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CONSELHO LATINO-AMERICANO DE IGREJAS

SECRETARIA REGIONAL PARA O BRASIL

DOCUMENTO FINAL
CONSULTA TEOLÓGICA “O DIREITO À VIDA PLENA”
Contribuição das Igrejas do Brasil para a
Consulta Teológica Continental sobre a Graça de Deus,
durante a 5ª Assembléia Geral do CLAI,
a ser realizada na cidade de Buenos Aires, Argentina,
de 19 a 25 de fevereiro de 2007.

Londrina, 25 de outubro de 2006

A GRAÇA DE DEUS NOS JUSTIFICA, SEU ESPÍRITO NOS LIBERTA


5ª Assembléia Geral do CLAI – Buenos Aires – 19 a 25 de fevereiro de 2007
Documento Final CONSULTA TEOLÓGICA “O DIREITO À VIDA PLENA” outubro 2006

ÍNDICE

Introdução _______________________________________________________ 3

1. A Vida em meio a contradições ________________________________ 5

1.1 Um mundo de desigualdades e exclusão

1.2 Direitos Humanos no contexto Social, Político e Econômico

1.3 Direitos Ambientais no mundo neoliberal

1.4 A Igreja no mundo neoliberal

2. A Graça da Vida Plena _______________________________________ 11

2.1 Vida Plena

2.2 A Justificação pela Fé e o Direito à Vida Plena

2.3 A Paz e o Direito à Vida Plena

2.4 A Missão Profética e o Direito à Vida Plena

3. Livres para Agir______________________________________________ 15

3.1 Anunciar e promover um novo mundo

3.2 Propostas concretas: Direitos Humanos

3.3 Propostas concretas: Direitos Ambientais

Considerações Finais _____________________________________________ 19

Colaboradores

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INTRODUÇÃO

A 5ª Assembléia Geral do CLAI, a realizar-se nos dias 19 a 25 de fevereiro de 2007, em


Buenos Aires – Argentina terá o seguinte tema: "A GRAÇA DE DEUS NOS JUSTIFICA, SEU ESPÍRITO
NOS LIBERTA". Esse tema foi desenvolvido nas cinco regiões que compõem o CLAI. Cada região
se ocupou com um aspecto específico do tema, levando em conta sua realidade contextual.

À Região Brasil coube o sub-tema "O DIREITO À VIDA PLENA", que foi desdobrado em três
Fóruns Teológicos, com a participação de teólogos, estudantes de teologia e lideranças evangé-
licas, abordando aspectos próprios, a saber:

Ø Fórum de Londrina: "Direitos Políticos, Econômicos e Sociais"; realizado dias 5 e


6 de junho de 2006;

Ø Fórum de Recife: "Direitos Ambientais e Uso da Terra"; realizado dias 12 e 13 de


junho de 2006;

Ø Fórum de São Leopoldo: "Direitos Humanos - Justiça e Paz", realizado dias 28 e


29 de junho de 2006.

Uma comissão nomeada pelo Secretário Regional recebeu a tarefa de sistematizar os


resultados dos três Fóruns mencionados como contribuição ao processo de formulação do do-
cumento do Brasil a ser levado à apreciação da Consulta Teológica e Pré-Assembléia Regional
que aconteceu no mês de outubro em Londrina. A comissão orientou-se pelo método "Ver, Julgar
e Agir", e nessa perspectiva, agrupou o vasto e diversificado material oriundo dos três Fóruns,
sob os seguintes tópicos:

1. A Vida em meio a contradições


2. A Graça da Vida Plena
3. Livres para agir.

Posteriormente, a sistematização passou por uma revisão completa, trabalho de outra


equipe e sob supervisão direta do Secretário Regional, e assim se elaborou o Documento Sínte-
se dos Fóruns Teológicos.

O presente documento tem como base esse Documento Síntese dos Fóruns Teológicos
acima mencionados, com a contribuição dos grupos de trabalho reunidos na Consulta Teológica
Regional, realizada em Londrina dia 25 de outubro de 2006. Além disso, este documento rece-
beu a contribuição das Igrejas da Amazônia Brasileira, a partir de uma reunião acontecida em
Belém (PA) dia 15 de outubro, com a presença do Secretário Regional, da qual participaram lide-
ranças das Igrejas de Belém, membros e não membros do CLAI. Essa contribuição foi incorpo-
rada nas discussões durante a Consulta Teológica.

Assim, este documento reúne, dentro de suas limitações, o posicionamento e a reflexão


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de significativa parte das lideranças eclesiásticas brasileiras, especialmente das Igrejas Membros
do CLAI no Brasil e se constitui na contribuição brasileira para a Consulta Teológica Continental
que acontecerá paralelamente à 5ª Assembléia Geral do Conselho Latino-Americano de Igrejas
em fevereiro de 2007, na cidade de Buenos Aires.

Muitas pessoas estiveram envolvidas diretamente neste processo de preparação, desde


os Fóruns Teológicos, a elaboração do Documento Síntese, a Consulta Regional e a elaboração
deste documento final. A relação de cooperadores e cooperadoras de todo esse processo se en-
contra ao final do texto. A eles e a elas nossos mais sinceros agradecimentos.

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1. A VIDA EM MEIO A CONTRADIÇÕES

1.1 Um mundo de desigualdades e exclusão

1.1.1 O direito à Vida Plena exige olhar criticamente a realidade brasileira. Leva-nos
a ver um número cada vez maior de excluídos dos direitos fundamentais da pessoa humana e
ouvir o clamor por Vida Plena. Milhões de pessoas são colocadas à margem todos os dias, im-
possibilitadas de atenderem ao considerado mínimo para sua inclusão na sociedade.

1.1.2 Regiões inteiras do nosso planeta são deixadas de lado e não têm acesso aos
benefícios conquistados pela ciência e pela tecnologia que, em princípio, deveriam tornar a vida
mais humana através da partilha com todos. Bilhões não têm direito à Vida Plena.

1.1.3 O mercado globalizado tem sua lógica própria, dominando as relações em to-
dos os níveis, visando a maximização do lucro acima de tudo. O ser humano, a natureza e o Es-
tado são reféns do “deus-mercado”. Os pobres não interessam a esse “deus”, e assim são trata-
dos como se não existissem! Essa é a maior manifestação do diabólico em nosso tempo.

1.1.4 Por sua vez, o narcotráfico, o tráfico de armas e a violência do terrorismo são
razões apresentadas pelas grandes potências para justificar a intervenção militar e processos de
dominação sobre a população de vários países do terceiro mudo, inclusive a América Latina.

1.1.5 No tempo presente, a dignidade e integridade humanas se acham constante-


mente ameaçadas. Os esquemas de poder e dominação hoje são sutis. Eles estão ocultos, não
são facilmente reconhecidos, escondem-se por trás de grandes corporações, assim como de sis-
temas políticos e econômicos e, principalmente, atrás de discursos forjados na comunicação de
massa e na ideologia do consumo e do mercado (concentração de poder, terror e militarização). Além
disso, aqueles que exercem o poder concedido, o fazem como déspotas, opressores, aproprian-
do-se desse poder em benefício de si próprios e de seus aliados, como sempre, traindo a tarefa
que lhes é delegada.

1.1.6 O neoliberalismo, como expressão política e econômica, propõe mudanças no


modo de produção capitalista, designada – agora – como acumulação flexível do capital (acumula-
ção x partilha da riqueza). Pressupõe a desintegração vertical da produção, tecnologias eletrônicas,
diminuição de estoques, desqualificação e ‘requalificação’ do trabalhador, desregulamentação, e
alta competitividade, tendo como justificativa o “aumento da produção”. Ou seja, o discurso neo-
liberal apregoa “menos Estado e mais mercado”.

1.1.7 Entende-se o mercado como globalizado e auto-regulado. Abandona-se hoje, e


cada vez mais, o princípio político do Estado como regulador do mercado. O Estado mostra-se
incapaz de diminuir as desigualdades e de promover o bem-estar, esvaziado de suas funções

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essenciais.

1.1.8 Resultam assim o mal estar, o estranhamento, a crise, o isolamento dentro dos
espaços globalizados; o individualismo intimista ao invés do comunitário; o particular ao invés do
público, redefinindo o que a modernidade deixou como herança: o espaço público. Estas são
expressões da crise de valores que impossibilitam a definição de parâmetros éticos. O consumi-
dor – no lugar do produtor – é a nova medida da cidadania.

1.1.9 O sistema neoliberal é excludente e indiferente à dignidade humana, desrespei-


tando a Criação Divina. Isso tem sérias conseqüências, atingindo todas as áreas essenciais para
a dignidade da Vida, fonte de onde emanam os direitos humanos e as próprias leis que os de-
fendem.

1.1.10 As situações a seguir analisadas dizem respeito aos Direitos Humanos enten-
didos em sua indivisibilidade, interdependência, inalienabilidade e universalidade.

1.2 Direitos Humanos no contexto Social, Político e Econômico

1.2.1 A visão e a prática dos Direitos Humanos partem das injustiças sociais infligidas
à multidão de pobres da América Latina, vítimas de um sistema econômico, político e jurídico in-
diferente àqueles direitos. Para fazer valer o respeito devido aos Direitos Humanos, hoje, pres-
supõe-se a “tomada da palavra e da ação” por parte dessa multidão. Há três posturas do sistema
vigente que, se não inviabilizam, restringem em muito as possibilidades de garantia efetiva des-
ses direitos. Tais posturas são a mistificação, a massificação e a dominação.

1.2.2 Mistificação: Tome-se como exemplo a disposição legal que figura em quase
todas as Constituições do mundo: "todo poder emana do povo”. Esse conceito é uma mistifica-
ção, pois na realidade afirma que as eleições periódicas são suficientes para efetivar o poder po-
pular. Na realidade, artigos como esse pretendem legitimar o Estado como democrático e de di-
reito. Compare-se essa previsão legal com o poder dos agentes do mercado: esses deliberam
todos os dias com ou sem o consentimento do povo, sem preocupar-se com o respeito devido
aos direitos humanos desse mesmo povo.

1.2.3 Massificação: O neoliberalismo não nos permite percebermo-nos como sujeitos


e agentes pessoais e coletivos da realidade. Afirmando que o mercado regula todas as relações
humanas, o neoliberalismo supõe a população como uma massa de objetos. Resulta, dessa ide-
ologia, que as pessoas acreditam no determinismo de sua condição sócio-econômica. Portanto,
ficam prejudicadas as práticas sociais que valorizam a dignidade humana.

1.2.4 Dominação: Efeito da mistificação e da massificação, esse vício do sistema es-


tende seu poder tanto sobre a economia, quanto sobre a política de toda a sociedade. Tal domi-
nação é introjetada nas consciências, de modo a considerar naturais as desigualdades sócio-
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econômico-políticas. Além disso, ratifica o racismo, a discriminação e os preconceitos sócio-


históricos que alimentam as assimetrias de gênero, etnia e geração.

1.3 Direitos Ambientais no mundo neoliberal

1.3.1 Recursos Hídricos

1.3.1.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos define o direito à alimenta-


ção (art.25). A água é um elemento fundamental inerente à alimentação. Tal entendimento foi ma-
nifesto e afirmado no Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, de 1966
(art.11). O acesso à água é, portanto, essencial para todas as pessoas.

1.3.1.2 Além disso, existe um documento específico sobre a questão da água que
é a Declaração Universal dos Direitos da Água. A água é uma condição fundamental para toda
vida. Sem água não há vida. Ter acesso ou não ter acesso à água decide sobre a vida e a morte.
A água é um dom de Deus colocado à disposição de toda a humanidade para uso responsável e
promovendo a vida plena. Por isso a água é um bem comum que não pode ser privatizado.

1.3.1.3 A América Latina possui grandes reservas de água que podem ser utilizada
como elemento inerente à alimentação: as bacias do Solimões/Amazonas, do Paraná/Prata, do
Orenoco, do Oiapoque, e outras, bem como o Aqüífero Guarani, uma das maiores reservas sub-
terrâneas do mundo. A América Latina é um território estratégico nesse sentido.

1.3.1.4 O problema básico é o acesso à água e sua utilização. Cada vez mais é
forte a tendência de privatização da água. Ela vem sendo privatizada aos poucos e se tornando
bem de consumo ao invés de bem comum.

1.3.1.5 A água é essencial para a saúde. Sua utilização de forma racional e justa
exige soluções de distribuição de água potável e saneamento básico (coleta e tratamento de esgotos),
sem afetar de forma significativa o meio ambiente. Todavia, isso requer um volume de investi-
mentos considerável e, por isso, deve ser considerado serviço público essencial para garantir o
atendimento de toda a população humana. Qualquer tentativa de privatização nesse sentido sig-
nifica que o critério de distribuição e saneamento é o critério do lucro e não o atendimento da sa-
úde pública e das necessidades da população.

1.3.1.6 A água é importante na agricultura e na pecuária. Há um processo de ex-


propriação de água através da exportação de produtos pecuários, especialmente na suinocultu-
ra, que é praticada em todo o mundo. O assunto é grave, pois a poluição da produção animal,
através dos dejetos, é maior do que das pessoas e assim como o consumo da água. Há estudos
que mostram como a suinocultura é um processo de transferência de água para os países impor-
tadores desses produtos.

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1.3.1.7 Por outro lado, há uma corrida para garantir aos Impérios deste mundo (se-
jam países ou grandes corporações) o domínio e o controle sobre os recursos hídricos do Planeta (e tal-
vez, um dia, do Sistema Solar!). Esse controle será garantido pela militarização e ocupação (não neces-
sariamente geográfica, mas através de “acordos”) de territórios onde haja abundância de água. Há quem
diga que a próxima guerra mundial será a guerra pela Água... Basta um simples olhar na distribu-
ição das bases militares norte-americanas na América Latina, para se perceber o processo, já
em andamento, de controle dos recursos hídricos.

1.3.2 O Uso da Terra

1.3.2.1 Além do alto índice de concentração da terra na mão de poucos, preocupa-


nos o forte avanço do agronegócio1, que vem contribuindo para a exclusão social e a pobreza ru-
ral. Cria concentração de renda e produz impactos na biodiversidade animal e vegetal.

1.3.2.2 Alguns dados estatísticos são importantes: no Brasil, entre 2003 e 2004 fo-
ram investidos na agricultura industrial cerca de R$ 27,15 bilhões; mas apenas R$ 2,83 bilhões
foram destinados ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Isso
significa, do ponto de vista de quem vive no campo, que mais terras foram devastadas, mais á-
gua foi usada e mais pessoas foram retiradas de suas terras para a expansão do agronegócio.
De todo o agronegócio, pouco fica no Brasil. Semelhante configuração se verifica na maioria dos
países da América Latina.

1.3.2.3 No Brasil, o agronegócio tem como sua principal expressão o cultivo da so-
ja, representando quase a metade dos grãos produzidos no país. Porém o percentual de mão de
obra empregada é muito pequeno. O Brasil tem cerca de 14,4 milhões de trabalhadores rurais;
quase 90% desse total estão na agricultura familiar. Enquanto as agriculturas familiares geram
quatro empregos por unidade, o agronegócio desemprega 6 em cada 10. Isso tem um impacto
social e econômico dramático. A soja, por exemplo, apesar de ocupar 45% da área plantada,
respondeu por apenas 5,5% dos empregos existentes no setor agropecuário em 2005.

1.3.2.4 O cultivo de grãos, especialmente a soja, produz o desmatamento com im-


pacto no meio ambiente, afetando todo o ecossistema e, como conseqüência, provoca as altera-
ções climáticas, o esgotamento dos solos, a destruição da fauna e da flora, etc.

1.3.2.5 Com a introdução do agronegócio, a utilização do agrotóxico tornou-se ain-


da mais intensiva e indiscriminada e, por isso, muito preocupante. Segundo levantamento do Mi-
nistério da Agricultura, o Brasil consome cerca de 2,5 a 3 milhões de toneladas de agrotóxicos
por ano. É o quarto maior consumidor de agrotóxicos no mundo.

1
Entende-se por agronegócio a exploração massiva da agricultura e/ou da pecuária, que utiliza grandes extensões de
terra, normalmente visando a exportação e a comercialização em larga escala. Não se refere à agricultura familiar ou
às formas tradicionais de agricultura para comércio e subsistência, em propriedades de pequeno ou médio porte.
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1.3.2.6 A grande maioria dos agricultores sabe que os venenos intoxicam, mas di-
zem que dependem deles para garantir a produção comercial e ter economia de tempo e traba-
lho. Entretanto, a maioria das famílias (85%) evita o uso de agrotóxicos nos cultivos destinados
ao próprio consumo.

1.3.2.7 Outro impacto do agronegócio é a utilização de sementes transgênicas,


como forma de garantir a alta produtividade. Isso coloca a economia agrícola dependente das
empresas transnacionais que detêm as patentes dessas sementes, criando um círculo vicioso de
consumo de sementes e agrotóxicos.

1.3.2.8 A distribuição da terra é desproporcional e reproduz a lógica do sistema. O


latifúndio se justifica através do agronegócio – que necessita de grandes extensões de terra para
ser de fato lucrativo e atender às demandas do mercado. Com isso, cresce a cada dia o número
de famílias desalojadas no meio rural, aumenta o êxodo para os grandes centros com o conse-
qüente aumento da especulação imobiliária urbana e o crescimento de favelas, o desemprego
urbano, a marginalização, a violência e – por fim – o crime organizado como alternativa de so-
brevivência.

1.3.3 A Privatização da Biodiversidade

1.3.3.1 Assim, percebe-se que o sistema neoliberal incentiva a privatização dos


recursos naturais, seja a água, seja a terra. Todavia, de forma sutil e muitas vezes disfarçada de
cooperação, verifica-se também a tendência de privatizar a biodiversidade através da incorpora-
ção comercial de antigas tradições culturais e conhecimentos populares referentes ao uso de
plantas medicinais.

1.3.3.2 Em diferentes partes da América Latina (Amazônia, Cerrado, Cordilheira, etc) ve-
rifica-se cada vez mais a presença de “missões culturais e cientificas”, quando não “religiosas”,
objetivando “registrar, catalogar e sistematizar” o conhecimento tradicional do uso medicinal de
certas plantas.

1.3.3.3 Trata-se de atividade patrocinada por corporações multinacionais, a indús-


tria farmacêutica, que – com recursos próprios e até mesmo com recursos estatais do primeiro
mundo ou subsídios fiscais – acabam se apropriando desse conhecimento e patenteando não só
a droga obtida pelo manuseio da planta, mas muitas vezes a própria planta! Ou seja, a privatiza-
ção da própria natureza!

1.3.3.4 Grandes corporações multinacionais investem cada vez mais em pesquisas


visando obter patentes sobre plantas medicinais a partir da apropriação do conhecimento de dife-
rentes culturas regionais no Brasil e em toda a América Latina, além de fomentar o cultivo e a
exploração dessas mesmas plantas em escala industrial para a produção de remédios que são
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comercializados a preços elevados e, portanto, não mais acessíveis às populações que detêm tal
conhecimento.

1.4 A Igreja no mundo neoliberal

1.4.1 Mesmo a Igreja, no contexto da globalização neoliberal, muitas vezes, se torna


refém da lei do mercado e o legitima. As Igrejas, em alguns modelos de espiritualidade e ecle-
siologia, criam e sustentam desigualdades e exclusões (de gênero, de etnia, de geração, por exemplo),
desrespeitando flagrantemente os direitos humanos, na medida em que garantem apenas a al-
gumas pessoas o direito de falar, fazer e decidir e não levantam a sua voz contra os opressores.
Na medida em que a Igreja não valoriza os sujeitos de direito, não realiza sua missão profética.

1.4.2 Por sua vez, a “Ideologia da Prosperidade”, equivocadamente chamada de


“Teologia da Prosperidade” – cada vez mais em moda nos meios evangélicos – sacraliza o mo-
delo e o sistema vigente à medida que introduz como linguagem teológica conceitos como “exigir
a graça”, ”cobrar a promessa”, “buscar a recompensa”, etc.

1.4.3 Cria-se a idéia de que a riqueza é benção adquirida (comprada) e a pobreza mal-
dição adquirida (herdada) pelo indivíduo, sem denunciar o diabólico que provoca a inclusão de
poucos (bênção) e a exclusão de milhões (maldição). Não se afirma a Graça – gratuidade do amor
de Deus em Cristo Jesus – mas se cria a ilusão de que a “bênção” pode ser adquirida mediante
a intermediação do líder religioso e a contribuição financeira espontânea para a “igreja”.

1.4.4 A quantificação do amor de Deus como objetivo, ao invés de conversão e sal-


vação! O consumo do sagrado ao invés da vivência do Evangelho e o compromisso com o Rei-
no. A Bênção como propriedade adquirida e não mais a Graça como ato amoroso de Deus.

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2. A GRAÇA DA VIDA PLENA

2.1 Vida Plena

2.1.1 Nestes tempos de pobreza teológica, em que fórmulas de sucesso individual


são anunciadas como “bênçãos divinas”, recordar à Igreja o real significado da Graça é um desa-
fio profético porque significa negar a fé como produto consumível e afirmar que evangelizar não
significa trazer clientes para a Igreja. É, portanto, dever da Igreja Cristã refletir sobre a Graça de
Deus para não cair na tentação de aliar-se aos poderes deste mundo que prometem prosperida-
de e sucesso a qualquer custo.

2.1.2 As Igrejas Cristãs são desafiadas, em cada geração, a assumir a conseqüência


de sua fé e identidade. Nisso, se defrontam com a questão do poder e do abuso do poder diante
de sua vocação específica de anunciar a Boa Nova do Evangelho, a Vida em Plenitude para toda
a humanidade a partir de Jesus Cristo, que veio "para que todos tenham vida e a tenham em a-
bundância" (Evangelho de João 10,10b). Nesse sentido, cada cristão é chamado a ser testemunha e
a agir no mundo promovendo a Vida Plena. É exatamente para a Vida Plena que Deus nos cha-
ma e nos concede a Graça. Mas a Vida Plena não significa necessariamente riqueza, poder e
sucesso. VIDA PLENA SIGNIFICA VIDA COM DIGNIDADE.

2.2 A Justificação pela Fé e o Direito à Vida Plena

2.2.1 Neste particular somos confrontados com a pergunta fundamental: de que ma-
neira a preocupação por dignidade humana, direitos humanos, paz e justiça se relacionam com a
Doutrina da Justificação por Graça e Fé?

2.2.2 As Igrejas expressam


“... que a mensagem da justificação nos remete de forma especial ao centro do teste-
munho neotestamentário da ação salvífica de Deus em Cristo: ela nos diz que, como
pecadores, devemos nossa vida nova unicamente à misericórdia de Deus, misericórdia
esta com a qual podemos ser presenteados e que só podemos receber na fé, mas que
nunca – de qualquer forma que seja – podemos fazer por merecer" 2.

2.2.3 No momento presente, determinado fortemente pela lei do mercado, vale mais
o ter do que o ser, o sucesso e a glória do que o servir e ser solidário. A mensagem de que so-
mos aceitos e amados por Deus de maneira gratuita, "sem as obras da lei", nos liberta para a
graça da Vida e com ela nos compromete em todas as suas dimensões.

2.2.4 Isso nos leva a perguntar pelas conseqüências da Justificação, relacioná-la


com a defesa dos Direitos Humanos, com a promoção da justiça social, enfim, com a dignidade
da Vida. Isso também nos leva a perceber onde se está desenvolvendo ações concretas em de-

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Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação por Graça e Fé – n.17
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fesa da dignidade da Vida, para apoiá-las e nelas nos integrar.

2.2.5 Entendemos que os direitos humanos estão ancorados na misericórdia de


Deus. Assim a presença divina está na raiz de todos os esforços práticos de codificação e reda-
ção de leis que têm a ver com a ordem social, política e econômica. Formulações como as da
Declaração Universal dos Direitos Humanos são instrumentos para a preservação da vida criada
por Deus. Já por isso não podemos ignorá-las.

2.2.6 Baseadas na Doutrina da Justificação por Graça e Fé, as Igrejas podem radica-
lizar ainda mais o conceito de Direitos Humanos. O fato de sermos aceitos e amados por Deus
incondicionalmente nos faz recuperar a compreensão de que a dignidade humana está ancorada
já no próprio ato criador divino. Nele, o ser humano inteiro é imagem de Deus.

2.2.7 Recorremos às primeiras páginas da Bíblia. Ali, em primeiro lugar, é destacada


a dimensão universal da natureza e da dignidade do ser humano. Todas as pessoas indistinta-
mente foram criadas à imagem de Deus (cf. Gênesis 1.26-27).

2.2.8 É importante destacar, em segundo lugar, que a imagem da criação não pode
ser reduzida à alma da pessoa humana ou a algo que o valha, mas se refere a ela na sua inte-
gralidade. Nessa totalidade a vida das pessoas é intocável. Com base nisso a sociedade com
suas instituições deve respeitar a dignidade da pessoa toda e todas as pessoas.

2.2.9 Em terceiro lugar, o ser humano não foi criado isolado (cf. Gênesis 2,18). É um ser
social. Deus mesmo é um ser relacional, pois o Deus Criador é o Deus Triúno: o Pai, o Filho e o
Espírito Santo estão intimamente relacionados. Criadas à sua imagem, as pessoas são, também,
socialmente relacionais. Dignidade humana, por isso, não tem a ver somente com direitos
individuais, mas também, e isto é tantas vezes esquecido, com direitos sociais.

2.2.10 O Relatório “A Dignidade Humana e a Paz no Brasil ”3 destaca, como um dos


critérios para o envolvimento dos cristãos na defesa dos Direitos Humanos, a petição do Pai
Nosso: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje"4. Argumenta, recorrendo a Lutero, que – segundo
o entendimento cristão – “o pão nosso de cada dia" não significa apenas o alimento, mas “tudo
quanto pertence ao sustento e às necessidades da Vida", como alimento, vestuário, saúde, segu-
rança, paz, inclusive bom governo e justiça social.

2.3 A Paz e o Direito à Vida Plena

2.3.1 A fé cristã e a comunidade ecumênica afirmam o inalienável direito à vida. Co-


mo uma conseqüência desta afirmação está a promoção da Paz. Na ótica cristã, e ecumênica, a
Paz é patrimônio da humanidade, e consiste na centralidade de qualquer experiência religiosa.

3
Relatório “A Dignidade Humana e a Paz no Brasil”, publicado pelo CONIC em 2002
4
Artigo do Rev. Dr. Walter Altmann no Relatório supra mencionado.
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2.3.2 Não existe paz sem justiça! Na ótica cristã, a superação de todas as formas de
violações de direitos é fruto da paz e da justiça (cf. Salmo 85.10-13). Isto é ainda mais significativo
quando recordamos que estamos na Década Ecumênica para a Superação da Violência.

2.3.3 Vivemos em um momento da história mundial no qual a violência é a tônica, a


insana violência que ultrapassa até mesmo os limites impostos pelas convenções internacionais,
quer sob a égide do terrorismo, quer sob a égide da – assim chamada – guerra preventiva.

2.3.4 Na América Latina, o principal problema é a enorme quantidade de jovens que


morrem assassinados por meio das conturbadas situações de insegurança pública em que vive-
mos. Aliás, a violência é, no mundo, uma das principais causas da morte de pessoas entre 15-44
anos. Por isto é um imperativo ético-político para a comunidade cristã e ecumênica a afirmação
profética e a construção da paz com justiça – um direito humano fundamental.

2.3.5 É urgente a construção de uma Cultura de Paz na América Latina e no mundo.


Às Igrejas, em decorrência de sua missão profética, cabe principalmente fomentar essa cultura
(cf. Isaias 2.2-4 e Miquéias 4.1-3), uma vez que anunciam o Evangelho do Reino e testemunham o
Príncipe da Paz – que não é um General, não tem exércitos nem espadas, mas “transforma o
mundo com a sua Graça“5.

2.4 A Missão Profética e o Direito à Vida Plena

2.4.1 As Igrejas e Organizações Ecumênicas que integram o Fórum Ecumênico do


Brasil (FE-Brasil), têm se ocupado com a visão e a compreensão dos Direitos Humanos, Econômi-
cos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESC-A). A Vida Plena acontece quando estão garantidos
tais direitos. Em recente publicação, o FE-Brasil apresenta 11 teses sintetizando os desafios teo-
lógicos para a relação entre os DHESC-A, o Ecumenismo e a promoção da Paz 6.

2.4.2 Na terceira tese, o FE-Brasil destaca a afirmação do seguimento profético, pre-


sente em todas as tradições religiosas:
"Em todas as tradições religiosas, por meio de uma tradição sapiencial ou profética, é
exercida a condenação de toda falsa segurança, de todos os poderes que procuram se
afirmar como dotados de natureza divina. Teimosamente afirmamos: apenas a Divinda-
de é divina! Isso nos faz denunciar toda idolatria – econômica, política, cultural ou soci-
almente disseminada – e nos faz anunciar a solidariedade com a biodiversidade como
resposta à Graça” 7.

2.4.3 Acima de tudo, a própria experiência da justificação (salvação) por fé e por graça
nos impulsiona ao compromisso com a defesa dos direitos humanos.

5
Tema da 9ª Assembléia Geral do CMI – Porto Alegre, 2006.
6
OLIVEIRA, Rafael Soares de (ed). Ecumenismo, Direitos Humanos e Paz: a experiência do Fórum Ecumênico
Brasil. Rio de Janeiro: Koinonia, 2006.
7
OLIVEIRA, Rafael Soares de (ed). op.cit. p. 40
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Documento Final CONSULTA TEOLÓGICA “O DIREITO À VIDA PLENA” outubro 2006

2.4.4 O FE-Brasil acentua a importância dessa defesa na sua primeira tese:


"É o amor da Divindade, Mãe e Pai, que nos insere no coração da Criação como parti-
cipantes, numa relação recíproca de cuidadores (sic) de toda força vital cósmica (cf. Efé-
sios 1.8-12). Esse dom se abre à nossa resposta humana solidária e cuidadosa (cf. Efé-
sios 2.19-21). Podemos oferecer uma resposta na condição de moradores na casa co-
mum, a oikoumene, e esta resposta pode ser a afirmação ou a negação desse Plano
Amoroso; afirmação de nossa cidadania fundamental, da responsabilidade de uns pelos
outros e por nossa casa comum, de sermos atentos a todas as dores, pastores da ale-
gria (cf. Efésios 4.22-24). Numa visão orientada pela Fé, a partir da tradição cristã, que é
confirmada pelas mais diferentes tradições religiosas, esse é o fundamento dos direitos
humanos” 8.

2.4.5 Contra o “deus-mercado”, a Bíblia nos convoca novamente a afirmar o Senhorio


do Deus que criou a Vida, em Jesus Cristo. Defender e promover os Direitos Humanos é, acima
de tudo, assumir atitudes cidadãs e lembrar ao mundo que o Direito à Vida Plena é direito de to-
das as pessoas, não de algumas poucas privilegiadas que podem consumir.

2.4.6 O clamor continua chegando aos ouvidos de Deus (cf. Êxodo 3.7-12); o mesmo
Deus que convocou Moisés, nos convoca agora – cristãos e cristãs, a Igreja de Cristo – para
promover a Justiça e a Paz, para promover a Vida Plena.

8
OLIVEIRA, Rafael Soares de (ed). op.cit. p. 39
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3. LIVRES PARA AGIR

3.1 Anunciar e promover um novo mundo

3.1.1 A mensagem central da misericórdia de Deus nos leva a vislumbrar um novo


mundo em que todas as pessoas terão sua dignidade e seus direitos respeitados e valorizados.

3.1.2 Esse novo mundo que vislumbramos é, acima de tudo, expressão da amorosa
vontade divina. Deus mesmo promete um novo céu e uma nova terra onde toda lágrima será en-
xugada e a morte não mais existirá (cf. Apocalipse 21.1-4). Esse Deus da Graça, que renova a espe-
rança, nos convoca para realizar ações que anunciem e promovam o novo mundo.

3.1.3 Para viabilizar tais ações apresentamos a seguir um conjunto de propostas pa-
ra as Igrejas e Organizações Ecumênicas que compõem o CLAI. Tais propostas, em cada uma
delas, se pretende valorizar a diversidade de saberes e um caráter interdisciplinar. Importa que
as Igrejas e as Organizações Ecumênicas vençam o espírito de acomodação, assumam o cará-
ter profético de sua missão e construam corajosamente (em suas próprias agendas) uma agenda e-
cumênica para a afirmação dos Direitos Humanos, para a denúncia da injustiça e para o teste-
munho da Graça, ou seja, a promoção da Vida Plena.

3.2 Propostas concretas: Direitos Humanos

3.2.1 Redescobrir o profundo sentido da dignidade humana, fazendo-o presente


em todas as situações, especialmente onde ela esteja ameaçada ou desrespeitada. Para tanto, é
preciso sublinhar sempre suas principais características:

3.2.1.1 Em primeiro lugar, a dignidade humana é um princípio jurídico suprapositi-


vo – ou seja, é intocável até mesmo pela Lei – o que equivale dizer que até contra a Lei pode ser
invocado.

3.2.1.2 Em segundo lugar, a dignidade humana é o elemento nuclear do princípio


de todo o Estado que se proclame democrático, social e de direito; isto significa que a sua defesa
merece atenção preferencial dos Poderes Públicos e de toda a sociedade.

3.2.1.3 Em terceiro lugar, a dignidade humana é o conteúdo essencial de todo o di-


reito fundamental, seja ele civil e político, seja econômico, social, ambiental ou cultural, devendo
ser garantida mesmo quando esses direitos se encontrem em conflito.

3.2.2 Redescobrir os efeitos jurídicos da soberania popular. A soberania popular


reflete o poder originário do povo; os efeitos jurídicos daí decorrentes têm de se traduzir na vida
do dia a dia. São conceitos dedutíveis da própria letra constitucional, desde que a sua interpreta-
ção e aplicação estejam vacinadas contra a mistificação do sistema, acima denunciada.

3.2.2.1 Um primeiro efeito daí decorrente, no que interessa mais de perto aos direi-
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tos humanos, é o de democratizar efetivamente a hermenêutica da Constituição.

3.2.2.2 “Direito humano”, como a própria denominação indica, é direito da pessoa


enquanto tal, enquanto sujeito; a pessoa, portanto, é a principal protagonista da sua cidadania,
como acima já se sublinhou, relativamente à dignidade.

3.2.2.3 Somente por esse caminho é possível garantir a “sociedade fraterna” de


que falam os preâmbulos de várias constituições nacionais.

3.2.2.4 Tal sociedade é impossível e inviável caso não seja franqueado às pesso-
as a interpretação e a aplicação da Constituição, ao menos quando estiverem em causa os direi-
tos humanos fundamentais, cuja essência é a dignidade da pessoa humana que, como se afir-
mou acima, é suprapositiva.

3.2.3 Redescobrir o poder da organização em defesa dos Direitos Humanos.


Apoiar as organizações presentes na sociedade civil que atuam na defesa dos Direitos Humanos
e suas redes, e participar ativamente dessas redes como parte do ministério profético e de evan-
gelização.

3.2.3.1 As redes comunitárias e eclesiais, aquelas que envolvem vítimas e seus


defensores, em torno das suas organizações de base, no espaço e no tempo onde os conflitos
se travam (Igrejas, comissões pastorais, clubes de mães, centros de pais e mestres, comunidades eclesiais de ba-
se, por exemplo).

3.2.3.2 As redes políticas, aquelas que discernem os poderes públicos e privados,


que podem e devem apoiar a luta em defesa desses direitos, se não por responsabilidade pró-
pria, pelo menos por afinidade de objetivos, aí se incluindo sindicatos, partidos políticos e asso-
ciações de moradores, por exemplo.

3.2.3.3 As redes de justiciabilidade e exigibilidade de direitos, aquelas que forne-


cem o instrumental técnico e o endereçamento institucional das defesas populares. Vale lembrar,
nesse âmbito técnico-jurídico interno do país, o Ministério Público, as Defensorias Públicas, os
Conselhos Tutelares, as Comissões Parlamentares e da OAB relacionadas com os Direitos Hu-
manos, o PROCON, entre outras; no âmbito externo, as instâncias judiciais da OEA, da ONU, as
Comissões Internacionais de Direitos Humanos. No âmbito das parcerias, ONG’s que atuam tan-
to interna como externamente, tais como a RENAP (Rede Nacional dos Advogados Populares), as As-
sociações de Juízes, "Juízes para a Democracia", "Terra de Direitos", "Justiça Global", "Instituto
de Acesso à Justiça", "Associação Americana de Juristas”, etc.

3.2.4 Redescobrir o papel institucional das Igrejas e das Organizações Ecumê-


nicas na promoção, defesa e garantia da Vida Plena, para construir uma cultura de direitos. No
presente contexto, em que as Igrejas estão voltadas para dentro de si mesmas, importa mudar o
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foco da reflexão teológica em direção à compreensão holística, visando o todo da pessoa e todas
as pessoas, para construir uma cultura de superação de todas as intolerâncias étnicas, de gêne-
ro, religiosas e culturais.

3.2.5 Retomar os investimentos na formação ecumênica em direção aos Direi-


tos Humanos. A comunidade ecumênica é o espaço onde os processos de formação se tornam
viáveis e podem ser enriquecidos com a diversidade de experiências e situações.

3.2.5.1 Esse processo deve acontecer de uma forma interdisciplinar, valorizando a


diversidade de saberes, inclusive nos centros de formação teológica e pastoral das Igrejas.

3.2.5.2 Importa que as Igrejas exerçam papel crítico em relação às agendas da


cooperação internacional. As propostas de cooperação em “ações de desenvolvimento” devem
definir claramente que conceito de desenvolvimento é utilizado. Além do mais, não há desenvol-
vimento humano real sem educação e sem formação.

3.3 Propostas concretas: Direitos Ambientais

3.3.1 A água: elemento essencial para a vida

3.3.1.1 A água como bem público: deve-se assumir a obrigação de garantir, para
todos os habitantes do planeta, o acesso à água potável. Isso implica desde estabelecer um pre-
ço acessível para a água até à participação das comunidades locais na tomada de decisão quan-
to à utilização dos recursos hídricos existentes e preservação das nascentes. As Igrejas e as Or-
ganizações Ecumênicas não podem ser omissas neste processo e devem levantar sua voz pro-
fética uma vez que a água é fonte de vida, obra e dom de Deus.

3.3.1.2 Prioridades para o uso da água: em primeiro lugar está a satisfação da sede
dos seres humanos e dos animais e também o uso da água para produção de alimentos. Por is-
so, as Igrejas e as Organizações Ecumênicas devem opor-se à forte tendência de privatização
da água.

3.3.1.3 Iniciativas que possibilitem o acesso à água: cabe às Igrejas e às Organiza-


ções Ecumênicas envolverem-se em iniciativas que considerem a água como bem público e di-
reito inalienável. Um exemplo é a participação das Igrejas – em conjunto e através de organiza-
ções ecumênicas – em projetos de desenvolvimento de tecnologias simples e baratas que possi-
bilitam o acesso à água como um bem à disposição de todas as pessoas 9.

3.3.2 O uso justo da terra

3.3.2.1 Divisão e distribuição justa da terra: as Igrejas e as Organizações Ecumê-

9
Por exemplo, a Articulação do Semi-Árido (ASA) brasileiro, onde organizações ligadas às Igrejas (DIACONIA e CESE)
promovem e participam de processos comunitários de construção de cisternas e incentivo à agricultura familiar.
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nicas devem tomar posição política em favor da distribuição justa da terra e da riqueza produzida
a partir da terra, de modo que não haja mais fome, garantindo a preservação do meio ambiente e
da biodiversidade.

3.3.2.2 Limitar as ações do agronegócio: as Igrejas e as Organizações Ecumêni-


cas devem apoiar e envolver-se conjuntamente em ações que se oponham ao avanço preocu-
pante do agronegócio no Brasil e na América Latina. De maneira especial, devem opor-se à ma-
nipulação genética das sementes e de plantas, promovida por empresas que tão somente visam
lucro e ameaçam a soberania de povos e nações.

3.3.2.3 Preservar os saberes populares e culturais: além disso, as Igrejas e as Or-


ganizações Ecumênicas devem empenhar-se na preservação das sementes guardadas, repro-
duzidas e melhoradas milenarmente pelos camponeses, povos indígenas, quilombolas e comu-
nidades tradicionais. Também devem garantir a preservação do uso adequado de plantas medi-
cinais. Tais conhecimentos são parte da cultura dessas comunidades e devem ser assumidas
como bem cultural e bem simbólico para garantir sua preservação.

3.3.2.4 Agricultura familiar e produção de alimentos: as Igrejas e as Organizações


Ecumênicas devem apoiar projetos que busquem alternativas para a agricultura, incentivando a
agricultura familiar, a produção de alimentos orgânicos, a organização dos pequenos agricultores
e comercialização direta de seus produtos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do mundo globalizado e massificado, preocupa-nos a preservação e a afirmação
de nossas identidades enquanto Igrejas advindas da Reforma e/ou de desdobramentos históri-
cos anteriores e posteriores a ela. A massificação promove o consumismo religioso e nivela as
identidades no genérico, destruindo a diversidade e a riqueza que caracteriza o cristianismo des-
de seus primórdios; gera a intolerância fundamentalista e as ideologias de prosperidade. Como
ocupar espaços de identidade e de testemunho diante da massificação? Essa pergunta vai muito
além de nossa nacionalidade e do contexto latino-americano. Todavia, é exatamente na América
Latina que essa massificação religiosa se manifesta de forma crescente e forte. O tema da iden-
tidade da Igreja é um tópico que deve ser objeto do processo de reflexão no contexto do CLAI.

Além disso, temos consciência que, neste documento, faltam outros temas relevantes
concernentes à dignidade da Vida e que, por falta de tempo, não puderam ser aprofundados.
Não consideramos nosso dever, enquanto Igrejas e Organizações Ecumênicas brasileiras, esgo-
tar o assunto, mas – antes – dar início ao processo de reflexão no contexto eclesial e eclesiástico
latino-americano que compõe o universo do CLAI.

Apontamos três temas relevantes, na esperança de que o processo de reflexão conti-


nental a ser iniciado na 5ª Assembléia Geral do CLAI, possa contemplá-los adequadamente:
a) as diversas formas de preconceitos e intolerâncias de caráter étnico,de gênero,de gera-
ção, cultural e religioso, presentes na sociedade brasileira e latino-americana;
b) o aumento assustador da violência e da criminalidade urbana na sociedade brasileira e
latino-americana;
c) a onda de corrupção reinante em nosso país e na América Latina.

Sentimos a necessidade de uma “pastoral da denúncia”, ou seja: como atuar de maneira


eficaz, despertando consciências indignadas (cf. Romanos 12.2) capazes de reagirem e assumirem
um papel de transformação da realidade a partir dos valores do Reino de Deus. Não se trata a-
penas de definir metodologias, mas também a reflexão teológica – centrada na Graça que nos é
dada em Cristo – estimulando criativamente o povo cristão a afirmar e defender a dignidade de
toda a Criação e da vida em plenitude.

Desejamos que as cristãs e os cristãos possam despertar a humanidade para reconstru-


ir o mundo mais próximo daquele jardim que Deus nos deu na Criação, de tal forma que não pre-
cisemos sempre lembrar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, porque não será mais
uma declaração de princípios, mas a forma de vida adotada por toda a humanidade.
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"Eu tenho a audácia de crer que os Povos em toda parte podem ter três refeições por
dia para seus corpos, educação e cultura para as sua mentes, e dignidade, igualdade e
liberdade para seus espíritos. Creio que aquilo que seres humanos egocêntricos destru-
íram, pessoas centradas no outro podem reconstruir" 10.

Plenário da Consulta, Londrina, 25 de outubro de 2006.

Original assinado por Original assinado por


Rev. Luiz Caetano Grecco Teixeira, ost Rev. Bruno Giese
Secretário Regional para o Brasil Vice-Presidente do CLAI-Brasil
Relator da Consulta Presidente da Consulta

10
KING, Coretta Scotto (org.). The Words of Martin Luther King, Jr. New York: Newmarker Press, 1987. p. 1 [a tra-
dução do texto citado é da equipe de redação]
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COLABORADORES

1. ASSESSORIA DOS F ÓRUNS T EOLÓGICOS “O DIREITO À VIDA PLENA”.

a. Fórum de Londrina: "Direitos Políticos, Econômicos e Sociais"; 5 e 6 de junho de 2006.


i. Profa. Dra. Ciliane Carla Sella de Almeida – Universidade Estadual de Londrina
ii. Profa. Rosemari Friedmann Angeli – Programa Fé, Economia e Sociedade do CLAI
iii. Prof. Dr. Marcio Redondo – Faculdade Teológica Sul Americana
iv. Profa. Gabriele Greggersen – Faculdade Teológica Sul Americana
v. Rev. Prof. Dr. Carlos Eduardo Brandão Calvani – Centro de Estudos Anglicanos
vi. Rev. Luiz Caetano G. Teixeira, ost – Secretário Regional do CLAI para o Brasil

b. Fórum de Recife: "Direitos Ambientais e Uso da Terra"; 12 e 13 de junho de 2006.


i. Prof. Marcelino Lima – Equipe de Diaconia
ii. Prof. José Aldo dos Santos – Coordenador Geral do Centro Sabiá
iii. Rev. Arnulfo Barbosa – Diretor Executivo de Diaconia
iv. Rev. Luiz Caetano G. Teixeira, ost – Secretário Regional do CLAI para o Brasil

c. Fórum de São Leopoldo: "Direitos Humanos - Justiça e Paz"; 28 e 29 de junho de 2006.


i. Rev. Prof. Dr. Roberto Zwetsch – Escola Superior de Teologia
ii. Rev. Dr. Ervino Schmidt – Assessor Teológico do CLAI-Brasil
iii. Revda. Sonia Mota – Equipe do CECA (Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria)
iv. Revda. Romi Bencke – Equipe do CECA (Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria)
v. Prof. Jacques Távora Alfonsin – ONG Acesso Cidadania e Direitos Humanos
vi. Rev. Prof. Dr. Huberto Kirchheim – Junta Diretiva do CLAI.

2. MEMÓRIA E COMPILAÇÃO
i. Prof. Presb. Darli Alves de Souza – Assessor Voluntário da Secretaria Regional
ii. Sem. Sofia Dias Figueira – Voluntária no Centro de Documentação da Secretaria Regional

3. SISTEMATIZAÇÃO DOS FÓRUNS T EOLÓGICOS


i. Rev. Prof. Dr. Huberto Kirchheim – Junta Diretiva do CLAI.
ii. Rev. Dr. Ervino Schmidt – Assessor Teológico do CLAI-Brasil
iii. Prof. Presb. Darli Alves de Souza – Assessor Voluntário da Secretaria Regional

4. REVISÃO E REDAÇÃO
i. Prof. Jorge Atílio Iullianeli – Equipe de Koinonia Presença Ecumênica e Serviço
ii. Prof. Dr. Rafael Soares de Oliveira – Equipe de Koinonia Presença Ecumênica e Serviço
iii. Prof. Presb. Darli Alves de Souza – Assessor Voluntário da Secretaria Regional
iv. Rev. Prof. Sandro Xavier – Assessor Voluntário da Secretaria Regional

5. T EXTO FINAL, REVISÃO E EDIÇÃO


i. Rev. Luiz Caetano G. Teixeira, ost – Secretário Regional do CLAI para o Brasil
ii. Prof. Dra. Eneá de Stutz e Almeida – Faculdade de Direito de Vitória.

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