/zlage s bfstóricas e em tagarelice literária." 'possuidor do mundo das coisas e do mundo dos pensamentos'."2i
Como Elster pode reduzir essaproblemática anta-religiosa e antite- Apologética da dominação, essa representação sagrada encontra sua
leológica a uma espéciede acidente inexplicável no pensamento de consagração, "ao fim da história", na tirania dos pensadores que domi-
Marx? Trata-seao contrário de um momentocrucial de limpideze es- nam em nome da Idéia.
clarecimento, em que ele se despede definitivamente de uma "concepção Contra Proudhon em seguida, Marx denuncia a hipóstase das cate-
verdadeiramente religiosa" da "marcha da história". Ele dá as costas às gorias: "Aceitamos que as relaçõeseconómicas, encaradascomo leis
grandes "narrativas" e outras "montagens históricas" organizadas para imutáveis, como princípios eternos, como categorias ideais, fossem a#-
conduzir ao presenteconcebido como o remate dessasetapasimperfei- r#iores aos homens afia/ose qKe agem eÁeliz/amenfe;
aceitamosainda
tas. Que não se irritem os Fukuyama de ontem e de sempre,que fazem que essasleis, essesprincípios, essascategorias tivessem, desde a origem
de Marx "o grande autor de história universal do século XIX", a His- dos tempos, dormitado 'na razão impessoal da humanidade'. Já vimos
tória universal não é para ele senãoum (mau) romances quecom todas essaseternidades imutát/eis e imóveis não bá mais histó-
Trata-sedoravantede levar a história a sério, não mais como
ria; bá quando muito a história ?iaideia, ou seja,a história que se teflete
abstração religiosa, da qual os indivíduos vivos seriam suas humildes #o moz/imenso día/ético da razão P ra. O Sr. Proudhon, ao dizer que no
criaturas, mascomo desenvolvimentoreal das relaçõesde conflito. movimento diabéticoas idéias não se diferenciam mais, anulou tanto a
Inicialmente contra Stirner, flagrado em falta no terreno da dessa- sombra do movimento quanto o movimento das sombras, por meio dos
cralização, Marx fustiga uma história literalmente idealista: "Em toda a quais ter-se-ia no máximo podido criar um s/muZacro (&z #ísfórfa."2z
sua exposição,ele não uiu até aqui na história senão o produto de pen- Essahistória da idéia é a própria negaçãoda história qm jogo de rela-
samentos abslrnfos -- ou antes representaçõesque faz para si mesmo
dessespensamentosabstratos;para ele, a história é dominada por tais zi Karl Marx, l.'/déologle a/demande,op. cit. O único e wa propriedade, Max
representações, que, em última análise, resolvem-se todas dentro do 'sa- Stirner, apareceuem 1844.
grado'. É essadominação do sagrado, do pensamento, da idéia absoluta u Kart Marx, Àlfsêrede Jap#l/osopbie,cm Omt/res, Écomomie,
1,Paria,Galli-
mard, "Bibliothêque de la Pléiade", 1965. Encontramos a mesmacrítica na famosa
de Hegel sobre o mundo empírico que ele vai agora descrever apresen-
carta a Annenkov de28 de dezembro de 1846: "0 Sr. Pmudhon vê na história uma
tando-a como uma relação histórica atual, como a dominação dos san-
certa série de desenvolvimentossociais; ele acha o progressorealizado na história;
tos e dos ideólogos sobre o mundo profano: a hierarquia. Nessa hierar- acha enfim que os homens tomados como indivíduos não sabiamo que faziam, que
quia, o que antes era uma sucessãotorna-se simultâneo, de modo que H enganavam sobre o próprio movimento, ou seja, que o desenvolvimento social
uma das duas formas coexistentes da evolução domina a outra. Assim, deles parece à primeira vista coisa distinta, separada, independente do desenvolvi-
mento individual. Ele não sabeexplicar essesfatos, e a hipótese da razão universal
portanto, o adolescentedominará a criança, o mongol o negro, o Mo-
quc sc manifestaé inteiramenteinventada,nada mais fácil que inventar causas
derno dominará o Antigo, o egoístaque se sacrifica dominará o egoísta místicas, ou seja, frases onde falta o senso comum.'
no sentido vu]gar [...]. Antes o mundo do espírito aniquilava o mundo

37
36
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

ções de conflito, determinadas e aleatórias. A hipóstase da razão impes- assalariado,a maquinaria etc. desenvolveram-semais cedo que no inte-
soal e a da história impessoalandam juntas aí. Ora, a história não é rior da sociedadeburguesa.Do mesmo modo, a relação entre força
nada fora dos homens ativos e que. agem efetivamente. produtiva e relaçõesde troca particularmente visível no exército.
Desde 1847 já tinha sido virada a página da História universal tão ZI Relação entre a história ideal tal como foi escrita até aqui e a
do agrado da filosofia especulativa.Para Hegel, "tudo que se passou e o- história rea!. Especialmenteo qae se costuma chamar de Histórias das
que se passa ainda é exatamente o que se passa em seu próprio entendi- cjz/jlfmções, a velha história das religiões e dos Estados.(Nessa ocasião
mento". A filosofia da história não é mais que a história de sua filosofia. pode-se também falar das diferentes maneiras de escrever a história até
Não há mais a história "segundo a ordem dos tempos", há a "sucessão agora. A história dita objetiva. Subjetiva -- moral -- filosófica.)
das idéias no entendimento".a A carga é bastante clara para que seja 3) Fenómenos secundários e terciários, de um modo geral as rela-
permitido voltar contra Marx sua própria crítica da filosofia especulati- çõesde produção derivadas, transpostas, não originais. Aqui entrada
va. Consciente do que rejeitou, ele o é igualmente da tarefa que resulta em cenzade relações internzacioltais.
disso. Nada menos que a f t/elzç;ãode uma outra escrita (&z bfstórü. 4) Críticas ao materialismo dessa concepção. Relação com o
A história universaliza-senão porque tenda à realizaçãode sua materialismo naturalista.
Idéia ou porque seja aspirada para um fim de onde tiraria retrospectiva- S) Diabética dos conceitos loiça produtiva (meio de produção) e
mente sua unidade significativa, mas sim, pura e simplesmente, em fun- relação de predação, diabética Cujos limites det/em ser determinados e
ção de um processo de universalização efetiva. Se "a existência empírica qHe ttão suprime as diferenças reais.
anual dos homens" desenrola-se já "sobre o plano da história mundial", 6\ A relaçãodesigual entre o desenvolvimentoda produçãoma-
se "homens empiricamente universais que vivem a história mundial" ferfa/ e, por exemp/o, o da produção arf&lica. De uma maneira geral,
sucedem-se a "indivíduos que vivem sobre o plano local", isso se dá em não usar o conceito de progresso sob a Áo?mababif a/. Arte moderna
razão da mundialização real da economia e da comunicação. A história etc. Essa desproporção está longe de ser tão importante e difícil de
furta-se assim à abstraçãodestacadados indivíduos para tornar-se apreender quanto a que se produz no interior das relaçõesda prática
"exlsrê#cla blstórlca fzlz/ersaldos índlt/í'd os, em outras palavras, exis- social. Por exemplo, o caso da cultura. Relações dos Estados Unidos
tência dos indivíduos diretamenteligados à história universal". Ela não com a Europa. Mas aqui o ponto realmente difícil é: a maneira como
é mais a realização de um destino genérico, tanto quanto o presente não as relações de produção seguem, como relações jurídicas, um desen-
é a meta predeterminada do passado.24 ho/z/imensodeslgzla/.Assim, por exemplo, a relação entre o direito
privado romano e a produção moderna.
Dez anos mais tarde Marx retoma essasidéias nos rascunhos introdu- 7) Essa concepção aparece como um desenvolvimento necessário.
tórios aos Grundrisse. Registra ali oito pontos telegráficos sob a for- Mas /wsli/ícação do acaso. O como. (Da liberdade etc., também.) (l#-
ma de "lzola gene para mencionaraqui e não esquecer": fluência dos meios de comunicação. A história Kniuersal não e9cistiK
" 1 ) A guerra desenvolvida anteriormente à paz; mostrar como, pela sempre; a história como história Kniuersal é um resultado.'l
guerra e nos exércitos etc., certas relaçõeseconómicas como o trabalho 8) O ponto de partida naturalmentena determinidadenatural:
subjetivamente e objetivamente. Tribos, raças.":5
23Ibid., p. 78.
24Kart Marx, L'ldéolog/e allemande, op. cit., pp. 64-67. u Karl Marx, Gmndrisse, 1, Paria, Éditions sociales,1977, p. 44. As passagens

38 39
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

Essasbrevesobservaçõespermitem desconstruir a noção de "história A "nova escrita" invocada introduz portanto as noçõesdecisivasde
ideal" em favor de #ma modaescrífa bistótiaa. De acordo com a sub- contratempo ou de não-contemporaneidade. O prefácio à primeira
versão que a descobertada história real constitui, essanova escrita edição do Cáfila/ ecoa as notas dos Grundrisse: "Além dos males da
serápura e simplesmente"a crítica da economia política". Aprofun- épocaatual, temos de suportar uma longa série de males hereditários,
dando a ruptura com a noção especulativa de história universal, esse orovenientesda vegetaçãocontínua dos modos de produção que exis-
texto programático introduz a noção de desenho/z/!me/zlo desagua/ ou tiram, mais a seqiiência das relaçõespolíticas e sociais a contratempo
de re/anãodesÜzla/entre diferentesesferasda atividade social, uma (zeifwjdreg) que elas engendram. Temos de sofrer não apenas da parte
abordagem crítica da noção abstrata de progresso, uma relação pro- dosvivos, mas também da parte dos mortos." Esseanacronismoe
blemática entre acaso e necessidadehistóricos. Trata-se de pâr termo essecontratempo surpreenderão aqueles que se contentam com a rí-
a uma representaçãoda história linear em seu curso e homogêneaem gida "correspondência" entre infra-estruturas e superestruturasdo
seusmomentos, onde fluxo temporal e significação coincidem. A re- Prefáciode 1859 à Co tribujção à craíca da economiapolítica.
lação entre história real e história escrita não teria como reduzir-se ao Marx insiste ao contrário na discordância dos tempos.u
relato que supostamentecolocasseordem no caos dos fatos. Contradição entre os textos? Talvez. Ainda é preciso sublinhar a
As tentativas de escrita objetiva, subjetiva ou filosófica praticadas continuidade sobre esse ponto entre os GTK2zdrisse e O Cáfila/. "Cor-
até el\tãa deram numa história idem!incapaz de produzir a inteligibi- respondência" não implica adequação. Ela apenas delimita um feixe
lidade da b/sró ia rea/. Uma nova escrita da história implica uma re- de possibilidades. O contratempo, em compensação, é o modo real da
volução teórica. Já não se trata de tomar posse de uma totalidade política, da estética, da teoria. Assim, "a tradição de todas as gerações
significativa transparente. Assim, a guerra tem sua lógica política e mortaspesa como um sonho mau sobre o cérebro dos vivos [-.] e
tecnologia própria, não diretamente redutível à da sociedade.Ela mesmo quando eles parecem ocupados em criar alguma coisa inteira-
desenvolve relações sociais que não correspondem às da sociedade em mente nova, clamam temerosamentepor socorro aos espíritos do
seu conjunto ou que antecipam suas formas futuras. Mais geralmente, passado,tomando-lhes emprestados seusnomes, palavras de ordem,
toda formação social é entremeadade relaçõesde produção deriva- costumes".27 O presente é sempre vivido sob tais disfarces e trajes fora
das, transpostas, não originais, cuja compreensão faz intervir as "re- de moda, sob nomes de empréstimo, com palavras colhidas na língua
lações internacionais". Há desligamento, defasagem, discordância, materna, até que se domine enfim o novo idioma a ponto de poder
"relação desigual" e "desenvolvimento desigual" entre produção esquecer o original. Longe de apagar-se em seus rastros, o passado
material e produção artística, entre relaçõesjurídicas e relaçõesde continua assombrando o presente.A política é exatamenteo ponto de
produção. Uma formação social concreta não é redutível à homoge-
neidade da relação de produção dominante. As diferentes formas de 2óEncontramos esseco Irafempo sob a pena de JacquesDerrida: 'Já não nos
produção (material, jurídica, artística) não andam no mesmo passo. damos conta da usura, já não nos damos conta da usura como de uma única
Cada qual tem seu ritmo e temporalidade próprios. idade no progressode uma história. Nem maturação, nem crise, nem mesmo
agonia.[-.] Contratempo. Tais mimeis o#f ofjoinf. [-.] A épocaestáfora de seus
gonzos.Tudo, a começarpelo tempo parecedesregulado,injusto ou desajusta-
do" (Specfresde Maré, Paris, Galilée, 1993, p. 129).
em itálico são enfatizadas pelo próprio Marx. Quando não constar tal aviso, são 27Karl Marx, l,e Di=-lluit Bmmaire de Loufs Bo#aparfe, Paria,Éditions
do autor deste livro. sociales, 1968.

40 41
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

encontro entre essestempos discordes. Encontrar-se-ão na arqueolo- Essahistória espectral está grávida de acontecimentos. Fantasmas
gia freudiana essassobrevivênciasativas e essestempos misturados. que voltam, que deslizam pelo interstício dos tempos desajustados,
onde nada do que se formou desaparece,onde tudo que está conser- nos contratempos de uma época desagregada, anunciam precisamente
vado pode reaparecer.28 o seu advento.
Articulando entre si temporalidades heterogêneas,Marx inaugu- As notas dos Grundrisse sublinham as principais conseqüências
ra uma representaçãonão linear dõ desenvolvimento histórico e abre dessarevolução da historicidade. A heterogeneidade do desenvolvimen-
o caminho para as pesquisascomparativas. O conceito de "desenvol- to histórico é incompatível com a imagem de um progressoem sentido
vimento desiguale combinado", introduzido por Parvus e Trotski a único, postulando, dirá Nietzsche, "a homogeneidade absoluta de tudo
partir de 1905, e o de "não-contemporaneidade", desenvolvido por queacontece". O progresso não conseguiria sair intacto da rejeição da
Ernst Bloch, inscrevem-sena linha de pensamentode suas intuições história universal. Marx anota isso com sobriedade. De uma maneira
por tanto tempo inexploradas.29 geral, não se deve tomar o conceito de progresso "sob a $o?maaósfrala
Às vésperas das revoluções de 1848, a atmosfera está carregada de habitual", que faz deleuma espéciede destino e de providência(o pro-
espectros. O do comunismo, certamente. Mas Stirner vê também o gressotécnico acarretando mecanicamente um progresso social e cultu-
homem metamorfosear-se em alma penada "obscura e decepcionante". ral). Essaforma abstrata supõe uma noção homogênea e vazia do tem-
"Tudo está assombrado! Fantasmas em todos os cantos!": fantasmas e PO SÓpor escoar,o tempo que passa ("a mão do tempo", diz Darwin)
fetiches-- da verdade,da lei, da ordem, do bem, da honra, da pátria. fabricada progresso. Sobre essavia traçada, nada de desaceleramento,
A humanidade desumanizada aniquila-se em seu próprio ideal. Ela erra nada de afastamentos, nada de paradas. O desenvolvimento desigual
como um espírito maldito que esvanece ao canto do galo.30 entreesferassociais, jurídicas, culturais obriga, ao contrário, a pensar
um progressoque não seja nem automático nem uniforme. A história
:' Sigmund Freud, À4alafsedalzs /a cit/illsafiolz, Paris, PUF, 1971, pp. 11-15. não é um longo rio tranqüilo. O progresso técnico tem o seu reverso de
D No começo do século 20, historiadores ocuparam-se com essescuriosos regressãosocial (ou ecológica). Aqui progresso, ali regressão: "0 pro-
efeitos de contratempo. Em sua Teoria da blsfórla Xenopol sublinha que os fatos gresso", escreve Robert Bonnaud, "divide-se, ele é o seu próprio inimi-
sociais "não seguemsempre uma marcha igual e paralela". Alguns "ficam para
go." Ele muda de frente e de direção.
trás como para descansar,recuperar as forças e alcançar mais tarde]aque]es] que
os ultrapassaram", enquanto outros parecem recuar "antes de atirar-se à frente" Zeílmídrlg/ Não-contemporaneidade, não-linearidade.
de novo. Em Les A/fer a ces d progrês, Robert Bonnaud cita especialmenteos Discordância das esferase dos tempos.
trabalhos de Paul Lacombe, De /'bfsfóire co sídérée comme scie#ce(1894), e de Tempo ritmado das alternâncias e das intermitências.
Xenopol, cuja Teoria da ófsfótla foi traduzida para o francês em 1904. Bonnaud
Tempo rompido da política e da estratégia.
vê aí um convite à "ritmologia". Sua periodização-- articulada em torno de
"curvas de ates", "curvas de fase", "curvas de episódios", cheia de encaixes e Aberto às contradições rítmicas dos ciclos e das genealogias,esse
cruzamentos -- convida a uma exploração heróica nos entrelaçamentos dessas "materialismo histórico" não teria como ser confundido com o "mate-
temporalidadescomplexas. Bonnaud pode ainda ser lido em: l,e S)rsfêmede
I'blsfoife IParis, Fayard, 1989), Ya-l-il desfour#a#fs #isforiqKes momdlaux?(Paris, guns designamcomo a parte descendenteda onda de Kondratiev, examinar de
Kimé, 1992), 1.esA/fernances d# progrês(Paras, Kimé, 1992). Este último livro perto) na mesmaocasião, a onda de Hirschman, completa-la, corrigi-la, inspirar-
insisteparticularmente sobrea necessidade
de uma ritmologia: "Possam os eco- se nela, multiplicar os esboços. Os ritmos qualitativos existem. A ciência desses
nomistas, levados ao estudo dos ciclos qualitativos pelos próprios ciclos quanti- ritmos merece existir" (p. 87).
tativos, tirados de sua beatitudepelo fim das Trinta Gloriosas e aquilo que al- 30Max Stirner, L'Unfq e ef sa propriélé, Paria,Stock, 1978, pp. 72 e 275.

42 43
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADOAO PROFANO

rialismo naturalista". Cadaindivíduo participa de uma pluralidade tem- so" político e filosófico. Avanços e atrasos conjugam-se sem secompen-
poral onde intervêm ciclos económicos, ciclos orgânicos, ciclos ecológi- sarem.Formam duplas simétricas. Marx convida-nos a pensar o contra-
cos, tendências pesadasda geologia, do clima, da demografia. O tempo tempo dessesarranjos temporais: "Nós alemães temos vivido nossa pós-
claudicante é crivado de oportunidades e de momentos propícios anun- história em pensamento na filosofia. Somos contemporâneos filosóficos
ciados outrora pelo &affos dos sofistas. A duração não age mais como do presente sem sermos seus contemporâneos históricos."3i
uma causa, mas como uma chance. A dialética entre forças produtivas Contemporâneos não contemporâneos.
e relações de produção, cujos limites devem ser determinados, "não Descontemporâneos.
suprime as diferenças reais". O acaso não é mais um acidente ou uu A história não conhecesentido único. Nem longitudinalmente, de
parasita da causalidade, mas o correlato imediato do "desenvolvimento acordocom a sequênciados séculos.Nem em corte, quando um pensa
necessário", o outro da necessidade, o acaso dessa necessidade, do avida do outro enquantoo outro vive o pensamentodo primeiro, sem
mesmo modo que a liberdade não é um capricho, mas liberdade de uma quefilosofia e história, economia e política jamais consigamreconciliar-
doação. Determinado, o desenvolvimento histórico permanece repleto sena harmoniacalma da simples "correspondência".Pensadocomo
de ramificações e de bifurcações, de cruzamentos e setas orientadas. "atraso", em relação a uma norma temporal imaginária, o anacronismo
Smoking... No smoking-. acabapor impor-se não como anomalia residual, mas como atributo
Essa revolução conceitual anula a história universal suscetível de essencial do presente. A não-contemporaneidade não se reduz à desi-
pâr ordem no caos histórico. Ela permite reexaminar as escritas his- gualdadeindiferente dos seusmomentos. Ela é também o desenvolvi-
tóricas enumeradaspor Hegel: a história original, a história reflexiva, mento deles combinado num novo espaço-tempo histórico.32
a história filosófica. A história não é de modo algum universal por Aqui nos vemoslonge do Meccano* sumário das infra-estruturase
natureza e em todo o tempo. Ela se torna universal por um processo das superestruturas. A crítica da razão histórica não desembocaráentre-
de universalização real. Somenteentão pode começar a ser pensada tanto na contemplação impotente ou estetizante do ruído e do furor. A
como universalidade em devir. Contra todo o eurocentrismo norma- dialética das forças produtivas e das relações de produção ilumina o
tivo, essasimples observação abre caminho para a antropologia e a desenvolvimentohistórico. Mas os conceitos não esgotama realidade.
história comparativas. Marx lembra fortemente os "limites" dessadialética que "não suprime
Desdea Introdução de 1843 à Confríbuição à a#faa da #loso#a do as diferenças reais". Pois a necessidade explicativa não anula o acaso, e
direffo, Marx apreendeua especificidadeparadoxal de uma história ale- o "como" da história remete "necessariamente"ao aleatório da luta.
mã devotada a dividir as restaurações com os povos modernos sem en-
3iKart Marx, Confrlb tio à /a crlffq e de/a pb /osopbfed# drofl, Pauis,Alfred
tretanto compartilhar suasrevoluções. Política na França, na Alemanha
Costas,1952. "Que é contemporâneo?",pergunta Michel Serres,já que inces-
a revolução é filosófica, não no sentido vulgar de que se trataria de uma santementefazemos "ao mesmo tempo gestos arcaicos, modernos e futuristas",
simples paródia fantasmática de revolução impossível de achar, mas no de acordo com um tempo gofrado e plissado(Éc/alrcisseme#ts,Paras,Flammarion,
sentido de que ela exprime um desenvolvimento desigual em escala eu- "Champs", 1993).
32Lenin com sua teoria do elo fraco, Trotski com suastesessobre o desen-
ropéia entre instânciaseconómicas,políticas, filosóficas. Na combina-
volvimento desigual e combinado e a revolução permanente tiram as consequên-
ção dessasdesigualdades,um avanço é também um atraso e vice-versa. cias estratégicas dessa "nova escrita da história"
O "atraso" político e económico alemão determina seu "avanço" filosó- + Marca registrada.Jogo de construção com peçasmetálicas intercambiáveis.
fico, enquanto o "avanço" económico inglêstraz em si mesmo o "atra- IN. do T.)

44 4S
MARX. O l NTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

"A história universal" não é o cumprimento de um destinoou de Patinhando em lugares-comuns, Kolakowski confunde trâmite lógi-
uma escrita. Resultado do processo de universalização efetiva da cons- co e filosofia da história. Quando Marx vê na anatomia do homem a
ciência(especialmente pelo desenvolvimento da comunicação), ela pró- chave da anatomia do macaco, ele sublinha que "a sociedade burguesa
pria é um produto histórico, do qual convémdar-seconta, e nãoo é a organização histórica da mais desenvolvida e variada produção que
princípio explicativo. existe". Esseo motivo por que "as categorias que exprimem as relações
A história não tem sentido filosófico. dessasociedade" permitem ao mesmo tempo "dar-se conta da articula-
Mas é politicamente inteligível e estrategicamente pensável. ção e das relações de produção de todas as formas de sociedade desapa-
Anunciada pelos Gru2zdrisse,a noz/a escrita da história é posta recidas com os resíduos e os elementos sobre os quais ela se edificou, e
em ação no Cáfila/. Assim como o atestam índice e ocorrências, ali já onde certos vestígios não ainda ultrapassados por uma parte subsistem
não se trata da História enquantotal. nela, onde aquilo que não tinha senão sentido indicativo tornou-se, ao
desenvolver-se, significação explícita".x Ver nesseraciocínio a prova de
uma concepçãodeterminista ou teleológica da história é um grosseiro
MACACOS, GLANDES E HOMENS contra-senso. Trata-se de um problema de conhecimento. A forma mais
desenvolvida revela os segredos das formas menos desenvolvidas. Isso
Certas polêmicas contra o determinismo de Marx revelam pura e sim- não quer absolutamente dizer que o homem seja o destino do macaco,
plesmente ignorância ou o amálgama deliberado entre a sua teoria e um seu único desenvolvimento concebível, seu único porvir realmente pos-
certo "marxismo" doutrinal. Kolakowski interroga-se assim sobre "o sível.Nada obriga com efeito a cona/datar o comem como a #nza/í(üde
marxismo como doutrina do futuro": "Nenhum estudioso do marxismo do w#Mco.3s Hlá entre eles muitas bifurcações.
poderá negar que o sezzlldoda bislór/a entrevisto por Marx, enquanto Do fundo de sua prisão Gramsci ridicularizou com humor..=Q
tentava realçar-lhe o traçado, não decorria para ele somente de suas evolucionismQ.vulgar.fatalista e positivista" atribuído a Marx. "Po-
investigações retrospectivas; antes, em primeiro lugar, é através dos seus der-se-iacolocar assim o problema: toda 'glande' pode pensar que se
prognósticos sobre os destinos futuros da humanidade que essesentido tornará um carvalho. Seas 'glandes' tivessemuma ideologia, seria
pode tornar-se explícito. É, afzles de fzzdo, í7zdimndo a pnspeclíz/a de m justamente a de se sentirem 'grávidas' de carvalhos. Mas na realidade
mundo novo pata o qaat nos conduz infaliuelmente a sociedade contem- 999 grandesem mil servem de alimento aos porcos e contribuem
povâma que ficamos em condições de apreender a significação do pas- quando muito para fabricar salsichas e mortadela."36
sado: um ponto de vista jovem-hegelianoque Marx nunca rejeitou. É
34Kart Marx, GT':l#drfsse,1, p. 39.
somente nia laz da unidade futura da humanidade qae se nos desuela o
3sEm La Violencecáfila/isée(Paria, Cera,1986) Bernard Guilbert faz este
senlfdo da õ/sfórü ulzft/erga/passa(ü.Por aí seriaportanto impossível estimulante comentário sobre a inteligibilidade "anatómica" da história: "A in-
admitir ainda como marxista uma posição que não quisesseaceitar a teligibilidade da história efetua-sea posteriori. A lógica é história condensada.O
profecia comunista. Um marxismo amputado desseelemento deixaria próprio anacronismoé portanto orientado por uma irreversibilidade;o cone de
luz(de espaçoe de tempo) que acompanha o capital em sua trajetória proíbe a
de ser um marxismo."33 Marx recusa ao contrário, categoricamente, o
inteligibilidade de qualquer outra história que a sua e retrospectiva.O capital
ponto de vista "jovem-hegeliano" que Ihe é atribuído ali. recapitula sua história. Somenteneste sentido a anatomia do homem é a chave da
anatomia do macaco" (p. 29).
33Leszek Kolakowski, Hisfofre d marxismo, op. cit., t. 1, p. 537. K Antonio Gramsci, Cabfersde Frisar 6, 7, 8, 9(Paras,Gallimard, 1983),

46 47
MARX. O INTEMPESTIVO
DO SAGRADO AO PROFANO

Nada de término da história, portanto. Nada de paleolítico supe-


rior, nada de colina inspirada onde cumprir a ascensão.Nada de cume obrabaixo. Não partir mais da história como princípio explicativo,
;las coloca-la como aquilo que deve ser explicado.
de onde a planície atravessadacegamente se ofereceria ao olhar triun-
A nova escrita da história requer portanto a elucidação da estrutura
fante. Nada de revelação retrospectiva do sentido. Somentemortade-
interna real do modo de produção. A ordem lógica excede a ordem ge-
la profana e salsichas prosaicas.
nética,que os ingênuos do conceito persistem em confundir com a his-
A categoria temporal do conhecimentonão é a de um porvir deten-
tória empírica. Esseconhecimento não se exprime sob forma de predi-
tor da palavra final, mas a do presente que propicia as chaves de inte-
çõeshistóricas disfarçadas em previsões científicas. Marx denuncia ao
ligibilidade do passado. Que uma forma desenvolvida (ou uma catego-
contrário os inventores de um estado normativo ("que deve ser criado")
ria complexa em relação a uma categoria simples) permita esclarecer
ou de um ideal ao qual a sociedadedeveria submeter-se.Seupropósito
formas embrionárias não significa que essedesenvolvimento seja o úni-
antíutÓPíco consiste em desfazer o feixe dos possíveis não para predizer
co porvir possível.desseembrião. As categoriasda economia burguesa
o curso necessárioda história, mas para pensar as bifurcações surgidas
permitem semdúvida pâr um novo olhar sobre todas as formas de so- do instante presente."
ciedade, mas czlm gramo sa/is, pois elas não dispensam de elaborar as
A teoria megulha então no âmago do atual para desfazeros nós de
categoriasespecíficasa essasformações sociais. Denunciando a ilusão
um tempo repleto de calombos, rugas e vincos. Para desenvolver as leis
retrospectiva segundo a qual uma sociedade tende quase sempre a con-
da economia burguesa, "não é necessário escrever a história efetiva das
ceber o passado como sua gênese necessária, Marx rejeita uma espécie
relações de produção". A observação delas, como relações que acaba-
de determinismo às avessas: as sociedades anteriores, diz ele, "podem
ram por se tornar históricas, conduz "sempre a equações irredutíveis
encobrir essasformas desenvolvidas,estioladas, caricaturadas etc., mas
sempre com uma diferença essencial. De resto, o que se costuma chamar
queremetema um passadodeixado para trás por essesistema".Ao
mesmo tempo que "a apreensão correta do presente", essas indicações
desenvolvimentohistórico repousasobre o fato de que a forma derra-
fornecem "a cõaz/epara a compreensão do passado: este é um trabalho
deira considera as formas passadascomo etapas que conduzem a si
à parte que esperamoster tempo de abordar igualmente. Por outro lado,
mesma; como, além disso, é raramente capaz, e ainda em condições
esseexame segundo uma perspectiva justa conduz também a pofzfos
históricas determinadas, de fazer sua própria crítica, ela as concebesem-
onde se esboça a abolição da configuração atuat das relações de prodt4-
pre de maneira unilateral".s7Essarelação unilateral da forma derradei-
Po e portanto o nascimentode um movimento, pre/7guraç:ão
do porvir.
ra com as formas passadaselimina a pululação dos possíveise mutila
Se,de uma parte, as fases pré-burguesas aparecem como pressuposfções
uma necessidadeamputando-a de seus acasos.
blsfóffcas, q er d/zer abo/idas e /Irapassadas, as condições atuais da
produção aparecerão como condições que estão abolindo a si mesmase
Querer explicar a história pela história cria um círculo vicioso. É preciso
que se colocam por conseguinte como os pressupostos históricos de um
romper essecírculo. Subverter a questão. Pâr a totalidade de cabeça novo estado de sociedade".3P

p. 498. Nos mesmoscadernos Gramsci fustiga "a história fetichista" e a ilusão Nem mais, nem menos.
das origens, segundo a qual procura-se na história precedente os germes de um
38"Sempre que Marx debruça-se sobre problemas históricos concretos, o concei-
fato concreto como "se procura a galinha no ovo fecundada"(p. 477).
s7Kart Marx, Gmlzdrisse,1,op. cit. Capítulo: "Formas anterioresà produ- to de necessidadeé substituído pelo conceito de alternativa"(Agnês Heller, l,a
ção capitalista", p. 140 ss. Tbéorie des besoi#s,Paras,UGE, 1978, p. 108).
19Karl Marx, Grwndrisse,1, op. cit., p. 400.

48
49
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

Afirma-se aqui uma nova temporalidade do conhecimento.As desfiada simplesmente as etapas de uma marcha inexorável para o pa-
sociedadesde ontem não são em si mesmas,em sua imediatidade. raísorecuperado Suascélebrescartas a Verá Zassulich sobre a Rússia
históricas. Passama sê-lo sob o choque do presente. O conhecimento desmentem categoricamente essa visão linear.+i Ele sustenta ali a possi-
do passadonão consistiria em usar seustrajes fora de moda, entrar bilidade, para a sociedade russa, de evitar os sofrimentos da acumula-
em suapele ou abarcar com um olhar panóptico o quadro rematado çãocapitalista. A articulação da comunidade agrária russacom o desen-
da história universal. Ela não pertence à ordem horizontal da passa- volvimentoindustrial dos paísesmais desenvolvidosautoriza essa
gem em revista ou do sobrevoo dominador. possibilidade.A combinação do trabalho coletivo da terra com as téc-
Ela pertence à ordem vertical. Do cavoucar e mergulhar nas profun- nicas mais avançadas (insumos químicos, máquinas agrícolas) pode le-
dezas do presente, onde se acham enterradas as chaves que abrem as var à obtenção direta de uma produtividade superior à da empresa agrí-
arcas do passado como as portas do futuro. Não para oferecer o domí- cola capitalista, "porque na Rússia, graças a uma combinação de
nio sobre eles. Mas para deixar entrever, na fugacidade de uma fresta, circunstâncias únicas, a comuna rural, ainda estabelecida em escala na-
à luz bruxuleante de uma vela, as paisagens ainda indecisas do ando. cional, pode liberar-se gradualmente de suas características primitivas e
Uma pre/b#ração do pomar não tem a certeza de um fim previsível. Ela desenvolver-sediretamente como elemento da produção coletiva nessa
não é mais que o "nascimento de um movimento". O instante atual, que mesma escala nacional: é justamente graças à contemporaneidade da
oscila permanentemente no passado, toma consciência de sua própria produção capitalista que ela pode apropriar-se de todas as suas aquisi-
abolição e de sua própria ultrapassagem,em uma palavra de sua pró- çõespositivas e sem passar por suas terríveis peripécias". Esta carta de
pria historicidade nascente. Ele torna-se assim por seu turno o "pressu- 1882 retoma a noção de co remporaneidade introduzida nas notas de
posto histórico de um novo estado de sociedade". Dessenovo estado, 18S7: a contemporaneidade (intermcional) de situações (mciomis) ttão
que já se nega, o presente nada pode saber de definitivo, nada dizer de c07ttempoTâneaspemlite saltar as etapas de Hma pretensa normalidade
positivo. Ele pode somente apreender de passagem o momento do nega- óisfórlca! Entre 1845 e 1882, o caminho teórico percorrido é conside-
tivo de onde jorram as girândolas ofuscantes e efémeras do possível. rável. Quanto ao inimigo, o de sempre: o fetichismo histórico.
Pouco inclinado às lucubrações, Marx recusa-setanto a escurecer Uma carta de 1877 à redação dos Olefcbez/esfz/e/zy
é zaPls&yecoa
as nuvensdo futuro quanto a pâr fogo sob a panelado futuro. Elc claramente os textos da Sagrada áamí71ae da .ideologia a/emã: minha crí-
não arquiteta os planos de uma sociedade perfeita que charlatães de tica quer "absolutamente, fransÃormar o meu esboço bfslórfco sobre a
pequenavirtude venderiamde bom grado no mercadonegro das re- gênesedo capitalismo na Europa ocidente! em tina teoria histórico-filo-
formas a varejo. Ele contenta-secom deslizaro pé entre os batentes sófica sobre a maTcbageral, fatalmente imposta a todos os pot'os, quais-
por onde filtra-se o clarão hesitante do amanhã.40 quer qae sejam as circunstâncias históricas em que se acham colocados,
para chegarem último lugar a essaformação económicaque assegura,
Se Marx retomasse por sua conta a teodicéia hegeliana do Espírito, o com o maior impulso dos poderes produtivos do trabalho social, o desen-
encadeamento mecânico dos modos de produção para o comunismo volvimento mais integral do homem. Mas peço-lheperdão [.-]. Aconte-
cimentos de uma analogia chocante, mas em meios históricos diferentes,
40Chegados a este ponto, perguntamo-nos ainda se se deve a cegueira teórica ou
má-fé o fato de um autor tão meticuloso quanto Elster teimar em denunciar "a
tendênciaconstantede Marx a fundir e confundir filosofia da história e análise 4\ M.auticeGodo\iet, Les Sociétésptécapitalisteset le made de prodaction asma
histórica" IJon Elster,Kar/ Maré-., op. cit., p. 586). ffq#e, Pauis, Cerra, 1967.

50 51
MARX. O INTEMPESTIVO DESAGRADO AO PROFANO

levaram a resultados inteiramente distintos. Esfzzc&zzzdo ca(&z ma dessas Marx parece dividido entre duas idéias contraditórias.
euotuções à pente, e comparando-as em seguida, acbat-se-á facitmmte a De um lado, ele não pode deixar de pensar a transição ao socia-
chape desse fenómeno, mas nunca se chegará até ali com o salva-cordato lismo como um processo de longa duração, à imagem da transição ao
de uma teoria histórico- filosófica geral cuja suprema virtude consisteattl capitalismo.Seguindoessahipótese, o próprio capitalismo desenvol-
ser supra-bísrórlm". Marx recusa peremptoriamente qualquer esquema ve as condições de sua própria negação e as mutações virão em seu
geral, supra-b/sfórico, baseadosobre a imprevisibilidade determinada da tempo, já que, do mesmo modo, "a humanidade só se propõe tarefas
desenvolvimento real. Isso não impede que os epígonos (social-democra- que pode cumprir".« A ortodoxia kautskyana da ll Internacional
tas ou stalinianos) imaginem uma sucessãomecânica de modos de produ- desenvolveuunilateralmenteessainterpretação.As revoluçõesparti-
ção, arriscando-se a escamotear aqueles, como o modo de produção asi- cipam então de um amadurecimento orgânico e quase-natural do
ático, que teriam podido perturbar esse belo ordenamento.4z processosocial. Elas se fazem, de alguma forma, sem que haja neces-
Como pensar essacombinação de leis e de aleatório, de tendências sidade de fazê-las. Reduzido ao papel de pedagogo, o partido fica
e de eventos, de determinações económicas e de bifurcações políticas? encarregadode informar a consciênciadas massas,de transmitir as
E como pensar "a transição" que conduz além do modo de produção lições da experiência e gerir o novelo crescente dos sufrágios eleitorais
capitalista? A transição quatro vezes centenária, esporádica e desi- e das adesões sindicais.

gual, da gênesedo capital, fornece preciosasindicações.Ela não se De outro lado, Marx compreende perfeitamente a assimetria das
realizou apenas pelo concurso de forças ou relações económicas, mas condiçõesentre revolução burguesa e revolução proletária. A burgue-
através das guerras, das conquistas, a intervenção do Estado, as lutas sia detém os meios de produção antes de controlar o poder político.
religiosas, as reformas jurídicas.43 Senhorado tempo, ela produz e forma seusintelectuais orgânicos. Os
proletários sofrem ao contrário uma dominação absoluta. Perdendo
4z Como observaLeszek Kolakowski:. "a categoria de modo de produção asiático suaautonomia no trabalho, caindo na necessidadede vender-secomo
pode muito bem parecer não ser mais que um detalhe na filosofia marxista da histó- mercadoria,elesentram no círculo de ferro da alienação.Condena-
ria; ela representa entretanto uma tese que nos obriga a revisor muitos estereótipos dos que são a andar em círculo, sob o chicote da mercadoria, no pi-
marxistas em vigor, e em particular todos essesestereótipos sobre o determinismo cadeiroda ideologia dominante, a melhor pedagogia(propaganda)
histórico e o progresso"(Hisloire d marxfsme,op. cit., 1, p. 504). É o menosque se
partidária não bastaria para romper as correntes de sua servidão. Para
pode dizer. Para a ortodoxia staliniana, essaeliminaçãotinha uma intençãoevidente.
Se a maior parte da humanidade vive sob modos de produção estranhos à sucessão issoé necessárioo levantee a insurreição.A política revolucionária
cronológica entre feudalismo e capitalismo, não há mais esquemade desenvolvimento consisteem apreender essesmomentos excepcionaisonde o encanto
unificado, não há mais teoria da revolução por etapas que sesustentee -- quem sabe? do fetichismo pode ser rompido.
-- não há mais meio de apresentaro socialismo realmente existente como "pós-capi-
Como conciliar a maturidade do processo e o aleatório da ação?
talismo" ou "transição" necessária
ao socialismo.Esse"pós" não tem com efeito
nenhum sentido. As sociedadesburocráticas nunca foram pós-capitalistas. Nem den- Como combinar a lentidão do primeiro e a rapidez da segunda?Como
tro do tempo: elas permaneciam contemporâneas do sistema capitalista mundial dominar a mudança de ritmo em virtude da qual as jornadas revolu-
dominante. Nem do ponto de vista da produtividade do trabalho, que nunca alcançou
a dos centros imperialistas. Teria sido necessário, para compreendê-las melhor, pen- tion au socialismo',4cr e/ Maré, númeroespecial,Fi d# coram lzfsme,Pauis,
sar a história segundo a articulação do sistemamundial de dominação e de dependên- PUF, 1991.

cia e de acordo com a não-contemporaneidade de seu espaço-tempo. H Karl Marx, Prefácio de 1859 a ColztribuffoH à la crfrfq e de J'écolzomíe
Po/irique, Paras, Éditions sociales, 1977.
43Ver o artigo de Maurice Godelier, "Les contextes illusoires de la transi-

53
52
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

cionárias valem subitamente séculos? Como assegurar-seque a revoju. coroamento de uma hegemonia já instaurada. Para o proletariado, ela
ção corte na hora certa -- nem muito cedo, nem muito tarde -- o nó das é a chave da emancipação social e cultural. A revolução burguesa
contradições? Muito cedo, e a transição impossível recairia nos filhos sancionatransformaçõesconsumadas. A revolução proletária inaugu-
do "comunismo grosseiro" lucidamente denunciados desde os Manas. ra um período indeciso e caótico; Enquanto a relação de exploração
grifos de 1844. Muito tarde, e a humanidade seria embarcada em só e o contrato de troca mercantil reproduzem automaticamente o facear
Deus sabe que galeras, sem garantia de poder refazer um dia o que foi entre burgueses e proletários, nenhum mecanismo social garante o
mal feito ou o que não deu certo. As revoluções nunca estão na hora. definhamento das categorias mercantis e a reprodução de uma ordem
Obstinam-se a faltar aos encontros. Parecem condenadas a esta dialética social não capitalista. O tempo fracciona-se, volta-se sobre si mesmo,
infernal do "já mais" e do "não ainda", a estaquedavertiginosaentre dilata-se bruscamente.
o "além do não-ainda" e o "já-mais do ainda".4' As páginasdo Dezoffo Brumário possuemhoje um interessepar-
O angustiante enigma das revoluções socialistas leva essedesre- ticular. Conscientede que não há acordo espontâneo entre tempora-
gramento ao cúmulo. Como de nada tornar-se tudo? Como dar esse lidadeseconómicae política, Marx deixa a última palavra às "cir-
grande salto sem quebrar os ossos? cunstâncias" encarregadas de restabelecer a harmonia. Pois ninguém
Desde as revoluções de 1848, Marx tem consciência da particula- comanda a conflitualidade social e a data de suas explosões. Os mo-
ridade das revoluções proletárias. As revoluções burguesas,como as tins e as revoluções não obedecem aos decretos da teoria. Extemporâ-
do século 18, "precipitam-se rapidamente de sucessoem sucesso". Logo neas e inatuais, elas nunca estão em seu lugar no escoamento rotinei-
"atingem seu ponto culminante, e um longo mal-estar apodera-seda ro dos trabalhos e dos dias. De onde a especifiqdade do político e do
sociedade antes que ela tenha aprendido a apropriar-se de maneira evento. Sua temporalidade cotidiana quase não corresponde ao "sen-
calma e adequada dos resultados do período tempestuoso". As revo- tido da história" vulgarmente censurado em Marx e Engels.Freqüen-
luções proletárias, em contrapartida, "criticam-se a si mesmascons- temente suspeito de determinismo agudo, este último compreende
tantemente, interrompendo a cada instante seu próprio curso, voltam perfeitamentea política como dilaceramento do horizonte,deteriRina-
ao que já pareceter sido realizado para recomeçarnovamente,zom- do: "Em minha opinião, as colónias propriamente dita s, ou sejam\os
bam impiedosamente das hesitações,das fraquezas e das misérias de paísespovoados de elementos de cepa européia, o Canadá, o CabosXa
suasprimeiras tentativas, parecemnão abater o adversário senãopara Austrália, tornar-se-ão todos independentes.Em contrapartida, oW
permitir que ele tire novasforças da terra e erga-sede novo formidá- paísessob simples dominação e povoados de indígenas, Índia, ArgéÀ
vel diante delas, recuam sempre e de novo diante da imensidão infini- lia, as possessõesholandesas,portuguesas e espanholas, deverão ser
ta de suas próprias metas, até que esteja enfim criada a situação que tomados em carga pelo proletariado e conduzidos à independência
torna impossível qualquer retorno e que as próprias circunstâncias tão rapidamente quanto possível. Como tal processo se desenvolverá
clamem: fifc Rbodws, bíc sd/fd1"4ó é difícil dizer... Mas, quanto às basesde desenz/o/z/imefzfo
soda/ e
Revoluções burguesas e proletárias diferenciam-se também pela político por que essespaíses det;farão passar em seguida para também
temporalidade.A conquistado poder político é para a burguesiao chegarema uma estrutura socialista, creio que lJoje só podemos!e-
uatttar hipóteses bastante ociosas.""
's Jacques Derrida, Glas, Paras,Denoêl, "Médiations", 1981, p. 305
4õKarl Marx, l,e Dix-liKir Br#maire-., op. cit. +7Friedrich Engels, carta a Karl Kautsky, de 12 de setembro de 1882

54 55
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

DESCONSTRUIR
A HISTÓRIAUNIVERSAL
drfsse),o enriquecimento da espéciee da personalidade individual pelo
desenvolvimentoe a diversificação das necessidades.
Os textos de Marx suscetíveisde justificar a censura de uma visão A ordem cronológica de modo algum é uma garantia. Para conven-
teleológica da história são influenciados por uma ciência do ser vivo cer-sedisso, basta ler as páginas magistrais do trabalho de Engels sobre
então em pleno impulso.48Numerosas metáforas designam assim o a guerra dos camponesesl Na história real, o vencido não está forçosa-
capital como um organismo: "0 percurso do capital é ao mesmotem- menteerrado, e o vencedor não está necessariamentecom a razão. O
po seu devir, seu crescimento, seu processo t/ila/. Se alguma coisa ti- olhar crítico do oprimido sobre as "alternâncias" do progresso parece
vesseque ser comparada à cfrc /anão do safzg#e,não seria a circula- mesmonegar a missão civilizadora antes atribuída ao capitalismo. En-
ção formal do dinheiro, mas a circulação, substancial,do capital." A tretanto, diz Marx, "a questão que se coloca é a de saber se é possível
concorrência reproduz e desenvolvesua "organização viva interna". à humanidade cumprir seu destino sem subverter radicalmente as rela-
Mais consistente à primeira vista, a acusação de determinismo çõessociaisna Ária. Sea humanidade não o pode fazer, então a Ingla-
mecânico tira argumento dos equívocos do progresso. Com efeito, nãa terra, quaisquer que sejam os crimes que ela tenha podido perpetrar, é
há qualquer necessidadede postular uma.causalidade implacável ou assimmesmo o inslmme/zfo /nco/zsclefzfecü bíslór/a na medida em que
um juízo último para considerar que aquilo que se segueconstitua um elalevou essarevolução a bom termo. Dessemodo, por mais transtor-
progresso em relação a algo imediatamente precedente. O critério pode nante que possa ser para a nossa sensibilidade pessoal o espetáculo da
permanecer sobriamente comparativo. Se Marx recusa, desde 1858, a derrocadade um antigo mundo, temos o direito de exclamar com Go-
"concepção abstrata do progresso", facilmente confundido com o ethe diante da história: Um tal sofrimento deve nos atormentar, se con-
hábito e a rotina, como o concebeele?Toda a sua lógica opõe-sea siderarmos que ele aumenta a nossa alegria?-."4P A conclusão não deixa
uma visão unilateralmente quantitativa. A redução das relações hu- margema dúvida. Aliás, a atitude de Marx diante da anexaçãodo Te-
manas à frieza das relaçõesmonetárias e o simples empilhamento de xas e da Califórnia pelos Estados Unidos confirma-o. Do mesmo modo
mercadorias não seconstituiriam provas de civilização. Necessário,o que os "povos sem história" são sacrificados ao dinamismo das nações
mero desenvolvimento das forças produtivas não preenche uma con- históricas, assim também a colonização participaria, malgrado seus
dição suficiente. Os critérios mais frequentemente invocados são an.l horrores, de uma modernização civilizadora. Os partidários declarados
tes sociais que técnicos: as relações do homem com a mulher (no# da colonizaçãono seio da ll Internacional, como David ou Van Kol,
À4anzlscr/[os de í844), a conquistade um tempo ]iberado criativo puderamtirar argumentodali para justificar seuapoio muito pouco
contra o tempo servil e alienado do trabalho obrigatório (nos Grua'- crítico às expedições imperialistas em começos deste século.se
Marx, todavia, exprime antes um mal-estar diante de uma contra-

48A biologia do século XIX é atravessada por interrogações metodológicas que


dição não resolvida. O papel colonial da Inglaterra será "progressista"
recortam as da crítica da economia política. Diferentemente da física, a biologia
não trabalha sobre causalidades mecânicas, mas sobre estruturas significativas. 49Karl Mare, "La domination britannique aux Indes (1853)', Neü, Yor&Daily
Daí sua visão francamenteteleológica. Defendendoa fecundidade de uma ini- Trfbu#e, 25 de junho de 1853, em Karl Marx, Oewt/res,Paras,Gallimard, "Bibli-
ciativa como essa,Georges Canguilhem distingue uma teleologia transcendental othêque de la Pléiade", t. IV, 1994.
daquilo que ele chama uma teleologia organísmica:põr o organismo total no seVer Roman Rosdolsky [0 proa/ema dos Fofos sem bisa(5ria].É impor-
primeiro plano não obriga de modo algum a investi-lo de não importa que desíg- tante lembrar que os textos de Marx e Engelssão anterioresao aparecimento
nio providencial. daquilo que Lenin, Rosa Luxemburgo, Bukharin, Hilferding caracterizarão como

56 57
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

se, e somente se, a humanidade não vier a revolucionar as relações se. ordinariamentenocivo ou pelo menospouco útil à espécie."s3Essasdi-
dais na Ásia. Então, e somente então, poder-se-áconsiderar que ela ficuldadesteóricas são agravadas quando se deixa a biologia para cuidar
cumpriu essepapel, sem esquecerque o fez através do crime. Essaidéia da história. Como bem viu Canguilhem, a distinção entre normal e pa-
de um progresso re/afít/o não se reduz à pobre relação comparativa tológico supõeentão um juízo de valor imanente ao movimento: "Não
entre um antes e um depois. Ela leva em conta as ocasiões falhadas e as há fato normal ou patológico em si. A anomalia ou a mutação não são
virtualidades desfeitas.Um "progresso" em relaçãoa um Estado feudal eo si mesmaspatológicas. Elas exprimem outras normas de vida possí-
despótico não é necessariamenteum progresso em relação às possibili- veis.Se tais normas são inferiores, quanto à estabilidade, à fecundidade,
dades perdidas, e não basta considerar friamente o papel do colonialis- à variabilidade da vida, às normas específicas anteriores, elas serão cha-
mo britânico na Ásia como progressistapara absolver seuserros. O madas de patológicas. Se tais normas revelam-se eventualmente, no
ponto de vista político não coincide com a análise histórica. A citação mesmomeio, equivalentesou, em outro meio, superiores,elas serão
de Goethe ilustra essadolorosa contradição. Sob o reino da propriedade chamadasde normais. A normalidade delas virá de sua normatividade.
privada, as forças produtivas "só conhecem um desenvolvimento par- O patológico não é a ausência de norma biológica, é uma outra norma
cial" e "tornam-se em sua maior parte forças destrutivas".s' mascomparativamente rejeitada pela vida."" Poder-se-iadizer analogi-
O problema é bem esse.Marx desconstróia noção de História camenteque não há anormalidade em história, quando muito anomali-
universal. Cada presente oferece uma pluralidade de desenvolvimen- as.Tratar o nazismo ou o stalinismo como formas patológicas, em vez de
tos possíveis. Mas todos essespossíveis não têm o mesmo índice de ver neles fenómenos históricos originais inteiramente à parte, resulta ao
normalidade. A ortodoxia maioritária da ll e da lll Internacional tra- mesmo tempo em valorizar as sociedades normais das quais eles se afas-
tou de bom grado dos desregramentosdo capitalismo em termosclí- tam e em minimizar o alcance específico de seus "desvios" passageiros.
nicos. As próprias oposiçõesao stalinismo aplicaram quase sempreàs O stalinismo ou o nazismo não são monstros nem exceções.Elesrevelam
sociedades
burocráticaso vocabulárioda "degenerescência"
e da "outras normas de vida possíveis". Devem ser combatidos, não a título
"deformação". Opondo monstruosidadese desenvolvimento sadio, o de uma norma histórica que não se encontra, mas a título de um projeto
"marxismo" sem Marx viu-se assim dotado de um verdadeiro discur- que reivindica seuspróprios critérios de julgamento.
so teratológico. Sempre perspicaz, Gramsci reprova o À4anua/ de so- Como a vida, a história é variação de formas e invenção de com-
cio/ogia popa/ar, de Bukharin, por julgar o passadoirracional e pro- portamentos. Não é surpreendenteencontrar em Hegel uma lógica da
por "um tratado histórico de teratologia".sz história e em Marx uma lógica do capital concebidas como lógica do
Darwin já estava consciente da relação problemática entre normal e servivo. A vida colocaseuspróprios valoresprocurando vencera morte
patológico: "Não sepode estabelecerdistinção clara entre as monstruo- e jogando contra a entropia crescente. Pode-se assim imaginar a socie-
sidades e as simp]es variações [...]. Servindo-se do termo monstruosida- dade resistindo à sua própria agonia. As formas rejeitadas não o são
de, quer-sedizer, presumo,um consideráveldesvio de conformação, em virtude de uma linha divisória límpida entre normal e patológico,
mas em nome de uma resistência sempre recomeçadaà sua própria
o imperialismo moderno. Sobre os congressosda ll Internacional e a questão
colonial, vet Stuart Schramm e Hélêne Carrêre d'Encausse, l,e À4arxisme ef /'Adie,
Paria, Armand Colin, 1965. s3Charles Darwin, L'Origine des espàces(1859), Paria, Garnier-Flammarion, 1992,
si Karl Marx, l,Tdéo/ogfe a//emande, op. cit. pp. 52 e 92,
s2Antonio Gramsci, Cabier de Frisam 11, op. cit., p. 215. s' GeorgesCanguilhem,l.e Norma/ et /e palco/ogiq#e, Paras,PUF, 1991.

58 59
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

morbidez. Gramsci está pensando nisso quando percebe "em cada so da história já não seguedoravante o traçado único que Ihe daria
instante da história em devir" uma luta "entre o racional e o irracio- sentido. Ele explode em galhos e ramos sempre recomeçados.Cada
nal": "Entendemospor irracional aquilo que, em última análise,não ponto de bifurcação crítico coloca suaspróprias questõese exige suas
triunfará, o que nunca se tornará história efetiva, mas que na realida- próprias respostas.
de é também racional porque está necessariamente ligado ao racional A crítica da filosofia especulativada história leva Marx a remanejar
e do qual é um momento que devemoslevar em conta; pois, se na radicalmenteo campo conceitual e a mudar de prioridade teórica.
história o geral triunfa sempre,o parfic /ar também /z fa para ímpof- De uma parte, explica Jean-Made Vincent, "a luta dc classes deve
se na medida em qae ele detemüna um certo desent/oluimento do geral ser pensadacomo uma luta contra a pré-história, contra o primado
e não um outro [...]. Somentea lata, com o sea resultado,e não ape- do passadofechado, o que significa também uma luta pela reatualiza-
nas com o seu resultado imediato, mas aquele que se e3cptimenuma ção das potencialidades inexploradas e inutilizadas do passadoocul-
t,ifórla permanefzle,dir(í o qzfeé racíona/ ozlimacíona/, ou seja, o que tado e enterrado. Não pode haver nessesentido linearidade do pro-
é 'digno' de vencer, porque, à sua maneira, ele continua e ultrapassa gressosocial nem superação que não tenha êxito sem retomada daquilo
o passado."ssNormalidade e racionalidade são sempreparciais e pro- que não encontrou outrora sua validação. A frente do progresso trans-
visórias. Sob reserva permanente de confirmação. Nada garante que cende por isso os limites habituais da temporalidade, cle se estabelece.
o "normal" ou o "racional" supostos possam realmente vir a aconte- como o constata Bloch, numa temporalidade elásticaque atravessaas
cer. Mesmo irrealizada, a normalidade continua normalidade e colo- épocas Nada foi definitivamente representadoporque nada até o mo-
ca o problema do seucritério. Se Deus está realmente morto e a ciên- mento foi realmente representado".s' De outra parte, o fetiche rompi-
cia não cuida de moral, só restam duas soluções.Sejao julgamento da do da história libera as categorias que permitem pensa-lade outro
História, que volta sub-repticiamente,
na ponta dos pés,para dizer modo. Sobre as ruínas da História universal emergem uma "ritmolo-
qual é a moral da fábula; seja o ponto de vista de classe,que determi- gia" do capital, uma conceptualizaçãodas crises, uma historicidade
na "sua" norma de maneira auto-referencial. Já não se trata neste caso em que a política "privilegia" doravantea história.s8Na lago/agia
de uma normalidade transcendental, mas de uma realidade imanente a/emã,Marx invoca as "intrusões realmente históricas da política na
que exprime, sobre o modo da escolha estratégica, um desejável que história". Elas anunciamuma inteligibilidade da história real, que
seria ao mesmotempo um necessáriooptativo e um possívelefetivo. pressupõeo aniquilamento de seupróprio mito.
Essaúltima hipóteseparece mais de acordo com a problemática A desproporção entre os comentários inesgotáveisde que é objeto
de Marx.SÓ Não é absolutamente fortuito que ele tenha começado sua a pretensa "filosofia marxista da história" e a pouca atenção dada a
crítica pela dessacralização
conjunta da Família e da História. O cur- essarevolução conceitual tem como surpreender. Entretanto, a partir

ssAntonio Gramsci,Cab ersde priso# 6, 7, 8, 9, op. cit., p. 17. seexprime na linguagem da teoria'. Essafalsa partida da estratégia permitiria o
s' O pensamento estratégico permanece em estado de esboço em Marx. Pra- retorno sub-reptício da utopia mal desfocada.
ticamente ausenteda ll Internacional, ele só se estenderá plenamente com Lenin. s7Jean-Made Vincent, Crfliq e d# traí/ail, Paria, PUF, 1987, p. 45. Ver
Sobre o assunto, aconselhamos a leitura das pesquisas de Henri Males. Para ele, também StéphaneMoles, L'Ande de J'Hlsfofre, Paras,Senil, 1991, e Daniel Ben-
estratégiae utopia são dois pólos que se excluem mutuamente, e a crítica da saíd, Wa/fer Ben/amin, se rl el/e messianlg e, Pauis, Piam, 1991.
utopia é "por definição estratégica". Ora, em Marx a fala estratégicacontinuaria sl Walter Benjamin, Parascapllale d# XIXême siàcle, Paras,Cera, 1989, p.
balbuciante: a estratégia não seria mais que "a tradução da história tal como ela 405

60 61
MARX. O ANTEMPESTIVO

dos Grzlmdrisse, a história no sentido corrente retira-se do discurso


teórico. E "quando Das Kapifa/ interrompe o curso e dilacera o tecj-
do de todo o movimento histórico, é como uma trovoada inaudível.
um silêncio, uma margem".SP
Não acabamos de aprender a escutar essesilêncio.

2. Os tempos em discordância
IA propósito do marxismo analítico )

s9Gérard Granel,prefácio a l,a Crise des soe cese:lropée#lzesde Husserl, op


cit

62
Eis que são chegadostempos de restauração.
De ordem? À medida das desordens. De progresso?Temos todo
o direito de duvidar disso.
O obscurecimento da luta de classesé propício às seduçõesdo
mercado e à escalada dos conflitos de pequena monta.
A Alemanha, a Europa latina, a Europa central brilharam por
muito tempo como os lares vivos dos marxismos teóricos. A renova-
ção parece doravante soprar do norte. A corrente do chamado "mar-
xismo analítico" ou da "escolha racional" produz um trabalho não
raro meticulososobre os textos. O marxismo ana/a/coé o título-
manifesto de uma coletânea publicada em 1986 por John Roemer onde
figuram contribuições de Jon Elsier, Gerry Cohen, Eric Olin Wright,
Robert Brenner, Adam Przeworski, Philippe van Parijs. A maioria
dessesautores concorda em opor "individualismo metodológico" e
"coletivismo metodológico". Wright caracteriza essacorrente como
"uma tendência intelectual no seio de um marxismo acadêmico que
volta a exercer influência". Semminimizar as discordânciasentre tais
estudiosossobre quase todas as questões práticas cruciais, ele subli-
nha seu compromisso metodológico comum: respeito pelas normas
científicas convencionais; importância atribuída a uma conceitualiza-
ção sistemática("atençãoparticular à definição dos conceitose à
coerência lógica dos repertórios entre conceitos interdependentes");
especificaçãocuidadosa dos progressos da argumentaçãoque liga os
conceitos entre si com "utilização explícita de modelos sistemáticos;
importância da ação intencional dos indivíduos tanto nasteorias ex-
plicativas quanto nas normativas". Mais circunspecto que os colegas

65
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

em relação ao "individualismo metodológico", ele coloca francamen- ras. Ela avança por eliminação das formas de propriedade e de exploração
te a questão: "Que resta do marxismo depois de tudo isso?"' tomadas socialmente caducas: "Parece", diz Roemer, "que a história eli-
Essesautores compartilham portanto a convicção de que "o mar- minanecessariamente
as diversasformas de exploração numa certa or-
xismo" deveaspirar "ao estatuto de ciência social autêntica". Inspj- dem." Na medida em que cada vez menos bens de produção podem fun-
rada da pragmática e da teoria dos jogos, a iniciativa delespressupõe cionar sob o regime da propriedade privada, o vedordo tempo histórico
um acordo sobre o que constitui ciência e seus critérios. A pesquisa exprimiria ao mesmo tempo um determinismo tecnológco constringente
empírica desempenha um papel decisivo. Muito tempo deve ser con- e um processo irreversível de socialização da propriedade.
sagrado a "defender as definições específicas" e a examinar a interde-
pendência lógica entre conceitos: "A condição necessáriaao desen-
volvimento de teorias fecundas é a elaboração de conceitos logicamente
coerentes."Wright justificaassimo recursoa modelosabstratos,"às MARX TEÓRICODA NORMA HISTÓRICA?
vezesaltamente normalizados", tomados de empréstimo à teoria dos
)ogos. Enfim, embora a questão seja a mais polêmica no seio do gru- Percebe-senão raro, até entre os ferrenhos oponentes da contra-revo-
po, o acento é colocado sobre as "microfundações" e sobre o compor- lução staliniana, uma nostalgia da norma histórica. A revolução ter-
tamento de atores racionais.zA teoria do equilíbrio geral, os modelos se-ia "degenerado" ou "desviado". Saída de seu leito ou de seus gon-
da "escolharacional" e da economianeoclássicafornecementão fer- zos, a História deveria certamente voltar a entrar nos eixos, depois de
ramentas que permitem teorizar a formação das preferênciase entre- um "desvio" ou uma derrapagem mais ou menos longa.
ver os fundamentos de uma psicologia materialista. Elster e Cohen pretendem assim responder ao desafio constituído
Ellen Meiskins Wood apresentaesse"marxismo da escolharacional" pela aparição neste século de uma formação social inédita, o totalitarismo
como "a teoria da exploração segundo Roemer mais a teoria da história burocrático. Que lugar o stalinismo pode ocupar numa representação
segundo Cohen". Esseacoplamento nada tem de evidente a prloH. A racional da história? Arruína ele qualquer idéia de progresso,remetea
partir do momento em que as classessediluem na interação dos interesses história à estéticashakespearianado som e da fúria? Quais são suasim-
individuais, a história parecedeverimobilizar-se no eterno recomeçodo plicações hoje? As questões são legítimas. As respostas, arriscadas. Elster
jogo. As partidas sucedem-sesem continuidade nem progresso. O sentido retém do prefácio ao (.bplra/ que as condições de um comunismo viável
esvanece-senuma combinatória indiferente de dotações e motivações. A devem aparecer de maneira endógena, "se devem aparecer". Pois não
história não chega ao fim entretanto na repetição uniforme de suas figu- aparecerão necessariamente.A fé desarrazoada nessedesfecho trairia uma
premissateleológica obstinada: "A hora do comunismo soará e, por con-
l Eric O. Wright, /nferrogaffng / eq alffy, Londres, Verso, 1994. Essaquestão já seguinte, todas as condições necessárias à sua aparição serão um dia reu-
tinha sido formulada por John Roemerem Alzalyfica/ À4arxfsm:"Por que deve- nidas. Nesse sentido, o esquema de desenvolvimento de Marx vai do
ríamos chamar de marxista essetipo de trabalho? Não creio que deva ser assim.' porvir ao presentee não no outro sentido. Ele não considerou que o ad-
2 Eric O. Wright contestaa identificação pura e simplesdo marxismo ana-
vento do comunismo pudesseser prematuro e que, a exemplo do modo
lítico com o individualismo metodológico:"Na realidade,muitos marxistasana-
de produção asiático, este se tornasse um beco sem saída da história."3
líticos mostraram-se explicitamente críticos para com o individualismo metodo-
lógico e opuseram-se ao recurso exclusivo aos modelos de racionalidade abstrata
para interpretar a ação humana" (Inferrogafilzg-., op. cit., p. 190). 3Jon Elster, Kar/ À4arr, nne l ferPréfarion alfa/yfique, Paria, PUF, 1989, p. 4 17

66 67
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

"Prematuro": aí está a palavra. Os debates sobre o ritmo adequa- amplamentesuficiente." Cohen conclui daí que "podemosatribuir a
do da história solicitam geralmentealgumaspassagensconhecidasdo Marx não apenasuma filosofia da história, mas ainda o que poderia
Prefácio de 1859 a Co frio íção à cr#ica da eco omfa po/#/ca: "Na ser designado como uma feo ia da bisrórãz, que não é uma construção
produção social de sua existência, os homens entram em relações reflexiva distanciada do que acontece, mas uma contribuição à com-
determinadas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de oreensão de sua dinâmica interna."s
produção que correspondema um grau de desenvolvimentodetermi- Fiel ao título de seulivro maior, esseautor apresentauma "de-
nado de suasforças produtivas materiais [-.]. A um certo estágiode fesa" enérgica dessa teoria. Da Ideo/agia a/emã às Teorias da ma/s-
seu desenvolvimento,as forças produtivas materiais da sociedade z/a/ia,ele enumera os sinais de uma rigorosa determinação das rela-
entram em contradição com as relaçõesde produção existentes ou, o çõesde produção pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas,
que pode ser a expressão jurídica disso, com as relações de proprieda- pois "nenhuma revolução triunfará antes que a produção capitalista
de em cujo seio elas se mantinham caladas até então. Formas de de- tenhaelevado a produtividade do trabalho ao nível necessário".õ Uma
senvolvimento das forças produtivas que eram, tais relaçõestorna- vez expropriada a classe dominante, a classe trabalhadora não seria
ram-se-lhes entraves. Abre-se então uma época de revolução social capazde fundar uma comunidade socialista. Sem "a premissa prática
[...]. Uma formação social nunca desapareceantes que se tenham absolutamente necessária" de uma produtividade elevada, uma socia-
desenvolvido todas as forças podutivas que ela é bastante ampla para lização forçada só teria como resultado a generalizaçãoda penúria.
conter, nunca relaçõesde produção novas e superiores tomam o lugar Longe de desaguar na emancipação real do assalariado, a apropriação
das antigas antes que as condições de existência materiais dessasre- estatal dos meios de produção pode significar a generalizaçãodo as-
lações tenham eclodido no próprio seio da velha sociedade. Essa a salariado sob a forma do "comunismo grosseiro" (que hoje podería-
razão por que a humanidade nunca se propõe senão as tarefas que mos traduzir por "coletivismo burocrático"). As tentativas "prematu-
possa cumprir, pois, olhando-se isso de mais perto, observar-se-á sem- ras" de mudança da relação social estariam assim condenadasà
pre que a própria tarefa não surge senão onde as condições materiais restauração capitalista nas piores condições.
para cumpri-la já existam ou pelo menos estejam em via de existir."' Várias questõesconfundem-seaqui. Contra os comunistasutópi-
A despeito (ou por causa) de suas intenções didáticas, essetexto cos, Marx insiste sobre as condições de possibilidade do socialismo.
coloca mais problemas do que os resolve. O comentário de Gerry Cohen A socializaçãoda penúria só poderia, segundosua forte expressão,
começa por dissociar as forças produtivas da estrutura económica; "trazer de volta toda a velha merda". Essalembrançanão é inútil.
elas não constituiriam uma relação,mas uma propriedadeou um Assim,a crítica do produtivismo presta-senão raro à ingenuidade.Se
objeto, primeiro e motor. Ele insiste em seguidasobre a noção de setrata de denunciar a falsa inocência das forças produtivas e de
corresp02zdêncfa. As relações de produção "correspondem às forças sublinhar sua ambivalência (fatos de progresso, mas também de des-
produtivas num certo estágiode seu desenvolvimento". De onde a truições potenciais), os desastresdeste século estabelecemsuficiente-
célebre fórmula: "Uma formação social nunca desapareceantes que mente sua pertinência sem que haja necessidade de servir de novo as
estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é robínsonadas do crescimento zero ou da economia de coleta. Não existe

4 Kart Marx, Prefácio à Confrlb Ifon à /a crflfqKe de /'éco omíe polifiqKe, op. cit., s Geram Cohen, em John Roemer, op. cit.
P. 3 6 Kart Marx, 7'béorfes sur /a P/Ks-t,blue, Paria, Éditions sociales, 1978

68 69
MARX. O l NTEMPESTIVO DO SAGRADOAO PROFANO

apenasum único desenvolvimentopossível, socialmenteneutro, das Última instância. Mas "a determinação em última instância" é sempre
forças produtivas. Vários caminhos, de conseqüências sociais e ecolÓ. sinal tanto de uma dificuldade quanto de uma solução. Assim, as forças
gicas diferentes, são sempre concebíveis. Mas a satisfação das neces- produtivas incluem o enriquecimento da capacidade de trabalho huma-
sidades sociais novas e diversificadas baseada num tempo de trabalho no. As relaçõesde produção determinam as forças produtivas pelo viés
menor, portanto a emancipação da humanidade do trabalho forçado. da produtividade e da capacidadede trabalho. Desenvolvimentodas
passa necessariamentepor um impulso das forças produtivas. forças produtivas e luta de classesnão são exteriores uma à outra. Ape-
Se o proletariado desempenha supostamente um papel chave nes- nas revelam níveis distintos de determinação, do mais abstrato ao mais
sa transformação, isso se deve a que a divisão técnica e social do tra- concreto, na compreensão do desenvolvimento histórico.s
balho cria as condições de uma organização consciente (política) da Eric O. Wright resumea teoria da história segundoCohensob a
economia a serviço das necessidadessociais. Uma socialização eficaz forma de teoremas:
da produção requer portanto um nível determinado de desenvolvi- 1) o capitalismo torna-se por si mesmo sua própria barreira;
mento. Numa economia cada vez mais mundializada, esselimiar mí- 2) suas contradições criam as precondições do socialismo;
nimo não é fixado país a país. Relativo e móvel, ele varia em função 3) produzem igualmente a classe (proletária) capaz de resolvê-las;
dos laços de dependência e de solidariedade no seio da economia- 4) não há outra alternativa histórica ao capitalismo senãoo socia-
mundo. Quanto menos um paísé desenvolvido,mais se torna tribu- lismo.
tário das relações de forças internacionais. Essaformalização lógica obedeceao princípio do terceiro excluído.
Para admitir tais injunções, não se precisa de modo algum "defen- Os regimes burocráticos deveriam então necessariamenteentrar nas
der", como Cohen,uma "teoria da história" inspiradana ortodoxia categorias alternativas do capitalismo (fosse ele de Estado) ou do soci-
determinista da ll Internacional: "0 que defendo é um materialismo alismo (fosseele "realmente existente"). Consciente da excessivarigidez
histórico envelhecido,uma concepçãotradicional segundoa qual a his- desseesquema binário, Wright emenda-o introduzindo duas variantes:
tória é em primeiro lugar o desenvolvimento da capacidade produtiva 3b) a capacidade transformadora do proletariado pode achar-se
humana:as formas de sociedadecrescemou entram em declínio na indefinidamente bloqueada;
medida em que favorecem ou entravam essedesenvolvimento."' O capi- 4b) podem-seimaginar outras alternativas pós-capitalistasalém
talismo, diz ele, foi necessário "na medida em que estendeu a dominação do socialismo.
do homem sobre a natureza". A contracorrente das novas utopias miti- Essascorreçõesmal flexibilizam uma compreensãoossificada do
gadas, Cohen insiste sobre o primado das forças produtivas: "Quando "materialismo histórico" abusivamente atribuída a Marx. Um dos axio.
Marx diz que as relações de produção co escondem às forças produti- mas do "materialismo histórico" teria sido sempre que "o desenvol-
vas, isso significa que as primeiras são adeq abas às segundas." Dizer vimento histórico produz-se de acordo com uma trajetória de desen-
"adequação" em lugar de "correspondência" não vai mais longe que um
salto de pulga. Relações e forças guardam correspondência ou adequa- BEm l,a Facecacbéed# À4oye#.Age (Pauis,La Broche, 1988), lsaac Joshua sub-
verte a proposição do primado das forças produtivas, no qual ele vê um efeito
ção? Essa correspondência determina um campo de possíveis. Ela não
ideológico do "produtivismo": "A contradição motriz dessa Idade Média não
dita relações de adequação unívocas. As forças são determinantes em
ocorre de modo algum entre forças produtivas e relações de produção, mas sim,
de modo direto, entre as próprias relações de produção. [-.] Sustentamosque a
7 Geram Cohen, em John Roemer, op. cit. mudança das relaçõesde produção precedee comanda a das forças produtivas."

70 71
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

volvimento único", que não teria havido mais que um caminho e que Onde estão portanto, em Marx, esses"eventos particulares" ex-
as ramificações históricas representariam apenas os desvios sobre essa plicados pelo fim da história, ele que analisa o Dezoito Brumário, a
via obrigatória.P Guerra de Secessão,a Comuna de Paria em sua singularidade de even-
to, determinado e contingente, ele que deixa historicamente aberta a
de que maneira conciliar a história como desenvolvimento das forças questão do desenvolvimento ca15italista? Elster não consegue mais
produtivas e como história da luta de classes? Elster vê aí "uma dificul. reunir aquilo que o seuenunciado separouartificialmente: as forças
dade maior do marxismo": "Não se encontra traço de um mecanismo produtivas e a luta de classes-- como se as modalidades da luta fos-
pelo qual a luta de classesencorajeo impulso das forças produtivas."io semexteriores e indiferentes ao desenvolvimento das forças, e como
Em vez de aprofundar essahipótese, ele também põe na mesa o curinga se a luta já não estivesse dada entre as determinações das forças pro-
da "visão teleológica da história". Existiria em Marx "uma relação dutivas! Resistindo à exploração de sua força de trabalho, os assala-
muito estreita entre a filosofia da história e a predileção pela explicação riados tendem a liberar novas forças produtivas e a encontrar novas
funcional[do tipo: A aconteceu
porqueA causouB]. Certamentepor- minas dc produtividade. Essa "lei interna" ou "imanente" do desen-
que acreditasse que a história conduzia-se rumo a um objetivo, ele acha- volvimento de modo algum implica uma visão teleológicatranscen-
va justificado explicar não apenasos modos de comportamento, mas dental.O impulso dasforças produtivas não exclui a decadênciaou o
também os eventosparticulares em função da contribuição que davam desaparecimento de civilizações vencidas. Romã pode sempre ser pi-
para essefim".ít Resumindoa teoria de Marx como "um amálgama de lhada,e a queda dos impérios na barbárie não é uma invençãode
coletivismo metodológico, de explicação funcional e de dedução dialé- cineastasou de escritores de ficção científica.
tica", Elster não perde tempo com nuancesnem com escrúpulos: "To- Ofuscados pelo primado unilateral das forças produtivas, Cohen
das essasabordagensdeixam-setalvez subsumir sob a rubrica mais e Elster laboram em erro. Enquanto Marx perscruta o segredo dos
geral da teleologia. A mão invisível que sustenta o capital é uma das ciclos e dos ritmos económicos para renovar a escrita da história, eles
duas grandes formas de teleologia em Marx, a outra sendo a necessida- aterram-se em construir uma teoria impossível dc achar e passam assim
de de que o processo acabe, no fim das contas, por se destruir."'z Para ao largo da contradição real de uma "transição" inscrita numa repre-
além das mistificaçõese dos prodígios do fetichismo, Marx desvelaa sentaçãorigorosamenteimanente do desenvolvimento histórico. Mau-
realidade profana das relações objetivadas que os homens realizam en- rice Godelier indicou as hesitaçõesde um Marx inclinado a pensar a
tre si. O funcionalismo espreitado por Elster aparece como o sombrio passagemdo capitalismo ao socialismo à imagem da transição entre
alcance da intencionalidade clássica refugiada em seu próprio "indi- feudalismo c capitalismo. Em virtude de uma lei genéticaquase natu-
vidualismo metodológico". Incapaz de apreenderas leis insólitas, ten- ral, o comunismo deveria então nascer das próprias entranhas do
denciais, e sua necessidadepenetrada de acaso, ele monta e remonta capital antes de poder domina-lo. Os germes da sociedade futura se
tristemente o cansativo Meccano das forças e das relações,das infra- desenvolveriamnosporos da sociedadeatual segundoum longo pro-
estruturas e das superestruturas. cessode gestação. Em certo sentido (mas somente em certo sentido),
é bem esseo caso.A acumulação do capital dá origem à concentração
9Eric O. Wright, Inferrogafflzg-.,op cit., p. 154.
da força de trabalho, à elevação da capacidade produtiva, à coopera-
'' Jon Elster, Kar/ Àfarx-., op. cit., p. 429.
ii Ibid., p. 429. ção ampliada do trabalho, à socialização tendencial da produção, a
ia Ibid., p. 689. um incremento semprecedente das ciências e das técnicas, a uma an-

72 73
MARX. O INTEMPESTIVO

tegração crescente do trabalho intelectual às forças produtivas. A luta


de classesfaz eclodir simultaneamente novas possibilidades e novos
T' DO SAGRADO AO PROFANO

CORRESPONDÊNCIASE OTIMALIDADE

direitos. Para Elster, como para Cohen, o primado das forças produtivas pode
"dizer respeito ao nível de desenvolvimento, ao ritmo de mudança, ou
Longe de suasrepresentações
triunfais, a história não se reduz a um aos dois ao mesmo tempo". Trata-se portanto de precisar o que se
jogo de soma igual a zero. Seudesenvolvimento cumulativo é orientado entende por correspo/zdêncfa (ou discordância), de que dependem a
pelo das ciênciase das técnicas.O aparecimento de um novo modo de possibilidadee a atualidade de uma mudança sistêmica. A correspon'
produção não é o único resultado possível do precedente.Não é sua dênciarompida aparecenão como um bloqueio absoluto das forças
única superação concebível. Ele inscreve-se somente no campo determi- produtivas,mas como uma perda de otimalidade: "A teoria enuncia
nado das possibilidades reais. Uma avaliação do progresso histórico em que o nível das forças produtivas determina quais são as relaçõesoti-
termos de avanços e recuos sobre um eixo cronológico imagina o desas- mais para o seu desenvolvimento ulterior. Ela afirma além disso que as
tre sob a forma do retorno a um passado consumado ou de suas sobre- relações otimais tendem a se impor. Essa versão é provavelmente a que
vivências residuais, em lugar de alertar contra as formas inéditas, origi- melhor apreende a posição teórica mais geral de Marx."t3 A passagem
nais e perfeitamente contemporâneasde uma barbárie que é sempre a de do Prefácio de 1859, onde se afirma que uma formação social nunca
um presente particular, uma barbárie de nosso tempo. desaparece sem que se tenham desenvolvido "todas as forças produti-
Compreendidas num sentido não mecânico c unilateral, as forças vas que ela é suficientemente ampla para conter" (e onde são evocadas
produtivas reencontramaqui o seupapel. Forçasprodutivas e rela- "relações de produção novas e superiores") bem como as páginas ad-
ções de produção são os dois aspectos do processo pelo qual os seres mirativas em que Marx descreveo papel progressistado capital na
humanos produzem e reproduzem suas condições de existência. Salvo transformação aceleradadas forças produtivas podem com efeito ser
a possibilidade real de um aniquilamento, o desenvolvimento das for- compreendidasem termos de otimalidade. As relaçõesde produção
çasprodutivas é cumulativo e irreversível.Disso não resulta um pro- tornar-se-iam caducasem função da correspondênciarompida.
gressosocial e cultural automático, mas somentesua possibilidade. A mudança revolucionária inscrever-se-iana ordem do dia quan-
Por outro lado, qualquerprojeto de emancipaçãoindicaria puro vo- do a relação de produção torna-se "subotimal" em relação ao desen-
luntarismo ético ou puro arbitrário utópico. Dizer o desenvolvimento volvimento das forças produtivas. Essa hipótese esclareceriatanto a
das forças produtivas é orientado, que seu filme não teria condições realidade de evento da Revolução Russa quanto a derrocada burocrá-
de ser rebobinado, significa que não se volta do capitalismo ao feuda- tica da edificação socialista: "É inteiramente possível que o comunis-
lismo e do feudalismo à cidade antiga. A história não volta atrás. Me- mo se torne superior ao capitalismo neste particular [o desenvolvi-
tida em velhas e enganadorasvestimentas, ela pode entretanto incu- mento do indivíduo] antes mesmo que Ihe seja tecnicamente superior.
bar as piores novidades. [-.] A superioridade do comunismo explicaria a revolução comunista
Socialismo ou Barbárie? Não "socialismo ou slalus que", não em todos os países,salvo no primeiro onde ela seproduziu. A primei-
"socialismo ou mal menor", não "socialismo ou regressão"! Não ra aparição do comunismo na cena mundial-histórica poderia sermais
avanço ou recuo. Uma verdadeira bifurcação. A dialética dos possí- ou menos acidental, ao passo que a difusão ulterior seria racional-
veis é também cumulativa. O aniquilamento de virtualidades libera-
doras inventa ameaçasdesconhecidase não menos aterradoras. ia Jon Elster, Kar/ Maré-., op. cit., p. 404.

74 75
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

mentefundada. Uma condição evidente é que a revolução não deveria semresolvê-lo.Teria havido a necessidadede poder determinara
produzir-se muito cedo no primeiro país. Tendo afastado a idéia de Correspofzdê
cia ofima/ entre forças produtivas e relaçõesde produ-
que o comunismo instaurar-se-á no país pioneiro porque ele é mais ção,o que ele evita. Uma primeira dificuldade diz respeito à própria
eficaz, não se mostra menos essencial que ele seja introduzido num determinaçãodas forças produtivas: "A noção de desenvolvimento
momento em que o comunismo possa -- imediatamente ou no fim dasforçasprodutivasé ambíguaa mais de um título. Não se sabe
das contas -- desenvolveras forças produtivas mais rapidamente que muito bem sea exploração das economias de escala corresponde a um
o capitalismo -- semo que ele não teria condiçõesexitosas de inspirar desenvolvimento das forças produtivas. Do mesmo modo, não se sabe
os países seguintes."j4Real e possível sendo incomensuráveis, o pro- muito bem se as forças produtivas desenvolvem-se quando permitem
blema chave seria o do começo. A alegada superioridade do comunis- um produto excedentemais importante num ambiente e condições
mo em estado de projeto não é verificável. Sua superioridade prática demográficasconstantes,ou quando permitem um produto excedente
asseguraria em seguida sua difusão progressiva e racional. Este o motiva maior nas condições reais, eventualmente mudadas."i' O conceito de
por que a primeira vitória seria necessariamente "acidental". Em 1917. forças produtivas suscita realmente uma dificuldade comum à maio-
os dados teriam sido inoportunamentelançados.Tirada ruim, mau ria dos conceitos fundamentais em Marx. Sua enumeração descritiva
começo: em vez de dar início ao triunfo de relações de produção mais varia com o nível de determinação do conceito.t8
performáticas, retorno ao ponto de partida. A noção de correspomdêfzcia
implica portanto uma relação de
Confrontado com essadesrazãohistórica, Elster busca o socorro reciprocidade relativa. Aproximações que remetem à reprodução so-
de Trotski: "Mas a sociedadede modo algum é organizada tão racio- cial global, otimalidade e subotimalidade não teriam como ser quan-
nalmente que os prazos para uma ditadura do proletariado ocorram
no momento exato em que as condições económicas e culturais che- i7 Ibid
l
garam à maturidade para o socialismo."'s Para Trotski, como para n A noção de "forças produtivas materiais" pode além disso induzir a erro se
Marx, a história não é tão simples. Crise política e maturidade das esquecermosque material opõe-sca formal e não implica qualquerconcepçãoresui-
tiva. Assim, as forças produtivas materiais nunca são redutíveis a uma materialidade
condições económicas não coincidem forçosamente. De fato, enfatiza
trivial. As ocorrências do conceito atestam que elas incluem tanto recursos naturais
Elster, "sustentaremque essesdois fatores [econâmico e po]ítico] ten- (matérias-primas, energia) e tecnológicos(máquinas, procedimentos) quanto a orga-
dem sistematicamentea não coincidirem".tó Os relógios não estão nização do trabalho, os conhecimentos científicos e a maneira de produza-los. Longe
acertadospara a mesmahora. As temporalidades não são uniformes. de desempenharo papel de um mero motor sob a carroceria dasrelaçõesde produ-
Estruturada como uma linguagem,a política, como o inconsciente, ção, elas próprias são determinadas por essas relações, tanto sob o ângulo da orga-
nizaçãodo trabalho quanto sob o ângulo da utilização produtiva do saber.Critican-
tem seus deslocamentos e suas condensações. Não contente de não ser do o esquemado "motor histórico" segundo Cohen, Michel Vadée observa: "Forças
racional, a história seriaainda um tantinho perversa? e meios são duas categorias diferentes para a compreensão comum. Na realidade, as
Mais sutil que um esquemamecanicistade ruína do capital sob o coisasnão são tão simples.No trabalho que não é mais trabalho simples,em parti-
empurrão das forças produtivas, a tese de Elster desloca o problema cular na produção capitalista desenvolvida(maquinismo industrial), as forçaspro-
dutivas são meios e os meios de produção são forças: há identidade diabética.Forças
e meios passam um no outro. É vão querer manter sua distinção absoluta, como se
i4 Jon Elster, Kar/ À4arx-., op. cit. vê nos quadros sinópticos onde se arrumam as diversas espéciesde forças e de meios
i5 Lev Trotski, Hfsfoire de /a Réus/ufion ésse, Paras,Seuil, 1967. de produção, onde selêem as ambigüidades e onde aparecem esquisitices ou surpre-
" Jon Elster, Kar/ Maré-., op. cit. endenteslacunas"(Maré pensar d# possfble,Pauis,Klincksieck,1993, p. 398).

76 77
MARX. O INTEMPESTIVO
Y DO SAGRADO AO PROFANO

titativamente definidas apenaspelo nível económico da produção e O socialismo era "prematuro" na Rússia no começo do século
da distribuição. É aliás o motivo por que Marx parece às vezesaceitar XX? A questão pressupõe uma norma histórica de referência: "Já as-
a exploraçãoe a injustiça...em nome da correspondência.Ricarda sinalamosque uma teoria da história não pode dar conta do q e se
quer a produção pela produção, "e é justo". Justo? A acumulação proa z de apzorma/, mas nem por isso chegamos a precisar os crílérios
primitiva e o despotismode empresaseriam novos ardis da razão zleforma/Idade."zí E com razão. Como definir a normalidade entre
histórica? A produção pela produção "não significa outra coisa senão as figuras singularesda história? Declarar são aquilo que funciona
o desenvolvimento das forças produtivas humanas, logo o desenvol- "normalmente" revela tautologia. A 6orfforí Cohen percebe-o bem
vimento da natureza humana como fim em si", mesmo se ela Come. quando se trata da relação social: "Sem dúvida não poderíamos fazer
çassepor constituir-se "em detrimento da maioria dos homense de da tendência ao crescimento das capacidadesprodutivas uma propri-
classesinteiras".o Do ponto de vista de Ricardo, que é o da economia edadecaracterística de uma sociedade normal, não mais que do ajus-
política e não o de sua crítica, não é aviltante reduzir os proletários a tamento das forças produtivas às relações de produção. Devemos es-
bestasde carga ou a máquinas, pois isso adequa-seao quadro das perar que qualquer conceito de sociedade norma/ seja menos claro e
relações de produção capitalistas. menos fácil de aplicar que o de organ/smo são. Lembremos sempre
"É estóico, objetivo, científico", ironiza Marx! que a matéria da história resiste a uma conceptualização afinada."22
Nenhuma medida permite decidir que um modo de produção atin- Prudente, Cohen confere todavia ao primado das forças produti-
giu seulimite, senãoa própria força (produtiva) de trabalho, expri- vas um sentido mais explicativo que causal. Ele distingue três graus de
mindo por suas rebeliões e insurreições uma outra possibilidade his- potencialidade:
tórica efetiva. Nenhuma lei mecânicapresideà inelutabilidade vitoriosa 1) em certas condições, iç tornar-se-á y;
das revoluções. A "correspondência" não é um simples modo de ade- 2) em certascondiçõesnormais, x tornar-se-áy;
quação entre dois termos (infra-estrutura e superestrutura). Ela indica 3) em todas as condições normais, x tornar-se-á y.
apenas uma relação de não-contradição ou de compatibilidade for- Essesgraus, enunciados sob formas de leis, remetem novamente à
mal.zoReciprocamente, a discordância dos tempos determina o cará- normalidade pressupostada história. Que significam "condições nor-
ter geral de uma época. mais" para situações singulares? A necessidade e a possibilidade his-
"Uma época de revolução social", diz Marx. tóricas não permitem senão predições condicionais, à maneira de Lenin
Um feixe de possibilidades reais. Nada mais. anunciando "a catástrofe iminente... e os meios de conlíurá-/a"! Dife-
rentemente da predição física, a antecipação histórica exprime-se dentro
de um prometoestratégico.
i9 Kart Marx, 7'béorfes s#r la p/us-t/aJKe,ll, OP.cit., P. 125. Mudança de registro e de racionalidade.
zo "Em alemão, corresponder (slcb e lsprecbe#) e contradizer-se (sicb wi- O plano em estrela substitui a linha reta.
dersprec#eH)opõem-se dirctamente. Não temos isso em francês, de onde nosso Pois o desenvolvimento histórico não se reduz à alternância mo-
emprego de discordância pode tornar sensível o que é imediatamente percebido nótona de correspondênciase discordâncias. Ele põe em jogo o real e
em alemão. Correspondência pode ainda exprimir-se em [lbers Imm ng, que tem
a mesma raiz de Besffmmnng (determinação), sfimmem significando acordar-se
aos diversos sentidos do termo. Essascorrespondências são intraduzíveis" (Mi- zi Geram Cohen, em John Roemer, op. cit
chel Vadée, À4arx pepzser d# posslble, op. cit., P. 154). ulbid.

78 79
MARX. O INTEMPESTIVO

DO SAGRADO AO PROFANO

o possível.Na luta de todosos instantesentreo racional e o irracio.


nal, a irracionalidadeé realmenteo avessoda racionalidadee «Um Os Gmfzd issoe a Co/zfrlbwfção de 1859 repercutem com fidelidade: "0
momento que se precisa levar em conta".23É irracional aquilo que quechamamos desenvolvimento histórico repousa sobre o fato de que a
nunca se tornará história efetiva.
forma derradeira considera as formas passadascomo etapas que condu-
Os teóricos do marxismo analítico deveriam também interrogas- zema si mesma; como, além disso, raramente é capaz de fazer sua pró-
se para saber se o capitalismo não durou bastante, e a que preço. pria crítica, ela as concebe sempre de maneira unilateral."zó Não se teria
Corrigindo uma imaturidade por uma senilidade, eles poderiam bus. como rejeitar mais firmemente qualquer ilusão retrospectiva sobreo sen-
car a boa média e traçar no séculoa justa linha divisória onde a tido de uma história, cujo desenrolar conspiraria para o coroamento de
mudança interviria no momento certo. Marx não se entrega a esse um presenteinelutável e, por conseguinte, legítimo.
gênero de especulações horárias. Basta-lhe apreender as contradições Correspondência das forças produtivas e das relações de produ-
e os conflitos da época, onde se representa o efetivamente possível. ção, necessidade e possibilidade históricas: estamos assim de volta à
"A era das guerras e das revoluções", diz Lenin. questão da transformação das sociedades,das revoluções "prematu-
O resto é negócio de política, não de predição. Tudo se engendra ras" e dastransiçõesfalhadas.Não contenteem atribuir a Marx o
"de acordo com a luta e a necessidade",ambas juntas, não uma sem "esquemasupra-histórico" que ele condenoude modo tão claro, Els-
a outra. E o tempo do mundo mostra-se na história "como unidade ter censura-lhe ter imaginado um comunismo que viria em sua hora
da regra e das vicissitudes do porvir".24 em vez de encarar as conseqüênciasdesastrosasde seu advento pre-
maturo. Esseca alar premaf ro praticamente não tem sentido. Um
evento que se inserida como um elo dócil no encadeamento ordenado
dostrabalhos e dos dias não seria mais evento, senãopura rotina. A
INTERMITÊNCIAS E CONTRATEMPOS
história é feita de singularidades eventuais. O cvento pode serchama-
do de prematuro em relação a um encontro imaginário, mas não no
Desprezando numerosos textos explícitos sobre o assunto, Elster obsti- horizonte bruxuleante da possibilidade efetiva. Os que acusamMarx
na-seem achar em Marx "uma teoria da história universal, da ordem, na de determinista são não raro aqueles mesmos que o censuram por sê-
qual os modos de produção se sucedem sobre a cena histórica". Chega co insuficientemente! Para o marxista "legal" Struve, como para os
inclusive a atribuir-lhe "uma atitude teleológica perfeitamente coerente". mencheviques,uma revolução socialista na Rússia em 1917 parecia
ao risco de não poder explicar o contraste entreA ideo/ogü a/emãe os monstruosamente prematura. A questão ressurge hoje na hora dos
grandes textos ulteriores, "senão talvez pela influência de Engels".u balanços.Não teria sido mais prudente e preferível respeitar os ritmos
Explicação tão camada quanto inconsistente.Os textos de 1 846 não têm da história, deixar que amadurecessemas condições objetivas e o
entretanto nada de tresloucamento juvenil que se afaste de uma coerên- capitalismo russo, dar à sociedade o tempo para modernizar-se?
cia geral. Eles inscrevem-sena rigorosa continuidade da SagradaÁamj7Ü. Quem escrevea partitura e quem marca o compasso?
Segundo Elster, "dois espectros assombram a revolução comunis-
23Antonio Gramsci, Ca#ierde prlso# 6, op. cit. ta": "Um é o perigo de uma revoluçãoprematuraem favor de uma
:' Jcan-Toussaint Dcsanti, Ré/7exlons swr le remos, Paria, Grasset, 1993, p. 25. mistura de idéias revolucionárias avançadas e de situações miseráveis,
u Jon Elster, Kart À4arx-., op- cit. ' ''
zóKart Marx, Co#rribKtiolzà /a criffqne de /'écofzomiepo/irlq e, op. cit., p. 171

80

81
MARX. O l NTEMPESTIVO
DO SAGRADO AO PROFANO

num país que ainda não se acha amadurecido para o comunismo. O desenvolvimento mundial das forças produtivas.2P A "maturidade" da
outro é o risco de revoluções conjuradas, de reformas preventivas intro. revolução não se decide num único país segundo um tempo unificado
duzidas pelo alto para prevenir contra uma situação perigosa."z' Sehá e homogêneo.Ela aguana discordância dos tempos O desenvolvi-
revoluções prematuras, haverá também, com efeito, revoluções que mento desigual e combinado torna sua possibilidade efetiva. A cadeia
podem cair de maduras. Resolvido a não mais ceder aos acalantos dos
pode romper'se do lado mais fraco. A transição socialista não é con-
amanhãsradiantes, Cohen prefere registrar que um capitalismo enfra- cebível senão numa perspectiva já de início internacional. A teoria da
quecido torna somente possível "uma subversão potencialmente rever. revoluçãopermanente, que sistematiza tais intuições, foi semprecom-
cível do sistema capitalista e não uma construção do socialismo".zi Ele batida em nome de uma visão rigorosamente determinista da história,
nem sempre consegueescapar às armadilhas formais do Prefácio de e a ortodoxia staliniana reduziu a teoria de Marx ao esqueleto de um
1 859: "A revolução anticapitalista pode serprematura e por conseguin- esquema"supra-histórico", onde o modo de produção asiático não
te fracassarem seu objetivo socialista." Uma explicação do stalinisma encontrava mais lugar.
reduzida à imaturidade das condições históricas invalida assim, a priori. A sorte da Revolução Russadepois de 1917, o Termidor burocrá-
em favor de um fatalismo mecânico, qualquer debate estratégicoSobre tico, o terror staliniano, a tragédia dos campos não resultam mecani-
a tomada do poder em 1917, sobre as oportunidades da revolução ale- camente do seu pretenso caráter prematuro. As circunstâncias econó-
mã de 1 923, sobre a significação do NEP e sobre as diferentes políticas micas, sociais, culturais desempenharam um papel determinante. Nem
económicas consideradas.
por isso constituíam um destino inelutável, independenteda história
O enfraquecimento do capitalismo torna a subversão possível? concreta, da situação mundial, das vitórias e das derrotas políticas. A
Seja.Ele não torna ipso /acto possível "a construção do socialismo"? revolução alemã de 1918-1923, a segunda revolução chinesa, a vitó-
Aqui já estaríamos exagerando. É tratar com leviandade a noção cru- ria do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, o esmagamento
cial da possibilidade.Seentendermospor possívelo poder no sentido do Schutzbund vienense,a guerra civil espanhola, a derrota das fren-
de possibilidade anual, subversãoe construção são condicionalmente tes populares representaramoutras tantas bifurcações para a própria
compossíveis embora não fatalmente ligadas. Do contrário, a subver- Revolução Russa.
são deveria consumir-se no combate desesperadoe apagar-se na resig- Como conciliar essedesenvolvimentotendencialcom sua nega-
nação. Marx e Lenin são mais concretos. Para eles, não se trata de ção resultante do fetichismo generalizado da mercadoria e da reifica-
instaurar na Rússia o comunismo "imediatamente", mas de dar início ção da relação social? Marx repete que a valsa infernal do trabalho
a uma transiçãosocialista.Não pensamem classificaros paísesse- assalariado e do capital reproduz a mutilação física e mental do tra-
gundo uma "escalade maturidade", em função do desenvolvimento balhador, a submissão dos homens às coisas, o assujeitamento de todos
das forças produtivas. A resposta de Marx a Verá Zassulich sobre a à ideologia dominante e a suas fantasmagorias. O caráfe prematuro
atualidade do socialismona Rússia insiste ao contrário sobre dois da revolução toma então um sentido de que Cohen e Elster não sus-
elementos:a existência de uma forma de propriedade agrária ainda
coletiva e a combinação do desenvolvimento capitalista russo com o 29Ver sobre este ponto as cartas de Marx a Verá Zassulich. Ver também Trotski,
A ret'olução pefmanenfe; Lenin, O desent/o/z/{menfodo cáfila/esmo #a Rússla e
as Teses de abri/; Alain Brossat, l,a Tbéorie de /a rét/o/KffoH permafzente cbez le
27Jon Elster, Kar/ Àlarx..., op. cit., p. 710. jezl e Trofs&y (Paras,Maspero, 1972), assim como os trabalhos históricos de D.
ZBGeram Cohen, em John Roemer, op. cit. H. Carr e Theodor Shanin.

82
83
DO SAGRADO AO PROFANO
MARX. O INTEMPESTIVO

jizando um possível, a revolução é por essência extemporânea e, numa


peitam. Ele é, de algum modo, eslml ra/ e essencial.Ele não pertence certa medida, sempre "prematura". Uma imprudência criadora.
a tal ou qual país, a tal ou qual momento. Na medida em que a con. Se a humanidade só se coloca os problemas que ela pode resolver,
quieta do poder político antecipa-seà transformação social e à eman. tudo não deveria ocorrer na hora certa? Se uma formação social nun-
cipação cultural, o começo é sempre um salto perigoso, possivelmente ca desapareceantes que estejam desenvolvidas todas as forças produ-
mortal. Seu tempo suspensoé propício às usurpações burocráticas e tivas que ela é capaz de conter, por que forçar o destino e a que preço?
aos confiscos totalitários.
Era prematuro ou patológico proclamar, a partir de 1793, o primado
Para Elster, "o capitalismo era uma etapa incontornável em dire- do direito à existência sobre o direito de propriedade? Exigir a igual-
ção ao comunismo", segundo"a filosofia marxiana da história". Na dadesocial ao mesmo título que a igualdade política? Marx afirma
medida em que o comunismo se torna possibilidade real a partir so- claramente o contrário: a eclosão de um direito novo exprime a atu-
mente de um certo limiar de desenvolvimento,o capitalismo contribui alidadedo conflito. As revoluçõessão o sinal daquilo que a humani-
para reunir as condiçõespara ele.Essaevidência banal em nada au- dadepode blsforícamefzfe resolver. Na inconforme conformidade da
toriza a proposição recíprocade um capitalismo que seria sempree época,elas sãoum poder e uma virtualidade do presente,simultane-
por toda a parte a etapanecessária(incontornável) para o fim prede- amentede seutempo e a contratempo, muito cedo e muito tarde, entre
terminado do comunismo. Não é equivalente dizer: a) que o comunis-
já mais e não ainda. Um talvez cuja última palavra não está dita.
mo pressupõe um grau determinado de desenvolvimento das forças Tomar o partido do oprimido quando as condiçõesobjetivas de
produtivas (produtividade do trabalho, qualificação da força de tra- sua libertação não se acham amadurecidas trairia uma visão teleoló-
balho, impulso das ciênciase das técnicas)para o qual contribui o gica? Os combates "anacrónicos" de Spartacus, de Münzer, de Wins-
crescimento capitalista; b) que o capitalismo constitui uma etapa e tantley, de Babeuf ganhariam então desesperadamenteuma data em
uma preparação inevitável sobrea via traçada da marcha ao comunis- vista de um fim anunciado. A interpretação inversa parece mais de
mo. A segundafórmula cai na ilusão tão frequentementeironizada acordo com o pensamento de Marx: nenhum sentido preestabelecida
por Marx, segundo a qual "a forma derradeira considera as formas da história, nenhuma predestinação justificam a resignação à opres-
passadascomo etapasque conduzam a si mesma".se são. Inatuais, extemporâneas, descontemporâneas, as revoluções não
seintegram nos esquemaspreestabelecidos da "supra-história" ou nos
"pálidos modelos supratemporais". Sua ocorrência não obedeceao
ordenamento de uma História universal.
NECESSIDADE HISTÓRICA E POSSIBILIDADES EFETIVAS
Elas nascemao nível do solo, do sofrimento e da humilhação.
Semprese tem uma razão para a revolta.
Uma revolução "no momento certo", semriscos nem surpresas,seria Se a "correspondência" tivesse valor de normalidade, dever-se-ia
um evento semevento,uma espéciede revolução semrevolução. Atua- desposar a causa dos vencedores contra as impaciências qualificadas
de provocações? Marx coloca-se, sem hesitação nem reserva, do lado
soEscamoteando a espinhosaquestão do modo de produção asiático, Stalin quis
dos indigentes na guerra dos camponeses,dos niveladores na revolu-
assimreduzir a história concreta a um esquema"supra-histórico" de sucessão
dos modos de produção. Essaoperação ideológica estava dirctamente a serviço ção inglesa, dos iguais na Revolução Francesa, dos partidários da
de interessespolíticos ("construção do socialismo em um único país", alianças Comuna condenados a serem esmagados por Versalhes.
internacionais, bloco das quatro classes).

85
84
MARX. O l NTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

Pode-seimaginar que a época das revoluções eterniza-se no apo- e somente se, a cidade infiel esquecer suas tradições. Infiel ao inelutá-
drecimento dos tempos discordantes, que as forças produtivas conti- vel, o profeta desafia a fatalidade. Já não se trata de descero monte,
nuam a crescer com o seu cortejo de danos e de destruições, que a do piparote original ao esgotamentofinal, ou de seguirem frente de
parte de sombra do progressosuperasuaparte de luz. Henri Lefebvre acordo com o encadeamento das causas e dos efeitos. Diferentemente
evoca esse "crescimento sem desenvolvimento", onde o divórcio ente. do oráculo, a profecia é condicional. Ao contrário de um messianis-
as forças produtivas e as relaçõesde produção traduz-se por uma ir. : mo vulgar, de esperaresignada,seu messianismoativo trabalha as
racionalidade aumentada. doresdo presente."Pois não há tempo para a vinda do Messias,do
qual se possa fazer depender suas ações dizendo dele: ele está próxi-
O presenteé a categoriatemporal central de uma história aberta. mo ou ele está longe. E a obrigação resultante dos mandamentos não
Emancipado dos mitos da origem e do fim, ele é o tempo da política depende da vinda do Messias. Depois de termos cumprido o que de-
que "supera doravante a história", enquanto pensamento estratégico vemosfazer, se Deus achar por bem que nós e nossos filhos vejamos
da luta e da decisão:"Aquele que professao materialismo histórico o Messias, seria ainda melhor. [...] Danie] exp]ica como é profundo o
não teria como renunciar à idéia de um presenteque de modo algum conhecimentodo fim e que ele é obscuro e oculto. Esseo motivo por
é passagem,mas que seconservaimóvel no limiar do tempo."3i que os mestres,de memória bendita, nos dissuadem de calcular o fim
Santo Agostinho implorava a Deus que Ihe dissessecomo tinha dos tempos pela vinda do Messias -- uma multidão de gente já fracas-
feito com que os profetas conhecessemas coisas futuras ou, mais sou nessas especulações --, com medo de que eles se percam vendo
precisamente, "aquilo que há de presente das coisas futuras". Pois. que o fim chegou e que o Messias não veio. Na verdade, os mestres,
"falando propriamente", não haveria como dizer que existemtrês de memória bendita, disseram: 'Que se rompa o sopro daqueles que
tempos, encadeados por uma ordem de sucessãocronológica, mas três calculam o fim dos tempos.'"33
modos de um mesmo tempo triplamente presente: "0 presente das Com efeito, o profeta não se abandona ao "fervor da espera". Ele
coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas seesforça por frustrar as paradas do destino denunciando o que ocor-
futuras."': O presenteredistribui o sentido, vasculha o campo do vir- rerá de danoso se... Condicional, a profecia messiânica não é a espera
tual com a ponta dos seus "talvezes", inventa novas chances. confiante ou resignada de um acontecimento anunciado, mas o des-
Nestes tempos amarrados, cruzados, trançados, não há mais lu- pertar à possibilidade de sua vinda. Conhecimento reflexivo, onde o
gar para a prediçãooracular de um destino implacável, massomente conhecido modifica sem cessar o possível, seu modo temporal é o
para a antecipação condicional, para o anúncio do que ocorrerá "se", presente, não o futuro.
A profecia é a figura emblemática de todo discurso político e
estratégico. Em A calásfroÁe imi/dente e os meios de con/wrá-/a, Lenin
si Walter Benjamin,Parascáfila/e d# XIXême sfêcle,op. cit.
3zSantoAgostinho, ConÉzssões,
XX. Em Heidegger, ao contrário, o serem decifra tendências,convencido de que seuenunciado condicional tor-
face da morte coloca o presentesob condição do futuro. Enquanto o primado do na evitável o que parecia inelutável.
passadodetermina o histórico, na historialidade o porvir prima como expressão A catástrofe é certa, se... Ela não é portanto fatal.
da finitude da temporalidade: "A história inautêntica busca o moderno para li-
vrar-se do peso do passado,enquanto a história autêntica é a do retorno do
possível", Françoise Dastur, Heidegger et /a q esflon d remos, Paras,PUF, 1990. ssMaimõnides, "ÉpTtrede la perséculion" e "Épitre au Yémen', em Építres, Paria:
Ver também Françoise Proust, L'Hisfofre à confreremps, Paria, Cera, 1994. Gallimard, "Tel", 1993, pp. 42 e 85. Era proibido aos judeuspredizer o futuro

86 87
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADOAO PROFANO

À igualdade "logicamente impossível" das classesMarx Opõe Sua abstratamente, o que pode ser pensado não constitui para o sujeito pen-
abolição "historicamente necessária". Essa necessidade histórica nada santenem obstáculo, nem limite, nem estorvo. Pouco importa então que
tem de uma fatalidade mecânica. A especificidade da economia polí- essapossibilidade seja aliás real, pois o interesse não se estende aqui ao
tica impõe que se revejam os conceitos de acaso e de lei, de distinguir objeto como ta].[-.] A necessidadeaparece com efeito na natureza aca-
a necessidade "no sentido especulativo-abstrato" da necessidade «no badacomo necessidade
relativa, como determinismo. A necessidade
re-
sentido histórico-concreto". "Há necessidade",diz Gramsci, "quan- lativa só pode ser deduzida dessapossibilidade real. A possibilidade real
do há uma premissa eficiente e ativa cuja consciência entre os homens é a explicação da necessidaderelativa."3ó A possibilidade inscreve-se
tornou-se atava,colocando fins concretos à consciência coletiva e ins- nessejogo do necessárioe do contingente, no movimento da necessidade
tituindo um conjunto de convicções de crenças poderosamente atuan- formal à necessidade absoluta, através da necessidade relativa. Ela distin-
tes como as crenças populares."n gue-seda simples possibilidade formal(ou não-contradição) como da
Imanente, a "necessidadehistórica" enuncia o que deve e pode possibilidadeabstrata ou geral. Como possibilidade determinada, ela
ser, não o que será: "Não existe entre a possibilidade e a necessidade traz em si uma "imperfeição", da qual resulta que "a possibilidade é ao
senão uma diferença aparente. Essa necessidadeé ao mesmo tempo mesmotempo uma contradição ou uma impossibilidade".
relativa."ss A possibilidadereal torna-se necessidade.Esta começapela "Pensador do possível", Marx atua assim sobre vários modos: o
unidade, "não ainda refletida sobre si", do possível e do real. Ela ainda possívelcontingente, cujo liame com a realidade determina(segundo
não se determinou a si mesmacomo contingência. Pois a necessidade. Hegel) a contingência; "o ser em potência" enquanto capacidade deter-
acrescentaHegel, real em si, é igualmente contingência, "o que signi- minada a receber (segundo Aristóteles) uma forma dada (a passagem da
fica dizer já de saída que o necessárioreal é mesmo, por sua forma, potência ao ato seria então o momento unitário por excelência do acaso
um necessário,mas que é, por seu conteúdo, limitado e que é a essa e da necessidade); o possível histórico enfim(real ou efetivo -- a,/r&/i-
limitação que ele deve sua contingência. [-.] A unidade da necessida- cb), que seria a unidade do possível contingente e do ser em potência.37
de e da contingênciaexisteportanto aqui em si; e designa-seessa O Capela/ não diz outra coisa: nenhuma necessidadeabsoluta, nem
unidade em termos de necessidade absoluta». demónio de Laplace. Acaso e necessidadenão seexcluem. A contingên-
Desde sua tese sobre a filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro, cia determinada do evento não é arbitrária nem caprichosa, ela apenas
Marx maneja perfeitamente essadialética: "0 acaso é uma realidade que revela uma causalidade não formal: "Aproximamo-nos mais da verdade
não tem outro valor senão a possibilidade. Ora, a possibilidade abstrata dizendo que foi o próprio evento que se serviu de tal ou qual causa,
é precisamenteo antípoda da possibilidade real. Esta acha-seencerrada, pequena e ocasional, como de um pretexto."38
como o entendimento, dentro dos limites precisos; aquela, tal como a
imaginação, não conhecelimites. A possibilidade real busca demonstrar
sóKat\ Mata, Différence de la pbilosopbie de la natura cbez Démocrite et ÉpicK-
a necessidade
e a realidadede seuobjeto; a possibilidadeabstrata quase re (1841), em Oewures, ?bi/osopbie, Paras, Gallimard, "Bibliothêque de la Pléi-
não se preocupa com o objeto que pede explicação, mas com o sujeito ade", 1968. Sobre a categoriado possívelem Marx, ver Michel Vadée,ÀÍúrx
que explica. Basta que o objeto seja possível, concebível. O que é possível pense#rd# possíble,op. cit., e Henri Males,Co gédierI'Utopfe,Paris,
L'Harmattan, 1994.
s' Aparecendo primeiro como possibilidade no CapifaZ)a crise torna-se efe-
H Antonio Gramscí, Cabier de prlso# 11, op. cit., ver pp. 273-277. tiva pelo jogo da luta e das eventualidades.
3sFriedrich Hegel, Sciencede /a logfgwe,Pauis,Aubier, 1949, t. 11,p. 208. 38Friedrich Hegel, Scie#cede /a /ogfque, op. cit., p. 226.

88 89
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

A necessidadedesenhao horizonte da luta. Esse controverso capítulo do livro l ocupa um lugar bastante
Sua contingência conjura os decretos do destino. eminentepara que tenhamos a permissão de ver aí um simplescochi-
lo. Ele sublinha antes uma contradição não resolvida entre a influên-
O penúltimo capítulo do livro l do Cáfila/, a "tendência histórica cia de um modelo científico naturalista ("a inelutabilidade de um
da acumulação capitalista", inspirou muitas profissões de fé mecâ- processonatural") e a lógica diabética de uma história aberta. Engels
nicas na derrocadagarantida do capital sob o pesode suaspróprias procurou no Anil-Dübring combater a interpretação trivial que faz de
contradições, além de ter despertado muitas polêmicas. Marx escoe. "a negação da negação" uma máquina abstrata e o pretexto formal
ve: "A produçãocapitalistaengendrapor seuturno, com a ineluta- para falsas predições: "Que papel desempenha em Marx a negação da
bilidade de um processo natural, sua própria negação. É a negação negação?[.-] Ao caracterizar o processo como a negaçãoda negação,
da negação.n39 Mano não pensa em demonstrar par aí a necessidade bistóTica. À.o
Curioso texto, semdúvida. De um lado, ele antecipa lucidamente contrário: é depois de ter demonstrado pela história como, de fato, o
as tendências à concentração da capital, à aplicação industrial da ci- processo realizou-se em parte, e em parte deve forçosamente realizar-
ência e da técnica, à organização capitalista da agricultura, à sociali- se ainda, que Marx o designa, além disso, como um processo que se
zação contraditória dos grandesmeios de produção, à mundialização consumade acordo com uma lei dialética determinada. É tudo. Esta-
das relaçõesmercantis: essasprevisõesverificaram-se largamente. De mosportanto às voltas de novo com uma suposiçãogratuita do Sr.
outro lado, parecededuzir do desenvolvimentocapitalista uma lei de Dühring, quando ele pretende que a negação da negação deve fazer
pauperização absoluta e de polarização social crescente.As polêmicas aquiprofissãode parteira ao tirar o futuro do seiodo passado,ou que
de Marx contra Lassallee sua "lei de bronze dos salários" proíbem Marx nos pede que conPemos/za #zegação da negaçãopara conven-
entretanto essa interpretação mecânica da pauperização. Em contra- cer-nosque a comunidade do solo e do capital é uma necessidade.É
partida, a idéia segundoa qual a concentração do capital e "o próprio já uma falta total de compreensão da natureza da diabética considerá-
mecanismo da produção capitalista" têm por efeito a massificaçãodo la, como é o caso do Sr. Dühring, um instrumento de mera demons-
proletariado e a elevaçãoautomática de sua resistência, de sua orga- tração, do mesmo modo como se pode ter uma idéia limitada, diga-
nização, de sua unidaderompe ao menosparcialmentecom a lógica mos, da lógica formal ou das matemáticas elementares."
geral do CaPffa/. De onde: 1) a negação da negação não é um novo deus ex ma-
O acento posto sobre "as leis imanentesda produção capitalista" c#ilzanem uma parteira da história; 2) não se teria como dar-lhe
conduz aqui a uma objetivação e a uma naturalização da "fatalidade" crédito e abrir caminhos para o futuro fiando-se apenasem sua lei.
histórica. O aleatório da luta aniquila-seno formalismo da negação A "necessidade histórica" não permite que se tirem as cartas e emitam
da negação. Como se, apenaspor escoar-se,o tempo pudessegarantir predições.Ela opera num campo de possibilidades onde a lei gera/
que a hora esperadasoará pontualmente no mostrador da história. aplica-se através de um desenvolvimento pa ffc /ar. Lógica diabéti-
Todavia, "a história não faz nada": os homens é que a fazem, e den- ca e lógica formal não constituem decididamente um bom par. Chegada
tro de circunstâncias que não escolheram. a esseponto crítico, a lei "extremamentegeral" é muda. Ela deve
entregar a rédea à política ou à história. Para que as coisas fiquem
39Kart Marx, l.e Capital, livro 1, tradução de J.-P. Lefebvre, Paria, PUF, 1993, bem claras, Engels volta à carga: "Que é portanto a negaçãoda
PP. 856-857. negação?Uma lei de desenvolvimento da natureza, da história, do

90 91
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

pensamento exfremamenfe gera/, e precisamente por isso revestida Dez anos depois da publicação do livro 1, o comentário de Engels
de um alcance e de uma significação extremos; lei que, como vimos. sobre "A tendência histórica da acumulação capitalista" levanta as-
é válida para o reino animal e vegetal,para a geologia, a matemá- sim ambigiiidades bem compreensíveis no contexto intelectual da
tica, a história, a fi]osofia [...]. É /ógico q e de modo a/gKmWe época.É surpreendenteque ele tenha experimentado a necessidadede
repto ao processo de dose/zz/olz/fmefztopátria Zarseguido, por exemplo. intervir sobre esseponto e que o tenha feito nessesentido. Tanto mais
pela semente da cevada desde a germinação até o definhamento da queo Afzli-Dübr/ng foi redigido em estreito concerto com Marx. O
planta que carrega o fruto, quando digo que ele é a negaçãoda controversocapítulo do Cáfila/ não é mais desdeentão dissociáveldo
negação." Sabendo apenas que a semente da cevada revela negação comentário que o esclarecee corrige.
da negação,"não posso ter êxito [...] cultivando cevada, [...] tanto A necessidade determinadanão é o contrário do acaso,mas o
quanto não posso logo de saída tocar violino partindo das simples corolário da possibilidade determinada. A negação da negação diz o
leis da determinação do som pela dimensão dascordas". Sea nega- que deve desaparecer.Ela não dita o que deve acontecer.
ção da negação "consiste nessepassatempoinfantil de pâr e tirar
alternativamente a, ou de dizer alternativamente de uma rosa que
ela é uma rosa e que ela não é uma rosa, não resulta nada mais que
tolice para aquele que.se entrega a tais exercícios tediosos".40 PROGRESSO
SOB BENEFÍCIODE INVENTÁRIO

Exigir da lei dialética mais que sua generalidadeconduziria a um


formalismo vazio. Não mais que a semente de cevada singular, o evento Como a do ser vivo, a história social é feita desse "conjunto de eventos,
histórico não é dedutível da negaçãoda negação. Nenhuma fórmula extraordinariamenteimprováveis, perfeitamente lógicos em termos re-
substitui a análise concreta da situação concreta, de que A guerra dos trospectivos, mas absolutamente impossíveis de predizer".4z Em 1909,
camponeses, O dezoito btumário ou As !alas de classes na Fiança Walcott descobriu nas Rochosas canadenses os fósseis conhecidos como
fornecem tantos exemplos. A questão espinhosa não é mais então a xistos de Burgess.E fez tudo que estevea seu alcancepara incluir esses
do determinismo injustamente imputado a Marx, mas aquela segun- organismosno quadro de uma evolução que ia do mais simples ao mais
do a qual existiriam, entre os possíveis,um desenvolvimento"nor- complexo. Nos anos setenta, a reabertura do dossiê por uma equipe de
mal" e monstruosidades desviantes.4t pesquisadoresconduziu, através de uma série de estudos monográficos
que aceitavam a extravagância anatómica como uma outra norma pos-
40Friedrich Engels,4#li-Dübring, Paria, Éditions sociales,1969, pp. 162-172. sível, a "uma revolução tranqüila". Os animais de Burgess (Opas//zfa,
+i Ernest Mandei fala freqüentementede "curvas" e de "desvios" históricos. Ha//#cege/zü,Á oma/faarís)já não são hoje considerados formas elemen-
Ele mostra entretanto que o problema é antes o da normalidade do que do deter-
minismo histórico: "É preciso todavia sublinhar que a questão de saber se o taresdas espéciesconhecidas. Dão simplesmente prova da explosão cam-
capitalismo pode sobreviver indefinidamente ou se ele está condenado à ruína briana do ser vivo, de arranjos orgânicos e de virtualidades abonadas.
não deve ser confundida com a ideia de sua substituição inevitável por uma for- Uma tal descobertaarruína a idéia dominante de uma evolução
ma superior de organização social, ou seja, com a inevitabilidade do socialismo. simbolizada pela escalado progresso contínuo ou pelo "cone invertido"
É perfeitamente possível prever a derrubada inevitável do capitalismo sem con-
cluir disso a ine]utáve] vitória do socialismo [-.]; o sistema não pode sobreviver,
mas pode ceder o lugar seja ao socialismo, seja à barbárie" (EI caplraZ,caemalias 'z StephenJay Gould, l,a cofre a x df#osaures, ré/7exio#ssnr I'bisfoire naf re/le,
de colzlrot/ersfas, México, Sigla XXI, 1985, p. 232). Paras, Seuil, 1993.

92 93
MARX. O l NTE MPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

de diversidade e complexidade crescentes.A história aumenta a diverti. geraçõesfuturas, e "é tudo".4sTrabalhando "de acordo com princí-
dade das espécies,mas corta os ramos e restringe a disparidade inicial pios estritamente baconianos", a seleção exerce seu poder diretor atra-
entre diferentes organizaçõesanatómicas. Depois das revoluções Coper- vésda variação genética aleatória e da adaptação. O próprio Darwin
nicanae darwiniana,a interpretaçãodo xisto de Burgessdesfechaum recusa-sea exprimi-lo em termos de progresso:"Nunca pronunciem
novo golpe no antropocentrismo.A humanidadenão passariade UH as palavras superior e inferior [...]. Depois de longas reflexões, só posso
acidente cósmico ou de um "penduricalho na árvore de Natal da evolu- estarconvencido de que não existe nenhuma tendência inata que leve
ção". Já não teríamos condiçõesde "considerar tudo o que existiu antes a um progresso dentro do desenvolvimento." A evolução é uma arbo-
de nós como uma grande preparação, o presságio de nossa futura apa- rescência ou uma confusão de arbustos, não uma escala graduada. As
rição".4s Essavisão presunçosafazia do avatar humano a meta original formas anteriores não são ali os esboçosdas formas mais desenvolvi-
de cinco milhões de anos de bricolagens e tateamentos! Seguindosuas das, e a não-contemporaneidade autoriza a sobrevida de ancestrais
próprias vias, a geologia aprofunda assim a crítica do jovem Marx con- "arcaicos" enquanto seus descendentesjá se acham diversificados.
tra os "artifícios especulativos" pelos quais se quereria fazer acreditar Reinterpretado, o xisto de Burgessreabilita a contingência de uma
"que a história por vir é a meta da história passada"... e o Homo sapi- evolução sem meta e de uma história como princípio antes explicativo
efzsa meta de Opas/nfa: "A diversidade dos itinerários possíveis mostra que normativo. As extravagâncias e as imperfeições não raro são aí mais
claramente que os resultadosfinais não podem ser preditos no início." eloqüentes que as regularidades. Doravante somos obrigados "a olhar o
Humanos, ainda um esforçopara ser inteiramente incrédulos! Para imponente espetáculo da evolução da vida como um conjunto de even-
renunciar à ilusão retrospectiva segundoa qual nada teria podido ser tos extraordinariamente improváveis, perfeitamente lógicos em retros-
senãoo que é, e à ilusão gradualista das modificações contínuas.« Do pectiva, e suscetíveisde ser rigorosamente explicados, mas absoluta-
mesmo modo que as vitórias militares ou políticas não provam a ver- menteimpossíveisde predizer e inteiramente não reproduzíveis".«
dade ou o bom direito, a sobrevivêncianão tem valor de prova em Malgrado suas descobertas, Darwin podia dificilmente escapar à
paleontologia. Ela é precisamenteo que deve ser explicado. Diferen- ideologia progressistada época. Em certa medida, seu dilema é o mesmo
temente dos darwinistas vulgares, Darwin estava consciente de que as de Marx, que reconhece na O2'(gem (tzs espécies "o fundamento histó-
respostasadaptativaspor variação individual e seleçãonatural às rico de [suaprópria] concepção". O darwinismo de Darwin não é com
mudanças de ambiente não constituem necessariamente um progresso efeito um determinismo ambiental nem a simples parábola animalesca
(segundo que critérios?), mas antes uma evolução sem plano nem da concorrência mercantil. Adiantando-se a certas interpretações recen-
direção. Em sua teoria da evolução, "ciência histórica por excelên- tesde Darwin, Marx inspira-sena "acumulaçãopor hereditariedade"
cia", os vencedores transmitem mais cópias de seus próprios genes às como princípio motriz. Insistindo sobre a dialética da cumulação(neces-
sária) e da invenção(eventual), ele evita a armadilha mecanicista:"Os
'3 StephenJay Gould, l,a Vle esf be//e, Pauis,Seuil, 1991, p. 42. diversos organismos constituem-se por 'cumulação' e não passam de 'in-
H Gould insiste ao contrário sobre os "monstros prometedores" e sobre os venções', invenções dos sujeitos vivos acumuladas pouco a pouco."47
"equilíbrios pontuados". "As mudanças pontuais", escreve ele, "são pelo menos
tão importantes quanto a acumulaçãoimperceptível", e a história da terra é es-
candida de uma "série de pulsaçõesocasionais que forçam os sistemas recalci- '5 StephenJay Gould, l,e Héffsson dons Jafempêfe,Paras,Grasset,1994, p. 32
trantes a passar de um estado estável ao seguinte" (Le Pobre d panda, Paras, « StephenJay Gould, l,a Vie esl be//e, op. cit.
Grasset, 1982). õ7Kart Marx, Tbéories s r la p/us-tia/#e, 111,op. cit., p. 343.

94 95
MARX. O INTEMPESTIVO
DO SAGRADO AO PROFANO

O tempo dc Darwin muda "por erros".41


comungaramnessequietismo, e o que acabou por custar em se ver
nisso,na recorrência das catástrofes, apenas "retardou" e "modera-
.ão da marcha
' Em sua terceira tese, Sobre o co#zceífoda bisfórla, Benjamin tra-
duz essadeterminação retrospectiva e definitiva do progresso pela
Balibar sublinha o papel eminente desse"lado ruim", o da derra..
imagemde um impronunciável Juízo Final: "0 cronista que narra os
ta que arruína a visão de um mundo unificado pela marcha irresistível
acontecimentos sem nunca querer distinguir os pequenos dos grandes
do proletariado. Depois de 1848, como após 1871, o choque do even.
percebeesta verdade maior, que nada do que será produzido deverá
to suscita uma crítica da idéia de.progresso.Ele força a pensar"as
ficarperdido para a história. É verdade que a posseintegral do pas-
historicidades singulares". Essaconclusão quasenão é compatível com
sado está reservada a uma humanidade restituída e salva. Somente
a hipótese.de uma medida histórica absoluta do progresso. O esforço essahumanidade restabelecida poderá evocar não importa que ins-
de Marx visa a manter os dois aspectos: emancipar-se da abstração da
tante de seu passado. Todo instante vivido Ihe será presente em uma
História universal (do "universal que paira") scm cair no caos insen-
citação à ordem do dia -- dia que não é outro senão o do Juízo Fi-
sato das singularidades absolutas (daquilo "que só acontece uma vez"); nal."st A recapitulação exaustiva dos instantes, sua citação a compa-
e sem recorrer ao curinga do progresso. Na medida em que a univer-
recer,só é concebívelna última hora, no ponto limite do Juízo que se
salização é um processo, o progresso não se conjuga no presentedo
furta ao horizonte de uma história aberta. O sentido do progresso fica
indicativo, mas somenteno futuro anterior: sob reservae sob condi.
assimsuspensoao sonho de uma humanidade salva. Enquanto se
ção. Mas se o progresso cotidiano consiste em ganhar mais do que se
espera, qualquer classificação e qualquer partilha conservam-se pro'
perde, sua avaliação fica condenada à vulgar contabilidade dos ga- vilórias. Contrariando o discurso ordenado e vitorioso do historia-
nhos e das perdas. O que redunda em fazer pouco-caso da tempora-
dor, o inventário paciente do cronista registra os acontecimentos, sem
lidade da própria medida, do fato de que os ganhos do dia constituem
as perdas do dia seguinte, e vice-versa.
si Walter Benjamin, Sur /e concepr d'bisfoife, versão francesa do autor em Écrffs
A noção corrente do progresso supõe com efeito uma escalade Pa cais, Paras,Gallimard, 1991, p. 340. Mais prosaicamente,
Simmelpropõe
comparação fixa e um estado recapitulativo final. Para o otimismo "concebera unidade da história como um ponto de fuga, como um ponto limite
liberal de ontem e de hoje, "toda mudança toma o sentido de um rejeitado ao infinito: à medida que se aproximaria desseponto, os elementos
originariamente descosidosdo tecido histórico apareceriam cada vez mais como
progresso em relação ao qual não haveria condições de regressão". ligadosuns aos outros e como constituindo uma tela única" (op. cit., p. 187).
Em outros termos, a crença no progresso histórico "exclui a contin- Encontra-se o eco dessaproblemática em Raymond Aron: "Nenhuma história se
gência".se Nunca se dirá o bastante a que ponto os políticos social- acha acabada,porque a significação só seria fixada ao termo da evolução. A
democratas e stalinianos do período entre as duas grandes guerras história universalé a biografia, quasese poderia dizer a autobiografia da huma-
nidade: como a significação de qualquer existência, a significação da humanida-
de só seria detida sea aventura terminasse." Terminada, a história seria ao mesmo
tempo singular e sistemática: "A totalidade seria a de um devir único" (La Pbi-
41Michcl Serres,Éc/afrclssemenls, Pauis,Flammarion, "Champs', 1994, p. 202.
+9Étienne Balibar, l.a Pbf/osop#fe de À4arx, Paras,La Découverte, 1993. losopb e crftig e de I'bfsfofre, Paras,Vrin, 1969). Enquanto Simmel e Aron insis-
i' Georg Simme\, Les Problêmes de la philosopbie de ['bistoire, Paria, PUF, tem sobre a coerênciaretrospectiva da unidade(do tecido) histórica, Benjamin
1984,P.222. prefere acentuar o sentido suspensodo passado que só o momento da Redenção
poderia desvelar.

96
97
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

que qualquer deles seja negligenciado, pois sua dinâmicado conflito cristaliza novas divisões, novas linhas de futu-
revelar-se bem mais tarde, sob o choque ra, novos particularismos nacionais e religiosos; longe de mitigar os
Abstração do progresso e História universal estão costumes,o comércio de todos com todos dilata o campo da guerra
SÓa conclusãoda segundapermitiria validar o no espaçoe no tempo. O incremento da produção, das ciências, das
rido pelo primeiro. Na falta dessefim, de onde a técnicasrevela necessidadese capacidades desconhecidas,faz refletir
plana com um olhar satisfeitosuaobra realizada,na um espectro suntuoso de gostos, de criações, de diferenças; mas a rei-
improvável em que a última palavra seria dita, a história ficaçãoe a alienaçãofazem da humanidade uma plebe perplexa dian-
esgota-senuma hemorragia de sentidos te do espetáculo de seuspróprios fetiches. A produtividade aumenta-
da do trabalho libera tempo para a criatividade individual e coletiva,
Histórica e socialmente determinado, carregado de regressõesque o propícia a novas formas de convívio e de lucidez; mas a medida "mi-
seguem como sua sombra, o progresso nunca é absoluto e definitivo. serável" de qualquer riqueza e de qualquer troca pelo tempo de tra-
Aquele que o capital realizaconsisteassimem "mudar a formade balho abstrato transforma a incrível liberação potencial em desem-
assujeitamento, a conduzir a transformação da exploração feudal eu prego, em exclusões,em miséria física e moral.
exploração capitalista".sz A expropriação abstratamente "progressis- A grande desilusão do progresso pode conduzir à contemplação
ta" dos camponeses está "escrita em letras de fogo indeléveis nos anais estúpidadas figuras calidoscópicasde uma história sem rima nem ra-
da humanidade". Diante dos destroçosdas transformaçõesagrárias zão. SÓhaveria lugar para a indignação moral ou o gozo estético, para
na Rússia (desmatamento, crise agrícola), Engels recusa-se a conside- o grito sem amanhã ou para o silêncio enigmático. Se não resta senãoo
rar os desastreshumanos e ecológicos como os gastos imprevistos furor da luta, como escaparao caos das batalhas?Como salvar um
inevitáveis da modernização: "E deveríamosconsolar-nos com a idéia princípio de inteligibilidade e de juízo? Sem dúvida começandopor re'
e que tudo isso deve finalmente servir à causa do progresso huma- considerar os critérios de um progresso apanhado na armadilha de suas
no!"s3 Sempre em s rsi$ o progresso é também o da violência impi- próprias contradições. Os que Mlarx propõe não são tão ruins: a univer-
edosa exercida contra os vencidos, de seus aperfeiçoamentos, de seus salizaçãohistórica efetiva, o enriquecimento do indivíduo e da espécie
refinamentos técnicos,pouco conformesaos quadros edificantesde pela diversificação das necessidadese das faculdades, a supressãodo
uma marcha triunfal da história. trabalho forçado em favor de um tempo de criação livre, a transforma-
A generalizaçãoda produção mercantil produz uma mundializa- ção da relação social e amorosa entre o homem e a mulher. Tais crité-
ção das trocas e da comunicação, mas o mercado mundial estáarticu- rios são incomparavelmentemais ricos que as estatísticasde produção
lado em hierarquia de dominações e dependências. A extensão inter- industrial ou as taxas de satisfação das sondagens de opinião.
nacional da luta de classes atravessa o horizonte estreito de grupos e Por que estesem vez de outros? Simplesmenteporque esses"va-
grupelhos, universaliza uma lógica das solidariedades, tende a negar- lores" sãoo produto imanenteda relação socialda humanidadecom
se a si mesma na abolição de qualquer relação de opressão; mas a a natureza e com ela mesma, o resultado histórico e cultural de sua
própria humanização, à exclusão de qualquer transcendênciadivina.
szKarl Marx, l.e Capital, livro 1, Pauis,Éditionssociales,1965.
Fatos e valores, moral e política, responsabilidade e convicção não
ss Friedrich Engels, carta a Danielson, 15 de março de 1892. Labriola de-
nuncia francamente a "Madonna Evoluzione", que confunde evolução natural c andam mais separadamente numa indiferença recíproca. Rejeitando
desenvolvimento social. radicalmente o fetíchismo histórico, Marx libera virtualidades mais

98 99
MARX. O INTEMPESTIVO DESAGRADO AO PROFANO

prometedoras que a pobre dialética das forças produtivas e das rela- Balibarsegueneste ponto as conclusões do marxismo analítico. Ele
observaentretanto que a noção de progresso praticamente desapare'
ceudo Cáfila/: "0 que interessa a Marx não é o progresso, mas o
"0 aumento da capacidadehumana" é, segundoGerry Cohen. «. proCeSSO ow o.processzls,do qual ele faz o conceito dialético por ex'
processo central da história." "A necessidade desse aumento", escoe. celência.O progressonão é dado, não é programado, só pode resultar
ve ele, "explica por que há história. [...] Para Hege], os homens têm do desenvolvimento dos antagonismos que constituem o processo e,
uma história porque a consciênciaprecisade tempo e ação para'co. por conseguinte, ele é sempre .relativo a eles. Ora, o processo não é
nhecer-se a si mesma; para Marx, porque os homens precisam de teH. nem um conceito moral (espiritualista) nem um conceito económico
po e ação para tomar as rédeas à natureza."s4 A separação da história (naturalista),é um conceitológico e político." Tendo-lheatribuído
e da política (compreendidacomo estratégiado conflito) provocaa uma concepção evolucionista e progressista da História universal,
recaída nas representações especulativas da história sem que seja elu- Balibar interpreta os últimos textos de Marx sobre a Rússia como
cidada "a necessidade desse aumento". Ela parece pura e simplesmen. "uma extraordinária reviravolta de situação sob a pressãode uma
te fazer eco à lei da evolução e do progresso: "Num sentido particu- questão vinda do exterior". "0 economicismo de Marx" daria assim
à luz o seucontrário: "um conjunto de hipótesesantievolucionistas"
lar, as formas mais recentes devem ser superiores às mais antigas, pois
cada espécieforma-se graças a certas vantagens, na luta pela vida. Essahipótesede uma reviravolta tardia, tão absolutaquanto es-
sobre outras formas que a precederam."ssEsse enunciado confunde petacular,não é quase plausível. Admitamos que a rejeição, a partir
sucessão cronológica e elo causal. de 1845, de uma história fetichista ou "supra-histórica" em favor de
umahistória profana tenha podido coexistir contraditoriamente com
Admitindo que "Marx não vê na história uma espécie de progres-
so linear", Jon Elster contenta-se em registrar "um contraste interes- asgeneralizações evolucionistas (cu)a influência é atestada pelo Prefá-
sante entre a teoria marxiana do progresso perpétuo das forças pro- cio de 1859). Não é menoscerto que o espectrode uma História
dutivas e a visão mais lúgubre de uma destruição perpétua da universal homogêneae linear é constantemente conjurado pelo con-
natureza".sõ Incapaz de pensar progresso e regressãoem sua unidade ceitode uma história cotidiana, cujo alcancefoi percebidopor Bali-
bar: "Marx recorreu cada vez menos a modelos de explicação pree-
contraditória, ele só percebe uma incoerência teórica. Entre um pro-
gresso reduzido ao incremento tecnológico das forças produtivas e a xistentes,e, cada vez mais, ele construiu ma raciona/idadesem
integração social rompida, o liame é cortado. SÓsubsiste uma labo- uerdadeÍroprecede/zfe.Essaracionalidade não é nem a da mecânica,
riosa colagem entre a odisséia positiva da técnica e uma nova teodi- nema da fisiologiaou da evoluçãobiológica, nem a de uma teoria
céia do espírito. formal do conflito ou da estratégia,ainda que possaem tal ou qual
momento utilizar essas referências. A luta de classes, na incessante
Inseparável da afirmação da racionalidade da história, a idéia de
evolução progressiva seria o último avatar de uma filosofia da Histó- mudança de suas condições e de suas formas, é em si mesma seu pró-
ria universal de que Marx não conseguiria nunca desfazer-se. Étienne prio modelo."s7

s4Geram Cohen, em John Roemer, op. cit. s7Étienne Balibar, La Pbllosopbíe de Maré, op. cit. Sobre essaracionalidade não
s5Charles Darwin, L'Origine des espêces,op- cit., p. 392. positivista, ver também George E. MacCarthys, ÀÍarx's Cdlique of Scfe#ceand
sóJon Elster, Kar/ À4arx..., op. cit. Posifiz/fsm,Dordrecht, Londres, Boston, Kluwer Academia Publishers, 1983.

101
100
MARX. O INTEMPESTIVO

Uma racionalidade sem verdade ro precedente! No ponto


contro entre a crítica da razão históri :a, a crítica da economia de en.
Política
e a crítica da positividade científica.

3. Uma nova escuta do tempo

102
Louise Michel relata as circunstâncias em que o communzardCipriani
experimentou o repentino desejo de parar o tempo no relógio da prefei-
tura. Imitando sem saber o gesto dos insurretos de 1830, ele atirou
contra o mostrador, que se desfez em cacos de vidro. Eram quatro horas
e cinco minutos de um desagradáveldia de janeiro de 1871. Naquele
mesmo instante, seu amigo Sapia morria de um tiro no peito.
Que é o tempo? E como dizê-!o?
Uma nova escrita da história é também uma nova escutae uma
nova escrita do tempo. Escandida de eventos, a história não tem mais
a unidade significativa de uma História universal regulada pela alian-
ça da ordem e do progresso. De suas futuras escapa um turbilhão de
ciclos e de espirais, de revoluções e de restaurações, de "monções
históricas" e de oscilações"que no entanto seguemem frente".i

SONHOSE PESADELOSDA HISTÓRIA

A Providência de Bossuet persegue através da História universal "um


desígnio sempre regular e sempre sustentado que prepara desde a ori-
gem do mundo aquilo que ele conclui no fim dos tempos". Seculariza-
do, essegrande desígnio torna-se em Kant um "desígnio de natureza",
para o qual os homens, "perseguindo seusfins particulares e não raro

l Encontrar-se-á em Robert Bonnaud, especialmenteem l.es Allemances d# pro


crês, op. cit., um erudito florilégio dessevocabulário rítmico.

105
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

A dissociaçãopela filosofia hegeliana da história e da lógica que pro-


blematiza esta última acaba resultando em interpretações caricaturais.
Opondo-se a esseslugares-comuns, Hegel recusa-se precisamente a enxer-
.,r no devir das sociedadeshumanas "a necessidadeabstrata e irracional
IÍe um destino cego". Se "a história universal" é um tribunal, ela não é
«uM simples juízo de força", mas o desenvolvimento da consciência de si
eda liberdade do espírito. A "marcha do espírito universal" transcendeas
grandes e as pequenas paixões, os "pontos de vista" subjetivos, os mo-
mentosnos quais "desaparecemas formas particulares". Mas a história
concreta não é mais "um simples progresso nas noções abstratas do pen-
samentopuro", nem "uma progressão num tempo vazio". Ela indica um
"tempo infinitamente pleno, rep/elo de / fas",3 que seconjuga no presen'
te:."Os momentos que o Espírito parece ter deixado atrás de si, ele os
possui sempre em sua atual profundeza." Tanto é verdade que em filoso-
fia "trata-se sempre do presente". Em filosofia? Em política? Tratando-se
do presente e do desfecho de seus possíveis, a política supera a história.
Na Europa do Tratado de Viena, esseprimado infelizmente não deu cer-
to: enquanto a filosofia especulativaapoderava-sede um conceito não
prático da liberdade,a história universalvoltava a cair num formalismo

l RH p::f: :='ü':=.ã:i do devir, segundo o qual os grandes homens caem como cápsulas vazias
depois de ter desempenhado um papel que sempre lhes ultrapassa.
Essateodicéiado Espírito que se conhecea si mesmoreduza história
Momentos da unidade concretada naturezacom o movimento, ao "desenvolvimentonecessáriodos momentos da razão". De onde sua
espaço e.tempo entretêm em Hegel uma relação de conversibilidade temívelfunçãojudiciária. A história do mundo torna-seo "julgamento do
bem conhecida dos estrategos, os quais sempre souberam "ceder es- mundo". Todavia, essaracionalizaçãoformal não sufoca inteiramentea

W:l m Z:m: ::;;m=1:.=


bate esse/ambém", pois o tempo é "a verdade do espaço" 2Ele rejeita
rebelião contra a desesperadoravacuidade do tempo físico: "A história é
o ato pelo qual o Espírito toma a forma do evento."+Dizer a parte do
evento na gênesehistórica é abrir entre o que é(mas teria podido não ser)
a representaçãoabstratade um tempo linear: as formas do e o que não é(mas não esgotou sua potência para ser) a brecha do possível.
passado, do presentee do futuro acham-sena singularidade do agora.
3 Friedrich Hegel, l,eço#s s#r /'blsfoire de /a pbllosopbie, Introdução do curso dc
Berlim, 1820, Paria,Gallimard, Folio-Essas,1993.

l ãlil Ul:l;!;lBH!;:l
+ FriedrichHegel,Príncipesde Ja pbilosopbied# ardil, parágrafos341 a

Lil:l:lR 346. Ver também Eugêne Fleischmann, bege/ ef la PO/fraque,Pauis, Gallimard,


"Tel", 1993.

106 107
MARX. O INTEMPESTIVO
DO SAGRADO AO PROFANO

A obsessão com o fim desejado da história exprime-se bem mais ParaCournot, a história universal termina no jornalismo. O acon-
nitidamente em Comte ou em Cournot do que em Hegel. O primeiro vê tecimentoanula-sena notícia do dia ou na proeza esportiva:"As
a história terminar na sagração do espírito positivo, o segundo observa- gazetassubstituem a história." Não se saberia expressar melhor o
a apagando-se na eternidade insignificante do mercado de opiniões. naufrágio da grande narrativa histórica.
Obsedado pela urgência de "dirigir a terminação orgânica da neva..
lução", Comte sonha com a história de um progresso sem revolução. Como, depois de Hegel, pensar o tempo da história? A saída do he-
Somenteo espírito positivo pode doravante "representar conveniente- gelianismosignifica, de acordo com Paul Ricoeur, a renúncia a "de-
mente todas as grandes fases históricas como fases determinadas de Uma cifrar a supremaintriga", "a intriga de todas as intrigas", suscetível
mesma evolução fundamental, onde cada qual resulta da precedentee defundar de uma só vez a unidade significativa da história e a unida-
prepara a seguinte segundo leis invariáveis que fixam sua participação deética da humanidade. Esseêxodo é indissociável do nome de Marx,
especial na progressão comum". "Regida por /eis inuarláz/eis", essa do seu modo de pluralizar os tempos, segundo os ritmos e os ciclos
evolução conjura um grande medo e trai a aspiração a acumular sem múltiplos de uma temporalidade política rompida. O tempo não é mais
risco. O triunfo positivista "restabeleceráa ordem na sociedade"e as- o motor da História, seuprincípio secretodinamizadoem força, mas
segurará enfim "um estado de coisas realmente normal".s a relação social conflitual da produção e da troca.
Desdeentão o presente não é mais um simples elo na cadeia dos
s Àuguste Conte, Le Fondatmt de la société posititPiste à quicotiqKe désite s'y tempos, mas um momento de seleção dos possíveis; a aceleração da
IncofPorn, 8 de março de 1848. É preciso uma boa dose de má-fé para confundir história não é a aceleração de UM tempo embriagado por velocidade,
o pensamento de Marx com o dc Comte, ainda quando tal confusão tenha sido
maso efeito das rotações endiabradas do capital; o agir revolucioná-
propagada pelo "marxismo ortodoxo" da ll e depois da m Internacional. Assim,
o À4a#KaJpopular de sociologia de Bukharin é censurado por Gramsci, que vê ali rio não é o imperativo de uma capacidadeadestrada para fazer a his-
"uma adaptação da lógica formal aos métodos das ciências físicas e naturais". A tória, mas o engajamento num conflito de resultado incerto. Hipoté-
lei da causalidade c a buscada normalidade, explica ele, acham-sc ali no lugar da tica e condicional, eriçada dc descontinuidades, a totalização impossível
dialética histórica. Gramsci denuncia nessaocasião a vontade prematura de "com-
do devir histórico abre-se sobre uma pluralidade de passados e ama-
pendiar" e fustiga "um evolucionismoraso e vulgar", do qual resulta uma "te-
oria da história e da política concebida como sociologia". Essasociologia não é, nhãs.óPara cada época, o presente histórico representa o coroamento
diz elc, senãouma tentativa de elaboraçãode um método científico "na depen- de uma história consumada e a força inaugural de uma aventura que
dência do positivismo evolucionista'. Suaspretensas leis são quasesempre "tau- jre)começa. Trata-se de um presente propriamente político, estrategi-
tologias e paralogismos", "um simulacro do fato observado", sem "alcance cau-
sativo" (Cabier de priso# ]]). No Capital, Marx não consagra a Comte mais que junto). E essepositivismo ordinário apareceuem 18321" A seusolhos, o positi-
um discreto rodapé: "Auguste Comte e suaescola procuraram demonstrar a eter- vismo não é digno nem do respeito científico devido à economia clássica, nem do
na necessidadedos senhoresdo capital; teriam podido igualmente, e com as mesmas respeito político devido aos utópicas.
razões,demonstrara dos senhoresfeudais.' Numa carta a Engels,de 7 de julho Comte e Marx são incompatíveis. Tudo os opõe. Um pensa o término da
de 1866, ele explicita o seu juízo: "Tenho estudado Comte em meus momentos revolução e a consolidação da ordem. O outro pensa a subversão e a permanên-
de lazer, porque os inglesese os franceses fazem um grande alarde em tomo do cia da revolução. Os detratores de um Marx positivista fecham os olhos a essa
seu nome. O que os seduz nele é o caráter enciclopédico, a síntese. Mas tudo isso evidência obstinada, como se a oposição radical entre a sociologia comtiana e a
toma-se lamentável quando o comparamos aos trabalhos de Hegel (embora Comte crítica da economia política pudesseir de par com alguma conivência oculta!
Ihe seja superior como matemáticoe físico de profissão, ou seja, superior no 6 "0 fazer faz com que a totalidade não seja totalizável"(Paul Ricoeur,
detalhe; pois, mesmo nessasdisciplinas, Hegel é infinitamente superior no con- Temoset Récif, t. 111,Paria,Seuil, 1994, p. 417).

108 109
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

0 TEMPO COMO RELAÇÃO SOCIAL


lamente identificado com a noção de cfrc fzsfáfzcias"encontradas,
dadas, transmitidas", nas quais "os homens fazem sua própria histÓ.
ria". A política é o modo dessefazer. O sensoprático do possível Na dualidade espaço-tempo da velha metafísica, o espaçoaparececomo
conjura aí a utopia arrastada na fuga de um porvir indeterminado o elemento dócil da objetividade imóvel e da eternidade matemática.
Se o espaço da experiência encolhe-se à medida que se Subtrai um Sempreem movimento, o tempo não esquentalugar. O passadojá não
horizonte de espera suficientemente vasto para incluir a esperança e o é mais. O porvir não é ainda. O presenteesvanecc-seno recomeçodo
temor, o desejo e o querer, o cálculo prudente e a aposta arriscada. instante que não é, em cada vez, nem inteiramente o mesmo nem intei-
essesensoprático fica ameaçadode ruína. Semobjetivo determinado ramente um outro. O tempo só existe pelas metamorfoses dessepresente
do porvir, a espera entra em pânico. A rememoração de um passado pontual cuja cambiante persistência desafia a lógica do mesmo e do
que se repete invariavelmente torna-se delírio. "Quando a esperare- outro. "Esse desafio é o tempo."8
fugia-se na utopia e quando a tradição se transforma em depósito Ao secularizar o tempo, a ciência moderna acreditou prevenir-se
morto", o presente inteiro abandona-se à morbidez de sua própria contra essestormentos existenciais. A partir do Renascimento, o tempo
crise. A luta política esforça-se então, sem garantia de consegui-lo. social suplanta o tempo solar. Os sinais cúmplices do calendário e a de-
por evitar que a tensão não redunde na ruptura indiferente de tempos sigualdade das horas das estaçõesapagam-se na indiferente divisibilidade
discordantes. SÓuma espera e uma rememoração determinadas po- das horas iguais. Relógios e mostradores multiplicam-se. O ano em que
dem sustentar a perseguiçãode uma meta que não seja um fim. Spinoza redige sua "geometria das paixões", o estoque da energia pela
"A história universalde Hegel é o sonho da história."7 mola permite a Huyghens "uma nova invenção de relógios exatos e por-
Marx não persegue essesonho. táteis". Chega a época dos deuses.relojoeiros e dos homens-máquinas.
Dando o sinal do despertar,ele antes interrompe o pesadelo. A generalizaçãoda troca mercantil dessacralizaas relaçõeshuma-
nas. Abstração relojoeira e abstração monetária caminham junto
doravante. O tempo é dinheiro. O dinheiro é tempo. Os tempos capi-
tais tornam-se o tempo do capital, "dotado de qualidades bem estra-
nhas, variável, linearizado, segmentado, mensurável e manipulável ao
7Maurice Merleau-Ponty,É/agede la pbilosopbie, Paras,Gallimard, 1 953, p. 67.
longo de uma contabilidade fantástica".P O espaçoe o tempo desola-
Opondo-se a interpretações correntes de Marx, Merleau-Ponty apreende perfei-
tamente a subversão teórica implicada por essaexigência de despertar do sono da dos da física representam daí para a frente as condições formais de
História universal: "Marx descobreuma racionalidade histórica imanente à vida
dos homens; para ele, a história não é mais apenas a ordem do fato ou do real,
à qual a filosofia viria conferir, com a racionalidade,o direito à existência;ela é BPaul Ricoeur, Temos et Récif, op. cit. Esseo motivo por que começamos por
o meio onde se forma todo sentido. [-.] E]a não é dirigida de saída por uma idéia perceber "conjuntamente o movimento e o tempo'. Essemovimento é o dos flu-
da história universal ou total. Lembremos que Marx insiste sobre a impossibili- xos de linguagem que o recortam. Como desembaraçaro tempo vivido do evento
dade de pensar o porvir. É antes a análise do passado e do presente que nos faz e o tempo gramatical do verbo? A fala não teria condição de abstrair-se do tem-
perceber em filigrana no curso dascoisas uma lógica que não o guia de fora. [-.] po. Ela é a própria temporalidade.Apanhadosna armadilha "do compromisso
Não há portanto história universal, talvez não venhamosnunca a sair da pré- recíproco da fala no tempo e do tempo na fala', achamo-nos condenados a "ex-
história. O senso histórico é imanente ao evento enter-humanoe frágil como ele. plicar-nosno tempo com o tempo", a "falar temporalmentedo tempo"
[-.] Todo recurso à história univcrsa]corta o sentido do evento e torna insigni- 9 Éric Alliez, l,es Temos caPffa#x, 1. Récffs de /a co q ête d# femps, Paria,
ficante a história efetiva" (ibid., p. 68). Cera, 1991, p. 24.

110 lll
MARX. O INTEMPESTIVO
DO SAGRADO AO PROFANO

todo o conhecimento, tanto da natureza quanto da economia. Consa- mudançapuramente indiferente da progressividade", da qual se quei-
grando a coalizão vitoriosa do absoluto e do verdadeiro Contra n xa Hegel. Mantendo em xeque a moda e a morte mercantis, o tempo
aparente e o vulgar, Newton opõe o tempo, o espaçoe o movimento recuperadoserá o da obra salva e da atividade criadora.
"absolutos, verdadeiros e matemáticos" da física ao tempo, ao espaço Fascinado pelas regularidades temporais da física newtoniana,
e ao movimento "relativos, aparentes e vulgares"
Marx não continua menos a pensar o tempo a partir de Demócrito e
Esvaziado e calculado, essetempo que se perde e ganha sem vivê-lo
de Epicuro, de Aristóteles e de Hegel. O tempo de Epicuro é a forma
não é mais o dos deusese dos sinais, dos trabalhos e dos dias, dos ca- atavado mundo, "o fogo do ser que consomeeternamenteo fenóme-
lendários e das confissões.Mau gênio zombeteiro, ele parece puxar no", "a mudança como mudança". Ele manifesta-sepelos "acidentes
doravante os cordões do liame social. Ele é a medida mercantil de qual- dos corpos percebidos pelos sentidos" e "percebidos como acidentes"
quer coisa, a começar pela atividade humana reduzida a uma Simples "A percepção sensível refletida em si mesma é portanto aqui o conhe-
"carcaçado tempo". O tempo da economiapermaneceentretantodis- cimentodo tempoe o próprio tempo."''
tinto do tempo mecânicocom seusrelógios, do tempo psicológico com A nova escrita anunciada da história rompe tanto com o tempo
sua duração, do tempo político com suas revoluções e restaurações. A
sagradoda salvação quanto com o tempo abstrato da física. Trata-se
história não seria talvez senãouma "zona de futura" ou "uma ponte de recuperar o sentido dos ritmos e dos começos, de conjugar regula-
erguida" entre essastemporalidades disjuntas e incomensuráveis.ío ridade e novidade, de construir o conceito de um tempo cujas catego-
rias (crises,ciclos, rotações) ainda estão por ser inventadas. O capital
Jogos de mãos invisíveis. A$ do mercado, as do tempo. Para Adam Smith, é uma organização conceptual específica e contraditória do tempo
"a mão do mercado" teceharmoniosamenteo liame social.ParaDarwin, social. Essa dessacralização radical do tempo consolida a representa-
"a mão do tempo" retém as pequenasdiferenças que fazem as grandes
ção de uma imanência histórica.rigorosa. Marx quase não pode ir
bifurcações. Convencidos de que basta ter paciência com seusmales, es- além. Suas antecipações programáticas vasculham a linha do horizon-
perar a saída do túnel ou o fim da crise(que não poderia etemizar-se,já te. Mas a crítica da economia política não pode aventurar-sealém do
que nada é eterno, e o relógio roedor demonstra isso em cada mordida), ponto "em que se esboça a abolição da configuração das relaçõesde
mestres-escolase jornalistas confiam no passamento do tempo.
produção e portanto o nascimento de um movimento, prefiguração
Contudo, o tempo não tem nada com isso. E não possui mãos. do porvir. [-.] As condições atuais prestes a anular a si mesmascolo-
Não trabalha para nós, não dispensaa justiça, não cura as feridas. cam-sepor conseguintecomo os pressupostos históricos de um novo
Por escoar, pura e simplesmente,não desata qualquer nó. Para isso é estado de sociedade".í2 Nada mais.
necessário o dedo do evento, que é de uma outra ordem e de um outro
Economia do tempo: "AÍ estáem que se resolve em última instân-
registro. Acabado, Cronos de insaciávelapetite. Em Marx, como em cia toda economia política." Mas que é dessetempo inscrito no mo-
Proust, o tempo perdido é o tempo sem qualidade de um deus crono- vimento do capital, que escandeseusciclos, ressoacom suas pulsões,
ínetrador. Semmemória nem música, simples padrão de uma história
que não se pode viver, essetempo desesperadamentevazio da abstra- tt Kat\ Wtb Différmce de la pbilosopbie de ta natute çbez Démocrite et ÉPim-
cçãorelojoeira e monetária encadeiaos tristes períodos segundo "a re, op cit., pp. 54-57. Marx acha-seigualmente familiarizado com Lucrécio, para
quem "o tempo não tem existência em si, são as coisas e o escoamento delas que
tomam sensíveiso passado,o presente,o porvir"
ío Paul Ricoeur, Temosef Récil, op cit., p. 176. iz Karl Marx, Gmndrisse,l, OP. cit., P. 400.

112
113
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

que é mais importante, muito Iticrativas. Sabe-sedo mesmo modo,


por experiência,quanto tempo em média dura um instrumento de
trabalho, por exemplo, uma máquina de trica." A descida aos infer-

..;;;;:B 3 :iXHwã
nosdo capital revela assim uma alquimia diabólica, onde "os átomos
do tempo são os elementos do ganho", onde o trabalhador é reduzidf5
a "tempo de trabalho personificado"
O livro l do Cáfila/, o do temporoubado, revelao segredopro- Marx examina com uma atenção horrorizada essedespotismo
digioso do valor excedenteextorquido nas galerias subterrâneasda temporal cujo ritual é revelado pelos relatórios e as pesquisasdentro
produção, ao abrigo dos olhares indiscretos. O livro 11,o das meta. das fábricas: "0 começo da jornada de trabalho deve ser indicado por
morfoses e da circulação do capital, explora os silogismos do tempo um relógio público, pelo relógio da via férrea vizinha, por exemplo,
O livro m, o do processo de reprodução global, recupera, através da a partir do qual a sineta deve regular-se. É preciso que os fabricantes
concorrência e da transformação do valor excedenteem lucro, o tem- afixem nas paredesda fábrica um aviso impresso em grossasletras
po vivo dos conflitos e das crises. onde se acham indicados o início, o fim e as pausas da jornada de
No livro 1, o tempo /ffzear da produção desvela o mistério do valor trabalho." Sob a vigilância ciclópica do relógio, a caça aos "farrapos
excedente. Atrás das mistificações fenomenais da troca, nos subsolos de tempo disseminados" fica doravante aberta. Ela visa a converter a
da alquimia produtiva, a luta incessantepela divisão entre trabalho duração em intensidade, a ganhar sobre a segunda o que se perdeu
necessário e trabalho excedente determina a hachura movente da taxa durante a primeira, a comprimir incessantemente "os poros da jorna-
de exploração. A barra que divide esse tempo em dois segmentos da de trabalho" para "condensar" o próprio trabalho.
desloca-se em função da luta de classes. A despeito de sua aparente Da futura exposta da mercadoria jorram no livro l as antinomias
banalidade mecânica, essetempo da produção, em que a mercadoria do capital (valor de uso/valor de troca; trabalho concreto/trabalho
é reduzida à abstração do valor e o trabalho à abstração de um tempo abstrato). A unidade entre valor de uso e valor de troca traduz um
sem qualidade, é de saída um tempo social: "Se me fosse permitido conflito das temporalidades. O tempo de trabalho abstrato/geral não l
[...]", dizia a Marx um honrado fabricante, "acrescentar diariamente existe senãopelo trabalho concreto/particular. Colocado em relação l
dez minutos de trabalho a mais que o tempo legal, eu poderia embol- dessesdois tempos, o valor manifesta-se abertamente como abstração
sar todo ano mil libras esterlinas." do tempo social. Reciprocamente,o tempo impõe-secomo medida
Tirânico, essetempo enlutado submete-see mortifica os corpos. que deve ser mensurada. A determinação do tempo de trabalho soci-
E isso vale tanto para o homem quanto para o instrumento de traba- almente necessárioremeteao movimento global do capital.i'
lho: "Cada homem morre todos os dias de vinte e quatro horas, mas Os enigmas da medida presentes no livro l ressurgem no livro ll,
é impossível saber pelo simples aspecto de um homem há quantos dias da circo/ízção. Embutido na mercadoria, o valor excedente pode ainda
ele já está morto. Isso não impede que as companhias de seguros ti- extinguir-se nela se não conseguir renascera cada ciclo de suasmeta-
rem sobre a vida média de um homem conclusõesmuito certas e, o
is "Sendo o valor uma possibilidadeque dura, não é portanto limitado à utiliza-
ção imediata; ele refere-seà continuidade das necessidadeshumanase de sua
-; }lenryk Grossmann, Mare. I'économie politiqt4e classique et le problême de !a satisfação. A duração, o tempo, torna-se assim um elemento constitutivo do valor'
dynamlqwe, Paras, Champ libré, 1975. IEugêneFleischmann,nega/ ef /a po/irlque, op. cit., pp. 309-311).

114 115
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

rentes,simultaneamente, por justaposição no espaço". Cada fiação


«ssa sucessivamentede uma fase, de uma forma à outra, funcionando
assimsucessivamente em cada uma delas: "As formas são portanto far-
das fluidas e sz/a slmu/fanefdade é a obra de sm s cessão. Cada forma
seguea outra e a precede,de sorte que o retorno de tal fiação do capital
a uma outra forma é condicionadopelo retorno de tal outra a uma
não cria o valor excedente,suaaceleraçãomultiplica-o em funçãoda outraforma. Cada oraçãodescrevecontinuamente sua própria circula-
velocidade: "Portanto, intervém aqui, de fato, um momento de deter- ção,mas é sempre uma outra oração do capital que se encontra na forma
minação do valor que não provém da relação direta do trabalho coU dada, e essas circulações particulares não constituem senão momefzfos
o capital. A relação eH que.Q.mesmocapital) num tempo dado, pode simt41tâneose sucessivos da marcha global. É somente na unidade dos
reli:1gr Q processo deproduçãoj.visivelmente uma condição.gue não üês cic/os que se realiza a continuidade do processo total. O capital
é&.retamente colocada belo..pllóprio processa deprQdpçãg. . .]. Néa. total comporta semprea unidade dos três ciclos."ió Na acumulaçãodo
do tempo de trabalho realizadona produto, Qtempo dç.glçglaêãÕão capital, esseduplo logo de lugares e seqüências ultrapassa portanto a
capita ilítervéní oortanto como momento-de criação-de valor ]. ]. Se justaposição inerte do espaço e do tempo para cumprir o também hege-
o tempãae trabalho aparececomo a atividade que coloça Q valor. o liano de um espaço-tempo histórico.
tempo de circulação do capital apareceçomo.Q.tempo.dadesvaloriza. O temPOda reprodzlçãoé o tempo orgânico do capital. Tempo de
ção [-.]. Por isso o tempo de circu]ação não é um elemento positivo trabalho e tempo de circulação ali se estreitam na unidade do proces-
criador de valor. [...] E]e é portanto, de fato, uma punção sobre o so global. Se o valor é abstração do tempo e o tempo medida de toda
tempo de trabalho excedente,isto é, um aumento do tempo de traba- a riqueza, a determinação do tempo de trabalho "socialmente neces-
lho necessário." Intervindo como "um momento de determinação do sário" só pode ser dada então a posteriori, pelo autodesenvolvimento
valor que não provém da relaçãodireta do trabalho com o capital". do tempo na reprodução ampliada e a acumulação do capital. Para
esse"tempo negativo" da circulação contribui todavia para o aumen- garantir sua própria reprodução ampliada, o capital consome e con-
to do valor pela aceleraçãodesenfreadade suasrotações. O livro ll sumapermanentementetrabalho vivo. Com o risco -- se o salto mortal
desenvolve assim "novos coeficientes de eficácia do capital, de sua não tiver êxito, se o valor de uso faltar ao encontrocom o valor de
expansão e de sua contração", independentes de seu valor. troca, se a grande roda emperrar -- das arritmias da crise.I'
O tempo de circulação decompõe-seem segmentos que correspon- Tempo mecânico da produção, tempo químico da circulação, tem-
dem às diferentes metamorfoses do capital. A sequência da compra dos po orgânico da reprodução engrenam-se e encaixam assim, em círcu-
bens de produção correspondeao período durante o qual o capital se los de círculos, até determinar os motivos enigmáticos do tempo his-
encontra no estado de capital-dinheiro; a da venda, ao período durante tórico, que é o da política.
o qual ele se acha sob a forma de capital-mercadoria. Em sua corrida
ió Kart Marx, Grumdrisse, 11,op. cit., p. 97.
louca, o capital salta de um disfarce a outro com a vivacidade de um
i' Tempos da produção, da circulação, da reprodução global correspondem,
triatleta. Consideradocomo um todo, ele ocupa portanto "fasesdife- já se disse,aos três livros do Capllal. Nesta parte, nós nos inspiramos no notável
trabalho de StavrosTombados, l,es CaüÜories d femPs dais I'a alise écoKomi-
n Kart Marx, Gr#ndrlsse,11,op. cit., pp. 30 e 126. qwe, Paria, Cahiers des Saisons, 1994.

116 117
TEMPO MENSURADO E MENSURANTE
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

.n-medida do tempo real. Do mesmo modo, o capital reduz o tempo


particular do saz/ofr-Áaife,
da bela obra e do sofrimento cadavez sin-
1
l
gular a um tempo social abstrato.
Uma nova tecnologia do tempo permite então a redução do tra-
balho concreto ao trabalho abstrato: "As duas bases materiais sobre
apenas poupança, mas também organização racional do tempo. O asquais,no quadro da manufatura, sefunda o trabalho preparatório
tempo é a medida da relação social. Mas qual é a medida da medid-, à indústria mecânicasão o relógio e o moinho. O relógio é o primeiro
Qual é a medida do tempo? '''"; autómato empregado para um objetivo prático. Toda a teoria da pro-
Do mesmo modo que a história é em si mesma seu próprio conhe- dução de movimentos uniformes desenvolveu-se sobre essabase."'' O
cimento, o tempo seria em si mesmo sua própria medida. Dizemos relógio forneceu a idéia dos autómatos, e "as experiências de Vaucan-
que um tempo é longo ou curto, por conseguinte mensurável. Mas o son nestedomínio tiveram um efeito extraordinário sobre a imagina-
presente não tem extensão. Acredita-se medir o tempo, e não se He. ção dos inventores ingleses". A lógica da produção capitalista leva
dem senão seusintervalos. Como portanto medir esseperpétuo erva. Marx a antecipar magistralmente os modos práticos de abstração do
necimento em que se desfaza eternidade?O presentenão teria condi- trabalho desenvolvidos ulteriormente pelo taylorismo e a relação en-
ção de medir nem o passadonem o porvir. Santo Agostinho foi tre relojoaria, trabalho abstrato, automatização. O robe é o remate e
assombrado por esseenigma: "Quando vejo um corpo mover-se, meço a verdade última do "trabalho sem qualidade", simples suporte da
pelo tempo a duração de seumovimento", mas "é muito possívelque relação de exploração, trabalho abstrato animado ou "tempo de tra-
não haja movimento perfeitamenteigual que possaservir de medida balho personificado". Essa redução do ser ao tempo é a própria es-
exata do tempo."'8 sência da alienação como estranheza a si mesma.
Ora, nós medimos tempo, homogêneo e no entanto diferente. Tornou-se comum reduzir o pensamento de Marx a um newto-
segundo o que há nisso de prazer e de sofrimento, de espera ou dc nismo envelhecido. "Separar o tempo do desenvolvimento" represen-
esquecimento.Entre um tempo abstrato, espéciede referente trans- ta no entanto aos seusolhos "uma obra-prima de artifício especula-
cendental, e um tempo concreto, existencial, imanente ao movimento. tivo"! As antinomiasdo conteúdoe da forma, da medidae da
Agostinho definia o tempo, "irredutível a uma essência", como "uma substância decorrem daí.:' Quanto tempo vale um movimento? Que
re/anãode duração entre movimentos", a medida de um movimento é essetempo padrão que só se manifesta como espaço(segmento de
que dura "por comparação a um outro". Mas, "se é pelo tempo que duração, superfície varrida pela agulha do mostrador, volume fluido
medimos o movimento dos corpos, como podemos medir o próprio da ampulhetaou da clepsidra)?E por que o tempo mediriao movi-
tempo"?" Para que uma tal medida se tornasse concebível, foi preciso mento, e não o contrário?
suspendero que "se transforma e diversifica" sem cessar,uniformizar
ia Carta de Marx a Engels, 28 de janeiro de 1863.
a diversidade dos movimentos, espacializara duração. Para que o
tempo "absoluto" da física clássica pudesse escoar de maneira homo- zoEncontramos aí a inspiração de Feuerbach, para quem o tempo é "o único
termo capaz dc unir conformemente à realidade determinações opostas ou con-
gêneae uniforme, foi preciso abstrair a medida do movimento, o tem- traditórias num único c mesmo ser vivo"(Ludwig Feuerbach, "Thêses provisoi-
[es pour la réforme de la philosophie" e "Príncipes de la philosophie de I'avenir',
i8 Santo Agostinho, Co#Áissões,XXI c XXVI. em Maxi/estes pbilosopbiques, Paria, UGE, 1973, pp. 153 e 241)

118 119
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO
It g

Tempo mensurado? Tempo mensurante? Assim,o valor se "mede ao tempo" ou, mais precisamente,ao tempo
Enlaçados no abraço de sua determinação mútua, tempo e movi- detrabalho "requerido paraproduzir a potênciade trabalho". O valor
mento medem-senuma relação turbilhonante de reciprocidade para- que o trabalho abstratoacrescenta
ao valor é "exatamentelgwa/ao Ü

doxal: "Não somentemedimoso movimento pelo tempo, maspode- romPOque essetrabalho dura".zs Se dizemos que o valor e a duração
mos ainda medir o tempo pelo movimento, porque eles se determinam sãoiguais, é que eles têm o tempo como medida comum. Mas o tempo
mutuamente um ao outro."z' No CaP/fa/,a reflexividade do tempo que mede o valor não é o tempo em geral. Como medida, ele só existe
ilumina os enigmasdo valor e de suasmetamorfoses.Como detemli. idealmente. Na prática, ele é sempre soda/men e defezminado como
nar uma "medida invariáveldos valores" que fosseela mesmaum tempo de trabalho necessário. Pois ele não teria condição de ser em si
"valor invariável", em outras palavras, "sendo dado que o próprjo mesmo, imediatamente, sua própria medida. A própria medida deve
valor é uma determinação da mercadoria, uma mercadoria de valor ser medida: "A diferença entre preço e valor, entre a mercadoria medi-
invariável"? Para que as mercadoriaspudessemexprimir seuvalor de dapelo tempo de trabalho de que ela é o produto e o produto do tempo
troca em dinheiro, foi preciso supor uma "unidade" que "iguala qua- de trabalho contra o qual ela é trocada, essadiferençaexige ter por
litativamente [as mercadorias] como va]or". Co]ocar o problema de medida uma terceira mercadoria em que se exprime o valor de troca
uma "medida invariável dos valores" não cra de fato senão uma «ex. efetivo da mercadoria. Porque o preço não é igual ao valor, o elemento
pressão errónea para a busca do próprio conceito de valor e da natu- que determina o valor -- o tempo de trabalho -- não pode ser o ele-
reza deste cuja determinação não podia ser por seu turno um valor" mento em que se exprimem os preços, porque o tempo de trabalho
A autodeterminação
do valor resolve-se
no devir do tempo de traba- deveria exprimir-se ao mesmo tempo como o elemento determinante,
lho, do trabalho social "tal como ele se representa de maneira especí- como igual e desigual a sí mesmo. Como o tempo de trabalho enquanto
fica na produção das mercadorias". Para que as mercadorias possam medida de valor não existe senão idealmente, ele não pode servir de
ser medidas por uma qualidade de trabalho cristalizada nelas, é pre- material de comparação dos preços."24Seguindo o devir do capital que
ciso com efeito que os trabalhos diferentessejam reduzidos a um tra- determina socialmenteo tempo de trabalho, a crítica da economia
balho "simples, igual, médio, corrente, wms&///ed", que "a hora inten- política procura resolver os mistérios dessamedida mensurada.
siva" conte tanto quanto "a hora extensiva". Somenteentão a O valor de uma mercadoria conservar-se-ia constante se o tempo
quantidade de trabalho contida nas mercadoriaspode ser "medida necessário à sua produção assim também se mantivesse. Ora, ele varia
em tempo, medida igual".z permanentemente
com a produtividade do trabalho. A determinaçãodo
tempo de trabalho social contradiz assim a definição formal do tempo.
Trata-se doravante do tempo que a sociedade reconheceatravés da troca
generalizada de mercadorias. Quando o tempo de trabalho social não tem
zi Aristóteles, À4éfapbysfq#e,
1,1, Pauis,PrestesPocket, 1992, pp. 31-35. 1,eçons #

de p#yslq#e, livro IV, cap. XVln, Paria, PressesPocket, 1991. mais validade para a sociedade,em razão do rompimento do ciclo entre
u Kart Marx, Tbéorfess#r la p/#s-t/a/Ke,
t. 111,
op. cit., pp. 158-160e 359. venda e compra, "o social exclui o social", diz Marx. O valor da potência
Noção contraditória, "o tempo de trabalho socialmentenecessárionão é uma
quantidade, mas um elo, uma relação, um princípio regulador. Ele não é quantifi-
cável senão por contragolpe de uma diferença que atua nele. Ele contém uma con- ZJKar[ Marx, Ma#uscfifs de 1861-]863, Paras,Éditions socia]es, 1980, pp. 39 c
tradição que deveser colocadacomo tal, uma contradição real inerenteà economia 89
do não-equilíbrio'(Stavros Tombazos, l,es(blégorles d# femps-., op. cit.). 24Karl Marx, Gmndrisse, 1, op. cit., p. 71.

120 121
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

de trabalho acarreta variações de valor ligadas às condições de sua pró- A idéia de uma acumulação que se desenrola "no tempo" parece
pria(re)produção Assim, o valor de uma máquina não é determinado não prescindir de um referente temporal abstrato, preexistente à rela-
pelo tempo que áoí praticamentenecessárioà sua produção, mas pelo ção social. O processo do capital é entretanto "ao mesmo tempo seu
tempo afu/a/me fe lzecessíírio à sua reprodução, de onde a necessidade devir, seu crescimento, seu processo t/íla/". "Se alguma coisa devesse
para o capital de consumir-seprodutivamenteo mais rápido possível. sercomparada à circulação do sangue, não seria a circulação formal
O tempo e o movimento do capital determinam-seportanto reci- do dinheiro, masa circulaçãosubstancial do dinheiro", diz Marx. A
procamente. O tempo(social) mede a acumulaçãodo capital cujas ro- interrupção da circulação "conduz à apoplexia" como "um afluxo de
tações determinam a substânciasocial do tempo. O tempo apareceas- sangueà cabeça". O capital é portanto questão de metabolismo, de
sim simultaneamente como medida do valor e como sua Substância: fluxos sanguíneose paradas cardíacas: "Todos os momentos do capi-
"Como elemento, swbsüfzcfa do z/a/or, o tempo de trabalho é tempo de tal, que parecem intrincados nele quando ele é considerado segundo
trabalho necessário, portanto tempo de trabalho exigido em condições seuaspectogeral, não adquirem uma realidade autónoma e não se
de produção sociais gerais dadas."z Essa substância modifica-se sem manifestam de resto senão quando o capital aparece realmente, ou
cessar em função das condições cambiantes da produção social. Prodi- seja, como pluralidade de capitais. É somente então que a organiza-
giosamente mística, ela é também tão estranha quanto a medida cujo çãot/iz/a ílzter/zaque se produz assim no interior da e pela concorrên-
mensurante varia com o mensurado. O valor é determinado pelo tempo cia se desenvolve sob uma forma mais ampla."27
de trabalho socialmente necessárioà produção da mercadoria, ele mes- Guiado pelo objeto mesmo de sua pesquisa, Marx explora uma plu-
mo flutuante, flexível como um instrumento de medida que variada ralização da duração. Contra toda transcendência histórica, ele concebe
com o objeto mensurado. uma temporalidade original, onde o tempo não é mais nem o referente
Valor "tornado autónomo no dinheiro", vampiro autómato, o ca- uniforme da física nem o tempo sagrado da teologia. Submetido aos
pital percorre o ciclo onde a mercadoria apareceora como dinheiro, ora ritmos históricos e económicos,organizado em ciclos e em ondas, em
como meios de produção, depois novamente como mercadoria. Essas períodos e em crises, o tempo profano do Cáfila/ liga as temporalidades
metamorfoses temporais manifestam-se na moeda: "Se o dinheiro apa- contrárias da produção e da circulação, as exigênciasantagónicasdo
rece como mercadoria universal em todos os lugares, segundoa deter- trabalho e do capital, as formas opostas do dinheiro e da mercadoria.
minação do espaço, ele apareceagora como a mercadoria unia/erga/ Conjugandomedida e substância,ele é almare/anãosoda/ em
segundo a dele/mínação do tempo. Ele conserva-secomo riqueza em movimento.
todas as épocas. Duração específica da riqueza, ele é o tesouro que nem
as traças nem a ferrugem alteram. As mercadorias não são outra coisa
senãodinheiro perecível.O dinheiro é a mercadoria imperecível.O di-
nheiro é a mercadoriaonipresente.A mercadorianão passade dinheiro CRÍTICA ONTOLÓGICA E CRITICA MESSIÂNICA
local. Ora, a acumulaçãoé por essênciaum processoque se desenrola
no tempo."2ó Assim seilumina a relação íntima do tempo e do dinheiro. A burguesiaguindou-seao poder sob o signo da História. Na falta de
genealogias heróicas, ela teve por título legítimo a sulfurosa conivência
25Karl Marx, GmKdrfsse,1,op. cit., p. 135.
zóKarl Marx, GTKndrisse,
1, op. cit., p. 171 27Kart Marx, Grundrisse,11,op. cit., pp. 10-13

122
123
MARX. O INTEMPESTIVO

do tempo c do dinheiro. Seusnegóciosserviam ao progresso. O progres-


'1 DO SAGRADO AO PROFANO

ll\

so constituía seu negócio. De onde a piedosa certeza de que o melhor é


sempre certo e de que o pior é apenas a sombra dessemelhor. Assim que
a razão histórica se viu associadaà razão de Estado, esseotimislno.
inicialmente portador de audáciae insubmissão,tornou-se apologético.
Desde 1871 Nietzsche trouxe à luz os perigos do "excesso de
história": a arrogânciada épocaconvencidade encarnara justiça
consumada, "a crença sempre danosa na velhice da humanidade",'o
sentimento de considerar-se "um epígono tardio", "a habilidade prá-
tica servindoa fins egoístas",o reino semfreio do desprezoe do ci-
nismo. Nessa "febre historiana" que consome o século, a admiração
pelo "poder da história" transforma-se"em pura admiraçãodo su-
cesso e conduz à idolatria do real". Aquele "que primeiro aprendeu a
curvar a espinha e baixar a cabeçadiante do poder da história acaba-
rá tambémpor opinar mecanicamentea qualquer outro poder e dan-
çará como uma marionete na ponta de um cordão".
Marx -- por que obstinar-se a ignora-lo? -- é um pioneiro dessa
crítica da razão histórica. Vasta causa, para onde confluem e mistu-
ram-se às vezes, sem deixar de se combaterem, crítica mística e crítica
profana, crítica romântica e crítica revolucionária. Entre as duas há
bateleiros cuja posteridade discute indefinidamente as ambiguidades:
o Blanqui de l,'Éter/z/fé par Zesasfl'es (1871), o Nietzsche das Consi-
derações exlemporámeas (1871), o Péguy de C/fo (1913), o Sarei das
1//usio s dz{progrês (1908). Inaugurada no desastre de agosto de 1914,
"a época das guerras e das revoluções" deixará cada vez menos espa-
ço a essesentre-mundos. A crítica da razão historiana torna-se então
aquilo que se acha em jogo numa batalha encarniçada, sem trégua.
Lukács e Heidegger? Antes Benjamin contra Heidegger.28
Não basta opor a qualidade das estaçõese dos dias à morna in-
diferença dos relógios e das moedas.A crítica do tempo homogêneo
zl Lucien Goldmann, em seuscursos de 1968-1970, fez o paralelo entre Lukács
e Heidegger. Walter Benjamin, cujo incomparável senso do perigo detectou logo
a importância de Ser e tempo, é, melhor que Lukács, o "anta-Heidcgger" do período
entre as duas guerras. 29Martin Heidegger, Êfre et Temos, Pauis,Gallimard, 1992, P 460

12S
124
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

formação em quantidade e em espaço de uma


duração qualitativa Opõe- ente restabelecea dissociação do sujeito transcendental e do objeto
se a originalidade irredutível daquilo
que, no curso do tempo, passa empírico que o ser-no-mundo pretendia suprimir, uma diferença ge-
e, passando constantemente. "permanece como tempo".3a
néricasepara o ântico e o histórico. O passe de mágica não é incon-
Ao decifrar seusritmos profanos, Marx radicaliza a lai
Citação do sequente.Õntico, o progresso é para Heidegger ontologicamente des-
tempo cotidiano. Persuadido de
orezível. Histórico, ele é para Lukács politicamente criticável, mas nem
o dos trabalhos e das penas, das agonias e dns nof isso condenadoao desprezoaristocrático do Ser.
amores, ele pensaa
organização conceitual dessepobre tempo "õntico" e mergulha sem Foi precisomuita leviandadeou cegueirapara insistir unilateral-
poupar-se nos ciclos, nas rotações, nas trajetórias não lineares, onde mentesobre a similitude entre a "visão cósmico-histórica" de Heidegger
tempo e movimento determinam-se
reciprocamente. Se O Cap/Ía/ pode e a "concepção histórico-prática" de Marx, sobre seu "fundo comum"
ser lido como "uma oncologia do ser social", é e suacomum "radicalidade no questionamento do mundo". Ao ponto
somente como Uma
antologia rigorosamente negativa. de insistir sem hesitaçãoque Heidegger "nos propõe essencialmente
Heidegger ontologiza e ressacraliza.
ajudar-nosa entender o que diz Marx".3i Nada conseguemaí as apto'
Marx seculariza e desontologiza. ximações forçadas: a historialidade do Ser e a luta de classes não são
passíveisde superposição.A historialidade intervémcomo determina-
ção anterior ao que sechama história, como uma espéciede afzlerior ou
de sub-história. À diferença dessa historialidade, cujo ser-para-a'morte
detéma "razão secreta",a história designaem Heideggerora o ente
(entendido como passadoque já não tem efeito sobre o presente), ora o
passado (no sentido de proveniência sem primado particular), ora o
todo do ente que muda no tempo, ora enfim o que é tradicional. Essas
quatro acepçõestotalizam a aventura da história. A tematizaçãohisto-
riana da história é para Heidegger a condição necessáriaà edificação de
um mundo histórico nas ciênciasdo espírito.
Heidegger cita longamente a correspondência do conde Yorck com Privilégio dos homensde ação e de poder, "a história monu-
Dilthey. Com a história, "o importante não é aquilo que faz barulho mental" exprime aos olhos de Nietzsche a fé retrospectiva na huma-
e que salta aos olhos". Trata-se de "penetrar o caráter fundamental nidade numa corrida pelos !ouros que perpetua a grandeza passada
.dahistória como virtualidade" e elaborar para isso a diferençagené- em detrimento dos vencidos obliterados; ela toma seu impulso no
rica entre "o ântico e o histórico", logo Substituída pela diferença passadopara seguir em frente espezinhando as vítimas de ontem e
entre o õntico e o ontológico. Essadestituição sub-reptícia da história de sempre.Paixão dos homens ordinários, insistindo na nostalgia
pela antologia não é automática. Enquanto a relação do ser com o do que já não existe, a história "antiquada" traduz o gosto pela

3i Esseflorilégio é assinaladopor Pierre Bourdieu em L'Onfologie po/fflque de


Ma#in Hefdegger,Paria, Éditions de Minuit, 1988. A última fórmula é de Jean
Beauffret, as outras de Henri Lefebvre, François Chatelet e Kostas Axelos.

126 127

l
MARX. O l NTEMPESTIVO DESAGRADO AO PROFANO

conservação e pela veneração dos esplendores passados, mas nau.


temporalizaçãodo tempo(die Zeitung der Zeit) exigecom efeito uma
fraga na "piedade ressequida"da tradição decaídaem hábito. «A revisãodo esquemabanal dos eisfases horizontais nos quais imagina-
história crítica", enfim, decide-se a "dissolver uma
parte de seu mos, semousar pensa-los, nossasvidas cotidianas. O (uturo é aquilo
passado", "arrastando-o por isso em justiça". Essas três maneiras
que avança em nossa direção, o presente é uma espera'para ou uma
de abordar a história unem-sena historialidadeà qual só uma elite
tema esteticamente acesso. espera'contra (Gege#warf), o passado o passamento do ser projetado
para o autêntico. O que ainda está para ser confere ao passado seu
Hegel atualiza o passado. Os jovens hegelianos atualizam o futuro. sentido ou sua vacuidade, depende. A antecipação do futuro abre
O passado é determinado. O porvir indeterminado, embora determina. dentro do passado "potencialidades despercebidas, abonadas ou re-
vel. O presente os desempata. Ele é o intervalo, muito pequeno m3s
primidas: ela reencontra o passado em direção do porvir", até revo-
consumado, durante o qual os eventos não são nem passado nem futu- gar a empresa do passado sobre o presente.
ro. Essa disputa dos ritmos e das seqüências manifesta para Nietzsche a ' Na intimidade do tempo e da linguagem,a temporalidadeda fala
vontade de agir "contra o tempo, portanto sobre o tempo, e, esperemos. é podadapara o passadoe ramificada para o porvir. A lógica grama-
:1

em benefício do tempo que estápor vir". Ele proclama que "o igual só tical coloca assima experiênciado futuro como ramificação de pos-
pode ser conhecido pelo igual". Em caso contrário "você reduzirá o síveis.Antes de saltar num passadolinear, o porvir purifica-se em seu
passado à sua medida". "Não acrescente fé", diz ele, "a uma apresen- devir presente. Compreender-se-iamal em contrapartida uma lineari-
tação da história que não jorrou dos espíritos mais raros." Ele afirma no dade por vir saída de uma ramificação passada.ssIsso seria compre'
mesmo sopro a preeminência crítica do presente sobre o passado, à endido mal? De acordo com a "lógica do tempo", sem dúvida. Mas
condição que essacrítica exprima "a mais alta força do presente" a que se tornam, na "política do tempo", os possíveis"podados"? Es-
partir da qual é permitido interpretar o passado: "É somente na extrema
tão para sempre engolidos nas vertiginosas latas de lixo da história?
tensão de suasfaculdades mais nobres que você adivinhara o que do Ou algum recolhedor meticuloso tem o poder de salva-los?O Outro-
passado é grande, o que é digno de ser sabido e conservado."3z A capa- ra é irredutível a um rosário de horas fanadas.Pela evocaçãodas
cidade de refigurar o tempo revela a única força do presente e a relação conjunturas passadas,"abordar o Outrora significa portanto que ele
de igual a igual, de grandezaa grandeza,que ele entretém com o passa- seja estudado, não mais como antes, de maneira histórica, mas de
do contra a idolatria do factual.
maneira política, com categorias políticas".w Tratar politicamente a
Heidegger entende em contrapartida proscrever da temporalida- história é pensa-lado ponto de vista de seusmomentos e de seuspontos
de a "significação invasora" das relaçõesentre passado,presentee
futuro, saídosdo "conceito correntedo tempo". Agora-e#fão-owfrora 3s"Compreende-scmal, cm contrapartida, a que responderiauma linearidade
designam a estrutura da databilidade ordinária. A "temporalização" para o porvir saídade ramificaçãopara o passado"(Jean-LouisGardiês,la
l.ogfque d# lemos, Paria,PUF, 1975). Nossa experiência do porvir pode "perfei-
do tempo "a partir do porvir" inscrevetoda a temporalidadeno ho-
tamente adequar-se a um diagrama em forquilha no qual cada ramo representa-
rizonte do ser-para'a'morte. Resultadaí uma angústia semmedo, cujo ria um dos múltiplos possíveis;cm geral, não é senãono momento em que o
vivido autêntico implica uma rigorosa despolitização do tempo. A tempo futuro torna-se presenteque todos os seusramos são podados,à exccção
de apenas um, que se torna então essa linha única cuja origem é marcada pelo
presente e que nós chamamos passado"
3zFriedrich Nietzsche, Co#sldé aria s inacf e//es, 11,Paria, Gallimard, "Folia", H Walter Benjamin,op. cit., p. 409. Em l,'Histofre à confrefemps(op. cit.),
1993,P. 134.
Françoise Proust define com felicidade a política como "a arte do presentee do

128
129
l

MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO H

de intervenção estratégicos. A "presença de espírito" é a qualidad- se não impenetráveis, pelo menos múltiplos e variados. Afastadas da
política por excelência, dessa "arte do presente" ' '""'' "maneira" dominante e de seus esquemas "supra-históricos", as vere-
das de Benjamin e de Gramsci não são as menos legítimas.
O tempo granulosa da história não é para eles nem o cumprimen-
to de uma origem nem a perseguição de um fim. O primado do futuro
em jogo do passado pode entretanto tomar duas direções contrárias. desenhaem Ernst Bloch o horizonte utópico da esperança.Em Heide-
Ontológica, com Heidegger e a temporalidade que se temporaliza gger, ele assombra a meditação antecipada do ser-para'a'morte. Em
a partir do porvir. Política, com Benjamin e o possível messiânico Whitehead, ele salva o presente do desmoronamento que o espreita.
conjugado ao presente. As categorias benjaminianas do tempo ordenam-se triplamente no
Como salto no real "em vista do qual aquilo que é esperadoé presente: presente do passado, presente do futuro, presente do presen'
esperado", a espera,.em Heidegger, está ligada ao possível: "É a partir te. Todo passado renasce no presente tornando-se passado. Todo
do real e em vista dele que o possível é atirado no real da maneira que presente esvanece-seno futuro tornando-se presente. Na constelação
a espera ordena."3s Mas essaesperaé precedência da morte e pensa- dasépocase dos eventos,o presenteinvoca indefinidamente um outro
mento de sua iminência. A esperapolítica (estratégica)aparece,em presente, seguindo um jogo descontínuo de ecos e ressonâncias.
Benjamin, como a exata negação dessaespera ontológica. Enquanto No "conceito dialético do tempo histórico", o presente do passa-
Heidegger mantém aberto "o ter-sido" para celebrar a redescoberta do responde ao presente do futuro, a memória à espera: "Nós somos
do Ser, Benjamin corta as brenhas da loucura e do mito para retirar esperados." Prever essepresente carregado de dívidas messiânicas é a
os traços de um passado que espera ser salvo. A espera messiânica tarefa política por excelência.
não é nunca a certezapassiva de uma vinda anunciada, mas a tocata
tensa do caçador atento ao surgimento do possível.

A "maneira marxista" de elaborar "um pensamento não eventual do A POLÍTICA PASSA DORAVANTE À FRENTEDA HISTÓRIA
tempo" conduziria, segundo Jacques Ranciêre, a "uma predominân-
cia só do futuro própria a explicar o passado". Assim, a imaturidade O enigma do tempo é causa de numerosos mal-entendidos. O tempo
e "o atraso das forças do futuro foram tidas como responsáveispela de trabalho é inicialmente o lugar de uma oposição entre a abstração
estagnação, pela volta para trás, pela "repetição do passado em lugar do trabalho morto e a concretudedo trabalho vivo, entre a duração
da execução das tarefas do presente".3óDeixemos a Ranciêre a res- homogênea e a intensidade variável. Stavros Tombazos atravessa a
ponsabilidade por essamaneira estrutural, cujo processo alusivo elu- paisagemextraordinária dessascontradições. Observa ele: "0 capital
de um exame sério da questão. Os caminhos de volta para Marx são, é justamente uma organização conceitual do tempo. Ele não é nem
uma coisa, nem uma simples relação social, nem uma racionalidade
contratempo". Em seu comentário sobre Maquiavel, Sami Naif chegava à mesma viva, um conceito ativo, a abstraêão izzgala, escreveMarx em várias
conclusão: "Não há história senãopolítica"(Sami Nalr, À4acbiat/e/er À4an, Paras,
PUF, 1984, P. 93). oportunidades: O Cáfila/ é a lógica de sua história."3'
3sMartin Heidegger, Être el Temos, op. cit., p. 316.
" JacquesRanciêre,l,es Mofa de /'blsroire, Paria, Seuil, 1992, pp. 66-67. 37 Stavros Tombazos, Les Catégorfes clu fen71PS. OP.cit., P. ll

130 1 31
MARX. O INTEMPESTIVO
DOSAGRADO AO PROFANO

condição de renunciar à idéia de um presente que não é passagem,


masque se conserva imóvel no limiar do tempo. Essa idéia define
justamente o presente no qual, por sua própria pessoa, ele escreve a
IÜstória".40 Um presente suspenso, que não é passagem mas ramifica-
ção e bifurcação. Um presente estratégico para aquele que se conserva
imóvelno limiar do tempo. Arte do tempo e do contratempo,a estra-
tégiatem com efeito o presentecomo modo temporal e "a presença
do espírito" como virtude mestra.

Emboranão raro Ihe tenhamatribuído a descobertado "continente


histórico" ou a paternidade de uma "ciência da história", Marx não
constrói História universal. Conjugando a crítica e a política, ele forja
os conceitos de uma racionalidade conflituosa. Politizada, a história
torna-se inteligível a quem quer agir para mudar o mundo.
"A política passa doravante à frente da história."41
A política? O pensamento do evento que transpõe a parede do
tempo. Seu primado procede de uma determinação recíproca entre
história e memória, esperae rememoração, projeto estratégico e pas'
fado recomposto.As filosofias especulativasda História universal
pressupunhamum tempo "homogêneoe vazio", encarnandoa pró-
pria causalidade. Esse tempo abstrato da física clássica e do trabalho-
mercadoria choca-secontra as experiências que Ihe descontinuam o
curso. A crítica benjaminiana da razão histórica conduz assim "de um
tempo da necessidadea um tempo dos possíveis".4zO de uma história
secretacujas virtualidades messiânicasminam a fatalidade das apa-
rências, onde cada instante presente, cada espera rememorada carre-

rompidopo estirado, desmembrada. Tempo concentrado, sacudido, gam-sede um sentido próprio. Enquanto a significação recapitulativa

Tempo das crises e das cerejas.


õoWalter Benjamin, Tbêsess#r /e concePt d'bisroire, teseXVI. A fórmula é quase
A repetição dos "agora" dá a cada instante sua chance messiâni- literalmente a de Nietzsche nas Exfemporâfzeas: "Aquele que não sabe instalas-
se no limiar do instante esquecendo todo o passado, aquele que não sabe ficar de
ca. Assim, "aquele que professao materialismo histórico não teria
pé sobre um único ponto, sem temor c sem vertigem, essenunca saberá o que é
38 Ibidem. a felicidade.
4i Walter Benjamin, Paria capÍfale d# XIXême síêcle, op. cit., P- 405.
39Stavros Tombazos, l,es Calegories d# renzlps...pOP-cit. 'z StéphaneMeses,L'Ande de I'Hfstoire, Paras,Senil, 1992,p. 23.

132
133

]
MARX. O l NTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

da História universal se perde no mutismo do Juízo Final, o "conceito Longe dos "deveres de memória" e outras pedagogias comemora-
dialético do tempo histórico" implica com efeito uma reviravolta das tivas, a rememoração é "um combate pelo passado oprimido em nome
categorias habituais de catástrofe, de instante crítico e de progresso 4a das geraçõesvencidas". Nada de reconciliações memoriais, nada de
A catástrofe cede doravante lugar ao conceito da "ocasião falha. recordações consensuais, nada de tarefas consumadas, mas os "cho-
a
quesressurreitores" e as "conflagrações renovadoras" tão caras a
O instante crítico, ao do prolongamento desastrosodo "slalUSqKo" Blanqui. A "recordaçãoremota" da tradição hebraicainscreve-seas-
O progresso autêntico, enfim, ao -- estritamente eventual -- da sim no que está em jogo no evento: "A memória é sempre da guerra."
"primeira medida da Revolução", não como aceleraçãovoluntária.~ Tal é a consequênciado primado político que orienta o sentidodo
mas como uniformidade temporal rompida. perigo iminente. Sem a menor nostalgia de Deus nem tentação de
Lacerado e dilacerado, o tempo messiânicodestrói o mito de Uma piedade, Benjamin opõe ao fetichismo da História sua politização
história homogênea do ser, de seu começo e de seu declínio. A despei- Em horas perturbadoras e cruciais, onde tantos espíritos fortes se
to dos leitores que querem ver em seu "materialismo histórico" uma deixaram abusar, ele deu prova de uma lucidez e de uma firmeza a
estranha vaidade ou um lamentável mal-entendido, Benjamin reco- "contrapeso" que inutilmente se procuraria nos políticos profissionais.
nheceem Marx a crítica da razão histórica e uma nova representação Em fevereiro de 1927, ele deixa Moscou em prantos, a mala sobre os
do tempo como relação social. Essatemporalidade crítica permite joelhos. Seu pesar não é exclusivamente amoroso, mas também por ter
pensar os anacronismos e os contratempos, assim como a perturbado- visto em plena ação o partido dos vencedores,seu apetite pelo poder,
ra contemporaneidade dos possíveisem que nenhum pertence ao pas- seu frenesi de "caçadores de ouro", sua contra-revolução em marcha.
sado do outro. Permite igualmente compreender por que os "velhos Em 1937, ele não compartilha a grande ilusão das frentes populares e
demónios" são sempre sem idade e perfeitamente atuais. denuncia as pequenasconcessõesque dão origem às grandescapitula-
ções e aos grandes desastres. Após a vitória do nazismo, ele situa muito
Um contra-senso vulgar ironiza sobre o impotente "fervor da espera" precisamente a esmagadoraresponsabilidade dos políticos social-demo-
messiânica. O "conceito messiânico" exprime ao contrário a tensão e cratas e stalinianos: sua comum confiança anestesiante no "sentido do
a inquietude do somente possível.Do mesmo modo que a rememora- progresso", na "dinâmica das massas" e na força de seus próprios apa-
ção, curiosamentecapaz de "modificar o que a ciência constatou". relhos. Essa tripla confiança constitui a essênciado que precisamos
sua espera é aviva. Nessa "revolução dialética da rememoração", ne- chamar de uma cultura burocrática da resignação.'s
nhuma fatalidade do advinda, nenhuma ditadura do fato consumado. A cada instante confrontam-se o racional e o irracional, os pos-
Benjamin propõe em troca "um materialismo histórico que teria abo- síveis que têm acessoà história efetiva e aqueles que dali estão, pro-
lido a idéia de progresso" em favor das interrupções e das passagens.« visória ou definitivamente, eliminados. Somentea luta os desempata.
Essaa razão por que a pretensão"científica" a prever o porvir da
43W'alter Benjamin, Parascáfila/e d# XIXême sfàc/e,op. cit., p 492. sociedade é derrisória: "Na realidade, só se pode prever cientificamente
H Stéphane Meses, l.'i4nge de J'Híslolre, op. cit., p. 163. "A fórmula mais a luta, llao os seusmomerltos concretos.n4ó
exala da filosofia da história que subentendeo messianismojudeu seria talveza
seguinte: há muitas coaçõesou sentidos na origem da história para que esta seja
absolutamente imprevisível; mas não há ainda o suficiente para que ela seja in- 45Walter Benjamin, Tbêses sur /e co#cepf d'bfsfoire, tese X.
teiramente determinada" (ibidem, p. 195). 4óAntonio Gramsci, Cabiers de prison 6 (p. 17) e í l (p. 203). Para Gramsçi,

134 135

l
MARX. O INTEMPESTIVO DO SAGRADO AO PROFANO

Praticamente, só há previsão estratégica. se sentido ela é política". Mas tanto, diz ele, "uma revolução social
com uma alma política é paráfrase ou absurdo, quanto é razoáveluma
Seja portanto um tempo discordante, esburacado, messiânico num revolução política com uma alma social". A revolução como tal, "a
sentido que a crítica vulgar não suspeita. À escuta de sua "fieqüênda derrubada do poder estabelecido e a dissolução das condições anti-
revolucionária", Marx explora "uma anacronia ritmada". Surpreen- gas", é portanto antes de tudo "um ato político". Sem revolução o
dendo em seusbatimentose palpitaçõeso jogo do virtual de onde socialismo não pode tornar-se realidade: "Esseato político é necessá-
surgeo evento, ele desconstrói a temporalidade física para reconstruir rio para ele na medida em que precisa destruir e dissolver. Mas ali
uma temporalidade social. Essahistória sincopada opõe-se à «histó- onde começa sua atividade organizadora, ali onde se manifesta sua
ria sem evento", sucessãode notícias do dia onde nada advém, evo. própria meta, sua alma, o socialismo rejeita seu invólucro político."47
cada no Dezoito Brwmário. Como subversão,a revolução é um ato político.
Carregada de avanços e recuos, a revolução é ao contrário o evento Como dissolução, ela é um processo social.
por excelência. Inatual, extemporânea, ela não tem em suma "jamais Ela é simultaneamenteuma revolução do tempo longo, intelectual
lugar no presente".Sempremuito cedoe muito tarde. A revolução e moral, que mina lentamenteo fundamento dos impérios,e uma
assombra as margens do político. Além se estendem terras incertas. revolução insurgida no clamor de sua própria irrupção. Unidade das
regiões sem nome, que excedem os limites do pensável. Os antigos, rupturas e das continuidades, de tradição e autêntica novidade, com-
como se diz, por muito tempo consideraram que a guerra, inabordá- binação de tempos mescladas, ela traça o limite onde o pensável morre
vel pelo pensamento,sobressaía
do rito e do mito. Nossaépocain- na incertezada escolha.Indo assim além da crítica da economiapo-
cluiu guerras e revoluções no horizonte do conhecível. Ela ligou rebe- lítica, ela se mantém no limiar da razão estratégica, munida de seus
lião e pensamento. conceitos estrelados de ramificações e bifurcações.
Marx compreendeu muito cedo que "toda revolução dissolve a Este mundo é o das "explosões, cataclismos,crises". Onde as
antiga sociedade, e [que] nesse sentido e]a é social". Compreendeu contradiçõesresolvem-sena violência da decisão.
igualmente que "toda revolução subverte o antigo poder, e [que] nes-

o erro de Croce consiste em "fazer abstração do momento da luta" (Cabier lO.


p. 33). A diabéticaaberta da luta restabelecea possibilidade do erro em política,
em lugar de não ver, em cada decisãoe comportamento, senão a manifestação de
uma essência.De modo que não haveria mais erros possíveis, mas somente trai-
çõese faltas: enganar-seé então ser já culpado (primeiro princípio da lógica
totalitária). Para Gramsci, ao contrário, não se acha dito que as tendências da
estrutura "devem necessariamente
realizar-se".Enquanto o materialismo históri-
co mecanicista "não considera a possibilidade de erro, mas considera cada ato
político como determinadoimediatamentepela estrutura', ele sabe que um ato
político pode perfeitamente"ter sido um erro de cálculo": "Se sequisesseencon-
trar a explicação imediata, primeira, de cada luta ideológica no interior da Igreja 47Kart Marx, Glosas critiq es elz marge de I'artlcle "Le rof de Prusse ef la réÓor.
na estrutura, seríamosdefrontados com muitas dificuldades: razoáveis romances me socía/e par n Prusslelz", em OeKures, 111,P#i/osopbie, Paras, Gallimard, "Bi-
político-económicos foram escritos por essarazão", escreveele (Cabfer 7, p. 189). bliothêque dela Pléiade", 1982.

136 137
SEcuNDA
PARTE
A luta e a necessidade

Marx crítico da razão sociológica

"Todas as coisas são engendradas pela luta e por ela necessi-


tadas."
Heráclito, FragmePztos

'Le Nouvel Observateur: Em SHaopinião, que z/alarde es-


querda devia ser promovido çom tirgêttcia!
Marguerite Duras: A / ta de classes.
N.0.:Comoi
M.. D.t Sem restabelecera !uta de classes,não vejo-.'
Le Nout/el ObsewareKr,2 deabril de 1992
As classes ou o sujeito perdido
l

"A história de-.toda sociedade-até os nossos dias não foi senão a his-
tória da luta de classes." Quer sç trate.das relações de produção ou do
'desenvolvimelnto hislÉricQ, a "lota de .çlasses".ocupa o centro do pen-
sãméíítã'de Marx. O senso.çomun!.rmarxista=..pareceentretanto ig-
norar como €1áçiLcitar textos canónicos onde a noção de classeapa'
rece e coiDgedifíçB, çm contrapartida, encontrar uma definição precisa
para essamesmanoção. Quando muito, colhem-secom parcimónia
alêümas aproximações pedagógicas: "Na medida em que milhões de
famílias vivem em condições económicas de existência que as distin-
guem-por seü mo!+g de vida e por sua cultura das outras classes,elas
constiiiiãn uma classe..."Ou ainda uma caracterizaçãolapidar do
jiíõletáiiõ (não do proletariado): "Aquele. gue.não vive do capital ou
da renda, massomente.dcl-trabâltíõ;caem irabàlho unilateral, abs-
trato.;Í Por ocasiãoda reediçãodo Malzifesfo com ninfa, Engelsob-
ii3iiçaem 1888 numa nota de rodapé: "Entende-sepor proletários a
classede trabalhadores assalariadosmodernos, que, não possuindo
meiQ&.deprodtiçãcrpróprios, dependem para viver da venda de sua
força de trabalho." É pouco. Essasfórmulas incidentesnão teriam
como constituir uma definição de referência.
Preocupados com essa lacuna, numerosos autores (Schumpeter,
Aron, Dahrendorf)atribuem-nade bom gradoa uma confusãodo pró-
prio Marx entre ciência e filosofia, economia e sociologia. Marx, com
efeito, não procede quase por definição(por enumeração de critérios),
mas por "determinação" de conceitos(produtivo/improdutivo, mais-

l Ver O DezoffoBmmário e os Àlalz#scrllosde í844

143
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

valia/lucro, produção/circulação), que tendem ao concreto articulando. nuco levava a uma teoria completamente evoluída das classestivesse
sido entravada por algumas dificuldades que ele tinha criado para si
mesmoinsistindo numa concepção puramente económicae urra-sim-
njificada do fenómeno". Ainda mais "curioso" é que essejuízo de
a partir de resíduos e de fragmentos antecipados nos 51 capítulos prece. Schumpetera propósito das classespoderia aplicar-se igualmenteà
dentes, como se estivesse remontando o esqueleto de um grande sáurio ausência de um discurso do método, de uma teoria das crises, de uma
a partir dos fragmentos de seusossos. O exercício quase não convence.2 teoria explícita do tempo, que são, sem qualquer dúvida, tantos ou-
/'' As oáainas interrompidas do Capita/ deixam em aberto muitas tros "pontos centrais de sua meditação". Seé que podemos acreditar
questõêi#áGdas de conseqiiênciasquanto à compreensão da evoju. que, enredado em suas próprias armadilhas, Marx tivesse passado seu
.J ção das classes nas.sociedades capitalistas desenvolvidas (de suas àans- tempo aplicando-se a resolver questões menores.
formações e diferenciações internas) e à das sociedadesnão capitalis- Aliás, de que modo passava ele seu tempo?
tas(ou burocráticas), nao raro reduzida a caracterizaçõesformais que Cuidando dos seuseternos furúnculos, compartilhando as difi-
decorrem ora do primado dã economia(plano contra mercado),ora culdades familiares, despachando os credores, escalonando o paga-
do primado do político ("ditaduraqo proletariado"), ora de uma mento de suasdívidas, maltratando o tio Philips, mantendouma vo-
sociologia aproximativa ("o Estadooperário").3 lumosa correspondência,conspirando e organizando o movimento
operário. E, sobretudo, escrevendo e reescrevendoO Cáfila/.
É aí que se precisa ir buscar a chave de uma teoria "em ato" das
classes, insatisfatória talvez, mas certamente não "urra-simplificada"
ASOCIOLOGIA QUENÃOSEPODEACHAR A urra-simplificação é antes um problema do próprio Schumpeter.
Marx, diz ele, imobilizada as classesno momento de sua abstração,
"Curiosamente, até onde sabemos,Marx nunca elaborou de modo no estado de virtualidade estrutural do modo de produção, antes que
sistemático uma teoria que, com toda a evidência, foi um dos pontos o desenvolvimentoda formação social tivesseproduzido as comple-
centrais de suas meditações:"4 Schumpeter considera que esseesforço xas diferenciações da divisão do trabalho, de sua organização e de sua
tivesse podido ser adiado. É também possível que «certos elementos relação jurídica com o Estado. É fazer pouco-caso da lógica do Cáfi-
dessa doutrina tivessem ficado incertos em seu espírito e que a estrada la/. O fim já se achaaí, sempre,compreendido na origem. Assim, as
conscqüênciasda circulação e da reprodução global já se acham pre-
2 Ralf Dahrendorf, C/ass a#d C/ass Con/7fcl f llzd srfiaJ SocleW, Londres, Rou-
sentesno valor e no valor excedente,que "pressupõem" a luta declasses
tledge and Kegan. Tradução francesa: C/asse et con/7ít de classe di s /es socléfes
fmdKsfrfe//es,de Gruyter, 1972. e a determinaçãodo tempo de trabalho socialme fe necessário.Indo
3 Sobre "a abstração determinada', oferecemos no Capítulo vm deste livro do abstratoJO.ooncretQ, a teQlj4.dasilasses nãateria como'+hessa
uma discussãosobrea "nova imanênçia'. Seguindoessalógica, teria sido escla- .ética, reduzjnse a um jogo estáticcrdc definições e de.dassifjçações.
recedor comparar a relação dc classea outros modos de relações conflituais(hi- Ela remete a um sistemade relaçõesestruturado'pela luta, cuja com-
erárquicas, de sexo, de nações) O leitor interessadopoderá sobre esseponto
recorrer ao meu livro, l,a Dfscordapzcedes lemos, nas Éditions de la Passion. plexidade::iêqeseniõla.plenamente nos escritos políticos (As lulas de
4Joseph Schumpeter, (lzpííallsme, sacia/fome, dánocratfe, Paria, Payot, 1983, classes a Franca, O dezoífo brzlm41io1.4.guerra ciz,i/ fza Franca), onde
P 3
Marx oferece a última pal;:iç;lasobre a questão.

144 145
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

deordem política. A definição redutora de classesteria com efeito per-


mitido "uma manobra ousada de estratégiaanalítica" em forma de
"tautologia engenhosa": tendo sido a propriedade privada colocada no
âmago da definição, sua abolição desembocaria automaticamente na
sociedadesem classes.
Uma classe,segundo Schumpeter, é ao mesmo tempo "mais e outra
coisa além de uma simples soma de indivíduos", "algo que é sentido e
ria exangue transforma-se em combatente carnal.«s Rejeitando esse sublimado como um todo".' Essaconstataçãocoloca um problema ló-
gico cuja clarificação evitaria um sêm-número de falsos debates sobre os
casos limites ou sobre os estatutos individuais. A noção de classe,segun-
do Marx, não é redutível nem a um atributo de que seriam portadoras
as unidadesindividuais que a compõem, nem à soma dessasunidades.
mentalmente, em presença de duas classes« Ela é algo diferente: Uma totalidade relacional e não uma simples soma.
AÍ, sim, é que temos uma "definição"... urra-simplificada! Essevelho'problema nunca deixou de atormentar os lógicos: "Não
A simplesoposição entretrabalho assalariadoe capital não seSitua devemos esquecer que, nas ciências sociais, o termo classe tem um outro
em Marx no nível da formação social. Ela reside no primeiro nível de ,sentido-que nasciências matemáticas, que dele se servem compreenden-
stração determinada,o da esferada produção. Em sua estrutura do g çonn.umapmpdedade..A:burgue$i4,lê.proletariado, tantas .classes
profunda, cada sociedadepode set reconduzida a uma onOSi''ãOCO sociajli.g.setjaunLÍal$Q.sentido.!onsiderara burguesiaou o proletaria-
flitual de classe fundamental. '' '"'- do.como-propriedades-de tal ou qual indivíduo.. Aqui,.nas ciências so-
Essa determinação das relações de classe na esfera da produção não ciais, é a acepção mereológica do termo classeque.convém. O proleta-
constitui precisamentesenãoa primeira palavra da análise,e Marx não riãdãlê'um grupo de.homens,um objeto composto,cujos diversos
se contenta com isso. Indo além da proposição engelsianasegundo a pi61etããÕi\ão os fragmentosconstitutivos dó sistemasolar como as
qual a história da humanidaderedutível à luta de classesnão é mais que
a história escrita, posterior à dissolução da comunidade primitiva. ColzfemPoraO'
Críffque o/Hfstorfca/ Maferla/fsm(University of California Press,
Schumpeter denuncia a extensão abusiva da noção de classea todas as 1981). Segundo ele, é somente sob o capitalismo que a relação de classe pode ser
considerada como o princípio estrutural da sociedade.A sociedadecontinua
sociedades, inclusive às "épocas não históricas", excetuando-se apenas
entretanto atravessada por múltiplas formas de exploração e de dominação não
o comunismo primitivo e a sociedade sem classesvindoura. Esse proce- redutíveis à relação de classe.Ele condena portanto em Marx um duplo reducio-
dimento anularia as articulaçõespróprias dessassociedadese re(luzida nismo, que consiste em fazer do conflito de classes um princípio explicativo de
sistematicamente as classes a "fenómenos puramente económicos, e até todas as formações sociais e em atribuir-lhe um poder de explicação excessivo
mesmo económicos num sentido bastante restrito". Marx ter-se-ia as- para o que diz respeito à própria sociedade capitalista. Essacrítica apoia-se num
reexameda articulação entre dominação e exploração na relaçãosocial. Sobre
sim recusado "a aprofundar sua concepção de classes".ó O impasse seria
essastesesde Giddens,ver Eric O. Wright, "Giddens' Critique of Marxism',
New Le# Reufem,n' 138, março-abrilde 1983.
s Joseph Schumpeter, CáFIla/leme-., op. cit., p. 71. 7 Ver também Joseph Schumpeter, Impérla/fome et classes socfú/es, Paria,
6 Uma crítica análoga, mais elaborada, aparece em Antony Giddens, A Flammarion, "Champs", 1984.

146 147
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

classese fixam-se como tais." Sua cristalização em relações de clas-


sesnem por isso as dissolve num logo hipostasiado de "pessoas"
imaginárias.A realidade dinâmica das classesnão cai nunca no domínio
inerte da objetividade pura. Sua coesão é irredutível à unidade for-
mal de uma simples coleção de indivíduos.s Evidentemente, esses
humanas, tais como, por exemplo, as que decorrem do emprego da lin. textosde juventude não poderiam ser confundidos com o conceito
de classe elaborado no Cáfila/. Contudo, eles excluem definitiva-
guagem para comunicar ou da cooperação consciente etc. Isso contudo
não modifica em nada o fato de que a relação entre a classe social e seus menteuma representaçãoda classecomo grande sujeito, assim como
próprios membros seja a relação que seestabeleceentre um objeto com. sua redução a uma simples rede interindividual.
posto e seuspróprios fragmentos constitutivos. A classeé compreendida Exigir de Marx uma "sociologia" segundoos critérios acadêmicos
aqui de maneiramereológica."8
Mas a dialéticaacomoda-semal'ao da disciplina é um contra-senso.Ninguém é menossociólogo(no senti-
formalismo lógico. do comum) do que ele. Sua "sociologia crítica" é uma sociologia nega-
tiva ou uma "anta-sociologia".io A investigação sociológica pode produ-
Considerar a classeuma realidadesuperior à dos indivíduos que
a compõem não é naufragar nas ilusões fetichistas que transformam zir informaçõesúteis, mas o conjunto delas não constitui um
a sociedade, a história ou a classeem tantos outros sujeitos míticos? pensamentoe as informações factuais não constituem um saber. Em
Marx condena precisamente Proudhon por "tratar a sociedadecomo
9Para Michel Henry, "as forças produtivas, as classes sociais não são realidades
uma pessoa". Denunciando essa"ficção da sociedade-pessoa",ele
primeiras nem princípios de explicação, mas exatamente aquilo que deve ser
zomba daqueles que "com uma palavra fazem uma coisa". Sua abor- exp[icado [-.]". O "marxismo" é que as teria transformado em conceitos funda-
dagem recusa que se veja a classecomo uma pessoaou como um mentais contra "o pensamento de Marx" (Maré, e pbf/osopbíe-., op cit» pp-
ZZb-ZJy).
sujeito unificado e consciente,à imagem do sujeito racional da psi-
io O termo sociologia apareceem 1838 no quadragésimo sétimo Corso de
cologia clássica. Não há classesenão na relação conflj!!!al-com ouua$
#/osofia po/írfca, de Comte. Enquanto o período de gestação revolucionária é o
classes.Anotando, à margem dos manuscritos da#deo/agia alemã, da filosofia política, do direito natural ou da economia clássica, a sociologia emerge
"preexistência da classe entre os filósofos", Mal:i"qiiestiona-.sud como um produto ideológico do período pós-revolucionário. Ela codifica-sc, com
acepção formal do conceito de classe e de seu primado sobre o in- a grande floração das sociedades, revistas, congressos do fim do século XIX e do
começo do século XX, como uma empresa de despolitização (naturalização) do
divíduo, reduzido à condição de simples "exemplar" de uma abs-
social e como antídoto à luta de classes.Tratava-se (já) para Comte de "termi-
tração que o domina. Ele visa então Stirner: "A afirmação que en- nar" a revolução. Em nome das leis sociais, Durkheim se esforçará por demons-
contramos frequentemente em SãoMax de que tudo que existe existe trar que "as revoluções sãotão impossíveisquanto os milagres" (Émile Durkheim,
pelo Estado é no fundo aquela mesmaque faz do burguêsum exem- "La philosophie dans les universités allemandes", Ret/ue i ler#afíona/e de
plar da burguesia,afirmação que pressupõeque a classedos bur- I'e#sefgnemelzf, vol. Xl11, 1887). Sobre essacrítica e sobre a "sociologia da socio-
guesesexistia antes dos indivíduos que a compõem." Ou ainda: "As logia', ver Gõran Therborn, Scle#ce,C/assa#d Sociely, NLB, Londres, 1976.\
Desde o começo, a sociologia inspirou-se na biologia (Bichat, Cabanas)e na
relações pessoais tornam-se necessária e inevitavelmente relações de mecânicapara reduzir a política a um determinismo sociológico: "A sociologia
emergiu como discurso sobre a política depois da revolução burguesae atingiu a
' J. Kotarbinsky,l,eçorzsswr/'&isfoirede/a lo8fque,Paras,PUF,1964. A "mereo- maturidade como discursosobre a economia sob a ameaçada revoluçãoprole-
logia" refere-seàs tesesdo lógico polonês Stanislaw Lcsnicwscki. tária" (G. Therborn, op. cit., p. 417).

148 149
MARX. O l NTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

seusrepetidos ataquescontra o Maliua/ poP lar de socio/agia mazxfsta O conhecimenlg não é uma simples coleção de fatos. "A dificul-
de Bukharin, Gramsci sublinha o antagonismo irredutível entre as duas dadiãcha-se na passagemdo fato aã'iõhhééihenta'T ilá'relação de
abordagens.Procurando adaptar a lógica formal aos métodos dasciên- categoriaslógicas com o seu conteúdo. "0 período das Luzes,com
cias físicas e naturais, o Mafzua/ chega assim a um evolucionismo vul. seupensamentoformal, abstrato, oco, esvaziou a religião de qualquer
gar. A despeito de suas intenções pedagógicas, a idéia mesma de "com. conteúdo", não deixando senão "as generalidades, as abstrações, a
pendiar" é incongruente, tratando-se de uma teoria ainda em estágio de água fria de um racionalismo gasto e sem vida". Nem por isso basta
discussão, polêmica e elaboração: "Acredita-se que a ciência quer abso- opor a essasabstraçõeso concreto imediato e caótico da "vida" ou da
lutamente um sistemae constrói-senão importa que sistema. [..] Fa]ta "natureza" romântica: as determinaçõesparciais são unilaterais e
ao MaNHa/um tratamentoteórico da dialética." Essedefeito pode ter exigem ser ultrapassadaspelo concreto verdadeiro que se aproxima
duas origens: "uma teoria da história e da política concebida como do todo. Semsistema,a filosofia "nada possui de científico": "Um
sociologia" ou "uma filosofia que seria no fim das contas o materialis- conteúdo não pode justificar-se senão como momento da fofa/idade.
mo metafísicoou mecânicovulgar". A tentativade reduzir "a filosofia do contrário não passa de presunção sem fundamento ou uma certeza
da praxis a uma sociologia" revela na realidade uma vontade ao mesmo subjetiva; vários escritos filosóficos limitam-se a exprimir dessama-
tempo ilusória e inquietante "de ter toda a história no bolso". Trata-se neira apenas convicções ou opiniões."''
antes de saber o que existe ali de sociologia como disciplina separada e A l,ógfca hegelianadesenvolveportanto uma crítica radical do
de seu papel no desenvolvimentohistórico da cultura. Fundada sobre empirismo.Em lugar de procurar o verdadeiro no pensamento,o
um "evolucionismo vulgar", ela representa aos olhos de Gramsci uma empirismo "reporta-se à experiência", postulando que o verdadeiro
tentativa de apreensão do social "na dependência do positivismo evolu- "deve estar na realidade e existir pela percepção". Reconheceassim
cionista". Numa perspectiva crítica da ordem estabelecida, seria preci- um princípio de liberdade (o homem deve ver por si mesmo),mas a
so, ao contrário, "encontrar a forma literária mais apropriada para que universalidade, objeta Hegel, é "outra coisa que o grande número". A
a exposição seja não socio/ógfca".'' filosofia crítica kantiana, diz ele, compartilha com o empirismo o erro
Seja, portanto, O Cáfila/ como exposição não socio/ógica. "de tomar a experiência como único fundamento dos conhecimen-
tos", não como verdades,mas como conhecimento dos fenómenos. o
A gênesedo Capffa/ constitui um "acontecimento teórico" inteiramente que resulta inevitavelmente em um relativismo epistemológico.
à parte onde se ligam rupturas e continuidades.Essamutação não A gênese
do(lzpl/a/ pressupõeessacrítica do empirismoe da filo-
ocorreria sem conseqüênciaspara a conceituação das classes.Sob o sofia kantiana. A maioria dos detratores de Marx (a "sociologia das
golpe da crise económica de 1857-1858, Marx lança-sefebrilmente à classes"é o mais flagrante exemplo) faz grosseiramenteo caminho in-
redação dos Grufzdrfsse "para clarificar as grandes linhas antes do verso, criticando as determinações inacabadas da totalidade dialética
dilúvio".12 Portanto, uma obra urgente. Nessa ocasião ele redescobre
"by mare accfden&"Hegel e sua grande l,ógica. i3 Friedrich Hegel, E#cyclopédle des sele ces pbi/osopbfqKes, Paria, Vrin, 1987.
O acaso tem às vezes sua necessidade. "Cada uma daspartes da filosofia forma um todo filosófico, um círculo fechado
em si mesmo; entretanto, a ideia filosófica aí se acha numa determinação ou num
elementoparticular. Esseo motivo por que um círculo que forma em si uma
ii Antonio Gramsci, Cabiersde FrIsaM11, pp. 221-229, e í2, p. 311 totalidade transpõe os limites de seu elemento e funda uma nova esfera; o con-
iz Carta a Friedrich Engels, 8 de novembro de 1857. lunto apresenta-se em seguida como m cac lo de cüculos."

150 l SI
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

em nome das categoriasmetafísicasda percepção empírica. Na llzfro. PRODUÇÃO E RELAÇÃO DE EXPLORAÇÃO


dKçaão
de 1857, Marx explica.a 4 passagenlt-dcp
abstrato ao '""
como "síntese de ntunerosas determinações'í e "unidade da diversida- As classes revelam-se no e pelo movimento do Cáfila/. Se essa reve-
de". O co!!goto não é o dado imediato empírico da pesquisa estatística. lação cumpre'se logicamente no livro 111,com o "processo de produ-
mas uma construção conceitual ou concreto de pensamento. ' ção global", a questão é tratada em várias oportunidades a partir do
A possibilidade do conhecimento científico inscreve-se na separa- processo de produção
ção entre o dado empírico e esseconcreto construído. Partindo da do- 1) A polarização .4ç çlasse -aparece no livro-l. no capítulo da ter-
minação do todo sobre as partes, o plano dos Gmndrfsse de 1857 não ceira.seçãã sobre a /ornada de tuba/bo; "E é assim que, na história da
segue mais as categorias descritivas da economia clássica. Nem explora- produçãocapitalista, ;;êgulamentação da jornada de trabalho apre-
ção histórica nem análise dos "fatores de produção", ele anuncia a sín. senta-secomo a ]uta pe]QSlimites da jornada de trabalho. Luta que
tese dialética de um sistema e de sua história. Abstração interpretativa opõe o cãÍ)italiÉta global ou seja, a classe dos capitalistas, e o traba-
das sociedades reais, o "capital" torna-se no modo de produção capita- lho globo ou souseja,a classeoperária." Essapassagemdo tipo abstra-
lista a chave da totalidade. Daí por que, "como força da sociedade to, correspondente ao nhe/.da prbdz/ção (capital/trabalho), às classes
humana que domina o todo", ele deve "constituir o ponto de partida e propriáhéãtenitas (;zólzàe/ da /nfa), pressupõejá o conflito perma'
o ponto final, e deve ser explicado antes da propriedade fundiária".14 nentepela divisão do tempo entre trabalho necessárioe trabalho ex-
O plano inicial em seislivros do Capela/previa um livro sobreo cedente (ao nível da reprodução global).
Estado e sobre o comércio exterior (ou o mercado mundial). Ora. o '2) Marx explica em seguida (capítulo "Divisão do trabalho e
tema desseslivros não escritos não está esgotado pelo plano definitivo manufatura" da quarta seção)que a tendênêiãda manufatura em
em quatro livros. Marx explica-se quanto a isso indicando que esses transformar o trabalho parcelar em "ofício reservado..por!oda a vida
dois outros volumeso teriam arrastadopara alémde suatarefa espe- a um homem corresponde ao desejo qüê'iinfiám-as sociedadesanteri-
cífica (a crítica da economiapolítica), na medida em que elesteriam +oles de tornar os ofícios hereditários, de cristaliza-los em castas, ou
introduzido novas determinações conceituais e novos graus de con- ainda de ossificá-los em corporações, no caso em que as condições
cretude. O estudo do Estado imporia portanto a elucidação da rela- históricas dadasproduziriam uma variabilidade do indivíduo contra-
ção entre a produção e a institucionalização do direito, a divisão do ditória com o sistema de castas. As castas e as corporações nascem da
trabalho, os aparelhos ideológicos. O estudo do mercado mundial teria mesmalei natural que rege a divisão das plantas e dos animais.em
por sua vez exigido um estudodas relaçõesentre classes,nações, espécies.esubespécies-coma diferença de que, num certo grau de
Estados. Estado e mercado mundial nem por isso desapareceram. desenvolvimento, a hereditQrjqçjadedas castas, ou ! exclua.ivismodas
Momentos e mediaçõesda reprodução, eles seacham constantemente corporações-é decretad!.bi .!oçbl.::J
pressupostos e, de alguma maneira, "já dados".is 3) A questão das classes reaparece na sétima seção, no capítulo
sobre a "Lei geral da acumulação capitalista": "No seio do sistema de
acumulação capitalista, todos os métodos de aumento da força pro'
dutiva social do trabalho se põem em ação à custado trabalhador
i4 Kart Marx, Contrib fIaMà /a crllfg#e de J'économfepoliffqKe, op. cit., p. 171.
is Sobre o plano c a lógica geral do Cáfila/, ver meu ensaio "Introduction
aux lectures du Cáfila/", em l,a Dfscorda#ce des femps, op- cit. ió Karl Marx, l.e Capital, livro 1, Paria,PUF, "Quadrigc", 1993, P. 382

IS2 153
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

individual; todos os meios que visam a desenvolvera produção trans. dependênciado capital, ela mesma decorrente das condições de
formam-se em meios de dominação-ç-de exploração do.produtor produção que a garantem e perpetuam."i8 Outro foi o caso durante
mutilam o trabalhador até fazer dele um homem parcial, degradam- La gênesehistóric4 o capitalista, onde a burguesia não
no à condição de acessório anexo da máquina,destroem pelo torm.n. podia.Prescindir da "intervenção constante do Estado". Alienação
to criadopor seutrabalhoo próprioconteúdo
deste,priill;;j;;;, ao e fetichismo enraizam-sena relação de produção. As condiçõesda
transfere-las a outrem, das potencialidades intelectuais do processo de exploração fazem do produtor um ser física e mentalmente mutila-
trabalho na medida em que a própria ciência é incorporada a esse do, a tal ponto que no curso orai/zárfodas coisasa submissãore-
processo como uma potencialidade autónoma; desfiguram as condi- produz a submissão, permitindo ao Estado manter-se aparentemen-
ções em que ele trabalha e o submetem durante o processo de traba- te afastado'aa ordem produtiva.
lho ao despotismo mais mesquinho e mais odioso, transformam todo Como de nada tornar-se tudo?
o seu tempo de vida em tempo de trabalho. [...]"i' Na medida em que Tal é o mistério insolúvel da emancipação a partir da submissão
pressupõe a exposição da relação antagânica de exploração, a apre- e da alienação. Ele encontra sua resposta no confronto político e na
sentação da teoria do valor trabalho e da mais-valia empreende uma luta de classes: somente a luta pode romper essecírculo vicioso.
abordagem teórica das classesa partir do livro 1. Mas restam ainda O livro l não desenvolve uma concepção sistemática e acabada
moitas mediações entre esseprodutor truncado e fragmentário e a lilasse das classes.A relação de exploração entre trabalho assalariado e ca-
plenamente determinada. pital não é outra coisa senão a primeira e mais abstrata de suasdeter-
4) Longe de conceder ao proletariado a imagem de um sujeito minações.Neste nível, a questão das classesintervém de um duplo
mítico, Marx oferecedo modo mais claro, a partir do livro 1,a Con- ponto de vista:
tradição de sua condição e o enigma de sua emancipação,-de que -- para introduzir a especificidade das classes modernas, baseada
dependeã~seusolhos o porvir da humanidade:"À.medida qye a na liberdade formal da força de trabalho, em relação às sociedades de
progyção' êãpitalista .progride,: desenvolve-se uma classe operária castas e de corporação;
levada; por sua educação, tradição e hábito, a considerar como leis -- para introduzir o pressuposto da relação de exploração: a luta
evidentes da natureza as exigênçias dessemodo de produção'A de classes,que determina o tempo de trabalho socialmente necessário
organização do processo de produção capitalista desenvolvido rom- à reprodução da força detrabalho.
pe qualquer resistência,.a geraçãopermanentede uma superpopu-
lação relativa mantéma lei da oferta e da procura-de trabalho e.
pot isso mesmo, o salário, em vi4$ conformes às necessidadesde
valorização do capital, a doação muda d4$.relaçõeseconómicas sela CIRCULAÇÃO E TRABALHO PRODUTIVO
a dominaçãodo capitalistasobreo trabalhador.A violênciaime-
diata, extra-económica, é certamenteêind4 empregada.mas excepcio- O livro ll trata das relaçõesde classena unidade da produção e da
nalmente. (}uafzdo as coisas.+eguefno-sea curso norma/, o operário circulação. O capital em circulação cumpre sob nossosolhos o prodí-
pode ser abandgi114g às 'leis patur!$ .dp.produção! ou seja, à sua gio continuamente recomeçado de suas metamorfoses. Ele salta de um

i7 Ibidem, p. 724. i8 Kart Marx, Le Cáfila/, livro 1, oi). cit., Õ. 829

IS4 155
A LUTA E A NECESSIDADE
MARX. O INTEMPESTIVO

trabalho excedente. O livro ll desenvolve o ciclo das metamorfoses do


disfarcepara outro. De dinheiro (D), ele setorna meios de produção
capital. Esse processo é uma sucessão de atos de compra e de venda.
(P), depois mercadoria (M), em seguida novamente dinheiro (D'), e
A relação de exploração apareceaqui entre o operário enquanto as-
assim por diante. Quando o trabalhador está separado dos meios de salariadoque vende sua força de trabalho e o capitalista enquanto
produção (condição mesma do processo de produção capitalistas, detentor de capital monetário. O que se acha em jogo nessarelação é
quando os meios de produção enfrentam o possuidor da força de tra.
apreendido sob o ângulo não mais da divisão do tempo de trabalho,
balho enquanto propriedade de outrem, "a re/aç;ãode c/asseente
capitalista e assalariado existe portanto":'P massob o ângulo da negociação..conflitual.da força de trabalho en-
quanto mercadoli$
-- "Trata-se de ilha compra e de ilha z,anda,de uma relação
Não raratõúpreendido como descrição puramente económica do
monetária, mas de uma compra e de uma venda que supõem no com.
processode circulação,esselivro ll fornece a Biagio De Giovanni a
pudor um capitalista e no vendedor um assalariado,e essarelação re- matéria de uma teoria política das classes. A "forma da circulação do
sulta do fato de que as condições requeridas pela atualização da força de
capital torna-se decisiva para a própria morfologia das classes", escreve
trabalho -- meios de existência e meios de produção -- estão separadas.
ele. "0 antagonismo corresponde ao espaço da circulação não na me-
enquanto propriedade de outrem, do possuidor da força de trabalho.»
dida em que ali se reflete debilmente a desigualdade da contradição na
-- "É por conseguinte evidente que a fórmula do ciclo do capital-
produção, mas na medida em que a contradição desloca-seao longo de
dinheiro não é a forma natural do ciclo do capital senãosobrea base
toda a forma do processo e reconstrói-se pacientemente em suas diver-
de uma produção capitalista já desenvolvida: ela supõe com efeito a
sasformas."20O processode circulação destrói a simplicidade dasfigu-
existência da classedos operários assalariadosem escalasocial."
ras produtivas do livro-tícomplica sua fenomenologia. Ele constrói "as
-- "0 capital industrial é o único modo de existência do capital
figuras sociais"- e-as relações-que elas guardam entre si.
onde sua função não consiste apenas em apropriação, mas também em
Com efeito, não é menoslegítimo procurar a morfologia dasclas-
criação de mais-valia, em outras palavras, de produto excedente.Daí
sesantes ao nível do livro ll que ao nível do livro 1, a que se apegaa
por que ele condiciona o caráter capitalista da produção: sua existência
maioria dos seusvulgarizadores.Própria da esfera da circulação, a
iimpJica a da contradição de classeentre capitalistas e operários assala-
relação de compra e venda da força de trabalho não é menos consti-
riados. [-.] A forma norma] sob a qua] adianta-seo sa]ário é o regula-
tutiva da relação de classe que a relação de exploração revelada no
mento em dinheiro; essaoperação deve renovar-se constantemente, a
livro 1. Para que a exploração se tornasse possível, foi necessárioque
intervalos curtos, porque o operário vive de um pagamento a outro sem
o trabalhador e os meios de produção se tivessemseparado e que essa
reservas. O capitalista deve assim enfrentar o operário permanentemen-
separação"não pudesseser superadasenão pela venda da força de
Fte como capitalista monetário, e seu capital como capital-dinheiro."
trabalho ao detentor dos meios de produção, de modo que o compra-
dor é dono da consecuçãoda força de trabalho, cujos limites de ma-
No livro l, ,a relação de classeapareceu como relação de exploração
neira alguma coincidem com os da massade trabalho necessáriopara
antagânica entre o operário como produtor e o capitalista como ca-
pitalista industrial, na forma de divisão entre.trabalho necessárioe reproduzir o seupróprio preço".zt Marx observa então: "Se a relação

z' Biagio De Giovanni, l,a reorla polfliaa della c&usi #e/ aPifale, Bati, 1976, p. 16
i9Karl Marx, l,e Caplfal,livro 11,Paria,Éditionssociales,1965,t. 1,pp. 33, 53, l
zi Karl Marx, l,e Capffal, livro 11,op. cit., t. 1, p. 33.
S7

IS7
156
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

capitalista manifesta-sedurante o processode produção, é unicamen- salarial e da produtividade/não-produtividadedo trabalho na circula-


!, ção, da distribuição da renda na reprodução global.
Pode-se incluir desde já no proletariado os assalariados da função
pública que participam na reprodução -- o trabalho improdutivo no
fórmula do ciclo do capital dinheiro: D-M.- P-. M'-D' não é a 66rmu. livro 11,do ponto de vista da circulação, tornando-se indiretamente
la natural do ciclo do capital senãosobre a basede uma produção produtivo no livro 111, do ponto de vista do movimento global?Pode-
capitalista já desenvolvida: ela supõe com efeito a existência da classe se com efeito deduzir da lógica do Cáfila/ que os trabalhadoresda
dos operários assalariadosem escalasocial." esfera da circulação (transporte, comércio, crédito, publicidade), quc
E, conseqüentemente, a luta de classes. trazem valor excedenteao seuempregador e são submetidos a conde-l
Cada livro do Capita/ traz assim sua determinação específica.zz ções de exploração comparáveis às que suportam os trabalhadores da \
No livro 1, a relação de classerecebeuma primeira determinação fun- t produção, caem sob a mesma determinação de classe. Se o livro lll l
damental: a da relação de exploração. No livro 11,ela recebe uma l
trata do processode produção global, ele não aborda ascondiçõesde
nova determinaçãoessencial,masnão definitiva: a do trabalho pro- reprodução41educação,saúde, moradia),.que exigiriam introduzir como
dutivo ou indiretamente produtivo, que alimentou tantas controvér- tal a mediação do.Estado:"Nas Teorias da mais-ua/!a,Marx evoca
sias e mal-entendidos. Mas por que procurar na esfera da circulação apenas'ãi amas de transmissão" de trabalhos imateriais para a
l
a última palavra de uma teoria dasclasses?Marx não aborda sistema- produção capitalista (mencionando as "fábricas de ensino" cujos do-
ticamente a questão senãono livro 111,no quadro do estudo da repro- centesseriam produtivoihão em relação aos alunos, mas à empresa
dução global. educativa), insistindo sobre a noção de trabalhador coletivo.za
P
Decididamente,não seescapaà arquitetura lógica do Cáfila/.
No livro 111,as classes constituem o objeto de um capítulo espe-
cífico quando as condiçõesteóricas de uma abordagem sistemática
A REPRODUÇÃOGLOBAL E O ENIGMA DO CAPÍTULO INACABADO são enfim reunidas. As determinações parciais das classes,ao nível da
extorsão da mais-valia no processo de produção e da venda da força
Uma nova mudança de registro. Tratando-se da produção e da reprodu- de trabalho no processode circulação, integram-sedoravanteno
ção global, as classesjá não são determinadas unicamente pela extorsão movimento global da concorrência,da perequaçãoda taxa de lucro,
da mais-valia ou pelascategoriasde trabalho produtivo e improdutivo, da especializaçãofuncional dos capitais, da distribuição da renda.
mas pela combinação da relação de exploração na produção, da relação

H "Todos juntos, como oficina, eles são a máquina de produção viva dessespro'
u Para Biagio De Giovanni, l.a feorfa po/Irlca-, OP cit., o livro ll contém o dutos, do mesmo modo que, se se considera o processo de produção em seu
essencial da teoria política das classes.Essa abordagem polêmica tem o mérito de conjunto, elestrocam seu trabalho por capital e reproduzemo dinheiro do capi-
ir de encontro a lugares-comuns segundo os quais a relação de classe reduzir-se- talismo como capital, isto é, como um valor que se assumecomo valor, um valor
la à relação de exploração na produção e de chamar a atenção sobre a importân- que cresce.' "Se se considera o trabalhador coletivo que forma a oficina, sua
cia não raro subestimadado livro 11.Abriga todavia o defeito de cristalizar a atividade combinada exprime-sc materialmente e diretamente num produto glo-
teoria das classesno nível da circulação, em lugar de perseguir logicamente o bal, isto é, uma massatotal de mercadorias" (Tbéoriess r la paus-ualue,op. çit.,
movimento de sua determinação na reprodução global. p. 481, e Un cbapftre i édfr d# "Capital', Paria, UGE, p. 226)-

158 159
MARX. O INTEMPESTIVO
A LUTA E A NECESSIDADE

Somente então as classespodem aparecer como outra coisa além de


dução dispersos, convertendo assim o trabalho em trabalho assalari-
uma soma de indivíduos que preenchemuma função social análoga:
"De tudo que acabamos de dizer [a propósito da igualízação do lucro
pela concorrência] resulta que cada capitalista individual, assim como o
] ado e os meios de produção em capital". Entretanto, "mesmo nesse
país" exemplar, "a divisão em classesnão aparecesob uma forma
pura": "Ali também as classesintermediárias e transitórias encobrem
conjunto doscapitalistasem cadaesferade produçãoparticular, parti- }

as demarcaçõesprecisas (muito menos, contudo, no campo que nas


cipa na e9cplotaçãode to(!a a classeoperária pelo conjunto do capital e
cidades)." Em outras palavras, a formação social real nunca se reduz
no grau dessaexploração, não simplesmentepor simpatia geral de clas-
ao esqueleto desnudo do modo de produção= A polarização atua sem
se, mas por interesseeconómico direto, porque a taxa média de /uc o entretanto reabsorver o espectro das posições;aflui;ilaisei interme-
depende do grau de e9cplotação do trabalho total pelo capital total [-.].
diárias, que complicam.a frente de classe.Marx constataque, longe
Isso demonstra com uma exatidão matemática por que os capitalistas.
de dissipar essenevoeiro po!.!ma espéçiçde pureza urbana das rela-
ainda que se comportem entre si como falsos irmãos na concorrência
ções eêpii:alistar,-a.-ilidaile ainda o reforça em relação .aq.!?mpg:-Es-
que se fazem, constituem não obstante uma verdadeira franco-maçona- l tamos.distantes.de.pma.concepção simplificadora das classes. Para
ria em relação ao conjunto da classeoperária."24Portanto, as relações
l elucidêt.nproblemaj € precisa dar as costas aos dados imediatos da
de classesnão podem reduzir-se ao confronto entre patrão e operário na
sociologia e retornar à teoria.
empresa. Social, a exploração pressupõe sempre o metabolismo da con-
'&A questão que se propõe logo de saída é a seguinte: Que cons-
corrência, a formação de uma taxa média de lucro, a determinação do l

titui uma classe?A resposta decorre automaticamente da resposta a


tempo de trabalho socialmente necessário.
estaoutra questão:Que faz dos assalariados,dos capitalistase dos
proprietários de terras membros das três grandes classesda socieda-
Inacabado, o famoso capítulo Lll abre-se sobre uma constatação: «Os
de?" Para dizer de outra maneira, a.renda determina a classe,e reci-
proprietários de mera força de trabalho, os proprietários de capital e
procamente: os proprietários de capital, de terras e de força"aê traba-
os proprietários fundiários têm como (ontemde receita respectivamen-
lho constituem as três grandes classes.- '"'"\
te o salário, o lucro e a renda fundiária; assim também, os assalaria-
A armadilha fecha-senuma perfeita tautologia.
dos, os capitalistas e os proprietários de terras constituem as três gran-
Mas que é uma classe?
des classesda sociedademodernabaseadano modo capitalista de
"À primeira z/isca,é a identidade daslendas e das fontes de ren-
produção." As três "grandes classes" (e não as únicas) parecem por-
tanto determinadas de uma vez por todas pela renda.
da." O salário, o lucro ç.q renda seriam portanto.Q.denominador
comum de um vasto grupo social que forma uma classe.
Na condição de país capitalista típico, a Inglaterra ilustra bem a
Mas "somefzte à p imeira z/lula"
tendência à polarização crescenteentre classesfundamentais anunci-
Marx não sesatisfaz com essaprimeira vista. A objeçãocorrige
ada no À4a/zfXeslo comuzzlsla.O modo capitalista de produção tende
logo a constatação:"Porém..." Porém, portanto, "desseponto de
realmente a "separar cada vez mais do trabalho os meios de produção
vista", do ponto de vista do critério classificatório da renda, desliza-
e a concentrar em constelaçõescada vez maiores essesmeios de pro-
ríamos no esmigalhamentode uma sociologia descritiva: "Os médicos
e os funcionários públicos, por exemplo, constituiriam também duas
CaPi/a/, Paria, Éditions sociales, livro 111,op. cit., t. 1, PP.211
classesdistintas, pois pertencem a dois grupos sociais distintos cujos
membros tiram sua renda da mesma fonte."

160
161
MARX. O l NTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

Não se acabaria mais. As classesse dissolveriam nos estatutos e movimento puramente económico; mas o movimento que visa a impor
nas categorias socioprofissionais: "Essa distinção aplicar-se-ia do uma legislaçãoque estabelecea jornada de oito horas é um movimento
mesmo modo à infinita variedade de interesses e de ofícios que a di- político"). Absorvido por essetrabalho de montagem,eleesqueceque
visão do trabalho social provoca no interior da classeoperária, da essasabordagens estão ligadas à concepção antropológica da alienação
classecapitalista e dos proprietários de terras, estesúltimos, por exem- no jovemMarx.s.que elas são necess'ariáMêõtémodificadas pela teoria
plo, estando divididos em proprietários de vinhedos,de áreasde la. da mais-valia, do lucro, da acumulação do capital.
votara, de florestas, de minas, de pesqueiros etc." Diante da página em branco do capítulo inacabado, seria mais co-
Aqui, observa laconicamente Engels, "interrompe-se o manuscri- erente imaginar Marx prestes a subverter mais uma vez a problemática.
to deMarx". O caminho do concreto ao concreto nunca é o mais curto. Vai dar não
Sobreum formidável suspenseteórico. raro num beco sem saída. A determinação das classesunicamente pela
renda conduz ao seu esboroamento infinito e ao seu desaparecimento
De Karl Rennera Rali Dahrendorf, as tentativas para retomar o fio do como conceitosoperacionais. De acordo com a recomendaçãodo Pre-
manuscrito interrompido e reconstituir o capítulo inacabado já perde- fácio de 1857, seria tempo de reapreender em sua unidade o conjunto
ram a conta. Para Dêlyçndorf, a teoria das classesem Marx não teria das determinações recuperadas sobre esselongo percurso do Clz/fila/: a
como ser uma "teori!..da.estratificação,SQcj4Lmasum instrumento de relação de exploração que dá conta da mais-valia, a relação salarial que
explicação das mudanças sociaisglobais". A questão não ;' bêr com o faz por sua vez do trabalhador um comprador e um vendedor de mer-
que se parece uma sociedadedada em um momento dado, mas como cadoria, o trabalho direta e indiretamente produtivo, a divisão social do
muda a estrutura social. Sualeiteira'é todavia hipotecada pela idéia se- trabalho, a natureza e o montante da renda. Essa hipótese parece mais
gundo a qual "a teoria das classesrepresentaó elo problemático entre conforme à concepção de Marx, que não levanta quadros socioprofis-
a análisesociológicae a especulação
filosófica na obra de Marx". sionais, não alinha estatísticas, não se interroga sobre os casos limites
Quando ele se propõe "ordenar sistematicamente uma série de citações do contramestre,do urso e do porião.
e articula-las num texto coerente", longe de seguir a lógica do capítulo Enquanto a sociologia positiva pretende "tratar os fatos sociais
inacabado, Dahrendorf sai assim do campo do Cbpffa/ para aventurar- como coisas", Marx.o!!rgtq. sempre como relações. Não define de
se numa teoria dos interesses e da ideologia, da luta e da consciência de uma vez por todas seuobjeto por critérios ou atributos. Antes segue
classes, que remete a um outro nível de análise. Ele colhe fragmentos na a lógica de suas múltiplas determinações. Não "define" #ma classe.
Ideo/afaz a/emã("os indivíduos não formam uma classesenão na me- Antes apreenderelaçõesde conflitos entre classes.Não fotografa um
dida em que secomprometem num combate comum contra uma outra fato social rotulado como classe.Antes visa à relação de classeem sua
classe') ou na M/séria da #/oso/7a("assim essamassajá é uma classe dinâmica conflitual. ilha classeisolada não é um objeto teórico, mas
por oposição ao capital, mas não ainda uma classepara si]-.]; a luta uin nao-senso.
entre duas classes uma luta política[.-]; todo movimento no qual a clas- O capítulo inacabado pode portanto ser lido como um passo su-
seoperária como tal se opõe à classedominante e procura destruir seu plementar na determinação do concreto. Determinadas ao nível do
poder por uma-pressãodq exterio! Í um movimentopolítico [...]; a processo de produção global, as classes poderiam ainda receber novas
tentativa por exemplo de arrancar uma limitação do tempo de trabalho determinações que implicam a análise da família, da educação e do
numa única urina e a capitalistasindividuais, atravéiãe greves,é um Estado, e, para além ainda, a luta política propriamente dita. Seria

162 163
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

preciso recortar então o caminho inacabado do Cáfila/ a partir do 1) As relações de produção articulam-se aí com o Estado. "0
caminho inverso, que iria da luta de classescomo luta política ao modo interessematerial da burguesiafrancesaestá precisamenteligado de
de produção. O livro abandonado sobre o Estado constituiria assim o maneira muito íntima à manutenção dessa máquina governamental
ponto de fuga de uma teoria das classesque não sepode achar, cuja vastae complicada"; esselaço é precisamenteaquelepelo qual se
morte, que suspendedefinitivamente a pena, não teria como ser o único diferenciam as oraçõesde classe,elaboram-se as representaçõespolí-
impedimento. ticas e tramam=lê.ãi aliãhça::Elê.'é também o lugar onde interferem
al relaçõêiaeklasse e o corpo burocrático do Estado, perpetuando a
estrutura hierárquica das sociedades pré-capitalístasi-Assim, "a buro-
cracia não é mais que a forma inferior e brutal de uma centralização
CLASSESSOCIAIS E REPRESENTAÇÃOPOLÍTICA
que ainda se acha afetada pelo seu contrário, o feudalismo". E não
desagradaao segundoBonapartever-se "obrigado a criar, ao lado
O conjunto das determinações -- não apenas económicas mas tam- das verdadeiras classes da sociedade, uma casta artificial, pela qual a
bém políticas -- reúne-separa além da "aparência superficial que manutenção do seu regime torna-se uma questão de garfo e faca".zó
dissimula a luta de classes".:sO confronto dc>spartidos políticos 2) A partir das classesfundamentais, determinadas pelo antago-
manifesta sua realidade ao mesmotempo que a dissimula. Ele a revela nismo das relaçõesde produção, essasarticulações cruzadas multipli-
sob uma forma mistificada. Sobreas diferentesformas de proprieda- cam as diferenciações.Das l.wfas de c/essesna Fra/zçaà Guerra cít/í/
de, sobre as condiçõesde existênciasocial ergue-secom efeito "toda na trança, Marx segueatentamente a dialética entre relaçõessociais
uma superestrutura de impressões, de ilusões, de modos de pensar e e representaçãopolítica: "0 democrata,visto que ele representaa
de concepçõesfilosóficas particulares [-.]. A classeinteira cria-os e pequena burguesia, e por conseguinte uma classe intermediária no seio
forma-os sobre a base dessascondições materiais e das relaçõesso- da qual se enfraquecem os interesses das duas classes opostas, imagi-
ciais correspondentes". É portanto preciso distinguir "ainda mais, nas na estar acima dos antagonismos de classe. Os democratas reconhe-
lutas históricas, a fraseologia e as pretensões dos partidos de sua cons- cem que têm diante de si uma classeprivilegiada, mas eles, com todo
tituição e seusverdadeiros interesses,entre o que eles imaginam ser e o resto da nação, constituem o povo."27 Se as classes médias sofrem
o que são na realidade".
a polarização das classesfundamentais, nem por isso deixam de re-
A teoria revolucionária tem algum parentesco com a psicanálise. presentar um papel próprio. Na Comuna de Paria, "pela primeira vez
A representaçãopolítica não é a mera manifestação de uma natureza na história, a burguesia pequena e média aderiu abertamente à revo-
social. A luta política das classes.nãq é.Q.reflexo superficiaLde uma lução operária e proclamou que ela era o único instrumento de sua
essência:Articulada como uma linguagem, ela opera por deslocamen- própria sa]vaçãoe a da Fiança [.-]. As principais medidas da Comu-
tos e condensações das. contradições sociais. Tem seusionhos. seus na foram tomadas em favor da classe média".28 A Sociedade de 10 de
pesadelos e seus lapsos. No campo específico do político, as relações dezembro é compreendida como a emanação do subproletariado, "essa
de classesadquirem um grau de complexidadeirredutível ao antago-
nismo bipolar que entretanto as determina. zóKai:l Maré l.e Dü-Huit Bmmaire-., op- cit., pp. 63, 133-134.
27lbid., p. 54.
zl Kart Marx, l.a G#ene cit/ile m France, Pauis,Éditions socialcs, 1968, p
25Karl Marx, l.e Dix-Hzl/f Brumafrede l,QuisBonaparfe,op. cit., p. 47. 220
2

164 16S
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

escuma de todas as classesda sociedade": "sob pretexto bam impiedosamente das hesitações, das fraquezas e das misérias de
uma sociedade de beneficência, organizara-se o suasprimeiras tentativas, parecemnão abater o adversário senãopara
siense em seções secretas [-.] ao ]ado de engrenagens permitir-lhe retirar novas forças da terra e erguer-semais uma vez
meios de existência duvidosos, e de origem igualmente formidável diante delas, recuam constantementede novo diante da
aventureiros e de resíduos corrompidos da burguesia, ali se imensidade infinita de suas próprias metas, até que esteja enfim cria-
vam vagabundos, ex-soldados, ex-presidiários, da a situação que torna impossível qualquer retorno."30
lés, gatunos, charlatães, Zazzaro#i, batedores de 4) Enfim, a relação entre a estrutura social e a luta política é
jogadores, rufiões, donos de bordéis, moços de fretes. mediada pelas relações de dependência e de dominação entre nações
jogadores de baralho, boateiros, amoladores em escala internacional. Assim, "os ingleses têm toda a matéria neces-
res, mendigos, enfim, toda essamassaannfusa. sáriabara a revolução social. O que lhes falta é o espírito generaliza-
te, que os franceses chamam de boemia.n+s dos e a paixão revolucionária". Há para isso razões que não têm nada
3) Se o proletariado é a classe Éotenéiãlmente emancipadora, essa l
a ver com o temperamentoou o clima. "A Inglaterra não deveser
virtualidade não serealiza automaticamente..O (:zPi&aZ.
põe em evi- tratada simplesmentecomo um país junto dos outros países.Ela deve
dência.ó$ obstáculos acl.desenvolvimentoda consciência de Cllàse sertratada como a metrópo]e do capital [...]. A burguesia inglesa não
inerentes à própria rcificação das relações sociais,A essesobstáculos t
tem somente explorado a miséria irlandesa para rebaixar, pela emi-
próprios à relação de produção acrescentam-seos efeitos específicos gração forçada dos pobres irlandeses, a classeoperária na Inglaterra;
das vitórias e dos fracassospolíticos: "Os operários denunciavam à além disso, ela dividiu o proletariado em dois campos hostis." É nesse
honra de ser uma classeconquistadora, abandonavam-seà sua sorte. sentido que "o povo que subjuga um outro .povo forja para si suas
}

provando que a derrota de junho de 1848 tinha-os tornado, por anos próplj3? cadeiaiü; "0 proletariado inglês estáEmburguesadcl.+o pon'
ainda, impróprios para a luta." A n4Q:linearidade da lutalp classes ;õ"ãue a mais burguesa de todas as nações qúã'fiiiãlhente chegar a
exprime em última instância sua.especificidade estrutural .$ob o reino (

possuir uma aristocracia fundiária burguesae um proletariado bur-


do capital:'zAs revoluções burguesas,.como as do século XVlll, preci- guês ao lado da burguesia."3'
pitam-se rapidamente de sucessoem sucesso,seusefeitos dramáticos A estrutura social de classenão determina portanto mecanicamente
sesuperam, os homens e as coisas parecem ofuscados pelos fortes bri- a representaçãoe o conflito políticos. Seum Estado ou um partido têm
lhos, o entusiasmo extático é o estado permanente da sociedade,mas um caráter de classe,sua autonomia política relativa abre uma ampla
elas são de curta duração. Rapidamenteatingem seu ponto culminan- gama de variações à expressão dessa "natureza". A especificidade irre-
te, e um longo mal-estarapodera-seda sociedadeantes que ela tenha dutível do político faz da caracterizaçãosocial do Estado,dos partidos,
aprendido a apropriar-se de uma maneira calma.ç equilibrada dos re- a 6odiori das teorias, um exercício eminentemente perigoso.
sultados de seu período tempestuojg:.As. revoluçõe! proletárias, ao A partir de alguns fragmentos da À4isérfa da /;/oso/}a e do Dezoí-
contrário, como as do séculoXIX,.criticam-se a si mesmasconstante- fo Brumárfo, essanão-correspondênciaentre estrutura social e repre-
men!e, interrompem irada jDstante!el4plróprjo curso, voltam àquilo
10Kart Marx, l,e Dix-bluff BTKmaire-.,op. cit., p. 19.
que já pare(IFteÍ.$i1lo.geajizadopara recomeçálctnovamenteÍ zom- 3i Kart Marx, Coram nicdffo d# ConseÍI général de I'Assocf ffo infer#a-
Fiona/edes rrat/ai/leurs, I' de janeiro de 1870. Carta a Engels, 8 de setembro de
zpKart Marx, l.e Dix-Huif Br malte-., op. cit., p. 76. IÕ)õ.

166 167
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

último Lukács reivindica como uma "antologia do ser social".s3 Em


sentaçãopolítica não raro foi tratada em termos de defasagementre q

certostextos de juventude, o proletariado aparececom efeito ainda


classe-para-sie classe-em-si:"Na mediai em qwe milhões de famílias
ontologicamente coagido a "auto-suprimir-se como proletariado". Seu
)

destino seria de alguma maneira determinado por seu ser. Trata-se


"daquilo que o proletariado é e daquilo que, de acordo com esseser,
l ele será obrigado a fazer historicamente"
#ão co#stfl#em alma classena medic&zem q e só existe entre os cam-
poneses parcelares um laço local e em que a similitude de seus interes. +
Essedestinofigura ainda em bom lugar na carta a Weydemeyer,
sesnão cria entre elesnenhuma comunidade, nenhuma ligação nado. P
de 5 de março de 1852, onde Marx resume sua própria contribuição:
"0 que fiz de novo foi demonstrar: 1) que a existência das classes está
nal, nenhumaorganizaçãopolítica. Esseo motivo por que elessão
incapazes de defender seus interesses de classe em seu próprio nome ligada unicamente a fasesparticulares, históricas do desenvolvimento
De um lado, os camponesesparcelaresconstituem uma classe«na da produção; 2) que a luta de classes colzd#z #ecessariamenle à dita-
medida em que.-". De outro, eles.nãoa constituem "na medida em dura do proletariado; 3) que essamesma ditadura do proletariado
que-.". Parecem portanto constituir uma classeoó7'diz,ame#le (socio- não constitui mais que a fra zsiçãopara a abolição de todas as classes
logicamente),masnão.s feliz/ame le(politicamcli;;J:--7 e para uma sociedade sem classes."
Objeto e sujeito, ser e essência acham-se unidos no devir da classe. As interpretaçõeshegelianasde Marx saciaram-sede bom grado
Na dilümlm das relações de classe, a subjetividade da consciência não \+ nessasfontes. "0 proletariado modems", escreve.Labriolâ?m seustex-
tos sobreo À'la/zfáesto
com Mista,".e crescee se desenvolvena história
pode.emancipar-searbitrariamente da estrutura, tanto quanto a objeti-
vidade do ser não pode destacar-sepassivamenteda consciência.Essa contemporânea .çomg-o sujeito concreto.como a .força positiva:cuja
}

açãoplnevitavelmente revolucionária, det/erá desembomr Pzecessaria-


problemática opõe-se a toda concepção mecânica da passagem necessá-
me fe o coma/zlsmo."Em Hisfórfa e comsciêcfa de classe,Lukács
ria do em-siao para-si,do inconsciente
ao consciente,
do socialpré-
l desenvolvomais sutilmente essadialética do em-si e do para-si, mediada
consciente ao político consciente, entre os quais o tempo faria o papel
dc mediador neutro. Consciência e inconsciência de classe enlaçam-se pela totalidade: "Do ponto de vista do proletariado, conhecimentode si
num abraço perverso e não cessamde enganar-semutuamente. )
mesmo e conhecimento da totalidade coincidem, ele é ao mesmo tempo
Pouco frequentes em Marx, as noções de classe-em-si e de classe. sujeito e objeto de seu próprio conhecimento." Resulta daí uma espécie
para-si pertencem à representação filosófica do proletariado caracte- de ultrabolchevismoteórico quanto à questãoda organizaçãoe do par-
rística das obms de juventude, ilustrada pela famosa carta a Ruge de 33André Tonel afirma que essaantologia "herda da filosofia da história sem com-
setembro de 1843, onde Marx evoca "a consciênciade si mesmo" que partilhar suas certezas, sem garantir suas afirmações, [que] ela se move no ele-
o proletariado "deverá adquirir, quer queira ou não". Formulações mento de uma teleologiaobjetiva acabadae dramaticamenteaberta' (cm Idéo-
análogas ocorrem na M/séria da /i/oso/Za:elas inscrevem-seentão na logie, s)rmboliqKe,onrologfe,Paras,Éditions du CNRS, 1987, p. 100)- Elc tem
problemática do autodesenvolvimentoda subjetividade histórica e razão em sublinhar que uma tal oncologia reatada com a filosofia da história
abandonada a partir da Sagrada Famí7ía,ainda que seja uma filosofia enfraque-
traem a influência vivaz da fenomenologia hegeliana como ciência da cida em suas"afirmações" e certezas. Na mesma coletânea, Costanzo Prove rei-
consciência e da tomada de consciência,e a nostalgia daquilo que o vindica-o explicitamente: "Como oncologia do scr social, a filosofia do materia-
lismo histórico é composta por uma ética, uma estética, uma filosofia d8 natureza
3zKart Mare, l,e Dix-fluir BTKmajfe-.,OP cit., P. 126. e uma filosofia da história.'

168 169
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

tido Erigido em cumprimento do "para-si", esteúltimo torna-se«a menos de surpreendente quanto ela mesma "corresponde à aparência
(der Sebe/n)dos fatos, e que na realidade a relação capitalista dissi-
mula sua estrutura interna (in/zero ZKsammelzbafzg)
na indiferença
total, a exteriorização e a alienação (Ausser/icb&eít e Elzlfremdulzg)
tão paradoxalmente na confusão do partido e da classe,que o autor de nas quais coloca o operário em vista das condições de realização de
Que áuzer? desejava precisamente evitar. No discurso dominante da ]l seu próprio trabalho". Uma vez que os "meios de produção" são para
Intemacional, essaconfusão tende a identificar o partido com o moü. ele "meios de exploração", o operário tende a considera-los com in-
mento histórico multiforme da classe.Em Lukács, ela tende a absorver diferença e até mesmo com hostilidade. Ele comporta-se para com o
a classe no partido: "Ora, o portador desseprocesso de consciência é o caráter social do trabalho (o trabalho de outrem) como se estivesse
proletariado. Sua consciência aparecendo como a consequência ima- diante de "uma potência estrangeira".H
nenteda dialética histórica,elepróprio aparececomo dialética.Em 2) "Mas não se fica nessaalienação(En!/}emdung) e nessasrelações
outras palavras, essaconsciência não é mais que a expressão da neces- de indiferença entre o operário portador do trabalho vivo e a utilização
sidade histórica." económica, estritamente ca]cu]ada, de suas condições de traba]ho]-.]."
Os Gmmdrissee O Cáfila/ apresentam-seao contrário como um "0 esbanjamento da vida e da saúde do operário", "o envilecimento de
trabalho de luto da ontologia, como uma desontologizaçãoradical. suas condições de existência", a mutilação física e psíquica tornam-se
depois do que não há mais lugar para qualquer avesso-do-mundoque um meio de elevaçãoda taxa de lucro.ssPor conseguinte,"o capital
seja,para nenhum duplo fundo, para nenhumdualismo do autêntico aparece cada vez mais como um poder social Guio agente é o capitalista.
e do inautêntico, da ciênciae da ontologia. Não há mais contraste Parecenão haver mais relação possível entre ele e aquilo que pode criar
fundador entre o ser e o ente, mais nada atrás do que se mantenha o trabalho de um indivíduo isolado. O capital aparececomo um poder
ainda outra coisa que não aparece. O aparecer da mercadoria, do tempo social alienado(a/s em#remdefepese//soba/t/fcbeMacbf), tornado autó-
de trabalho social, das classesé indissociavelmente o aparecimento e nomo(t/erselbstã#d(@e), uma coisa(eiw Sache)que seopõe à sociedade
o disfarce de seu ser: o ser resolve-se no ente, a essência de classe nas e que a afronta também como poder do capitalista resultante dessa
relaçõesde classe.Reduzida a um pobre encantamentofilosófico. a
obscura revelação do em-si em para-si anula-se em sua própria impo- H É o resgatedo caráter geral, indiferenciado e abstrato do próprio trabalho: "0
tência conceitual. valor repousa sobre o fato de que os homens remetem-semutuamente aos seus
diferentes traba]hos como a trabalhas iguais, universais [-.]. Isso constitui uma

A conclusão do livro l retoma a idéia de uma "missão histórica" do abstração" (À4anwscrftos


de 1861-]863, op. cit., p. 241).
's As pesquisasoperárias c os numerosos testemunhos de "estabelecidos"
proletariado e de suascondições de possibilidade práticas, residindo ilustram-no abundantemente.O Jounzal d'#sfne, de SimoneWeil, descrevede
no próprio impulso e na concentração da produção capitalista. Ora, maneira quaseclínica essatentação cotidiana "de renunciar a pensar", essa"si-
no Capita/ acha-setambém enunciadaa teoria contrária do anel in- tuação que faz com que o pensamentose encolha" e que "a revolta torna-se
fernal da reificação. impossível a não ser por clarões": "Uma opressão evidentemente inexorável e
invariável não engendra como reação imediata a revolta, mas a submissão. Em
1) No emprego dos meios de produção, a economia "aparece como
Alsthom, quaseque só me revo]tava aos domingos. [-.] Fora dessesmomentos
uma força inerenteao capital, como um métodopróprio ao modo de excepcionais que não se pode, creio, conduzir, evitar nem mesmo preverpa prós'
produção capitalista que o caracteriza". Essarepresentaçãotem tanto são da necessidadeé sempre amplamente poderosa para manter a ordem.'

170 171
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

coisa: a contradição é portanto cada vez mais gritante entre o poder tário financeiro "personifica a terra". Disso resulta também a "misti-
social do capital e o poder privado dos capitalistas industriais" ficação" que transforma as relaçõessociais em "propriedade das pró-
3) Com a exteriorização(VnãzísserZic#ung) do capital na forma prias coisas" (mercadoria) e "transforma em coisa a própria relação
do capital portador de lucro, a relaçãocapitalistaatinge suaforma de produção" (dinheiro). De onde a aparição de um "universo mágico
mais.exterior, maia fetichizada(e refcbf selmeàKsser/iscbste lzd e subvertido"
áelisc&erlegsle Forra),-a.-":forma alienada-da. relação -do capitalista». Relação social autónoma, o valor impõe-se aos indivíduos como
}qele se realiza-a -"forma fetiche maisl pura-da-capital"(sefme ruim uma lei natural. Seuspróprios elementos "esclerosam-seem formas
Fefiscb6orm): as "determinações" do capital são "apagadas" e seus autónomas". A divisão do lucro em lucro de empresae interesseaca-
"elementos reais" tornam-se'Sinvisíveis". O capital vivo apresenta-se ba por dar à forma da mais-valia uma existência autónoma, "esclero-
agora como puro objeto, o dinheiro é engrossado, "o lucro empurra- sa essaforma em relação à sua substância, sua essência".Uma parte
o, esteja ele acordado ou dormindo"!só No capital portador de lucro do lucro destaca-secom efeito completamenteda produção: "Se pri-
encontra-seassim acabada.=!Jdéiz.dçLietiche.çap.il4jista(KapíiaJ- mitivamente o capital fazia figura, à tona da circulação, de fetiche
áel/sc#X'a=õncê$çã(ique atribui ao produto acumulado do trabalho capita[ista [-.] e]e reapareceaqui sob forma de capital portador de
e, além disso, fixado como dinheiro, a força de produzir mais-valia [ucro, sua forma mais a]ienada. [-.]"
graçasa uma qualidade secretainata, de maneira puramente automá- A descoberta do tempo de trabalho abstrato conduz inelutavel-
tica, e seguindo uma progressãogeométrica. [.-] O produto do traba- menteà do fetichismo da mercadoria. De onde: o "mundo encantado,
lho passado, o próprio trabalho passado, é aqui engrossado por uma invertido, ao avesso.-", "a autonomização e a esclerosedos elemen-
parcela do trabalho excedente passado ou futuro. [-.] No capita] tos sociais.-", "a personificação das coisas e a reificação (Vendi/zglf-
produtivo de lucro, o caráter auto-reprodutor do capital, o valor que cbznzg e Versacblfcbzzng).- em suma, uma verdadeira "religião da vida
assegurasua própria valoração, a produção de mais-valia, apresen- cotidiana"
tam-se em estado puro como qualidades ocultas". Nessas condições, através de que prodígio o proletariado poderá
4) "Os produtos materializados e as condiçõesde atividade da livrar-se dos sortilégios destemundo encantado? Semsubestimar suas
força de trabalho vivo em facedessaforça de trabalho [-.], por causa aporias, é ainda dç Marx que Í.preciso partir para resolver e superar
dessaoposição, são personificados no Capital." Daí resulta «uma certa a contradição-jA.mistificação do universo mercantil apresenta as re-
forma social imediatamentemuito mística": forma dos meios de tra- lações sociais doma coisas. Ele as concebe como relações de conflito/
balho como forma alienada, "tornada autónoma em face dele" (o que Eni lugar de fotografa-las em repouso, ele penetra o seu movimento
não é propriamente a mesma coisa que a perda de uma essênciaan- íntimo. Em lugar de procurar um critério de classificaçãodos indiví-
tropológica). Na pessoado capitalista, em "os produtos adquirem um duos, ele retira as linhas de polarização das grandesmassas,cujos
poder autónomo diante de seuprodutor" . Do mesmomodo, o proprie- contornos e fronteiras permanecemflutuantes. Em lugar de sair em
busca de um princípio de classificação, ele percorre um caminho infi-
" "É portanto no capital portador de lucro que essefetiche autómato(diesel nito de determinaçõesque visam à totalidade sematingi-la. Em lugar
aulomallsc#e Feflscb) é claramente retirado: valor que se valora a si mesmo;
dinheiro dando origem a dinheiro; sob essaforma ele já não carregamarcas de
de separar o sujeito do objeto, ele parte de seusenlaçamentose de
suas subversõesamorosas. As classes não existem como realidades
sua origem. A relação social está terminada sob a forma da relação de um objeto
(o dinheiro) consigo mesmo.' separáveis, mas somente na dialética de sua luta. Elas não desapare-

172 173
MARX. O INTEMPESTIVO

cem quando as formas mais vivas ou as mais conscientesda luta se


atenuam. Heterogêneas desigual, a consciência-éinerente ao conflito
que começa CQU-ê venda da força de trabalho e a rel;lstência à expjo-
ração. E que não .çess4mais.

5. Lutar não é jogar


IMarx em face das teorias dos
jogos e dajustiça)

174
A ofensiva liberal, a desintegraçãodos regimes burocráticos, o obscu-
recimento da luta de classesfavorecem curiosas alianças entre a luta
de classes, as categorias mercantis e as teorias do contrato. A despeito
de importantes diferenças, todos os representantes do "marxismo
analítico", com exceçãode Eric O. Wright, reivindicam para si o "in-
dividualismo metodológico".Í Para Elster, "todos os fenómenosso-
ciais são em princípio explicáveis de maneiras qKe imP/imm wnica-
menle os iHdíz/ü#os com suas qualidades, objetivos, crenças e ações"
O conflito socialnasceda "exploraçãoenquantointeração".O "co-
?
letivismo metodológico" de Marx significaria ao contrário a dissolu-
l
ção do indivíduo, de seus desejos, de seus interesses, de suas p'eferên-
cias, na abstração indiferenciada da classe ou da história.
l
A partir da Idem/agiaalemã, Marx condena entretanto categori-
t camente as hipóstases da história, da sociedade ou da classe. Elster
reconhece aliás a coexistência nos Gr#/zdrisse de uma abordagem
coletivista (dissolução dos comportamentos individuais no grande
sujeito social) e de uma abordagem individualista atenta aos "micro-
motivos" e aos "microcomportamentos". "A suprema astúcia", es-
creve ele, «é que o próprio lucro privado é já um lucro determinado

l Ver especialmente:Gerry Cohen, KatJ Mam's Tbeory o/' Hlsloly: a De6elzce,


Oxford, 1978; Jon Elster, Ma&ilzg Sensoo/'Maré, 1985 (tradução francesa: Kar!
Mare, estai d'imferpréfationanalyfique, Paras,PUF, 1989); John Roemer,A
Caberá/ Tbeoly o/' Exploifarion aKd Class, Harvard University Press, 1983; e
4nalyfical Marrism, Cambridge University Press,1986. Ver também Philippe Van
Parijs, Qu'es!-ce qu'#ne socléfé j#sre?, Paris, Seuil, 1992, e ActweJÀdarx,n' 7, Le
Marxfsme a alyffque anglo-saiçom,Paria, PUF, 1990.

]77
MARX. O ANTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

e que não se pode alcançar senão no quadro das condições Colocadas produtos em geral). Elster procura "nas motivações dos agentes econó-
pela sociedade e com os meios que ela proporciona; e que, portanto. micos individuais" uma explicação da poupança e do investimento que
ele está ligado à reprodução dessascondições e meios. É o lucro dos não seteria como deduzir de uma "análiseconceitualdo dinheiro". É
indivíduos privados; mas seuconteúdo bem como a forma e os meios passarao largo daquilo que realmente importa. O capitalismo é produ-
de realização são dados por condições sociais independentes de to. ção generalizada de mercadoria. O capital cristaliza-se inicialmente na
dos.": Com e(eito. Mas trata-se realmente de uma "astúcia"? esferada circulação, no ponto de contato entre duas sociedades.O
Socialmente determinados, nem por isso os indivíduos desaparecem modo de produção capitalista impõe-se,propriamente falando, quando
na classeda qual seriam os representantesclonados. A relação de explo- o capital apodera-seda produção e quando o capital produtivo subor-
ração(o estabelecimentode uma taxa média de lucro) determina o lucro dina a si o capital comercial e o capital financeiro. A mercadoria resume
coletivo do capital em face do trabalho. Os capitalistas de carne e osso então a relação social global. O resto decorre daí. Valor que sevaloriza,
não estão menos opostos uns aos outros pela dura lei da concorrência. o capital não é menos concreto que os age les ecofzómicos i?zdíz/idz/als
Do mesmo modo, seeles têm interesseem resistir coletivamente à extor. e suas moflz,anões.Nem autónomos nem soberanos, essessujeitos do
são de valor excedente, os proletários estão incessantemente submetidos cálculo racional pressupõem uma idéia da razão, um uso da linguagem,
à competição e às rivalidades devastadorassobre o mercado de traba- uma definição dos interessesque não têm nada de evidente. Que é com
lho. Marx mantém unidas as duas pontas. Dá igualmente as costas tan- efeito o interesseindividual bem compreendido, sua busca racional, a
to à abstração tirânica do coletivo quanto à individualidade egoísta. vontade soberana lançada em seu encalço? As noções de interesse, razão
A montoeira de citaçõesa que seentregaElster destrói o movimento e vontade acham-se pesadamente carregadas de preconceitos filosóficos.
íntimo do pensamento e mascara o que se acha decisivamente em jogo no Enquanto as "motivações" dos agentes assinalam uma psicologia
plano do(lzpfla/: "EleIMarx] acreditava ser possível deduzir as catego- económica clássica,Marx considera o capital como relação social. Desse
rias económicas umas das outras de uma maneira que lembra o que ponto de vista, poupança e investimento revelam primeiramente flutua-
Hegel havia feito com a ontologia. Contudo, diferentementedas catego- çõesintencionaisda taxa de exploração,da renovaçãodo capital fixo,
rias hegelianas, as categorias económicas sucedem-setambém uma à dos ritmos de rotação. Por pouco que se recuse o jogo de espelho enga-
outra na cronologia por sua ordem de aparição histórica. Por conseguin- nador entre coletivismo e individualismo metodológicos,o "marxismo
te, ele se viu obrigado a perguntar-se como a sequência lógica está ligada analítico" aparece em seu próprio enunciado como o acasalamento da
à sucessãohistórica, sem entretanto estar em condição de trazer uma carpa e do coelho. Tentamos mostra-lo a propósito da teoria da história.
resposta coerente. Se tentamos uma síntese dos Gmndrisse e dos primei- Faremos a mesma coisa a propósito da teoria da justiça e da exploração.
ros capítulos do(lzpifal, a seqüêncialógica ou diabéticacomporta as
seguintes etapas: produto-mercadoria-valor de troca-dinheiro-capital-
trabalho-. Encontramos grosso modo a mesma seqüência."
Grosso modo! Trata-se da questão crucial do começo e do plano do UMA CONCEPÇÃONÃO JURÍDICADA JUSTIÇA
(lzpila/, a que Marx se dedicou durante todo um decênio, de remaneja-
mento em remanejamento, antes de optar pela mercadoria(e não pelos O individualismo metodológico despesade bom grado uma teoria da
justiça que define um princípio de alocação eqüitativo suscetível de re-
: Jon Elster, Kar/ Àfarx.-, op. cit. ger a troca recíproca entre indivíduos em sociedade.As classessociais

178 179
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

-- Invocar princípios de justiça implicaria inelutavelmenteum


formalismo inconcebível sema perenidadedo Estado e de instituições
entretanto votadas à ruína. A sociedade comunista se situaria real-
mente "para além da justiça". O "direito igual" permanece assim um
direito burguêspelo próprio fato de inscrever-seno horizonte da jus-
tiça. Ao contrário, o princípio das necessidades,que se opõe às equi-
valências abstratas da ordem mercantil, já não é mais um princípio de
justiça distributiva.
Getas opõe a essecorpo de argumentos uma refutação simétrica

Ü
essa hipótese:
baseada igualmente na leitura de Marx:
-- Este último não consideraria a troca como troca de equivalen-
tes senãodo ponto de vista formal da circulação. Do ponto de vista
da produção, a relação salarial não poderia ser considerada como troca
-- Em boa lógica do contrato (incluindo o de compra e venda da
força de trabalho), a força de trabalho "vendida" pertenceria ao ca- de equivalentes; daí a noção de "trabalho excedente" fornecido "gra-
pitalista, daí em diante autorizado legalmentea usá-la sem outro limi- tuitamente"
te que o fixado pela lei. A capacidadeque estamercadoria prodigiosa -- Esseo motivo por que Marx falaria com tanta freqüênciade
possui de engendrar valor excedente seria simplesmente uma "pechin- "roubo" a propósito da relação de exploração. Se a extorsão de valor
cha" para o comprador e não uma injustiça para com o "vendedor" excedenteé legal e legítima para o capitalista, nem por isso deixa de
-- A relação salarial não poderia portanto ser considerada "jus- ser um roubo do ponto de vista do explorado, representandono caso
ta" ou "injusta". A noção de justiça seria com efeito histórica, isto é. a universalidadedo direito: do que ele diz do roubo capitalista, "po-
relativa a um modo de produção específico.Assim como a escravidão demosconcluir pela presençade critérios de justiça independentese
não seria "injusta" do ponto de vista de uma sociedade escravocrata. transcendentes".+
a exploração não seria "injusta" de acordo com as próprias «ornc -- A idéia segundoa qual o direito não poderia existir acima da
contratuais da produção mercantil generalizada. '''" estrutura económica poderia então ser compreendida não num senti-
-- Teoricamente contestável, a noção de justiça distributiva alimen- do relativista, masnum sentidorealista, ilustrado pelo interesseapai-
taria a ilusão prática segundoa qual a exploração poderia ser corrigida xonado de Marx pela distribuição do tempo livre e, mais geralmente,
ou eliminada, reformando-se a distribuição (ia renda. Ora, seria tão da riqueza social.
absurdo exigir uma retribuição equitativa sobre a basedo sistemasala. -- Conviria portanto distinguir a justiça como instituição (de
rial quanto reclamar a liberdade sobre a base da escravidão. acordo com o direito positivo) da justiça em sentido amplo: "Marx
tinha uma concepçãonão jurídica da justiça." A necessidade e o es-
' Em particular nascolunas da New l,eP Ret/iem.Ver Norman Getas, "The Con- forço constituem para ele critérios de distribuição mais pertinentes
que a propriedade individual e mais realistas que o recurso dilatório

+Norman Getas,"The Controversyabout Marx and Justice', loc. cit., p. 58

180 181
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

ao curinga de uma "abundância" tão incerta quanto difícil de definir de uma universalidade moral. Geras está consciente do que pode ter
-- O capitalismo seria portanto condenável não somente porque de paradoxal uma interpretaçãocomo essa:"Alguns acharãoprova'
provoca a resistência do oprimido, mas também porque é injusto. fielmente chocante que eu atribua a Marx o que não deixa de ser uma
noção do direito natural; é bem compreensível, se levarmos em conta
Depois de ter apresentado a tese e a antítese, Norman Geral propõe suaconhecidahostilidadepara com o direito natural." Encontram-se
sua própria síntese sob o título À4arx co#lra Maré: portanto, inclusive no Cáfila/, fórmulas que caracterizam a terra como
a) A relação salarial representa uma troca de equivalentes? Sim e uma "condiçãoinalienávelda existência".Aproximadasdasmúlti-
não. Sim, enquanto troca de mercadorias.Não, enquanto relação de plas denúncias da propriedade privada como usurpação e a explora'
produção. Teríamos aqui "dois pontos de vista" legítimos sobre um ção como roubo, tais fórmulas seriam suscetíveisde confortar a hipó-
mesmo fenómeno. Qual é neste caso o ponto de vista "apropriado"? tesede uma teoria latente do direito natural.
Para maior confusão dos exegetas,Marx não teria cessadode afhmar C) A justiça, enfim, é solúvel na abundância? A própria noção de
ao mesmotempo a equivalênciana troca e a troca desigual. Que a ex- abundância pode revestir significações diferentes, segundoa conside-
ploração seja intolerável para o oprimido não significa que ela sejain- remos como relativa a um mínimo absoluto, a uma concepçãoflexível
justa aos seusolhos, pois um tal juízo pressupõeuma concepçãoda e ilimitada das necessidades ou a um sistema de necessidades razoável
justiça inscrita nesseolhar. Marx repete entretanto que a exploração é (e auto-regulado). Getas fica com esta última acepção. Desdeentão a
um roubo! Como o roubo poderia não ser injusto?Temos de admitir própria noção de justiça transforma-sesem nem por isso apagar-se
que a exploração possa ao mesmo tempo ser injusta e não sê-lo. Ela não com a instituição. Ela passa do domínio da igualdade formal (forma-
o é do ponto de vista do direito burguês que a legitima. Ela o é do ponto lismo jurídico inerenteà própria noção do direito) à assunçãoda
de vista do direito do oprimido que se afirma marcando sua oposição. desigualdadereal que rege o princípio das necessidades. Em vez de
Entre essesdois direitos, entreum direito instituído e um direito nascen- tirar todas as consequências dessa lógica, em ação especialmente na
te, a força se sobressai.Nada garanteque esseveredictoseja justo. A "Crítica ao Programa de Gotha", Marx, vítima de uma espécie "de
escolha entre dois princípios de justiça reduz-se então ao frio cálculo de impaciência para com a linguagem das normas e dos valores", teria
interesse, sem critério último suscetívelde separa-los? deixado instalar-se a confusão ligada à "abolição" da liberdade ou da
B) Norman Geras propõe uma solução: "Marx pensava realmen- justiça anunciada pelo MlaniÁesto comunfsla.
te que o capitalismo é injusto, mas ele não pensavapensa-lo."s Curi-
osa escapatória.Essa opacidadede Marx a si mesmo resultaria de Norman Geras procura assim conciliar o inconciliável. Na medida em
uma concepçãomuito estreita da justiça, confundindo justiça e nor- que a própria noção de justiça seria estranha à esfera da produção, dis-
masjurídicas por um lado e,por outro, justiça edistribuição dos bens cutir sobre o caráter injusto da exploração não teria com efeito nenhum
de consumo. Marx não poderia contudo evitar a intrusão, quaseape- sentido. Nada obrigaria a tratar justiça e roubo como categorias logica-
sar de si mesmo, de uma concepçãomais ampla da justiça de acordo mente ligadas: o capitalista pode perfeitamente roubar o operário sem
com uma universalidade não imediata mas "tendencial". Os títulos de nem por isso derrogar sua própria idéia de justiça. A síntesede Geral
propriedade privada poderiam então ser considerados injustos em nome repousa em última instância sobre o direito à incoerência: se Marx não
pensava naquilo que acreditava pensar, já não se pode fazer nada! En-
s Norman Geral, "The Controversy-.", loc. cit., p. 70. trincheirado, Geras acha possível mostrar que "Marx condena realmen-

182 183
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

te o capitalismo como injusto do ponto de vista das normas trans-his- da lógica do CapftaJ, acaba-se por buscar refúgio no confortável argu-
tóricas, ainda que isso seja incoerente em relação às suas próprias dele. mento da incoerência ou na psicaná]ise da obra: "E]eIMarx] encontra-
gações categóricas".ó A teoria de Man condenaria assim a sociedade va-seportanto confuso. Seuconceito explícito de justiça contradizia e
capitalista sobre a base de critérios que não têm nada de relativo. Em- era contradito por um conceito de justiça mais vasto mantido implícito
bora ela pareça desenvolver uma concepção relativista da justiça, seria em seu pensamento." Para dissipar essaconfusão, bastaria admitir o
conteúdo ético do marxismo, concebê-lo de cabo a rabo como um pro-
atravessada de um lado a outro por uma diferente noção de justiça(no
sentido amplo) irredutível à instituição jurídica. Enquanto a antinomia testo, pura e simplesmentecomo a recusaem aceitar o inaceitável.
fomlal entre uma concepção relativista e uma concepção trans-histórica Muito barulho por quase nada?
da justiça não pode chegarsenãoa um impasse,haveria na realidade Eram necessáriostanto esforço e tanto rodeio para descobrir em
movimento e mediação, desenvolvimento progressivo da justiça. O ca- Marx uma dupla aceitação da idéia de justiça(uma dupla noção de jus-
pitalismo e sua representaçãoespecíficada justiça seriam condenáveis tiça em sentido amplo e em sentido estrito, ao mesmo tempo üans-his-
como o foram em seu tempo o sistema escravista ou feudal, em nome de tórica e relativa ao modo de produção específico),como há uma dupla
um sistema superior. Todo o problema consiste em determinar o que aceitação das noções de classes sociais ou de trabalho produtivo? No
define essasuperioridade e quem decide quanto a isso. A teoria da jus- sentido estrito ou específico, nada surpreende que a justiça formal, base-
tiça busca aqui a companhia da teoria da história segundo Gerry Cohen. ada na desigualdade e na coação reais, revele-setão limitada e ilusória
Para ele, a sucessão dos modos de produção não é uma seqüência arbi- quanto a liberdade contratual do assalariado obrigado, para sobreviver,
trária de sistemassociais incomensuráveis.Ela implica uma medida a vender sua força de trabalho. Não é mais surpreendenteconstatar a
comum normativa que faz do socialismo não uma simplespreferência. unidade contraditória da justiça e da injustiça na relação de exploração:
mas uma "tendência objetiva" ou uma "necessidade" a unidade entre a justiça formal da compra da força de trabalho e a in-
Se nenhuma teoria da justiça permite decidir a tal respeito, por que justiça real de sua exploração como mercadoria. Essejogo duplo estáde
o capital seria portanto tão frequentementeacusadode roubo? LA des- acordo com a duplicidade generalizada do reino da mercadoria. Ele pro-
crição da exploração como troca desigual diz de saída que se trata de longa e reproduz o desdobramento entre valor de uso e valor de troca,
um roubo", constata Geral. Por que Marx insistiu tanto sobre esse entre trabalho concreto e trabalho abstrato, entre produção e circulação.
roubo? "Ele não teria necessidadede usar essapalavra, mas o fez." Se A lógica interna do(lzpifa/ dissipa a incoerênciatextual aparente.
a noção de justiça é julgada duvidosa, e até burguesa,por que não a Do mesmo modo que o recurso paradoxal (provocador, segundo
noção de exploração que Ihe estáligada? Ao "comprar" a força de tra- Geral) à universalidade do direito natural. Desde que se compreenda,
balho no mercado, o capital não viola nenhum princípio de eqüidade. como ele o faz ao falar de universalidade"tendencial", que não se
Ao consumi-la como mercadoria, ele despoja em contrapartida o traba- trata de uma universalidade abstrata original, mas de um processode
lhador não somente do seutempo, mas ainda de sua humanidade. universalização efetivo. Contra uma justiça de classe,parcelar e par'
cial, afirma-se assim o devir de uma justiça concreta, capaz de superar
Malgrado as sutilezas de interpretação, a controvérsia parece achar-se o formalismo distributivo e de enfrentar as desigualdadese os casos
num impasse.À força deprivilegiar a análise lexicológica em detrimento particulares.Pode-sejulgar tão ilusória essapassagemao limite anun-
ciada pela "Crítica ao Programa de Gotha" quanto o recurso à abun-
6Norman Giras, "Bringing Marx to Justiça', loc. cit., p. 37. dância para evocar o horizonte do comunismo. Eles não deixam de

184 185
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

estar no âmago da problemática de Marx e opõem-se à idéia de --- acordo com o individualismo metodológico) opõe-seà teoria do valor
só haveria justiça distributiva. ' '' " quç excedente.A relação de exploração reduz-se com efeito a uma reparti-
ção de vantagens relativas. O "marxismo da escolha racional" é assim
A vivacidade do debate indica entretanto seu alcance bastante atual. levado a considerar as opressões mercantis como já dadas e a tratar as
Diante do desmoronamentoda planificação burocrática, a apologia da motivações económicas como assinalando estritamente opções racio-
"socialismo de mercado" recorre às contribuições da teoria dos jogos c nais individuais. Na realidade, as "capacidades individuais que moti-
a um principio de justiça que corrige os excessosda desregulamentação vam a escolha racional devem ser deduzidas dos processos macroeconó-
liberal. Depois de ter procurado em vão numa cientificidade proclama. micos que devem precisamente ser explicados".8
da a prova da superioridade histórica do marxismo, tratar-se-ia daqui O individualismo metodológico sustenta com efeito a idéia para-
por diante de reabilitar modestamente sua dimensão ética e humanista. doxal de que o fato de pertencer a uma classeseria objeto de uma
Essejogo de gangorra, entre um discurso friamente economicista e uma escolha individual a partir de dotações determinadas. Desenvolvendo
fervorosa profissão de fé moral, perpetua a dissociação duvidosa entre essa concepção das classes "escolhidas", Adam Przeworsky opõe a
fatos e valores, ciência e ética, teoria e prática. qualquer determinismo sociológico o conceito de classescontingen-
Ellen Meiskins Wood percebe bem tudo que se acha em jogo no que tes. Meiskins Wood replica colocando uma questão de bom senso:
ela chama de "marxismo da escolha racional"(ruliom/ c&ofce mar- pode-se escolher a classe, como se escolhem o partido ou o sindicato?
xísm)) segundo o qual as sociedadesseriam constituídas de indivíduos A relação de troca pressupõe sempre uma relação de produção obri-
dotados de recursos vários, que eles buscariam utilizar o mais racional- gatória que ela revela e mascara ao mesmo tempo Se se renuncia a
mente possível.' Depois da derrocadado coletivismo burocrático, essa essesrudimentos,torna-se no mínimo abusivo falar de "marxismo",
argumentaçãopermitiria construir uma teoria normativa que alia socia- ainda que analítico. A pretensão da "escolha racional" em conciliar a
lismo de mercado, justiça distributiva e ética individualista. Trata-se em lógica da estrutura e o retorno do sujeito (interindividual) desaguana
suma de um tentativa de aggiomame zlo à base de teoria da justiça ra- utopia de microssujeitos abstratamente soberanos, reduzidos a encar-
wlsiana e de agir comunicacional, visando a revigorar uma trilha con- nar uma estrutura ventríloqua. No que diz respeito à "escolha", não
sensualpara um socialismo de rosto humano. Tal empreendimento há. nesseestranho conúbio entre o individualismo liberal e um socia-
constitui uma franca revisão.A teoria distributiva da exploração (de lismo utópico passavelmentearcaico, nada mais para escolher.
O modelo joga sozinho com as motivações.
7 Alar Carling situa nessacorrente do "Racional Choiçe Marxism' autores coma
Jon Elster, John Roemer, Âdam Przeworsky, assimcomo Robert Brenner e ferry
Cohen, cuja posição metodológica é sensivelmentediferente. Norman Getas ocu-
paria tuna posição original e guardariasuasdistânciasem relaçãoao núcleo rí-
gido de marxismo da escolha racional, ou seja, a associaçãoda teoria dos jogos JOGO FINITO. JOGO INFINITO
e do individualismo metodológico, ou ainda 'a feorfa da #lslÓrla seg #do Co#en
mais a teoria d p/oração segKHdoRoemn'. Para esteúltimo, 'as questões Da noção de exploração e de um minucioso inventário de suasocorrên-
chave do materialismo histórico requerem uma referência específica à luta de
cias, Jon Elster conclui: "Todas essas passagens reunidas mencionam
asses,e a compreemão dessaslutas é elucidada pela teoria dos jogos [.j. A
análise dc classe necessita de microfundações ao nível do indivíduo [« ]'(A]an
Carlin8, "Racional Choice Marxism', NLR, novembro-dezembro dc 1986). 8 Ellen Meiskins Wood, "Rational Choice Marxism. ',loc. cit., P.49

186 187
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

cerca de quinze grupos que aparecem como classesnos diversos modos Elster propõe por conseguinte uma definição geral dasclassesem
de produção: burocratas e teocratasno modo asiático de produção: termos de dotações e de comportamentos: "Entre essasdotações figu-
escravos, plebeus e patrícios no sistema da escravidão; senhor, servo ram os bens tangíveis, os dons intangíveis e traços culturais mais es-
mestre de ofícios e aprendiz no regime feudal; capitalistas industriais. táveis. Entre os comportamentos, é preciso mencionar o fato de tra-
financistas,proprietários de terra, camponeses,pequenaburguesiae balhar ou de não trabalhar, de emprestar ou tomar emprestados
assalariados sob o capitalismo. Trata-se portanto de construir uma de. capitais, de pâr em locação ou arrendar a terra, de dar ou receber
finição compatívelcom essaenumeraçãoe com as exigênciasteóricas ordensna gestãode uma pessoamoral. Essasenumerações têm a
ligadas à noção de classe. Em particular, é preciso definir as classesde ambição de serem exaustivas: uma classe é um grupo de pessoas que,
modo que elas possamserpelo menosatires coletivos em potência. Da em razão do que possuem,são obrigadas a se entregarem às mesmas
mesma maneira, seus interessesde atores coletivos devem, de uma for- atividades se quiserem fazer o melhor uso de suas dotações. Se acre-
ma ou de outra, decorrer de sua situação económica. São exigências dito que essadefinição é perfeitamente satisfatória do ponto de vista
gerais, mas permitem ao menos eliminar algumas proposições. Os gru- extensivo e teórico, e/a deixa m porco a dose/ar zzoP/alia da meto-
pos de rendas não são classes,não mais que os reagrupamentos que se dologia. Admitir funções objetiuas uariáueis é uma fraqueza, assim
definem por critérios épicos, religiosos ou lingüísticos."P Ele considera como admíflr dotaçõesleãolangüefs. Além disso, claro, a noção as-
a relação de propriedade(ou de não-propriedade) dos meios de produ- sim construída pode-serevelar no fim das contas menos útil do que
ção, assim como a distribuição das classessegundo unicamente a feia. esperava Marx para a explicação dos conflitos sociais."ío
ção de exploração critérios muito grosseiros: "Se queremos que a noção Essa definição das classes obedece à exigência racional do melhor
de classe tenha um sentido em relação à luta social e à ação coletiva, não uso possível das dotações. Elster reconhece que é discutível reduzir a
devemos defini-las em termos de exploração, já que ninguém sabe exa- luta de classesa um jogo cujas cartas seriam distribuídas no começo
tamente por onde deve passar a linha demarcatória entre exploradores da partida de acordo com "dotações intangíveis". Teria sido prudente
e explorados." Inversamente, "a definição da classe em termos de domi- observara analogia: trata-se de um jogo finito ou infinito? Um jogo
nação e de subordinação dá um grande lugar aos comportamentos, finito tem um começoe um término precisos.Ele é jogado de acordo
enquanto se conserva insuficientemente estrutural" com regras contratuais em limites de tempo e de espaçocircunscritos.
Ele acaba por um movimento decisivo coroado por uma vitória ou
9 Jon Elster, Kar/ Maré, e l refprélatfon alzaly11qKe,
op. cit., p. 435. Elster um título. O logo infinito, ao contrário, não tem começonem fim.
estima que não é "mais possívelhoje, moral ou intelectualmente, ser marxista no Não conhecelimites de espaçonem de número. Cada uma de suas
sentido tradicional". A sentençaé muito abrupta para que não contenhauma partidas "abre-separa um novo horizonte de tempo".ii Suasregras
armadilha. Seentendermos por marxista 'no sentido tradicional" o tipo dc pos-
podem variar durante o jogo. Ele não acaba com a vitória ou a der-
tura política e teórica veiculada pelos partidos do "marxismo ortodoxo", social-
democratas ou stalinianos, convivemossem dificuldade que já não é possível ser rota, mas repica sobre o evento, eterno nascimento e perpétuo reco-
moral ou intelectualmente marxista dessamaneira. Contestamos porém que essa meço, que inaugura um novo campo de possíveis.A diferençaé de
impossibilidade date somente de #ofe ou de ontem. O que era há muito tempo tamanho.
impossível tornou-se simplesmente indizível. A renúncia atRaI de Elster ao mar-
xismo tradicional sugereum marxismo de reserva, não tradicional, um marxismo
"analítico". Trata-se na realidade de uma liquidação, oblíqua mas não menos 'o Jon Elster, Kart Maré-., op cit., p. 446.
sistemática,da teoria de Marx. n Ver JamesP. Carne,Jm9ç/infs, /mx in/imãs,Paria, Scuil, 1988

188 189
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

O jogo finito podeservirde modeloaosdiscursossobreo 6m da messiânicaestabelecerianovamente o sentido provisório do caminho


história. Votado a uma conclusão,ele permite racionalizar o passado percorrido.
em função do presente,de "rever acima o caminho seguido até a üt& "Como guardar todos os nossosjogos finitos num jogo infinito?"
ria". Ele celebra assim o triunfo do passado sobre o porvir. A previsão Como resistir ao mesmo tempo à indiferença para com o ganho der-
estratégica reduz-se a uma explicação por antecipação que invalida risório da partida e à ilusão não menosderrisória de sua vitória? Como
qualquer busca subsequente.O jogo infinito foge ao contrário ao vere- lutar não para confirmar o sentido da história, mas para modificar os seus
dicto do resultadoe preservaum porvir aberto.Seujogador "consente possíveis estendendo sem cessar os limites do jogo? A resposta acha-se
no possível" e continua a jogar na "esperançade ser surpreendido". A provavelmentena política, "arte do possível",não no sentidoque Ihe
cada surpresa o passado revela um novo começo: "Na medida em que dava prosaicamente Bismarck, mas enquanto estratégia de despertarsus-
o porvir é sempre surpresa,o passadoé sempre mudança." Já não se cetível de interromper o encadeamentocatastrófico do tempo mecânico.
trata de arrastar-se à repetição e ao domínio de uma figura conhecida. Como o jogo infinito, a luta de classessó conhecevitórias(e com-
mas de estar disponível à invenção que volta a jogar no porvir um pas- promissos)provisórias. Mas a comparação tem os seuslimites. A teoria
sado inacabado. Inclinado para essehorizonte que foge, o jogador do dos jogos tem por princípio que "ninguém pode lagar se é forçado a
infinito não consome tempo, ele o engendra. Cada momento é "começo jogar" e que "quem deve jogar não pode jogar". Elster se dá conta do
de um evento", posto em movimento para um porvir, "ele mesmo car- problema quando se desculpa por ter admitido "funções objetivas vari-
regado de porvir". Enquanto o jogador do finito contenta-se em recapi- áveis e dotações intangíveis". Individualmente, pode-sesempreprocu-
tular um saber segundoo qual as mesmascausasproduziriam com cer- rar mudar de jogo, modificar a ação de dar as cartas, passandode uma
teza os mesmos efeitos, o jogador do infinito entrega-se à narrativa que classeà outra. Nas sociedadesmodernas, a mobilidade social permite
nos "convida a repensar o que pensávamos saber".i2 essastransferências e essaspromoções. Em certos limites, o indivíduo
A luta de classesteria mais a ver com o jogo infinito: nada de pode assim ter a ilusão de escolhersua classe,o descartee o seu lugar
começo, limites ou fim da partida. Nada de árbitro para apitar o iní- em volta da mesade jogo. Os êxitos exemplaresentretêm o mito dessa
cio da peleja, vigiar o cumprimento das regras e coroar o vencedor. A liberdade. Coletivamente, seuspapéis não são menos solidamente distri-
última palavra nunca é pronunciada. O jogo, como o espetáculo,deve buídos e perpetuados pela reprodução social.
continuar. As memórias abastecem-secom a experiência de todos os A luta não é um jogo. Mas um conflito.
lances exitosos ou não exitosos das partidas precedentes. Até o esgo- O oprimido aí se encontra condenado a resistir sob pena de ser
tamento, nas brumas do horizonte, onde uma improvável irrupção pura e simplesmenteesmagado.A obrigação vital de lutar proíbe
qualquer modelo em forma de jogo. Sem começo nem fim, essecon-
': James P. Carne,Jmx ##is-., op cit. Publicado em 1944, o livro fundador de flito é um corpo-a-corpo impiedoso, cujas regras variam com a força.
von Neumann e Morgenstern(TbeoO'o/' Gamesafia Eco#omlc Bebam/tour)
pu-
nha em evidência a relação analógica entre as situações económicas de concor-
rência e de negociação, de um lado, e os jogos que combinam acaso e habilidade
AQUÉM E ALÉM DA JUSTIÇA
dos protagonistas, de outro. A maioria dos casos estudados tratava de jogos de
soma nula. A admiração pela teoria dos jogos propagou-se desdeentão em todos
Roemer e Elster mostram-se perfeitamente razoáveis ao estabelecer
os ramos da análise económica, com um esforço para encarar as situações dinâ-
micas assim como os efeitos de memória e de repetição entre partes sucessivas. uma teoria geral da exploração, subordinando a teoria das classesà

190 191
MARX. O INTEMPESTIVO
A LUTA E A NECESSIDADE

teoria da justiça. Na medida em que ambos reivindicam Marx, vêem. velha sociedadeburguesa, que se desmorona." Segundoa mesmaló-
se todavia inclinados a situar explicitamente seu empreendimentoem gica, o livro 111do Cáfila/ rejeita vigorosamente como absurda a noção
relação ao núcleo de sua teoria, isto é, a exploração. Ora, eles o fazem de equidade natural: "As transações entre os agentes da produção são
obliquamente, por uma individualização da exploração, de acordo com eqüitativas desde que resultem naturalmente das relaçõesde produ-
a teoria da justiça.i3 Para encontrar as premissas desta, Elster volta-se ção. As formas jurídicas em que essastransações económicasapare'
para as numerosas denúncias da exploração como roubo qualificado: cem como ates deliberados das partes, como expressõesde sua von-
"Sustentaremque, apesar de numerosas proposições de Marx em sen- tade comum e como contratos que têm a força legal quanto às
tido contrário, a teoria da exploração do Cáfila/ bem como a teoria contratações individuais, não podem como tais determinar o próprio
do comunismo exposta na Crítica ao Programa de Gotha incorporam conteúdo. Elas não fazem outra coisa senão exprimi-lo. Esse conteú-
princípios de justiça."'' Reconhecemos aí uma das posições assinala-
do é eqüitativo desdeque correspondaadequadamenteao modo de
das por Norman Getas. Não basta entretanto constatar que "o termo
produção. E é injusto desdeque contrastem com ele."
exploração tem fortes conotaçõesaxiológicas com nuancesde injus- Não se poderia ser mais explícito. Não há em Marx definição
tiça e de iniquidade moral" para concluir que as noções de justiça ou geral, a-histórica, da justiça. O conceito de justiça é imanente à rela-
de injustiça social implicam Üso Ánclouma teoria distributiva da jus- ção social. Cada modo de produção tem o seu.Não há portanto ne-
tiça. Toda a "Crítica ao Programade Gotha" opõe-secom efeito à nhum sentido em declarar a exploração "injusta" semoutra precisão:
tentaçãode definir positivamenteum "justo salário" ou uma "jorna- do ponto de vista do capital, ela supostamenterecompensao risco, a
da normal" de trabalho. Na medida em que a exploração é uma re- iniciativa ou a responsabilidade do empreendedor.Ela parece equita-
lação de classee não uma injustiça individual, sua negação não reside
tiva tão longamente quanto participe da famosa "correspondência"
nem numa justa distribuição nem na abolição pura e simples do tra- entre a esferajurídica e o modo de produção. Quando contestada,
balho excedente,mas no controle democrático do produto excedente não é em nome da justiça que se ergue contra a injustiça, do direito
sociale de sua destinação.
puro contra o não-direito absoluto. Isso seria muito simples. Na rea-
Elster cita aliás numerosostextos de Marx manifestamente estra-
lidade, duas representaçõesdo direito enfrentam-seem nome de argu-
nhos a qualquer teoria de justiça. Na /geologia a/emã, o comunismo
mentos jurídicos formalmente antagónicos: "Há antinomia, direito
não é definido como um estadode justiça a atingir: "Para nós, o co- contra direito." Sabemoso que vem depois. Entre dois direitos iguais,
munismo não é um estado de coisasque convenhaestabelecer,um a força decide. Tanto isso é verdade que, se o direito não se reduz à
ideal a que a realidade deverá conformar-se. Chamamos comunismo
força, esta nunca Ihe é totalmente estranha. No mínimo, ele a utiliza-
ao movimento real que aniquila o estadoatual de coisas." O trabalho
ria para o estabelecimentoinicial de sua legitimidade.
do negativo não se reduz a desenvolverum princípio de alocação Certos críticos de Marx vêem ali uma perigosa lacuna. Em nome
eqüitativo: "A classeoperária não tem que realizar ideal, mas apenas do longínquo definhamento do direito, a ausênciade teoria positiva
liberar os elementosda sociedadenova que traz em seusflancosa
da justiça deixaria um vazio propício ao arbitrário burocrático. Nem
i3 Ver John Rawls, Tbéorfe de la j#stfce, Paras,Seui1, 1987; 11zdlplduel /usrlce por isso achamos que se deva interpretar mal a posição de Marx
sacia/e, trabalho coletivo, Paras,Seuil, 1988; Philippe Van Parijs, QK'esf-ce qu'KKe tendo como basealgumas páginas esparsassobre "o roubo qualifi-
socféfé /#sfe?, Paras, Seuil, 1991.
cado". As fórmulas de sa/arfa, preço e /wcro não apresentam ambi-
i4 Jon Elster, Kar/ Àfarx.., op cit., p. 299.
guidade: "Clamar em favor de uma retribuição igual ou mesmo

192
193
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

equitativa baseadano sistemados salários é o mesmo que reivindi- na justiça."'s Direito e justiça devem de qualquer modo ser fundados a
car a liberdade baseadano sistema escravocrata. O que os senhores partir de um elo auto-referencial.Tomar partido é portanto, indissoci-
consideramjusto ou eqüitativo estáfora da questão.A questãoé avelmente,fundar um direito dando-lhe a força e legitimar a força ele-
esta: que é necessárioe inevitável no /Pzleriorde m delerm/dado vada à dignidade do direito. Assim, Marx consideraria que "a igualdade
sistemade produção?" Não setrata portanto aqui de uma teoria da é sempreessencialmenteuma noção política" de origem burguesa.
justiça, mas.de uma outra idéia da justiça, que supõe a derrubada Engels observa no Anui-Dübrilzg que a reivindicação de igualdade
da ordem existente. Depois de ele próprio ter ressaltado essaslinhas tem sempreum duplo sentido. Ela representa,por um lado, uma res-
inequívocas, Elster as afasta com um comentário lapidar: "Nesses posta revolucionária instintiva à desigualdade social e, por outro, uma
trechos À4arx não afirma que a exploração capitalista é justa, mas resposta à demanda burguesa de igualdade: "Nos dois casos", diz ele,
unicamente que parece sê-lo." É decididamente difícil para ele re- "o conteúdo real da aspiração proletária à igualdade é a exigência da
nunciar à sua idéia geral de justiça. abolição das classes." Ao ignorar a coerência dessainiciativa, Elster
Portanto, Marx não considera a exploração capitalista justa ou não hesita em atribuir a Marx (e a Engels) uma teoria geral da justiça:
injusta. Apenas constataque não se teria como reputa-la injusta do "Creio que a teoria marxiana da exploração e especialmenteda assi-
ponto de vista do modo de produção capitalista, de sua lógca e de seus milação freqüentedo lucro ao roubo só tem sentidose Ihe emprestar-
valores ideológicos. A decisão de justiça implica uma tomada de parti- mos uma teoria da justiça distributiva." Esseempréstimo é excessiva-
do. Ora, Elster buscao compromisso.Negando a justiça trans-histórica mente generoso! Um retorno à problemática da transição esboçada na
das transaçõescapitalistas, Marx teria somente negado "seu caráter "Crítica ao Programa de Gotha" dará a prova disso. Philippe Van
trans-histórico, não a justiça: tal é [.1.]a única interpretação não forçada Parijs admite que os dois princípios enunciados ("a cada qual segun-
dos trechos citados. Essaspassagensnão oferecem nenhum argumento do o seu trabalho" e "a cada qual segundo as suas necessidades")
em apoio da natureza relativa dos direitos e da justiça". Essa interpre- tornam difícil a comparaçãoentre Rawls e Marx. O primeiro princí-
tação é precisamente das mais forçadas. A crítica do formalismo jurídi- pio se situaria "aquém" da justiça distributiva, o segundo"além"
co e de uma igualdade baseadanuma medida igual para todos é uma Aquém owalém: elegantemaneira de dizer que Marx nunca se coloca
constante da problemática marxiana. Allen Wood busca essesocorro no terreno da justiça distributiva.
contra as teses do "marxismo analítico": "Marx rejeita a idéia de igual-
dade porque considera que na prática ele serve de pretexto à opressão Três questõesimbricadasilustram esseponto decisivo.
de classe. [-.] Um sistema de direitos iguais poderia desembocar numa 1) 0 proa/ema da "d/z,fsão eqüllaffz,a" é abordado de frente na
distribuição bastante desigual da riqueza. [.-] Seria preciso distinguir a "Crítica ao Programa de Gotha". "De fato", escreve Marx, "na base
atitude de Marx para com a igualdadeenquantodireito e sua atitu. do modo atual de produção", a divisão em vigor não é a única equi-
de pam com a igualdade enquanto objetivo. [.-] A atitude para com o tativa? A própria idéia ressoacomo "uma expressãooca" que abala
ideal dos direitos iguais é muito crítica. Uma das principais razõespor uma maquinaria ideológica em que cada engrenagemofereceum novo
que Marx ataca a noção de igualdade é que ela está estreitamente liga- enigma: qual é o produto social? A quem pertenceele?Como reparti-
da, na cabeçadas pessoas,às noçõesde direito e de justiça. [-.] E]e
pensacom efeito que o capital explora e oprime os trabalhadores,mas is Allen Wood, "Marx and Equality", em John Roemer,Anal)rtfca/Marxism,
recusa-sea examinar a exploraçãoe a opressãobaseadono direito ou Cambridge University Press, 1986.

194 195
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

lo? Marx nunca cai na ilusão da divisão igualitária entre produtores. que o princípio e a prática não estejam mais em conflito; enquanto na
A reprodução social não é evidentementeredutível ao consumo ind. troca de mercadorias a troca dos equivalentes não exista senãocomo
vidual. Em toda sociedadecomplexa, um produto excedente é neles. i.nédia e não para cada caso em particular. A despeito desse progresso,
safio. A chave do enigma reside nas arbitragens políticas que permi- essedireito igual conserva-se cativo de uma limitação burguesa.O
tem estabelecer um fundo de consumo e um fundo de acumulação, em direito dos produtores é proporcional ao trabalho que elesfornecem.
função de prioridades e de necessidades sempre discutíveis. O tema da A igualdade consiste em que o trabalho funcione como medida co-
divisão eqüitativa corre ao contrário o risco de lisonjear demagogica- mum." Entretanto, os indivíduos reaise o trabalho concretosão de-
mente um igualitarismo primário: "Se tomamos inicialmente a expres- siguais.O direito igual caminha portanto ao lado da abstraçãoine-
são 'produto do trabalho' no sentidode objeto criado pelo trabalho. rente à produção mercantil generalizada e à abstração do trabalho em
o produto do trabalhoda comunidadeé a totalidadedo produto so- particular. Considerandoapenaso trabalhador anónimo ou o homem
cial. Quanto a isso devemosdescontar: primeiramente, um fundo sem qualidades, despojado de seus dons e de seus gostos individuais,
destinado à reposição dos meios de produção depreciados; em segun- ele permanece um "direito desigual para um trabalho desigual". É
do lugar, uma oração suplementarpara aumentar a produção; tercei- assim, sublinha Marx, "um direito baseado na desigualdade como
ro, um fundo de reserva ou de seguro contra os acidentes, as pertur- qualquer direito". O formalismo jurídico supõe com efeito igual o
bações devidas a fenómenos naturais." Essesdescontos, observa Marx. que não o é. A redução do homem à sua força de trabalho abstrata,
le modo algum podem ser calculadosna baseda eqilidade. ou seja, a uma carcaça do tempo, permite-lhe fazer aquela suposição.
Efetuados tais descontos, resta a parte do produto total destinado Essaigualdade formal pode constituir um progresso (mas não é essa
ao consumo. "Mas, antesde procederà repartição individual, é preciso a questão, pois, do mesmo modo, "o direito não pode nunca estar
ainda redividir: primeiro, as despesasgeraisda administração, que são acima do estado económico da sociedade e do grau de civilização que
independentes da produção [...]; segundo, o que está destinado a satis- Ihe corresponde"); nem por isso ela permanece menos indissociável
fazer as necessidades da comunidade (escola, instalações sanitárias etc.) da desigualdadereal. Um direito concreto, levando em consideração
[-.]; terceiro, o fundo necessário ao sustento daqueles que são incapazes as diferenças efetivas, deveria portanto ser "não igual, mas desigual"
de trabalhar etc., em suma, o que diz respeitoàquilo que se costuma 3) Enfim, a qzlesfãodos bófzz4sde fraga/bo, já abordada na Misé-
chamar hoje de assistênciapública oficial." A divisão individual não ria da filosofia e na Contribuição à crítica da economia política, cons-
mtervém portanto senãono interior e nos limites dessadivisão social: titui a matéria de um novo desenvolvimento na "Crítica ao Programa
"0 produto integral do trabalho já setransformou secretamenteem um de Gotha". Se é verdade que ela se enriquece ao longo das polêmicas,
produto parcial, emborao que sejatirado ao produtor enquantoindi- a argumentaçãonão chegaa variar muito quanto ao fundo. Elster mal
víduo ele volte a encontrar direta ou indiretamente enquanto membro percebeo alcance dessacontrovérsia decisiva quanto à teoria da jus-
da sociedade." A problemática da repartição é portanto simétrica à da tiça que ele desejaa todo custo creditar a Marx. Três textos esclare-
exploração. A reprodução global supera a distribuição individual. As cem perfeitamente o debate.
grandes decisões de alocação de recursos revelam antes escolha política. -- Na Miséria (&z#loso/b, Marx polemiza contra a pretensão de
2) .A questão do "d/reffo (gua/" é tratada num trecho não raro Proudhon a aplicar uma fórmula "igualitária" de repartição "ao trans-
citado e comentado da "Crítica ao Programade Gotha": "0 direito formar todos os homens em Irada/dadores fmedlafos que trocam quan-
igual é portanto aqui, em princípio, sempreo direito burguês,ainda tidades de trabalho iguais". Essa idéia, diz ele, inspira-se numa antiga

196 197
MARX. O l NTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

dos produtos está organicamenteligado ao seu modo de produção.


Assim, a troca individual inscreve-se de saída numa relação de produção

$
não terá mais que consumir o produto do seu próprio trabalho ou gozar
caracterizadapela exploração: "Nada de troca individual semo antago-
nismo dasclasses."A justiça distributiva não teria como escapara esse
antagonismoprimeiro. A ilusão da troca individual assinalatipicamente
depois de esbanjamentoo direito à preguiça praticado por Pâulo: uma representaçãoideológica selada pelo fetichismo da mercadoria:
"Cada qual quererá ser Paulo e haverá concorrência para conquistar o "M. Bray faz da ilusão do honesto burguês o ideal que ele gostaria de
lugar de Paulo, a concorrência de preguiça." Essahipótese absurda não realizar. Depurandoa troca individual, desembaraçando-a
de tudo o
está sem relação com a realidade da má gestão e da incúria burocráticas. que ali se encontra de elementos antagonistas, ele acredita achar uma
Decretar a abolição pura e simples da lei do valor em lugar de assegurar relação igualitária que teria gostado de introduzir na sociedade.M.
as condições reais de sua deterioração leva direto à irracionalidade ge- Bray não vê que essarelação igualitária, esseideal corretivo que ele teria
neralizada: "Muito bem! Que nos deu a troca de quantidades iguais de gostadode aplicar ao mundo não é em si mesmosenãoo reflexo do
trabalho? Superprodução, depreciação, excessode trabalho seguido de mundo atual, e que é por conseguinte totalmente impossível reconstituir
desemprego, enfim, as relaçõeseconómicas tal como as vemos consti- a sociedadenuma base que não passa de uma sombra embelezada." Se
tuídas na sociedadeatual, menos a concorrência de trabalho... Portanto. admitimos que o sistema dos bónus de trabalho é no fim das contas uma
sesupomos todos os membros da sociedade trabalhadores imediatos. a variante ingênua da justiça distributiva, Marx ofereceali uma resposta
troca das quantidadesiguais de horas de trabalho não é possívelsenão categórica quanto à teoria da justiça: deve-secoloca-la na conta do ideal
sob a condição de que se tenha concordado antecipadamente quanto a corretivo e da ilusão ideológica segundo a qual a sombra embelezada do
um número de horas necessáriopara empregarna produção material. vale de lágrimas faria as vezes do paraíso recuperado.
Mas uma tal convençãonega a troca individual."ió -- Dez anos mais tarde, a Conlrib fção à cr ia da economiapo-
AÍ se acha o essencial. Produção e distribuição são práticas sociais. l#ica toma como alvo as proposiçõesde John Gray.t' Em troca da
A troca direta (não mediada socialmente) de quantidades de trabalho mercadoria, o produtor ficaria com um recibo declarando a quantidade
entre os trabalhadores imediatos é uma má robinsonada. A troca supõe de trabalho contida na mercadoria.Assim, ele teria em seupoder cédu-
uma medida comum. Se não é o mercado que a determina, pode ser uma las bancárias de uma semana, de uma jornada ou de uma hora de tra-
convenção.Mas nestecasoa troca individual não é mais o impulso da balho, que serviriam como bónus para adquirir mercadorias guardadas
repartição, e a justiça distributiva não pode operar senãosubordinada nos celeiros gerais do banco. Essa solução procede de um raciocínio
à convenção geral. "0 que hoje é o resultado do capital e da concorrên- simplificador. Constatando que o tempo é a medida imanentedos valo-
cia dos operários entre si será amanhã, seeliminarmos a relação do tra- res, Gray sepergunta por que acrescentar-lhe uma outra medida, mone-
balho com o capital, o fato de uma convençãobaseadana relação da tária, exterior. O que resulta em perguntar-sepor que o valor de troca
soma das forças produtivas à soma das necessidadesexistentes.Mas se exprime em preço e em pretender abolir essametamorfose lógica,
uma tal convenção é a condenação da troca individual, e eis que ainda cuja mediaçãoé asseguradapela circulação e a concorrência.Em lugar
chegamos ao nosso primeiro resultado." Com efeito, o modo de troca de resolver essa questão complexa, Gray "imagina pura e simplesmente

lóKarl Marx, À4isêre


de la pbl/osopbfe,op. cit., P. 49. i7 John Gray, Tbe Social System. A Trearise on fbe Principie o/Excbange, 1831

198 199
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

que as mercadorias poderiam relacionar-sediretamente umas com as lho social equivalente: "A mesma quantidade de trabalho que elc fome-
outras como produtos do trabalho social". É pretender voltar a uma ceu à sociedadesob uma forma, ele a recebe dela em paga sob outra
economia de troca e desembaraçar-se facilmente do mistério e do cará- forma." A objeçãolevantadapor Marx já não sedirige ao caráter ilu-
ter místico das mercadorias:elas "são diretamenteos produtos de tra- sório da medida, já que a socialização da produção torna-a doravante
balhos privados, independentese isolados que, por sua alienação no concebível, mas sobre o próprio princípio de eqüidade que ela implica.
Essatroca formalmenteigual participa com efeito dos "estigmas" do
antigo, de que o novo tem a maior dificuldade em livrar-se. "Temos
manifestamente aqui o mesmo princípio que aquele que regula a troca
duais" A moeda participa dessa passagem necessária pela alienação das mercadorias desdeque haja troca de valores iguais. O fundo e a
universal, sem a qual os trabalhos privados permaneceriam incomensu- forma diferem porque, mudando-se as condições, ninguém pode forne-
ráveis e indiferentes uns para com os outros. O erro de Gray consiste cer nada mais que o seu trabalho; e, aliás, nada pode entrar na propri-
assim em colocar o tempo de trabalho contido nas mercadorias como edadedo indivíduo senãoos ob)etos de consumo individual. Mas, quan-
"imediatamente social", ou seja,como "tempo de trabalho coletivo ou to à divisão dessesobjetos entre produtores tomados individualmente,
como tempo de trabalho de indivíduos diretamenteassociados".Ele o princípio diretor é o mesmoque para a troca de mercadoriasequiva-
acaricia a ilusão de poder organizar uma distribuição não mercantil lentes:uma mesmaquantidadede trabalho sob uma forma é trocada
baseada numa produção mercantil: "Os produtos devem ser fabricados contra uma mesmaquantidade de trabalho sob outra forma." A crítica
como mercadorias, mas não devem ser trocados como tais. Gray confia do sistema dos bónus de trabalho muda portanto aqui de terreno. No
a um banco nacional a realização dessepiedoso desejo." Ora, «o dogma contexto de uma transição ao comunismo, ela aprofunda-se no sentido
em virtude do qual a mercadoriaé imediatamentemoeda,ou o trabalho de uma crítica mais fundamental do "direito igual"
particular do indivíduo privado que ela contém é imediatamentetraba- Toda a polêmica sobre os bónus de trabalho pode ser assim resu-
lho social, não setorna verdade por que um banco acredita nisso e a isso mida: "Se o valor é desdobrado em valor e preço, o mesmotempo de
ajusta as suas operações".í8 trabalho apresenta-sea uma só vez como igual e desigual a si mesmo,
-- Na "Crítica ao Programade Gotha", enfim, o problema dos o que é, baseadonos bónus de trabalho, impossível."o
bónus de trabalho é abordado sob um outro ângulo, não mais como um A forma monetária é a própria forma dessedesdobramento.
justo arranjo no quadro da produçãomercantil, masna sociedadeco-
munista "tal como ela acaba de sair da sociedade capitalista" e carre-
gando ainda todos "os estigmasda antiga sociedade". Marx examina a
idéia de que o produtor receba individualmente(uma vez efetuadasas ADEUS. VALOR. TRABALHO ABSTRATO
deduções gerais necessáriasaos fundos coletivos de reserva, de acumu-
lação, de administraçãoetc.) "o equivalenteexato do que ele deu à O postulado individualista do marxismo analítico reduz a exploração a
sociedade". Ele poderia assim trocar um bónus especificado como tem- uma relaçãointerindividual e assimila a luta de classesà teoria dos jo-
po de trabalho pelos objetos que representam uma quantidade de traba- gos.O dilema do prisioneiro ilustra, desseponto de vista, a contradição

i9 Stavros Tombazos, l,es Categofies d femPs--, op- cit.) P 221


n Kart Marx, Comfrfb#lio#à /a crltfque de I'éco omfepo/lligue, op. cit., p. 339.

200 201
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

entre interesse coletivo e interesse individual. Certas lendas pretende- por que os membros de uma classe cooperariam quando, bem com-
riam que Marx tivesse ingenuamente ignorado esse antagonismo em preendido, o interesse individual deles incentiva-os a agir sozinhos.
nome da consciência de classe.Mas ele, ao contrário, descrevecom ' Muitos parâmetros(história, tradição, cultura) do conflito real
precisão o seu mecanismo: "Enquanto tudo vai bem, a concorrência escapamà modelagem do jogo. Toda greve real mostra assim que o
engendra, como o mostrou a igualização da taxa geral de lucro, a fra- interessedo cavaleirosolitário em bancaso furador de greve (ele
ternidade prática da classecapitalista: ela divide entresi o butim comum beneficia-se do ganho coletivo em caso de vitória ou da simpatia pa-
proporcionalmente à cota de cada qual. Mas, quando já não setrata de tronal em caso de fracasso) entra em contradição com as represálias
dividir o lucro e sim a perda,cadaqual esforça-sepor reduzir suacota mais ou menos abertas que ele sofrerá da parte dos seuscamaradas
a um mínimo e de coloca-la na conta do vizinho. A perda é inevitável bem além da duração da luta. Do mesmo modo, as simulaçõesinfor-
para a classecapitalista. Quanto à parte que cada capitalista deve su- máticas mais sofisticadas têm enorme dificuldade em prever as conse-
portar disso, é questão de força e astúcia, e a concorrência transforma- quênciasa médio prazo dos efeitos de memória. Ora, no conflito real,
se então numa guerra de irmãos inimigos. A oposição afirma-se entre o a memóriaindividual e coletiva das experiênciasanterioresé uma
interesse de cada capitalista particular e o interesse da classe capitalista. dimensão essencial de qualquer comportamento estratégico.
do mesmo modo como anteriormente a identidade dessesinteressesse Todo militante sindical tem a experiência dessacontradição. Quem
tinha manifestado praticamente na concorrência." Um fenómeno simé- faz greve arrisca o salário e pode sofrer sançõesse a greve fracassar.
trico produz-se do lado dos proletários, cujo interessecomum em face Se ela vencer, os não-grevistas se beneficiarão das vantagens adquiri-
da exploração é minado pela concorrência no mercado do trabalho. dassemter corrido o menor risco. O cavaleiro solitário não-grevista
Elster conclui daí que "o interesseobjetivo" não teria como, em caso acredita poder jogar nos dois lados e ganhar sempre: se a greve fracas-
algum, constituir uma meta: ele só se exprime se coincidir, ou se o fize- sar, ele não perderá nada, se ganhar, ele participará dos ganhos como
rem coincidir, com "os interesses dos indivíduos membros". O interesse todos os outros. O cálculo segundo o qual o agente individual seria
objetivo traça portanto um horizonte de possibilidades no qual se inscre- logicamente tentado a bancar o cavaleiro solitário está entretanto li-
ve a intencionalidade da escolha.zoA teoria dos jogos conclui que, em tal mitado ao horizonte do jogo finito e amnésico.
caso, se a partida não é jogada senão uma vez a ação coletiva deve fra- Elster conclui que uma classe operária "chegada à maturidade deve-
cassar. Ora, a luta de classesestende-sena permanência e na duração. Ela ria ser capaz de esperar", evitando o "cavaleiro solitário" dos amarelos
implica uma memorização e uma transmissão de experiências. (cálculo egoísta) e dos vermelhos(impaciência da vanguarda). É, sob
Mais uma vez, lutar não é jogar. uma forma modernizada,o retorno do velho sonho kautskyistado "na
hora certa": o movimento socialista não é mais uma escola de luta, sub-
O problema do "cavaleiro solitário" servenão raro para ilustrar a idéia metida aos ritmos e aos acasos do conflito, mas uma escola de paciência
de que pode ser individualmente vantajoso subtrair-se a uma ação cole- e disciplina onde o proletariado aprenderia a andar no mesmo passo e a
tiva e conservar-sea distância de uma querela. Se os indivíduos racio- desfazeras provocaçõesintempestivas.Bem real, a contradição social
nais não cooperam, o problema se subverte: trata-se então de explicar não se resolve nem pela educação nem pela teoria. Ela é inerente ao
desdobramentoreal que caracteriza a sociedadecapitalista: trabalho
:' O que supõe um sujeito individual dotado de uma psicologiaque não é mais concreto/abstrato, homem/cidadão, privado/público, produtor/consumi-
que a versão modernizada da velha psicologia das faculdades. dor... Assim, cada capitalista tem interesseem que os operários do con-

202 203
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

corrente consumam mais e os seusmenos: "Cada capitalista exige de tos. No modo de produção capitalista, a relação de classesconstitui
seusoperários que elesse poupem) mas unicamente os seus, porque não a chave que permite decifrar a dinâmica conflitual da história.
os vê senão como operários(produtores); mas não age assim em relação Devemos concluir disso, com Elster, que "as classesobjetivamente
ao resto do mundo dos operários, pois não os vê senão como consumi. definidas tendem [em Marx] a adquirir uma consciência de classeou a
dores." As pesquisas de comportamento estimam geralmente que a ação desaparecer", e os atores coletivos fora das classes a "se marginalizarem
coletiva é tanto menos provável quanto o grupo é importante. Na medi. cada vez mais ao longo do tempo"?z Numerosos textos de Marx iden-
da em que a perda de cada agenteem função de suaabstençãodiminui- tificam com efeito "o partido histórico" ou "o partido em sentido am-
ria, a vantagemdo "cavaleiro solitário" aumentaria com o tamanho do plo" com o movimento multiforme de organização da classe.O partido
grupo. Retomando por sua conta essesraciocínios, o marxismo analíti- efêmero ou o partido em sentido estrito reduz-se então a uma organiza-
co, enquanto coloca o dedo sobre problemas reais, reduz a luta de classes ção de circunstância chamada a preencher uma função limitada numa
a uma abstração. Essa luta, que não é nunca uma soma de cálculos ra. dada conjuntura. Essa visão tem há muito subentendido a concepção do
cionais, participa do eventoe da lógica dos "grupos em fusão".zi partido na ll Internacional, cujo florão era a social-democracia alemã:
O apegode Marx à centralidadedo conflito de classeparece. um partido que abarca e cobre o conjunto das formas sindicais, mutu-
segundo Elster, "carecer cada vez mais de plausibilidade". Ele indica- alistas, associativasde que se dota a classe operária. Pode-se imaginar,
ria uma falta total de "disciplina intelectual". Essejuízo claro e fran- nessaperspectiva, "atores coletivos" ou "movimentos sociais" chama-
co traduz sobretudo uma incompreensão.A centralidade do conflito dosa fundir-seno vastomovimento constitutivo da classecomo "par-
de classesnão resulta para Marx de uma descriçãofenomenal dos tido histórico". Pode-se igualmente encarar a existência de conflituali-
antagonismos. Inerente às relaçõesde produção e de troca, ela expri- dades "não contemporâneas" (na medida em que a dominância de um
me a própria estrutura do modo de produção articulada com outras modo de produção não basta para sincronizar e homogeneizaras con-
formas de conflitualidade. Não haveria portanto como ser questão de tradições de uma formação social particular). Elas não são paralelas e
apreenderuma sociedadeora de acordo com as relaçõesde classes. indiferentes umas às outras, mas transversais às relações de classe,quer
ora de acordo com os amorescoletivosengajadosnos diversosconfli- setrate dos antagonismos de sexo, de nacionalidade ou de apostas eco-
lógicas. Assim, uma política de liberação das mulheres não se reduz à
zi Através da discussão sobre a coerência de um interesse coletivo de classe,é na sua dimensão anticapitalista; em contrapartida, ela não teria como per'
realidade questão de saber se o conceito de classe remete a um concreto de pen- ceber a raiz da opressão sem partir da maneira como a mercantilização
samento (um conjunto construído de determinações)ou a uma realidade empíri- dos corpos e a divisão do trabalho remodelaram essaopressão.Da
ca efetiva. Schumpetercompara a classea um õnibus sempre lotado mas por
mesma forma, se não basta abolir a lei cega do mercado para resolver
pessoasdiferentes. Inversamente, para Edward P. Thompson, a classe em si não
é uma coisa, mas um evento, um "#appeKing". Para Geram Cohen, enfim, adep- os grandesdesafiosecológicos, a ecologia radical não se concebesem
to de um estruturalismo mitigado, asclassespassampor um processode forma- requestionamentoda lógica mercantil e do reino do interesseprivado.
ção cultural e política, mas não se reduzem a isso: o próprio processo repousa Elster considera, para rejeita-la, "uma perspectiva histórica mais
sobre a permanência da estrutura. Essasdiscussõesrevelam na maior parte do
ampla" segundo a qual a luta de classes só seria decisiva para as trans-
tempo um conhecimentoimperfeito do conceito de classeem Marx. Paraelc, a
disfunção radical entre concreto de pensamentoe realidade efetiva, entre interes- formações que fazem época: "Em outras palavras, poder-se-ia aceitar
se coletivo e interesse individual, não teria quase sentido. Não sendo coisas, mas
relações, as classes existem e manifestam-se no conflito que as modela. u Jon Elster, Kart Maré-., OP. cit., P. 525

204 205
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

sem reserva a presença sistemática ao longo da história de conflitos se. "crítica da economia política" acha-seentretanto ali: por que prodígio,
is que de modo algum são redutíveis à luta de classes e sustentar ape. por que alquimia da troca, dos produtos e dos trabalhos heterogêneos
sar disso que essesconflitos não desempenhamqualquer papel na instau- tornam-se eles comensuráveis? O individualismo metodológico não pode
ração de novas relaçõesde produção." Tratar-se-ia de uma resposta concebê-lo.Do momento em que se considera o valor quantificável a
tática visando a salvar a centralidadedo conflito de classes,distinguindo parar dascarênciase do consumoindividuais,a detemiinaçãosol:al
os conflitos económicos dos conflitos não económicos ao ceder sobre um desagrega-se.A liberdade de escolha do operário enquanto consumidor
ponto secundário.Na realidade,do ponto de vista de Marx, não há é ' inteiramente incompatível com a hipótese dos coeficientesfixos de
nenhuma dificuldade em reconhecer a existência de conflitos não direta- consumo que está na base da noção de valor da força de trabalho em
Marx
mente redutíveis à luta de classes.Suas análises políticas ou históricas O (;apjlaZ;. É difícil cometer um contra-senso mais grosseiro.
concretas são preenchidas por essesantagonismos que se relacionam nunca pretende quantificar o tempo de trabalho social cristalizado na
com as classesfundamentais de maneira mediada. Uma vez admitida mercadoria a partir de "coeficientes fixos de consumo". Sua determina-
essaautonomia relativa, o verdadeiro problema consiste em elucidar as ção opera'se a posteriori, em função do veredicto do mercado, da evolu-
mediações e a articulação específica das diferentes contradições. Um tra- ção histórica das carências reconhecidas, portanto da luta de classese das
balho como essenão teria como chegar ao nível de abstração que reve- relaçõesde forças. Esseo motivo por que ela é móvel e flutuante.
lam as relações de produção em geral. Ele agua no nó da formação social. A enorme mancada de Elster origina-se de uma incompreensão da
nas lutas concretas, em uma palavra, no jogo de deslocamentos e con- lógica geral do(;apifal e da confusão entretecida entre valor preço e
densaçõesonde o conflito encontrasua expressãopolítica própria. Neste salários, entre carências sociais e consumo efetivo. Marx se aferrada à
nível intervêm não somente as relações de classe, mas também o Estado. teoria do valor-trabalho, porque a contabilidade em valor permitiria
a malha institucional, as representaçõesreligiosas e jurídicas. revelar e denunciar melhor a essênciado sistema capitalista, ao passo
Condenando em Marx uma redução economicista do conflito de que o movimento dos preços não iria além das aparências.Os preços
classes,Elster comete seus equívocos. É verdade que um marxismo não são precisamenteuma simples aparência, mas de fato a expressão
vulgar identifica de bom grado a economia com o peso da matéria. e a manifestaçãodeterminada de sua essência:não redutíveis ao valor,
por oposição ao político desenraizadoe à leviandade ideológica da- nem por isso Ihe são indiferentes. Os mistérios do capital atuam nessa
quilo que se desfaz em fumaça. A partir do momento em que se tra- relação hieroglífica de revelação e dissimulação simultâneas.
duzem em atou, as decisõespolíticas e jurídicas têm igualmente o seu
peso e a sua densidademateriais. Em seu desenrolar efetivo, a luta de A cegueira de Elster tem suas razões. Elas procedem sempre do mesmo
classesnão se reduz a uma oposição económica. stulado metodológico:"0 comportamentodo indivíduo não teria
Ao confundir o maodsmovulgar com a teoria de Marx, o individua- nunca como explicar-se por referência aos valores que, sendo invisíveis,
lismo metodológico acaba por renunciar a alguns de seuspilares, a come- não têm nenhumlugar na explicaçãodeliberadada açao."2+Curioso
çar pela lei do valor, pelo conceito de trabalho abstrato e pela noção de método, na verdade.Sem dúvida, "o comportamentodo indivíduo"
valor-trabalho: "Quando o trabalho é heterogêneo,não se teria como não é dedutívelda lei oculta do valor. Mas, a despeitodo bom senso
medir as contribuições numa escalacomum."23O que está em jogo na exibido, a formulação de Elster acha-sesaturada de pressupostosideo-

23Jon Elster,Kar/ Àfarx.-, op. cit., p. 691. 24Ibid., p. 690

206 207
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

lógicos. Por que uma causa "invisível" não poderia entrar na explicação de jucro, pelas necessidadeshistoricamente levadas em conta na re-
da ação?A crítica da economiapolítica e a psicanálisetêm em comum produção global. O reconhecimento social dessasnecessidadesopera'
o fato de reconhecerem a eficácia própria das causas não apenas invisí- seatravés da luta permanente sobre o tempo de trabalho, a proteção
veis, mas também "ausentes" (a ausência de pênis para a etiologia das social, as remunerações. O dispêndio de tempo de trabalho na esfera
neuroses). Elster toma cuidado para observar que ele está falando da da produção é uma abstração. Ele pressupõe o processo da reprodu-
explicação "deliberada" da ação. Explicação deliberada ou ação delibe. ção global que determina socialmente o tempo de trabalho.
rada? Ele pretende,por força de escolharacional, dar-seconta dos O começo pressupõe sempre o fim.
móveis e das motivações para agir de um sujeito dotado de razões trans. Ora. Elster obstina-se em repetir que "Marx nunca explica como
parentes à sua própria deliberação. Eis uma formidável aposta metafí- é possível reduzir a um padrão comum de tempo de trabalho um tra-
sica, tanto sobre o sujeito quanto sobre a razão! balho mais ou menos intensivo" e que "a presençade trabalho verda-
Enfim, pode-seobjetar, Elstertrata do comportamentodo indiví- deira e irredutivelmente heterogêneoconstitui um grande estorvo para
duo. Nada proíbe pensar que os comportamentos coletivos possam a economia marxiana". Não apenas isso. Chega a ser o problema
guardar alguma relação com o universo invisível das essências.Certo. mesmoda economia capitalista. Marx responde distinguindo, por trás
mas uma tal hipótesenos remeteriadireto ao inferno do coletivismo da muito bíblica simplicidade da mercadoria, suas "argúcias teológi-
metodológico! O individualismo metodológico exige ao contrário que cas", seu desdobramento em valor de uso e valor de troca, o desdo-
nos atenhamos estritamente ao primado do comportamento individual. bramento do trabalho em trabalho concreto e trabalho abstrato.2ó
portanto a substituir a crítica da economia política pela psicologia social.
Iniciativa analítica, sem dúvida. A todo rigor, o individualismo metodológico e a lógica do CaPiM/ são
Mas marxista em quê? incompatíveis.27 Ao denunciar "o erro de interpretação que consiste em
Abandonadoo trabalho abstrato,rejeitadaa teoria do valor e dizer que o valor exprime-seem trabalho abstrato e mede-seem tempo
dissolvidas as classesno jogo, que resta daquilo que GeorgesSorel de trabalho", Tran Hai Hac põe os pingos nos ii: "É ao contrário o
chamava outrora "o marxismo de Marx" (e que hoje poderíamos trabalho abstrato que se exprime sob forma de valor, e a medida do
designar, sem temer o pleonasmo, "marxismo crítico")? De seu pen- tempo de trabalho sob forma de grandeza de va]or [-.]. O valor de uma
samento desconstruído não subsistemdesdeentão mais que farrapos
incoerentes: "Estava certamente na intenção de Marx que os valores- zóComo observa Mare Fleurbaey, a propósito de John Roemer: "É verdadeira-
trabalho das mercadorias fossem definíveis exclusivamente em termos mente paradoxal rejeitar o valor-trabalho sem aludir ao próprio. conceito que o
de dispêndios de trabalho e não fossem portanto sensíveis às mudan- define, isto é, o trabalho abstrato" (Mare Fleurbacy, "Exploitation et inégalité:
du cõté du manismc analytiquc", AcfKel Mafx, n' 7, Paria,PUF, 1990).
ças da remuneração do trabalho."2s Na lógica do Cáfila/, essafrase z' Seguindoas pegadasde Roemcr, Philippe Van Parils sublinha claramente
não quer dizer nada. Como os valores-trabalho das mercadorias po- essaconuadição: 'Avaliar a contribuição de cada trabalhador em termos de valor-
deriam ser definidos exclusivamenteem termos de dispêndios de tra- trabalho é uma coisa muito delicada. Não apenas porque o trabalho qualificado
cria supostamente mais valor que o trabalho não qualificado, c que portanto fica
balho? Esse trabalho é de saída tempo e força de trabalho, socialmen-
pressuposto um procedimento adequado de redução do trabalho complexo ao
te determinados pela concorrência, pela igualização tendencial da taxa trabalho simples. Mas mais ainda porque a quantidade de valor criada por um
trabalhador num momento dado depende de sua produtividade relativa, campa'
u Jon Elster, Kar/ Maré-., op. cit., P. 184. Fadaà dos outros trabalhadores que produzem o mesmo bem. Ora, se essapro'

208 209
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

mercadoria não pode exprimir-se em tempo de trabalho porque é Im. siológica, um dispêndio energético presente em toda atividade de tra-
possüe/ medíf'dlreiamenfe a q azzlf(&zzü
de abalbo]-.]. Pois o tempo balho independentemente
de suasformas concretas.Ora, ele não é
que é diretamente mensurávelem unidades de trabalho só pode ser o nem uma coisanem outra: "A forma remetede um lado à relação
social que constitui sua determinação interna, mas também, de outro
tempo de.trabalho concreto, não o tempo de trabalho abstrato[«.].
Significa dizer que o valor só pode ser apreendido sob sua forma preço lado, ao suporte material que constitui sua determinação externa.""
e que não há portanto outra medidado valor senãopor sua forma."a8 O trabalho concreto não desapareceno trabalho abstrato, assim
O trabalho abstrato é portanto uma forma do trabalho social como o valor de uso não desaparece
no valor. No trabalho social,sua
Essa a razão por que o individualismo metodológico o ignora. unidade é sempre tensa, conflitual. A redução da diversidade dos sat/oir-
Desdeentão todo o edifício da crítica marxiana desmorona. Pois "não áaite, das habilidades, das competências em um tempo homogêneo e
é o trabalho em si mesmo que cria o valor, mas somente o trabalho na vazio é sempre uma violência. Medir toda riqueza e governar as relações
medida em que ele exprime as condiçõessociais determinadas de pro- dos seresentre si segundo o imperativo exclusivo do tempo de trabalho
dução, o trabalho abstrato". Claro que nem por isso a noção de tra- não suprime essacontradição cada vez mais aguda e dolorosa. Não
balho abstrato deixou de colocar problema. Para alguns, não há. quantificável, irredutível a uma medida temporal padrão, a obra de arte
enquanto trabalho geral, senão uma abstração lógica, uma hipótese (ou de criação em geral) desafia essa igualização formal negando-se a si
de comensurabilidade que supõe homogêneostrabalhos que, eviden- mesmacomo trabalho. Nos GmfzdrlsseMarx bem que previu que a
temente, não o são. Para outros, ele é ao contrário uma realidade fi- tendência histórica do trabalho a enriquecer-sedo trabalho intelectual e
a tornar-se complexo tornava essamedida cada vez mais "miserável"
dutividadc pode ser em princípio estimada no caso de trabalhadores que produ- Suaquantificação antinâmica .carregaconsigo o seupróprio limite.
zem individualmente produtos identificáveis, cla não pode sê-lo, mesmo em prin- A abstração temporal que nega o particular no universal, a intensidade
cípio, no caso geral em que os bens são os produtos agregadosdc operações
múltiplas cfetuadas por uma multiplicidade de trabalhadores. Por conseguinte. é na duração homogênea, é a do capital enquanto relação social: "0 pró-
geralmente impossível determinar se o trabalho socialmente necessário fornecida prio tempo de trabalho não existe como tal senão subjetivamente,sob
por um trabalhador (ou umgrupo de trabalhadores)particular é menor ou maior forma de atividade. Na medida em que sob essaforma é cambiável (ou
que o número de horas trabalhadas efetivamente ou, a Áortiori, que o valor incor-
ele próprio é mercadoria), ele é determinado e distinto não apenas quan-
porado nos bens quc ele consome" (Qu'est-cequ'#ne sociéié j#sre?, op. cit., p.
104). Contudo, Van Parijs contenta-seaqui em constataros limites da iniciativa titativamente mastambém qualitativamente; de modo algum se trata do
analítica em face do trabalho cooperativo, complexo c composto O impasseé
todavia mais fundamental. Numa sociedadede produção mercantil generalizada, 29Ibid., p. 26. É aliás seguindoa mesmalógica que Tran Hai Hac aborda muito
a mercadoria é a mediação necessáriado conjunto da relação social O trabalho justamente a difícil questão da "transformação": "Assim, por qualquer lado que
é de saída relação social. As forças dç trabalho consumidas não são comensurá. se considerem as coisas, revela-se impossível conceber um processo concreto,
vos senão como trabalho social abstrato. O que Van Parijs, passando de uma económico ou histórico, de transformação do valor de troca cm preço de produ-
dificuldade teórica elementara uma dificuldade mais essencial,relembra aliás: ção. É assim porque não há troca no valor ao qual sucederia a troca no preço de
"Se o trabalho é pertinente para determinar aquilo a que um trabalhador tcm produção. O valor de troca não precedeo preço dc produção senãode um ponto
direito, deve tratar-se do trabalho efetivamente fornecido c não daquele que teria dc vista lógico, conccitual: a passagemdc um ao outro não é mais que o desen-
sido necessárioa um indivíduo medianamentedotado para produzir os mesmos volvimento da lei do valor do nível do capital em geral ao nível dos capitais em
bens nas condições técnicas médias" (ibid., p. 105). concorrência. Em outras palavras, os conceitos de valor de troca e de preço de
zl Pierre Salama,Tran Hai Hac, U e fnrroducrio à J'éco omie PO/clique, produção relacionam-secom uma mesmarealidade económicae histórica, mas
Pauis,Maspcrol 1993,p. 15. . '' apreendida em dois níveis de abstração diferentes" (p. 62).

210 21 1
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

osEQUívocosDAEQütDADC

A sombra de Rawls ronda as tentativas de conciliação entre teoria das


classese teoria da justiça. Circunspecto para com o individualismo
a si mesmo enquantoforma o valor de uso e determina o valor de troca metodológico, ele não concebeo contrato social como uma soma de
A redução do trabalho complexo ao trabalho simples efetua-se transações isoladas, mas antes dentro de sua dimensão social. A "es-
todos os dias no processo de troca. O tempo de trabalho efetivo deve trutura básica da sociedade" é apresentada como "a maneira como as
sertraduzido em um tempo de intensidademédia. Assim que um prin. principais instituições sociais se organizam em sistema único cujos
copio regulador intervém para criar um elo entre produtor e consumj- direitos e deveres fundamentais elas sacramentam, além de estruturar
r, vendedor e comprador, essemediador não é a moeda, antes, mais a repartição de vantagens resultantes da cooperação social".3z Assim,
fundamentalmente, o trabalho abstrato. Ele não permite responder a Rawls concorda em que há dificuldade para calcular as vantagensde
um simples problema, à primeira vista insolúvel, de comensurabilida- posição ao nívelindividual.
de. A relação de contrariedade entre valor de uso e valor remete mais Sua teoria política da justiça como eqiiidade repousaentretanto
profundamente a "um conflito de temporalidades": o tempo de traba- em duas operações bastante hipotéticas: a pacificação do conflito social
lho abstrato/geral não teria como existir sem o tempo de trabalho e a eliminação dos efeitos ideológicos. Ao longo das discussõese das
concreto/particular de que ele é a negação. Enquanto universalidade observações, ela afirma-se primeiro como uma teoria do consenso.
que ultrapassae englobaos aros parciais do trabalho, o trabalho Partindo da constatação segundoa qual as democraciasmodernas
abstrato não é uma realidade sensível.Ele não é mais a simples média caracterizam-se pela coexistência de doutrinas compreensivas (filosó-
do trabalho de indivíduos diferentes, mas uma abstração social cujos ficas ou religiosas) inconciliáveis, Rawls considera que esse"fato do
seresque realmente trabalham tornam-se "os simples órgãos». Assim. pluralismo" impõe "eliminar da ordem do dia política as mais discu-
a relação de exploração tal como aparece na esfera da produção pres-
ta John Rawls Justlce ef démocrafie, op' cit., p- 37. Paul Ricoeur sublinha que a
supõe.semprea relação social global (ou de reprodução): "A quanti-
posição metodológica de Rawls procura fugir ao dilema entre individualismo e
dade de valor de uma mercadoria continuaria evidentemente constan- coletivismo metodológicos: "A sociedadeé um operador de distribuição num
te se o tempo necessário para sua produção permanecesse também sentido do termo coextensivo à própria noção de estrutura básica da sociedade:
constante. Mas este último varia de acordo com cada modificação da distribuição de papéis, de estatutos, certo; de vantagens e de desvantagens,de
benefícios c dc encargos certamente; mas também de obrigações e de direitos.
força produtiva do trabalho, que,por suavez, dependede circunstân-
Toma-se parte na sociedade precisamente enquanto e]a reparte as partes' [-.] Esse
cias diversas,entre outras da habilidade média dos trabalhadores. do o motivo por que o contrato hipotético é de saídauma escolhafeita em comum
desenvolvimento da ciência e do grau de sua aplicação tecnológica, na perspectivade um acordo: pelo contrato a sociedadeé inicialmentetratada
das combinações sociais da produção, da extensão e da eficácia dos como fenómeno congregacionista, mutualista. Da mesmaforma, estamosfora da
meios de produzir e das condições puramente naturais."3i alternativa entre holismo e individualismo metodológico; pelo elo de distribui-
ção, as pessoassão de saída partes tomantes. A sociedade,certo, tem uma estru-
l tura básica;ela é um tecido de instituições, mas toda instituição distribui partes
a pessoasreais. O objeto de justiça é assim a estrutura distributiva -- mutualista
10Kart Marx, GTKlzdrisse, 1, op. cit. -- do fcnâmeno social básico" ("Le Cercle de la démonstration", Lecruresl,
3i Kart Marx, l,e CáFIla/,livro 1,op. cit., p. 54. aufonr d# polfffque, Pauis,Seuil, 1988)

212 213
MARX. O INTEMPESTIVO
A LUTA E A NECESSIDADE

igualmentecontinuar a aumentar, ainda que a maior aumentemais


rápido e a diferença entre as duas se amplie. A teoria da justiça aparece
assimcomo o complemento ético-jurídico coerente de um liberalismo
social bem equilibrado. Face aos efeitos da crise, da desregulamentação
e da redução das políticas de proteção social, seu sucessoatual ganha
uma tonalidade ao mesmo tempo nostálgica e irreal: em que as desigual-
dadessociaisem pleno impulso são para a maior vantagemdos mais
desfavorecidos? Como sustentar que as funções e posições são abertas
para todos os excluídos? E como pretender que a igualdade das oportu-
nidades exista para os sem-direitos? A menos que isso sirva de pretexto
para "uma nova abordagemdo conflito social", para as estratégias
"dos ganhos mútuos" e para os métodos de negociação que permitem
"sair dos esquemas clássicos da relação de forças"
Em outros termos, para a passagemda luta à resignação.
Da resistência à colaboração.
A brutalidade da crise põe a nu a contradição entre os "princípios
primários" e a desigualdade realmente existente. A teoria da justiça não
pode escapar a isso senão colocando fora de jogo a conflitualidade so-
cial, supostamente controlável em termos políticos. O liberalismo social
aceita com efeito "a pluralidade das concepçõesdo bem como um fato
da vida moderna, desdeque, naturalmente, essasconcepçõesrespeitem
os limites definidos pelos princípios de justiça apropriados".3s O círculo
vicioso fecha-senum vertiginoso turbilhão. O acordo postula uma co-
munidade social que não estaria mais baseadanuma "concepção do
bem", mas numa "concepçãopública partilhada da justiça, em acordo
com o conceito que considera os cidadãos num Estado democrático
pessoas livres e iguais". O acordo, em suma, pressupõe... o acordo (so-
bre as regras e os limites), enquanto a luta real não cessade inventar
suas próprias regras e de avançar seuspróprios limites.

Assim, verdadeira pedra angular do edifício, a emergência do "consenso


por verificação"exigeda filosofia política que ela "procure conservar-
" John Rawl$ 52rjce émocraüe,OP.cit., PP.88 c 17.
'5 John Rawls, JKsfice et démocratie, op. cit., p. 171

214
21 5
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

real, suas leis antigreves ou antiimigrados, seu papel na reprodução da


relação social, seus aparelhos ideológicos, seus aparelhos de coerção e o
exercício do monopólio da força. Não surpreende desde então que
Rawls volte a encontrar nas conclusõesa concórdia política introduzida
nas premissas: "Além do mais, os conflitos entre valores políticos redu-
zem-seconsideravelmente quando a concepção política é sustentada por
um consensopor verificação." CQD. .
A ocultação do conflito social vai de par com a dissolução da opa-
cidade ideológica na transparência consensual. O contrato segundo
Rawls supõe "membros normais e perfeitamente cooperativos da soci-
edade": "Ser capaz de uma concepção do bem é ser capaz de fomlar, de
revisar e de seguir racionalmente uma tal concepção, ou seja, daquilo
que é para nós uma vida humana que mereça ser vivida." Os pressupos'
tos formais da justiça sãoassimoutorgados a priori: seresnormais, uma
A operação consiste em pâr entre parênteseso conflito social, con- concepçãocompartilhada do bem, uma conduta racional. Essasocieda-
cebido não como o fundamento, mas como a consequência do coMron- de capaz de fazer abstração das crenças e das convicções é integralmente
composta de sujeitos racionais e soberanos. Malgrado a existência de
concepções contraditórias, não existe portanto dificuldade "tal que um
consenso por verificação não possa existir". Basta admitir para isso que
a ideologia pode dissolver-sena boa vontade. Parecemais exatamente
espaço jurídico público para com doutrinas compreensivas e sua sede de pam Rawls, a ideologia não existe ou não passade uma cortina de
absoluto. Essaneutralidade prende-sea três mandamentos: "I) que o fumaça. Ela não tem origem, nem.materialidade, nem eficáciaprópria.
Estado deve assegurara todos os cidadãos uma oportunidade igual de A adesão às doutrinas compreensivas não exprime relações nem interes-
realizar a concepçãodo bem, seja ela qual for, que eles tenham livre. sessociais. Procede de uma pura escolha de consciência, livre ou capri-
mente aditado; 2) que o Estado não deve fazer nada que possa favore-. chosa. Fica então fácil colocar crenças e convicções entre parêntesesem
cer ou promover uma doutrina compreensivaparticular em lugar de benefício do consenso.

: : ni $üêlã
Essaracionalidadetransparenteda justiça alia-semuito natural-
mente àquela, também transparente, da comunicação A teoria dos
atos de linguagem implica enunciados sem ambiguidade e a presença
tm, a menos que sejam tomadas disposições para anular ou compensar em si de um contexto total. Do mesmomodo, para Habermas,toda
os efeitos de medidas dessegênero".x Árbitm desencamado e vigia do comunicação postula um entendimento ideal baseado num vocabulá-
consenso, esseEstado fantasmático não tem muito a ver com o Estado rio homogêneo necessário.
Ela tende assim a uma "soberania de procedimento", dissemina-
n John Rawls, /usrice et démocraffe,op- cit., P. 302. da nas "formas de comunicação sem sujeito". Espaço público de dis

216 217
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

cundidade na medida em que os protagonistas acham sepelo menos de reciprocidade geral pacífica.37
acordo sobre o enunciado dos problemas a serem resolvidos. A contm-
vérsia política caracteriza-se em compensação por um desacordo primá-
rio sobre os termos do enunciado: ela não escapaao confronto de inte-
ressese ã sua inserção,inicialmenteideológica,no horizontedo
fetichismo. Não se pensa falso porque se "teriam idéias falsas" ou por-
que se sofreria uma inculcação: pensa-sefalso porque se vive no mundo
efetivamente fantasmagórico do fetichismo mercantil. A comunicação
não está do lado do entendimento e da pacificação, mas sempre entre os
dois, no campo minado entre a paz e a guerra, entre o acordo razoável
e o compromisso imposto Sua distorção pelas práticas conflituais do
agir estratégico é portanto inevitável. ' "'' "
À universalização abstrata e mutilada do capital, ao desencadea-
mento tirânico das divindades e dos fetiches parcelares, a razão comuni-
cacional traz uma resposta de saída tocaiada pela ideologia. Em vista de
estabelecer um elo orgânico entre socialismo e democracia, Habermas
dissolve assim de maneira puramente imaginária os interesses de classe
nos de uma humanidade que seconstitui enquanto espécie.O paradigma
da produçãoanula-seem lavor do paradigmada comunicação.
As relações sociais tornam-se relações de comunicação. reduzir-se a uma simplesregra do jogo.

218 219
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

igualdade política torna-se indiferente à desigualdadesocial. Da mes-


ma forma, para ficar compatível com as liberdadesbásicas,o direito
de propriedade deixa deliberadamente de lado "o direito de possuir
essenciais . Seupróprio estatuto obriga a restringir rigorosamente a meios de produção e recursos naturais" e "o direito igual para todos
de participar do controle dos meios de produção e dos recursosnatu-
rais possuídossocialmente". Ele significa apenaso "direito de obter
e de dispor do uso exclusivo da propriedade pessoal", base material
controlado, problemas que tínhamos esperado evitar gmças à noção suficiente da independência pessoal. Assim como as relações de classe
adequadamente circunscrita de prioridade". Essesistema das liberda- são dissolvidas numa rede de relações jurídicas interindividuais, a
des não se mantém senão sob a condição de não ser nunca confron- relação de propriedade desapareceatrás do direito personalizado à
tado com a exigência das liberdades sociais, tão logo e somente expri- apropriação limitada.
míveis em termos de direitos: ao emprego, à moradia, à educação,à Rawls reivindica semhesitação o caráter formal de uma "socieda-
saúde. Em suma, a teoria da justiça pretende fazer calar a antinomia de bem ordenada" como "sistema fechado". "Como o fato de perten-
posta a nu pela Revolução Francesaentre as liberdades estritamente cer à sociedade é determinado, não seria o caso de os parceiros faze-
políticas (entre estas,o direito de propriedade) e as iberdades resumi- rem comparações com as vantagens oferecidas por outras sociedades."
das a partir de 1793 pela afirmação do direito à existência. Às acusa- As regras do jogo acham-sedefinitivamente fixadas, e "saber se nos-
!oes de formalismo feitas tradicionalmente por "muita gente" ("de- sas conclusõespodem valer também para um contexto mais amplo é
mocratas radicais e socialistas"), Rawls responde apoiando-se no uma outra questão".SP Condenadosa andar de um lado para outro
segundo principio" (o.princípio de diferença). Ele Ihe permite aman- dentro da jaula de ferro do real, é-nosproibido medir essereal ao
possível. A teoria torna-se assim sutilmente apologética. Na falta de
poder apresentaro universodo capital e o despotismodo mercado

se as desigualdades sociais e económicas medidas pelo índice dos bens o melhor dos mundos jurídicos possível; mas isso supõe admitir pre-
primários fossemdiferentesdo que são." Mas como demonstrar uma viamente que os princípios de justiça escolhidosna partida são "os
assertivacomo essa,se serecusapor princípio qualquer comparação mais razoáveis para todos". Evidentemente, isso só é concebível em
hipotética com um outro modo de regulaçãosocial ("nem a situação nome de uma Razão que se impõe sem violência às razõescontrárias,
numa outra sociedade, nem o estado de natureza podem desempenhar que seria a coisa mais bem dividida entre "cidadãos livres e iguais de
um papel qualquer na avaliaçãodas concepçõesda justiça")?3i uma sociedade bem ordenada". A teoria gira sobre si mesma. Ela volta
Portanto, o modelo funciona desde que suaspremissas sejam acei- a encontrar como conclusão suas próprias premissas: "A meta da teoria
tas incondicionalmente. Admitida a lista restritiva das liberdades bá- da justiça como eqiiidade é elaborar uma concepção da justiça políti-
sicas, o resto daí decorre. Definida como uma relação simétrica dos ca e social em harmonia com as convicções e as tradições mais anco-
parceiros, uns para com os outros ("neste sentido, eles são iguais"), a radas de um Estado democrático moderno." O "véu de ignorância",

11John Rawls, .lwsflce el démocraf/e, .OP cit.l PP. 162, 183, 60. s9John Rawls, J#stfceet démocratfe,op. cit., pp. 57 e 77

220 221
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

i=u;us:'=n=m=;='::j na-seextremamenteconfuso. Ora os teóricos da justiça pretendem


efetivamente intervir na esfera da repartição sem subverter as relações
de produção, e então as críticas de Marx contra o socialismo vulgar
Para que a mão continue invisível, é realmente preciso que o olho conservam-se pertinentes: como colocar a questão do desemprego em
termos de justiça distributiva semir à raiz da lei do valor? Ora a te-
oria da justiça apresenta-se como uma pedagogia da subversão levan-
do a contestar a propriedade dos meios de produção. Essainterpreta-
ção não é naturalmente dominante, e seria melhor clarificar as posições.
O balanço de falência das economias burocraticamente dirigidas e as
interrogações inerentes à crise ecológica pressionam-nos a pensar a
transição ao socialismo (inclusive em sua dimensão jurídica) em ter-
mos mais precisos que Marx. A partir do momento em que os prin-
cípios proclamados e a prática não se contradigam mais, uma teoria
crítica da justiça poderia, nessecontexto, dar uma preciosa contribui-
ção. Pois "o horizonte limitado do direito burguês" só conseguiria ser
efetivamentesuperadoao termo de um processode longa duração.

O DETERMINISMO SE REVOLTA

De acordo com Gerry Cohen, uma classepode historicamente vencer


quando se ajusta ao desenvolvimento das forças produtivas e satisfaz,
emancipando-sede si mesma,os interessesde toda a humanidade. Ela
"conquista e conserva o poder porque avança em uníssono com as
forças produtivas". Esta tese levanta muitas dificuldades. Do ponto
de vista do "individualismo metodológico", os interessesda humani-
dade são ainda mais difíceis de definir do que os de um grupo ou uma
classe. A coincidência entre interesse de classe e forças produtivas supõe
uma só e única via de desenvolvimento das forças produtivas. Sede-
senvolvimento ótimo e desenvolvimento máximo não são mais idên-
ticos, a otimalidade implica um juízo de valor. Não podendo determi-
nar o ótimo "objetivo", o "marxismo analítico" vê-se obrigado ao
40Philippe Van Parijs, Q#'esr-cequ'##e socléfé/#sre?, op cit., P. 263. grande salto para o imperativo ético.

222 223
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

Por tanto tempo quanto a soma variável do "jogo" aumentee per-


mita uma melhora relativa da condição dos mais desfavorecidos, a teoria
da justiça legitima a exploração. A injustiça começaria somente quando
a exploração contribuísse para aumentar as desigualdades em detrimen-
to dos mais fracos. Van Parijs retoma por seu turno a definição geral da
exploração dada por John Roemer: "Um grupo é capitalisticamente ex-
plorado se e somente se for verdade que sua sorte seria melhor e a de seu
complemento pior, no caso em que ele se retiraria com uma parte pro-
porcional dos meios de produção da sociedade, abstração feita dos efei-
tos de estimulaçãoe de rendimento escalar." Para deixar bem claro: a
exploração pode ser injusta tal como funciona sob o capitalismo, $em
nem por isso ser injusta em si.4zQual é portanto essa exp/oração em si?
Praticamente, historicamente, trata-se sempre de uma exploração deter-
minada, escravagista,feudal, capitalista ou burocrática. A exploração
capitalista é injusta do ponto de vista da classeque a sofre. Não há por-
Ninguém entretanto pode retirar-se da luta de classes. tanto teoria da justiça em si, mas uma justiça relativa ao modo de pro-
De um lado, é historicamenteimpossívelcomparar a sorte do grupo dução que ela entende emendar e-equilibrar, aproximando-se notavel-
mais desfavorecido em diferentessistemaspara rejeitar com conheci- mente do velho e falso bom senso segundo o qual não adiantaria nada
mento .de causa o sistemacujo rendimento seria decrescente.Mais repartir a riqueza dos ricos em lugar de ajuda-los a desempenhar melhor
coerente sobre esseponto, Rawls indica que não haveria como para seupapel de ricos para aumentar o tamanho do bolo comum!
os parceiros comparar suas "vantagens" com aquelas oferecidas por
outras sociedades.As comparaçõesconservam-seinternas à lógica do O individualismo metodológico conduz em Van Parijs a pulverizar as
sistema ou só se concebem entre sistemas "realmente existentes». relações de classenuma rede de relações interindividuais. Resulta daí uma
De outro lado, a idéia de um desenvolvimentohistórico coman- modificação significativa da noção de exploração. Em vez de caracterizar
dado pelo "principio de diferença" leva a considerar uma sociedade uma relação social, ela designa doravante um jogo de estatutos: "Pode-se
como justa em função somente da.quantidade de bens primários que
cabe aos mais desfavorecidos. Tratar-se-ia de maximizar o bem-estar perfeitamente o uso liberal ordinário do tema da cqüidadc como cavalo de bata-
mínimo do deixado-por-conta ao reputar equitativas as desigualdades lha contra a igualdadee a solidariedade: 'A ótica das discriminaçõespositivas
suscetíveisde contribuir para melhorar a sorte dos mais desfavoreci- pode conduzir à revisão do princípio de gratuidadc de certos serviços públicos.
dos. Isso redunda em deslocar sub-repticiamente a frente do conõito Esta funciona quasesempre em favor das categorias mais favorecidas. A gratui-
dade faz, até o presente, corpo com a concepção francesa da igua]dade [- ] Na
social da exploração para a exclusão, como se a segunda não fosse a
prática, fazer discriminação positiva em favor de alguns significa tocar na gratui-
consequência e o corolário da primeira.4í
dade para outros" (p. 93)-
4zJohn Roemer, A Gelzera/Tbeo of Exp/oilatjo# and Class, OP cit., P
4íO "nlatório Mine"(la Frufzcede I'a# 2000, Paria,Odile Jacob, 1994) ilustra 158

224 225
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

E\1 1:%KUHEB::!:
A alternativa é social e economicamente absurda.
Um não anda semo outro. A própria idéia de redistribuir o empre'
ao supõe um volume estávele indiscutível de trabalho, quando se trata

:ãÜ::;= =:=:=.:;.==H=
==;.É;'Úi;L=i.çã.
=:H==== ".-lógi«. C.«.l,., à d"«mi"'ã' d?;
necessidades sociais e de sua prioridade, a distribuição do emprego põe
necessaramente em jogo a distribuição da riqueza. A um duplo título: l
.fs conclusões que ele tira daí são eloqüentes. A linha de frente .nquanto destinação dos bens de produção (controle .e orientação. do
conflitual não passa mais entre exploradores e explorados, mas entre investimento) e enquanto renda disponível em termos do consumo final
os próprios explorados: "Pode-seter a expectativa de que uma luta de que permite fecharvirtuosamenteo ciclo da reprodução . J
classesentre aqueles que dispõem de um emprego e aqueles que não Depois de ter feito da "exploração de emprego" uma forma de ex-
dispõem de nenhum desempenheum papel cada vez mais proeminen- ploração entre outras, Van Parijs vai mais longe. Sua iniciativa de divisão
te sob o capitalismo de Estado providência." Eis do que confortar o acaba com efeito por fazer dessemodo muito particular de exploração o
urso dominante e culpabilizar como "providos" os assalariados mpulso conHitual dominante. "Mais significativa que a divisão de das-
dotados de um emprego mais ou menos estável.Nos antípodas da se'\ a "divisão de emprego" seria doravante "o componente central da
solidariedade coletiva pela defesade direitos comuns ao emprego e à estrutura de dasse". Em lugar de opor ao desempregoe à precar:idade
renda, a consequênciainelutável é bem evidentemente uma div são da uma frente de classe entre trabalhadores, desempregadosou excluídos,
penúria (a divisão não do emprego,mas do desempregoe do ganho tratar-se-ia de acrescentara divisão à divisão, propondo prioritariamente
(e sob a cobertura de urgência ética despolitizada -- por força da teoria
da justiça!) um "movimento dos pobres em emprego"."
43Philip 8e Van Parijs, "A Revolution in Class Theory", em Po/files a d Socfely,
Em tempo de crise, quando pouco resta para dividir senão a pe-
núria, o "princípio de diferença" continua a atuar em favor dos mais
desfavorecidos (o que pretendem os partidários do imposto negativo,
da divisão dos salários e do desemprego, das campanhas caritativas)
ou desaparecenum salve-sequempuder.-. semprincípios?O teorema
da mudança social segundo Van Parijs desemboca nessecaso em som-

226 227
MARX. O INTEMPESTIVO

6. Mas onde estão as classesde


outrora?

« Philippe Van Parijs, Q#'esr-ceqK'K#esociéré/ sre?,OP.cit., P 94. Van Parijs


observa que essecenário de transição é 'inspirado de Roemer".

228
A avaliação do papel histórico da luta de classesflutua de acordo com a
própria luta. Depois da Comuna de Paras,a sociologia nascenteopunha
à noção de classe social um vocabulário que privilegiava os grupos sociais:
elites,classes"intermediárias","dirigentes","médias".tMaio de 68, o
maio rasteiro italiano, e a revolução portuguesa recolocaram brutalmente
a luta de classesno primeiro plano. O discurso dominante dos anos oiten-
ta insistia de novo sobre as categorias e as classificações.O conceito de
classefoi então de bom grado redefinido como "um conceito antes de tu-
do classificatório" ou como um "filtro informativo" que permitia pâr um
pouco de ordem na heterogeneidade social e estabelecer"classificações
formalmente adequadas".zEsseé o momento em que nos encontramos.
No momento em que a crise económica e as políticas liberais se
traduzem por uma luta mais encarniçada do que nunca pela divisão

l Vilfredo Pateta insisteentão sobre a mobilidade social e a "circulação das eli-


tes" suscetívelde eliminar as barreiras culturais entre classes.Roberto Michels
defende sua lei de ferro da oligarquia. Karl Renner deduz do trabalho não pro-
dutivo a ideia de uma "classede serviços'. Talcott Parsonsdesenvolveparalela-
mente uma teoria analítica da estratificação social. O próprio uso da palavra
classevaria, com picos de frcqüênçia antes de 1914, entre as duas guerras (1924-
28, 1933-34, 1938-39) ou depois da SegundaGuerra Mundial (1953-58, 1970-
72). Em compensação,a expressão "classes médias" é particularmente emprega-
da às vésperas da Segunda Guerra Mundial, nos anos cinqüenta ou a partir de
1 981. Ver Hélêne Desbrousses,"Définition desclasseset rapports d'hégémonie",
em Classesef catiÜorfes sacia/es,Érides, 1985. Ver também Larry Partis, Les
Classessociales e# France, Paria, Éditions ouvriêres, 1988.
2 Andrês de Francisco, "Que hay de teórico en la 'teoria' marxista de las
classes",Zona Abierfa, 59/60, Madre, 1992.

231
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

entre lucros e salários, sobre a legislaçãoe a organização do trabalho, ricos de um ponto de vista teórico, retirando dali "as leis de desenvol-
sobre a flexibilidade generalizada,essaofensiva ideológica é ao mes. vimento do socialismo". Ele propõe para essefim uma "teoria geral
mo tempo compreensívele paradoxal. A exclusão não suplanta a ex- da exploração e das classes", onde a exploração capitalista não pas-
ploração, ela é antes sua conseqüênciae seu avesso necessários.A saria de um caso particular.
relegaçãofora do processoprodutivo priva com efeito os "exc uídos" De acordo com seu "princípio de correspondência" entre explo-
de uma possível reapropriação dos meios e das finalidades da produ- ração e classes,todo produtor que compra força de trabalho é um
ção. Sua desordem exprime-se então por explosões esporádicas con- explorador, e todo produtor que a vende, um explorado. Esseprincí-
tra as miragens do consumo, símbolos a um só tempo de suasaspira- pio não é uma evidência nem uma verdade, mas "um teorema". Esta-
ções frustradas e da hierarquia reinante dos valores. Essa revolta tuto de classee estatutode exploraçãoemergemno seiodo sistema
enraiza-se no âmago da relação de exploração, que faz do tempo de como consequênciade um comportamento de otimização. "A otimi-
trabalho social a medida de toda a riqueza e ejeta periodicamente os mção imdíz/ida/ determina a estrutura de classe":se se introduz um
"perdedores" mercado do trabalho, as classes se formam, e a pertinência:de classe
Quanto à admiração mais recente pelas "políticas da cidade", cla corresponde à relação.dêjêxpjorlSlo. A questão é saberse o princípio
exprime o cuidado de urbanizar uma conflitualidade galopante por de correspondência vale apenaspara um modo de produção particu-
uma mescla de medidas de segurança e clientelistas destinadas às novas lar, ou seja, o modo de produção capitalista. Já que não se pode co-
"classesperigosas" nhecer o tempo de trabalho incorporado numa mercadoria antes de
conhecer o equilíbrio dos preços, "o valor-trabalho dependedo mer-
cado". Roemer conclui que a extorsão de trabalho excedentenão é o
traço determinante da relação de exploração e ele se propõe "redefi-
UMA TEORIA GERAL DA EXPLORAÇÃO ni-la numa linguageminteiramenteindependenteda teoria do valor-
trabalho". Esseabandono é com efeito a condição de uma Teoria gera/
Duas questões principais acham-se na origem da contestação do papel aplicável a diversos modos de produção.
histórico das classessociais: o enigma das relações sociais nos paí- A maior inovação institucional do capitalismo consistiria em tor-
ses do "socialismo real" e o porrete sócio-estratégico das "classes nar a troca contratual de trabalho não coercitiva. Senenhumelo de
médias". John Roemer e Eric Olin Wright apresentam duas tentati- dependência pessoal hierárquica obriga mais o "trabalhador livre" a
vas sistemáticas de responder a isso de um ponto de vista "marxista fornecertrabalho gratuito, como explicar a apropriação e a acumula-
analítico".3
ção do produto excedente? A teoria do valor-trabalhopropõe uma
A partir da crise indochinesa e os confrontos sino-vietnamitas. resposta a esseenigma. Roemer opõe-lhe uma definição da explora-
John Roemer procurou compreendera política dos regimesburocrá- ção corrigida pela teoria da justiça: "Um indivíduo ou uma coalizão
são explorados se ele ou ela dispõe de uma alternativa mais vantajosa
que a distribuição em vigor. A teoria marxista da exploração baseada
no trabalho excedenteapareceassim como um casoespecíficoda te-
oria mais geral expressa na linguagem das relações de propriedade e
da teoria do valor-trabalho." Além da relação de exploração capita-

232 233
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

lista, a Teoria gera/ aplica-se portanto indiferentemente à exnlor--: - des") teria por tarefa histórica específicaa supressãodessa"explora
escravista, feudal ou "socialista".4. ' ''' - -"r'''ayau Ção socialista"
. Ela propõe uma modelização exagerada da relação social: "A explo-
A generalizaçãoteórica do marxismo analítico atinge aqui um grau de
abstração onde desaparecea substância crítica do CapÍfal: teoria do
valor-trabalho, conceituaçãodo trabalho abstrato etc. Voltemos às
estaçõesdessecalvário expiatório.
classesencontraria assim sua origem na instituição da propriedade priva- 1) Argüindo que não sepode determinar o tempo de trabalho incor-
da e da concorrência mercantil mais do que no processo de expropriação porado na mercadoria antes de conhecer o equilíbrio dos preço1l,Roe-
direta do trabalho: "0 traço fundamental da exploraçãocapitalista não mer conclui "hereticamente" (de acordo com suas próprias palavras)
e o que acontece no processo de trabalho, mas a propriedade diferencia- que o "valor-trabalho depende do mercado". A heresia é menor do que
da das dotações produtivass". Compreendida desse modo, a exploração ele gostaria de acreditar. Na medida em que o tempo de trabalho incor-
pode resultar da troca desigual dos bens, e as classespodem crisül zar- pomdo na mercadoria é "socialmente necessário"t o valor que ele deter-
seem função de um mercado do crédito, sem que necessariamenteexista mina retroativamente ou a posferfof'l pela reprodução global depende
um mercado do trabalho. Essa hipótese é ilustrada pela comparação bastantedo mercado. De onde a circularidade lógica do (lzPira/. Até aí
entre duas ilhas imaginárias, em que uma teria um mercado do trabalho Roemer acha-se menos afastado de Marx do que imagina. A revisão
sem mercado do crédito, e a outra, um mercado do crédito sem mercado reside antes na dissociação entre produção e troca. Enquanto o marxis-
do trabalho. Uma e outra veriam desenvolver-sea mesmadivisão em mo vulgar reduz a exploração à relação de produção, Roemer a reduz
classes. Roemer retira daí a idéia de que a coerção principal é aquela que à relação de propriedade e de troca, afirmando que "o mercado do tra-
visa a manter a relação de propriedade, a coerção exercida dentro da balho é não apenasdesnecessáriopara definir a exploração no sentido
empresapara extrair o trabalho excedente,que é "de importância secun- marxista, mas também para definir as classes no sentido marxista"
dária para compreendera exploraçãoe as classes« 2) A coerção exercida no processo de trabalho tornar-se-ia desde
Esseraciocínio estabeleceuma firme distinção entre exploração e então um aspecto "secundário" da exploração relativamente à manu-
alienação,.essencialpara a Teoria gera/. A exploração poderia com tenção das relações de propriedade. Em Marx, ao contrário, produção
efeito ser eliminada naquilo que ela tem de especificamentecapitalista e troca determinam-se reciprocamente, de forma que o capital revoluci-
sem que por isso sejam suprimidas as relações de autoridade e de ali- ona o processo de trabalho e molda sua organização. O desenvolvimen-
enação no processo de trabalho. A eventualidade de uma "exploração to da maquinaria e do modo de trabalho correspondentenão é acessó-
socialista" estaria então inscrita na famosa fórmula da "Crítica ao rio. Ele é a própria carne da relação de exploração. O despotismo da
Programa de Gotha" ("a cada qual segundo o seu trabalho"), que de usina resume a relação social. Pode-se,é claro, compreender as reservas
modo algum exclui as desigualdadesbaseadasnas competências e nas de Roemer em face do culto do trabalho que assombra o movimento
qualificações. O comunismo ("a cada qual segundo as suas necessida- socialista, bem como sua desconfiança para com qualquer redução da
luta de classesao confronto capital-trabalho na esferada produção.
' John Roemer, 4 Caberá/ TBeoly-., op cit., P. 192. Mas ele vai muito mais longe. Suá relativização da relação concreta de
slbid., p. 95. exploração é perfeitamente coerente com sua rejeição da teoria dos

234 235
A LUTA E A NECESSIDADE
MARX. O INTEMPESTIVO

nrCSsupõeuma alocação de referência altemativa à alocação existente: A


valores: "Enquanto a produção de mais-valia dependeda produção, sua
apropriação depende.daboca", escreveele. Voltando à economia clás- comparação entre as duas permitiria distinguir diferentes tipos de cxplo'
ração.De acordo com a teoria dos jogos, a retirada da partida constitui
na o teste definitivo da exploração num sistemadado. Assim,os servos
seriamexplorados na sociedadefeudal porque estariam mais bem aqui-
nhoadosse se retirassemdo jogo com a sua cota e seusmeios de auto-
timo, uma relação de reproduçãoglobal cujo segredomais'íntimo é
desveladopela teoria do valor-trabalho e da mais-valia. subsistência sem ter que pagar a corvéia. Seja qual for o interesse prós'
lectivo dessesexercíciosformais, eles se chocam com o fato de que a
3) A despeitodo rigor proclamado, o abandono da teoria do valor.
história não é um jogo. Retirando-se do "jogo" feudal, os servosficariam
trabalho conduz a formulações confusas. A exploração capitalista é
talvez desobrigados da corvéia, mas não deveriam assegurar a si mesmos,
assimdefinida como a apropriação do trabalho de uma classepor outra.
em contrapartida, sua proteção militar até então a cargo do senhor,
semmenção do tempo de trabalho e da força de trabalho. Ela reluz-se
a uma troca mercantil desigualbaseadana habilidade ou na ingenuida- expor a própria vida etc.? Poderiam também sofrer os terrores da acu-
de dos parceiros. O trabalho seráexplorado quando a cesta de merca- mulação primitiva, tomarem-se desempregados e sem domicílio 6uo, ao
termo de um processo de proletarização no "jogo" capitalista. Â hipóte-
dorias comprada pelo assalariado contiver menos tempo que ele mesmo
se lúdica da retirada não corresponde à áspera in)unção da luta real.
tenha trabalhado. A capacidademuito particular que tem a mercadoria
Concebidascomo relaçõessociais e não como produto da "otimização
força de trabalho para funcionar além do tempo socialmente necessário
individual", as relações de classe deixam pouca esperança de enganar seu
propria reprodução desaparecediante de uma formulação como
destino.Certamente,cada qual é formalmente livre para escaparà sua
essa.Dihrentemente da busca de uma troca eqüitativa entre salário e
condiçãode proletário. A condiçãopara que todos não o tentem:a liber-
cesta de bens, a teoria do valor-trabalho inscreve no processo de produ-
dade individual do trabalhador tem como reverso a não-liberdade cole-
ção global o momento específicoda produção de mais-valia onde se
tiva da classe! Não se evade em massa do proletariado.' Essa a razão por
origina, sem se reduzir a isso, a relaçãode exploração.
O retorno ao vocabulário da economia clássicamarca em Roe- que, sob a férula do capital, a troca contratual de trabalho não é institu-
cionalmentetão "não coercitiva" quanto o pretende Roemer.
mer a renúncia explícita à teoria do valor-trabalho e ao conceito de
5) A Teorãz geral (tz exploração repousa não sobre a extorsão do
trabalho abstrato, confundido com a idéia (com efeito, quimérica) de
valor excedente,mas sobre um modelo de troca desigualque opera no
um trabalho realmente homogêneo. A heterogeneidadeirredutível do
tempo e no espaço: "A troca desigual e a divisão do trabalho produzem-
trabalho torna os termosda troca incomensuráveise a própria explo-
ração tendencialmente indefinível.ó ' ' ' semesmo quando todos os paísescontam com o mesmo potencial tecno-
4) Roemerpropõe o abandonoda teoria do valor-trabalho em favor lógico e forças de trabalho igualmente qualificadas. Constatamos, siste-
maticamente, a repartição entre setores de mão-de-obra nos paísespobres
de uma teoria geral da exploração, derivada da teoria dos jogos, que
e setorescom grande concentração de capital nos paísesricos, mas isso é
a consequênciado comportamento de otimização sob coerção do capital
' John Roemcr, 4 GmeruJ Tbeopy-., op cit., P. 179. Contentando-seem ver em
Marx uma 'quase homogeneização" dos produtores pelo viés da proletarização,
7 Geram Cohen, 'The Structure of Proletarian Unfreedom', em Analyrical Mar
Roemer confirma sua incompreensão da importância do trabalho abstrato e da
relação lógica entre condiçõesdeprodução c generalizaçãoda produção mercantil. xjsm, OP.cit., PP.244-254.

237
236
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

e não de uma falta de saz/olr-pairetecnológico. Não há qualquer necessi- classese a exploração podem designar realidades bem diferentes e mo-
dade de imperialismo extra-económico para produzir essatroca desigual: dos de extorsão do trabalho excedente irredutíveis à exploração capita-
significa dizer que os termos da troca não precisam ser politicas ente lista do trabalho assalariado: as relações de dominação e de exploração
impostos, como o são num regime de câmbio livre, dada a propensão a acham-se imbricadas diferentemente tanto numa sociedade escravista
otimizar dos países e suas riquezas diferenciais."' Tendo rejeitado a teoria ou feudal quanto numa sociedadede produção mercantil generalizada.
do valor-trabalho, Roemer constata que a troca é naturalmente desgul Em se lido esfrifo, a "crítica da economia política" visa à relação de
tanto numa sociedadedeterminadaquanto em escalainternacional. Na exploração capitalista e às relações de classesque ela determina. Obscu-
falta de "trabalho abstrato" que permita estabeleceruma medida comum recendo a compreensão conceitual dessarealidade, a Teoria gata/ perde
social entre trabalhos e produtos heterogêneos, estesütimos permanecem em precisão o que pretende ganhar em extensão, sem por isso pemntir
irremediavelmente incomensuráveis.Em que consiste então o caráter de- uma periodização histórica convincente. As extrapolações de Elster
sigual da boca? No fato de que a otimização dos recursos naturais(de um acentuam essasinconseqüências. Trata-se de saber se as classesdesem-
indivíduo ou de um país) leva mais ou menos tempo? É essaprovavelmen- penham um papel igualmentedecisivo para explicar a ação coletlva em
te a razão por que essatroca desigual pode prescindir de um "imperialis- sociedadesdiferentes. Considerando que a oposição entre propriedade
mo extra-económico"! O desenvolvimento desigual e combinado do e não-propriedade é muito vaga para caracterizar a noção de classe, ele
mercado mundial realmente existente é contudo bem estruturado por propõe uma definição geral: "Uma classeé um grupo de pessoasobri-
uma hierarquia de dominação e de dependênciaao mesmo tempo econ& gadas, em função do que possuem, a se engajarem nas mesmas ativida-
mica e monetária, política e militar, educativae cultural. Na medida em des, se quiserem fazer o melhor uso de suas dotações." Essasdotações
que a produção mercantil permaneceperiférica, a troca desigual pode compreendem tanto propriedades alienáveis quanto capacidades inalie-
resultarinicialmentedo exercíciobruto da força(pilhagempara fins de náveis e bens culturais. A exploração já não se baseia no consumo da
consumo suntuoso). A regulação mercantil da produção e da troca esta- força de trabalho para além do tempo necessárioà suaprópria reprodu-
belece,ao impor-se, um tempo abstrato socialmentenecessárioà produ- ção, mas, como em Roemer, na troca desigual: l) "todas as mercadorias
ção, A desigualdade da troca não procede de uma temporalidade natural são exploradas sob o capitalismo, e não apenas a força de trabalho; por
dos produtos, mas da desigual produtividade social do trabalho. Na au- conseguinte,a exploração do trabalho não explica os lucros"; 2) a do-
sênciade um mercado do trabalho mundialmente unificado, a transferên- minação não é o simples reverso da exploração; 3) medir a alienação
cia das riquezas em favor dos mais ricos ehtua-se em escala intemacional diferente em termos de mais-valia é possível mas sem grande interesse;
pela degradação dos termos da troca(e não da troca desigual) sob o evito 4) a desigualdadediante dos meios de produção não é mensurávelem
da concorrência entre forças de trabalho desigualmenteprodutivas.P termos de exploração. A conclusão de Roemer será "que a teoria da
6) Buscando conciliar a teoria de Marx e a teoria dos jogos, Roemer exploração é um domicílio de que não mais precisamos:ela serviu de
enreda-se em incoerências que em boa parte se devem à sua incompreen- chicote para educar uma família vigorosa, mas devemosagora deixá-
são da dupla determinação das classes.Em se#lfdo amp/o, histórico, as lo".ío Esteveredicto não surpreende:o abandonoda teoria do valor-
trabalho conduz logicamente ao abandono da teoria da exploração. Em
' John Roemer, A General TbeoU-., op. cit., P. 60.
io John Roemer, "Should Marxists be Interested in Exploitation?", cm A#alyria/
thans 1993 as Coutrot e Michel Husson, l,es Desif#s d# Ifers molde, Paria,
Àlatxlsm, OP.cit., P. 262.

238 239
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

virtude do princípio de correspondência,o abandono da teoria da ex- à primeira seránão. Na história real, essasquestõessão insolúveisem
ploração deveria conduzir em seguida ao do conceito de classeem favor termos de modelos. A ação desenrola-senum espaço'tempo regido pela
de uma microssociologia dos grupos, dos agentese dos atires.ii lei do desenvolvimento desigual e combinado em que a resposta às duas
questõespode ser duas vezes não. Pode-se estimar que a exploração
Roemer assume a abstração de seu modelo: "0 modelo não pretende burocrática parasitária e os privilégios da Nomenklatura não eram nem
discutir a história." Claro que a história não faz nada. Mas às vezesela um pouco necessáriosna União Soviética, na China e em outros lugares,
se revolta. A Teorü gera/permite supostamenteuma análise(económi- sem por isso mesmo concluir que os trabalhadores teriam sido certa-
ca) do "socialismoreal" no momentodo conflito sino-vietnamitae da mente mais bem aquinhoados sob o capitalismo. Depois da queda do
estagnação sob .Brejnev. A exploração capitalista e a exploração socia- Muro de Berlim, essaalternativa binária nutriu muitas ilusões sobre a
lista seriam variantes de uma exploração geral. O «socialismo real" é terra prometida do mercado. A escolha entre um antes e um depois, um
com efeito entendido como uma combinação de exploração socialista aqui e um alhures, é sempre demasiadamente simples. A exploração(ou
(das competências)e de exploração hierárquica(ou de estatuto) sem a espoliação)burocrática era intolerável não comparativamenteao ca-
extorsão de valor excedente,tomando a exploração socialista a forma pitalismo em sua realidade mundial ou a um socialismo democrático
dos estimulantes materiais à qualificação. Se a supressão dessesestimu- ainda inexistente, mas em função da irracionalidade e dos sofrimentos
lantes acarretasseuma degradaçãoda situação dos menosaquinhoados que ela inflige aos oprimidos. Para as populações diretamente interessa-
por uma. baixa geral da produtividade, essa exploração específica pode- das,a restauraçãodo capitalismo e da ditadura mercantil não chegava
ria ser, de acordo com a teoria da justiça, consideradasocialmente ne- a constituir uma garantia melhor. A expectativa delas era o nível de vida
cessáriadurante um determinadoperíodo. sueco ou francês. Sua sorte efetiva na inserção de uma relação mundial
Segundo Roemer, a exploração socialista acha-se inscrita na fórmula de dominação e de dependência é antes a de um novo terceiro mundo e
dedistribuição "a cadaqual de acordo com o seutrabalho" na medidaem meio. As especulaçõessobre o destino coletivo segundo o princípio te-
que ela implica precisamenteessasdesigualdadesde qualificação, de di- órico da retirada subestimam o fato de que, nessasreviravoltas, não há
plomas, de competências, das capacidades. O socialismo poderia começar trajetória social homogênea. O "jogador"(no caso, a classe trabalhado-
a combater a alienaçãonas relaçõesde trabalho, mas só o comunismo e ra e as nacionalidades)divide-se: na distribuição geral das cartas, há
a distribuição "de acordo com as suasnecessidades"viriam ao fim da sempre alguns ganhadores e muitos perdedores.
exploração socialista. Ficamos portanto a braços com duas questões: Em 1983, Roemertinha na conta de utópico o sonho de uma
1) A exploração hierárquica é socialmente necessária? sociedade socialista igualitária e sem classes.A revolução socialista
2) Os trabalhadores seriam mais bem aquinhoados num sistema limitava-se, segundo ele, à eliminação de uma forma especificamente
capitalista ?
capitalista de exploração, e não de toda forma de exploração..A ques-
Se a resposta à segunda questão for não, a resposta à primeira será tão crucial era saber se "a exploração socialista" era "socialmente
sim. Inversamente,se a respostaà segundaquestão for sim, a resposta necessária"nessaetapa, no sentido de que uma exploração possa ser
considerada socialmente necessáriase a sua supressãopuder agravar
" Ao preço de acrobacias conceituais: que significa a exp/oração dasmercadorias
tcommodities) ou a mplorução das coisas? Quanto à idéia dc medir a alienação a situação dos explorados: "Minha convicção é que, nas sociedades
i dlt,idua/me le na bitola da mais-valia arrancadaa cada um e a cada uma, rc. socialistas realmente existentes, a exploração socialista é socialmente
vela apenasmania de medir.
necessária", do mesmo modo que a exploração capitalista teria sido

240 241
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

a origem socialmente necessáriae progressista aos olhos de Marx.»iz a ela: "Embora o capitalismo tenha sido originalmente progressivoe a
Explicitamente inspirado do maxis/m da teoria rawlsiana da justi9
ocínio alcança as mesmasconclusões apologéticas sobre o
socialismo burocrático que as de Rawls sobre o liberalismo mitigado.
Se a exploração socialista se tivesse reduzido unicamente à explora- nãonecessidade, lembrando-se apenas que a rebelião não resulta em
ção das competências pelo viés dos estimulantes materiais, sem inter- M.arx da sorte reservada,num outro jogo hipotético, ao jogador menos
ferência da exploração hierárquica (pelos privilégios), essassocieda- aquinhoadodo jogo atual, mas da lógica implacáveldo conflito, ima-
des teriam podido ser consideradas "sem reserva" como socialistas. nente à própria relação de exploração .
Mas "a história se complica por causa da presença de outras formas A Teoria gera/ torna insatisfatória a maior parte das caracteriza-
de desigualdades", cuja repartição não tem nada de aleatório. çõesdo "socialismo real": cap.italismo de Estado, poder da classe
Pode-setambém conceber que a exploração hierárquica seja so- gestora,capitalismo semcapitalistas. Mais bem inspirado e mais sério
cialmente necessária(e não parasitária) na medida em que os privilégios que os ideólogos franceses na mesma época, Roemer sublinha bem as
contribuiriam para o desenvolvimento ótimo das forças produtivas num diferençasestruturais entre uma sociedadecapitalista, cuja regulação
determinado momento. Não raro foi esse,aliás, sob diversasvariante. global é mercantil e onde a exploração.toma a forma da apropriaç:.o
o argumento autojustificativo do burocrata dirigente. Roemer percebe da mais-valia extorquida, e uma sociedade burocraticamente regula-
que está correndo o risco de mostrar-se complacente para com a ordem da pelo plano. No segundo caso, os ricos são menos ricos que os
burocrática. Mas eleé prisioneiro de sua própria teoria. Haveria explo- capitalistas,não há mercadoreal da força de trabalho, os privilégios
ração socialista seos trabalhadores fossem mais bem aquinhoados ao se económicosdecorrem do monopólio do poder político. Essasdiferen-
retirarem do jogo. Contudo, para irem aonde?Para recaírem na explo- ças verificam-se a cofztrarfo desdeo desmembramentoda União Sovi-
ração capitalista ou para se dirigirem a um socialismode autogestão ética. A penúria de capital produtivo não é a menor das dificuldades
cuja eficácia virtual é indemonstrável. A consequência é evidente: "Se a sobrea via do restabelecimentode uma regulaçãomercantil global.
exploração hierárquica é socialmente necessáriae distribuída de manei- Para Roemer, a posição privilegiada da burocracia depende antes
ra aleatória", em nome do que criticar o socialismo realmente existente? da exploração hierárquica que da exploração capitalista. Seucontrole
De acordo com a terminologia rawlsiana, um tal regime seria convide.. sobre a propriedade procede de sua dominação e não o inverso. A
Fado "justo".13 Propondo-se a meta de produzir uma "teoria da explo- partir do momento em que ela se combina com o restabelecimentode
ração económica sob o socialismo", Roemer lança à mesa o seu curinga, critérios mercantis, a exploração socialista gera o renascimento de uma
introduzindo a idéia de uma avaliação subjetiva da "necessidadesoci- exploração propriamente capitalista. Voltando do modelo à história,
al". Distinta da justiça, a apreciação dessa necessidadedependeria par- a luta retoma os seus direitos sobre o jogo.
cialmente do juízo de uma consciência coletiva. Como Marx diante dos
desempenhos do capitalismo juvenil, poder-se-ia assim admitir a neces-
sidade social de uma forma de exploração sem aprova-la ou resignar-se

n John Roemer, A Genera/ TBeoly-., op. cit., P. 241.


" John Roemer, A Ge eramTbeoO-., OP.cit., P. 248. essas duas faces da teoria marxista da história" (ibid., P- 289).

242 243
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

Preocupado em preservar uma lei do progresso, Roemer associa sua As diferenciações sociais sempre renascentes tornam mais que
teoria geral da exploração à teoria da história segundo Gerry Cohen: necessária a seus olhos a compreensão das relações fundamentais entre
"Parece que a história elimina necessariamenteas diversas formas de as classes,a única coisa capaz de preservar a inteligibilidade do desen-
exploração numa certa ordem." A diferença entre a economia burguesa volvimento histórico.
vulgar e a crítica da economia política estaria em que a segunda poderia Enquanto a Teoria gera/ segundo Roemer visa a elucidar a questão
julgar a exploração capitalista progressistaem dado momento sem he- da "exploração socialista", os trabalhos de Eric Olin Wright atrelam-se
sitar em chama-la pelo seu nome,enquanto a primeira se esmerada em à questão das classesmédias.is Ele entende devolver ao conceito geral de
mascarar essarelação social. Do mesmo modo, os comunistas revoluci- classe"toda a sua complexidade" para apreender melhor a realidade
onários podiam combater os privilégios e os crimes do despotismo bu- contraditória das classes intermediárias. Sua busca de "microfunda-
rocrático sem deixar de compreender suas determinações históricas. ções" responde ao canto das sereias da sociologia e da teoria dos jogos.
enquanto a burocracia termidoriana recusava-sea ser designada pelo Wright contestaentretantoque a análisemicrossociológicaimpli-
seu nome e negava selvagementea realidade da exploração burocrática. que um alinhamento inevitável com o individualismo metodológico:
Do ponto de vista materialista histórico segundo Roemer, "a história "Nunca sustentei que]essas estruturas de classe] sejam redutíveis a pro-
progride por eliminação sucessivadas formas de exploração socialmen- priedadesindividuais, como desejao individualismo metodológico",
te não necessáriasnum sentidodinâmico". Os exploradosda véspera nem que os processos causais da teoria das classes "pudessem ser cor-
não se acham mais bem aquinhoados de um dia para o outro: questão retamente representadosnos termos da interação entre indivíduos".n
de ritmos e de transições Essa problemática teria a vantagem de separar Voltando a seus ensaios e tateamentos sucessivos, ele explorou dois
a justiça da história: "Embora o capitalismo tenha sido originalmente tipos derespostas.Numa primeira problemática, tentou resolvera ques-
progressista e a exploração capitalista socialmente necessária,eles eram tão dasclassesmédiascombinando critérios hierárquicos de dominação
injustos: o conceito de justiça permite a existência de um mal necessá- e critérios económicosde exploração. Fazendo intervir a dinâmica das
rio."'s Mas, se o princípio de justiça não for respeitado, em que essa redes e das trajetórias, buscou "elaborar um conceito coerente de estru-
exploração seria socialmente necessária? tura de classe",precondiçõespara qualquer compreensãosatisfatória

ió Ver também"What is Middle About of Middle Class",em A alytim/ Àlar-


xfsm, op. cit., e "Rethinking OndeAgain the Concept of Class Structure", em
O PORRETEDAS CLASSES
MÉDIAS Eric O. Wright et al., Tbe Debate o# C/esses,Londres, Verso, 1989.
i7 Em 7'beDebate o# Classes,op. cit. No mesmotexto, Wright não conse-
gue entretanto evitar as derrapagensnessesentido: "Como indivíduo, ser capita-
Em Teorias da mais-z/a/ia,Marx censura Ricardo por negligenciar o lista significa que o bem-estar económico depende da extração de trabalho exce-
aumento numérico das classes médias. Um comentário análogo apa- dentes-.]; como trabalhador, da venda exitosa da força de trabalho"; descrever
rece no capítulo inacabado do (;zPífa/. Tal insistência contradiz a visão os membros de uma classe como indivíduos que compartilham interessesmate-
mecanicista de um desaparecimentoinelutável das classesintermediá- riais sugere que eles teriam em comum os mesmos dilemas que dizem respeito à
ação coletiva e à busca individual do bem-estar económico e do poder. Do mes-
rias que não raro Ihe atribuem.
mo modo, Andrês de Francisco, para quem o conceito de classeé "antes de tudo
um conceito classificatório", escreveque uma teoria das classes"partirá portan-
" John Roemer, A Ge#era/ Tbeoly-., op. cit., PP. 271-273. to dc uma classificaçãodos indivíduos"("Que hay de teórico-.", loc. cit.).

244 245
MARX. O INTEMPESTIVO Y A LUTA E A NECESSIDADE

certas formações sociais, as relações hierárquicas, seladas pela autorida-


das relações entre estrutura de classe, formação de classe e luta de class.
Guiado pela preocupaçãoestratégicade aliançasduradouras entre a de política ou religiosa, poderiam serdominantes. No modo de produ-
sseoperária e certos segmentosdas classesmédias, chegou assimà ção capitalista, em compensação, autonomizando-se do político, a eco-
noção de "posições contraditórias nas relações de classe". Essaprin)eha nomia determina a estruturação da relação social. Esseo motivo por
problemática define a exploração como "apropriação do excedente» que a relação de exploração ocuparia a posição dominante.n
Essafórmula geral deixa novamente em maus lençóis a teoria do valor' Voltando ao primado da relação de exploração, a segundaproble-
trabalho. Da mesmamaneira que encontramosemBourdieu explorados mática de Wright inspira-se nas "explorações múltiplas" de Rocmer.
dominantes e exploradores dominados, as "posições contraditórias" em Em vez de reservara noção de exploração à sociedadecapitalista pro-
Wright podem "pertencer simultaneamentea várias classes". Explora- priamente dita e chamar de dominação às outras formas não igualitárias
dos enquanto assalariados e dominantes por sua função hierárquica, os de relação social, esseúltimo distingue a exploração capitalista(baseada
quadros se achariam assimnuma posição capitalista do ponto de vista na propriedade dos meios de produção) da exploração feudal(baseada
das relações de controle e numa posição proletária do ponto de vista das no estatuto) ou "socialista" (baseadano controle dos "bens de organi-
relações de propriedade.
il Em sua aplicação extensiva do duplo critério de exploração e de dominação à
Seguindoa distinção de Poulantzasentre modo de produção e determinação das classes,Antony Giddens reserva, ao contrário, o primado da
formação social, essaabordagem baseada na diferença entre estrutura primeira ao modo de produção capitalista. A propriedade privada dos meios de
de classe e formação de classecomporta duas fraquezas maiores. De produção seria a fonte cm si e para si de um poder social global, enquanto sob
um lado, tende a privilegiar a noção de dominação em detrimento da o feudalismo e em todas as outras sociedades de classeo controle dos meios de
autoridade seria determinante. Giddens distingue assim 'sociedade de classes"
relação de exploração; de outro lado, quase não permite que se trate
(cm outras palavras, a sociedade capitalista em que a divisão em classes é o prin-
a questãodas classesno seio do aparelho de Estado em geral e das cípio central da organização social) e "sociedade dividida em classes' (ou seja, as
sociedadesburocráticas em particular. Em C/esses,Wright inquieta- sociedadesem que as classesnão constituem o princípio estrutural determinan-
se por ver seu coquetel de critérios reduzir a luta de classesa uma te). Uma tal distinção pode parecerum mero artifício. A hesitaçãoem rebaixar
toda a história da humanidade à luta de classes, tal como ela sedesenvolve espe-
relação conflitual entre outras e dissolver a noção de classenuma
cificamentesob o capitalismo, ganha no entanto outro alcancequando Giddens
sociologia em migalhas dos grupos de interessee de poder. A insistên- seopõe à "redução" da conflitualidade social à conflitualidade de classena so-
cia sobre as relaçõesde autoridade e de dominação convém com efei- ciedadeburguesa.Para ele, a apropriação coercitiva e a posseconstituem um
to à conflitualidade específica das sociedades burocráticas, mas o critério tão importante quanto a propriedade e a exploração. A partir daí, o
compromisso eclético entre exploração e dominação só constitui um primado da dominação impõe-sesub-repticiamente, c a teoria das classesanula-
se diante de uma sociologia weberiana dos grupos. A principal censura de Eric O.
instrumento cómodo de classificaçãoao preço de um relaxamento
Wright para com Giddcns não está nisso. Ele parece antes temer que a exigência
teórico. É preciso portanto resolver-sea privilegiar o critério de domi- de uma teoria específica em cada formação social acabe por separa' a teoria das
nação (sob o risco de uma fragmentação sem fim dos grupos e das classesda teoria da história, tornando impossível qualquer inteligibilidade glo-
categorias)ou voltar ao primado da relação de exploração. bal: "Não haveria mais razão para que a análise de classeconstituísse a basede
uma teoria social de caráter geral. Tal é o principal desafiocontido na crítica de
A primeira tentativa de Eric Olin Wright desemboca assim numa
Giddens, desafio que os marxistas deveriam levar mais a sério." Com efeito. Mas
curiosa alternativa. Uma combinação das relaçõesde exploração e de a diabética entre a acepção específica e a acepção genérica do conceito de classe
dominação seria concebível ao nível da reprodução global e do conflito permite enfrentar essedesafio conciliando a especificidadede uma formação social
político, onde aguaem última instância a configuração das classes.Em determinada e o movimento conflitual histórico global.

246 247
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

zação"). Não se trata de uma simplescomodidade terminológica. Enl exploração capitalista e numa sociedade baseada exclusivamente na
cada um dos casos,o termo exploração remetea uma distribuição de exploraçãoorganizacional. Não é praticamente o caso.
dotaçõese de riquezasque reproduz a desigualdadee não a um senü- As soluções sucessivamente examinadas por Eric Olin Wright re-
mcnto subjetivo de subordinaçãoou de opressão.Wright dist ngue velam-seportanto insatisfatóriasa seuspróprios olhos.zoEm virtude
quanto a isso quatro tipos de recursos cuja apropriação desigual hda da problemática das "posições contraditórias", a classe média situa-
diversos modos de exploração: a) os bens de força de trabalho cuja se simultaneamente na classe operária e na classe capitalista. A explo-
exploração.direta seria hudal; b) os bens de capitais cuja exploração ração secundária (de qualificação e de organização) determina por
seria capitalista; c) os bens de organização cuja exploração seria estatis- outro lado estatutosmediatose trajetórias temporaisno seiodasclas-
ses.As relaçõesde exploração sem dominação e reciprocamente (car-
exploração seria socialista.Essatipologia definiria classesexploradase cereiro/prisioneiro,filhos/pais) não são portanto relaçõesde classe:
exploradoras correspondentesaos diferentes modos de produção que "0 processo de trabalho capitalista deve sercompreendido como uma
dão conta de uma seqüênciahistórica "de eliminaçõessucessvas'(feu- utura de relaçõesnas quais os capitalistas têm a capacidadede
dalismo-capimlismo-estatismo-socialismo).Sob o risco de recair num dominar os trabalhadores." Como diz muito bem o próprio Wright,
determinismo histórico tristemente linear! "a questão é saber se esserepertório de novas complexidades enrique-
Eric Olin Wright reconhecehonestamente
as dificuldadesdessase- ce a teoria ou acrescenta confusão"
gunda solução.Por que dizer que um diplomado é explorador de traba-
lho menos ou não qualiâcadoe por que não dizer que ele próprio é Roemer define a exploração em termos puramente económicos. Já o seu
pjesmentemenosexplorado?Temos aqui o velho problema do "jus- conceito de classe é especificamente político. Ao caracterizar as relações
to salário" impossívelde achar, que definiria o grau zero da exploração de classecomo "a unidade das relaçõesde apropriação e de domina-
graçasà fraga eqüitallz/ade um tempo de trabalho social contra bens e ção", Wright afasta-se menos da teoria de Marx. Os qualificados não
serviços que representam um tempo de trabalho social equivalente. Não "dominam" os não qualificados, e uma camada relativamenteprivile-
surpreende que esseenigma das "classes médias" conduza a essavasta giada não constitui !Pso Áacfouma classediferente. Reciprocamente, "se
'zona cinzenta" sem exploradoresnem explorados. Não existe entre- a dominação é ignorada ou relativizada, como é o casoem certasaná-
tanto nenhum meio simplesde traçar essaslinhas de divisão dos lucros: lises de Roemer, o conceito de classe perde muito de sua capacidade
"Os diplomas são uma base relativamente ambígua para definir uma explicativa para o conflito social e a transformação histórica". 'Wright
relação de classe,pelo menos se temos a intenção de construir o concei- propõe portanto passar de uma crença primitiva no primado das classes
to de classe a partir da relação de exploração."iP A desigualdade de a uma abordagem aberta do papel causal das classes.zi
qualificação não se torna pertinente para a análise da relação de dasse O que se acha estrategicamente em jogo na controvérsia é duplo.
senão a partir do momento em que ela intervém diretamente no acesso
ao poder ou à propriedade. Se os quadros são explorados(enquanto zoParaa sociologiaweberiana, a empresaé mais fácil. Desdeque ascstratifica-
çõesse operem diretamente na relação com o mercado, o conceito de classe não
força de tmbalho) e exploradores(enquanto detentores de um capital de tem com efeito necessidadede estar associado a um modo de produção particu-
organização), eles deveriam ter um interesseobjetivo na eliminação da lar; tampouco se baseia numa polarização antagânica central e autoriza uma
fragmentação indefinida de grupos e de classes.
i9 Eric O. Wright, 7be Debate omClasses,op. cit. zi Eric O. Wright, Infenogafing Imeg alify, op cit., PP 71p247.

248 249
MARX. O INTEMPESTIVO 'P' A LUTA E A NECESSIDADE

1) Colocar sobre um mesmoplano diferentes modos não igualitá.


rios de apropriação semrelação reguladora central conduz, sem ne.
cessariamente acomodar-seà ordem estabelecida,a pluralizar as li.
nhas do conflito e a fragmentar a luta de classes.O anticapitalismo
dilui-se nos anticapitalismos. Ao renunciar aos programas unificado-
res e ao que seachaestrategicamente em jogo no poder, essaaborda-
gem erige em teoria uma prática das coalizões temáticas, dos grupos
de pressão, das alianças variáveis. Claro que é perfeitamente legítimo
conceber os amoressociais não como realidades dadas, mas como
"construtor". Não basta porém perguntar-se se as classes existem
ainda: é também precisodecidir se essaforma de conflitualidade de-
senvolve uma lógica de liberação s.uperiora outras formas, religiosas mista semque se saiba quem decide investir, de acordo com que
ou comunitárias, de confrontos. Para que tal escolha não dependa do prioridades e de acordo com que processo de trabalho.
puro voluntarismo ou do voto piedoso,é precisoexistir uma relação
entre o real e o construto; em outras palavras, é necessárioque a
unificação de conflitualidades plurais em torno de um conflito estru-
turante corresponda ao papel centralizador da regulação global mer- QUEM EXPLORAQUEW?
cantil e do poder político que a garanta. Do contrário não haverá
mais estratégiapolítica possívelna frente fragmentada das explora- Nos anoscinqilenta, a sociologia do trabalho de Alain Touraine pri-
ções e das revoltas em migalhas que elas geram, mas simplesmente um va egiava a consciência de grupo em detrimento da consciência de classe:
/obbying irisado, um após outro. "Â importância e a diversidade das relações que se estabelecementre
2).A outra conseqüênciaé que uma teoria geral da exploração os homensdurante o trabalho e fora do local de trabalho fazem com
baseada no acessoao mercado (e não na extorsão e na apropriação de que eles seconcebam mais facilmente como grupo particular concreto
valor excedente)fortalece o "socialismo de mercado". Roemer e Van do que como uma oração de uma categoria abstrata, definida em seu
Parijs, cada qual à sua maneira, exercitaram-se nisso. Roemer imagi- princípio por um tipo particular de situação e de relaçõessociaiscon-
nou uma dualidade monetária (entre uma moeda de consumo e uma
moeda de estoque), como se a distribuição pudesse comandar pratica- tegração social. Expressando o indivíduo suas reivindicações nao mais
mente a produção. Consciente da dificuldade, Van Parijs concede que como produtor mas "como consumidor", a noção de classetornava-
a distribuição possa também dizer respeito aos meios de produção, o se caduca SurgeMallet, para quem a classe operária nunca foi uma
que nos leva de volta pura e simplesmenteao ponto de partida. Em "comunidade sociológica", reprovava em Touraine confundir "a con-
"A Capitalist Road to Communism", Van Parijs, de modo quase con-
traditório, propõe um direito individual à renda universal que permi- u Philippe Van Parijs, "A Capítalist Roam to Communism"! Tbeofy amd Socjely,
ta a todos viver em condições moralmente aceitáveis. Na ausência de 1986. Vcr também em Acl#eJ Maré, "Lcs paradigmas de la démocratte', uns,
elo entre privação dos meios de produção e privação dos meios de PUF,1994.

250 251
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE
T
dição operária -- noção sociológica -- e o fato da existência autâno. 76% em 1968). No quadro de um desenvolvimento geral do salariado,
ma dessa classenas relaçõesde produção -- noção económica e po- os quadros superiores e médios e os empregados conhecem as maiores
lítica". Ele acentuava mais as mutações internas na classe operária taxas de crescimento, acompanhadas de mutações importantes no seio
(massificação dos operários especializados, expansão do assalariados dessasmesmascategorias.De 1968 a 1975, o número de operários
colarinho-branco) do que sua extinção. Essaspolêmicas recorrentes aumentaem 510.000 em número absoluto, o dos quadros superiores
correspondem a transformações sociais efetivas e a evoluções mais em464.000, o dos "quadros médios" em 759.000, o dos empregados
diretamente ideológicas (promoção do individualismo e apologia da em944.000. Essesdadosbrutos não permitem entretanto uma interpre'
concorrênciavão de par com uma desagregação
e um refluxo das caçãodireta em termos de classes:os contramestres são por exemplo
solidariedades de classe) que exigem que não nos afastemos da análise contados como operários e os técnicos como quadros médios. Em con-
dos movimentos sociais. trapartida, os mesmos dados permitem constatar uma progressão glo-
Se se quiser encontrar a qualquer preço uma definição de classes bal dos operários e empregados superior à dos quadros superiores e mé-
será preciso ir busca-la (e bem) mais em Lenin do que em Marx: dios. Sobre o conjunto da população atava, a parte dos operários
"Chamamos classes a z/asnosgrupos de come/zs que se distinguem pelo propriamente dita passa de 33% (em 1954) a 37,8% em 1968, em se-
lugar que ocupam num sistema historicamente definido de produção guida a 37,7% em 1975, quando os efetivos operários aumentaram
social, por sua relação (em geral fixada por leis) com os meios de perto de meio milhão durante esseperíodo.
Com um efetivo tota) de 3.100.000, a categoria dos empregados
produção, por seu papel na organização social do trabalho, pelos l
modos de obtenção e a importância da parte das riquezas sociais de de escritório aumenta mais rápido que a dos empregados do comér-
que eles dispõem."z3 Certamente a menos ruim, essa definição peda- cio. mas são contados entre eles numerososagentesdas empresas
gógica articula três critérios: públicas ou nacionalizadas, dos quais 77.000 postalistas e carteiros.
a) a posição para com os meiosde produção (na qual Lenin faz Os empregadosdo comércio contam 737.000 assalariados,com uma
intervir a definição jurídica da propriedade -- as /eis); maioria de mulheres. De acordo com a problemática de Lenin, a es-
b) a posição na divisão e na organizaçãodo trabalho; magadora maioria dessesempregados: a) não são proprietários de sua
ferramenta de trabalho; b) ocupam uma posição subalterna na divi-
c) a natureza (salarial ou não), mas também a importância (o
montante) da renda. sãodo trabalho, não exercendofunção de autoridade e efetuando--
O fato de tratar-se de "vastos grupos de homens" deveria além pelo menosum bom númerodeles-- um trabalho manual;c) têm
disso acabar logo com os exercícios sociológicos estéreis sobre os casos uma renda salarial não raro inferior à do operário qualificado. Por
limites ou os casos individuais. A dinâmica das relações de classes não menos que se renuncie à imagem simbólica e ideologicamente carre-
é um principio de classificação categorial. gada de uma classe identificada de acordo com as épocas com o retra-
O exercício que consiste em submeter os dados empíricos da esta- to falado do mineiro, do ferroviário ou do metalúrgico,elespertence-
tística a uma interpretação crítica em termos de classespermite experi- riam portanto em sua grande massa ao proletariado.
mentar sua pertinência conceptual. Segundo o censo de 1975 na França, Os "quadros médios" conhecem uma progressão rápida desde
cerca de 83% da população ativa são naquela data assalariados(contra 1954. de 6% nessadata a 14% em 1975 com 2,8 milhões de assalari-
ados. A rubrica estatísticasob a qual elesfiguram reagrupa quatro ca-
Infflalit/e, Moscou, Obras, t. XXIX, P. 425. tegorias fundamentais:os "professoresde primeiro grau e profissões

252 2S3
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

literárias", os técnicos que seopõem aos quadros administrativos médi- para 33,1%. Em números absolutos, essacategoria progride ainda de
os por seupapel quasesempreprodutivo e um saláriopróximo do sa. 0.5% entre 1975 e 1982, e sua taxa de crescimento estabelece-senuma
lário dos operários qualificados, os "intermediários médicos e sociais" média de l0,2% entre 1962 e 1982. Essaevolução média mascara uma
e en$m os "quadros administrativos médios" que preenchem uma fun- profunda disparidade entre os operários qualificados, cujo número con-
ção de enquadramento, ou seja, de direção e supervisão dos empregados tinua a aumentar (+ l0,2%), enquanto o dos operários especializados
na administração, nos bancos,no comércio(sua função de enquadra- recua (para - 11,6%). A taxa de crescimentoda categoria"emprega-
mento é aliás atestada por uma distância sensível de cerca de 20% entre dos" durante o setenato 1975-1982 é de 21% (95% a partir de 1962).
seu salário médio e o do conjunto da categoria "quadros médios"). Em números absolutos, eles são 4,6 milhões (contra 7,8 milhões de
A análise do censosócio-profissionalde 1975 permite portanto operários). Mas a ventilação sócio-profissional oculta os efeitos do de-
tirar as seguintes conclusões:
semprego:uma nítida perda de 700.000 empregadosindustriais e uma
1) A burguesia propriamente dita representa então cerca de 5% baixa efetiva do número de operários ativos. No outro pólo, a parte dos
da população aviva (industriais, grandes negociantes, uma oração dos quadros superiores e médios na população ativa passa de 8,7% em
exploradores agrícolas e das profissões liberais, a hierarquia clerical e 1954 para 21,5% em 1982. Contudo, eles não teriam como, de acordo
militar, a maior parte dos "quadros administrativos superiores"). com a interpretação do censo de 1975, constituir um conjunto de classe
2) A pequena burguesia tradicional (agricultores independentes. homogêneo sob a denominação abrangente de pequena burguesia. Uma
artesãos, pequenos comerciantes, profissionais liberais e artistas) re- parte dessa massa pertence com efeito às camadas superiores do prole-
presenta .ainda mais ou menos 15% da população ativa. tariado, uma outra à burguesia, o resto constituindo uma nova pequena
3) A "nova pequenaburguesia" representaentre 8 e 12% dessa burguesia ou "pequena burguesia de função", cuja expansão a partir de
população: dependendo de que aí se incluam, além de uma parte dos 1975 não tem nada de explosivo.
quadros administrativos superiorese médios, os jornalistas e os agen- Assiste-seportanto a uma erosão relativa do proletariado e a um
tes de publicidade, as profissões liberais que se tornaram assalariadas. declínio dos operários de indústria em favor da nova pequena burgue-
os docentes do curso superior e do segundo grau, os professores do sia, sem que ainda resulte daí uma mutação qualitativa. Em contrapar-
primeiro grau (o que continua sendo muito discutível). tida. as diferenciações internas no proletariado arranham as solidarie-
Em todos os casos,o proletariado (operários de indústria, empre- dades e obscurecem a consciência de classe. Elas são o resultado de uma
gados do comércio, bancos e seguros, do serviço público, e assalari- desconcentração das unidades de produção, de uma reorganização fle-
ados agrícolas) constitui os dois terços (de 65 a 70%) da população xível do trabalho, de uma individualização aumentada das relações
ativa (cujo recenseamento exclui as mulheresque trabalham no lar e sociais, acompanhadas de uma mobilidade social ascendentepara uma
a juventude escolarizada). parte dos operários qualificados. No nível da reprodução, a interrupção
O censo de 1982 registra os primeiros efeitos globais da crise. Mas do crescimentourbano(desde o censo de 1982, as cidadescom menos
a comparação com os precedentesé dificultada pelas modificações da de 20.000 habitantes têm um crescimento superior à média), a manu-
nomenclatura. Fica claro, porém, que a parte global do salariado na tençãoà parte da produção e da escolarizaçãoprolongada, a privatiza-
população aviva continua a crescer,atingindo 84,9'%ocontra 82,7% em ção do consumo e do lazer exercem um efeito dissolvente sobre a iden-
1975 e 71,8% em 1962. A proporção de operários industriais, que ti- t 6mdo de classe das novas gerações. Estamos assistindo ao fim. da
nha começado a recuar desde1975 (35,7% contra 35,9% em 1968), cai "cdtura de exclusão"? A taxa de sindicalização diminui espetacular-

2S4 25S
MARX. O INTEMPESTIVO T' A LUTA E A NECESSIDADE

POsocialmentenecessáriopara a reproduçãode sua própria força de


trabalho, mas uma parte da mais-valia devolvida pelos patrões em troca
dos bons e leais serviços proporcionados dentro da organização do tra-
balho. Chegavam assim a um cálculo do justo salário correspondente à
reprodução da força de trabalho. Esquecendo que o valor não pára de
escamotear-se
por trás da flutuação dos preços, elesavaliavam em x +
x/lO francos o "justo preço da força de trabalho" e acabavam logica-
mentepor considerar que os 40% dos assalariadosque ganham mais
beneficiavam-sede uma devolução de mais-valia e pertenciam a uma
nova pequena burguesia subdividida em funcionários de Estado, enge-
nheiros-técnicos e quadros do setor privado, uns ligados à hierarquia
estatal e os outros ao despotismo da empresa.
Isso era cientificamente discutível na medida em que supunha
legítima a quantificação em preço (salário) do valor médio da força
de trabalho e o cálculo individual da taxa de exploração.Em Q#í
traz/ai//etour qz4f?,Baudelot e Establet aperfeiçoaram sua teseintro-
duzindo o método do "trabalho equivalente", em outras palavras o
cálculo da quantidade de trabalho incorporada a um produto, um
mesmo valor monetário cristalizando uma quantidade de trabalho
diferente de acordo com a produtividade dos ramos. Identificavam
assimtrês grandesconsumidores: as famílias, as empresase o Estado.
As famílias consomem bens de consumo e acumulam imobiliário. As
empresas
consomem
matérias-primas
e acumulamcapital.O Estado
f.l consome matérias-primas e acumulam capital.
Na estrutura de consumo das famílias, as despesascom alimenta-
ção das diferentes categorias sociais (exceção feita no caso das profis-
sões liberais) são equivalentes. De modo mais geral, se as necessidades
sociais fossem as mesmas, os orçamentos seriam comparáveis. Ora, a
estrutura de consumo varia, e as rubricas orçamentárias mais diver-
gentes são as da cultura, das férias, do equipamento doméstico e da
moradia.u Existiriam portanto linhas divisórias entre modos de vida,

24 Christian Baudclot, Roger Establet, P.-0


Paris, Maspero, 1979. Flavigny, Quj frat/af//e po#r quis', 25Christian Baudelot, Reger Establet, P.-0. Flavigny, Q#i traz/ai/lepo#r q#ii,
OP.cit., P. 76.

256
257
l
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

: ! :i :%$:ABRI
função do nível de recursos(a cultura não é realm.nte uma
orçamentária senão nas classesricas), e a divisão enl
lectual e braçal (os braçaispr
procurando mais
arbitragem
trans médios ricos; édias assalariadas (quadros e empregados); . ,
c) proletários (operários especializados, operários qualificados,
assalariados agrícolas, inativos pobres); . . .
"população atomizada de famílias". d) agricultores independentes(que se aproxima de c pelo consu'
moedeapelopatrimânio). . . . ,..
Deixando de lado a teoria crítica das classespara lançar mão da
sociologia descritiva do consumo, acaba-sepor embaraçar as linhas
de força em favor de um mosaico dos grupos divisível ao infinito.:8

0 PROLETÁRIO NÃO É MAIS VERMELHO?

EmAdeusao proletariado, André Gorz atribui a "crise do marxismo"


não a uma pane ideológica qualquer, mas às mutaçõesda classeope'
faria: seria em primeiro lugar uma crise do próprio movimento ope'
orçamentos, tantas relações de produção, tantas classes sociais, isto é. .ário. Entre quedas da bolsa e guerras, o capitalismo sobrevive, não
tantos grupos que têm necessidadesdefinidas e nítidos interesses sem danos, mas sobrevive. Por quê? Porque o desenvolvimento das
materiais. Ou bem se conservaa velha distinção entre proprietário forças produtivas, sujeito a suaspróprias normas e necessidades, se
revelaria cada vez mais incompatível com a transformação socialista

::-.«'.:=:-==% l :ai:mizH$Ê
givel nos orçamentos como no trabalho, milhares de pessoasque não
são burguesas nem proletárias."2õ ' '" 'i
27Ibid.. p. 135. .
zl É divertido notar que Emmanuel Todd causou recentementesensaçãoao

Onde' passa a linha divisória entre o necessário (ou simples reno-


vação da força de trabalho) e o supérfluo?, perguntam-se nossos au-
tores. No quadro recapitulativo que estabeleceram,todo mundo, com

2üCcit.stlan Baudelot, Rogar Establet, P.-0. Flavigny, Qui rrauall/e powr q#l?, de classe.

258 259
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

cujas basesseriam supostamentelançadas por ele. A contradição en-


tre a sorte cotidiana de um proletariado estropiado pelo trabalho e
sua vocação emancipadora se resolveria numa constatação de impo-
tencla u capitalismo teria acabadopor produzir uma "classeoperá- dessedispersa e muda, assim também a.burocracia apresenta-secomo
a encarnação de Prometeu desacorrentado. Essas delegações e suDstlwi-
çõespoderiam resultar de um desenvolvimento de um capitalismo ainda
:muito débil para permitir que a classeoperária manifeste suas plenas
sentam ou prefiguram a dissolução de todas as classes,inclusive a potencialidades.Infelizmente, constata Gorz, contrariamente às espe-
própria classe operária".ZP
rançasinvestidas,ainda ontem, na "nova classeoperária", o progresso
Retorno à contradição: como de nada tornar-se tudo? técnico não conduz à formação de um proletariado massivamentequa-
Indo ao termo desse nada, responde Gorz. li6cado e cultivado, mas a novas diferenciaçõese polarizaçõesque re-
Para isso é preciso ter coragem de dar adeus ao grande tema da constituem a massados não qualificados, dos excluídos e de todo o tipo
epopéia revolucionária segundo SãoMarx. O conceito de classenão dedesfavorecidos:o aumento depoder dos operários profissionais "não
teria nascido nele a partir da experiência militante, mas de um impe- terá sido mais que um parêntese". Se o peso do proletariado na socie-
rativo histórico abstrato: "É a consciência de sua missão de classe que dade cresceu de acordo com as previsões de Marx, ele não livrou os
permite discernir o ser dos proletários em sua verdade." Pouco im- proletários de sua impotência como indivíduos e como grupo: "0 tm-
porta o que acham ou crêem os proletários de carne e osso. A única balhador coletivo permaneceuexterior aos proletários." Finalmente,
coisa que conta é o seu destino ontológico: torna-t© o que és! Em observaGorz, "a teoria marxiana nunca deixou realmenteclaro quem
resumo, "o ser do proletário é transcendenteaos proletários".ao Essa realiza a apropriação coletiva, em que esta consiste, quem exerce e onde
hipóstasefilosófica resultaria de uma mistura duvidosa de cristianis- se acha o poder emancipados conquistado pela classeoperária; que
mo, hegelianismoe cientificismo.Ela teria permitido à vanguarda mediaçõespolíticas podem garantir à cooperação social o seu caráter
proclamada bancar os intermediários entre o ser e o dever ser da clas- voluntário, qual a relação dos trabalhadores individuais com o traba-
se. Não estando ninguém em condição de responder às questões que lhador coletivo, dos proletários com o proletário". Disso resultou uma
a dividem (e sobretudo não esseproletariado real, alienado e mutila- confusão entre "a institucionalização estatal do trabalhador coletivo" e
do pelo trabalho), a última palavra ficou reservadaa uma História "a apropriação coletiva
)9 dos meios de produção entre as mãos dos pro-
ventríloqua, investida do poder de condenarou satisfazer. dutores associados
Para Marx, o trabalho acha-seno âmago do processo de emancipa- Dessas interrogações legítimas Gorz passa sem precauções para a
ção. O trabalho geral abstrato arranca o artesão ou o pequeno produtor crítica de um militantismo imaginário. O espírito militante residiria,
independentede sua individualidade limitada e projeta-os no universal segundoele, na crença propriamente religiosa da grande virada do
nada em tudo, exigindo perder-se como indivíduo para reencontrar-
29André Gorzs .Adia au pro/éíarlal, Paras,Galilée, 1980, p. 29. se como classe:"A classecomo unidade é o sujeito imaginário que
30Eric O. Wright considera da mesmamaneira que a posição constitutiva da
classe operária inclui no marxismo clássico um conjunto de interessesmateriais, opera, mas essesujeito é exterior e transcendente a cada indivíduo e
de experiências vividas comuns, de capacidadesde lutas coletivas, supostasnatu- a todos os proletários reais." Que a classetenha setornado essefeti-
ralmente convergentes. Ora, diz elc, essestrês favores já não coincidem che autómato, em cujo nome os burocratas reclamam uma piedosa

260 261
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE
l
consolação, é um fato. Atribuí-lo a Marx, que sempre denunciou a única resposta concebível, ela resulta da própria evolução do capitalis-
sociedade-pessoa, a história-pessoa e todas as personificações e encar-
nações míticas, em outras palavras todas as transcendênciasonde se
aniquila a irredutível interindividualidade, não pode ser uma coisa
séria. Arrebatado pelo entusiasmo, Gorz acaba por denunciar no po(ier rapidamenteliberada". Por não poder demonstrar sua capacidadecul-
do proletariado "o inversosimétricodo capital: o burguêsalienado tural prática, Marx teria dotado o proletariado de uma capacidade
pelo .capital e o proletário pelo proletariado". O confisco do poder ontológica imaginária para negar sua opressão.
pela burocracia constitui entretanto um golpe de força social e hinó.
rico atestado pelos milhões de vítimas da contra-revolução staliniana. Em À4élam07pboses d# l at/aiJ, Gorz volta-se para as mutações do pro-
É toda a ambiguidadede Áde s ao pro/danado. O livro levanta letariado e sua prática social. A segmentação e a desintegração da clas-
problemas reais quanto às capacidadesemancipadoras da classeope- se, a precariedade, a desqualificação e a insegurança do emprego supe-
rária, nas condições concretas de sua alienação. Mas mistura Constan- .am a reprofissionalização: "No próprio momento em que uma fraçao
fazer o curso
temente essainterrogação com uma superinterpretação ideológica no privilegiada da classe operária parece.ter condições de
mínimo unilateral. Já não se sabemuito bem o que, das condições superior, principalmente na área técnica, conquistar a autonomia no
sociais da exploração e da genealogiado conceito, mais contribuiu trabalho e enriquecer permanentementeas comp'tências, tudo coisas
para a expansão das ditaduras em nome do proletariado. que constituíam o ideal das correntes a favor da autogestão no seio do
"0 proletário mesmo", diz Gorz, "é puro fornecedor de trabalho movimento operário, as condições em que esseideal parece chamado a
geral abstrato. Tudo que ele consome é comprado, tudo que ele pro- realizar-se mudam-lhe radicalmente o sentido. Não é a classeoperária
duz é vendido. A ausência de elo visível entre consumo e produção quem alcança possibilidades de auto-organização e .poderestécnicos
tem por consequêncianecessáriaa indiferença ao trabalho concreto. crescentes;é um pequeno núcleo de trabalhadores privilegiados que se
E o trabalhador torna-se espectadorde um trabalho que ele não efe- acha integrado em empresas de tipo novo ao preço da marginalização e
tua mais. A conclusão profética do livro l do (hPila/ extingue-se nesse da precariedade de uma massade pessoas."s' Dopada pela crise, a con-
torpor: "A negaçãoda negaçãodo trabalhador pelo capital não tem corrência causa grande desordem entre os trabalhadores e desloca as
mais lugar." O controversocapítulo não promete todavia a emanci- solidariedades. A perda de substância material do trabalho priva-os da
pação na esfera única da produção. Romper o círculo de ferro do reapropriação prometida de sua criatividade confiscada.
capitalismo depende,diz Marx, não da diabéticaformal da opressão "Em suma, o trabalho mudou, os trabalhadores também."
e da liberação pelo trabalho, mas da irrupção política. Em três décadas,observa Gorz, a duração individual anual do tra-
A crítica cedeentãolugar à estratégia.Marx a Lenin. balho de horário integral teve uma baixa de 23%. O trabalho já não
Gorz chega a perceber essa mudança de terreno. Ele ouve bem esse seria a fonte principal de identidade social e do fato de pertencer a uma
apelo do político. Mas só o concebe nas formas estatais conhecidas: "0 classe: «Saímos da civilização do trabalho, mas dali saímos para trás e
projeto de um poder popular ou socialistaconfunde-secom um projeto entramos recuando em uma civilização do tempo liberada." Desde en-
político em que o Estadoé tudo, a sociedadenada." É bem assim,sob tão, a conclusão se impõe: "Não é mais possível esperar uma transfor-
sua dupla modalidade, staliniana e social-democrata, a resposta do
movimento operário majoritário ao longo do séculoXX. E se não é a li André Gorz, Àlélamorpboses du traí/aiZ, Paras, Galiléc, 19891 P 94

262 263
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

mação socialista da sociedade pela urgência das necessidades engendra- desprovidosde qualquer empresainteligente sobre a matéria e sua
das pelo trabalho nem, por conseguinte, só pela ação da classe operária uansformação. Ele tira daí uma conclusão falsamente inovadora, se-
A oposição de classe entre trabalho e capital persiste, mas está recoberta gundo a qual a contestaçãoda exploração capitalista se desdobrada
por oposições que não dependem da análise de classe tradicional, não doravantefora da empresa,como se até o presenteela tivesseficado
por p?lco os lugares de trabalho, nem as relações de exploração por confinada ali. Sea relação de exploração enraiza-sena produção, toda
razão. Diferentemente dos operários profissionais de ontem, os assada. a lógica do Cáfila/ mostra que tal relação não se reduz a isso. Ela estru-
fiados modernos não derivam a identificação com seu ofício ou função tura todo o campo da reprodução. O movimento operário não se cons-
da consciênciade seupoder sobre a produção e de seu direito a reivin. tituiu inicialmente como um movimento interno à empresa(ainda que
ditar o poder sobre a sociedade É não raro a partir de experiências que não fosse porque ele estava juridicamente excluído da empresade direi-
elesvivem fora do trabalho ou da empresa-- como locatários, habitan- to divino), mas como um movimento social,cívico, urbano, cultural.
tes de uma comunidade, usuários,pais, educadores,alunos, desempre- Seuconfinamento no lugar de trabalho e a restrição da prática sindical
gados -- que são levados a questionar o capitalismo."3z à negociaçãoda força de trabalho resultam de uma longa evolução
Desde o final dos anos setenta, os efetivos da classe operária in- conflitual, da instauraçãodo Estadoprovidência,da dissociaçãocres-
dustrial conhecemum declínio absoluto. Mas esserecuo aparececomo cente da representação político-eleitoral e da institucionalização dos
uma erosãoglobal do proletariado devido a uma ilusão de ótica (não direitos sindicais na empresa. A crise do Estado-nação, a perda de legi-
isenta de ranços obreiristas) que reduz a classeoperária aos núcleos timidade do sistemade representaçãocontribuem tanto quanto as me-
ativos e simbólicos de uma determinada época. O proletariado não tamorfoses da relação salarial para enfraquecer as práticas sindicais e a
tem nem a mesmacomposição nem a mesmaimagem em 1848 (além empurrara eclosãoda conflitualidadepara o plano territorial(urbano),
dos tecelõessilesianos,os proletários evocadospelo À4a #êsfo comu- cívico (imigração), ecológico ou cultural.
nísla são sobretudo artesãose operários de ofício das pequenasofici- Insistindo sobre a perda de subversividade do proletariado, An-
nas parisienses),s3sob a Comuna (depois do zoom e da industrializa- dré Gorz retoma por sua conta certos argumentos que ele combatia
ção do segundo império), em junho de 1936 ou em maio de 1968. Ele no começo dos anos sessenta.Na época, as potencialidades críticas da
é alternadamente representadopelo operário de ofício, o mineiro e o classeestavamaniquiladas aos olhos de muitos sociólogos pela pros-
ferroviário (de Zola a Nizan), o metalúrgico (Renoir, Vaillant. Vis- peridade relativa, a integração social e a fascinação pelas "coisas"
conti) etc. E a história não fica por aí. Mas os sinistros da siderurgia Elas o seriam doravante pela despossessãoe a exclusão. Uma discus-
ou da construção naval não teriam como implicar o desaparecimento são sobre os obstáculos ao desenvolvimento dos elos de solidariedade
do proletariado. Anunciam antes novas mutações. e de uma consciência coletiva crítica é sem dúvida necessária.Mas é
O enfraquecimento da identificação do trabalhador com o trabalho preciso acautelar-se contra as extrapolações lineares muito empenha-
verdadeiro problema. Mas Gorz corre o risco de uma gene- dasem desfazer-seda eventualidadepolítica e de seusimprevistos.
ralização abusiva a partir de certos trabalhos de serviço ou de segurança
Um ano antes do maio de 68 a Fiança supostamente"entediava-se"
Gorz recusao postuladosegundoo qual a contradiçãoentreo
sz Andté Gota, Capitalismo. écologie. socfa/fome, Paras, Galiléc, 1991, P. 107.
poder emancipadosdo proletariado e sua sujeição mutiladora ao tra-
33Ver a sociologia da Liga dos comunistas em Michael Lõwy, Z.a Tbéorfe de balho seria automaticamente superada pela polarização social cres-
la t&olution cl7ez le jwHe Man, Paras, Masperop 1970. cente, desenvolvimento numérico, concentração e elevação da bons

264 26S
MARX. O INTEMPESTIVO '?' A LUTA E A NECESSIDADE

ciência. De acordo com essaperspectiva otimista, o controle sobre a fetiche vivo, dita sua lei ao conjunto da sociedade e entretém insepara'
produção e a finalidade reconquis.fadado trabalho dcvolveriam a si vehente a concorrência entre proprietários e entre assalariados lança-
mesmo o trabalhador alienado. As divisões provocadas e entretecidas dos ao mercado de trabalho. Reduzir diferenças sociais às vezes antagó-
pela concorrência nas fileiras da classepoderiam contrariar essaten- nicas a simples "desigualdades de níveis de consciência" evita a
dência sem nem por isso aboli-la. dificuldade. Mandei demonstra assim ter confiança no temposgrande
Emest Mandei resolve a dificuldade invocando os destinos assimétri- reparador e nivelador diante do eterno, para aplainar essasdesigualda-
cos da classe exploradora e da classeexplorada: "Malgrado todas as des,impondo uma solidariedade de acordo com a antologia postulada
segmentações inerentes à classe trabalhadora -- todos os fenómenos re- do proletariado.H
correntesde divisão segundolinhas de função, de nação,de sexo, de Gorz questionaos fundamentos dessamarcha triunfante do sujeito
geração etc. --, não há obstáculos estruturais intrínsecos à solidariedade histórico. O taylorismo, a divisão e a organização científica do trabalho
de classe geral entre uabalhadores sob o capitalismo. Há somente níveis teriam irremediavelmentesuprimido o trabalhador conscientede sua l

de consciência diferentes, que tornam mais ou menos difícil, mais ou soberaniaprática. A idéia da classee dos produtores associadoscomo
menos disparatada, no espaçoe no tempo, a conquista dessasolidarieda- sujeitos não era segundo ele senão uma projeção da consciência especi'
de geral de classe.Não sepode dizer a mesma coisa da solidariedade de fica dos operários de ofícios, dotados de uma cultura, de uma ética e de
classeburguesa. Nos períodos de prosperidade, quando suas lutas têm uma tradição. A classeoperária que então pretendia o poder não era
por objeto essencial partes mais ou menos grandes de uma massa crescen- uma massade miseráveis,desenraizadae ignorante, mas uma camada
te de lucro, a solidariedade de classeafirma-se facilmente entre capitalis- virtualmente hegemónicana sociedade.O conselhismoteria sido a ex-
tas. Mas em período de crise a concorrênciaassumeformas muito mais pressão avançada dessa classe operária que reivindica a mina para os
selvagensna medida em que não se trata mais para cada capitalista indi- mineiros e a usina para os operários, confiante em suaspróprias capa'
vidual de obter mais ou menoslucro, e sim de sobreviverou não como cidades de gerir tanto a produção quanto a sociedade. Os lugares de
capitalista. [-.] Fica bastante c]aro que aquilo que acabo de dizer aplica- produção eram, consequentemente,percebidos como os lugares privile-
se à concorrência intercapitalista, não à luta de classeentre Capital e giados do novo poder a edificar, a usina não sendomais que uma sim-
Trabalho como tal, que ao contrário vê afirmar-se a solidariedade da ples unidade económica dissociada dos centros de decisão.
classedominante à medida que a crise se intensifica. Mas o que importa Inversamente,na urina gigante, a própria idéia do conselhoope-
sublinhar é a assimetriafundamental da solidariedade de classeentre. res- rário ter-se-ia tornado uma espéciede anacronismo.A hierarquia
pectivamente,a classeproprietária do capital e a classeassalariada.[-.] patronal substituiria a hierarquia operária. O único contrapoder ima-
Pois a concorrência entre assalariados é imposta do exterior e não ineren- ginável (de controle ou de veto) seria reduzido à discussãode situa-
te à própria naturezada classe.Ao contrário, instintiva e normalmente. ções subalternas: de onde a absorção das veleidades de auto-organiza-
os assalariados lutam pela cooperação e a solidariedade coletiva." ção e de autogestão por estruturas sindicais institucionalizadas e
Se, com efeito, a tendência manifestar-se de maneira recorrente. A subordinadas. A incontestável impossibilidade material do poder ope-
contratendência à fragmentação não é menos constante. A assimetria rário daria lugar a um poder sindical integrado, simples réplica social
invocada consideranatural a concorrênciaentre capitalistas e artificial da delegaçãoparlamentar. A burocracia se tornaria a figura central
("imposta do exterior") a concorrência entre assalariados. É fazer pou-
co-caso da coerência do modo de produção em que o capital, como H Ernest Mandei, EI capital, cfen alias de comtrouersias,op. cit., PP 228-229

266 267
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

de uma sociedade, instrumento e engrenagem privilegiados de um poder nas atividades autónomas não pressupõe portanto uma transforma-
sem sujeito. A era dos operários especializadose do trabalho em mi- ção prévia do traba]ho. [-.] A antiga noção de trabalho não tem mais
galhas soaria o dobre de finados da cultura operária e do humanismo curso, o sujeito distancia-se não apenas em relação ao resultado de
do trabalho, que foram a grandeutopia do movimentosocialistae seutrabalho, mas tambémem relação ao próprio trabalho."3'
sindicalista revolucionário do começodo séculoXX. O trabalho per- Essa franca ruptura com a problemática de Marx desemboca na
deria seu sentido de atividade criadora, moldando a matéria e domi- busca de novos sujeitos liberadores e de novas estratégias. Não se trata
nando a natureza, adquirido durante o séculoXIX. Desmaterializado. mais tanto de liberar-se no trabalho quanto de liberar-se do trabalho
ele não constituiria mais "a atividade pela qual o ser humano realiza começandopor reconquistar a esfera do tempo livre. Uma vez que "o
o seu ser graças ao poder exercido sobre a matéria". terreno do conflito deslocou-seprogressivamente dos lugares de tra-
balho para frentes mais amplas e mais móveis da vida co]etiva [-.] a
Daí a necessidade de "mudar de utopia".3s questão do sujeito capaz de realizar a transformação socialista da
De renunciar aos pressupostosfundamentais da "utopia industri- sociedadenão pode, por conseguinte, ser resolvida de acordo com as
alista" segundo a qual os rigores e as exigências sociais da máquina categorias usuais da análise de classe". Esse novo sujeito (pois a ini-
poderiam ser suprimidos, tornando-se a atividade pessoal autónoma ciativa não escapaà velha problemática do sujeito) tem contudo difi-
e o trabalho social uma coisa só. Herdeira prometéica das Luzes,a culdadepara sair do limbo. Ele é evocadocomo "um movimento social
utopia marxiana teria sido "a forma acabadada racionalização:tri- multidimensional que ]á não é possível definir em termos de antago-
unfo total da Razão e triunfo da Razão total; domínio científico sobre nismos de c]asse[...]; essemovimento é no essencialuma luta por
a Natureza e autoridade científica reflexiva sobre o processo desse direitos coletivos e individuais à autodeterminação".38
domínio". Doravante, "a dualização da sociedade será bloqueada não Do ponto de vista de suasconseqüênciasestratégicas,a inovação
pela impossível utopia de um trabalho apaixonante e de tempo inte- radical reconduz, por veredas novas, a velhas canções. Incapaz de opor-
gral para todas e todos, mas por fórmulas de redistribuição do traba- seao Estado e dominar o trabalho, essesujeito polimorfo e rizomático
lho que Ihe reduzem a duração para todo mundo, sem nem por isso é chamadoa elaborar no tempo livre sua contracultura para a vocação
desqualificá-lo nem parcela-lo".3óGorz tira daí a idéia da caducidade hegemónica. Em Adeus ao proletariado, Gorz afirma assim que "a idéia
da esperança de liberação pelo e dentro do trabalho. Se o trabalho de de tomada do poder precisa ser fundamentalmente revista: o poder não
produção acha-se a partir de agora afastado da experiência sensível e pode ser tomado senão por uma classe já dominante nos fatos". Tal é
reduzido a uma minoria declinante, "quem pode portanto ainda trans- com efeito o enigma estratégico da revolução proletária. Enquanto para
formar o trabalho numa pofésls expansiva? Com certeza não a imensa a burguesiaa conquista do poder económico e cultural precedea con-
maioria das classesassalariadas".Não haveria saída do círculo vici- quista do poder político, para o proletariado a conquista do poder
oso senão sob a condição de renunciar a conceber o trabalho como o político deveria iniciar a transformação social e cultural.
fator essencial da socialização e de considera-lo um simples fator entre LeÍfmotiu obsessivo:como de nada tornar-sepelo menosalguma
coisa?
tantos outros. A conclusão é óbvia: "A aspiração à expansão pessoal

3sAndré Gorz, Méfamorpboses d traz/ail, OP cit., P. 22. 37André Gorz, CapÍfalfsme, écologie, sacia/isme, op cit., pp. 113-123.
x Ibid., p. 95. 38André Gorz, Capela/isme,éc.o/ogle,sacia/isme,op. cit., pp. 139 e 163

268 269
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

Nos anossessenta,Lucien Goldmann ofereciacomo resposta"o Em 1980, antes que a crise tivesseproduzido seusefeitos sociais e
reformismo revolucionário" de inspiração austro-marxista. Ainda morais, Gorz podia ainda conservaras ilusõesdo período anterior. Um
ontem insuperável em virtude da situação minoritária do proletária. decêniomais tarde já não é possível acreditar nas virtudes liberadoras
do, a contradição seresolveriapelo próprio desenvolvimentohistóri. dessa exclusão forçada que faria dos sem-classe ou da ndercZass os
co. Um proletariado socialmentemaioritário e cada vez mais cultiva. novos campeõesde um mundo melhor. Sob pretexto de abraçar a causa
do poderia estender progressivamente seuscontrapodcres autogestores dos mais desprovidos, essa ideologia do não-trabalho, ancorada no
e assentar sua hegemonia antes da conquista do poder político propri- primado da soberaniaindividual, é antes a roupa nova de uma utopia
amentedito. A maioria política juntando-seà maioria social, esteúltimo das classesmédias desamparadas(reatando "com o pensamento de uma
ato podia ser pacificamente eleitoral. Os últimos trinta anos pratica- burguesiarevolucionária"), para as quais a "verdadeira vida" começa-
mente não confirmaram tal otimismo. A homogeneização social e a ria fora do trabalho. Gorz chegouaté a acusaros movimentosdas
autonomia cultural anunciadas pelos anos prósperos do pós-guerra mulherespor confortar a racionalidade capitalista dando-sepor objeti-
não resistiram aos efeitos da crise. Como imaginar a liberação no lazer vo "liberar a mulher dasatividades semmeta económica"!40O objetivo
quando o trabalho continua alienado e alienante? Como desenvolver verdadeiro não seria mais liberar a mulher das atividades domésticas
uma cultura coletiva e criadora quando a própria esfera cultural acha- não mercantis, masestenderpara além do lar a racionalidade não eco-
se cada vez mais submetida à produção mercantil? Como subtrair-se nómica dessasatividades. Ignorando soberbamente que essasatividades
à dominação do Estado quando a ideologia dominante se impõe prin- domésticas,elas próprias alienadas, são o avessoe o complemento do
cipalmente através do universo fantasmático da produção mercantil trabalho assalariadoalienado, uma tal proposta adianta-seàs proposi-
generalizada? Se a questão das capacidades emancipadoras do prole- ções sobre o emprego de proximidade e os novos serviços personaliza-
tariado é no mínimo anual,como acreditar naquelasda "não-classe» dos, votados a tornarem-seas muletas da precariedade.
dos deserdados e dos excluídos?
Pretender que essenovo proletariado não industrial "não encon- De um outro lado, e bem antes do desmembramento das ditadui:as
tra mais no trabalho social a fonte de seu poder possível" é emprestar burocráticas, Gorz chegou a mencionar o fato de que o indivíduo não
à marginalidade virtudes que ela não possui. Depois do cerco das teria como coincidir totalmente com o seu ser social. Supor sua exis-
cidades pelos campos, o da produção pelo mundo flutuante da preca- tência "integralmente" socializável abala as engrenagens.repressivas
riedade? Definir essenovo proletariado como uma "não-força" devo- da "moral socialista" como paixão universal da ordem: "É nessecon-
tada a conquistar não "o poder", corruptor por natureza,mas"espa- texto dos Estadostotalitários que a consciênciaindividual sedescobre
ços crescentes de auonomia" é fazer de impotência virtude e buscar a clandestinamentecomo o único fundamento possívelde uma moral:
superaçãode um produtivismo (certamentecriticável) numa inquie- a moral começa sempre por uma rebelião [-.] uma revolta contra a
tante "subjetividade absoluta". "SÓ a não-classedos não-produtores moral objetiva."4] A solução não consiste entretanto em arranjar uma
é capaz desseato fundador", escreve Gorz, "pois somente ela encarna coabitação pacífica entre uma sociedade autónoma e um Estado into-
ao mesmo tempo o para-além do produtivismo, a rejeição da ética da cável, entre uma esferaliberada do tempo livre e uma esfera alienada
acumulação e a dissolução de todas as classes."3P

õoIbid., p. 128.
39André Gota, Adie x au pro/élarfai, op. cit. 4i André Gorz, 4dieux a# proléiarlal, OP.cit., P. 139

270 271
MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

do trabalho, cuja impossibilidadefoi demonstradapor toda a expe- sidade,ela contenta-seem reclamar uma necessidade"nitidamente de-
riência histórica através de desfechos não raro sangrentos. Ela reside limitada e codificada". Depois de termos sido altivamente convidados a
antes na recusa de qualquer assimilação artificialmente decretada entre mudar de utopia, eis que somos levados a uma utopia morna (prosaica-
sociedade e Estado, indivíduo e classe. mentejurídica e estatal), uma utopia em farrapos para tempos de crise,
Marx e Lenin falavam de deterioração ou de extinção, não de refúgio de uma nova pequena burguesia assalariada e consumidora,
abolição do Estado. Essa deterioração só é concebível como processo. colocada entre o martelo burocrático e a bigorna liberal.
o tempo que o nada se torne (seisso aconteceralgum dia) efetivamen-
te tudo. Enquanto subsistissema penúria relativa e a divisão do tra- Gorz censura Marx por ter edificado sua teoria sobre a areia de uma
balho, o Estado voltaria inevitavelmente pela janela. Sua deterioração concepção P/osóPca do proletariado sem relação sólida com sua rea-
efetiva não teria como ser decretada. Ela implica uma forma de dua- lidade. A crítica procede de algum modo. Buscando superar a filoso-
lidade de poder que prolonga o evento revolucionário por um proces- fia alemã, impotente para transformar o real, o jovem Marx procurou
so de extinção-edificação, em que a sociedadecontrolada o Estado e inicialmentea soluçãonuma aliança especulativaentre filosofia e
se apropriada progressivamente das funções que não têm mais que ser proletariado, entre "todos os homens que pensame todos os que
delegadas. Uma tal abordagem convida a pensar a arquitetura institu- sofrem", entre "uma humanidade sofredora que pensa" e "uma hu-
cional do poder e a autonomia relativa da esferado direito, em lugar manidade pensante que sofre".43 O proletariado é assim uma classe
de supor que uma e outra decorrem naturalmente da força que (natu- em formação que "possui um caráter universal" (uma "classeda so-
ralmente pela "ditadura do proletariado") faria lei. ciedade burguesa" que não é "nenhuma classe da sociedade burgue-
Em vez de seguir por essavia, Gorz registraa impossibilidadede sa"), que é vítima da injustiça pura e simples e não de uma injustiça
abolir a necessidade.A extensãodo tempo livre coexistiria assim com particular, que traz em si a dissolução da sociedade ao mesmo tempo
um trabalho forçado e alienado que se precisaria continuar a adquirir. que a reconquista total do homem. Trata-se bem, como se vê, de uma
A esferada necessidadeincluiria as atividadesrequeridaspara a produ- apresentaçãofilosófica anterior à "crítica da economiapolítica". No
ção do necessáriosocial. De onde a função insuperável do político: ano seguinte, a revolta dos tecelões silesianos mostrou-se novamente
"Disjunção da esfera da necessidade e do espaço da autonomia: objeti- a Marx como a manifestaçãomaterial da essênciado proletariado.
vação das necessidadesdo funcionamento comunitário em leis, proibi- Em seguidaàs investigaçõesde Engelssobre o proletariado real
ções, obrigações, em suma, a existência de um direito distinto do uso, de (as classes trabalhadoras na Inglaterra), a crítica da economia política
um Estado distinto da sociedade, são a própria condição em que pode elabora a figura concreta do proletariado (enquanto mercadoria força
existir uma esfera onde reinam a autonomia das pessoas e a liberdade de de trabalho) em sua relação combinada com o capital. Em lugar de
sua associação."'zAssim colocada, a disjunção reivindicada toma sim- refazer metodicamenteessecaminho, ainda que para deleafastar-se,
plesmente o contrapé da unidade fantasmaticamente restaurada do Gorz pega infelizmente um atalho. Chama em socorro "a não-classe
público e do privado. Fora de toda a dinâmica histórica, ela acomoda dos não-produtores" cuja missão, como negação da negação, junta-se
uma paz armada entre a heteronomia do Estado e a autonomia da so- à do proletariado "filosófico" do jovem Marx! Quem, melhor do que
ciedade civil. Resignada a suportar a antinomia entre liberdade e neces-
+3Marx, Carta a Amold Ruge, maio de 1843. Ver a essepropósito GeorgesLabica,
4zIbid., p. 165. Le Sfaf t marxisfede /a pbi/osopbie,Paris,PUF, 1976.

272 273
MARX. O l NTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

essesexcluídos despossuídosde tudo, inclusive de seu próprio traba- mais produtiva que dez jornadas sucessivas de dez horas; a força produ-
lho, poderia representarhoje uma classeem formação, de caráter tiva combinada é superior à adição de forças individuais. A barra da
universal, vítima de uma injustiça pura e simples, e portadora da re. relação(pl/v) representaa linha de frente que se move entre trabalho
conquista do homempela dissoluçãoda sociedade?Convocado para necessário e trabalho excedente em torno da qual se estrutura o conflito.
dinamitar a sociedadeprogramada e unidimensional, essenovo sujei- Essarelação de exploração pressupõe o processo de reprodução global,
to é antes o sintoma de uma regressão mítica em relação à paciente logo a luta de classes.Fora da determinação global do tempo de traba-
determinação das classe!.através da reprodução do capital. lho socialmentenecessárioà reprodução da força de trabalho, a idéia de
A lelaçãQ de expl9raçaM acha-se no âmago da relação--de...dgsséJ exploração indiyduaLá- teoriçqmente4nconsistente.
Para Marx, os conceitos de trabalho necessário e de trabalho excedente Desdel4";deo/ogfa a/emã,($4arx denuncia a reçluçãg.dos indiví-
são retroativamente determinadospelo metabolismo da concorrência e duos à fileiçã.ãe exemplareglçEjãjgJe.bm4. c14sseformal e a represen-
do processoglobal. Os autores analíticos ílzdlt//d a//zam a exp/orai:ão tação re oslilósofos. dç classes".queexistem antes dos indivíduos
relacionando-a com o cofzswmode cada qua/... Para o primeiro, ser que as compõem". Nos Grundrísse, ele rejeita simetricamente as ro-
explorado significa =!ral)olhar um tempo-maior-do-ijiiê:8M&sári(i binsonadas da economia clássicae a redução das classesa uma soma
para produzir os bens que segomsomçm". Para Andrês de Francisco. os de relaçõesindividuais: "0 indivíduo que produz como caçador ou
indivíduos entram em [elãjões de cjgÀse para maximizar seu interesse pescador isolado, que constitui o ponto de partida de Smith e de Ri-
particular: "Falaremosdãi'tlassã'como de un!.conjunto.definido de cardo, pertenceao universo imaginário das robinsonadasdo século
relaçõesentre ig4ilÍd!!Qg.]::::].prQpomot uma-teojcia.individualistadas XVIII." Nos três livros do Cáfila/, enfim, a determinaçãorecíproca
classes.çgmo requisito para umq.teoria classista da sociedade."« dos indivíduos e das classesé apreendida de acordo com a totalidade
Para Marx, ao contrário, a relação de exploração é de saída e não dinâmica da relaçãosocial. A luta pelo limite da jornada de trabalho
pode ser outra. coisa senãowma íe/anão socfa/, não uma relaçã? indivi- atiça o "capitalista global" (ou seja, a classe dos capitalistas) e "o
dual. A taxa de exploração(pl/v) exprime uma.relaçãode4lQ$se.listra- tuba/dador g/obaJ" (ou a classetrabalhadora). Uma vez que haja
da pela análise da cooperaçãoe da divisão do trabalho: a cooperação separação do trabalhador e dos meios de produção e que "os meios de
suscita uma economia de tempo devida à simultaneidade espacial das produção afrontem o possuidor de força de trabalho como proprieda-
tarefas produtivas; uma jornada de cem horas de dez trabalhadores é de de outrem... a re/anão de classeentre capitalista e assalariado exis-
te portanto". Enfim, "cada capitalista individual, assimcomo o con-
+4Jon Elster, Kar/ Àfarx-., op. cit., p. 234. Andrês de Francisco, "Que hay de junto dos capitalistas em cada esfera de produção particular, participa
teórico en la 'teoria' marxista de las clases", loc. cit., e "Théorie classiste de la da exploração de toda a classeoperária pelo conjunto do capita!' e
société ou théorie individualiste des classes', Vfenfo Sur, 12 (dezembro de 1993).
"a taxa média de lucro dependedo grau de exploração do trabalho
No mesmo número de Zona Abfer1 (59/60, 1992), Val Burris dá uma definição
extensivada exploração("a capacidadede um indivíduo ou de uma classede total pelo capital total". Esseo motivo por que, malgrado a concor-
apropriar-se de um trabalho estranho"). Mas a relação de classeé reduzida à rência que a divide, a burguesiaconstitui uma verdadeira"franco-
exploração económica, as relações de dominação sendo consideradas como se-
maçonaria" para com "o conjunto da classeoperária".4s
cundárias. A idéia segundo a qual "a apropriação da mais-valia tem lugar somen-
te no processo de produção" indica um contra-senso sobre o papel do processo
global: a extração de mais-valia na produção não é ainda a apropriação que 4sO Capfral, op- cit., 11,1, p. 33 e m, 1, P. 211. Suzannede Brunhoff é perfei-
pressupõe o mercado e a reprodução global. tamente fiel a este modo de ver quando escreve: "A noção de classe designa uma

274 275
l

MARX. O INTEMPESTIVO A LUTA E A NECESSIDADE

A exploraçãopela extorsão de valor excedenteimplica o desdobra. jucro média, o reconhecimento histórico das necessidadesestabelecidas
mento da mercadoria em valor de uso e valor de troca, assimcomo a pela luta de classes (que não se limitam a necessidades de consumo
desdobramentodo trabalho em trabalho concreto e trabalho abstrato: imediatas, antes se estendem a necessidadesde reprodução que incluem
"Essa a/g#mczcoisa em comum que se mostra na relação de troca ou no fatores de educação, de cultura, de ambiente, comuns a várias gerações).
valor de troca das mercadorias é por conseqüênciao seu valor; e um O trabalho abstrato é portanto historicamentedeterminadopelo
valor de uso,ou um artigo qualquer, não tem um valor senãona medida sistema das necessidades,cm outras palavras, pela universalidade da
do trabalho humano materializado nele. Como medir agora a grandeza falta. A igualdade dos trabalhos diferentes supõe a abstração de sua
de seu valor? Pelo qwalzlzím da substância 'criadora de valor' contida desigualdadereal. Suaredução a "seu caráter comum de dispêndio de
nele. A própria quantidade de trabalho tem por medida sua duração no força de trabalho" resulta da troca. Marx insiste nisso no sexto capi-
tempo e o tempo de trabalho possui novamente sua medida em partes tulo da segunda seção : "As necessidades naturais, como alimentação,
do tempo, tais como a hora, o dia etc. Poder-se-iaimaginar que, se o vestuário, aquecimento, moradia etc., diferem de acordo com o clima
valor de uma mercadoria é determinado pelo qmfzfzlm de trabalho des- e outras particularidades físicas de um país. Por outro lado, o próprio
pendido durante sua produção, quanto mais preguiçoso ou inábil for número de pretensas necessidadesnaturais, assim como o modo de
um homem, mais valor terá sua mercadoria, pois ele consagra mais tem- satisfazê-las, é um produto histórico e por isso mesmo depende em
po para a suafabricação.Mas o trabalhoque forma a substânciado grande parte do grau de civilização alcançado.As origens da classe
valor das mercadorias é trabalho igual e indistinto, um dispêndio da assalariadaem cadapaís, o meio histórico onde ela seformou conti-
mesma força. A força de trabalho da sociedade inteira, que semanifesta nuam por muito tempo a exercer a maior influência sobre os hábitos,
no conjunto dos valores, não conta por consequência senãocomo corça as exigências e, por contragolpe, as necessidades que ela traz na vida.
úlzím, embora ela se componha de inumeráveis forças individuais. Cada A força de trabalho enfeixaportanto, do ponto de vista do valor, um
força de trabalho individual é {gzía/a q a/qz/ero#fra enquanto ela pos- elemento moral e histórico; o que o distingue das outras mercadorias.
sua uma áorçu soda/ méd/a e funcione como tal, ou seja, não empregue Mas, para um país e uma época dados, a medida necessária dos meios
na produção de uma mercadoriamais que o tempo de trabalho neces- de subsistência é também dado... A soma dos meios de subsistência
sário em média ou o tempo de fraca/b0 7zecessár/o
soda/me/zfe." necessários à produção da força de trabalho compreende assim os meios
Semesseconceitode trabalhoabstrato,a teoria do valor chegaria de subsistênciados substitutos, ou seja, dos filhos dos trabalhadores
com efeito ao absurdo segundo o qual o tempo esbanjado em ficar à toa para que essasingular raça de cambistas se perpetue no mercado." Se
seria criador de valor. O dispêndio de força de trabalho não é inicial- a força de trabalho enfeixa um elementomoral e histórico, se sua
mente individual. Ele pressupõe a "força social média" do "trabalho reprodução compreende o revezamento das gerações, a determinação
igual e indistinto", do trabalho"socialmentenecessário".Essamédia do tempo de trabalho socialmentenecessáriopara essareprodução
não se estabelece apenas na esfera da produção. Ela pressupõe por sua pressupõe... a luta de classes!
vez o metabolismo da concorrência, o estabelecimentode uma taxa de Relação social, o capital é portanto a unidade de uma relação de
dominação e de uma relação de concorrência. Ao nível da produção,
relação económica c social conflitual-. O trabalho excedente que o operário
a taxa de mais-valia pl/v exprime a relação de classe independente-
fornece não aparecede maneira direta e individual-. A noção de classe não é um
instrumento da análise económica que parte dos indivíduos e de sua escolha ra- mente da relação de concorrência. Ao nível da (re)produção global,.a
cional' ("Cc que disent les économistes', Po/íris, 4, 1993). taxa de lucro pl/c+v exprime a relação de exploração mediadapela

276 277
MARX. O INTEMPESTIVO

relação de concorrência. Pierre Salama e Tran Hai Hac sublinham


claramente a diferença conceitual entre valor excedentee lucro,'nã.
raro mal compreendidana controvérsia da transformação: "Assim.
da mesmamaneira que o nível da relação de classeé estruturado pela
existência da taxa de exploração, a relação intercapitalista é estrutUI.
rada pela formação da taxa geral de lucro que é a forma sob a qual
a taxa de exploração se impõe aos capitalistas individuais na concor.
rência. Nessesentido, a taxa geral de lucro é uma forma transforma.
da do valor de troca precedentemente definida em termos do capital
em geral. O desenvolvimento do valor de troca do nível do capital em TERCEIRA
PARTE
A ordem. da desordem
geral pam o nível dos capitais em concorrência é designado sob o nome
de transformação do valor de troca em preço de produção. Esta nada
mais é que a passagemda análise do capital de um nível de abstração Marx crítico da positividade
a outro. A transformação significa que a luta pelo lucro a que se ati- científica
ram os capitalistas acha-secircunscrita ao montante da mais-valia
extorquida à classedos trabalhadores: os capitalistas não podem di- "Assim, nenhuma parte poderá levantar-selimite, e semces-
vidir entre si mais do que aquilo que foi extraído na relação (ie classe. sar se abrirá ao vâo da flecha uma nova perspectiva."
outros termos,a transformaçãodo valor de troca em preço de Luçrécio, Da nat reza
produção exprime o fracionamento da mais-valia retirada ao nível do
capital em geral entre os capitais em concorrência."4óO montante e as
"0 maior mágico seria aquele que pudessedo mesmo golpe
formas de redistribuição do valor excedenteestão subordinados à sua
enfeitiçar-se a si mesmo, de modo que seussortilégios Ihe
extraçao. .A exploração.não teria portanto como ser determinada pela
parecessemestranhos, como manifestações poderosas em si
alocação individual de bens de consumo comparada ao tempo indivi.
dual de trabalho. mesmas.
Novalis, Fragmenfs

« Pierre Salamae, p.a55. ai Hac, JBtrodKcllo# à I'écomomlede Mare, Paria,La

278
7. Fazer ciência de outra maneira
Marx tem sido alvo de críticas rigorosamente opostas: ora censuram-
Ihe o determinismoeconómico,ora, ao contrário, o fato de infringir
as exigências de causalidade e previsibilidade sem as quais não have-
ria senão "pseudociências" habilmente disfarçadas numa cientificida-
de de fachada. Cada uma dessascríticas tem sua parte de verdade,
mas ambas passam ao largo do essencial.
Fascinado pelos êxitos das ciências naturais, Marx foi sem dúvida
tocado pela "vontade de fazer ciência" que as anima. O prefácio à
primeira edição do Cáfila/ evoca a comunidade de "todas as ciên-
cias" e utiliza-as como modelo para a crítica da economia política: a
"forma mercadoria" apresenta-se como "a forma celular económica";
as "leis naturais" da produção capitalista dão origem a antagonismos
sociais; a sociedade procura descobrir "as leis naturais que presidem
a seu próprio movimento". Essas leis manifestam-se "com uma neces-
sidade de ferro". Como para guardar-se uma irredutível singularida-
de. essanecessidade
logo retificada toma a forma menosrígida de
"tendências".'
Enfeitiçado pelo canto metálico da ciência inglesa, Marx parece
retido pelos laços da "ciência alemã" e os sussurrosde uma história
onde se juntam as vozes de Leibniz e de Goethe, de Fichte e de Hcgel.
Essedilema não superado se mostrará fecundo. Entre o devir ciência
da filosofia e o devir política da ciência, entre ciência inglesa e ciência
alemã, o pensamento de Marx, em equilíbrio sobre a ponta afiada da
crítica, acenapara a "mecânica orgânica", para a "ciência das bor-

l Kart Marx, prefácio à primeira ediçãodo Capital

283
MARX. O INTEMPESTIVO '7' A ORDEM DA DESORDEM

Ciências positivas e filosofias especulativas há muito entraram em


das" ou dos "preenchimentos", cujos espectrosassombramnossarazão
instrumental. acordo na base de um pacto mutuamente vantajoso. Se a ciência "não
pensava", os filósofos podiam reservar-se o vasto domínio de um pen:a'
mento sem prova, enquanto os cientistas recebiam em troca a exclusivida-
de de uma verdade definitiva. As transformações das ciências exatas, o
A CIÊNCIANO SENTIDOALEMÃO questionamento a respeito de sua finalidade, a proliferação de práticas
científicas incompatíveis com os critérios restrtttvos em vigor romperam
A relação de Marx com a ciência desconcerta um sem-número de leito- essecompromisso. Admite-se doravante que a ciência pensa e, por conse-
resprisioneiros de uma epistemologiaque reduz a ciência "autêntica" a guinte,que ela pensacom palavras.Na falta de um sistemade signos
seu modelo físico. Na noção de "ciência alemã" atua, ao contrário, o unívocos e transparentes que avalie as discordâncias do sentido, essas
encontro entre a representação,aparentementearcaica, de uma ciência palavras não são fiáveis. São, na verdade, menos fiáveis do que nunca.
Os conceitos da física clássica são "conceitos figurativos". Ora, é
ainda imbricada com a filosofia e a antecipaçãode uma ciência nova.
que teria superado a Kr/se das ciências européias. Schumpeter experi- preciso saber "renunciar à necessidade de representações intuitivas de
menta como a contragosto estaperturbadora novidade: "A mistura de que a nossalinguagem estárepleta".s Onde encontrar os termos apropri-
Marx é química: em outras palavras, ele inseriu os dados históricos na ados para traduzir situações tão bizarras que fazem dançar mil fantasias,
sedutoras ou inquietantes, sobre o fio de nosso imaginário? Pode-seter
própria argumentaçãode onde faz derivar suasconclusões.Foi o pri-
meiro grande economista a reconhecer e ensinar sistematicamente como compreendido um certo estado de coisas e saber que somente imagens e
a teoria económica pode ser convertida em análise histórica e como a parábolas podem evoca-lo. Nos confins de mundos onde as representa-
exposição histórica pode serconvertida em história racional." Sensível ções familiares desfalecem,não há outra alternativa senãocalar-seou
ao "fluxo de vitalidade" que esseprocedimento insufla na análise -- "os ouvir os tremores da língua. Ali onde dicionários, classificações, nomen-
claturas fracassam, foi bem necessárioreabilitar a fecundidade da metá-
fantasmas da teoria económica começam a respirar; o teorema exangue
transforma-se em combatente carnal" --, Schumpeter rechaça entretan- fora e do poema. Setasdo tempo, buracos negros, dupla hélice, Big-Bang
to essa mescla heterodoxa de conceitos e proposições, económicos e e Bíg Crunch, atraidores estranhos, fractais festonados, memória da
sociológicos ao mesmo tempo, que desafia a divisão universitária bem água: aí estamos. Inseparável de seu duplo de ignorância, a ciência não
ordenada do trabalho intelectual: "A característica do sistema marxista tem mais aliás absoluto, mas um outro, relativo, self outro. Essarelação
de alteridade exige por sua vez ser conhecida, e assim por diante, numa
consiste em submeter esseseventos e instituições históricos ao processo
explicativo da análise económica ou, em termos técnicos, trata-los não fuga desvairada para a última palavra inaudível de uma metaciência ou
como dados, mas como variáveis."z de uma Caracfer&fia universal em vão sonhada por Leibniz.
Ciência desconcertante com efeito, a "ciência" de Marx. Numa busca O estilo metafórico do Cáfila/ suscitou muitos sarcasmos. Ele in-
dicaria uma fraude indiscutível. Confessariauma incapacidadepara
prodigiosa do vivente, onde a ordem conceptualse desfazsem interrupção
na desordem carnal do combate, ela não pára de misturar a sincronia e a obedecer aos rigores da formalização científica. Exibida a marca in-
diacronia, o universalda estruturae a singularidadeda história.
3 Niels Bohr, Pbysiq e alomique ef connafssance
&Kmafne,Paria, Gallimard,
"Folia-Essais", 1991.
2Joseph Schumpeter,Capffalfsme,goela/fome,dánocralie, Paria,Payot, pp. 69-73.

285
284
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

delével de uma nostalgia especulativa ou, pior ainda, literária. Leito. Não se trata de opor ao Marx cientista dos detratores superficiais
res sem conta sentem-sedesencorajadospela ausência de definições um Marx pioneiro das revoluções científicas que estavam por vir. Sob
unívocas e fiáveis, por tantas variações e inconstâncias terra nológi a influência das "ciências inglesas", ele pensa entretanto coagido por
cas! A escrita de Marx debate-seefetivamente com as incertezas da um objeto estranho,o capital, cuja compreensãoíntima requer uma
língua. Muitos contra-sensos podem resultar disso. -w ud outra causalidade,outras leis, uma outra temporalidade, em suma,
Engels irrita-se com os rigores do idioma francês e faz o diabo um outro modo de cientificidade. A "ciência alemã" marca esselugar.
para dar vida a idéias em francês moderno", "camisa-de-força" É ali que se precisair fundo. Que se precisaler, discutir, interpretar,
cada vez mais impossível: "Em alemão, Marx nunca teria escrito em vez de aceitar os juízos atamancados que fazem de Marx ora um
assim4"! A língua alemã acata o movimento das idéias e as relações economista vulgar (malgrado sua preocupação declarada de "um todo
recíprocas entre forma e conteúdo. Marx invoca assim a "ciência artístico"), ora um poeta trágico da história. Se ele, evidentemente,
alemã" ou "a maneiradialética alemã", como se as insuficiências não podia prever as reviravoltas epistemológicas com que hoje somos
conceituais pudessemser corrigidas pela memória de uma cultura. confrontados, suas respostas parciais às argúcias teológicas da merca-
A Wlsse#sc#a/t, que inclui todo o conhecimento teórico, não se acha doria ultrapassam o horizonte científico do século em que viveu. Seu
sobrecarregadapelas pesadasconotações positivas da Ciência no pensamentoquase não aparece deslocado no meio das controvérsias
sentido francês. Sua especificidade "alemão evoca uma rica herança contemporâneas.
filosófica. A coisa vai muito além de um problema de tradução e de Em artigo de 1980, Manuel Sacristanmostra como a "crise do
dicionário. Ela levanta questõesde língua, de estilo, de composição, marxismo" afeta desigualmente as diversas leituras de Marx. A leitu-
que encontram uma respostaprecária na unidade de uma obra cuja ra cientificista dos anos sessentasofre diretamente não apenaso con-
dimensão estética assinala uma outra racionalidade e um outro sa- tragolpe da decomposiçãodo stalinismo, mas também o questiona-
ber: "Qualquer que seja o defeito que possam ter, meus escritos têm mento de todo o racionalismo (sob o efeito de um entusiamo duvidoso
a vantagem de constituir wm lodo arf&ffco."s Não se deve tomar pelo "crescimento zero"). No campo político, o efeito Soljenitsin
essaafirmação levianamente, como uma vaidade de romancista frus- amplia-se e combina com os efeitos da estagnação brejneviana, o
trado. A criatividade metafórica de Marx manifesta a necessidade desencantamento pela revolução cultural chinesa, os esfacelamentos
de um conhecimento simultaneamenteanalítico e sintético, científi- indochineses e os equívocos da "revolução iraniana". Sob o choque,
alguns, como Colletti, redescobremem Marx, contrariamente ao que
tanto a desconfiançapara com uma linguagem formalizada quanto pretendiam ainda na véspera, um duplo conceito de ciência: um con-
o pesar por sua falta. Korsch, para quem o pensamento metafórico ceito "normal» de ciência positiva, correspondenteà imagemdomi-
preenche uma função heurística insubstituível nas fases de gestação nante do discurso científico, e um conceito de Wlssepzscba/t,
que não
teórica, o entende exatamente assim.ó renuncia ao conhecimento das essências.
Sacristan surpreende-se ironicamente com uma descoberta tão
' Friedrich Engels, carta a Sorge de 29 de junho de 1883, e carta a Marx de 29 tardia. Teria bastado, observa ele, prestar atenção ao léxico de Marx,
s Kart Marx, carta a Engels de 31 de julho de 1865.
6 Richard Boyd estendeessafunção às ciências maduras. Segundoele, as ria científica" em certas condições de aplicação e a sugestão "das estratégias de
me:áforas seriam "uma parte insubstituível do mecanismo linguístico numa teo- pesquisa futura"

286 287
l
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

à diferença entre a ciência anglo-francesa e a "deutsc#e Wlssemsc#a#»


para que não se chegassea atribuir-lhe um cientificismo positivista.
Uma leitura atenta teria pelo menos revelado uma dupla tentação: a
ciência
de um modelo científico que o atrai, logo contrariado pela tentação a esta a exterioridade, é-nos necessariamente preciso pensar a
de um saber da totalidade e da singularidade. Enrique Dussel escreve
justamente: "Se julgássemosMarx a partir da significação que se dá
à ciência normal, a ciênciaem suaacepçãoatual -- por exemplo,
popperiana --, nada mais poderíamos compreender sobre o exerdcio
da racionalidade científica em Marx."7
Várias cartas evocam o tipo de ciência que Marx entende praticar: "A
economia enqu.tantociência no sentido alemão do tet'mo \im deutscben
S!#fz]estápor serfeitas-.]. Numa obra como a minha, a composição,as «baconiana" de Darwin) e do desprezo hegeliano pelo "truque que se
múltiplas conexões constituem #m üi fzáo(&z cfê cü a/elfzã [&#lscXpê/z
aprende". Esse"truque" é um momento necessáriodo desenvolvimento
WZssensc&a/t]."8Crítica das aparências e do fetichismo, essaciência visa
"às relaçõesintemas" para além das formas fenomenais. A dmtscbm
WZssensc#a»não revela qualquer chauvinismo teórico. Marx Costuma
mostrar-se bastante admirado e respeitoso com os resultados das ciências
positivas ou inglesas para despreza-las. Elas são um momento necessário
do movimento do conhecimento. Desde que não pare por aí.
A herança hegeliana veicula, de acordo com Sacristan, uma repre-
sentação bastarda da ciência que impediria Marx de "precisar o estatu-
to epistemológico de seu trabalho intelectual". Mais próximo à crítica
que à "ciência absoluta", cujas pretensões abusivas chega a denunciar,
como, por exemplo, na carta a Ruge, desde 1843, sua "ciência alemã,,
inscreve-senuma tradição de pensamentoà qual o empirismo inglês e o
racionalismo francês mostraram-se obstinadamente refratários.P Trata-
sede não renunciar à totalidade sob o pretexto de elucidar cada uma de

' Enrique Dussel,liacfa #n Àlarr desce agido, México, Sigla XXI, 1988.
BCartas de 12 de novembro de 1858 e de 20 de fevereiro de 1866.
9Via Hegcl, ela é herdeira da influência de mestre Eckhardt ou de Jacob Bõh-
me. Poder-n-ia também encontrar aí a obscura filiação da mística judaica, para a
qual a ciência "filosófica' não é mais que a iniciaçãoa uma -ciência profética'
superior, do mesmo modo que 'a ciência combinatória' é superior à lógica formal
(AbraçamAbulafia,EPílresdesself Faia, Paras,Éditionsde I'Éclair,1985).

288 289
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

No desenvolvimento desigual e combinado do mundo, na discor-

através dos truques ensináveis (transmissíveis) pode apresentar um inte-


resse superior a qualquer tipo de ciência, mas não será precisamente

Interrogando-se sobre o protocolo de elaboração de suas próprias


categorias,a crítica dá a réplica a uma ciência estabelecida.Esseo
motivo por que Marx concebeduradouramente sua tarefa como "crí.
tica da economia política".iz
Mento idea[ da história a]emã [-.]. Aquilo que nos povos adiantados
Deulscben Visse soba/{? Ciência "alemã«? é ruptum prática com a situação moderna do Estado é, na Alemanha,
A que está ligada essagermanidade?Ao célebre "atraso" político onde tal situação nem mesmo existe ainda, primeiro ruptura critica
alemão: atraso político da unidade alemã e da edificação de seu Esta. com o reflexo filosófico dessasituação." A dessincronizaçãoentre
do, atraso económico de uma sociedadefragmentada e refreada por desenvolvimento social e desenvolvimento filosófico nada tem de sur-
social, o "atra-
seusfidalgotes, atraso tecnológico e científico. Enquanto a Inglaterra preendente. O atraso político converte-se em avanço : .. 66 = Hn»rAlhA
nça foram as primeiras a entrar na era do capitalismo concor- r'.'da burguesia em "avanço" do proletariado. Assim, "a revolta
rencial, a Alemanha rumina ainda o mito de seusencontros falhados'. silesiana começa precisamente por onde terminam os levantes opera'
De onde, provavelmente, a desconfiança romântica em face da emer- rios inglês e francês, pela consciência da essênciado proletariado". A
gência da razão instrumental, esperando as furiosas núpcias de san- diabéticado anacronismoalemão transforma um atraso pratico em
gue entre essarazão fria e os cálidos mistérios do solo e de suasraízes. avanço teórico, um atraso político em avanço social.

ii Manual Sacristan,"EI trabajo cientifico dc Marx y sunocion de ciência", 1980,


retomado na colctânca Sobre À4amy marxismo, Barcelona, Edicion lcaria, 1984.
ÀS FONTESDA CIÊNCIA ALEMÃ
A daêncem sualimportancia: a admiração por Poppcr está então cm seusaugcc
das 'pscudociências". prestigiosa alguns anos antes, volta a cair no inferno
Seguindo as pegadas de Hegel, Marx resiste à racionalidade exclusiva
n Manual Sacristan observa que a maneira de citar carrega ainda, no livro
l do(;apflal, o traço dessafilosofia jovem-hcgclianada ciência.O subtítulo da da ciência positiva. Enquanto as ciências inglesas voltam as costas à
obra (Cfafa.da economiapo/alga) o atestada também,emborao plano final do totalidade para mergulhar na positividade prática dos desempenhos
conjunto tenha conseguido,segundoelc, dissociar a parte propriamente crítica
i] Kart Mare. Crítica da filosofa do direito de Hegel. Engels retomará essaidéia
(Teoriasda mais-ua/fa)da parte sistemáticados três primeiros livms. No que,
parece, Sacristan comete um contra-senso. A 'crítica' não está reservada à expo- cercade quarentaanos mais tarde, em seu prefácio de 1882 à primeira edição
sição histórica das doutrinas económicas,ela atravessade um lado a outro o alemã dc Do Socialismo ufópíco ao socialismo cfenfifico: "0 socialismo científi-
conjunto do trabalho conceptual,e o Cáfila/ merececabalmenteseu subtítulo. co é um produto essencialmentealemão, porque ele só podia surgir na nação

290 291
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Spinoza
Tratado teológico-político
de

a presença de uma totalidade destotalizada, negativa e insatisfeita, que


Kart Heinricb Mare, Betlim, 1841.\ú
se apresenta à recordação nas aporias da técnica.i4 ''
Numa época em que a ruptura entre ciência e filosofia ainda não O interessede Marx por esseTratado é coerentecom suaspreo-
está consumada, a renome/zo/og/a, a Encic/opédfa, a l,ógica represen- cupaçõespolíticas e jurídicas do momento. Spinozaquer subtrair a
tam uma tentativa desesperadade ciência universal. Enquanto o en. filosofia à tutela teológica.A filosofia, não a ciência. A fronteira de-
tendimento e as ciências exatas não conseguemmais que enunciar as cisiva passa então entre a teologia e a filosofia, que abarca não apenas
leis mecânicasde um mundo material inerte, a "ciência alemã" perpe- o conhecimento analítico e discursivo (hoje considerado só como ci-
tua a ambição de um saber absoluto.ts ' '
entífico), mastambém o conhecimento "sinóptico e intuitivo". Ele não
Esse"outro saber", reivindicado em face da matematização uni- secontenta em conhecero mundo, mas deve visar à meta ética supre'
lateral de uma modernidadeamarga,tem seusantecedentes.A busca ma da salvação. Recusando-se a dissociar duas formas de racionalida-
de uma racionalidade não instrumental reconduz inelutavelmentea de, "discursiva e intuitiva, fragmentária e sinóptica, emocionalmente
Spinoza, sem cuja presença a filosofia aniquila-se. Tal é realmente. extinta e emocionalmenteexplosiva", Spinozapropõe portanto uma
com a l.óglca hegeliana,a primeirafonte da ciênciasegundoMarx. prática da razão aliando a ciência e a ética.n
Desde 1841, ele transcreve longas passagensdo Trajado feo/Ógfco- Essanova aliança define o "conhecimento do terceiro tipo"
Po/#/co num caderno com um título surpreendente: Conhecimento por "experiência vaga" ou por "ouvir dizer", parcial
e inadequado, o conhecimento do primeiro tipo (ou gênero) define-se
antes de tudo pelos signos equívocos que o envolvem. Conhecimento
racional pelas causas,o conhecimento do segundo gênero propicia as
onde a filosofia clássicatinha mantido viva a tradição da dialética consciente".
noçõescomuns gerais que não dão ainda acessoao conhecimento da
ou seja, "entre os alemães". "Não foi senãoquando as circunstâncias engendra-
essênciasingular. Conhecimento intuitivo e místico para alguns, co-
das na ]nglaterra c na Fiança foram submetidas à crítica diabéticaalemã que se
pede alcançar um resultado real." ' nhecimento racional superior para outros, o conhecimento do tercei-
i+ Ver Georges Labica, l.e Szaf f marxisfe de Za p#i/osoP#fe, Paras, PUF, ro tipo, intuitivo e racional ao mesmo tempo, é amor intelectual de
1977: "A vontade de uma aliança 'científica' entre teoria e prática, quc já encon- Deus. Ele alcança as essênciase reúne as idéias adequadas de nós
tramos, acha ali sua mais concreta expressão;masela induz uma problemática
nova que não deixa em repouso o próprio conceito da filosofia, lá que acaba por
se interrogar sobre as condiçoesde possibilidade de uma saída da filosofia, aqui ióYirmiyahu Yovel assinalao carátei:insólito dessetítulo: "De Kart Marx? Neste
somente designada" (p. 45). Ver também os trabalhos de Theodor Shanin sobre caso, é um perfeito plágio: não há uma única frase nessecaderno que Marx não
o último Marx e a Rússia.
tenha copiado de Spinoza. Mas poderia tratar-se de um ato de apropriação. Pois
ISEssa ciência filosófica que se busca por ela mesma, diferentemente de um o pensamento de Spinoza conservou-se na base do pensamento ulterior de Marx.
saber que não sepreocupacom o porquê das coisas,procura a verdadedaquilo [.-] Spinoza contrabalançada e corrigia Hegel, restabelecendo o conceito de na-
que muda sem cessar.Em Aristóteles, essaciência do filósofo é a do ser enquanto tureza e do homem como ser natural concreto, longe das alturas nobres e semi-
scr, ao passo que física e matemáticas são apenas regiões da filosofia. (Vcr Ans. religiosas do Geisf hegeliano" (SPilzozaet a#fres béréliqwes,Paras,Seuil, 1991)-
tóteles, .4 mera/bica, e Alexandre Koyré, A /bica de Arisróre/es.) i7 Ibid., p. 203.

292 293
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

so de objetivação científica. As coisas são então "compreendidas por


sua essência singular e não mais apenas por suas leis universais, e as
a#sas que as determinam são compreendidas como /ógicas e ímamefz-
fes, e mão como mecânicas e lransftft,as". Deus já não aparece en-
quanto ser ou conceito abstrato, mas enquanto totalidade e singula-
ridade concretas. O filósofo pode enfim "penetrar a organização interna
da natureza quando dela não possuía senão a face externa".is

Com o "sentimento de fruição da coisa mesma", o saber racional já


não se acha separado da fruição estética. Reconhecendo sua dívida
para com Spinoza, Hegel censura-lheentretanto uma concepçãoda
totalidade inerte e unilateral, por falta de mediaçõese de negação:
exprime uma forma superior de racionalidade, ela não teria como pâr "Uma vez que Spinoza não apreendeu a negação senão unilateralmen-
em curto-circuito a forma ordinária da ralfo, pois não há acessodire- te. não se encontra em seu sistemao princípio da subjetividade,da
to às essências imanentes. É preciso portanto começar por explicar o individualidade, da personalidade, o momento da consciênciade si no
objeto de maneira extema, por dar-seconta de sua "grandeza ines- ser." A teoria torna-se realidade na medida em que ela é, para um
sencial", por permitir à intuição reapreenderem seguidatoda a infor- povo, a realizaçãode suas necessidades. Fundadora de um novo sa-
mação causal numa nova síntese:"0 esforço ou o desejo de conhecer ber, a filosofia spinozista da imanência não coloca ainda a mediação
as coisas pelo terceiro gênero de conhecimento não pode nascer do da historicidade que faz do homem seu próprio criador.
primeiro gênero, mas sim do segundo" e "desseterceiro gênero nasce Corrigindo Spinozaatravés de Hegel e reciprocamente, Marx fará
o mais elevado contentamento que possa existir". Apaixonado pelo do trabalho a relação com a natureza pela qual "o homem contempla
impulso das ciências positivas, Spinoza não desaprova menos, pre- a si mesmo num mundo de sua criação". Esseo motivo por que, pi-
ventivamente, a ideologia cientificista alimentada pelo seu sucesso. oneiro da "passagem do noroeste", ele considera a divisão das ciên-
O conhecimentodo primeiro tipo conserva-seno nível da imagi- cias em ciências da natureza e ciências do homem como um momento,
nação e das representações..O do segundo tipo não oferece mais que destinado a dissolver-senão por decreto, mas ao termo de um proces'
um aspectoparcial da realidade,ao qual falta ainda essa"apreensão se histórico efetivo, numa "única ciência": a da natureza humanizada
das coisas em sua essência singular». O conhecimento do terceim' tipo e do homem naturalizado.2'
mantém a unidade crítica das diligências matemática e narrativa.
:'''
Uma sclefzza lzuoz/a,de algum modo.
Conhecimento mediada de si, o momento intuitivo aí coroa o proces-
i9 Yirmiyahu Yovel, SPlnoza et autres bérétiques, op cit., p 219.
10A propósito dessa"passagem do noroeste', Michel Series invoca natural-
'' André Tosel, D# matéria/isme de SPí#oza, Paras, Kimé, 1994, p. 53. Para o co- mente Leibniz: "No começo da idade clássica já se dividiam c classificavam as

8 ZHl$: :1B=='=sl'l;llM
l ciências por comparação a continentes separados; era dessa imagem que Lcibniz
zombava,pretendendoque seria melhor, para classificar as ciências,utilizar a
metáfora do mar, quc é tão fácil, dizia clc, dividir em oceanosc baciascom a

294 295
l
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

das as disposições naturais de uma criatura são determinadas de


maneira a se desenvolveremum dia completamente e de acordo com
uma meta." Com essa primeira proposição de A /déia de uma história
##íuersa/do ponto de ufsfacosmopo/bico,o círculo especularseria
com efeito rigorosamente fechado, se Kant não levantasse logo a
questãoda "liberdade do querer", sema qual não há mais espaço
nem ação políticos concebíveis. Como conjugar a determinação das
leis universais da natureza e essa aptidão humana para decidir? O
desígnio da natureza não se encarna nos indivíduos nem nas gerações.
Ele se inscreve no encadeamento das gerações e na transmissão cumu-
lativa de um saberque toma a forma de progresso.O conhecimento
hipotético de um plano da natureza não anula mais então a liberdade
do querer. Ela Ihe confere ao contrário todo o seu sentido. Se a his-
tória fosse acumulação e empilhamento de fatos caóticos, a própria
ideia de uma escolharacional perderia qualquer significação.Na
medida em que existe uma antecipação, uma tensão para o termo, 'a
Meta do esforço a fornecer" anima uma liberdade determinada.a
Do mesmo modo, em Marx a antinomia da necessidadee da li-
berdaderesolve-seno aleatório da luta.

Ajustamento polêmico da ciência com uma cultura historicamente


situada, a invocação da "ciência alemã" chama a atenção para as fontes
aproximamos da meta, baseandoessatesenuma análisedialética do de cientificidade a que a tradição positivista manteve-seobstinada-
menterefratária. As razõespor que Spinoza,Hegel, Marx foram objeto
nascimentodo capitalismo e de seusconflitos internos, pelos quais
uma nova era parece estar prestes a começar."zz de tanta incompreensão, hostilidades e contra-sensosna França têm
não raro raízes comuns."
A historicização da substância spinozista parece ir ao encontro de
uma teleologia histórica calcada na teleologia natural kantiana. "To-
a Pode-seencontrar em Husserl uma concepção teleológica da história, no sen-
tido de "processode finalidade', infinita c aberta,não implicandofatalidade

=
mecânica nem progresso histórico necessário.
24A história da recepção francesa a Spinoza é em grande parte a história de
uma longa incompreensão,inaugurada pela hostilidade deMalcbranche para com
"o miserável Spinoza', prosseguida pelas diatribes de Massillon e pelas rimas
grosseirasde Voltaire contra esse"pequeno judeu de nariz comprido e tez páli-
da'. Do bispo de Avranches a Baylc, crentes do século XVll e incrédulos do sé-
u Yirmiyahu Yovel, Splnozú ef a Ires IPérérlges,op. cit., P. 395.

296 297
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

(pois o conhecimento sintético intuitivo só pertence a Deus) às "ver.

gn nu:, mç$wi
dades contingentes" inacessíveisà matemática do número.

e atuais, a ciê cía média visa às verdades possíveis e contingentes.''


Essa distinção entre necessidade bruta(ou absoluta) e necessidade
hipotética, entre míissene se/!en,contribui para destruir os freqüentes
contra-sensossobre a noção de necessidadeem Hegel e em Marx. En-
contra-se sempre em Leibniz uma causa do querer, mas essequerer, que
faz de nós seres humanos, não escapa menos à sua estrita necessidade
lógica. A história só conhece singularidades e verdades existenciais que
escapam a necessidadebruta. Tudo o que é dado e existe verdadeim-
pmseKr d possfb/e, quasenão sedetém na metafísica lcibniz ana do possível Elc

li$ :mieHm @8$


mente supõe uma escolha e uma vontade, uma necessidade moral irre-
dutível à abstração do número. Deus é síntese da inteligência e da von-
tade. Suas escolhas são ao mesmo tempo necessárias e possíveis.zs
balhou particularmente Aristótelcs, Spinozae Leibniz. Seele não aprofundou essa
pistas.Valdéc não o ignora portanto: Mam "faz parte dessesãlósofos quc, como n Vcr M chcl Fichant, posfácio a De I'borlzo# de b doctrfne b#maíne, Paras,

Leibniz e Hegel entre os modernos, Aristóteles c Heráclito entre os ant gos, rcjei-

ip:icasi : : üõji
Z$1BHEl; .l:!hKaigul iis:is:
298 299
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Enquanto Descartesseparaentendimento e vontade divina, sabedo. rito é a Ciência. Ela é sua realidade efetiva e o reino que ele se constrói
ria e bondade,a teologia leibniziana conjuga portanto a ciência e a & eN seupróprio e]emento[-.]. Essedevir da ciência em geral ou do
para coroar em Deus a hierarquia das causaslógicas e mecânicas.Tal é saber é o objeto desta Fenomefzologia do espáifo."30
realmente a ambição dessa"ciência alemã": a aplicação das matemáti. As "verdades matemáticas" não teriam portanto como ser a últi-
cas às coisas finitas e contingentes, a aliança recuperada da moral e da ma palavra da ciência, mas apenas um de seus momentos. Pois "o
ciência, da determinação e da liberdade. No horizonte de uma tal ciên- movimento da demonstração matemática não pertence ao conteúdo
cia, o saberanalítico do universalfunde-sena visão intuitiva do parti- do objeto, é antes wma operação exfetfor à coisa". As ciências posi-
cular, que é próprio de Deus. "Ciência geral das grandezas finitas", a tivas participam do conhecimentofilosófico segundoo qual "o devir
álgebra explora simplesmente a abordagem de uma ciência do infinito. do ser-aícomo tal é diferentedo devir da essênciaou da natureza
que seria "a parte superior da ciência da grandeza".a interna da coisa". Ele compreende "em primeiro lugar os dois tipos
de devir, ao passo que o conhecimento matemático apresenta apenas
Em D#b'ezzça e/zlre os sistemas de Fíc#fe e Sc#e//ing, Flegel lança as o devir do ser-aí". Ele unifica em segundo lugar essesdois movimen-
basesdo que se tornará, na E#c/c/opédfa, a Ciência das ciências. As tos particulares: "0 movimento é assim o duplo processo e devir do
ciências humanas são superiores às da natureza. A história é o coro. todo; assim, cada momento coloca ao mesmo tempo o outro, e cada
amento delas, pois nada vale para o homem o que não seja o objeto qual tem nele os dois momentos como dois aspectos;tomados juntos,
de sua própria tomada de consciência.O conhecimento que o espírito
toma de si mesmo e por si mesmo através do conhecimento do mundo 10Friedrich Hegel, Pbénoménologie de I'espdf, Paria, Aubier, 1992, t. 1, p- 23.
é a meta última da ciência. Essarelação da filosofia com a ciência é amplamente desenvolvida na Fenomeno-
logia: "A ciência não é esseidealismo que, em lugar do dogmatismo da asserçãop
A idéia hegeliana de uma filosofia da natureza e de um conheci- tomaria a forma do dogmatismo da certeza de si mesmo [-.]. Essanatureza do
mento da vida opõe-seao desmembramentoe à coabitação indiferen- método científico, segundo a qual, de um lado, ela não está separada do conteú-

te dos saberes. Ela não se resolve pela estetização romântica nem pela do e, de outro, determina ela mesma seu próprio ritmo, tem sua apresentação
própria na filosofia especulativa [--j" (t. l9 pp. 50 e 58)- Sobre a classificação dos
mania classificatória que assombramo século. Contra a fragmenta- saberes no século XIX, ver Patrick Tort, l,a Raison c&zssff:catoire, Paria, Aubier,
ção dos discursos científicos, ela esforça-sepor estabeleceruma circu- 1989. Em seustextos sobre as ciências, Engels parecedividido entre a mania
lação transversal e por reapreender o movimento universalizante do classificatória e a nostalgia da grande síntese alemã. A passagemdas ciências
conhecimento: "0 espírito que se sabe assim desenvolvido como espí- para "a teoria" caracteriza ainda para ele o domínio da ciência alemã. "0 estudo
empírico da natureza acumulou uma massa tão enorme de conhecimentos posi-
tivos que a necessidadede ordena-los sistematicamente e de acordo com o enca-
há dois indivíduos idênticos; por conseguinte,mesmo para Deus, as verdades deamento interno em cada domínio separado tornou-se absolutamente imperio-
existenciaisnão podem resolver-seem idênticas. Mas, por outro lado, a pura sa. Não se é menos imperiosamente levado a organizar os diversos domínios do
necessidadelógica, bruta, é baseadana redução aos idênticos. As verdadesexis- conhecimentoem seu encadeamentocorreto, um em relaçãoao outro. Mas ao
fazer isso a ciência da natureza transporta-se para o domínio da teoria, e onde os
tenciais escapam portanto à necessidadebruta. E como? Pela escolha que auto-
riza a contingência delas. Deus as distingue dasverdades absolutamente necessá- métodos empíricos fracassamsomente o pensamento teórico pode servir. Mas o
rias como o eletivo do inelutável [-.] Deus, escolhendo entre uma infinidade de pensamentoteórico não é uma qualidade inata senãopela aptidão que se tem
mundos possíveis, escolheu por isso mesmo entre 'uma infinidade de leis, umas para isso.Essaaptidão deveserdesenvolvida,cultivada, e parafssa cultura não
próprias a um, asoutras ao outro' " (Yvon Belaval,l,eiblziz-., op cit., P. 162). há outro meio até aqui que o estudo da filosofia do passada" (Dialecfiq e de la
zp Leibniz, carta a J.-P. Bignon, 24 de janeiro de 1794. naf#re,Paria,Éditionssociales,
1977, p. 41).

300 301
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

eles constituem portanto o todo enquanto eles mesmos se dissolvem e doaçãoformal da ciência é a um só tempo salvar as ciênciasdo forma-
se fazem momentos dessetodo."3' A arrogância das ciênciaspositivas lismo vazio que as espreita: "Considera-se não raro a filosofia um saber
para com a filosofia não tem portanto fundamento. Elas tiram o seu formal e vazio de conteúdo. Entretanto, não se compreendesuficiente-
orgulho de um conhecimentofalível, "defeituoso" tanto pela pobreza Hente bem que o que é verdade de acordo com o conteúdo, em qual-
de sua meta quanto pela "defeituosidade de sua matéria". O objetivo quer conhecimento ou ciência que seja, pode somente merecer o nome
da matemática só poderia ser com efeito a grandeza enquanto "rela- de verdade se foi a filosofia que o engendrou; que as ciências busquem
ção inessenciale privada do conceito". Trata-se de um movimento do o quanto queiram fazer progressos pelo raciocínio prescindindo da
saber que "se efetua à superfície" e "não toca a coisa mesma", pois filosofia, não pode haver nelas, sem essafilosofia, nem vida, nem es-
"o efetivamente real não é algo de espacial como o considera a mate- pírito, nem verdade."32 Hlegel volta ao assunto na l.agia: "A filosofia,
mática". Esseo motivo por que ela nunca atinge senão um "verdadei- se ela quer ser uma ciência, não pode tomar emprestadoseumétodo a
ro sem realidade efetiva" e contenta-se com "proposições rígidas uma ciência secundáriacomo a matemática... Uma justificação ou
mortas": "0 que cinde o espaçoem suasdimensõese determinaos explicação razoável do conceito da ciência não pode ter por efeito senão
laços entre elas e nelas é o conceito." fazer dele um objeto de representação e dele oferecer um conhecimen-
Daí "a necessidadede um outro saber". to histórico; mas uma definição da ciência ou, mais precisamente,da
De um saber filosófico que vise "à determinação enquanto ela é Lógica não tira sua prova senão dessa necessidadede sua produção.
essencial": "0 elemento da filosofia é o processo que engendra e per- Uma definição de que a ciência faz seu começo absoluto não pode
corre seusmomentos, e é essemovimento em sua totalidade que cons- conter outra coisa mais que a expressão precisa, metódica, daquilo que
titui o positivo e a verdade dessepositivo. Essaverdade inclui portan- se considera em virtude de um acordo ou de uma adesão reflexiva como
to, do mesmo modo, o negativo em si mesmo, o que seria nomeado o sendoo objeto ou a meta da ciência. Trata-se aí em todos os casosde
falso se se pudesse considera-lo como aquilo de que se deve fazer uma afirmação histórica." Verdade e certeza, sujeito e objeto, conceito
abstração. O que se acha em vias de extinção deve antes ser ele mes- e real tendem assim, historicamente, assintomaticamente,a seconfun-
mo considerado como essencial;ele não deve ser considerado na de- direm. Essemovimento tendencial produz relaçõesde verdade.
terminação de uma coisa rígida que, extirpada do verdadeiro, deve Hegel não se contenta em localizar o não-saber. Ele introduz o
ser abandonada não se sabeonde fora do verdadeiro; e o verdadeiro. tempo na lógica. Ele a temporaliza, sem nem por isso ceder ao relati-
por sua vez, não deve ser considerado como um positivo morto que vismo. A historicidade do conhecimento suprime com efeito sua rela-
jaz do outro lado." De onde a transformaçãoda relação entre as ci- tividade. A ciência de uma totalidade em devir. O conceito de ciência
ências positivas "inglesas" e a "ciência alemã" (ou filosofia), de acor- especulativa radicaliza assim a revolução copernicana de Kant, para
do com o projeto inicial da Fe/romeno/ogia:"Aproximar a filosofia quem o saber do homem sobre si mesmo determina não apenasseu
da forma da ciência -- da meta em que deixe de chamar-seamor ao próprio comportamento, mas também os outros modos do saber.
saber para ser saber efetivo --, é isso o que me proponho."
Esseobjetivo ambicioso exprime a recusaem relegar a história da Da mesma maneira que a essência é segundo Hegel "a verdade do
filosofia ao inferno pré-científico. Salvara filosofia submetendo-aà ser", assim também o valor é a verdade do capital, seu "passado in-

3i Friedrich Hcgel, Pbé omé ologfe de J'esprff) õp. cit., t. 1, P. 37. 3zIbid., p. 58

302 303
T
MARX. O INTEMPESTIVO
A ORDEM DA DESORDEM

temporal", para além de suas metamorfoses. Negação dos valores de


uso particulares, a forma valor é uma essência dessubstancíalizada.
químicas.Com essesnós e essessaltos, o tempo do quimismo já não
é mais o tempo linear homogêneo do mecanismo.
irredutível contudo a uma "pura relação" indiferente à troca real de Mas o quimismo participa ainda do caminho escarpadoda abs-
bens materiais. Enquanto relação, ela determina o seu próprio con- tração que conduz à sínteseconcreta do vivente: "A idéia da Vida
teúdo mensurável.Da mesmaforma que a essênciase fenomenaliza relaciona-se com um objeto de tal modo concreto e, se se quiser, de tal
na existência,assimtambémo valor sefenomenalizano capital. Mas modo real que, de acordo com a concepçãocorrente da Lógica, é
o mundo fenomenal é a imagem invertida do mundo em si: "0 pólo ultrapassaros próprios limites desta ocupar'se da vida num tratado
norte do mundo fenomenalé o pólo sul do mundo em si."33A reali.
de lógica."só
dade enfim é "unidade da essênciae da existência", unidadedo valor E no entantoo real estávivo! O capital também.
e do capital. É essarelação que a ciência tem por tarefa elucidar. Para superar a antinomia da Lógica e da Vida, é preciso portanto
Mas qual ciência?
uma lógica que vá além da "concepção corrente". Uma lógica do que
Em O Cap/la/, o movimentodo conhecimentosegue"o vasto está vivo: "A autodeterminação do vivente é seu juízo, sua maneira de
silogismo" da lógica hegeliana.Ele parte das relaçõesmecânicasde aproximar-se do finito, para que ele estabeleçarelaçõescom a exterio-
exploração e do tempo linear que as subentende(livro 1) para passar ridade, como com uma objetividade pressuposta, com a qual ele se
pelas relaçõesquímicas das permutaçõescíclicas da circulação (livro engaja numa ação e reação recíproca."
11)e desaguar nas relaçõese no tempo orgânico da reprodução(livro O vivente é com efeito "o individual", a irredutível singularidade.
m). "0 que caracteriza o mecanismo é que, qualquer que seja a rela- Tanto no Cáfila/ como na Lógia, é somentecom a reprodução
ção entre os elementos associados, tal relação é sempre estranha à sua
que a "vida se torna concreta e verdadeiramente viva, é na reprodução
natureza: um modo de representaçãomecânica, uma memória mecâ-
que reside sua verdade e é nela que a vida encontra sentimento e força
nica, uma ação mecânicasignificam sempreque o espírito não seacha de resistência".37 "Em todas as outras ciências", observa a introdução à
presente naquilo que ele apreendee consuma, não o penetra."34En- l,agia, objeto e método são distintos. O próprio conceito da ciência
quanto o objeto mecânicoé uma totalidade indiferente a qualquer constitui em contrapartida o objeto e o fim da lógica. Ela é portanto "a
precisão, a precisão e, por conseguinte, "a relação com outras e a ciência do pensamento em geral", sobrepujando a separação entre for-
modalidade dessarelação" fazem parte da própria natureza do objeto ma e conteúdo, verdade e certeza que opera na "consciência ordinária"
químico: "0 próprio quimismo é a primeira negação da objetividade "Se as formas lógicas carecem de conteúdo, isso tem antes a ver com a
indiferente e da exterioridade da precisão." Nas combinações quími- maneira como são encaradas e tratadas. Isoladas umas das outras como
cas, a variação progressiva das proporções e das misturas "dá lugar a determinações fixas, em vez de formar uma unidade orgânica, elas não
nós e sa/fos tais que duas substânciasocupando pontos particulares passam de formas mortas de onde se retirou o espírito que é sua unidade
na escala das misturas formam produtos que possuem qualidades concreta e viva [-.]. Mas a própria razão lógica é substancial,e o real
particulares".ss A noção de afinidades eletivas procede dessasrelações
que compreende todas as determinações abstratas e forma sua unidade
perfeita, absolutamente concreto."
33Friedrich Hegel, Logfg#e, 11,p. 156.
Hlbid.,p.407.
K Ibid.,ll, p.469.
3sFriedrich Hegel, l.ogfq#e, op- cit., p. 421.
37Ibid., 11,pp. 478479

304
305
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Assim concebida, a lógica não é mais "o geral abstrato, mas Q como tal, mas a medida acha-se subordinada a condições superiores
geral que compreende toda a riqueza do particular".s8 A grande l.Ó- [-.]. A ciência da natureza ainda está longe de ter uma idéia nítida do
gim acha-se dividida em duas partes: a doutrina do Ser e a da Essên- laço existente entre essas grandezas e as funções orgânicas de que elas
cia opõem-seambasà "Lógica subjetiva do Conceito". Todo ser ad- dependem inteiramente. Mas o movimento oferece o exemplo mais
vém como mobilidade entre ser-em-sie ser-aí,essênciae existência. familiar da redução de uma medida imanente a uma grandeza que só
interior e exterior, possibilidade e efetividade. Enquanto totalidade. a tem uma determinação exterior [...]. É na vida do espírito que menos
Vida é a luz que "faz aparecer o ente em sua verdade" e suprime a se observaum desenvolvimentolivre e particular da medida.Vê-se
antinomia entre natureza e história. Daí resulta uma concepçãodo por exemplo muito bem que uma constituição republicana como a de
saber como "movimento pensante". Ao passo que a lógica empírica Atenas ou que uma constituição aristocrática substituída por uma
ordinária não produz mais que um "conhecimentoirracional do raci- democracia não podem ocorrer senão em Estados que não vão além
onal", a Lóg/ca constituiria, segundo Marcuse, "o fundamento de uma de um certo tamanho; que na sociedade civil desenvolvida os múlti-
teoria da historicidade". Suprimindo a separaçãoentre Natureza e plos indivíduos pertencentes às diferentes profissões encontram-se em
Hlistória, o homem consuma "o mais considerável salto».3P relação uns com os outros; mas dessefato não decorrem ainda nem as
Hegel abre portanto a via: "A indiferença completa abstrata da leis que regem as medidas, nem suas formas particulares. No domínio
medida desenvolvida, ou seja, de suas leis, não é possível senão na espiritual como tal intervêm diferenças de intensidade..." Marx rece-
esferado mecanismo em que a corporeidade concreta não é mais que beu perfeitamente essamensagem.Ele se põs a caminho no sentido de
a própria matéria abstrata; as diferenças qualitativas que existem no uma maneira de fazer ciência onde se esgotam as virtudes calculistas
seio desta são determinadas essencialmente pelo quantitativo [...]. Por do entendimento.
outro lado, já no domínio físico e com mais (orte razão no reino or- O capítulo consagrado à medida acaba na l,ógica com um convi-
gânico, essa determinação de grandeza do material abstrato encontra- te a transpor as fronteiras securitárias do entendimento (da razão
se perturbada pela multiplicidade das qualidades e o conflito que daí instrumental) para lançar-se à busca de um conhecimento que não
resulta. Ora, não se trata aqui apenasde um conflito de qualidades teria como reduzir-se a calcular, medir, descrever e estimar relações.
Essa ciência alemã, ou filosófica, "não pode contentar-se em narrar o
38Friedrich Hegel, Lógica, 1, pp. 33 e 45. A lógica é formal na medida em que se que existe; ela deve visar a conhecer a z/erdadedo que ac07zfece,e é
resigna a uma ciência da forma e reduz ao estático o que é processo. A exterio- sob a luz dessa verdade que ela deve igualmente visar a compreender
ridade recíproca de seuselementosreduz a lógica, que deveriaser a ciência do aquilo que no relato não era senãosimples evento".40
pensar, a um simples "calcular". A l,ógíca de Hegel mostra, ao contrário, o A verdade do que acontece?Evento e verdade estão ligados.
desenvolvimento do Conceito do abstrato ao concreto, e este, sobrepujando o
O conhecimento é o desenvolvimento das diferenças que advêm.
dualismo essência/existênciacomo a exterioridade do conceito ao objeto, atingir
"a lógica da coisa': assim, "o objeto da Lógica seria o pensar, mas ele não pode Ciências do finito, à imagem da geometria (cujo espaço é a abstração
scr dado antecipadamente". Ele não pode ser senão pensar que sepensa a si mesmo. e o vazio), as ciências analíticas (positivas) procedem essencialmente
É bem esseo papel da crítica com relação ao capital: não uma ciência enquanto por comparações de grandeza. O conhecimento sintético realiza a
pensar dado por antecipação, mas objeto que se aniquila pensando-se a si mesmo.
unidade de várias determinações. Assim, no círculo dos círculos ("a
b9}letbelt Matcuse, L'Ontotogie de Hegel et la tbéotie de I'bistoricité, Pa-
uis, Gallimard, "Te1", 1991, p. 204. Do mesmo modo, tanto para Geymonat como
para Viço, é a história que obriga a admitir um outro tipo de racionalidade. 40Friedrich Hegel, LogiqKe, 11,p. 257

306 307
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM
l
mediatização levando o fim ao começo") da ciência, "os fragmentos dade.Tornou-se claro que vivemos por um longo tempo das rendas de
da cadeia representam as ciências particulares em que cada uma teH uma paradigma científico historicamente datado.
um antese um depois".Mas essesfragmentosse juntam na Idéia Com isso a lógica dialética de Hegel se encontra reabilitada. Es-
Absoluta. Da mesmamaneira que o capital volta a pertencer à unida- tamosàs voltas, dizia ele, "com um novo conceito do tratamento ci-
de simples da mercadoria, que é o seu começo lógico, a Idéia volta a entífico", caracterizadopelo fato de que as leis do pensar não são
pertencer à "imediatidade pura do Ser na qual toda determinação exterioresao objeto pensado e de que o movimento do pensarnão
parecia extinta ou eliminada pela abstração". Totalidade concreta. o resulta de operação exterior. Não há regras do pensar fora do seu
capital é, também ele, o ser realizado da mercadoria. funcionamentoefetivo, não há método exterior ao seu objeto. Essa
Ciência do conceito concebendo-sea si mesmo, a Lógica é "o co- lógica é bem o fundamento de uma teoria da historicidade. Mas como
meço de uma outra esfera e de uma outra ciência". Ciência nova? Marx pode conservar disso a medula lógica e rejeitar ao mesmo tem-
Metaciência? po a filosofia da História que seria o seu avesso?Revirando o sistema.
Ciênciado terceirotipo, diz Spinoza. Com uma teoria radicalmente imanente da história ritmada pelo con-
Ciência do contingente, observa Leibniz. flito, a lógica da coisa encontra-sepor suavez modificada. A teoria da
Ciência especulativa, acrescenta Hegel. historicidade torna-se seu fundamento.
"Ciência alemã", resume Marx. Sua novidade vai ao encontro de O que permaneceé o esforço em direção a uma outra maneira de
"uma dessasvelhasciênciasque a metafísicamoderna e a filosofia po- fazer ciência.42 Remando contra a racionalização das Luzes, Hegel
pular, tanto dos antigos quanto dos modernos, quasesempre conhece- quasenão variou sobre esseponto. Sua alocução inaugural de outu-
ram muito mal".'' A dialética, aí está a palavra. "A dialética foi não bro de 1818 adianta a idéia de que a nação alemã, que acaba de "sal-
raro considerada uma arte, como se dependessede um talento subjetivo var sua nacionalidade", acha-seprojetada por seu atraso à vanguarda
em vez de situar-se na objetividade do conceito." É preciso considerar da frente filosófica: "Essa ciência refugiou-se entre os alemãese só
ao contrário como excessivamenteimportante o fato de que a dialética vive entre eles." No momento em que os saberescaem no domínio da
"acabe por ser novamente reconhecida como indispensável à razão». O opinião ou da simples convicção, ele mantém o timão da verdade: "0
espírito positivo e o cientificismo triunfantes não estavamanimados a que me propus e o que me proponho como meta de meus trabalhos
perdoar essedesafio a Hegel. Suadialética arriscava-sea embaralhar de filosóficos é o conhecimento científico da verdade."4a
novo as fronteirasda ciênciae da ficção, da verdadee do erro. Ela en- Não há "opiniõesfilosóficas". Nós que o digamos!
corajava a rebelião contra o pacto do saber e do poder. 4zComo escreveCatherine Colliot-Thélêne, a segunda parte da Lógica(doutrina
Nosso século não cessou de confrontar-se com essedesafio, de de- da Essência) "experimenta no fogo do pensamento especulativo a consistência
sinsularizar e de peninsularizar o conceito de ciência, de experimentar a das categorias fundamentais das disciplinas científicas ordinárias: coisa, lei, for-
flutuação de sua fronteira com a filosofia ou a crítica, de descobrir no ça, necessidade,causalidade,ação recíproca. Essaprova revela não a ausênciade
validade dessessaberes, mas o caráter limitado da inteligibilidade que eles pro-
desinteressecientífico insuspeitáveisdívidas sociológicas, de explorar,
põem [-.]. Em outros termos, não são os saberesfinitos ciências ordinárias, cuja
pelos caminhos da etnologia e da antropologia comparativas, outros validade a especulaçãohegeliana questiona, mas a ideologia científica" (Le Dé-
modos de pensamento a que seria presunçoso negar qualquer cientifici- sencbantement de I'Élat, Paria, Éditions de Minuit, 1992, p. 38).
43Friedrich Hegel, prefácio à segunda edição do Précis de J'enc)pc/opédledes
+i Friedrich Hegel, l,ogiq#e, 11,pp. 557, 572. scfences pbilosopbiq#es (1827), Paria, Vrin, 1987, p. 15

308 309
A ORDEM DA DESORDEM
14
MARX. O l NTEMPESTIVO
l
Nessa visada de verdade, convém primeiro distinguir as ciências do ele rabisca os rascunhos dos Grw?zdrisse,em meio à excitação da
empa'íms, que "se propõem e oferecem leis, proposições gerais, as nova crise americana. Lenin depois de agosto de 1914, quando seu
idéias do que existe". A clê cia espec /afaz/anão deixa de lado seu universo de pensamento corre o risco de desmoronar junto com a falida
conteúdo empírico. Ela reconhecee utiliza seu elemento geral. Con. Internacional socialista. Para Marx, a releitura fortuita da l,ógica
serva as mesmas categorias, as mesmas formas de pensamento, os fornece as chaves do Cáfila/. Para Lenin, os Cadernos sobre a Lógica
g
mesmosobjetos, mas os transforma para resolver os paradoxos en- constituem o exercício espiritual preparatório para o golpe de audá-
gendrados pela abstração do entendimento. Ela é a superação ima- cia estratégico de outubro.
nente onde "a exclusividade e a limitação das determinações do en- A idéia de uma "ciência filosófica" que não se desarmediante da
tendimento apresentam-setais como são, isto é, como sua própria sagraçãodas ciênciaspositivas é a trovoada inaudível de Hegel. Que
negação; todo o finito tem por característica superar-se (sícb au/be- a de Marx não deixa de ressoar.Como não ter ouvido esse"pensa'
bei)": "0 mome#fo espec /al/z/o ou posílít'amenfe rac/o/za/apreende mento do saber" que, semexcluir a ciência, "revira e transbordaa
a unidade das determinaçõesem sua oposição."44 ideia dela" ?'s Como ter tão obstinadamente ouvido mal ou despreza'
Sejam portanto as ciências empíricas, positivas ou "inglesas". do essetrovão ensurdecedor? "0 Cáfila/ é uma obra essencialmente
E a ciência "especulativa", "filosófica" ou "alemã». subversiva. Menos porque conduziria, através da objetividade cientí-
Pois "o conjunto da filosofia constitui realmente uma única ciên- fica, à conseqiiência necessáriada revolução do que por incluir, sem
cia; entretanto, pode-setambém considera-laum conjunto de várias formula-lo em demasia,um modo de pensamentoteórico que trans-
torna a própria idéia de ciência. Nem a ciência nem o pensamento
.1

ciências particulares". É aliás o que distingue uma enciclopédia filo-


sófica de uma "enciclopédia ordinária", simples "agregado de ciên- saemcom efeito intactosda obra de Marx, e isso no sentido mais
cias reunidas de maneira contingente". forte em que a ciência ali aparececomo transformaçãoradical de si
Para Hegel, o que está em jogo nessa distinção é fundamental. mesma, teoria de uma mutação sempre em jogo na pratica, assim como,
Trata-se de resistir ao desencantamento da modernidade. Com "seu nessaprática, mutação sempre teórica."'6 Ainda que ela Ihe acarrete,
pensamentoformal, abstrato,oco", o período das Luzesesvazioua por puro mal-entendido,o reconhecimentodos representantesdiplo-
religião de todo o seu conteúdo, em particular da sede de verdade que mados do saber, essa "terceira fala" científica de Marx permanece
ela podia conter em si. Daí por diante, "as generalidades e as abstra- portanto ligada, segundo Blanchot, à sua "segunda fala" política,
ções, a água insípida de algum modo de um racionalismo gasto e sem "breve e direta", que clama por uma "decisão de ruptura" violenta,
vida, não admitem o que têm de específicoum conteúdo e um dogma pela recomendação da "revolução permanente" como "exigência sem-
cristãos determinados e completamenteformados". Anunciando a pre presente
ambivalência do romantismo nascente,a tradição protesta contra o
arbitrário da razão geométrica. A água insípida de um racionalismo
gasto e sem vida? O século não sentirá falta disso. '5 JacquesDerrida, Specrresde Àlafx, op cit., p. 64. Ver também Tona Smith,
Nas horas da mais profunda incerteza e da dúvida mais insinuan- Tbe l,oglc o/ Maré's Caplfal, SkateUniversity of New York Press,1990, e Dfa-
lecricaJ Social Tbeory and Ifs Crirlcs, Nova York, 1994. Ver também Roy Bhaskar,
te, Marx e Lenin recorreram à grande l,ógíca. Marx em 1858, quan- Dfalectjc, tbe P lse o/r Freedom, Londres, Verso, 1994.
« Maurice Blanchot, l,es Trofs parolos de À4arx, emL'Amftfé, Pauis,Galli-
mard, 1971.

310 31 1
+
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

PERMANÊNCIAS DA CRÍTICA científica da concorrência pressupõe com efeito que a natureza íntima
do capital seja conceituada."'8 Dos Manuscritos parisiensesao Capi-
De Spinoza,de Leibniz, de Hegel, Marx recebeuma idéia de ciência tal, a teoria conserva-seintegralmente "crítica"
irredutível à simplessoma dasciências positivas. A linha divisória das Projetada desde1 845 e conduzida com uma tenacidade exemplar,
águas deslocou-se entretanto. Sob o impulso das ciências modernas. a crítica da economia política é seu fio vermelho. Ela não trai nenhu-
já não setrata somentede desenredara filosofia da teologia. A futura ma nostalgia filosófica residual no momento de abordar as terras fir-
dá-sedaí por diante no próprio seio da filosofia, entre a filosofia es. mesda ciência económica. A despeito da permanência do termo, seu
peculativa (tratada desde A idem/ogfa a/emã como uma ideologia ao conceitovaria, de uma forma crítica da filosofia a uma forma crítica
quadrado)e a filosofia da praxis (que se deslocapara a "saída da da ciência ou "da crítica como prática teórica da filosofia à crítica
filosofia"). Secertamente já não setrata apenas de interpretar o mundo. como prática teórica do comunismo". Reivindicada desdea corres-
a saída da filosofia nem por isso se reduz à oposição entre ciência e pondência de juventude, a "crítica impiedosa a toda a ordem existen-
ideologia. Lançado na história, o conhecimento do terceiro tipo tor- te" tem tambémsuasconstantes,especialmentea unidade da teoria e
na-se teoria crítica e pensamento estratégico. da prática oposta a todo saber especulativoou doutrinário. O devir
Manuel Sacristanretira assim uma tripla noção de ciência em crítico da filosofia conduzem direção à prática para aliar a arma da
Marx: crítica à crítica das armas. Pois, sobre o campo de batalha conceptual,
-- a Ciência (positiva ou inglesa); a crítica é inicialmente uma arma branca de gume duplo, contra a
-- a Crítica (de inspiração jovem-hegeliana segundo ele); ilusão científica de aceder ao real pelos fatos, e contra a ilusão idea-
-- a deutscben 'Wissenscbaft. lista que absorve o real em sua representaçãosimbólica.
Tornada teoria revolucionária,a ciência,de acordo com Marx. Tratar-se-ádoravante de "zombar como crítico"
articula essastrês dimensões na Cr im da economia po/ ica:4z "Não Em lugar de "excomungar como santo".4P
temos que examinar aqui a arte e a maneira como as leis imanentes O conceito de crítica chega a Marx através de Feuerbach.
[tendências] da produção capita]ista se refletem [manifestam] no No verbete "Crítica" da Enciclopédia, escreve Marmontel: "Que
movimento [exterior] dos capitais, fazem-se valer como leis constran- deve fazer a crítica? Observar os fatos conhecidos, determinando, se
gedoras da concorrência e chegam por isso mesmo à consciência dos
capitalistas individuais como motivos de suas operações. A análise +l "Die Art und Wiesc, wie dle fama e te Geselze des kapitalistischen Produ-
ktion in der ãussern Bewegung der Kapitale erscheinen, sich als Zwangsgesetze
+7Lucien Sebagpropõe uma outra versão dessatríade teórica: a "teoria revolu- desKonkurrenz geltend machen und daher als treibende Motive dem individue-
cionana apareceao mesmotempo como utopia, como ciência e como desvela- llen Kapitalistenzum Bewusstsein
kommen,ist jctzt nichozu betrachten,aber
mento cotidiano do conteúdo da praxis que é a nossa"(À4arxlsme ef slmclKrd- soviel erhellt von vornherein: Wissenschaftliche Analyse der Konkurrenz ist nur
lisme, Paria,Payot, 1964, p. 68). Encontramosali a ciência (inglesa)e a crítica mõglich, sobald die innere Natur des Kapitale begriffen ist, ganz wie die schein-
(como dcsvelamcnto), mas a ciência alemã desaparececm favor da utopia en- bare Bewegungder Himmelskõrper nur dem verstãndlich, der ihre wirklich, aber
quanto conhecimentoantecipativo Inscrevendo-se nessaproblemática,Henri Ma- sinnlich nicht wahrnehmbareBewegungkennt"(Maré-Engels Werhe,t. XXlll,
lespropõe uma leitura estimulantedo retorno não dominado de uma utopia mal P. 335)
deslocadaemMan e de seusefeitossobreo conjunto do dispositivo teórico(Henri 49Karl Marx, Correspondance,Paras,Éditions sociales,t. 1,p. 458. Sobrea
Maior, Co gédfn I'Ufopie, Paras,L'Harmattan, 1994, c Cona/oiler J'impossible, variação dos conceitos de crítica, ver especialmenteHenri Males, Congédier
Paras,
Albin Miche1,1995). ' ' I'UloPje, OP. cit., PP. 34-42.

312 313
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

possível, suas relações e suas distâncias: ratificar as observações defei- entreabrir o campo dos possíveis.Ela é menos uma nova doutrina do
tuosas, em uma palavra convencer o espírito humano de sua fraqueza que uma "postura teórica", uma relação polêmica com a história, que
para fazê-lo empregar utilmente o pouco de força que ele esgotaeu se recusa a congelar a inteligibilidade do real na hipóstase da ciência.
vão; e opor'se portanto àquele que quiser sujeitar a experiênciaàs Tornada crítica da economia política, ela será uma espéciede ciência
suas idéias: teu ofício é interrogar a natureza, não fazê-la falar." Es- negativa, irredutível aos enunciados dogmáticos e doutrinários. Recu-
coramento da razão secularizada, a crítica fixa limites ao delírio de sando-seo menor repouso, ela sabe que nunca terá a última palavra
poder das ciências particulares tentadas a estender abusivamente o eque setrata no máximo de conduzir o pensamentoao limiar da luta,
seu domínio específico."Arte de julgar e de distinguir", de acordo ali onde ela toma seu impulso estratégico.
com o Dlcíofzárfode Bayle,ela traça a linha demarcatóriaentre as Essa crítica cria um laço entre o momento necessário das ciências
prerrogativas da razão e o que Ihe escapa. Erro e verdade não têm positivase a totalidade destotalizada da ciência alemã. Ela media sua
sentido senão sob sua jurisdição. Além começam as terras inquietan- relação interditando o fechamento de um novo sistema, que seria a pior
tes dos monstros físicos e mentais. "Ciência das margens", a crítica das ideologias. Conscientedessepapel de impedimento, Sacristannão
anuncia-se portanto muito cedo como a má consciência das ciências tira disso todas as consequências para a "ciência normal". Esta última
instrumentais.)u
aparece não raro em Marx pela invocação referencial de suas disciplinas
Com Feuerbach, a questão crítica tradicional das condições de rainhas(a química, a física, a astronomia). Que vale a extensãodesses
possibilidade enuncia-se doravante como o questionamento da encama- modelos à economia ou à história? Que maneira de fazer ciência repre-
ção do universalno particular, da espécieno indivíduo. A crítica recebe senta o triângulo teórico cujo cume "a ciência alemã" parece ocupar?
como missão nova transpor o horizonte crepuscular da clausura histó- Quais são as relações, de complementaridade e de contrariedade, de
rica: "Eis precisamente de onde nasce a atitude crítica: a constatação de inclusão e de dominação, entre crítica e ciência alemã, entre ciência
que o Saber absoluto hegeliano não extinguiu todas as luzes da história. normal e ciênciaalemã, entre crítica e ciência normal? A crítica teria o
que o Sol do espírito não aspirou toda a luz do mundo. Que faça ainda papel de impedir que se pense em círculo, buscando constantemente
dia no mundo, que haja ainda um mundo depois que o sol especulativo manter a ciêncianormal em seushumildes limites?As ciênciasnormais
brilhou, eis a verdadeiramorte do Sol! Com a morte de Hegel, a Crítica seriam os fragmentos de uma "ciência alemã" que as envolve e supera?
despertanum mundo admirado por não serdissolvido na realização da A "ciência alemã" limitaria o horizonte da crítica reduzida a interpor-
Idéias-.]. A Crítica seráportanto a guardiã dessemundo que perdeuseu se entre saberesfragmentários?
facho especulativoe ao qual não restam.- senãoguardiãs!"s' Torniqucte extraordinário! Recusando as antinomias mutilado-
A crítica experimenta o começopara melhor desprendero anel do ras da parte e do todo, do sujeito e do objeto, do absoluto e do rela-
sistema.Ela quebra o círculo conceitual, muito habilmente fechado. tivo, do singular e do universal, da teoria e da prática, a crítica seria
da grande 1.(5gica. Ela fende sua totalidade desesperadamente lisa para de algum modo o Espírito Santo de uma racionalidade dialética, presa
dos espectros conquistadores da racionalidade instrumental, em vez
de fazer o papel do primo pobre de uma santa trindade científica.
se"A crítica é bem uma ciência das margens", Michel Serras, l.e Passage d Nord-
O#esf, op. cit. Essasarticulações determinam o conceito de conhecimento cien-
si Paul-Laurent Assoun e Gérard Raulet, À arxlsme ef l#éorie crftlq e, Pauis, tífico semnunca defini-lo positivamente.Elas dão à distinção entre
Payot, 1978,p. 36. ciência clássicae ciência vulgar um conteúdo que é precisamenteo da

314 315
n
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

crítica da economia política. Se só houvesseciência positiva ou nor- prática "científica" faz dele "um autor metafísico original de sua
mal(analítica), não haveria terceira via possível entre os campos rigo- própria ciência positiva", "um cientista que apresenta a particulari-
rosamente delimitados da verdade e do erro, entre boa ciência e iná dade pouco frequente de ser o autor de sua própria metafísica, de sua
ideologia. Se só houvesseciência a/emã (sintética), todas as ciências. visão geral e explícita da realidade".s3Primeira ruptura interna na
clássicas ou vulgares, deveriam sofrer a admissão a seu sistema. Por figura dominante da ciência, a caracterização, desde 1844, da econo-
oposição à maçante esterilidade da apologética vulgar, a fecundidade mia política como "infâmia" permaneceria estéril semo recurso hege-
clássica insiste na tensão crítica de uma totalização aberta. A crítica liano de 1858.
da economia clássica, de suas verdades como de seus lapsos revelado- Contrariamente ao que pretende Sacristan, esse"retorno" de modo
res, inscreve-se na ordem do dia quando a generalização da produção algumsignifica uma superaçãodefinitiva da "crítica" para a "ciência
mercantil dá seu conteúdo às abstraçõescientíficas do Gzpilal. A alemã", espéciede epistemologia geral ou de metafísica racionalizada.
compreensão do presente comanda então a do passado. A forma de- Suapersistência no título do(bpifa/ testemunha uma tensão teórica não
senvolvida desvelaos segredosdas formas embrionárias sem nem por resolvida. Marx conserva-sedesmembrada entre a fecundidade da ciên-
isso constituir o seu único destino inevitável. cia positiva e a insatisfaçãopersistentedo saber diabético.A "crítica"
Se o presente comanda o conhecimento do passado, a "ciência permite conciliar os dois. Mau compromisso ou resistênciasalutar que
alemã" não seria então uma espéciede sabedoria crepuscular anunci- retém a razão instrumental no declive de sua própria fetichização?
ando o fim da história numa totalização transparente a si mesma?A Trabalho de desmistificação e desfetichizaçãoà escuta do discur-
crítica conjura essefim ameaçador. O presente não se contenta em so do capital, a crítica (da economia política) não tem com efeito a
dominar de suas alturas os borrões do passado. Ele escruta os ofusca- missão de dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro. Nos dois primeiros
mentos do real e espreita, sobre as cristas do futuro, a cintilação de livros do Cáfila/, ela dilacera as aparências,arranca as máscaras,
possíveis irrealizados. desvelaos seresduplos da mercadoria e do trabalho, penetra os mis-
térios da produção, elucida as metamorfoses da circulação. No tercei-
O reencontro "acidental" de Marx com a lógica hegeliana (sua relei- ro livro, parte enfim para o assaltoà mística do capital.
tura de 1858) não anuncia uma recaída especulativa.Antes permite a No emprego dos meios de produção, a economia "aparece co-
elaboração de uma "concepção científica própria". A "ciência alemã» mo uma força inerenteao capital, como um método próprio ao mo-
não renuncia ao conhecimento das essências.Na medida em que ela do de produção capitalista que o caracteriza": "Esta representação
perpetua a aspiração a uma ciência do singular, sua "metafísica foi [Vors[e// ngwefse] surpreende tanto menos quanto corresponde à
fecunda para a ciência de Marx": "Esse soberbo programa pré-crítico aparência [der Scbein] dos fatos, e que em realidade a relação capi-
marca o êxito e o fracassoda contribuição de Marx à ciência social e ta[ista dissimu[a sua estrutura interna [im2zernZusammefzbafzg] na
ao saber revolucionário."sz indiferença total, a exteriorização e a alienação [.Ausser/ícb&eif/
Em que consiste essemisto de êxito e fracasso?Arrancar Marx às Efz[fremdw7zg]em que ela coloca o operário quanto a condições de
suas raízes hegelianaspara instala-lo na normalidade das ciências realização de seu próprio trabalho." O trabalhador só pode mos-
modernas revela contra-senso. Desconcertante em muitos aspectos, sua trar indiferença para com os meios de produção que sevoltam con-

szManuel Sacristan,SobreÀ4an-., op cit., p. 364

316 317
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

tra ele como meios de exploração. Ele comporta-se diante do cara. o trabalho incessante da consciência contra suas próprias representa-
ter social do trabalho (o trabalho de outrem) como diante de um ções religiosas numa sociedade historicamente determinada. O pró-
"poder estranho" (a/s z e er /remdelz Macbl). Mas "não se fica prio processocapitalista é a forma determinada do processosocial de
nessa alienação e nessas relações de indiferença entre o operário produção no quadro de relações de produção específicas. Ele produz
portador do trabalho vivo e a utilização económica, ou seja, racio- e reprodzíz essasrelações de produção e seus agentes, o capital e o
nal e estritamente calculada, de suas condições de trabalho": o "des- trabalho assalariado. O conjunto das relações dos agentes entre si e
perdício da vida e da saúdedo operário", "o envilecimento de suas com a natureza constitui a sociedade sob o aspecto de sua estrutura
condições de existência" tornam-se a condição de elevação da taxa económica. As condições materiais são os suportes (Traem) de rela-
de lucro. O capital aparece assim cada vez mais "como um poder ções sociais em que os indivíduos se acham implicados.
social" cujo agenteé o capitalista. "Parecenão haver mais relação O dinamismo do capital prepara as condições de uma socializa-
possível entre ele e o que pode criar o trabalho de um indivíduo ção efetiva dos meios de produção e do trabalho. Ele cria portanto os
isolado; o capital aparececomo um poder social alienado, tornado meiosmateriais e "o germe de uma situação" que, numa sociedade
autónomo, uma coisa que se opõe à sociedade e que a afronta tam- organizada de outro modo, permitiriam uma correlação mais restrita
bém enquanto poder do capitalista que resulta dessa coisa." A con- entre trabalho e trabalho excedente, em outras palavras uma libera-
tradição entre o poder social do capital e o poder privado dos ca- ção aumentada de tempo socialmente disponível e uma reorientação
pitalistas industriais torna-secadavez mais gritante. A identificação de sua utilização de acordo com uma lógica de acumulação não neces-
do capital com o lucro, da terra com a renda, do trabalho com o sariamente quantitativa. A "riqueza verdadeira da sociedade" (das
salário, tal é "a fórmula trinitária que engloba todos os mistérios wfr&/icbe Refcbl#m) não dependecom efeito da duração absoluta do
do processosocial de produção". Enquanto forma física, o interesse trabalho, mas de sua produtividade: "0 reino da l+hçldqdç..pmente
do dinheiro escamoteiao lucro e a mais-valia, que "caracterizam começa-quantia-se-deixa--de- ;trabalhar poilillüe»idade.imposta do
especificamente o modo de produção capitalista".s4 exterior." Não além da esfera da produção, mas dentro da necessida-
O prodígio do aumentoA-A' do dinheiro que gera o dinheiro é de imposta da reprodução global. Não além da necessidade,mas den-
bem então "a forma vazia do conteúdo do capital" e a "mistificação tro da própria dialética da necessidadee da liberdade.
capitalista em sua forma mais brutal". No capital portador de interes- À superfície enganadora da circulação, o capital aparece portanto
serealiza-se assim a idéia do fetiche capitalista que atribui ao produto como KapílaZXetfscb(fetichecapitalista do capital fetichizado). Sob a
acumulado do trabalho, fixado como dinheiro, a fabulosa capacidade forma de capital de interesse, ele reveste na produção global sua for-/j
de produzir mais-valia graças a "uma qualidade secreta inata" e "de ma característica mais alienada. Enfim, na renda, a propriedade fun-/
acordo com uma progressão geométrica". diária suscita alienação e "escleroses recíprocas". Resulta daí uma
O fato de abalar essas"qualidades ocultas" explica a falsa cons- mistificação levada ao paroxismo, uma reificação(Vendi g/icbwng)
ciência dos economistas,a inacreditável e no entanto real mistificação generalizada das relações sociais, uma imbricação das relações mate-
que transforma as relações sociais em "propriedade das próprias coi- riais e da determinaçãohistórico-social. Lá onde Max Weber verá um
sas" e "em coisa a própria relação de produção". A crítica é portanto mundo desencantado,Marx maravilha-se ao contrário com prodígios
de um mundo encantado,de cima para baixo. Onde os fetichesdo
s4Kart Marx, l.e Capital,livro 111,
t.'l, op. cit., p. 103. dinheiro, do Estado, da ciência, da arte erguem-seem sua imobilidade

318 319
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

de pedra, como as estátuasda Ilha da Páscoa.Onde os seresandam não aguana cabeça. Ela resulta das próprias condições de sua autopro-
sobre a cabeça. Onde o Sr. Capital e a Sra. Terra, personagens sociais duçãó: Pelo tempo que se conservarem as relações que a engendram, a
e simples coisasao mesmotempo, dançam fantasticamente sua ronda alienaçãopode ser combatida mas não suprimida. Num mundo presa
macabra. Os agentesda produção sentem-seem casanas "formas ilu- do fetichismo mercantil generalizado, não há saída triunfal da ideologia
sórias' onde eles se movem todos os dias. É o reino da personificação pelo arco da ciência. A crítica conhece sua própria incapacidade para
das coisas.e .4a coisificação das pessoas.ss possuir a verdade e dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro. Seucombate
É a !eliglQlidade diabólica da .BQdÊID4.vidaçotidiana. sempre recomeçado contra os espinhos invasores da loucura e do mito
A deificaçãodas relaçõessociaise o fetichismo triunfante da mer- não teria como acabar. Ele apenas conduz a eclipsantes clareiras onde
cadoria determinamo papel e os limites da crítica: "Ao expor desta pode surgir o evento político.
maneira a reificação das relaçõesde produção e como elas se tornam A crítica nunca está desobrigada para com a ideologia.s7Ela não
autónomas diante dos agentesda produção, nós não mostramos deta- pode fazer melhor que desmistificar e resistir, colocar as condições
lhadamente como as interferências do mercado mundial, suas conjuntu- para fazer perder as ilusões e o desengano reais.
ras, o movimento dos preços de mercado, os períodos do crédito, os O resto se dá na luta. Onde as armas da crítica não podem mais
ciclos da indústria e do comércio, as alternâncias de prosperidade e de prescindir da crítica das armas. Onde a teoria torna-se prática. E o
\.

crise aparecem a essesagentescomo leis naturais todo-poderosas, ex- pensamento, estratégia.


pressão de uma dominação fatal, e que se manifestam a eles sob o aspec-
to de uma necessidadecega. Nós não o mostraremos,porque o movi- Visando primeiro a desfazeros sortilégios da mercadoria, a "ciência do
btento real da concorrência situa-sefora de nosso plano e porque não capital" não teria como começarpor um discursodo método.Se-
demos que estudar aqui senãoa organização interna do modo capitalista ria ainda procurar em vão "a ciência antes da ciência" e permane-
de produção, de algum modo em sua média ideal."sóO fetichismo não cer prisioneiro das aparências.ss No esconde-esconde entre Sebe/n e We-
é mero disfarce.Sefosseo caso,uma ciência ordinária poderia ser sufi- se#, a essência,que faz das coisas o que elas são, opõe-se contraditori-
ciente para arrancar-lhe a máscarae deixar à mostra sua verdadeocul- amente à sua existência fenomenal. Ela opera do interior o jogo das
tada. Seele fosseapenasuma má imagem do real, bons óculos bastari-
am para retificá-lo e mostrar o objeto tal como ele é em si mesmo. Mas s7Ver GeorgesLabig, l.e Paradfgmed# GramoHomo, Pauis,La Brêchc,1988;
.a representaçãodo fetichismo atua permanentemente na ilusão recípro- e Patrick Toro, Àiarr ef le proa/ême de I'idéologêi Paras,PUF, 1988: "Desmisti-
ca do sujeito e do objeto, indissoluvelmenteunidos no espelho defor- ficar não serveportantos.tanto'qüaiito possível,mesmoquando setrata dc uma
empresa da ciência, senão para produzir a verdade de uma relação na esfera dos
mante de sua relação. Não se trata portanto de fundar uma ciência que
especialistas,dos teóricos, dos ideólogos, e não na esfera dos produtores, prisi-
dissiparia uma vez por todas a falsa consciência e consagraria a sobera- oneiros do véu, pois vivendo e continuando a viver, através de sua atividadc, no
nia lúcida de sujeito dono e possuidor de seu objeto. A falsa consciência elemento não reflexivo da ilusão, indefinidamente submetido à sua inegável for-
ça. Os que vivem e agem o mais perto da realidade são assimem virtude de uma
ss O m# do e ca lado é o título de uma análisecomparativa entre as antigas necessidadeque no presente já não aparecerá como paradoxal, as primeiras e as
religiões pagãs e as religiões dos "selvagens" publicada em 1691 pelo holandês mais numerosas vítimas da aparência" (p. 96).
Balthazar Becker. Ver Alfonso lacado, l,e Férfc#isme,blsloire d'## colzcepl, Pa- sl Em Que cafre d# Capilar?, Jacques Bidet empenha-scem mostrar a arti-
ras, PUF, 1992. culação da teoria do fetichismo com as relações sociais que definem o conceito
sõKart Marx, l,e Capffal,livro 111,
t. 111,op. cit., p. 208. de valor. A evolução da versão alemã do CáFIla/ para a versão francesa, seguindo

320 321
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

aparências: em vez de o mundo dos fenómenos ser o das leis, a determi- . «Os fenómenos que vamos estudar neste capítulo supõem, para
nação do conteúdo concatena os fenómenos com sua lei, os preços coH conhecersua plena expansão, o crédito e a concorrência no mercado
o valor. A manifestação da essênciafaz assim parte da aparência e toda mundial. Mas não se podem descreveressasformas mais concretas da
ciência implica uma teoria do aparecer semque a essência,de que Hegel produção capitalista em seu conjunto senão depois de haver compre'
fala como de um "deserto", sejapor isso mais rica que a aparência. endido a natureza geral do capital."
Além das únicas grandezas mensuráveis, a ciência apresenta-se -- "Veremos que a maneira como o filisteu e o economista vulgar
como atravessada por aparências, pois "toda ciência seria supérflua vêem as coisas decorre, falando propriamente, do fato de que apenas
se a essênciae a aparência das coisas se confundissem": a forma direta de manifestação das relações reflete-se em seus cére-
-- "A análise científica da concorrência pressupõe a análise da bros, não sua conexão íntima. Seja dito de passagem, se fosse a últi-
natureza íntima do capital. É assim que o movimento aparente dos ma, que necessidadehaveria então da ciência?"
corpos celestes não é inteligível senão para aquele que conhece seu -- "0 papel da ciência é precisamente explicar como age essalei
movimento real, movimento que não sepode perceber pelos sentidos." do valor. Se se quisesse portanto começar por 'explicar' todos os fe-
nómenos que, em aparência, contradizem a lei, seria preciso poder
prover a ciência antes da ciência. Justamente o erro de Ricardo, que,
um processo de "maturação teórica", iria no sentido da eliminação de certas ca-
tegorias filosóficas como singular/particular/universal ou sujeito/objeto. De onde. no primeiro capítulo sobre o valor, supõe dadas todas as categorias
três concepçõesdo fetichismo enquanto "categoria estrutural da ideologia da pro- possíveis,para demonstrar suaconformidade à lei do valor, ao passo
dução mercantil": que é necessáriocomeçar por explicar essascategorias [...]. Como o
a -- como deificação;
b -- como forma valor; próprio processo do pensamento emana das condições de vida e é, ele
c -- interpretação "estrutural".
mesmo, um processo da natureza, o pensamento, enquanto apreende
O fetichismo como deificação representa ao mesmo tempo "o scr inverso" c realmente as coisas, não pode senão ser sempre idêntico e não pode
"a representação inversa do ser". Essainterpretação seria regressiva no sentido diferenciar-se senãogradualmente, em função da maturidade atingida
em que recairia numa problemática clássica da relação sujeito/objeto. O mérito pela evolução e portanto também da maturidade do órgão que serve
do Capflal seria ao contrário o de "desintegrar essacategoria globalizada do
sujeito" em favor do suporte(Tragar) ou agente de um sistema de relaçõessoci- para pensar. Tudo o mais é rodeio. [.-] O economista vulgar acredita
ais, seja o famoso "processo sem sujeito" de Althusser. A interpretação pela forma que está fazendo uma grande descoberta quando, achando-sediante
valor estagnadana defasagementre a lógica das condutas c a consciênciados da revelação da estrutura interna das coisas, vangloria-se com insis-
agentes.Segundo,enfim, a interpretaçãoestrutural, os produtores não entram tênciade que essascoisas,tal como aparecem,têm todo um outro
cm contato senãocomo cambistas e não, precisamente, como produtores.
No livro 1, Marx imagina quatro casosde transparênciaem que a relação
aspecto.De fato, ele se vangloria do seu apegoà aparênciaque ele
social se manifesta sema máscara do valor. O real é então um dado imediato da considera como a verdade última. Então, para que ainda a ciência?"s9
consciência, cuja ciência já não será necessário produzir. Ora, a falsa consciência Essesfragmentos e cartas mencionam constantes quanto à rela-
não é simplesmá-fé, mas visão falseada,que só uma iniciativa científica pode, çãocontraditória do fenómenocom a essência,da aparênciacom a
além das aparências,ratificar. Por que essalci continua desconhecidados produ- realidade. O conhecimento empírico imediato: a "percepçãopelos
tores? Porque seu campo excede o campo de experiência do produtor privado.
Há portanto fetichismo,no sentidoforte do termo, na medidaem que a lei do
valor que rege o mercado e preside às trocas dos trabalhos conserva-senecessa- s9Karl Marx, l,e Capital, livro 11,op. cit., p. 10; livro 111,t. 1, p. 301; carta a
riamente desconhecida dos produtores. Engels,27 de junho de 1857; carta a Kugelmann, ll de julho de 1868.

322 323
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

sentidos", os "fenómenos", a "aparência", o "movimento visível", a Quando a relação entre os homens toma a "forma fantástica de uma
"forma direta de manifestação", o "aspecto" etc. O conhecimento relaçãoentre coisas", quando sua ação social toma a forma da "ação
científico: "a natureza íntima", "o movimento real", "a essência", "o de objetos que mandam nos produtores em lugar de seremcontro-
movimento real interno", "a conexão interna", "a lei", "a estrutura lados por eles", não sepode mais ignorar que o fetichismo carrega
interna das coisas" etc. consigonão apenasa mistificação, mas ainda a dominação.Dife-
Os pares "superfície e profundeza", "ilusão e realidade", "frag- rentemente da dominação pessoal das sociedadespré-capitalistas, a
mentos e estrutura" são tantas outras expressõesaproximativas. En- dominação reificada torna-se impessoal. Efeito do fetichismo, a ali-
tre a percepção sensívele a estrutura interna, entre os fenómenos e o enaçãotorna-se um conceito histórico e não mais antropológico.
movimento real, entre a aparênciae a essência,entre o movimento No livro 1, o fetichismo designaexplicitamente "o caráter autóno-
visível e a conexão interna, entre o aspectoe a lei opera todo o traba- mo e estranho que o modo de produção capitalista em seuconjunto
lho do conceito, da ciência como produção e passagem(produção de dá aos meios de produção e ao produto". Ele implica diretamente
seuobjeto e não revelaçãode uma essênciaocultada). Essetrabalho a alienaçãodo trabalho e do trabalhador: "0 próprio trabalho do
do pensamento sobre o real parece repetir a confusão que Althusser produtor foi alienado, apropriado pelo capitalista e realizado num
atribui exclusivamente a Engels: o trabalho científico faria aparecer produto que não Ihe pertence mais." No livro 111,essarelação entre
uma relação problemática do real de pensamentoao real real, subme- fetichismo e alienação é lembrada em várias oportunidades: "0 capital
tido à crítica das aparências,mas não menos real. O movimento real aparece cada vez mais como um poder social. [-.] E]e torna-se um
é bem aquele dos planetas e não o de suas equações. poder social autónomo e alienado, que se opõe à sociedadecomo
Censurando Ricardo por ter querido fornecer "a ciência antes da um objeto."
ciência", Marx acusa-ode ignorar o trabalho científico como produção Essasrelaçõesfetichistas e alienadas nada têm de imaginário. O
e travessia, nos antípodas da confusão entre o pensamento e o real. Mas valor e os valores não são abstrações, mas realidades, a forma espe-
o pensamento continua sendo parte implicante do real, num processo de cífica real das relaçõessociais capitalistas. Nessas relaçõesde forma
"diferenciação gradual".óo Essa diferenciação íntima do objeto, essa com o conteúdo, de aparência com essência,o primeiro termo nunca
gestaçãodo sujeito no objeto, escapaà armadilha especulardo reflexo é sinónimo de ilusão. O labor científico da crítica não se reduz por-
tautológico. Pelamediaçãoda prática, a teoria pode "apreenderreal- tanto a um percurso, de abertura dos olhos da menteou de desembur-
mente as coisas" em vez de abraçar seu fantasma conceitual. ramento, da ficção à realidade. Trata-se de elucidar o próprio real.
Marx opõe portanto aparência e essência;forma e conteúdo; ilu- Assim, a forma valor não é dissipada como uma visão, mas revelada
são e realidade; fenómeno e substrato oculto; manifestação e conexão como um segredo (livro l).
interna. Essasantinomias fundam a necessidadee a possibilidade de A mistificação reside antes de tudo na transformação dos fatos
um conhecimento científico. O acessoà "conexão interna" passapor sociais em fatos naturais. Se se tratasse somente de ilusões, uma boa
uma desconstrução das aparências. teoria do conhecimento conseguiria dissipa-las: a consciênciasobera-
na, a evidência cartesiana, a revelação divina, o contrato liberal ou
ó' Tal é precisamente o postulado materialista reafirmado na carta a Kugelmann
ainda a reapropriaçãohegelianado mundo viriam na esteira.Ora, de
de 1868, ou seja, depois da publicação do livro l do Capital, em termos que maneira diferente da corvéia, a forma salário, o próprio tipo da apa-
lembram os dos Àla#uscrffos de í 844. rência, dissimula o tempo de trabalho não pago por trás do pagamen-

324 32S
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

to supostamenteintegral do trabalho. Do mesmomodo, enquanto Óa/#orepresentado nessamercadoria possua também essedup/o mrá-
preenche sua própria função necessária, o processo de circulação es- fer; em contrapartida, a análise que visa simplesmente o trabalho sem
camoteia o mistério da produção. Na reprodução global, a divisão do mais nada, tal como ela é praticada por Smith, Ricardo etc., deve for-
capital em diversasfunções, em uma multiplicidade de capitais, mas- çosamente chocar-se com problemas insolúveis. É de fato todo o se-
cara o ciclo do capital em seu conjunto, apaga as provas do crime gredo da concepção crítica. 3) Pela primeira vez, o sa/árío é apresen-
original da expropriação primitiva e a extorsão de valor excedente, tado coma a fama fenomenal inaciomt de uma relação qw essafottna
reforçando por conseguinte o fetichismo do dinheiro. dfssimu/a,e isso sob as duasformas do salário: o salário horário e o
É somente quando a produção mercantil se generaliza, quando o salário por empreitada."
capital produtivo submeteo capital mercantil e financeiro, que se pode Em suasnotas de 1880, enfim, ele sublinha "o que Wagner não
mudar de terreno, penetrar no laboratório secreto da alquimia capi- soubever": l) "que já, na análise da mercadoria, não se fica à von-
talista e vencer seu mistério. Esseconhecimento não é portanto meca- tade com as duas formas nas quais ela se apresenta, mas que se con-
nicamente submetido à sua determinação sociológica; ele não requer tinue dizendo: que nessadualidade da mercadoria reflete-se o caráler
menos a confrontação permanente, crítica e reflexiva, no horizonte dzlp/odo lraba/óo cujo produto é ela mesma,ou seja:o trabalho útil,
político de suaprópria práticacientífica. isto é, os modos concretos de trabalhos que criam valores de uso, e o
trabalho abstrato, o trabalho como dispêndio de força de trabalho,
Como Marx avalia suas próprias "descobertas"? E que relação entre- qualquerque sejao modo útil como ela é despendida[-.]"; 2) "em
têm com a noção de "ciência alemã"? seguida que no desemt/o/z/ime fo da forma z/a/or da mercadoria e, em
Em sua carta a Engels de 28 de agosto de 1867, escreveele: "0 última instância, de sua forma-dinheiro, portanto do dinheiro, o va-
que há de melhor em meu livro é: l) (e é sobre isso que repousa a lor de uma mercadoria exprime-se no valor de uso, ou seja, na forma
compreensão dos fatos) o realçamento, desdeo primeiro capítulo, do natural da outra mercadoria"; 3) "enfim que a própria mais-valia
caráler dzíp/o do tuba/bo, conforme ele se exprima em valor de uso deduz-se de um valor de uso específico da força de trabalho que per-
ou em valor de troca. 2) .A aná/ise do z,a/or excedente ifzdepelzdenle- tence exclusivamente a esta etc."; 4) "e que no meu entender, por
mefzfede suasformas parflc lares, como lucro, imposto, renda fundi- conseguinte, o valor de uso desempenha um papel cuja importância é
ária etc. É sobretudo no segundovolume que issoaparecerá.A análise inteiramente outra na antiga economia, mas que ele nunca é tomado
das formas particulares na economia clássica, que as confunde cons- em consideração senão onde uma tal consideração decorra da análise
tantemente com a forma geral, é uma salada." de uma formação económica dada e não de um raciocínio sobre os
Escrevendoainda ao mesmoEngelsem 8 de janeiro de 1868, termos ou as noções de valor de uso e de valor"
insiste: "I) Por oposição a toda a economia anterior que trata de saída Suas próprias descobertas científicas residiriam portanto, segun-
as oraçõesparticulares da mais-valia, com suas formas fixas de renda, do Marx, em:
lucro e interesse,como coisas dadas, analiso em primeiro lugar a for- -- o evidenciamento das formas gerais (ainda indiferenciadas) da
ma gera/ da mais-t/a/la onde tudo isso acha-se ainda no estado indife- mais-valia;
renciado, por assim dizer, no estado de dissolução. 2) Todos os eco- -- o evidenciamento do caráter duplo do trabalho;
nomistas sem exceçãoignoraram estefato bem simples: sea mercadoria -- a compreensãodo capital (assimcomo de seucorolário, o
é ao mesmo tempo valor de uso e valor de troca, é preciso que o Ira- salário) como relação social;

326 327
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

-- a compreensão de que o valor de uso não se extingue simples- perversada precisão,a buscada regularidade,da normalidade,da
mente no valor de troca, masconservauma importância específica. uniformidade "ocupa assim o lugar da dialética histórica". Ora, só
Elas põem a nu aliás o estatuto: sepode prever "cientificamente" a luta, mas não os seusmomentos
-- da forma geral em relação ao caos ("a salada") empírico; nem o seu desfecho.õ'
-- do desdobramento dialético da mercadoria como do trabalho: SÓse pode prever a luta!
-- da relação social inscrita na totalidade do movimento. Associando, em sua carga contra as "pseudociências", a teoria de
Marx à de Freud, Popper, em um sentido, acertou em cheio. Esses
Essas descobertas ganham todo o seu sentido à luz da "ciência alemã,, conhecimentostêm por objeto o conflito (luta de classesnum caso.
visando ao conhecimento sintético do concreto, tal como a singularida- luta de desejos no outro), cujo enunciado elas modificam permanen-
de do momento histórico ou os casospatológicos da cura analítica. temente pelo simples fato de pensa-lo.óz Da mesma maneira, para
A clarificação íntima da parte pelo todo determina o máximo Clausewitz, o conhecimento da guerra não podia ser concebido nem
de consciência científica possível de uma época sobre si mesma. Smith como ciência nem como arte. À falta de melhor, seria uma teoria.
e Ricardo entreviram uma ordem sob a desordem aparente do uni- votada a tornar-se estratégia: estratégia militar, estratégia analítica,
verso económico. Compreenderam que, longe de obedecer a alguma estratégia política.
vontade superior, essa ordem resultava de trocas e de transações A "ciência de Marx" não semantém decididamente em lugar sobre
entre indivíduos que procuram maximizar o seu próprio ganho. Espécie o pódio epistemológico de sua época. Constrangida por seuobjeto (as
de ímã estranho impondo uma regularidade imanente aos movimentos relaçõessociais e os ritmos económicos do capital), por uma lógica
irregulares do mercado, a lei do valor exprime essa"ordem da de- não linear de suas temporalidades, por "leis" desconcertantesque se
sordem" contradizem a si mesmas,ela aspira a uma outra racionalidade.
A "crítica da economia política" inaugura assim uma outra ma- "Ciência profética"?
neira de fazer ciência. Ela não se reduz nem à fundação de uma ciên- "Conhecimento de um terceiro tipo"?
cia positiva da economia,nem ao retorno especulativoà ciência ale- "Matemática dos conceitos" e "necessidade de um outro saber"?
mã, nem à negatividade da crítica. Teoria revolucionária, ela afronta
as miragens do fetichismo sempoder vencerseussortilégios.
Ao denunciar o equívoco de ciências naturais promovidas ao ói Antonio Gramsci,Cab]er de prfson 6, op. cit., pp. 171 e 369; Cabfer ]í, op
slafzis de "ciências por excelência" ou de "ciências fetiches", Gramsci cit., P. 201.
ózEm um texto de janeiro de 1964 sobre Freud e Lacar, retomado em Po-
apreendeessaoriginalidade. Convencido de que não existem ciên- sftfons, Althusser acentua esseparentesco: "A psicanálise,em seusúnicos sobre-
cia em si nem método em si, que a hipóstase de uma cientificidade viventes, ocupa-se de uma outra luta, apenas da guerra sem memórias nem me-
abstrataé ainda um mau torneio do fetichismo, ele combatea ilu- moriais, que a humanidade finge nunca ter deflagrado, aquela que ela pensa ter
são de um esperantoou de um volapuque científicos, conduzindo a sempre ganhado por antecipação, muito simplesmente por Ihe ter sobrevivido, de
viver e de se criar como cultura na Cultura humana: guerra que, a cada instante,
diversidade dos saberesa uma linguagem única. Pelas mesmasra-
acontece em cada um de seusabortos, que projetaram, deslançaram,rejeitaram,
zões, ele se indigna por encontrar no Ma zla/ de socio/agia popzl/ar, cada qual por si, na solidão e contra a morte, a percorrer a longa marcha forçada
de Bukharin, um conceito positivista de ciência "que vem em linha que de larvas mamíferas faz das crianças humanas sujeitos"(Positfons, Pauis,
reta das ciências naturais ou de algumas entre elas". Cedendo à mania Éditions sociales, 1982).

328 329
MARX. O INTEMPESTIVO

Todas essasfórmulas ecoam como um chamado a um outro sa-


ber, receptivo às razões da desrazão. Onde se exibida um pensa-
mento estratégico pelo qual uma teoria "obscura", "não evidente»
mais atenta ao que se oculta do que ao que se mostra, restaria por
Inventar.o'

8. Uma nova iminência

ó3"Seria preciso inventar uma teoria do conhecimento obscuro, confuso, matiza


do, não evidente,uma teoria do conhecimentoadêle(Michel Serres,Éc/aircisse
me#fs, Paria, Flammarion, "Champs", 1994, p. 215).

330
Marx apresenta às vezes seus cadernos e rascunhos como "ensaios
científicos", passagense encaminhamentos, e não como momentos de
apropriação de uma verdade objetiva. Pois "cabe precisamente à ciên-
cia desenvolver como age essa lei do valor. Se se quisessecomeçar
explicando todos os fenómenos que em aparência contradizem a lei,
seria preciso poder Ãormecera c/êncfa a tes da ciêncü.[...] Enquanto
o economista vulgar acredita que está fazendo uma genial descoberta
quando, achando-se diante da conexidade interna das coisas, se van-
gloria com insistência de que essascoisas, tais como aparecem, têm
um aspectointeiramentediferente. Ele de fato se envaidecepor seu
apegoà aparência que considera como a verdade última. Então, para
que ainda uma ciência?"i Nos antípodas das grandes ilusões empiris-
tas, a ciência não se oferecenas aparências. Ela se produz numa rela-
ção polêmica com a falsa evidência dos fatos.
Querer dizer "a ciência antes da ciência", é bem essaa armadilha.
A comexidade/nfernarevela com efeito um movimento de deter-
minações necessárias na ordem lógica, distinto do encadeamento su-
perficial, trivialmente causal, dos fenómenos. O trabalho científico
aparece assim no livro l do Cáfila/ como elucidação de um mistério.
A determinação do valor pela duração do trabalho é "wm segredo
ocK/fo sob o movimento aparente dos valores das mercadorias".z Ela
pressupõe a produção mercantil "completamente desenvolvida", de

l Karl Marx, Friedrich Engels, Lerlres s r l.e CapifaJ, Pauis, Éditions sociales,
1972, pp. 102 e 131. Especialmente a carta de Marx de 27 de junho de 1867 e
a carta dele a Kugelmann de ll de julho de 1868.
2 Karl Marx, l,e Capa/al,livro 1, t. 1, op cit., p. 70.

333
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

modo que uma "verdade científica" possaser dali retirada. Essaa razão Para traçar uma fronteira estável entre ciência e não-ciência, Al-
por que "a análisecientífica" segueum caminho "oposto ao movi- thusserfoi buscar argumento no prefácio ao livro 11,onde Engels
mento real". Ela começa"depois do fato consumadocom dadosiá compara o valor excedente entre os economistas clássicos ao oxigênio
estabelecidos, com os resultados do desenvolvimento". ' entre Lavoisier e Priestley: ambos õ haviam produzido, "mas sem saber
Sob o severochicote do dinheiro, o mundo fica enraivecido. Para o que tinham em mãos". Produzir não é descobrir. Ali onde se apres-
trazer à luz seusprodígios, é preciso, diz Marx no fim da segunda seção. savama ver uma solução,Marx vê ainda um problema. Por não te-
dar as costas à gritaria do mercado, abandonar "essa esfera barulhenta rem sabido distinguir trabalho e poder de trabalho, Smith e Ricardo
onde tudo se passa na superfície", descer ao "Zaborafório seca'eloda nunca souberam o que tinham em mãos.
produção", surpreender e desvelar "a produção da mais-valia, esse O conceito de valor excedente significa uma revolução copernica-
gra/zde segredo da sociedade moderna".3 Crítica de uma fantasmagoria. na ou um corte epistemológico? A essadivisão Engelsopõe, já no fim
onde o ídolo animado da moeda "parece fazer circular as mercadorias». da vida, uma concepçãoevolutiva e cumulativa da história dasciên-
a ciência dilacera as "falsas aparências" da troca. cias: "A história das ciências é a história da eliminação progressiva
Eis por que, diz ele, apenas nascida, a ciência burguesa da econo- dessasabsurdidades ou ainda sua substituição por uma imbecilidade
mia já se tornou impossível "entre nós" (na Alemanha): "A marcha nova mas cada vez menos absurda." Imagem menos conquistadora da
própria da sociedadealemã excluíaportanto qualquer progressoori- ciência? Trabalho de Sísifo da crítica, onde a ordem de absurdidade
ginal da economia burguesa, mas não sua crítica. Enquanto uma tal decrescente,sem se desvencilhar por completo da imbecilidade recor-
crítica representa uma classe,ela não pode senão representar aquela rente, permitedizer, com a modéstiade Pascal,o contrário do que
cuja missão histórica é revolucionar o modo de produção capitalista disseram os antigos sem contradizê-los? A descoberta do valor exce-
e, finalmente, abolir as classes,o proletariado."4 Percebendo até na dente não significa que se tenha acabado com Hegel ou com Spinoza:
falsa consciência do proletariado "uma intenção ancorada no verda- "0 que falta a todos essessenhores é a diabética. Eles estão sempre
deiro", Lukács levou essadeterminação social às últimas conseqüên- vendo aqui a causa, ali o efeito. Para eles, Hegel não existiu."ó
cias. A idéia de uma classerepresentadapela crítica levanta com efei-
to mais questões do que as resolve.
O ponto de vista de classeconstitui a barreira interna, o limite
negativoíntimo da ciênciaclássica.Ele limita seuhorizonte e dita sua TOTALIDADE ABERTA E CONTRADIÇÃO
relatividade: "0 que ressaltaem Smith não são as exposiçõesprofun-
das e exatas que ele mesmo deu, é o seu equívoco."s No cérebro dos A dívida de Marx para com Hegel foi freqüentemente contestada, como
economistas vulgares, "é semprea forma fenomenal imediata das re- se essealertecomprometedor significasse uma recaída metafísica. Em
lações que se reflete, não as relações internas". Aliás, "se tal fosse o 14 de janeiro de 1858, mergulhado na redação apaixonada dos Gt#lz-
caso, a que serviria ainda uma ciência"? drisse, Marx escreveu a Engels dizendo ter acabado de "dar novamen-
te uma folheada por puro acaso na l,ógíca de Hegel": "Se algum dia
3Kart Marx, l,e CaPflaZ,livro 1,t. 1, op. cit., p. 136. ainda voltasse a ter tempo para essetipo de coisas, teria bastante
+Ibid.,t.ll, p. 221.
s Karl Maré, l,e Capffal,livro 11,t. 1, op. cit., p. 198. 6 Friedrich Engels,carta a Conrad Schmidt, 27 de outubro de 1890

334 33S
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

vontade, em dois ou três cadernos de impressão, de tornar acessível Em Hegel, a totalização concreta é articulada e mediada. Diferente-
aos homens de bom sensoo fundo racional do método que Hegel mentedo sistema, cuja unidade repousa na violência, o todo é o conjun-
descobriu mas ao mesmo tempo mistificou." Infelizmente, ele nunca to de seusmomentos. Em Marx, ela procede de leis tendenciais e de uma
encontrou tempo para isso. causalidadeorgânica. O grande círculo aberto do GzPfla/ reproduz
Mas Lenin não seenganouquanto a isso. Depois de 4 de agosto "essaigualdade-consigo-mesmo semovente" através de suaspróprias di-
de 1914, confrontado com uma das grandesviradas da história hu- ferenciações e contradições. Quem diz mediação deve então pensar em
mana, ele também se voltou para a I'ógica de Hegel. Sua conclusão é direito, moral, instituições, reciprocidade das diferenças, lógica de con-
tão peremptória quanto provocante: os que acreditam que podem flitos e de oposições,e não em reconciliação formalmente proclamada.
dirigir-se diretamente a Marx, passandoao largo de Hegel, nada com- Essa totalidade destotalizada rompe com as noções correntes de
preenderão do primeiro. identidade, de causalidade, de tempo tomadas de empréstimo ao
À imagem da física clássica, a ciência positiva opera por redu- modelo mecânico.Ela indica uma lógica das relações,onde os ele-
ções. Inapreensível em sua circularidade perfeita e sem falha, a to- Hentos determinados da totalidade se co-determinam por sua vez
talidade apareceentão como uma categoria pré-científica por exce- mutuamente. Esse "saber em círculo" participa desse movimento in-
lência, suspeita de romantismo e de fascinação lírica para com os finito que, "mesmo se fosse possível saber tudo, e tudo de tudo, asse-
mistériosdo vivente.Na teoria de Marx, "a outra lógica" retorna guraria ainda a eterna renovação do conhecimento".8
à totalidade determinadae diferenciadaque despojaa articulação Essa totalização aberta é necessariamente, essencialmente plura-
(G/íederuzzg) de seus momentos. Na introdução à Fe/romeno/agia, lista
S

Hegel sublinha o alcance conceitual dessasmediações que inspiram Questão de relações e de mediações.
um "santo horror" ao entendimentoanalítico, "como se, usando
estapara outra coisaque não sejadizer que ela não tem nada de Onde começa uma totalidade?
absoluto e que certamente não tem lugar no Absoluto, se devesse Por onde apreendê-la?Onde encontrar a entrada que permita pe-
renunciar ao conhecimentoabsoluto". Essesanto horror "tem sua netrar sua opacidadee ilumina-la do interior? Onde atravessarsua
fonte numa ignorânciada naturezada mediaçãoe do próprio co-
nhecimentoabsoluto, pois a mediaçãonão é outra coisa senãoa sistema não problemático dos valores morais e estéticos. Opõe-lhe o trabalho do
ígKa/dado-co/zsigo-mesmosemoz/e/zfe,em outros termos ela é a re- negativo, do detalhe e do fragmenta. Contra as más totalizações sem mediações,
flexão sobre si mesmo, o momento do eu que é para si; ela é a pura Sartrefala de "totalidade destotalizada" e Henri Lefebvre de "totalidade aberta"

negatividade, reduzida à sua pura abstração, o simples devir". Ao BMaurice Blanchot, l.'Amfrié, Paras,Gallimard, 1971, p. 62. À questãode
Hõlderlin, ansiosopor sabero que, do todo ou do particular, predomina,Sartre
abolir por decreto a diferença do privado e do público, a separação replica: "Se o todo existisse,não haveria luta, pois o detalheali estarianecessa-
do económico e do político, a distinção do direito e da força, a to- riamente incluído. E se só houvesseuma soma de unidades, o detalhe seria uni-
talização identitária abstrata submeteunilateralmente a parte ao todo. dade por seu turno, e a questão não se colocaria. Não pode haver luta senão se
Do mesmomodo, identificandoa classe,o povo, o partido, o Esta- o todo não for nunca unidadesintética total (elenunca é inteiramenteo todo) e
se o detalhe nunca isolar-se inteiramente(ele nunca é inteiramente detalhe)" Uean-
do, ela descambapara o di&fat totalitário.7
Paul Sartre, Cab;ers po#r une mordia, Paris, Gallimard, 1983, p. 92). Para Roy
Bhaskar, a totalidade fechada ou má totalidade caracteriza a filosofia especula-
7Adorno recusacom razão essatotalidade apaziguada de um mundo reduzido ao tiva. Ele também retoma a idéia de uma totalidade sistêmicaaberta.

336 337
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

superfície lisa e rodopiante? Como interromper a ronda infernal da "0 verdadeiro é o devir de si mesmo, o círculo que pressupõe e
troca, romper o ciclo das metamorfosesda mercadoria, deter o anca. tem seu próprio fim como meta", escreve Hegel na Fefzomeno/ogfa.
deamento da produção, da circulação e da reprodução, suspendera Na Lógica, ele é mais explícito: "Se se quer ir ao fundo dascoisas,é
permutação diabólica dos papéis do capital, ora dinheiro, ora máqui- preciso antes de tudo buscar o começo, como a base que deve susten-
nas e força de trabalho, ora enfim mercadoria e já novamente dinhei. tar tudo o mais; indo ao fundo dascoisas, encontra-setodo o desen-
ro, enquanto outras oraçõesdo mesmo capital operam em sentido volvimento incluído nessegerme e tudo é feito quando se veio ao cabo
inverso o mesmo jogo de transfigurações e de transubstanciação? deste."'o Foi entretanto somente em nossos dias, observa ele, que se
Por onde começar?ParaMarx, para Hegel,para Proust, é a mesma deu conta de "como é difícil concederà filosofia um começo". O
questão obsessiva.A totalidade assombra cada elo, cada fragmento. começo é o "ser puro", mas, no movimento da totalidade, o ser puro
cada detalhe da cadeia. Mas há um que resume e revela o conjunto: o logo chama o seu outro, o nada. A totalidade fendida é então abala-
ser, a made/efme, a mercadoria. Banal e inocente, toda simples, a merca- da, em busca desesperadade sua unidade perdida.
doria fraturada abre-se como uma espéciede noz mágica de onde esca- Sem que por isso o valor desapareça no preço ou o valor exceden-
pam valor de uso e valor de troca, trabalho abstrato e trabalho concre- te no lucro, o capital constitui o desenvolvimento concreto da merca-
to, valor excedente e lucro, da mesma maneira que da made/eilze doria. Pois "a progressãoa partir daquilo que constitui o começo não
mordida surgem o caminho de Swann e o de Guermantes. As categorias deve ser considerada senão como uma determinação cada vez mais
mercantis ou memoriais que escoam dessasferidas desvelam a maravi- precisa deste,de tal modo que o que precede fica no fundo do que se
lhosa totalidade de um mundo em devir.P segue sem desaparecer". Nessa progressão "o começo perde o que há
de unilateral na determinação que faz dele um imediato e um abstra-
to. Ele torna-se mediação, e a linha de progressão científica torna-se
9 Os autoresde !nttoduction à la lecturede la sciencede la togiqt+ede bege!
IParis, Aubier, 1987) afirmam: "É porque a filosofia moderna sequer apoiada na circular. E seconstata ao mesmo tempo que o que constitui o começo,
categoria do sujeito' que o começo cria dificuldade. Ele tocaria, segundo eles,a por causa de seu estado não ainda desenvolvido e desprovido de con-
sistematicidadedas filosofias do sujeito: "Assim, a dificuldade da escolha do ponto teúdo, não pode constituir o objeto de um conhecimento verdadeiro
de partida vem de que seu conteúdo não poderia ter valor independente do en- e que não se pode adquirir dele um conhecimento completo, rico em
cadeamento sistemático que ele supostamentefunda.' Esseproblema permanece
insuperável antes da elucidação das relações do ser e do conhecer, que assinala conteúdo e verdadeiramente fundado senão pelo favor da ciência e da
a doutrina do conceito. Não compartilhamos entretanto sua opinião de acordo ciência através de todas as fases de seu desenvolvimento". Foi preciso
com a qual "as dificuldadesquevêm à luz na análisedo começoprendem-seao um começo mutilado e unilateral, um começo abstrato e imperfeito,
fato de que ele enquanto tal é arbitrário". Trata-se ao menosde um arbitrário para encontrar o caminho do concreto. Foi preciso começarpor um
determinado, e todos os começosarbitrários possíveisnão se valem. Assim, O
conhecimento sem conteúdo, por uma má compreensão, para encon-
CaPffa/ não teria como começarpelo dinheiro ou pelo preço. Marx demorou
muito até resolver começar pela mercadoria. Os autores da IHrrodKcfio# corri- trar o caminho da compreensão e do conteúdo. O conhecimento "com-
gem aliás essanoção de arbitrário avançando succssjvamentea hipótese do "co-
meço como fundado" e a do "começo em sua imediatidade absoluta'. Segundo resultado dá sua significação ao universo abstrato e confere-lhe sua necessida-
a primeira, a "circularidade do processo lógico dá ao começo seuestatuto verda- de." De acordo com a segunda hipótese, "o começo enquanto tal é contraditório,
deiro, levanta as aporias de sua determinaçãounilateral e exibe a necessidade já que ele apresentanecessariamenteos dois caracteresde imcdiatidade e dc
delas. É, se se quiser, a do universo abstrato de onde procede o desenvolvimento mediação" (pp. 27 a 41).
das determinações concretas; e, ao mesmo tempo a universalidade concreta do io Friedrich Hegel, l.oglgKe, 1, op. cit., p. 24.

338 339
MARX. O INTEMPESTIVO
A ORDEMDA DESORDEM

pleto", despojado em sua plenitude de seus momentos, não indica a to do capital apareceentão em toda a sua amplidão: o desdobramento
adição mecânicados saberes,mas uma atividade de conhecimento tal da mercadoria, a contradição efetiva, seu desenvolvimento antagóni-
"que o fim constitui o começo, que a conseqiiência é a premissa e o
co, sua resolução real através do devir formal. Estendido para o ho-
efeito a causa; que ele é um devir do que é devindo, que ele não chama rizonte da crise como para o fim que pode ser também seu recomeço,
à existência senão o que já existe [-.]".íi É portanto à ]uz do fim, na a futura da totalidade é seu próprio princípio.
dialética do pâr e do pressupor,que o começosai da sombrapara Não raro intercambiáveisno vocabulário de Marx, a contradição
iniciar, sem encontrar nunca o seuponto de partida absoluto, um novo IWldersprucb), o antagonismo (Gegensalz),o conflito (Kon/7í&f)arti-
círculo dos círculos. Todo devir é um começo e um fim, sublinha Lenin,
culam sem confundi-las lógica dialética e história. Ao mesmotempo
de modo que "cada progresso nas determinações, na medida em que lógica e histórica, a contradição é assim incorporada ao conceito de
ele se afasta do começo, é também um retorno para ele".
lei. Enquanto "conexão interna necessária",a lei "religa" o que "a
No começodo Cáfila/ eraa mercadoria.No processode circula- contradição separa". A mercadoria apresenta-sedessemodo como
ção, ela afasta-se de sua abstração inicial antes de ressurgir concreta- unidadecontraditória, e asleis da troca mercantil sãoas da contradi-
mente,ao termo do "processoglobal", na vida orgânica do capital. É ção interna de sua forma. Desde o livro 1, Marx assinala "tendências
preciso ter-se equivocado quanto ao começo para alcançar o fim que contraditórias" (entre o máximo de valor excedente possível e a redu-
libera a chavedele. Essecomeçonada tem então de uma fundação ção maximal do capital variável). Rompendo a barreira que separa a
inaugural. Ele transforma-se a si mesmo, ao longo de seu próprio devir, totalidade do fenomenal e do racional, a contradição permite um
visto que da mesmaforma "a origem é o fim".
processode conceituação.De onde a necessidadede distinguir entre
A totalidade devém, sob o impulso de suaspróprias contradições. duasordens de contradições,que não sejam mais o reflexo uma da
"A troca das mercadorias não pode efetuar-se senão preenchendo outra, tanto quanto a totalidade racional não é o reflexo da totalida-
condições contraditórias, exclusivas umas das outras. Seu desenvolvi-
de fenomenal: a do concreto real e a do concreto de pensamento.n
mento, que faz aparecer a mercadoria como uma coisa de dupla face, No Cáfila/, o termo co/zlradiçãodesignaora o conflito de inte-
valor de uso e valor de troca, não faz desapareceressascontradições, ressesentre capitalistas,ora o conflito entre capitalistase operários,
mas cria a forma na qual elas podem mover-se. É aliás o único méto- ora ainda o conflito entre produção e consumo (produção e realiza-
do para resolver contradições reais. É por exemplo uma contradição ção de mais-valia) ou entre relaçõesde produção e forças produtivas,
que um corpo caiaconstantementesobreum outro e no entanto cons- ora enfim o conflito entre o capital e as práticas feudais sobreviventes.
tantemente Ihe fuja. A elipse é uma das formas de movimentos pelas Essasdiversas ocorrências fazem aparecer uma distinção entre con-
quais essa contradição se realiza e se resolve ao mesmo tempo."12 tradições internas no modo de produção capitalista e contradições entre
"Movimento racional superior", em favor do qual termos aparente- essesistema e as práticas sobreviventes de sistemas anteriores. As
mente separados passam uns nos outros, da mesma maneira que o ser primeiras Ihe são específicase exprimem-se na luta de classes.Repre-
e o nada manifestam sua unidade e sua verdade no devir, o movimen- sentam elas por isso a contradição fundamental? Maurice Godelier
não pensa assim: a contradição principal entre desenvolvimentoe
n Ibid., p. 61, e 11,p. 453.
iz Karl Marx, l,e Capital, livro 1,t. 1, op. cit., p. 89. Sobrea dialética,ver i3 Georges Duménil, l,e Co cepade loi écolzomique da s /e Clapifúl, op. cit., pp
Hegel, l,ógiaa, 1, op. cit., p. 99, e 11,op. cit., p. 557. 361-362.

340
341
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

socialização das forças produtivas, de um lado, propriedade privada o inventário ilusório de critérios exaustivos.A restituição do todo
dos meios de produção, de outro, não seria imediatamente visível. Ela em suas partes procede não por abstrações unilaterais devotadas a
constituiria não uma contradição interna à estrutura, mas uma con- consumir-seno local, mas por abstraçõesdeterminadasque seapro-
tradição entre duas estruturas (e duas lógicas) concorrentes, cujas crises ximam do concreto. À maneira da relação entre o ritmo e a arritmia
revelariam apenas um "apanhado". Inintencional, a contradição es- dos sofistas, a determinação hegeliana implica uma revelação por
trutural exprime os limites internos, "imanentes", "intransponíveis" ) contraste sobre fundo de totalidade, pois "a luz pura e a obscurida-
do modo de produção capitalista e das relações baseadas na proprie- de pura são dois vazios que, como tais, não diferem um do outro.
dade privada. Assim, todo o modo de produção capitalista "não é Não se chegaa distinguir alguma coisasenãona luz determinada,
precisamentesenão um modo de produção relativo, cujos limites, por e a luz é determinada pela obscuridade, ou seja, na luz perturbada
não serem absolutos, têm para ele, sobre sua própria base, um valor e na obscuridade determinada (pois a obscuridade é por sua vez
absoluto". Ele se manifesta num certo estágio de desenvolvimento das determinada pela luz), isto é, na obscuridade iluminada; pois a luz
forças produtivas, quando "o próprio capital" torna-se a verdadeira perturbada e a obscuridade iluminada são separadas por uma dife-
barreira da produção capitalista.i' rença intrínseca e representam por conseguinte um ser determina-
Interna às relaçõesde produção, a primeira contradição "não do, um ser-aí". O discurso hegeliano concebe-seportanto como um
contém no interior de si mesmao conjunto das condições de sua pró- processoque "deve deixar que as próprias determinaçõessefaçam
pria solução". Ela exterioriza-sena luta de classes.Com efeito, Marx vivas em si mesmas".''
recusa-sea recorrer à identidadedoscontrários como a um "opera- Prisioneira de sua própria positividade, a definição é uma catego-
dor mágico", algo de que Hegel teria abusadopara construir o seu ria do ente; a determinação uma categoria do devir, "a negaçãocon-
palácio de idéias. O capital não é uma totalidade petrificada em coisa, siderada de um ponto de vista afirmativo". O que está em jogo nessa
mas uma relação social viva e móvel. Rachada, fendida, ferida, a to-
talidade acha-se presa a contradições reais, irredutíveis à mitigação mente a oposição ser/não-ser. Para Popper, Marx exclui-se da comunidade cien-
da identidade.ís tífica ao misturar os dois tipos de contradições. Para Jean-Pierre Potier, ao con-
trário, teoria do valor, teoria do fetichismo, teoria da contradição dialética à
maneira hegeliana são a mesma coisa. Ruy Fausto pergunta judiciosamente se
uma resposta contraditória é necessariamente uma má resposta. Sua questão tem
como alvo Castoriadis, para quem Marx teria cometido o equívoco de oscilar
A DETERMINAÇÃO COMO AN/CAÇÃO entre duas tesescontraditórias: aquela segundo a qual o valor teria existido antes
do capitalismo e aquela segundoa qual o valor não teria aparecidosenãocom o
capitalismo. Castoriadis tropeça no tradicional preconceito do discurso não con-
Quer se trate do valor, das classesou do capital, não seencontram traditório. Ora, diz Fausto, "é a resposta contraditória que é a resposta racional:
em Marx definições camadas e tranquilizadoras. O começo imper- basta colocar a contradição -- em vez de fugir a ela -- para conseguir dominá-
feito de uma totalidade, que recomeçasem nunca acabar, interdita [a [-.]; antes do capitalismo, o va]or não existe, mas ao mesmo tempo existe". E]e
não existe porque não há tempo de trabalho socialmente necessárioestabelecido
i4 Ibid., p. 269. pela produção mercantil generalizada. Trata-se portanto ainda da pré-história do
is Contrariamente ao que pretendem Kart Popper e Lucio Colletti, que vêem valor, de seu surgimento:antesdo capitalismo,o valor é "cristalizaçãode tempo
aí estritas oposições lógicas e não oposiçõesreais. A oposição lógica ressaltaria, de trabalho em geral" (Mafx, logfg e ef po/iriqKe, Paria, Publisud, 1988).
segundoColletti, a tradição idealista(de Platão a Hegel) e repetiria indefinida- ió Friedrich Hegel, l,oglq#e, 1, op. cit., p. 85; E#cyc/opédfe,add S 24.

342 343
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

oposição é crucial. Trata-se nem mais nem menos de escapar ao in- mercadoria,o valor, o valor excedente)pressupõesempreo fim (o
cognoscívelda coisa em si: "Diz-se das coisas que elas são em si por- capital, o lucro, a luta de classes).Enquanto conexão interna necessá-
que se faz abstração de todo ser para o outro, isto é, de uma maneira ria, a lei do valor designaa determinaçãodo valor pelo tempo de
geral porque elas são pensadas como desprovidas de qualquer deter- trabalho: "0 valor é o trabalho, essarelação interna faz parte de seu
minação, ou seja, como puros nadas. É claro que se nos inclinamos conceito, ele é inseparável de sua natureza; de onde sua necessidade
nesse sentido é impossível saber em que consiste a coisa em si." A absoluta, em relação a toda determinação exterior, cuja ação não se
definição abstrata deixa sempreescapar um mundo inapreensível.Ela afirma senãoatravés de uma multidão de outros fatores e que reveste
arranca a fenomenalidade do ente à sua sombra essencial. O movi- por isso um caráter contingente. Quando escrevo:o valor é o trabalho
mento ininterrupto da determinaçãotende, ao contrário, a reunir o e sua medida é fornecida pela do tempo de trabalho, essadetermina-
ser e seu duplo: "As definições da metafísica, da mesma maneira que ção mostra de fato que não difere em nada do enunciado do próprio
suas premissas, suas distinções e suas conclusões, não têm em vista conceito de valor."t8
senão o ente e sobretudo o ente em si. O ser para o outro está em sua Marx reivindica explicitamente essalógica dinâmica da determi-
unidade do algo consigo idêntico a seu em-si. O ser para o outro é nação, oposta à lógica estática e classificatória da definição: "Não se
isto, assim como no algo. Trata-se portanto de uma previsão, de uma trata aqui de de/Z/lições sob as q a/s se c/asse/}carlam as coisas, mas de
definição refletida, simplese fazendo parte da esfera do ser; por con- /üfzçõesdetermí/fadas que se exprimem por categorias determinadas."iP
seguinte mais uma vez de uma qualidade. Em outras palavras, acha- Como para levantar o "mal-entendido" (a busca de definições a qual-
mo-nos de novo às voltas com a determinação."n quer preço) que desorienta os leitores não dialéticos de Marx, como
A determinação não é caso de convenção ou de dicionário. Ela Conrad Schmidt, o prefácio de Engels ao livro 111ainda piora as coi-
enriquece-se "com a multiplicação e a diversificação de suas relações sas: "Marx teria desejado de/Z#ir, quando na realidade dose/zz/o/ue;de
com o outro". Assim, o valor não é nunca definido, mas semprede- uma maneira geral, ter-se-ia o direito de buscar em seus escritos de-
terminado pelo tempo de trabalho socialmente necessário,ele mesmo finições já prontas, válidas de uma vez por todas. É evidente que, a
historicamente determinado pela luta, de modo que o começo (a partir do momento em que as coisas e suas relações recíprocas são
concebidas não como fixas, mas como variáveis, seus reflexos men-
tais, os conceitos, são também eles submetidos à variação e à mudan-
i7 Friedrich Hegcl, l.ogiq#e, 1, op. cit., pp. 109 e 121. "A determinaçãoé nega-
ção: tal é o princípio absoluto da filosofia spinozista; é sobre essaideia simples ça; nessas condições, e/es leão estarão e cerrados ma de# irão, mas
e verdadeira que repousa a afirmação da unidade absoluta da Substância. Mas desenuoluidos de acordo com o processo histórico oa lógico de sua
Spinoza não vai além da negaçãoconcebida como precisão ou qualidade; ele não /oz'17zaÇão."
vai até reconhece-la como sendo negaçãoabsoluta, ou seja, como sendo negação
Os conceitos procedem da totalidade. Desde que sejam relaciona-
que se nega"(ll, p. 191). Marcuse insiste sobre a relação atada aqui entre lógica
e filosofia da história: "A categoria da determinação caracteriza o ser como trans- dos aos modos de produção em geral ou ao modo de produção capi-
formação, na transformação; ela concretiza o «r-em-si não o apreendendo mais talista em particular, os de "classe" ou de "trabalho produtivo" res-
em repouso, mas como movimento incessantena relação ao ente outro: a pleni- pondem assim a uma determinação geral ou a uma determinação
tude do ser não se realiza senão como 'resolução sempre do ser-em-si em deter-
minidade'. Essa resolução não está simplesmente em devir, ela nunca está acaba-
da; a determinaçãopor sua vez não é senãoum dever-ser"(Herbert Marcuse, n Georges Duménil, Le ColzcePf de /o{ éco#omfg e d s /e CapffaJ, op. cit
L'Ontologie de Hegel et la tbéorie de t'bistoricité, op. cit.P p. 64). i9 Karl Marx, Z,e(bPifaJ, livro 11,t. 1, op. cit., p. 209.

344 345
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

particular, ganham um sentido amplo ou um sentido estrito.20A de- orgânica interna".u Afirmativa, a definição apressada satisfaz uma sede
terminação recíproca de um conceito (valor de uso/valor de troca) de positividade imediata. No paciente trabalho do negativo, a determi-
exprime uma dupla referência, lógica e histórica, contraditoriamente nação intervém pela ausência ou a supressão da falta.23
presente no real. Ela remete à dupla universalidade, histórica e sistê-
mica, das categorias utilizadas. Assim, o conceito de trabalho produ- A contradição procede do desdobramento. O desdobramento da merca-
tivo específico à relação capitalista de produção não comporta ne- doria em mercadoriae dinheiro intervém desdeo início do livro 1.Depois
nhuma referência ao conteúdo dessetrabalho e permaneceno nível do a mercadoria,por seutemo, "torna-sedupla". Da mesmamaneira,a
trabalho abstrato. Enquanto trabalho produtivo específico,ele impõe, circulação cinde-se em venda e compra. Mas o desdobramento não é se-
ao contrário da confusãovulgar, distinguir entre utilidade e produti- paração indiferente. Seustermos dependem um do outro. Assim, a mer-
vidade do trabalho. cadoria não conseguiria ter valor sem ser primeiro objeto de utilidade: "0
Produção de riqueza material, a determinação segunda (Nebe#- valor de troca sofre de algum modo a existência do valor de uso como sua
dslímmzíng) não se aniquila na busca de riqueza abstrata (ou lucro). própria condição sem que por isso seja rompida a autonomia dos dois
Extorsão de valor excedente(de tempo de trabalho social cristaliza- sistemas: no seio da mercadoria, a utilidade é indispensável ao valor, mas
do) independentemente da finalidade do trabalho, a determinação o valor não tira sua fonte da maior ou menor utilidade, o que de maneira
primeira articula-secom elacomo "característicadecisiva" ou "di- alguma impede que, quando a utilidade desaparece,o valor desapareça
ferença específica" do modo de produção capitalista.zt Improdutivo igualmente."24Os dois termos, reunidos na mercadoria, pertencem por-
do ponto de vista unicamenteda produção, o trabalho comercial tanto a "duas totalidades lógicas de natureza diferente". O valor de uso
torna-se "indiretamente produtivo" do ponto de vista da circulação relaciona-secom um sistemade pensamentoinfinitamente concreto,en-
e da reprodução global, na medidaem que ele permite ao capital globando o conjunto das determinaçõesmateriais da própria coisa. O
comercial apropriar-se de uma parte da mais-valia geradana esfera valor de troca, ao contrário, constitui, "um dos conceitosfundamentais
da produção. Sua determinação remete ao fracionamento do capi- do sistema cuja exposição é O(bpfü/". Como valor de troca, a merca-
tal, à distribuição de suasfunções,à divisão do trabalho social que doria representa um certo volume de trabalho social cristalizado. Como
daíresulta. valor de uso, ela deve assim responder a uma necessidade social solvente.
A relação do abstrato com o concreto procede diretamente da de- A mediação da concorrência permite-lhe ser ao mesmo tempo um e outro,
terminação. Ao contrário da abstraçãounilateral(especulativa), a abs- sem que valor de troca e valor de uso jamais se tornem idênticos. E é nisso
tração determinada permite aquilo que uma feliz metáfora cinematográ- que "a oferta e a procura refletem as necessidades
da mercadoria"
fica designa como "afinação histórica das categorias" por sua "conexão
u Galvano Della Volpe, l,a Logfque comme sciencebisforique, Bruxelas, Com-
zoVer a estepropósito Maurice Godelier, L'Jdéeel le mafériel, op- cit. SeAris- plexo, 1977, pp. 164 e 184.
tóteles não pode encontrar na força de trabalho o segredo do valor, é que ainda :' Ray Bhaskar desenvolve brilhantemente essadiabética da ausência, insistin-
não existe homogeneidadesocial de valor, mensurável por um tempo abstrato de do sobrea buscado "negativo no positivo, da ausênciana presença,do fundamento
trabalho social. na figura, da periferia no centro, dó conteúdo obscurecido pela forma, do vivo
:' JacquesBidet interpreta as relaçõesentre as duas determinaçõescomo mascarado pelo morto". A ausência conota assim o oculto, o vazio, o desejo, a falta
relações de estrutura com tendência(QKe áuire d# Capital?, Paris, Klincksicck, p. e a necessidade(Dialecfic, lbe Pu/se o/'Freedom, Londres, Verso, 1993).
102) 24Karl Man, l,e Capital, livro 1, t. 1, op. çit.) p 71 e seguintes.

346 347
MARX. O l NTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Inerente ao desdobramento, a contradição, estática no nível da torna por isso mesmo nada. O nada é um imediato; uma coisa supri-
produção, resolve-sena circulação e na reprodução. Os princípios desse midaé ao contrário um mediato [...]. É assimque o que é suprimido
movimento são colocados desdeo livro l: "Todo processo de produ- é ao mesmo tempo o que é conservado." Assim, a negação da negação
ção social é portanto ao mesmo tempo processo de reprodução. As restabelece "não a propriedade privada do trabalho, mas sua proprie-
condições da produção são também as da reprodução.":s Trata-se dadeindividual, baseadanos bens adquiridos da era capitalista, na
ainda, porém, de reprodução simples. O livro ll observa que "a repro- cooperação e na posse comum de todos os meios de produção".2ó
dução simples é uma abstração", no sentido de que no sistema capi-
talista "a ausência de acumulação ou de reprodução em grande escala
é uma hipóteseestranha", categoricamentedesmentida pela realidade
da acumulação e da reprodução ampliada, onde a diferença inscreve- UMA CIÊNCIADO CONCRETOPARTICULAR
se na repetição: "Sendo o capital valor que se coloca como valor, ele
não implica somenterelaçõesde classeou um caráter social determi- Conhece-sea severidadede Hegel para com a arrogância matemáticae
nado baseadona existênciado trabalho, como trabalho assalariado: o "conhecimentodefeituoso" de que ela se orgulha. A meta dessesaber
é um movimento, um processo cíclico que atravessa diferentes está- é a grandeza. Enquanto o conceito cinde o espaço em suas dimensões e
gios e que implica por sua vez três formas diferentes de processo cí- determina as relações,a grandeza é uma diferença "inessencial". En-
clico. Essa a razão por que não se pode compreendê-lo senão como quanto o movimento em sua totalidade, que engendrae percorre seus
movimento e não como uma coisa em repouso." momentos, "constitui o positivo e a verdade dessepositivo", as determi-
De onde a relação entre o plano do Cáfila/ e seu objeto. naçõesda quantidade são as da exterioridade recíproca. No simples
A "circularidade do método do Cáfila/" é um exemplo da "cir- calcular, a lógica tende a anular-se em detrimento do pensar.
cularidade peculiar a todo conhecimentoracional, a toda teoria". A Não seconcebea quantidade, entretanto, senãoa partir da qualida-
circularidade do conhecimento reproduz a circularidade de seu obje- de pela qual o ser sai da indeterminação inicial. A qualidade introduz a
to. De metamorfoses em permutações, a mercadoria abandona uma mudança. A quantidade surge do devir indiferente das diferenças qua-
roupa velha para vestir logo em seguida uma nova, de modo que "cada litativas. Mas, negando-se a si mesma, ela tende ao restabelecimento da
momento aparececomo ponto de partida, ponto intermediário, retor- qualidade.27 A "verdade da qualidade" consiste reciprocamente em ser
no ao ponto de partida". O círculo aberto da reprodução ampliada quantidade, "precisão imediata suprimida". A quantidade apareceas-
permite a superaçãoda triste repetiçãono aleatório eventual. sim logo de saída como estando em oposição com a qualidade, mas, na
Essedevir não é a morna "progressividade", simples crescimento realidade, "a própria quantidade é uma qualidade, uma precisão que se
ou aumento, qualificado por Hegel de "mudança puramente indife- relaciona de uma maneira geral consigo mesma, distinta dessaoutra
rente". Conjugando qualidadee quantidade,ele é transformação, trans-
crescimento, revolução. Mudança não indiferente, ele conserva tanto zóKarl Marx, l,e CapflaJ,livro 1, t. 11,op. cit., p. 207.
27"Pode-sedizer de uma maneira inteiramentegeral que o q#a#rum é a
quanto transforma. Pois todo sonho revolucionário para a frente tem qualidadesuprimida; maso qw&anfnmé infinito, ele sesuperaconstantementee
sua parte de conservaçãoe de redenção:"0 que se suprime não se constitui sua própria negação; essanegação é portanto em si a negação da qua-
lidade negada,em outras palavras, o restabelecimentodesta"(Friedrich Hegel,
u Ibid., p.49. Logique,l, op.cit., p.263).

348 349
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

precisão que é a qualidade como tal".n A quantidade é então a verdade dente provém não das forças de trabalho que o capitalista substitui pela
da qualidade. Assim, no(lapilal, a abstração do trabalho, tomado in- máquina, mas, ao contrário, daquelas que ele aí ocupa."2P Assim, a taxa
diferente aos trabalhos concretos,é a condição de sua quantificação. de exploração pode perfeitamente aumentar qualitativamente, enquan-
Para Marx como para Hegel, trata-se de pensar o quantitativo como to a taxa de lucro baixaráestruturalmente.A economiapolítica visa
deslocamento e explicitação, mas também como negação/supra-assun- precisamente a quantificar a qualidade homogeneizando um espaço
ção do qualitativo. económico irredutivelmente heterogêneo. Ela o conseguegraças a uma
A l,ógica segueo serdeterminado "no interior delemesmo". Todos "medida comum", o tempo. Marx parece escreverembaixo dessaredu-
os movimentos e as determinaçõespelos quais ele se reflete ficam fe- ção: "A medida do trabalho é o tempo" ou "0 tempo é medida do
chados na esfera do ser de acordo com a precisão como tal (qualida- trabalho".30 Curiosas fórmulas. Por que o trabalho seria mensurável
de), a ausência de precisão (quantidade), e "enquanto quantidade pelo tempo? E o que é o tempo enquanto medida do trabalho? Não
qualitativamente definida: medida". A quantidade não cai mais então seria mais exato dizer que a medida do trabalho é o tempo de trabalho,
fora da qualidade. Ela é somente "a qualidade tornada negativa" ou ao risco de evitar a incomensurabilidade para cair na tautologia? Adam
ainda "uma precisãotornada indiferenteao ser". Do mesmomodo, o Smith reconduz o valor da mercadoria à quantidade de trabalho, abstra-
valor de troca não elimina o valor de uso, nem o trabalho abstrato ção feita das qualidades diferentes(de atribulação ou de qualificação)
elimina o trabalho concreto. O valor de troca é o valor de uso torna- mobilizadaspor essetrabalho. Ao medir o valor da força de trabalho(e
do negativo,assimcomo o trabalho abstratoé o trabalho concreto não mais unicamente o trabalho) pelo tempo de trabalho socialmente
tornado negativo. A quantidade em estado puro distingue-sepor sua necessário(enão mais unicamente o tempo) à sua reprodução, Marx
indiferença para com as qualidades entre as quais ela se situa como muda de registro. O tempo não é mais uma espéciede padrão referente
para consigo mesma.Toda grandezareal é ao contrário unidade da supostamenteuniforme, mas uma relação social que se autodetermina
quantidade e da qualidade, onde a quantidade é o viés pelo qual se na produção, na troca e no conflito. A concorrência e o mercado encar-
aborda a qualidade para modifica-la. Pois a medida não se reduz à regam-se de reduzir os trabalhos concretos ao trabalho abstrato. Já não
quantificação unilateral. Ela é dialética da quantidade e da qualidade. se trata de qualidade: "A quantidade decide tudo."si
Daí a incompreensãovulgar e obstinadados econometristas(bem
pouco hegelianos),obcecadospela quantificação unilateral (quantos?)
do valor qualitativamente indeterminado. 29Kart Marx, l.e (bpfíaJ, livro 1, quarta seção. Georges Duménil observa: "A
Na teoria da medida, a grandeza tem uma dupla determinação, frequência dos empregos do termo lei a propósito da dimensão qualitativa da
extensiva e intensiva. Essaduplicidade remete em Marx ao problema da estrutura não deixa pairar qualquer equívoco. Marx consideravacom toda a
evidência tais relaçõescomo leis." Ele insiste: "Nós nos referimos mais frequen-
lei e de suasdiferentesacepções.Para além da lei quantitativa agindo temente a duas estruturas, uma qualitativa e uma quantitativa. A união dos dois
sobre relações causais,intervém uma "lei qualitativa" agindo sobre re- tipos de determinações é característica da natureza conceptual da totalidade. No
laçõesestruturais: "Assim se verifica a lei segundo a qual o valor exce- seio do conceito, elas são inseparáveis, mas a existência da determinação quan-
titativa não supõe a existência da determinação qualitativa"(Le Co#cepf de /of
écofzomiq#e (üHS le CaPíial, op. cit., pp. 57 e 79).
zl Friedrich Hegel, l.oglque, 1,op. cit., pp. 363-364. Ver também J. Biard et al., 10Kart Marx, Gmndrisse 1, op. cit., p. 204, e carta a Engels de 2 de abril de
lfzfrod crio à la lec re de la scfe#cede la logfq e de Hegel, t. 111,Pauis,Aubier, 5

1987,PP.45, 80, 123, 160. li Kart Marx, Àfisêre de Ja pbNosopbie, op. cit.

350 351
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Tudo? Nem por issoo trabalho concreto e o valor de uso desapa- ra que a necessidadee a possibilidade formais tomam-se reais para se
receram. Eles se revoltam na crise. Secaracteriza sumariamente o tempo resolveremna necessidadeabsoluta, assim também a medida formal(ou
como "medida do trabalho", Marx não esqueceque a medida não diz quantidadeespecífica)torna-se medida real para conduzir do ser ao
respeito à quantidade indiferente à qualidade, mas ao ser enquanto "devir da essência". Se a medida em geral está "destinada a representar
"quantidade qualitativamente determinada". Na medida, "o qualita- uma relação entre medidas que formam a qualidade das coisas diversas
tivo torna-se quantitativo". Como tal, "a medida não é ainda senão e independentes", a medida formal corresponde a "qualidades abstratas
a unidadeexistentedo quantitativoe do qualitativo"ou ainda"a como o espaçoe o tempo", enquanto a "medida real" liga-sea "deter-
unidade imediata do qualitativo e do quantitativo". Esseo motivo minações de existência material"(peso específico, propriedades quími-
por que a análise da medida, começando pela medida imediata, exte- cas)cujo tempo e espaço tornam-se os momentos. Ao termo do proces-
rior, deveria, "por um lado, proceder a uma determinação abstrata so de medida, "o ser terá rematado o ciclo de suas metamorfoses". Sua
do quantitativo (a uma matemática da natureza) e mostrar, por outro, imediatidade apagar-se-á no devir da essência.33
o laço que existe entre essadeterminação da medida e as qualidades A medida que seautodetermina como quantidade qualitativamente
dos objetos naturais de uma maneira geral pelo menos;pois a demons- definida é imanente ao objeto que ela determina. Essalógica circular
tração precisa e detalhada do laço que existe entre o qualitativo e o remete,por muitas sutilezas, à aporia do homem medida de todas as
quantitativo, tal como ele decorre do conceito do objeto concreto, faz coisas e de si mesmo.
parte da ciêfzcfado comercioPa ic /ar"
Essa"ciência do concreto particular" anuncia a crítica da econo-
mia política, como conhecimentodo capital,ou a psicanálise,como
interpretação dos sonhos. O metabolismo do ser vivo, como o do ORDEM LÓGICA. ORDEM HISTÓRICA
capital, requer um modo de medida específico, diferente daquele que
vale para o mecanismoou para o quimismo: "A indiferença completa As instâncias históricas e lógicas interferem constantemente em Marx:
abstrata da medida desenvolvida, isto é, de suas leis, só é possível na "Esse corte contraditório se impõe [-.] porque os dois termos assim
esferado mecanismo onde a corporeidade concreta não é mais que a reunidos pertencem respectivamente a duas totalidades lógicas de
própria matéria abstrata [-.]. Em contrapartida, já no domínio físico, naturezafundamentalmentediferente; o valor de uso (estranhoà
e com mais forte razão no reino orgânico, essadeterminação de gran- economia política) não pode ser concebido senão num sistema de
deza do material abstrato acha-seperturbada pela multiplicidade das pensamento infinitamente concreto que envolve o conjunto das de-
qualidades e pelo conflito que daí resulta."3z terminações materiais da própria coisa; o valor de troca, ao contrá-
Do mecanismoà vida passandopelo quimismo, o plano do(bpfla/
percorre os momentos da lógica hegeliana. Os autores que sedebruçam ss]. B\ard et al., Introd ction à la lectute de la sciencede ta !ogiqKedebege!, op.
sobre a transformação do valor em preço, reduzindo obstinadamentea cit., p. 231. Os autoressublinham muito justamente:"Seríamosassimlevadosa
idéia de medida à quantificação abstrata, evitariam muitos contra-sen- pensar, a propósito da categoria da medida tal como ela é apresentada e discu-
tida na Clêlzcfada /ógica,que Hegel sepropôs interrogar e explicitar o modo de
sos seprestassematenção à terceira seção da l,ógfca. Da mesma manei-
relação autêntico, ou seja, dialético e conceptual, do qualitativo e do quantitati-
vo; em suma, ir além daquilo que Husserl considerou a pressuposiçãoimplícita
szFriedrich Hegel, l,ogfqwe,1, op. cít., pp. 372-373. da matematização galileana da natureza" (p. 233).

3S2 353
MARX. O l NTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

rio, constitui um dos conceitos fundamentais do sistema, do qual A distinção entre objeto devindo e história do objeto remeteà dis-
O Cáfila/ é a exposição, uma abstração dosada ou, se se preferir. tinção entre lógica e história. De acordo com Jindrich Zeleny, o primei-
uma concretização construída elemento por elemento."34 Operador ro capítulo do livro l do(baila/ teria por objeto a estrutura mercantil,
da mudança,o tempo inscreve-seassim no próprio âmago do de- o segundotrataria do desenvolvimentohistórico da mercadoria. Mas a
senvolvimento. oposiçãoentre objeto devindo e devir do objeto simplifica demaisa
O CaP;la/ temporaliza a lógica e logiciza os ritmos económicos. relação entre estrutura lógica e desenvolvimento histórico. Incompatível
A determinação junta-se assim com a medida. Pois os valores reque- com as representaçõesontológicas da ciência galileu-cartesiana,essa
rem inicialmente uma medida comum, ela própria invariável, uma mer- relaçãolembra ainda a dívida de Marx para com Spinoza,Leibniz e
cadoria equivalente geral invariável. Ora, "enquanto mercadorias". Hegel. A gênesede uma forma não se confunde com sua gênesehistó-
todos os valores são grandezas sociais que variam de acordo com a luta. rica. Ela não é desta senão a "expressão ideal". A tal distinção responde
A medida determinadapor seuobjeto varia constantementecom ele. aquela entre "legalidade evolutiva" (lei imanente) e causalidade externa
Essaa razão por que as qualidadesparecem manifestar-se no tempo, (causa transitiva). A complementaridade das duas abordagens é ilustra-
quando na realidade o próprio tempo é a nova qualidade em estado da na análisematerialistahistórica do dinheiro.x
nascente.Daí também por que não sepode nunca reduzir os fenómenos. Marx dedicou-seinicialmente a revelar as estruturas reais invisí-
inclusive os fenómenos naturais, a uma única medida. A atividade men- veis. Sua teoria da estrutura fornece-lhe a chave da gênesee da evo-
suradora do entendimento não admite nada como real que não seja lução. A forma desenvolvida(a anatomia do homem)desvelao segre-
mensurável, enquanto a medida real consisteem saber o que, no interior do das formas menos desenvolvidas(a anatomia do macaco).Mas a
dos corpos, determina sua natureza ao mesmo tempo específica e men- gêneseideal assim reconstituída é tão distinta da história real quanto
surável. Da mesma maneira que o movimento mede-sepelo movimento uma formação social concreta o é do modo de produção. Enquanto a
uniforme mais rápido possível, a medida é sempre do mesmo gênero economia empírica parte sistematicamentedos fenómenos de superfí-
daquilo que ela mede: "uma grandeza que mede as grandezas". cie sem elucidar sua estrutura invisível, a transformação da taxa de
Essa reflexividade da medida é bem precisamente o problema de mais-valia em taxa de lucro comanda a inteligibilidade e não o inver-
Marx na análise da mercadoria. Qual é o valor que mede os outros
valores, e como o (tempo de) trabalho social pode medir o (tempo de) K A leitura estrutural de Marx nos anos sessentaefetuou-se a contracorrente do
trabalho cristalizado na forma valor? O tempo de trabalho quantifica historicismo então dominante. Nem por isso se deveria dobrar-se à ilusão muito
o movimento, mas o trabalho consumido é ele próprio parte interes- francesa segundoa qual Althusser teria inovado tudo. Um movimento de pesqui-
sa tinha sido começado já nos primeiros anos da década de 1950 com os traba-
sada dessemovimento. Na troca, os valores de uso substituem-se uns lhos de Oito Mora e de B. A. Grusine. Este último sublinhava notadamentea
aos outros à maneira dos corpos "que se combinam em certas rela- dupla iniciativa do Cáfila/ e a articulação entre as "relaçõese conexõeshistóri-
ções quantitativas formando equivalentes químicos".ss cas" e as "relaçõese conexõesdevindas"(estruturais). Ver O. Mora, RaPPorfs
e fre blsroffe ef rbéorfe écolzomlqKecbez À4arx, Berna, 1951; B. A. Grusine,
l,ogigwe el #fsroriq e da s /e Capa/a/ de À4arx, Moscou, 1955; 11ienkov,Dfa/ec-
H Gcorges Duménil, l,e CoKcepl de /oi éco#omfq e da s /e Cáfila/, op. cit. flq#e de J'abstrair ef d# co çret da s le CaPífaJ,Moscou, 1960; K. Kosik, La
" Jacquesd'Hondt, Z.al,ogfq e de Maré, Paria, PUF, 1974, p. 101. Ver também Dia/ecfiq e d# co#crel, Praga, 1963. A primeira edição de l,a Sfr cf re /ogfqKe
Eugêne Fleischmann, l,a Sele ce nft,erre//e o# la /ogfque de llegel, Paria, Plon, d# CapifaJ, deJindrich Zeleny, apareceu em tcheco em 1962, a edição alemã em
1968, p. 120, e Eli de Gortari, Dia/ecfica de Ja /bica, México, 1986, p. 66. 1968

354 355
MARX. O l NTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

se. A relação lógica entr© categorias é /ambém cronológica. Mas "o mediação pelo qual o universal separticulariza. Desarmando aquilo que
tempo dessacronologia é inteiramentedeterminado pela lógica das Hegelchama "a ternura do sensível", o pensamentocomeçaa exercer-
relações de estrutura a estrutura".37 A teoria é uma "gênese ideal" que se na abstração enquanto manifestação unilateral do negativo. Em seu
desdobra o conceito de origem em um conceito estrutural e um con- desenvolvimentopara o concreto, não mais imediato e empírico, antes
ceito histórico. A estrutura pressupõeaí a história. O operário livre é pensadoe determinado, o abstrato subsisteentretanto como condição
assim "o resumo" de uma evolução histórica anterior. A produção de sua conceituação. Unilaterais, as categorias económicas "não passam
capitalista "parte do pressupostode que essesoperários livres já se de abstrações" das relaçõesreais.3PEnquanto unidade (e não simples
encontram lá, no mercado,no seio da circulação". Da mesmamanei- associaçãomecânicaexterior) de múltiplas determinações,a síntese
ra, a mercadoria já "se acha lá como forma elementar universal da imanente (unidade em si das diferenças) faz ressaltar "a não-verdade"
riqueza". Reciprocamente, fazendo da circulação "o pressuposto teó- dessas abstrações. É o que faz o livro m, arrumando com o mesmo
rico (lógico) da formação do capitalismo e partindo do dinheiro, en- golpe as vãs tentativas de construir-se uma teoria das classesa partir da
contramos o movimento histórico". Mercadoria e dinheiro têm por extorsão do valor excedente descoberto no livro 1, ou uma teoria das
"condiçãohistóricapreliminar" e "pressupostohistórico" o fato de crisesa partir dos esquemasde reprodução do livro ll.
terem reduzido o trabalhador a "uma pura potência de trabalho".38 "Ao longo da análisecientífica", a formação da taxa geral de lucro
A inversão da relação entre ordem lógica e ordem histórica é explí- pareceresultar da concorrência dos capitais industriais. "Mais tar-
cita no(lzp/fa/: "Veremos ao continuarmos nossas pesquisas", escreve de", ela é "retifícada e completada, modificada pela intervenção do
Marx, "que o capital usuário e o capital comercial são formas deriva- capital mercantil". Ora, no curso do desenvolvimentohistórico, "é o
das e explicaremos por que eles se apresentam na história antes do ca- inverso que se dá"!40 A história leal é uma inversão da estrutura, e
pital." No modo de produção capitalista chegado à maturidade, a estru-
tura parece reproduzir-se de maneira autónoma. No "curso ordinário
19Carta de Marx a Annenkov de 28 de dezembrode 1846. "Por uma inversão
das coisas", o trabalho parece assim abandonado à ação de "leis natu- mística", Proudhon, ao contrário, não vê nas relaçõesreais "mais que incorpo-
rais", à "dependência
do capitalgarantidae perpetuadapelo próprio rações dessas abstrações". Marx escreve ainda: "No interior da relação de valor
mecanismo da produção". Já outra coisa acontece "durante a gêmese e da expressãode valor aí inclusa, o abstrato universal não vale como proprie-
dade do concreto, do sensível -- efetivamente -- real, mas ao contrário, o sensí-
b/sfór/ca da produção capitalista", onde a relação de exploração se vel concreto não vale senão como simples forma fenomenal ou forma de realiza-
impõe graças à intervenção brutal do Estado. Enquanto relaçõese cone- ção efetiva determinada do abstrato universal. Por exemplo, o trabalho do alfaiate
xões devindas (estruturais), o "curso ordinário das coisas" opõe-se contido no equivalenteroupa não possui, no interior da expressãode valor do
portanto claramenteao devir efetivoda gênesehistórica. pano, a propriedade geral de ser além disso trabalho humano. Ao contrário, ser
trabalho humano vale como sua essência:ser trabalho de alfaiate não vale senão
No livro 111,Marx libera-sedo compromisso contraído no livro l.
como forma fenomenal ou forma de realização efetiva determinada dessaessên-
A ordem estrutural enriquece-secom novas determinações indo do abs- cia, que é a sua. Essainversão -- pela qual o sensívelconcreto não vale senão
trato ao concreto, do geral ao particular, seguindo o movimento de como forma fenomenaldo abstrato universal, enquanto, por outro lado, o abs-
trato universal conta-secomo propriedade do concreto -- caracterizaa expres-
são do valor. Ele torna ao mesmo tempo difícil sua compreensão"(l,a dorme
37Maurice Godelier, Ráfia a/lré ef fnaíioma/fré elzéconomie po/iriq#e, Paria,Mas- t/alar, apêndice à primeira edição do CaPflal, em Paul-Dominique Dognin, l,es
pero, 1967, t. 1, p. 119, e t. 11,p. 48. Senfiers escarpasdK(bpifal, Paras,Cera, 1977, 1, pp. 131-133).
31Karl Marx, Àfan scritsde 1861-1863,op. cit., pp. 44 e 95. õoKart Marx, l.e Capfral,livro 111,
t. 1, op. cit., p. 297.

356 357
MARX. O l NTEM PESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

reciprocamente. Historicamente, o capital comercial determina o pre- cronológico-histórica.'2 Esse o motivo por quq por essa inversão das
ço das mercadorias, e a taxa geral de lucro constitui-se na esfera da duas ordens, "a ciência real da economia moderna aparecesomente
circulação. Mas, no modo de produção capitalista desenvolvido, «a onde o exame teórico passa do processo de circulação ao processo de
transformaçãoda mais-valiaem lucro, do lucro em lucro médio". produção". Daí tambémpor que "o procedimentode exposiçãodeve
procede logicamente da estrutura da mercadoria, da produção à re' distinguir-se formalmente do procedimento de investigação". O método
produção global, passandopelo processode circulação.4t de investigação realista é diferente do método de exposição "na maneira
dialétíca alemã". "Infelizmente", acrescenta Marx.43
Essaarticulação inversa da ordem histórica e da ordem estrutural apa- A não-coincidênciaentre a ordem lógica e a ordem histórica é
rece de modo surpreendente no capítulo XX do livro lll ("Observações sublinhada desde a Introdução de 1857. No Cáfila/, aparece "ao longo
históricas sobre o capital mercantil"). O capital mercantil é o modo de da análise científica que a formação da taxa geral de lucro provém
existência independentemais antigo do capital. Nas formações sociais dos capitais industriais e de sua concorrência; somente mais tarde ela
anteriores, ele aparece como "sua função por excelência". Inversamen- foi retificada, completada, modificada pela intervenção do capital
te, no quadro da produção especificamentecapitalista, ele se acha "des- mercantil [...]. Durante o desenvolvimento histórico, é o contrário que
pojado de sua existência autónoma anterior para reduzir-se a um ele. se dá. É o capital comercial quem primeiro determina os preços das
mento particular do investimento de capital". Passaentão a funcionar mercadorias mais ou menos pelo seu valor; é na esfera da circulação
apenas como "agente do capital industrial". Antes de chegar, de acordo que seconstitui inicialmente uma taxa geral de lucro. Primitivamente,
com a ordem lógico-estrutural, a "dominar seusextremos", as diferen- é o lucro comercial que determina o lucro industrial".« Até o capítulo
tes esferasde produção que a circulação religa entre elas, o capital XX do livro 111,Marx considera"o capital mercantilnos limites do
emergiu primeiro do processode circulação de acordo com a ordem modo de produção capitalista", de acordo com sua determinação lógica
(ou estrutural), embora o comércio e o capital mercantil sejam histo-
4i "Como o valor da mercadoria transforma-se em seu preço de produção? A ricamente anteriores ao modo de produção capitalista. A estrutura
resposta a essa questão pressupõe: 1) que a transformação do valor cotidiano da detéma chavede suaprópria gênese.Enquantoo capital mercantil
força de trabalho em salário ou preço da jornada de trabalho foi inicialmente
aparecenos modos de produção anteriores como função por excelên-
exposta; 2) que a transformação da mais-valia em lucro, a do lucro médio etc..
tenha sido exposta. Isso exige previamente a exposição do processo de circulação cia do capital, a produção conservando-secomo produção direta dos
do capital, já que a rotação do capital desempenhaaí um papel" (Carta de Marx meios de subsistência para os próprios produtores, desdeo momento
a Engels,27 de junho de 1867).Em outra carta (30 de abril de 1868), Marx em que "o capital apoderou-se da própria produção" (o que é o ca-
expõe a formação dos preços que reparte a mais-valia social entre as diferentes
massasdo capital. Ele conclui: "Eis que chegamosfinalmente às formas fenome-
nais que servemde pontos de partida ao economista vulgar; renda proveniente da 4zKart Marx, l.e Capíral,livro 111,
t. 1, op. cit., p. 337. Numacarta a Engelsde
terra, lucro (interesseprovenientedo capital), salário provenientedo trabalho. 11 de agosto de 1894, Antonio Labriola distingue a "gêneseabstrata", de algum
Mas, no ponto em que nos encontramos, as coisas apresentam-seagora sob uma modo estrutural, da mercadoria e "a gêneseconcreta" (história da acumulação
outra luz. O movimento aparente explica-se [-.]. Enfim, considerando que esses inglesa).
três elementos são as fontes de rendimento das três classes, ou seja, a dos proprie- 43Posfácio à segunda edição alemã do Capital. Ver também Pierre Mache-
tários de terra, a dos capitalistas e a dos operários assalariados-- como conclu- rey, "A propor du processusd'exposition du Capital", em tire JeCapital, Paria,
são, a luta de classes,na qual o movimento se decompõee que é o desfechode Maspero, t. 1, 1965 e 1969.
toda essa merda í...l." « Karl Marx, l,e Capital, livro 111,t. 1, op. cit., p. 297.

358 359
MARX. O l NTE MPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

ráter da produção capitalista), ele não é mais que capital dotado de de mercadorias" na medida em que são cambiáveis e se exprimem
uma função particular. Ele apareceportanto como uma "forma histó. Dtumterceiro termo semelhante.Então, a troca contínua e a reprodu-
rica" do capital bem antesque o capital tenha "sujeitado a própria ção mais regular em vista da troca "eliminam cada vez mais o acaso"
produção" O mesmovale para o capital usurário e o capital mercantil: "Ele
Na economia pré-capitalista o produto torna-se mercadoria no faz parte com o capital comercial, seu irmão gêmeo, das formas ante-
comércio, e o capital emergeno processo de circulação. AÍ deve Crista- diluvianasdo capital, que precedemde longe o modo de produção
lizar-se antes de poder "dominar os extremos", as diferentes esferasde capitalista."'s Suaexistência requer apenas"a transformação em mer-
produção que a circulação retém entre elas. Essa relativa autonomia cadoriasde uma parte pelo menos dos produtos e que o dinheiro te-
inicial do processode circulaçãotem um duplo significado. Ela indica nha desenvolvido funções ao mesmo tempo que o comércio das mer-
primeiro que o capital não se apodera diretamente da produção. O cadorias". Nos períodos anteriores ao modo de produção capitalista,
processode produção incorpora a si mesmo a circulação como simples o capital usurário existe portanto sob duas "formas características"
fase ao termo de uma inversão diabética. A circulação torna-se uma fase que não mais o serão na economia propriamente capitalista: a usura
transitória da produção,"simples realizaçãodo produto criado como por empréstimo de dinheiro a senhores pródigos e a usura por em'
mercadoria e substituição de seus elementos de produção produzidos préstimo de dinheiro a pequenos produtores que possuem seus meios
como mercadoria", e o capital mercantil uma das formas com que se de trabalho. Essasduas formas de empréstimo provocam a "concen-
revesteo capitalismo quando ele percorre o ciclo de sua reprodução. tração de grossos capitais em dinheiro" por ruína dos devedores. En-
No primeiro estágio da sociedadecapitalista, o comércio domina quanto forma característica do capital portador de interesse,o capital
a indústria. Depoisessarelaçãoinverte-se.É entretanto o comércio usurário corresponde portanto à predominância da pequena produ-
que começaa submetera produçãoao reino do valor de troca, ao ção. O banqueiro é respeitado e o usurário odiado porque o primeiro
desagregar as condições antigas, ao aumentar a circulação do dinhei- empresta aos ricos e o segundo aos pobres. No modo de produção
ro, ao triturar pouco a pouco a própria produção. A eficácia e o ritmo capitalista, a usura não pode mais preencher essafunção de separação
dessa ação dissolvente dependem evidentemente da resistência das entreforça de trabalho e meios de produção.
economias em questão. O desenvolvimento autónomo do capital No capital de interesseou usurário, forma antiga do capital por
mercantil apresenta-se portanto em razão inversa do desenvolvimento excelência aos olhos do povo, a produção de valor excedente perma-
da produção propriamente capitalista. Assim, entre os venezianos,os neceportanto uma "qualidade oculta" da economia. Ela não vem à
genoveses, os holandeses, o lucro conserva-se um lucro de intermediá- luz senãoquando as formas capitalistas da produção acham-seplena-
rios e não um lucro de exportadores. O capital mercantil apareceaí mentedesenvolvidas. "É desconhecertotalmente a estrutura interna
"puro", "separadodos extremos" da produção. O monopólio do do modo de produção capitalista", exclama Marx, "é não ver de
comércio de comissãoé a fonte de sua formação. Inversamente,ele maneira alguma que a terra, assim como o capital, só é emprestada a
periclita à medida do desenvolvimento económico dos povos que ele capitalistas. Não é senão por um desconhecimento total da estrutura
coloca em relação. A relação quantitativa de troca é com efeito, num rea[ das coisas que [a diferença entre vender e emprestara pode apare-
primeiro momento, "inteiramente fortuita", na medida em que não cer como essencial."
existe espaçomercantil unificado por um trabalho socialmente neces-
sário para a produção das mercadorias. Os produtos tomam "a forma livro m, t. ll, OP. cit., P. 2s3

360 361
MARX. O INTEMPESTIVO

Compreende-se a que ponto seria erróneo imaginar que o presente


desvela os segredos do passado simplesmente permitindo que se remon-
te o fio de um encadeamentodeterminista.Ele dissipao desconhecimen-
to necessárioda estrutura interna do modo de produção ao preço de
uma inversão espetacular,pela qual o capital domina e redefinesuas
diferentes formas iniciais. Negação do fetichismo científico, a crítica da
economia política enraiza-se nessepresente inaugural: "A ciência real
da economia modema começa somente quando o exame teórico passa
do processo de circulação ao processode produção."" Do mesmo
modo que ela não saberia sobreviver-lhe, essacuriosa ciência, modesta- 9. A angústia da lógica histórica
mente temporal, não saberia preceder seu objeto.

« Kart Marx, Le Capital, livro 111,


t. 11,op. cit., p. 345

362
A resposta original de Marx ao problema que assombra as ciências
humanasem geral, e a história em particular, não levou muito tempo
para tornar-se inaudível. A partir da constituição da ll Internacional,
o movimento operário secretauma ortodoxia majoritária tão afasta-
da de sua problemática quanto o darwinismo vulgar dos caminhos
abertos por Darwin. Paralelamente, o alcance subversivo da crítica é
recalcado pela querela universitária "dos métodos" e pela crescente
influência de uma sociologia adaptada aos compromissos históricos
da Alemanha bismarckiana.
A "disputa dos métodos" estoura em 1883, ano da morte de
Marx e da publicação por Dilthey da llzlrodKção às ciê/zcüs do está'flo.
Com o impulso da psicologia, da sociologia e da economia,promo-
vidas ao slafws de disciplinas universitárias, afirma-se a distinção
entre dois objetos e dois modos de saber: ciências explicativas da
natureza e ciências compreensivas do espírito (Dilthey), ciências
nomotéticas e ciências idiográficas (Windelband), ciências naturais
e ciências culturais (Rickert). Supostamente, as primeiras formali-
zariam relações de regularidade (leis); as segundas visariam ao "con-
ceito individual"
Para evitar que a história fique confinada nos paradoxos de uma
ciência do particular, alguns historiadores tentam então reduzir o co-
nhecimento histórico ao massivo, ao típico, ao mensurável, à exclu-
são do acidental, das personalidadesconcretas, da insignificância
eventual. Outros assumemao contrário o caráter biográfico de sua
disciplina, "sendo a tarefa precisa da história expor um acontecimen-

365
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

to histórico".i Defendendouma posição intermediária, Édouard Meyer sa/f(&zdeadeqlía(&z para exprimir "a relação entre certos complexos de
distingue o acaso teleológico imanente do acaso relativo que resulta condições apreendidos em sua unidade pela reflexão histórica e o efeito
de um fator exógeno à relação causal. Essa distinção metodológica intervindo", oposta à noção de causa/idade acidefzla/, designando uma
procura estabeleceruma idéia de causalidadeespecíficaà história. relação arbitrária(inadequada) entre "um complexo de condições e o
evento que se produz".z A categoria de possibilidade objetiva ou histó-
rica torna então inteligíveis as "regras do devir"
As regras de um devir contingente?As leis de acontecimentosalea-
CAUSALIDADE HISTÓRICA E POSSIBILIDADE OBJETIVA tórios? Max Weber não desconheceas dificuldades inerentesà própria
noção de lei: "Dependia da definição mais ou menos ampla do próprio
Aos olhos de Max Weber, essacrençanuma "maneira peculiar à histó- conceitode lei que se pudessetambémincluir aí regularidades
não
ria de manejar o conceito de causalidade" é inteiramente ilusória. O quantificáveis." Os fenómenos históricos não dependemnunca de "re-
princípio de "dependênciateleológica" de Meyer, segundoo qual o lações legais no sentido estreito das ciências exatas da natureza, mas de
efeito desvela o sentido histórico da causa, trairia na realidade uma conexões causais adequadas expressas em regras, portanto da aplicação
compreensãoconfusada "eficácia histórica". Se apenasaquilo que da categoria de possibilidadesobjetivas". Ora, o trabalho científico não
exerce uma influência encontra legitimamente lugar no discurso histó- parece ter outro objetivo senão a busca de leis.
rico, a questão de saber qual "estado final" serve de referência à recons-
trução do desenvolvimento é inevitável. A carga significativa do evento Ainda assim, é preciso chegar-sea um acordo sobre o conteúdo do
dependecom efeito da escalatemporal em que ele é situado. conceito. Enquanto enunciado de uma relação causal, a lei científica
Weber toma emprestada ao fisiologista von Kries a noção de "pos- opera por simplificação de um material complexo. De modo, escreve
sibilidade objetiva". A Batalha de Maratona dividiu-se entre várias Georg Simmel, que uma lei, "ao ligar estados agregados, não pode ter
possibilidades, a de uma cultura teocrático-religiosae a do espírito he- nenhuma aplicação a estadosfuturos". A sinonímia comumente admiti-
lênico, como as de Waterloo ou de Gettysbwgh detiveram o curso para da entre lei e causalidade não tem nada de evidente. Sua distinção per-
vários porvires possíveis.O resultadode uma batalha é determinado. mite levantar a confusão entre uma relação de causalidade universal no
não fatal. A luta decide entre duas possibilidades objetivas inscritas no domínio da natureza e uma relação de causalidadesingular nos domí-
encadeamento causal. Para discernir relaçõesordenadas de causalidade. nios do espírito. Simmel imagina assim um mundo complexo onde, em
a história vê-seconfrontada com as mesmasdificuldades por que passa lugar de ser seguida por um efeito idêntico, uma causa poderia ser segui-
a justiça para definir a culpabilidade penal. As causas da morte não são da "por efeitos variáveis", sem que por isso a relação causal desapareça
as mesmas para o médico que assina o atestado de óbito, para o juiz que em favor de uma sucessãoaleatória. Desse modo, ele aplica a um evento
decide sobre as responsabilidades individuais, para o chefe político que único e incomparável a noção de "causalidade individual".3
avalia os fatores sociais dali decorrentes. Inspirando-se nos trabalhos de
2 Max 'Webet, Étadesctitiques polir sewir à la !ogiquedes sciettcesde la tRIture
von Kries e dos juristas, Weber propõe que se retenha a noção de ca#-
(1906), em Estais s r /a f#éorie de Ja scie#ce, Paria, PIOR,1965, p. 294.
l Para a primeira posição, ver Karl Lamprecht, foder e Gesc&fc#fswfsseHc&a#, ' Georg Simmel, Die Ptobleme des Gescbicbtspbilosopbie, cine erkentttttis-
1905, e seu discípulo K. Breysig, Der Sf#áplzbau d díe Gesetze der W'elrgescbi- fbeoreliscbeSf#dfe,Leipzig, 1923(edição francesaconsultada:l,es Proa/êles de
cbfe, 1904. E. Meyer, Zur 7'beorfe#fzdMefbodih der Gescbicbfe,1902. la p#i/osoP#ie de /'#isfoife, Paria, PUF, 1984, pp. 136-139).

366 367
MARX. O INTEMPESTIVO
A ORDEM DA DESORDEM

Na ausência de regularidades nomológicas, a expressão "as leis gam a contingênciasob um rigoroso determinismo.Carregadode
da história" tem necessariamente
um sentidoanalógicoe relativo e pressupostos metafísicos, esseprogresso inelutável supõe além dis-
deve ser aproximada das "conjecturas filosóficas". Indeferidas da so "que a entidade a que ele se aplica seja única", homogênea, e não
pretensão de fornecer as regras universais de "tonalidades complexas", desigual,articulada, atravessadade ritmos discordese de contradi-
elas devem contentar-se em desenredar o caos dos fatos singulares. A
ções não contemporâneas.'
história humananão constitui um capítulo autónomo do devir do Quando ataca violentamente o materialismo histórico (sua "idéia
mundo. Na medida em que "a noção de lei da história não permite a priori da unidade da história") e denunciao mecanismode sua
que se satisfaçam os constrangimentoslógicos que a noção de lei "partenogêneseeconómica", Simmel visa com efeito a vulgata social-
implica", ela se anula no desenvolvimento
de saberesparciaismais democrata ortodoxa da época. "Seria melhor evocar o poder do tem-
exatos, por ser tão difícil saber com certeza "se estamos às voltas com
po", declara triunfante. Ele parece ignorar que oitenta anos antes Engels
uma lei ou com uma simples seqüênciade eventos". já tinha constatado que "a história não faz nada". Ensaiavaassim
Quer as "leis históricas" representemas formas embrionárias e uma revolução conceitual do tempo cuja importância nem Weber nem
balbuciantes de leis científicas ainda por descobrir, quer exprimam a Simmel suspeitavam.
inteligibilidade racional de singularidades históricas. Torna-se tenta- Não raro sutil, repleta de engenhosos achados, a discussão que se
dor erige-lasem modelo de um conhecimento compreensivo que inter- seguiu, de Meyer a Weber, de Dilthey a Simmel, problematiza a rela-
pretaria mensagensem vez de medir relações. A menos, entretanto, ção do conhecimentohistórico com a racionalidade dominante da
que a soma discrepantedos eventospermita ainda atribuir-lhe um época. É surpreendente todavia constatar a que ponto a trovoada do
sentido. Com efeito, a unidade da história apareceantes como "um Cáfila/ continua inaudível para essesautores, em parte por mera ig-
ponto de fuga", "um ponto limite levadoao infinito", tão inacessível norância dos textos, em parte por surdez ideológica. Suasintuições,
quanto o Juízo Final. Pode-seassimimaginar um grande desígnio suaspropostas, seusrefinamentos conservam um perfume acadêmico.
histórico que se descobre a posferforí. Pode-seigualmente recusar a Trata-se realmente, entre eles, de uma querela de método sobre a re-
hipótese de uma história "orientada para nenhum fim". Se a visão lação comparativa entre disciplinas e suas regras de investigação. Esse
teleológica "anima a imagemda história", fica difícil concederuma o motivo por que a crítica da razão histórica que oferecem não atinge
eficácia própria a "um fim semsujeito que a coloca". O singular nunca a raiz. Como atirar-se com efeito à "angústia da lógica histó-
enquanto singular e o individual enquanto individual constituem por- rica" (Max Weber), a suas categorias de necessidade, de causalidade,
tanto o âmagodo enigma. de acidente, sem remontar à estrutura temporal dos ritmos, das con-
Essa abordagem de Simmel implica uma crítica da noção de tinuidades e das rupturas da relação social?
progresso, cuja acepçãocorrente pressupõe uma avaliação da mar- Essaexploração pioneira tinha conduzido Marx ao limiar de uma
cha para um estadofinal. Para o otimista liberal, toda mudança outra racionalidade. Onde a história ata-se ao político. Onde o co-
equivale a um progresso, contrariado quando muito por "retardou" nhecimento torna-se estratégico.
e "desacelerações". É então preciso que uma "ligação subterrânea"
assegurea continuidade do movimento para a frente, malgrado os
4 Desde sua Cr fca (&z/í/oso/ia do direfro de liegel, Marx percebeu "a mentira
passos tímidos e os recuos temporários. Em outros termos, é bem
do seu conceito de progresso" e sua consequência política: o conservantismo. O
"a crença no progresso histórico" e seu culto religioso que esma- culto do progressohistórico é com efeito fundamentalmenteconservador.

368
369
MARX. O l NTE M PESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

A rejeição da filosofia especulativa exige realmente uma nova concei- é incapazda mais elementarcrítica literária e histórica". Trata-sede
tuação da temporalidade e da causalidade. O Cap/fa/ pretende desco- um determinismovulgar baseadona influência unilateral do solo.
brir "a lei natural que preside à evolução da sociedade" semelhanteàs Quando o autor "declara que a influência do solo mais recente ou
"necessidades de ferro" estabelecidas pelas ciências físicas. A econo- mais antigo, corrigida pelo cruzamento, é a causa única das transfor-
mia política não se deixa entretanto facilmente reduzir ao modelo de mações das espéciesorgânicas e das raças, realmente não vejo por que
causalidade mecânica. A seu contara, as leis tornam-se "tendências eu o seguiria mais adiante". Darwin, ao contrário, realiza a conexão
profundas" que ressaltam uma causalidadede essência,ao mesmo entre necessidadee contingência.Depois de uma veleidadede resis-
tempo estrutural e acidental. tência, Marx bate prudentemente em retirada.s
A lei natural da evoluçãoinvocada por Marx é uma homenagem A questão do progresso e das leis tende zclais de evolução nem
a Darwin, cuja leitura o entusiasmou.Ora, a teoria darwiniananão por isso ficou resolvida. Nem a evolução, nem a economia política,
estabelecerelações gerais de causalidade. Ela desenvolve-secompli- nem o inconsciente comportam-se como máquinas. A etologia freudia-
cando sempre mais as razões da evolução. O número e a diversidade na das neurosesexplorará por seuturno a eficáciaprópria de causas
"quase infinitos" dos desvios de estrutura transmissíveis por heredi- ausentes ou de estruturas simbólicas irredutíveis à causalidade galileana
tariedadecriam para as "leis" da evoluçãodificuldades comparáveis e a seu tempo linear.
às da economiapolítica. Confrontado com a indeterminaçãodas leis
universais que supostamente regem a hereditariedade, Darwin invoca
aliás "a grande energia das fefzdê afãs hereditárias". Engels sublinha
a originalidade da lei da evolução,desconcertantepara "os asnosque CAUSA INTRANSITIVA E LIVRE NECESSIDADE
titubeiam sob o pesoda indução". Como todas as "leis históricas".
ela dependede um conceitoantiempirista e antipositivista. As infini- Para Aristóteles, a causa é "a essência da coisa que faz com que ela
tas diferenças acidentais da evolução levam a melhor sobre a necessi- seja o que é", ou bem a matéria, ou ainda a origem do movimento, ou
dade. A impossibilidade de provar a evolução por um raciocínio indu- enfim o objetivo para o qual uma coisa é feita. A partir de Galileu, ela
tivo relativiza assim as noçõesde classe,de gênero, de espécie. consiste naquilo "que é de tal modo que, quando se apresenta, o efei-
A polêmica epistolar de 1866 (em plena redação do Cáfila/) entre to logo vem a seguir, quando é suprimido, o efeito é suprimido". Essa
Marx e Engels sobre o livro de Pierre Trémaux (Orlgílze et t7'ans/or- relação funcional supõe uma temporalidade contínua e homogênea
mafíon de /'bomme ef des a ires êfres,Paras,1865) ilustra bem a (entre aquilo que se apresenta e aquilo que se segue), assim como a
inclinação determinista do primeiro e a sensibilidade do segundo para correspondência entre grandezas comensuráveis.Ao renunciar às ra-
com a emergênciatateante de uma outra forma de causalidade. Marx zões (por quê?) para estudar relações (as leis), a causalidade galileana
exprime seu vivo interessepelas tesesde Trémaux. As razões ideoló- ergue a estrutura de uma nova racionalidade e de uma nova represen-
gicas dessa admiração são transparentes. Trata-se de salvar a idéia de tação do movimento. Doravante, uma coisa é racionalmente conheci-
progresso ameaçada pelas incertezas da evolução darwiniana: "0
progresso que, em Darwin, é puramente acidental, é aquilem Tré- s Kart Marx, Friedrich Engels, cartas de 7 de agosto, de 2 de outubro, de 3 de
maux] necessário." A resposta de Engels é penetrante. A teoria de outubro, de 5 de outubro de 1866; em Corresponda#ce,t. VHI, Paris, Scandédi-
Trémaux não tem valor "porque ele não entendenada de geologiae tion-Éditions sociales, 1981.

370 371
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

da quando se conhece sua causa. A pretensa recusa newtoniana das forma a necessidadeem liberdade. A lei(tendencial) que se sabelei
hipóteses radicaliza essemodelo explicativo da ciência moderna em distingue-se da lei natural ou mecânica. A passagem da causalidade
detrimento da metafísica aristotélica. A redução do objeto científico mecânicaà teleologia sublinha essadiferença: "Opõe-se sobretudo a
a correlações passíveisde operaçõesmatemáticas implica entretanto teleologia ao mecanismo,onde a determinação atribuída ao objeto é
uma delimitação restritiva do conhecimento científico. wna determinação puramente exterior, não tendo nada em comum
Contestandoum modelo mecânico,inapto para traduzir a produti- com a autodeterminação. A oposição entre causaseficientes e causas
vidade específica das relações, Spinoza e Leibniz aparecem como "dissi- finais baseia-senuma diferença que, encarada de maneira concreta.
dentes" precocesda nova racionalidade.óEm Spinoza, a causa sni não é coloca a questão de saber se o mundo, em sua essência absoluta, deve
simples correlação, mas produção. A representação de Deus como cazlsa serconsiderado um mecanismo da natureza cega ou o produto de um
f z azzsífiz/a
manda para o espaçoo quadro conceitual do cartesianismo. entendimento que se determina de acordo com fins. A antinomia en-
Enquanto a causalidadetransitava,acabadae formal, exterior às coisas. tre o fatalismo, de um lado, e o determinismo e a liberdade, de outro,
encerra-sena tautologia, a totalidade se despoja numa relação recíproca reporta-se igualmente à oposição entre a teleologia e o mecanismo,
imanente, causante/causado,onde cada termo é ao mesmo tempo causa pois o que é livre é o conceito em sua existência."8
e efeito. Para Leibniz, "a expressão"(a causalidade expressiva) constitui A relação de causalidade aparece primeiro como "relação de causa
um modo original de causalidade.O mundo não é uma máquina: tudo aí com evito, em outros termos relação da causalidade formal" em que "a
é força, vida, desejo.Longe de "causar uma fatalidade insuportável", a causanão tem outra determinaçãosenãoa deproduzir efeitos". Cessan-
ligação das causas e dos efeitos fornece antes o meio de emancipar-se do de produzir efeitos, ela cessaria ao mesmo tempo de ser causa. En-
dela. Intermediária entre a potência e o ato, unidade das propriedades quanto essa relação de causalidade imediata é tautológica, outra coisa
contrárias, a noção de "tendência" acaba por tornar-se a idéia mestra. se dá quando se trata de uma causa "afastada" (ou mediada): "A mu-
Marx é herdeiro dessas dissidências através da lógica hegeliana. dança de forma sofrida pela coisa que constitui o objeto da relação dis-
Com efeito, a noção de causalidadeé consideradaaí como "muito simula, em razão de sua passagem por várias fases ou estados interme-
sujeita a caução já naquilo que diz respeito ao mundo físico, mas ainda diários, a identidade que a coisa conserva apesar das mudanças." O
mais no que se refere ao mundo do espírito, ao qual pertence a eco- exemplo de causa/fc&zde
aÁnsta(tzpertence claramente à "lógica históri-
nomia enquanto aspectodo espírito objetivo".' Na teoria da essência, ca". Trata-sede saber se o talento de um jovem, reveladodepoisda
Hegel retoma a distinção leibniziana entre razão suficiente e "causa- morte de um pai vitimado por uma bala no campo de batalha, é o efeito
lidade em sentido estrito", enquanto "modo de ação mecânica". A lei da bala ou de outras circunstâncias, múltiplas e longínquas. O tiro é
é "necessidade livre", e só "o mecanismo livre está submetido a uma assim considerado "não como uma causa, mas como um momento que
lei". Em outras palavras, o mecanismotorna-se,por sua própria lei, fazia parte das condiçõesde possibilidade"
"mecanismo livre". Hegel aqui segue Spinoza: a substância não se Depois de ter sublinhado as lacunas da causalidadeformal nas
conduz de acordo com a necessidadenatural. A ação conscientetrans- relaçõesfísicas, Hegel amplia sua proposição: "0 que é sobretudo
inadmissível é a aplicação da relação de causalidade às circunstâncias
6 Elhanan Yakira, l,a Causa/fféde Ga/fléeà Ka/zl, Paras,PUF, 1994. da vida físico-orgânica e espiritual. O que chamamos causa revela-se
7Henri Denis, l,ogfqKe bl@é/ienneetsysfêmes éco#omiq es, Paras,PUF, 1984,
P 148 8 Friedrich Hegel, Z,oglgKe,t. 11,op. cit., p. 435

372 373
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

aqui como tendo todo um outro conteúdo que o efeito, e isso porque "o fenómeno e a lei formam uma totalidade". A lei, que "representa
o que age sobre o vivente é determinado por ele mesmo; modificado uma relação essencial" ("a verdade do mundo fenomenal reside num
e transformado por ele, porque o vivente não deixa a causa produzir mundo outro que está em si e para si"), reaparecerána lógica subje-
seu efeito ou, dizendo de outro modo, porque ele a suprime enquanto tiva do conceito, no capítulo do "mecanismo" (a causalidaderecípro-
causa." Por uma extraordinária virada da necessidadeem acaso, "apro- ca intervém no capítulo quimismo e o metabolismo complexo no tí-
ximamo-nos mais da verdade dizendo que é o próprio evento que se tulo da teleologia), como "fonte inesgotável de um movimento que se
serviu de tal ou qual causa, pequena e ocasional, como de um pretex- renova sem cessare por si mesmo" ou como "necessidadelivre"
to"!P Uma tal reviravolta marca o limite da causalidadeformal que Pertencendo à lógica objetiva, a lei e a causalidade manifestam-se
"se anula no e(eito". Acontecede maneiradiferente na relaçãode como "destino ou sorte", na medida em que elas dependem do "meca-
causalidade determinada: a causa renasceaí em seu efeito, do mesmo nismo" cego(no sentido de que ele não é reconhecidopelo sujeito no
modo que o efeito, desaparecendo na causa,"aí devém novamente". que tem de específico).A finalidade, em contrapartida, pertencepropri-
No mecanismo, a causalidade caracteriza-se pela exterioridade amente à lógica subjetiva. A teleologia hegeliana opõe-se assim ao me-
formal. A ação ou causalidade"recíprocas"de substânciaspressu- canismo como a autodeterminação à determinação "puramente exte-
postas, condicionando-se uma à outra, são de ordem distinta. Mas, já rior". "A antinomia entre o fatalismo, de um lado, e o determinismo e
que cada substância é assim passiva e ativa ao mesmo tempo, "toda a liberdade, de outro, reportam-se igualmente à oposição entre a teleo-
diferença entre elas dissipa-se", de maneira que a ação recíproca não logia e o mecanismo, pois o que é livre é o conceito em sua existência."''
é ainda, portanto, "mais que um modo de ser vazio de sentido". Esse A determinação da atividade teleológica relaciona-se assim com a cate-
vazio é superado quando uma causa se acha a si mesma como causa goria da totalidade, pois "aí o fim.constitui o começo", a conseqüência
no efeito, quando, negando-se a si mesma, ela se torna essencialmente a premissae o efeito a causa, "um devir daquilo que é devendo"
efeito e "por isso mesmocausa": "Assim, a ação recíproca não é mais
que a própria causalidade; a causa não produz apenas um efeito, mas,
no próprio efeito, ela se comporta para com si mesma como causa. Â
causalidade encontra-se assim reconduzida a seu conceito absoluto."'' NECESSIDADEMECÂNICA E NECESSIDADE PERMISSIVA
Ela é "identidade interna" e "necessidade real". Necessidade e causa-

lidade desaparecem na ação recíproca, esperando a lógica subjetiva Hegel sublinha na renome/zo/agia que as noções de sujeito e objeto, de
do conceito, onde o acidente torna-se liberdade. ser e pensamento, de finito e infinito designam o que eles são "fora de
Na lógica da essência,a lei intervém antes da causalidade.A se- sua unidade". Ora, "a aplicação de um instrumento a uma coisa não a
gunda determina a realidade, a primeira determina o fenómeno: "a lei deixa tal como ela é para si, mas introduz nela uma transformação e
é a reflexão do fenómeno na identidade consigo", "a reflexão do fe- uma alteração".iz Saber que se sabe, ciência que se pensa como ciência
nómeno sobre si", sua "unidade negativa". A lei não se acha portanto em face da opinião, da ideologia ou da ficção, a consciênciaé essenci-
fora ou além do fenómeno. Ela Ihe é "diretamente imanente" ou antes almenteambivalente,"de um lado consciênciado objeto e, de outro,

9 Friedrich Hegel, l,ogiqwe, t. 11,op. cit., p. 226. n Ibid.,p. 435.


io Friedrich Hegel, l,ogfque, t. 11,op. cit., p. 236. i2 Friedrich Hegel, Pbé#oménologie de I'esprfr, op cit., t. 1, p. 65

374 37S
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

consciência de si mesma". A ciência, portanto, não é um outro absoluto. fala, a língua se tornaria glacial. Sem a ação das classes,dos partidos,
indiferente à opinião ou à ficção, mas sea outro relativo, inscrito nessa dosindivíduos,semo conflito e a luta, as formaçõessociaisestariam
relação de diferença. Longe de repousar-se na auto-suficiência positiva, condenadas à incansável repetição sistêmica de crises sem soluções.
ela é determinada por sua própria negatividade. Se, em definitivo, as massas fazem a história, esse "fazer" ajusta-

Por essemovimento, a consciênciaproduz seu objeto enquanto se mal à representação ordinária de uma vontade e de uma consciên-
objeto de conhecimento.Esseobjeto não é uma quimera da razão. Ele cia. Sujeito, a classe?Se se quiser, mas então sujeito turbulento, con-
"é", e a relação do saber com o objeto se resolve no absoluto enquanto traditório, esquizóide.Sujeito, o partido imaginado por Lukács?Sese
sujeito-objeto."A substância
é sujeito."O interior é o exterior.O fim quiser, mas sujeito a delírios, a lapsos, a pesadelosterríveis. A vulga-
é o meio. O sujeito é um não-sujeito.Essaidentidade mediada dos con- rização por muito tempo opas o mecanismo cego do mercado ao porvir
trários desconstróia subjetividadesoberana.Vamos encontra-la em dominado da planificação, concebidacomo o advento esperadoda
Marx, na relação entre o caráter reificado(objetal) da relação social(os consciênciana história, como a passagemenfim encontrada do caos
indivíduos sendo os suportes -- Tragar -- da estrutura) e a vontade pré-histórico à harmonia histórica. Um século impiedoso submeteu
subjetiva de mudar o mundo. O esquecimentodessaunidade contradi- essavisão edificante a rude prova, científica e política.
tória leva a interpretaçõesunilaterais abstratas,estruturalista-objetivis- Ideal falhado de uma onisciência divina, a objetividade tomou-se
modestamente "a objetividade para nós", à medida de nossa história.
ta de uma parte(a eliminaçãoradical do sujeito realiza-sena contempla-
ção das maquinarias estruturais), humanista-voluntarista(reduzindo a Reciprocamente, o sujeito não é mais o divino dono e possuidor de seu
crise da humanidade à sua "crise de direção revolucionária") de outra. objeto, porém, de forma mais humilde, o sujeito de seutrabalho e de seu
Ora, escreve com bastante clareza Marx, "os mesmos elementos produto. Portanto, um sujeito falível. E é ainda muito. A despeitoda
que, do ponto de vista da produçãode valoresde uso, se distinguem intenção declaradade considerar os fatos sociais como coisas,a histó-
entre si como fatores objetivos e subjetivos, como meios de produção e ria, a economia, a sociologia não conseguem nunca fazer abstração do
força de trabalho, distinguem-sedo ponto de vista da formação de valor sujeito ou, mais precisamente,da luta. Sabendoa que ponto o conheci-
em capital constante e capital variável".í3 Se meios de produção e força mento(topográfico, logístico, estratégico) da guerra pode modificar o
de trabalho distinguem-seenquanto fatores objetivos e subjetivos da seucurso, Clausewitz prefere a noção de teoria à de ciência. Baseadona
produção, eles permanecem unidos na realidade do processo de produ- interação entre teoria e manipulação prática, o diálogo experimental
ção, do mesmomodo que valor de uso e valor de troca estão unidos na põe igualmente em funcionamento uma "verdadeira estratégia"
mercadoria, capital constantee capital variável no processode valoriza- O fato histórico não é nem objetivo nem subjetivo. Ele acaba
ção do capital. O próprio capital é unidade dihrenciada dessaobjetivi- simplesmentepor cair num simulacro de objetividade, "quando não
dade e dessa subjetividade.:' Sem tal inclusão imanente do sujeito com age mais"."
o objeto, as estruturasseriamdesesperadamente
imóveis. Semo calor da Mas a história resfria (muito) lentamente.

i3Karl Man, l,e(bpifal, livro 1,t. 1,op.cit., P. 160. Seutempo não é mais o referente absoluto newtoniano. Desconstruí-
i+ Em Gramsci, "objetivo" nunca é senão "humanamente objetivo", por do e reconstruído, ele se pluraliza e rompe ao risco de um "desmoro
oposição a "historicamente subjetivo'. O homem conheceobjetivamente "na
medida em quc o conhecimento é real para todo gênero humano historicamente
unificado no sistemacultural unitário" (Ca#ier 11, op. cit., p. 214). is mean-PaulSartre, Cabjers poKr ##e morde, op cit., p. 45

376 377
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

namento cognitivo", se se confirmasseque todo conceito pressupõea homogêneo e reversível. Sua ciência fala de certezas. Na segunda
continuidade dos fenómenos. A lei temporaliza-se. Mergulhada na metade do último século, três grandes inovações abalaram sua fasci-
imprecisão histórica, sua necessidadecontingente varia como as pare- nante harmonia: a biologia darwiniana, as leis termodinâmicas de
des de um labirinto que mudassem de forma, sem cessar, a um simples Carnot e Clausius, a crítica marxiana da economia política. "Ciências"
toque. Submetida aos tempos fragmentados e discordes das relações da evolução e da transformação, elas se confrontaram com a instabi-
de troca, de exploração, de dominação, a história aparece como "um lidade e o desequilíbrio, com as leis tendenciais ou probabilistas, com
processo de determinação rítmica", inventando sem parar novas har- a seta do tempo e as simetrias temporais. Elas não falam mais de
monias e desarmonias. As sequênciasirregulares, as formas aperiódi- certezas,mas de incerteza e escolha determinadas. Anunciam assim
cas, as recorrências imprevisíveis, os motivos fractais, as magníficas uma reviravolta radical do pedestalepistemológico.
figuras de complexidadedeterminada,uma galáxia maravilhosa de Essagrande passagemdos relógios às nuvens, essagrande transição
"topologias, coreografias e genealogias" anunciando uma "nova lógi- para representações com simetria rompida, não se acha ainda acabada.
ca autenticamente multidimensional e dinâmica".ió Sabe-seapenasque há domínios em que a lei clássicanão funciona mais
Cada indivíduo acha-seassim engajado numa pluralidade das e onde sedesenha,como diz llya Prigogine, "uma nova racionalidade na
durações: um relato biográfico, ciclos orgânicos, ciclos económicos. qual probabilidade não é ignorância e ciêncianão rima mais com certe-
ciclos ecológicos, tendências climáticas, geológicas, demográficas de za". Com a evolução, as noções de evento e de criatividade "fazem sua
longo alcance. As coisas, as sociedades, os seres mudam, e toda noção entrada nas leis fundamentais da natureza". Em dolorosa gestação,
do tempo que vai além dessasmudançasarticuladas é duvidosa. A entre pesquisa rigorosa e efeitos de modo, essaracionalidade nova exige
seleção, a evolução, a história são de saída os conceitos temporais que que seja quebrado o espelholiso da temporalidade uniforme. O tempo
se realizam no tempo que elasengendram. A temporalização dinâmi- volta a encontrar seus ritmos e suas catástrofes, seus nós e seus ventres.
ca de sua complexidade é a adaptação do sistema à irreversibilidade O c/i/zamefzgrávido de novidades, e o &alros cheio de oportuni-
do tempo. dades estratégicas. Causas mecânicas e contingências probabilistas
Rompendo a aliança do tempo linear e da causalidade, teremos cruzam-se e combinam sem se excluírem: "No ponto de bifurcação a
desmanchadoa armadilha do determinismomecânicopara logo cair predição tem um caráter probabilista, enquanto entre os pontos de
na da teleologia?Não, por menosque se desembarace a teleologiade bifurcação podemosfalar de leis deterministas."í'
suas conotações religiosas para ver aí não a subordinação a uma or-
dem exterior, mas uma "finalidade interna" e um impulso imanente. i7 lira Prigogine, l.es Loas d# cbaos, Paras,Flammarion, 1994. A partir dos anos
trinta, Whitehead sublinha a diferença entre a indução científica e a previsão
A oposição entre a teleologia hegeliana e a iminência spinozista resol-
histórica. A ciência clássicatem a ver com generalidades.Nosso conhecimento
ve-se na invenção de relações temporais sem causas primeiras nem das leis científicas é lamentavelmente deficiente, e nosso conhecimento dos fatos
finais e nas necessidadesgravitacionais do conflito social. significativos do presentee do passado,extremamentepobre. O caráter "pura-
mente descritivo" das leis naturais em sua concepção positiva tinha a vantagem
Essashesitações esclarecem-seà luz dos desenvolvimentos científicos de uma sedutora simplicidade em relação às dificuldades da lei imanente ou da
lei de comando (cujas ambigiiidades reconduzem aos caminhos abandonados da
contemporâneos. O universo de Newton é determinista, seu tempo metafísica no sentido aristotélico do termo). A lei torna-se sinónimo de enuncia-
do de fatos observados,mas as estatísticasnada podem dizer sobre o futuro,
É#eP lse o/'Freedom,op. cit., pp. 53 e 90. salvo introduzir postulados de estabilidade e de risco de erro calculado.

378 379
UARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Nem por isso a causalidademecânicaé abolida. Mediada pelos necessidade de uma outra para existir. Em sua unidade e apoio mú-
ritmos, ela insere-seem leis complexas (tendenciais) e incrusta-se em tuo, o real e o possível formam um ser contingente. A necessidadedos
estruturas holísticas (de determinação recíproca do todo e das partes). seresparticulares não pode conservar-sesenão em sua relação com a
Essascausalidades sistêmicas abertas não reconhecem mais experiên- totalidade. Não haveria a partir daí acaso absoluto fora da situação
cias cruciais, suscetíveisde fechar a história e eliminar a contradição. limite "de indiferença de equilíbrio" ilustrada pelo mortal paradoxo
Essessistemas que engendram sua própria causalidade não podem mais de Buridan. O futuro da necessidadecondicional é ao mesmotempo
explicar-se causalmente. Cazlsasui, tal como a substância spinozista. determinado e contingente. Leibniz recusa toda confusão entre certo
elespróprios se pressupõemindefinidamentecomo produção de sua e determinado, certeza e necessidade, necessidade metafísica, "que não
autoprodução. Uma concepção radicalmente imanente da causalida- deixa lugar a qualquer escolha", e necessidademoral, "que obriga o
de esclarece assim as antinomias da "necessidade histórica". mais sábio a escolher o melhor"
O equívoco do termo necessidadeé largamente responsávelpelo Necessidadee contingência relacionam-secom o possível.É possí-
fato de que filósofos, considerando tautologicamente possível o que vel aquilo que não implica contradições;geometricamente(absoluta-
advém efetivamente, acabam por acreditar que tudo é necessárioab- mente) necessário, aquilo cujo contrário é impossível. Portanto, na cri-
solutamente. Leibniz distingue ao contrário a necessidadeabsoluta ou ação, nada é geometricamente necessário. Descartes teria cometido um
geométrica (müsse#) da necessidade hipotética ou moral (se//en). É erro atendo-se unicamente à necessidade absoluta, e Spinoza, ainda que
absolutamente necessário aquilo que não saberia ser de outro modo. "às vezesse mostre mais ameno sobre o ponto da necessidade", teria
hipoteticamente necessário, aquilo que supõe uma escolha. A oposi- errado ao deduzir tudo de uma causa primeira "por uma necessidade
ção entre necessidade cega (absoluta) e necessidade moral (hipotética) inteiramentegeométrica". A necessidademoral inclina semconstranger,
permite salvar a justiça que corrige e pune. Intermediária entre neces- pois a vontade de Deus não é aazlsa/ mas permlssiua, e sua razão é a raiz
sidade cega e necessidade geométrica, a ação divina é com efeito regu- do possível: "A predestinação que admito é sempre i cZi#amle, nca
lada pela necessidademoral. Não somosportanto necessidades,mas lzecessiranle.":' Deus escolheu o mais perfeito dos mundos possíveis, o
apenas "inclinados". Essadiferença decisiva autoriza "eventos condi- melhor que pudesseser escolhido, entendendopor mundo "toda a se-
cionais", entre "futuros certos" e "futuros necessários". Meio-termo quênciae todo o conjunto das coisas existentes", a fim de que não se
entre destino e indiferença, a liberdade que "inclina sem necessidade" pudessedizer que outros mundos podiam existir em outros tempos e
funda assim a "futuribilidade" propriamente histórica.i8 lugares.Leibniz respondeassim ao problema teológico do pecadoe do
A incerteza da necessidadehistórica é atestada pela contingência mal, do castigo e da salvação.Mas a totalidade fechada do melhor dos
do evento, o qual não tem "nada nele que o torne necessárioe que mundos possíveis ou da Característica universal nunca coincide com a
não deita conceber que qualquer outra coisa podia acontecer em seu combinatória aberta de um jogo infinito. De sorte que a matemáticado
lugar". Não é "impossível que aquilo que está previsto não aconte- possível conserva-seinsuficiente diante da singularidade do real.
ça".i9 Fortemente "inclinada", a "necessidadecondicional" não seopõe O possívelé governadopela necessidadehipotética e vice-versa.
mais à contingência. Cada coisa é contingente na medida em que tem Os mundos possíveis são, em sua singularidade, essencialmentecon-
tingentes. Na medida em que essa contingência exige escolhas, não
'8 Georges Friedmann, l.eibmiz et Spimoza,op. cit., pp. 314-322.
i9 Leibniz, assai de TBéodicée,op. cit., p. 356. zoLeibniz, Essasde Tbéodfcée,op- cit., p. 47

380 381
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

haveria como existirem senão indivíduos não idênticos e verdades A necessidadehipotética resulta de seuinacabamento. 't

existenciais que escapam à necessidadeabsoluta.zt Do #orizo/zte da No livro de uma extensão infinita de que ela é o relato, as histó-
do Irí a b mana e .A restilKjção u?zfz/erga/
desenvolvemum raciocínio rias anteriores só retornariam quando todas as histórias públicas
ao limite. Do lzzímero/i#ifo de verdades e de falsidades possíveis, resulta possíveistivessem sido esgotadas.Do mesmo modo para as histórias
inelutavelmente que "se o gênero humano continua a existir, não se privadas, com a diferença de que quanto mais se demora nos detalhes
pode dizer mais nada que já não tenha sido dito, mesmo palavra a mais a história se estende.A passagemao limite da Res llzlição ulzí-
palavra". A partir de um número finito de elementos, as combinações t/erga/muda o registro. Na ordem da lógica e da razão, a repetição é
da linguagem esgotam-se forçosamente, de modo que não se possa no inelutável. Na das verdades sensíveis e da experiência existencial, não
fim das contasescreverum romanceque um outro já não tenha escri- o é mais: "As verdadessensíveisque dependem não da razão mas da
to. Num enunciado infinito composto de elementos finitos e idênticos experiênciapodem ser diversificadas ao infinito.":3 Existenciais e sin-
a si mesmos, as repetições são logicamente inevitáveis e as coisas que
sedizem outra vez só parecem novidades por causa dos grandes inter-
gulares, as verdades históricas não repousam em possíveis fora do tem-
po mas em eventos carnais e terrivelmente temporais-
H
valos temporais que as separam. Essafigura da repetição é entretanto Na medida em que Leibniz faz aí abstração do "tempo efetivo" e
condicionada por uma invariância dos elementos.Ela supõe que o hesitadiante da passagemda combinatória à história, Do #orizo/zte
gênerohumano continua a existir indefinidamente "com os homens da do trí/za b mana não dá nenhuma escapatória à repetição. A
tal como os conhecemos". Uma autotransformação desses homens Resfífwíçãownit/erga/suprime essacircularidade perfeita. Toda pro-
romperia, em compensação,a simetria temporal, abriria um novo posição singular é histórica. Sua verdade é de ter existido ou de dever
campo de possíveise multiplicaria tanto mais as combinações virtuais. existir "em tempo e lugar determinados".Como o Juízo Final nas
É precisamente o que se passacom as invenções da vida, as bifurca- Tesesde Walter Benjamin, .A Apocalásfese torna-se o ponto de fuga
ções da evolução ou os acontecimentos históricos. inacessívelde uma grande selagemfinal, onde seria revelado o segre-
Mesmo no caso de um sistema infinito de elementos finitos e idên- do retrospectivo da História universal.
ticos, Leibniz não exclui a inovação.Ainda supondo que "o gênero A experiência da história real continua aberta às ínfimas variações
humano dure por muito tempo", basta para isso que certas mensa- que rompem o círculo do eterno .retomo e deixam entrever um "me-
gens sejam frequentemente repetidas e que outras permaneçam no lhor" anunciador das temáticas do progresso: "Mesmo se um século
estado de virtualidade. Um grande número de coisas novamente ditas anterior retorna naquilo que diz respeito aos fatos sensíveis,ele não
preserva a virtualidade inesgotável das coisas "dizíveis e nunca di- retomaria entretanto completamente em todos os aspectos: pois sempre
tas". Leibniz leva ao extremo seu modelo de repetição lógica para haveria distinções, embora imperceptíveis, e que não poderiam ser sufi-
opor'lhe o comportamento do real, onde nunca existem, como no ano cientementedescritaspor qualquer livro, porque o contínuo é dividido
planetário, "retornou perfeitos". numa infinidade atual de pares, ao ponto que em cada parte da matéria
Como a linguagem, a história é "um grande enunciado" aberto.u existe um mundo de uma infinidade de criaturas que não pode ser des-
crito por qua[quer [ivro, por mais extenso que seja. [-.] E por essarazão

zi Yvon Belaval, l.eiblziz, Pauis,Vrin,. 1969, p. 162.


u Leibniz, De /'Horizon de /a Doctrifze H malha (1693), Paria, Vrin, 1993, 23Leibniz, l,a Reslil#tlo# uníuerse/le(1715), em De /'borlzo# de la doclri#e
P 57. bumailze, op. cit., p. 65.

382 383
MARX. O INTEMPESTIVO
r' A ORDEMDA DESORDEM

cera para semprenesteestado,porque não é próprio da harmonia divi-


na fazer vibrar sempre a mesma corda. E é preciso anta acreditar quq
de acordo com as razões naturais da congruência, as coisas devem avan.
çar para o melhor, sejapouco a pouco, sejatambém às vezespor saltos.
pois, ainda que não raro pareçam dirigir-se para o pior, devemospensar

que isso se prodor.do mesmo modo de que quando às vezesrecuamos

que é real é possível": na lógica hegeliana,o ser em si do real


possui à perfeição o caráter da possibilidade. A possibilidade compor-
ta dois momentos, um delespositivo, "que é uma reHexão sobre si",

constitui dc possibilidadeem possibilidadecomo necessidade"

384
38S
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

bém o seu próprio negativo, ser em si ou possibilidade; ele é portanto cidade relativa, como determinismo. A necessidaderelativa não pode
possibilidade real."zó A possibilidade real torna-se portanto necessi- ser deduzida da possibilidade real, o que quer dizer que se trata de um
dade, mas esta começa pela unidade, "não ainda refletida sobre si. do encadeamento de condições, de causas, de razões etc. que mediatiza
possível e do real". O necessárioreal conserva-se assim uma realidade essa necess\dado. A possibilidade real é a explicação da necessidade
limitada que, "em razãodessalimitação", constitui também,sob uma re/afia/a.O acaso é uma realidade que não tem o valor da possibilida-
outra relação,"uma realidadecontingente".Em definitivo, o que se de, mas a possibilidade abstrata é precisamente o antípoda da possi-
designa como "necessidade absoluta" não é mais que "a unidade (la bilidade real." Repleto de turbilhões e turbulências, o pensamento
necessidade e da contingência" atomístico de Demócrito, de Epicuro, de Lucrécio é com efeito propí-
A contingência, ou seja, a existência de algo que poderia não existir. cio às descontinuidades,às rupturas, ao c/íname por onde a novida-
Mas compreenderpor que há contingente é fazê-lo imediatamente de desliza no encadeamentodas causas e dos efeitos: "Se por seu
desaparecercomo contingente, de modo que o contingente está fada- declínio os átomos não provocam um movimento que rompa as leis
do a cair. Há portanto para Hegel uma necessidadeda contingência, da fatalidade e que impeça que as causas se sucedam ao infinito, de
uma e outra determinando-se reciprocamente ao cair incessantemente onde vem essaliberdade conferida na terra aos seresvivos?"z7
uma na outra. A contingência de uma coisa atém-se a seu isolamento. Nenhuma barreira estanquesepara a necessidadeda contingência
portanto à sua submissão a um constrangimento externo(como a pedra determinada em relação à lei de que ela é contingência. Assim, "desde
de Spinoza joguete de uma vontade heteronõmica), enquanto a livre que o valor se transforme em preço, essarelação necessáriaaparece
necessidadeé a perfeita ligação da determinação autónoma. A neces- como relação de troca de uma mercadoria usual com a mercadoria
sidade não é mais o conceito relacional de um determinismo externo moeda que existe fora dela. Mas a relação de troca pode exprimir ou
e formal, masa indicaçãoda "suficiênciade uma causade si". A ta- o próprio valor da mercadoria, ou o mais ou o menos que sua aliena-
refa da ciência ("e mais precisamenteda filosofia") consiste então em ção, em determinadas circunstâncias, carrega acídefzta/me/zfe."28Vá-
"conhecer a realidade oculta sob a aparência da contingência" rias circunstâncias agem do mesmo modo sobre o curso do desenvol-
vimento histórico. Assim, a relação de forças entre as classesdepende
Essa dialética do necessário e do possível permanece incompreensível da história anterior, das aquisições sociais, das capacidades de orga-
para os detratores de um Marx raramente determinista, aferrados a
imputar-lhe um conceito mecânico de necessidade.Sua posição apa- zzLucrécio, De /a afere, Paria, Garnier-Flammarion, 1964.
28Karl Marx, l,e Capital, livro 1, t. 1, op. cit., p. 88. Eugêne Fleischmann:
rece desdeSobre a diferença ent« as filosofias da natutáza .Ü Demó-
"Deve-se prestar bastante atenção à noção dialética de contingência. Uma coisa
crifo e de Epfc ro: "Um ponto é historicamente certo: Demócrito serve-
é considerada como contingente porque cla poderia ser de outra maneira. Mas as
seda necessidade,Epicuro do acaso;e cada um delesrejeita o ponto coisas existem realmente e, malgrado o fato de que poderiam ser de outra manei-
de vista oposto com a asperezada polêmica. [-.] O acaso é uma rea]i. ra, não o são. Ao contrário, elas são necessariamente
como elas são porque são
dade que não tem outro valor senão a possibilidade. Ora, a possibi- possibilidades realizadas por uma causa que evocou e explica a realidade delas.
Estas três noções, possibilidade (contingência), necessidade e realidade, são sepa-
lidade arbitrária é precisamenteo antípoda da pois/b//idade rea/. [...] ráveis unicamente com a ajuda de uma abstração: o ponto de vista da possibili-
A necessidadeaparece com efeito, na natureza acabada, como neces- dade encara o porvir fazendo abstração do presente e do passado, a realidade é
o presente, e a necessidade é a característica do passado (que não pode nunca ser
zóFriedrich Hegel, Scle#cede la logfqwe,op. cit., t. 11,P. 208. de outro modo do que é)" (La Pbllosopbfe polffiq e de bege/, op cít., p. 35)

386 387
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

nização, da memória e da cultura do movimento social. Portanto, ela CáFIla/,Marx introduz em várias oportunidades sua possibilidade
não é arbitrária. Nem menoscontingente em relação às leis da pmdu- lógica.No livro 1, com "a cisão entre a venda e a compra", cuja "ín-
çao capitalista. Essacontingênciarelativa a um modo de determina- tima ligação" afirma-se pela crise: "Essas formas implicam a possibi-
ção dado não é ausênciade causas.A noção paradoxal de "acaso lidade, mas somente a pois bi/idade, das crises. Para que essapossibi-
objetivo seria aqui bem-vinda.ZPEugêne Fleischmann sublinha que lidade se torne realidade, é preciso todo um conjunto de circunstâncias
contingência, erro, acasosão "necessáriosdo ponto de vista da ordem que,do ponto de vista da circulação simples das mercadorias,ainda
razoável da sociedade": "Sem contingência não haveria nem razão não existem." Sua possibilidade, .e somente sua possibilidade, reapa'
nem necessidade."Ele nota ironicamente que, "malgrado essaposi- recono livro ll com a defasagementre ciclo de produção e ciclo de
ção categóricasobre a necessidade da contingência,Hegel é ainda circulação(novas mercadorias podem precipitar-se sobre o mercado
tratado como panlogista e como filósofo puramente dedutivo".30 antesmesmoque as do ciclo precedentetenham escoado),ou com a
A mesma observação aplicar-se-ia, pelos mesmos motivos, ao a-sincronia entre o ciclo do capital circulante e o do capital fixo (cujas
"determinismo" de Marx. A relação da contingência e da necessidade descontinuidadesescandemo ciclo industrial). De onde a crise poten-
é perfeitamente ilustrada pela problemática das criseseconómicas.No cial, em potência, que ainda não é a crise efetiva.
Restaentão explicar a passagemdo possívelao real, do virtual ao
efetivo. Os economistas tradicionais contentam-se a essepropósito ora
2pÉ a opinião de Michel Vadée: "A interpretação determinista do marxismo, que
procura tudo explicar dogmaticamentepela necessidadeeconómicae as leis da como puro acaso,erigido em dezlsex macbíma,ora com o deduzir a
produção, escamoteia o papel do acaso objetivo no qual se insere a vontade crise da disjunção entre venda e compra, o que acaba, ironiza Marx,
humana individual"(Àfarx pe#seur d# possjb/e, OP. cit., P. 149). Muito menos
por explicar, sob sua forma mais abstrata, "a crise pela crise". A se-
feliz é a .ideia segundo a qual a contingência de Marx seria praticamente equiva-
paração dos atos de compra e venda determina apenas a possibilidade
lente à de Coumot: um encontro entre séries causais independentes. Para Mau,
à diferença de Cournot, todas as sériescausaisemanam dc um mundo de que elas da crise. O que determina a passagemda possibilidade à efetividade
não são mais que aspectos.Tem-seàs vezesa impressãoque o elo entre o acaso não se acha nem no livro l nem no livro ll do CapifaZ,mas no nível
aparente dos casosisolados e a lei interna que os inscrevena totalidade manifes- dareprodução global.
ta-se pelo efeito estatístico. Assim, na esfera da concorrência, "desde que se con- Michel Vadéeconclui daí, com razão, que "o pensamentomarxia-
ere cada caso isolado, vê-seque é o acasoque reina ali; a lei interna que se
impõe no seio dessesacidentesfortuitos e os regulariza só se torna visível quando
no da necessidadehistórica era ao mesmo tempo um pensamentoda
essesacidentes fortuitos são reagrupados por grandes massas: isto é, a lci perma- possibilidade histórica".3í Ao mesmo tempo e no mesmo movimento. O
nece portanto invisível e incompreensívelpara cada agente individual da própria que é enunciado como "historicamente necessário"(bisforiscb lzofwe#-
produção. Vamos mais longe o processoreal de produção, ou seja,o conjunto de) -- a derrubada do capitalismo, a supressãoda exploração, a instau-
do processo de produção imediato e do processode circulação, dá origem a novas
estruturas nas quais o fio condutor dos laços e relações intimas perde-se cada ração de uma sociedade sem classes -- é necessário primeiro porque
vez mais, as relações.de produção tornam-se autónomas umas para com as ou- possível. Por oposição à necessidade natural, essa necessidade é históri-
tras, enfim, onde os elementos de valor esclerosam-se respectivamente em formas ca. Compreendê-la como uma necessidadeexterna e cega, como uma
autónomas' (Le Cap/za/,livro 111,t. 111,P. 206). Talvez devamosver nessaafir- espéciede prescrição legal ou divina aplicando-se de acordo com a força
mação a influência de Quételet(Du sysfême social ef des /ois q f le régissent),
do destino, significaria pura e simplesmenteum contra-senso.
cujos traços encontramos nos cadernosde Marx em 1851 e cujas "médias regu-
ladoras" são evocadas
em l.e Cáfila/ (livro 111,
t. 111,
P. 236). ''
;o Eugêne Fleischmann, l,a Pbl/osopble poli/iq e de Hegel, op. cit., P. 233. Maré pe se#r d possible, op. cit., P. 19

388 389
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Para Jindrich Zeleny, O Cáfila/ não depende nem de um processo dividual da própria produção". Ela opõe-sea uma lei(histórica e não
puramente lógico, nem de um processo puramente histórico, mas de mais natural, conscientee de modo algum cega)que, dominada e
uma relação entre os dois regida por uma legalidade interna distinta controlada pela razão dos produtores associados,negar-se-iaenquan-
da causalidade externa. A "causalidade galileana", mecânica e quan- to lei. A noção de lei designaclaramente não um elo de causalidade
titativa, não desapareceu,mas Marx concebe diferentes formas de ação mecânicaentre dois fenómenos,mas a lógica de uma essênciapara
que Ihe são "estranhas". Para captar "as formas mais variadas de alémdos "acidentesfortuitos" perceptíveisna superfícieda circula-
conexão interna", ele experimenta diversosmodos de pensamento ção e da troca.
causal. Ele procura uma lei que não seja mais elo mecânico, mas lei Quando Marx se refere a "leis sociais fixas", quando invoca a pro'
"interna" e imanente ("lei geral da troca", "lei coercitiva da concor- PÓsito delas a "necessidade de ferro" das leis físicas, fixidez e necessida-
rência", "lei imanente da produção capitalista"), ou ainda "conexão de devem ser entendidas de maneira inteiramente relativa. Entre sua
interna e necessáriaentre duas coisas" que aparentemente se contra- naturalidade aparentee a realidade social e histórica que as determina,
dizem. A causamecânicaperde assim sua situação privilegiada na a contradição está funcionando. Trata-se de leis históricas que se apõe'
explicação científica em favor da mediação.32 sentam como naturais. A dificuldade salta aos olhos. Se a lei é da ordem
Gérard Duménil recenseouminuciosamente as ocorrências da lei da generalidadee da regularidade, que é então uma "lei histórica"?
no Cáfila/. Trouxe especialmenteà luz as ambigüidadesda noçãode A história é tecida de singularidades eventuais. Não há história
lei natural. Nas relaçõesde troca acidentais,o tempo de trabalho senãona medida em que aconteceo que teria podido não acontecer.
socialmente necessário "domina fortemente como /e/ lzat ra/ rega/a- Radicalmente imanente, a lei histórica afirma, enquanto relação so-
dora". Em várias ocasiões Marx designa a lei do valor como "lei natural cial, sua necessidade para com e contra as contingências extremas.
cega". Os elos internos da produção social impõem-se sob forma de Nessesentido, ela opõe-seao formalismo da causalidadeexterna.
"lei natural todo-poderosa". Nessas formulações a lei é dita "natu- Assim, "a luta de classes contraria a exploração sem mercê dos traba-
ral" por oposição ao "livre-arbítrio". Essa naturalidade declarada da lhadores pelo capital, mas, por mais benéficos que sejam seusresulta-
lei traduz sua percepçãopelosprodutores que a sofrem. Mas a per- dos.o valor da força de trabalho continua determinadopelo tempo
cepçãonaturalizante é um efeito do fetichismo da mercadoria e do de trabalho necessário à produção das subsistências que cabem à clas-
processo de deificação: "A interdependência do conjunto da produção seoperária. Em ambos os casos essasdeterminações extremas operam
impõe-se aos agentes da produção como wma /el cega em lugar de ser de uma maneira contingente, sem que o conteúdo da lei sofra o menor
uma lei que a razão associadados produtores teria compreendido e arranhão. Ao contrário, a lei afirma-se em todo o seurigor através de
portanto dominado, o que lhes teria permitido submeto o processo tais reviravoltas imputáveis às causas externas, pela manutenção da
de produção a seucontrole coletivo."33A lei natural é cega na medida relação necessáriatrabalho abstrato/valor." Duménil sublinha perti-
em que "permanece invisível e incompreensível para cada agente in- nentementeo estreito parentesco entre a lei e o conceito.H A ação de
uma lei conceptual exprime a necessidadeimanente (interna) de um
szÉ tambéma leitura da l,ógica por Lenin: "Quando lemoso que Hegelescreveu
sobre a causalidade, surpreendemo-nos com a maneira como se despacha esse
tema predileto dos kantianos. Por quê?Porque, para ele, a causalidadenão é H Georges Duménil, l,e ConcePt de loi éco#omlque (h s Le Capital, op cit., p-
mais que uma das determinações da conexão universal [-.].' 49. 'Que diferença devemos fazer em nosso espírito entre conceito de valor e a
33Karl Marx, Le Cáfila/, livro 111,
t. 1, op. cit., p. 269. lei do valor? Essadiferença parece, à primeira vista, bastante reduzida. O para-

390 391
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

processo, por oposição à multiplicidade das causasexteriores contin- NECESSIDADES


INCLINANTESE LEISTENDENCIAIS
gentes, independentes umas das outras. Assim, "a troca ou a venda
das mercadorias em seu valor é racional; é a lei natural de seu equi- Essametamorfose da lei económica em lei histórica é anunciada pelo
líbrio e é a partir dessalei que é preciso explicar os afastamentos e estranho conceito de lei tefzdefzcla/, introduzido desde o prefácio à
não inversamente explicar a própria lei a partir dos afastamentos".s primeiraediçãodo Cáfila/ para corrigir a "necessidade
de ferro" das
Muitos críticos tropeçam nessa lógica desorientadora do(hpfla/ leisnaturais da produção. No livro 1, a lei "segundo a qual o preço da
onde a lei não é a generalização estatística dos fenómenos visíveis, mas força de trabalho é sempre reduzido a seu valor" encontra óbices que
o constrangimento invisível que rege suasflutuações. Num vocabulário «não Ihe permitem realizar-se senão dentro de certos limites". A lei
mais contemporâneo,essalei intema ou imanente poderia ser também seria contrariada por simples fatores mecânicosexternos, espéciesde
considerada como lei estrutural ou bal@elza.O fetichismo da mercado- atritos que a creiam.
ria transforma sua imanência em potênciase constrangimentos estra- No livro 111,a noção de tendência não aparece mais acidental. Ela
nhos que o produtor, literalmente subjugado, deve afrontar. Do mesmo especificaa diferença das leis económicas em relação às leis físicas ou
modo, "a livre concorrência impõe a cada capitalista individual as leis naturais: "No conjunto da produção capitalista, a /ei gera/ só se !a-
imanentes da produção capitalista como leis coercitivas externas". Se põe como fe/zdêpzcfadominante aproximativamente e de maneira com-
mercadorias podem ser vendidas a preços que se afastam de seu valor. plexa." A existência de uma taxa geral da mais-valia não constitui,
"esse afastamento aparece como uma inflação às leis de troca".x "como qwalquet tei económica, senão uma tendência' .ss
Não mais que a determinaçãode um conceito, o enunciado de uma Esseconceito de /ei fendencia/ assumeentão toda a sua importân-
lei não teria como ser definitivo. Ele pertence ao processo de determina- cia. Na terceira seção,a propósito da "lei da baixa tendencial da taxa
ção que conduz da relação de produção simples, e de suas abstrações,à de lucro"(Gesefz des lendefzzie//efzFa//s der Pro#rafe), as "causas
complexidade concreta da reprodução global. A lei quase mecânica que que contrariam a lei" não são mais obstáculos externos ou freios
se manifesta ao nível do processo de produção torna-se uma espécie de mecânicos, mas a própria consequência "das contradições internas da
lei orgânica, enriquecida, corrigida e complexa, ao nível do processo lei"(E IÁa/f /zg der f zfzer Wldersp ücbe des Gesefzes).O caráter
global. Não se trata mais de leis propriamente económicas,mas de leis tendencial da lei exprime doravante as contradições intemas pelas quais
históricas insólitas, que não cessam de contradizer a si mesmas.37 a lei económica nega-sea si mesma enquanto lei: "Foi preciso que
atuassemas influências contrárias que contrariam e suprimem o efei-
doxo que inicialmente retivera nossa atenção -- a ausência da expressão "lei do to da lei geral e Ihe conferem simplesmente o caráter de uma tendên-
valor" na seção l do (bPllal-- encontra assim um começo de explicação. Expor cia." Sãocom efeito "as mesmasleis" que "acarretam para o capital
o conceito de valor é enunciar suasleis(ou sua lei). Isso se exprime trivialmente social uma alta absoluta da massa do lucro e uma baixa de sua taxa",
pelo fato de que as fórmulas "o valor é tal ou qual coisa' ou "a lei do valor
implica tal ou qual coisa" podemser consideradas,numa primeira abordagem, que "se manifestamna baixa relativa do capital variável comparado
como equivalentes[-.]. A interioridade da ]ei definir-se-ia dessemodo em relação ao capital total e na acumulaçãoque se encontra acelerada","que
com o conceito" {p. 40).
3sKarl Marx, l,e(hpifa/, livro 111,t. 1, op. cit., P. 203. lei exprime o que há de intangível no seio da própria mutação e traduz a perma'
3õKarl Marx, l,e Capital, livro 1, t. 1, op. cit., pp. 162 e 286. nência do valor explicativo de um sistema conceitual" (Georges Duménil, l,e
37"É assim que a lei económica toma as aparências de lei histórica. Para a Comceptde loi éco omiqwe, op- cit., p. 150)
lei económica, a mutação histórica representa essealém do qual ela subsiste. A 3BKarl Marx, l,e Capfral) livro 111,t. 1, op. cit., pp. 177 e 191.

392 393
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

possível,Althusser, cego para o papel.da crítica, recobre-o raramente


.ara a ordem da ciência normal. É ele, não Marx) quem reduz a lei
tendencial a uma lei mecânica contrariada pela complexidade, areada
not uma espécie de fricção exterior. Os termos de Marx testemunham
Tendencial, nem por issoa lei se conserva menosconstrangedora. Ela antesum dilaceramento entre a racionalidade galileana e uma racio-
não.f suprimida pelos fatores que a contrariam. Ela manifesta-see se nalidade diferente, requerida por seu objeto (a economia política):
impõe através deles.A alta da taxa de mais-valia não anula a lci geral Embora ele ainda fale de desaceleramento e de enfraquecimento da lei
Ela tem somente por resultado "fazer disso antes uma tendência, ou pelas circunstâncias, aborda as "contradições internas da lei" confor-
seja, uma lei cuja realizaçãointegral é detida, desaceleradae entra. Mementeà sua lógica da imanência. Essashesitaçõesilustram a ten-
querida por circunstâncias que a contrariam". "Conexão interna en- são irresoluta entre a ciência positiva e a ciência alemã mediadaspela
tre duas coisas que aparentemente se contradizem", ela age ainda "sob crítica. Elas esclarecemas contradições entre a tentação determinista
forma de tendência cujo efeito não aparece de uma maneira surpreen- (do posfácio ao Cáfila/) e o desenvolvimento histórico aberto(polê-
dente senão nas circunstâncias determinadas e sobre longos períodos micascontra a "supra-história"). Sublinham a diferença lógica funda-
de tempo".40 Sua contradição íntima exprime que o próprio capital é mental entre uma causalidade mecânica, formal e externa, e uma lei
a verdadeira barreira da produção capitalista. Essa terceira seção do tendencial,imanente e interna, na tradição das "tendênciasantitéti-
livro 111termina logicamente na inelutabilidade das crises ("De onde cas" hegelianas. Num sistema aberto, não plenamente determinado,
as crises", conclui lapidarmenteMarx), que constituem realmenteQ como a economia política, as regularidades empíricas e as correlações
limite e o horizonteonde seresolvea própria duplicidadeda lei. constantes de eventos manifestam-se com efeito como tendências. À
As "leis de tendência" são leis "não no sentido do determinismo ou diferença do juízo causal, o juízo "legal' exprime então tendências
do naturalismo especulativo, mas no sentido historicista na medida em historicamente limitadas que podem não chegar nunca mas são essen-
que existe um mercado determinado, ou seja, um meio organicamente ciais para a compreensão dinâmica das relações sociais."
vivo em seusmovimentos de evolução".4j Gramsci compreendeu bem o Consciente das ambiguidades da "lei tendencial" e de suas inter-
alcance dessa categoria: "A descoberta do princípio de lógica formal (ü pretações mecanicistas eventuais, Ernst Bloch esforça-se por separar
lei de le c& cia [.-] não implica Hfnzalzouajmafzêncü, uma nova con- seustermos, chegando a opor lei e tendência. A tendência não é "uma
cepção da necessidade e da liberdade etc.? É precisamente essatradução lei impedida". A lei fecha-se sobre a repetição. A tendência abre-se à
que operou, parece-me,a filosofia da praxis ao universalizar as desco- inovação:"A tendênciaé a estrutura dentro da qual exprime-sea
bertas de Ricardo: estendendo-as a toda a história e tirando daí portan- estranhapreexistênciade sua orientação e dc sua antecipação;em
to, de maneira original, uma nova concepção do mundo." outras palavras, a tendência é o modo segundo o qual o conteúdo de
Enquanto Marx explora uma outra forma de causalidadee um
outro modo de previsibilidade,uma nova articulaçãodo real e do 4zRoy Bhaskar, Díalectic, fbe Fulgeo/ Freedom,op. cit., pp 226 e 404. Henri
Malcr desenvolve a relação de identidade e de diferença entre lei e tendência, a
lci aparecendo como tendência necessária e a tendência como forma necessária
s9Kart Marx, lz(bpilal, livro m, t. l, OP.cit., PP.245, 232, 233, 238. da lei. Lucien Sêvedefine a lei histórica por seu caráter tendencial e a necessidade
40Ibid., pp. 247, 238, 251. como 'a lógica obletiva de uma relação ou processoessencialque inca:.i uma
+i Antonio Gramsci,Ca#ier de prfso# lO, OP.cit., P. 53. pluralidade de possíveise adquire por isso mesmo um caráter tendencial

394 395
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

uma meta que ainda não existe se faz valer."43 Gramsci afirma que voltando o olhar para as distorçõespolêmicas de uma obra crítica e
"tendencialidade não se refere apenas às forças que a contrariam na comprometida, Engels, dois anos antes de sua morte, escrevea Franz
realidade. [-.] Pareceque a significação de 'tendencia]' deva dizer Mehring: "Todos nós tivemos inicialmente que colocar o acento prin-
respeito ao caráter histórico real e não ao aspecto metodológico.» cipal sobre a necessidadesegundo a qual as representaçõespolíticas,
Alerta contra toda interpretaçãomecânicavulgar do Capital, eleob- jurídicas e ideológicas em geral são deduzidas dos fatos económicos
servaque a lei de baixa tendencialda taxa de lucro representa"o fundamentais. Mas ao fazer isso negligenciamos em seguida, em favor
aspectocontraditório de uma outra lei, a da produção de mais-valia do conteúdo, o aspecto forma/, ou seja, a maneira específica que cons-
relativa". O progresso técnico que permite aumentar essamais-valia titui essasrepresentações."
Ora, esseaspectoformal afeta a própria
relativa tem ao mesmotempo por conseqüênciaaumentar a compo- necessidade,corrige-a enquanto necessidadede ferro, problematiza-a
sição orgânica do capital e subtrair à baixa a taxa de lucro. Conside- como "necessidade contingente". De modo que, observa Lenin em sua
rando apenasque essalei contraditória não opera mais no livro lll leitura de Hegel, "o acidental é necessário e a própria necessidade
sobre a relação abstrata de exploração na estrita esferada produção, determina-se como acaso"
mas pela concorrência entre múltiplos capitais. Que é uma necessidade histórica singular e eventual? Responden-
Aquilo que um bom número de exegetastoma por uma escapatória do a uma aporia por outra, poder-se-iaarriscar que tanto existe ne-
formal(uma lei que não é uma lei) ou uma demissão científica traduz na cessidadehistórica como lei tendencial. Além de leis de comando, a
realidade uma necessidadeprópria à "crítica da economia política", às história também conhece leis de permissão.4s
leis imanentesa seu objeto, aos seuspróprios limites. É ainda Gramsci Uma "livre necessidade", diz Spinoza.
quem compreende melhor o alcance dessas novas causalidades: "As Uma "necessidade inclinante", diz Leibniz.
forças que contrariam a lei tendencial e que seresumem na produção de Uma necessidadecontingente.
uma mais-valia relativa sempremais importante têm limites fixados A necessidadehistórica tem a contingência atarraxada ao corpo.
tecnicamente, por exemplo pela extensão da resistência elástica da ma- Ela é o que advém oculto e só se mostra no fim. Como o progresso,
téria e socialmentepela taxa de desempregosuportável por uma socie- ela não se torna si mesma senão a posteriori. O progresso afirma-se
dade. A contradição econâmim tornta-sepolítica e ela se resolve politi- como tal enquanto movimento geral através de suas regressõesínti-
came fe palas bz/ersão(ü praxis."« Aqueles que pretendem deduza mas. A necessidade não é plenamente determinada senão do ponto de
da lei da baixa tendencial uma teoria do desmoronamento automático vista retrospectivo de um impossível juízo final.
e iminente do capitalismo conhecemmal o que implicam a tendenciali- E se a história não acaba de acabar?
E se o seu encerramento não é senão uma hipótese limite? A ne-
dade, segundo Marx, e a passagemda lei económica à estratégia políti-
ca. Compreendida numa perspectiva histórica, a lei da baixa tendencial cessidadepermaneceentão indefinidamente em suspenso,sob condi-
encontra-se na base do fenómeno da americanização e do fordismo ção de contingência, do mesmo modo que o progresso continua sob
enquanto tentativas para supera-lo ou eludi-lo. reserva permanente de inventário. É o que indica a terceira Tese de

4sFranço sc Proust, que propõe essadistinção à luz de Kant, acrescentaque as


leis de permissão (Er/a bnisgeselz) "não autorizam a não começar, elas dizem
43Ernst Bloco, ExPerime f m mzi#di, Paras,Payot, 1981, pp. 138-142. que um começojá começou demaise não suficientemente, já começou muito cedo
« Antonio Gramsci,Cabier de pr]so# ]0, op. cit., pp. 86 e 112. e muito tarde"(Kalzf, /e fole de I'bfsfoife, Paras,Payot, 1991).

396 397
MARX. O INTEMPESTIVO

Walter Benjamin: "É verdade que a posse integral do passado está


reservada a uma humanidade restituída e salva. Somente essahuma-
nidade restabelecida poderá evocar não importa que instante de seu
passado. Todo instante vivido Ihe será presente numa intimação à
ordem do dia -- dia que não é outro senão o do Juízo Final."

Então, e somente então, a necessidade, categoria do passado.


manifesta-se como a possibilidade advinda que já não pode ser abo..
lida. Categoria do futuro, a possibilidade é uma necessidadeainda em
potência. Quanto à realidade, categoria do presente, ela associa indis- 10. Coreografias caóticas
soluvelmente necessidade e possibilidade.
Esse presente é o tempo da política. O tempo da "segunda fala»
de Mau, "breve e direta", impaciente e excessiva,já que "o excesso
é a sua única medida"

O tempo em que, diz Benjamin, "a política vence a história".

398
A crítica da economia política conduz Marx a regiõesdesconhecidas,
onde os comportamentos lógicos afastam-se do modelo clássico. Sem
ultrapassar ainda o ideal de causalidade que Ihe estáligado, sua com-
preensão do capital rompe com a representação de um espaço homo-
gêneo e de um tempo linear.
Os desenvolvimentos científicos ulteriores esclarecem essashesi-
tações. Em meados do último século, três inovações simultâneas mas
logicamenteheterogêneascontribuem para minar o paradigma newto-
niano: a teoria darwiniana da evolução, os princípios de conservação
e de degradação da energia, a crítica marxiana da economia política.
Essas"ciências" da transformaçãonão falam mais de certezasfac-
tuais, mas de probabilidades, de escolhas e de bifurcações. Elas se con-
frontam com a instabilidade e o desequilíbrio, com os movimentos
aperiódicos e o tempo orientado.
A lei clássicajá não funciona em certos domínios, onde toma forma
uma racionalidade nova, onde o evento e a invenção viram força; onde
a probabilidade não é mais um sinal de ignorância ligado à posição
do observador como na mecânica laplaciana, mas uma propriedade
intrínseca de um sistema aleatório. O próprio sentido da ignorância
transforma-se:ela deixa de ser residual para determinar uma nova
representação da ciência.
Mediada pelos ritmos, a causalidademecânicanão é abolida. Ela
inscreve-sena legalidade das estruturas complexas e na determinação
recíproca entre o todo e suas partes. Sua causalidade sistêmica escapa à
experiência crucial, que encerrada definitivamente a história e abolida a
contradição. Essessistemas,que a si mesmos se pressupõem indefinida-

401
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

mente, têm razões que a razão clássica desconhece. Doravante causas


Todo pensamento científico inclui a causalidade em seusmodos de
mecânicas e contingências probabilistas combinam-se sem se excluíram.t explicação. A física clássicaconcede-lhe entretanto um sentido restritivo:
sinónimos.
Nas teorias clássicas do equilíbrio, o sistema tende a encontrar pensamentocientífico e causalidadedeterminista tornam-se
sua estabilidade dinâmica pela resolução das perturbações. Na lógia Os acontecimentosnaturais são rigorosa e completamente determina-
do desequilíbrio, estabilidade dinâmica e instabilidade estrutural são dos.Todo fenómeno é o resultado necessário de uma causa conservada
compatíveis. Sem dispor -- ele se queixa explicitamente disso -- dos no efeito. Tudo é previsível, pelo menos em teoria. Na ausência de atrito,
instrumentos matemáticos requeridos, Marx tenta precisamentecon. o passadodetermina perfeitamente o presente (e reciprocamente). A
lugar a estabilidade dinâmica dos esquemas cíclicos de reprodução metáfora do demónio de Laplace ilustra essedeterminismo baseado na
com a instabilidade estrutural (as mutações técnicas, sociais, polÍti. equivalêncialógica entre duas proposições da dinâmica newtoniana em
cas) do sistema. De onde as crises apreendidas como tantas forqui- dois instantes distintos: "Devemos encarar o estado presente do universo
lhas, ramificações, pontos críticos. A simetria temporal rompe-se sem como o efeito de seu estado anterior e como a causa daquele que virá em
que sejapossívelprever qual dos possíveisdeterminadosvencerá. seguida. Uma inteligência que, em determinado instante, fosse capaz de
conhecer todas as forças que animam a natureza e a situação respectiva
dos seresque a compõem, uma inteligência suficientementevasta para
submeter essesdados à análise, abarcada na mesma fórmula os movi-
OSTRAÇOSDO CAOS Hentos dos maiores corpos do universo e os dos mais leves átomos." A
fórmula exprime com admirável concisão o ideal de uma física unificada,
A inteligibilidade do universo galileano supõe uma estrutura causal es. dos maiores corpos aos mais leves átomos, aos olhos de uma inteligência
trita. Contando com um mundo regido por leis e regularidades,uma panóptica e onisciente ("suficientemente vasta").
metafísica causalistaexpulsa a outra. O triunfo desseideal clássicofoi As equaçõesdiferenciais determinam a evolução previsível de um
entretanto de (relativamente) curta duração. Abalado desdea segunda sistema do qual se conhecem as posições e as velocidades iniciais de
metade do século XIX, ele claudica no entreguerras sob o efeito combi- todos os elementos.Laplace é consciente do caráter limite desseideal
nado de um grande choquecultural(a guerra e "o declínio do Ociden- hipotético. O comportamento dos sistemasfísicos divergepraticamente
te") e de uma controvérsia científica(em torno da mecânicaquântica do modelo matemático e requer uma "ciência dos acasos e das proba-
em física e da psicanálise em ciências sociais). Numa certa medida. a bilidades". A estrutura causal subsiste, mas é apenas aproximada e se
crise moral antecipa-seà reviravolta científica. A partir de 1918, Spen- desdobra entre "causas regulares" e "causas acidentais"
gler opõe o destino à causalidade:"Uma nos manda dissecar,a outra Se a representação determinista clássica é comumente associada à
criar; é nisso que o destino liga-se à vida e a causalidadeà morte."z Inteligência demoníaca de Laplace, o termo determinismo difundiu-se
mais tarde, a partir dos trabalhos de Claude Bernard, para quem o
' No ponto de bifurcação, a predição reveste um caráter probabilista, enquanto que está em jogo na rubrica metodológica é decisivo: "0 princípio do
entre os pontos de bifurcação "podemos falar de leis deterministas" (lira Prigo-
gine, l.es l,ois d# cõaos,Paria,Flammarion, 1994).
2 A época é então propícia ao irracionalismo e às conversões quase religio- intitulado O problema da ca validade em teoria q aBriGacomo questão básjc
sas. Desde 1921 von Mises vê assim na teoria quântica a ocasião de repudiar a para toda a ciência naf ral moderna.Vcr Franco Selleri, Le Gra#d Débat de /a
causalidade.Walter Schottky publica nessemesmoano um manifesto a-causal rbéorie q anfiqne, Pauis,Flammarion, "Champs", 1994, pp 50-52.

402 403
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

determinismo domina o estudo dos fenómenos da vida como o de todos geometria de Hadamard e a topologia de Poincaré abalam o pedestal '1

os outros fenómenos da natureza." Trata-se de estabelecera legitinü. epistemológico. Os geodésicosressaltam um modelo no qual a sensi-
dado da iniciativa experimental contra as seqüelasmetafísicas do vi- bilidade do sistema às condições iniciais torna-se essencial. Liberando
talismo. Cada fenómeno vital, cada fenómeno físico é determinado a imaginação visual de sua canga analítica, os "entrelaçamentos isó-
por "condições físico-químicas que Ihe permitem ou impedem de clinos" desenham"uma espéciede trançado, de tecido, de rede de
aparecer", e "o conjunto das condiçõesdeterminantes de um fenõme. malhasinfinitamente apertadas". A predição determinista torna-se
no implica necessariamente esse fenómeno": "Eis o que é necessário impossível: "Uma causa muito pequena, que nos escapa, determina
pâr no lugar da antiga e obscura noção espiritualista de causa." Re- um efeito considerável, que não podemos deixar de ver, e então dize-
solvido a fundar as leis do ser vivo contra as sobrevivências Obscuras mos que esse efeito é fruto do acaso. Se conhecêssemos exatamente as
de causas mágicas, essaconclusão conserva-se sob o constrangimento leis da natureza e a situação do universo no instante inicial, podería-
de seu objeto próprio. No momento em que Marx procura o conceito mos predizer a situação dessemesmo universo num instante ulterior.
específico da legalidade económica, Claude Bernard descreve uma Mas não é sempre assim, pode acontecer que pequenas diferenças nas
relação causal, biológica e não mecânica, sob as categorias de "con- condições iniciais engendrem grandes diferenças nos fenómenos finais;
diçõesdeterminantes"ou de "forças diretrizes": "Nos corpos vivos" um pequenoerro nas primeiras produziria um erro enorme nas últi-
escreveele, "as garçasd/refrfzes ow ez,o/uliz/assão morfologicamente mas. A predição torna-se impossível, e temos o fenómeno fortuito."4
vitais, enquanto suas garças execuflz/as são as mesmas que nos corpos Descrevendo o comportamento de um sistema sensível às condições
brutos." A "lei morfológica" que dá nascimentoà "matéria organiza- iniciais, a topologia de Poincaré referencia "as pegadas do caos"
da" submete assim as forças físico-químicas gerais.3 Na mesma época, os trabalhos de Volterra sobre a estatística das
populaçõescontestam "a hipótese restritiva" segundo a qual o porvir
Impotente diante da lógica de sistemasorgânicos ou económicos.o de um sistema dependeria exclusivamente de seu estado anual,e não
sonho de previsibilidade clássicosofre então vários assaltosno pró- de seus estados anteriores. Sua idéia de uma "mecânica hereditária"
prio terreno da física e das matemáticas. No final do século XIX, a introduz uma dimensão histórica aleatória na lógica determinista.s

l C\ande Bernard, Rapport sur !a marche et les progrês de la pbysiotogie générale


e# Frafzce, 1867. Ver também suas l,eçolzs sur /espbe omê esde /a t/;e comm#ns
a x anima x el a x z,égérallr, 1878. As controvérsias sobre o determinismo fí- + Henri Poincaré, Scienceet métbode, Paras, 1908. A expressão "pequeno erro"
sico e fisiológico não escapamevidentementea tudo o que seacha em jogo na poderia levar a pensar que se trata de simples imprecisões, quando o que temos
filosofia. Distinguindo as "forças diretrizes" das "forças executivas", Claudc Ber- sãoconfigurações onde toda variação da causa, toda evolução produz por essên-
nard não deixa de arrumar um pequenoescaninhopara a liberdade. O determi- cia um efeito do gênero distinto do precedente. Pierre Duhem entreviu imediata-
nismo seria absoluto "no período executivo", e o ato livre "no período diretivo mente o alcance da problema ao escrever sobre esseponto preciso, a partir de
do fenómeno". Boussinesq formula paralelamente um compromisso análogo 1906, em l,a Tbéorie pbysique, páginas magníficas que antecipam as teorias anu-
conjugando uma liberdade intermitente, que se exerceria nos pontos de bifurca- ais do caos(Pierre Duhcm, l,a Tbéorfe p&ysfq#e, Paria, Vrin, 1906, pp. 206-211).
ção das soluções singulares, com o estrito determinismo das equações diferenci- s Para a grande indignação de Painlevé: "A concepção segundo a qual, para
ais quando o sistema é estável(Colzcf/farío# d# vérflab/e dételminlsme mécani- predizer o porvir de um sistema material, seria preciso conhecer todo o seu pas-
qKe auec I'existente de la uie et de la tiberté morde, 1878 \. Em Les Loas du chãos, sado,é a própria negaçãoda ciência"(Paul Painlevé,De /a mérbodedalzs/es
Prigogine adianta propostas comparáveis. scfeKces, 1910).

404 405
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

A CRISE DAS CIÊNCIAS EUROPEIAS Se"a ação incontrolável entre objetos e instrumentos de medida"
já não permite a descriçãocausal em todo sistemade referência,a
No mundo galileano o tempo contínuo e homogêneosubentendea ciência moderna arrisca-se a desmoronar. A vertigem racionalista de
ordem das relações causais cujas funções matemáticas fornecem a Einstein diante de uma tal perspectiva é compreensível. O desafio leva
expressão formal. A descontinuidade quântica abala as referências a uma exploração crítica dos fenómenos aleatórios (históricos, bioló-
dessatemporalidade linear e subverte a representaçãocausal do uni. gicos, económicos, ecológicos) que pareciam excluídos do campo da
verso. O probabilismo quântico revela "efeitos túneis", segundoos racionalidade clássica. O mundo aferrolhada do progresso programa-
quais um objeto poderia passarsubitamente por salto de um estadoa do excluía por princípio as irrupções intempestivasde um Messias
outro. À medida que nos centramos em objetos menores, a possibili- impotente diante do muro dos fatos. Ora, os átomos revelam subita-
dade de tais efeitos aumenta. Torna-se doravante praticamente im- mente "um mundo de potencialidades e de possibilidades em vez de
possível "ordenar os fenómenos numa sucessão linear unívoca". Essa um mundo de fatos".7
ruptura do encadeamento temporal de causa a efeito convence Niels A via é no entanto estreita, passando por cima do abismo indeter-
Bohr a "renunciar definitivamente ao ideal clássico de causalidade" e minista onde a razão quebraria os próprios ossos. Em face da descon-
à descrição simultaneamente causal e espaço-temporal própria à "cau- tinuidade quântica, o ponto de vista da complementaridade visa, de
salidade ordinária". Mais radical, Heisenberg traz sua caução cientí- acordo com Bohr, a "uma generalização lógica da noção de causali-
fica às teses de Spengler, decretando que "a mecânica quântica inva- dade" mais que à suarenúncia em favor de desviosmísticos. Do mesmo
lidou definitivamente o princípio de causalidade (Kazlsa/gesefz)". modo, a contestação da causalidade clássica não desemboca, segundo
A reviravolta é considerável. Baseado na continuidade de um tempo Kojêve, num universo arbitrário. Cada um dos resultados possíveis
homogêneo abstrato, o tandem da causa e do efeito parecia ter dado conserva-se submetido a uma probabilidade determinada, já que a física
suas provas. As lacunas da predição científica pareciam imputáveis moderna, ao rejeitar "a idéia do determinismo causal exato", aceita
unicamente à incompletude dos dados iniciais. Um inventário das "va- em suma a "do determinismo estatístico e a do determinismo causal
riáveis ocultas" e uma capacidade de cálculo mais vasta acabariam re- aproximado". Nenhuma explicação satisfatória da indivisibilidade dos
almente por triunfar sobre essa fronteira invisível. Ora, a mecânica processosde transição poderia efetivamente ser oferecida no quadro
quântica inscreveo acasonum nível mais profundo, de onde a progres- da descrição determinista clássica. Tirando as consequências da des-
são cumulativa dos conhecimentosnão conseguiria, sozinha, desalojá-
nos atómicos, mas "que se reconheça que uma tal análise está excluída por prin-
lo. Temos portanto de admitir que a causalidade clássica não descreve
cípio". Planck e Bohr podem parecer assim debruçados sobre uma causalidade
senão uma parte da realidade física. A introdução da noção de onda de "essencialmente estatística" ou probabilista mitigada. Eles na realidade exigem
probabilidade parecelegitimar a aceitaçãode um certo indeterminismo. um reexame geral da própria noção de causa/gesefz: "0 princípio de causalidade
Ao menos ela obriga a precisar a relação entre determinismo e incerteza, revelou-se um quadro estreitíssima para abarcar as leis inteiramente particulares
que regem os processosatómicos individuais." A individuação dos processos
um evento podendo ser ao mesmo tempo não arbitrário e impredizível.ó
atómicos não os subtrai a qualquer forma de lei, mas a lei deles já não se sobre-
6 "De acordo com a mecânica ondulatória, a determinação espacial de um ponto
põe à da causalidadeclássica.Ver Niels Bohr, Pbysiq e aromiqweef co#nafssan-
ce b mafne, Pauis,Gallimard, "Folia/Essais", 1991, e Erwin Schródinger, Pbysi-
de configuração está sempre ligada a uma incerteza"(Max Planck, L'lmage d#
g e q antlque ef représenlaffo du molde, Paria, Seuil, 1992.
monde dalzsla pbysfq#e moderna). Niels Bohr sublinha que a mecânica quântica
não propõe que se renuncie arbitrariamente a uma análise detalhada dos íenõme- 7 Werner Heisenberg,P#ysfq e et pbf/osopbfe,Paras,Albin Michel, 1961.

406 407
T
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

continuidade temporal pela relação causal, trata-se portanto de refor- ma causal dominante. É significativo que apareçam quase simultanea-
mar a racionalidadeameaçadapara melhor salva-la.8 menteos livros deFreud(O fml-estar m ciz,i/lado, 1930), deKojêve(A
A controvérsia vai muito além da física. A indeterminação pode i&ja de defermilzlsmo, 1932), de Whitehead(.Az/elzlzlrasde idéüs, 1933),
justificar estranhasconivências entre a ciência e os mitos. De onde a de popper(A /ógim (&zpeso isa ciefzfÜa, 1934), de Carnap(Tbe Ufzi
obstinação de Einstein em defender "uma causalidade moderna", re- o/Science, 1934), de Husserl(A crise (&zscfê càzsmropéias, 1935), ten-
novada, local, diferencial, instantânea. Contribuindo para questionar tando redefinir a racionalidade científica ou salvar sua unidade.
o paradigma clássico, essacausalidadeaberta vai ao encontro de Unia Entre tais empreendimentos, o de Husserl é o mais patético. Sem
causalidade histórica não linear, onde o evento modificaria constan- renunciar ao "fundamento absoluto" das ciências, ele constata um
temente a regra do jogo.P deslocamentohistórico na idéia geral de ciência resultante das ciên-
No própio momento em que o terror staliniano começaa levar às ciasexistentes,"tornadas ciências hipotéticas".to As aporias da revo-
raias do delírio a pretensão de fazer história cientificamente e em que lução cartesiana ou, mais exatamente, a tentativa falhada de "refor-
seustribunais levam às raias do absurdo a noção de "culpabilidade ma total da filosofia para fazer dela uma ciência de fundamentos
absolutos" estariam na raiz dessa "crise das ciências européias", na
objetiva", a mecânicaquânticatorna imprecisaa fronteira entre sujei-
to e objeto. Os físicos precedem os políticos na constatação de que
não sepodem conhecerinteiramenteos motivos de uma decisão.Os io Edmund Husserl, Médifalfo s a ésie#nes,Paras,Vrin, 1936. Desdeo começo
dados alteram-se ao exame. dos anos trinta Whitehead acentuou igualmente os limites do ideal científico e re-
abilitou a função filosófica. A ciência acha-seentão numa curva: "Os fundamentos
O conhecimento físico toma por sua vez um aspecto estratégico. estáveisda física cederam", a fisiologia afirma-se como via de conhecimento com-
pleto, "os antigos fundamentos do pensamentocientífico tornam-se inteligíveis". A
Nos anos vinte, a crise da física conjuga-se assim com a crise moral e explosão científica do século XVn e a emergência soberana das matemáticas su-
política, e em seguida com a crise económica, na contestação do paradig- põem uma fé instintiva numa ordem racional da natureza e um acessoà verdade
pela análise da natureza das coisas. A principal contribuição do século XIX à heran-
l Niels Bohr, Alomes et co Balssa#ce,e Alexandre Kojêve, L'ldée d# défelmi#ls- ça das ciências modernas reside no "novo método de invenção" ligado à "nova
me dons la pbysiqtte classiqueet dons !a pbysique modwne, 1932. Consciente informação científica" e à "transição do amadorismo ao profissionalismo dos sábi-
dos efeitos possíveis do descontínuo sobre toda representação científica, Rena os". Resultadaí uma subversãodo campo dos saberese uma "orgia de triunfo
Thom reivindica uma 'metafísica do contínuo': "Minha crença básica estáno científico". As crisesda física e a revolução quântica impõem uma desilusão."Re-
caráter contínuo do universo c dos fenómenos, e do substrato dos fenómenos. E. laçõesde verdade" inéditas exigem que nos inclinemos para uma nova representa-
precisamente, a essênciada teoria das catástrofes é reconduzir as descontinuida- ção da ciência: "Eu qualificada a doutrina destasconferências de teoria do meca-
des aparentes à manifestação de uma evolução lenta subjacente"(Prédire #'esl nismo orgânico [-.]. Nesta teoria as moléculas podem seguir um curso cego, de
pas c P/lquer, Paria, Flammarion, "Champô', 1993). acordo com leis gerais, mas as moléculas diferem, no nível de suas características
9 Em Im TbéoHa de ü cava/f/é {Paris, PUF, 1971), F. Halbwachs distingue intrínsecas, de acordo com os planos orgânicos gerais das situações em que elas se
uma 'causalidade simples", que liga de maneira linear, por um porquê, uma causa acham [-.]. Uma entidadeindividual cuja própria história é parte integranteda
a um efeito; uma causalidaderecíprocae uma causalidadecircular; "uma causalidade história de um esquemamaior, mais profundo, mais completo, é suscetívelde ver
homogêneaou fonnal', que descreveo "como" intimo a uma classede fenómenos aspectos desseesquema maior dominarem seu ser próprio e de vcr motivos desse
sem que seja possível dissociar a causa do efeito; uma "causalidade batígena" que esquemamaior se refletirem em si como motivo de seu ser próprio Tal é a teoria
do mecanismo orgânico"(A. N. Whitehead, l.a Science ef le monde modems, 1926,
implica uma mudança de nível; um mecanismosubjacente,a maior parte do tempo
invisível, dando conta dc um Ênâmeno considerado(o nível microscópico pelo níwl Mõnaco, Éditions du Rocher, 1994, p. 101. Ver também Aue#twresd'idées, 1933,
macroscópico em física,o nível genéricopelo nível celular em biologia). Paras,Cera, 1993, p. 215).

408 409
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

medida em que o ideal da geometria e da física matemática "termal impor essa "novidade inaudita", a ciência moderna teria, "por assim
exercido, durante séculos, uma influência nefasta" dizer, decapitado a filosofia"
À aproximação da catástrofe, o mundo dos anos trinta divide-se Ao risco de fazer-nosperder a cabeçae de ver o racionalismo
entre o desencadeamento da razão calculante e a revanche Obscura instrumental de volta como irracionalismo vindicativo. A racionali-
dos mágicos matinais. O impasse da ciência positiva enquanto "ciên- dade unilateral pode, efetivamente, ceder passagemao "perigo maior",
cia do ser que se perdeu no mundo" anuncia o fim de uma época o do "naufrágio no meio do dilúvio cético". A despeitode enganosos
Nesta Krfse, onde tudo corre o risco de "sucumbir ao ceticismo, ao esclarecimentos, essedilúvio não cessou A aliança perversa entre uma
irracionalismo, ao misticismo", Husserl não concebeoutra saída se- técnica imoral e uma opinião moralizante atesta os seus danos.
não um retorno radical a nós mesmos.iiPrimeiro é preciso saber O conhecimento "seriamente científico" requer uma construção
"perder o mundo", posto entre parênteses, "para reencontra-lo em sistemáticado mundo e de suascausalidades"a partir do magro es-
seguidanuma tomada de consciênciauniversal de si mesmo", e salvar toque do que é possível estabelecer na experiência direta e simples-
aquilo que ainda pode fazer sentido. mente relativa". Tornada concebível graças à idealização matemática
Ainda que ao preço de uma revisão dilacerante do modo de fazer do mundo dos corpos (pela primeira vez construído como mundo
ciência. Pois "simples ciências de fatos formam uma simples humanida- ob/efít/o) e ao desenvolvimento sem precedentes da arte da medida,
de de fato". O paradigma positivista está bem no âmago da tormenta. esse"estilo causal universal" da revolução galileana funda a possibi-
A questão cheia de angústia, lançada ao limiar do desastre,ressoaainda lidade das hipóteses, das induções, das previsões. Como toda conquista,
em nossos ouvidos, talvez mais lancinante e mais desesperada:"Pode- essa"nova idade dos saberes" impôs sua parte de sacrifícios. Sua
mos encontrar ali nosso repouso? Podemos viver nesse mundo cujo marcha forçada obrigava a deixar muito peso pelo caminho. Com
acontecimento histórico não é mais que um encadeamento incessantede Galileu, "a maior descoberta da modernidade", a idéia inquietante de
impulsos ilusórios e amargas decepções?" Contra a petrificação factual um mundo dos corpos separado e fechado em si mesmo "entra por
da humanidade,o trabalho crítico da razão começapor dirigir-se ao assimdizer em cena, pela primeira vez, completamente equipada". O
modelo positivista: "Nem semprefoi verdadeiro que a ciência pudesse mundo das idealidades matemáticas torna-se o único mundo da expe-
compreender seu ideal de verdade rigorosamente baseado no sentido riência real ou possível,"nosso mundo de vida cotidiano"
dessa objetividade que domina metodologicamente nossas ciências po- Originalmentecindido, essemundo racional anunciao fim da
sitivas [-.]. Nem sempre foi verdadeiro que as questões especificamente "filosofia como ciência rigorosa" em favor das ciências disciplinares.
humanas pudessem se ver banidas do domínio da ciências-.]. O concei- "Lá onde se achavaem casa", na matemática e na física, o novo ideal
to positivista da ciência em nossa época é por conseguinte historicamen- de racionalidade e de universalidade representou um progressoconsi-
te considerado um conceito residual. Ele deixou cair todas as questões derável, mas "as coisas se passam de maneira diferente com a questão
que se achavam inclusas no conceito de metafísica." Ao desqualificar de saber até onde convinha estender o papel de modelo dessasciên-
essas questões sem resposta, ao forjar uma idéia de uma "totalidade de cias [-.]. Em sua pressa de fundar o objetivismo das ciências exatas da
ser racional sistematicamentedominada por uma ciência racional", ao naturezacomo garantia de um conhecimento metafisicamenteabsolu-
to", Descartes teria ido muito longe sem "interrogar sistematicamente
n Edmund Husserl, l.a Crise des scfmces mropéennes el b pbé oméHologie !rans-
o ego puro sobre o que ele possui de próprio em termos de aros e de
ce de fa/e, Paras, Gallimard, "Tel", 1989. faculdades e sobre aquilo de que é capaz enquanto atividade inten-

410 411
MARX. O INTEMPESTIVO Y A ORDEM DA DESORDEM

cional". Seuobjetivismo radical tem portanto como reverso um sub- O grande perigo de lassitude anunciada vira esgotamento.
jetivismo mal contido. O ódio espiritual e a barbárie sempre se encontram. Em compen-
O estilhaçamentodo saberem "ciências disciplinares" (em "ofí- sação, mesmo se a estreita saída passa porum renascimento filosófico
cios burgueses",diz Husserl!)significa "a perda do grandesentido (ou teórico), não há saída propriamente filosófica para a Krfse.
que vivia nelas". De ciências, "neste único sentido verdadeiro da pa-
lavra", elas se transformaram, "sem se darem conta, numa estranha
e nova espécie de artes", em "disciplinas que se ensinam e se apren-
dem". Nos antípodasdo fim anunciado da filosofia, essacrítica hus- LÓGICASTURBILHONANTES
serliana pareceressuscitara nostalgiade uma filosofia "enquanto
ciência fundadora em última instância e universal", o "conhecimento Quatro séculosdepois de Galileu uma ciência da desordem impõe-se
constrangedor"(sfenge Wissensc#a/t) de Nietzsche, cujo advento, no ao lado de uma ciência da ordem. Já não é sempre possível predizer
momento do perigo, conserva-seurgente em face do racionalismo das o comportamento de sistemasregidos por leis imutáveis e precisas.A
Luzes "manchado de absurdez oculta". ordem que pode "engendrar seu próprio caos" não é mais sinónimo
Em nome dos vencidos e das vítimas do saber positivo, a "ciência delei; a desordem,de ausênciade lei. Já não é verdade tampouco que
alemã" deplora assim, incansavelmente,a pobreza de uma "geometria cada sistema obedeça a suas regras específicas, seguindo uma pruden-
das formas", privada de uma "segunda geometria", não matematizável, te coexistência de leis deterministas para os sistemas simples e leis
dos "preenchimentos". Lucidamente, Husserl está convencido de que estatísticaspara os sistemas complexos. Postuladas pelo determinis-
não haverá "novo impulso do velho racionalismo". Seusimpassescor- mo clássico, a unidade do universo e a homogeneidadede sua orga-
rem antes o risco de justificar a rejeição de qualquer racionalidade em nização já não cabem numa imbricação de sistemas e subsistemas onde
benefício do discurso mítico sobre "o espírito comum, sobre a vontade legislações locais e regionais se interpenetram. Regendo níveis hetero-
do povo, sobre as metas ideais e políticas das nações" que, já que a gêneos, um "princípio transversal" torna-se necessário para manter o
extrapolação analógica de conceitos só tem sentido na "esfera da perso- universoem seuconjunto enquanto objeto científico unificado.
A idade baconiana dos saberes obscurece-se.
nalidade singular", dependem"do romantismo e da mitologia".
Ora, "a razão é um vasto título". A idade moderna de ciência hesita.
Ela não se esgota em seusfragmentos mutilados. Na medida em que a independência relativa do futuro para com
Em 1935, essadefesa patética de uma racionalidade ameaçada é, li- o passadonão garantemais a reprodutibilidade da experiência,o
teralmente, uma questãode vida e de morte, tanto mais lancinante quan- método experimental acha-seatingido em seu princípio indutivo e na
to o argumento nem semprese acha à altura do que estáem jogo. Mal- simetria postulada entre explicação e predição.i3 No próprio solo da
grado a reivindicação de uma reflexão que "se eleve acima dessesolo",
o "retomo à ingenuidade da vida" alerta com o jargão da autenticidade.i: como "o aguilhão de qualquer pesquisa científica'. A crise dasciências positivas
resolve-seentão numa oncologia paradoxal, quc Pierre Bourdieu qualifica como
-ontologia historicista"
iz Edmund Husserl, l,a Crisedes soe cesmropée#nes-.,op- cit., Paras,Gallí- n "0 caos nos diz que, mesmo quando nossa teoria é determinista, todas as
mard, "Tel', 1989. Ibid., pp. 219-223, p. 376. Fixando-se por meta "um concei- suaspredições não conduzem a experiências reproduzíveis" (lan Stewart, Dlaíf
to existencial da ciência', Heideggerdefine(em Ser e temPO)a questãodo ser foge-l-il azn dés?,Pauis,Flammarion, "Champô', 1994)-

412 413
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

ciência clássica, a teoria dos sistemase o caos determinista traçam os os corpúsculos que se agitam em desordem num raio de sol, pois "uma
contornos inacabadosde um novo paradigma e as passagenspara uma tal agitação nos revela os movimentos invisíveis a que são arrastados os
racionalidade ampliada. elementos da matéria": "Não raro verás muitas dessas poeiras, sob o
As geodésicasde Hadamard, os entrelaçamentos isóclinos de Poin. impulso sem dúvida de choques imperceptíveis, mudarem de direção,
café, a "mecânica hereditária" de Picard exploraram a abordagem de fazerem o caminho de volta, ora à direita, ora à esquerda, e em todos os
sistemas sensíveisàs condições iniciais. A imprevisibilidade permanece sentidos." Assim, o vento abismando-se no mar provoca um "espantoso
borbulhamento". Assim também, "as nuvens se formam quando um
entretanto geralmente imputada às defeituosidades da medida mais que
ao caráter irredutivelmente aleatório das turbulências e dos turbilhões grande número de átomos, em seu vâo celeste, reúne-sesubitamente
Serápreciso esperar muito antes que a imprevisibilidade dos escoamen. graças às suas rugosidades e se combinam de maneira flexível mas co-
tos turbulentos sejaatribuída à mistura de regimesdinamicamenteestá. erente", compondo "flocos aéreos" que se condensam em seguida e são
veia e dinamicamente instáveis, e somente a ela. Na evolução dramática. carregadospelos ventos "até que se erga uma tempestadefuriosa".t'
de um estado de equilíbrio a um outro, a não-linearidade leva a melhor. Com os turbilhões dos gasese dos líquidos, com as figuras meteoroló-
Num sistema sensível às condições iniciais, pequenas variações dos da- gicas infinitamente cambiantes, renasce o interesse pelos meandros e os
dos iniciais induzem uma diferença que aumenta exponencialmente tremores, pelos trançados e as espirais.
com a duração. Para prever o tempo que fará dentro de algumassema-
nas, seria preciso por exemplo poder levar em conta o efeito de um elé- Nos anos 1 860, a termodinâmica e a teoria da evolução abriram pers-
tron a dez bilhões de anos-luz de distância. Ainda que determinado, o pectivas contraditórias. Clausius concilia os princípios aparentemente
comportamento do sistemanão é mais predizível. incompatíveis de conservação e de degradação da energia, graças à
Em 1986, uma conferência da Royal Society de Londres considerou, noção "prodigiosamente abstrata" de entropia (medida da dissipação
para definir o caos,a noção de "comportamento estocásticoque se pro- da energia térmica num sistema). Ele demonstra que, no mundo ma-
duz dentro de um sistema determinista". A estocástica evoca de maneira terial, a tendência universal é para a dissipação da energia, para a
sábia os comportamentos aleatórias. O sfoc&asff&osdesigna entre os desordemcrescente,para o nivelamento das diferençasaté a extinção
gregos o mestre na arte de visar ou de utilizar as leis do acaso para atingir final, quando toda a energia será transformada em calor de baixa
seu objetivo. O caos caracteriza,com efeito, "um comportamento semlei temperatura regularmente distribuída.
inteiramente governado por uma lei". A dinâmica caótica talha na irre- De um lado, o mundo físico deteriora-sesemtrégua.
versibilidade temporal uma série de galhos e ramificações, onde os pos- De outro, o mundo vivo aperfeiçoa-se e melhora. Ele parececon-
síveis podem brotar, eclodir, desfalecer. Sob o choque da reação versa- tradizer assim o sombrio veredicto da entropia, desenvolvendouma
Ihesca,Blanqui já a utiliza para conjurar o espectro do eterno retorno das tendência contrária a uma ordem mais elevada, a uma maior hetero-
derrotas: só "o capítulo das bifurcações" parece-lhe aberto à esperança geneidade,a mais organização, que fazem da biologia evolucionista
histórica. Introduzida por Poincaré no estudo da instabilidade, a noção "a ciência básica da história".is
de bifurcação se impôs a partir daí entre os físicos e os matemáticos.
Os antigos atomistas tiveram a intuição poética dessastempestades i4 Lucrécio, De la ature, op. cit., pp. 56 e 211.
caóticas. Demócrito evoca soberbamente o turbilhão como «a substân- " StephenJay Gould, U bérfsson dalzsla rempêfe,op. cit., p. 25. No co
cia da necessidade". Lucrécio recomenda que se observem atentamente meço do século, Bernard Bruhnes via na contradição entre a evolução e a degra

414 415
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Num sistema físico fechado, o estado final é determinado de manei- A biologia teórica de Bertalanffy faz explicitamentereferênciaa
ra unívoca pelascondiçõesiniciais; a entropia é semprepositiva; a or- Claude Bernard e à "mecânica orgânica" de Whitehead. Enquanto a
dem é continuamente destruída. A flecha do tempo sela a irreversibili- física mecânica liga-se aos processos parciais, aos componentes, às
dade dos fenómenos. Os sistemasabertos (vivos) caracterizam-se seqüências de causalidade lineares, a dinâmica do vivo interessa-se
fundamentalmente pela troca permanente de matéria e de energia com pelo crescimento e a auto-regulação, características dos sistemas aber-
o ambiente. As tendências termodinâmicas são aí incessantemente con- tos. Irredutíveis aos mod-los estáticos e às estruturas mecânicas, a célula
traditadas pela importação de entropia negativa. Os organismos man- e o organismo participam de um processo contínuo de destruiçãoe de
têm-se assim num estado "fantasticamente improvável". A física e a degenerescência,regulado para restabelecer um estado estável. Tal é
química tradicionais, as estruturas estáticase os movimentos de relo.- realmente o "mistério capital dos sistemas vivos".tó "Pálida, abstrata
soaria representam sistemas fechados; os organismos vivos, a dança do e vazia" à primeira vista, a noção descorada de sistema é entretanto
fogo, os conjuntos ecológicos, sistemas abertos. o núcleo,"cheio de promessasocultas", de uma "revoluçãoorgâni-
A contradição entre teoria da evolução e termodinâmica desapa- ca" oferecendo ao olhar "o mundo enquanto organização"
rece se o segundo princípio só se aplica aos sistemas fechados. Num A teoria dos sistemascoloca em jogo as categorias específicasde
sistema aberto, onde a auto-organização, o aumento da ordem e a metabolismo, eqüifinalidade, homeostasia, teleologia. O metabolismo
redução da entropia são compatíveis, a manutenção de um alto grau designaas operações de assimilação e de rejeição da troca orgânica
de organização (por contribuição de matéria rica em energia) é termo- (sfo/7ü'ecbse/). Num sistema fechado, o estado final é determinado de
dinamicamente possível. maneira unívoca pelo estado inicial; num sistema aberto, ele pode ser
alcançado, a partir de condições iniciais diferentes, por caminhos di-
Em face dos procedimentos reducionistas da ciência clássica, as ciências ferentes.Contra o determinismo essencialista,a eqüifinalidade apare-
contemporâneas reabilitam a globalidade. Elas redescobrem a importância ce assim constitutiva de qualquer pensamento estratégico. Os com-
das transações, das interações, da organização, da teleologia. Considerada portamentos homeostáticos, enfim, traduzem, segundouma oscilação
por muito tempo uma noção tipicamente metafísica, estranhaao trabalho de tentativas e erros, a adaptação do sistema em função de cadeias de
propriamente científico, a totalidade está de volta. Os encadeamentos cau- informação circulares. Na retroação, as sequênciasunidirecionais en-
sais isoláveis da física clássica revelam-se insuficientes para compreender o cerram-se em anel de regulação.n
organismo considerado como um todo e os sitemas complexos organiza-
dos. Enquanto o sistema é um todo uniâcado, uma pemubação chega com Bertalanffy define um sistema por um certo número de elementos em
efeito a um novo estado estacionário devido às interações intemas. Seele interação entre si e com seu ambiente de acordo com um conjunto de
é dividido em cadeias causais independentes, as partes especializadas tor- equações.Suadefinição formal ilumina com nova luz conceitosoutrora
nam-se independentese a regulação desaparece.Novos problemas surgem, carregados de relentos vitalistas ou metafísicos: "0 problema central da
que requerem "novos modos de pensamento matemático"
ió Ludwig von Bertalanffy, Tbéorie gé éra/e des sysràmes, Paras,Dunod, 1993, p.
168
dação da energia um desaceleramentosalutar da degradação pelos organismos i7 A homeostasiae a alometria são princípios de retroação e de regulação:
vivos (uma espéciede efeito reversivo),insuficiente porém para suprimi-la (Ber- a equação alométrica exprime a relação mais simples entre o tamanho dc um
nard Bruhnes, l,a Dékradaflo# de /'énergie, Pauis,Flammarion, 1909). corpo e seus processos metabólicos,

416 417
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

ciência moderna é a
torno das tendências convergentes das ciências biológicas e sociais, para
lidade; seus princípios
asquais um modelo regular mescla-secom uma história evolutiva."19A
temas."'' Enquanto estudo científico
unidade do conhecimentocientífico não é doravante mais assegurada,
"teoria geral dos sistemas" exprime
como em Carnap, pela hegemonia da linguagem física. Ela resulta mo-
pensamentomoderno, em ação na cibernética destamentedo isomorfismo dos domínios e dos discursos.Sob o efeito
retroação e de causalidade
da prática social das ciências e das técnicas, a separação entre ciências
(dinâmicas antagónicas e
da natureza e ciências do espírito reduz-se com a humanização da natu-
da decisão como na
reza e a naturalização reconhecida do humano. Os três pilares do deter-
fatorial de fenómenos com
minismo laplaciano -- a crença numa estrutura causal natural ligada a
tradicionais tratam de sistemas
um ideal de inteligibilidade, a fé na capacidadede predição das leis
equilíbrio dinâmico. A teoria dos sistemas; matemáticas, a confiança na fecundidade do reducionismo mecânico --
conjunto de fenómenos
tremem nas bases.Ao lado de uma ciência da ordem emerge uma ciên-
efeito regidos por relações
cia da desordem. O comportamento dos sistemas governados pelas leis
e de destruição, com o seu ambiente.
imutáveis não é sempre previsível. A ordem "que pode engendrar seu
Uma "mudança geral de atitude
próprio caos" não é mais sinónimo de lei. A desordemjá não seencon-
nha-se sob a influência das ciências
tra fora da lei.zo
típica de um mundo mecânico
Já nos satisfizemos por muito tempo com o compromisso em virtu-
desagrega. Contra a
de do qual o determinismo mecânico seria aplicável aos sistemas simples
ça-se a visão de uma "grande organização" e o determinismo estatísticoaos sistemascomplexos. Teria sido sufici-
novas categorias e novos conceitos.
plicativos das ciências ente respeitar seusterritórios e organizar sua coexistência pacífica. Ora,
os sistemas se imbricam e misturam. As singularidades históricas da
cliométricas, o relato
evolução atravessam os modelos regulares da física. Em lugar do univer-
novamente um lugar legítimo no movimento so unificado postulado pelo determinismo clássicoapareceum folheado
Logo depois da guerra,
dessamutação do perspectivistade níveis de organização diferentes, uma imbricação de
sistemase subsistemasdotados de legislações locais e regionais. Assim,
que conhecem as dificuldades anuais acredita
o segundoprincípio da termodinâmicanão se aplicaao idênticonos
ser resolvida por um
das teorias existentes. sistemas isolados expostos à degradação da energia e nos sistemas vivos

muito mais longe que a física. A perspectiva de


i9 John Bernal, Scfe#ceífz HistoW, Londres, 1957.
vista, mas antes que ele tome uma forma
zolan Stewart, DleK joue-l-iJ aux désf, op cit., p. 17. Se parecerazoável
riência e mais discussão
passar da idéia de uma ciência única, unificada por um paradigma dominador, à
da origem e da evolução idéia de saberescientíficos distintos cujo isomorfismo permitiria entretanto a cir-
culação e a troca de conceitos sob condição dc precauções,essasdiversasmanei-
ras de fazer ciência não se acham menos sob o exigente constrangimento de seus
il Ludwig von Bertalanffy, Tbéorie8é éra/edes sysfêmes,OP cit., P. 86. objetos específicos.

418 419
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

onde opera a troca orgânica. O próprio conceito de ciência está em Mento de uma pesquisahistórica em pleno impulso e de uma ciência
jogo. Na medida em que o ideal científico insiste sobre um princíbia física às vésperas de grandes mutações. O livro l do(lzpiza/ aparece em
determinista de inteligibilidade universal como condição de sua própria 1867, oito anos depois de A ordem das espécies, dois anos depois do
aventura, a renúncia à capacidade de predição toca-o inteiramente. Ora. enunciadodas leis de Clausius. As desordensordenadasdo capital exi-
"o caos nos diz que, mesmo quando nossa teoria é determinista, todas gemtambém a invenção de uma racionalidade diferente.
as suas predições não conduzem a experiências reprodutíveis".zi A economia clássica inspira-se diretamente na física newtoniana. A
carta fundadora de Locke a um membro do Parlamento, Some Co#si.
derations oftbe Consequentes oftbe Lowering oflnierest and Raising
tbe Va/ue o/Money (1691), é contemporânea dos Pri/zclpla de Newton
O BAILE DE MÁSCARAS DAS MERCADORIAS (1687).:s À abstração física do espaço corresponde a abstração econó-
mica do mercado que torna trabalhos e riquezas comensuráveisatravés
Em meadosdo séculoXIX assiste-se a uma verdadeirairrupção dasci- da relação monetária. Ao tempo físico, homogêneo e vazio corresponde
ências narrativas. Por volta de 1850, a controvérsia do devoniano é o tempo linear da circulação e da acumulação, cujas perturbaçõesaci-
saudada pelos paleontólogos como a verdadeira "alocação da história". dentais ou as calamidades naturais estão sozinhas para conturbar a
"Ciência básica da história", a biologia evolucionista dá seusprimeiros harmonia.A utopia do equilíbrio é o lote comum da mecânicae da
passos.2zOs trabalhos de Christian JorgensenThomsen, cujo Gzlla das economiaclássicas.Nascido da multiplicação da troca, o espaço-tempo
a Ifgüldades aparece em 1856, abrem o campo da pré-história. Em económicoe monetário uniforme do mercado funda a possibilidadeda
1867, a Exposição Universal de Parasacolhe pela primeira vez um pa- medidae da lei reduzida a uma regra de sucessão.Ele coloca em cena
vilhão dedicado à história do trabalho contendo uma coleção de ferra- uma causalidade económica, que se baseia no caráter fisicamente men-
mentas. No mesmo ano acontece o primeiro congresso internacional suráveldo trabalho e do capital, calcadasobrea causalidadefísica.
pré-histórico. Em O comem antes da #fslór/a (1865), John Lubbock, Constitutivo do pensamento clássico, o conceito de "mercado instituí-
discípulo de Darwin, introduz os neologismos "paleolítico" e "neolíti- do" permite pensar teoricamente a unidade do espaço de troca e de uma
co". Em 1870, Morgan publica seu Síslema de co/zsagü/fzlc&zde e de instituição jurídico-monetária de regulação e registrar sua diferençate:
a/}fzfdade da Áamí7fabz ma/za. O primeiro congresso de estatística inter- órica em relação ao simples desenvolvimento empírico de relaçõesmer
nacional realiza-se em Bruxelas em 1854. Quando Adolphe Quételet, cantis. Ela faz corpo com a própria emergência da lei económica.
pioneiro da "estatística moral", desaparece em 1 864, as investigações A economia neoclássica de Walras inscreve-sena tradição do equi-
sobre o "homem médio" são ainda balbuciantes. Os anos 1840 e 1850 líbrio determinista, esforçando-sepor integrar a ele a contribuição da
são igualmente marcados por pesquisasapaixonadas sobre a conserva- energética. Seu esforço para preservar o modelo clássico do mercado,
ção da energia e o eletromagnetismo, mas a topologia matemática, as
23"A economia política clássicaque veremos nascerno século XVlll é um dos
teorias da relatividade, a ÁoNioria revolução quântica ainda estãopor
frutos da reviravolta das concepçõesrelativas ao conhecimento científico que se
chegar. A teoria de Marx inscreve-se nessas efervescências, no cruza-
produz no século XVll" {Henri Denis, Hfsfoíre de la penséeéconomfque, Pauis,
PUF, 1977). "Numa cultura e a um momento dado, não há nunca senãouma
zi lan Stewart, DieK/OKe-t-i/ auz dés?, op. cit., P. 407. epistemeque define as condiçõesde possibilidade de todo saber" (Michel Fou
u StephenJay Gould, Un bérísso#da s la lempêre,op. cit., pp. 25 e 88. cault, l,es À4ofsef lesçboses,Paria, Gallimard, 1966).

420 421
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

enquanto objeto da ciência


orocura em todos os mercados e assim perpetuar o equilíbrio geral. Esse
caos, que parece oferecer uma
estado de equilíbrio é tão ideal e hipotético quanto os encadeamentos
sa neoclássico.:' O caos vem
As inconstâncias do do determinismo matemático. Suaabordagem estática não permite in-
tegrar nem a análise do crescimentonem a compreensãodinâmica das
ram em contrapartida seus teóricos. Sob a
flutuações. O equilíbrio espontâneo a que tende supostamente a concor-
rica, os processos estocásticos
rência perfeita implica jogar novamente sobre fatores exógenos ao sis-
çao econométrica dos anos
tema a gênesede crises resultantes de uma concorrência falseada e não
um artigo sobre a variação dos
das leis imanentes de seu desenvolvimento.
uma das "fontes da geometria
As crises não têm lugar nas leis do equilíbrio neoclássico.
mecânicas de preços, e especialmente.
E entretanto elas estouram, tão certamente quanto a Terra geral
renuncia à linearidade. O
cação acidental, mas como
Em lugar de um espaçoabstrato, a crítica da economia política
descobre uma tipologia atormentada, recortada em bacias, fontes,
económica. Um ano mais tarde o
poços, escoamentos, um espaço articulado de imbricações e encaixes,
essa proposta. A contracorrente do
vença fundamental ent.e o cujas falhas e futuras organizam o metabolismo da troca desigual.
Rosa Luxemburgo salientou a função dinâmica da heterogeneidade
flutuações aperiódicasdos
explorar as terras espacialdo mercadomundial. Mas a heterogeneidade
do próprio
"Esses novos modelos mercado nacional (acessoàs matérias-primas, aos transportes, pre'
vençae qualificação de mão-de-obra) é permanentemente utilizada pela
termos, eles imporão uma nova fase .
mobilidade do capital, cujos investimentos e localizaçõesdeslocam-se
mudança não afetará somente os
em buscada melhor rentabilidade; de onde, novamente,os fenóme-
condições que fazem com
cível de receber uma nos de espoliaçãoecológica e de desenvolvimentoregional desigual
colocada."zs que são uma das molas da acumulação. Do mesmo modo, a crítica da
economia política explora não um tempo homogêneo, mas um tempo
Reciprocamente, era inevitável
mas ejetassemuma rítmico, entrecortado de batimentos, de soluços e de crises, um tem-
física clássica e po de aumentos e diminuições. Diante desse comportamento estocás-
tico do capital, a razão clássica perde sua gramática.
rência pura e perfeita,
um sistema de preços suscetível de
Equações mecânicas e equações económicas não decorrem da mesma
lógica. No domínio das trocas sociais, "não conhecemosnenhuma
relação constante entre as grandezas; as únicas grandezas que chega-
mos a determinar não possuem mais que um significado histórico
desprovido de generalidade". Ainda que chegássemosa determinar as
condições presentes, continuaria sendo impossível enunciar predições
de ordem quantitativa: "0 tratamento quantitativo dos problemas

422 423
MARX. O INTEMPESTIVO Y A ORDEM DA DESORDEM

marginal social e efeitos externos como a poluição, a saúde, o desempre-


económicos não pode nunca consistir senão em #ma #fslórfa ecolzÓ.
mica, jamais em uma teoria ecopzõmlm.[-.] Não podemos ava]iar as go.a8
A distinção entre produto privado e produto social é crucial e reve-
estimaçõesde hoje senãona medidaem que elas se exprimemnos ladora. Os desfalecimentos do mercado manifestam aí uma contradição
preços de hoje."2' Ora, os preçosde hoje determinam retroativamente intrínseca,irredutível à informação factiva tão cara a Hayek.
o valor de ontem. O tempo de trabalho socialmente necessárioà pro- Sob o constrangimento de seu objeto específico-- a economia
dução da mercadoria manifesta-sea posferíori na formação dos pre- política --, as aporias do Cáfila/ acentuam uma maneira de fazer
ços de mercado. A relação circular do valor e dos preços, que deixa ciência e os seus limites. Tais aporias levantam problemas, sem res-
perplexos tantos economistas aferrados em pensa-la em termos de posta no universo epistemológico do século XX, cuja fecundidade sal-
transformação, funciona em Marx sobre o modo das teorias da infor- ta à vista em nossos dias. A lenda insustentável de um Marx econo-
mação.A informação sobreos preçosretrodetermina o valor: "0 preço mista newtoniano persisteentretanto: "As leis da física segundoas
diferencia-sedo valor não somentecomoo Nominal se distinguedo quais Marx tentou modelar as leis da história nunca existiram. Se
Real, não somente por sua denominação em ouro e prata, mas porque Newton não podia predizer o comportamento de três bilhas, como
o segundo aparececomo a lei dos movimentos que o primeiro descre- podia Marx predizer o de três pessoas?Toda regularidade no com-
ve. Ora, elessão constantementediferentes e não coincidem nunca. a portamento de grandesajuntamentos de partículas ou de pessoasdeve
não ser em casosinteiramentefortuitos e por exceção."27Do mesmo serestatística,e issotem um gosto filosófico bem diferente.Retros-
modo que a substânciaspinozistaé anterior "em natureza" (e não pectivamente, podemos ver que o determinismo da física pré-quântica
cronologicamente) às afecçõesque a determinam, o valor é logica- não pede evitar a derrocada ideológica senão mantendo separadas as
mente anterior aos preços que o determinam. três bilhas do emprestador sob garantias."zP Contrariamente a essas
A economia aparenta-secom efeito a um sistema aberto, não linear. afirmações imprudentes, Marx sabe pertinentemente que a relação
Os modeloseconométricostêm a maior dificuldade em integrar a incer- social combina mais de três bilhas e três corpos. A economia não é
teza irredutível dos investimentos, das mutações tecnológicas, das crises para ele um sistemafechado,autónomo em relação ao político, mas
monetárias e das quebras das bolsas de valores. Num raciocínio estraté- uma espéciede "mecânica hereditária", que conta uma história ins-
gico, a hipótesede um preço deequilíbrio único e estávelnão se sustenta crita nas determinaçõesincertas da luta. Esseo motivo por que, no
mais. Enquanto sistemaaberto, a economia vê-seconstantementecon- calvário da mercadoria, o valor de hoje se medepelo efeito retroativo
frontada com a questãodas "externalidades" onde se apagamsuaspró- dos preços de amanhã, eles mesmos condicionados não por uma cau-
prias fronteiras. Assim,para um neoclássicocomo Arthur Pigou, a "fra- salidade linear puramente económica, mas pelas relações políticas e
queza dos desejos para as satisfações longínquas" justifica a intervenção sociais. De onde a circularidade lógica das determinações e a anteci-
corretiva do Estado. Os agentesprivados, conduzindo-seem função
apenas das utilidades e desutilidadesprivadas, seriam incapazes de deter- 28Arthur Cecil Pagou,L'Economia dn bien-érre, Londres, 1912-1920. Conceber
minar uma afetaçãootimal dos recursos levando em conta o produto a economia como um sistemaaberto conduz a modificar os termos de certos
debates, como a discussão sobre os fatores endógenos e exógenos na deflagração
aóLudwig von Mêses,(blc#J éco#omig#e ef n gamesacia/lsfe, Londres, 1938. O e na solução das crises. Como sistemaaberto, os efeitos tornam-seincessante-
argumento de von Mêses,como os dos outros epígonos da escola austríaca, ins- mente causas, de modo que não há mais grande sentido em classificar a inovação
creve-sc porém na busca de um fundamento subjetivista da economia. tecnológica ou as guerras segundo a alternativa endógena-exógena.
27Karl Marx, Gm drisse,1, op. cit., pp. 72 e 128. u lan Stewart, Dfe# /o#e-l-iZ aux dés?, op. cit., p. 66.

424 425
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

pação permanente de um futuro (os preços) que, como nos sistemas Introduzindo a história na economia à maneira como Hegel tem-
homeostáticos, não cessade agir sobre o presente (o valor). poraliza a lógica, Marx pensa uma economia turbilhonante, cujos
Certamente seria tão ridículo quanto anacrónico fazer de Marx círculos de círculos e as figuras vertiginosas fascinam hoje os físicos
um pioneiro do caos determinista. Em compensação,é legítimo escla. do caos: "Efetivamente, ciclos económicos, aproximativamente peri-
recer suas dificuldades, seus impassesconfessados, suas hesitações ódicos, foram observados. Em níveis ainda mais elevadosde desen-
reconhecidas, pela evolução da cultura científica e pela visão do mundo volvimento, deveria haver uma economia l rb /efzfa com z/armações
para cujo desenhoela contribui. Seuinteressepelo atomismo de De- itregKlates e uma dependênciasensitiva das condiçõesiniciais. Não ê
mócrito e Epicuro prepara-o para as interrogações do atomismo desarrazoadoafirmar que vivemos atualmente numa tal economia."
moderno. Seele parece aderir a uma representaçãodeterminista, con- De modo que "se houver a tentativa de fazer uma análise mais quan-
tinua com efeito ligado ao jogo do porvir que sefende e abre sob a titativa, tropeça-se imediatamente sobre o fato de que os ciclos e outras
flecha: "Assim, nenhuma parte poderá erguer limites, e incessante- flutuações da economia têm lugar sobre um fundo geral de crescimen-
mente se abrirá ao vâo da flecha uma nova perspectiva."3' to".32No Cáfila/, a organização conceptualdo tempo coloca precisa-
Em que esseMarx, tão sensívelàs turbulênciasda luta, é ainda deter- mente em evidência essa superposição de periodicidades diferentes
minista? Contrariamente ao que pretendem em uníssono Jean-PaulSar- (tempo de trabalho distinto do tempo de produção, ciclos a-sincróni-
tre, Karl Popper e Jean-YvesCalvez, Marx não é um representantedo cos da produção, da circulação, da reprodução, rotações articuladas
determinismo filosófico.sl Leis internas e imanentes, as leis económicas de capital fixo e de capital circulante). Ela torna inteligíveis as varia-
do(hpila/ são históricas, mutáveis e modificáveis. A natureza, que não çõesirregulares de uma economia turbulenta do desequilíbrio, sob o
pode ser determinada senãopor si mesma,autodetermina-se pelo desen- efeito retroativo da determinaçãotemporal do valor pelospreços.
volvimento conflitual de poderes e de forças em repouso, de capacidades A economia dinâmica de Marx apresenta-sejá como um sistema
em potência, de virtualidades e de potencialidades, por um jogo de inter- instável sensívelàs condições iniciais. Ela anuncia, dentro de seuspró-
dependências e de interações sem vontade nem entendimento soberanos. prios limites, a teoria geral dos sistemas,a ecodinâmica,o pensamento
As ciências sociais ressaltam nessa perspectiva as ciências da evo- ecológico. O capital gira sobre si mesmo, rompe-se em torções e em
lução, onde o futuro, submetido a parâmetros variáveis, é imprevisí- flexões. As relações sociais exibem nessasformas rompidas sua estupi-
vel sem ser indeterminado; onde as singularidades históricas dividem dificante coreografia.33 Essesmotivos caóticos são os da lógica dialética
o porvir e o ramificam em numerosos canais. De onde um conheci- do Cáfila/. Como as "forças diretrizes" de Claude Bernard,suasleis
mento histórico, mais compreensivoque preditivo, dos borboletea- tendenciais reabilitam causalidades múltiplas (funcionais, estruturais,
mentos do real. Basta pouco para que se abram ramos e bifurcações recíprocas, morfológicas, seladas, acidentais, metonímicas, simbólicas)
oferecendo a cada situação um multiplicidade de saídas possíveis. há muito desdenhadasem favor somente da causalidade mecânica. As
curvasdos preçosenrolam-seem tomo de um valor virtual. A igualiza-
10Lucrécio, De /a naf re, op cit.
Quanto à questão de saber se Marx foi determinista, para mim a respos- lz David Ruelle, Hasard ef cbaos, Paria, Odile Jacob, 1991, p. 110.
ta não é problemática, é categórica: não, na medida cm que ele conhecia o deter- 3a"Turbulências, deslizamentos de ciclones sobre os anticiclones, como sobre
minismo e na medida em que o rejeitou" (Michel Vadée, "Marx était-il détermi- a carta do tempo. Nós de palha. Um conjunto de relações. Nuvens de anjos que
niste?', revista À{, n' 73, outubro de 1994, em resposta a um artigo de Yvon passam. Ainda um golpe, a dança das chamas" (Michel Series, Éclafrcisseme#fs,
Quiniou, "Marx penseur déterministe', publicado em À4, n' 71, junho de 1994). Paras,Flammarion, "Champô", p 180).

426 427
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Em Marx, a relaçãodos preçoscom o valor, o papelda moeda


ção do valor de mercadopara alcançaro valor real "obtém-sepelas
oscilaçõesconsfafzfes
da primeira". A lei do valor, diferentementedas como pressuposto da própria circulação, o papel do mercado como
leis abstratas da física clássica, impõe-se como "conexão interna» e pressupostodo trabalho abstrato são tantos outros sinais da passagem
"estrutura interna oculta". "Ordem da desordem", a lei do valor regula do ponto de vista mecanicistapara o ponto dc vista teleológico assim
assim do interior o jogo das aparências, como uma espécie de estranha compreendido.O capital enquanto sujeito, a troca orgânica, a autode-
ímã que controlada os desviosdo mercado. Aos pontos singularesdas terminação do valor aparecem como momentos de uma totalidade cuja
dinâmicarigorosamenteimanente não deixa subsistir nenhuma exteri-
bifurcações abertas à esperança aplica-se a escolha estratégica, a visada
do arqueiro hábil em atingir essespossíveisem pleno vâo. oridade.wDo mesmomodo, o lucro médio do capital individual não é
imediatamente determinado pelo trabalho excedentediretamente extra-
A querela não raro obscura sobre a teleologia toma-se clara então
de outro modo. Marx saudou calorosamente o "golpe mortal» desferi- ído da produção, mas a poslerlori, pela quantidade de trabalho exce-
do por Darwin "à teleologia nas ciências da natureza". Esseentusiasmo dentetotal extorquido pelo capital total. O capital individual recebe
é coerente com sua admiração por Spinoza, cuja filosofia da substância assimuma parte proporcional à sua parte no capital total.
exclui qualquer recurso às causasfinais: "A natureza não tem um fim Desseponto de vista, a ordem do capital é teleológica.
prescrito e todas as causasfinais não são mais que ficções dos homens."
Eliminando as causasfinais (assimcomo os conceitosde organi-
O que Marx sustenta em Darwin é o combate contra a velha tele- zação, de totalidade, de diretividade), o paradigma determinista clás-
sico foi extraordinariamente fecundo para as ciências físicas. O vita-
ologia religiosa, que confere à história do mundo um destino e um fim
lismo continuava ao contrário suspeito de nostalgias teleológicas aos
providenciais. Mas um comportamento sistêmico auto-regulado, condi-
relentos místicos. Inerente às ciências do ser vivo, essatentação dava
cionado e orientado pela estabilidade de um estado final, pode ser cha-
mado de teleológico em outro sentido. A teoria dos sistemaslança uma entretanto conta à sua maneira do funcionamento retroativo e dos
nova luz sobre uma antiga dificuldade. A "ciência alemã« nunca renun- efeitos de reciprocidade dos sistemas. A causalidade mecânica, em
ciou à teleologia em favor da causalidade mecânica pura e simples. Kant sentido único, não representa os comportamentos adaptativos regula-
dos pela busca de um estado final. A teleologia reapareceassim, não
reivindica essa teleologia como estrita "finalidade interna". Schelling
evoca a natureza como "um todo organizado a partir de si mesmo e como a realização de um destino ou como a perseguição de uma meta
exteriormente fixada, mascomo auto-regulação imanente à busca de
organizando-se a si mesmo". A doutrina hegeliana do conceito desen-
um estado estacionário. Ainda que a interpretação dos eventosà luz
volve a fe/eo/ogü do z/fz/o:"A teleologia acha-seem oposição por exce-
desseestado final seja propícia às fantasmagorias religiosas do me-
lênciaao mecanismo,no qual a determinidadecolocadano objeto é
essencialmente,como exterior, uma determinidade na qual não se ma- lhor dos mundospossíveis,essafinalidade pode tomar um outro sen-
nifesta nenhuma outra determinação [-.]. Pode-sedizer da atividade tido que o antropomórfico. Sinal de uma "dependênciapara com o
teleológica que nela o termo é o começo, a conseqüência o fundamento,
H Gramsci percebeu com acuidade essaambivalência da teleologia: "Não existe
o efeito a causa, que ela é um devir do devendo [-.]." Concebida como
no termo e na concepção da missão histórica uma raiz teleológica? Com efeito,
a ação dirigida para uma meta, inscrita na imanência dos processos em numerosos casos,ela toma um valor equívoco e místico. Mas em outros casos
reais, trata-se doravante de uma teleologia laicizada, em que as contri- ela tem uma significação que, depois do conceito kantiano da teleologia, pode ser
buições da ciência contemporânea sobre a auto-organização, a regula- sustentadae justificada pela filosofia da praxis" (Cablerde prlso# 11, op. cit., p-
ção em anel, os controles homeostáticosrenovam o conteúdo.

429
428
MARX. O INTEMPESTIVO

futuro", ela significa então um efeito de "causalidade inversa", Cujas


condições a vir determinam a orientação do processo.

Considerando o capital como uma relação social dinâmica em desequi-


líbrio crónico, Marx entrevê, sem ainda poder decifra-los, "os traços do
caos sobre a areia do tempo".3s Sobre a via de preenchimentos e de sin-
gularidades históricas inacessíveisao aperfeiçoamento puro e simples do
cálculo, sua ciência é inicialmente uma crítica das formas mercantis.
Senão se trata somentede interpretar o mundo, de que se trata
então? ll. Os tormentos da matéria
Certamente de muda-lo.
(Contribuição à crítica da
Marx pareceàs vezesanunciar o devir ciência da filosofia, como
se a certeza positiva das luzes devesselevar definitivamente a melhor
ecologia política)
contra as obscuras incertezas hermenêuticas. Seu prefácio ao Capita/
começa assim por render uma vibrante homenagem às leis naturais da
física, mas ela acaba por sublinhar o caráter polêmico do conheci-
mento enquanto produção social: "No terreno da economia política,
a livre pesquisacientífica encontra bem mais inimigos que em outros
campos de exploração." Prisioneira das servidõesterrestres, essalivre
pesquisa, de acordo com as imagensheroicizadas da ciência e dos sá-
bios, permanecetrivialmente sobre "o campo de batalha", onde ela
encontra "as paixões mais vivas, mais mesquinhase mais odiáveis do
coração humano, todas as fúrias do interesse privado".3õ Científica
num certo sentido e numa certa medida, a crítica da economia políti-
ca está assim condenada a enfrentar as ilusões ideológicas da opinião
sem poder escapar completamente aos logros do fetichismo. Ela evoca
e chama as sutilezas a vir de uma "mecânica orgânica", o conheci-
mento ondulante de uma desordemordenada, em suma, uma outra
maneira de fazer ciência.

3slan Stewart, Doeujo#e-r-il aux dési, op. cit.


3óKarl Marx, prefácioà primeira ediçãodo Capital, OP.cit.

430
Mau gênio produtivista ou anjo da guarda ecologista?
Que façam dele o responsávelpelo produtivismo burocrático e
suascatástrofesou sepretenda torna-lo um partidário incontestedos
verdes, sempre se encontrarão em Marx trechos suscetíveis de alimen-
tar um e outro discursos. Dos escritos da juventude às Noras sobre
Ado/pb Wagmer,sua obra não é certamentehomogênea.Mas, em
termos da época presente, caminhos há muito obstruídos pelo pesado
edifício das vulgarizações didáticas começam novamente a se abrir.
Com toda a certeza, seria anacrónico exonerar Marx das ilusões
prometéicas de seu tempo Seria igualmente abusivo fazer dele um pre-
gador descuidosoda industrialização a qualquer preço e do progresso
em sentido único. Não se teria condições de confundir as questões que
ele levantou com as respostas oferecidas ulteriormente pelos epígonos
social-democratas ou stalinianos. Neste, como em outros pontos, acon-
tra-revolução burocrática na URSSmarca uma ruptura.
As pesquisasde Vernadski, Gause, Kasharov, Stanchiski davam
passagema uma ecologia pioneira, que teria podido integrar-seàs
promessasde "transformação do modo de vida" dos anosvinte. As
datas são eloquentes. Em 1933, Stanchiski foi preso, sua aventura
interrrompida, suasidéias banidas das universidadessoviéticas.Os
delírios produtivistas da coletivização forçada, os entusiasmos pela
industrialização acelerada,o frenesi stakhanovista tornavam-seincom-
patíveis com as inovações de uma ecologia crítica. No momento em
que os ideólogos do regime inventavam "a construção do socialismo
num só país", ela teria obrigado a pensaro desenvolvimentoda eco-
nomia soviética dentro das exigências de seu ambiente mundial. Teria

433
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

exigido escolhasdemocráticasde prioridadese do modo de cresci- mais exatamente, seu "ser natural", significa que sua força de trabalho
mento, em absoluta contradição com o confisco do poder e a crista- consumida no processo de produção é, originalmente, força vital. O ser
lização dos privilégios. Enfim, uma certa idéia da interdependência natural é "um ser natural humano". Nessa humanidade, a determinação
entre o homem e a natureza, uma consciência de sua dupla determi- natural nega-sesemseabolir. O fetichismo da mercadoria não secontenta
nação social e natural teriam batido de frente com o voluntarismo em mudar as relações humanas em coisas: ele degrada igualmente o natu-
burocrático que fazia do homem o "capital mais precioso". ral à condição de "bestial". A inversão dos papéis e dos valores é geral:
Depois da SegundaGuerra Mundial, o renascimento da ecologia "Temos assim,como resultado, que o homem não sesentemais livremen-
crítica contribuiu para desfazera crençanum fim redentor da história. te ativo senão em suas funções animais, comer, beber e procriar, quanto
em que a humanidade reconciliada consigo mesma desfrutaria pela eter- mais ainda na moradia, nas coisas da casa etc., e que, em suas funções de
nidade da plenitude dos tempos. Ao perfurar essessedimentos ideológi- homem, ele não sesente mais que animal. O bestial toma-se o humano e
cos para encontrar novamenteo filão teórico abandonado, as interroga- o humano torna-se o bestial. Comer, beber, procriar são certamentetam-
ções atuais permitem compreender de outro modo as de ontem. bém funções autenticamente humanas. Mas, separadas abstratamente do
resto do campo das atividades humanas e tornadas assim o fim último e
único, elas são bestiais."z Em lugar de enriquecer a humanidade, as carên-
cias determinadas pelo capital são unilaterais e compulsivas. São elas que
UM SERNATURAL HUMANO possuem o homem, e não o inverso. Essa liberdade negada remete-o não
mais a uma bestialidadeoriginal ou natural, mas a uma bestialidadeso-
Marx concebe a relação de produção, indissociavelmente, como uma cial, que pode muito bem revelar-semais feroz ainda.
relação dos homens com a natureza e dos homens entre si, mediada pelo A negaçãoda humanidade no homem coloca a reconquista de sua
trabalho. A irredutibilidade do vivente não desaparecena socializaçãoda naturalidade como condiçãode sua emancipação.Esseo motivo por
natureza. Assim, "a primeira premissade toda a história humana é com que, depois de ter afirmado a identidade do humanismo e de um
toda a certeza a existência de sereshumanos vivos individuais". Desde os naturalismo consequente, o jovem Marx designa simplesmente o co-
À4a scritos de ]844 a natureza é designada como "o corpo inorgânico munismo como um "naturalismo consumado"
do homem". Enquanto ser natural humano, "o homem é imediatamente Essa problemática conduz à crítica da economia enquanto campo
ser díz nzafureza". De um lado, enquanto ser nzafurn/ z/iz/o,ele é "provido de racionalidade parcelar, à autonomia ilusória. A capacidadedo ho-
de forças naturais, de forças vitais". De outro lado, enquanto ser natural mem vivo em produzir trabalho excedenteremeteem última análisea
"de carne e osso, sensível, objetivo, ele é, tal como os animais e as plantas, um fato "extra-económico": "0 único bafo extra-económico é que o
um serpassivo,depelzdenfe e /imolado".íA fórmula do Cáfila/, ao con- homem não precisa de todo o seutempo para produzir artigos de pri-
siderar o trabalho o pai dasriquezasmateriaise a naturezasuamãe, não meira necessidadee que ele dispõe de tempo livre além do tempo de
é portanto lançada ao acaso: ela se inscreve numa estrita continuidade. trabalho necessário à sua subsistência, de tal modo que ele pode even.
A abordagem do jovem Marx inaugura com efeito o longo percurso tualmente efetuar um trabalho excedente."s Marx insiste com notável
crítico da economia política. O fato de o homem pertencer à natureza ou,
2 Kart Marx, Àfa scrífs de 1844, op. cit., p. 61
1 Karl Marx, À an scrils de 1844, Paras,Éditíons sociales, 1962, pp. 136-138. 3 Kart Marx, Gm#drisse, 1, op. cit.

434 435
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

constância nessa exuberância do trabalho vivo, cuja impetuosidade à sua própria reprodução manifesta a um só tempo uma propriedade
vai mais longe que o cálculo económico e faz rebentar a camisa-de- enigmática da "força vital"
força de sua medida. 4) A "dependência" irredutível do homem para com sua determina-
Em ação desde1844, essalógica não se extingue com a liquidação çãoprimeira manifesta-sena carêncianatural, ponto de partida de qual-
da consciência filosófica. Ao contrário, ela continua o seu caminho. quer sistema de carências.Ele exprime a relação de incompletude do
1) Colocando o princípio de um monismo radical, Marx afirma o homemcom a natureza, enquanto relação da parte com o todo. Suafi-
primado do vivente e humilha o espírito convocado à sua miserável nitude não cessade evocar-se nele pela falta. E antes de tudo pela fome,
dependênciapara com a matéria. Primeiro comer e vestir-se, diz He- inextinguível reivindicação do corpo que não pára de trazer o espírito
gel. O homem é inicialmente um corpo que anda e que respira, reforça para a terra e de força-lo a "confessar" sua miserável condição material.4
Marx. "Na origem ele é natureza", "um ser natural objetivo". Tudo 5) O que foi rebaixadodeveser realçado.Marx ressaltao anjo já
parte daí. prestes a tornar-se besta. O homem é um ser natural, mas é "um ser
2) As antinomias filosóficas clássicas (entre materialismo e idea- natural humano". Nessahumanidade, a natureza nega-sesem se apa-
lismo, entre natureza e história) resolvem-senesse monismo radical. gar. Ela funde-se e diferencia sem romper-se. Da mesma forma que o ser
Marx rompe o círculo vicioso de oposiçõesfalaciosas. Enquanto uma e o nada se unem no devir, o natural e o humano se unem na história,
certa ecologia contemporânea ressuscitaa querela do naturalismo e que é o devir específico de ambos. Pois "nem a natureza no sentido
do humanismo, ele sugere, ao contrário, que "naturalismo conseqüen- objetivo, nem a natureza no sentido subjetivo existem imediatamente de
te" e humanismo são uma coisa só. A contradição formal entre ma- uma maneira adequada ao ser humano". Em sua particularidade, dis-
terialismo e idealismo resolve-seem sua unidade. Do ponto de vista tinta de sua universalidade natural, o homem é portanto especificamen-
dessa unidade íntima, "só o naturalismo é capaz de compreender o te determinado por sua historicidade: a história é seu ato de nascimento.
ato da história universal". Decorre daí uma reviravolta da relação entre Daí por que, longe de opor-se à natureza numa antinomia insuperável,
sujeito e objeto, uma transformação das próprias noções de sujeito e "a história é a verdadeira história natural do homem"
subjetividade, de objeto e objetividade: "Um ser que não tem nenhum Essa atitude dinâmica do jovem Marx conserva-se para além dos
objeto fora de si não é um ser objetivo." A objetividade supõe a in- remanejamentosteóricos ulteriores. Sob todas as formas da produção, a
completude e a alteridade... do sujeito. força de trabalho humana é sempre concebida como "exteriorização de
3) O fato de o homem pertencer originalmente à natureza ou, de uma força natural". No trabalho, o homem "se opõe enquanto poder
maneira mais exala, seu "ser natural", implica igualmente que ele se natural à matéria da natureza". Ele ageenquanto homem "exteriormen-
acha antes de tudo "provido de forças naturais, de forças vitais". O te sobre a natureza e a modifica, modificando ao mesmo tempo sua pró-
que aparececomo "força de trabalho" no processo de produção é pria natureza", e "desenvolve as potencialidades que ali repousam".s
realmente, em sua origem, "força vital". Essa determinação natural
persistena determinaçãosocial da força de trabalho. Qualquer que 4Ver DionysMascolo,l.e Comm#nisme,répol#rfo et çomm icalfo o# la di-
seja o seu orgulho, o homem continua sendo animal e continua sendo alecffq#e des ua/e ts et des besoi#s, Paria, Gallimard, 1953; Agnês Heller, l.a
Tbéorie des besof#s c&ez Àfarx, Pauis, UGE, 1978; Philippe Bayer, Besoin radial
planta. Enquanto o lucro parece surgir "ex-/zibl/o", a teoria da explo- ef co#tfadicfio radlcale cbez À4arx, texto fotocopiado, Poitiers, fevereiro de 1992.
ração e da mais-valia elucida no Cáfila/ o mistério dessenada. Mas s Karl Marx, l,e Capital)livro 1, Paria,Flammarion,"Champô', t. 1, 1985,
a capacidade da força de trabalho em fornecer mais que o necessário P. 139

436 437
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

A crítica de um em-si natural, não medrado pelo homem, e da gos; e utilizar como matérias-primas suas novas qualidades; o desenvol-
autonomia alegada da consciência para com a natureza, é aqui fron- vimento máximo das ciências da natureza; a descoberta,a criação, a
tal. A história não é nem um conjunto caótico de fatos (como em Scho- satisfação de novas carências surgidas da própria sociedade"
penhauer), nem uma estrutura significativa unificada (como em He- A produção baseadano capital cria ao mesmotempo a indústria
gel). O mundo enquanto totalidade articulada não está submetido a universal e um sistema de exploração universal das propriedades na-
nenhuma idéia unitária que Ihe conferida um sentido. Factualidade turais e humanas. Nada mais parece ter um valor superior em si ou
antiutópica por excelência,último chamadoda finitude natural, a morte ser justificado por si fora dessecírculo da produção e das trocas so-
ilustra a impotência de qualquer metafísica e de qualquer teodicéia. A ciais. É portanto somente o capital "que cria a sociedade civil burgue-
estelimite detém-sea determinação própria da humanaliberdade.É sa e desenvolvea apropriação fzíuersa/da fzal reza e da própria
essatambém a razão por que a morte conserva-sefora do campo fi- conexão social pelos membros da sociedade". Daí sua "grande influên-
losófico. Há muita coisa para dizer sobre ela, mas pouca para pensar. cia civilizadora". Ele gera um nível de desenvolvimentosocial em
relação ao qual todos os desenvolvimentos anteriores aparecem como
O caminho aberto pelos À4a/zuscri]osde ]844 e as Teses sobre uma idolatria natural local e limitada. Com a produçãocapitalista
Fezlerbac# desemboca dez anos mais tarde nos desenvolvimentos ma- propriamente dita, "a naturezatorna-se um mero objeto para o ho-
gistrais dos GTKndrisse.A criação de valor excedente absoluto pelo mem, uma simples questão de utilidade, ela deixa de ser reconhecida
capital leva o círculo da circulação a ampliar-se constantemente. A como uma potência por si; e mesmo o conhecimento teórico de suas
produção dominada pelo capital implica portanto "um cücu/o flz- leis autónomas não aparecesenãocomo um ardil visando a submetê-
cessanfemenfeamp/fado da Gire /anão, tanto no caso em que esse la às carências humanas, seja como objeto de consumo, seja como
círculo cresça diretamente, quanto no caso em que se transforme meio de produção". Essadinâmica do capital põe de cabeça para baixo
um maior número de seuspontos em pontos de produção". A ten- "as barreiras e os preconceitos nacionais". Ela derruba "os obstáculos
dência a criar o mercado mundial se acha assim "imediatamente que creiam o desenvolvimento das forças produtivas, a extensão das
implícita no conceitode capital". carências,a diversidade da produção e da exploração e o intercâmbio
A produção de valor excedentebaseadano aumento das forças das forças naturais e intelectuais"
produtivas exige, por outro lado, "a produção de novo consumo", pri- Se ele supera "de maneira ideal" cada obstáculo dessetipo, o
meiramente pela "ampliação quantitativa do consumo existente": em capital "nem por isso o supera realmente". Sua produção "move-se
segundo lugar, pela extensão das carências existentes a um círculo mais em contradições que são constantementesuperadas,mas também
amplo; em terceiro lugar, pela "produção de novas carências" e a "cri- constantemente colocadas". A universalidade a que ele aspira choca-
ação de novos valores de uso". De onde "a exploração da natureza se com os limites inerentesà sua própria natureza, que fazem dele,
inteira", "a busca de novas qualidades úteis nas coisas", "a troca em num certo momento de seu desenvolvimento, "o obstáculo maior a
escala universal de produtos fabricados sob todos os climas e em todos essamesmatendência à universalidade".ó
os países", os novos "tratamentos (artificiais) aplicados aos objetos Essetexto decisivo penetra no âmago da contradição que assom-
naturais" para dar-lhesnovos valores de uso.De onde, enfim, "a exp/o- bra o modo de produção capitalista:
rago da Terra em lodos os sefzfldos,tanto para descobrir novos objetos
utilizáveis quanto para dar novas propriedades de utilização aos anti- 6 Kart Marx, À4aHuscrilsde 1857-]858, op. cit., t. 1, pp. 346-349

438 439
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

1) A criação de valor excedenteabsoluto constitui a chave da nha um dinamismo fecundo, levando à "busca de novas qualidades
aceleração histórica inerente à reprodução ampliada e à mundializa- úteis nas coisas" e à universalização das carências(logo, da própria
ção da produção mercantil generalizada. Elas estão "imediatamente humanidade) para além das barreiras naturais e das particularidades
implícitas no conceito de capital". Em 1858, uma tal compreensão climáticas. Disso resulta uma curiosidade insaciável, uma busca febril
manifesta uma surpreendentecapacidade de antecipação teórica. de "novas qualidades" na matéria, um desenvolvimento sem prece'
2) O primado do valor de troca, em sua unidade contraditória dentes da ciência e das próprias carências sociais. A aplicação à natu-
com o valor de uso, permite um distanciamento (um "desenraízamen- reza da noção de exploração nem por isso teria como ser fortuita. Ela
to") em relaçãoà naturezae a suasexigências.O "momento" da referencia uma contradição e sugerecaminhos, logo abandonados pela
produção subordina-seao do comércio, tornado mediação necessária ortodoxia, que Walter Benjamin soube encontrar no momento cm que
entre produções imediatamente heteronâmicas e mediatamente inter- o maior perigo aguçavao sentido do risco: "Tal como é concebido no
dependentes.Daí resulta uma metamorfose da agricultura, que se presente,o trabalho visa à exploração da natureza' exploração que
emancipa de suascondições e regulaçõesnaturais para cair sob a lei com ingênua suficiência costuma-se opor à do pro]etariado]-.]. À
implacável da produção mercantil. Pode-selamentar que Marx não idéia corrompida de trabalho corresponde a idéia complementar de
tenha estendido essacompreensãoàs matérias-primas, à energia, ao uma natureza que, de acordo com a fórmula de Dietzgen, aí está,
meio ambiente. Lembremosentretanto, para seu desencargo,o lugar grátis." Essasconcepçõescomplementaresdo trabalho e da natureza
ainda determinanteda agricultura nos paísesmais desenvolvidosde opoe'm-se à idéia de que "os produtos aproveitam ao trabalhador" e
seu tempo e os limites da industrialização. O CaP/la/ é anterior ao à ideia de um trabalho que, "longe de explorar a natureza", estaria
aparecimento do imperialismo financeiro moderno.7 em condições de "fazer nascer dela as criações virtuais que repousam
em seu seio".s Portanto, um trabalho que já não seria uma atividade
3) A "produção de valor excedente relativo" e a caça aos ganhos
de produtividade não exigem apenas uma ampliação constante da esfera sob coaçãona verdadejá não seria nem mesmo um trabalho, mas
da produção e uma fuga para a frente produtivista, mas também uma uma livre atividade criadora.
ampliação simultânea proporcional da esfera da circulação e uma 5) Sob o látego do capital, a formação de um "sistema de explo-
metamorfose constante das carências. O aumento ilimitado da produ- ração universal das propriedades naturais e humanas" aciona um
acesso de dessacralização da natureza. Seessa dessacralização toma
ção não pode com efeito ser absorvido só pela extensão quantitativa
do consumo. Ele leva à "produção de novas carências e à descoberta inelutavelmente a forma alienada do desencantamento, a constatação
e criação de novos valores de uso". A lógica própria do capital anun- não comporta nenhum traço de nostalgia passadistapara com um
cia assim o surgimento da sociedade de consumo. mundo encantado. O capital apenascria, sob as tomas ainda religio-
4) Esseturbilhão, onde produção e circulação acarretam-se mu- sas do fetichismo, as precondições de uma secularização da existência
tuamente, tem por conseqüência inédita "a exploração da natureza humana liberada de seus pesadelos místicos.
inteira". O termo não revesteaqui um sentido necessariamente
pejo- 6) Levado por seu impulso, esseentusiasmo prometéico passadire-
rativo por analogia com a exploração do trabalho humano. Ele subli- tamente da desmitificação da natureza à sua "apropriação universal",
louvando na socialização integral das relações humanas a influência

7 Ver Ted Benton, "Marxism and Natural Limits', New l.e# Rwfew, novembro
de 1989. ' ' BWalter Benjamin, Tbêsessur le concebi d'bisfoire, op cit., teseXL

441
440
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

unilateralmente "civilizadora" do capital. Por muito tempo suportada apressadosatribuir-lhe uma vontade sem rédeas de possuir e de domi-
como um poder misterioso e tirânico, a natureza fica enfim reduzida a nação da natureza. Em contraste com os socialistas vulgares e produ-
"mero objeto para o homem" e a "uma mera questão de utilidade". A tivistas, ele entretanto jamais considera que a natureza seja ofertada
própria ciência finge submeter-se às suasleis para melhor roubar-lhe "de graça". Assim, "a primeira premissade toda a história humanaé
seussegredose coloca-los a serviço da produção e do consumo. com toda a certeza a existência de seres bwmalzos pipos f dfufduals. O
7) Um dos índices essenciaisda civilização reside em seu grau de primeiro fato a estabeleceré portanto a organizaçãofísica dessesin-
universalização. A "tendência a criar um mercado mundial" derruba divíduos e as relaçõesque daí resultam com o resto da natureza. Evi-
inelutavelmente as barreiras estreitasda tradição e dilacera a linha de dentemente, não podemos entrar aqui nem na verdadeira natureza física
horizonte. Ela parecemandar para o espaço)irremediavelmente,os do homem, nem nas condições naturais em que a humanidade se acha
"preconceitos nacionais" e p6r um termo à divinização mágica da mergulhada -- geológicas, hidrográficas, climáticas, e assim por dian-
natureza. Voltamos a encontrar aqui os acentos admirativos do Ma- te. Todo escrito histórico deve partir dessas bases naturais e de suas
m#bsiocomu#isla diante da energiado capital em destruir e revolu- modificações no curso da história pelo viés da ação dos homens".P
cionar "constantemente tudo isso", em liberar a extensão e a diversi- Contrariamente ao que pretende Lukács, a determinação natural
ficação das carências. Pois o homem não é uma essênciaintemporal, não se extingue na socialização histórica. "Corpo inorgânico do ho-
mas a unidade de suas próprias carências, que o determinam dentro mem", a naturezaaparenta«se,no jovem Marx, à substânciaspinozista.
de uma relação de troca e de enriquecimentorecíproco tanto com o Dessemodo, ele não reduz apenasao trabalho as fontes da riqueza
seu meio natural quanto com o seumeio social. O desenvolvimento material. A fórmula segundoa qual o trabalho é seu pai e a terra sua
quantitativo e qualitativo dascarênciasé portanto um enriquecimen- mãe, reforçada pela demonstração darwiniana da continuidade do bio-
to de suapersonalidadegenéricae individual. Nenhum traço aqui de lógico e do cultural, é retomada literalmente por Engels:"0 trabalho,
robinsonada. Nenhuma nostalgia por uma humanidade original vi- dizem os economistas, é a fonte de toda riqueza; e]e o é efetivamente [-.]
vendo em harmonia elementarcom a natureza. conjuntamente com a natureza que Ihe fornece a matéria que ele trans-
8) Nem por isso Marx se lança a uma apologia cega do "progres- forma em riqueza."toAs Glosasmargfnlaisao programado pa#fdo
so". O desenvolvimento das carências é certamente um enriquecimen- op«arfa a/elzzãoinsistem ainda mais no assunto: "0 trabalho não é a
to em potência da personalidade. Mas sua determinação pelasexigên- fonte de toda a riqueza. A natureza é tanto a (ante dos valores de uso
cias do capital, pela alienaçãodo trabalho e pela deificaçãomercantil quanto o trabalho, qae não é outra coisa senão a manifestação de uma
faz delas carências mutiladas. A dessacralização da natureza esboça Óoçu (&z al#reza,a força de trabalho humana."''
assim um gesto emancipador para logo ceder à tirania de novos feti-
ches e ao desencantamento patente das relações mercantis. A univer- 9Karl Marx, L'ldéo/agir aZlemande,
op. cit.
salização em tela é uma universalização truncada, que não cessade se io Friedrich Engels, DfalecrfqKe de la nal#re, op. cit., p. 171. Essa aborda-
negar, chocando-secontra as barreiras do capital tornado em si mes- gem dispõe Marx a acolher favoravelmente as intuições ecologistas de Liebig.
mo seu próprio limite. Rejeitando ainda a noção de rendimentos decrescentes,ele é com efeito sensível
à distinção entre agricultura de espoliação e agricultura de recuperação,tanto
Essesdesenvolvimentos ilustram as variações de Marx sobre o como à oposição entre grande exploração rural e agricultura em pequenaescala,
conceito de natureza. Seudesgosto precoce pelo naturalismo român- grandes aglomerações urbanas e urbanização dispersa.
tico e suas mitologias duvidosas é o que basta para muitos exegetas H Karl Marx, Crifiqwe d programme de Caiba, op. cit.

442 443
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

Também ele nunca foi moderno.ís


Alfred Schmidt defendede maneira convincente que para Marx a
natweza é irredutível a uma categoria social: "Entre as propriedades
inatas da matéria, o movimento é a primeira e a mais importante, não O discurso vulgar sobre a crise do marxismo aprisiona Marx no limi-
apenas enquanto movimento mecânico e matemático, mas mais ainda tado horizonte de seuséculo,fixando-o em um "pódio epistemológi-
como instinto, espírito vital, força expansiva,f07memloda l zaféria co" caduco.Ele seria o avatar tardio de uma filosofia estreitamente
determinista e mecanicista. Essa caracterização sumária choca-se de
(para empregar a expressão de Jacob Bõhme)[-.]. Na seqüência de
sua evolução, o materialismo torna-se estreito, o mundo se#süe/ per- frente com a lógica intrínseca e a arquitetura do Cáfila/.
de o seu emcatltooriginal e torna-se a materialidade abstrata do geâ- A partir da SagradaÁamí7/a, uma concepçãonão mecânicada ma-
melra. O movimento físico é sacrificado ao movimento mecá#ico ozl téria inspirada da crítica hegeliana do entendimento opõe-se à geometri-
matemático. O materialismo se faz misantropo. Para poder dar com- zação abstrata e guarda suas distâncias "da ciência francesa da nature-
bate ao espírito misantropo e desencarnado em seu próprio terreno, o za". A referência a Jacob Bõhme e às fontes místicas da dialética alemã
materialismose vê forçado a mortificar a própria carne e tornar-se não tem nada de fortuito. Os mistérios da economia capitalista não
asceta.Ele apresenta-secomo um ser de razão, mas desenvolve igual- teriam como ser resolvidos apenasno terreno da economia.
mente a lógica inexorável do entendimento."íz Os textos de juventude O trabalho testemunhao "tormento da matéria", a irrupção dolo-
desenvolvem com efeito uma concepção não mecânica da matéria. A rosa da vida na não-vida: "Enquanto criador de valores de uso, enquanto
trabalho útil, o trabalho é portanto uma das condições da existência do
mecânica e as matemáticas são momentos do movimento, cuja tota-
lidade concreta implica uma lógica do vivente, evocada pelas noções homem independente de todas as formas sociais. Ele constitui uma me-
de impulso, de espírito vital, de força de expansão. diação natural extema necessáriaentre homem e natureza."i4 No traba-
Não haveria como a natureza ser exterior e subordinada ao huma- Ihó, o homem não é apenasobjetivado, mas ainda alienado. Seucorpo é-
no, tanto quanto o homem não poderia erigir-seem sujeito dominador. Ihe inteiramente roubado, sua existência é reduzida à sua função
A oposição entre sujeitos de direito e objetos de conhecimento é, de económica. A separaçãodo trabalho junto com suascondições naturais
leva à aniquilação da condição natural do homem enquanto homem que
saída, estranha à unidade diabética do sujeito e do objeto. Esse o motivo
por que não é quase concebível teoricamente "intemalizar" no cálculo vive da terra e de seu trabalho. No entanto, "em si mesmoo tempo de.
económico uma natureza que já antes dali foi excluída, abstrata e arbi- trabalho não existe senãosob a forma subjetiva da atividade": "Subjeti-
trariamente. O desenvolvimentolüstórico é um processogeral de hibri- vamente, isso significa que o tempo de trabalho do operário não pode ser
dação(de naturalização/humanização). Os "objetos híbridos"(ao mes- trocado diretamente contra nenhum outro."ts Para que essatroca geral
mo tempo forças naturais e sociais) e a compreensão da "ciência como se tome possível, "ele deve tomar uma forma diferente de si mesmo". Em
relação social" vão assim ao encontro da rejeição inaugural, desdeas uma palavra: tornar-se abstrato, objetivar-se, alienar-se,tomar-se traba-
Tesessob e Fe «bac#, do materialismopassivoe do atavismomístico. lho geral abstrato que faz dos indivíduos "simples órgãos do trabalho"
As categoriaspráticas de Marx são "híbridas" de matéria e de
i3 Ver a tal respeitoBruno Latour, Nows H'auons/amais éfémover e$,Pauis,La
conhecimento.
Découverte, 1991. Consultar igualmente os artigos de Bruno Latour e de Cathe-
rine Larrêre no número5 da Écologie et polfliqKe, 1991.
155. Ver Alfred Schmidt, l,e Coizcepf í4 Kart Marx, l.e Capa/al,livro 1, t. 1, op. cit.
is Karl Marx, Grw drisse, 1, op. cit., p. 153.

444 445
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Então, "o tempo é tudo, o homem não é nada". No capital, o morto apreendeo vivo.
"Quando muito, a carcaça do tempo.-" No trabalho, a vida rebela-seobstinadamente contra a morte que
Pela mediação do trabalho abstrato, o elemento vivo e individual a espreita.
de uma singularidade irredutível à abstração económica, toma-se medi.. Os desenvolvimentos, à primeira vista anedóticos,do Cáfila/ sobre
(&zcomum. Ele acabará se rebelando, pois, enquanto relação necessária a morte da jovem modista Mary-Ann Walkley ali encontram,ao contrá-
do homem com a natureza, "a força de trabalho de um homem é pura rio, perfeitamenteo seulugar. Essafenomenologiada vida e da morte no
e simplesmente aqui/o q e #á de z//uo em seu imdfuí'2 o". Ao insistir na campo do labor participa da desmistificaçãonecessária:"Para perceber
individualidade do vivente, Marx coloca o fundamento de toda resistên- melhor a lei da acumulação capitalista, devemos considerar por um
cia à universalizaçãoabstrata e formal. A "força vital" mostra-sesob a momento a vida privada [do traba]hador] e dar uma olhada em sua ali-
força de trabalho reduzida à sorte de mercadoria e submetida ao despo- mentação e sua moradia."i' Pois "esse mundo tem por base a existência
tismo da empresa. As categorias económicas nunca são portanto auto- do trabalhador", e o capital tem "pelo sanguedo trabalho vivo" uma
suficientes.O valor de uso nega-sdno valor de troca. A mudançada "sede de vampiro". A exploração é antes de tudo submissão e mutilação
teleologia vital em teleologia económica revira-se por sua vez. A impo- dos corpos vivos. De onde certos desenvolvimentos do Gzpíla/ que mais
tência da circulação para produzir uma valorização do valor remeteao parecemuma martiriologia do proletário torturado em sua carne.
laboratório secretoda produção,ou seja,ao laboralórío secretodo
corpo que produz mais-valia. A noção de "troca orgânica" ou de metabolismo(Sfo/7üecbse/) apa-
Michel Henry vê nisso o sinal de uma dissociação entre "uma esfera rece desdeos Ma scrilos de í844. Ela remete a uma lógica do ser
da aparência e uma esfera secretada subjetividade", onde o próprio vivo que contraria a causalidade mecânica e anuncia a ecologia nas-
capital seria produto.íó A capacidadedo homem vivo em produzir cente. Marx aí comparece pela herança da filosofia alemã da natureza
trabalho excedenteseria, em última análise,um fato "extra-económi- concebida como totalidade em movimento e unidade do sujeito e do
co", "o único fato extra-económico", como afirma Marx. Essa capa- objeto. Contemporâneos da vedação do Capffal, os livros de Jacob
cidade de dispor do tempo além da estrita exigência de reprodução Moleschott(Pbysíologie desSfo/7üecbse/i# PZanze#und Tlere#, 1851;
remeteria portanto a uma propriedade decisiva do vivente(da nature- Der Kreisla /des l,ebens, 1857; Die Eimbeff des Lebe#s, 1864) defen-
za). Essa exuberância do "trabalho vivo" convoca o enigma da deter- dem um materialismo científico-naturalista inspirado na filosofia da
minação natural: "0 trabalho é um fogo vivo que molda a matéria, natureza de Schelling. Eles analisam a natureza como um grande pro-
ele é aquilo que há de perecível e temporal nela, é a informação do cesso de transformação e de troca. Influenciado por essatradição, Marx
objeto pelo tempo vivo. [-.] O traba]ho vivo deve reapreender esses considera a troca orgânica entre o homem e a natureza, mediada pelo
objetos, ressuscita-losde entre os mortos e convertê-los de utilidades "fogo vivo" do trabalho, como "o nó estratégicodo ser social".t8
possíveis em utilidades eficazes. Lambidos pela chama do trabalho,
transformados em seusórgãos, chamados por seu sopro a preencher i7 Karl Marx, Le Capital, livro 1, t. 1, op. cit., P. 427.
i8 André Tonel, HPhilosophie de la praxis et ontologie de I'être social', cm
suas funções próprias, eles são também consumidos."
Idéologie, symbollq#e, onlologie, Paria, Éditions du CNRS, 1987. Alfred Schmidt
observa que esseconceito de troca orgânica introduz em Marx uma compreensão
ió Michel Henry, Àlan, # e p#f/osop#fe de la ráz/iré, Pauis, Gallimard, "Tel', nova das relaçõesdo homem com a natureza, estranha ao horizonte cultural das
1991,t.l, P. 241. Luzes (op. cit.) p. 112}.

446 447
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Em Hegel,a Naturezanão é um ser determinadoem si, maso O progresso não é condenado enquanto tal, mas por sua abstra-
momento da idéia alienadaenquanto abstraçãouniversal antes de vol- ção e seu formalismo. Com efeito: "Todos os progressos da civiliza-
tar a si mesmano Espírito absoluto. Mediação entre a Lógica e o Espí- ção ou, em outras palavras, todo aumento das forças produtivas so-
rito, ela própria se divide em três momentos que tendem à singularida- ciais, se se quiser, das forças produtivas do próprio trabalho --
de: o da mecânica, de onde ressaltam as categorias de espaço e de consideradas como resultado da ciência, das invenções,da divisão e
tempo, de matéria e de movimento; o da física, a que se articulam as da combinação do trabalho, da criação do mercado mundial, das má-
categorias do universal, do particular e do singular; e, por fim, o da quinas etc. --, não enriquecem o trabalhador, mas o capital, não fa-
física orgânica(o do ser vivo), que sesubdivide, na ordem de concretude zem portanto por sua vez senão aumentar o poder que exerce sua
crescente, em natureza geológica, vegetal e animal. De acordo com essa dominação sobre o trabalho, aumentam somente a força produtiva
filosofia da Natureza, mecânicae física são momentos da organicidade do capital. Como o capital é o oposto do trabalhador, leis progressos
concreta do ser vivo, e não o modelo acabado da racionalidade cientí- aumentam unicamente o poder objetivo que reina sobre o trabalho.'zü
fica. Do mesmo modo, a Vida pertence à lógica do conceito e, na lógica Essacrítica da imagem de progresso glorificada pela ideologia do-
do conceito, ao momento de consumação da totalidade: o da Idéia. minante não tem nada de acidental. Ela contradiz o lugar-comum de um
A lógica do (;zP/Za/percorre os momentos da produção(caracteri- Marx cientificista e produtivista, beatamente confiante no porvir garan-
zada por uma organização linear e mecânica do tempo), da circulação tido pelo sentidoda história: "0 conjunto do desenvolvimento,abar-
(caracterizadapor uma organizaçãofísica circular do tempo) e da re- cando ao mesmo tempo a gênesedo assalariado e a do capitalista, tem
produção global(caracterizada por uma temporalidade orgânica do ser como ponto de partida a servidão dos trabalhadores; o progresso que se
vivo). Ao longo dessasabstraçõesdeterminadas,o capital revela-sepou- realfm consisteem mzl(tzr a fOlHa de szi/lição, a conduzir a metamor-
co a pouco como um ser vivo, que além disso é "um vampiro". A con- fose da exploração feudal em exploração capitalista.":' Submetido à
corrência entre uma pluralidade de capitais evoca o metabolismo da determinaçãodo capital, o progressoconserva-se um progressoem
"troca orgânica". Assim, não é nada fortuito vermos se multiplicarem, potência, sob reservae sob condição,que não cessade negar-sea si
no livro 111,as metáforas do corpo e da circulação sanguínea. mesmo. Assim, "todo progresso na agricultura capitalista é um progres-
Essalógica do ser vivo não forma um bom par com a imagem so na arte não apenas de roubar o camponês, mais ainda de espoliar o
mecânicada engrenagem azeitadado progresso.Em ruptura com o se/o, todo progresso no aumento temporário da fertilidade do solo é um
otimismo tecnológico de seu tempo, Marx repele a idéia de um pro- progresso para a 7 ha a prazo das 6onles dessa/b#iZI(ücü". Mais geral-
gresso homogêneo andando com passos regulares no sentido da his- mente,"a produtividade do trabalho estátambém ligada a condições
tória. Insiste antes sobre "a relação desigual entre o desenvolvimento naturais cujo rendimento não raro diminui na mesmaproporção em
da produção material e, por exemplo, o da produção artística"; ou que a produtividade aumenta. De onde um movimento em sentido con-
ainda sobre o fato de que "as relaçõesde produção seguem,enquanto trário nessasesferas diferentes. Aqui, progresso. Ali, regressão".zzEste
relaçõesjurídicas, um desenvolvimentodesigual". Mais fundamental- trecho decisivo não secontenta em afirmar a ambivalência do "progres-
mente, ele recomenda "que não se tome o conceito de progresso sob
sua forma abstrata habitual".ÍP
soKarl Marx, Gmndrisse,op- cit., p. 247.
zi Kart Marx, Le Capffal, livro 1, capítulo XXVI.
i9 Karl Mata(, Gn'xf drisse, 1, op. cit., pp. 44-46. u Karl Marx, Le CaPlfal,livro 111,
t. 1, op. cit.) P. 272

448 449
MARX. O l NTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

se" capitalista. Ele a articula com a relação contraditória entre a explo- fator unilateral de progresso,independentementede sua imbricação
ração ilimitada e a exigência natural. Na medida em que o trabalhador concreta num modo de produção dado. Elas tanto podem enriquecer-se
conserva-se um ser natural, na medida em que matérias-primas, ferra- com conhecimentos e formas de cooperação sociais novas, quanto nega-
mentas e ambiente permanecem, em última análise, parte interessada da rem-se a si mesmas mudando-se em seu contrário, em forças destrutivas.
"troca orgânica", a determinaçãonatural continua a exercer seucons- Revelador da ideologia progressista que mina o movimento ope-
trangimento sobre a determinaçãosocial. Essaa razão por que Marx rário nascente,o fetichismo do trabalho ressaltada "fraseologia bur-
encara a anulação dos "progressos" da produtividade social pelo esgo- guesa". "Não é senão na medida em que o homem age como propri-
fame/zfo (üs "condições nzazurafs"e por seu "rendimento" decrescente. elárío re/affuame fe à al reza, essafonte primária de todos os meios
A finitude e a "dependência" do homem enquanto ser natural humano e materiais de trabalho, e a fraca como ob/eto que /be perra ce que
invocam-se assim duramente a ele: "De um lado, despertaram para a seu trabalho torna-se a fonte dos valores de uso, portanto da riqueza.
vida forças industriais científicas de cuja existência sequer se poderia Os burguesestêm excelentesrazões para atribuir ao trabalho esse
suspeitar em qualquer uma das épocas históricas precedentes. De Outro sobre af ra/ poder de criação: pois, já que o trabalho se acha na
lado, existem sfnlomas de decadê cia que ultrapassam em muito os hor- dependênciada natureza, segue-sedaí que o homem que não possua
rores que a história conheceu nos últimos tempos do império romano. nada além de sua força de trabalho será forçosamente,em qualquer
Hoje tudo parece carregar consigo sua própria contradição. Vemos que estado de sociedade e de civilização, o escravo de outros homens que
máquinas dotadas de maravilhosas capacidadesde abreviar e de tornar se terão erigido em detentores das condições objetivas de trabalho."
mais fecundo o trabalho humano provocam a fome e o esgotamento do Haveria entretanto "um hiato entre as premissasfilosóficas materi-
trabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertastransformam-se. alistas e a teoria da história, de um lado, e, de outro, certos conceitos
por um estranho malefício, em fontes de privações. Os triunfos da arte básicosda teoria económica".u Essesconceitos marcariam um recuo
parecem adquiridos ao preço de qualidades morais. A dominação da em relação às intuições críticas sobre as abstraçõesdo progresso. A
natureza pelo homem é cada vez maior, mas ao mesmo tempo o homem determinação natural tenderia a desaparecerna estrita determinação
se transforma em escravodos outros homense de sua própria infâmia. social das categorias económicas. Essa confusão teria desviado Marx da
Ele não é até ali a luz límpida da ciência que não possa brilhar senão compreensão, presente em certos textos, das crises ecológicas.
sobre o fundo tenebroso da ignorância. Todas as nossasinz/ençõese Tributários de seutempo, Marx e Engelsteriam em suma resistido
nossos progressos parecem dotar de vida intelectual as forças materiais, a admitir limites naturais. Na polêmica de ambos contra Malthus, eles
enquanto elas reduzem a vida humana a uma força material benta"la declaram que, ainda quando este último tivesse razão, seria urgentíssi-
ma uma transformação social para que se criassemas condiçõessociais
No julgamento em que é acusado de produtivismo, Marx não secom- de domínio dos instintos. Evitam assimpronunciar-se sobreo fundo da
porta propriamente como um réu dócil. Censuram-lhea ambiguidade questão demográfica. Engelscontenta-se em recomendar vigorosamente
da noção de "forças produtivas".2'Mas neleelas não constituemum sua redução à questão económica: "Graças a essa teoria, bem como à
economiaem geral, nossaatenção foi atraída para a força produtiva da
u Kar\ Matx, Speacb at tbe Annivetsary oftbe Peoples Paper, 1.8S6.
terra e da humanidade; e depois de ter desmontado essedesesperoeco-
24"A visão ecológica das condições da existência humana", escreveMarti-
nez-Allier, "teria podido ser facilmente ligada ao marxismo por uma definição
adequada das forças produtivas. Foi o que Marx não fez." zsTed Benton, "Marxism and Natural Limits", loc. cit

4S0 451
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

nâmico, achamo-nostranqüilizados para semprequanto ao temor do Enfim, a conceituaçãomarxiana do processode trabalho e das
superpovoamento." Ele reconhece limites sociais transitórios, inerentes indústrias de transformações permaneceria defeituosa. Por várias ra-
às "barreiras" que o capital cria para si mesmo, mas recusa os "limites zões,segundoTed Benton:
naturais" considerados como o álibi apologético da economia política.a a) a natureza material dos instrumentos e matérias-primas limita-
A redução das qualidades naturais da terra à função de "matérias- rá cedo ou tarde sua utilização-transformação em função de intenções
primas" interditada do mesmo modo o aprofundamento crítico dessa humanas;
categoria. Elas se inscreveriam assim na evolução instrumental de uma b) ainda que tais instrumentos sejam o produto de um processo
agricultura doravante subordinada ao processo industrial de produção: de trabalho anterior, nem por isso passam a depender menos, mesmo
"No processo de trabalho agrícola, diferentemente dos processos de de maneira mediada, da apropriação da natureza;
transformação, o trabalho humano não é utilizado para imprimir uma c) o próprio trabalho, enquanto consumo de força de trabalho,
transformação desejadaa uma matéria-prima. Ele é antes despendido permanecesob a exigência da determinação natural.
para sustentar e regular as condições de ambiente graças às quais as Mao( teria portanto subestimado a autonomia relativa das condi-
sementese o gado arrendado podem crescer e desenvolver-se.Há real- çõesnaturalmente dadas e não manipuláveis.28A censura pode sem
mente um momento de transformação nessetipo de processo de traba- dúvida basear seu argumento no credo produtivista expresso em certos
lho, mas as transformações são produzidas por mecanismos orgânicos textos de Engels: "Toda a esfera das condições de vida que cercam o
dados, não pela aplicação do trabalho humano. A agricultura e outros homem,e que também o dominaram, cai agora sob o domínio e o con-
processosde trabalho ecorreguladorestêm portanto uma estrutura in- trole do homem, que pela primeira vez toma-se o dono real e consciente
tencional que é muito diferente da do processode trabalho produtivo da Natureza, porque no presente ele se tornou o dono de sua própria
transformador."z7 Marx, ao contrário, teria assimilado todo processo organização social. As leis de sua própria ação social, que o encaravam
de trabalho ao modelo produtivo-transformador. Ora, se a caça, a co- como se elas Ihe fossem tão estranhas quanto as da natureza, serão
leta, a extração assinalam,à primeira vista, antes a produção do que a então utilizadas e dominadas por ele com uma plena compreensão."a A
ecorregulação, "nessas atividades, o lugar das matérias-primas princi- lógica instrumental da razão cartesiana toma aqui um impulso lírico.
pais e secundárias é ocupado por materiais naturalmente dados ou por O Sr. Hyde sob o Dr. Jekyll.
serescuja disponibilidade é absolutaou relativamente independentede
manipulações intencionais". Assim, a apropriação simples não transfor-
ma as condições naturais de que ela se conserva fortemente dependente.
EM BUSCA DA ENERGIA DISSIPADA

zóNo debate sobre a demografia, por ocasião de conferências mundiais sobre a


população, a discussão sobre Malthus conserva uma inegável atualidade. Con- Seriaderrisório esboçarà força de citaçõesum Marx produtivista
sultar a tal propósito Les Spectresde Mú/rb#s, coletivo, Paria, ORSTOM-EDl- contra um Marx ecologista antes da hora. É melhor instalar-seem
CEPED, 1991; C. Reboul, Monsfeur /e Capffal et Madame la Terra, EDl-INRA,
1989; Hervé Le Bus, Les l.Imlfes de /a pZanêre,Paras,Flammarion, 1 991; c ainda
o excelenteartigo de Maxime Durand, "Pour en tinir aves Malthus", Crillque 28 Ibid.
commumfsfe, n' 139, outono de 1994. 29Friedrich Engels, Socfúlisme #fopiqae et socfallsme scielzli/iq#e, Paras,
27Ted Benton, "Marxism and Natural Limits", loc. cit. Éditions sociales, 1960.

452 453
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

suascontradições e leva-las a sério. Desselugar problemático, estro. A reprodução social ampliada (que reveste, no modo de produção
tégias de leituras divergentesconfrontam-se. Seele participa de urn capitalista, a forma de acumulação do capital) baseia-separa Marx
otimismo científico e tecnológico ambiente, Marx não é nem um puro na prodigiosa capacidade da força de trabalho em fornecer mais ener-
visionário nem um simplesfilho de seuséculo.O ano em que elete.. gia do que consomepara sua própria reprodução. Ele não procura
mina o livro l do Capela/é igualmenteo ano em que aparece,eH entretanto elucidar essemistério.
Haeckel, a noção de ecologia. Socialistaucraniano, SergePodolinski publica em 1880, na Re-
Hoje a ecologia é definida como ciência dos ecossistemas, ou seja jsfa goela/isca,um breve artigo intitulado "0 socialismo e a unidade
dos subconjuntos, qualquer que seja o tamanho destes (pântano, lago, das forças físicas". Ele coloca a questão de frente: "De acordo com a
floresta), apresentando uma certa unidade funcional entre organismo teoria da produção formulada por Marx e aceita pelos socialistas,o
e biosfera. Seuobjeto emergelentamente à medida que se desenvolve trabalho humano, exprimindo-se a /ingKagemda/bica, acumula em
a ciência moderna: da "economia da natureza", proposta por Lineu à seusprodutos uma quantidade maior de energia que aquela que tev©
Mor/o/agia gera/ dos erga /!smas, de Haeckel, passando pelos estudos de ser despendida para a produção da força dos trabalhadores. Por
de Fraassobre a flora e o clima, pela crítica da agricultura moderna que e como se efetua essaacumulação?" E por que prodígio o traba-
por Liebig, pela compreensão do ser vivo em termos de interação lho humano pode funcionar por mais tempo que o tempo necessário
dinâmica em Wallace: "A carência se exprime, nas sociedadestoma- para a sua própria reprodução? Podolinski lembra as leis de distribui-
daspela dinâmica conquistadora e predatória do capitalismo, por uma ção da energiae a constância do fluxo solar. Acha-se no poder da
compreensão mais profunda da marcha da natureza para o confessa- humanidade "produzir certas modificações nessadistribuição da ener-
do objetivo de estendere aumentar a eficácia de sua exploração.A gia solar", pois o homem"pode aumentara quantidadede energia
ecologia vai nascer dessa necessidade e dessa carência. A idéia de que solar acumulada sobre a terra e diminuir a quantidade dispersa", es-
o mesmo equilíbrio natural rege a marcha da sociedade e a da natu- pecialmente melhorando a agricultura e a produtividade biológica da
reza vai fundar a ecologia,do mesmomodo que havia fundadoa natureza. A partir de um balanço energético da agricultura francessa,
ecollollllâ."JV eledemonstra que cadacaloria de trabalho despendidapara cultivar
Ernst Haeckel entende por ecologia "a ciência das relações dos um hectarede pradaria artificial devolve em troco, nas condiçõesde
organismos com o mundo exterior, no qual podemos reconhecer de produtividade da época,cerca de quarenta.
um modo mais amplo os fatores da luta pela existência". Nascida de Qual é portanto o favor multiplicador?
uma época antes confiante na ciência e no progresso, a ecologia vai De acordo com as leis da termodinâmica, embora a energia do
entretanto impor-se, ramificando-se em ecologia vegetal e animal, em universo seja constante, ela tende a dissipar-se. A entropia designa a
oceanografia e limnologia. A partir dos anos 1850-1 860, o impulso quantidade crescente de energia inconversível em outras formas de ener-
das teorias da energia desemboca na quantificação de seus fluxos. Ela gia. O primeiro princípio (de conservação da energia), formulado qua-
torna concebível a determinação da parte de energia solar intercepta- se simultaneamentepor Joule, Mayer, Helmoltz nos anos 1840, afirma
da pela Terra, dissipada novamente no espaço, e da parte que as plan- que a quantidade de energia de um sistema fechado é constante. O se-
tas podem transformar em carbonos. gundo princípio, entrevisto por Carnot a partir de 1824(A corça mo-
Irlz do gago) e formulado em 1865 por Clausius, afirma que toda trans-
30Jean-Paul Deléage,Hislofre de I'écologie, Paras,La Découverte, 1991, p. 58. formação de energia acompanha-se de uma degradação. Sem nunca ser

454 455
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

destruída(conservação quantitativa), a energia muda assim de forma substâncias vegetais, transformam uma parte dessa energia acumula- l
(dissipação qualitativa) até transformar-se em calor, sem que seja, in. da em trabalho mecânico, e eles o dissipam assim no espaço. Se a
versamente, possível transformar completamente essecalor em traba- quantidade de energia acumulada pelos vegetais fosse maior que a
lho.3i Podolinski não faz distinção entre sistema aberto e sistema fecha. dissipada pelos animais, ter-se-ia uma espécie de estocagem de ener-
do. Tampouco aborda a relaçãoentre termodinâmica e seleçãonatural gia, por exemplo, no período de formação do carvão-de-pedra, quan-
(embora ele tenha polemizado contra o darwinismo social). Aos seus do a vida vegetal era evidentemente preponderante em relação à vida
olhos, a pobreza não é o efeito de uma penúria energética, antes um animal. Se,em contrapartida, preponderassea vida animal, os estu-
fenómeno social ligado à desigualdadee ao desperdício. Ele oferece ques de energia seriam rapidamente dissipados e a própria vida vege-
tal deveria recuar até os limites fixados pelo reino vegetal. Haveria
todavia a hipótese de dois processos concorrentes, o dos vegetais que
acumulam a energia através da fotossíntese, o dos animais que a dissi. assimum certo equilíbrio entre acumulaçãoe dissipaçãoda energia:
pam. Haveria estocagem no primeiro caso, desestocagemno segundo. o balanço energético da superfície terrestre corresponderia a uma
Participando do processoanimal de desestocagem,o homem modifica- grandeza mais ou menos estável, mas a acumulação nítida de energia
baixaria a zero ou, em todos os casosde figura, a um nível muito mais
ria por seu trabalho útil o equilíbrio entre produção e acumulação de
energia. Sua força de trabalho e sua exploração estariam realmente na baixo que na época da preponderância vegetal."sz
origem da mais-valia na relação social, mas não constituiriam sua fonte Podolinski orienta-se assim para uma interpretação energética da
última. O trabalho humano agiria em última instância como simples produtividade do trabalho. Convencido de que o ser humano "tem a
conversorenergético.O produto excedentesocialteria assim por ori- capacidadede transformar um quinto da energiaacumuladapor as-
gem a desestocagem das energias vegetais e fósseis. similação de alimentos em energia muscular", ele qualifica essarela-
Numa carta a Marx de 8 de abril de 1880, Podolinski apresenta ção de "coeficiente económico". Daí conclui que o corpo humano age
sua iniciativa como "uma tentativa de harmonizar o trabalho exce- como um conversor de energia mais eficiente que a máquina a vapor:
dente e as teorias físicas atuais". Ele adianta a hipótese de uma rela- "A humanidade é uma máquina que não apenastransforma o calor e
ção recíproca entre energiae "formas de sociedade". Paralelamente outras forças físicas em trabalho, como também consegue,além disso,
realizar o ciclo inverso, isto é, transformar o trabalho em calor e outras
aos neoclássicos,examina os processoseconómicosde um ponto de
vista termodinâmico. A teoria da conservação da energia indica que o forças físicas necessáriasà satisfação de nossascarências, de modo
trabalho humano não pode tirar coisa alguma do nada, mas apenas que ela é por assim dizer capaz de aquecer o seu próprio aquecedor
modificar fluxos de energiaexistentespara adapta-los à satisfaçãodas por seupróprio trabalho convertido em calor." Desdeque a produti-
carências. Os seres vivos seriam portanto os agentes de um equilíbrio vidade energética do trabalho seja pelo menos igual ao coeficiente
precário entre acumulação(vegetal)e dissipaçãoda energia solar económico,ele poderia acumular uma quantidade de energiamaior
absorvidapelo sistemada vida: "Encontramo-nosaqui em face de
dois processos paralelos que constituem juntos o que se costuma cha- 'z SergePodolinski, "MenschlichcArbeit und Einheit der Kraft', Die Nele Zeil,
1883. Sobre Podolinski, além de Jean-PaulDeléage,vet Joan Martinez-Allier c
mar de o cic/o da t,ída(K eis/a /des l.ebelzs).As plantas têm a facul- Klaus Schlüpman, la ecologü y Lzeconomia, México, EFE, 1991; Martinez-Allier,
dade de acumular energia solar, enquanto os animais, nutrindo-se de "la confluencedons I'éco-socialismo', em L'idée d sacia/ismea-t-e/le at/e-
mir?,Acf#e/ Mare, Paria,PUF, 1991; e Tiziano Bagarolo, "Encore sur marxismo
ai Vcr Bernard Brunhes, l,a Diegradaffo# de /'énergie, Pauis, Flammarion, 1909. et écologie", Quafriême / fenzaffo ale, maio de 1992.

456 4S7
MARX. O INTEMPESTIVO

que a despendida para a sobrevivência Tal seriaa basematerial pri.


Y A ORDEM DA DESORDEM

partir de sua fmPodanlÊsima descobef'la, ele acabou cometendo um


medra de toda sociedade.33 erro, porque quis encontrar uma nova prova científica da justeza do
socialismo, misf#rando por isso /bica e eco/zomba."3óEmbora regozi-
Tido não raro como responsávelpelo desencontroentre crítica da jando-se com a importância da descoberta, Engels não está de acordo
economia política e ecologia, Engelsgoza da sólida reputação de rigo- com suas conclusões. O melhor e o pior mesclam-se nesseveredicto.
roso cientista.n Entre 1 875 e 1 886, .Afzli-Dübrjlzg, l,udmfg Fe e Óac&
! o fim da filosofiaclássica
aletnãe Dialêticada naturezatentam O primeiro motivo de desconfiançaé diretamente ideológico. Ele visa
formalizar uma unidade de método e de conteúdo, ao preço de incon- as extrapolações religiosas sobre "o decreto de morte térmica do
testáveis escorregões positivistas. "Ora, se deduzimos o esquema do universo" derivadas da teoria da entropia. Paralelamente à atualiza-
universo não do cérebro, mas do mundo real unicamente através do ção do discurso malthusiano sobre os limites naturais e às tesesraciais
cérebro, se deduzimos os princípios do Ser daquilo que é, não preci- de Haeckel anunciando a problemática do espaço vital, os sucessos da
samospara isso de filosofia, mas de conhecimentopositivo sobre o termodinâmica alimentam então, com efeito, especulaçõesmísticas. A
mundo e o que nele se produz, e o que resulta disso tampouco é filo- segundalei é especialmenteexplorada por uma teologia pessimista.
soíla, mas ciência positiva.nss A.Dialetica da natureza deve com. razão Contra essasvisões apocalípticas, Engels empenha-se em defender a
sua má fama à célebreformalização das "leis da diabética", "deduzi- permanênciada substânciamaterial. Ele adereao primeiro princípio
das" da naturezaedo credocientífico segundoo qual doravante"toda (de conservação da energia) enquanto recusa o segundo (sua degrada-
a natureza estende-sediante de nós como um sistema de encadeamen- ção progressiva). Considera a dissipação entrópica como uma aparên-
tos e de processos explicado e compreendido em suas grandes linhas" cia ligada aos limites provisórios do conhecimento. Caberia "aos sá-
Consultado por Marx sobre as tesesdo correspondente ucraniano. biosdo amanhã" descobrircomo "o calor irradiado no espaçodeve
Engels dá uma resposta categórica. Embora convencido de que o prin- necessariamente ter a possibilidade de se converter em uma outra forma
cípio de conservação da energia "torna necessária uma revisão de todas de movimento, sob a qual ele pode mais uma vez concentrar-se e voltar
as concepções tradicionais", rejeita entretanto as sugestões energetis- a tornar-se ativo. Cai dessemodo a principal dificuldade que se opu'
tas: "Eis como vejo a história de Podolinski: sua verdadeira descober- nha à reconversão de sóis mortos em nebulosas incandescentes".s7Essa
ta é que o trabalho humano é capaz de reter e de prolongar a ação do
sol na superfícieda terra além do que ela duraria sem essetrabalho. H Friedrich Engels, l.errres sur /es sciencesde la at re, Paria, Éditions socialcs,
Todas as consideraçõeseconómicas que ele retira daí são falsas... .4 1973, p. 103. Sobre Engels e a conservação da energia, ver o apaixonante artigo
de Éric Alliez e lsabelle Stengers, "Énergie et valeur: le problême de la conserva-
tion de I'énergic chez Engels et Marx', seminário do Collêge internacional de
s] Ver Joan Martinez-Allier e Klaus Schlüpman,la eco/agiay /a economfalop. philosophie,1984.
cit., PP.66-72. ' s7A conservação da energia coloca mais problemas do que os resolve: "Para
H Em l,e SlalKf marxlsfe de la p#l/osopbfe, op. cit., G. Labica chamou ju- alguns (o caso, por exemplo, de Poincaré c de Durem), a conservação da energia
diciosamente a atenção para as idéias recebidas e os lugares-comuns que tornam (há alguma coisa que permanececonstante) é um princípio de investigação cuja
dificilmente acessívela personalidadehumana e teórica no entanto decisivae verdadenão tem outra bitola senãoa fecundidade.Paraoutros (como Ostwald),
sedutora de Engels. Ele insiste sobre os riscos inerentes a uma pesquisa "marxis- a diferença qualitativa entre as diferentes formas de energia é irredutível e a
ta" que consideraa contribuição de Engelscomo acessória. mecânica não passa portanto de uma ciência entre outras. Há ainda os quc con-
ss Friedrich Engels, Anil-l)übtlng, OP cit. sideram que a conservação da energia implica a possibilidade de reduzir todas as

4S8 4S9
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

hipótese da energia perdida e recuperada não é em seu tempo Uma inclusive a promoção ao sfafus de "fato científico" daquilo que não
extravagância. Ela responde à dificuldade de conciliar a conservação era até então mais que uma hipótesefilosófica: a unidadede todo o
quantitativa e a degradaçãoqualitativa, como à de conjugar a pers- movimento na natureza. Mas ele se recusa obstinadamente a admitir
pectiva entrópica da termodinâmica e a perspectiva criadora da evo. os princípios de Clausius: "A atração e a força centrífuga de Newton
lução. Os físicos ainda se colocarão por muito tempo a questão de são um exemplo de pensamento metafísico: o problema não está re-
saber se pode existir uma reconcentração da enorme quantidade de solvido, mas apenascolocado, e isso é ofertado como uma solução.
energia irradiada em todos os sentidos.Alguns admitem de bom gra- Do mesmo modo, a perda de calor de Clausius." A lei da entropia
do a degradação num sistema fechado, mas interrogam-se sobre o fato aparece-lheclaramente como uma brecha por onde poderia insinuar-
de que o universo material seja precisamenteum sistema fechado. se o retorno do religioso. É um /eifmofiu das notas sobre a física na
William Thomson considera assim operações "impossíveis sob o im- Dia/ética da lzaf reza: "A questão de saber o que advém do calor
pério das leis a que estão submetidas as operações conhecidas que têm aparentementeperdido não é por assim dizer nitidamente colocada
atualmente lugar no mundo material". Mais geralmente, uma elite senãoa partir de 1867 (Clausius)." Engels considera que pode ainda
intelectual convencidada conservaçãoe cética diante da degradação escoar bastante tempo antes que ela seja resolvida, mas o será "tão
obstina-se no fim do séculoXIX a pensar que, se algo se perde todos certamente como se acha estabelecido que não ocorrem milagres na
os dias, ele será recuperado mais tarde, e que a energia dissipada se natureza e que o calor primitivo da esfera nebulosa não Ihe é transmi-
Feconcentfâfá.JÕ tido por milagre do exterior do mundo". O ciclo não se encerrará
Esforçando-se por assimilar as descobertas de Joule sobre a con- antesque "se tenha descobertocomo o calor irradiado volta a tornas-
versão do calor e os desenvolvimentos da geologia de Lyell, Engels se utilizável". Clausius demonstra que o mundo foi criado e que a
inclina-se por seulado pela "proposição de Descartes", segundoa qual matéria criada pode também ser destruída. De qualquer maneira que
"a quantidade de movimento no universo é constante". Ainda que a se apresente seu segundo princípio, "ele implica em todo caso que
prefira à de "força", ele acolhe com reserva a própria noção de ener- energia se perde qualitativamente se não quantitativamente": "0 re-
gia. De um lado, ela não apreenderiasenãoum aspectodo conjunto lógio do universodeveprimeiro ter sido remontado, depois elefunciona
da relação de movimento: a ação, mas não a reação; de outro lado, até o momento em que chega ao estado de equilíbrio; a partir desse
ela evocada de maneira duvidosa "algo exterior à matéria". Engels momento, só um milagre poderá retira-lo desseestado e repâ-lo em
compreende as transformações da energia como conversões entre di- movimento1"3P
versas formas de movimento, insistindo sobre a lei da "equivalência O que está em jogo é claro. Engels rejeita o segundoprincípio da
quantitativa do movimento em todas as suas transformações". Vê aí termodinâmica em virtude de suas possíveis consequências teológicas.
Ao condenar uma descobertacientífica em nome da suposta ideologia
formas de energia a uma única, a energia mecânica. Situada em seu contexto do sábio, ele acaba por se situar igualmente no terreno da ideologia. O
histórico, a descobertada conservaçãoda energianão apareceportanto suscetí- tom passa a ser o da profissão de fé: "É num ciclo eterno que a matéria
vel de constituir um modelo que outras ciências devessemseguir. Ela constitui semove [...] ciclo no qual todo modo finito de existênciada matériaé
antes mais um problema de que cada um dos protagonistas se apodera e se serve
igualmente transitório e onde nada existe de eterno senão a matéria em
para fundar sua concepção da ciência. Engels é um desses protagonistas" (É. Alli-
ez e 1. Stengen,"Énergic et valeur-.", loc. cit.).
38BernardBrunhes,l,a Dégradalio de /'éKergfe,op. cit., pp. 370-374. 39Fricdrich Engels,Z,erfressur /es sciefzcesde /a af re, op. cit., p. 292

460 461
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

etema mudança, em eterno movimento, e as leis segundo as quais ela $e vitais contrário às leis da termodinâmica.Alguns buscaramsalvar a
move e muda." Mas, "por.maior que seja o tempo necessáriopara que. compatibilidade das duas abordagens explicando a dinâmica da vida
num sistemasolar, as condiçõesda vida orgânica se estabeleçamainda pela conversão da energia dissipada em energia mental.
que sobre um único planeta; por maior que seja o número dos seres A contradição tem a ver, por um lado, com uma reduçãodo social
orgânicos que devam primeiro aparecer e perecer antes que tirem de seu ao físico, cujo perigo foi bem percebido por Engels.As teorias dos sis-
seio animais com um cérebro capaz de pensar e que encontrem por um temas abertos, da informação, da organização ofereceram depois ele-
curto lapso de tempo condiçõespróprias à sua vida, para em seguida Hentos de resposta à contradição então desconcertante entre a entropia
serem também elesexterminados sem misericórdia -- temos a certeza termodinâmica e a criatividade da evolução. A seleção natural seleciona
que em todas essastransformações,a matéria conserva-seeternamente os instintos sociais da mesmaforma como se comporta com os outros
a mesma, que nenhum de seus atributos pode jamais perder-se, e que. instintos, favorecendo o aumento da racionalidade e concedendoum
por consequência,seela deveexterminar um dia sobrea terra, com uma privilégio aos comportamentos de solidariedade e assistência:"É um
necessidadede bronze, sua floração suprema, o espírito pensante,é outro efeito da seleçãonatural que vem contrariar um outro efeito,
preciso com a mesma necessidade que, em qualquer outra parte, e a uma primitivo e mais bem reconhecido,pois se confunde com a própria se-
outra hora,ela o reproduza".40 leção, o qual tinha antes presidido pela eliminação dos menos aptos ao
Às tentaçõescriacionistasda termodinâmica, Engelsreplica por aperfeiçoamento da espécie. Passa-seassim da eliminação à proteção,
um credo cosmológicosobre a eternidadeda matéria. Viola assim da exterminação à assistência.Em sua própria evolução histórica, a
duplamente sua própria recomendaçãode não admitir a validade dos seleçãonatural acaba portanto por negar-sea si mesma." Trata-se do
conhecimentos científicos senão relativamente ao seu campo de apli- que Patrick Tort chama de "efeito reversivo" ou "subversão sem ruptu-
cação: "Toda a nossa física, nossa química e nossa biologia oficiais ra" no seio da lógica seletiva estendida ao homem.4z
são exclusivamentegeocêntricas,praz/iscassome#lepa a a l€7r#."4i De modo mais geral, a evolução neutraliza ou corrige parcialmente
Estesaudávelprincípio deveriater tudo para leva-lo a admitir as leis as tendênciastermodinâmicas. O Caciforez/ersiz/opermite assim olhar de
de Clausius à escala dessesistema (fechado), sem especular sobre uma frente as conseqüências ecológicas do consumo acelerado de energias
eventual recuperaçãoda energia dissipada à escala de um sistema não renováveis sem se resignar à fatalidade, em nossa escala de espaço
(aberto) mais vasto, cujas leis específicas seriam (ainda) desconheci- e de tempo, de uma morte térmica inelutável. A fotossíntesevegetal não
das. A teoria da evolução teria podido trazer-lhe, além disso, argu- utilizaria mais do que cerca de 1% da energia solar, o sistemaindustrial
mentos úteis contra a visão de um universo reduzido a cinzas. Quan- dissiparia sem utilidade mais de 50% da energia consumida, e somente
do, em 1852, William Thomson publicou seumomentoso artigo sobre 10% a 20% do dispêndio energético seriam justificados em relação às
"a tendência universal à dissipação da energia mecânica na nature- metas desejadas.Pode-se portanto imaginar que um efeito reversivo li-
za", a lei da evolução implicava, de acordo com Darwin, uma melhor gado ao desenvolvimento da informação(ao saber e à cooperação so-
adaptação às condições de ambiente na corrida para a vida. Os físicos cial) permita contrariar as tendênciasentrópicas por um melhor rendi-
por sua vez mostraram-se reticentes diante desseaumento das forças mento do consumo energético, pelo recurso às energias renováveis, por
um dispêndio mais lento que a recuperação dos estoques.
40lbid., p. 291.
4i Friedrich Engels, Dia/ecffg e de Zanal re, op. cit., p. 241. 4z Patrick Toro, La Ralso# classe/icaloire, Pauis,Aubier, 1991, pp 406-408

462 463
MARX. O INTEMPESTIVO
A ORDEMDA DESORDEM

TRABALHO FÍSICO.TRABALHOSOCIAL
Em 1778, a dissertação de Coulomb sobre .A 607'ça dos bomems
visa a "determinar a quantidade de ação que os homens podem for-
A segunda crítica de Engels é de ordem epistemológica.
necer por seu trabalho cotidiano, de acordo com as diferentes manei-
No mesmo sentido de sua polêmica contra o materialismo vulgar de ras com que eles empregamsuas forças". Trata-se, num processo de
Büchner ou de Moleschott, ele censuraPodolinski por ter querido "encon- racionalizaçãodo trabalho, de medir não os desempenhosexcepcio-
trar uma nova prova científica da justeza do socialismo". O que sejoga e nais, mas as capacidades ordinárias do homem médio ao realizar uma
decide na luta de classesnunca é redutível a uma querela de especialistas, "honestajornada de trabalho". A medidasocial do valor impondo
por mais que eles intervenham para defender a inocência da técnica ou progressivamentesualei pela abstraçãodo trabalho (a média de Cou-
para fundar cientificamente uma política ecológica. SeMarx anunciou em lomb) é assim levada à sua quantificação física, com a preocupação
várias oportunidades a vocação das ciências sociais e naturais para se fun- declarada de maximizar a relação efeito/fadiga que exprime a eficácia
direm numa "única ciência" histórica, essatendênciaé um processode económicado trabalho. É com efeito a fadiga /bica, e não a força
longa duração. No imediato, Engels recusa-se a "juntar a física e a econo- social de trabalho, que se pretende então retribuir. Exceto no caso em
mia", a confundir as noções de "forças" específicas a uma e outra, a "apli- que se conceba o homem como uma máquina de converter energia,
car à sociedadea teoria das ciênciasda natureza". Desconsiderandoque nada mais permite entretanto avàliá-lo senão o metabolismo mercan-
se possamavaliar em "joules" a mão-de-obrae o capital, ele combate o til que determina a "jornada normal" de trabalho.+
dogmatismo energéticona moda(em que seinspiram Walras e os neoclás- A admiração fisicalista do começo do século XIX corre em socor-
sicos) e a redução dos indivíduos a simples conversores energéticos. ro da economia clássica. Buscando uma medida comum para traba-
O erro de Podolinski residiria portanto numa tradução abusiva da lhos diferentes, Navier a ela se refere como uma "moeda mecânica"
economia para a linguagem da física. Suaengenhosa hipótese contribui que permite medir a capacidade de uma máquina independentemente
ativamente para a refutação do materialismo vulgar e de "sua preten- do conteúdo do trabalho realizado. Em contrapartida, Coriolis come-
são em aplicar à sociedade a teoria das ciências da natureza". Em .Afzfi-
ça por distinguir o formalismofísico da significaçãoeconómica.O
Dübríng e em suasnotas para um "Anta-Büchner"(DiaZélica da #alzl- trabalho é antes de tudo a "justa medida da ação das máquinas, e o
reza), Engelschocou-seefetivamentecom a confusão entre física e rendimento em trabalho útil, a de sua eficácia". Utilizado para desig-
economia. Abrindo caminho para o conceito de energia e para a termo- nar tanto o esforço quanto o resultado do esforço, o termo trabalho
dinâmica, a própria noção de trabalho apareceu na física dos anos 1 820
para pensar a economia das máquinas.43Ela articula então teoricamen- H Este ideal físico é bem ilustrado pela dissertaçãode Lavoisier publicada em
te física e economia ao procurar medir a produção e o dispêndio dos 1789 pela Academia das Ciências: "Pode-se conhecer a quantas libras em peso
correspondem os esforços de um homem que pronuncia um discurso, de um música
homens e das máquinas, a fim de otimizar o desempenho de ambos.
que toca um instrumento. Poder-se-ia mesmo avaliar o que há de mecânico no
Reata assim com a problemática de uma grande mecânica universal trabalho do filósofo que reflete, do homem de letras que escreve,do músico que
presente na argumentação leibniziana sobre as forças vivas. compõe. Tais efeitos, considerados como puramente morais, têm qualquer coisa
de físico e de material que permite, sob essarelação, compara-los com o homem
que realiza um trabalho braçal. Não foi portanto sem alguma justeza que a lín-
" A noção de trabalho foi introduzida oficialmente em física por Coriolis em gua francesa confundiu, sob a denominação comum de trabalho, tanto os esfor-
1829. Ver a esterespeito o precioso estudo de François Vatin, l,e Trai/ail, écono- ços do espírito quanto os do corpo, o trabalho de gabinete e o trabalho do mer-
mie ef pbysfqwe,í 780-] 830, Pauis,PUF, 1993. cenário.

464 465
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

conserva-seambíguo. Seo trabalho seconserva fisicamente, uma parte Essetambém é o motivo por que, diferentemente de Marx, ele insiste
é perdida economicamentena medida em que ele se degradaao rea. sobre a distância mantida entre ciência da natureza e "ciência" do ho-
gizarseuefeito produtivo.'s Tocamosassimos limites do projeto físi- mem, determinação social e determinação natural. A crítica da economia
co-económico dos engenheiros baseado no saber mecânico das Luzes. política mantém-separa ele do lado da história e da cultura. Na medida
Confrontados com o impulso capitalista, seusconceitos são estendi- em que as ciênciasda complexidade(teoria dos sistemase teorias do
dos ao máximo de suaspossibilidades,exigindo o advento do novo caos) privilegiam um novo paradigma holista do sabercientífico, a que-
pensamento termodinâmico: "0 tratamento da questão do tempo acha- rela pode parecer fora de moda. No século passado, a defesa intransigen-
se no âmago desta passagem,através da economia, da antiga à nova te da relação específica de uma ciência com o seu objeto participa de uma
física... Pensar a transformação da força viva em trabalho é, com efei- luta necessáriapara emanciparos procedimentoscientíficos de seuinvó-
to, conceber um processo irreversível, uma transformação energética, lucro ideológico.Contra os lugares-comuns,convémportanto recom-
que não conseguiria, mesmo teoricamente, operar sem perda. Catego- pensar Engels quando ele recusa a fusão da economia e da física em
ria do pensamentofísico-económicoe não propriamente físico, o con- nome de uma admiração energetista apressadaou quando se insurge
ceito de trabalho pressupõea seta do tempo que em breve a termodi- contra a extensão spenceriana da "luta pela vida" às ciências humanas.
nâmica conceltuará."" Seu discurso inscreve-se ainda na grande divisão entre ciências da natu-
Propondo determinar a "quantidade de ação" enquanto grandeza reza e ciências humanas ou sociais (ele fala da economia política como de
fisiológico-económica pelo trabalho braçal, Coulomb mistura materia- uma "ciência histórica") que então domina a classificação das ciências.
lismo mecanicistae simbólica bíblica. Marx se coloca, ao contrário, na As "ciências da natureza"(mecânica, física, química) têm por objeto "o
contradição social da quantificaçãoda força de trabalho, ao mesmo estudo das diferentes formas do movimento".47 A mecânica só conhece
tempo necessáriado ponto de vista do trabalho abstrato e impossíveldo quantidades, a física e a química afrontam a conversão de quantidade em
ponto de vista do trabalho concreto. A despeitodas similitudes formais qualidade. O organismo vivo é "seguramente a unidade superior que
com a moeda mecânicade Navier enquanto "dispêndio de força huma- engloba em um todo mecânica, física e química, na qual a trindade não
na", seu conceito de valor-trabalho muda então de terreno e rompe a pode mais ser dissociada". O problema é precisamentecompreender
equivalência entre física e economia, integrando a dimensão energética como conhecimentos complexos, tais como a crítica da economia políti-
à dimensão social. Se se conservao objetivo de encontrar uma medida ca, a ecologia,a história, articulam os saberesque a razão classificatória
comum entre as mercadoriasheterogênease a mercadoria força de tra- separa. A julgar pelos seus trabalhos, Engels parece mais inclinado que
balho, a crítica da economiapolítica constrói-secontra a confusão entre Marx a respeitar a autonomia das ciências exatas e positivas. Depois de
física e economia. Compreende-semelhor desde então a vigilância de sua retirada dos negócios comerciaise sua instalação em Londres, ele
Engels em face do que Ihe parece uma recaída e uma regressão teóricas. anuncia ter empreendido "uma operação de muda" completa "em ma-
temáticas e nas ciências da natureza".'8 Contra toda tentação idealista,
+' François Vatin, l.e Trauaf/--, op. cit., p. 78. Coriolis percebe a degradação ele mantém todavia que o conhecimentocientífico, inclusivea matemá-
económica do trabalho quando a física ainda ignora a lei da entropia. Ele é assim tica, está enraizado na história pela mediação das carências humanas.
levadoa estabeleceruma preciosadistinção entre o próprio trabalho e a "facul-
dade de produzir trabalho", que anuncia a distinção decisiva entre trabalho e
força de trabalho. 47Carta a Marx de 30 de maio de 1873.
« Ibid., P. 91. 41Friedrich Engels,introdução ao Abri-Dübring, op. cit

466 467
MARX. O INTEMPESTIVO
Y A ORDEMDA DESORDEM

Em suma, Engels censura Podolinski por querer traduzir a economia No quadro específicode um modo de produção historicamente
para a linguagem da física e novamente confundir a noção física de tra- determinado, a hipótese de Podolinski não ameaça portanto a teoria
balho (enquanto "medida do movimento") com seu conceito social. do valor-trabalho. O capital acumulado é realmente a cristalização de
Essa crítica ressoa as polêmicas de Marx (especialmente na "Crítica do um trabalho não pago. Essaabordagem permite esclareceros impul-
Programa de Gotha") contra a idealização simplista do trabalhador sos e a dinâmica do conflito social, distinguir interessesantagónicos,
manual, sob o pretexto de que seu tllabalho teria a miraculosa faculdade tomar partido. À luz dos princípios da termodinâmica,Engelsrecusa
de produzir a riqueza enquantoproduto quasenatural do que, antes, categoricamente qualquerteoria energéticado valor segundoa qual
enquantoproduto social. O laço entre o trabalho fornecido e a justa "a contabilidade energética forneceria uma base científica à teoria do
repartição social dos bens pode levar a um socialismo ilusório da distri- valor-trabalho":4P "A medida do valor energético de um martelo, de
buição em lugar de examinar fundo as raízes da exploração. um parafuso ou de uma agulha, de acordo com os custos de produ-
Engelsreage tanto mais vivamente quanto mais a termodinâmica. ção, é uma impossibilidade total. Em minha opinião, é absolutamente
transposta sem precaução para o campo económico, pode ameaçara impossível querer exprimir as relações económicas em unidades de
teoria do valor-trabalho. Ele cuida em preservar a distinção entre tra- medida da física." Mas uma determinação não suprime a outra. Elas
balho económico e trabalho mecânico. Havendo registrado os laços operam em níveis diferentes. A validade da teoria do valor no quadro
de família formais entre as teorias da energia e a do valor, ele compre- de relações de produções específicas não elimina o interesse dos ba-
ende realmente que a confusão das duas poderia levar, por extensão lanços energéticosem uma outra escala de duração.
da lei da entropia, à idéia de uma mais-valia negativa, de uma perda A relação conflitual de classe formaliza a contradição subjacente
pura e simplesque ameaçasse
a própria coerênciada relaçãode ex- entre estocageme desestocagemde energia, o trabalho humano de-
ploração enquanto resposta ao enigma do lucro e da acumulação. Pela sempenhando o papel de conversor. Da mesma maneira que a aboli-
quantificação energéticada troca social, pode-secom efeito chegar-se ção da exploração de classenão significa mecanicamenteo fim da
à conclusão de que o trabalhador consome mais energia do que é capaz opressão de sexo, assim também o desfecho do primeiro conflito não
de recuperar pelo seu trabalho produtivo. Neste caso, o mistério da é suficiente para resolver essa contradição. Em outras palavras, as
acumulação conservar-se-iaintegral, a menos que ela fosseconcebida tormentas ecológicasnão assinalam unicamente o caos da concorrên-
como uma mera antecipação física e uma desestocagemdas reservas cia capitalista. O ecocida burocrático é capaz de desastrespelo menos
naturais. Refutando pelo absurdo as hipóteses de Podolinski, Engels equivalentes. Sea ecologia radical é necessariamenteanticapitalista,
acentua que o homem não conseguiria desenvolver pelo seu trabalho este necessário não é, com toda a certeza, suficiente.
uma energia superior à que se acha contida em seu consumo, seu ren- Essascríticas desviaram Engels de hipóteses fecundas. E isso é tanto
dimento energético sendo necessariamente inferior a 1. A atividade mais lamentável quanto ele próprio chegou a fisgar uma problemática
económica pode perfeitamente conduzir a uma produção energetica- ecológica. Em seu famoso texto Sobre o pape/ do íraba/bo na Irams-
mente superior ao trabalho humano despendidanão em virtude da lormação do manco em comem, ele chega a escrever:"Não nos van-
produtividade energéticaprópria do homem,mas pela exploração gloriemos muito de nossasvitórias sobre a natureza. Ela se vinga em
sacia/ da força de trabalho, a antecipaçãoe a conversão de outros nós de cada uma delas [...]. Assim, a cada passo os fatos estão nos
recursosenergéticos,cuja apropriação e repartição são socialmente
mediadas pela organização do trabalho. +9Friedrich Engels, introdução ao Abri-Dübrfng, op. cit., p. 69

468 469
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

lembrando que de modo algum reinamos sobre a natureza como um questão de uma "medida comum" entre resultados imediatos e efeitos
conquistador exerce o seu poder sobre um povo estrangeiro, como longínquos, Engels levanta o espinhoso problema da comensurabili-
alguém que estivessefora da natureza, mas sim que Ihe pertencetnos dade das carências e das riquezas entre gerações. O cálculo energético
com nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro, que nos achamos eR não teria como trazer só por si uma resposta. Pode em compensação
seu seio e que todo o nosso domínio sobre ela reside na vantagem que fornecer preciosas indicações.sz
temos, sobre o conjunto das demais criaturas, de conhecermos suas Nos anosvinte impõe-sea idéia de um processotermodinâmico
leis e de podermos nos servir judiciosamente delas [-.]. E, sendo as. duplo (acumulação e dissipação da energia solar), caracterizando es-
sim, mais os homens não apenas sentirão, como também saberão truturalmente uma comunidade ecológica. Os pesquisadoressoviéti-
novamente que eles formam uma só coisa com a natureza, e mais se cos acham-se então na ponta de um pensamento em gestação. Em 1926,
tornará impossível essaidéia absurda e antinatural de uma oposição Vladimir Vernadski estuda em A biosfera a vida terrestre enquanto
entre o espírito e a matéria, o homem e a natureza, a alma e o corpo totalidade. Por esselivro, ele passaa serconsiderado o pai da ecologia
[.-]." E]e exprime assim uma consciência aguda das ambivalências do global. Em 1930, a obra foi objeto de uma resenhaassinadapor
progresso: "Cada progresso na evolução orgânica é ao mesmo tempo Raymond Queneau na revista A cr#fca socfa/. Queneau acentua "a
um recuo, pois, ao fixar uma evolução unilateral, ele exclui a possi- importância do estudoquantitativo da vida em suasrelaçõesindisso-
bilidade de evolução em muitas outras direções."se O progresso não lúveis com os fenómenosquímicos do planeta". Vernadski chama a
é portanto mensurável em termos de avanços e dc recuos, sobre o eixo atenção para uma degradação inquietante que não seria solucionada
uniforme do escoamentotemporal, mas antes, em termos comparati- senão através da mudança dos modelos alimentares e das fontes de
vos, possíveis temporariamente abandonados e virtualidades perdidas energia. Numerosos institutos de pesquisa e de ensino consagrados à
para sempre. ecologia foram então abertos na jovem república soviética.
'll O desenvolvimento nunca é um simplesaumento quantitativo. Ele Em 1930, o quarto congressopan-russo dos zoólogos registra "a
11é sempre também uma escolha. extraordinária importância da ecologia não somente por suas aplica-
Desde então, o progresso não teria como reduzir-se a uma pesa- ções, mas também do ponto de vista teórico". O congresso recomenda
gem de ganhos imediatos, indiferente às perdas a médio e longo pra- então que a nova disciplina ganhe um lugar nas escolassuperiores de
zo. Ora, o capital leva ao cúmulo a racionalidade unilateral dos mo- agronomia e de pedagogia. Em 1931, D. N. Kasharov publica um com-
dos de produção passadosque "não visaram senão a atingir o efeito pêndio sobre a ecologia das comunidades, Mlefo amóienfe e corou/zf(&z-
útil mais imediato do trabalho: deixavam-seinteiramentedc lado as des,e estimula a criação de uma publicação periódica dedicadaà eco-
conseqüências longínquas, aquelas que só intervinham em seguida, logia e à biocenologia.Os trabalhos de Gausesobre as populaçõese os
que só entravam em ação por causada repetição e da acumulação nichos ecológicos estudam "a estrutura dinâmica e evolutiva das comu-
progressiva". Com efeito, "tanto em relação à natureza como à soci- nidades vivas, em toda a riqueza das estratégias de suas diversas popu'
edade, não se considera principalmente, no modo de produção atual, lações: ataque, defesa, esquiva, fuga, cooperação, simbiose, parasitismo
senão o resultado mais próximo, o mais tangíuei".sl Co\orando a szWilhelm Ostwald tentou, em nome do imperativo energético,redefinir o pro-
gresso como o aumento da disponibilidade de energia, a substituição da energia
seFriedrich Engels,Dfalecffq#ede la ar#re, op. cit., p. 316. humana por outras energias alternativas e o aumento do rendimento termodinâ-
n Friedrich Engels, Dia/ecifq e de / ature, op. cit., pp 182-183 mico na utilização da energia.

470 471
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

etc.".s3Se os trabalhos de Vemadski e de Gause foram conhecidos e -- Enfim, uma certa idéia de interdependência entre o homem e
reconhecidos quase imediatamente fora da União Soviética, o mesmo a natureza, uma consciênciade sua dupla determinação social e natu.
não aconteceuno casodo ucraniano Vladimir Stanchiski. Ele parte do ral, teria batido de frentecom o voluntarismo burocrático que acaba-
fato de que "a quantidadede matériaviva na biosfera é diretamente va de decretar que o homem era "o capital mais precioso"
dependenteda quantidade de energiasolar transformada pelas plantas A nascente ecologia soviética conheceu portanto a sorte do art
autotróficas" que constitui "a baseeconómicado mundo vivo". A pró. nouueazí,do desurbanismo, da pedagogia de vanguarda. Depois do
peia biosfera seria composta de subsistemas(biocenoses). O equilíbrio Termidor burocrático, já não se trata de mudar a vida, mas de "agar-
dinâmico de cada biocenose seexplicaria pela existência de relaçõesde.. rar e superar" os desempenhosdo próprio capitalismo, de acordo com
finidas e proporcionadas "entre os componentesautotróficos e hetero- a máxima competitiva do produtivismo industrial e esportivo.
tróficos, entre os herbívoros e os camívoros, entre hospedeiros e parasi- Acurados leitores haviam no entanto entrevisto as perspectivas
tas", praticamente ignorados até então. Num artigo de 1931, Stanchiski abertas. Na apresentação de Vernadski, Queneau insiste sobre as
apresenta um modelo matemático que descreveo balanço energético diferençasentre o tempo biológico e o tempo astronómico.Num
anual de uma biocenoseteórica.HSuaaventura intelectual é rompida a outro número de A críflca socfa/, o economista austríaco Julius
partir de 1933. Vítima de perseguiçõesburocráticas, caiu em desgraçae Dickmann busca uma relação entre "o esgotamentodos recursos
foi preso,e suasidéias foram por muito tempo mantidas em segredo. naturais" e a brutalidade das reviravoltas sociais que sacodem en-
Essa ecologia pioneira no país dos sovietes, cuja riqueza foi ma- tão o planeta. Ele chega a sugerir que o socialismo seria não o re-
nifestada pelo CongressoInternacional de História das Ciências e da sultado de um impulso impetuoso das forças produtivas, mas antes
Tecnologia de 19311,teria podido participar da "transformação do uma necessidade imposta pela "diminuição da reserva de recursos
modo de vida", promessa dos anos vinte. Não escapou entretanto à naturais" dilapidados pelo capital. Ele acentua as relações de repro-
reação burocrática. Por razões, aliás, compreensíveis. dução global: "É precisamenteporque se negligencia o ponto de vista
-- Uma ecologia consequentenão teria condições de coabitar com da reprodução que nos achamos completamente enganados quanto
os delírios produtivistas da coletivizaçãoforçada e da industrializa- à capacidadede crescimento das forças produtivas."ss O que, se-
ção acelerada, nem com o frenesi stakhanovista dos anos trinta. gundo ele, caracteriza a fase atual do capitalismo são menosos seus
-- Ela teria obrigadoa pensaro desenvolvimento da economia entraves ao impulso das forças produtivas do que o desenvolvimen-
soviética dentro das exigênciasde seu meio ambiente mundial, no to "irrefletido"em detrimento de suas "condições de reprodução
próprio momento em que os ideólogos do regime inventavam "a cons- permanente", que mina as próprias condiçõesde existência do gê-
trução do socialismo num só país". nero humano. Essa a razão por que haveria ocasião de considerar
-- Ela teria exigido uma verdadeira escolha democrática sobre as com muito ceticismo a eventualidade de um crescimentocontínuo
prioridades e o modo de desenvolvimento,em contradição direta com da produtividade do trabalho.
a cristalização dos privilégios burocráticos e o confisco do poder.

ssJean-Paul Deléage, Hisfolre de I'écologie, op. cit., pp. 166-172. ssJuliusDickmann,"La véritablelimite de la productioncapitalista",La Criti-
s' Ver Jean Batou, "Révolution russe et écologie(1917-1934)", XXême slêcle, que soclale, n' 9, setembro de 1933. A resenha de Queneau sobre Vernadski foi
35. 1992 publicada em outubro de 1931 no número 3 da mesma revista.

472 473
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

DESRAZÕES ECOLÓGICAS DA RAZÃO ECONÓMICA Nem por isso o debate chega a seu fim.
Os estudos da biosfera tendem a mostrar a vulnerabilidade de seus
Proposta por Raymond Lindeman em plena guerra mundial, a noção equilíbrios e de suassintonias finas. Assim, a emancipação da exigên-
de ecossistema (enquanto unidade das trocas de energia na natureza) cia natural (que reivindicamosaltivamente como nossaliberdade)
inaugura a era da ecologia moderna. O laço entre a mundialização da arrisca-sea ser paga por um desregulamento irremediável. Mas deve-
economia e a emergência de uma "ecologia-mundo" é evidente: «A sepor issoconsiderar adquirida a idéia de um fluxo limitado de matéria
constituição de um espaçoprodutivo mundial é portadora da unifica- e de energia disponível?
ção ecológica do mundo." Essatendência favorece a tomada de cona. Na hipótese segundo a qual o dispêndio de energia animal ou
ciência crescente dos riscos de ruptura nos processos bioquímicos, nas humana desestoca energia solar acumulada sob a forma de energia
perturbações climáticas, nas evoluçõesdemográficas. "A civilização vegetal ou fóssil, as escolhas industriais, a evolução demográfica, os
humana comporta uma série de processos cíclicos interdependentes danos já provocados aceleram vertiginosamente essa desestocagem.
que trazem todos a marca de uma tendência ao crescimento indefini- Nem por isso resulta daí que estejamosameaçadosde penúria energé-
do -- todos, com exceçãode apenasum: o processonatural, insubs- tica absoluta. À escalada espéciehumana, o fluxo de energia recebida
tituível e absolutamente essencial,da contribuição dos recursos pro- bastaria para responder a dispêndios em expansão até a extinção dos
venientesdas riquezasminerais e terrestrese da ecosfera. Um conflito fogos solares ou o Big Crunch. A penúria anunciada é portanto rela-
entre essatendência dos setores da atividade humana, que, no interior tiva. Se for verdade que a energia é também "tempo estacado", trata-
do ciclo, buscamprogredir nele,e os limites intransponíveisdo setor se realmente de um problema de temporalidades. O risco não é o de
da natureza torna-se então inevitável."só Num contexto marcado pela uma pane repentina, mas o do esgotamento de certas formas de ener-
recessão, pela Guerra dos Seis Dias, pela alta do preço do petróleo, os gia, desestocadas
de maneira muito mais rápida do que o ritmo de
anos setenta caracterizam-sepor uma tomada de consciência ecolo. reposição. Evidentemente, tudo isso já se mostra bastante grave para
gasta,pelos apelos de fora-da-lei rebeldescomo René Dumont, assim que se considerem políticas energéticas, escolhas de caminhos, a pri-
como pelos alarmes oficiais do Clube de Romã. Nossascivilizações oridade dada às energiasrenováveis,todas questõesde primeira im-
começam a lembrar-se de que são mortais. portância. Mas não é uma razão suficiente para ceder às ideologias
Hoje é claro que os modelos de crescimento e de consumo dos crepusculares e às robinsonadas. É sempre possível que a humanidade
paísesmais ricos não se estendema todo o planeta. A produção de descubra e defina outros modos de consumo.
uma caloria alimentar consome nessespaíses oito a dez calorias fós- Enquanto se espera, uma autolimitação consciente e consentida
seis. Nesse ritmo, o risco de "crise ecológica" torna-se praticamente dos dispêndios é perfeitamente plausível (e indispensável). O proble-
inelutável: "Quando as temporalidadesda história humanasuperam ma reside de forma clara nessa consciência e nesseconsentimento.
as temporalidades da história ecológica, limiares são então definitiva- Nenhuma escolha ecológica consequente teria com efeito como aco-
mente escancarados na não-reproduçãodosecossistemas ou para sua modar-se à perpetuação das desigualdades,onde o sacrifício reclama-
entropia crescente."s7 do a uns compensada e desencargaria a irresponsabilidade consentida
aos outros.
sóB. Commoner, citado por Deléage,Hlsfoíre dr I'Écolo81e,op. cit., p. 270. Para além das peripécias eleitorais, o debate ecológico tem o mérito
s7Jcan-PauIDeléage,op.cit.,p.250 ' ' '' de colocar brutalmente questões de sociedade essenciais. Certas res-

474 475
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Os eventosecológicosdependemde uma longa, e até mesmode


postas com efeito, são não apenascríticas quanto ao produtivisma
uma muito longa duração. Uma medida comum entre seu registro tem-
capitalista ou burocrático, mais visivelmente antiprodutivistas e natu-
ralistas. Sualógica poderia assim conduzir a lamentar que os progres- poral e o da troca social num determinado modo de produção não é
uma coisa evidente. Desencorajado por essaincomensurabilidade, Jean-
sos da medicina, ao erradicar tal ou qual doença, falseiem a regulação
demográfica natural, já que, afinal, não se acha escrito em nenhum Baptiste Say abandonava os recursos naturais a um além inacessível
lugar que a humanidade tenha interesseou prazer em viver cada vez para a racionalidade económica: "As riquezas naturais são inesgotá-
mais velha e cada vez mais numerosa. Nessesretornou de arrependi- veis, pois sem issonão as obteríamos gratuitamente. Não podendo ser
multiplicadas nem esgotadas,elas não são o objeto das ciências eco-
dos a uma natureza nutria, nem sempre a religiosidade está muito longe.
O perigo não é novo. Em 1850, Marx comenta na Napa Gazela nómicas." Esse raciocínio é perfeitamente circular. Se as riquezas
naturais são gratuitas, isso aconteceporque elas não são raras. Senão
Renamoo livro de Daumer, Dfe Re/!gfolzdes BebemWe/fa/leis, típico
de um medievalismo nostálgico. Anatureza e a mulher, escreveDau- são raras, são inesgotáveis. Ergo: as riquezas ditas naturais não são
mer, "são a verdadeira divindade, em contraste com a humanidade e riquezas economicas.
o macho". A submissãodo humano ao natural, do masculino ao h- Say pressupõe uma "economia" definida como gestão de recursos

minino, é "a autêntica, a única humildade, a mais elevada e, na ver- raros. Ora, sua noção de gratuidade é uma categoria económica (liga-
da à troca de bens limitados) exportada sem precauções para dentro
dade, a única virtude e devoçãoque existe". Essareviravolta de pers-
da esfera "extra-económica" (de acordo com sua própria concepção)
pectiva contém o seu grão de legitimidade. A ciência e a tecnologia
modernas impuseram-se correlativamente à exclusão da mulher do da riqueza natural. O que é considerado economicamente gratuito,
espaço público e do saber. Os procedimentos e categorias de um e nos limites de um modo de produção determinado, pode ainda sê-lo
em uma outra escala espaço-temporal?
outro estão impregnados do monopólio masculino. A tal respeito Marx
não detectamenos em Daumer os acentosde um naturalismo reacio-
onde se encontra a falha por onde a. derrocada se propagará. O mundo é vítima
nário. Sua réplica é cortante: "Em face da tragédia histórica que se da opulência em que tem vivido à sua custa, mas ao fazer isso ele também se
abate sobre ele, o Sr. Daumer refugia-se na pretensa natureza, ou seja, renova e acabará encontrando um pouco mais de equilíbrio com um pouco menos
nos estúpidosidílios bucólicos [...]. E]e tenta reconstruir sob forma de habitantes, de beleza e de riqueza. Uma grande pobreza será a consequência
modernizada a antiga religião pré-cristã da natureza [...]. Procura necessária da opulência [-.]. SÓ a pobreza pode nos salvar [-.]: a exigência à
renúncia. E já que ninguém escolherá espontaneamenteo estado de pobreza en-
consolar as mulheres por sua miséria burguesa dizendo-lhes que seus
quanto as riquezas estiverem ao alcance da mão, essapobreza deverá instaurar-
talentos acabam com o casamento,que em seguida têm de cuidar das se como um fado inelutável"(Jürgen Dahl, "La derniêreillusion", Die Zeit, 23
crianças, que podem aleítá-las até os sessentaanos etc. O Sr. Daumer de novembro de 1990, citado por André Gota em (bPifalfsme, Écologie, Socia-
chama tudo isso de submissãodo masculino ao feminino." Aparece Ifsme,Pauis,Galilée, 1991). Aos equívocos de uma ecologia romântica, Cora opõe
assim a face sombria de uma ecologia naturalista, prestes a ressuscitar uma racionalidade ecológica que consiste em satisfazerda melhor maneira as
carênciasmateriais com uma quantidade tão exígua quanto possível de benscom
os cultos pagãosda natureza e a combater a emancipação das mulhe-
valor de uso e durabilidade elevados,portanto mobilizando um mínimo de tra-
res em nome das funções naturais da maternidade.s8 balho, de capital e de recursosnaturais: "A busca do rendimento económico
maximal, emcontrapartida, consisteem vendercom um lucro tão elevadoquan-
to possível um máximo de produções realizadas como o máximo de eficácia, o
sl As afinidades entre os fundamentalismos verdes e religiosos não são circuns-
que exige uma maximização dos consumos e das carências.'
tanciais. André Gorz cita um texto sintomático: "Seria presunçoso ousar predizer

477
476
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

A querela entre a ecologia e a economia(tal como a entendepelo como uma pechincha ofertada graciosamente à humanidade saberá.
menos a economia clássica e neoclássica) remete ao divórcio entre duas na. Coisa de positivismo e cientificismo.
temporalidades heterogêneas: uma temporalidade económica ritmada
pela reprodução do capital e da força de trabalho; uma temporalidade O capital vive no dia-a-dia, na imediatidade do gozo e na despreocupação
ecológica regida pela estocagem e o dispêndio de energia, que é também pelo amanhã. SÓa burocracia pode rivalizar com seu egoísmode vista
tempo estocada. Recomendando a Engels a leitwa de um livro de Niko. curta. Contra sua pretensãoà etemidade, a ecologiapolítica ataca com
maus
Fraas,"darwinianoantesde Darwin", sobreo clima e a flora no um impiedoso veredicto. Em face dos lugares-comunsdo fetichismo
tempo, Mao( acentua os estragos a longo prazo de certas formas de agri- mercantil,ela constitui um antimito temivelmenteeâcaz.Assim,o merca-
cultura(desertificação).Ele volta ao assuntono livro ll do(;zpíza!, insis- do não satisfaz as carências, mas a demanda. Assim, a moeda não é o
tindo sobre a desarticulação entre a longa duração da silvicultura e a da real, mas sua representaçãofantástica. Assim, a utilidade coletiva não é
economia mercantil: "A longa duração do tempo de produção(que não redutível a uma soma de utilidades individuais. Assim, o económico não
compreende mais que um tempo de trabalho relativamente restrito), e por implica necessariamenteo social, e os lucros do dia não ensejamnecessa-
conseguinte a amP/fl de dos p«fados de roMção fazem da Silvicultua riamente os empregosdo amanhã. Assim, enfim, a esferada economia
algo pouco propício à exploraçãocapitalista, essencialmente privada."sP mercantil não equivale à biosfera: ela nunca é senãouma pequenabolha
Sem alcançar ainda um cálculo em termos de fluxo de energia e cuja racionalidade parcial funciona em detrimento do conjunto.60
sem levar em conta o custo energético dos fertilizantes, Liebig procu- O "reducionismo mercantil" faz como seos fluxos reaise mone-
rava a partir de 1840 a passagemprometedora de uma agricultura de tários, trocando-se uns aos outros, obedecessema uma mesmalógica.
exploração a uma agricultura de recuperação.Tornava-se possível Bastaria então "internalizar" o custo social do dispêndio ecológico
determinar a parte de energiasolar transformada em carbono pelas para restabelecera harmonia da regulação mercantil. Uma tal solução
plantas. No começo dos anos 1880, Podolinski esforçava-sepor in- supõe compatíveis a otimização mercantil e a reprodução do meio
troduzir o problema da energiana crítica da economia política. Em natural na basede uma medida comum, enquanto a energia funciona-
sua brochura de 1885, Sobre as edemase#ergéfícase s#a zlli/ilação ria como "denominador comum a todos os bens que pertencessemou
ao será//çoda # ma/cidade,Clausius fazia soar o alarJnea propósito não à esferamercantil". Todo bem material seria então exprimível
da "questão do carvão": "Nós consumimos essas reservas desde ago- pela quantidade de energia que ele encerra.õí
ra e nos comportamos como herdeiros pródigos."
As descobertasrelativas à transformação e à dissipação da ener- Enquanto a naturezamaximiza estuques(a biomassa)a partir de um fluxo
dado(a radiação solar), a economiamaximiza os fluxos mercantisesgotandoos
gia quase não tiveram entretanto repercussõesimediatas sobre a teo-
estuques naturais não mercantis, cuja diminuição, não aparecendo em nenhum
ria económica. Os obstáculos à "crítica da ecologia política" eram balançoeconómico,não exerce nenhumaação corretiva sobreessesfluxos. En-
consideráveis,o impulso do capitalismo favorecia a divisão do traba- quanto a natureza obedecea uma lógica da interdependência e da circularidade,
lho e o aumento de poder da razão instrumental. Infelizmente. a difu- a decisão económica apóia-se numa relação causal linear simples que confronta
são do marxismo militava no mesmosentido. Os teóricosortodoxos a variaçãode um dispêndio e de um resultado. Ora, todo elementointroduzido
segundo essalógica na esfera económica espalha-se pelos diferentes comparti-
da ll Internacional concebiam comefeito majoritariamente a natureza mentos da biosfera e continua a realizar ali a sua obra"(Rena Passei,"Limites
de la régulation marchando", l,e Àlonde Dip/omafíque, junho de 1992).
s9Kart Marx, l,e Cáfila/, livro 11,t. 11,op. cit., p. 225. õi René Passct, I'Éco omfq e el Je Vít/aHr, Paria, Payot, 1979.

478 479
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEMDA DESORDEM

Infelizmente, objeta René Passet, "a esfera económica e a biosfera SÓuma democraciapolítica radical poderia introduzir um meio-ter-
mo entre esferassem medida comum imediata. Tal é realmente o nó
nunca funcionaram de acordo com a mesma lógica, e, se se podia ig-
norar essefato por todo o tempo em que a primeira não parecia da questão: "0 fato fundamental que a economia ecológica faz valer
ameaçar a existência da segunda, hoje as coisas já não se passam as. contra a economia ortodoxa nãoé outro senão a incomefzsurabi/icü-
sim: nos ritmos naturais que se desenrolam e harmonizam há milênios de. Somos incapazesde conferir aos bens que consumimosvalores
(e às vezes,milhões de anos) a gestão económica introduz a ruptura monetários que dêem conta dos custos ecológicos atualizados."ó3 Não
das maximizações breves,ruptura cujos efeitos não sefarão sentir senão raro perceptíveisa longo, e até mesmoa muitíssimolongo prazo so-
para as geraçõesvindouras".ózEssacrítica invoca uma medida não mente, essescustos deveriam ser avaliados por geraçõesàs quais não
mercantil, estranhaao domínio de uma economia autâmata semcons- podemos atribuir nossas prioridades e nossos critérios de julgamento.
ciência política nem escrúpulo social. Tratar-se-ia de reimbricar a Como contabiliza-los hoje, com a ajuda de instrumentosde me-
economia numa totalidade de determinaçõesecológicase sociais. Sem dida que variam com o tempo? Alguns concluem daí, peremptoria-
substituir completamentea informação monetária, critérios como, por mente, que a "comensurabilidadenão existe".a E até não poderia
exemplo, balanços materiais e balanços energéticos forneceriam in- mesmoexistir no acanhadoterreno da "economia política". Pondo a
formações ignoradas pela racionalidade mercantil. A inserção do eco- nu a relatividade histórica de sua racionalidade, a crítica ecológica da
nómico num conjunto ecossocialexigiria assim "uma gestão norma- economia política reforça sua crítica social. Assim, Georgescu-Roe-
tiva sob constrangimento"; em outras palavras, uma escolha cívica gen não secontenta em chamar a atenção para a parcialidade do ponto
determinada pelas carênciase inscrita no tempo longo deveria preva- de vista económico clássico: ele desvela sua incapacidade (já assinala-
lecer sobre os automatismos mercantis. da por Henryk Grossmann)em pensar de outro modo que não seja
A noção de "gestão normativa", da mesma maneira que a dimen- em termos de equilíbrio. Essa impotência traz a marca de uma episte-
são temporal inscrita nas confusas noções de desenvolvimento dura- mologia mecanicista datada a que a economia analítica, concebendo
douro e sustentável,ressuscitapara algunso espectroda planificação o processo económico como um sistema fechado, conservou-se fiel.a
burocrática. É uma das principais queixas liberais contra a ecologia A construção da economia mercantil como sistemafechado implica
radical. Opondo-se aos efeitos da concorrência cega, ela despertada com efeito uma separação entre os (atores internos e os fatores "exter-
os velhos fantasmasde planificação totalitária. A gestão ecológica nos" ao objeto assimcircunscrito. As "externalidades" sãoentão trata-
normativa corre com efeito os mesmos riscos que a planificação socia- das como fraquezasem relação ao ideal de concorrência perfeita, e o
lista. Ela pode revestir a forma de um novo autoritarismo tecnocráti-
co ou a de uma planificação autogestorae democrática por inventar.
õsJoan Martinez-Allier e Klaus Schlüpman, La.ecologia y la economia, OP. cit.
René Passeté perfeitamente lógico. A previsão a longo prazo, a « William Kapp, Les Coüts Sociaur dalzsI'Économie de À4arcbé,Paras,Flam-
economia de recursos não renováveis, a definição de um novo modo marion, 1976.
de consumo implicam uma reviravolta do próprio modo de produção õs«Não há concepçãomais distanciada de uma interpretação carreta da
realidade. Mesmo que não consideremos senão o aspecto físico do processoeco-
e são incompatíveis com a ditadura de critérios mercantis a curto prazo.
nómico. estenão é circular, mas unidirecional. Também sob esteângulo, o pro'
cessoeconómicoé constituído por uma transformação constantede uma baixa
ózRené Passei,"Régulation marchando au temps despollutions globales", em l,e entropia numa entropia elevada, ou seja, em um desperdício irrevogável" (Geor-
Molde est-ll upzÀfarc#é?,Acr e/ À4an, Pauis,PUF, 1991. gescu-Roegen,Tbe EnlroPy Law and rbe Eco omlc Process,Londres, 1971)-

480 481
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

meio ambiente como um de seuscasosparticulares. A avaliação more. não teriam como intervir diretamente. A incomensurabilidade entre o
pária dos bens e serviços relativos ao meio ambiente não exprime senão nível económico e o nível ecológico não é absoluta. Ela não é menos
de modo insatisfatório seu "verdadeiro valor". É com efeito impossível real no quadro do modo de produção capitalista e testemunhapor
estabelecer "corretamente" uma tal avaliação sem passar pela produção isso mesmo seus limites históricos.
e a troca, pelo trabalho abstrato, que funda a comensurabilidadesocial A passagemjá longamente citada dos Grundrlsse ilustra a largue-
das mercadorias. Já "a economia do bem-estar", segundo Pagou, sugeria za de vista de Marx a esserespeito. À medida que se desenvolvea
taxas que representavam não mais uma medida mercantil, mas Uma produção industrial, que se torna mais complexa a organização do
estimaçãodos custossociaispelo Estado,portanto um juízo diretamen- trabalho, que o próprio trabalho incorpora mais sabersocialacumu-
te político. Para ele, a taxa equivale a um sinal-preço cujo propósito é lado, "a criação da riqueza" entretém uma relação cada vez mais
supostamente restabelecer a concorrência perfeita. Essastentativas de longínqua com "o tempo de trabalho imediatamente despendidopara
internalização levam em conta problemas malsãos aproximativamente produzi-la". Ela depende"do nível geral da ciência e do progresso da
conversiveisem critérios mercantis,mais do que os danos duradouros tecnologia": "A riqueza real manifesta-se antes na extraordinária
infligidos à biosfera de acordo com uma outra escala temporal. Contra desproporção entre o tempo de trabalho utilizado e seu produto, exa-
os esboços de economia social, a racionalidade concorrencial e a busca tamente como na discordância qualitativa entre um trabalho reduzido
do lucro máximo levam constantemente as empresas a externalizar os a uma pura abstraçãoe a força do processo de produção que ele con-
custose a intcrnalizar os benefícios.O estabelecimentoextra-económi- trola." O trabalhador vivo torna-se cada vez mais estranho ao pró-
co de uma "norma ambiental" permaneceportanto uma operação in- prio trabalho. Ele é deixado "de lado do processoda produção em
certa que depende, em última instância, de arbitragens democráticas.« lugar de ser seu agente essencial"
A conseqüência explosiva dessa transformação é que a própria
medida de toda riqueza(e por conseguinte a medida comum de toda a
relação social que liga entre si trabalhos isolados e parcelares) torna-se
A MISERÁVELMEDIDA DE TODA niQUEZA derrisóriae "miserável": "0 roubo do tempo de trabalho de outrem
sobre o qual repousa a riqueza atual aparece como wma base mlseráz.'e/
Pode-se conjugar racionalidades distintas sem confundi-las, como o comparada à recentementedesenvolvida, que foi criada pela própria
faz André Gorz quando confereà baixa tendencial da taxa de lucro grande indústria. A partir do momento em que o trabalho sob a sua
um fundamento ligado ao meio ambiente. O rendimento decrescente forma imediata deixou de ser a grandefonte da riqueza,o tempo de
ou o esgotamento relativo de recursos naturais pode acarretar indire- trabalho deixa necessariamentede ser sua medida e por conseguinteo
tamente uma elevação da composição orgânica do capital. Mas o efei- valor de troca de ser a medida do valor de uso [...]. De um lado, portan-
to ambiental não irrompe sem mediações nas tendências específicas to, [o capita]] dá vida a todas as forças da ciência e da natureza, como
da acumulaçãocapitalista. Ele exprime-sepor intermédio de suas às da combinação e da comunicação sociais para tornar a criação de
categorias conceituais específicas (composição orgânica, valor exce- riqueza independente(relativamente)do tempo de trabalho que está
dente, taxa média de lucro) em cuja formação os balanços energéticos contido ali. Por outro lado, ele quer medir pelo tempo de trabalho essas
gigantescasforças sociais assim criadas e aprisiona-las dentro dos limi-
õóWilliam Kapp, Les coúlssoclauxdais /'écomomie
de marcbé,op. cit. tes requeridos para conservar como valor o valor já criado." Essabase

482 483
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

miserável traz consigo o desregramentogeneralizado da relação dos pamentos técnicos e a organização do trabalho quanto o desenvolvi-
homens entre si, assim como de sua relação com a natureza. mento do sabercientífico e as condições institucionais de sua produção.
AÍ estamos! O desemprego estrutural massivo, o subemprego e a Como as classessociais ou o trabalho produtivo, as forças produtivas
marginalidade generalizados,as exclusõessociais em escala planeta. não têm portanto nem o mesmo conteúdo nem a mesma significação,
ria manifestam de maneira surpreendentea inadequação do tempo de segundo sejam consideradas /zo sefzfido amp/o, comum a diferentes
trabalho enquanto medida das "gigantescasforças sociais". A crítica modos de produção, ou no sefzlido especí#co ao modo de produção
ecológica acrescentaa essediagnóstico que o tempo de trabalho apa- cáfila/fofa. Produfiz/as do ponto de pista do cáfila/, elas podem revelas-
rece a Áorl/ori como uma unidade de medida bastante "miserável» se destrutivas para o porvir da humanidade.
para regular as trocas entre o homem e a natureza ou para estabelecer À medida que se passa das determinações mais abstratas (natu-
uma relação de solidariedade entre gerações. Em outras palavras, se é rais e técnicas) para as mais concretas (incluindo a relação social de
perigoso confundir pura e simplesmente as temporalidades e os crité- trabalho, a produção e a aplicação dos conhecimentoscientíficos
rios próprios da economiae da ecologia,de fundir seuscamposde etc.), a contradição já não diz respeito apenasàs forças produtivas
conhecimento interdependentes mas específicos, elas têm condições e às relações de produção. Ela se inscreve no próprio âmago das
de marcar um encontro numa crítica comum da incomensurabilidade. forças produtivas e põe em ação noções como crescimento e desen-
na compreensão da crise generalizada da medida pelo tempo de tra- volvimento. Há com efeito "crescimentos sem desenvolvimento",
balho e na exigência de uma outra regulação da relação social. Sese em que a oscilação quantitativa da razão instrumental nega suas
conseguir estabelecerum laço lógico, orgânico, não formal, entre as finalidades sociais.
metamorfoses do trabalho, o desperdício acelerado da força de traba- A idéia de uma transformação das forças potencialmenteprodu-
lho e os parâmetros da crise ecológica planetária, esseencontro pode- tivas em forças efetivamente destrutivas, num outro registro tempo-
rá tornar-se o ponto de partida para uma nova aliança teórica. ral, é sem qualquer dúvida mais fecunda que o esquemamecanicista
da oposição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as rela-
Ao acentuar os limites da economia política, a crítica ecológica poria ções de produção que a entravam. Ela libera o caminho para uma
em evidência,de acordo com Martinez-Allier, duas falhas da teoria elaboração crítica do próprio conceito de progresso, enquanto "pro-
marxiana.
gressodiferenciado" (de acordo com uma fórmula de Ernst Bloch),
1) "0 ponto de vista ecológico põe em risco a noção de forças pro- oposto à abstração unilateral das ilusões do progresso.
dutivas, mas não oferece novas teorias do valor económico." Ele dá 2) Buscando no cálculo energético "uma contribuição aos críticos
uma definição mais adequada do conceito de forças produtivas, forne- das teorias do valor", Joan Martinez-Allier contradiz em parte sua
cendo-lhe"uma clara referênciaempírica". Uma acepçãonão crítica própria profissão de fé: "Nós economistas ecologistas não propomos
dessa noção de forças produtivas teria alimentado as quimeras de um uma nova teoria do valor: contestamos a comensurabilidade, seja em
comunismo onde o curinga da abundância suprimida as contradições termos de preços de calorias ou de tempo de produção."ózE ainda
da distribuição e o problema de uma informação não monetária. Marx. afirmando a incomensurabilidade de temporalidades heterogêneas,
com efeito, quase não define essasforças produtivas. Procedendo por umas em relação às outras, ele não tira disso as conclusões lógicas que
determinações,ele se contenta,na maior parte do tempo, com um in-
ventário descritivo, que compreende tanto as matérias-primas, os equi- õ7Joan Martinez-Allier e Klaus Schlüpman,La ecologia y la ecofzomia,op. cit

484 485
MARX, O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

se impõem. A teoria do valor-trabalho não pretende fundar uma nova cantil, mas em nome da natureza oposta ao artifício), as campanhas
ciência económica. Ela conserva-seum saber negativo, uma crítica da contra a contraconcepção e o direito ao aborto em nome da naturalida-
economia política imanente a seu objeto específico (a economia en- de das funçõesmaternais. Mais geralmente,não é fortuito que um na-
quanto esfera separada),chamada a extinguir-se em sua superação.A turalismo radical possa desembocar num "realismo" anti-humanista:
crítica ecológica, em termos de balanços materiais ou energia, exige "Nossa solicitude humanista para com os pobres dos bairros miseráveis
ao contrário uma mudança de terreno, uma superação da economia das grandes cidades ou do terceiro mundo e nossa obsessãoquase obs-
política do ponto de vista da biosfera. Ela se situa num outro plano cena da morte, do sofrimento e da dor -- como se, enquanto tais, essas
lógico e dependede uma outra racionalidade que não a teoria do valor. coisas fossem malsãs --, todos essaspensamentos desviam o espírito do
que ela não saberiainvalidar em seupróprio nível de determinação. problema de nossa dominação rude e excessivado mundo natural."óP
Do restabelecimento do ser vivo em sua unidade orgânica, Gala Mudança de direção e de prioridade.
surge como uma sedutora e poética hipótese. O homem já não se acha Último ato da revolução copernicana e darwiniana.
separado de seu meio ambiente, mas intricado como a parte no todo. Fim do grande sonho prometéico. Banido do centro do mundo para
Sejaportanto a envolvente e acariciante Gala. Mas uma deusaconti- seuslimites sem margem, o homem não é mais o segredodo homem
nua sendo uma deusa. A recusa declarada do antropocentrismo ali- nem sua senha. Suas misérias, suas epidemias, seus sofrimentos e sua
menta a contragosto o reencantamento antropomórfico da natureza morte não são mais que peripécias e avataresde um grande equilíbrio,
tornada novamente mulher, misteriosa e maternal como é preciso. Uma sem entendimento nem vontade, algo que já horrorizava Leibniz. Hou-
religiosidade sorrateira insinua-se até nas palavras, coisa que preocu- ve necessidade do egoísmo furioso, a pretensão e o orgulho do animal
pa o próprio pai de Gaia: "De modo algum considero Gaia um ser humano para achar que possui uma tal precedência no coração de Gaia,
sensível,um substituto de Deus [...]. Quando elaborei meu primeiro equitativamente aberto a todas as criaturas. De acordo com essalógica,
livro sobre Gala", escreveJamesLovelock, "não fazia a menor idéia a natureza acaba por ter costas largas. Se sua relação com os homens
de que seria encarado como uma obra religiosa. Ainda que eu achasse passasemprepela mediação da relação dos homens entre si, o procla-
que seu tema central fosse a ciência, um número bastante expressivo mado primado da natureza sobre o homem conserva-secomo o álibi de
de leitores foi de opinião diferente. Praticamente dois terços das car- interessessociais bem particulares. A EC0-92, realizada no Rio de Ja-
tas que então recebi e que continuam chegando dizem respeito ao neiro, ilustrou à sua maneira a imbricação da ecologia nas relaçõesso-
significado de Guia no contexto da fé religiosa."õ8 ciais de exploração, de dependência e de dominação.
Suainquietaçãoparecetanto mais justificada quanto a denúncia da Grávida de vários desenvolvimentos possíveis,ela não é um novo
liberdade humana como fatos de perturbação do ecossistemapode con- abre-te sésamo.Enquanto o "ecodesenvolvimento" invoca um domí-
duzir a "novas alianças" inesperadas,tendo como premissas expedien- nio consciente e coletivo das ciências, das técnicas, das escolhas de
tes como o controle autoritário dos nascimentos,esterilização forçada, produção e de consumo, por conseguinte uma opção democrática
a rejeição das técnicas procriativas(não em função de sua lógica mer- radical e uma iniciativa de todos recusando-sea reduzir a ecologia ao
mero papel de muleta de um progresso disforme, a "ecocracia" pode-
ria valer-se, ao contrário, das formas de um ambientalismo re(ormista
õ8JamesLovelock, l,es .agesde Gala, Paria, Laffont, 1990. Vcr a propósito o
artigo de R. Locheade C.-A. Udry, "La vie en retour-. d'une ruptura'p l.a Brêcbe,
número especial, de 17 de janeiro de 1992, Lausanne.

486 487
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

e tecnocrático, perpetuando, sob o pretexto do conhecimento de cau. zações longas, onde se eliminam as diferenças entre modos de produ-
sa especializado, o desencargo e a desresponsabilização do cidadão. A ção e onde se mitigam escolhas sociais esse#cialsem esmZab mama,
um ultradeterminismo ecológico e energético teria conseqiiências aná-
ecologia não permite responder à questão: quem decide e em função
de que critérios? Quando a comunidade científica se divide, a compe- logas. A crítica da economia política submergeria então no oceano
tência não teria como pretender resolver sozinha a controvérsia. sem fundo nem praias da ecologia geral. Se a escolha energética do
moinho de vento ou da energia nuclear embarcou irreversivelmente a
A ecologianão escapaà política. A alternativa entre ecologia
naturalista e ecologia política remetea problemas essenciais.Onde as humanidade por vários séculosnuma aventura que ela já não pode
falsas evidências podem tornar as pessoascegas para o mais impor- dominar, as responsabilidadespropriamentepolíticas, fortemente
tante. A própria palavra ecologia tende a passar a idéia de uma dis- condicionadas e terrivelmente restritas, não se exercem mais senão à
ciplina científica bem definida e estabelecida.Popper, entretanto, te- margem. Tratar-se-ia apenas de moderar os efeitos imediatos de um
ria atribuído à ecologia, como fez com o marxismo e a psicanálise, o crescimento predatório e de rezar pela conjuração da catástrofe final.
status de ciência que não se pode refutar, portanto uma não-ciência. A menos que se invertam as propostas e se reivindique, em nome
O objeto específico do que se anuncia como ecologia é certamente de uma crítica da ecologiapolítica, um aumentode livre responsabi-
difícil de escrutar. No caso de especifica-lo, ela estará alertando com lidade e de responsávelliberdade para o homem enquanto "ser natu-
disciplinas parciais já constituídas.No caso de assumir-secomo co- ral humano"
nhecimento de uma totalidade orgânica, estará erigindo-se como meta-
história, metaciência e metafísica ao mesmo tempo. Afirmando a identidade entre humanismo e naturalismo conseqüente,
Entre essesdois lados, a ecologia deveria, mais modestamente. o jovem Marx encaravao comunismo como um "naturalismo consu-
definir suas relaçõescom a economia e com as teorias existentes. Do mado". "0 comunismo, abolição positiva da propriedade privada (ela
ponto de vista do tempo longo, Jean-PaulDeléageconsidera os siste- mesmaalienaçãohumana de si) e por conseguinte apropriação real da
mas energéticos como determinantes pesados, comuns a diferentes essência humana pelo homem e para o homem; portanto retorno total
sistemasprodutivos. Um sistema energético pode assim submeter a si do homem para si enquanto homem social, isto é, humano, retorno
diversos modos de produção. Dessa maneira, a energia nuclear deter- consciente e que se operou conservando toda a riqueza do desenvol-
minaria a dinâmica das economiascapitalistas de mercado como eco- vimento anterior. Essecomunismo enquanto naturalismo consumado
nomias burocráticas de comando.'o Nutrida dos trabalhos históricos = humanismo, enquanto humanismo consumado = naturalismo; ele é
sobre o tempo longo, essahipótese divide com eles suas conseqüênci- a verdadeira solução do antagonismo entre o homem e a natureza,
as paradoxais. Autores como Pierre Chaunu ou Emmanuel Le Roy entre o homem e o homem, a verdadeira solução da luta entre existên-
Ladurie, que condenam Marx por seudeterminismo económico, mer- cia e essência,entre objetivaçãoe afirmação de si, entre liberdade e
gulham assim num ultradeterminismo climatológico, geológico, de- necessidade,entre indivíduo e gênero. Ele é o enigma resolvido da
história e se reconhece como essa solução."7í
mográfico, a ponto de reduzir o evento a uma peripécia acidental, de
Essa superação histórica das antinomias filosóficas implica uma
que não haveria historicamente mais nada a dizer. Propondo periodi-
conclusão audaciosa para o conhecimento científico: "Portanto a socie-

'oJcan-} aul Dcléage, em colaboração com Jcan-Claude Debeir c Daniel Hémery,


7i Kart Marx, Àla scrifs de 2844, OP. cit
Z,esSemlmdes de la p fssance, ##e #isfoire de /'é#ergfe, Paria, Flammarion, 1987.

488 489
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

dadeé o remateda unidadeessencialdo homemcom a natureza.a o universo, a hipótese é factualmente falsa. Ela conserva-sepertinente
verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem numa concepçãoinspirada em Vico e em sua "ciência nova", em que a
e o humanismo realizado da natureza [-.]. A própria história é uma parte conhecível da natureza é precisamente a da natureza humanizada
parte real da história da natureza,da Ira sáozma(:ão
da nmlurezaem pelo trabalho; aquela em que a praxis imprimiu sua marca identificável.
comem. As ciências da natureza compreenderão mais tarde também a Desseponto de vista, não haveria como existir aí separaçãodefi-
ciência do homem quanto a cfê cla do comem eng/obarü as ciê elas da nitiva entre naturezae sociedade.Contra suaprópria afirmaçãorepe-
zalzl em: baterá alma zZnía cfê cla."n Quem quer que seavenhaà idéia tida, segundo a qual a determinação social não elimina a determina-
de um Marx cientificista, erigindo as ciênciaspositivas da natureza ção natural, Marx pareceassim considerar que não existe nenhum
como modelo absoluto de cientificidade, não pode sentir-se senãodes- limite natural fora doslimites sociais.É pelo menosa interpretaçãode
concertado por esta perspectiva. Ela manda para o espaço a grande Lukács, que, num estágio determinado do desenvolvimento histórico,
fronteira classificatória entre ciências experimentais e ciências humanas. reduz a natureza a uma categoria social: "A natureza é #ma calegorfa
naturais e sociais, monográficas e idiográficas. A idéia de uma socializa- soda/, ou seja, num estágiodeterminado do desenvolvimentosocial
ção integral da natureza, "da transformação da natureza em homem". aparececomo naturezao modo sob o qual se realiza a relaçãoentre
sugere que as ciências da natureza seriam chamadas a fundir-se na ciên- essanatureza e o homem e a forma sob a qual seproduz a adequação
cia do homem. Não é entretanto o que diz Marx. Na verdade,ele assi- entre este e aquela, e, por conseguinte, o que a natureza deve signifi-
nala para um terceiro caminho, o de um envolvimento recíproco, no car concernenteà sua forma e ao seu conteúdo,seualcancee sua
qual as ciências da natureza "compreendam" a ciência do homem, que objetividade, é sempresocialmentecondicionado."'s Assumindoa parte
as "engloba". Essecredo epistemológicotraduz uma estratégiacogniti- ativa do idealismo, essainterpretação subjetiviza a natureza ao redu-
va. Enquanto um naturalismo inconseqiientesubordina as ciênciasdo zi-la à sua auto-organização sob o efeito da praxis histórica. Inversa-
homem a uma metaciência natural, o "naturalismo consequente" faz da mente, a ortodoxia positivista do marxismo stalinizado reduz a pra-
natureza socializada o verdadeiro objeto de conhecimento. xis histórica a um mero aspecto das relações naturais objetivas.
Marx volta alguns mesesmais tarde ao assunto na Idem/agia a/emã: Essadupla tentação é o reflexo de uma dificuldade não superada, na
"Nós não conhecemos selzão alma c/anciã, a ciê/zcü (&z b/sfórü. SÓ a qual a relação incerta entre natureza e história recobre a relação igual-
história pode ser considerada sob os dois aspectos, dividindo-se em his- menteproblemática entreo morto e o vivo, entrea naturezacomo forma
tória da natureza e história da humanidade. Entretanto, não se devem universalda "matéria não viva em movimento"(Engels)e a história
separar essesdois aspectos; na medida em que os homens existem, a como auto-organizaçãodinâmica da matéria viva. No horizonte episte-
história da natureza e a história dos homens condicionam-se reciproca- mológico de sua época, Marx não baseia a unidade da ciência, como fará
mente." Esta idéia participa da ruptura com Feuerbach.A naturezaan- ulteriormente Carnap, na redutibilidade de toda reflexão científica a seu
terior à história humana "já não existe em qualquer lugar em nossos modelo físico. Tampouco resigna-seà grande divisão entre ciências físi-
dias, senão talvez nos mares austrais e em alguns atóis". Ela está dora- case históricas. Ele instala-se numa contradição real. A unidade da ciên-
vante humanizada e historicizada pelo trabalho humano. Seentendemos cia não poderia ser proclamada arbitrariamente. Ela própria é um pro-
por natureza não apenasa terra e seu meio ambiente imediato, mas ainda cessohistórico de unificação mediada entre sujeito e objeto.

n Ibid., p.96. Hfsfoíre el co#scie ce declasse,Paria, Éditions deMinuit, 1965

490 491
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

Assim compreendida, a perspectiva "de uma só ciência" é antes mos de novo a mensagemdo convencional Coupé de I'Ousefalando
confirmada pelas tendências epistemológicas profundas de nosso tem- de "economia social" ou do historiador Edward P. Thomsonfalando
po: aproximação das ciências do ser vivo e das ciências sociais com as de "economia moral".7ó Social ou moral, essa economia é irredutível.
teorias de informação e dos sistemas, trocas e confrontos entre subsis- seja unicamente à medida monetária, seja unicamente à medida ener-
temas económicos abertos para os sistemas ecológicos (ecossistemase gética.Ela esforça-sepor manter as duas pontas unidaspela escolha
biosfera), dialética estrutural e hermenêutica, impulso das ciênciasda democrática. Se se renuncia às ilusões de uma socialização integral da
forma.74 natureza como de uma naturalização integral do homem, a contradi-
ção aparece em sua realidade crua.
A crítica da economia política não pretende fundar uma ciência geral Impossível escapar então aos tormentos da matéria.
da economia. Ela se quer como crítica do capital. Por isso não teria O conhecimento introduz um princípio de evolução (de informa-
como esgotar as exigências das determinações naturais e acabar de ção, de auto-organização, de entropia negativa) contraditória com as
vez com o tormento da matéria. sombrias predições termodinâmicas. A questão é de saber se, como na
A crítica da ecologia política, por sua vez, não conseguiria, a ri- evolução das espécies,esse"efeito reversivo" da consciênciacoletiva
gor, absorver a crítica da economia política. Uma e outra podem, em é ou não suscetível de resolver a antinomia entre economia e ecologia.
compensação, estabelecer uma relação fecunda a partir de temporali- Em outras palavras, se a economia mora/ e elzPmPO/bica pode har-
dades diferentes. O diálogo entre ambas é então rigorosamente in- monizar os ritmos de renovação dos recursos naturais, dos levanta-
compatívelcom oscânonesdo "individualismo metodológico", já que mentos autorizados, de autodepuração dos meios, enquanto se espera
o cálculo de interesse privado ignora por princípio a relação univer- a descoberta de novas energias renováveis ou o meio de reciclar a
salista e altruísta entre gerações: "A teoria económica, baseando-se grande massa de energia improdutivamente dissipada.
apenasnas trocas entre agentescuja conduta orienta-se pela raciona-
lidade postulada e o cálculo utilitarista, é incapaz de tratar a atribui- "A verdadeira riqueza da sociedade e a possibilidade de uma ampli-
ção intergeracional dos recursos esgotáveis."7s ação ininterrupta de seu processo de reprodução não dependempor-
Na falta de comensurabilidade monetária, essarelação deve ser tanto da duraçãodo trabalho excedente,mas de sua produtividade e
pensada em termos éticos, estéticos ou simplesmente políticos. Tra- das condições cais ou menos aperfeiçoadas dentro das quais ele se
tando-se de utilizar e de distribuir recursos esgotáveis, é com efeito realiza. De fato, o reino da liberdade começasomente quando se dei-
impossível separar a eficácia económica do critério social. Voltamos xa de trabalhar por necessidade e oportunidade imposta do exterior;
a encontrar assim pensamentosque quase não admitiam a idéia de assim, ele $esitua além da esferade produção material propriamente
economia, pura e simplesmente,de lógica mercantil bruta. Recebe- dita. Da mesmamaneiraque o homemprimitivo develutar contra a

74Essaanalogia entre a economia c as "ciências da vida'(de preferência às ciên-


cias mecânicas) foi sublinhada desdeo começo do século por estudiosos tão di- 7õEm l.a Tbéorie desbesofns cbez Maré, Agnês Heller sublinha igualmente que
hrentes entre si quanto K. Boulding, Dali, RenéPassct,JamesLovclock, Benoít a categoria de carências transgride os limites da economia política, precisamente
Mandelbrot. porque ela sutura, atravésda historicidade das carências,o natural e o social.
7sJoan Martincz-Allier e Klaus Schlüpman,la ecologü y ü economia op Opera por conseguinte como uma espécie de categoria crítica do horizonte da
economiapolítica e de categoriatransitória para o horizonte do comunismo.

492 493
MARX. O INTEMPESTIVO A ORDEM DA DESORDEM

para.prover suas carências, manter-se vivo e reproduzir-se, vés da incomensurabilidade crescentede atividades sociais não redu-
o homem civilizado é também forçado a fazê-lo e fazê-lo sob qualquer tíveis ao trabalho abstrato. Já acontecia isso com a obra de arte, cujo
estrutura da sociedade e modo de produção. Com o seu desenvolvi- valor mercantil é determinado especulativamente, sem relação conce-
mento estende-seigualmente o domínio da necessidadenatural, por- bível com o tempo de trabalho socialmente necessárioà sua produ-
que as carências aumentam; mas, ao mesmo tempo) ampliam-se as ção. E assim vem acontecendo cada vez mais com os trabalhos inte-
forças produtivas para satisfazê-las.Neste domínio, a única liberdade lectuais e científicos: "Se o processo produtivo torna-se esfera de
possível é que o homem social, os produtores associadosregulem aplicação da ciência, então a ciência torna-se inversamenteuma fun-
racionalmente suas trocas com a natureza, que eles a controlem jun- ção do processo produtivo [...]. Enquanto produto do trabalho inte-
tos em lugar de serem dominados por sua força cega e que realizem lectual, a ciência seacha sempre abaixo de seu valor. Porque o tempo
essastrocas despendendoo mínimo de forças e nas condiçõesmais de trabalho necessárioà sua reprodução não tem nenhumarelação
dignas, mais conformes à sua natureza humana. Mas essa atividade com o tempo de trabalho necessárioà sua produçãooriginal."'8 A
constituirá sempreo reino da necessidade.É além que começao de- economia política tropeça exatamente aqui com a incomensurabilida-
senvolvimento das forças humanascomo fim em si, o verdadeiro rei- de entre temporalidadesheterogêneas(ciclo do capital e ciclos da
no da liberdade que não pode expandir-se senãose fundando sobre o natureza, relações temporais entre gerações) e com o caráter miserá-
outro reino, sobre a outra base,a da necessidade.A condição essen- t/e/ de suas próprias medidas, que sua crítica ecológica confirma.
cial dessa expansão é a redução da jornada de trabalho."77
Atribuir a Marx uma concepção profética do fim da história no
reino da liberdade é um lugar-comum. Essabanalidade repousa numa
interpretação trivial da "necessidade" confundida com a fatalidade.
Vimos que a necessidadenão é em seu pensamentoa certeza positiva
do porvir, mas a percepção negativa dos limites íntimos do capital. A
crítica da ecologiapolítica reforça a da economia política. O capital
pode sobreviver a si mesmo e decompor-se no círculo de ferro desses
limites, sem chegara transgredi-los.Ele pode mudãt de escalae de
dimensão sem convulsõesporque é incapaz de dar origem às novas
medidas sociais que permitam harmonizar as relações dos homens entre
si e com a natureza.

A exploração mercantil da força de trabalho e a redução das re-


laçõessociaiscom a medida comum do tempo de trabalho social re-
vela a perda de funcionalidade profetizada pelos Gr#ndrísse através
de um desempregode massaendêmico,de novas precariedadese
marginalidades, das crisesde produção excedente,mas também atra-

n Kart Man, l.e Capital, livro 111,


t. lll, OP.cic.,P. 199. 7sKarl Mare, Àda#uscrils
de 1861-1863, OP.cit

494 49S
Bibliografia

OBRASGERAIS

Althusser, Louis, Pour À4ar=, Paria, Maspero, 1965.


, Réponse à Job Lemas, Paras, Maspero, 1973.
. É/émenfs d'a#focrifique, Paras, Hachette, 1973.
, Posiffons, Pauis, Éditions sociales, 1976.
, L'Az/efzirdure longfemps, Paras,Stock, 1992.
Althusscr, Louis, et al., tire /e Capfla1,2 voas.,Pauis,Maspero, 1965.
Anderson, Perry, Le Marxlsme occldelzfa/, Paria, Maspero, 1977.
. l.es Antfnomfes de Gramsci,Pauis,Maspero, 1978.
, l# fbe Trac&s o/' Hfslorica/ À4aterfa/ism, Londres, Verso, 1983.
Andréani, Tom, De la socféfé à J'Hisrofre, 2 vols., Paris, Klincksieck, 1 989.
Arendt, Hannah, Les Origfnes d# lota/ifarlsme, 3 vais., Paria, Seuil, 1 972 e 1984.
Aron, Raymond, À4arxlsmesfmagfnaires, Paras,Gallimard, 1970.
Assoun, Paul-Laurent e Raulet, Gérard, Marxfsme et fbéorle critique, Paras,Payot,
1978
Bailly, Jean-Christophee Nancy, Jcan-Luc, La Compamfion, Pauis,Christian
Bourgois, 1992.
Bailly, Jean-Christophe, Adleu, Éditions de I'Aube, 1993.
Balibar, Etienne, Éaffs po#r Alfa sser, Paras,La Découverte, 1991.
, La Pbf/osopble de À4ar=, Pauis, La Découverte, 1993.
Bataille, Georges,La Pari mandffe, Paras, Minuit, 1990.
Bhaskar, Roy, Dfalecflc, Tbe Pulsa o/ Freedom, Londres, Verso, 1993.
Bidet, Jacques, Que paire d# Capífali, Pauis, Klincksieck, 1985.
Tbéorie de la mover Ifé, Paras,PUF, 1992.
Blanchot, Maurice, L'Amitfé, Pauis,Gallimard, 1971.
Bloco, Ernst, Le PrÍNciPeesPérance,3 volt., Paria, Gallimard, 1976-1994.
Bukharin, Nicolai, À4a#uelpop#lalre de socfologfemarxisle, Paras,Anthropos,
1967
Brohm, Jean-Made, et al., Maré o# pas?, Paras,EDI, 1986.
Chavance, Bernard, et al., Àíarx en perspectft/e, Paras, EHESS, 1985..
Colletti, Lucro, De Rousseauà l,énine, Paris, Gordon and Breach,1974.

497
MARX. O INTEMPESTIVO
l BIBLIOGRAFIA

, Z.e A4ar=lsme ef bege/, Pauis, Champ lebre, 1976. Kautsky, Karl, Kaf'/ À4arx OeÉonomiscbe l,ebre#, Stuttgart, 1894.
, PolfflqKe et pbilosop#fe, Paria, Galilée, 1 975. Kolakowski, Leszek,Hlstoíre d# marxfsme,2 volt., Paras,Fayard, 1987.
, l.e Déc/in d# mar leme, Paras, PUF, 1984. Kirsch, Karl, À4arxlsme et pbl/osopbfe, Paras, Minuit, 1964.
Kart À4arx,Pauis,Champ lebre,1971.

..i=SG:ll$gEãZ;ZH3=b%W'=-!.'fõ!"''
'. l,a LogiqKe comme scfencebfstorfque, Bruxelas, Complexe, 1977.
, 1.'.4nti-Ka#fs&y, Paria, Champ libré, 1 973.
, Escritos poljfjcos, 2 vais., México, Folhos Ediciones, 1982.
Kosic, Karel, La 'Dlalectfq#e d# concref, Paris, Éditions de la Passion, 1988.
Denis, Henri, l,ogfq#e &ljgé/ielznee! syslême économiq#e, Paris, PUF, 1984. Labica, Georges,Le Slat#f marxista de la pbflosopbie, Bruxclas, Complexe, 1976.
Derrida, Jacques, SPectres de Maré, Paria, Galilée, 1993. , Le À4arxfsme-lénifzfsme,
Paria, Bruno Huisman, 1984.
D'Hondt, Jacques, De Nega/ à À4arx, Paras, PUF, 1972. . Kar/ À4arx, les fbêsessur Fe erbacb, Pauis, PUF, 1987.
D'Hondt, Jacques,(ed.), l,a LogfqKe de Mare, Paria, PUF, 1974. , Le Paradigma d# Granel-Hornu, Paria, La Broche, 1987.
Dognin Paul-l)ominique, l.es SenllersescarpasdK(lzpfla1, 2 vols., Paria, Cera, Labica, Georges e Bensoussan, Gérard (org.), Dfcfionnafre crlfiq e d marxfsme,
Pauis, PUF, 1982.
Desse, François, Hisfoire d# sfr#cf rallsme, 2 vais., Paria, La Découverte, 1992. e Texier, Jacques, Labrio/a d'Kn siêcle à /'aKtre, Paras, Klincksieck, 1988.
Duménil, Georges, l.e Comcepl de /of économfque íÜ s le Cáfila/, Paria, Maspc- Labriola, Antonio, Essafss#r /a concePffo# maférfa/isfe de J'bísfofte, Paria, Gor-
ro, 1978. don and Breach,1970.
Dussel, Enrique, l.a prod#ccion teoria de À arx, Mêxico, Siglo XXI, 1985. Lazarus, Sylvain, Po/fffg e ef pbi/osopbie dons I'oeut/re de LoKfs Alfa sser, Paras,
:--, macia # À4arr desconocfdo, México, Siglo XXI, 1988. PUF, 1993.
Économfe et socfétén' 6-7, À4arx ef la Pn de la prébnfolre Grenoble, PUG, 1994. Lefebvre, Henri, l.ogfque dorme//e ef /ogfqKe dfalectfqne, Paras, Éditions sociales,
Elster, Jo!, Kar/ À4úrx, #nc l fefprélaffon a#mlyfiq#e, Paria, PUF, 1989. 1947
Farjoun, Emmanuel e Machover, Molhe, l.aws o/ Cbaos,'Londres, New Left . Au-de/à d# sfr cf ra/fome, Pauis, Anthropos, 1971.
Lenin, Cabfers pbl/osopbiques, Paras, Éditions sociales, 1 973.
Fausto! Ruy, À4arx, /ogiq e ef po/lllgue, Paris, Publisud, 1986. Lõwy, Michaêl, La Tbéorle de la rét/olutfon cbezle je ne Maré, Paras,Maspero,
Furei:.François, Mar! ef ZaRévo/uffolz Érançafse,Paria, Flammarion, 1986. 1970
, Paysagesde la t/érfté, Paris, Anthropos, 1985.
Maspem, 1966. Rafiona/ilé ef frraliona/flé e éco#omfe Po/fligue, Paris, , Dfa/ectiq e ef réuolufíon, Paria, Anthropos, 1973.
, l.'ldée/ ef /e mafériel, Paras, Fayard, 1984. Lukács, Georg, Hisfofre et consciente de classe, Paria, Minuit, 1960.
Goldmann, Lucien, RecbercbesdlalecligKes,Pauis,Gallimard, 1967. Luxemburgo, Rosa, Jnfrod#ctfon à J'économfePo/ftfqKe, Pauis,Anthropos, 1970
, Marxfsme et sele cesbumai es, Pauis,Gallimard, "ldées", 1970. , l.'AccKm /affon d capita/, Pauis, Maspero, 1969.
Gramsci, Antonio, Cabfers de prlso#, 4 volt., Paria, Gallimard, 1978. 1992. Males,Henri, l.'Utopia selos Kar/ Maré, Pauis,L'Harmattan, 1994.
ossmann:Henryk, Das a&&umu/alionsund Zusamme bruc#sgesefzdes Kapf- , Conuoiter /'fmpossíb/e, Albin Michel, 1995.
ta/isllscben sysfems, 1929. ' ' '' "' Mandei, Ernest, Traffé d'économiemarxisle, 2 voas.,Pauis,Julliard, 1962.
. Marlc, I'économie politique classiqueet !e problême de !a dynamique, , La Formafion de /a Pe séeéconomfq e de Àlarx, Paras, Maspero, 1968
Paria,Champlibre,19i5. ' ' '"''--' '-''"''"-' , l,e Capffalisme d# troisiàme áge, 3 vols., Paria, UGE, 1976.
Guibert, Bernard, l.a Vfo/elzcecapirallsée, Paria, Cera, 1986. , ÀÍarxfsmo abierfo, Barcelona, Grijalbo, 1982.
Habermas, Jürgen, Aprês Maré, Paras,Fayard, 1985. E/ capital, cfen mãosde conlrot/erslas,México, Sigla XXI, 1985.
. Djscours pbl/osopblque de /a modernflé, Paria, Gallimard, 1990. , l.ong'Wat/es o/'(;zPifa/fsf Deuelopment, Cambridge University Press,1980
Hegel, Friedrich, Science de /a JogfqKe, 2 volt., Paria, Aubier, 1949. Mandei, Ernest (ed.), Rfcatdo, À4arx, Sra/Xa,Londres, Verso, 1984.
, Précis de I'eltcyclopédie des sciencespl7ilosopbiques, Paras,'Vt\n, 1987. Markus, Giogy, l,angage ef prodnclfon, Paria, Denoê1,1982.
HeUer,Agrüs, La Tbéotie des besoinscbezMare, Paria, UGE, 1978. Mascolo, Dionys, A la recbercbed'Kn coram nísme de pensée,Paras,Fourbis,
Henry, Michel, À4arx, #nle p#llosoP#ie de Zaréaliié, 2 voas., Paria, Gallimard, 1976. 1993
Hobsbawn, Eric J:, floria deJlmrxjsmo, 5 vais., Turim, Einaudi. . Le Coram Pzisme,Pauis, Gallihard, 1953.
Hyppolite, Jean,Éfudes sur Maré el bege/, Paras,Marcel Riviêre, 1955. Michel, Jacques,À4arx ef la socléfé/ rfdÍq#e, Paras,Publisud, 1983.
Jakubowski:.Frantz, l.!s SuPerslr cfKres Méologfq#es dons /a concePtfon ln:alérla- Mehring, Frantz, Kar/ Maré, bisloíre de sa t/le, Paras,Éditions sociales!1983.
lisfe de /'#isfofre, Paras,EDI, 1971. ' ' ' Merleau:Ponty, Les At,enfuresde la dialecflgue, Paras,Gallimard, 1955.
Joshua, lsaac, l.a Face cacbée d# Moyen .Age,Paria, La Broche, 1988. , Humanlsmeet terreur, Paras,Gallimard, 1947.

498 499
MARX. O INTEMPESTIVO
'v BIBLIOGRAFIA

Naif, Sami, Mac#iat/e/ et À4arx, Paria, PUF, 1984. Albarracin, Jesus,l,a eco#omla de mercado, Madri, 1991.
Negra,Antonio,.À4arx a#-d?làde Mare, Paras,Christian Bourgois, 1979. Alliez, Eric, l,es Temos capflawx, Paria, Cera, 1991.
Oe#werr') de Àíarx #lz slêc/eaPrês,trabalho coletivo, Paria, PUF,'198j Aristóteles, Leçolzsde pbysfqKe, Paria, PressesPocket, 1991.
Papaioannou, Kostas, De À4atx et d# l larxisme, Pauis, Gallimard, 1984. , À4élapbysique, Pauis, Presses Pocket, 1992.
Potier, Jean-Pierre,l.ecf res íla/fe nes de Maré, Lyon, PUL, 1986. Aron, Raymond, l.a Pbflosopbie crfffque de I'bfsfoire, Paria, Vrin, 1969.
Proust, Marcel? .A la recberc#e d# temos perda, Paria, Laffont, 1992. Bachelard, Gaston, La Dia/ecfiq e de la d rée, Paras,PUF, "Quadrige", 1989.
Riazanov, David, À4arxef Engels,Paras,Anthropos, 1967. , l,'lnt itio# de /'lms/a#f, Paria, 1931.
Robelin! Jean,À4arxfsmeet soclallsaffo#,Paras,Klincksieck, 1989. Barsoc,Christian, l.es Lendemainsde la crise, Paria, La Broche,1986.

li$ ãl HÜ HliUF:'g,*
l.es Rouagesd# capita/leme, Paria, La Broche, 1994.
Benjamin, Walter, l.e Lfz/re des Passagem,Paras capa/a/e d# XIXême sfàc/e, Paras,
Cera,1989.
Sacristan, Manuel, Sobre À4arx y marxismo, Barcelona, lcaria, 1983. , Éails français, Pauis, Gallimard, 1991.
, Pape/es de P/osoPa, Barcelona, lcaria, 1984. Bensald, Daniel, Walfer Benfamin, senfi#el/e messfalzlg e, Paras,Plon, 1991.
lama, Pierrc e Valier, Jacques, U e f Iroductfo# à /'écolzomfe PO/iffqKe, Paras, Bergson, Henri, Durée' ef sfm lla éilé, Pauis, PUF, "Quadrige', 1992.
Blanqui, Auguste, L'Élernflé par /es asares(1871), Paria, La tête de feuille, 1972.
Salama, Pierre, Sur /a z/a/eur, Paras,Maspero, 1975. Bonnaud, Robes, l.es AJfer anõesd progrês, Pauis,Kimé, 1992.
Bourdieu, Pierre, L'O#tologie Po/ftiqKe de À4artimHefdegger, Paras,Minuit,
Découvertee T92.Haic Hac, IHfroduclioH à /'écolzomie de Àlarx, Paria, La 1988
Sartre, Jean-Paul, Crflfque de /a rafson dia/ectlq#e, Paris, Gallimard, 1961. Boyer, Robert, l,a Tbéorfe de la fiegulatiolz, une alzalyse critfqzle, Paras,La Décou-
' Slfwaffo s pbi/osopbfques,Paria, Gallimard, "Tel", 1990. verte, 1986.
Schmidt, Alfred, l,e Concepl de naf re c#ez À arx, Paria, PUF, 1994. Boyer, Robert e Durand, Jean-Pierre, L'aprês-$ordisme, Pauis, Syros, 1993.
Sebag,Lucien, Marrlsme ef slr cinta/isme, Paras,Payot,'1964. Brossat, Alain, l.a Tbéorfe de /a réz/ol#liom pennzalzenlecbez /e jeune Trols&y,
Sêve, Lucien, U#e flzfrod#clion à /a pbi/osopble marxisfe, Paria, Éditions sociales, Paras,Maspero,1972.
Canguilhem, Georges, l.e Nofvnzalef le palbologique, Paras,PUF, "Quadrige", 1991.
;mlth,Tona, Tbe Logics of Maré's (;apitar, Replies to Hegelian Criticisms, Skate Centre d'étudeset de recherchesmarxistas, Le Àfode de produclfo# asiaflque,
UnivetsityoINewYorkPless,'19b0.' ' ''''''' Paria, Éditions sociales, 1967.
Sorel, Georges, Décomposflíon d# mar leme, Pauis, PUF, 1982. , l.es Socfélés précapifalisfes, Pauis, Éditions sociales, 1967.
, À4alérfa x d'u#e lbéorfe d# pro/éíariaf, Paria-Genebra, Slatkine, 1981. Cohen, Geram A., Kar/ ÀÍarx's Tbeofy o/ Hfsfo/y, A DeÓe#ce,Oxford, 1978.
, l,es ///usions d progrês, Paria-Genebra, Slatkine, 1981. Colliot-Thélêne, Catherine, À4ax beber et /'#isfoire, Paris, PUF, 1990.
Tombazos, Stavros, l.es Caüegoriesd# temos dons /'analise éco#oMfa#e Paria Coutnot, A.. A.., ConsidéTations sar !a marche des idées et des éuéttemetits dons !es
Cahiersdessaisons,1994. ' ' ' '''''''-"-' femps modemes, Pauis,Vrin, 1973.
Tosel, André, Praxis, Pauis, Éditions sociales, 1 974. , À4aférfalfsme,t/lla/ísme, faflomalisme, Paria, Vrin, 1987.
Toro, Patrick, À4arx ef le proa/êmede /'fdéologie, Paria, PUF, 1988. Darwin, Charles, l.'Origine des esPêces,Paria, Garnier-Flammarion, 1992.
Tran Duc.Thao, Pbénomeno/ogfe ef maférialisme dfalecliq#e, Pauis, 1951. Dastur, Françoise,Heideggeref la quesrfo d# femPS,Paras,PUF, 1990.
Vadée, Michel, Maré penseur d# possfble, Pauis, Klincksieck, 1992. Derrida, Jacques,G/as, Paris, Denoêl, "Médiations", 1981.
Valier, Jacques,U e criflqKe de /'éco#omfepolfffqwe, Paria, Maspero, 1982. Desanti, Jean-Toussaint, Ré/Zexfonss#r /e lemos, Paris, Grasset, 1993.
Vincent, Jean-MaEic, Féffc#fsmeet sociélé, Paris, Anthropos, 1973. Dockàs, Pierre e Rosier, Bemard, Rylbmes économiq#es, Paris, La Découverte,
, Crifiq e d !raz/afl, Paria, PUF, 1987. 1983
Yovel, Yirmiyahu, Splnoza ef aufres #éréffqKes,Pauis, Seuil, 1991. Dumont, Louis, Homo aeq#alis, Paria, Gallimard, 1977.
Zeleny, Jindrich, Die Visse scba#slogf&bei À4arx zllzd'dasKaPlfal, Berlim, 1968. Économies et sociétésam 7-8, Les mai4uementsde longa durée datasla pensée
éco#omique, Grenoble, PUG, 1993.
Englander, Jean-Loup, Po#r /'fncerfaln, Syllepse, 1990.
Fitoussi, Jean-Paul e Sigogne, Philippe, l.es Cycles écolzomiq#es, Paria, Fondation
PRIMEIRAPARTE nationale des sciencespolitiques, 1993.
Fleischmann, Eugêne, nega/ ef la poliíiq e, Pauis, Gallimard, "Tel", 1993.
4cfwe/ 114arx,Ffn d coram ?zlsme,act alifé d marxfsme, Paria, PUF, 1991. Feuerbach,Ludwig,À4anjáesfes
pbilosopbfques,Pauis,UGE, 1973.

500 501
MARX. O INTEMPESTIVO BIBLIOGRAFIA

, l.a Leçom de a siàcle, Anatólia, 1993.


f L'Harmattan, 1994. laffon el criffq#e de /a ralson économfq#e, Paras, Proust, Françoise, Kart, le ton de I'bisfoire, Pauis, Payot, 1991.
Fukuyama, Francis, l,a Fila de J'blsfofre ef le der ier #omme, Paria, Flammarion, . l,'Hlsfoire à contrefemPs,
Paras,Cera,1994.
Renan, Ernest, l,'Aue#ir de /a scíence, Paras, Calmann-Lévy! 1949.
Gardiês, Jean-Louis, l,a l,ogfqKe d# temos, Pauis, PUF, 1975. Ricoeur, Paul, Temos ef récit, 3 vols., Paris, Seuil, 1983-1985.
Goldmann, Lucien, l.#&acs ef Heldegga' Pauis,Denoêl, "Médiations", 1973 Rosier, Bernard, l,a Tbéorle des crises, Pauis, La Découverte, 1987.
Gould, StephenJ., 4ux racínesd# !empa, Paris, Grassct,1990. ' ' '' Ruelle, David, Hasard et cbaos, Paris, Odile Jacob, 1991.
, l,a ufe est be/le, Paras,Seuil, 1991. Samary, Catherine, La Crise, les crises, /'enje#, Paras?La Broche, 1987.
, l,a Paire a x dinosaures, Pauis, Seuil, 1993. Serres, Michel, l,e Passage d# Nora-OKesf, Paras, Minuit, 1986..
, Un #éflsson da s /a lemPêle, Paria, Grasset, 1994. Simmel, Georg, Proa/êlnes de pbi/osopbfe de /'#fsfoire, Paria, PUF, 1984.
Habermas, Jürgen, Connalssa ce ef fnlérêt, Pauis, Gallimard, 1986. Stirner, Max, L'Unfque et sa proprfélé, Pauis, Stock, 1978.
Hawking! Stephen, U e órêt,e #lsfofre d# lemos, Pauis, Flammarion, 1989. Thom,'Rcné, Parábolaset cafasfropbes,Paras,Flammalion, "Champs"! 1989.
Comme Geme t d femPs ef/iH de Ja P#ysiq#e, Paras, Flammarion. Travesso, Enzo, Siegfried Kraca#«, ítlnéralre d'#m ínfe//eclwe/nomade, Paris, La
"Champô", 1994. Découverte, 1994.
Hegel, Friedrich, l.a Raison dalzsJ'bfsfofre, Pauis, Plon, 1965. Trotski, Lev, Tbe Ffrsf Ffz/eYearsof fbe Coram nlsf Infer ariana/, Nova York,
, LeçoHS s#r I'#fsfolre de /a pbl/osopbie, Paria, "Folio-Essais", 1993. Monad Press, 1972.
Heidegger, Martint gire el Temos,'Paria, Gallimard,'1992. ' , La Rét/olullon permanelzle, Paras, Gallimard, "ldées", 1964.
, Temos ef Érre, em Q#eslions /V, Paras,Gallimard, 1990. Weber, Max, Hisfofre iconomfg#e, Pauis,Gallimard, 1991.
rkheimer, Max, l,es DébKfsde /a p#i/osoP#iebo#rgeofsede /'&!sfolre, Pauis, Wright, Eric O., InferrogafingIneq a/ily, Londres,Verso,.1994.
Yerushalmi, Yosef Hayim, Za&bor, Paria, La Découverte, 1984.
Husserl, Edmund, l,a P#é#omé#o/ogle ef Zacongele ce f fome d# /empa, Paria. Zea, Léopoldo, E/ posftft/esmoemÀ4exfco,México, 1984.
PUF, 1964. ' ' '
--, l.a Crise des scfeizceseiíroPéen#es, Pauis, Gallimard, "Tel', 1989.
lloh, .Makoloh, la Crise moldlaZe, rbéorie prafigwe, Pauis, EDI, 1987.
Kondratieff, Nicolai D., l.es Gramascyc/esde'Zacon/oncfare, Paria, Economiza. SEGUNDAPARTE
1992,comumaapresentaçãodeLouisFonvieillc. ' ' '
Koyré, Alexandre, ÉI des d'&fsfoire de la penséepbilosop#fq#e, Paria, Gallimard. Act el Maré, L'fdée d# sociallsme a-l-e//e elzcore at/e fr?, Pauis, PUF, 1992.
"Tel',1981. ' ' ' ' ' ' . Le #owt/eau sysfêmed monde, Paria, PUF, 1993.
Kracauer, Siegfried, H/slofy, Tbe l.asf Tblngs beÓorefbe l.ast, Nova York, 1969. , Paradigmasde la démocrafíe,Pauis,PUF, 1994.
Lefebvre, Henri, La l;flz de /'bfsfoire, Paria, Minuit, 1970. , Le marxlsme analytfq e anglo-saxolz, Paras,PUF, 1990.
Lcwin, Moshe, l.a Fofmatfon de /'UnfoH soviéfiq#e, Pauis,Gallimard, 1990. Anderson, Perry, Les Passagem
de /'Anliq ilé a# Áéoda/fome,Paras,Maspero, 1977
Louça? Francisco, Cycbs alia Growlb, Tbeorfes, À4elbods afzd Probiems, tese, , l.'Éfat aliso/utiste, Pauis, Maspero) 1977.
primeira versão, Lisboa, outubro de 1994. Andréani, Tom e Mare Feray, Discours sur /'lnégallfé parmf les bommes,Pauis,
R4aimõnides, Épírres, Paria, Gallimard, "Tel', 1993. L'Harmattan, 1993.
Mariategui, Jose Carlos, llzt/Ifaclon a la uma #wofca, Lama, 1989. Arrighi, G., Amin, S. e Gunder-Frank,A., Le Gralzd Tabu/te, Paria, La Décou-
Ma!!amao, Giacomo, 1/ politico e /e Ira sáormaflolzi, Bati, 1979. verte, 1990.
MciUassoux, Claude, Femmes,gre leis, capilaux, Paras,Masperol 1975. Bahro, Rudolf, L'A/ter afiue, Paria, Stock, 1979.
Missac, Pierre, Passagede Wa/in Benjaml#, Pauis, Seuil, 1987. ' Barcellona, Pietro, Le Rufo r d# Jfelzsocial, Montpellier, Climats, 1992.
Meses, Stephane, l,'Ande de /'bfsfofre, Paria, Scuil, 1992. Baudelot, Christian, Establet, Reger e Malemort, Jacques, La Pefffe-Bonrgeoisfe
Nietzsche, Friedrich, Comsfdérafio#s fnacf e//es, Paras,Gallimard, "Folia", 1993. en France,Pauis,Maspero,1974.
Popper, Karl, la Sociéfé ouz/erreef ses ennemfs,Paris, Seuil, 1979. Baudelot, Christian, Establet,Roger, Toisier, Jacquese Flavigny, P.-0., Qui fí'a-
, Misêre de /'bisforlclsme, Paras, Presses-Pocket, 1988. mai/letour q#i?, Paras,Maspero, 1979. . .. . ..
, Con/ecf res et réáwfaffons,Pauis, Payot, 1985. Bermann, Marshall, AI/ fbaf is So/Id Àlells falo Alr, Nova York, Simon and Schus-
, l.'Umit/ers Irréso/u, Paria, Hermann, 1984. ter, 1982.
, l.a Connaissa ce ob/ecffue, Bruxelas, Complexe, 1985. Betthoud, Àrnaud, La Tbéorie du trai/ail prodactif et imptoductif cbez Mare,
, l.a QKêíe fnac#euée, Paria, Calmann-Lévy, 1981. Pauis, Maspero, 1974.

502 503
MARX. O INTEMPESTIVO
'1 BIBLIOGRAFIA

Bihr! Alain, D# grama soir à /'allematft/e, Pauis, L'Harmattan, 1990. Roemer, John, A Ge era/ Tbeoty o/Exploitalion alzd Class, Harvard University
Bloch,Mare, l.a SocléféÁZodale,
Paria,Albin Michel, 1968. Press, 1983.
Bourdicu, Pierre, l.a Àffsêred# monde, Pauis, Seuil, 1993. Roemer,John(ed.), Analytfcal Marxfsm, Cambridge, University Press,1986.
, l.a Reprod#cfion, Pauis, Minuit, 1970. Sainte-Croix, Geoffrey de, Tbe ClassStrugg/ei fbe Ancienf Gree&World, Du-
l,a Disff clfo#, Pauis, Minuit, 1979. ckworth and Cornell University Press, 1981.
t/o#s de socio/ogie, Paria, Minuit, 1980 Schumpeter, Joseph, Cáfila/leme, soca/fome, démoctaffe, Paras,.Payot?1983.
Carne, James P.,/mx # is, /e x fn/l is, Pauis, Seuil. 1988 \ Imp&ialisme et classessocfales,Paras,Flammarion, "Champs", 1984.
Coutrot, Thomas e Husson,Michel, l,es Desff s d ffers molde, Paria,Nathan, Simmel, Georges, l.e Co#/7it, Estrasburgo, Circé, 1992.
Staniszkis, Janis, La Rét/o/ufion a#tolfmirée, Paras,PUF, 1982.
Daluendorí, RaK? Classes et conflito de classe dons les sociétés itidustrielles. de Therbom, Gõran, Scfelzce,C/ass and Socfely, Londres, New Left Books, 1976.
Gruyter, 1972. , Wbat Does lbe Rulilzg Class Wbelz it Rales, Londres, New Left Books
1978
DuménÜ Gérard, l.a Posffion de c/assedes caíres ef emp/oyés,Grenoble, PUG,
Toro, Patrick, l.a Raiso# classe/icalofre, Paria, Aubier, 1989.
Dumont, Louis,.Homo &ieraf'c#ic#s,Pauis,Gallimard, 1979. Trotski, Lev, DéÓelzse d# marxismo, Pauis, EDI, 1972.
S 0 c/asilos.
l marxismo y Jos eslwdlos a
ECOS, Madri. Akal IQQI Van Parijs, Philippe, Q#'esr-ceq#'##e socféfé/ suei,Paris, Seuil, 1991.
Giddens,Antony, Tbe CZassSfrucf re o/' lõe AdpancedSoclelfes,Nova York, Veblen, Thorstein, l.es Jngénle#rset /e cáfila/leme, Pauis,Gordon and Breach
1971
) Voslenski,Michel, l.a Nomenc/al fa, Pauis,Livre de poche,1980.
A Contempora7yCritique ofHistoricat Materialism, University of Ca\l-
fornia Press. 1981. ' ' ""'' Weber, Max, l.'Étbiq e prolesfafzfe ef /'esPrit d# capifalisme, Paris, PressasPo-
Gilly, Adolfo, Sacerdotes
y b#rocralas,México. 1981 cket. 1985.
Gorz, André, Slrat(Üie OKt/rlêreet Héocapffa/isme,Paria, Senil, 1964. Wittfogel, Karl, l.e Despofismeorfenlal, Paris, Minuit, 1964.
, .'ldfeK a# pro/éla laf, Pauis, Galilée, 1980. Wright, Eric O., C/ass, Crlsls and tbe Slale, Londres, New Left Books, 1978.
, À4étamorp#osesd Irai/afl, Paria, Galilée, 1989. , C/esses, Londres, Verso, 1985.
, CaPlfalisme, éco/ogfe, socfalfsme, Pauis, Galilée. 1 991. , Jlzfemogaffng Ineqz a/ily, Londres, Verso, 1994
naoermas,Jugen, JȎoriede I'agir comm# icaffon#e1,2 voas.,Paria,Fayard, Wright, Eric O. et al., Tbe Debate on Classes,Londres, Verso, 1989.

, Moral ef communicalfon, Paris, Cera, 1991.


Hegedus, Andrea, Sacia/fsm and Burla aacy,'Londres, 1976.
Kotarbinsky, J.t l.eço#s s#r I'#fsfoJCe
de la /ogique, Pauis,PUF, 1964. TERCEIRAPARTE
MacNaUy?David, J4gafnsff#e À4arhef,Londres, Verso, 1993.
Morin, Edgar, De /a leal e de /'URSS, Pauis, Fayard, 1983. Abula6ia, Abraham, ÉPítre des sePt t/pies, Paria, Éditions de I'Éclat, 1985.
Muguerza, Javier, Desde /a perple7fdad, Madri, FCE.' 1990. Bachelard, Gaston, l.e No#t/e/ EsPrif scieHli#que, Paria, PUF, 1934.
Nove, Alem, Tbe Ecolzomics o/ Feaseab/eSocülfsm, Londres. 1983 Bacon, Francês, l)# progrês et de la progression des sat/oiro, Pauis, Gallimard,
Parkin, Frank, À4arxism and Class Tbeofy: A Boutgeofs Critique Nova York, "Tel", 1991.
Badiou, A]ain, ]Waniáesfetour la pbllosopbie, Paria, Seuil, 1989.
Pla, AJberto, Alojo deproduccio asiático y Óor171acfo#es
eco#omfco-socfa/es [lzca , Conditioms, Paras, Seuil, 1992.
y 4sfem, México, EI Cabillito. 1982. ' ' ' ' '' "" "---- , l.'Érre et /'éuénemelzf, Pauis, Seuil, 1988
Polanyi, Karl!.l.a Grande Tra sáormarfo#,Pauis,Gallimard, 1983. Bagarolo, Tiziano, Àlarxfsme ed Ecologia, Melão, Neve Edizione Internazionale,
Poulantzas, Nicos, Paul/oir polffiq#e ef classessocfales, Paras,Maspero, 1968. 1989.
, b. CI«. «.l./« d«. l mPf",/j'"-' "/o«,a'#«i, t'a.i;,'S .Ú,'i$ii Bernal, John D., Sçiencef Hlstofy, Londres, 1957.
Portas, Larry l.es Classesjocfa/es m France, Paras, Éditions ouvriàrcs, 1988. Bertalanffy, Ludwig von, Tbéoríe généraledes syslêmes,Paria, Dunod, 1993=
3
covsky, Christian, l,es Dangersproáessionnels
d# post,o;r (1929), Paris,Mas- Biard, J. ct al., JnfãoducifoHà la l lct re de /a Scfencede Ja /ogfq#ede Hegel
vais., Paris, Aubier, 1983, 1987, 1991
Rawls, John, Tbéorfe de la /uslice, Pauis, Seuil, 1987. Bohr, Niels, Pbysiquealomfq#leet con#aissaHab#malHe,Pauis,Gallimard, "Fo-
, /usfice ef démocrafie, Paria, Seuil. 1993 lio/Estais 1991
Rawls, John (org.), J#dfuld ef /#srice soda/e (coletivo), Paras,Seuil, 1988. Brunhes,Bernard, l,a Deegradafio de J'énergie,Paria, Flammarion, 1909.

504 505
MARX. O INTEMPESTIVO BIBLIOGRAFIA

Buey, Francisco Fernandez, l,a ///usfon de/ método, Jdeaspara racfona/fsm Marcuse, Herbert, L'Oito/ogfe de nega/ ef la tbéorfe de /'blsforfcilé, Paras,Galli-
bie temperado, Barcelona, Editorial Critica, 1991. ' '"'"'" mard, "Tel", 1991.
Caletivo, C#aos ef délermfnfsme, Paria, Seuil, 1992. Martinez-Allier,'Joan e Schlüpman, Klaus, l.a ecologia y la economia, Mêxico,
1991

:#l$:iil@M?lgzm:iç:
:
Deleuzc'. Gilles, Spf oza, .p&llosopbfe pralfqKe, Pauis, Minuit, 1981.
Passet,Rena,L'Éco#omfque et le t/ft/alzf,Paras,Payot, 1979.
Planck, Max, L'llnzage d# mola(ü dons Zapbysiqu4emodernle, Paras,1963.
Poincaré, Henri, Science el métbode, Paras, 1908.
. La scfence ef /'bypofbêse, Pauis, Flammarion, 1968.
, La t/a/e#r de la scfence, Pauis, Flammarion, 1970:

:Ê%n'#mBÜãZEIÜm:,%: $$;,:1SgHg=ÊHH}Zm;' ''"l"«- '";


Friedmann, Georges,l.eib ir ef SPinoa, Paria, Gallimard, "ldées", 1975. coche, C\auge, La(=onnaissaKce et la loi dons ta pettséeéconomiqu+elibérate,
Foucault, Michel,.l.es Àlots ef les cõoses,Paria, Gallimard, 1966. Paras,L'Harmattan,1993. . , . . ."
i l,'Arc#éologfe d# sat/ofr, Paras,Gallimard, 1969. Schriidinger, Erwin, P#)psiq e q antfq e et représenfaffom d# monde, Paras,Seuil,
Freud, Sigmund,l.'Az/emird'K#e lllusion, Pauis,PUF, 1971.
, À4a/assedama/a clt/i/fsaffon,Pauis,PUF, 1971. Sartre 'Jean-Paul, Cablers tour #ne mora/e, Paria, Gallimard, 1983.
Georgescu-Rocgen, Tbe Emfropy l.aw and'f#e Economfc Process, Londres, 1971. Selleri, Franco, Le Grama Débaf de la fbéorie quanffque, Paras, Flammarion,
Geymonat, Ludovico, Scjenzae Realismo,Milão, Feltrinelli, 1977. "Champs", 1994.
, Ga/l/ée, Paria, Seuil, 1992. Serres, Michel, Éclaircfsseme fs, Paris, Flammarion, "Champô", 1994.
, Piloso/ía e P/oso/za de//a scfe#za, Melão, Feltrinelli. 1966. Spinoza, Baruch, L'Élbigue, Garnier-Flammarion, 1970.
--- Slorfa de/ pensfero P/osoPco e cfe li#co, Amo Garzanti Editore, 1972- Stengers, lsabelle, L'lnt/mtion des scfmces modernas, Pauis,La.Découvertc, 1993.
-, l.a t/olonté de cafre scfence, Paria, Les empêcheurs de pender en rond,
Gleickt James, La Tbéorie d# cõaos, Pauis,Albin Michel, 1989.
Gortari, Eli de, Dia/ecffcade /a #siaa, México, 1986. ' Stewart lan, Dieta /oue-t-fl a#x dés?, Paria, Flammarion, "Champs", 1994.
Halbwachs,. F.t l.es. Tbéorles de la ca#salflé, Paras,PUF, 1971. Thom, René, Prédfre n'esl pas exp/fquer, Paras,Flammarion, "Champô", 1993.
megei,rneanch, J'»énoménologfede /'Esprif, 2 vais., Pauis,Aubier-Montaigne, Tosel,'André, D# matéria/fomede SPi oza, Paras,Kimê, 1994.
Vatin, François, Le Traz/ail, économie ef pbysiq#e í 780-1830, Paria, PUF, 1993.
Vemadski, V. 1 , La Bfosp#ête, Pauis, Félix Alcan, 1926. . ....
Vivien, Franck-Dominique, Economiaet écologie,Paria.La Découverte,iVV)-

m ;=:K::'==;m',..;:;:Hlg;;l;,....
ef des mal#émaligwes, Paria, PUF, 1993.
Weber, Max, Essafs s#r la fbéorle de la sclence, Paras,Plon, 1965.
Whitehead, Alfred N., La Scienceet le monde moderna, Paras,Rocher, 1994.
, Auenfures d'idées, Paras,Cera, 1993.
Jonas, Hans, Le PdlzciPe de espo#sabílité, Pauis, Cera, 1992. Yakira, Elhanan, l.a Ca sa/ifé de Ga/f/éeà Kanf, Paras,PUF, 1994.
Kapp, K. W., l,es Coúts socfawxdais /'économiede marc#é,Pauis,Flammarion,

ng::::=J=' t Ym«;«'.«. ''«' " ,",''««' ."':,«. ., '.«. "

Latour, Bruno, N'o#s #'auons/amais éié modemes,Pauis,La Découverte, 1992.


Leibniz, W. G.: De /'#orizo# de Za doctrf e ##malme, Pauis, Vrin, 1993.
, À4olzadologie,
Paria,
Livredepoche,1991. ' ' '

Üm;gZWH$n=W*«,:','.
Luçrécio, De Za maf#re, Paria, Gamier-Flammarion, 1964.
Mandelbrot, Benoít, Les Ob/ers/}acfals, Pauis,Flammarion, 1990.

506 507
O texto deste !ivro foi composto em Sabor,
desenho tipográfico de Jan Tscbicbold de 1964
baseado nos escudosde Ciaude GaramoBd e

Jacques
Sabem
no séculoXVI. emcopo 10/13.5.
Paratítutas e destaques,foi Htitiwda a tipografia
Fmtiger desmbadapot Adrian Fmtigw em 1975.

A impressãose dm sobre papel Cbamois Fine 80 g/mz


pelo SistemaCamion da Ditiisão Gráfica
da Distrib idwa Record.

Você também pode gostar