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DIVISÃO ENSINO E DIVULGAÇÃO DA QUÍ M I CA 47

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A Química do amor
Destaque

PAULO RIBEIRO-CLARO*

O
amor é um fenómeno neurobioló-
gico complexo, baseado em acti- No passado mês de Fevereiro, a rádio TSF emitiu um programa
vidades cerebrais de confiança, crença,
“Eureka” especial dedicado ao Dia dos namorados. O tema do
prazer e recompensa, actividades essas
que envolvem um número elevado de programa foi “A Ciência do Amor e o Amor na Ciência”. O pre-
mensageiros / actores químicos (T. Esch, sente texto reproduz os apontamentos reunidos para a grava-
G.B. Stephano, The neurobiology of ção da componente “a química do amor”.
love, Neuroendocrinology Letters No.3
26 (2005); H.E. Fisher, Why We Love:
The Nature and Chemistry of Romantic
What an interesting phenomenom love is!
Love, Henry Holt and Company, New
York, 2004).
(T. Esch, G.B. Stephano – The neurobiology of love, 2005)

O amor é frequentemente celebrado


como um fenómeno místico, muitas Henry Holt and Company, New York, sangue – que se inicia na fase da ado-
vezes espiritual, por vezes apenas físico, 2004) –, que propôs a existência de lescência – que torna o nosso cérebro
mas sempre como uma força capaz de 3 fases no amor, cada uma delas com interessado em parceiros sexuais, diga-
determinar o nosso comportamento. as suas características emocionais e os mos assim. Ou, nas palavras de Helen
Sem querer discutir a magia do amor, seus compostos químicos próprios (H.E. Fisher “é o que nos leva a sair à pro-
hoje vamos apenas abordar o amor do Fisher, Lust, attraction, and attachment cura de qualquer coisa”.
ponto de vista da química que lhe está in mammalian reproduction, Human
A segunda fase é a ‘fase da atracção’,
associada: os compostos químicos que Nature – An Interdisciplinary Bioso-
enamoramento ou paixão: é quando
actuam sobre o nosso corpo – sobre o cial Perspective 9 (1998) 23-52 ; H.E.
nos apaixonamos, ou seja, é a altura
nosso cérebro, em particular – e nos Fisher, A. Aron, D. Mashek, et al. Defi-
em que perdemos o apetite, não dor-
transmitem todas as sensações e com- ning the brain systems of lust, romantic
mimos, não conseguimos concentrar-
portamentos que associamos ao amor. attraction, and attachment, Archives of
-nos em nada que não seja o objecto
Sexual Behaviour 31 (2002) 413-419:
da nossa paixão. É uma fase em que
As 3 fases do amor romântico A primeira fase é chamada ‘fase do podem acontecer coisas surpreen-
desejo’ e é desencadeada pelas nossas dentes, que por vezes dão origem a
Foi a antropóloga Helen Fisher, famosa
hormonas sexuais, a testosterona nos situações divertidas (para os outros)
pelos seus estudos sobre a bioquímica
homens e o estrogénio nas mulheres. É e embaraçosas (para o próprio): as
do amor – e autora de vários livros, entre
a circulação destas hormonas no nosso mãos suam, a respiração falha, é difí-
os quais o recente "Porque Amamos: a
Natureza e a Química do Amor Român-
tico" (H.E. Fisher, Why We Love: The
Nature and Chemistry of Romantic Love,
Norepinefrina
A norepinefrina é um estimulante natural do
* O autor é o coordenador nacional das Olimpía- cérebro, que pode estar associada à exaltação,
das de Química da SPQ, divulgador de inúmeras euforia, falta de sono e de apetite (H.E. Fisher,
actividades da SPQ para apoio aos professores Why We Love: The Nature and Chemistry
do ensino básico e secundário e é mentor do of Romantic Love, Henry Holt and Company,
programa Atracção Química, tendo participado New York, 2004).
na elaboração dos actuais programas de química
do ensino secundário. É docente do Departa-
mento de Química da Universidade de Aveiro e
investigador do CICECO.
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apreciada para os namorados, ou para

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Dopamina (3,4-dihidroxi-feniletilamina) ser tantas vezes a compensação para
A presença de elevados níveis de dopamina um amor não correspondido? Aparen-
no cérebro parece ser uma característica dos
recém-apaixonados (A. Bartels, S. Zeki, The temente, a feniletilamina é degradada
neural basis of romantic love, Neuroreport rapidamente no sangue, pelo que não
11 (2000) 3829-3834; A. Aron, H.E. Fisher
haverá possibilidade de atingir uma
H, D.J. Mashek, et al., Reward, motivation,
and emotion systems associated with concentração elevada no cérebro por
early-stage intense romantic love, Journal ingestão...
of Neurophysiology 94 (2005) 327-337).
O papel da dopamina é muito importante no A feniletilamina controla a passagem da
mecanismo de desejo e recompensa e os seus
efeitos no cérebro são análogos aos da cocaína. fase do desejo para a fase do amor e é
É um verdadeiro licor do amor. um composto químico com um efeito
poderoso sobre nós... tão poderoso, que
pode tornar-se viciante. Os dependentes
da feniletilamina – e dos seus auxilia-
Seretonina
res – tendem a saltar de romance em
Os baixos níveis de serotonina, por seu lado,
romance, abandonando cada parceiro
parecem estar associadosà fixação no ser
amado. A Prof. Donatella Marazziti (Univ. logo que o cocktail químico inicial se
Pisa) no decorrer dos seus estudos com desvanece. Quando permanecem casa-
doentes que sofriam a perturbação obsessiva
compulsiva, descobriu que os baixos níveis de dos, os viciados do amor são frequen-
serotonina de quem se apaixona se aproximam temente infiéis, na busca de mais uma
dos níveis característicos desta doença mental
dose de excitação extra. Mas este tipo
(D. Marazziti, H.S. Akiskal, A. Rossi, et
al., Alteration of the platelet serotonin de viciados tem um problema: o nosso
transporter in romantic love, Psychological corpo desenvolve naturalmente a to-
Medicine 29 (1999) 741-745): aparentemente,
o amor deixa-nos loucos – de verdade! lerância aos efeitos da feniletilamina e
cada vez é necessário maior quantidade
para provocar o mesmo efeito.

A terceira fase é a ‘fase de ligação’


cil pensar com clareza, há ‘borboletas Curioso é verificar que todos estes com-
– passamos à fase do amor sóbrio, que
no estômago’... enfim... e isto tem a ver postos químicos – desigandos por neu-
ultrapassa a fase da atracção / paixão e
com outro conjunto de compostos quí- rotransmissores, já que participam nas
fornece os laços para que os parceiros
micos que afectam o nosso cérebro: a transmissões do sistema nervoso e no
permaneçam juntos. Há duas hormonas
norepinefrina que nos excita (e acelera cérebro – são controlados por um outro,
importantes nesta fase: a oxitocina e a
o bater do coração), a serotonina que chamado feniletilamina que está pre-
vasopressina.
nos descontrola, e a dopamina, que sente no chocolate. Estará aqui a razão
nos faz sentir felizes. para o chocolate ser uma prenda tão A oxitocina é também chamada a hor-
mona do “carinho” ou do “abraço”.

A oxitocina é uma pequena proteína,


com apenas nove aminoácidos, produ-
zida numa zona cerebral que se chama
hipotálamo. Esta proteína actua tanto
em certas partes do corpo (como por
exemplo na indução do trabalho de
Oxitocina parto) quanto em regiões cerebrais cuja
função está associada com emoções e
comportamentos sociais. Em animais,
a oxitocina contribui para as uniões so-
ciais (incluindo uniões macho-fêmea e
uniões mãe-filho) e pensa-se que tam-
bém actua diminuindo as resistências
que os animais têm à proximidade de
outrem.

E tem o mesmo efeito na espécie hu-


Vasopressina
mana. Num estudo efectuado em 2003,
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verificou-se que a inalação de oxitocina xima de outras fêmeas nem admite a A escolha do parceiro
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provoca um aumento da confiança nos aproximação de outros machos. Aparen-


temente, é a produção de vasopressina A escolha de um parceiro é um pro-
outros (M. Kosfeld, M. Heinrichs, P.J.
após o acto sexual que determina este cesso que visa garantir a continuidade
Zak, et al., Oxytocin increases trust in
comportamento amoroso do macho, da espécie. Mesmo que nós não pen-
humans, Nature 435 (2005) 673-676).
que apresenta um elevado número de semos muito nisso, a verdade é que se
Esta hormona é libertada por ambos os receptores de vasopressina no cérebro. as escolhas fossem sempre mal feitas,
sexos durante o orgasmo. O que parece a espécie não teria sobrevivido. Por
Contrariamente à espécie monogâmica,
indicar que quanto mais sexo um casal exemplo, as fêmeas tendem a procurar
a espécie promíscua apresenta um nú-
praticar, maior é a ligação química entre um macho que garanta o sustento dos
mero muito reduzido de receptores de
eles... filhos, enquanto os machos devem pro-
vasopressina. Quando o roedor promis-
curar fêmeas com boa capacidade de
H. Fisher sugere mesmo que a melhor cuo é manipulado geneticamente para
reprodução...
forma de uma mulher se re-apaixonar desenvolver receptores de vasopressina
pelo seu companheiro – na fase em que torna-se monogâmico. Por outro lado, Mas há outros factores envolvidos e um
a relação já esfriou – é ter sexo (e, so- quando a espécie monogâmica é injec- factor relevante parece ser o perfil ge-
bretudo, orgasmos) com ele (H. Fisher nético: o parceiro escolhido deve ter os
(Excerto de entrevista) Love@National melhores genes possíveis, já que esses
Geographic Magazine, Fevereiro 2006; genes vão ser passados aos filhos. Nesta
National Geographic Portugal, Fevereiro matéria assume um papel importante o
O Complexo de
2006, pag. 32). chamado Complexo de Histocompatibi-
Histocompatibilidade lidade Principal, relacionado com as de-
A vasopressina é actualmente conhe- Principal (MHC na sigla fesas imunitárias dos indivíduos.
cida como a hormona da fidelidade. É inglesa) é uma região Aparentemente, todos nós procura-
também uma pequena proteína de nove
aminoácidos (8 dos quais comuns à oxi-
de genes altamente mos naturalmente alguém com um
sistema imunitário diferente do nosso,
tocina) e o seu papel no corpo humano é polimórficos cujos produtos
para conseguir que os filhos tenham
vasto – o nome vasopressina, por exem- se expressam nas superfícies o benefício de ambos os sistemas. No
plo, está claramente relacionado com a
de uma variedade de fundo, quando nos sentimos atraídos
sua acção sobre a pressão sanguínea
– e algumas experiências recentes com células. As proteínas por alguém, pode ser apenas porque
gostamos dos genes dessa pessoa. Mas
um tipo de roedor dos campos revelou a codificadas pelo MHC são
como é que nós avaliamos os genes dos
sua relação com o comportamento mo- os principais determinantes possíveis parceiros?
nogâmico dos machos.
na rejeição de enxertos. Este é um assunto ainda em discussão,
Os estudos compararam o comporta- mas no qual a química volta a assumir o
mento de duas espécies próximas de papel principal!
roedores do género microtus: a espé-
É amplamente conhecido que vários
cie microtus ochrogaster, de compor- tada com um fármaco que inibe o efeito
animais, desde os insectos a muitos ma-
tamento monogâmico e a espécie mi- da vasopressina, os casais perdem a
míferos, comunicam entre si através de
crotus montanus, de comportamento sua devoção mútua e o macho deixa de
substâncias químicas designadas por
poligâmico promíscuo – isto é, sem qual- defender a fêmea da aproximação de
feromonas.
quer fixação de parceiros (M.M. Lim, outros machos (H. Fisher (Excerto de
Z.X. Wang, D.E. Olazabal, X.H. Ren, E.F. entrevista) Love@National Geographic O nome feromonas deriva do grego fero,
Terwilliger, L.J. Young, Enhanced partner Magazine, Fevereiro 2006; National Ge- transportar e de hormona, associado a
preference in a promiscuous species by ographic Portugal, Fevereiro 2006, pag. excitar. Numa tradução livre, as feromo-
manipulating the expression of a single 32). nas são “transportadores de excitação”.
gene, Nature 429 (2004) 754-757).
A primeira feromona a ser isolada, em
Segundo Larry Young, da Universidade
1961, recebeu o nome de bombicol, por
Os estudos de comportamento da espé- Emory , “todos os animais sentem pra-
ser a substância usada pelas fêmeas do
cie monogâmica mostraram que antes zer no sexo, mas a vasopressina permite
bicho da seda – cujo nome cienífico é
do acasalamento, a relação dos machos associar esse prazer a características es-
bombix mori – para atrair os machos.
com os outros machos e fêmeas era pecíficas de um parceiro – como o odor,
uniforme. Contudo, em cerca de um dia no caso dos ratos”(o mesmo ocorre em Até recentemente assumia-se que na
de acasalamento, o macho fica ‘preso’ à fêmeas, só que por meio de outra molé- espécie humana o processo de selec-
fêmea pelo resto da vida e não se apro- cula, a oxitocina). ção de parceiros era baseado essen-
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cialmente em estímulos visuais. No específico para detectar feromonas – o

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entanto, hoje já é mais ou menos con- chamado órgão vomeronasal, presente
sensual na comunidade científica que a no nariz de vários mamíferos. Se assim
espécie humana também tem a capaci- for, então a espécie humana possui de
dade de distinguir o genes do parceiros facto seis sentidos para se aperceber do
através do cheiro e que a visão pode ter mundo que nos rodeia, sendo o sexto
um papel mais secundário (A. Comfort, sentido a capacidade de detectar fero-
Likelihood of human pheromones, Na-
monas (R. Taylor, The sixth sense – Your
ture 230 (1971) 432; A. Weller, Human
schnozzle may be receiving lewd mes-
pheromones – Communication through
sages from the opposite sex, New Scien-
body odour, Nature 392 (1998) 126-
tist, 36 (1997)).
-127; K. Stern, M.K. McClintock, Regu-
lation of ovulation by human pheromo- Hoje já é possível encontrar – particu-
nes, Nature 392 (1998) 177-179 ; A. larmente através da internet – inúmeras
Motluk, New Scientist, 7 (2000). marcas de perfume que se anunciam

Pelo menos esta é a conclusão do “com feromonas” que garantem a sedu-


teste das camisolas suadas, realizado ção de todos os homens – ou todas as
em 1995 (C. Wedekind, T. Seebeck, F. mulheres – que quiser... ou com taxas
Bettens, et al. MHC-Dependent mate de eficácia de 70% (o que pode ser
preferences in humans, Proceedings ainda melhor, porque mantém alguma
of the Royal Society of London Series dúvida no processo...). No estado actual
B-Biological Sciences 260 (1995) 245- do conhecimento, é muito provável que
-249). Nesta experiência, um grupo de estes “perfumes com feromonas tiro-e-
mulheres foi convidada a cheirar ca- -queda” sejam apenas mais uma forma
misolas usadas por diferentes homens de apanhar dinheiro aos crédulos. Mas
durante dois dias, manifestando depois também é verdade que a comunidade
a sua preferência. A preferência foi científica começa a perceber melhor
sempre pelos homens com perfis MCH o funcionamento destes mecanismos
bastante distintos dos próprios, ou seja,
químicos... e a aceitar a sua existência.
pelos parceiros mais adequados geneti-
Num artigo publicado em 2005 no Jor-
camente.
nal Europeu de Obstetrícia e Biologia
Um resultado algo perturbador neste Reprodutiva, considera comprovado que
estudo foi o facto de as mulheres que os cheiros podem afectar o comporta-
tomavam a pílula no momento do es- mento humano e admite a existência de
tudo terem demonstrado preferência feromonas humanas (K. Grammera, B.
por odores correspondentes a perfis ge- Finka, N. Neave, Human pheromones
néticos idênticos aos seus. É sabido que and sexual attraction, European Journal
as fêmeas de rato, após engravidarem, of Obstetric & Genecology Reproduction
voltam a preferir a acompanhia de indi-
Biology, 118 (2005) 135–142). Certa-
víduos geneticamente próximos (irmãos,
mente nos próximos anos teremos novi-
pais, primos... o que faz sentido em ter-
dades científicas sobre a “química que
mos de protecção dos genes da família).
anda no ar”.
Embora o paralelismo deva ser feito com
reservas, é possível que a pílula – ao si- Embora a investigação em feromonas
mular na mulher alguns efeitos da gravi- possa vir a definir o futuro do acasala-
dez – induza a mulher a preferir a com- mento humano, a verdade é que a es-
panhia de indivíduops geneticamente pécie tem sobrevivido bem sem saber
próximos. Ou seja, dada a importância nada da química de feromonas. Os nos-
do contacto social na escolha de par- sos processos de escolha de parceiros,
ceiros, a pílula pode induzir a mulher a
de namoro e de acasalamento, sejam
escolher parceiros “errados”...
eles quais forem, são inegavelmente efi-
A questão que ainda se põe actualmente cazes – como comprova uma população
é se na espécie humana existe o órgão de mais de 6 mil milhões de pessoas...

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