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Ana Helena Ithamar Passos

Leonice Domingos dos Santos Cintra Lima


Yuri Miguel Macedo
(Organizadores)

MULHERES E FEMINISMO(S): NARRATIVAS


CONTEMPORÂNEAS
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra Lima
Yuri Miguel Macedo
(Organizadores)

MULHERES E FEMINISMO(S): NARRATIVAS


CONTEMPORÂNEAS

Porto Seguro, BA
2019
Copyright © 2019 by Ana Helena Ithamar Passos; Leonice
Domingos dos Santos Cintra Lima; Yuri Miguel Macedo
(Organizadores)
Todos os direitos reservados

Editor da obra
Yuri Miguel Macedo
Arte da capa
Victoria E. S. Mendes
Diagramação
João Pedro B. Bomfim
Secretária Executiva
Monnique Greice Malta Cardoso

Conselho Editorial:
Ana Helena Ithamar Passos Mariana Fernandes dos Santos
Eduardo David de Oliveira Pâmella Passos
Gilsilene P. P. Francischetto Patrícia Gomes Rufino Andrade
Giovana A. Fazio Zanetti Rita de Cássia V. da Costa
Jorge Ferreira Dantas Junior Simone Silva Alves
Kiusam de Oliveira Sônia Guimarães
Larissa de Albuquerque Silva Suely Dulce de Castilho
_________________________________________________
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas. 1.ed. /
Ana Helena Ithamar Passos; Leonice Domingos dos Santos Cintra
Lima; Yuri Miguel Macedo– Porto Seguro: Editora Oyá, 2019,
308p.

ISBN: 978-65-80187-41-6

1. Educação. 2. Feminismo. 3. Contemporâneidade.


I. Título. II. PASSOS, Ana Helena I.; LIMA, Leonice D. dos S. C.;
MACEDO, Yuri M.
Todos os direitos desta edição reservados aos autores, organizador e
editores. É expressamente proibida a reprodução desta obra para
qualquer fim e por qualquer meio sem a devida autorização da Editora
Oyá.
SUMÁRIO

PREFÁCIO................................................... 7
Simone Aparecida Jorge

IDENTIDADES DE PAPEL: EDUCAÇÃO COMO ESPAÇO DE


CONFLITO ENTRE A NORMA E SEU DESVIO ............ 15
Márcia Rezende de Oliveira

PONDERAÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO


BRASIL ..................................................... 61
Pamela Michelena De Marchi Gherini

MOVIMENTO LGBTQI+ COMO MOVIMENTO SOCIAL E A


SUA CONSTRUÇÃO NO BRASIL .......................... 97
Emerson Rodrigues Silva e Simone Aparecida Jorge

DISCRIMINAÇÃO DA MULHER COM DEFICIÊNCIA NO


MERCADO DE TRABALHO FORMAL BRASILEIRO ..... 123
Samara F. Marques de Almeida

MULHER NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO: ESTUDO


E OBSERVAÇÃO EM PENITENCIÁRIAS DA REGIÃO DA
ALTA PAULISTA – ESTADO DE SÃO PAULO ........... 149
Leonice Domingos dos Santos Cintra Lima e Raísa Piratelli

DESENCARCERAMENTO FEMININO UMA AÇÃO


NECESSÁRIA ............................................. 165
Bianca Silva Sales e Simone Aparecida Jorge
MULHERES E RELIGIÃO: UM NOVO OLHAR SOB A
PARTICIPAÇÃO FEMININA NAS RELIGIÕES
ABRAÂMICAS ............................................ 195
Estefany Brito Santos e Simone Aparecida Jorge

VIOLÊNCIA E GÊNERO: POLÍTICAS DE PROTEÇÃO A


MULHER IDOSA NO BRASIL ............................ 263
Roseli Albuquerque da Silva

MULHER NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO: ESTUDO


E OBSERVAÇÃO EM PENITENCIÁRIAS DA REGIÃO DA
ALTA PAULISTA – ESTADO DE SÃO PAULO ........... 291
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

PREFÁCIO

Permita-me a leitora e o leitor de antes de


apresentar essa obra descrever de maneira pessoal
meus agradecimentos e satisfação em ser convidada
para prefacia-la. O convite afetuoso me faz honrada,
pois possibilita realizar algo que considero de extrema
importância para minha militância feminista, que é
ressaltar vozes contemporâneas de mulheres; as
diferentes vozes e as diferentes lutas travadas pelos
movimentos feministas. Vozes e lutas que são
históricas. Utilizarei o termo feminismos a fim de
demonstrar que em meu entendimento os movimentos
feministas sempre foram plurais.
Importa lembrarmos que o termo feminismo
não é recente, há registros de sua utilização nos
Estados Unidos no início do século XX, e enquanto
teoria produzida por mulheres, que desafiaram os
estigmas e papeis impostos socialmente, observa-se
que a discussão é bem mais antiga. Porém, as obras
dessas mulheres não são do conhecimento de grande
parte do público, pois as perspectivas utilizadas na
produção dos saberes tem como enfoque a visão
masculina, ou seja, o homem historicamente foi
colocado no centro do universo do conhecimento
científico e filosófico, a história da sociedade
ocidental foi narrada por homens. E esses tornaram
quase invisíveis o saber e a produção intelectual
feminina.
Com a finalidade de dar visibilidade às palavras
escritas neste dossiê, apresenta-se a importante
discussão proposta por Márcia Rezende de Oliveira

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

em Identidades de papel: educação como espaço de


conflito entre a norma e seu desvio em que reconhece
a importância das discussões de gênero, em especial
no que concerne à equidade de gênero no currículo
escolar. A autora apresenta as tensões e desafios
frente à experiência nos Institutos Federais no
período de 2014 a 2019 de garantirem a discussão de
gênero. O desafio se coloca frente à lógica sexista/
masculinista (palavras da autora) imposta
culturalmente e que a educação, em todos os níveis,
poderia desconstruir, permitindo que temas como
gênero, identidade sexual e direitos sexuais e
reprodutivos fizessem parte dos currículos. Dessa
forma, contribuiriam para o combate à violência de
gênero, bem como para a construção de uma outra
lógica, e essa de equidade.
Destaca-se aqui que a luta pelo direito a
educação igual para meninos e meninas é muito antiga
e marca o debate teórico de duas mulheres
importantes para a história dos feminismos. Mary
Wollstonecraft (1759 - 1797), inglesa, publica em 1792
a obra “Reivindicação dos direitos da mulher”. A
autora defendia que fosse garantida pela educação a
igualdade entre os sexos, afirmava que os homens
tinham privilégios sociais e que a ideia de que a
mulher era naturalmente inferior ao homem resultava
de uma construção social e não especificamente de
uma diferença biológica. Reivindicou que a educação
fosse igual aos dois sexos, seguindo o princípio da
razão.
No Brasil, cinquenta anos mais tarde, uma
jovem de 22 anos, Nísia Floresta Brasileira Augusta

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Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

(1810 – 1885) do Rio Grande do Norte, faz uma


tradução livre da obra de Mary Wollstonecraft,
publica “Direitos das mulheres e injustiça dos
homens”. Nísia Floresta foi independente, fundou
escolas e procurou demonstrar que as diferenças nos
corpos de homens e mulheres, não implicavam em
diferenças em suas almas, portanto, não significava
em desigualdade de raciocínio. Em aspectos gerais,
defendeu a abolição da escravatura, a instauração da
República, a emancipação feminina e apresentou
propostas para a educação.
Outro tema deste Dossiê apresenta-se no artigo
de Pamela Michelena De Marchi Gherini, que propõe
Ponderações sobre a violência de gênero no Brasil, a
autora destaca estatísticas em que posicionam o país
dentre aqueles com maiores índices de violência
contra a mulher e a população LGBTQI+. A partir dos
números apresenta questionamentos sobre o
posicionamento do Estado brasileiro no
enfrentamento ao feminicídio, ao homicídio motivado
por LGBTfobia, à violência domestica, violência
sexual e demais situações em que se expressem a
violência de gênero. Destaca como um dos mais
importantes questionamentos, se o Direito Penal no
Brasil está sendo empregado de maneira adequado
nas situações retratadas.
Os feminismos contemporâneos,
independentemente de suas lutas específicas e da
pluralidade de seus posicionamentos, dão vozes às
mulheres negras, indígenas, mulçumanas, judias,
indianas, evangélicas, católicas, não religiosas,
pobres, trabalhadoras, profissionais do sexo,

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

mulheres trans. Suas pautas de reivindicações são


extensivas a todos os grupos minoritários, portanto,
os feminismos são inclusivos. Se alguma voz que se diz
feminista não a utilizar em defesa de todas, todos e
todes necessita repensar seu aprendizado com esses
movimentos, pois historicamente esses sempre
lutaram e lutam contra quaisquer tipos de opressão e
em defesa dos Direitos Humanos de todas as pessoas.
Partindo dessas colocações, apresenta-se o
artigo Movimento LGBTQI+ como Movimento Social e
a sua construção no Brasil de Emerson Rodrigues
Silva e Simone A. Jorge que recupera o histórico
desse movimento no Brasil em suas diferentes fases,
mas acompanhou uma tendência mundial no que diz
respeito à emergência de movimentos sociais que não
estão relacionados com os movimentos de classe ou
movimentos operários. Os autores tiveram como
objetivo construir historicamente a perspectiva do
Movimento LGBT como um Movimento Social e
demonstrar que embora a homossexualidade exista
desde a antiguidade, onde era aceita de certa forma,
nos últimos séculos têm sido condenada e restringida
de diversas formas, muitas pessoas, enquanto parte
da comunidade LGBTQI+ são assassinadas em todo o
mundo, é necessário que direitos sejam conferidos a
estes.
A diversidade ainda presente neste dossiê com
o texto de Samara Marques de Almeida, Mulher,
Deficiência e Mercado de Trabalho, que analisa as
possibilidades ofertadas pelo mercado trabalho à
mulher com deficiência. A autora destaca os modelos
de tratamento social à mulher com deficiência e

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Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

expõe a precariedade de sua inserção laboral, em que


a mesma torna-se vitima de dupla discriminação,
gênero e deficiência. Aponta que o trabalho
possibilita independência e dignidade para a pessoa
com deficiência, transformando-a em um ser
produtivo ao passo em que lhe garante
reconhecimento de sua cidadania.
As autoras Leonice Domingos dos Santos
Cintra Lima e Raísa Piratelli no artigo Mulher no
Sistema Prisional Brasileiro: estudo e observação em
penitenciárias da Alta Paulista apresentam a síntese
de estudos realizados por graduandas em Serviço
Social da Faculdade UNIFADRA-Dracena, no interior do
Estado de São Paulo – Brasil. Por meio da revisão de
literatura e observação sistemática e relatos da
experiência de estágio das discentes, procuram
demonstrar o tratamento destinado às mulheres
encarceradas nos presídios e CDPs - Centros de
Detenção Provisória de Dracena. Evidenciam a
precariedade do ambiente em que vivem essas
mulheres, além do isolamento familiar e social e o
quanto essas condições tornam essa população ainda
mais vulnerável. As autoras destacam a importância
do trabalho social por meio de políticas públicas que
procurem resgatar a autoestima, promover o
empoderamento feminino e estimular o processo de
ressocialização e consequentemente o
distanciamento da vida ligada ao crime.
Na mesma temática o artigo de Bianca Silva
Sales e Simone A. Jorge, Desencarceramento
Feminino uma ação necessária, ressalta a
institucionalização da violência no cárcere feminino e

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

que as tentativas de humanização ou reforma do


sistema prisional propiciam poucas mudanças. As
autoras afirmam que esse sistema é responsável
também em reproduzir esta engrenagem de violações
e violências. Sendo necessária, por meio de pressões
das organizações e movimentos sociais, a construção
de politicas para o desencarceramento, a fim de
garantir a dignidade dessas mulheres encarceradas.
Outro tema de extrema relevância se coloca no
artigo Mulheres e Religião: um Novo Olhar sob a
Participação Feminina nas Religiões Abraâmicas, as
autoras Estefany Brito Santos e Simone A. Jorge
abordam a maneira como as religiões abraâmicas
descrevem e tratam a figura feminina historicamente,
e como a narrativa adotada pelas instituições
religiosas distorce e diminui a atuação das mulheres
na sua constituição. Apontam a mutua influencia
entre os movimentos feministas e os dogmas
religiosos, analisando o surgimento de organizações
não governamentais pela garantia dos direitos das
mulheres entre outras movimentações não só no
cenário ocidental.
Roseli Albuquerque da Silva em seu artigo,
Violência e Gênero: Políticas de Proteção a Mulher
Idosa no Brasil, ressalta o envelhecimento como
motivo de preocupação para a sociedade e o Estado
brasileiro no que concerne à garantia dos direitos e
bem-estar da população idosa. O artigo apresenta
uma cronologia de criação de políticas públicas e
instituições que atendem aos idosos no âmbito da
renda e da assistência social. Destaca ainda a
importância de o Estado brasileiro dar atenção ao

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Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

processo de feminização da população idosa no que


tange ao enfrentamento a violência contra os idosos,
em especial às mulheres que vem se apresentando em
maior número na sociedade brasileira.
Mulheres e Feminismo(S): Narrativas
Contemporâneas apresenta a pluralidade de olhares
ao abordar situações de vulnerabilidade e violações
de direitos vivenciadas por mulheres e pela
comunidade LGBTQI+, desta forma aproprio-me do
seu conteúdo e recomendo a leitura cuidadosa e
certamente prazerosa de seus artigos, que no
conjunto apresentam uma riqueza de conteúdos que
só a diversidade de olhares poderia produzir.

Simone Aparecida Jorge1

1
Professora do Centro Universitário das Faculdades
Metropolitanas Unidas. Cursos de Relações Internacionais e
Ciências Sociais. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Mestre
em Ciências Sociais pela PUC/SP. Graduada em Sociologia e
Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São
Paulo. Tema da pesquisa de Doutorado: Ativismo Político de
Mulheres na Internet.

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

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Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

IDENTIDADES DE PAPEL: EDUCAÇÃO COMO


ESPAÇO DE CONFLITO ENTRE A NORMA E
SEU DESVIO

Márcia Rezende de Oliveira

Partindo da concepção de educação como


direito universal, inclusive assegurado na Constituição
de 19882, tem-se por objetivo discutir os desafios e as
dificuldades enfrentadas hoje no que tange às
tentativas de efetivação do atendimento pleno ao
desenvolvimento intelectual no que diz respeito às
mulheres. O direito universal à educação garante ou
deveria garantir que nenhum ser humano tenha
cerceado seu pleno desenvolvimento. No entanto, na
pratica do educador brasileiro ou quando se pensa no
debate curricular hoje, percebe-se que esse direito
universal à educação carece ainda de sua plena
efetivação3.
2
Apenas na constituição de 1967, Art. 168, a “educação torna-
se um direito de todos”, com “igualdade de oportunidade” para
todos. No texto de 1988, este direito é ampliado e garante
igualdade de condições de desenvolverem a capacidade
sociocognitiva.
3
Nesse artigo, por questões de metodológicas, discute-se
especificamente a mulher no ambiente escolar, mas não
podemos perder de vista que vários outros grupos também têm
esse direito alijado e demandam uma discussão específica, tais
como LGBTQI+, afrodescendentes, e etc.

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Além dos currículos que desconsideram


questões de gênero, inúmeros são os desafios e
dificuldades sentidas na implementação e discussão
nas escolas das leis nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 4
4
Aqui vale recorrer à letra da lei: “Art. 2o Toda mulher,
independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual,
renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe
asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem
violência, preservar sua saúde física e mental e seu
aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o
exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à
alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à
justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à
liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e
comunitária” (...).
Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto
articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por
diretrizes:
I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério
Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança
pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e
habitação;
II - a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras
informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça
ou etnia, concernentes às causas, às consequências e à
frequência da violência doméstica e familiar contra a mulher,
para a sistematização de dados, a serem unificados
nacionalmente, e a avaliação periódica dos resultados das
medidas adotadas; ”
(Grifos nosso).

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Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

e LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 19965, Lei


Maria da Penha e Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Brasileira. Embora as leis existam e tenho
por prerrogativa o acesso ao pleno direito à educação
por parte das mulheres, elas não são ainda cumpridas.
De saída, poderia ser objetado a isso que do
ponto de vista formal, aparentemente, as mulheres
tem pleno acesso a esse direito, inclusive com
preeminência numérica em relação aos homens. A
taxa de analfabetismo entre as mulheres é
ligeiramente menor que a dos homens, em 2017, era
de 7% para as mulheres e 7,4% para os homens,
segundo dados do PNAD, 2017 e o acesso à
universidade também é maior entre elas, segundo
dados do IBGE. No entanto, há outros dados que
colocam em questão a leitura isolada destes números,
lê-los assim apenas mascara a realidade e os confunde
com outros problemas que levam a evasão escolar por
parte dos homens. Só para citar alguns exemplos de
dados que contestam o atendimento equânime do
direito à educação às mulheres, até 2017, não se
concedia licença maternidade para as alunas de pós-
graduação, tendo essas mulheres que cumprir prazos
iguais aos que não passaram por uma gestação, sem
pausa para darem a luz ou amamentarem. Só em
dezembro do referido ano que as principais agências
de fomento, Capes e CNPq, passaram a conceder o
beneficio.
5
Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes
princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola;

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Ana Helena Ithamar Passos
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Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Passando pelo respeito às suas necessidades


específicas ao longo de sua trajetória acadêmica,
como direito à licença maternidade, há inúmeros
outros aspectos de exclusão da mulher do direito à
educação, inclusive com a reprodução da cultura que
prega a inferioridade dela dentro da própria escola,
lugar por excelência, na teoria pelo menos, de quebra
de preconceitos. Estes aspectos vão desde a crença e
a enunciação para as educandas de que mulher tem
por “natureza” a letra bonita, é mais organizada, é a
responsável por cuidar da organização da turma, à
ideia de que há profissões especificas de mulheres e
outras que elas não podem acessar, crenças estas
reforçadas diariamente em sala de aula, muitas vezes
pelos próprios educadores, teoricamente agentes
críticos e produtores de conhecimento e
transformação de mundo.
O resultado disso é a perpetuação de estruturas
de poder, para além da escola, pois, ainda segundo o
IBGE, mesmo nos casos em que é maioria numérica
como profissional e com formação superior,
majoritariamente os cargos de chefia tendem a ser
ocupados por homens e o mercado de trabalho6 ainda
6
Segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT – haviam
2,9 bilhões de trabalhadores no mundo em 2016, destes 1,2
bilhão eram mulheres, mas em posições elevadas na hierarquia
eram em número nada significativo. No Brasil, o mercado
nacional é de 40% de mulheres no mercado de trabalho, mas elas
também não estão em número significativo em cargos de chefia
e recebem cerca de 30% a menos que os homens na mesma
posição hierárquica.

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Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

a remunerará menos pelo mesmo trabalho. Portanto


a garantia de direitos civis no último século, muitos
deles conquistados na década de 1930, embora
fundamentais não eliminaram a diferenças de
condição materiais e nem a posição política, cultural
e moral do público feminino.
Assim, é forçoso notar que o que parecia um
avanço, o atendimento à universalização do direito à
matricula não resolve o problema, pois não garante o
pleno desenvolvimentos de todos como sujeitos de
direitos em suas particularidades. Fica evidente
também, o quanto o cumprimento meramente formal
de número das matrículas reforça a ideia difundida no
senso comum de que o que era para ser feito pelo
Estado o está sendo, dispensando políticas públicas
que garantam a permanência das meninas e mulheres
nas escolas, garantindo o atendimento às suas
demandas especificas. Esse mecanismo de invisibilizar
o descumprimento da lei passa pelo argumento de que
leis específicas que busquem garantir equidade de
gênero seriam inócuas, uma vez que já existe a
igualdade formal. Nesse sentido, pode parecer pouco
e um tanto óbvio, mas o primeiro desafio ainda é
justamente o de apontar para o erro da prerrogativa
formal numérica ao se restringir a discussão a
comparação entre o número de mulheres e homens
nas instituições de ensino. Vale salientar, essa
prerrogativa muitas vezes serve à invisibilização da
realidade cotidiana das instituições de ensino.
Em síntese, esta ampliação do corpo de análise
é fundamental para se entender o fenômeno a ser
analisado. A instituição de ensino, considerada em

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Ana Helena Ithamar Passos
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Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

suas múltiplas relações expõe o cerne do problema,


por um lado ela é, por excelência, o lugar do
questionamento, que se pretende produtor de
conhecimento, e, paradoxalmente, também reproduz
valores de uma época, de uma cultura. Neste sentido,
mostra-se um espaço privilegiado para esse tipo de
estudo, ao permitir que se estude mecanismos de
cerceamento de direitos por meio de sua própria
implementação formal. Em outras palavras, a
instituição de ensino se mostra como o lugar do
conflito, primeiramente por que há um descompasso
entre o cumprimento formal do que nossa época
entende por direito e sua tradução em efetivo direito;
segundo por que entendida como lugar de reflexão e
crítica, ela parece também lugar de reprodução das
desigualdades de uma sociedade.

A INTRUSÃO DO JUÍZO DE VALOR NA TRANSMISSÃO


DOS SABERES

Não bastasse o atendimento formal do direito


se traduzir em argumento cerceador de sua
efetivação, há também o fenômeno muito especifico
de nossa época que é uma resistência organizada e
pública contra o atendimento do que pede a LDB e Lei
Maria da Penha, no que tange ao estudo e promoção
de direitos por meio de políticas públicas. Agrava-se
esse quadro o fato de que embora laica formalmente,
ou seja, assim prevista na Constituição de 1988,
legisladores, agentes e profissionais da educação, em
suma todos aqueles que de uma maneira ou outra
estão envolvidos na educação formal, no exercício de

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Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

suas funções muitas vezes se opõem a essas discussões


de gênero com base juízos de valor, pessoais ou de
grupo.
Essa produção e reprodução de toda sorte de
pré-conceitos no interior do instituto de ensino, acaba
por afetar o estudo, pesquisa e ensino transversal do
tema. Ela muitas vezes está insidiosamente
escondida, por um lado, na forma de valores
socialmente aceitos e que devem ser repassados “para
o bom funcionamento da sociedade”, numa recepção
passiva desses valores, mesmo no ambiente em que
eles deveriam ser objeto de analise, que é o ambiente
da produção do conhecimento. Nesse caso, a intrusão
de crenças e valores, pessoais e coletivas aparecem
disfarçados de neutralidade da ciência. Assim, eles
não são reconhecidos como presentes, muito menos
como pertinentes de serem trabalhado dentro de
certos conteúdos. Soldagem, por exemplo, seria
apenas uma matéria técnica, nada teria a acrescentar
sobre a discussão de gênero, ela não é vista como
reprodutora de uma organização masculinista do
saber e do poder. Destarte, não é rara a reprodução
dentro da comunidade acadêmica de certo
maniqueísmo masculinista que sente e se ressente por
entender ser contra o homem, ou a “natureza”, ou a
uma entidade divina, a tentativa de se efetivar o
direito pleno à educação para as mulheres. Desse
modo, é que o trabalho nas escolas tendem a expor
feridas não curadas da sociedade a que pertencem,
dentre eles o machismo/sexismo/patriarcalismo.
Assim, é justamente no campo dos valores que
se coloca nosso segundo desafio, além de, por si

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Ana Helena Ithamar Passos
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(Orgs.)

mesmos, eles já atuarem num campo em que o senso


comum não os considera presentes, como dissemos é
muito difícil aferir os valores atuando na pratica
educacional que cerceia direitos, pois dificilmente
essas práticas se reconheceram como tal, ela opera
meio que em modo automático.
Toda essa sutileza da questão exige um olhar
mais atento, minucioso e em loco das relações que se
estabelecem em torno destas desigualdades e dos
conflitos que são gerados quando se tenta
problematizá-la, para isso, apresenta-se, como
material de análise, algumas experiências sobre as
discussões de gênero realizadas nos Institutos
Federais, em especial no IFSP e Ifes, no período de
2014 a 2019. Por meio delas busca-se entender a
origem das tensões, dos embarreiramentos e os
desafios postos a partir da tentativa de se discutir nas
escolas aquilo que exige a positivação das leis supra
citadas e da implementação daquilo que prescrevem
para a comunidade escolar/acadêmica, como direito
e também como tema transversal no currículo escolar.
Embora fundamental a pesquisa estatística
como ponto de partida para boa parte das análises
feitas aqui, afinal ela nos ajuda a demonstrar esse
descompasso entre a consciência e a prática da
violência de gênero, ela sozinha não dá conta de
aspectos qualitativos e valorativos que o tema
apresenta. Assim, é necessário lançar mão de um
método que dê conta de analisar esses valores e suas
teias, de trabalhar aspectos qualitativos e valorativos
do tema, por isso opta-se pelo método

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Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

fenomenológico de recolhimento de dados, como os


depoimentos colhidos nos banheiros, e análise.
Uma vez remontado a cena da discriminação e
melhor compreendido seu mecanismo de
engendramento, é preciso pensar em estratégias de
desmonte desses mecanismos. Em parte, as
exigências que a lei coloca auxilia nesta tarefa, em
parte, ela sozinha é insuficiente, é preciso criar
condições para que os atores tomem consciência do
papel que encenam na trama apresentada, isto é, o
papel que cada educador dentro do espaço escolar
tem na produção e reprodução dos papeis e
hierarquias de gênero hegemônicas, para daí poder se
problematizar a tensa relação entre lei, teoria e
prática. E por fim, problematiza-se como formar,
des-formar e/ou qualificar os profissionais da
educação para trabalharem no reconhecimento das
armadilhas que impedem o acesso equânime à
educação, por meio das desigualdades de gênero, e
como atuar sobre essas desigualdades para que
minimamente sejam garantidas as mesmas
oportunidades a todos e todas.
Espera-se que essa análise possa ajudar a
compreender melhor essa complexa teia que leva aos
entraves encontrados pela tentativa de efetivação do
direito à educação, tanto naqueles que são os
receptores das ações, quanto nos que deveriam ser
seus agentes de efetivação, quanto na própria
dinâmica de produção do conhecimento.

TRÊS EXPERIÊNCIAS NO TRABALHO COM GÊNERO


NAS ESCOLAS

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
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(Orgs.)

Três experiências descritas neste artigo em


larga medida são impulsionadas pela demanda das
próprias estudantes. São eles: a criação do coletivo
Precisamos falar sobre machismo, hoje Coletivo
feminista três Marias (IFSP), coletivo auto organizado,
e dois trabalhos de pesquisas (Ifes Campus São
Mateus) que visam mapear a percepção das violências
de gênero por parte da comunidade escolar. Trata-se
de uma pesquisa censitária, com estudantes e
servidores do Ifes Campus São Mateus e outra em que
os frequentadores dos banheiros públicos da mesma
instituição são convidados a deixarem seus
depoimentos anônimos em cartazes afixados nestes
espaços.

COLETIVO FEMINISTA – IFSP

A partir de um trabalho em sala de aula, as


alunas e alunos do ensino médio integrado do Instituto
Federal de São Paulo, IFSP-campus Canindé,
colocaram a demanda de se discutir com o próprio
Instituto algumas opressões de gênero que vinham
vivenciando naquele espaço. Para atender a essa
demanda, em 27 de novembro de 2014 ocorreu o
simpósio “Opressão de gênero: identidades em
questão”, com várias atividades que incluíam
palestras, intervenções artísticas, minicursos sobre
masculinidades e uma roda de conversa entre alunas
e diretoras da instituição sobre o tema.

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Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Para a realização do evento, com o intuito de


divulgá-lo e por sugestão das próprias alunas, elas
criam e passaram a administrar uma página no
Facebook7. Uma vez concluído o trabalho, as alunas
pedem que a página da referida rede social não seja
desativada e venha a servir como uma espécie de
fórum de debate entre elas, em grande parte, isso se
justificava por que a essa altura a página já possuía
7
https://www.facebook.com/groups/302765969930389/ ,
acesso em 20/05/2019.

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Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

um grande número de seguidoras, algo em torno de


duas mil pessoas, interessadas em discutir machismos
e violências contra mulher, ou seja, já tinha, na
pratica, se tornado um espaço de debate delas. Das
discussões propostas na página na rede social surge a
ideia de encontros presenciais regulares. Desse modo,
funda-se o coletivo. A partir daí, a grande discussão
era se, na qualidade de a professora proponente do
evento, a autora desse artigo, e, até ali, a que
organizou o simpósio, as orientaria ou não nesta nova
empreitada. Opta-se então, a conselho da professora,
por um modelo de construção horizontal de coletivo,
sem a presença de professores ou servidores, em que
as demandas delas sejam estudadas e trabalhadas por
elas mesmas.

DIA DE COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER –


IFES

Assim que saiu do IFSP, a professora autora


desse texto torna-se professora no Ifes. Dado que o
Plano de desenvolvimento Institucional (PDI)8 já prevê
ações voltadas para a promoção da Educação,
Diversidade e Inclusão, indo ao encontro da LDB, e que o
Espírito Santo possuí um dos maiores índices de
feminicídio do Brasil, – em 2017, o estado registrou a
maior taxa de feminicídios do Sudeste e a terceira maior
do Brasil – , o trabalho transversal com a temática de
gênero foi retomado. No entanto, a resistência logo
8
https://www.ifes.edu.br/images/stories/files/documentos_ins
titucionais/pdi_2-08-16.pdf , consultado em 20/05/2019.

26
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

aparece traduzida muitas vezes pela alegação de que


não há data predefinida em no calendário escolar nem
necessidade de fazê-lo, pois já se atende à demanda
formal por matriculas.
Para que a data de 25 de novembro, Dia
internacional de combate à violência contra a mulher,
não passasse despercebida, propõe-se então, com
alguma parceria9, um número musical que ao menos
problematizasse minimamente as violências
cotidianamente sofridas. Desse evento se seguiu
outros nos anos seguintes, finalmente conquistou-se
um direito a uma data no calendário escolar.
Nas edições seguintes os alunos foram
convidados a produzirem vídeos que dialogassem com
a escola, que colocassem suas demandas e
observações sobre violências vivenciadas nela.

VÍDEOS

O primeiro vídeo, o de 2017, foi produzido em


cima dos relatos deixados nos banheiros. No feminino,
os relatos davam conta de abusos sexuais, de
relacionamentos abusivos, de descaso com suas
necessidades, de inadequação ao espaço escolar. Já
no banheiro masculino, contestava-se a ideia de que
haveria violência de gênero, debochava-se das dores
e abusos sofridos. O contraste entre o conteúdo de um
e outro espaço deixava claro que além de
9
Aqui é preciso agradecer em especial à pedagoga Maria Isabel
Costa da Silva e à então diretora de ensino Ires Maria Pizetta
Moschen.

27
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

desconsiderar como violências atos de violação, em


função desses atos serem praticados contra mulheres,
os homens que fizeram relatos ali, no geral, não
tinham consciência de que o próprio questionar da
importância dada às violências de gênero, já eram
atos violentos.
O segundo vídeo, de março de 2019, era uma
criação livre dos alunos sobre violências praticadas
contra a mulher no ambiente de trabalho e de
formação. Chama a atenção um vídeo produzido por
alunos do terceiro ano do curso de eletrotécnica da
instituição que fala da condição de trabalho da mulher
no mercado e ao fim dele, há o depoimento de alunas
sobre o que as incomoda na escola. Dentre outras
queixas, sem titubear, elas disparam “eu percebo
quando você dá preferência aos times masculinos”.
Essas é uma queixa comum nos corredores, sentem-se
ignoradas quando o assunto é formar times para as
competições. Reclamam que na maioria das vezes se
prioriza os times masculinos10.
Em certa medida, elas estão denunciando a
discriminação de gênero que é reproduzida pela
10
Nos esportes é muito comum ainda que existam aulas, treinos
e competições marcadas por forte separação e discriminação por
gênero. O futebol, por exemplo, é notoriamente dominado por
homens, tanto em número de praticantes e clubes quanto na
diferença salarial. Em certas modalidades esportivas, como o
xadrez, falta justificativa lógica para o que suas confederações
fazem ao propor campeonatos em separado para mulheres e
homens, já que o componente físico usado para justificar essa
separação em outras modalidades não tem papel atuante nesta
modalidade. O que se aponta no vídeo é que não é muito
diferente no ambiente escolar.

28
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

comunidade acadêmica que espera coisas diferentes


de homens e mulheres. E, se por um lado, a escola é
produtora e reprodutora dos papeis de gênero, valores
que em alguma medida são assimilados e reproduzidos
pelos estudantes, por outro, é também o espaço da
crítica dos valores, muitas vezes questionados por
esses mesmos estudantes.

PESQUISA CENSITÁRIA

Os relatos trazidos acima foram só alguns


recortes pontuais dos muitos episódios de
silenciamento das tentativas de discussão de gênero
nos dois institutos das denúncias feitas. Embora
possa-se fazer relatos e esse material esteja
disponível, em função da sutileza dos argumentos
muitas vezes empregados nesses processos, sentia-se
a necessidade de capturar esse mecanismo que
impede o avanço da discussão de forma a desmascarar
algumas falácias empregadas. Exemplo que vale
retomar dessas falácias é o de quando se usa da
possibilidade de matriculas formais de mulheres, se o
uso desse fato para alegar que o problema de gênero
na escola é inexistentes, “coisa de feminista”. Era
preciso então oferecer materialidade numérica que
sustentasse essas observações fenomenológicas para
que elas também não passassem pelo mesmo processo
de silenciamento.
Para tanto era necessário instrumentos que
permitissem aferir essas resistências e que,
posteriormente, sustentasse nossa hipótese da
necessidade de formação, tanto dos discente quanto

29
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

dos docentes, para que o enfrentamento das


desigualdades fosse efetivo. A quantificação destas
observações feitas até então de forma empírica é um
importante instrumento também para se diagnosticar,
entender e propor ações no sentido de dirimir essas
violências.
Assim, a comissão organizadora do Dia de
combate à violência contra a mulher, a qual a
professora autora desse artigo presidia, e as
professoras da disciplina de estatística11 do Curso de
Engenharia Mecânica do Instituto Federal do Espírito
Santo, campus São Mateus decidiram por fazerem um
trabalho em conjunto com os alunos12 da referida
11
Aplicar a pesquisa e tabular parte dos dados tornaram-se então
parte dos requisitos para a obtenção da nota na referida
disciplina. Essa tabulação foi conferida e em parte refeita para
fins de análise neste artigo. Quanto às perguntas, embora
tenham sido elaboradas em grade parte pela professora autora
desse artigo, elas foram discutidas com os membros da comissão
organizadora do evento e com os alunos da disciplina de
estatísticas, estes últimos como o intuito de que eles
compreendessem melhor também o processo de elaboração do
questionário. Vale salientar que envolver os alunos nos trabalhos
que antecedem aos eventos que discutem violência contra
mulher sempre foi uma das estratégias usadas para que eles
realmente fizessem uma reflexão a respeito do tema. E, por fim,
gostaríamos de agradecer a todos que contribuíram para que essa
pesquisa censitária acontecesse em especial às professoras Silvia
Louzada e Fernanda Capucho Cezana e ao alunos do curso de
engenharia mecânica do Ifes-campus São Mateus e à comissão
organizadora do evento no ano de 2017.
12
Embora as perguntas tenham sido elaboradas em grade parte
pela professora autora desse artigo, elas foram discutidas com
os membros da comissão organizadora do evento e com os alunos

30
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

disciplina, que radiografasse numericamente esse


estado de coisas. Assim, entre outubro e novembro de
2017, foi realizada uma pesquisa censitária, a qual
toda a comunidade interna ao instituto foi convidada
a responder. Além da identificação por categoria, as
perguntas versavam quase todas elas sobre a
identificação/consciência de algum tipo de violência
específica contra a mulher no Campus, partindo do
que a Lei Maria da Penha considera violência, de modo
a tentar identificar se a comunidade reconhecia essas
violências como tal. Assim, as questões foram
formuladas com esse intento de provocar naquele que
o respondia a reflexão sobre as possíveis contradições
de suas respostas.
Responderam à pesquisa: 178 alunos do
integrado de um total de 264 alunos matriculados, 43
de alunos da engenharia de um total de 225, 50 do
concomitante de um total de 262, 17 docentes de um
total de 65 e 20 servidores do administrativo de um
total de 53.

da disciplina de estatísticas, estes últimos como o intuito de que


compreender melhor também processo de elaboração do
questionário. Ficou a cargo deles, como requisito parcial para
obtenção da nota da referida disciplina, aplicar o questionário e
fazer uma primeira tabulação de dados, refeita para fins de
escrever este artigo. Vale salientar que envolver os alunos nesses
trabalhos sempre foi uma das estratégias para que eles
realmente fizessem uma reflexão a respeito do tema. A escolha
das perguntas visava colher dados que nos possibilitasse
radiografar o que se passava na escola, mas também já colocar
o entrevistado em condições de refletir diante de suas próprias
respostas.

31
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

De saída, buscava-se saber quantos ali


admitiam já ter presenciado algum tipo de violência
de gênero. No geral 19% das pessoas que responderam
ao questionário dizem já ter presenciado esse tipo de
violência no campus. É preciso observar antes de mais
que 19% do público de uma instituição de ensino
afirmar que já presenciou algum tipo de violência
desse tipo dentro da instituição, por si só já é um dado
alarmante.
No entanto, há outro dado tão problemático
quanto e bastante sintomático de como essas
violências, embora previstas em lei, são naturalizadas
a ponto serem negadas como tal. Por um lado, na
primeira pergunta aqui apresentada, 81,2% do publico
diz nunca ter presenciado uma violência no âmbito do
campus, mas se perguntados sobre comentários que
tem por matéria o corpo das alunas, por exemplo,
mesmo que por meio de piadas, esse número chega
quase que a se inverter, 77% admitem terem ouvido
comentário sobre o corpo das alunas, ainda que em
forma de piada.

32
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Assim, percebe-se que à medida que se


pergunta de violências específicas, o número de
pessoas que as presenciaram sobe gradativamente,
até mesmo entre as categorias que tinham dito não
ter presenciado violência alguma. Acompanhando os
dados, 44% do total admite ter presenciado algum tipo
de controle do corpo feminino no campus. 47% diz que
presenciou ou sabe de algum caso em que a vida
íntima de uma mulher foi exposta. 49% acredita que
estar ou não acompanhada de um homem interfere no
tratamento que uma mulher recebe. 64% admite ter
presenciado algum comentário sobre o corpo de
funcionárias/professoras do Ifes, ainda que em forma
de piada.
Destarte, os dados mostram que há um
descompasso entre a não percepção da violência
como tal, quando perguntado de forma geral, e a
admissão dela, em perguntas mais específicas.
Você já presenciou alguma violência de gênero no
âmbito do Instituto Federal do Espírito Santo - Campus São
Mateus?

GÊNERO SIM NÃO


Homem 12% 88%
Mulher 29% 71%
Outro 33% 67%
Geral 19% 81%

33
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

100%

80%

60% SIM
40% NÃO
20%

0%

120%
100%
Administrativo
80%
Concomitante
60%
Integrado
40%
Engenharia
20%
Docente
0%
SIM NÃO

Aqui interessa pensar como essas violências


todas, embora previstas em lei, e por leis amplamente
debatidas e divulgadas, acabam por serem
desconsideradas, mais do que isso, elas o são apenas
para uma parcela da população. Os mesmos atos,
praticados contra pessoas do sexo masculino, não
passam pela mesma invisibilização da violação
sofrida. Isto é, se a mesma questão quando colocada

34
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

em termos universais (que parecem excluir as


mulheres), do tipo “um humano que pratica uma
violência contra outro humano pode culpar o receptor
por seu ato, ou seja, culpar a vítima pela violência
que praticou? ”, a resposta não parece ser assim
simples. A princípio, nenhuma corte que se sustente
no Estado de direito vai deixar de condenar um
assassino por esse alegar que o assassinado pediu para
ser morto. Isso significa que no imaginário cultural há
algo que justifique que um ser humano machuque ou
maltrate outro por ser do sexo feminino, significa que
há um recorte cultural dentro da categoria humano
em que a mulher não é considerada. Assim, quando é
para alegar que a mulher já tem seus direitos
atendidos, ela pertence a esta categoria geral de
humano, quando é para justificar atos violentos
contra ela, isto é negociável.

CLASSIFICAÇÃO SIM NÃO


Administrativo 40% 60%
Concomitante 2% 98%
Integrado 22% 78%
Engenharia 12% 88%
Docente 25% 75%

Não bastasse não reconhecer atos de violência


como violência, há a culpabilização da própria
mulher. Praticamente a metade dos homens considera
que culpa por atos de violência contra a mulher pode

35
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

sim ser da mulher. Entre as mulheres 13% reproduz a


violência de culpabilizar a mulher vítima de violência.
Você acredita que a violência de gênero praticada
contra a mulher pode de algum modo ser culpa dela ou ela
poderia ter provocado?

GÊNERO TALVEZ CONCORDO NÃO CONCORDO CON. PLENAMENTE

Homem 47% 5% 46% 2%


Mulher 13% 1% 87% 0%
Outro 67% 0% 33% 0%
Geral 34% 3% 62% 1%

CLASIFICAÇÃO TALVEZ CONCORDO CONCORDO NÃO


PLEN. CONCORDO
Administrativo 30% 0% 0% 70%
Concomitante 42% 6% 2% 50%
Integrado 28% 3% 2% 67%
Engenharia 42% 2% 0% 56%
Docente 53% 0% 0% 47%

Processa-se assim majoritariamente uma


transferência de culpa e/ou responsabilidade do
agente do ato, – o agressor, aquele que age com
impetuosidade, sem pensar, não controla seu ímpetos
e o descarrega em outrem, como define o dicionário –
, para aquele que sofre a ação. Esses dados instigam
a pensar em como se dá esse processo de
transferência de responsabilidade do agente para o
receptor da violência, pois os mesmos atos,
praticados contra pessoas do sexo masculino também
não são submetidos ao mesmo processo de

36
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

justificação. Reforça-se a ideia de que há, na divisão


social, uma diferenciação no interior da raça humana,
operada por meio do corpo/sexo biológico, que faz de
alguns humanos mais suscetíveis à sofrer violência do
que outros. Assim, muitas vezes, justifica-se a ação
violenta por meio do que possa ter antecedido o ato,
mas não só, também por um sentimento de posse, os
ditos crimes passionais, ou de superioridade ofendida
do que pratica a ação violenta.
Desse modo, as mais diferentes violências
quando praticadas contra a mulher, embora figurem
na letra da lei expressamente como tal, não são assim
consideradas. Por exemplo, beijar uma mulher à força
é crime de estupro e esse fato é amplamente
divulgado e conhecido, mesmo assim 6% dos homens
não concordam com isso e 19% deles relativizam ao
responderem que talvez não seja uma violência. Isto
significa que um quarto do público masculino do
Instituto, dependendo da situação, pode atenuar ou
não considerar uma violência ao outro um beijo
forçado, o que por lei é não só violência, mas, vale
ressaltar, é crime de estupro. No que diz respeito a
pratica de algo forçado contra a mulher ser violência,
é entre os alunos do concomitante que se tem o
índice mais alto dos, 34%, seguidos pelos docentes
19%, e pelos alunos do curso superior de engenharia,
cujo índice é de 18%. Sendo que 2% das mulheres
também não concordam que seja uma violência e 8%
a relativizem. Do total, 33% não consideram esses atos
uma violência e 14% responderam que talvez, isso
significa que 47% da comunidade interna ao instituto
como um todo que respondeu à pesquisa tende a

37
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

relativizar esse tipo de violência, não a considerando


em todos os casos como tal.

Sacudir, apertar os braços, forçar beijos é violência de


gênero?
CON.
GÊNERO TALVEZ CONCORDO NÃO CONCORDO PLENAMENTE
HOMEM 19% 38% 6% 36%
MULHER 8% 26% 2% 64%
OUTRO 33% 0% 0% 67%

CONCORDO NÃO
CLASIFICASSÃO TALVEZ CONCORDO PLEN. CONCORDO
Administrativo 0% 25% 70% 5%
Concomitante 26% 32% 34% 8%
Integrado 15% 35% 47% 2%
Engenharia 9% 30% 51% 9%
Docente 13% 31% 50% 6%

Do ponto de vista da consciência da violência


contra a mulher praticada no ambiente de trabalho,
quando a pergunta é feita de modo direto, a
discordância de que ela exista gira em torno de 60,
70% no diz respeito ao tratamento recebido pelas
professoras em sala de aula e de 50% ou mais com
relação aos demais servidores do instituto. No
entanto, um número bem expressivo, 16 % do total,
traz consigo a crença de que o gênero influencia na
relação de trabalho.

Professores homens são mais respeitados em sala de aula


do que mulheres?

38
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

NÃO CON.
GÊNERO TALVEZ CONCORDO CONCORDO PLENAMENTE
HOMEM 13% 5% 82% 1%
MULHER 32% 17% 46% 6%
OUTRO 33% 0% 67% 0%

CONCORDO NÃO
CLASIFICASSÃO TALVEZ CONCORDO PLEN. CONCORDO
Administrativo 20% 20% 0% 60%
Concomitante 18% 10% 0% 72%
Integrado 21% 10% 3% 66%
Engenharia 19% 7% 5% 70%
Docente 29% 0% 0% 71%

Entre servidores, homens são geralmente mais respeitados


do que mulheres?

NÃO CON.
GÊNERO TALVEZ CONCORDO CONCORDO PLENAMENTE
HOMEM 15% 3% 81% 1%
MULHER 37% 21% 37% 6%
OUTRO 33% 0% 67% 0%

CONCORDO NÃO
CLASIFICASSÃO TALVEZ CONCORDO PLEN. CONCORDO
Administrativo 20% 20% 10% 50%
Concomitante 12% 6% 0% 82%
Integrado 29% 11% 3% 57%
Engenharia 19% 9% 2% 70%
Docente 18% 0% 0% 82%

A outra coisa mais geral a se observar é que o


público da modalidade Médio Integrado, público que
mais se engaja nas atividades voltadas para a

39
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

discussão das violências de gênero, é o que mais


identifica essas violências como sendo violências, isso
mostra a eficácia que esse tipo de ação pode ter, mas
também, por ser também o que mais se dispôs a
responder a pesquisa, que o número total é carregado
por ele. E que, mesmo entre esse público ainda
prevalece maior o número de mulheres em relação aos
homens que reconhece as violências praticadas contra
elas como tal. Talvez isso se deva à incidência dessa
violência as atingir diretamente, mas independente
das razões, coloca a necessidade urgente de envolver
os meninos nessa discussão e tornar essa percepção
mais clara a eles, para que não se tornem agentes
dessa violência não percebida como tal.

DOCENTES, UM CAPÍTULO À PARTE

A pesquisa censitária teve a participação de 17


docentes do total de 65 que o Instituto tinha na
época. Embora forneça apenas uma amostragem, por
nem todos terem aderido à pesquisa, os números
obtidos por ela já oferece dados fundamentais para se
pensar o quanto a formação docente ampara ou não o
trabalho de gênero exigido pela lei e pelo próprio
documento de Desenvolvimento institucional do Ifes
em vigor. No referido PDI além de reconhecer a
diversidade e a necessidade de atendimento
adequado a cada segmento de aluno, garantindo seu
pleno desenvolvimento, dentro do tópico Educação,
Gênero, Sexualidade e Orientação Sexual, ele ainda
garante que o instituto deve: “promover formação
inicial e continuada de servidores, a qual contemple

40
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

conteúdos que os prepare para esse debate”. No


entanto, o resultado da pesquisa constata que as
poucas ações que o instituto conseguiu implementar
nesse sentido até o momento, - o próprio núcleo de
gênero só é instituído no ano de 2019 - não conseguiu
qualificar adequadamente o docente para esse
trabalho. E a julgar pelos dados, esse é o maior desfio.
No geral, os índices que apontam para o não
reconhecimento de violências previstas como tais na
letra da lei ou de relativização delas é em quase todos
os pontos aferidos maior entre os docentes que entre
o público geral.
Também não fecha a conta quando
comparamos a porcentagem de professores que dizem
ter presenciado algum tipo de violência de gênero no
campus, 25%, e os 35% que admitem terem
presenciado algum tipo de controle do corpo feminino
nesse mesmo espaço ou os 59% que dizem ter
presenciado algum comentário sobre o corpo de
funcionárias/professoras.
Assim temos:

Você já presenciou alguma violência de gênero no âmbito do


Instituto Federal do Espírito Santo - Campus São Mateus?
SIM NÃO
Docente 25% 75%
Geral 19% 81%

Você já presenciou algum tipo de controle do comportamento


feminino no nosso Campus (ex.: dizer que função de ser mulher
tem-se que…)?
CLASSIFICAÇÃO SIM NÃO

41
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Docente 35% 65%


Geral 44% 56%

Você já presenciou atos físicos forçados de um homem/aluno ou


funcionário com relação a uma mulher/aluna/funcionaria no
Campus?
CLASSIFICAÇÃO SIM NÃO
Docente 18% 82%
Geral 6% 94%

Você já presenciou atos psicológicos forçados de um


homem/aluno ou funcionário com relação a uma
mulher/aluna/funcionaria no Campus?
CLASSIFICAÇÃO SIM NÃO
Docente 24% 76%
Geral 15% 85%

Você já presenciou atos verbais forçados de um homem/aluno ou


funcionário com relação a uma mulher/aluna/funcionaria no
Campus?
CLASSIFICAÇÃO SIM NÃO
Docente 29% 71%
Geral 25% 75%

Você já presenciou algum comentário sobre o corpo de


funcionárias/professoras do Ifes, ainda que em forma de piada?
CLASSIFICAÇÃO SIM NÃO
Docente 59% 41%
Geral 64% 36%

Você já presenciou algum comentário sobre o corpo das alunas


do Ifes, ainda que em forma de piada?
CLASSIFICAÇÃO SIM NÃO

42
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Docente 59% 41%


Geral 77% 23%

Você acredita que a violência de gênero praticada contra a


mulher pode de algum modo ser culpa dela ou ela poderia ter
provocado?
CONCORDO NÃO
TALVEZ CONCORDO PLEN. CONCORDO
Docente 53% 0% 0% 47%
Geral 34% 3% 1% 62%

Sacudir, apertar os braços, forçar beijos é violência de gênero.


CONCORDO NÃO
CLASSIFICASSÃO TALVEZ CONCORDO PLEN. CONCORDO
Docente 13% 31% 50% 6%
Geral 15% 33% 47% 5%

É preferível trabalhar entre homens, afinal eles são mais


estáveis, o que gera maior profissionalismo.
CONCORDO NÃO
CLASSIFICASSÃO TALVEZ CONCORDO PLEN. CONCORDO
Docente 0% 12% 0% 88%
Geral 10% 2% 1% 87%

Professores homens são mais respeitados em sala de aula do que


mulheres
CONCORDO NÃO
CLASSIFICASSÃO TALVEZ CONCORDO PLEN. CONCORDO
Docente 29% 0% 0% 71%
Geral 20% 9% 3% 68%

Outro dado alarmante, é que 53% dos docentes


acreditam que a violência de gênero praticada contra

43
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

a mulher pode de algum modo ser culpa dela ou por


ela ter sido provocada. Acompanhando esses dados,
torna-se impraticável cumprir o que determina a lei
ou o PDI se o próprio agente do Estado que deveria
garantir o cumprimento dessa lei cai em contradição
ao não perceber como violência aquilo que a lei diz
que é. 6% desses docentes ainda acreditam que
sacudir, apertar os braços, forçar beijos não
éviolência de gênero e 13% que talvez não seja,
somando os que afirmam não ser e os que negociam
ser ou não temos um total de 19% dessa amostragem
do corpo docente ignorando que a lei considera o
beijo forçado estupro.
Em alguma medida, esses dados confirmam o
que se observa pelo método fenomenológico. Algumas
anotações em diário de campo, das reações dos
colegas de trabalho em relação aos eventos, dão
conta de uma forte resistência ao estudo e trabalho
do tema. Dos eventos do Ifes por ocasião do Dia
internacional da não violência contra a mulher, por
exemplo, tem sua necessidade/legitimidade
questionada a cada ano, não é incomum os
comentários em reuniões de coordenação e de
formulação do calendário acadêmico sobre a não
necessidade do evento usando, ainda uma vez, a já
existência de uma igualdade formal no acesso, de o
quanto esses eventos atrapalham o andamento normal
das aulas.... Quando se tratou do lúdico, uma música
aparentemente sem maiores consequências na
estrutura de poder a aceitação foi maior.

ELEMENTOS PARA UMA DES-FORMAÇÃO

44
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

No contexto apresentado o maior desafio é o de


formar/des-formar e/ou qualificar os profissionais da
educação para trabalharem no reconhecimento das
armadilhas que impedem o acesso equânime à
educação. Nesse sentido, é necessário por um lado
aplicar o rigor científico e o distanciamento dos
ajuizamentos de valor, conforme interdito por esse
próprio método. Além disso, o enfrentamento da
epistemologia que propicia esse estado de coisas é
fundamental13.
Em certo sentido, é como se a própria escola,
ao se recusar a discutir seriamente ou a entender a
especificidade de cada elemento dessa relação,
abdicasse de sua própria finalidade. As consequências
são ídolos, a lá Francis Bacon14, a eivar toda a prática
13
Sabat (2007, p. 149), defende que a educação, compreendida
de maneira ampla, é um dos processos mais eficientes na
constituição das identidades de gênero e sexual, pois em
qualquer sociedade, os inúmeros artefatos educativos existentes
têm como principal função com/formar os sujeitos, moldando-os
de acordo com as normas sociais.
14
Filosofo inglês, Francis Bacon (1561 - 1626) formulou os
fundamentos dos métodos de análise e pesquisa da ciência
moderna e a teoria dos ídolos, pela qual buscava identificar erro
na formulação do pensamento cientifico podem nos levar a falsas
verdades. Dentre eles, destacamos o ídolo do foro, ou o ídolo da
linguagem: “Há também os ídolos provenientes, de certa forma,
do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do gênero
humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao
comércio e consórcio entre os homens. Com efeito, os homens
se associam graças ao discurso, e as palavras são cunhadas pelo
vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta,
bloqueiam espantosamente o intelecto”.

45
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

científica que se pretende neutra. Embora não sejam


tratados como assunto específicos de algumas áreas
do saber, elas são estruturadas e produzidas sob o
paradigma dessa epistemologia. Assim, não é
percebido, por exemplo, que referir-se a homens e
mulheres sempre na forma masculina é um modo de
estruturar e reproduzir a hierarquia entre humanos
calcada na diferença do sexo biológico. Embora, em
O segundo sexo15 essa falácia já tenha sido refutada
ao apontar para o fato de que a diferença biológica se
esgota em si mesma e que qualquer juízo de valor a
respeito dela não tem caráter cientifico, esses juízos
ainda permeiam a pratica pedagógica.
O livro didático, assim como o de metodologia
científica, traz uma espécie de consenso entre
aqueles que pensam o fazer e o saber acadêmico: que
toda a ciência começa com o espanto. A pratica
educacional e as instituições de ensino devem, por
consequência, serem lugares de questionamento por
excelência. No entanto, o que percebemos no Brasil
são políticas públicas que resistem a separação do
Estado das crenças professadas pelos que ocupam
cargos políticos e que fazem hoje da escola um campo
de batalha pela dominação moral que os garanta
continuidade na vida pública, por meio de um discurso
moral e anti-intelectual.
Se uma das primeiras coisas que ensinamos na
introdução do aluno ao discurso científico é o

BACON, Francis. Novum Organum. New York: Washington Square


Press.
15
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida. Rio de
Janeiro: Ed. Nova Fronteira,1980.

46
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

estranhamento, falhamos terrivelmente nesse quesito


enquanto escola se negamos voz ao estranhamento
que corpos desviantes nos colocam anti a estrutura
sexopolítica hetero masculinista.
A escola, também ela reflexo da sociedade que
a sustem, reflete esse posicionamento, ainda que isso
ofereça um clássico caso de contradição
performativa. Em outras palavras, o que se apresenta
é uma escola ainda amalgamada com a ideia de que é
preciso incutir valores nos alunos, sem em nenhum
momento se questionar sobre a diferença entre o
saber científico, a ética e a simples pregação de uma
tabua de valores. Ignora-se que a ética, como
disciplina científica e como componente transversal,
segue os mesmos fundamentos de qualquer outra área
do conhecimento acadêmico, portanto, também no
âmbito dela, deve-se se espantar até mesmo com o
que nos parece óbvio e não aceitar como dado coisa
alguma. Ela estuda os valores, busca entender em que
contexto foram criados e se justificam, o que é bem
diferente de simplesmente pregá-los. Portanto, do
ponto de vista da ética, vale frisar, como área do
conhecimento acadêmico, nada tem de ético infringir
ao outro seus próprios valores. O princípio da
impessoalidade deveria prevalecer também no que
diz respeito aos valores, se a Ética for entendida como
uma área de conhecimento. Em grande medida,
temos de lembrar que os longos anos em que a
filosofia esteve exilada das salas de aula no Brasil
contribuiu enormemente para que não se desse
atenção à Ética. A palavra foi esvaziada de seu
significante acadêmico e passou a servir aos interesses

47
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

propagandísticos de quem pretendia manter o status


quo.
A presença do corpo feminino na sala de aula,
por si só, já se apresenta como um deslocamento
dessa epistemologia centrada no masculino. "É
inegável que o feminismo veio abalar a ideia de uma
masculinidade admitida como natural e, assim, abriu
caminho para o seu questionamento histórico". (Pedro
Paulo de Oliveira, 1998, p. 108).
Além das crenças pessoais, do uso acrítico da
linguagem, acrescenta-se muitas outros elementos
dificultadores dessa des-formação. Dentre eles, o fato
de os professores não terem recebido das instituições
de ensino superior formação adequada para trabalhar
com o tema e, quando a receberam, não a
incorporarem na sua pratica; há também o
constrangimento a que estão sujeitos em função dos
medo dos pais pela atual cultura que desmerece o
trabalho do professor.
Esse profissional da educação precisa estar
livre de preconceitos, sejam eles frutos de sua
vivencia, religião ou ponto de vista, pois um trabalho
feito de forma preconceituosa pode ter o efeito
contrário ao esperado. E o que vale para os alunos,
também vale para os educadores, sem oportunizar,
não há interesse, não se cria hábito. Uma vez
inexistente o interesse, justifica-se e naturaliza-se a
sua ausência, – “nunca que as meninas vão querer
jogar”, diz uma educadora sobre a simples
possibilidade de se ofertar às estudantes a mesma
modalidade esportiva que aos meninos –.

48
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

No entanto, o Estado não pode se eximir de


oferecer formação a seus profissionais nem os
educadores de buscar conhecimento científico sobre
a referida demanda. É muito sintomático fato de os
cursos superiores não terem uma disciplina na
formação de professores que ofereça subsídios
teórico-metodologicamente aos professores para que
possam trabalhar com os alunos e, mais, para que
possam trabalhar na reconstrução de suas próprias
práticas e saberes para que elas mesmas não sejam
reprodutoras dessas desigualdades. E tanto a lei Maria
da Penha quanto a LDB trazem a necessidade de se
implementar políticas públicas no campo da educação
que nos oferecem uma alternativa anterior ao recurso
policial, embora pareça um clichê, podemos educar
para não prender. Em última instância a própria Lei
Maria da Penha coloca a violência contra a mulher
como problema de Estado.
Do ponto de vista dos profissionais da
educação, talvez falte a muitos entender que tirar o
direito à educação plena de um ser humano em
virtude de seu sexo biológico é também um dos modos
mais cruéis de violência contra a mulher. A
adolescência, período que comumente se está em sala
de aula no Brasil, além de ser um período já marcado
por dúvidas e anseios é também o de formação da
subjetividade. As violências praticadas no âmbito da
formação afetam a constituição como sujeitos, uma
vez abalada essa constituição dificulta ou impede
reações a outras violências e com isso perpetua-se um
ciclo.

49
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

A formação de professores, tanto na


licenciatura quanto a continuada, deve acontecer no
sentido, não só de oferecer instrumentos para o
trabalho com gênero em sua transversalidade, mas
como mobilização que precisa tornar esses
profissionais sensíveis ao tema e capazes de fazer
essas discussões transversais e práticas condizentes
com essas discussões. A separação entre teoria e
prática ainda é um desafio imenso.
Nesse sentido, a abordagem da questão deve
ser contínua, sistemática, corajosa, honesta e
politicamente interessada com a crítica aos modelos
de desigualdades (sexual, de gênero, de etnia/raça,
de geração de classe, de religião, entre outros). Após
as discussões ensejadas aqui não há como não
reconhecer que a educação precisa discutir as marcas
da identidade do sujeito sem subordinação à
discriminação e ao preconceito. E, como vimos,
embora seja um espaço acentuadamente marcado
pela presença feminina, é, esquizofrenicamente, a
sexopolítica hetero masculinista que estrutura o fazer
escolar e todo seus sistema de manutenção de poder
e do status quo. Em última instancia, essa organização
desrespeita o que está posto em nossa (utópica?) carta
magna, a educação como direito de todos.

CURRÍCULO

Ainda que brevemente, cabe aqui alguns


apontamentos sobre o currículo. É sabido que debates
acadêmicos hegemônicos
influenciados/condicionados pelas circunstâncias

50
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

políticas das instituições e dos países nos quais estão


imersos constituem também o currículo escolar.
Temos de lembrar que o currículo também não é
neutro, desinteressado. Um país de longo histórico de
poder patriarcal, reflete isso na organização de seu
currículo, prova disso é que mesmo reconhecendo em
documentos oficiais a necessidade de políticas
públicas que garantam o estudo e a efetivação dessas
políticas de enfrentamento das desigualdades de
gênero, a tentativa de fazê-lo também encontra
sérias resistências. Nesse contexto, o currículo16
tende a reproduzir uma sociedade patriarcal, pois as
linhas de poder da sociedade estão estruturadas
também no patriarcado.
No caso específico do Ifes, formado pela junção
das unidades das Escolas Agrotécnicas Federais
centenárias e do Centro Federal de Educação
Tecnológica, ambas escolas de excelência, mas que
nascem para atender a formação do homem
16
Na década de 1960 surgem as teorias críticas que questionam
o status quo visto como responsável pelas injustiças sociais e
procura refletir sobre a possibilidade de um currículo que seja
crítico a essas relações, no sentido científico do termo, e não
que a reproduza pura e simplesmente. Seguindo Althusser, a
escola é compreendida como aparelho ideológico do Estado, que
produz e dissemina a ideologia dominante através,
principalmente, dos conteúdos. Bowles e Gintis dão ênfase à
aprendizagem por meio da vivência e das relações sociais na
escola que irão repercutir na formação de atitudes necessárias
no mercado de trabalho capitalista. Bourdieu e Passeron
desenvolvem o conceito de “reprodução” e “capital cultural”,
onde a cultura dominante incorpora, introjeta e internaliza
determinados valores dominantes através do currículo escolar.

51
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

trabalhador, não tem no seu início a preocupação em


atender de forma equânime homens e mulheres. Esse
histórico se faz sentir até hoje quando 81,4% dos
docentes tendem a acreditar que o número menor de
mulheres do que de homens nos cursos ofertados pela
instituição se deve ao fato de que naturalmente
mulheres tem uma menor inclinação para cursos
técnicos ou de engenharia. É até mesmo difícil
problematizar com as certezas desses profissionais
que talvez seja a difusão dessa crença que afaste as
mulheres dos cursos técnicos e da engenharia.

O LUGAR DO CONFLITO NA PRODUÇÃO DO


CONHECIMENTO

A partir dos relatos, dos dados obtidos e da


constatação da falta de políticas públicas de equidade
para o acesso, permanência e pleno desenvolvimento
da vida acadêmica, mesmo sendo hoje em muitas
instituições a maioria das docentes mulheres, pode-se
afirmar que a presença dalas na escola é tolerada,
nunca foi realmente incorporada à instituição. A
lógica das reações negativas as políticas públicas ou
ações que visam a equidade seguem a mesma das
demais violências de gênero, ela começa quando a
mulher, ou sua simples presença, confronta o homem
em seu lugar de poder e, nesse sentido esse processo
de silenciamento se instaura.
A pergunta inevitável é a de como pode-se
oferecer alguma formação na matéria, aos alunos, se
o próprio corpo docente carece de formação que o
faça descortinar o tema. Nesse sentido, pode parecer

52
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

que a interdição é completa e que só mudará a partir


da formação ou “boa vontade” dos profissionais da
educação, já que em uma visão mais tradicional de
educação é o docente quem guia o processo. Mas, se
por um lado, o desviante corre o risco de ocupar o
lugar de vulnerabilidade e sujeição, por outro, a
simples presença dele nesses espaços já se configura
também como resistência e/ou potência de reação,
quando não de proposição. E, por ser a escola também
um espaço de questionamento, essa tendência à
problematização que os corpos deslocados enseja é
ampliada, a ponto da simples presença deles já
instaurar um problema epistemológico17.
Além disso, o papel do estudante não é tão
passivo quanto possa parecer à primeira vista e há,
além disso, um conflito de valores e de geração posto
todo o tempo também na escola. Nesse sentido, vale
retomar aqui que, nas experiências relatadas, o tema
entra em debate por demandado dos próprios alunos,
que não se pode ignorá-los como agentes do
conhecimento e que muitas vezes soluções são
encontradas por eles mesmos. Outro exemplo disto é
o que acontece com os coletivos autogerido, eles têm
tido um papel importante nesse processo ao pautarem
suas questões e as trazerem para o debate acadêmico.
17
Não podemos perder de vista também que esses corpos correm
risco real. Mulheres, mulheres negras, mulheres lésbicas,
travestis, transexuais, homossexuais estão sujeitos a todo tipo
de violência por serem quem são e por estarem onde estão, em
um lugar considerado não pertencente a elesi.

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Quanto à receptividade ao coletivo das


estudantes, cabe aqui ainda algumas analises. O que
mais chama a atenção é o fato dos colegas, em
especial os colegas homens, terem feito observações
no sentido de apontar que sem um dirigente, líder que
guiasse as meninas, logo elas se perderiam por não
saberem por si mesmas o que fazer. Denunciando uma
relação com o educando de espera de passividade, na
concepção desses educadores, todo um trabalho seria
perdido. Contrariamente a isso, a aposta era de que a
auto-organização as levariam também à formulação
do que as incomodavam, a colocação política desses
incômodos e o fortalecimento de suas subjetividades.
A título de curiosidade, a professora deixou a
instituição no ano seguinte, o coletivo auto
organizado existe até hoje e, além de estudos e
debates de gênero, colocam demandas de suma
importância para a plena efetivação do direito à
educação.
No entanto, essa postura ativa adotada pelo
aluno não exime as instituições de ensino de darem
formação a seu corpo docente, afinal a
responsabilidade lhe cabe, e nesse ponto, como foi
mostrado, o desafio é grande, pois ele é na verdade
de des-formação e formação dos profissionais de
educação para que o direito ao pleno
desenvolvimento educacional seja minimamente
respeitado também no que diz respeito ao gênero.

54
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A resistência implantada na forma de


reprodução do já vivido, do que “sempre foi assim”,
dos valores pessoais ou de uma suposta neutralidade
da ciência denuncia a ambivalência e antagonismo
que acompanham todo o processo de exclusão de
certa parcela da população da vida escolar e
acadêmica. Em larga medida, negociar com a
‘diferença’ revela uma insuficiência radical de nossos
próprios sistemas de significado e significação e isso
soa muito ameaçador para o saber e poder constituído
pelo espaço escola. Encarar o desafio de modifica-lo
é muitas vezes provocar um auto sangramentos. Mas
não se trata exatamente de uma escolha, além da
positivação de leis que garantem direitos a muito
alijados da população feminina, há uma demanda
social cada vez mais forte e presente nas novas
gerações. Toda essa reprodução social do patriarcado
na escola, com a presença da mulher que estuda e se
emancipa na tarefa da crítica, não se dá mais de
forma tranquila, há sempre um processo de
contestação, conflito, resistência.
Como vimos, o cenário é complexo e como que
na montagem de um quebra cabeças, vamos
descobrindo seus encaixes e fissuras. Se por um lado
a educação produz e reproduz os jogos de poder e
somente tolera a presença do que lhe é estranho,
quando lhe é exigido, por outro lado, é do seio desse
mesmo processo que a tensão nele gerada pela
presença desse corpo outro instaura a crise
epistemológica. E é clara a necessidade de mudanças

55
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
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(Orgs.)

no currículo e nos modelos epistemológicos vigentes


se a intensão for realmente garantir o pleno
atendimento ao direito à educação a que faz jus as
mulheres, como seres humanos que são.
As conclusões que nossa pesquisa censitária nos
leva é de que embora existam leis que enumerem de
modo muito claro o que é, quais tipos de violência são
reconhecidos como específicas de gênero, essa lei
seja de conhecimento público e debatida no âmbito
do Ifes, as violências por ela interditadas continuam
não sendo vistas como violências... Portanto, embora
importante, não basta a positivação da lei e suas
interdições formais. Praticas calcadas em valores
pessoais, disfarçadas de cientificidade ou não, são
muito mais difíceis de serem desmontadas ou
capturadas por um sistema jurídico. Nossa hipótese é
de que também uma mudança de currículo feita por
especialista, por mais que se justifique essas
mudanças, sozinhas e por meio de argumentos
racionais não conseguirá o efeito desejado, ou seja,
correm o risco de serem ignoradas em certas práticas,
como as leis o são. Percebesse que mesmo o
profissional da educação, um estudioso por
excelência, reproduz mais seus costumes anteriores
do que incorpora as discussões teóricas sobre
epistemologia ou a atitude filosófica que embasa toda
e qualquer ciência, a de não tomar nada como dado.
Sua prática não muda só pelos argumentos que com
ele são empregados, é preciso fazer com que a
perspectiva se desloque do outro para si.
Repensar o direito negado a mais da metade da
população brasileira de ter garantido seu

56
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

desenvolvimento pleno como sujeito do conhecimento


é um processo que demanda uma revisão de seus
próprios sistemas de referência, normas e valores.
Além do estudo crítico da própria
epistemologia vigente, pois ela também é uma
construção social ideológica que legitima poder, é
preciso o estudo crítico da noção masculidade
brasileira, de sua formação histórica no país e em
como ela se apresenta de forma insidiosamente em
forma de valores nos saberes institucionalizados.
Insistimos que o primeiro desafio que deve ser
enfrentado é o de justamente apontar para o erro da
prerrogativa formal numérica ao se restringir a
discussão a comparação entre o número de mulheres
e homens nas escolas. Embora em maior número,
esses dados demonstram que a mulher é apenas
tolerada na escola, ela tem de se adequar às
condições masculinistas para que sua permanência ali
tenha algum êxito, silenciando-se diante de violências
de todos os tipos. Essa é a armadilha que muitas vezes
serve à invisibilização da realidade cotidiana das
escolas e do princípio masculinista, que ainda permeia
a cultura brasileira contemporânea.
Consideram ainda que o corpo seja uma
constituição sociocultural e linguística, produtor e
feito de relações de poder, mudar as ajuizações de
valor sobre ele, é mudar estruturas muito profundas
que sustentam o status quo. A boa notícia talvez seja
de que eles são mutáveis, tanto as questões de gênero
como de sexualidade são social e historicamente
construídas e, portanto, podem ser transformadas. Os
dados da pesquisa estatística apresentada aqui mostra

57
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

que na modalidade de ensino integrado, a qual tem


maior adesão aos eventos sobre violência de gênero,
campanhas e atividades em que se discuti violência
contra mulher, temos também uma consciência maior
do que é uma violência e de quando ela é praticada
em função do gênero. Esse dado reforça nossa
hipótese de que por meio de processos formativos
reflexivos é possível, processualmente, estender a
abrangência da violência também para aquilo que se
pratica contra mulher nessa universalização do
conceito de humanidade por meio de formações.
Um caminho vislumbrado a partir da
constatação de que a instituição apenas formal de
igualdade não a garante de fato, é o Estado adotar
para a educação aquilo que, por exemplo, o Sistema
Único de Saúde, o SUS, tem por prerrogativa adotar
para garantir a assistência integral a esse outro
direito, isto é, a educação deve se sustentar sobre o
tripé da universalização, equidade e integralidade.
Para que se cumpra efetivamente o direito à
educação, deve-se assegurar a todas as pessoas,
independentemente de sexo, raça, ocupação,
identidade de gênero ou outras características sociais
ou pessoais o direito à seu pleno desenvolvimento
intelectual, atendendo desigualmente os desiguais,
investindo mais onde a carência é maior.
No que diz respeito ao corpo docente e a todos
aqueles que trabalham direta ou indiretamente com
educação, é preciso que seus atores tomem
consciência de seu papel cena na trama apresentada,
isto é, o papel que, por exemplo, tem cada educador
dentro do espaço escolar na produção e reprodução

58
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

dos papeis e hierarquia de gênero hegemônicas, para


daí poder se problematizar a tensa relação entre lei,
teoria e prática.
Os dados são claros, é preciso um trabalho de
formação. Esse trabalho tem de ser capaz de fazer
com que uma violência seja reconhecida com tal,
independente de a quem ou contra quem ela seja
pratica. Em larga medida, é preciso desenvolver a
capacidade de empatia, de universalização efetiva do
conceito de humano para todo humano, por mais
estranha que essa formulação soe. O trabalho de
sentir o outro como um humano igual àquele que
analisa o problema não pode passar por se colocar
como a vítima, no lugar do outro, mas de se sentir no
seu próprio lugar, no seu próprio corpo, como é ser
excluído do conceito de humano, violentado, não
como outro, mas como si mesmo, essa parece ser a
reflexão que talvez tire esse educador do seu centro
de poder. Talvez assim se possa sensibilizar para a dor
que uma violência produz no outro.

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

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Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

PONDERAÇÕES SOBRE A VIOLÊNCIA DE


GÊNERO NO BRASIL

Pamela Michelena De Marchi Gherini

Quando escutamos de um episódio de violência


de gênero os primeiros pensamentos a respeito
costumam ser: “como está a vítima?”, “o que
aconteceu?”, “foi feito um boletim de ocorrência?”,
“o agressor será preso?”. Isso revela como temos
incutido em nós que sobre casos de violência devem
recair soluções penalizadoras, usando o aparato
policial e principalmente o Direito Penal como
estratégia de enfrentamento de problemas sociais.
Isso se reforça quando identificamos uma quantidade
surpreendente de projetos de lei visando a
criminalização de condutas nocivas à sociedade,
conforme veremos a seguir.
É como se um problema social só ganhasse o
devido status de proteção ou um direito só fosse
verdadeiramente tutelado se o reconhecimento
estatal fosse feito via esfera penal,
consequentemente limitando a liberdade do suposto
transgressor.
Foram estas e outras reflexões que resultaram
no estudo e posterior elaboração do presente artigo
de opinião. O objetivo deste texto é questionar a
eficácia da adoção reiterada de estratégias penais
para enfrentamento de violência de gênero hoje no

61
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

país. Além disso, busca-se fazer uma breve análise


crítica deste cenário, demonstrando que existem
outras formas possíveis de confrontar o problema em
questão, indo além do Direito Penal.18
Vale notar que o principal marco regulatório
nacional para enfrentamento de violência contra
mulheres, a Lei Maria da Penha19, estabelece
estratégias interdisciplinares, comprovando que
soluções puramente penais não fazem parte do
modelo inicialmente pensado quando esta política
pública foi desenhada.20 A Lei Maria da Penha é
18
Apesar de ser uma linha de estudo interessantíssima e um
debate político e acadêmico necessário, este texto não discutirá
abolicionismo penal. O que será questionado é como o Direito
Penal tem sido implementado para combate à violência de
gênero no Brasil.
19
BRASIL. LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Cria
mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da
Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o
Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução
Penal; e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 01 abr. 2019.
20
CARNEIRO, Carmem Cintra Vasconcelos Carneiro. A
interdisciplinaridade na aplicação da Lei Maria da Penha no
sistema criminal e a violência contra a mulher. 2016.
Disponível em: https://jus.com.br/artigos/53091/a-
interdisciplinaridade-na-aplicacao-da-lei-maria-da-penha-no-
sistema-criminal-e-a-violencia-contra-a-mulher. Acesso em: 01
abr. 2019.

62
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

internacionalmente reconhecida e premiada, o que


talvez sugira que o caminho por ela adotado deva ser
utilizado como base para atuar nos outros tipos de
violência de gênero que não são abarcados por esta
lei.
Para iniciarmos a análise a qual nos
propusemos, organizamos o artigo da seguinte
maneira: (i) Faremos uma delimitação do que se
entende por violência de gênero para o escopo desta
análise, usando como referência o pensamento de
autoras nacionais, já que as características deste tipo
de violência não são homogêneas nem mesmo em
nível nacional, quanto mais entre países; (ii) Depois,
analisaremos de maneira breve alguns indícios que
sugerem a adoção reiterada de estratégias penais
para o enfrentamento do problema em questão,
questionando então, esta opção por parte do Estado;
(iii) Em seguida, falaremos brevemente sobre algumas
alternativas possíveis para enfrentamento de
violência de gênero que não dependem
exclusivamente do Direito Penal, mostrando que é
possível agir na raiz do problema, sem ter que

“Além de ponderações e mitigações legislativas, a Lei promove


estratégias extrapenais com o intuito de criar condições para
que haja uma igualdade entre os sexos com vista a amenizar
todo o transtorno causado por meio de uma situação
desfavorável à vítima, oriunda de uma tradicional cultura
pautada no “machismo” e no “patriarcalismo”.
A política pública por trás da normatização da Lei 11.340/2006,
portanto, age em conjunto com base em ações articuladas
envolvendo os três âmbitos dos poderes (Executivo, Legislativo
e Judiciário), além de órgãos institucionais (como o Ministério
Público e as Delegacias especializadas) e a sociedade civil.”

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

recorrer sempre ao encarceramento de agressores; e


(iv) Por fim, faremos rápidas considerações finais.

(I) VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLÊNCIA CONTRA A


MULHER

Apesar de muitas vezes serem usados como


sinônimos, acreditamos haver uma distinção
importante entre violência de gênero e violência
contra a mulher. Gênero é um termo relativamente
recente que começou a ser utilizado durante a
terceira onda feminista, quando o chamado “sistema
sexo/gênero” propôs uma diferenciação entre o que
teria uma origem biológica e o que seria socialmente
construído dentro do que entendemos ser a diferença
entre homens e mulheres. Apesar deste sistema já
estar sendo questionado por autoras como Judith
Butler o sistema sexo/gênero ainda tem sido bastante
utilizado para descrever a realidade em que vivemos.
Violência contra a mulher já estava em voga
nas ondas feministas anteriores, contudo, o
surgimento do conceito de gênero trouxe uma
complexificação para o entendimento das relações
sociais. A inserção de identidade de gênero e
orientação sexual nos debates demonstrou que os
papéis de gênero socialmente construídos impactam
muito mais a forma com que nos relacionamos do que
inicialmente imaginávamos.
Por essa razão, a nossa sociedade possui
instâncias e dinâmicas de poder que estruturalmente
beneficiam uns mais que outros e colocam alguns em
posições de poder de forma mais facilitada,

64
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

permitindo que estes desfrutem de maiores privilégios


e consequentemente explorem e dominem as outras
pessoas historicamente desfavorecidas. Conforme
esclarece Heleieth Saffioti:
“Violência de gênero é o conceito mais amplo,
abrangendo vítimas como mulheres, crianças e
adolescentes de ambos os sexos. No exercício
da função patriarcal, os homens detêm o poder
de determinar a conduta das categorias sociais
nomeadas, recebendo autorização ou, pelo
menos, tolerância da sociedade para punir o
que se lhes apresenta como desvio. Ainda que
não haja nenhuma tentativa, por parte das
vítimas potenciais, de trilhar caminhos
diversos do prescrito pelas normas sociais, a
execução do projeto de dominação-exploração
da categoria social homens exige que sua
capacidade de mando seja auxiliada pela
violência. Com efeito, a ideologia de gênero é
insuficiente para garantir a obediência das
vítimas potenciais aos ditames do patriarca,
tendo este necessidade de fazer uso da
violência.”21

Pessoas que sofrem violência por sua


orientação sexual ou identidade de gênero também
estão inseridas nesta dinâmica, uma vez que, acabam
trilhando “caminhos diversos do prescrito pelas
21
SAFFIOTI, Heleieth. Contribuições feministas para o estudo da
violência de gênero. Cadernos Pagu. Campinas. 2001.
Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
83332001000100007. Acesso em: 07 abr. 2019.

65
Ana Helena Ithamar Passos
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normas sociais” e por isso são “punidos” por aqueles


que executam o projeto de dominação-exploração,
normalmente, homens brancos, hetero e cis.22
Portanto, dentro desta lógica, entendemos que
pessoas com orientação sexual ou identidade de
gênero variantes não correspondem ao que a
sociedade espera em relação ao gênero que a elas foi
atribuído no momento do nascimento. Em função
disso, vemos índices altíssimos de crimes de ódio
cometidos contra pessoas LGBT+ (ou às vezes até
contra pessoas cis e hetero que são confundidas como
sendo LGBT+).
É interessante mencionar que para Safiotti
classe e raça também são indissociáveis a este projeto
de dominação-exploração. Por isso, esse sistema,
além de decorrer do patriarcado, também é oriundo
do capitalismo e do racismo. Por essa razão, é
impossível analisarmos violência de gênero sem
termos consciência das interseccionalidades
inerentes.
A violência não acomete a todos da mesma
maneira. Um exemplo disso é analisar a violência
contra a mulher sob um recorte de raça no Brasil. O
Mapa da Violência de 201523, elaborado pela
22
Apesar de Safiotti não mencionar expressamente casos de
violência com base em orientação sexual e identidade de gênero
neste texto, acreditamos que sua teoria é plenamente aplicável
a estes casos.
23
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015:
Homicídios de mulheres no Brasil. 1ª Ed. Brasília. 2015. FLASCO
Brasil. Disponível em:

66
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais


(“Flacso”), apontou um aumento de 54% em 10 anos
no número de homicídios de mulheres negras,
passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013.
Durante o mesmo período, a quantidade anual de
homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, saindo de
1.747 em 2003 para 1.576 em 2013.
Classe social também tem um papel muito
relevante na forma em que a violência ocorre.
Infelizmente, é comum que mulheres acabem
permanecendo em situação de violência em razão de
dependência econômica, não tendo condições
financeiras de saírem de uma relação abusiva. Essa
restrição, por exemplo, não acomete mulheres de
classe média ou de classe alta que em uma situação
equivalente talvez tenham como arcar com o aluguel
de uma nova residência, honorários advocatícios para
o divórcio, gastos com mudança e assim por diante.
Pessoas trans e trevestis por vezes
experienciam não só as interseccionalidades de raça
e classe como também a invisibilização social
decorrente da identidade de gênero. Várias não
possuem acesso a direitos básicos como educação e
saúde, e em casos de violência muitas vezes não
conseguem lavrar um boletim de ocorrência pela
hostilidade nas próprias instituições do Estado. Isso é
comum acontecer durante atendimento médico
também, quando os profissionais de saúde incorrem
em preconceito ou desconhecem a realidade trans e

https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_
2015_mulheres.pdf. Acesso em: 07 abr. 2019.

67
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

travesti, tratando a pessoa pelo nome e gênero


errados. As violências contra estas populações estão
constantemente sendo ignoradas e não costumam ser
abarcadas quando se fala em “violência de gênero”,
como se o machismo que agride e mata mulheres cis
não fosse o mesmo machismo dos casos de violência
contra a população LGBT+.
É importante pontuar que a violência de gênero
nem sempre é perpetrada por homens, uma vez que
mulheres também podem ser instrumentalizadas a
fazerem funcionar o sistema que as oprime, conforme
pontua Safiotti.24 A Lei Maria da Penha reconhece
isso. Por essa razão, para que a lei seja aplicada é
necessário que a vítima seja mulher, não importando
o gênero do(a) agressor(a).25 O contexto e a
motivação da violência de gênero são muito mais
relevantes do que o gênero do agressor e da vítima já
que estamos todos inseridos na mesma sociedade e
reproduzimos comportamentos opressivos mesmo
fazendo parte de uma minoria.26
24
SAFFIOTI, Heleieth. Contribuições feministas para o estudo da
violência de gênero. Cadernos Pagu. Campinas. 2001. Disponível
em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
83332001000100007
25
Além da vítima ser mulher é importante que a violência tenha
ocorrido em um contexto de violência doméstica, familiar ou em
uma relação íntima de afeto. A violência de um desconhecido
contra uma mulher será tutelada por outras leis do ordenamento
de acordo com o ocorrido, mas não haverá a aplicação da Lei
Maria da Penha.
26
SAFFIOTI, Heleieth. Contribuições feministas para o estudo da
violência de gênero. Cadernos Pagu. Campinas. 2001.

68
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Um exemplo de violência de gênero pouco


lembrada é aquele que ocorre entre duas pessoas do
gênero masculino como o espancamento e por vezes o
homicídio de garotos cujos pais recorrem ao uso da
violência para imporem ao filho uma
performatividade “ultra masculina”. Dentro do
contexto de masculinidades tóxicas, não é raro que
seja demandado de um garoto uma postura específica
e caso este não conforme com tais expectativas a
violência seja usada para moldar o comportamento da
vítima. Isso mostra como a sociedade toda é afetada
por este sistema, apesar de alguns grupos sofrerem
muito mais com estes efeitos do que outros, como é o
caso de mulheres negras, pobres e periféricas, ou
pessoas com identidades de gênero não cis. Alguns
indivíduos sofrem os efeitos integrais do sistema
patriarcal-capitalista-racista que Safiotti descreve em
sua obra.
Portanto, violência contra a mulher é uma
espécie de violência de gênero e não seu sinônimo.
Por isso, existem diversas formas que a violência de
gênero pode ocorrer: violência familiar, violência
doméstica, violência em relações íntimas de afeto,
assédio moral e sexual no trabalho, transfobia,
homofobia e assim por diante. O que é comum em
todas elas, é a origem social desta violência, podendo
ocorrer em diversos contextos independente do
gênero da vítima ou do agressor, apesar de mulheres

Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
83332001000100007. Acesso em: 07 abr. 2019.

69
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

e outros grupos costumarem sofrer mais deste


problema.

(II) A ADOÇÃO DO DIREITO PENAL COMO


ESTRATÉGIA PRINCIPAL AO COMBATE DA VIOLÊNCIA
DE GÊNERO

Agora que fizemos uma breve análise da


ocorrência da violência de gênero na nossa sociedade
vamos analisar rapidamente como ocorre o seu
enfrentamento.
Muito do que entendemos hoje como violência
de gênero passou a ser interpretado como tal muito
recentemente. As lutas por direitos das mulheres, dos
movimentos negros e indígenas, dos movimentos
LGBT+ dentre tantos outros ajudaram a construir a
noção que temos hoje quanto ao que é aceitável ou
socialmente reprovável. O que era normalizado e
tolerado de ser feito contra estes grupos aos poucos
foi sendo questionado. O Direito então foi traduzindo
e absorvendo esta nova ordem social, ditando as novas
regras de comportamento.
No Brasil, há pouquíssimo tempo pessoas negras
eram escravizadas e tratadas como objetos, mulheres
brancas eram vistas como pessoas com rol de direitos
inferiores e pessoas LGBT+ viviam como se não
existissem. A pretensão de tratar todos igualmente é
uma ideia bastante recente que não tem sido bem-
sucedida. Apesar de todos serem iguais perante
normas internacionais de direitos humanos e perante
a nossa própria Constituição Federal, a vivência
mostra o contrário.

70
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Para que algo seja compreendido como


violência e para que a sociedade se mobilize para
combater determinada conduta, não é necessário que
esta tenha que ser internalizada no ordenamento
como um crime. Uma violência pode ser socialmente
reprovada, pode ser processada na esfera cível sendo
solicitada uma reparação de danos, pode ser
processada até por vias administrativas sem que para
isso tenha que haver um tipo penal que criminalize
esta conduta e limite a liberdade do agressor que for
processado e condenado. O sistema jurídico é maior e
mais complexo do que apenas a esfera penal.
Contudo, parece que o descontentamento
social profundo com o estado das coisas faz com que
cidadãos exijam sempre que a ferramenta utilizada
seja a mais gravosa possível. A sensação constante do
“homem médio” é que impera a “impunidade”. O
contrário de impunidade é punição e aparentemente
é isso que se deseja. É nesse contexto que que o
Direito Penal fica sendo chamado a agir a todo tempo
sendo que um dos seus princípios é ser a ultima ratio.
O princípio da intervenção mínima ou da ultima ratio
pressupõe idealmente que o Estado de Direito utilize
o Direito Penal como último recurso quando há
extrema necessidade para proteger os bens jurídicos
mais importantes para a sociedade. No mundo ideal,
isso significaria que as outras esferas (como a cível,
administrativa, trabalhista etc.) já teriam sido
pensadas como alternativa, fazendo com que o Direito
Penal fosse a última instância a se recorrer. Isso
porque é o único autorizado a limitar a liberdade do
ser humano, a pena mais grave do ordenamento

71
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

jurídico brasileiro (a não ser em guerra, quando o


Direito Militar prevê a possibilidade de pena de
morte).
Essa sensação de injustiça e de “impunidade”
que acomete a todos nós, faz com que depositemos
no Direito Penal responsabilidades que talvez não
sejam dele. É como se fosse um ímpeto de retribuir o
dano social ao agressor, revanchismo, sem pensar
racionalmente o quanto essa conduta será útil na
solução do problema. Ao que parece, não existe uma
tentativa organizada do poder público de utilizar
outras estratégias (jurídicas ou não) antes de acionar
o Direito Penal criminalizando condutas. Estamos
utilizando a ferramenta mais extrema sem testar as
outras que deveriam vir antes e que talvez trouxessem
melhores resultados ou menos prejuízo social (por
exemplo, impedindo a intensificação do
encarceramento em massa).
Quando precisamos fazer uso do Direito Penal
a violência já aconteceu. Se a violência de gênero
surge como sintoma ou consequência de uma
sociedade patriarcal-capitalista-racista será que a
solução do problema não é anterior ao Direito Penal?
Existem políticas públicas em curso tentando
reestruturar as formas com que nos relacionamos para
que criemos dinâmicas de poder menos abusivas que
resultam em violência de gênero, conforme veremos
adiante. Contudo, elas recebem menos atenção e
parecem ser aplicadas com menor intensidade do que
as outras. Talvez, se iniciativas bem-sucedidas
estivessem sendo tomadas em caráter preventivo não

72
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

estaríamos sentindo necessidade de abusar do Direito


Penal.
Muitos insistem no caráter “reformador” ou
“educativo” do cárcere, contudo, não é necessário
despender muitas linhas expondo como esta narrativa
é um argumento para manter o sistema penal do jeito
que está. Qualquer um que olhar a realidade do
cárcere no Brasil saberá que não existe chance de algo
positivamente transformador ocorrer naquele
ambiente. As taxas de reincidência no Brasil são
altíssimas27, o que refuta o argumento “educativo” do
cárcere, as condições são sub-humanas havendo
epidemias de doenças erradicadas há décadas28,
muitas das instituições são comandadas pelo poder
paralelo29 e existe um critério inegavelmente racista
e classista que define quem permanece ou não preso,
27
INTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA.
Reincidência Criminal no Brasil. Relatório de Pesquisa. 2015.
Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio
pesquisa/150611_relatorio_reincidencia_criminal.pdf. Acesso
em: 18 abr. 2019.
28
COSTA, Flávio; BIANCHI, Paula. "Massacre silencioso": doenças
tratáveis matam mais que violência nas prisões brasileiras. UOL.
17 ago. 2017. Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2017/08/14/massacre-silencioso-mortes-por-doencas-
trataveis-superam-mortes-violentas-nas-prisoes-brasileiras.htm.
Acesso em: 18 abr. 2019.
29
DELGADO, Malu. Brasil tem pelo menos 83 facções em
presídios. Carta Capital. 18 jan. 2017. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasil-tem-pelo-
menos-83-faccoes-em-presidios/. Acesso em: 18 abr. 2019.

73
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

conforme diversas autoras e autores pelo mundo


demonstram, como Angela Davis.
Sabendo de tudo isso e sabendo que esta
estratégia não tem diminuído a incidência de outros
crimes, por que achamos que miraculosamente o
resultado será diverso se adotarmos estas mesmas
estratégias para violência de gênero? Um exemplo
excelente que pode ser usado para comprovar este
argumento é o contínuo crescimento no número de
feminicídios reportados desde a sua inserção no
Código Penal em 2015.
De 2016 para 2018 houve um aumento de
1.319% no número de casos de feminicídio que
chegaram ao Tribunal de Justiça do Paraná e um
aumento de 800% no Tribunal de Justiça de
Sergipe.30Apenas dois estados registraram queda
tímida neste período, tendo o resto deles aumentado
significativamente no período. Isso reforça que a
violência de gênero ocorre de forma heterogênea ao
longo do território, sem dizer que o acesso ao
judiciário, a delegacias e à informação em geral varia
dependendo da região em que as pessoas se
encontram.
Existe o debate se o aumento de casos que são
notificados e judicializados quando à violência de
gênero representam de fato um aumento no número
30
BANDEIRA, Regina. Cresce número de processos de feminicídio
e de violência doméstica em 2018. Conselho Nacional de
Justiça. 08 mar. 2019. Disponível em:
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/88539-cresce-numero-de-
processos-de-feminicidio-e-de-violencia-domestica-em-2018.
Acesso em: 18 abr. 2019.

74
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

de crimes ou um aumento apenas nas notificações, em


razão deste assunto estar sendo mais noticiado. De um
jeito ou de outro, a impressão que temos (com as
poucas estatísticas realizadas sobre o assunto) é que
desde a inserção do feminicídio o número de mulheres
mortas não diminuiu. Na visão da autora isso sustenta
o argumento de que a adoção de políticas meramente
penalizadoras não impede que agressores continuem
praticando os atos de violência, simplesmente pelo
medo de ir para a cadeia ou receio de uma pena mais
alta. Se isso fosse verdade, deveríamos ter visto uma
queda ou uma estagnação no número de casos desde
a criação da qualificadora do feminicídio.
O ditado diz “não se meche em time que está
ganhando”. Por outro lado, se o time está perdendo
talvez seja a hora de mudar o plano.
Segundo os relatórios do Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias (“Infopen”),
do Ministério da Justiça, referentes aos anos de 2015
e 2016 o Brasil é a 5ª maior população no mundo mas
possui a 3ª maior população carcerária. A população
carcerária foi multiplicada em 8 vezes de 1990 até
2016, saltando de 90 mil para 726.712 mil pessoas,
sendo que no mesmo período a população nacional
cresceu apenas 39%. Os números incluem pessoas
presas por condenação e também as que ainda não
passaram por julgamento.31 Esses números são
referentes apenas aos tipos penais que existiam até
31
ESTADÃO CONTEÚDO. População carcerária no Brasil já é a
terceira maior do mundo. ISTOÉ. 08 dez. 2017. Disponível em:
https://istoe.com.br/populacao-carceraria-no-brasil-ja-e-
terceira-maior-do-mundo/ . Acesso em: 01 abr. 2019.

75
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

então o que significa que esse cenário tende a se


agravar ainda mais a cada tipo penal novo com pena
de encarceramento.
Abaixo, listaremos alguns dos crimes novos
criados em 2018 para combater a violência de gênero
no país32. O fato de listarmos estes crimes não
significa uma crítica aos seus conteúdos. O ponto aqui
é mostrar que vários problemas relevantes de
violência de gênero estão tentando ser solucionados,
mais uma vez, via o Direito Penal.

CRIME DE DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA


DE URGÊNCIA

As medidas protetivas de urgência estão


previstas na Lei Maria da Penha e são usadas para
proteger mulheres em situação de violência
doméstica, familiar ou aquelas decorrentes de
relações íntimas de afeto. Elas podem ser aplicadas
de diversas formas, a mais comum é aquela que exige
que o agressor mantenha determinada distância da
vítima e/ou não tente contato. É um instrumento
importante para o combate e prevenção a novas
violências, e pode ser solicitada diretamente na
delegacia quando for feito o boletim de ocorrência. A
32
GHERINI, Pamela Michelena De Marchi. Direito das mulheres:
avanços legislativos de 2018: Análise de 5 leis promulgadas em
2018 e possíveis impactos no cenário de violência de gênero no
país. Portal Jota. 07 mar. 2019. Disponível em:
https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/o
piniao-e-analise/artigos/direito-das-mulheres-avancos-
legislativos-de-2018-07032019 . Acesso em: 01 abr. 2019.

76
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

medida protetiva em si não é uma medida penal e sim


um procedimento cautelar. É comum que a medida
protetiva tenha que ser usada depois que um crime já
tenha sido cometido contra a vítima, como ameaça,
lesão corporal, estupro, injúria, dentre outros.
A Lei nº 13.641, de 3 de abril de 2018 alterou a
Lei Maria da Penha incluindo o artigo 24-A que cria o
crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de
Urgência com pena de detenção, de 3 meses a 2 anos.
Isso significa que o agressor que descumprir medida
protetiva poderá ser preso e processado por este
crime, além dos outros que possa já ter cometido
contra a vítima.

CRIMINALIZAÇÃO DO ATO DE FILMAR INTIMIDADE


SEXUAL SEM CONSENTIMENTO

A Lei nº 13.772, de 19 de dezembro de 2018,


trouxe duas mudanças. A primeira foi reconhecer que
a violação da intimidade da mulher configura dentre
as possíveis formas de violência psicológica contidas
na Lei Maria da Penha. Isso por si só não cria um crime
novo e sim reconhece um novo direito que deve ser
protegido.
A segunda mudança foi a criação do crime de
Registro Não Autorizado da Intimidade Sexual (artigo
216-B do Código Penal) que é configurado por:
“Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por
qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato
sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem
autorização dos participantes”. A pena é de
detenção, de 6 meses a 1 ano, e multa. Comete o

77
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

mesmo crime quem realiza montagem para incluir


pessoa em cena de nudez ou ato sexual. Outra forma
de violência semelhante é pegar imagens de cunho
sexual e adulterar colocando o rosto da vítima em um
corpo nu, por exemplo. Qualquer uma destas condutas
passa a ser crime.

CRIAÇÃO DOS CRIMES DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL E


DE DIVULGAÇÃO DE CENA DE ESTUPRO, CRIAÇÃO
DAS CAUSAS DE AUMENTO PARA ESTUPRO
COLETIVO E ESTUPRO CORRETIVO, DENTRE
OUTRAS MEDIDAS

A publicação da Lei nº 13.718, de 24 de


setembro de 2018, foi provavelmente a maior
alteração dentre as que mencionaremos. Diferente
das outras, esta promove várias modificações
diferentes e simultâneas. Quanto à criação do crime
de Importunação Sexual, esta foi uma modificação
bastante aguardada, já que os crimes e contravenções
disponíveis para casos de assédio eram severas ou
leves demais a depender do caso. Antes do crime de
Importunação Sexual, havia três formas de enquadrar
essas situações dentro da esfera criminal: Ato
Obsceno (artigo 233 do Código Penal, ainda em vigor);
Contravenção Penal de Importunação Ofensiva ao
Pudor (artigo 61 do Lei das Contravenções Penais que
foi revogado); e Estupro ou Estupro de Vulnerável
(artigo 213 e 217-A do Código Penal, ainda em vigor).
Outro crime incluído no Código Penal por esta
lei foi a Divulgação de Cena de Estupro que engloba a
hipótese de pornografia de vingança. Aquele que

78
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender,


expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar por
qualquer meio conteúdo de estupro OU cena de sexo,
nudez ou pornografia (sem o consentimento da
vítima) pratica o crime do novo artigo 218-C do Código
Penal.
O final do artigo 218-C do Código Penal fala
sobre a divulgação de cena de sexo, nudez ou
pornografia sem o consentimento da vítima para
abarcar casos em que o ato sexual tenha sido
consensual ou até que a captura das imagens tenha
sido consensual mas que a veiculação das imagens não
tenha sido feita com o consentimento da vítima. Como
não é incomum casos em que o parceiro filme ou
receba imagem de ato sexual ou nudez da vítima e
depois veicule as imagens nas redes sociais sem
autorização, o legislador criou uma causa de aumento
de pena se o agressor tiver divulgado imagens com
quem tenha ou tiver tido relação íntima de afeto ou
se objetivar vingança ou a humilhação da vítima.
Não importa se o registro da cena foi feito pela
própria vítima, pelos parceiros em conjunto, ou
filmada escondido, a única coisa que o legislador
considerou relevante para este crime é se as cenas de
sexo, nudez ou pornografia forem divulgadas sem a
concordância da vítima.
É importante também lembrar que esta lei
modificou o artigo 225 do Código Penal de forma que
os crimes contra a liberdade sexual e os crimes
sexuais contra vulnerável se tornam de ação penal
pública incondicionada à representação. Isso quer
dizer que o prazo para denunciar foi aumentado (pois

79
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

não existe mais o prazo decadencial de 6 meses para


reportar ao Ministério Público que a vítima deseja ver
seu agressor processado). O Ministério Público
tomando conhecimento do ocorrido e tendo provas e
indícios poderá processar o autor mesmo que a vítima
não tenha denunciado.
Além das outras causas de aumento trazidas
pela lei vale mencionar os casos de estupro coletivo,
aqueles praticados por 2 ou mais agentes, e estupro
corretivo, efetuados para controlar o comportamento
social ou sexual da vítima. Infelizmente, casos de
estupro coletivo e/ou corretivo no Brasil são comuns.
O aumento de pena para estupro corretivo, por
exemplo, foi visto como uma vitória para a população
LGBT+ já que esta prática ocorre em vários casos
como violência contra mulheres lésbicas, bissexuais,
travestis, transexuais etc, como forma de impor a elas
uma sexualidade baseada em relacionamentos
heterossexuais ou impor sofrimento por uma
identidade não cisgênera, havendo casos até em que
estes estupros ocorrem como parte de “terapias de
conversão”. A própria discussão a respeito da
legalidade ou não da chamada “cura gay” está em
discussão no judiciário, aguardando decisão do
Supremo Tribunal Federal (“STF”).

PROJETOS DE LEI EM TRAMITAÇÃO PARA NOVAS


CRIMINALIZAÇÕES

Além destes crimes que já foram criados estão


em curso diversos projetos de lei que visam a
criminalização de outras condutas. Os que receberam

80
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

maior atenção midiática recentemente visam


criminalizar a importunação de mulher amamentando
em público e criminalizar o assédio moral no
trabalho.33 Além destes projetos, também tramita no
Supremo Tribunal Federal (“STF”) a ação para
criminalizar a homofobia.34
O Projeto de Lei do Senado n° 514, de 2015
(“PLS n° 514/2015”)35 de autoria da Senadora Vanessa
Grazziotin (PCdoB/AM) visa garantir o direito à
amamentação em público, transformando em crime a
sua violação, que também ensejará indenização por
danos morais à vítima independentemente da
aplicação de multa, além de ser considerado
solidariamente responsável o proprietário do
estabelecimento onde ocorreu a discriminação.36
33
Atualmente, apenas o assédio sexual no trabalho é crime, o
assédio moral normalmente é judicializado na esfera trabalhista
e/ou cível.
34
Os casos escolhidos para serem comentados foram
selecionados com base na repercussão midiática que tiveram,
uma vez que existem outros projetos de lei e casos em instâncias
superiores que afetam a discussão de violência de gênero sob
uma perspectiva criminal.
35
SENADO. Projeto de Lei do Senado n° 514, de 2015. Dispõe
sobre o direito à amamentação em público, tipificando
criminalmente a sua violação. Disponível em:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/122565. Acesso em: 20 abr. 2019.
36
Acreditamos que este projeto se enquadra dentro do escopo
de violência de gênero conforme delimitado no início do texto.
O constrangimento que pessoas que amamentam passam está
intimamente ligado ao exercício de papeis de gênero na
sociedade, atribuindo a mulheres unicamente o espaço privado
para a realização de determinadas atividades, sem dizer a

81
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Esta é claramente uma iniciativa bem-


intencionada visando garantir um direito básico a
pessoas que amamentam. Acreditamos que não haja
controvérsia quanto à importância da matéria, tanto
é que a consulta pública realizada no site do Senado
(apurada em 29 de abril de 2019) demonstrou que
5.613 pessoas eram favoráveis ao projeto e apenas
183 eram contra.37
A questão que precisa ser levantada, contudo é
quanto à necessidade dar statuts de crime a esta
conduta que indubitavelmente deve ser coibida. O
próprio texto do projeto estabelece que a pena para
este crime seria o pagamento de multa também
ensejando em indenização por danos morais à vítima.
Se o objetivo é coibir a prática e se fixou a
possibilidade de indenização por danos morais, por
que motivo também tornar isso crime ao invés de
processar o caso em esfera civil?
O segundo é o Projeto de Lei n° 4742, de 2001
(“PL n° 4742/2001”) de autoria do Deputado Federal
Marcos de Jesus (PL/PE)38 que visa criminalizar a

hostilização a pessoas que amamentam e que não sejam


mulheres cis, como homens trans e pessoas não binárias que
podem engravidar e amamentar também.
37
SENADO. PROJETO DE LEI DO SENADO N° 514, DE 2015. Dispõe
sobre o direito à amamentação em público, tipificando
criminalmente a sua violação. Disponível em:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/122565. Acesso em: 20 abr. 2019.
38
CÂMARA DOS DEPUTADOS. PROJETO DE LEI N° 4742, DE 2001.
Introduz art. 146-A no Código Penal Brasileiro - Decreto-lei nº
2.848, de 07 de dezembro de 1940, dispondo sobre o crime
de assédio moral no trabalho. Disponível em:

82
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

conduta de assédio moral no trabalho, assim como foi


feito com o assédio sexual pouco tempo antes da
propositura deste projeto. A pena seria de detenção
de 3 meses a 1 ano e multa.
Para que esta medida se justificasse seria
interessante entender se a criminalização do assédio
sexual em 2001 de alguma forma trouxe benefícios
sociais em termos de diminuir o número de casos, por
exemplo. Desconhecemos qualquer estudo neste
sentido, e se de fato não houver algum estudo o
legislativo estará mais uma vez incorrendo na
estratégia de criminalizar condutas sem avaliar se
esta é a ferramenta adequada para lidar com este
problema social.39 Se não sabemos ou nem tentamos
avaliar a eficácia desta estratégia, aprovar novos
tipos penais acaba sendo uma via populista para
“saciar” a indignação quanto à “impunidade” sem de
fato agir racionalmente visando o enfrentamento do
problema social em questão com base na eficácia da
norma.
A mesma avaliação de eficácia precisa ser feita
em relação à criminalização da homofobia ocorrendo
no STF (sem nem adentrar o debate quanto à
possibilidade ou não do judiciário criar um tipo penal

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitaca
o?idProposicao=28692. Acesso em: 20 abr. 2019.
39
Entendemos que o assédio moral no ambiente de trabalho
também pode ser visto sob uma óptica de violência de gênero
uma vez que a humilhação, hostilização, pressão reiterada
contra pessoas em razão de seu gênero ou sexualidade também
se caracterizam como formas de violência de gênero conforme o
recorte feito no início do texto.

83
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

e o potencial vício de competência decorrente disso).


A homofobia, o assédio moral no trabalho, a
discriminação de pessoas amamentando em público e
tantas outras são formas de violência de gênero
diárias na vida de diversos brasileiros, variando de
casos com baixa complexidade até situações de alto
potencial lesivo, podendo incorrer na morte da
vítima.
Vale ressaltar mais uma vez que esta análise
não está questionando a gravidade destas condutas
nem indagando se elas são sérias o suficiente para
serem tuteladas pela esfera penal. O que está em
voga é entender se elas são estratégias que
solucionarão estas espécies de violência. Além disso,
é necessário avaliar as externalidades deste tipo de
política pública, como se poderá agravar ainda mais o
problema do encarceramento em massa que atinge
principalmente a população negra, pobre e
periférica.

(III) BREVES COMENTÁRIOS SOBRE OUTRAS


ABORDAGENS POSSÍVEIS À VIOLÊNCIA DE GÊNERO
FORA DA ESFERA PENAL

O Estado pode reconhecer a seriedade das


formas diversas de violência de gênero, agir visando o
enfrentamento destas condutas e criar mecanismos
de prevenção sem que a ferramenta sempre seja o
Direito Penal (estratégia esta, cuja eficácia está
sendo colocada à prova).
Abaixo, pontuaremos brevemente medidas que
já foram tomadas ou projetos ainda em andamento

84
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

visando o enfretamento da violência de gênero sem


utilizar o Direito Penal. Esta lista não é exaustiva e
sim, meramente exemplificativa, para demonstrar
diversas possibilidades que podem ser exploradas
como alternativa antes da tendência imediata à
criminalização.40
Estas medidas podem ser usadas como modelo
para elaboração de políticas públicas em nível
federal, estadual e municipal (respeitando a
competência dos entes federativos).

Responsabilização civil e administrativa

Um exemplo em que isso está sendo feito é via


leis estaduais e municipais que visam coibir a
homofobia e transfobia no país. O fato da homofobia
não ser (atualmente) criminalizada não significa que
ela seja legalizada. Apesar de não termos uma lei
específica para isso em nível federal, diversos estados
já regulamentaram a questão prevendo multa, por
exemplo, para estabelecimento que hajam de forma
discriminatória. Um exemplo disso é o que está
ocorrendo no estado de São Paulo, que desde 2001
(com a Lei nº 10.948, de 05 de novembro de 2001 41)
40
Várias outras medidas, projetos, políticas públicas poderiam
ser citadas. Existem boas ferramentas sendo aplicadas em nível
regional visando o combate à violência de gênero no país. Por
uma restrição de espaço, apenas algumas foram mencionadas,
não havendo um critério qualitativo para quais foram ou não
aqui apresentadas.
41
ESTADO DE SÃO PAULO. LEI Nº 10.948, DE 05 DE NOVEMBRO DE
2001. Dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de

85
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

puni qualquer manifestação atentatória ou


discriminatória praticada contra cidadão LGBT+.
A partir desta lei foram estabelecidas penas
administrativas para aqueles que praticarem os
seguintes atos:
 Usar violência física e moral, constranger ou
intimidar pessoas;
 Não permitir a entrada ou permanência em
qualquer ambiente aberto ao público;
 Recusar ou impedir atendimento em ambientes
comerciais;
 Rejeitar, sobretaxar ou impedir hospedagens
e/ou aquisições de bens móveis e imóveis;
 Não admitir ou demitir, direta ou
indiretamente, em função da orientação sexual
do emprego; e
 Proibir a livre expressão e manifestação de
afetividade, sendo estas permitidas aos demais
cidadãos.

Vale ressaltar que ela ainda serve para embasar


processos de danos morais e desde 2015, os Boletins
de Ocorrência online e presenciais oferecem campos
para incluir o nome social, no caso de travestis,
mulheres transexuais e homens trans, e colocar

discriminação em razão de orientação sexual e dá outras


providências. Disponível em:
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2001/lei-
10948-05.11.2001.html. Acesso em: 20 abr. 2019.

86
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

homofobia ou transfobia como “Provável Motivação do


Crime”.42

Proibição do casamento infantil

O Brasil tem maior número de casamentos


infantis da América Latina e o 4º mais alto do
mundo.43 Reconhecendo esta triste realidade, foi
sancionada a Lei nº 13.811, de 12 de março de 2019 44
que altera o Código Civil e proíbe o casamento de
menores de 16 anos de idade. Antes dessa alteração,
a legislação permitia o casamento de menores de 16,
desde que autorizado pelos pais, para evitar
cumprimento de pena criminal ou em caso de
gravidez.
42
ESTADO DE SÃO PAULO. SP é pioneiro na legislação de combate
à homofobia e transfobia. Portal do Governo. 17 maio 2018.
Disponível em:
http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/ultimas-noticias/sp-
e-pioneiro-na-legislacao-de-combate-homofobia-e-transfobia/.
Acesso em: 20 abr. 2019.
43
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Brasil tem maior número
de casamentos infantis da América Latina e o 4º mais alto do
mundo. ONU. 09 mar. 2017. Disponível em:
https://nacoesunidas.org/brasil-tem-maior-numero-de-
casamentos-infantis-da-america-latina-e-o-4o-mais-alto-do-
mundo/. Acesso em: 20 abr. 2019.
44
BRASIL. LEI Nº 13.811, DE 12 DE MARÇO DE 2019. Confere nova
redação ao art. 1.520 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de
2002 (Código Civil), para suprimir as exceções legais
permissivas do casamento infantil. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2019/lei-13811-12-
marco-2019-787790-publicacaooriginal-157544-pl.html. Acesso
em: 25 abr. 2019.

87
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

A alteração da lei, por si só não


necessariamente trará uma mudança significativa já
que a impossibilidade de registrar o casamento não
impede que ele ocorra na prática, sendo realizado em
cerimonias religiosas, por exemplo. Contudo, haver
uma mudança institucional é um importante avanço e
inicia uma mudança social. A questão é que políticas
públicas precisam ser colocadas em práticas para
promoverem uma mudança de mentalidade, apenas
alterar o Código Civil não modifica a realidade nem as
percepções de mundo das pessoas.

Programa Tempo de Despertar

A Lei nº 16.732, de 1º de novembro de 2017, da


cidade de São Paulo instituiu o Programa Tempo de
Despertar visando a reflexão, conscientização e
responsabilização dos autores de violência doméstica
contra mulheres. Ela foi regulamentada por meio do
Decreto nº 58.334, de 24 de julho de 2018.
A ideia desta política partiu dos excelentes
resultados obtidos pelo projeto desenvolvido pela
Promotora de Justiça Maria Gabriela Prado Manssur
(quando coordenou o Núcleo de Combate à Violência
Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Região da
Grande São Paulo, município de Taboão da Serra). O
trabalho realizado junto aos homens autores de
violência na cidade, de acordo com dados estatísticos

88
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

do Núcleo, entre 2014 e 2016, mostrou que houve uma


queda significativa da reincidência, de 65% para 2%.45
Segundo a vereadora Adriana Ramalho (PSDB),
autora do projeto de lei:
“Esta Legislação é tão importante que eu
defendo a expansão dessa ideia para todo o
Brasil, porque os resultados desse trabalho são
espetaculares. Eu acredito que quando
buscamos esse diálogo e essa conscientização
junto ao agressor nós estamos tratando a raiz
do problema. Além de promover a integração
entre Município, Ministério Público, Poder
Judiciário e sociedade civil, para discutir as
questões relativas ao tema, visando sempre o
enfrentamento à violência praticada contra as
mulheres.”46

Projeto Reinserção Social Transcidadania

Pensando no combate à transfobia e a outras


violências direcionadas a pessoas trans e travestis, o
projeto popularmente conhecido como
Transcidadania é um programa da Prefeitura de São
Paulo destinado a promover os direitos humanos e a
cidadania para pessoas travestis e trans em situação
de vulnerabilidade social. O programa possui como
meta a oferta de condições de autonomia financeira
45
CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Lei institui Programa
Tempo de Despertar contra a violência doméstica. 18 jul. 2018.
Disponível em: http://www.saopaulo.sp.leg.br/blog/lei-
institui-programa-tempo-de-despertar-contra-a-violencia-
domestica/. Acesso em: 25 abr. 2019.
46
Ibidem.

89
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

(com transferência de renda condicionada à execução


de atividades relacionadas à conclusão da
escolaridade básica), formação profissional e cidadã.
Além disso, existe o exercício de aperfeiçoamento
institucional, que prepara serviços e equipamentos
públicos para atendimento qualificado e humanizado
desta população47, evitando que ocorra o fenômeno
de “expulsão escolar”. Isso ocorre quando a falta de
preparo e intolerância nas instituições de ensino
ocasionam no abandono escolar precoce pessoas das
pessoas trans e travestis, resultando em um baixo
grau de escolaridade e consequente aprofundamento
da marginalização social, sujeitando estes indivíduos
a trabalhos com baixa remuneração o que muitas
vezes propicia a prostituição.

Educação sexual nas escolas e inserção do debate


sobre desigualdades

Apesar de projetos como o “Escola Sem


Partido”48 estarem ganhando popularidade e tentando
impedir educação sexual nas escolas, é
absolutamente importante que este tipo de diálogo
47
PREFEITURA DE SÃO PAULO. Projeto Reinserção Social
Transcidadania. 10 abr. 2019. Disponível em:
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvol
vimento/cursos/operacao_trabalho/index.php?p=170430.
Acesso em 25 abr. 2019.
48
CÂMARA DOS DEPUTADOS. PROJETO DE LEI N° 867, DE 2015.
Inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o
"Programa Escola sem Partido". Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitaca
o?idProposicao=1050668. Acesso em: 20 abr. 2019.

90
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

seja travado no ambiente escolar, adequando a


linguagem e o conteúdo à faixa etária.
Falar sobre sexo e corpo também significa
ensinar sobre violência sexual e como se proteger,
identificar quando ela ocorrer e saber denunciar. Os
números referentes à violência sexual contra crianças
e adolescentes são assustadores e privar que este
diálogo aconteça é um prejuízo enorme para a
sociedade. Em muitos casos, a escola é o único lugar
em que crianças e adolescentes em situação de
violência conseguem suporte de adultos em que
confiam e que estejam fora do núcleo
doméstico/familiar. É um local importante onde
ocorre uma sobreposição da vida pública e privada e
onde esses casos de violência (perpetrados pela
família por pessoas próximas) conseguem ser
identificados. Por isso, privar que essa informação
possa ser passada no ambiente escolar pode impedir
que muitas crianças e adolescentes consigam sair da
situação de violência.
Uma forma útil de dimensionar este problema
é usando os dados obtidos pela análise epidemiológica
da violência sexual contra crianças e adolescentes no
Brasil realizado pelo Ministério da Saúde entre 2011 e
2017. Do total de denúncias avaliadas, 51,2% das
vítimas estavam na faixa etária entre 1 e 5 anos,
45,5% eram da raça/cor da pele negra, e 3,3%
possuíam alguma deficiência ou transtorno.
A avaliação das características da violência
sexual contra crianças mostrou que 33,7% dos eventos
tiveram caráter de repetição, 69,2% ocorreram na
residência e 4,6% ocorreram na escola, e 62,0% foram

91
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

notificados como estupro. A avaliação das


características do provável autor da violência sexual
mostrou que em 81,6%, o agressor era do sexo
masculino e 37,0% tinham vínculo familiar com a
vítima. 49
Se os agressores costumam ser da família, a
única forma de proteger esse grupo é que o acesso à
informação venha da escola. Se a agressão está
majoritariamente ocorrendo dentro de casa, o
enfrentamento da violência dificilmente se iniciará
daquele espaço. Dois casos emblemáticos foram
noticiados pela grande mídia reforçando a
importância deste tipo de informação. Em novembro
de 2018 e depois em março de 2019 duas garotas
denunciaram terem sido vítimas de estupro por seu
49
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Análise epidemiológica da violência
sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, 2011 a 2017.
Boletim Epidemiológico. Volume 49. Jun. 2018. Disponível em:
http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/junho/2
5/2018-024.pdf. Acesso em: 25 abr. 2019.

92
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

padrasto50 e avô51 (respectivamente) após terem tido


aulas sobre este assunto na escola.52
A ignorância sobre o que configura violência e
quais comportamentos são inadequados fazem com
que diversas vítimas sofram caladas por anos até que
acabem compreendendo que o que viviam
cotidianamente era uma violência. Isso é aplicável
tanto para crianças e adolescentes (que podem não
estar familiarizados com comportamentos sexuais ou
terem naturalizado violências físicas e psicológicas)
como pessoas adultas (como mulheres que, por falta
de informação, acreditam que por serem casadas não
podem ser estupradas pelos seus parceiros, mesmo
que ocorram “relações sexuais” não consensuais e até
com emprego de força).
50
RODRIQUES, André. Menina denuncia padrasto por estupro
após palestra sobre violência sexual, no ES. G1. 27 nov.
2018.Disponível em: https://g1.globo.com/es/espirito-
santo/noticia/2018/11/27/menina-denuncia-padrasto-por-
estupro-apos-palestra-sobre-violencia-sexual-no-es.ghtml.
Acesso em: 25 abr. 2019.
51
REDAÇÃO G1. Criança denuncia avô por abuso após aula sobre
violência sexual no Paraná. 12 mar. 2019. G1. Disponível em:
https://g1.globo.com/pr/campos-gerais-
sul/noticia/2019/03/12/crianca-denuncia-avo-por-abuso-apos-
aula-sobre-violencia-sexual-no-parana.ghtml. Acesso em: 25
abr. 2019.
52
A autora deste texto já presenciou este efeito diversas vezes
quando realizou palestras sobre violência de gênero em escolas
públicas da Grande São Paulo. É muito comum que os
adolescentes presentes nestas rodas de conversas se
identifiquem como vítimas de algum tipo de violência, não
raramente, violência sexual.

93
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Aproximação de ONGs, coletivos e outras entidades


a escolas e espaços públicos estimulando o debate
e descontruindo preconceitos

A sociedade civil também tem importante


papel no combate à violência de gênero. Uma forma
possível de se aliar ao Estado nesta luta é criando
espaços de discussão e de enfrentamento de
violências em escolas e em espaços públicos,
disputando no imaginário popular a bagagem de
intolerâncias que é vista como normal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil está em um cenário muito grave no que


se refere à violência de gênero. Isso é comprovado
pelos dados estatísticos apresentados ao longo deste
texto. Ocupamos posições de liderança em diversos
rankings que identificam países com maiores números
de feminicídios, estupros, casamentos infantis,
crimes de ódio contra a população LGBT+ etc.
Nos últimos anos, o Estado brasileiro tem
reconhecido este problema e em alguns casos,
tentado responder com leis e políticas públicas
visando o enfrentamento destas violências. Contudo,
a estratégia majoritária e aparentemente mais
popular vem sendo a criminalização de condutas,
indicando que a resposta vista como adequada nestes
casos é o uso reiterado do Direito Penal.
Contudo, o crescimento acelerado da
população carcerária e do número de novos crimes

94
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

não parece ter promovido uma melhora na segurança.


Inclusive, corremos o risco de aprofundar outros
problemas sociais se insistirmos neste método, como
por exemplo, intensificar o encarceramento em massa
que afeta sempre a mesma parcela da população sem
trazer benefícios em termos de diminuição nas taxas
de violência.
Portanto, este texto visou fazer uma breve
análise desta situação, pontuando a quantidade de
novos tipos penais sendo inseridos no nosso
ordenamento, convidando um pensamento crítico
sobre esta estratégia e demonstrando haver outras
formas de tentar solucionar os diversos tipos de
violência de gênero, sem que tenhamos que optar
imediatamente pela via penal, que teoricamente,
deveria ser a ultima ratio. Além disso, a autora
convida para que violência de gênero seja
compreendida de maneira mais ampla e não como
sinônimo de violência contra a mulher, permitindo
que o problema seja avaliado com maior
complexidade, sem excluir determinados grupos que
também são vítimas, compreendendo as
interseccionalidades inerentes a esta situação.

95
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

96
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

MOVIMENTO LGBTQI+ COMO MOVIMENTO


SOCIAL E A SUA CONSTRUÇÃO NO BRASIL

Emerson Rodrigues Silva


Simone Aparecida Jorge

A proposta deste projeto é construir


historicamente a perspectiva do Movimento LGBT
como um Movimento Social no Brasil que pode ser
entendido em três momentos ou três ondas conforme
divide Regina Facchini.
O movimento brasileiro que hoje conhece-se
como Movimento LGBT nem sempre foi conhecido
desta forma. Durante o seu surgimento, no final dos
anos 1970, havia uma predominância de homens
homossexuais dentro do movimento, posteriormente
as lésbicas se posicionaram na sociedade como sujeito
político autônomo, isto é, como alguém que pode
interferir na história, através de sua ação ao nível
político” (ARAGÃO, 2017). Nos anos 1990, travestis e
transexuais passaram também a integrar este
movimento.
Entre as décadas de 1960 e 1970, o Brasil
caminhava para uma maior consolidação da Ditatura
Militar. Em meados da década de 1970,
especificamente na sua segunda metade, surgiram as
primeiras organizações do movimento negro e do
movimento homossexual, sendo o grupo SOMOS de São
Paulo, o mais conhecido. Este movimento que surgia

97
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

é “marcado pela afirmação de um projeto de


politização da questão da homossexualidade em
contraste às alternativas presentes do “gueto””
(FACCHINI, 2011).
Este movimento que reivindica direito civis
plenos e universais por meio de ações políticas e a
própria homossexualidade receberam grande
visibilidade quando há o surgimento da AIDS, por
conta da forma como foi divulgada e por conta das
políticas públicas a ela relacionada, e pelo
direcionamento que recebeu dos mercados voltados
exclusivamente para o movimento.
Regina Facchini divide a trajetória do
movimento em três ondas: a primeira que vai de 1978
a 1983, a segunda que vai de 1984 a 1992 e a terceira
que vai de 1992 aos dias de hoje.

MOVIMENTO LGBTQI+ NO MUNDO

Breves Considerações Sobre O Conceito De


Movimentos Sociais

Em termos práticos e objetivos, o conceito de


Movimentos Sociais pode ser entendido como uma
forma de manifestação popular em tons
reivindicatórios com o objetivo de protestar e lutar
por direitos, tendo como meio, os embates políticos.
Segundo Lenzi (2017), além de movimentos sociais
reivindicatórios, existem também movimentos sociais
de resistência, que são aqueles que se colocam frente
a alguma mudança que os afetam de maneira direta
ou indireta. Durante toda a história, houveram

98
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

diversos tipos de movimentos, como os Movimentos de


Classe, Movimentos Políticos, Movimentos
Reivindicatórios, Movimentos Rurais e as ONGs.
Segundo Doimo (1995), até o começo do século
XX, quando falávamos de movimentos sociais,
estaríamos falando basicamente de movimentos
operários, que por sua vez se concretizavam em
sindicatos e partidos. A consequência disso era que
outras reivindicações, de natureza distinta, eram
excluídas, inclusive das narrativas a respeito de
movimentos sociais. Esse cenário começou a mudar no
início da década de 90, quando mobilizações por todo
o mundo começaram a proliferar e ganhar
visibilidade. “Doimo (1995) salienta que o surgimento
de novos movimentos sociais se deu num contexto de
desmitificação dos regimes socialistas do Leste,
marcado pela subsequente erosão das propostas
teóricas marxistas” (LERBACH, 2011, p. 3). Nesse
sentido, os novos movimentos sociais não possuíam
como objetivo a tomada de poder.
Poker e Arbarotti (2015) dizem que na
literatura atual das Ciências Sociais existe um novo
conceito, conhecido como Novíssimos Movimentos
Sociais. Esses são definidos como movimentos sociais
que estão organizados em demandas econômicas e
identitárias. O que caracteriza os novíssimos
movimentos sociais são que as demandas não são
dirigidas a um Estado específico como acontece com
os movimentos sociais e os novos movimentos sociais,
mas sim às organizações que compõem o sistema
internacional.

99
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Contexto Internacional

Na década de 1960, década do marco


contemporâneo na luta por direitos LGBTQI+, o
contexto mais amplo é o contexto da Guerra Fria, que
começou após o fim da Segunda Guerra Mundial e que
marcava uma polarização entre o Capitalismo e o
Comunismo, tendo como representantes os Estados
Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS), respectivamente. No
campo das Ciências Sociais e Cultura, a década
representou o surgimento de vários movimentos
sociais diferente dos movimentos de classe, eram os
Movimentos de Contracultura.
O conceito de Contracultura, bem como o
conceito de Cultura, não é algo engessado, ao
contrário, é um conceito polissêmico, flexível e
complexo. Em termos objetivos, Contracultura foi o
nome dado a uma serie de rebeliões que aconteceram
durante a década de 1960, principalmente a partir de
sua segunda metade. Foi um movimento composto
principalmente por jovens universitários norte-
americanos de classe média que apresentavam
resistência em participar do serviço militar por conta
da Guerra do Vietnã. Buscavam-se alternativas às
regras impostas pela sociedade, isso justificou a busca
de uma vida alternativa, bem como criação de
músicas diferentes. Segundo Mark Kurlansky, o ano de
1968 foi um ano em que houve uma "combustão
espontânea de espíritos rebeldes no mundo inteiro"
(KURLANSKY, 2004, p. 13).

100
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Capelarri (2007) salienta que é que é muito


difícil definir um conceito de Contracultura devido a
toda sua extensão, pois os grupos que compunham
esse movimento não se formavam uma unidade. Além
disso, Capelarri também diz que diversos autores
estabeleceram divisões específicas sobre os grupos
que contestavam durante a década de 60, destacando
Peter Clecak, que por sua vez dividiu os movimentos
entre: “o movimento negro, o movimento estudantil,
a nova esquerda, o movimento feminista, a
contracultura. ” (BIAGI, 2011, p. 19).

Histórico Do Movimento Lgbtqi+

O marco inicial do Movimento LGBTQI+ em


busca de Direitos, entre eles os Direitos Humanos, se
dá a partir do episódio conhecimento como Stonewall
Uprising, ocorrido nos Estados Unidos da América
(EUA). O contexto do episódio ocorrido em Stonewall,
segundo Gorisch (2014), é um período onde os atos
homossexuais eram considerados ilegais não só nos
EUA, mas como também no mundo todo. Ainda
segundo Gorisch (2014), “os anos 60 foram conhecidos
como verdadeiros “anos de pavor” para a comunidade
LGBT: os homossexuais eram vistos tratados como
psicopatas promíscuos e doentes mentais.”
Stonewall é considerado como um episódio
revolucionário na luta a favor de direitos LGBTQI+,
assim como o episódio onde uma mulher chamada
Rosa Parks que iniciou uma luta pela igualdade
racional quando recusou a dar lugar em um ônibus
para uma mulher branca. O caso de Stonewall segundo

101
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

depoimentos expressos no documentário intitulado


Stonewall Uprising revela que existia uma verdadeira
caça aos homossexuais e que com chancela do Estado,
estes eram presos e torturados. Por esse motivo, a
palavra que mais usada por quem participou do
episódio é “hunted”, que significa caçado.
Muito similar ao Brasil e que acontece ainda
hoje, o único refúgio era a convivência dentro de
bares e boates voltadas para o público gay, que
estavam longe da sociedade que se revelava como
uma sociedade homofóbica.
Esse quadro começou a mudar quando, no fim
de 1969, ocorreram eleições para o prefeito de Nova
Iorque. Como uma forma de pressionar a opinião
pública, o presidente da ONG Mattachine Society
pediu ao prefeito e para a polícia que deixassem os
homossexuais exercerem a sua liberdade, porém a
resposta do presidente foi fechar o bar Stonewall a
partir da invasão do local por policiais que deram voz
de prisão da todos que estavam presentes.
Diferentemente de outros episódios, houve reação das
pessoas que frequentavam o bar e de pessoas que
frequentavam a rua naquele momento. “Pessoas que
passavam na rua – o bairro era um reduto gay –
ouviram gritos e fecharam a entrada do bar barricadas
de fogo” (GORISCH, 2014, p. 30). Stonewall Uprising
é um episódio muito importante, pois além de ser o
episódio que inaugurou o movimento homossexual
contemporâneo, não foi uma luta apenas de
homossexuais, mas também de mulheres, negros e
héteros que simpatizavam com os homossexuais. Mais
tarde de forma organizada, foi realizada uma

102
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

passeata com homens engravatados e mulheres com


vestidos a fim de mostrar que os homossexuais eram
e são iguais a qualquer outra pessoa. “Stonewall
mudou o movimento para sempre” (RAYSIDE, 2008,
apud GORISCH, 2014, p.30) “e, pela primeira vez na
vida, eles se sentiram parte do todo”. (GORISCH,
2014, p. 30).
Não por acaso, o ocorrido em Stonewall
aconteceu em 28 de junho de 1969, data que até hoje
é conhecida como o Dia do Orgulho Gay, sendo
celebrada por manifestações reivindicatórias e
festivas por todo o mundo.

Sigla Lgbtqi+: Questões De Representação

Não há consenso a respeito de qual deve ser


utilizada para representar o movimento LGBT. De
fato, o único consenso em que há, dentro e fora da
comunidade, é de que a sigla GLS, usada por muito
tempo para se referir ao movimento, não cabe mais,
pois não representa a diversidade de pessoas que
compõem o mesmo. A questão das letras que
compõem a sigla, muitas as vezes, gera polêmica, pois
de um lado existem pessoas que acreditam que novas
letras devem ser incluídas e de outro lado, outras
pessoas a criticam sob o argumento de que se a sigla
for composta por muitas letras, deixa de cumprir o
seu papel e perde importância na questão da
representatividade de um grupo vulnerável perante a
sociedade.
No dia 23 de janeiro de 2018, o site “The UK
Gay” defendeu o uso da sigla composta por 14

103
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

caracteres, conhecida como LGBTQQICAPF2K+. O


argumento utilizado foi de que a sigla vem crescendo
desde a década de 90 como uma necessidade de
afastar uma limitação que existe na comunidade gay,
passando a abranger qualquer indivíduo que não se
considere heterossexual ou cisgênero.
LGBTQQICAPF2K+ significa: Lésbica, Gay, Bissexual,
Transgênero, Queer, Questionando, Intersexual,
Curioso, Assexual, Agênero, Pansexual, Polisexual,
Friends e Family (amigos e família), Two-Spirit (dois
espíritos) e Kink (fetichista).
Se analisarmos essa sigla, podemos perceber
que qualquer pessoa pode estar incluída sem que seja
necessariamente de fato um membro da comunidade
LGBTQI+, como no caso da letra F, representado
Família e Amigos, e da letra K, representando Kink.
No Brasil, assim como na ONU – que atua
mundialmente, é comum o uso da sigla LGBTI que
recentemente recebeu mais dois caracteres numa
tentativa de representar mais pessoas que compõem
o movimento, ficando conhecida como LGBTQI+.

104
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Figura 1 – Bandeira LGBTQI+

Fonte: Espaço do Conhecimento 53

Além da sigla, a bandeira LGBTQI+ é outro símbolo


usado para representar o movimento. Foi criada em
1978 por Gilbert Baker54 e usada pela primeira vez na
Gay and Lesbian Freedom Day March, sendo
posteriormente adotada pelo Pride Parade
Committee, após Harvey Milk55 ser assinado. A
bandeira, em seu todo, representa a diversidade
humana e cada uma das suas cores possuem um
significado.

53
Disponível em:
<http://www.espacodoconhecimento.org.br/bandeira-lgbt-na-
fachada/> Acesso em: 03. nov. 2018.
54
Baker é norte-americano, nascido no Estado de Kansas onde
serviu o exército americano entre 1970 e 1972. Pelo fato de
servir para o exército, Baker foi à São Francisco, na Califórnia,
em um contexto em que movimento pelos direitos LGBT estavam
começando a florescer. Após sua dispensa com honras do
exército, permaneceu em São Francisco e aprendeu a costurar.
55
Harvey Milk, assinado em 1978, foi a primeira pessoa assumida
como gay a ser eleito para um cargo público na Califórnia, além
de ser o responsável pela aprovação de uma lei de direitos
homossexuais para a cidade. Em 2008, teve sua vida contada nos
cinemas no filme "Milk", estrelado por Sean Penn.

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Tabela 2 – Significado das cores da bandeira LGBTI+


Cor Significado
Vermelho Vida
Laranja Cura / Saúde
Amarelo Luz do Sol
Verde Natureza
Azul Arte
Lilás Espírito
Fonte: Elaborada pelo autor com informações do Manual de
Comunicação LGBTI

Além da bandeira LGBTQI+ que busca


representar todas as pessoas que fazem parte do
movimento, existem as bandeiras individuais de cada
um deles, mostrando que embora todas as
“categorias” estejam dentro um mesmo movimento,
existem individualidades e lutas diferentes que se
complementam.

CONTEXTO NACIONAL: BREVE HISTÓRICO DA


DÉCADA DE 70

O contexto em que se pode falar de um


Movimento Homossexual no Brasil, que
posteriormente se tornou um Movimento LGBT, é o
contexto em que há a Ditadura Militar. Após João
Belchior Marques Goulart ser deposto em 1964,
instaurou-se no Brasil o regime militar que durara até
o ano de 1985.
Ainda durante o governo de Castelo Branco –
primeiro governo do período da ditadura, em 1967, foi
promulgada a Lei de Segurança Nacional, que numa

106
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

lógica anticomunista, entende que os movimentos


sociais ou qualquer outra atividade política poderia se
tornar uma forma de subversão ao sistema, podendo
tomar grandes proporções.
Segundo Habert (2003), durante a segunda
metade da década de 70, os atos de contestação e de
protesto ao regime foram se multiplicando, assim
como passeatas e manifestações que se mostravam
contrárias aos ideias do Regime Militar. Essas
manifestações crescentes foram percebidas através
de movimentos como o estudantil, operário, popular,
de mulheres, e deixaram claro que não havia apenas
uma crescente opinião pública oposta ao regime, mas
como também existia uma diversidade de interesses e
reivindicações particulares. “Mais ainda. As oposições
expressavam um amplo leque de forças diferenciadas
social, política e ideologicamente, indo da burguesia
liberal às esquerdas. ” (HABERT, 2003, p. 51)
O regime ditatorial de fato atrasou a
organização, formulação e consolidação de um
movimento contra a repressão sexual, mas a ausência
de debate entre os setores da sociedade,
principalmente entre os jovens que estavam atrelados
a esquerda, também contribuiu para que o movimento
não crescesse, uma vez que a esquerda brasileira
tradicional rejeitava organizações que não
endossavam sua prioridade – movimento operário,
como o próprio movimento homossexual e até o
movimento feminista.
Conforme Facchini (2011), o surgimento do
movimento se dá pela necessidade de se afirmar um
projeto de politização da questão homossexual que

107
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

fosse contrário as alternativas presentes no gueto e


em algumas associações já existentes, que não eram
si politizadas. De acordo com a literatura, o próprio
movimento homossexual tem um papel muito
importante na disputa entre dois modos de entender
a sexualidade no Brasil. O primeiro deles reflete uma
postura tradicional que tende a hierarquizar os
parceiros em uma relação, sendo esses relacionados a
papéis sociais e sexuais dos dois sexos biológicos e que
ainda está presente em discursos homofóbicos. Em
contrapartida, existe uma postura, considerada
moderna, que os parceiros numa relação são vistos de
forma igualitária, sem que haja a necessidade de
rotular quem é o homem ou a mulher da relação.

ONDAS

O item a seguir tem por objetivo analisar a


trajetória do movimento homossexual no Brasil,
evidenciando cada uma de suas fases, conforme
Facchini e Simões (2009) dividiram.

Primeira Onda

“O movimento homossexual é revolucionário e


não apenas reformista” (FACCHINI, 2011, p.13) O
movimento homossexual brasileiro, na sua primeira
onda, tem o objetivo de abolir as hierarquias sociais,
especialmente aquela atrelada as relações de gênero
- algo que permanece até os dias atuais e que
inclusive, é reivindicação do movimento feminista.
Pertence a essa onda o grupo SOMOS de afirmação

108
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

homossexual em São Paulo e o jornal Lampião da


Esquina, editado no Rio de Janeiro. Segundo Edward
MacRae, nesse momento, existem 22 grupos
homossexuais presentes no eixo São Paulo - Rio de
Janeiro.
O jornal Lampião da Esquina, inspirado no
jornal gay americano “Gay Sunshine” e fundado por
Aguinaldo Silva, é um jornal que não representou
somente uma via alternativa da imprensa, mas
também uma outra forma de dar voz as reivindicações
homossexuais. Apesar do seu caráter sério e
jornalístico, Lampião da Esquina utilizava gírias que
eram próprias dos homossexuais, como “bicha” e
“guei”. Em sua fase final, o jornal deixa se enquadrar
tão somente ao seu público restrito e adapta-se ao
gueto, se tornando mais ousado.
A primeira onda do movimento é marcada por
uma polarização dentro da esquerda entre a defesa
de uma luta principal, movimento operário, e luta
específicas, como o movimento homossexual e
feminista, conforme Facchini (2011). Fundadores do
jornal Lampião da Esquina lembram que Lula não
reconhecia que existiam homossexuais dentro do
movimento operário. Em entrevista ao site Lado Bi,
João Silvério Torrezan, diz que: “(...) foi uma delícia,
porque as bichas do ABC mandaram cópia de RG para
mostrar que eram viados e trabalhavam em tal
fábrica. ”56
56
CAPARICA, Marcio. "Lampião da Esquina" narra o início do
movimento LGBT no Brasil. Disponível em:
<http://www.ladobi.com.br/2016/08/lampiao-da-esquina/>.
Acesso em: 22 de set. 2018.

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Há uma questão que é muito importante


ressaltar, assim como Facchini ressaltou, que se
relaciona ao fato do movimento homossexual, sendo
este antiautoritário, ser um movimento apenas
reflexivo e não institucionalizado, assim como outros
movimentos que nasceram durante o regime militar
eram. No final da década de 70, o movimento começa
a rumar a uma institucionalização, logo não
permaneceria tão somente em encontros reflexivos e
particulares de quem era parte do movimento. Em
1979, no Rio de Janeiro, aconteceu o primeiro
encontro de militantes homossexuais que tinha como
pauta convocar um primeiro encontro organizado,
reivindicar a despatologização do homossexualismo e
principalmente, reivindicar a inclusão do respeito à
"opção sexual" na Constituição Federal, que até
então, expressava no seu Art. 150:
Art. 150. A Constituição assegura aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade dos direitos concernentes à
vida, à liberdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes: § 1º Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de sexo, raça,
trabalho, credo religioso e convicções
políticas. O preconceito de raça será punido
pela lei. (BRASIL, 1967).

Percebemos na década de 80, uma crescente


mobilização do movimento. Em 1980, há o nascimento
do Grupo Gay na Bahia que fortaleceu o ativismo
homossexual no nordeste do Brasil, ou seja, temos um
movimento que não se restringe tão somente no eixo
São Paulo - Rio de Janeiro; em 1981, há o

110
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

encerramento do jornal Lampião da Esquina e em


1985 surge uma campanha, promovida pelo Grupo Gay
da Bahia, para retirar a homossexualidade do grupo
de doenças do Inamps.

Segunda Onda

“É legal ser homossexual! ” (FACCHINI, 2011, p.


14). A Segunda Onda do movimento homossexual
brasileiro está emergida no contexto de eclosão da
epidemia do vírus HIV / AIDS, que por sua vez causou
uma redução considerável no número de grupos
homossexuais, especialmente em São Paulo, um dos
lados do eixo, conforme exposto anteriormente.
Facchini (2011) chama de segunda onda por
conta do aumento na visibilidade política da
homossexualidade que não foi conquistada por força
própria, mas por conta da própria eclosão da AIDS e
por conta do nascimento de um mercado voltado para
o público. Há então nesse período, menor
envolvimento com projetos de transformações sociais
que estavam presentes nos primeiros anos do
movimento, dando lugar para ações que visam a
garantia de direitos civis e ações contra a
discriminação e violência, ações estas que estão
presentes até o contexto atual.
Segundo Facchini (2011), a partir do encontro
nacional que aconteceu em 1989, a AIDS passou a ter
um lugar central na luta do movimento e
especificamente a partir de 1992, isso provocou uma
crise de organização, isto é, o movimento deixa de se
concentrar em algumas pautas que até hoje não foram

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

atingidas e imprime sua força para reivindicar do


governo ações relacionadas a AIDS.

Terceira Onda

“Direitos iguais, nem mais nem menos! ”


(FACCHINI, 2011, p. 16). A terceira onda do
movimento, que vai de 1992 aos dias atuais,
representa um momento onde há um aumento
significativo de grupos, promovendo a expansão do
movimento por todos os estados do país, que até
então era concentrada em eixos. Ao mesmo tempo
que há o aumento de grupos voltados para o
movimento, há uma diversificação nos tipos de grupos
que deixaram de ser apenas comunitários para serem
Organizações Não Governamentais, acadêmicos e até
mesmo, Igrejas inclusivas. Segundo Rossi (2009), “o
ano de 1995 pode ser considerado um ano de grandes
transformações para o Movimento LGBTQI+ Brasileiro
e a sua relação com o Estado”.
Segundo Facchini (2011), o crescimento de
grupos homossexuais a partir dos anos de 1990 trouxe
ao Brasil o status de país pioneiro na resposta a AIDS,
tanto ao nível da sociedade quanto ao nível
governamental. Esses grupos então passaram a
desenvolver programas de prevenção ao vírus
financiados pelos governos, o que permitiu ao grupos
antes informais, a adquirirem o status de ONG.
Nesse contexto, o movimento dá maior ênfase
aos seus diferentes componentes, ou seja, há uma
diferenciação dos vários sujeitos políticos que o
compõem, segundo Facchini (2011). Entendemos

112
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

então que o movimento não é formado apenas por


gays, mas também por lésbicas, bissexuais, travestis
e lésbicas. Os travestis, que são os mais visíveis se
pensarmos no movimento como um todo, começam a
se organizar a partir de 1990, partindo de questões
relacionadas à AIDS e ao aumento de casos de
violência e discriminação contra os travestis. A partir
desse momento, não cabe mais se referir ao
movimento, como Movimento Homossexual, pois
existem outras orientações que o compõem, ao passo
em que a própria organização de travestis ilustra isso.
As lésbicas que sempre estiveram dentro dos grupos
do movimento passam a ser incluídas especificamente
a partir de 1993.
O ano de 1995 se faz muito importante, pois há
a fundação da maior rede de organização LGBTQI+ do
Brasil, chamada de Associação Brasileira de Gays,
Lésbicas e Travestis (ABGLT), ou seja, é criada uma
associação que deixava claro que o movimento não
era formado tão somente por gays. A ABGLT,
considerada a maior rede da América Latina, reúne
mais de 200 organizações espalhadas pelo Brasil. É
uma associação importantíssima, pois trabalha as
questões do movimento em âmbito legislativo e
judicial com objetivo de acabar com a violência e
discriminação.
A terceira onda do movimento é marcada por
um aumento de visibilidade na própria sociedade e
mídia, proporcionado pelo alcance dos meios de
comunicação tradicionais, não só por conta do
aumento de grupos e expansão do próprio movimento,
mas também por conta de projetos após o ano de

113
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

1995, dos quais Facchini destaca o projeto de lei de


União Estável. Facchini (2011) salienta que “nesse
momento em que surgem os primeiros projetos de lei
a favor de direitos LGBT, começa a se construir
publicamente a ideia de LGBT como sujeito de
direitos” e isso abriu caminho para uma outra forma
de reivindicação no Brasil até os dias atuais, que são
as Paradas de Orgulho LGBTQI+.

Fonte: M de Mulher57

A Parada do Orgulho LGBTQI+ acontece,


anualmente, em várias cidades do Brasil em parceria
com governos locais e do Ministério da Cultura, sendo
a de São Paulo a mais conhecida nacional e
internacionalmente.
57
Disponível em:
<https://abrilmdemulher.files.wordpress.com/2017/06/gettyi
mages-488187737.jpg?quality=90&strip=info&resize=680,453>
Acesso 22 de set. 2018

114
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

A terceira onda do movimento não traz


somente um aumento de grupos ligados ao movimento
ou aumento de visibilidade, Facchini (2011) escreve
que há um aumento notável de pesquisa sobre
sexualidade em várias áreas do conhecimento, assim
como o aparecimento de grupos em prol do
movimento dentro de universidades e os Encontros
Nacionais Universitários de Diversidade Sexual (Enuds)
a partir de 2003, marcando uma ascensão do
movimento também em nível acadêmico. Além disso,
soma-se o processo de segmentação do mercado, que
dentre a criação de produtos de beleza para peles
negras, programas de lazer para a terceira idade,
também se preocupou com a comunidade LGBTQI+ e
possibilitou o surgimento de casas noturnas, bares,
companhia de revista e mídia segmentada, entre
outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da realização desse trabalho, conclui-


se que o Movimento LGBTQI+ brasileiro pode ser
dividido em fases tendo como premissa a visibilidade
política de cada uma dessas. Apesar da sua
classificação em três fases, nota-se que o movimento
acompanhou uma tendência mundial no que diz
respeito à emergência de movimentos sociais que não
estão relacionados com os movimento de classe ou
movimento operário. Se na primeira onda do
movimento, há um tom contestatório em relação ao
regime, nas ondas sucessoras, o movimento passa a
cooperar com o Estado.

115
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Essa cooperação se dá em função da eclosão da


AIDS no Brasil, principalmente. Em um contexto de
ondas neoliberais, o Brasil reduziu o tamanho do
Estado, o que impactou na elaboração de políticas
públicas relacionadas aos problemas sociais que as
minorias enfrentavam, entra elas, o movimento
LGBTQI+. A partir dessa lacuna da atuação do Estado,
o movimento deixa de lado a sua pauta principal,
relacionada a direitos civis e passa a travar uma luta
contra a AIDS e a imagem negativa desta que era
atrelada aos homossexuais.
O movimento, que nasce na década de 70,
década de criação do Jornal Lampião da Esquina e do
Grupo Gay da Bahia, nasce de forma informal através
de reuniões em bares, boates e saunas e começa a se
institucionalizar posteriormente tendo como objetivo
obter recursos do estado para sua manutenção e
elaboração de uma frente que irá fazer pressão ao
legislativo para a criação de leis que colocam os
homossexuais em pé de igualdade com a sociedade.
Logo, entende-se que parte do sucesso do movimento
muito se dá em função da própria ausência do Estado.
Embora a homossexualidade exista desde a
antiguidade, onde era aceita de certa forma, nós
últimos séculos têm sido condenada e restringida de
diversas formas, entre elas através do monopólio dos
Estados. Essa restrição e condenação acontece em
função de princípios religiosos, principalmente. Ao
passo em que muitas pessoas, enquanto parte da
comunidade LGBTQI+, são assassinadas em todo o
mundo, é necessário que direitos sejam conferidos a
estes. A sociedade internacional precisa cooperar e se

116
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

empenhar para reduzir o número de Estados que


criminalizam a homossexualidade, por exemplo. Mais
do que isso, é de extrema importância que os Estados
entendam que é um tema importante para as agendas
internacionais, pelo fato de os Direitos LGBTQI+
estarem relacionados com os Direitos Humanos. Para
isso, as discussões e propostas nos fóruns
internacionais, como a Assembleia Geral ONU, se
colocam como instrumentos muito importantes na
luta em prol dos Direitos Humanos LGBTQI+, mesmo
que não responsabilize os Estados de forma direta.

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122
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

DISCRIMINAÇÃO DA MULHER COM


DEFICIÊNCIA NO MERCADO DE TRABALHO
FORMAL BRASILEIRO

Samara F. Marques De Almeida

A Relação Anual de Informações Sociais (RAIS)


é um cadastro administrativo do Ministério do
trabalho e Emprego (MTE), instituído pelo Decreto nº
76.900, de 23/12/1975, de âmbito nacional e
declaração obrigatória para todos os
estabelecimentos do setor público e privado. Sua base
de dados é gerada a partir das declarações individuais
dos empregadores e constitui uma das principais
fontes estatísticas para acompanhamento de
informações sobre o mercado de trabalho formal no
Brasil.
Os dados da RAIS de 2017 contabilizaram a
presença de 418.521 mil pessoas com deficiências e
reabilitadas no mercado de trabalho formal brasileiro,
revelando reduzida participação das mulheres com
deficiência nas relações trabalhistas formais. Os
dados de 2017, informam que a participação das
pessoas sem nenhuma deficiência com vínculo de
trabalho formal é de 45.840.251 milhões, desses
25.630.035 milhões são homens e 20.210.216 milhões
são mulheres. Quando existente alguma deficiência,
esse quantitativo cai para 282.200 mil entre homens,
e 159.139 mil entre mulheres.

123
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

O trabalho, apreendido como direito social, é


fundamental tendo em vista que avaliza o sustento da
mulher e fortifica a divisão da renda. Nesse diapasão,
evidencia-se que o trabalho é essencial para a
valorização da mulher com deficiência como parte
integrante não só do empreendimento, como também
da sociedade. Neste contexto, o presente estudo
objetiva apresentar o gênero como fruto de uma
construção sociocultural e sua relação com a
deficiência e o mercado de trabalho formal –
demonstrando as implicações que referida relação
tem com a construção da identidade e a subjetividade
da percepção social da mulher com deficiência.
A metodologia esteve alicerçada em um estudo
quantitativo dos subsídios fornecidos pela RAIS, com
intersecção da questão da deficiência como um
processo não atrelado ao corpo, mas na interação com
o as barreiras atitudinais e ambientas que
transcendem as limitações funcionais oriundas de
deficiência. O presente trabalho reside em um
questionamento sobre a dupla estigmatização: deficiência
e gênero reconhecida pela legislação brasileira através da
incorporação da Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência.
Há no ordenamento jurídico do Brasil normas
que salvaguardam o direito ao acesso ao mercado de
trabalho formal para as pessoas com deficiência e que
proíbem a discriminação em razão do gênero, no
entanto, a mulher com deficiência continua sofrendo
cotidianamente graves violações ao seu direito de
inclusão laboral. Assim, o presente trabalho científico
é relevante para a difusão do direito ao trabalho da

124
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

mulher com deficiência e suas prerrogativas.

GÊNERO E DEFICIÊNCIA CONSTRUÇÃO


SOCIOCULTURAL

Terminologia

Deficiência deriva do idioma latim deficientia,


significa falta, falha, carência, imperfeição, defeito.
58 A Organização Mundial da Saúde define como:

alguma restrição ou perda, resultante do


impedimento, para desenvolver habilidades
consideradas normais para o ser humano. É através da
linguagem que se expressa, voluntariamente ou
involuntariamente, o respeito ou a discriminação em
relação às pessoas com deficiências. A construção de
uma verdadeira sociedade inclusiva passa também
pelo cuidado com a linguagem.
Jamais houve ou haverá um único termo
correto, válido definitivamente em todos os tempos e
espaços, ou seja, latitudinal e longitudinalmente. A
razão disto reside no fato de que a cada época são
utilizados termos cujo significado seja compatível
com os valores vigentes em cada sociedade enquanto
esta evolui em seu relacionamento com as pessoas
que possuem este ou aquele tipo de deficiência.59
58
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da
língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
p. 528.
59
SASSAKI, Romeu Kazumi. Vida Independente: história,
movimento, liderança, conceito, filosofia e fundamentos. São
Paulo: RNR, 2003. pp. 12-16.

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

No passado, a desinformação e o preconceito a


respeito das pessoas com deficiência eram de
tamanha magnitude que a sociedade acreditava na
anormalidade desses seres. Esta crença
fundamentava-se na ideia de que era anormal a
pessoa que tivesse uma deficiência. A normalidade,
em relação a pessoas, é um conceito questionável e
ultrapassado. Partir da premissa de que alguém é
anormal, requer uma análise do que é homogêneo ou
semelhante dentro de uma determinada ideologia.
O discurso ideológico da normalidade visa
implantar um mecanismo de unidade entre os
parâmetros socialmente aceitos e tende a
estigmatizar o diferente, o estranho colocando-o em
uma posição de desacreditado, alguém sem valor. O
que na verdade trata-se de um falseamento da
realidade – pois, com finalidade de proteger o que é
aceitável criam-se também mecanismos de defesa
contra as ameaças imaginárias, dando margem a um
comportamento preconceituoso. 60
Os conceitos são fundamentais para o
entendimento das práticas sociais, pois elas moldam
as ações de dada sociedade. Eles são continuidade
harmônica do discurso ideológico. Atribuir a uma
pessoa a característica de inválido ou aleijado é um
equívoco, uma agressão, porque é uma visão
retrograda baseada na avaliação do outro, imputando-
lhe, uma distinção indesejável, segundo a qual os

60
BARTALOTTI, Celina Camargo. Inclusão social das pessoas com
deficiência: utopia ou possibilidade?. São Paulo: Paulus, 2006.
pp. 26-29.

126
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

sujeitos são considerados incapazes e prejudiciais à


interação sadia da comunidade.
O uso da palavra, quando mal empregada,
provoca um processo no qual o sujeito é levado à
marginalização. Ao analisar origem etimológica das
atribuições supracitadas verifica-se: o adjetivo
inválido decorre do termo invalidez o qual tem sua
origem no idioma latim, invalidus, que significa fraco,
débil, sem valor, enfermo, doente, acabado, ineficaz.
O adjetivo aleijado, deriva do verbo aleijar em latim
– laesiare - pode ter conotação de alguém que possui
defeito físico, alguém que é assombroso e até de
alguém que é equiparado a um monstro devido a
algum defeito, deformidade ou mutilação física que
fuja dos padrões sociais vigentes.
Não há como destinar a pessoas um tratamento
adequado fazendo uso dos termos inválido e aleijado,
pois estes possuem uma acepção de alguém sem valor
e ou hediondo. São atributos produtores de descrédito
na vida do sujeito; tendentes a anular a
individualidade de todos que rompem ou tentam
romper com o padrão vigente de poder. Ambas são
palavras muito antigas, dotadas de uma visão
preconceituosa e eram utilizadas com frequência
deste a Antiguidade até meados da década de 70.
Nas décadas seguintes, para se fazer
referência a uma pessoa com deficiência tornou-se
comum, o uso do termo deficiência, como substantivo
(por ex., o deficiente físico). Seguindo o
entendimento de alguns profissionais não
pertencentes ao campo da reabilitação, também se
tornou comum fazer uso do termo deficiência, como

127
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

nome genérico, sem especificar o tipo de restrição.


Para eles, deficientes físicos são todas as pessoas que
possuam deficiência de qualquer tipo seja ela motora,
visual, auditiva ou mental.
Tais nomenclaturas estão caindo em desuso,
porque não fazem menção ao ser humano em questão
– aumentam a valoração da diferença como problema
e ou doença. Atribuem características
indistintamente a todos que tenham alguma
deficiência e esquecem a pessoa, um sujeito de
direitos e deveres, que não pode ter suas
características como indivíduo anuladas frente as suas
deficiências.
Na década de 90, foi muito utilizado o termo
“pessoas especiais” como uma forma reduzida da
expressão “pessoas com necessidades especiais”,
constituindo um eufemismo dificilmente aceitável
para designar um segmento populacional. O adjetivo
“especiais” permanece como uma simples palavra,
sem agregar valor diferenciado às pessoas com
deficiência. O “especial” não é qualificativo exclusivo
das pessoas que têm deficiência, pois ele se aplica a
qualquer pessoa. Essa designação reincide em uma
valoração do outro a partir da atribuição
ideologicamente desejável, mas não correspondente
à realidade. Ser especial nesse caso é ser alguém com
uma característica indesejável - a deficiência – algo
que a sociedade tenta não nomear por considerá-la
depreciativa ao sujeito.
No Brasil, tornou-se bastante popular,
acentuadamente entre 1986 e 1996, o uso do termo
portador de deficiência (e suas flexões no feminino e

128
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

no plural). Pessoas com deficiência vêm ponderando


que elas não portam deficiência; que a deficiência
que elas têm não é como coisas que às vezes portamos
e às vezes não portamos (por exemplo, um documento
de identidade, um guarda-chuva). A qualificação
“portadores” é questionada por sua alusão a
“carregadores”, pessoas que “portam” (levam) uma
deficiência.
A tendência é no sentido de parar de dizer ou
escrever a palavra “portadora” (como substantivo e
como adjetivo). A condição de ter uma deficiência
faz parte da pessoa e esta pessoa não porta sua
deficiência. Ela tem uma deficiência. Tanto o verbo
“portar” como o substantivo ou o adjetivo
“portadora” não se aplicam a uma condição inata ou
adquirida que faz parte da pessoa. Por exemplo, não
dizemos e nem escrevemos que certa pessoa é
portadora de olhos verdes ou pele morena. Uma
pessoa só porta algo que ela possa não portar,
deliberada ou casualmente.
Durante toda sua história, a humanidade criou
as mais diversas nomenclaturas para se referir às
pessoas com deficiência, mas apenas esta,
atualmente, não apresenta rupturas com a realidade
desses indivíduos – tornando o tratamento coerente e
adequado. Trata-se do empoderamento do valor
agregado às pessoas de fazerem parte do grande
segmento dos excluídos que, com o seu poder pessoal,
exigem sua inclusão em todos os aspectos da vida da

129
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

sociedade.61

Intersecção da deficiência e trabalho da mulher

As pessoas com deficiência e as mulheres foram


afastadas do convívio social, impedidas de
participarem e de desenvolverem sua capacidade
como cidadã – fato este que manteve e mantém o
grupo marginalizado. A realidade das pessoas com
deficiência era evitada pelos cidadãos sem
deficiência, pois era composta por uma minoria
desvalida que através da caridade podia ser
silenciada.62 O trabalho da mulher, por sua vez era
subjugado, sempre entendido como mão de obra
precária e com destoante inferioridade em relação ao
trabalho masculino.
Desse modo, constata-se que as pessoas com
deficiência e o labor feminino foram postos às
margens do núcleo populacional a que pertenciam,
num processo de desrespeito e segregação que
atravessou séculos. Ao longo da história, em
diferentes contextos sociais, houve prevalência de
modelos de tratamento da deficiência e do trabalho
da mulher marcados pela exclusão. Como exemplo, a
Grécia Antiga excluía as mulheres, pois, não as
61
SASSAKI, Romeu Kazumi. Terminologia sobre deficiência na
era da inclusão. In: VIVARTA, Veet (coord.). Mídia e
deficiência. Brasília: Andi/Fundação Banco do Brasil. 2003.
pp. 160-165.
62
BIELER, Rosângela Berman. (Coord.). Ética e legislação: os
direitos das pessoas portadoras de deficiência no Brasil. Rio de
Janeiro: Rotary Club do Rio de Janeiro, 1990.

130
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

consideravam cidadãs e, consequentemente, o


trabalho por elas executado ocupava posição de
inferioridade social em relação aos indivíduos do sexo
masculino.
Esparta é expoente histórico do arquétipo de
exclusão da deficiência. Objetivando fortalecer o
exército e a sociedade, o conselho de anciãos
examinava todos os espartanos e ordenava que fossem
banidos e eliminados os que possuíssem alguma
deficiência física, mental ou não fossem
suficientemente robustos para contribuir com o
estado, numa nítida tentativa de eugenia. Naquele
período, a eliminação de pessoas era um ato comum,
legitimado pela política e socialmente aceito. 63
Nas sociedades clássicas, assim como na Idade
Média e na Renascença europeias, havia prevalência
do infanticídio feminino, conduta justificada pela
hegemonia patriarcal, pela cultura da primogenitura
de preferência masculina e pelo fato de o filho ser o
mantenedor da linhagem familiar – à época, a filha
perdia, com o casamento os laços familiares e passava
a pertencer à família do marido. O humanista, Steven
Pinker, afirma que a menção à eliminação de crianças
é muito frequente na literatura e possivelmente é a
mais remota atitude social de segregação.64
Indubitavelmente é a mais antiética e inaceitável
forma de exclusão, porque garante o fim do confronto
63
PESSOTI, Isaías. Deficiência mental: da superstição à ciência.
São Paulo: Edusp. 1984. p.3.
64
PINKER, Steven. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a
violência diminuiu. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.
35.

131
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

com a diferença e do desconforto que esse confronto


causa.
Apenas com a ascensão do cristianismo, a
pessoa com deficiência ganha alma e, como tal, não
pode ser eliminada ou abandonada sem atentar-se
contra a moral cristã – o que tornou inaceitável a
prática clássica de eliminação das criaturas
“subumanas”. A abordagem da deficiência
historicamente foi baseada em ideologias de
segregação e exclusão, mas o modelo de tratamento
religioso apresentou a superação do primeiro impasse:
prevalência da vida sobre a morte, emergindo uma
mentalidade que suportou a diferença, desde que as
pessoas com deficiência ficassem confinadas em
abrigos ou em seus lares. 65
No Brasil Colônia também imperavam os
dogmas da Igreja Católica e a imposição cultural
europeia, restava a mulher branca virtuosa, evitar o
espaço público. A tradição patriarcal instituía ser sinal
de fidalguia a não ocupação dos espaços sociais, uma
vez que a mulher deveria ficar confinada em casa,
submissa e dependente do pai e, depois do
matrimônio, do marido. Em relação ao trabalho
feminino e à mentalidade escravocrata portuguesa,
naquele período o trabalho manual era desvalorizado
e considerado abjeto, estando, as atividades braçais
relegadas aos escravos.
Residualmente, competia às mulheres negras,
índias e mestiças, por não possuírem um homem
65
PESSOTI, Isaías. Deficiência mental: da superstição à ciência.
São Paulo: Edusp. 1984. p.3.

132
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

provedor e por serem responsáveis por sua


subsistência, desempenhar ofícios de menos-valia
tolerados pela sociedade. Contudo, esses ofícios eram
marcados pelo estigma do desprezo, a exemplo dos
afazeres domésticos e das atividades de lavadeiras,
quituteiras, tecelãs e prostitutas.66 Assim, explica-se
a natureza da mulher burguesa idealizada,
representada como frágil, e naturalmente habilidosa
para execução de trabalhos domésticos.
O processo de industrialização brasileiro
sedimenta essa ideia de fragilidade ao incorporar o
trabalho feminino em atividades compreendidas como
extensão do lar, a exemplo da tecelagem, fiação,
produção de chocolates e fumo. A indústria têxtil,
setor que mais empregou mulheres, oferecia jornadas
extenuantes, condições de trabalho precárias,
desiguais e exploratórias. Isso porque, as
trabalhadoras recebiam menores salários, ocupavam
postos de trabalho não qualificados e não assumiam
funções de comando.67 Esse arranjo social colocou o
trabalho da mulher em posição secundária ao do
homem e fomentou o trabalho como instrumento de
opressão às mulheres.
A exclusão, portanto, não é arbitrária,
acidental, fruto do acaso ou da sorte; ela nasce de
uma ordem social legitimada por valores, ideologias
66
MAIOR, Jorge Luiz Souto e VIEIRA, Regina Stela Correa.
Mulheres em Luta: A outra Metade da História do Direito do
Trabalho. São Paulo: LTr: 2017. pp. 14-18.
67
MAIOR, Jorge Luiz Souto e VIEIRA, Regina Stela Correa.
Mulheres em Luta: A outra Metade da História do Direito do
Trabalho. São Paulo: LTr: 2017. p.31.

133
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

que, de certa forma a justificam. A exclusão é fruto


das formas de organização da sociedade e das
maneiras que se estabelecem as relações entre as
pessoas.68 A deficiência é uma condição imposta pelo
contexto social e seu tratamento excludente ocorre
em todos os segmentos da vida social, quando de
forma geral as pessoas com deficiências são
consideradas inválidas, sem utilidade, sem
capacidade.

O ESTIGMA DA DEFICIÊNCIA E A INCLUSÃO LABORAL

De acordo com as Nações Unidas, a pessoa com


deficiência vive em condição de desvantagem e isso
impede sua participação social plena, portanto a
deficiência deve ser entendida como um conceito que
não se posiciona no indivíduo, mas no relacionamento
da pessoa com deficiência com as opressões sociais
advindas das barreiras atitudinais e do ambiente que
impedem a igualdade de oportunidades. A alínea “e”
do preâmbulo da Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência afirma:
[...] deficiência é um conceito em evolução e
que a deficiência resulta da interação entre
pessoas com deficiência e as barreiras devidas
às atitudes e ao ambiente que impedem a plena
e efetiva participação dessas pessoas na
sociedade em igualdade de oportunidades com
as demais pessoas.
68
BARTALOTTI, Celina Camargo. Inclusão social das pessoas com
deficiência: utopia ou possibilidade?. São Paulo : Paulus, 2006,
p. 11-17.

134
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Através do Decreto nº 6.949 de 2009, a


Convenção acima referida foi incorporada no
ordenamento jurídico brasileiro com o status de
Emenda Constitucional, ou seja, a República
Federativa do Brasil reconheceu formalmente que as
mulheres com deficiência estão sujeitas a múltiplas
formas de discriminação e, portanto, é imprescindível
a adoção de medidas para salvaguardar o
empoderamento feminino e igual exercício de todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais. Nesse
sentido é o artigo 6º:
[...] 1.Os Estados Partes reconhecem que as
mulheres e meninas com deficiência estão
sujeitas a múltiplas formas de discriminação e,
portanto, tomarão medidas para assegurar às
mulheres e meninas com deficiência o pleno e
igual exercício de todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais.

O fato das mulheres com deficiência


enfrentarem barreiras para exercício das atividades
da vida cotidiana revela menor acesso à serviços
garantidos há muito a parte do corpo social. A
interação com um ambiente segregador contribui para
uma verdadeira exclusão social porque os obstáculos
acentuam as dificuldades no desempenho de tarefas
rotineiras, fomentam a falta de autonomia e suscitam
preconceitos e discriminações.
Uma sociedade que não provê a possibilidade
de acesso a condições dignas de vida, independência
e fundamentalmente, oportunidades, cria barreiras
sociais significativas no processo de profissionalização

135
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

e inserção no mercado de trabalho, posto que o


preconceito é propulsor da discriminação, reduz
salários, oportunidades de emprego e perpetua a
sobreposição do estigma ao ser humano, que
praticamente desaparece.69
A inclusão laboral fulmina estigmas como a
visão meramente assistencial e a falaciosa
improdutividade relativa ao trabalho da mulher com
deficiência. É no ambiente de trabalho que esta tem
a possibilidade de romper com estigmas e demonstrar
sua capacidade e produtividade. A aceitação das
diferenças individuais, a valorização pessoal, a
convivência dentro da diversidade humana e a
aprendizagem através da cooperação são fatores
indispensáveis. A diversidade é representada pela
diferença dos atributos pessoais de cada indivíduo e
devido ao preconceito a sociedade tem transformado
atributos destoantes do padrão como pretexto para
oprimir o diferente. Sobre tal opressão Goffman
constatou:
Deve-se ver, então, que a manipulação do
estigma é uma característica geral da
sociedade, um processo que ocorre sempre que
há normas de identidade. As mesmas
características estão implícitas quer seja uma
diferença importante do tipo tradicionalmente
definido como estigmático, quer uma diferença
insignificante, da qual a pessoa envergonhada
69
ARAÚJO, Jocemar Figueiredo. Depois da Lei de Cotas: Um
Estudo dos Resultados da Política de Inclusão das Pessoas com
Deficiência no Mercado de Trabalho. 1. ed. Rio de Janeiro: Livre
Expressão, 2013. p. 38-45.

136
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

tem vergonha de se envergonhar. Pode-se,


portanto, suspeitar de que o papel dos normais
e o papel e dos estigmatizados são parte do
mesmo complexo, recortes do mesmo tecido-
padrão.70

O estigma da deficiência atrelado ao falso


ideário de que o corpo feminino é medido pelo valor
de uso e pela imposição de adequação aos padrões de
beleza corporal e comportamental vigentes,
obstaculizam a real inclusão profissional da mulher
com deficiência e lhes credita a condição de
inferioridade. A concepção de padrão físico do ser
humano é fruto de uma sociedade politicamente
conservadora onde a massificação do diferente,
resulta no seu controle e na sua segregação social. A
respeito Gilberto Freire ensina:
Ocorrem fortes atritos, pois os espaços são
disputados por sujeitos cognitivamente
ambivalentes. Construir a ordem moderna do
Estado soberano pressupõe a vitória contra os
estranhos e diferentes, possibilitando com isso
a dominação. “Não apenas temos sido
inacabados, mas nos tornamos capazes de nos
saber inacabados”. 71

O trabalho contribui para a identidade do ser


humano e é elemento estruturante para vida em
sociedade, é essencial para evitar o isolamento social
70
GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da
identidade deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988. p. 141.
71
FREIRE, Gilberto. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho
d’Água, 1995. p.75

137
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

e para a consecução dos demais direitos


fundamentais. A conduta preconceituosa quanto ao
diferente é uma agressão ao direito à igualdade. 72 O
Estado Social Democrático de Direito busca a
convivência das diferenças, o pluralismo social
visando uma sociedade igualitária, nele todos os seres
humanos detêm certas potencialidades e devem ser
tratados com dignidade sendo vedado impor a
qualquer pessoa ou grupo de pessoas condições
incompatíveis com a dignidade do homem. Toda
opressão relativa à condição da pessoa é um ato de
discriminação e acarreta diretamente na negação de
direitos básicos.
Deficiência e igualdade não possuem o mesmo
significado para a população ativa brasileira - os dados
da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) evidenciam
que homens e mulheres não participam
equitativamente das oportunidades formais de
trabalho. Mulheres com deficiência suportam a
opressão simultânea, ou dupla discriminação,
porquanto encontram-se em situação de acentuada
desvantagem no tocante às oportunidades sociais,
conjuntura que lhes proporciona menores
possibilidades de acesso ao emprego formal e salários
inferiores.73
72
WENDELL, Susan. The Rejected Body: Feminist Philophical
Reflections on Disability. New York: Routledge, 1996. pp. 12 e
13
73
ARAÚJO, Jocemar Figueiredo. Depois da Lei de Cotas: Um
Estudo dos Resultados da Política de Inclusão das Pessoas com

138
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Igualdade requer ausência de qualquer tipo de


dominação, extinção da falta de oportunidades e
incentivo para desenvolvimento de habilidades
corporais além dos padrões rígidos de comportamento
feminino estabelecidos. Carregar um estigma,
forcejar contra estereótipos, atitudes irrealistas e
expectativas corporais fragilizam psicologicamente a
mulher, sua auto identificação e consequentemente
sua interação com a comunidade.74
A ocupação formal tal qual previsto na
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) é a
configuração de trabalho mais procurada por
deficientes e não deficientes, pois compreende além
da conquista da cidadania e de benefícios de natureza
material, o momento existencial, de transformação
da consciência social no que diz respeito a
importância do trabalho e sua escorreita proteção.75
Quando a atividade econômica enxerga o
trabalho a mulher com deficiência como essencial
para seu desenvolvimento, a obreira é identificada
como uma igual, membro da coletividade, e não como
ente à margem desta. É neste contexto que baseia-se
a inclusão laboral, nesta a tutela e fruição dos direitos
trabalhistas não abarca o indivíduo em si, envolve-o

Deficiência no Mercado de Trabalho. 1. ed. Rio de Janeiro: Livre


Expressão, 2013. p. 44.
74
WENDELL, Susan. The Rejected Body: Feminist Philophical
Reflections on Disability. New York: Routledge, 1996. pp. 12 e
13.
75
JORGE NETO, Francisco Ferreira Jorge; CAVALCANTE, Jouberto
de Quadros Pessoa. Direito do trabalho. 6 ed. São Paulo: Atlas,
2012. p. 37.

139
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

como instância elementar à formação da identidade


pessoal à conquista de sua consciência de dignidade e
cidadania, ou seja, reconhece a trabalhadora como
ser social humanamente estimado.76
Incluir socialmente as minorias dinamiza o
reconhecimento da diversidade pessoal e resguarda as
características próprias da diferença, evidenciando-se
a adaptação do coletivo às necessidades basais de um
grupo que sofre com a segregação. Não há como se
aceitar que a barreira na contratação tenha cunho
meramente discriminatório e baseado na ignorância
sobre a temática. O processo de inclusão laboral
supera a empregabilidade da mulher com deficiência,
vez que objetiva fomentar sua autonomia como
garantia de crescimento profissional através do acesso
irrestrito ao mercado de trabalho.
A inclusão laboral das mulheres não é
assistencialismo ou favor, é medida imperiosa para
acelerar o efetivo acesso aos postos de trabalho e
desta forma fomentar a subsistência. Empregar
pessoas com deficiência proporciona a humanização
da empresa, a conscientização de todos envolvidos
quanto à temática da deficiência – fato que reflete na
melhoria da prestação de serviços.
A valorização da mulher com deficiência como
parte integrante do empreendimento, bem como a
preocupação de instituição de medidas que garantam
sua efetiva inclusão no ambiente laboral volta o
76
SILVA, Diego Nassif da. Inclusão das pessoas com deficiência
no mercado de trabalho: o conceito de pessoas com deficiência.
Curitiba: Juruá, 2013. p. 117.

140
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

empreendimento para o resgate de princípios éticos e


morais próprios da responsabilidade social. E por
assim agir, as empresas com esta postura favorecem a
credibilidade no negócio, melhoram o ambiente de
trabalho e fomentam a manutenção da boa imagem
da organização.
Trabalhadores e empreendimentos que
possuem dificuldades quanto à percepção da
importância de adoção de medidas que permitam
melhor adaptação da mulher com deficiência ao
entorno laboral, ficam impossibilitados de entender o
valor da mulher como sujeito de direitos e podem
ameaçar o produto de seu trabalho, posto que tendem
a estigmatizar a diferença, atuando antagonicamente
aos anseios sociais.
A utilização de ferramentas que propiciem,
mesmo que parcialmente autonomia e dignidade das
pessoas com deficiência, são mecanismos capazes de
fomentar o processo de inclusão, evolvendo não só o
trabalhador, como o destinatário final do labor: o
cliente. Quem adota medidas inclusivas e apreende a
temática do gêneros e da deficiência, consegue
prestar serviços de melhor qualidade, posto que
compreende e respeita as necessidades intrínsecas do
pluralismo social.

DISCRIMINAÇÃO EM NÚMEROS

Conforme pesquisa elaborada pelo Instituto


Brasileiro de Pesquisa (IBGE), Censo de 2010, a
população de pessoas com deficiência é de
aproximadamente vinte e quatro milhões e

141
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

quinhentos mil,77 realizado o comparativo com as


informações da Relação Anual de Informações Sociais
(RAIS) do Ministério do trabalho e Emprego (MTE),
referente ao ano de 2017, há apenas 418.521 mil
pessoas com deficiências e reabilitadas atuando no
mercado de trabalho formal brasileiro.78

Tabela 16 - BRASIL - TOTAL DE


EMPREGOS EM 31/12 E VARIAÇÃO
ABSOLUTA E RELATIVA, POR TIPO
DE DEFICIÊNCIA E SEXO
Período: 2017
2017
Tipo de Deficiência
Masculino Feminino Total
Física 136.767 76.111 212.878
Auditiva 50.463 32.733 83.196
Visual 39.304 22.831 62.135
Intelectual (Mental) 25.586 11.075 36.661
Múltipla 4.995 2.662 7.657
Reabilitado 25.085 13.727 38.812
Total de Deficientes 282.200 159.139 441.339
Não Deficientes 25.630.035 20.210.216 45.840.251
Total 25.797.585 20.262.613 46.060.198
Fonte: RAIS - Dec. 76.900/75
Elaboração: CGCIPE/DER/SPPE/MTb

77
Fonte: IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
Censo Demográfico 2010. Disponível em
https://www.ibge.gov.br/estatisticas-
novoportal/sociais/populacao/9662-censo-demografico-
2010.html?edicao=9749&t=downloads. Acesso em 15.04.2019
78
Fonte: MTE - Ministério do trabalho e Emprego. Disponível em
http://pdet.mte.gov.br/notas-tecnicas-e-comunicados/1746-
28-09-2018-comunicado-mtb-221-18-rais-ano-base-2017-
microdados-em-txt Acesso em 15.04.2019

142
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Ao confrontar esse número com a participação


das mulheres com deficiência nas relações
trabalhistas, revela-se a irrisória participação deste
grupo no trabalho formal. Em todas as edições das
RAIS elas são minoria. No tocante à remuneração
auferida pelas trabalhadoras com deficiência, o valor
médio recebido era de R$ 2.405,62, inferior à média
dos rendimentos de todos os trabalhadores os demais
trabalhadores.
As assalariadas com deficiência recebem em
média R$ 779,22 a menos que um homem sem
deficiência, R$ 498,21 a menos que trabalhadores do
sexo masculino com deficiência. Entre as mulheres a
diferença remuneratória cai para R$ 305,37. Em
algumas espécies de deficiência a problemática de
gênero é mais acentuada, a exemplo da deficiência
auditiva: homens percebem a média remuneratória de
R$ 3.083,05 e mulheres R$ 2.253,90, ou seja, a
diferença remuneratória alcança o patamar de R$
829,15.

Tabela 26 - BRASIL - REMUNERAÇÃO


MÉDIA EM DEZEMBRO (R$) POR TIPO
DE DEFICIÊNCIA E SEXO
Período: 2017
2017
TIPO DE DEFICIÊNCIA
Masculino Feminino Total

Física 3.030,48 2.548,47 2.859,81

Auditiva 3.083,05 2.253,90 2.757,55

Visual 3.083,39 2.549,17 2.888,13

Intelectual (Mental) 1.341,99 1.221,15 1.305,73

Múltipla 2.445,26 2.258,77 2.381,42

143
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Reabilitado 3.296,63 2.782,50 3.119,37

Total de Deficientes 2.903,83 2.405,62 2.725,68

Não Deficientes 3.184,84 2.710,99 2.975,52


2.973,2
3.181,87 2.708,71
Total 3
(*) Deflator: INPC
Fonte: RAIS - Dec. 76.900/75
Elaboração: CGCIPE/DER/SPPE/MTb

Para as mulheres com deficiência, assim como


para o resto da população, um emprego formal
possibilita emancipação social, no entanto, os
números que repetidamente se apresentam na
Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do
trabalho e Emprego, evidenciam que elas possuem
menos probabilidade de serem competitivamente
empregadas e mais probabilidade de serem
empregadas em configurações de inferioridade.
A sociedade brasileira ao não refletir sobre
esses padrões sem criticismo, afronta o pleno
exercício da cidadania e promove a agressão ao
direito à igualdade. Não há fatos formais que
fundamentem a distinção do potencial produtivo da
mulher com deficiência, todavia rotineiramente
persistem exemplos de condutas inapropriadas e até
mesmo discriminatórias. A retirada da deficiência da
visão biomédica e sua transferência para a interação
com a sociedade foi uma guinada teórica
revolucionária, tal como a provocada pelo feminismo:
não é mais possível justificar a opressão da mulher
com deficiência por uma ditadura da natureza, mas
por uma injustiça social na divisão de bem estar, uma

144
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

afirmação com implicações políticas


desconcertantes. 79

Deste modo, o paradigma inclusivista requer


uma sociedade para todos e prega que sua construção
é fruto da unidade de ações entre as mulheres com
deficiência e toda sociedade, devendo esta atuar
adaptando todos os segmentos sociais para a
consecução da construção da cidadania e da inclusão
social evitando que essas mulheres duplamente
estigmatizadas possam exercer seu direito de acesso
ao mercado de trabalho. Para tanto, é imprescindível
uma organização social condigna na qual é
considerada toda diversidade humana, e não somente
os que se enquadram nos padrões postos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história da humanidade revela, desde os


tempos mais remotos, que as pessoas com deficiência
foram afastadas do convívio social, recebendo um
tratamento alicerçado na inferiorização, repulsa ao
diferente, e sua consequente exclusão. Essa realidade
perpetuou-se por séculos, pois tal situação tinha como
destinatários uma minoria considerada indesejável e
sem valor – retardando a compreensão de que esta
minoria possui direitos iguais ao demais, porém com
características próprias e diferenciadas.
As mulheres com deficiência, ao contrário do
79
DINIZ, Debora. Modelo social da deficiência: a crítica
feminista. Série Anis, v. 28, Brasília: LetrasLivres, julho de 2003.
p. 639.

145
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

que ocorre com outros tipos de grupos vulneráveis,


suportam com mais ênfase que os homens em igual
condição a persistência de preconceitos, estereótipos
e estigmas que distorcem sua imagem social. As
trabalhadoras com deficiência enfrentam
continuamente condutas discriminatórias, prova
desse fato são as disparidades expostas na Relação
Anual de Informações Sociais (RAIS) do Ministério do
trabalho e Emprego (MTE).
A inclusão laboral das mulheres não é
assistencialismo ou favor, é medida imperiosa para
acelerar o efetivo acesso aos postos de trabalho e
desta forma fomentar a conscientização da
coletividade. Deficiência apenas é barreira para
inclusão quando são negadas, à mulher, as
oportunidades para o exercício do convívio
comunitário, através do pleno trabalho.
A questão da deficiência precisa ser abordada
efetivamente, ou continuará marginalizando a pessoa
em tal condição; alicerçando a construção de
obstáculos sociais. Cabe à sociedade como um todo e
ao Estado em especial, como impulsionador e
regulador das relações sociais, promover a
equiparação de oportunidades necessárias à
afirmação da cidadania e à inclusão social das
mulheres com deficiência.

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148
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

MULHER NO SISTEMA
PRISIONAL BRASILEIRO: ESTUDO E
OBSERVAÇÃO EM PENITENCIÁRIAS DA
REGIÃO DA ALTA PAULISTA – ESTADO DE
SÃO PAULO

Leonice Domingos dos Santos Cintra Lima


Raísa Piratelli

A segurança pública representa hoje um


problema social que atinge grande parcela da
população, tanto nos centros urbanos como na área
rural. Trata-se, pois, de uma situação que, no Brasil,
exige dos governantes medidas urgentes.
Comprometendo ainda mais a fragilidade da
segurança pública, observa-se no país um sistema
prisional deficitário e ineficiente, com poucas
perspectivas de se efetivar como espaço de educação
para a ressoacialização dos indivíduos. Desta forma,
importa-nos inicialmente situar a partir de
contextualização sócio histórica a situação atual do
país.
Os primeiros espaços de aprisionamento do
homem têm registros históricos no século XVIII na
Inglaterra, onde o uso de penas cruéis e tortura
figuram como meios de correção e punição por crimes
cometidos, e é desse sistema de correção que surgem
os primeiros projetos para a construção de
penitenciárias, no final do mesmo século.

149
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

O surgimento do sistema prisional no mundo


ocorreu no século XVIII, na Inglaterra, e foi marcado
por penas cruéis e desumanas, não tendo uma
privação de liberdade como ato de pena e privação da
liberdade se configurava em uma estratégia, era uma
forma de custódia, que assegurava que o “criminoso”
não iria fugir e se constituía também em um meio para
a formação de provas, através da tortura e de atos
desumanos, considerados nestes casos justificados.
Segundo Foucault, as mudanças nas formas de
punição acompanharam as transformações políticas
ao longo da história da humanidade. Se durante
séculos a punição se constituía em atração pública
estimulando a violência, as mudanças sociopolíticas
levam o sistema punitivo para espaços fechados onde
se exerce estratégias de punição que seguem normas
rígidas, estabelecidas pelas normas determinadas
pelo poder instituído. O acusado esperava o
julgamento e a pena imediata em cárcere fechado.
O sistema prisional brasileiro surgiu a partir do
século XIX com o surgimento das celas individuais e
das primeiras que tem como modeloas normas das
Filipinas. Somente em 1890, como a instituição do
primeiro Código Penal Brasileiro foi possível
estabelecer novos modelos de prisões. No inicio no
século XX, surgiram prisões modernas apropriadas
para todos os níveis de presos que eram separados
pelo tipo de crime cometido. É neste contexto que em
1937 foi construído o primeiro presídio feminino na
cidade de Porto Alegre-RS, seguido pelo Presídio
Feminino em São Paulo no ano de 1941 e a

150
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Penitenciária no Distrito Federal e no Rio de Janeiro,


em 1942.
Esta “nova estruturação” caracterizada pela
construção de presídios separados para homens e
mulheres priorizava a pacificação dos presídios e não
a garantia melhores condições dos detentos e
detentas, tendo em vista especialmente que se
constituía em “mais uma tortura” para os homens, já
em cumprimento de pena restritiva da liberdade
ainda terem que conviver com mulheres em plena
abstinência sexual.
Também se procurou a separação das presas
condenadas por crimes comuns como infanticídio e
aborto, daquelas que eram condenadas por
prostituição, embriaguez ou vadiagem. Nestes casos
observa-se que as prisões, via de regra, eram
designadas por questões morais pautadas nos dogmas
religiosos, do que em uma especificação penal pré-
estabelecida. Procurava-se com a prisão destas
mulheres criminosas a sua domesticação e também o
cuidado à sexualidade destas.
No Brasil as celas individuais estão registradas
apenas partir do século XIX tendo em vista que o
código penal 1890 estabelece novos modelos de
prisões. No que se refere às punições para mulheres,
no Brasil pode-se considerar que o modelo atual de
sistema prisional para as mulheres, começou em Porto
Alegre por volta de 1940 quando as prisões eram
designadas muito mais por um juízo moral derivado
dos dogmas religiosos, do que em uma especificação
penal. Procurava-se com a prisão das mulheres muito
mais a sua domesticação e o controle da sua

151
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

sexualidade do que a correção de crimes de outra


natureza.
Atualmente observa-se que o cárcere feminino,
assim como o sistema prisional no país, encontra-se
em colapso e em crescente decadência. Expande-se
de forma exponencial o desrespeito a direitos
humanitários, legalmente instituídos pelas leis do país
e em acordos internacionais. presentes em nossas
leis. O descaso com as mulheres é grande, a higiene é
precária, a das diferenças biológicas e a questão de
gênero são desconsideradas e suas peculiaridades
ignoradas pelo poder público, negligenciada pela
legislação e desprezadas pela sociedade.
Neste sentido o presente trabalho lança um
pequeno foco de luz sobre a atual situação da mulher
encarcerada, relatando os diversos problemas que
ocorrem habitualmente neste contexto. Estimula a
reflexão sobre a discriminação de gênero que se
acentua quando o assunto é a mulher encarcerada. A
pesquisa teve como motivação conhecer a situação
carcerária da mulher na expectativa observar a
aplicação da garantia de direitos dessas mulheres.
Trata-se de pesquisa bibliográfica e de
observação, de cunho qualitativo, buscando-se
elementos para a compreensão e análise da realidade
observada.
As fontes teóricas revelam, e a realidade
observada confirma, que ao longo do processo de
formação sócio histórica do Brasil, o sistema prisional
passou por significativas mudanças no entanto, em
todos os períodos estudados, as condições de
encarceramento das mulheres apesar de registrar

152
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

avanços, ainda atendem de forma muito incipiente as


necessidades específicas das mulheres,
especialmente em relação à saúde e nas condições de
higiene.
Desde o seu início, o aprisionamento feminino,
especialmente para as mulheres de baixa renda e sem
escolaridade, ocorre em celas onde convivem com
superlotação e violação da sua dignidade e de seus
direitos básicos.
Em sua maioria, o encarceramento de mulheres
está ligado a uma história de relação afetiva ou
familiar com companheiros ligados ao crime,
atualmente elas são usadas principalmente para o
tráfico de drogas.

DESIGUALDADE DE GÊNERO E A VIDA NO CÁRCERE

Na sociedade contemporânea onde a


desigualdade de gênero se constitui em elemento
fundamental para a análise da construção
sociopolítica e da relação de poder observa-se que
também na situação de encarceramento a
desigualdade se faz presente e se recrudesce.
A pessoa que está no cárcere tem seus direitos
limitados pela própria legislação como vistas a
“pagar” pelo delito ou crime cometido, no caso das
mulheres além das regras legais, elas convivem com o
sofrimento da fragilização, ruptura ou abandono no
campo afetivo.
Segundo os autores OLIVEIRA e SANTOS
(2013), uma pessoa encarcerada, cujo direito de ir e
vir é cerceado, ainda é detentora de vários outros

153
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

direitos, apesar de tantas oposições. E o direito de


receber visitas é um deles, no entanto nem sempre
isto acontece.
No caso específico das mulheres que vivem
sob a tutela do sistema prisional no Brasil, em sua
maioria, elas sofrem com o desemparo de familiares,
amigos e especialmente de seus companheiros.
Vivenciando essa realidade, na expectativa de
integra-se socialmente ao grupo muitas se submetem
a uma colega de cela como forma de se adaptar ao
meio prisional.
Quando a mulher presa é distanciada de todos
os afetos externos, ela acaba por criar uma
dependência da unidade prisional, das outras
internas e dos funcionários que ali se
encontram, reiterando a vulnerabilidade de sua
posição na lógica interna das unidades
prisionais. (OLIVEIRA e SANTOS, p. 239, 2013).

Os mesmos autores afirmam que o contato


com a família representa no caso das detentas, no
principal ponto de apoio que a interna usa para
sobreviver.
É a convivência com o lado externo da prisão,
ou seja, com o mundo exterior através da família e
amigos que contribui para que mantenham
expectativas positivas em relação ao futuro. É por
meio dos vínculos familiares, que mantêm uma base
de bons princípios e sentimentos que poderão
representar a mola propulsora do processo de
ressoalização, conforme nos asseguram (OLIVEIRA e
SANTOS, p. 239, 2013), “pelo contato com o mundo
exterior, por meio de familiares e amigos, há uma

154
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

maior perspectiva de mudança para cada uma delas”.

MULHER ENCARCERADA: ELEMENTOS DA


DESIGUALDADE; A “VIDA” QUE NINGUÉM VÊ

Pouco se fala sobre a realidade interna das


penitenciárias femininas. Parece-nos que estes
espaços não integram o contexto da sociedade. No
entanto, vítimas de uma realidade muitas vezes cruel
e desumana, as mulheres encarceradas convivem
cotidianamente com questões que colocam em xeque
o serviço prestado pelo Estado no atendimento desta
população.
As penitenciárias femininas, seguindo o padrão
de baixa qualidade hegemônico no país muitas vezes
não atende as condições mínimas que essas mulheres
necessitam para sobreviverem dignamente durante o
tempo determinado pela justiça para cumprimento da
pena.
Celas em situações estruturais e físicas
precárias, superlotação, muitas vezes infestação de
roedores e outros insetos se constituem na cena
cotidiana dos cárceres femininos. Soma-se aos
problemas estruturais a falta de itens de higiene
pessoal, medicamentos e itens básicos para higiene
íntima (algumas penitenciárias oferecem absorventes
higiênicos, mas nunca em quantidade suficiente).
Em algumas unidades penitenciárias itens de
higiene pessoal de responsabilidade das detentas
e/ou de seus familiares. Como em sua maioria, as
famílias vivem em situação de extrema
vulnerabilidade econômica e social não têm condições

155
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

para atender a exigência do serviço ficando a mulher


a mercê da precariedade do atendimento público.
Em uma realidade de precariedade no
abastecimento de produtos básicos de higiene em
quantidade suficiente para atendimento das
necessidades pessoais dessas mulheres, somadas às
condições de alojamento oferecidas, aumentam as
probabilidades de proliferação de doenças e de
contágio entre elas.
Em relação ao atendimento dos casos de
gravidez das mulheres encarceradas, quando
alcançam o oitavo mês da gestação, elas são
transferidas para pavilhões diferentes. Na hora do
parto são acompanhadas ao serviço público de saúde
por um agente penitenciário e não tem o direto de ter
a presença de um membro da família.
O bebê fica com a mãe na penitenciária até o
sexto mês e depois são acolhidos por sua família; caso
não tenha um familiar que assuma o cuidado da
criança estas são encaminhadas pelo juiz da vara da
infância e juventude inicialmente para famílias
acolhedoras e posteriormente ao serviço de adoção.
Estudos realizados na cidade de São Paulo
83,7% das mulheres presas afirmam ser mãe e destas
mais de 50% têm filhos em idade inferior a 18 anos e
referem que os filhos ficam aos cuidados da família.
A maternidade no contexto do encarceramento
feminino emerge como elemento potencializador da
disposição para a reintegração social das detentas.
No Brasil, a quantidade de Penitenciárias
Femininas é pequena comparada às Penitenciárias
Masculinas. As poucas unidades prisionais femininas

156
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

que se encontram são afastadas das suas cidades de


origem da maioria das detentas, não parece ser
preocupação do serviço penitenciário brasileiro tomar
como elemento importante na decisão legal pelo
encarceramento, considerar a distância do núcleo
familiar como componente importante para o
processo de ressocialização dessas mulheres. A
distância entre a penitenciária e o grupo familiar da
detenta corrobora com a fragilização e/ou ruptura dos
vínculos afetivos das presidiárias;
[...] normalmente as mulheres encarceradas
são logo abandonadas por seus companheiros e
maridos, seja pelo estigma social da mulher
que comete um delito ou em razão dos
companheiros estabeleceram novas relações
afetivas com maior rapidez. (OLIVEIRA e
SANTOS, p. 240, 2013).

O contato com a família é o principal (muitas


vezes o único) ponto de apoio que a interna tem para
sobreviver ao processo de normatização ou ao sistema
de prisão a que é submetida.
Outro elemento que expõe a fragilidade do
sistema penitenciário brasileiro em relação ao
tratamento de gênero refere-se a visita intima, que
no caso do Brasil naturaliza-se apenas em relação aos
homens, ou seja, em sua maioria as mulheres internas
no sistema prisional do país são alijadas do convívio
intimo com parceiros, enquanto aos homens a
concessão deste convívio é assegurada.
Segundo OLIVEIRA e SANTOS (2013), a visita
íntima, embora não prevista expressamente, é direito
abrigado constitucionalmente, face à interpretação

157
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

de que a sexualidade é uma dimensão da vida de todas


as pessoas.
As mulheres também têm o direito à visita, mas
esta só pode ocorrer se o vínculo existente puder ser
oficialmente comprovado através de certidão de
casamento ou declaração de união estável. Neste
contexto, em sua maioria mulheres encarceradas não
recebem visitas íntimas, o que ocorre de forma muito
comum nas penitenciárias masculinas, onde não há
necessidade de comprovação de vínculo afetivo
oficial; registra-se assim no sistema prisional mais
uma marca da desigualdade social caracterizada pelo
recorte de gênero.
Em sua maioria, no Brasil a população prisional
é composta por aqueles indivíduos que já sofrem o
processo de exclusão social pela condição
socioeconômica de sua origem familiar. Oriundos de
áreas periféricas e histórias de vida miserável;
herdeiros de um processo colonizador que estigmatiza
e criminaliza o pobre, negro e periférico; que exclui
socialmente aqueles sem poder para o consumo, o
sistema prisional penaliza ainda mais estas pessoas
que cerceadas da liberdade, em cumprimento de pena
por crimes cometidos, são também cerceados dos
direitos previstos na lei que lhes deveria oferecer
condições para a ressocialização e o retorno a vida de
forma mais digna.
Neste contexto, do sistema prisional brasileiro
parece refletir o modelo da estrutura macro na qual
está inserido a população pobre e periférica; também
não lhes oferece condições de dignidade humana, em
seu período de aprisionamento para o cumprimento

158
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

da pena e ressocializar-se. Esta população já recebeu


o “etiquetamento”, que a marca o estigma social,
acentuando, na verdade, a marca da invisibilidade e
da exclusão social dos encarcerados conforme
asseveram Miyamoto e Krohling (2013).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As dificuldades que particularizam o sistema


penitenciário brasileiro feminino têm a sua origem nos
déficits estruturais que acompanham a história do
país.
Em relação ao encarceramento feminino, há
uma histórica fragilidade do Estado e das políticas
públicas de proteção e atenção à mulher encarcerada,
tendo em vista o processo de invisibilidade social das
mulheres presas, as condições insalubres e a pouca
preocupação pública com a qualidade do atendimento
à saúde, à preservação dos vínculos familiares e o
desenvolvimento de programas e projetos que
prepare a mulher para a ressocialização e a
reintegração à vida familiar e ao mercado de
trabalho. A mulher presa é uma cidadã brasileira
possuidora de direitos que devem ser observados e
preservados, pois o ato criminoso lhe deve retirar
direitos legítimos de nenhum cidadão, retira-lhe
somente o direito à liberdade.
Este estudo nos leva a reconhecer que o
Sistema Penitenciário brasileiro possui problemas e
que a fragilidade das políticas públicas de segurança
compromete o atendimento das demandas sociais
existentes no interior das Penitenciárias Femininas da

159
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Região da Alta Paulista, no Estado de São Paulo, o que


compromete a recuperação e ressocialização
daquelas que cometeram qualquer ato ou delito e que
necessite de encarceramento.
O direito à ressocialização e a processos
educativos para a reinclusão social, revelam-se
incipientes no sistema penitenciário brasileiro que
emerge mais como um conjunto de ações punitivas e
onde ocorrem violações dos direitos da população que
ali se encontra.
A fragilidade do sistema se evidencia com o
crescimento da população encarcerada no país, com
as iniciativas públicas centradas na construção de
novas penitenciárias e centros de detenção como
prioridade na agenda política em detrimento da
construção de escolas e investimentos suficientes na
educação pública e/ou em programas de
ressocialização e reinserção social da população que
cumpre pena no Estado.

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http://www.planalto.gov.br/CCIVil_03/_Ato2015-

162
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

2018/2016/Lei/L13257.htm. Acessado em: 14, Ago de


2018.

REDAÇÃO. Transgêneros têm direitos específicos em


presídios: Ao serem presos, travestis e transexuais são
encaminhados para presídios femininos. Janeiro de
2017.

SALES, D. Direitos Da Diversidade Sexual, Direitos


Humanos, Travestis e Transexuais: Direitos de
travestis e transexuais na prisão. 10 de Março de 2014.

SECRETARIA DA ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA – SAP


em Dados/Unidades Prisionais em Dados. Disponível
em: http://www.sap.sp.gov.br/

163
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

164
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

DESENCARCERAMENTO FEMININO UMA AÇÃO


NECESSÁRIA

Bianca Silva Sales


Simone Aparecida Jorge

O SISTEMA CARCERÁRIO FEMININO

O Cárcere Como Sistema Punitivo De Controle


Feminino

Os métodos de punição adotados como forma


de “remissão” ou “readequação” do indivíduo,
quando este infringe o contrato social, permeia a
muitos séculos a história da humanidade. Nas
sociedades antigas, por exemplo, na Roma, a prisão
não possuía um caráter de reclusão, nem ao
cumprimento de uma pena específica já que a maior
parte dos castigos estavam vinculados a castigos
corporais. Já na Antiguidade o método de
aprisionamento era utilizado somente para guardar o
acusado em locais enquanto o mesmo esperava o
julgamento ou sua sentença de morte. Na Idade Média
as práticas corporais, eram determinadas por forças
sociais e econômicas, sendo que esta teve reflexo
direto na concepção de pena nas sociedades e nos
sistemas penais contemporâneos. (SANTA RITA, 2006,
p.22)

165
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Para Foucault (apud STELLA, 2001), na história


das punições a forma de cárcere foi instituída
unilateralmente para homens, com o objetivo de que
esse sistema os transformasse. Onde a educação
penitenciária restaura o sentido de legalidade e de
trabalho dos homens presos e quanto às mulheres
reinstalar o sentimento de ‘pudor’80.
Esse pensamento de “reeducação” se
desenvolveu, sobretudo, por meio da Igreja Católica
da Idade Média, que castigava monges e freiras
rebeldes com o recolhimento em locais denominados
penitenciários: celas ou alas de recolhimento e oração
para que houvesse uma reconciliação entre o
indivíduo e Deus. Nesse sentido a Igreja Católica,
passa a tratar dos propósitos e do caráter inicial da
prisão, exercendo jurisdição criminal sobre os
clérigos, pois não sendo permitido sentenciá-los a
morte, aplicava-se a pena em encarceramento e em
castigos físicos. (SANTA RITA, 2006, p.22)
As punições (até então não caracterizadas pelo
cárcere propriamente dito) começam a sofrer uma
mudança gradual a partir do século XVI e XVII,
resultado dos processos de desenvolvimento
econômico, no caso o surgimento da sociedade
industrial e consequentemente o desenvolvimento do
capitalismo monopolista. Com este processo, se há
uma maior expansão da pobreza e miséria por toda a
Europa, e penas como as de mutilação corporal já não
davam respostas a esta nova política econômica.
80
Extraído do livro, A mulher encarcerada em face do poder
punitivo, São Paulo, Editorial IBCCRIM, 2004, p. 79

166
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Assim, iniciou a concepção da prisão como uma forma


específica de punição, lhe conferindo um caráter
substitutivo às penas de mutilações, exílio e morte,
por penas privativas de liberdade.
A partir deste cenário, o Estado poderia melhor
controlar a força de trabalho por categorias da
sociedade consideradas como ‘foras da lei’, como
mendigos, prostitutas, loucos, órfãos, negros,
mulheres – sobretudo negras – e outros sujeitos à sua
ação e supervisão.
O surgimento de instituições com o objetivo de
“limpar as cidades de marginais, vagabundos e
mendigos” denominadas a princípio como Houses of
Correction tinham como essência a combinação entre
os princípios de casa de assistência aos pobres, das
oficinas de trabalho e instituições penais. O objetivo
destas casas seria o trabalho forçado, visando às
transformações destes indivíduos e tornando-os
“socialmente úteis”. (SANTA RITA, 2006, p.23)
A custódia da mulher era de interesse do
homem, pai, marido e até mesmo das intuições
religiosas, politicas e econômicas ter as mulheres
afastadas da vida pública para que assim fosse evitada
uma possibilidade de emancipação. Desta maneira,
foram criadas politicas de correção para estabelecer
controle e reeducar essas mulheres aos padrões de
submissão, dados como corretos. (ZANINELLI, 2015,
p.43 apud MENDES 2014, p.145).
A relação entre a sexualidade feminina e o
poder da Igreja Católica, estabeleceu relação mais
direta com o Estado, não de forma explícita, mas de
certa forma ligados, como por exemplo, a correção e

167
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

a catequização daquelas mulheres “fora dos moldes”


que a sociedade determinava. Os mosteiros até então
espaços dedicados para formação intelectual e
espiritual, tornam-se cárceres destinados à correção
daquelas que eram consideradas ‘pervertidas’. Isso é
proveniente da demonização do feminino, onde seus
comportamentos deveriam ser controlados por às
julgarem fisicamente e mentalmente incapazes de
tomarem decisões.
O processo histórico de custódia da mulher, não
pode ser levado em consideração somente a partir das
revoluções burguesas do século XVIII, pois o cárcere
se estabeleceu muito antes, adotando formas não
institucionalizadas como forma de controle feminino.
Esta criminalização feminina é fruto do exercício do
poder fundado em direitos cuja base são
inegavelmente patriarcais, onde a mulher é um
indivíduo excluído da sociedade e consequentemente
sem direitos. Fato este que deve ser analisado de
forma mais aprofundada quando se faz a
interseccionalidade para além do gênero abordando
também raça e classe. (ZANINELLI, 2015, p.44 apud
MENDES, 2014, p.153)
Em relação ao processo de criminalização
feminino no Brasil, as primeiras mulheres presas
datam de 1870, durante o Brasil Império. Onde no Rio
de Janeiro, havia a Casa de Correção da Corte81
inaugurada em 1850 (instituição semelhante às ‘House
81
Pode se encontrar de forma mais detalhada, Casa de Correção
do Rio de Janeiro, em
<http://mapa.an.gov.br/index.php/menu-de-categorias-2/268-
casa-de-correcao> acesso em 06 nov 2018.

168
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

of Correction’ europeias) um calabouço no qual, os


escravos segundo documentos, ficavam aprisionados,
no período ficaram cerca de 187 mulheres escravas
presas. (SOARES & ILGENFRITZ, 2002).
É importante ressaltar que as primeiras
mulheres presas no país eram escravas e isto remete
ao duplo objetivo das prisões já exposto por Foucault
em sua obra Vigiar e Punir que afirma, que embora
institucionalmente o objetivo das prisões seja
fundamentalmente uma “recuperação” do criminoso
através do isolamento de seu corpo do contato com o
mundo externo, o objetivo real é manter os excluídos
da sociedade sob vigilância contínua, repressão e
sempre na subalternidade em relação às classes
dominantes, ou seja, acordando deliberadamente
com atos cruéis. Desta maneira, compreende-se que
os objetivos ideológicos da prisão são uns e os
objetivos reais são outros, sendo este último o de fato
aplicado, pois as leis penais são feitas por uma classe
e aplicadas à outras. O sistema prisional reflete a
realidade de indivíduos que são historicamente
colocados como ‘inferiores’ seja pela sua classe
econômica, pela sua cor ou pelo seu gênero. Estes são
piamente criminalizados e reprimidos enquanto as
classes dominantes possui imunização de sua
criminalidade. (FOUCAULT, 1987 apud HELPES, p.61).

A Lógica Econômica Encarceradora

Como visto anteriormente, os métodos de


punição são destinados a uma parcela de indivíduos
na sociedade. Quando faz-se um recorte de gênero

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

esta análise apresenta-se ainda mais explícita e


contundente. Uma questão importante quando trata-
se da mulher encarcerada é a da seletividade do
sistema penal, que consequentemente leva ao
encarceramento. Nesse sentido Zaninelle elucida que:
A seletividade do sistema penal atinge
principalmente as camadas mais pobres da
população ao tipificar como criminosas e de
modo mais gravoso aquelas condutas
intrinsecamente ligadas à falta de
oportunidades, o que consequentemente leva a
pensar que existe um sistema penal pensado
para os réus pobres e outro pensado para os
réus ricos. (ZANINELLE, 2015, p.54)

Ao analisar a situação financeira das mulheres


na sociedade atual, ou seja, se ela é independente,
possui uma profissão definida ou se ela é de baixa
renda e não teve oportunidades, fica explícito como a
questão de gênero é tratada na sociedade. No qual
quanto maior a situação de carência financeira da
mulher maior é sua condição de inferioridade e mais
propensa está a fazer parte do sistema penitenciário.
A escassez ou falta de disponibilidade de
recursos para indivíduos excluídos da sociedade é o
caráter perverso da vulnerabilidade social. Onde a
falta de recursos, ou seja, não ter o necessário para
se viver se enquadra na faixa de vulnerabilidade
social. A falta do acesso à educação, lazer, saúde,
trabalho e cultura e demais oportunidades que
deveriam ser oferecidas pelo Estado diminui as
chances de acesso ao mercado de trabalho e
consequentemente relegam estes indivíduos e os

170
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

colocam a margem da sociedade além de não


possibilitar a ascensão social. (ABRAMOVAY, 2002,
p.35 apud ZANINELLI 2015, p.48).
As mulheres que compõe o grupo de indivíduos
encarcerados são em sua maioria de classes muito
pobres a margem na sociedade e composto
principalmente por mulheres negras. Analisando os
dados do último levantamento do sistema realizado
pelo INFOPEN, o número de mulheres encarceradas
negras de baixa renda é expressivamente maior onde
62% (25.581 mulheres) da população prisional é
composta por elas e somente a 37% (cerca de 15.051)
são mulheres brancas. Esse número é extremamente
importante para elucidar-nos a construção histórica
de segregação da mulher negra. Como já apontamos
as mulheres escravas foram as primeiras do gênero a
comporem o sistema prisional, isso se dá a toda uma
lógica de punição e segregação do corpo negro (a
espaços na sociedade, a garantias reais de direitos)
que tem sua concepção desde os períodos coloniais e
que mesmo séculos depois reproduzem esta mesma
engrenagem.
É importante salientar que a criminalidade está
presente em todas as classes sociais, contudo o direito
penal e as estruturas estatais apontam de forma
seletiva e majoritariamente irregular para as classes
sociais de baixa renda, na qual é composta segundo os
próprios dados apresentados acerca do
aprisionamento feminino pela população negra. Esses
indivíduos são alvo da seleção desta “justiça”, o que
quer dizer que não necessariamente são estas classes
e pessoas que se “dedicam” mais a prática de

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

infrações criminais do que os indivíduos de classes


mais altas.
Desta forma, podemos observar que seja por
ação de preconceitos ou de estereótipos, as
incidências penais e delitos, em torno de indivíduos
economicamente menos favorecidos é muito maior
em detrimento dos delitos cometidos pelos de
“colarinho branco” 82. Então, entende-se que a
criminalidade não é algo inerente das classes sociais
mais pobres e se estende por todas elas, contudo a
criminalidade em si é desigual, pois é distribuída de
forma seletiva. Assim, para aquelas pessoas que não
se enquadram nos padrões e nas estruturas do sistema
capitalista restam os caminhos da penalização e da
exclusão. Sendo o capitalismo instrumento principal
para a massificação da pobreza e formação dos
excluídos e indivíduos à margem da sociedade.
(SANTA RITA, 2006, p.29)
Concomitantemente o capitalismo e as
politicas neoliberais adotadas por grande parte dos
Estados, sobretudo da América Latina na década de
90 após Consenso de Washigton83, foram fundamentais
para o crescimento e solidificação exacerbada das
injustiças sociais, pois este sistema produz uma
82
O termo “colarinho branco” faz alusão aos criminosos de terno
e gravata. Em geral é amplamente utilizado para crimes
econômicos ou tributários, ou seja, crimes graves que tendem a
ferir toda a sociedade.
83
O Consenso de Washington foi uma recomendação
internacional elaborada em 1989, que visava disseminar as
politicas neoliberais a fim de combater as crises e misérias dos
estados subdesenvolvidos.

172
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

realidade no qual sempre se requer mais


economicamente dos indivíduos, entretanto os ganhos
provenientes de trabalhos dignos e honestos nem
sempre são suficientes para proporcionar dignidade e
qualidade de vida, auxiliando significativamente na
produção de uma sociedade desigual e que é geradora
da criminalidade, como afirma Zaninelle:
A estrutura capitalista gera desigualdades e
diferentes oportunidades ou falta de
oportunidades que estão intrinsecamente
ligadas ao cometimento de delitos,
principalmente aqueles que possibilitam o
ganho de dinheiro fácil, como por exemplo, o
tráfico de drogas. (ZANINELLE, 2015, p.49)

Nesse sentido também pode-se entender que a


estrutura capitalista teve papel de suma importância
para o surgimento tanto das indústrias fabris como a
do cárcere, que concebeu-se como um instrumento de
dominação do Estado em relação ao indivíduo. Onde,
de acordo com esse modelo de sistema econômico a
mão de obra pode ser deslocada para um outro local,
conforme fosse conveniente ao Estado e assim a
penitenciária se consolida como uma instituição que
complementasse a fábrica a fim de atender às
exigências deste novo sistema de produção industrial
e aqueles que não estão aptos para consumir serão
alvos de politicas de controle, pois desta maneira
passam a ser indivíduos que representam uma ameaça
a sociedade que preza a conservação da estrutura
capitalista.
No Brasil, devido principalmente ao traço
histórico patriarcal deixado desde o período colonial

173
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

a mulher não conseguiu equiparar-se totalmente ao


homem, pois mesmo com as garantias de direitos
obtidas pelas feministas ao longo dos anos, a
sociedade segue os pressupostos do patriarcalismo. O
que não é diferente no sistema carcerário, pois tal
exclui, maltrata e desumaniza os homens, mas encara
as mulheres como os demais setores da sociedade:
pessoas com menos direitos ainda, pois não
cumpriram os papéis que lhe foram designados –
serem dóceis, frágeis, obedientes, mães e donas de
casa.
As mulheres que cometem delitos no Brasil são
vítimas de um sistema machista, que segrega e exclui
minorias. Este sistema “ignora” que esta mulher no
“papel de opressora” já havia sido vítima – em sua
maioria – da falta de recursos e direitos que deveriam
ser assegurados pelo estado como: educação, saúde,
moradia e alimentação. Essas mulheres são
geralmente chefes de família, que sustentam seus
filhos sem a ajuda de um companheiro ou familiares e
habitam as periferias Brasil a fora. Diante dos cenários
e das realidades mencionadas, essas mulheres
encontram no tráfico de drogas a única saída para
minimizar a realidade em que vivem e são estas
mulheres que mais compõem a realidade presidiária
brasileira.
O tráfico de drogas correspondem a cerca de
62%84 das incidências penais pelas quais as mulheres
84
Dados obtidos pelo Levantamento Nacional de Informações
Penitenciarias INFOPEN Mulheres, acesso em <
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-

174
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

privadas de liberdade foram condenadas em 2016, o


que significa que 3 a cada 5 mulheres que se
encontram no sistema carcerário, respondem por
crimes ligados ao tráfico, ficando assim tipificações
como roubo e furto com 11% e 9% respectivamente.
O crescimento do percentual de mulheres
detidas – principalmente enquadradas por tráfico – se
deu segundo dados do INFOPEN, a partir de 2006.
Neste ano foi aprovada a lei 11.343 que instituiu no
Sistema Nacional de Politicas Públicas sobre Drogas e
ampliou o leque de medidas repressoras em relação a
pessoas flagradas com drogas.
No microtráfico85 de drogas, as mulheres –
justamente por seus estereótipos e pela determinação
de papéis na sociedade – ocupam hierarquicamente,
lugares inferiores no tráfico, desempenhando quase
que majoritariamente funções mais visíveis e diretas
com os consumidores de drogas, como na venda da
mercadoria o que as deixam mais expostas às ações
policiais e por este motivo acabam sendo detidas
muito facilmente. (SOUZA, 2009, p.655).
Além disso, estas mulheres também se
envolvem no microtráfico por intermédio masculino,
podendo ser ele, esposo, filho ou companheiro –
grande parte dos autores denominam estes de “amor
bandido” – onde a relação afetiva e fidelidade se

mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf> acesso em 16
nov. 2018.
85
‘Microtráfico’ termo utilizado pela Enedina do Amparo Alves
para definir o porte de drogas em pequenas quantidades, nos
quais grande parte das mulheres do sistema carcerário se
enquadra.

175
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

demonstram tão grande que essas se arriscam. Há


situações em que para financiar, ou até mesmo salvar
os seus parceiros e companheiros que já se encontram
encarcerados essas mulheres são conhecidas como
“mulas”, levam a droga para o presídio por meio das
visitas para que os mesmos possam pagar dívidas, ou
até mesmo para o tráfico dentro das instituições.
(SILVA, 2011, p.159).
Assim, quando, por diversos motivos a mulher
que se envolve em crimes (principalmente para
obtenção de dinheiro para o sustento dos seus filhos,
ou nas situações citadas acima), é na maioria das
vezes presa e abandonada pela família e/ou
companheiro.. Além de serem submetidas à condições
desumanas o cárcere não garante minimamente os
princípios de dignidade da pessoa humana86, auxiliam
na mortificação da mulher encarcerada e influenciam
principalmente em como se dará sua vida após o
cumprimento de sua pena onde passarão a carregar
todo o estigma da prisão feminina, onde julga a
mulher como uma vergonha para a sociedade e assim
é considerada muitas vezes incapaz de cuidar de seus
filhos, família e de suas próprias vidas.
A partir das asserções acima podemos
compreender que o cárcere há séculos mantém sua
estrutura de exclusão e violências institucionalizadas.
Com isso abre-se a reflexão sobre: Por que mesmo
com todas as análises comprovadas de que está é uma
86
O principio da dignidade da pessoa humana, é um conjunto de
princípios e valores que tem como função garantir que cada
cidadão tenha seus direitos respeitados pelo Estado.

176
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

instituição falida mantida pelo Estado como forma de


segregação aos pobres e marginalizados do sistema,
mantém-se cada vez mais consolidada?

DESENCARCERAMENTO: REALIDADE NO ESTADO DA


CALIFÓRNIA, ESPERANÇA PARA O BRASIL.

A Necessidade De Desencarcerar

Porquê um sistema que reproduz estruturas de


exclusão na sociedade percorre séculos a fio e ainda
se mantém como a única solução para indivíduos que
“transgressores”? Para compreendermos, vamos
elucidar o conceito que Angela Davis (2003) denomina
como “complexo industrial-prisional”.
Esse complexo, conforme Davis aponta se
desenvolveu em torno de um processo de punição no
qual não leva em consideração as estruturas e
ideologias econômicas e politicas, mas pelo contrário,
se baseia exclusivamente na conduta criminal
individual e em esforços para “combater e conter o
crime”. Para isso Angela Davis (2003) explica:
O fato, por exemplo, de muitas corporações
com mercados globais contarem com as prisões
como uma grande fonte de lucro nos ajuda a
entender a rapidez com que as instituições
prisionais começaram a proliferar justamente
no momento em que indicavam diminuição na
taxa de criminalidade. (DAVIS, 2003, p.92)
O conceito de um complexo industrial-prisional
sustenta principalmente ideias nas quais tratamos no
decorrer desta pesquisa, que é a de racialização da

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Ana Helena Ithamar Passos
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Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

população carcerária que se enquadra a mulher


encarcerada. Este sistema é capaz de gerar enormes
lucros – a partir de sofrimento e destruição social do
indivíduo – e despertam interesses óbvios em relação
a sua expansão, por parte destas empresas e
corporações. (DAVIS, 2003, p.95). Esses lucros se dão
por meio da transformação destes indivíduos
encarcerados em fontes de lucro que produzem todo
tipo de mercadoria, a um custo muito inferior do que
o realizado no mercado ocasionado não só pela mão
de obra, mas também pelo aproveitamento das
instalações prisionais para a realização destas
atividades laborais.
Além das relações de trabalho estabelecidas
dentro destes complexos prisionais, há a questão em
torno da administração das unidades, ou seja, a
corporativização do que em teoria deveriam ser
gerido pelo governo. Para melhor elucidar, temos
como exemplos os presídios no estado do Amazonas
que é administrado pela empresa Umanizzare e onde
seus gastos superam os prédios federais, onde o custo
para se manter um indivíduo encarcerado chega a
R$4.112,00 mensais, isso sem levar em consideração
os investimentos do estado. Essa terceirização de
atividades e da própria administração prisional sem
nenhum tipo de fiscalização estatal auxiliam no
estado degradante e na negligência nas unidades
prisionais, assim como corroboram para a lógica de
inferiorização e aproveitamento do indivíduo

178
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

encarcerado como “objeto lucrativo”.87 Para isso


Angela Davis (2003) afirma que:
[...] corporações associadas à indústria da
punição lucram com o sistema que administra
os prisioneiros e passam a ter claro interesse no
crescimento contínuo das populações
carcerárias. Para simplificar estamos na era do
complexo industrial-prisional. (DAVIS, 2003,
p.17)

Assim, tendo apresentado brevemente a ideia


em torno manutenção do capital e lucro em que é
constituído o sistema penitenciário e assim por qual o
motivo se é sustentado a retórica da necessidade das
unidades prisionais. Desta forma, desencarcerar
torna-se uma política que vai na contramão dos
interesses econômicos e se faz cada vez mais
necessária.
O desencarceramento é fruto de politicas que
geraram o encarceramento em massa, ou seja, o
encarceramento de forma compulsória que assola,
sobretudo pessoas que vivem em condições de
vulnerabilidade social. O aumento exponencial do
encarceramento dado o que já foi abordado nesta
pesquisa é global e está estritamente conectado com
a adoção das politicas neoliberais – principalmente a
partir da década de 90 – que culminaram no
desemprego em massa, desenvolvimento do
87
Dados obtidos através da matéria “Quanto custa um preso no
Brasil”, disponível em <
https://politize.jusbrasil.com.br/artigos/431281471/quanto-
custa-um-preso-no-brasil>. Acesso em 26 nov. 2018

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

subemprego e da gestão punitiva de insegurança


social, onde teve principalmente nos Estados Unidos à
exportação principal dessas politicas “contra a
violência urbana”, da “guerra contra o crime e as
drogas” que corroboraram com o punitivismo
neoliberal. No Brasil um exemplo claro dessas
medidas e que auxiliaram muito no crescimento
exponencial da população carcerária foi a Lei das
Drogas 11.343/2006 instituída em 2006, pois como
explicitado anteriormente é responsável por cerca de
62% do aprisionamento feminino, por enquadrarem
mulheres no porte ilegal/microtráfico de drogas a
partir de pequenas quantidades de entorpecentes.
Diante deste cenário de superlotação dos
presídios e administração que coloca corroboram para
violações de direitos humanos se é criado o debate em
torno estratégias para reformar e humanizar o sistema
prisional de modo a torná-lo mais racional e humano.
A partir destes discursos, tendo em vista a estrutura
e ideologias principais na qual o cárcere é fundado –
de controle de indivíduos pré-determinados – são
desenvolvidos mecanismos institucionais a fim de
edificar os consensos sociais permissores da expansão
do sistema, conforme apresenta Rodolfo Valente:
Audiência de custódia, regime das medidas e
prisões cautelares, lei de drogas, indulto,
militarismo, crimes de menor potencial
ofensivo, “alternativas penais”, entre outras
questões estratégicas, conformam uma enfiada
de elaborações, defesas e tentativas parciais
de humanizar a estrondosa máquina de moer
pessoas (negras, majoritariamente) que é o
sistema penal brasileiro. (VALENTE, 2018,

180
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

p.11)

Desta forma, entende-se que a reformulação


do sistema prisional só contribui para reforçar sua
estrutura e principalmente a naturalizar sua
existência. Partindo do pressuposto que as
estatísticas carcerárias são fruto de decisões
politicas, os projetos para que seja reformada e
“humanizada” sua estrutura auxiliam no seu processo
de expansão.
Os poderes públicos brasileiros e mundiais,
sempre ao apresentar suas pautas de governo se
voltam para temas como o da segurança. Contudo a
lógica perpetrada é de insistência na construção de
novas unidades prisionais, a fim de aumentar as vagas
do sistema e evitar a sua superlotação e condições
degradantes. Entretanto não é possível humanizar
estes espaços uma vez que eles são reflexo da
estrutura de tortura de nossa sociedade, que define
corpos como mais puníveis que outros e que são
resultados de abandono em outros campos como de:
saúde, educação, infra estrutura e outros. As medidas
de aumento das unidades prisionais historicamente
não funcionam, por isso se faz necessário adotar
medidas para o desencarceramento, de abertura do
cárcere para a sociedade e de enfrentamento
concreto às violências estruturais enquanto houver
prisões.

181
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Politicas De Desencarceramento: Uma Realidade


No Estado Da California.

O governo americano, mais especificamente do


estado da Califórnia adotou algumas medidas para
diminuir a população prisional, impulsionando assim o
desencarceramento.
O estado mais rico e populoso dos Estados
Unidos e responsável por um quarto da população
prisional do país, tornou-se o principal precursor da
queda da população carcerária no país. Esta realidade
só foi possível devido às lutas, sobretudo dos
movimentos anti racistas como os Panteras Negras88
nas décadas de 60 e 70, a fim de abolir o
encarceramento e garantir os direitos da população
negra que compunha maior parte do sistema prisional
norte-americano e das lutas articuladas pelos próprios
indivíduos privados de suas liberdades. Só por meio
destes movimentos que se tornou possível a realidade
californiana atual, sendo que até hoje o estado possui
uma das frentes mais consolidadas contra o
encarceramento.
Esse movimento ganhou mais notoriedade e
ações afirmativas mais incisivas com a Guerra às
Drogas lançada pelo presidente Reagan em 1982.
Houve um incremento no orçamento federal para
88
Um dos grupos radicais na luta contra o preconceito racial nos
Estados Unidos durante o século XX. Adotavam orientação
política com base no marxismo e buscam interligar a perspectiva
de luta de classes entre burguesia e trabalhadores articulada
com o contexto de luta racial.

182
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

ações antidrogas. Como resultado disso houve um


aumento exponencial no encarceramento, pois assim
como na realidade brasileira o consumo e comércio de
entorpecentes é no qual se enquadra grande parte da
população aprisionada nos Estados Unidos. Neste
período o estado da Califórnia, mais precisamente
tinha aproximadamente 24 mil pessoas privadas de
sua liberdade, em 1993 a mesma saltou para 119 mil,
no fim de 2003 para 162 mil e em 2007 atingiu a marca
de 173.132 mil pessoas encarceradas. (WACQUANT,
1999, p.41 apud VALENTE, 2018, p.37).
A partir desta realidade de encarceramento em
massa o movimento antiprisional ganhou maior força,
tendo como aliado o movimento negro de libertação
de décadas anteriores. Este movimento colocou em
cheque a posição agressiva do Estado da Califórnia
com a política de Guerra às Drogas. Diante disso o
governo se viu às voltas com a necessidade de fazer
concessões, na tentativa de refazer o consenso social
em torno do funcionamento penal.
De 2007 até hoje o governo da Califórnia por
meio do California Department of Corrections and
Rehabilitation – CDCR (Departamento Correcional e de
Reabilitação da Califórnia) produz semestralmente
projeções da população prisional a partir das causas
de aprisionamento identificadas, adotando e
monitorando medidas administrativas judiciais e
legislativas com o objetivo de reduzir o número de
pessoas presas.
O processo de redução da população carcerária
californiana é impulsionado, através da flexibilização
das sanções por violações técnicas da liberdade

183
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

condicional ou da liberdade condicional irrevogável, o


aumento, por exemplo, do valor limiar em dólar
considerado para crimes contra a propriedade e da
expansão de créditos para pessoas presas que
participam de atividades educacionais. O que se
assemelha com ordenamento brasileiro de “bom
comportamento carcerário”. (VALENTE, 2018. p.51).
Importante salientar que tais medidas
absorvem parte das reivindicações de instituições
norte-americanas voltadas a luta antiprisional que
tem por objetivo pressionar o estado a reduzir a
população carcerária, fechar prisões e inverter os
gastos securitários-militares com prisões e
policiamento em gastos sociais para o fortalecimento
das comunidades pobres e assim a redução efetiva no
número de pessoas encarceradas.
O percurso de declínio da população prisional
da Califórnia, com as contínuas ações das diversas
organizações e movimentos sociais em coalizão, só foi
firmado como programa de desencarceramento de
fato, somente em 2011. Após decisão histórica, em
que a Suprema Corte norte-americana definiu a
situação de superlotação das prisões da Califórnia
como equivalente a pena cruel e determinou que o
estado reduzisse a população prisional a 137,5% da
capacidade declarada no prazo de dois anos, como
uma das medidas o estado californiano aprovou, no
mesmo ano, a legislação do Public Safety Realignment
(“Realinhamento da Segurança Pública”)68, que
consolida as alterações anteriores no regime de
liberdade condicional, substitui a liberdade
condicional pelo regime da supervisão comunitária

184
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

para crimes não-violentos e redistribui prisioneiros/as


condenados a penas inferiores a um ano para cadeias
municipais. (VALENTE, 2018, p.52)
Além destas medidas, a população da Califórnia
aprovou mais duas favoráveis ao programa de redução
da população carcerária: em 4 de novembro de 2014,
foi aprovada em votação eleitoral a Proposição 47, por
meio da qual a maioria dos “não-sérios e não-violentos
crimes contra a propriedade” e crimes de porte de
drogas para uso pessoal foi desclassificada para mera
contravenção; nas eleições de 8 de novembro de
2016, foi igualmente votada e aprovada a Proposição
57, que aumenta o número de crimes não-violentos
abrangidos pela possibilidade de concessão da
liberdade condicional e autoriza o Departamento de
Correções e Reabilitação da Califórnia (CDCR) a
conceder créditos por reabilitação, comportamento
ou realizações educacionais. Na mesma eleição de
2016, a população californiana votou pela legalização
da maconha que também diminui a população
aprisionada por porte e tráfico de drogas.
O processo de redução da população carcerária
no estado da Califórnia é inegável, assim como
igualmente inegável é o peso determinante dos
movimentos anti prisionais para que o
encarceramento se encontre em processo de
desaceleração. Nos últimos anos, o Departamento de
Correções e Reabilitação da Califórnia (CDCR) tem
aprimorado seguidamente seus métodos de avaliação
de estatísticas e de projeção da população prisional
com base na tendência de impacto de proposições e
alterações legislativas, judiciárias e administrativas.

185
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

De acordo com o relatório mais recente (Fall 2017


Population Projections)89, apesar de a série de quedas
da população prisional ter sido interrompida em 2017,
o programa de desencarceramento deve prosseguir,
com previsão de queda do número de 131.260 pessoas
presas em unidades estaduais hoje para 124.433 em
2022.(VALENTE, 2018, p.54)
Mesmo com a diminuição do aprisionamento no
estado, é muito cedo para se celebrar de forma
contundente a vitória contra o encarceramento em
massa e mais ainda, contra o complexo industrial-
prisional. As politicas adotadas pelo estado ainda são
referenciais para o início da construção e diminuição
do encarceramento. Contudo ainda se faz necessário
a reflexão mais profunda em torno da naturalização
do aprisionamento, onde como os complexos
prisionais funcionam como locais onde os
“indesejáveis da sociedade” são depositados a fim de
nos livrar da verdadeira responsabilidade de pensar
sobre as questões que afligem as comunidades e
territórios das quais essas pessoas encarceradas são
provenientes e também nos livra da responsabilidade
de nos envolver seriamente com os problemas que
compõe a nossa sociedade especialmente aqueles
89
O Departamento de Correções e Reabilitação da Califórnia
(CDCR) emite relatórios semestrais, sempre na primavera
(spring) e no outono (fall), disponível em
<https://sites.cdcr.ca.gov/research/archived-research/ . Para
acesso a todos os relatórios:
https://sites.cdcr.ca.gov/research/population-reports/. Acesso
em 27 nov. 2018

186
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

produzidos pelo racismo e sexismo gerados por uma


lógica de capital e lucro.

Desencarceramento: Uma Esperança Para O Sistema


Prisional Feminino Brasileiro

Visto que o encarceramento em massa é uma


guerra de classes que é consagrada pelo racismo e
sexismo, como já apontado ao analisar pela
perspectiva de gênero e raça. O desencarceramento
coloca-se como necessário, uma vez que o número de
mulheres aprisionadas de 2000 à 2016, no Brasil
cresceu cerca de 656% em comparação ao masculino
com um crescimento de 293%.90 Dessas mulheres, 80%
são mães e responsáveis principais por gerir a
sobrevivência e sustento da casa e dos filhos e dentre
este número cerca de 62% destas mulheres
aprisionadas são negras pertencentes a regiões
periféricas de suas cidades.
O encarceramento em massa como já
apontado, corrobora para a degradação do sistema
prisional e consequentemente para a violação das
condições mais básicas de vida da população
carcerária, onde apenas 10% têm acesso de alguma
forma a atividades educacionais, somente 20%
exercem alguma atividade remunerada e os serviços
de saúde são extremamente frágil o que origina
90
Extraído da reportagem “População carcerária quase dobrou
em dez anos”, disponível em
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-
06/populacao-carceraria-quase-dobrou-em-dez-anos >. Acesso
em 01 dez. 2018.

187
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

diversos casos de doenças graves, mortes por


negligência e unidades superlotadas. Que no aspecto
de gênero, possui um caráter patriarcal sintomático e
elevado à máxima potência, onde tem nas mulheres
pobres e negras seu principal alvo.91 Além disso, sem
contar a própria penalização das mulheres familiares
de pessoas presas que são submetidas às revistas
vexatórias, por exemplo.
Esses dados elucidam bem que experiências
como a da Califórnia reforçam a percepção a partir
das próprias estatísticas prisionais que o estado norte-
americano apresenta, onde podemos entender que o
número de pessoas aprisionadas de cada país é
resultado de suas escolhas politicas principalmente
aquelas adotadas em torno daqueles – como já
mencionado neste trabalho – são socialmente
vulnerabilizadas.
Nesse sentido se faz necessário adotar medidas
efetivas a partir de um projeto que aborda a
construção integrada de um programa popular de
desencarceramento e assim como de
desmilitarização. Desta forma, foi criada em 2017
uma Agenda Nacional pelo Desencarceramento de
forma unificada, organizada pela Pastoral Carcerária
que conta com o apoio de inúmeros movimentos
sociais, instituições e organizações voltadas também
à luta pela justiça social.
91
Conforme o relatório “Tortura em Tempos de Encarceramento
em Massa”, publicado pela Pastoral Carcerária Nacional em
outubro de 2016. Disponível em http://carceraria. org.br/wp-
content/uploads/2016/10/tortura_web.pdf. Acesso em 01 dez.
2018.

188
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Dentro desta agenda temos dez diretrizes, que


seriam as medidas politicas essenciais que devem ser
adotadas para haver uma redução efetiva da
população prisional e garantir às mulheres, e
familiares o mínimo de dignidade e de sociabilidade
apesar do cárcere. As propostas são: a suspensão de
qualquer verba voltada para a construção de novas
unidades prisionais ou de internação; exigência de
redução massiva da população prisional e das
violências produzidas pela prisão; alterações
legislativas para a máxima limitação da aplicação de
prisões preventivas; contra a criminalização do uso e
do comércio de drogas; redução máxima do sistema
penal e retomada da autonomia comunitária para a
resolução não violenta de conflitos; ampliação das
garantias da Lei de Execução Penal; no âmbito da Lei
de Execução Penal: abertura do cárcere e criação de
mecanismos de controle popular; proibição da
privatização do sistema prisional; prevenção e
combate à tortura e a desmilitarização das polícias e
da sociedade.92
Com o objetivo de enfrentar os desafios do
desencarceramento, foram criadas por meio de
iniciativas populares, com ajuda de acadêmicos que
estudam o encarceramento, mães e familiares de
vítimas de cárcere, egressos e organizações que já se
posicionam e se colocam a serviço da população
92
Informações obtidas por meio da “Agenda Nacional pelo
Desencarceramento 2017”, disponível em <
http://desencarceramento.org.br/wp-
content/uploads/2018/06/AGENDA_PT_2017-1.pdf >. Acesso em
02 dez. 2018

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

carcerária, seja no trabalho direto nos presídios como


no auxílio aos familiares, criaram no estado de São
Paulo a Frente Estadual Pelo Desencarceramento, que
a partir da agenda formulada pretende firmar
exigência de uma reversão do encarceramento em
massa e da degradação carcerária aos organismos
públicos.
A luta desses movimentos buscam estabelecer
o compromisso político e humano e a igualdade e
dignidade não só das mulheres, mas de todo indivíduo
encarcerado no Brasil de modo que não sejam
reproduzidas as justificativas que veem
especialmente na mulher negra, pobre e periférica a
mira para punição estatal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir deste estudo pode-se verificar que a


mulher não possui espaço na sociedade, sendo a ela
designado somente os espaços privados. Mesmo com a
instituição legal da mulher como indivíduo político na
sociedade não é suficiente para que o patriarcalismo
não continue findando em suas estruturas.
A criminalização da mulher está ligada
originalmente a uma estrutura de poder, no qual vê a
mesma como um objeto que deve ser controlado e
reeducado às atividades que acreditam ser de fato de
sua conveniência. Além de estar interligado,
sobretudo a questões de classe e raciais nas quais tem
a mulher negra como alvo principal, pois com o
processo de industrialização e mesmo em processos
mais recentes com as implantações de politicas

190
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

neoliberais na década de 90, pouco no âmbito de


politicas públicas foram destinadas a esta população,
chegando ao fim de ambos os processos
marginalizadas. Assim, a criminalidade feminina
sempre foi encarada como sendo um desvio moral no
qual devido ao papel que a mesma deveria empenhar
em sociedade é vista como resultado de uma
incapacidade de convívio nela.
O cárcere foi desenvolvido como uma estrutura
que viesse atender as transgressões masculinas, desta
forma ao classificarem mulheres também como
indivíduos que cometem crimes o mesmo foi adaptado
a fim também abriga-las. Isso só fez com que as
violências nos quais os homens já sofriam devido a
superlotação de unidades prisionais e ao próprio
tratamento dado a eles, se agravasse a partir do
momento em que as mulheres também passam a ser
aprisionadas.
Contudo, um ponto a se observar é que grande
parte dos estudos, quando se fala de em
encarceramento feminino se é pensado em
alternativas para a ressocialização e principalmente
humanização do cárcere, ou seja, que estes indivíduos
continuem passando pelo sistema carcerário mesmo
que seja analisado os índices de encarceramento e
sejam vislumbrados que são resultados da falta de
politicas públicas em torno de uma população sócio e
economicamente vulnerabilizadas.
Compreende-se então que o cárcere ser uma
instituição lucrativa para o Estado e principalmente
para as empresas que desenvolvem trabalhos nas
unidades prisionais, tendo em vista a utilização de

191
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

uma mão de obra mais barata. Além disso, a privação


da liberdade, em especial de mulheres, corrobora
com a lógica de controle do corpo feminino,
sobretudo controle de uma “criminalidade” que na
verdade é resultado da negligência estatal que
encurralam estas mulheres ao microtráfico, que é um
dos delitos que mais encarcera mulheres no Brasil.
Assim, comprova-se que a estrutura prisional
que vemos hoje e que perdura por séculos com
propostas de “reforma” é falida e que contribui para
a perda da subjetividade do indivíduo criando um
sentimento de culpabilização que ultrapassa os muros
dos presídios atingindo as famílias destas mulheres
presas, seus filhos e apagando sua história, restando
apenas o estigma do encarceramento que
infelizmente a mesma carregará consigo para vida,
fora do ambiente prisional.
Desta maneira, se vê como necessária as
politicas de desencarceramento uma vez que a lógica
deste sistema é de aprisionar cada vez mais. Como
exemplo disto, foi trazida à realidade norte-
americana no estado da Califórnia que elucida bem
como a descriminalização de algumas drogas e até
mesmo atenuação em relação a alguns crimes como o
“contra o patrimônio” foram capazes de reduzir os
índices de encarceramento.
Nos Estados Unidos os movimentos de
desencarceramento sempre foram muito fortes,
principalmente por meio da participação de grupos
políticos como os Panteras Negras que tinham em sua
pauta o fim do aprisionamento negro que
acontecia/acontece de forma unilateral. Sendo assim,

192
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

o processo de lutas neste país foi muito mais denso


que no Brasil. Entretanto hoje se observa muitos
movimentos e frentes (Frente Estadual pelo
Desencarceramento, Pastoral Carcerária e outros) em
prol da pauta do desencarceramento e pela abolição
do cárcere e estas vem ganhando cada vez mais força
e corpo no Brasil a fim de tornar possíveis também
formas de desencarcerar no país.
Assim entende-se que o ato de encarcerar é
originário de escolhas politicas estatais e mais ainda
quando se trata do aprisionamento feminino que é
composto por classes, etnias e territorialidade bem
definidos. Desta forma, podemos considerar que a
luta pelo desencarceramento é um desafio para a
realidade atual dado a naturalização do sistema
prisional no imaginário e senso comum das pessoas.
Mas desencarcerar é uma necessidade a ser galgada
no hoje e no futuro, pois só assim será possível tornar
real os direitos das mulheres – principalmente àquelas
que são silenciadas/esquecidas pelo estado, às
negras, pobres e periféricas – que não puderam
experienciá-los em suas vidas antes e muito menos
depois do cárcere.

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Ana Helena Ithamar Passos
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Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

194
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

MULHERES E RELIGIÃO: UM NOVO OLHAR


SOB A PARTICIPAÇÃO FEMININA NAS
RELIGIÕES ABRAÂMICAS

Estefany Brito Santos


Simone Aparecida Jorge

As religiões surgem a partir de necessidade do


homem de explicar aquilo que lhes era um mistério e
solucionar questões as quais não tinham respostas. No
decorrer da história, as religiões foram por muitas
vezes, motivos de diversos conflitos e até hoje são
muito presentes no cotidiano, influenciando
costumes, questões sociais e políticas93.
Atualmente existem mais de 10 mil praticas
religiosas ao redor do mundo, sendo o Cristianismo, o
Islamismo e o Judaísmo, as que possuem o maior
número de adeptos entre as religiões monoteístas de
origem abraâmicas; juntas, essas três religiões somam
cerca de 3.800 bilhões de pessoas, das quais cerca de
51% são mulheres94.
As religiões e os estudos a elas relacionados
sofreram de maneira significativa os impactos dos
avanços das sociedades, podemos dar um destaque
para as influencias exercidas pelo feminismo, tanto
como pensamento quanto de forma ideológica.
93
O'Neal, Michael J.; Jones, J. Sydney. World Religions:
Almanac. Michigan: Thomson Gale, 2007.
94
CIA. “The World Factbook”. 2018..

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Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Inserindo-se nos campos políticos e religiosos, o


feminismo busca alterar as estruturas hierárquicas
pautadas nas construções sociais de gênero e a
distribuição desigual de poder entre homens e
mulheres.
Dessa forma, surge a busca por novas
interpretações dos textos bíblicos além de
ressignificar a presença de personagens femininas da
religião que tiveram sua participação apagada ao
longo da história e do desenvolvimento das religiões.
Esse trabalho, busca analisar algumas dessas
personagens femininas e como isso influencia na
forma com a qual a igreja trata as mulheres,
perpetuando uma estrutura machista.
Apresentaremos também conceitos sobre a Teologia
feminista, uma corrente de estudos teológicos que
busca reinterpretar escrituras religiosas, o contexto
de seu surgimento e as contribuições para sociedade,
em especial para as mulheres.

RELAÇÃO ENTRE MULHERES E RELIGIÕES

Por muitos séculos, as mulheres foram


condicionadas a estar em segundo plano quando se
tratava da história e feitos da humanidade. Reclusas
no ambiente privado do lar, uma vez que o espaço
público era destinado somente aos homens, e era
nesse espaço público onde ocorriam os
acontecimentos relevantes a humanidade.
Na filosofia grega, Aristóteles enxergava as
mulheres como um ser incompleto por não possuir um
falo. Essa diferença biológica é entendida como uma

196
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

inferioridade da mulher em sua capacidade racional.


Assim como Aristóteles, outros pensadores também
colocavam as mulheres nessa posição subalterna,
como por exemplo, Platão, Pitágoras e Kant.95
Nas culturas de coleta e caça de pequenos
animais, até mesmo nas primeiras sociedades
agrícolas, os grupos humanos possuíam caráter
matrifocais e matrilineares, principalmente por
desconhecer a função reprodutiva dos homens. No
matricentrismo a sociedade é centrada na mulher,
acredita-se que nesse momento a ordem social era
fluida, mais permissiva, havendo um rodízio de poder.
A descoberta da participação do homem no
processo de reprodução levou a necessidade de
controle da sexualidade, estabelecendo uma relação
de poder onde a supremacia masculina passou a atuar
principalmente através da moralidade96. Dessa forma,
para compreendermos o papel das mulheres na
religião, faz-se necessário contextualizar a forma com
a qual estas participam da religião97.
Estudos mitológicos da criação do mundo
podem ser divididos em quatro grandes momentos
referentes a história da humanidade, observando a
transição da sociedade matricentrica para a
95
ANDRIOLI, Liria Ângela . “A mulher na história da filosofia:
uma análise na perspectiva da corporeidade”. Revista Espaço
Acadêmico. 2006. v. 58. p. 1-4.
96
Muraro, Rose M. “A mulher no terceiro milênio: uma história
da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o
futuro”. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos. 1997.
97
Woodhead, Linda. "Mulheres e genêro: Uma estrutura
teórica". Revista Estudos da Religião. nº 1. 2002. p. 1 - 11

197
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

patriarcal. Num primeiro momento, tudo que existe é


criado por uma grande Deusa, na mitologia grega
temos Gaia, a mãe terra. Durante toda idade do
bronze, a representação da Divindade ocorre por meio
de Deusas.
Posteriormente, há o surgimento de um Deus
solar masculino, com características mais agressivas,
transformando a deusa em sua criada. Num terceiro
momento, temos representações de Deus como sendo
homem-mulher, ou um único ser dotado de
características andróginas, como na mitologia
chinesa. Por fim, a partir do segundo milênio a maior
parte dos Deuses é masculina.
Com a migração do politeísmo para o
monoteísmo, houve uma eliminação das deusas,
transformando-as em mulheres sagradas, com um
papel acessório e secundário de gerar os deuses,
responsável pela conexão entre a criatura e seu
criador. As três religiões abraâmicas crêem que tanto
mulheres quanto homens foram criados por Deus. Na
concepção judaico-cristã, o surgimento do mundo
está narrado em Genesis, é descrito detalhadamente
a criação de Adão, o primeiro homem e de Eva, sua
companheira, que surge como um presente do criador
para sua criação, e é descrita como uma mulher
sedutora.
No cristianismo, a Eva bíblica pode ser
considerada peça essencial para a construção da fé,
se não houvesse o pecado dela, Deus não seria
obrigado a enviar seu próprio filho para purificar a
humanidade. Posteriormente, a tradição judaico-
cristã pregaria que as mulheres por serem

198
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

descendentes de Eva, eram indignas de confiança e


naturalmente dotadas de uma má conduta.
Menstruação, gravidez e parto seriam punições do
divino ao sexo feminino. Essa ideia é reforçada em
diversos momentos, tanto no Talmud quanto na
bíblia.
Atualmente, judeus ortodoxos em sua prece
matinal agradecem por Deus nãos os terem feito
mulheres. No cristianismo podemos citar Santo
Agostinho, São Tertuliano, São Tomás de Aquino,
Martinho Lutero dentre muitos outros pregadores e
pensadores da bíblia continuariam a disseminar a
ideia de mulheres como fonte do pecado, sem
qualquer utilidade se não a reprodução.
No alcorão, podemos observar que não há
distinção entre o respeito ofertado a homens e
mulheres. Ambos são reconhecidos como criações do
Divino, ambos são instruídos da mesma forma a evitar
o mal e a espalhar o amor, além disso, usam como um
bom exemplo a Virgem Maria.
Posteriormente, podemos destacar a história
de Sant’Ana mãe de Maria de Nazaré, narrada
principalmente em documentos apócrifos, como no
proto-evangelho de Tiago, datado de
aproximadamente 150 d.C. É importante destacar que
não integra os evangelhos canônicos, ou seja, não
possui reconhecimento por parte da igreja católica
como oficial, por conta disso, pouco se sabe sobre a
história dela.
A narrativa do cristianismo conta que Ana,
casou-se cedo com Joaquim, e após muitos anos dessa
união, ainda não haviam tido filhos, o que

199
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

representava motivo de vergonha e preocupação. A


época, a infertilidade era atribuída à mulher, e esta
era vista como amaldiçoada, dessa forma Ana era
constantemente humilhada.
Dada essa situação, Joaquim se retirou para as
montanhas a fim de refletir e orar a Deus. Ana ao
saber do ocorrido também recorreu ao Senhor,
rogando que a livrasse da esterilidade, prometendo
dedicar seu filho aos serviços de Deus.
Um anjo apareceu para Ana, dizendo a ela que
o Senhor havia ouvido seus lamentos e que ela
conceberia uma criança, e que seus descendentes
seriam abençoados por todo mundo. Ana deu à luz a
Maria de Nazaré que posteriormente se tornaria a mãe
do menino Jesus. Acredita-se que após o nascimento
de Maria, Ana teve mais duas filhas: Maria Cléofas e
Maria Salomé. A história de Ana busca preencher
lacunas sobre a origem de Jesus, utilizando-se de
elementos presentes em outras histórias bíblicas de
crianças que foram muito esperadas, principalmente
do evangelho de Samuel.
No alcorão, a história de Ana é brevemente
mencionada, mas apenas para que se crie um
contexto sobre a narrativa da Virgem Maria. Dentro do
judaísmo, Ana e a virgem Maria possuem pouca
relevância, uma vez que Jesus é visto apenas como
mais um dos mensageiros de Javé.
No que diz respeito à figura de Maria de Nazaré,
esta pode ser considerada um desafio para os
estudiosos, pois apesar de poucas informações a seu
respeito, conta com uma grande parcela de fieis. Tem
suas primeiras aparições nos evangelhos de Lucas e

200
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Mateus, que narram a revelação da chegada do


messias pelo anjo Gabriel.
Para os católicos ortodoxos também é
conhecida como Nossa Senhora, entretanto podemos
observar inúmeras nomenclaturas como, por exemplo,
Nossa Senhora de Lourdes na França, Nossa Senhora
de Fátima em Portugal, Nossa Senhora do Cobre em
Cuba entre muitas outras variações. São cerca de dois
mil nomes atribuídos a Maria de Nazaré, tornando-se
um tema quase inesgotável de pesquisa no estudo das
Ciências da Religião.
De acordo com a tradição judaica, Maria teria
sido levada ao templo de Jerusalém com três anos de
idade e teria permanecido até o falecimento de seu
pai, Joaquim. Após o ocorrido teria se mudado para
Nazaré, onde conheceu José, que viria a se tornar seu
marido. Maria é considerada a primeira adepta do
cristianismo, como mencionado anteriormente,
acredita-se que Maria concebeu Jesus
milagrosamente, com o poder do Espírito Santo. Nas
escrituras cristãs é evidenciada a participação de
Maria em inúmeros momentos importantes da vida de
seu filho.
Teve seu perfil traçado com base nas
escrituras, sendo descrita como um modelo de
santidade, transformando-se aos olhos da fé em um
paradigma feminino para toda cristandade98. A Virgem
representa um caráter único diante das demais
98
Jurkevics, Vera Irene. “Virgem Maria: Paradigma da
Superioridade Espiritual Feminina”. Fazendo Gênero 9:
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos (23 a 26 de agosto de
2010)

201
Ana Helena Ithamar Passos
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(Orgs.)

mulheres, onde se evidenciam as noções de


virgindade, pureza e castidade, além do papel como
mãe zelosa e esposa obediente e submissa,
relacionando-se com a origem da salvação.
Teólogos apontam uma igreja que categoriza
Eva como àquilo que as mulheres são e a Virgem Maria
como aquilo que deveriam ser embora inalcançável,
temos assim a dicotomia apresentada pela igreja com
relação ao gênero feminino. Na visão da igreja nada é
mais importante do que cuidar do marido, dos filhos
e do lar, reforçando ideia de que a mulher deve ser
condicionada ao âmbito privado.
No alcorão, Maria é citada como dona de uma
posição distinta e honrada entre outras mulheres no
livro sagrado, possuindo até uma sura com seu nome
(Maryam), onde se narra a história de Jesus de acordo
com o islã, e ambos são considerados um sinal de Deus
para humanidade. Os islâmicos também creem que
tanto a Virgem quanto o fruto de seu ventre foram
concebidos sem pecado, além disso, pregam que
Maria e Jesus são as únicas crianças que não poderiam
ser tocadas pelo anjo caído99. Para os Judeus, Jesus
se tratava apenas um mensageiro de Deus, dessa
forma, Maria que está intrinsecamente ligada ao seu
filho não possui relevância para o povo judeu.
Outro nome relevante dentre as mulheres nas
religiões abraâmicas é o de Maria Madalena, uma das
personagens bíblicas mais misteriosas. Cercada de
lendas que buscam desvendar sua história, taxada de
prostituta, nomeada pela igreja de apostola dos
99
(LEAMAN, 2006, p. 393-394)

202
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

apóstolos, Maria Madalena pode ser considerada uma


mulher à frente de seu tempo.
Acredita-se que era oriunda de Magdala, cidade
comercial que sobrevivia da pesca e possuía forte
relação com o mundo helênico, localizada na costa
ocidental do mar da Galiléia, daí o segundo nome a
ela atribuído, Maria de Magdala100. O primeiro
encontro entre Madalena e Jesus é narrado no
evangelho de Lucas, quando em sua viagem pela
Galiléia, Cristo expulsa dela sete demônios, que
representam a purificação alcançada pela purificação
espiritual.
Posterior a isso, abandonou tudo para seguir
Jesus, tornando-se uma das discípulas mais
dedicadas. Madalena, assim como Maria de Nazaré,
esteve presente em diversos momentos da vida do
messias, e de acordo com as escrituras bíblicas foi a
primeira a presenciar a ressurreição de Cristo, sendo
a encarregada de anunciar aos demais apóstolos o
milagre.
Muito se especula sobre Maria Madalena, em
especial no que diz respeito a sua relação com Cristo,
muitos teólogos descrevem sobre a proximidade de
Madalena com Jesus, alguns afirmam que o messias
confiava a ela coisas que não confiava aos demais
discípulos. Teorias apontam um possível casamento
entre Jesus e Madalena, o texto apócrifo do evangelho
de Filipe afirma em uma passagem que Cristo a amava
100
De Tommaso, Wilma Steagall. "Maria Madalena nos textos
Apócrifos e nas seitas Gnósticas". Revista Último Andar. São
Paulo (14), Jun. 2006 . p. 49

203
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

mais do que todos os discípulos, sendo ela sua


companheira.
Essa imagem distorcida de Maria Madalena
pode ser atribuída ao machismo da época, uma vez
que pesquisadores apontam sua extrema importância
nos primeiros anos do cristianismo, afirmam que ela
possuía um papel próximo ao de Pedro. A liderança
exercida por essa mulher era incomoda em diversos
aspectos.
Acredita-se que ao se tornar religião oficial de
Roma, o Cristianismo optou por atenuar a
participação de Madalena. Evangelhos apócrifos
corroboram essa teoria, no evangelho de Tomé, por
exemplo, há um diálogo em que Simão demonstra sua
inconformidade com a proeminência de Madalena101.
Em contraponto, no oriente diversos escritores
destacam o papel de Madalena, em especial no
momento da ressurreição, colocando-a como uma
mulher honrada, livre da maldição de Eva. Cirilo de
Alexandria defendia que as mulheres haviam sido
perdoadas do pecado original, pois uma mulher havia
sido testemunha da ressurreição, assim como Proclus
de Constantinopla em 446 e Gregório de Antioquia em
593 destacam a importância da participação feminina
no cristianismo102.
101
Viega, Edson. "O mistério sobre quem realmente foi Maria
Madalena". 2018.
102
Pereira, Maria F. B. "Maria Madalena e o Feminino na
Construção da Igreja Católica". Dissertação de Mestrado.
Faculdade de Ciencias Sociais de Humanas - Universidade Nova
Lisboa, Lisboa. 2011. p. 13 – 14.

204
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Ainda no que se trata dos evangelhos apócrifos,


não podemos deixar de mencionar o que é atribuído a
ela. Fragmentos foram descobertos próximos a
Akhmim no Egito por volta do séc. XIX acredita-se que
tenham sido escritos originalmente em grego, por
volta do séc. II ou III. Junto com o apócrifo de João e
a Sabedoria de Jesus Cristo, compõe o chamado
“Códices de Berlim”.
As cerca de oito páginas encontradas nos
fornecem uma perspectiva ainda mais intrigante sobre
o papel de Madalena no cristianismo ao apresentar
uma nova interpretação sobre os ensinamentos de
Jesus, rejeitando seu sofrimento e morte como um
caminho para vida eterna, desmistificando a visão
errônea de Maria Madalena como uma prostituta e
enfatizando sua proximidade com Cristo.
A partir desse evangelho podemos observar de
forma ainda mais enfática a importância de Madalena
e sua autoridade nos primeiros tempos de
cristianismo, sendo a única a receber determinados
ensinamentos.
Acredita-se que com o início das perseguições
aos cristãos, Madalena embarcou clandestinamente
num navio, e após uma longa viagem desembarcou no
sul da França, onde pregou a palavra de cristo. Por
fim, acabou se recolhendo a uma gruta onde passou
30 anos em contemplação, tendo morrido aos 64 anos.
Até hoje centenas de peregrinos viajam até a cidade
de Provença onde sua trajetória é celebrada no dia 22
de Julho103.
103
(DE TOMMASO, 2006, p. 57)

205
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Supõe-se que na história da igreja católica


apostólica Romana tenha havido uma papisa, que foi
escondida pela igreja. Acredita-se que durante o
período de sua governança, cerca de dois ou três anos,
Joana tenha realizado um trabalho renovador no
Catolicismo da época.
Existem diversas versões da biografia de Joana,
alguns afirmam que teria sido uma jovem oriental
oriunda de Constantinopla, que se fez passar por
homem a fim de conseguir estudar. Possuía formação
em filosofia e teologia, e teria alcançado o papado
após a morte de Leão IV, sob o nome de João VII,
afirma-se ainda, que Joana havia engravidado de um
oficial da Guarda Suíça.
Temos em Joana a história de mais uma mulher
cercada de mistérios e controvérsias, sendo tema de
debate entre historiadores ao redor do mundo. Alguns
crentes de sua veracidade e outros que pregam que
não passa de uma invenção. Sendo considerada por
alguns como uma invenção da igreja Ortodoxa contra
a igreja Católica, por outros um monstro criado por
ateus, em ambos os casos buscando desmoralizar o
catolicismo104.
A partir da análise dessas figuras, podemos
observar a dicotomia com a qual a igreja construiu a
imagem da mulher, a santa e ao mesmo tempo a
pecadora, a forma como a atitude de cristo com
relação a elas, descrita de forma imprecisa contribuiu
para a consolidação dessa percepção. Sendo assim, o
104
Cross, Donna W. "Papisa Joana". São Paulo: Geração Editorial.
2009.

206
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

silencio e a descrição sobre a participação das


mulheres ao longo da construção da religião, acabou
de certa forma prejudicando a transmissão dos
ensinamentos de Cristo.

TEOLOGIA FEMINISTA COMO PROMOÇÃO DE


MUDANÇAS

Conforme já apresentado ao longo dessa


pesquisa, as características da sociedade patriarcal
foram se construindo e se consolidando ao longo do
tempo, atualmente as questões de gênero ainda
sofrem muita influência das religiões.
Historicamente, o patriarcado exerceu uma influência
nefasta nas religiões, e a partir de uma estrutura
hierárquica que gera a ideia de superioridade,
perpetuam desigualdades não só entre gêneros, mas
de raça, credo e classes. O entendimento de povo
escolhido, que circunda as religiões abraâmicas
endossa esse pensamento.
Para uma melhor compreensão, precisamos
entender o conceito de Gênero, utilizado para
determinar a diferença entre homens e mulheres, mas
não de forma biológica, e sim por um viés cultural.
Pode ser definido como a construção social dos
papéis, funções e valores intrínsecos a cada sexo,
construído a partir de discursos históricos
influenciados por relações de poder.
Assim, as relações de gênero, pautam-se numa
distribuição desigual de poder de acordo com o sexo,
se desenvolvendo ao longo da humanidade e no dia a
dia entre homens e mulheres, utilizando-se das

207
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

diferenças sexuais de maneira arbitraria e repleta de


estereótipos, buscando fundamentar a superioridade
masculina105.
Essa distribuição desigual de poder e a
legitimação da superioridade masculina retardaram e
em muitos casos minaram as oportunidades oferecidas
às mulheres, condicionando-as ao ambiente privado.
Há uma projeção sobre a mulher dessas construções
morais distorcidas, que cerceiam a condição feminina
aos interesses masculinos, sendo legitimados na
sociedade, na política, nos relacionamentos e na
religião106.
Além disso, a perpetuação desses ideais
distorcidos, busca justificar as violências cometidas
contra as mulheres. Estatísticas ainda demonstram os
altos níveis de desrespeito a vida das mulheres, uma
vez que a cada 2 segundos, uma garota menor de
idade é forçada a se casar, 15 milhões de adolescentes
entre 15 e 19 anos já sofreram abusos sexuais, 70% das
mulheres refugiadas são vítimas de violência ao longo
da vida e mais de 200 milhões de garotas e mulheres
já foram obrigadas a se submeter a mutilação
genital107.
105
Narvaz, M. G.; Koller, S. H. “A marginalização dos estudos
feministas e de gênero na psicologia acadêmica
contemporânea”. Psico, 38(3), 216-223
106
MACÊDO, G. N. S. "A construção da relação de gênero no
discurso de homens e mulheres, dentro do contexto
organizacional". Dissertação Mestrado em Psicologia Social.
Universidade Católica de Goiás. 2003. p 20
107
Soares, Nana. "Em Números: A violencia contra a Mulher
Brasileira". 2017.

208
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

O mapa da violência aponta que os


feminicídios, em sua grande maioria ocorrem na
esfera doméstica, a partir daí podemos concluir que
os abusos ao corpo feminino, o estigma a ele imposto,
transmite e reforça o machismo108. No mercado de
trabalho, essa discriminação também se perpetua,
condicionando as mulheres salários menores e menos
oportunidades de emprego, além disso, as mulheres
representavam apenas 32% dos cargos de diretoria em
2009.
No que diz respeito às religiões, podemos citar
novamente a dicotomia criada pela ideologia no
entorno do feminino, de bem e mal, santa e impura,
o que contribui para o controle desses corpos. As
tradições teológicas clássicas, pouco fizeram para
promover mudanças nesses aspectos, corroborando
com o papel simbólico de violência que a religião
exerce.
Os textos bíblicos apresentam uma visão
androcêntrica dotada de um caráter patriarcal, onde
os símbolos do cristianismo são patriarcais, e servem
de instrumento para a submissão importa as mulheres.
Assim, cria-se uma cultura de obediência a figura
masculina, fazendo com que mulheres aceitem isso de
forma tão passiva a ponto de acreditarem ser esse sua
obrigação109.
108
Steffen, Luciana. “A Teologia Feminista Descontruindo as
Desigualdades de Genero Ainda Presentes”. Anais do Congresso
Estadual de Teologia (06 a 09 de maio de 2013)
109
Basterd, Leila L. "O Progresso das Mulheres no Brasil 2003 -
2010". 2011.

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

Influenciada pela primeira onda feminista, há


dentro da teologia o surgimento de uma corrente
filosófica e de estudos, a chamada Teologia Feminista
que dá seus primeiros passos com Elisabeth Cady,
responsável também pela declaração dos sentimentos
de 1948.
É no séc. XIX onde as primeiras interpretações
feministas dos textos religiosos passam a ser
produzidas, Cady publicou entre 1895 e 1898 o projeto
“The women’sbible”. Esse projeto busca desafiar a
posição tradicional e ortodoxa de que a mulher
deveria ser submissa ao homem. Na Grã Bretanha,
temos um grupo chamado Aliança Joana D’Arc, que
além da busca pela igualdade entre gêneros, também
criticava a visão única de um Deus masculino.
A teologia feminista pode ser entendia como
uma teologia que tem ênfase na questão das
mulheres, em suas experiências de opressão,
resistência e luta por libertação, com um viés critico
busca construir seu conhecimento a partir de analises
especifica e amplas. Reivindica espaço como ciência,
e somente com esse status haverá a possibilidade de
uma alteração do discurso religioso.
O centro da reflexão das teologias feministas se
expressa na dignidade feminina de diversas formas,
sendo de marcadas por contextos divergentes que se
objetivam a partir de problemáticas diferentes. E
assim podemos a dar início a discussão sobre as
diferentes teologias feministas, estas nem sempre
estão diretamente relacionados a produções
acadêmicas, e sim inseridas na vida cotidiana.

210
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Assim a teologia feminista atua de diversas


formas, em alguns casos, resgatando mulheres
presentes na bíblia, debatendo os conceitos de Deus
e o abandono das Deusas pelo monoteísmo, em outros
casos, há a desconstrução da teologia patriarcal por
meio inúmeros temas.
Pautadas na busca do autoconhecimento,
crescimento profissional e intelectual, a teologia
feminista quer dar uma nova interpretação para a
participação das mulheres e os espaços que estas
ocupam dentro e fora das religiões, desenvolvendo
uma teologia que libertasse as mulheres. A teologia
feminista não se restringe apenas ao catolicismo,
existem diversas produções de extrema relevância no
protestantismo, possibilitando o destaque a presença
das mulheres nos tempos bíblicos, desde o antigo
testamento até Jesus. Nesse campo protestante,
podemos destacar Elza Tamez.
Em “The root of all evil: an exposition of
prejudice, fundamentalism and gender imbalance” as
autoras afirmam que o mundo está sendo consumido
pelos princípios fundamentalistas presentes nas
maiores tradições religiosas, e que as sociedades
aliadas a esses princípios endossaram essas limitações
ao gênero feminino, retardando a evolução dessas
mulheres e em alguns casos impedindo que ela ocorra.
Há assim, um efeito circular que cria essa
fragilidade entre as mulheres, o que as leva em peso
para o ambiente religioso, dentro das igrejas e
templos em busca de um conforto promovido pela
celebração religiosa. Mas muitas vezes, isso acaba por
reduzindo-as ao ambiente privado, reproduzindo um

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Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

modelo de dominação masculina. A não aceitação das


teólogas feministas dentro das instituições religiosas
impede a criação de uma alternativa para essas
mulheres.
A teologia feminista também busca dar ao
corpo um significado diferente do existente dentro do
âmbito religioso, transformando-o de um lugar de
pecado para uma expressão da vida. Assim,
empoderar mulheres nesse aspecto é de suma
importância, uma vez que, é através dele que elas são
capazes de reformular a teologia.
Nesse sentido, podemos destacar a existência
da rede “Católicas por El Derecho a Decidir” (CDD),
um grupo que atua em diversos países da América
latina e nos EUA. A CDD caracteriza-se como uma
organização não governamental (ONG) de cunho
político composto por religiosas católicas, essa ONG
promove questionamentos e debates sobre leis
eclesiásticas, especialmente as que se relacionam aos
direitos reprodutivos, aborto e a autonomia do corpo
feminino.
No Brasil, as primeiras atividades ocorrem em
1993, e nesse momento suas principais pautas são a
luta pela igualdade de gênero, cidadania plena para
mulheres na sociedade e nos ambientes eclesiásticos
e a promoção dos direitos das mulheres,
essencialmente dentro da Igreja Católica, enfatizando
a capacidade decisória feminina e o direito a
autonomia.
Os objetivos da CCD-Brasil podem ser
resumidos da seguinte forma, desconstruir a cultura
opressiva da tradição cristã com relação a sexualidade

212
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

e a reprodução por meio da construção de um diálogo


ético-teológico pelo direito de decidir e levar esse
dialogo a sociedade e a aprovação de leis e políticas
públicas nesse sentido.
Ser pró escolha é crer que as mulheres são
capazes de tomarem decisões necessárias sobre sua
vida reprodutiva de forma responsável, sem a
opressão causada pela religião, fornecendo a elas
condições legais e seguras para que tenham esse
controle. Por meio da educação sexual para meninas,
sobre métodos contraceptivos, e apresentar-lhes as
dimensões políticas, para que possam contribuir com
a militância110.
Movimentações nesse sentido, em especial pela
descriminalização do aborto são de suma importância
uma vez que pesquisas demonstram que
aproximadamente 41% dos 55,7 milhões de abortos
feitos por ano ao redor do mundo, são realizados de
forma insegura. Sendo que 97% desses casos ocorrem
em países subdesenvolvidos ou com leis restritivas
com relação a isso.
No que diz respeito ao Brasil, menos de 1% dos
abortos realizados no país durante 2015 foi de forma
legal, isso significa que de cerca das 416 mil
brasileiras que interromperam a gravidez, apenas
1.667 foram legais e seguros. Tomando como exemplo
o Rio de Janeiro, as mulheres que realizaram esse
110
Campanaro, Priscila Kikuchi. "Teologia Feminista e Católicas
pelo Direito de Decidir: caminhos e desafios teórico-práticos
de uma produção e atuação teológica- militante pela vida das
mulheres". 2015. Revista Coisas do Gênero, v. 1, n. 2. p. 219 -
223

213
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

procedimento são em grande sua maioria é negra ou


parda e possuem entre 22 e 25 anos e já tem filhos.
Ao fazerem esses procedimentos caseiros ou
em clinicas clandestinas, essas mulheres se expõem
riscos não só de lesões e morte, mas também a uma
pena de três anos de reclusão. Por conta disso, muitas
mulheres temem buscar atendimento médico em caso
de complicações, de acordo com a defensoria pública
paulista, aproximadamente 70% das denúncias em
casos de auto aborto são feitas por profissionais da
saúde111.
Outro tema a ser debatido, é a questão dos
abusos sofridos dentro do ambiente da igreja. Existe
uma extensa pesquisa sobre as transgressões sexuais
cometidas por religiosos nos E.U.A, em especial nas
igrejas cristãs, assim, constatou-se que cerca de
30,6% dos 1.196 representantes religiosos de diversos
segmentos afirmaram ter tido alguma espécie de
contato sexual com um ou mais membros de sua
igreja, onde a 12,7% admitiram ter mantido relações
sexuais com alguma fiel.
Assim sendo, a teologia feminista também
trabalha nesse âmbito de dar voz e trazer à tona esses
abusos, uma vez que, como já mencionado as
teologias clássicas produzidas por homens, silenciam
os debates sobre o assunto. Entramos novamente na
questão da dominação dos corpos por homens e pela
igreja, a impunidade demonstra que os corpos
111
Diniz, D.; Medeiros, M.; Madeiro, A. "National Abortion Survey
2016". Ciências & Saúde Coletiva 2017; 22:653-60.

214
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

femininos possuem menos valor que os corpos


masculinos.112
Além disso, é imprescindível destacar que a
teologia feminista busca restaurar o símbolo feminino
dentro das interpretações da cristandade. Diante
disso, é necessário que as feministas trabalhem para
que as religiões superem o medo que cerca a possível
existência de uma Deusa, uma vez que o uso do termo
Deus/Deusa não representa uma ameaça ao
monoteísmo judaico-cristão, de tal forma que ambos
possam representar o divino de forma equivalente113.
No islã, o direito das mulheres muçulmanas
também tem servido como fonte de produções
acadêmicas nesse sentido. Após o 11 de setembro,
essas produções adquiriram maior eloquência. Esses
estudos possuem grande importância para
desmistificar a ideia pré-concebida de que o
Islamismo é oposto as ideias dos movimentos
feministas.
O uso político do véu se expandiu, indo além
dos choques de cultura entre o mundo Ocidental e o
Islão. Os estudos relacionados às mulheres nessa parte
do mundo foram inicialmente realizados de forma
112
JURKEWICZ, R. S. “Violência clerical: Abuso sexual de
mulheres por padres no Brasil”. Tese (Doutorado em Ciências
da Religião) Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP), São Paulo. 2006. p. 93 - 95
113
Viero, Josefina G. "Inculturação da Fé no Contexto do
Feminismo". Tese de Doutorado (em Teologia) – Dpto. de
Teologia – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC RJ). 2005. p. 148 - 155.

215
Ana Helena Ithamar Passos
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Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

estruturalista, e fortemente influenciados pelas


dicotomias de público/privado, natureza/cultura.
Assim como no ocidente, as primeiras
produções no Islão descrevem a discrepância do
tratamento dados as mulheres e aos homens, com
ênfase na sexualidade. Entretanto essa ênfase poderia
representar alguns perigos, no sentido de fortalecer
uma imagem já existente sobre as questões
femininas.
Essa percepção leva a um refinamento das
teorias já existentes, abrindo espaços e incitando
reflexões mais diversas no que diz respeito a condição
de instabilidade social dessas mulheres no Médio
Oriente, que muitas vezes se veem divididas entre
suas origens e costumes e os de seus maridos.
Nos anos noventa, temos o que será nomeado
como o feminismo islâmico, sendo presente
especialmente no Irã, que conta com uma sociedade
política e cultural peculiar, onde as mulheres têm no
ijitihad e na busca por acesso a ambientes jurídicos
um caminho mais amplo para lutar por sua
emancipação.
Atualmente, o uso do véu e de outras posturas
muçulmanas vai além, uma vez que temos uma
notável emergência de novos movimentos feministas,
essencialmente no Cairo e que tem sua relevância é
negligenciada. Podemos afirmar que algumas
mulheres, ao aderirem à essas práticas estão

216
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

procurando apenas novos meios de se tornarem


pessoas melhores114.

CONCLUSÃO

Esse projeto objetivou incitar o exercício da


reflexão sobre as questões de gênero dentro da
estrutura clerical e os papeis designados as mulheres
dentro dessas estruturas e ao longo da história.
A transição do politeísmo para o monoteísmo
em sociedades patriarcais levou a exclusão das
deusas, o temor de uma divindade feminina e a
criação de uma imagem de Deus unicamente
masculina e androcêntrica, posteriormente isso
transformaria as práticas religiosas num instrumento
de perpetuação das desigualdades entre homens e
mulheres.
A dicotomia entre bem e mal, santo e
pecaminoso, criada a respeito das mulheres
representada inicialmente pela Virgem Maria e Eva, é
suma importância para consolidação das disparidades
de tratamento. Destarte, buscamos desconstruir essa
ideia limitada e dualista a respeito do que a mulher
pode representar dentro das religiões,
essencialmente do papel designado a essas duas
figuras.
O emprego dos símbolos desenvolvidos nas
bases patriarcais e a forma com a qual estes são
114
SILVA, Maria Cardeira da. "As mulheres, os outros e as
mulheres dos outros: feminismo, academia e Islão". Cadernos
Pagu (30), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-
Pagu/Unicamp, 2008, pp.137-159

217
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

instrumentos para perpetuar a condição de submissão


imposta às mulheres e a cultura de obediência criada
ao redor disso e como esse conjunto torna propicio o
controle e o cerceamento da liberdade dos corpos
femininos.
A questão dos abusos sexuais cometidos por
clérigos também foi tema discutido nessa pesquisa,
números demonstraram que a incidência de
transgressões sexuais cometidas por representantes
clericais é recorrente e que em geral, estas ocorrem
contra crianças e mulheres, em especial as freiras que
ficam condicionadas a uma situação de
vulnerabilidade.
Relatamos a busca pela transformação desses
alicerces pautados no machismo. A insatisfação com
as lacunas teóricas das teologias tradicionais e
influenciados surgimento dos movimentos feministas,
há o surgimento da teologia feminista, que como
exposto ao longo desse trabalho visa desafiar o
sistema imposto.
Atuando de diversas formas, por meio de ações
pastorais, produção acadêmica e movimentações
políticas, a teologia feminista contribuiu em diversos
aspectos para que aos poucos, as mulheres tomassem
consciência da disparidade entre os gêneros e
buscassem novos espaços tanto dentro do ambiente
eclesiástico quanto na sociedade de forma geral.
Na América Latina, discorremos sobre a
presença da ONG “Católicas pelo Direito de Decidir”,
que trata essencialmente da luta pela
descriminalização do aborto e o acesso gratuito
através do sistema de saúde pública ao procedimento.

218
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Expusemos a importância dessas


reivindicações, uma vez que dados demonstram a
situação alarmante das mulheres com relação ao
aborto, em especial nos países subdesenvolvidos,
onde as leis costumam ser mais rígidas, obrigando que
mulheres optem por métodos contraceptivos caseiros
e clandestinos, expondo suas vidas ao risco de morte
ou até mesmo a prisão.
Dessa forma, podemos concluir que apesar dos
dogmas, as diversas transformações sociais e a luta
das mulheres por direitos vêm aos poucos
desconstruindo o machismo enraizado nas instituições
clericais e nos estudos teológicos a elas relacionados.
Entretanto, é importante salientar que esses são
apenas os primeiros passos em busca de uma
sociedade mais igualitária.
Assim sendo, devemos seguir produzindo
documentos, pesquisas, movimentos, ações sociais, e
teologia para ampliarmos cada vez mais as conquistas
dos direitos das mulheres, pela distribuição igualitária
de poder, colocando um fim as desigualdades de
gênero tanto no ambiente eclesiástico quanto na
sociedade de forma geral.

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222
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

VIOLÊNCIA E GÊNERO: POLÍTICAS DE


PROTEÇÃO A MULHER IDOSA NO BRASIL

Roseli Albuquerque da Silva

ENVELHECIMENTO DA MULHER

O debate sobre o envelhecimento no Brasil e no


mundo vem ganhando cada vez mais destaque, o
envelhecimento populacional está cada vez mais
relacionado ao aumento da expectativa de vida,
melhoria nas condições de saúde, aumento da taxa de
fecundidade, queda no número de filhos entre outros.
Esse fenômeno é mundial, não só no Brasil.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia (IBGE) 2017, a população brasileira
aumentou o número de idosos de 4,8 milhões em 2012
para aproximadamente 3,2 milhões em 2017. Estudos
sobre envelhecimento vem apontando que a mulher
tem mais tendência a viver sozinhas na terceira idade.
Em quase todos os países o número de mulheres viúvas
e muito maior que viúvos. Esse perfil muda nos países
mais pobres, sempre o idoso tem algum familiar
residindo com ele. Esses dados levam em
consideração o número de filhos, quanto mais filhos a
mulher tiver, maior a possibilidade de ela estar com
alguém quando idosa.
A partir da Constituição de 1988 (CF/88) o
Brasil passa a considerar os Direitos Sociais do
brasileiro, que são a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à

223
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

maternidade e à infância e a assistência aos


desamparados.
A CF/88 tratou os direitos sociais ampliando o
acesso a população em âmbito geral, considerando a
família, a sociedade e o Estado, dentro deste tripé a
proteção social a população mais vulnerável e
dependente entra na agenda nacional a partir da
Constituição Federal.
O marco dessa proteção vem com a
promulgação do Estatuto do Idoso, Lei n. 10.741, de
1º de outubro de 2003, os direitos dos idosos passaram
a ser defendidos e garantidos a partir da lei. Com
idade igual ou superior a 60 anos, o Estatuto assegura
direito fundamentais sobre as necessidades da
população idosa do Brasil.
A CF/88 garantiu maior segurança e proteção
social a população idosa, contribuindo para uma vida
mais digna, saudável e com possiblidades de um
envelhecimento digno.

Cronologia de uma conquista

Não podemos pensar nos avanços do Estatuto


do Idoso no Brasil, sem antes apresentar uma breve
cronologia sobre a construção de uma agenda mundial
sobre o envelhecimento. Para apresentação desse
processo histórico teremos como referência o Manual
de Enfrentamento à Violência contra a Pessoa
Idosa. É possível prevenir. É necessário superar
(2014).
A questão da velhice passou a fazer parte das
pautas políticas dos países muito

224
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

recentemente. A Organização das Nações


Unidades a colocou na agenda a partir de 1956,
sem lhe dar grande atenção. E em 1982
promoveu a “I Assembleia Mundial sobre
Envelhecimento” na cidade de Viena. Foi um
fórum global intergovernamental que marcou a
discussão internacional de políticas públicas a
favor da população idosa. (Manual do
enfrentamento à violência contra pessoa idosa,
2014, pág.9)

Na 1 Assembleia Mundial (1982) algumas


definições foram realizadas, entre elas a idade e um
Plano de ação:

Idade da pessoa idosa em países 60


em desenvolvimento
Idade da pessoa idosa em países 65
desenvolvidos

O Plano de ação definiu a garantia de segurança


econômica e social, oportunidades de integração dos
idosos.
Destacaremos algumas iniciativas da ONU sobre
o envelhecimento humano:
1992 - foi aprovada a “Proclamação sobre o
Envelhecimento”.
1999 - foi escolhido como Ano Internacional dos
Idosos com o slogan “Uma sociedade para todas as
idades” (invocou a interdependência do ciclo de vida
e focalizou o envelhecimento saudável em quatro
dimensões: situação diferenciada da população idosa;
seu desenvolvimento individual continuado; relações

225
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

multigeracionais e inter-relação entre


envelhecimento e desenvolvimento social).
2002 - II Assembleia Mundial sobre
Envelhecimento realizado em Madrid com
participação de mais de 700 instituições não
governamentais com presença de 160 países.
Essa Assembleia aprovou documentos
importantes como:
Declaração Política e um Plano de Ação
Internacional — que obrigavam os governos a
agir face ao desafio desse fenômeno
sociodemográfico. Tais documentos
apresentaram um conjunto de recomendações
concretas em três esferas prioritárias:
engajamento das pessoas idosas no
desenvolvimento; promoção de sua saúde e
bem-estar; e garantia de ambiente propício e
favorável para envelhecer. (Manual do
enfrentamento a violência contra pessoa idosa,
2014, pág.10).

Pensando no envelhecimento populacional não


só como uma questão de segurança social mais
também de responsabilidade do Estado E
considerando a desconstrução de estereótipos, o
envelhecimento deve ser abordado de forma ativa,
promover estilos de vida saudáveis, acesso a
programas sociais e proteção social, acesso educação,
trabalho, habitação, lazer, solidariedade
intergeracional, cuidados especiais com idosos
dependentes por suas condições físicas, social e
mental. Destaque para o chamado “Plano de Madrid”
passou a orientar políticas e programas dirigidos à

226
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

população idosa em todo o mundo, consolidando o


conceito de “Uma sociedade para todas as idades”.
(Manual de enfrentamento a violência contra pessoa
idosa, 2014, pág.11).
O Brasil começa a pensar na população idosa a
partir de reuniões e seminários realizados na América
Latina e Caribe em razão das pressões internacionais
e participação da sociedade civil a partir do Plano de
Madrid (2002). Merece destacar que o Brasil já nos
anos 1960 começam iniciativas de enfretamento a
questão e envelhecimento no Brasil como:
1961 - A criação da Sociedade Brasileira de
Geriatria e Gerontologia.
1963 - O SESC tinha atividades destinadas a
diminuir o desamparo e a solidão dos comerciários
aposentados.
1970 - O Governo Federal criou dois tipos de
benefícios não contributivos que privilegiaram a
população idosa: aposentadoria para trabalhadores
rurais e renda vitalícia para necessitados urbanos e
rurais que não apresentassem condições de
subsistência com mais de 70 (sendo extinto em 1988
com a CF/88)
1974 - Foi criado o Ministério da Previdência e
Assistência Social (MPAS).
1977 - Foi instituído o Sistema Nacional de
Previdência e Assistência Social (SINPAS).
1976 - O Ministério da Previdência e Assistência
Social elaborou um documento denominado Política
Nacional para a Terceira Idade que traçava diretrizes
para uma política social voltada à velhice.

227
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

1980 - As políticas destinadas à população idosa


no Brasil se centraram na garantia de renda e de
assistência social para as pessoas em risco social.
1988 – A Constituição Federal incluiu a pessoa
idosa como responsabilidade da família, sociedade e
Estado e incluiu na seguridade social ampliando a
proteção social a toda a população idosa.
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar
e educar os filhos menores, e os filhos maiores
têm o dever de ajudar e amparar os pais na
velhice, carência ou enfermidade. (CF/88)
Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm
o dever de amparar as pessoas idosas,
assegurando sua participação na comunidade,
defendendo sua dignidade e bem-estar e
garantindo-lhes o direito à vida. (CF/88).
[...]Em 1990, foi formulada a Lei Orgânica da
Assistência Social (Lei nº 8.742) (LOAS) que no
seu Artigo 2 passou a garantir “um salário
mínimo de benefício mensal ao idoso que
comprove não possuir meios de prover a própria
manutenção ou de tê-la provida por sua
família”. Denominado “Benefício de Prestação
Continuada” ele se destina aos que têm 65 anos
ou mais. (Manual de enfrentamento à violência
contra a pessoa idosa, 2014, pág. 10)

1993 a Assistência Social aprova a LOAS - Lei


Orgânica da Assistência Social que estabeleceu
programas e projetos voltados para os idosos.
1994 – Aprovada a Lei nº 8.842/94 que
estabeleceu a Política Nacional do Idoso (PNI).
2003 - Estatuto do Idoso, Lei n. 10.741.

228
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

A grande conquista da Lei Orgânica da


Assistencial Social (1993) foi a garantia de uma renda
para os idosos que necessitam, bem como construção
de serviços especializados a partir da Política Nacional
da Assistência Social (2004). Essa renda é conhecida
como Benefício da Prestação Continuada (BPC) não é
universal, mas de quem dela mais necessitar.
É um direito constitucional regulamentado pela
Loas no valor de um salário mínimo para idosos
com 65 anos ou mais e pessoas com deficiência
que comprovem renda familiar inferior a um
quarto do salário mínimo, ou seja, sem
condições de prover sua subsistência. Não se
trata de uma aposentadoria ou pensão, mas de
um benefício assistencial, cujo beneficiário não
precisa ter contribuído anteriormente para a
Previdência Social. Em mais de 70% dos casos
direcionados ao sustento da família,
representa, para a população idosa, o principal
programa de prestação social operado por meio
de transferência de renda. (Politicas Publicas
da pessoa idosa, marcos legais e regulatórios)

No Brasil os idosos são considerados mulheres e


homens a partir de 60 anos estabelecidos pela PNI e
pelo Estatuto do Idoso em todo o território nacional.
Estudos tem apresentado um forte crescimento da
população idosa no Brasil.
Uma nota técnica elaborada pelo IPEA (2018) a
partir dos dados do IBGE sobre envelhecimento no
Brasil, destaca os grupos etários entre 2018 e 2060. A
população idosa em 2018 representava
aproximadamente 13,4% e esse número para 2060

229
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

deverá aumentar para 32,2%. O mesmo estudo


destaque uma redução na faixa etária entre 0 a 14
anos e 15 a 65 anos. Esses dados apontam um
crescimento maior entre 65 anos a 90 anos ou mais.
Esses dados colocam o Brasil em alerta para a questão
do idoso e seus direitos.
O gráfico abaixo apresenta exatamente o perfil
da população idosa no Brasil em 2017. E importante
destacar que as mulheres em todas as faixas etárias a
partir dos 25 os começam a mudar a pirâmide e passar
a frente dos homens em tempo de vida.

230
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

VIOLÊNCIA E GÊNERO: O QUE ENCONTRAMOS

Estudos do PNUD categoria Direitos Humanos


(2016) destacam a importância da inclusão da mulher
idosa em Políticas contra violência de gênero. O
estudo analisa que a faixa etária é um indicador para
observamos as Políticas de atendimento a mulheres
vítimas de violência.
Quando analisamos estudos sobre
violência de gênero, encontramos publicações que
vão destacar as mulheres entre a faixa etária mais
jovem. A violência contra mulher no Brasil traz uma
marca histórica em razão de sua formação pautada
nas relações de poder dos homens sobre a mulher,
uma sociedade marcada pelo controle financeiro,
doméstico e familiar.
A mulher idosa embora encontre todo um
aparato nas Políticas de Proteção ao idoso, ela ainda
está sujeita ao esquecimento, e por várias razões,
muitas vezes não está mais no mercado e trabalho,
assume responsabilidade econômica da família, não
tem relações sociais que possibilitem uma proteção ou
acompanhamento próximo, está sujeita alguma
enfermidade, e as responsabilidades dos afazeres
domésticos. Esse isolamento da mulher pode ser
compreendido como um dos fatores de risco para
violência contra a mulher idosa.
Compreendendo alguns conceitos sobre a
violência contra o idoso:
a) Estrutural: expressa nas desigualdades
sociais naturalizadas nas vivências de pobreza,
miséria e discriminação;

231
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

b) b) Interpessoal: atualizada nas relações


sociais cotidianas e intergeracionais;
c) c) Institucional: reproduzida na aplicação ou
omissão na gestão das políticas sociais, dos
serviços de assistência pública e privada, nas
relações assimétricas de poder, de domínio, de
menosprezo e de discriminação.
Internacionalmente, foram estabelecidas
algumas tipologias padroniza. (Mapa da
violência contra a pessoa idosa no Distrito
Federal, 2017, pág.10)
Tipologias padronizadas para designar as
formas de violências praticadas contra a população
idosa:
Abuso físico, violência física ou maus-tratos
físicos – refere-se ao uso da força física para
compelir os idosos a fazerem o que não
desejam, para feri-los, provocar-lhes dor,
incapacidade ou morte.
Abuso psicológico, violência psicológica ou
maus-tratos psicológicos – corresponde a
agressões verbais ou gestuais com o
objetivo de aterrorizar os idosos, humilhá-
los, restringir sua liberdade ou isolá-los do
convívio social.
Abuso sexual e violência sexual – referida ao
ato ou ao jogo sexual de caráter homo ou
heterorrelacional, utilizando pessoas idosas,
que visam a obter excitação, relação sexual ou
práticas eróticas por meio de aliciamento,
violência física ou ameaças.
Abuso financeiro e econômico – consiste na
exploração imprópria ou ilegal dos idosos ou ao

232
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

uso não consentido por eles de seus recursos


financeiros e patrimoniais.
Abandono – manifestado na ausência ou
deserção dos responsáveis governamentais,
institucionais ou familiares de prestarem
socorro a uma pessoa idosa que necessite de
proteção.
Negligência – diz respeito à recusa ou omissão
de cuidados devidos e necessários aos idosos,
por parte dos responsáveis familiares ou
institucionais.
Autonegligência – relativo à conduta da pessoa
idosa que ameaça sua própria saúde ou
segurança, pela recusa de prover os cuidados
necessários a si mesma. (Mapa da violência
contra a pessoa idosa no Distrito Federal, 2017,
pág.10).

A violência contra o idoso tem merecido


estudos de diversos países e chamado atenção da
comunidade acadêmica nas diversas áreas do saber,
seja na área das ciências humanas sociais como na
área da saúde.
Para o pesquisador Araneda da Universidad del
Bio-Bio no Chile, a violência contra os idosos é uma
violação aos direitos humanos:
A violência contra pessoas idosas é uma
violação aos direitos humanos e é uma das
causas mais importantes de lesões, doenças,
perda de produtividade, isolamento e
desesperança. Os direitos, concomitantes com
os deveres pessoais e sociais que temos, não
são distintos nos ciclos de nossas vidas. A
ênfase na proteção aos DIREITOS HUMANOS das

233
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

pessoas idosas deve superar as desvantagens


existentes e evitar que perpetuem as
discriminações e as situações de inferioridade
dadas socialmente e culturalmente aos idosos.
(Caderno de Violência contra a pessoa idosa,
CODEPPS. São Paulo: SMS, 2007).

O mesmo autor chama a atenção para romper


o pacto do silencio, estimulando as pessoas a
pensarem “Meu Mundo ... Seu mundo ... Nosso mundo
... sem violência a pessoa idosa”. Romper com a
violência a pessoa idosa só será possível através de
uma rede de atenção e multiprofissional,
interdisciplinar onde as áreas do saber interligadas
possam criar instrumentais de atendimento, rede de
proteção e canais de denúncias além das delegacias
especializadas para o idoso.
Essa preocupação não é nova, já em 2006 foi
criado o Portal Terceira Idade, sua campanha foi luta
contra a violência à pessoa idosa no Brasil. Sendo
incluída como representante oficial do Brasil da
Organização Internacional para Prevenção e Abusos
contra idosos – International Network for the
Prevention of Elder Abuse (INPEA). Essa instituição é
reconhecida mundialmente na defesa dos direitos da
pessoa idosa. Juntas o INPEA e a ONU declararam 15
de junho como o Dia Mundial de conscientização da
Violência á Pessoa Idosa.

234
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Políticas de proteção a mulher idosa no Brasil:


Estatuto do Idoso, Política Nacional do Idoso.

Consideramos como um direito do idoso,


responsabilidade da família e do Estado assegurar
dignidade, bem-estar e direito a viver, conforme
prevê os princípios e diretrizes da Política Nacional do
Idoso e o Estatuto do Idoso,
SEÇÃO I Dos Princípios Artigo 3° - A política
nacional do idoso reger-se-á pelos seguintes
princípios: I- a família, a sociedade e o estado
têm o dever de assegurar ao idoso todos os
direitos da cidadania, garantindo sua
participação na comunidade, defendendo sua
dignidade, bem-estar e o direito à vida;
II- o processo de envelhecimento diz respeito à
sociedade em geral, devendo ser objeto de
conhecimento e informação para todos;
III - o idoso não deve sofrer discriminação de
qualquer natureza; IV - o idoso deve ser o
principal agente e o destinatário das
transformações a serem efetivadas através
desta política;
V - as diferenças econômicas, sociais, regionais
e, particularmente, as contradições entre o
meio rural e o urbano do Brasil deverão ser
observadas pelos poderes públicos e pela
sociedade em geral, na aplicação desta Lei.
SEÇÃO II Das Diretrizes Artigo 4º - Constituem
diretrizes da política nacional do idoso:
I - viabilização de formas alternativas de
participação, ocupação e convívio do idoso,
que proporcionem sua integração às demais
gerações;

235
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

II - participação do idoso, através de suas


organizações representativas, na formulação,
implementação e 6 7 avaliação das políticas,
planos, programas e projetos a serem
desenvolvidos;
III - priorização do atendimento ao idoso
através de suas próprias famílias, em
detrimento do atendimento asilar, à exceção
dos idosos que não possuam condições que
garantam sua própria sobrevivência;
IV - descentralização político-administrativa;
V - capacitação e reciclagem dos recursos
humanos nas áreas de geriatria e gerontologia
e na prestação de serviços;
VI - implementação de sistema de informações
que permita a divulgação da política, dos
serviços oferecidos, dos planos, programas e
projetos em cada nível de governo;
VII - estabelecimento de mecanismos que
favoreçam a divulgação de informações de
caráter educativo sobre os aspectos
biopsicossociais do envelhecimento;
VIII - priorização do atendimento ao idoso em
órgãos públicos e privados prestadores de
serviços, quando desabrigados e sem família;
IX - apoio a estudos e pesquisas sobre as
questões relativas ao envelhecimento.
Parágrafo único - É vedada a permanência de
portadores de doenças que necessitem de
assistência médica ou de enfermagem
permanente em instituições asilares de caráter
social.

O Estatuto do Idoso assegura direitos a pessoas


maiores de 60 anos considerado sua condição e

236
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

punindo qualquer ato de violação dos direitos


garantidos em lei e apresenta 118 artigos; o primeiro
deles garante atendimento especial ao idoso em
qualquer espaço público ou privado, considerando as
individualidade e necessidades. Abaixo alguns direitos
do Estatuto do Idoso:
- Atendimento preferencial, imediato e
individualizado junto aos órgãos públicos e privados
prestadores de serviços à população;
-Fornecimento gratuito de medicamentos pelo
Poder Público, acompanhamento na área da saúde e
reabilitação;
-Valores diferenciados em razão da idade;
-Inclusão do idoso em cursos especiais, como
técnicas de comunicação, computação e demais
avanços tecnológicos, para sua integração à vida
moderna;
-Descontos de 50% em atividades culturais, de
lazer e esporte;
-Proibição de discriminação do idoso em
qualquer trabalho ou emprego, inclusive para
concursos;
-Estímulo à contratação de idosos por empresas
privadas;
-Reajuste dos benefícios da aposentadoria na
mesma data do reajuste do salário mínimo;
-Concessão de um salário mínimo mensal para
os idosos acima de 65 anos que não possuam meios
para prover sua subsistência;
-Prioridade na aquisição de imóvel para
moradia própria, em programas habitacionais
públicos;

237
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

-Gratuidade nos transportes coletivos públicos


aos maiores de 65 anos, com reserva de 10% dos
assentos para os idosos; -Reserva de 5% das vagas
nos estacionamentos públicos e privados.
O Estatuto do idoso tem em seus artigos
garantias de proteção a pessoa idosa no âmbito da
violência e discriminação impedindo que esse idoso
fique exposto a qualquer forma de exposição ou
humilhação como: impedir o idoso de entrar em redes
bancarias, ausência de assistência caso o idoso
necessite, abandono em hospitais, entidades de
atendimento ao idoso, expor o idoso a situações
desumanas, degradantes, trabalho excessivo ou
insalubre, abuso econômico, privação de seus direitos
financeiros entre outros.
apropriar-se ou desviar bens, proventos,
pensão ou qualquer outro tipo de rendimento
do idoso;
- induzir pessoa idosa sem discernimento de
seus atos a outorgar procuração para fins de
administração de bens ou deles dispor
livremente;
- coagir, de qualquer modo, o idoso a doar,
contratar, testar ou outorgar procuração.

A Política Nacional do Idoso e o Estatuto do


Idoso é um marco legal no âmbito dos direitos,
estudos vem demonstrando um novo perfil da
população idosa brasileira. A feminização do idoso
aparece em estudos apontados pelo IBGE a partir
2010.
A feminização da mulher idosa no Brasil
segundo dados do Guia de Políticas, Programa e

238
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

Projetos do Governo Federal para a População Idosa


tem merecido destaque (...) em 2010 dos mais de 20
milhões de idosos 55,5% eram do sexo feminino. Como
consequência, quanto “mais velho” for o contingente
estudado maior a proporção de mulheres. (...). (2015,
pág.14)
O Plano Nacional de Políticas para mulheres
(PNPM) incluiu dados específicos sobre o
enfrentamento das desigualdades geracionais em
especial a mulher, destacando seus direitos e
oportunidades. A política para mulheres vem sendo
inseridas na agenda nacional a partir de muita
organização social e pressão do movimento de
mulheres e legislação prevista para proteção das
mulheres vítimas de violência, neste caso a Lei Maria
da Penha (Lei n° 11.340/2006).
A criação da Secretaria Especial para mulheres
(SPM) considerou que as ações voltadas para as
mulheres devem considerar sua diversidade,
especificidade. A transversalidade de geração é
considerada como o principal instrumento de combate
a violência contra a mulher. No ano de 2012 foi criado
ações da SPM para acompanhar o a transversalidade
com recorte geracional e acompanhar casos de
violência contra a mulher.
O disque 180 – serviço especializado em
receber denúncias e encaminhamento de caso de
violência contra a mulher recebeu mais de 10 mil
casos de violência contra mulheres acima de 60 anos,
segundo O Guia De Políticas, Programa E Projetos Do
Goveno Federal Para A População Idosa (2015).

239
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

O estudo destaca uma média de


aproximadamente 41 casos por dia de violência contra
a mulher idosa, o que representa um aumento
significativo de idosas que sofrem violência nos
últimos anos. Em conjunto com as Secretarias do
governo Federal, Estadual e Municipal a SPM ampliou
ações de acompanhamento, acesso, cultura e inclusão
em vários espaços, possibilitando assim melhor
acompanhamento das pessoas idosas e facilitando seu
acesso a outros espaços, esse programa foi conhecido
como Mulheres mil.
O programa estava inserido no Plano Brasil sem
miséria que tinha como objetivo a inclusão social de
mulheres em situação de vulnerabilidade, foram
ações em conjunto com várias políticas públicas,
buscando promover equidade de gênero e reduzir os
índices de violência entre as mulheres.
Um destaque considerado nesse programa é a
feminização da contaminação pelo HIV/AIDS, com um
aumento considerável entre mulheres acima de 50
anos. O Guia destaca a importância da 3ª Conferência
e suas ações no âmbito da proteção e programas e
projetos direcionados a mulher idosa.
As resoluções da 3a Conferência Nacional de
Políticas para as Mulheres, realizada em
dezembro de 2011, ressaltaram a importância
de contemplar as especificidades das mulheres
idosas. Entre os temas prioritários, incluem-se
a implementação e ampliação de políticas e
equipamentos sociais voltados à população
idosa; a implementação da lei que prevê
notificação compulsória de casos de violência
contra mulheres idosas (Lei n° 12.461/2011); e

240
Mulheres e Feminismo(s): narrativas contemporâneas

o fortalecimento da Política Nacional de


Atenção Integral à Saúde da Mulher,
considerando-se as especificidades destas
mulheres no climatério. Ressalta-se que a
promoção e efetivação dos direitos delas foram
incluídas nos editais de apoio a projetos em
conformidade com as diretrizes contidas no
Plano Nacional de Políticas para Mulheres e
estão entre às prioridades da atual gestão da
Secretaria de Políticas para Mulheres.
Observamos que várias ações e mobilizações
estão sendo feita com a população idosa. O que
estamos vivendo no momento é o desmonte das
políticas sociais, dificultando e alterando os caminhos
já trilhados por essas mulheres.
A trajetória da construção de Políticas de
proteção da mulher idosa foi apresentada nesse artigo
com importantes avanços e um olhar para a questão
do idoso, no caso da mulher idosa há uma
preocupação. A destruição dos serviços de
atendimento oferecidos pelos espaços públicos
ofertados pelas três esferas governamentais (federal,
estadual e municipal) estão sofrendo um grande corte
no orçamento.
Podemos observar avanços nas Políticas de
proteção a pessoa idosa, elaboração de programas e
projetos nos últimos anos, e hoje, observamos um
severo corte nessas conquistas.
A reforma da previdência, a redução do valor
do BPC, a Ementa constitucional 55 que reduz em 20
anos os gastos com o tripé da Assistência Social
(saúde, previdência social e assistência social) são
exemplos reais de uma destruição de proteção a

241
Ana Helena Ithamar Passos
Leonice Domingos dos Santos Cintra
Yuri Miguel Macedo
(Orgs.)

pessoa idosa. Tempos estranhos em um país


envelhecendo.

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