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O Estranho Caminho de Hemin-gay

Lúcio Emílio do Espírito Santo Júnior

Yuri, em seu gabinete, parecia não incomodar-se com o charuto esquecido no


cinzeiro improvisado com a marmita de alumínio que ainda continha restos do almoço do
dia anterior. Uma fumaça azulada impregnava tudo, o lustre, os livros na estante de ferro,
a montanha de papéis sobre a mesa e o velho guarda-chuva pendurado na porta. A seu
lado, Juliano, tentando segurar a tosse, ali estava, diante de Yuri, para expor suas teorias
− sobre Hemingway e obter o aval de Yuri, seu orientador de conteúdo na tese que estava
desenvolvendo.

− Você sabe que dou aula de Religião II. Não sei se isso aí tem cabimento... Disse-
lhe Yuri, com rispidez.

Meio encolhido e envolvido na fumaça, Juliano retrucou:

− Mas, professor, a estranha divisão que depois Greg Hemingway, filho de Ernest,
apresentou já estava em Ernest. Ele aparece vestido de menina na infância, e há, na obra
do grande escritor, passagens tocantes em que um homem e uma mulher que se amam
são tentados por uma inversão de papéis pela qual o homem se tornaria mulher nos braços
de sua amada.

− Sei disso, Juliano, mas, nós estamos numa instituição religiosa. Não sei se eu
conseguiria encaixar esse projeto em uma pesquisa sobre religião aqui junto aos jesuítas...

− Professor, a pesquisa não é de todo profana. Pretendo envolver as cenas da festa


religiosa de São Firmino no romance O Sol Também se Levanta...

Yuri sorri e olhou com ceticismo o rosto entusiasmado de Juliano. O rapaz


continuou a falar:

− Jake Barnes tem uma admiração platônica pelo físico do personagem Cohn.

− E com esse conceito de platônico você abarcaria o cristianismo em seu


arcabouço intelectual?

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A pergunta foi uma provocação. Yuri ria por dentro, mas por fora mantinha-se
sério.

− Exato! – exultou Juliano quase dando um salto na cadeira, como se o outro lesse
seus pensamentos.

O professor de Religião II do Instituto Soldados de Cristo retomou o charuto, que


queimava sozinho, tragou fundo e fez uma expressão de carranca. A estratégia era deixar
o Juliano falar, falar e falar, até que finalmente chegasse ao paroxismo do absurdo, ponto
onde ele poderia arredar pé de todo o discurso formulado anteriormente.

Juliano entusiasmado:

− Sabe, poderíamos relacionar a festa do Congado mineiro com a festa de São


Firmino comentada no romance de Hemingway...Tem tudo a ver!

Antes de liberar a fumaça pelo nariz, o professor perdeu a compostura:

− Não, Juliano, isso é ir longe demais. Você está mais ousado do que Juliano, o
apóstata.

Juliano não se abalou:

− Mas note que interessante, professor, teoria histórica o romance desenvolve.


Abraham Lincoln era um efeminado e estava apaixonado pelo General Grant!

− O sexo explica tudo, isso é a causa da guerra civil. Como ninguém pensou nisso
antes, Juliano?

− Jefferson também.

− O que é que tem Jefferson? Yuri buscava, novamente, assumir o papel de


superego do rapaz.

− Jefferson também era gay, também estava apaixonado pelo General Grant.

− Hum...o que temos aqui? Um triângulo amoroso gay. O sexo explica a guerra
civil americana. Mas o que tem isso a ver com religião? Procure inteirar o Departamento
de História desses seus devaneios!

− Não é devaneio. É científico.

Yuri deu um suspiro.

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− Sabe o poema The Ladies, de Rudyard Kipling? Aquele verso sobre Judy
O´Grady e a mulher do coronel.

− Vai entrar também?

Yuri já demonstrava estar próximo do limite:

− Num projeto seu na Letras, né?!

− A mulher do coronel e Judy são irmãs debaixo da pele, um verso que hoje é
considerado preconceituoso, pois as mulheres não são iguais debaixo da pele.

− A mulher do coronel e Judy O´ Grady são lésbicas até a medula.

Yuri finalmente mostrou-se saturado.

− Juliano, gosto de seus papos, de seus devaneios, aprendo muito, mas redija os
projetos para Letras e História, eu leio, tá? Mas para eu te orientar, não dá, infelizmente.

Juliano, embriagado com os gases tóxicos do charuto de Yuri, juntou sua pasta e
saiu da sala. Ainda na porta, ameaçou:

− Eu volto amanhã, viu?

Na outra tarde, Yuri resolveu pensar muito antes de atendê-lo. Deixou-o


esperando a tarde toda. Quando obteve uma brecha, Juliano já entrou no gabinete de Yuri
na U niversidade com uma pergunta na ponta da língua:

− Yuri, você acha que Hemingway foi homossexual reprimido?

− Não sei...Será que podemos usar o conceito de Freud, conteúdo manifesto


enquanto contrário ao conteúdo latente?

− Em seu romance póstumo e inacabado, O Jardim de Éden, o alter ego de


Hemingway, um escritor chamado David Bourne, pede a sua mulher que corte o cabelo e
depois o sodomize com um consolo, prática que o próprio Hemingway teria
experimentado com sua esposa Welsh.

− Talvez fosse apenas uma fantasia para apimentar um romance já em vias de


fracassar, né, Juliano?

Juliano prosseguiu, ávido:

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− A hipermasculinidade era parte do que ele era. Era real e autêntica.

− Não teria sido apenas uma máscara de seu ego?

− Fraudulenta...

− Era real e verdadeira...

− Acho que foi homossexual, mas com sentimentos contraditórios. Nunca sugere
atração por outros homens.

− Há também a questão da relação com seu filho mais novo, Gregory.

− A bicha louca?

− Gregory pode ter realizado o que o pai só admitia em seu foro interior.

− É a lógica da franga encurralada, como disse o escritor Marcelo Mirisola.

− Um Hemingway autêntico teria dito que seu nome de família não poderia nunca
servir de pôster infantil de Viagra, como Mirisola colocou em um dos contos dele. Aliás,
Mirisola não presta.

− Você quer fazer juízos morais sobre os autores, sem entender nada de literatura.

− Se você vai me tratar assim, desisto.

− Não se aborreça com minha sinceridade, Juliano. Eu só exerço a verdadeira


severidade com os bons.

− Resta saber se você também é bom... – disse Juliano amargamente, encerrando


a conversa.

Para surpresa dos amigos, em especial de Juliano, o solteirão recatado Yuri vestiu-
se de cocktail preto e dirigiu-se a uma pequena festa privada no sofisticado Retiro das
Pedras, condomínio de luxo perto de Belo Horizonte.

Ele se apresentou aos amigos como "Vanessa" e passou a maior parte da noite na
cozinha, conversando com condôminos em trajes de country club. Os amigos disseram
que ele não ficou bêbado.

"O estranho era que ele parecia feliz", pensou Juliano, que nunca havia visto seu
velho amigo vestido de mulher antes.

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Menos de 24 horas depois de apresentar com sucesso sua identidade feminina a


alguns de seus amigos mais antigos e respeitáveis de Belo Horizonte, ele ressurgiu em
um bar da Savassi. Talvez ele quisesse comemorar seu triunfo em um bar local,
conjecturou Juliano.

O fato é que, por volta das quatro da tarde do dia seguinte, 9 de julho, Yuri foi
visto desfilando nu pela Avenida Nossa Senhora do Carmo, com um vestido e saltos nas
mãos. Ele foi preso, então, por exposição indecente e resistência à prisão.

No dia primeiro de outubro, seu sexto dia na prisão, Yuri, que sofria de pressão
alta e doenças cardíacas, levantou-se cedo para comparecer ao tribunal, começou a se
vestir, meio tonto, derrubou a caixa de charutos, e de repente caiu de cueca no chão de
concreto.

Morto.

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