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O DILÚVIO

DAS

CONSCIÊNCIAS

Por Joseph Taigen


Havia uma época em que não se conspirava, o dilúvio incendiara a terra
conhecida. Tudo começou com um sopro, um sopro que gerou vida. Depois
sobreveio, e estou danando-me para que gostem da minha escrita. Não espero que
me digam “continua” porque nunca mo disseram face a nenhuma coisa. Tudo foi
arrancado a ferros. Também o será com esta história. Desejo provar que ainda
acredito em mim mesmo como escritor e como pessoa ou actor social. Tudo tem um
ar pesado. A adolescência era um sufoco, uma inquietação. Não havia quem me
desse respostas e acho que não gritei demasiado alto para ser ouvido bem longe,
onde queria estar. O sol brilha, é apenas uma observação. Cansei-me de ser bom
demais, preocupado com os demais. Um psicanalista que não recebe dinheiro. Um
psicólogo que não tem rendimentos. Não encontrei conforto na ciência, na
literatura algum, na religião nenhum, perdoem-me os crentes. Aquela voz que me
incomoda, as vozes que me incomodam. É tempo de parar. Estranho, dizem que
parar é morrer. Eu prefiro morrer aos poucos na ponta de um cigarro. Mas parece-
me que vou deixar de ser viciado. Posso não deixar de fumar, mas não serei mais
viciado. Já não a tempo de escrever alguma coisa como Proust, mas isso não me
deve preocupar. Nunca alguém me convidou a publicar, talvez me deva convencer
de que não tenho jeito, contudo não tenho a certeza de não ter jeito, estou numa
fase em que o que conta é a transpiração, porque a inspiração é mínima. E se a
transpiração é o que conta, a inspiração sempre se arranja.

Rosa Maria habitava numa cidade do final do século XX, rodeada de prateleiras de
livros. Seu marido, José Carlos vivia na mesma casa, na mesma cama dormiam, mas
há muito tempo que não se davam como na juventude, quando decidiram casar cedo.
A cidade onde viviam seria Lisboa. A Lisboa dos carros desordenados transitando,
das capelinhas de intelectuais, dos acontecimentos culturais, a Lisboa dos doentes
mentais e dos pobres. Seria de esperar que noutras cidades europeias houvesse
mais doentes metais que em Lisboa. Contudo, a ligação a África parecia
intensificar tudo isto. José Carlos era um português típico: audacioso,
hospitaleiro, adaptável a todas e mais algumas situações. Tinham um filho,
Fernando Heitor. Fernando Heitor tinha 15 anos e começara a fumar. Era fonte
das preocupações dos pais, que mimaram o filho com todos os privilégios e isso
parecia não ter chegado. Rosa Maria era professora e parecia que nada podia
fazer pelo seu filho. Contudo, um dia tudo mudou. José Carlos passou fumando
cachimbo, pois decidira não travar mais o fumo. Seria uma opção lógica em nome do
filho. A felicidade contínua não existia em casa e parecia não existir em lado
nenhum naquele país do fim do século XX, porém vislumbrava-se uma esperança de
conseguir remontar a tempos idos, a um passado que se projectava no futuro. Um
dia Rosa Maria decidiu-se afastar. Seria um acto irresponsável se não fosse tudo
pensado. Comemoravam-se os cem anos do nascimento de Agostinho da Silva. O
homem que acreditava na consciência após a morte. Mas não valia a pena. O filho
fumaria até não poder mais. Enquanto não mudasse de estilo de vida, não deixaria o
tabaco. Seja como for, havia pecados maiores no mundo e se Françoise Sagan
gostava de carros e fumava, por que não se alistar nesse exército de

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insatisfeitos? Este é, pois, um romance para quem já perdeu a esperança a nada
mais tem a perder senão a dignidade. Um fundo moral percorre toda a narrativa,
mas trata-se somente de um pano de fundo para as narrativas, não pretendendo
interferir nos desejos e ambições das personagens. Talvez, decerto que sim, o que
o seu autor pretenda fazer não seja mera provocação, como tem acontecido com
uns cartoons publicados no reino da Dinamarca. A religião é coisa com que não se
deve brincar e longe de mim querer sucesso à custa de bajular a religião dos
outros. Acreditei eu um dia em Cristo, ainda acredito num Cristo histórico e num
Deus que corresponde de alguma maneira à nossa consciência de humanos.
Fernando Heitor seguia as leis da imitação e embora não sendo um ser
profundamente honesto, cultivava uma certa boa disposição nos seus dias, não
enjeitando qualquer possibilidade de se envolver com jovenzinhas da sua idade. O
amor ainda não lhe dizia nada, talvez estivesse esperando pela mulher certa antes
de se decidir, contudo não lhe faltavam oportunidade naquele reino de Portugal
onde segundo as últimas estatísticas 60 por cento eram mulheres. Com toda a sua
conduta, Fernando Heitor arranjara modo de ser odiado na sua terra. A sua
consciência parecia tremer quando lhe falavam nas experiências do passado, porém
era desse passado que tinha de resgatar-se, de resgatar todo o seu ser. Contudo,
não se podia rever senão na sua infância, porque a adolescência fora condicionada
demais e a juventude fora errante. Podia dizer-se que simplesmente procurava
uma mulher para amar, contudo a questão parecia não se resumir a essa simples
procura. Ou procuraria uma alma gémea a quem confessar toda a sua vida, mesmo
sabendo que Nietzsche fora abandonado por confessar à sua mulher toda a sua
vida. Enigmático e inigualável, assim se assemelhava o filósofo naquele fim de
século.

CONTRA A FATALIDADE DA LITERATURA

Na literatura, há instalado uma certa crença que evolve de um pensamento laico.


Ora, é preciso acreditar, nem que seja na raça humana, no sentido de justiça,
acreditar até no erro, para não incorrermos nele muitas vezes. Contudo, o nosso
cérebro é coisa delicada, não o devemos expor à realidade sob pretexto da
liberdade de expressão. Convém-nos apreciar o belo, mas não nos demorarmos
nele, sob pretexto de coincidirmos em falsas consciência que não nos ditam de
modo algum o que fazer no dia seguinte. Convém-nos cultivar uma certa liberdade
se pretendemos dizer alguma coisa sobre o mundo. Contudo, como vão longe os
tempos de juventude, no entanto há que acreditar que a juventude está sobretudo
no espírito. Convém acreditar nisso. Ao lado disso, convém confessar ao caro leitor
que o dom da escrita não nasce connosco, mas cultiva-se, aprende-se, com escrita
pois e com solidão, com o exercício de observar o mundo, o que envolve toda uma
gama de emoções onde não escapa o sofrimento. Convém, pois, que façamos do
sofrimento, falo do sofrimento moral, algo de válido e que seja convertido em
alegria. Como? Comunicando, falando, escrevendo, lendo, conversando. O pior é

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quando o sofrimento tem algo de psíquico e sexual. A teoria que escrevemos não
pretende emanar pretensiosamente do corpo como matéria dejecta, mas é uma
emanação do espírito, muitas vezes atribulado e só e que procura na escrita o seu
refúgio. Quem sabe para seduzir alguém. Por isso proponho-me cultivar a fusão
ciência-literatura piscando um olho à filosofia.

Fernando Heitor, José Carlos e Rosa Maria tinham vivido na mesma casa até o
filho ter a adolescência garantida. Até aí tudo correra bem, contudo a pouco e
pouco os resultados na escola iam enfraquecendo e o filho preocupava-se mais com
damas do que com xadrez. José Carlos, com 42 anos, decidiu escrever um livro.
Tomara a decisão por si próprio, no entanto falara a alguns amigos da ideia e eles
acharam bem, pois ele sempre fora algo original, um homem da técnica, era
engenheiro informático, mas que tinha sempre pronta a sair da boca uma ideia
libertária ou literária, panfletária. José Carlos decidira escrever um romance
geracional, em que interviessem personagens de tempos e geografias distintas,
mas unidas entre si pelo parentesco. Teria de analisar a sua própria família para
ter um contraponto. Não contava ser conhecido como escritor. Faria uma edição de
autor para distribuir por algumas livrarias. Se tivesse receptividade, poderia
continuar. Afinal o que há de melhor para quem escreve do que o contraponto do
leitor enquanto é tempo, enquanto este ainda vive? Agora que Rosa Maria o
abandonara, tinha tempo de mágoa para escrever. Seu filho Fernando Heitor
encontrara trabalho numa tipografia. Rosa Maria encontrava-se com José Carlos
ao fim de semana, altura em que discutiam sobre a situação do filho, o carinho que
lhe deviam de dar. O país ia de mal a pior, Portugal conhecia todos os malefícios do
desenvolvimento. Aparentemente, as pessoas tinham mais coisas, uma classe média
parecia estar a formar-se, mas havia pessoas que passavam por grandes
dificuldades, como os desempregados, os estudantes de artes e letras. A par
disso, o isolamento de algumas regiões não facilitava a comunicação. Contudo, cada
vez mais pessoas tinham computador. Será que o sabiam usar. E o computador é
qualquer coisa de tão impessoal. Perdia-se talvez a magia dos momentos face a
face. Pedro Vasconcelos habitava numa aldeia perto da linha do norte, tinha a
idade de 35 anos, contudo não tinha emprego nem grandes perspectivas. Era
licenciado mas não podia dar aulas, o ministério não lhe reconhecia capacidade para
tal. O que é que podia fazer?

Noite alta. O sono foi aplacado durante todo o dia. José Carlos vê a sua vida
esvair-se da alma, como um corpo que jaz inerte, exangue, depois de um embate de
automóvel. A religião acabou para este homem, a esperança acabou, extinguiu-se a
vontade. Foi ele próprio que se condenou, como se fosse obrigado a demonstrar
alguma coisa. Acabou a literatura, a ciência, o trabalho. Tudo o que pode fazer é
pairar entre as pessoas, lamentando o seu passado, sem imaginação sequer para
inventar o futuro. Um homem gasto e consumido pelos problemas, os seus e os dos
outros. Chamar-lhe-iam um frustrado. Simplesmente cansava-se das coisas, não
havia ideais que o arrebatassem já. Isolado, com pouca comunicação com os outros,
dificilmente iria conseguir alguma coisa daí para diante. A sua consciência

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procurava os males que pudesse ter feito e contudo não encontrava nada. Só a vida
lhe percorria ainda as veias, como testemunho de que algo fora, algo desejara
deste mundo.
José Carlos ainda está junto dos seus pais. É Sábado, talvez os outros continuem
tendo a sua vida que ele julga melhor, talvez muitos se tenham perdido pelos
caminhos ínvios da vida. Este tempo de espera é-lhe doloroso e não há muito que
possa fazer para o modificar. Entre livros e música vive. Contudo não parece haver
muitas formas de comunicação com alguém que verdadeiramente o toque e difícil
seria encontrar alguém com uma experiência semelhante à sua.

UMA NOVA ETAPA

Era Inverno e José Carlos recebe a notícia de que a sua nova namorada, Maria
do Rosário, está grávida. É ela própria que lho comunica do seu trabalho. Trata-se
de uma menina. Havia uma epidemia de rapazes na aldeia, como se secretamente se
fizesse uma selecção, deixando os casais terem apenas rapazes em detrimento de
meninas. Estranho. O país não precisava de ser reforçado nas suas forças
armadas. Além do mais, as moças também podiam entrar nas forças de defesa e a
estratégia de defesa orientava-se em forma de cooperação. Portugal via aumentar
os crimes violentos. Como podia escapar aos males de civilização que outros países
tinham conhecido? Era isso o desenvolvimento, o custo do desenvolvimento? A
partir daquele momento, José Carlos deixou de pensar em termos de satisfação
dos seus desejos sexuais. Havia finalmente alguém que importava e o curso da sua
vida seguia de modo a garantir um futuro a alguém do seu sangue. Se pai
continuava indiferente, em casa evitava-se falar da sua vida, dos seus projectos,
como houvesse um pacto de silêncio, como se José Carlos tivesse sido esquecido a
pouco e pouco e tivesse perdido importância para os seus. No entanto, deixara de
pensar em termos de desejo sexual. Importavam-lhe agora outras coisas:
assegurar um futuro para a sua filha, já que não podia contar com o seu pai para
nada. Como iria ele receber a criança? Pressentia que tinha de se mudar em breve
para algum lugar e Lisboa podia ser uma boa opção. Teria, como todos os outros, de
escolher um ambiente onde sua filha Lili vivesse e crescesse saudavelmente, em
todos os aspectos. Seja como for, não iria ficar mais à espera de alguma reacção
de seu pai. Na aldeia talvez falassem dele pelas costas, ele pressentia-o, sabia-o,
desconfiava. Talvez que não. Talvez as pessoas estivessem ocupadas com as suas
próprias vidas. A pouco e pouco, José Carlos sentia o isolamento como o frio
cortante nas mãos das noites de Inverno. Não se relacionava com nenhuma elite
intelectual ou com escritores e isso fazia-o desesperar, fumar mais, pensar que a
sua vida estava sendo em vão. Sei filho, Fernando Heitor, tinha já 18 anos. Era
altura de se decidir se queria trabalhar se queria frequentar a universidade.
Ninguém escreve sobre estudantes, porque contar alguma coisa da sua vida
académica? A universidade naquele tempo em Portugal atravessava momentos de
transformação. Os cursos diminuíam de duração segundo um tratado de Bolonha.
Entretanto, José Carlos, com 42 anos, estava já desde há muito tempo inscrito em

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filosofia na Universidade Clássica de Lisboa. Estava numa encruzilhada quanto ao
seu futuro. Nunca é tarde para se escolher que profissão ter. Se o seu curso de
Ciências Sociais não lhe tinha dado sorte, se não se distinguira, alguma coisa podia
fazer ainda. Ser professor de Filosofia era uma delas. Só precisava de um
trabalho para pagar o curso. Pensara em Psicologia, não pensava mais em seguir a
vida académica como sua mulher Rosa Maria, que nessa altura era professora
assistente na Universidade do Porto em biotecnologia. A questão podia ser
dramática, porque José Carlos podia ter dado um bom filósofo, mas tal não
acontecera devido a não ter controlado o seu desejo. Era esse o seu único mal.
Tinha sufocado o desejo entre lençóis mesmo com a presença de Rosa Maria. Mas
agora era diferente. Deixara de pensar em termos de desejo sexual e isso podia
ser um bom caminho para uma segunda etapa da sua vida mais feliz, dando alguma
felicidade à sua filha. Mostrando o bem pelo mal. A vida não lhe correra até àquela
altura como ele sonhara, talvez não tivesse estofo para ser feliz, talvez muita
gente não quisesse que ele o fosse, mas fora sempre seu intento a felicidade,
antes do dinheiro e do poder. Porque não fora um homem poderoso e endinheirado
até àquela idade já não o iria ser na segunda etapa da sua vida. Restava-lhe
trabalhar e envelhecer com a maior dignidade possível. Essa dignidade não era
incompatível com o facto de ter dois filhos, ambos promissores a nível
profissional, um com 18 anos outro com poucos meses, num país em crise onde era
um grande problema encontrar um jardim de infância para crianças. Seja como for,
naquele ano de 2006 vivia-se. O sol continuaria a nascer, senão para todos, pelo
menos para uma grande parte de nós. E se alguma preocupação com o futuro do
país havia, se a sina havia sido o sofrimento e o isolamento moral e sexual, que se
danasse, dali em diante podia ser bem melhor, pois se ajuntava mais gente ao caso
e um país à beira-mar plantado podia sonhar com melhores dias. Nem todos
conseguimos o que desejamos, por vezes nem sequer sabemos o que desejamos,
tudo depende um pouco da informação que temos. E se em jovens temos ideais e
insistimos até longe idade em sonhar e lutar pelos nossos sonhos de adolescente,
não temos culpa disso. A insistência transforma-se em persistência, a persistência
em fatalidade para sermos finalmente felizes, pois que não dá mais para sofrer,
que não somos povo masoquista. José Carlos era um pouco feito à imagem do seu
país. Era português e tinha orgulho nisso, porque não dizê-lo a toda a gente. Não
era só o passado como povo que importava mas a consciência de que a realização
dos seus amigos na vida contava também alguma coisa e era razão para se sentir
feliz. Ele afinal não falhara. Percorrera um caminho inverso aos outros, o seu
próprio caminho, espinhoso. Mas dava por si aos 42 anos como um homem feliz e
realizado, mesmo que no dia seguinte não tivesse local de trabalho nem subsídio de
desemprego e já acordasse cansado.

SONHANDO COM LISBOA

Na realidade, José Carlos não sonhava com Lisboa. Desejava-a. José Carlos
sonhava acordado com uma Lisboa que havia conhecido intermitentemente. Não a

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Lisboa dos espaços fechados, das angústias e da solidão, mas a Lisboa da
solidariedade, das pessoas que se comunicam sem se conhecerem, a Lisboa popular
e alegre, dos amigos estranhos que encontramos na rua. Passara mal naquela
cidade, decerto. Os tempos de estudante, que podiam ter sido os melhores da sua
vida, não o foram. Mas agora ainda não era tarde, estava disposto a mudar, a
aceitar a vida da cidade. Era onde tinha ainda poiso. Era onde iria passar o resto
da vida. Nesse tempo ansiava por morrer de facto em Lisboa, acompanhado de sua
nova mulher, Maria do Rosário. Pela primeira vez sentia o fado que havia em si, a
saudade. Naquela manhã de Fevereiro o sol entrava pela sua sala de estar e ele lia
um livro de Ovídio, “A Arte de Amar”. Teria de regressar a um palco, mostrar-se,
revelar-se, não importava o passado, não importava o que lhe tinha acontecido, o
que tinha feito, o que tinha deixado de fazer. Talvez o esperasse uma vida normal
na capital portuguesa. Talvez estivesse ali perdendo o seu tempo, na aldeia. Toda a
gente sabia mas ninguém ousava dizer-lhe. Não precisava de ajudas. A seu tempo
saberia viver auto-suficiente, era esse o seu papel na sociedade se é que isto é
papel que se tenha na sociedade. Certamente que iria passar por muito sofrimento,
mas não seria mais atroz que o esquecimento, a indiferença. Antes sofrer do que
ficar indiferente. José Carlos não tinha carro, contudo lembrava-se do
dramatismo de viver quando viajava no banco de trás desde Coimbra com a irmã
grávida conduzindo e a mãe no lugar do morto. Era um sentimento de tristeza e
melancolia, uma suspensão no tempo, um projecto de filho que tardaria em
realizar-se, o princípio da paz de que necessitava finalmente para começar a
trabalhar, a realizar os seus sonhos. Dava uma boa cena de filme aquela passagem.
Um filme passado na Europa, em Portugal. Depois, lembrava-se de quando tinha 14
anos e recebera uma carta da primeira namorada. A mãe lera e não gostara, como
se fosse ofensiva. José Carlos tinha levado a mal e tinha ido para o seminário por
causa disso. Fugira ao amor, como fugira agora Rosa Maria. O que levará alguém a
fugir do amor? A falta de dinheiro para o sustentar? Os outros?

Entretanto, Fernando Heitor sentia-se aprisionado com os seus 17 anos. A


adolescência havia sido difícil, só tinha boas recordações da infância, tirando o dia
em que ficara deitado com dores de cabeça. Os pais haviam-lhe facilitado o
caminho, os amigos também, mas ele continuava a exigir de si próprio mais e mais.
Seu pai andava pensativo naqueles dias de Inverno, como se tivesse alguma coisa
importante para lhe dizer e que por vergonha ou simplesmente por receio de que
os outros falassem, alguma coisa que lhe atormentava a alma. Fernando dirigiu-se à
garagem onde o seu pai lavava o carro numa manhã, o sol brilhava num entretempo
de chuva. Iniciou uma conversa trivial para lhe sacar o que realmente o
atormentava. A meio da conversa seu pai começou falando em tom confessional:
”Sabes, não posso guardar para mim um segredo de que eu próprio evito pensar
para não chafurdar na lama. Sim, porque é coisa de lama mesmo. Estou preocupado
que o meu comportamento enquanto jovem influencie o teu futuro, Heitor”. “Mas
porquê, o que fez de tão grave o senhor para me poder influenciar assim tanto?”-
perguntou o filho intrigado. “Não sei como te explicar. Eu cometi o pecado de não

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amar. De não amar segundo a religião”. Neste momento Rosa Maria surgiu de carro
perto da garagem. José Carlos parou a narrativa. Ele sabia que Rosa Maria o tinha
deixado por ele ter sido honesto com ela e lhe contado todo o seu passado. Mesmo
para uma professora era difícil de compreender. No entanto, Rosa Maria dirigiu-se
ao filho e viu a sua consternação pelo estado do pai. Afinal ele estava arrependido,
mas a culpa consumia-o cada vez mais, dia após dia. Rosa Maria como que ansiosa
como quando se conheceram interpelou o seu ex-marido dizendo-lhe diante do
filho: “José, voltei para ti. Não foi fácil tomar esta decisão, mas na realidade não
encontrei nenhum homem como tu. Voltei, Zé”. Os olhos de José Carlos
conheceram um brilho intenso que seu filho viu, olhou para ele e em seguida
abraçou a mulher.

O ESPÍRITO ITINERANTE

Naqueles dias, ficara em casa praticamente uma semana. Recusava-se a ver


alguém, como se tivesse vergonha de si próprio. José Carlos perdera o emprego
mas tinha consigo Rosa Maria, que começava a estranhar o comportamento do seu
marido. Era estranho como a sua presença não fizera efeito quase nenhum na sua
situação. Era um homem rendido, sem coragem para lutar dia-a-dia como os tempos
pediam que se lutasse. Rosa Maria trazia o sustento para a casa. Até que um dia,
uns meses depois de se terem reconciliado, José Carlos encontrara um novo
emprego. Não qualquer coisa de definitivo, mas pelo menos dava para ele se
realizar.
Um novo dia nasceu, glorioso, cheio de promessas para a família de Fernando
Heitor. Nos seus vinte anos contemplava já o seu futuro e havia de ser arquitecto
ou desenhador de casas, nenhuma das ocupações do pai pretendia seguir, aliás,
José Carlos não era exemplo para ele de como escolher uma profissão. O pai de
José Carlos fora construtor civil e quisera que os filhos seguissem o mesmo
destino, tirando a menina Filomena. No entanto, José Carlos seguira um destino
particular. Atento aos apelos do mundo, fizera estudos em ciências sociais e
embora não tivesse exercido nada de relevante, continuava a ler umas coisas, cada
vez mais preocupado com o andamento das coisas do mundo. Passara-se uma
geração e no entanto que salto de nível qualitativo, mesmo que não fosse real. José
Carlos era um ser personalíssimo, especial, que remava contra a maré onde quer
que estivesse. Nas cidades mais próximas, Leiria e Coimbra, contando também com
Pombal, a maioria conseguia empregos por favorecimento político ou por
conhecimentos. Mas por esta razão ou por outras, José Carlos não tinha quem lhe
valesse. Por isso deslocava-se frequentemente à biblioteca da cidade mais próxima
para ler jornais e ver sobretudo as ofertas de emprego. Mas como fazer, agora
que Maria da Conceição estava grávida e que a sua ex-mulher se reconciliara com
ele? Mas estava farto da cidade mais próximas e de todas as cidades próximas.
Tudo o que evitara durante os aos anteriores resumia-se agora a uma palavra:
dinheiro. Tudo o que interessava às pessoas era dinheiro, era tudo uma questão de
dinheiro. Era este o elemento perverso das relações sociais.

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Entretanto, a pequena Patrícia nascera, numa tarde de Julho, em pleno verão
português. José Carlos estava aflito com o dinheiro. Com o dinheiro que não tinha.
Escrevera uma novela onde contava episódios que se passaram com ele, em parte
ficcionados, em parte realidade pura. Precisava que alguém visse o original, alguém
que ele não conhecesse. Como recebia alguns currículos na morada que tinha em
Lisboa em nome de uma editora fantasma que criara, resolveu contactar uma
dessas pessoas. Era uma jovem que parecia ter mais de profissional do que
simpático. Tinha tirado um curso na área, é certo, mas, com os seus 27 anos, como
poderia ela algum dia avaliar o conteúdo da obra de José Carlos? Como lhe podia
dar uma opinião, subjectiva ou objectiva, mas que fosse uma opinião. Nesse tempo,
José Carlos era simplesmente um autor, depois de tantos anos a escrever, que
procurava ser publicado. Não entrara no circuito comercial das obras literárias.
Sabia que o que se publica em grande número imediatamente após a feitura não é o
melhor. É o que as pessoas querem. Simplesmente não é o melhor. Para a jovem que
ele contactara, José Carlos era mais um homem, mais um editor tentando ganhar a
sua vida. E certamente que tinha muito dinheiro. Antes de se comprometer, José
Carlos ainda pensou em rever ele a obra, mas parecia-lhe atrair o abismo de ver
uma obra publicada e simplesmente, cheio de dívidas, estava arranjando mais uma.
Deviam-lhe dinheiro, ele devia dinheiro. Havia que regularizar as coisas. Seja como
for, iria pagar a revisão da obra. Lembrou-se de dar o telefone da pessoa que lhe
devia dinheiro a quem devia dinheiro, a essa jovem e eles que se entendesse.
Preferia ficar a sofrer, sem dinheiro para o dia-a-dia do que honrar os seus
compromissos. Era assim nas coisas pequenas, seria assim nas coisas grandes. Seja
como for, depois daquilo tudo voltaria à sua condição permanente de pobre e
trabalharia por conta de outrem. O que mais o revoltava seria a possibilidade de
encontros amorosos que os outros poderiam ter através da literatura. Ele não
ousava subir a um palco e talvez não fosse esse o seu objectivo. Fosse como fosse,
iria calmamente a Lisboa no dia seguinte e talvez adiantasse algum dinheiro à
jovem sob compromisso de ver o seu trabalho e depois lhe pagar o resto. Não fora
a Lisboa, o que iria pensar a jovem revisora? Simplesmente podia imaginar que
José Carlos era um caloteiro, alguém que não honra compromissos. Mas a coisa não
era assim tão simples para José Carlos. Não importava nada mais. Não tinha de
fazer diferente de seu pai, por espírito de contradição. O saber viria ao seu
encontro um dia destes, mais tarde ou mais cedo, não adiantava correr atrás dele.
Patrícia decidira enveredar pelas artes. Seu pai avisava-a que bem podia vir a
encontrar legiões de panascas e fufas mas não lhe servia de nada. Quando somos
jovens não gostamos que nos dêem dicas, sobretudo os adultos, pois José Carlos
irei deixar caminhar a filha como ela pretende, sem fazer grandes imposições,
comigo também não o fizeram. Apenas lhe metia confusão ver a filha metida com
panascas e fufas que fazem dinheiro com o seu corpo. Nesse sentido, as
prostitutas são mais honestas. Mas se queremos algo de mais refinado estilo
Catherine Millet e se queremos algo que nos renda dinheiro, investimos na arte. É a
plena exploração do cérebro humano. José Carlos nunca ambicionara estar
ocupando um lugar institucional, prefiria ver as coisas de fora. Naqueles tempos, o
mundo retinha tudo o que ele tinha feito e não se lembrava de que ele estava mais

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vivo do que nunca. Esquecera os tempos de seminário, de privação física do
contacto com miúdas, da privação nos tempos de faculdade. Eram os tempos da
livre iniciativa, que poderia ter feito? Que culpa tinha que as colegas não
quisessem ir com ele para o seu apartamento? Não podia pensar mais nisso, o
melhor seria esquecer. Mas como esquecer todo o sofrimento por que tinha
passado? Será que alguém tinha de pagar por isso? Essa é que era a questão. O
facto de se ter convencido das ilusões que lhe incutiram e de isso ter afectado a
sua vida. No meio desta confusão, o que pensar do destino da pequena Patrícia?
Iria saber ela como a fidelidade amorosa é caminho difícil e ínvio, que iria ser
assediada por todos e mais alguns para dormir e depois fazer sucesso com isso?
As pessoas simplesmente não tinham nada na cabeça. Nada havia de coerente, nada
de profundamente pensado. Talvez fosse melhor para José Carlos continuar assim,
ao sabor do vento, sem grandes pressões, com dignidade no porte e no andar, com
coragem mais uma vez para seguir uma lógica qualquer, seguir um caminho. Agora a
questão seria: com Rosa Maria ou com Maria da Conceição? O pior de toda esta
situação é que José Carlos tinha um problema de tabaco e, aos trinta e seis anos,
de disfunção eréctil. Como iria desejar uma das mulheres, aquela que escolhesse e
aquela que o escolhesse a ele? O amor, o desejo, eram coisas que já não faziam
sentido para ele. Começara aos 25 anos a sua vida sexual, sem que no entanto
tenha tido possibilidade de partilhar a sua sexualidade antes, não que não tivesse
tido hipóteses, mas talvez não estivesse preparado. Agora, escolher Rosa Maria ou
Maria da Conceição, esta mais nova que a primeira, de quem tinha filhos, seria para
ele difícil. Poderia viver em bigamia, será que elas permitiriam? Mas ele próprio
não conseguia viver nesse estado, o seu amor tinha de se concentrar numa só
pessoa. Seria Rosa Maria, o seu primeiro amor, que o ignorara e voltara para ele
sem condições, ou seria Maria da Conceição, a jovem mãe da pequena Patrícia?
Se há algum direito em vermos o mundo com os nossos olhos, o mundo não é
como o vemos, no entanto temos direito a olhar o mundo com os nossos olhos. E não
temos direito em tudo desculpar, tudo permitir, pois no dia seguinte o que será
feito do nosso juízo sobre o mundo e as coisas que nos levam a acreditar? Nesse
Domingo desejava estar contido numa praia, ter um carro para te levar a passear.
Podíamos falar sobre nossas vidas, sobre nossos planos como se fossemos dois
jovens inconscientes. Podíamos, ainda era tempo e eu não estava já totalmente
derrotado. Podíamos dizer mal dos outros e entrar novamente em lugares de
poesia das nossas mentes. Podíamos beijar-nos e tu dizias-me para não fumar.
Viverias comigo e sempre que sentisse necessidade de fumar tu dizias-me para não
o fazer e eu obedeceria. Mas não, nesse domingo eu estava impotente em casa,
sem bens próprios, derrotado da vida, contorcendo-me com dores numa cama,
levantando-me para fumar. Havia acreditado em tudo nesta vida, na religião, na
ciência. Deixara de acreditar nas coisas boas em virtude de existir mal no mundo.
Mas tu podias finalmente mudar tudo isso. Mas não estavas comigo. Eu, que
convencido era que só em Lisboa havia mulheres interessantes, não pensava que na
minha terra podia encontrar alguém com quem passar os dias. Faltavam-me forças,
era a realidade, estava fraco e cansado de procurar emprego. No silêncio da noite,
entrecortado por uma moto que passa é alguém que faz um turno da noite, os meus

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pensamentos repartem-se desiguais na insónia branca do papel electrónico. Na
verdade, as minhas personagens encontram-se suspensos enquanto a vida decorre
numa pequena aldeia onde não trabalho aparentemente e me contorço na cama com
dores de alma. A minha mãe tem razão ao dizer que primeiro vem o trabalho depois
a namorada, as mulheres. Eu nunca aceitei isso. Talvez por isso viva na mais
absoluta pobreza e o meu espírito, embora algo divertido ainda, esteja fraco. Oiço
Jorge Palma e deixo-me rir ou sorrir no meio da noite, entre estas palavras
parcas, em sentimento de que algo se perdeu, uma sensação contudo de
tranquilidade do espírito inquisitivo e da pessoa pobre. Antes pobre e feliz do que
endinheirado e com problemas. Logo mais vou aperaltar-me e ter com ela, fazer a
barba, ajeitar a pêra, por gel no cabelo, vestir a melhor roupa para ir vê-la e
convidá-la para sair, beber um café, pedir o número de telefone. É psicóloga,
talvez queira tratar os meus males de amor. Citou-me curiosidade o facto de dizer
que estava de luto de uma relação quebrada. Achei piada. Eu também estou de luto.
Estas são as observações de um autor que procura inspiração nos desejos dos
homens, os mais honestos, sinceros e talvez os mais nobres como o prazer e a
reprodução. E o que é feito do dia seguinte, como poderemos garantir
sobrevivência no dia seguinte. Não me importa o que já tenha feito, talvez muitas
mais asneiras vá ainda fazer. Mas isso nada tem a ver com o que sinto por ela, esta
necessidade de simplesmente trabalhar, viver junto, ter filhos. Penso na minha
mãe e imagino que posição tem ela ao dormir junto de meu pai, aqui na casa ao lado.
Dormem o sono dos justos, como ainda dois apaixonados que se conheceram em
Paris. Quem pode conhecer melhor lugar para amar? Para namorar? Contudo, o
amor pode não estar longe de mim. Basta-me que tenha finalmente uma ocupação,
um emprego remunerado, de resto posso fazer tudo o que quiser, sinto-me livre
como um pássaro, um escritor em cima de um enorme pássaro. Minha alma voa, há
dias que não sonho, mas a minha alma continua sobrevivente, o corpo cheio de
tabaco, pois tenho nos últimos dias fumado dois maços por dia, é sinal de que algo
de importante está a acontecer. Estarei decerto a transformar-me mais uma vez e
os meus escritos não dizem nada sobre que não conheço, que são os Outros, mas
dizem algo sobre quem conheço, que sou eu, sem no entanto me conhecer
verdadeiramente. Tenho saudades de estar bêbado, conscientemente bêbado, no
entanto sei que nunca mais voltará esse tempo e nem é preciso, sinto-me ébrio com
a vida, nos meus 36 anos. E o que será dos personagens deste livro? Sinto
saudades da festa do Avante, de ver a Margarida passar e o Jorge Palma,
pequenote e fininho, com o seu cigarro na boca.
Deveria saber desde o princípio para não me meter em trabalhos. Embrenhado nos
pensamentos, fui egocentrista e carrego uma culpa por actos que fiz e não fiz. O
Sr. Carlos caiu da bicicleta perto da minha casa e eu nem me apercebi. Só hoje é
que o vi todo ferido no café. Será esta uma boa altura para deixar de ser
indiferente? Porque é que temos de ir ao rabo uns dos outros para provarmos que
existimos? Porque é que nos embebedamos para engatar as miúdas? Sinto que nada
fiz ainda, que andei transviado grande parte da minha vida e que tenho obrigação
de fazer muito mais de hoje em diante. Não adianta de nada ficar preocupado.

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Quando a desgraça me bater à porta talvez não já me aperceba. Ou de tanto errar
pode ser que acerte uma vez na vida.
Realmente, escrever no meio de uma tempestade de emoções não me parece
tarefa nada fácil. Era o que vivia José Carlos, contudo a diferença para com outros
romances é que José Carlos era o autor e vivia de facto uma situação difícil. Sem
dinheiro, sem emprego, sem namorada e fraco, procurava algum sentido para a sua
vida. No meio de tudo isto só lhe importava salvar duas pessoas: a sua mãe e a sua
irmã, aquelas que de perto tinham vivido o seu problema. José Carlos não era
casado nem tinha relações amorosas. Era tudo fictício, no entanto verdadeiro na
mente do autor. Se por acaso José Carlos quisesse somente sexo já mais cedo que
se tinha entregue à prostituição masculina, mas não ele estava numa idade em que
o desejo sexual diminui e queria uma mulher a sério para casar. Tinha tentado de
todas as maneiras. Como não tinha carro, deslocava-se a Coimbra, Leiria e Pombal,
de comboio ou de autocarro. Estava nas lonas e nos últimos cinco dias fumava dois
maços de tabaco por dia. A situação estava insustentável e ele estava de facto a
fazer qualquer coisa. Certo ou errado o tempo iria dizê-lo. Mas bastava de estar
sem trabalhar há tanto tempo, escrevendo um romance que nunca ninguém iria ler.
A irmã admoestava-o para não massacrar a pobre mãe que estava já entrando em
depressão com todos os problemas do filho. Era este o cenário num Portugal do
ano 2006, tempo de crise, de falta de emprego, onde tudo se conseguia com cunha
e para José Carlos simplesmente o tempo das cunhas tinha passado. Estava só. Com
a sua família. Ainda. Mas não iria cometer nenhuma loucura.
Mas não conte o leitor que este novelo será coisa de se ficar por aqui. Da teoria à
prática vai uma distância, mas não é de todo impossível percorrê-la. José Carlos
fumara já o seu último cigarro. Há algum tempo, uma questão de dois anos,
provara-se ou chegara a notícia a Portugal que o tabaco provoca impotência,
diminuição da qualidade do esperma, esterilidade. Quando começaram a sair
anúncios nos maços de tabaco indicando tal consequência, José Carlos não lhe deu
a devida importância. Passaram-se cinco, seis anos. Até que um dia sentiu-se
impotente. Toda a sua sexualidade havia sido transformada pela toma de
medicamentos antidepressivos e antipsicóticos, desde 1994, como se fosse um
criminoso cuja falta seria falar. Mas o problema começara mais cedo, quando não
se havia enamorado aos 19 anos de Lucília, enquanto estudava à noite.
Simplesmente havia perdido três anos num seminário na força da vida, na altura
em que começamos a querer descobrir as moças. Ninguém lho havia dito para o
fazer, mas na sua ânsia de perfeição talvez quisesse evitar contacto com o mundo,
estas coisas não se explicam, talvez tivesse tanto medo de encarar uma relação
física com uma moça concreta que tivesse evitado abordar o assunto. Tudo isto era
irreal. Contudo, nesse dia, decidiu não fumar mais e fazer tudo para não fumar.
Simplesmente porque se via atingido na sua virilidade. Não era por causa do
cancro, da vida, dos outros, o que estava em causa era não já o simples facto de
existir como pessoa, mas como homem, a sua virilidade. E isso ele não queria
perder. Por isso, José Carlos ia ganhando consciência destas coisas que com ele
sucediam.

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Quando vives numa aldeia e descobres a possibilidade de poder ser gay ou
bissexual, já que queres esventrar as entranhas da vida e do ser, tudo se pode
tornar mais difícil. Precisas de um médico e não tens dinheiro, tens de trabalhar
para conquistar saúde e não tens saúde para trabalhar. Se juntares a isso a
possibilidade de poderes vir a ter um filho que cuja educação não podes garantir
porque ninguém te ajuda. Então aí sim, aí tens verdadeiros problemas. E se fizeste
sexo desprotegido com uma desconhecida e corres o risco de contrair Sida, então
tens verdadeiros problemas sobre a tua pele. Mas vives numa resignação incrível,
aceitando todos os males do mundo como Cristo, tudo o que se passa de mal com os
outros tu entendes, és compassivo. Mas ninguém te pode tirar o sofrimento, moral
e mental de todas estas coisas, estas possibilidades ou realidades. Aí está o
verdadeiro problema. Quando passar a tarde a dormir tentando compreender e
ninguém te telefona para perguntar como estás, então estás com problemas.
Quando aos 36 anos não tens um pé de meia para nada, não tens dinheiro para sair
e te divertir, dependes da tua mãe e do teu pai só porque quiseste descobrir quem
és, a tua identidade, tens um problema. E quando descobres que tudo isto resulta
da falta de convivência com os outros e que estás há cinco dias em casa, aí tens um
grande problema. Quando descobres que não estás sozinho e que tens pais que
embora não falam te compreendem tens alguma consolação. Porque de certeza que
se estivesses em Nova Iorque ou Londres estarias sofrendo sozinho a um canto,
abandonado.
Lisboa estava longe da vista, mas perto no coração de quem visitava a aldeia onde
José Carlos vivia. Agora estava empenhado a ser como uma interpretação sua de
Raymond Carver, fazendo de tudo um pouco e talvez dar algum nome de literatura
ao que poderia escrever. Não se considerava um escritor falhado, só porque não
pudera publicar em grande dimensão para o público de língua portuguesa. Os dias
corriam, um atrás do outro, fumava um pouco menos, mas tomava ainda a
medicação para a neurose que o atormentava. Longe, porém, de ser uma pessoa
essencialmente sofrida. Respeitava o tempo e aprendei a respeitar-se a si próprio
melhor. Compreendia que através do seu comportamento sexual e da imagética que
incutiu ao seu espírito na pobreza, podia ainda ser escritor, porque sentia que
tinha esse senso e reconhecimento. Contudo, longe dele voltar para a vida
religiosa, seria como que trair a sua natureza humana tão afirmada por Cristo e
Saramago e Katzantzakis (e já agora Mel Gibson). O que havia nestes tempos é que
se aproveitava o passado para fazer uma súmula de eficácia para o presente. Era o
marketing pessoal e empresarial em todo o seu esplendor. Queria tentar fazer
alguma coisa que fosse compatível com o seu percurso pessoal, com uma aventura
que ainda não tinha sido partilhada. Andava nesses dias a remoer não ter vivido um
amor de juventude. Fora culpa dele ou simplesmente o destino? E para quê
continuar a alimentar um sonho de literatura quando ninguém lhe dava crédito?
Alguma auto-confiança e força perdera, seja como for era injusto não ter
trabalho. Tirara o dia para fazer pesquisas na Internet sobre trabalho voluntário
na Índia, Bangladesh ou Sri Lanka. Espantava-se o antigo Ceilão não ter uma
representação diplomática portuguesa. A de Nova Deli servia de apoio. Contudo, o
seu grande problema era não ter dinheiro para viagens, para nada. Tinha 185 euros

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por mês que agora apenas podia gastar em viagens entre Pombal e Leiria num part-
time que supostamente iria arranjar. Por enquanto era o que podia fazer, porque
não tinha carro próprio nem dinheiro para comer fora. Tinha de esticar esses 185
euros. Não sabia como fazer dinheiro fácil, talvez mesmo que soubesse não era
essa a sua intenção. Mas mesmo tendo passado o dia na cama, não era nessa
situação que queria continuar. Queria sair do país, não para Angola ou Moçambique,
não para França ou Noruega, mas para bem longe, para a Ásia. E morrer por lá. Não
queria herança nenhuma, não planeava. Seu amigo Estevão não se apercebia
simplesmente que ele estava ficando sexualmente impotente e queria ter filhos.
Não compreendia. Nem valia a pena ter essa conversa com ele. No entanto, se
surgisse um filho, seria uma complicação para José Carlos. Por isso queria ir para
longe, esquecer o futuro que não tinha em Portugal e o passado que nunca tivera e
acabar os dias por lá. Ainda que como português. Talvez Timor-Leste fosse uma
opção. Mas como ultrapassar todas as formalidades do Ministério dos Negócios
Estrangeiros que escolhera a dedo 60 professores que provavelmente queriam
fazer carreira, procurar uma experiência diferente. Não, José Carlos queria auto-
exilar-se numa terra desconhecida, esquecer que existia, abandonar a família,
morrer longe. Queria ser professor de português ou trabalhar como voluntário ou
não todo o resto da sua vida, construir vida noutro local. E queria sobretudo fazer
essa longa viagem até à Ásia. Se tivesse garantia de apoio para a viagem e
contactos no terreno, podia muito bem preparar essa empresa. Era o que ia fazer
daquele dia em diante. Contactos, promessas de que pagaria a viagem com
trabalho, simples trabalho. Queria acordar e passar a noite na Ásia, bem longe de
Portugal, das suas referências, queria perder as referências, ser um ilustre
desconhecido. Mas como sabemos tal não é possível. Temos, onde quer que
estejamos, de ser conhecidos por alguma coisa, origem, história, feitos,
proveniência. Todos os seus esforços seriam orientados nesse sentido. Sob o
mesmo ecrã sobre o qual passaram imagens pornográficas, gerava-se agora um
novo tipo de linguagem, ajudar o Outro ir para junto dos que precisam. Seria uma
forma de expiação, de compensação psíquica ou moral. Ao mesmo tempo tinha de
telefonar já à mulher que com ele fizera amor. A noite passou quase em branco. Lá
para as duas da manhã acordara e assim ficou pensando nos seus sonhos. Pior eram
os que se haviam de seguir. Sonhava com o seu irmão recriminando-o de se ter
quase masturbado, até que pelas 6 da manhã acordou de novo e começou a
especular sobre si próprio? Seria gay? Queria saber a verdade. Tinha medo de sair
de casa, todos o gozariam. Qual seria a verdade? Hetero, bi ou gay? Tudo isto lhe
tirava concentração para trabalhar, o terreno que pisava estava minado, não
queremos pintar um quadro mais negro do que ele é, mas José Carlos sofria como
um cão atropelado, contorcendo-se sobre o seu próprio ser. Agora dormia de dia e
fazia vigílias de noite. Talvez precisasse de ajuda, agora mais do que nunca. E
dinheiro? Não tinha dinheiro senão para um maço de tabaco por dia. E queria ele ir
para longe! Nunca mais sairia do buraco onde se metera. Ficaria preso aos seus
pensamentos, sem nunca falar realmente do que interessava com ninguém, preso a
casa. Seria a suposta homossexualidade uma doença, uma construção social, uma
perversão? O que é certo é que andava em crise de identidade pela já citada

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sexualidade mal vivida devido a medicamentos e abuso de tabaco. Jurou não ir mais
ao café da aldeia, que o gozariam, mas depois pensou que tinha de assumir tudo o
que fosse, que isto tratava-se de uma descoberta pessoal e que as pessoas tinham
de o aceitar como quer que ele fosse. Não se iria esconder por ser diferente. Não
faria questão de dizer a toda a gente nem o esconder de toda a gente. Viveria
aquilo como o vício do tabaco, que já não lhe dava prazer, só dor. E que raio de
romance daqui nasceria. Não se fala aqui de famílias, de sucessões, de heranças,
de amores feitos e desfeitos, fala-se do terror de um personagem em existir, com
medo de sair de casa. Foram terríveis realmente para José Carlos aqueles dias.
Até que resolveu telefonar a Rosa Maria, num Domingo. Rosa estava ocupada de
manhã, mas à tarde podia conversar com ele. Foram até à beira-mar, coisa que não
faziam desde namorados e conversaram, José Carlos falou dos seus problemas de
identidade. Encontrar em Rosa Maria uma pessoa que compreendia tudo o que ele
dizia era reconfortante, uma pessoa que o aceitava e todas as suas dificuldades.
Não era como Maria da Conceição que, mais nova, ainda não entendia certas coisas.
José Carlos, pelo passeio à beira-mar, parecia um cego conduzido pela mão de Rosa
Maria. Tens de ter coragem, dizia ela, sai mais de casa, procura de novo trabalhar,
deixa essa escrita em espiral que te põe maluco, faz coisas, mesmo que disparates.
Assim nunca te arrependerás de ter ficado parado. Parado no tempo. Mas não, o
passeio à beira mar fora apenas a coisa positiva com que José Carlos conseguira
sonhar nos últimos dias. Não havia quem lhe desse uma palavra. Com 36 anos ele
tinha de descobrir por si próprio, provar o sabor amargo da realidade. Levantava-
se e agradecia a Deus por lhe permitir ver a realidade mais uma vez, depois de
tantas tormentas de espírito. Tinha medo, medo de ser ferido pelos seus
pensamentos. Iria ele descobrir alguma coisa naquele lugar? A par disso, José
Carlos não podia receber o rendimento mínimo, nem subsídio de desemprego,
porque morava com os pais. Nunca tivera um emprego fixo. Como podia estar numa
situação tão miserável? Fora ele próprio que se colocara, como vítima, naquela
posição, ou fora a sociedade que o conduzira àquela situação? Como um jovem podia
gerar expectativas se a sociedade não lhe dava, nunca lhe dera nada? Como podia
ter motivação se recebia 185 euros de uma renda há anos como único rendimento?
E mesmo assim devia dinheiro. A toma de medicamentos, o tabaco, a falta de
exercício, o não ter simplesmente dinheiro para sair de casa, punha-o realmente na
situação de um cidadão do terceiro mundo, do Bangladesh. Não habitava em
Portugal, mas no Bangladesh. Há já muito tempo. Mesmo assim, não exercia
violência para consigo próprio. Se deixasse de fumar talvez pudesse ir até Pombal
ou Leiria, expor o caso na Segurança Social. Quando recebesse algum dinheiro que
lhe deviam podia pedir a amigo para aguentar mais um pouco até ele trabalhar,
arranjar um trabalho minimamente decente e seguro. Para que ao menos
conseguisse amealhar algum dinheiro para as viagens e almoçar fora. Com tudo
isto, no sonho de ontem vira-se longe, fazendo um testamento que deixava a sua
herança aos seus irmãos legítimos, não admitindo que tivesse filhos. Se os tivesse,
alguém por morte do pai ou da mãe viria reclamar herança. Queria, por isso,
esquecer o presente, o passado, morrer longe. Talvez não estivesse de facto a

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enfrentar os problemas. Talvez não fosse tão razoável quanto pensava. Ali, naquele
lugar, ninguém o iria ajudar. Tinha de se mexer.
José Carlos olhava para o seu passado como que debruçado sobre o seu pénis.
Pensava nos tempos de faculdade e como a falta de sexualidade o tinha levado à
morte moral. Ainda se lembra da televisão, do quarto grande onde uma noite
acordara sobressaltado suspirando por Susana e de como a coisa não funcionou
porque talvez o problema fosse ele mesmo: não estava preparado. Com seu amigo
Estêvão falava de como nessa altura frequentávamos todos os lugares da noite, na
capital e na terra e de como éramos orgulhosos e não permitíamos um diálogo
espontâneo com as raparigas. Talvez estivéssemos seleccionando naquela altura,
talvez fossemos demasiado idealistas. O que é certo é que José Carlos passava
dias ocupado com o seu pénis. Trouxera um dia para o apartamento Paula e
Margarida, mas não fizera nada com elas. Paula estava ferida com a morte da mãe
e reagiu mal aos afectos de José Carlos. Margarida era frágil, conhecera-a no
refeitório das Químicas, despedira-se dela quando fora para Itália e depois vira-a
uma vez na sua faculdade mas nessa altura já andava de cabeça perdida. Portanto,
o curso de amores correu muito mal. Como podia correr bem nos estudos? Essa
memória do tempo perdido sozinho, anos a fio, masturbando-se violentamente, não
largava a sua consciência. Quem tinha permitido tal coisa? Consentido, visto,
tolerado? Mesmo assim, o culpado só podia ser José Carlos. Virava a sua
agressividade contra ele próprio, mutilando-se. Em tudo isto a televisão e a
pornografia distanciaram-no da realidade. Sentira bem esse distanciamento
quando saia para o fim de semana com o saco às costas “estou perdido”, dali em
diante nunca mais se encontrou, seria ilusão pensar que sim. Aqueles rituais
repetiam-se às quartas, aos fins de semana durante quatro anos, tornando a sua
vida num inferno. Como podia ter motivação, como podia ter esperança, como
poderia ter trabalho? Depois, compraram casa em Lisboa. Ainda ela não estava
pronto a habitar já ele se masturbava por todo o lado. Foram mais dez anos de
sofrimento, de falta, de carência. As mulheres que tinha conhecido tinham pena
dele e faziam-lhe favores sexuais. Muitas vezes pagou para ter sexo. De modo que
estamos muito longe de uma infância ou juventude realizada. É claro que não havia
guerra, grandes dificuldades económicas. No seu silêncio, José Carlos ia
resistindo, crescendo com dificuldade, tudo lhe parecia uma crise de crescimento.
Tudo porque aos 14 anos fugira do seu amor para um seminário. E perdera, ah!
Como perdera, o contacto com um mundo de mulheres, de desejo, de
encantamento, na aurora da vida. Essa memória atormentava-o mais que a guerra e
as fomes de África. A inutilidade desse tempo, de que não se conseguia libertar,
atormentavam-nos como as tentações de Santo Antão, de Jeronimus Bosh. Em
tudo isto e, citando Woody Allen em Annie Hall, havia qualquer coisa de anal. Isto
está explicado algures nalgum lugar, na cabeça de alguma pessoa. Não adiantava
evitar o assunto. Reflectira o suficiente sobre isso. Contudo, talvez estivesse
arriscando demasiado e pensar assim a sua identidade, pobre e fraco como estava,
com o desejo sexual no mínimo, envelhecendo. A vida não havia sido fácil e bela,
nem sequer a vida de José Carlos dava para um filme como outras. E se alguém
compreendesse como alguém pôde fazer tão mal a si próprio, ignorando o mundo de

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tal maneira que era auto-centrado ao ponto máxima. Contudo, ainda compreendia
os outros. Tinha a impressão que fazia de psiquiatra sem receber honorários a
algumas pessoas. Não tivera formação em medicina, de modo que era um leigo,
apenas podia falar do que ouvia e da sua experiência pessoal. De modo que na
escrita José Carlos encontrava maneira de partilhar as suas mentalidades, os seus
porquês, explicar-se, como se a vida, epifenómeno natural, pudesse ser explicada
por palavras. Não escrevera um grande romance, uma novela que entusiasmasse
multidões, nem escrevera músicas ou melodias, apenas escrevera qualquer coisa
ignota no tempo até que mais tarde alguém viesse a descobrir algumas belezas
nessas coisas e ideias, envolvendo muito sofrimento, alguma alegria
despropositada, alguma coisa que se pudesse chamar vida. Pois se não fosse em
nome da vida, o que animava ainda José Carlos? Talvez a última música de Tim, na
Primavera de 2006, em Riachos.
No dia seguinte, tudo acordou calmo. José Carlos foi ao café cm cinco euros dados
pela mãe e comprou um maço de tabaco. Nada há para fazer. Está-se na força da
juventude e nada aparece para fazer, simplesmente porque não há dinheiro. Há o
suficiente para ir até Pombal e voltar com a irmã de carro. Esta situação vai
arrastar-se por três semanas ainda, até que receba a renda. Não poderá José
Carlos começar a trabalhar enquanto não tiver esse dinheiro para as viagens,
mesmo assim não dará para comer fora. Consome-se o tempo num cigarro. Não há
nenhuma revolta, nenhuma injustiça, apenas se ocupa um lugar, envelhecendo. Como
poderá haver inspiração neste lugar para grandes personagens, de que deve falar o
autor, repetidamente das personagens da terra, da aldeia, que não reproduz na
tela da escrita ou de si próprio, cansado está de olhar o mundo com os seus olhos?
Não há nada de literatura em tudo isto, a vida não é literatura. A vida é uma
consumição contínua a meus olhos, o perder, o morrer aos poucos, o perder a
vitalidade. Porque na juventude das paixões desordenadas não sabemos o que
fazer com a força que temos e quando sabemos por experiência já não temos a
força que tínhamos. São estes os contra-sensos da vida, é afinal de contas por isto
tudo que somos mortais, fracos, vulneráveis. Bebemos, fumamos, matamo-nos na
estrada, estamos permanentemente em risco, em risco de vida, somos lírios no
campo atravessado pelo vento que uma praga pode dizimar. No entanto, há poços
de esperança. Os mais jovens crescem para a maturidade, alguns
desordenadamente, outros mais certinhos. A vida renova-se neles e algum deles
haverá parecido com José Carlos, que se sinta retratado nos seus temas. Poderá
ser um discípulo, um admirador. Mas nessa altura já não poderá falar com José
Carlos porque este terá partido. Mas José Carlos observará a sua atenção ao ler
as palavras que deixou e permitirá que o discípulo erre para aprender, que conheça
sucessos e fracassos, que conheça alguém que o faça ver os sonhos um pouco mais
perto do que na sua consciência. Porque no tempo presente, para José Carlos já
nada importa, tudo é passageiro, já nada importa.
Como reconstruir uma vida de modo a dar conta de qualquer coisa que não
desapareceu mas se tornou invisível. Assim José Carlos tentava pensar como podia
ainda transmitir a alguém, enquanto professor de alguma coisa, conhecimentos que
ele próprio tinha anulado. Estava decerto em desvantagem em relação a outros.

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Perdera a linguagem poética e ler um livro de filosofia já não era a mesma coisa
que dantes, já não fazia sentido, as palavras encadeadas já não se colavam à mente
nem se entrelaçavam mas amontoavam-se desordenadamente. Poderia de novo ser
educado para a literatura, a ciência, a arte a que pensava dedicar o resto da sua
vida? Arranjar um trabalho significava ter autonomia, esforçar-se fisicamente,
pois que era já avesso ao esforço intelectual por preguiça natural, contudo tinha
ainda agilidade de pensamento, naqueles dias loucos de primavera de 2006 em
Riachos, já fumava dois maços de tabaco por dia há uma semana e pedia dinheiro à
mãe e à irmã que não lhe podiam, não podia ser, não lhe podiam dar mais. Tinha de
arranjar depressa um emprego, uma reforma antecipada, gerir melhor os 185
euros que recebia. Mas ainda gostava de ler, era possível uma recuperação daquilo
que tinha visto, não há como voltar atrás, o caminho era para diante, não havia que
ter medo. Ele quebrara as coerências do espírito que o mantinham agarrado à
realidade. Disso tinha a certeza. Agora tinha somente pequenos fragmentos de
vida, frescos da sua vida passada que o iam aguentando e um projecto de um
escrita difícil, pouco arrojada, sofrida. Valeria isto ainda alguma coisa naqueles
dias? Procurar arduamente por meio de um labor intelectual, as palavras certas,
valeria ainda alguma coisa, não seria lutar contra moinhos de vento?
Surge no dia seguinte a possibilidade de efectuar voluntariado no Sri Lanka. Como
seria bom viajar para longe, fazendo qualquer coisa, estando longe de tudo, da sua
própria vida, suspendendo a sua vida particular a que dava demasiada importância!
Oxalá conseguisse ir. Teria de pedir autorização ao médico psiquiatra, levar
medicamentos para se aguentar psicologicamente. Quem sabe se não era uma
hipótese!? Antes ir que ficar patinando anos e anos, dias e dias, a fio entre as
paredes de uma casa, ousando inventar literatura. Seria bom para José Carlos.
Procuremos segui-lo nesta sua nova esperança. Entretanto, Fernando Heitor tinha
19 anos. O tempo passava devagar naquela época. Quanto a Lili, ia já nos dois anos.
Como poderia José Carlos, na situação em que se encontrava, dar sustento aos
filhos? Normalmente, com expedientes de trabalho temporário manual com o seu
pai, mas este também se reformara e não tinha com ele os mesmos trabalhadores
de sempre, tinha um ou dois mais fiéis, como o Simas e o Custódio, que passavam lá
por casa manhãzinha para ver como eram as coisas de trabalho para aquele dia.
Como poderia José Carlos fazer o seu voluntariado nos Médicos do Mundo e dar a
educação a Lili? Lili era a filha que a família mais desejara. Uma menina no meio de
três rapazes de outros três irmãos. Cabelinho castanho, olhos verdes, era uma
beleza portuguesa. Ria e pulava no jardim da avó Berta para seu encanto. Era o
centro das atenções e finalmente José Carlos conseguira-se por no centro das
atenções da família enquanto pai de uma menina. Seu amigo Estêvão confidenciava-
lhe que também queria ir para longe fazer voluntariado. Mas para que precisavam
os médicos, habituados a situações de emergência e calamidade, de um
antropólogo. Podia um antropólogo fazer alguma coisa no meio de tantos destroços
humanos? A resposta, para José Carlos era clara: claro que sim, vai, se eles te
chamarem é porque podes fazer alguma coisa, nem que seja servir de moço de
recados ou ajudar a fazer registos populacionais. Um antropólogo é útil em
qualquer parte do mundo, quanto mais não seja no Sri Lanka ou em Timor-Leste.

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Tinha conhecimentos de línguas, de informática, tinha alguma experiência de dar
aulas, podia fazer sessões de esclarecimento sobre a Sida ou qualquer outra coisa,
em inglês ou em português. Havia motivação da parte de José Carlos e Estêvão
estava naqueles dias entusiasmado em ir, estudando o clima da região, preparando
a roupa. E finalmente, para José Carlos, viajar podia ser o princípio do fim do
tabaco na sua vida. Não que se fosse converter ao hinduísmo, mas sentia que
precisava de um revigoramento espiritual desde há muitos anos. Preparava-se
verdadeiramente para deixar Portugal, não se sabe por quanto tempo, mas queria
estar longe o tempo bastante para regressar não como um homem inútil, mas como
um homem maduro, cheio de sabedoria, alegre, feliz pela vida que tinha conseguido
endireitar.
No dia seguinte, José Carlos estava sentado em frente a um médico e começou a
conversa:
-Doutor, fale-me acerca de androginia…
FIM

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