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ENTREVISTA: Alfredo Bosi


Poesia como resistência à ideologia dominante
B rasil
18
Descaso e repressão, política para ensino público em SP e PR
João Peres, Moriti Neto, Thiago Domenici

América l atina

28
Ataque midiático à Democracia e aos projetos nacionais
Frederico Füllgraf
35
Um governo que sangra depois de “virar do avesso”
Tatiana Merlino

USP em xeque

43
As veias abertas da Faculdade de Medicina
Luiza Sansão

Políticas afirmativas

64
A USP que se nega a ser preta, parda e indígena
João Peres, Moriti Neto, Tadeu Breda e Thiago Domenici
70
Como a USP tem tratado a questão das ações afirmativas
Adriana Alves

USP
79
Desmanche tem como alvos RDIDP e caráter público da universidade
Pedro Estevam da Rocha Pomar
87
EACH, sob “investigação detalhada”, convive por ora com aterro ilegal
Paulo Hebmüller
94
HU e HRAC, ou como se livrar de hospitais de renome acadêmico
Paulo Hebmüller

N ovos olhares

100
Paleoantropologia corre risco na USP, adverte Walter Neves
Vinicius Crevilari
107
Crise do jornalismo leva ECA a adaptar o currículo do curso
Luciano Victor Barros Maluly

D itadura militar

111
Violência do regime intimidava docentes, lembra Emília Viotti
Pedro Estevam da Rocha Pomar

Ponto de vista

115
Revisitando as alternativas de renda básica
Francisco Nóbrega
DIRETORIA
César Augusto Minto, Kimi Aparecida Tomizaki, Elisabetta Santoro,
Rosângela Sarteschi, Heloísa Daruiz Borsari, Adriana Pedrosa Biscaia Tufaile,
Ivã Gurgel, José Nivaldo Garcia, Sérgio Paulo Amaral Souto,
César Antunes de Freitas, Annie Schmaltz Hsiou, Ozíride Manzoli Neto

Comissão Editorial
Antonio Carlos Cassola, Elenice Mouro Varanda, Gladys Beatriz Barreyro, Hélio Mitio Morishita,
Marcos Barbosa de Oliveira, Pedro Paulo Chieffi, Primavera Borelli, Sumaya Mattar

Editor: Pedro Estevam da Rocha Pomar


Assistente de redação: Vinícius Crevilari
Revisão desta edição: André Merli e Vinicius Crevilari
Ilustração de capa: Vitor Flynn
Ilustrações desta edição: Ohi e Vitor Flynn

Editor de Arte: Luís Ricardo Câmara


Assistente de produção: Rogério Yamamoto
Secretaria: Alexandra Moretti e Aparecida de Fátima dos R. Paiva
Distribuição: Marcelo Chaves e Walter dos Anjos

Tiragem: 5.500 exemplares


Gráfica: Eskenazi

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A Revista Adusp é uma publicação quadrimestral da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo,
destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem, necessariamente, o pensamento da Diretoria da entidade.
Contribuições inéditas poderão ser aceitas, após avaliação pela Comissão Editorial.
Mergulho nas entranhas da Medicina
O que nos propusemos a fazer nesta edição da Revista Adusp foi um mergulho nas entranhas da Faculdade
de Medicina da USP (FMUSP). A ampla reportagem da jornalista Luiza Sansão iniciada na p. 43 abre grande
espaço às vítimas de abusos e crimes sexuais praticados há décadas na, talvez, mais importante escola de Medi-
cina do país. Praticados, é bom que se diga, com a conivência da instituição, que nunca se preocupou em coibir
(e muito menos em punir) os trotes violentos e as manifestações machistas, homofóbicas, racistas que têm ca-
racterizado, de modo sistemático, a atuação de duas antigas organizações mantidas por estudantes veteranos: a
fraternidade Show Medicina e a Associação Atlética.
Pesquisadores revelam como o trote violento se presta à criação de redes de poder que extrapolam o perí-
odo de estudos na universidade e espraiam-se por círculos profissionais e sociais. Nesse contexto, não surpre-
ende que crimes sexuais sejam naturalizados, na mesma medida em que as vítimas dispostas a denunciar os
agressores passam a sofrer assédio moral para que se calem.

Bosi, Alfredo
O leitor está convidado a usufruir a entrevista concedida ao jornalista Paulo Hebmüller pelo professor Al-
fredo Bosi (FFLCH), cuja erudição dispensa comentários. Bom passeio, perdão: boa leitura!

Profissão: Professor(a)
Vale a pena conferir as dificílimas condições de trabalho dos professores das redes públicas de ensino dos
estados de São Paulo e Paraná, bem como as renhidas lutas travadas pela categoria. Na p. 18.

Cotas na USP, quando?


Reportagem de João Peres, Moriti Neto, Tadeu Breda e Thiago Domenici na p. 64 e instigante artigo da
professora Adriana Alves (IGc) na p. 70 questionam a vetusta resistência da USP à adoção de cotas étnicas e
sociais. Leitura obrigatória.

Reitoria comanda retrocesso


A que veio o mandarinato M.A. Zago-V. Agopyan? Dois anos depois da posse, não há dúvidas a respeito: o
projeto é desmontar a USP tal como a conhecemos, tendo como alvos principais a dedicação exclusiva dos do-
centes (Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa, ou RDIDP) e o caráter público, gratuito e de
qualidade socialmente referenciada. Reportagens nas p. 79 e seguintes abordam a nova “supercomissão” ins-
tituída pelo reitor para liderar a reforma do Estatuto (em contraposição à Estatuinte Soberana e Democrática
reivindicada pelas entidades representativas), o imbroglio da EACH e a trágica situação do Hospital Universi-
tário (HU) e do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais de Bauru (HRAC).

Emília e o regime militar


“A violência dos governantes intimidava a maioria”, recorda a professora emérita, da FFLCH e da Universi-
dade de Yale, Emília Viotti, ao falar de sua aposentadoria pelo AI-5, em 1969, quando recebeu a solidariedade
de Sérgio Buarque de Hollanda e Antonio Candido. Confira na p. 114 as declarações de Emília, grande pesqui-
sadora do período da escravidão e uma das maiores historiadoras brasileiras.

Ponto de vista
Inauguramos nesta edição, com a publicação de um artigo do professor aposentado Francisco Nóbrega
(ICB) sobre o tema da Renda Básica, a seção fixa Ponto de Vista, aberta a contribuições de livre escolha de lei-
tores e leitoras, avaliadas e referendadas pela Comissão Editorial.
O Editor
Dezembro 2015 Revista Adusp

ENTREVISTA
Alfredo Bosi

Poesia como resistência


à ideologia dominante

Daniel Garcia

Concedida aos jornalistas Paulo Hebmüller e Daniel Garcia (fotos)

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Revista Adusp Dezembro 2015

Não são poucas as áreas em que atua e intervém Alfredo Bosi: história, política, Igreja
e militância contra usinas atômicas estão entre elas. Mas é a literatura, que lecionou
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP) durante
praticamente meio século — entre 1959 e 2006, quando se aposentou — que talvez mais
mobilize o professor. “A literatura tem uma função muito rica, humanizadora, e dá uma
grande abertura para qualquer tipo de profissional — mas a escola de alguma maneira
diminuiu muito a sua dosagem, talvez até por causa dos vestibulares”, lamenta.

Nascido em São Paulo em agosto de 1936, Bosi iniciou sua trajetória na USP com o
ingresso na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em 1954. Graduado em Letras
Neolatinas, fez especialização em Filologia Românica e, entre 1961 e 62, especialização em
Literatura Italiana, em Florença, na Itália. Seu doutorado (1964) e a livre docência (1970)
também versaram sobre literatura italiana. Contudo, as letras da terra natal são um dos
focos principais de sua produção acadêmica e da carreira docente.

Seu livro História concisa da literatura brasileira, publicado pela primeira vez em 1970,
já alcançou 49 edições. Bosi é autor também de O conto brasileiro contemporâneo,
O ser e o tempo da poesia, Dialética da colonização, Literatura e resistência, Ideologia
e contraideologia e outros títulos. Muitos dos temas dos quais o professor se ocupa
são abordados nos ensaios reunidos em seu livro mais recente, Entre a literatura e
a história (2013), alguns dos quais citados nesta entrevista. Casado com a psicóloga
social e escritora Ecléa Bosi, professora do Instituto de Psicologia da USP, e pai
de José Alfredo e Viviana, Bosi é membro da Academia Brasileira de Letras desde
2003 e recebeu o título de Professor Emérito da USP em 2009. Continua ligado à
Universidade principalmente pelas atividades no Instituto de Estudos Avançados
(IEA), do qual já foi diretor e onde edita desde o primeiro número, em 1987, a revista
Estudos Avançados. Sobre muitas das questões que o ocupam, Alfredo Bosi concedeu
na sede do IEA, na Cidade Universitária, a entrevista a seguir.

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Revista Adusp. O escritor Mia Daniel Garcia

Couto, numa entrevista que me


concedeu no ano passado, disse o
seguinte: “Não há outra maneira
de reconquistar um sentido de fe-
licidade que seja pleno que não vá
pelo caminho de nos restituir um
olhar poético”. O senhor diz que “a
poesia exprime a subjetividade mais
radical do ser humano”. A poesia
pode fazer a ponte entre essa felici-
dade e essa subjetividade?
ALFREDO BOSI. A poesia tem
mais de um horizonte. Essa frase
do Mia Couto, que eu endosso, re-
almente é o caminho mais feliz da
poesia, não só para quem a pro-
duz — o artista que conhece aquele poesia alimentou muito a minha lentamente. Então me pareceu que
momento de iluminação — como vocação de professor. Agora, além a concepção de poesia apenas co-
sobretudo para os seus leitores. Um dessa visão digamos mais feliz e mo expressão da subjetividade, sem
adolescente numa crise existencial mais eufórica, que conduz a uma dúvida uma visão básica que está
de repente abre um livro de poemas expansão da alma, há uma forma na maioria dos autores de estética,
da Cecília Meireles e sente que há de poesia que me atraiu desde ce- poderia ser pensada também como
coisas belas na existência. Ou então do e sobre a qual escrevi bastante: uma forma de resistência à ideolo-
abre um Carlos Drummond de An- a chamada forma de resistência. gia dominante.
drade e tem contato com uma con- Essa ideia de literatura como resis-
cepção mais irônica ou crítica, ou tência foi amadurecendo para mim
mesmo de grande resistência moral. desde principalmente os anos da
A observação do Mia Couto vale Ditadura Militar — não que eu faça Quando escrevi O ser e o
principalmente para esses momen- uma relação determinista de causa
tempo da poesia (1977),
tos em que a poesia liberta o leitor e efeito, porque a literatura tem
das suas preocupações do cotidiano uma riqueza de possibilidades que destinei um capítulo inteiro
e dá um sentido à existência. felizmente transcende o momento ao conceito de poesia
A minha experiência de leitor político. Mas nesse caso, como se
de poesia começou muito cedo. Eu tratava do longo período de vinte e resistência e verifiquei que
tinha meus 13, 14 anos, já ia à Bi- um anos de ditadura, os intelectuais há mais de uma forma de
blioteca Mário de Andrade e lia tu- mais sensíveis à luta social e aque-
do o que me caía sob os olhos. Nem les que tinham depositado muitas resistência. A mais evidente
tudo eu entendia, como em textos esperanças no governo deposto de é a poesia de crítica social,
de poetas difíceis como Jorge de Li- João Goulart, e tinham passado por
ma ou Murilo Mendes, mas mesmo um momento muito construtivo no de ataque, de sátira. Mas
não entendida a poesia transmite começo dos anos 1960, de repente não é a única
um sentimento básico da existên- se viram confrontados com um ba-
cia através das imagens, menos do que. Aqueles projetos que estavam
que pelos conceitos. A leitura de amadurecendo foram cortados vio-

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Revista Adusp Dezembro 2015
Ao lado da prosa pragmática transcendente, uma forma de supe- sabia se ela existia no Brasil. Um
que predominava na época e das ci- rar a imanência. dia minha esposa e eu estávamos
ências naturais e sociais, os poetas Esse viés das várias formas de comprando mudas na chácara de
também vivem uma tensão entre o resistência me pareceu fecundo. floristas japoneses na Raposo Ta-
seu universo subjetivo, que é múlti- Como faço basicamente histó- vares e resolvi perguntar se o dono
plo, e as forças hegemônicas, sejam ria da literatura — naquela época conhecia a giesta. Estava certo de
do capital ou do Estado. Essa ten- trabalhava com literatura italiana que ele não conheceria, mas quan-
são seria a matriz de uma poesia de — olhando para trás vi que essa do pedi uma muda de giesta ele
resistência. Quando escrevi O ser e tendência poderia ser encontrada pegou o carrinho, entrou nos seus
o tempo da poesia (1977), destinei em vários poetas. Particularmen- labirintos e voltou com ela. Plantei,
um capítulo inteiro ao conceito de te um, Giacomo Leopardi (1798- mudei de casa e, nesses anos todos,
poesia resistência e verifiquei que 1837), que foi objeto da minha tese ela continua lá. É uma flor perene,
há mais de uma forma de resis- de livre docência. Leopardi era pro- que desaparece, mas volta de novo.
tência. A forma mais evidente é a fundamente pessimista, por várias Essa imagem é uma espécie de sím-
poesia de crítica social, de ataque, razões, inclusive autobiográficas, bolo da poesia resistência.
de sátira. Mas não é a única. Às mas no final de sua curta vida creio
vezes o poeta entra muito dentro que encontrou uma imagem para a Revista Adusp. Quem represen-
de si mesmo e sua forte carga sub- resistência. É uma imagem muito taria essa forma na literatura bra-
jetiva involuntariamente se opõe bela e que me persegue, no sentido sileira?
àquilo que é a prosa do mundo, a de que eu a persigo também: a de BOSI. Há várias formas de li-
prosa ideológica. Não que ele faça uma flor que nasce nas encostas do teratura de resistência, e no Brasil
uma proposta formal de ataque à Vesúvio. Leopardi não suportava grandes nomes ilustram essa ten-
sociedade, mas a sua linguagem bem o frio e resolveu viver em Ná- dência. Cruz e Souza, por exemplo,
é tão estranha e tão diferenciada poles, onde passou os últimos anos era um poeta negro que escreveu
em relação àquilo que é a lingua- de sua vida. Pompeia [devastada um poema em prosa chamado “O
gem ideologizada, ou a do senso por uma erupção do vulcão Vesúvio emparedado”, em que se rebela
comum, que ela se transforma em em 79 d.C.] já havia sido descoberta contra a ciência e a antropologia do
resistência. Isso foi muito bem es- pelos arqueólogos alemães, então tempo, que era uma antropologia
tudado por Theodor Adorno, filó- Leopardi viu o que era o passado. racista. É um poema tipicamente
sofo marxista que via essa caracte- Olhando para o Vesúvio, observou de resistência, porque ele estava
rística em certos poetas surrealistas que, apesar da lava que descia pelas imerso na cultura inteiramente ra-
e simbolistas acusados pelos mar- encostas, uma flor resistia. Essa flor cista do final do século 19. Morreu
xistas ortodoxos de alienados, por- em italiano se chama ginestra — em cedo, de tuberculose, totalmente
que aparentemente estavam volta- português, giesta. Seu último poe- marginalizado. Outro nome é Li-
dos apenas para si próprios. Mas ma é “A giesta, ou a flor do deser- ma Barreto, também não por acaso
Adorno fez estudos minuciosos de to”. É um poema belíssimo e difícil mulato, que até foi colocado várias
poetas alemães desse período e ve- — ele é um poeta com reminiscên- vezes pela família num hospício na
rificou que havia um potencial de cias clássicas muito fortes e não é Praia Vermelha, no Rio de Janei-
resistência em seu trabalho. Há um fácil de ler. Quando fiz a minha ro, onde curiosamente hoje está a
ensaio dele que é paradigmático tese, me debrucei sobre o poema e Universidade Federal do Rio de
nessa questão, chamado “Discurso colhi dessa experiência de Leopardi Janeiro, inclusive o seu Instituto de
sobre lírica e sociedade”, que sem- a ideia de poesia como resistência. Psicologia. Temos também Gracilia-
pre recomendo aos meus alunos. E Nos anos em que morei na no Ramos e vários outros escritores
há ainda as formas extremas, mís- Granja Viana, senti falta dessa flor, que podem ser estudados nessa li-
ticas, em que o poeta vai atrás do tão bonita e tão rara. Mas eu não nha da resistência.

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Revista Adusp. O senhor escre- paralelas é grave. Eu tenho forma-
veu que a poesia seria particularmen- ção humanística, mas gostaria de
te bem-vinda no mundo de hoje, no dominar a cultura científica, pela
[Ler poesia] é um exercício
qual ela precisa subsistir num mundo qual tenho enorme respeito.
que se tornou “atravancado de obje- Creio que esse é um fenômeno de autodomínio ... como
tos, atulhado de imagens, aturdido de planetário. Várias vezes estive na professor você tem que
informações, submerso em palavras, França e inicialmente acreditava
sinais e ruídos de toda sorte”. Qual que lá os alunos deveriam ter uma alcançar esse autodomínio
seria o papel da poesia nesse mundo formação humanística muito mais e encontrar, como um ator,
de tanto barulho por nada? aperfeiçoada, afinal sua literatura
BOSI. Essa conferência (“A po- tem 800 anos, mas percebi que não. uma entoação e uma forma.
esia é ainda necessária?”) foi pro- Certa vez, na Bretanha, conversei A entoação é a música da
nunciada como aula inaugural da por acaso com duas senhoras que
Cátedra de Estudos Irlandeses W.B. eram professoras de História e elas poesia: o metro, o ritmo, as
Yeats da FFLCH em 2010. Come- ficaram surpresas quando eu dis- pausas, enfim: é uma arte
cei até meio perplexo: como quem se que havia lido muitos textos do
lê poesia desde a adolescência — maior escritor da região, Chateau-
de ler, e acho que o professor
portanto há muitos e muitos anos briand. No colegial, quando fiz o precisa conquistá-la
— vai questionar se a poesia é ne- curso clássico, o francês era obri-
cessária? Eu cresci no mundo das gatório e havia um curso de litera-
Letras, fui professor durante quase tura francesa no qual líamos esse e
cinquenta anos, primeiro de litera- outros autores, como Victor Hugo. Revista Adusp. E o senhor de-
tura italiana e depois brasileira, e Na França, essa visão panorâmica fende que o professor leia poesia
portanto essa ideia parecia não fa- na qual se estudavam autores desde em voz alta para os alunos, não é?
zer sentido. É uma pergunta prova- a Idade Média até hoje não existe BOSI. Ah, sim. Essa é uma das
velmente feita por alguém que vive mais. Há, sim, estudos muito espe- minhas “teclas”, das minhas obses-
num tempo em que muitas pessoas cializados sobre um ou outro escri- sões. Uma vez estava conversando
ignoram totalmente a poesia e a tor, mas muita coisa parece que se com um jovem professor assisten-
consideram alguma coisa supérflua, perdeu. Então, a média das pessoas te de Literatura Brasileira, muito
senão desnecessária. que não leram é uma média muito bom, muito culto. Ele tinha lido
O questionamento pela neces- inculta. Isso não quer dizer que elas Luckács, Adorno, Benjamin, enfim,
sidade da poesia é paradoxal. Será não tenham interesse, por exemplo, era uma cabeça teórica. Eu disse:
que a História é necessária? Essas em filosofia, mas não têm formação “Acho muito bom que você tenha
perguntas surgem porque as ciên- humanística. A literatura tem uma esses conhecimentos porque elas
cias humanas, as humanidades, en- função muito rica, humanizadora, e vão irrigar a sua interpretação lite-
traram numa fase de descrédito. dá uma grande abertura para qual- rária, mas você precisa transmitir
Frequentemente converso com eco- quer tipo de profissional, mas a es- aos alunos, em primeiro lugar, a
nomistas, engenheiros ou técnicos cola de alguma maneira diminuiu beleza e a emoção de um poema.
que dominam amplamente os seus muito a sua dosagem, talvez até por Você escolhe o poema que quiser
objetos, mas são pessoas incultas. causa dos vestibulares. O aluno tem para que o seu aluno, que depois
Não por culpa delas, mas porque que decorar muita coisa, aquelas vai ser professor de Português, pos-
todos os currículos e o universo que fórmulas todas, e não há espaço sa também ensinar a entoação e a
as cercava as levaram a considerar para ler. Gostaria que as escolas maneira de ler”. Ele respondeu:
a literatura, digamos, como “perfu- públicas pudessem recuperar esse “Ah, professor, acho que nunca vou
maria”. A existência dessas culturas universo. Quem sabe no futuro? ler poesia em voz alta porque te-

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Revista Adusp Dezembro 2015
nho vergonha”. Percebi depois que Também não se deve subesti- Revista Adusp. No ensaio “For-
ele era uma pessoa tímida e achava mar os alunos e pressupor que eles mações ideológicas na cultura bra-
que se lesse ficaria vulnerável e iria não se interessam ou não gostarão sileira” o senhor diz: “Literatura e
no fundo expor os próprios senti- disso ou daquilo. Quando dei aula ideologia se tangenciam enquanto
mentos. Mas esse é justamente um no Colégio Mackenzie para alu- ambas pressupõem o mesmo vasto
exercício de autodomínio. Também nos de 15, 16 anos, idade difícil, campo da experiência intersubjeti-
me comovo com grande facilidade, pensei em Camões. Nos Lusíadas va. Mas os seus modos de conceber
mas como professor você tem que há um episódio épico sobre o gi- e de formalizar essa experiência são
alcançar esse autodomínio e encon- gante Adamastor: Vasco da Gama diversos, quando não opostos”. O
trar, como um ator, uma entoação e chega ao Sul da África, um lugar senhor pode falar sobre isso?
uma forma. A entoação é a música denominado Cabo das Tormentas BOSI. A palavra ideologia pre-
da poesia: o metro, o ritmo, as pau- — e, mais tarde, Cabo da Boa Es- cisa ser pensada antes de julgarmos
sas, enfim: é uma arte de ler, e acho perança — e encontra essa figura que entendemos o que ela significa.
que o professor precisa conquistá- mítica do gigante. Camões não é Há uma concepção ampla e flexível
la. Ler já é uma interpretação. tão difícil quanto parece, e quando de ideologia que se confunde um
Antigamente, havia Daniel Garcia pouco com a cultura da
aula de leitura. O pro- época, o estilo, em que
fessor começava a ler a ideologia entra como
e apontava algum alu- um componente difu-
no que continuava, e o so na cultura. E há um
professor ensinava coi- sentido que foi desen-
sas básicas como a pre- volvido principalmente
paração para uma inter- por Marx e Engels no
rogação — os espanhóis livro A ideologia alemã,
colocam um ponto de que precede O capital,
interrogação no come- em que a palavra ide-
ço, o que é muito inte- ologia tem um sentido
ligente. Os portugueses negativo — isto é, a
quiseram fazer isso no ideologia é a raciona-
século 19, mas a ideia lização que as classes
não prosperou. Excla- dominantes fazem do
mação e interrogação são tonalida- eu lia eles ficavam entusiasmados conhecimento da sociedade. Nos
des cognitivas, ou seja, apontam pa- e queriam subir nas carteiras para termos de Marx, um burguês acha
ra uma linguagem dialogal ou com declamar o Adamastor... O pro- de fato que é natural que o operá-
intenções expressivas. Imagine na fessor deve acreditar que vai entu- rio trabalhe para ele e gere o seu
poesia, em que cada palavra e ca- siasmar o aluno. Tem que ser uma lucro. Depois os economistas clás-
da verso têm a sua própria música, pessoa meio utópica e meio ingê- sicos de certa forma naturalizam
porém sem as indicações da pauta nua ao mesmo tempo. Se começar isso, e chega um momento em que
musical. O professor tem que se com um espírito muito pessimista, a ideologia é a justificativa ou a jus-
preparar muito e ler muito em casa, não vai entusiasmar os alunos. Mi- tificação de um dado social. Marx
em voz alta. Minha hipótese é que, nha filha Viviana é professora de quis mostrar que entendia a forma-
lendo em voz alta, a pessoa já está Teoria Literária e lê muito em voz ção da burguesia capitalista, mas,
intuindo a compreensão do poema. alta, e seus alunos ficam entusias- diferentemente de Adam Smith e
É mais do que voz alta, portanto: é mados. Que bom! Alguma semente dos economistas clássicos, ele não
interpretação em voz alta. está frutificando. só conhece e estuda, mas denuncia.

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Há um momento em que mostra dadeiro e o que não é. As discussões Quando traz, acho que é má poe-
que essa é a justificativa da opres- em torno de um poema podem ser sia. Rudyard Kipling, famoso pelo
são. São, portanto, dois sentidos di- infinitas, porque uma pessoa vê uma poema “Se”, falava do “fardo do
ferentes para ideologia: um difuso, coisa que a outra não vê. A lingua- homem branco”, “the burden of the
não crítico e descritivo como ideia gem da poesia envolve essas ambi- white man” — a colonização. Essa
das mentalidades de uma época, guidades, porque está carregada de expressão é puramente ideológica.
e há o sentido crítico que vem de conotação e polissemia. Para os ingleses, portanto, colonizar
Marx e que em grande parte conti- era um “fardo” que eles aliás exer-
nuou com seus seguidores. ceram com muita competência du-
A poesia pode tangenciar o pri- rante anos e anos... Um poeta que
meiro sentido, é claro. Você lê um Rudyard Kipling, famoso pelo exalta isso é um poeta ideológico.
poeta romântico, com todas aquelas A grande poesia, se tem que di-
poema “Se”, falava do “fardo
expressões de amor à natureza, à zer alguma coisa, dirá em termos
pátria, à tradição, ou um romântico do homem branco” — a de dúvida, ou de uma adesão muito
revolucionário, e constata que é um diferenciada, muito personalizada.
colonização. Essa expressão
poeta cuja ideologia — talvez seja Estou analisando agora um poe-
melhor dizer cuja cultura — é ro- é puramente ideológica. ma de Drummond do livro A rosa
mântica. Agora, com relação à ideo- Para os ingleses, portanto, do povo, que aliás vai fazer setenta
logia dominante, a verdadeira poesia anos neste ano. Chama-se “Visão
faz a distinção claramente, porque colonizar era um “fardo” que 1944”. É um poema extraordinário,
não quer naturalizar a sociedade. A aliás exerceram com muita porque fala de tudo o que é vio-
poesia e a literatura estão mais preo- lento e dilacerante na guerra, e a
cupadas em mostrar como os estímu- competência durante anos e partir de um certo momento procu-
los sociais criam reações dentro do anos... Um poeta que exalta ra mostrar que por baixo daquelas
sujeito na forma de personagens de cidades mutiladas, principalmente
um romance, ou na forma de poesia isso é ideológico da Europa, estava nascendo um ou-
satírica. No caso, não se tangencia: tro mundo. Ele compara esse outro
há uma oposição que é matriz da- mundo, numa descrição muito bo-
quela ideia de poesia resistência. Revista Adusp. O senhor também nita, a uma flor de lótus, que abre
As formas são diferentíssimas, diz nesse ensaio, referindo-se à Es- e fecha. É um poema que consegue
evidentemente. A poesia se produz cola de Frankfurt: “arte não mais es- passar do horror e da denúncia da
de uma maneira musical, imagística pelho da sociedade, mas arte versus guerra a uma forma de esperança.
e com metáforas, não conceitos. A sociedade: arte enquanto crítica”. Não é um discurso panfletário, mas
ideologia, por sua vez, tudo trans- Nessa concepção, a arte exerceria um discurso sensível a um mal e ao
forma em algumas ideias básicas. um papel de contraideologia? bem, tudo trabalhado pela subje-
Talvez a grande diferença seja o ca- BOSI. Ah, sim, certamente. É tividade do poeta. Nesse sentido,
ráter concreto da poesia e o caráter a derivação da ideia de resistência. esse poema é contraideológico.
abstrato da ideologia e das ciências Um hino de guerra, por exemplo,
políticas e econômicas, que querem quer convencer e arrastar pesso- Revista Adusp. Quem o senhor
chegar a fórmulas de conhecimento. as. É a própria ideologia em versos recomendaria, dentro da literatura
A poesia também é mais aberta no cuja finalidade é mexer com as von- brasileira, que os alunos estudas-
sentido de que pode ser interpreta- tades e de alguma maneira atrair as sem e conhecessem?
da de várias maneiras, enquanto a pessoas para uma certa bandeira. A BOSI. Escrevi uma história da
ideologia, ao contrário, procura ser poesia não traz esses elementos e nossa literatura que vai desde o je-
uniforme e identificar o que é ver- não procura essa retórica do poder. suíta José de Anchieta, no século

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Revista Adusp Dezembro 2015
16, até os escritores ainda vivos ou que precisa ser conhecido. Depois tinha que ser, porque São Paulo
que tinham sua produção comple- há três vertentes do Romantismo estava na vanguarda industrial e já
ta já nos anos 1960 — a primeira que acho que precisam ser lidas e começava a ser cosmopolita. Mas
edição da História concisa da lite- aprendidas: a indianista, da qual existem os escritores regionalistas
ratura brasileira foi publicada em Gonçalves Dias é o grande nome; dos anos 1930, alguns muito bons,
1970. Muitos deles continuaram a a do lirismo subjetivo, com Álvares independentemente do Modernis-
escrever depois disso, como Lygia de Azevedo; e a social, com Castro mo. Graciliano Ramos, por exem-
Fagundes Telles, o próprio Drum- Alves. Depois se acrescentou Sou- plo, não tem nada de Modernismo.
mond, Clarice Lispector, Guima- sândrade, que apareceu mais tarde. Ele lia Eça de Queiroz, os france-
rães Rosa... A partir daí as edições O período do Realismo é inten- ses, os realistas, Tolstoi, Dostoie-
se sucederam, às vezes com duas re- samente ocupado por Machado de vski — enfim, o seu universo era o
edições no mesmo ano, e não havia Assis. Ele escreveu desde os anos do grande Realismo do século 19.
tempo para uma atualização no sen- 1860 até praticamente a sua morte, Então é preciso distinguir esses dois
tido de verificar o que se escrevia em 1908. É preciso conhecer pelo momentos, e no primeiro a ênfase
contemporaneamente. O problema menos alguns livros da sua chamada paulista está em 1922, sobretudo na
não é só de tempo: é também de fase madura: Memórias póstumas de figura de Mário de Andrade. Mais
ter um critério muito seguro para Brás Cubas, Quincas Borba e Dom tarde Oswald passou a ser reivin-
aferir o que vai ficar e o que não Casmurro. Mas Machado não está dicado pelos tropicalistas e pelos
vai ficar entre os escritores que es- sozinho nesse universo que chama- poetas concretos. Criou-se um jogo
tão começando. Mas as edições se mos de Realismo. Temos Aluísio de Mário versus Oswald — isso já
sucediam e eu sentia que o livro po- Azevedo e Raul Pompéia, roman- passou, mas foi muito marcante dos
deria ficar desatualizado do ponto cistas que ficam um pouco à som- anos 1970 e 80.
de vista didático. Então, entre 1994 bra. Lima Barreto é o grande escri- Talvez a sua pergunta sobre o
e 95 acrescentei poetas e escritores tor de transição pré-modernista, e que eu recomendaria possa ser me-
da época. Daí por diante, vi que, se depois temos os modernistas. lhor respondida assim: anos depois
continuasse a fazer isso, o livro iria Em São Paulo sempre se deu da primeira edição da História con-
se transformar num catálogo tele- muita ênfase à Semana de Arte Mo- cisa, a Editora Cultrix — por meio
fônico. No fim do século passado e derna de 1922. Em outros Estados de um grande poeta e amigo, José
início deste, tem havido um movi- se afirma que houve um exagero Paulo Paes, já falecido — me pediu
mento editorial enorme e a produ- aí. A grande literatura gaúcha, por que fizesse uma antologia de con-
ção aumentou muito. Por isso, dei exemplo, com nomes como Simões tistas contemporâneos. Esse livro,
essa atualização como ponto final. Lopes Neto, pouco deve ao Mo- O conto brasileiro contemporâneo
O livro pontua a história da li- dernismo. Depois Erico Verissimo (1975), me deu uma grande alegria
teratura brasileira, dando ênfase a ocupa esse espaço, mas ele não é porque havia muitos bons escritores
alguns nomes. Como lecionei lite- modernista, é posterior. Alguns crí- ainda vivos que escreviam contos
ratura colonial por muito tempo, ticos acham estranho que eu, como admiráveis. Debrucei-me sobre eles.
insisti em Anchieta, Gregório de paulista, tenha escrito isso, porque Estão lá 18 escritores posteriores ao
Matos e Padre Vieira. Avanço pelos aqui há uma devoção total sobre- Modernismo — Guimarães Rosa
poetas neoclássicos — claro que tudo a Mário e Oswald de Andra- é o maior deles, e lá estão também
temos que fazer um filtro, mas o de, que sem dúvida são escritores Dalton Trevisan, Lygia Fagundes
aluno precisaria ler por exemplo notáveis — mas parece que todo o Telles, João Antônio e Clarice Lis-
Tomás Antonio Gonzaga e Cláudio Modernismo se esgota neles. Escre- pector, entre outros. Nas sucessi-
Manuel da Costa, poetas envolvi- vi na História concisa que existe um vas edições, achei que não deveria
dos pela Conjuração Mineira. É um momento modernista de vanguar- acrescentar nada. É um livro no
mundo, o mundo de Ouro Preto, da que realmente é paulista — e qual recolhi os contistas que me

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Dezembro 2015 Revista Adusp
pareciam os mais expressivos — e enraizada em interesses de acumu- to de resistência. Oito anos depois,
ainda acho. lação muito sólidos. Sobretudo pa- quando Napoleão assumiu o Con-
ra os que pensam em acumulação sulado e passou a ser a salvação da
de qualquer maneira e em multi- França, houve um lobby tão forte
plicação de seus lucros por meio dos fazendeiros crioulos das ilhas
Sempre deixei claro nos meus dos jogos financeiros, a ideologia que Napoleão cedeu e derrogou
liberal é um prato cheio. Ou seja, aquilo que tinha sido aprovado por
textos que houve liberalismo
cada um defende seu interesse, e aclamação na Revolução. Em 1802
escravista na Europa e nos não há lugar para o espaço público. a França retomou a escravidão nos
Isso é uma coisa mundial. Para es- mesmos termos anteriores à aboli-
Estados Unidos. Não se trata
sa ideologia liberal, a terceirização ção. A escravidão se mantém mes-
de característica apenas também é uma forma de se dispen- mo em 1830, com a Revolução e a
brasileira. Agora, honra sar de uma série de obrigações tra- ascensão de Luís Felipe, num perí-
balhistas. É um recurso que nas ati- odo de enorme expansão do libera-
seja feita: no Brasil existem vidades culturais é muito perigoso lismo na Europa toda. Apenas com
o liberalismo escravista e o e muito grave, porque elas não são a Revolução de 1848 é que se dá a
atividades de lucro imediato: são abolição, com indenização aos pro-
liberalismo abolicionista de atividades públicas, de resistência prietários. Isso é muito importante:
Ruy Barbosa, Castro Alves etc ao mercado. Uma universidade, por de 1802 até 1848, a França, que ao
exemplo, é construída no espírito lado da Inglaterra era a matriz das
de abertura, de democracia. A pa- ideias democráticas e liberais, man-
lavra “público” já diz tudo. teve a escravidão.
Revista Adusp. No mesmo en- As alegações dos “interesses ge- Agora, honra seja feita: no Brasil
saio sobre as formações ideológicas rais” que os escravistas usavam eram existem o liberalismo escravista e
na cultura brasileira, o senhor cita contrastadas, por exemplo, por Jo- o liberalismo abolicionista de Ruy
trechos de falas de deputados pró- aquim Nabuco. É preciso mostrar Barbosa, Castro Alves etc. Escrevi
escravidão nos debates na Câmara que há uma dialética. Nabuco queria há tempos um estudo intitulado “A
no século 19, quando se intensifi- modernizar o Brasil e percebia que escravidão entre dois liberalismos”,
cava a campanha pelo abolicionis- a escravidão era um entrave, além que está no livro Dialética da colo-
mo. Parece inevitável associar essas de uma desumanidade. Da mesma nização (1992). Nesse estudo pole-
falas às que ouvimos, por exemplo, forma, sempre deixei muito claro mizo com a ideia de que liberalismo
nos recentes debates no Congresso nos meus textos que houve um libe- com escravidão seria uma farsa ide-
Nacional sobre a terceirização. Por ralismo escravista na Europa, muito ológica tipicamente brasileira. Se
que certas ideologias são tão resis- intenso também nos Estados Uni- é farsa ideológica, é também fran-
tentes no Brasil? dos. Não se trata de uma caracte- cesa, inglesa, americana etc., cada
BOSI. O historiador Fernand rística apenas brasileira. No Sul dos uma no seu nicho. Quantos milhões
Braudel criou a expressão “história Estados Unidos havia universidades, morreram na Guerra da Secessão
de longa duração”, ou “estruturas como na Virgínia, com professores (1861-1865) nos Estados Unidos
de longa duração”. Ele foi muito de Economia que, por volta de 1850, para libertar os escravos? Há pro-
feliz, porque muitas coisas mu- defendiam a escravidão. vas evidentes de que o mal não é
dam..., mas continuam as mesmas. Um exemplo antológico: em só brasileiro, o que também não é
A ideologia liberal ou neoliberal 1794, a Revolução Francesa, numa consolo. Não é correto achar que o
reviveu nos anos 1990 na Europa, sessão célebre, aboliu a escravidão liberalismo tenha raízes sempre an-
nos Estados Unidos e aqui também. nas colônias das Antilhas. Foi um tiescravistas. Ele tem uma tentação
Ela é muito resistente porque está passo extraordinário e um momen- escravista, que mantém uma tensão

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Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
BOSI. Participei manter a política social, custe o que
daqueles momen- custar. Agora, a desindustrialização,
tos de formação es- apontada por exemplo nos artigos
pontânea e popular do Delfim Netto, do Luiz Gonzaga
do começo dos anos Belluzzo, do Bresser Pereira, é la-
1980 e conheci aque- mentável, e a coisa mais grave que
las pessoas que eram pode haver é o desemprego crescen-
de um idealismo to- te. Esse é o punctum dolens da situa-
tal e estavam mara- ção econômica. John Keynes dizia: a
vilhadas com a pos- economia perfeita é a que tenderia
sibilidade de influir ao desemprego zero. Isso, claro, não
na formação de um existe, mas é uma espécie de horizon-
partido. Era a pri- te. Tudo o que se afasta disso é peri-
meira vez que acon- goso. Nossa taxa de desemprego não
tecia esse contato deveria subir como subiu na Espanha,
direto englobando os na Grécia ou em Portugal. Creio que
sindicatos, a Igreja, o Brasil tem potencialidades maiores
os intelectuais de es- do que esses países. Paralelamente ao
querda etc. Até en- atual ajuste fiscal, tem que haver um
tão, todos os partidos esforço hercúleo para impedir o de-
contínua com o trabalho. Quando o vinham de cima. De semprego. É o desejo de uma pessoa
liberalismo sobe, o que acontece? O fato esse momento fundador alimen- que viu o PT nascer.
trabalho treme e as leis trabalhistas tou muitas esperanças e, se ele não se
são flexibilizadas, não sabemos até repropuser de alguma maneira, não
que ponto. O trabalho tem que se vejo muita saída para o partido. O
cuidar e terá que se defender, por- PT, ou pelo menos a direção do PT, A USP é das poucas
que será atingido. Essa é uma forma aqueles que formam a sua burocracia universidades no País
modernizada da grande tensão entre — e que parecem se eternizar — têm
liberalismo e abolicionismo. duas dívidas: a primeira é realmente que não aceitam as cotas.
afastar pública e abertamente todas Quando, há alguns anos,
Revista Adusp. Num artigo re- as pessoas que foram seduzidas pela
cente na Carta Capital, o senhor cita corrupção. É preciso se limpar disso.
começou o debate sobre
a ligação do PT, em sua origem, com A outra dívida é um fato que lamen- o tema, eu não sabia o
os movimentos populares e as Co- tam todos os economistas, mesmo os
munidades Eclesiais de Base (CE- de esquerda que foram favoráveis a
que dizer. Mas o tempo
Bs) e fala inclusive da sua experiên- Dilma e de alguma maneira ainda a foi passando e fui me
cia num bairro operário de Osasco apoiam como o menor mal: a desin-
no início dos anos 1980. O senhor
convencendo de que a dívida
dustrialização do Brasil. Ao longo do
acha que o PT em particular e o go- período Lula e do primeiro mandato social enorme que temos
verno de forma geral deveriam se da Dilma a ponta do consumo foi
para com os descendentes de
reconectar com esses movimentos e muito desenvolvida. Não vou criti-
estabelecer novamente um diálogo car isso porque era muito necessário, escravos deve ser paga
mais direto de forma a procurar re- e não se deve fazer o mea culpa de de algum modo
cuperar um protagonismo político uma política distributivista num país
que parecem ter perdido? em que nunca houve isso. É preciso

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Revista Adusp. Fala-se muito em tes de escravos deve ser paga de sidade. Essa é uma luta que a Adusp
crise na universidade e, no caso da algum modo, e o melhor modo é pode empreender, porque terá o for-
USP, para além da questão finan- dar mais oportunidades. te apoio da comunidade.
ceira que vem sendo apontada pela A palavra raça foi substituída por
Reitoria, o senhor acha que há uma etnia e mesmo quem utiliza a pa- Revista Adusp. O senhor está há
crise de representatividade e de fal- lavra raça o faz sem a conotação muitos anos envolvido no Instituto
ta de diálogo entre os diferentes pejorativa. O problema do ensino de Estudos Avançados (IEA) da
segmentos? primário e secundário, onde come- USP, que entre outras coisas procu-
BOSI. Certamente há uma crise çam as desigualdades na educação, ra justamente propiciar um espaço
de diálogo. Na questão das cotas, é um problema grave que vamos le- para encontro e debate de ideias. O
por exemplo, acho que deve ha- var talvez uma geração inteira para senhor pode falar dessa trajetória?
ver um diálogo mais profundo e resolver. Hoje sou adepto das cotas BOSI. Tive sorte porque fiz parte
mais constante. A USP é das pou- porque os argumentos contrários dos primeiros conselhos do IEA e o
cas universidades no País que não me parecem menos fortes do que os acompanhei desde o início — che-
aceitam as cotas. Quando, há al- argumentos positivos. Porém, vejo guei a ser diretor. Vem sendo uma
guns anos, começou o debate sobre com preocupação que não há zona trajetória muito feliz, particularmen-
o tema, eu não sabia o que dizer. de diálogo. Deveria haver uma co- te no caso da revista Estudos Avan-
Eu tinha dois receios: primeiro, missão permanente junto ao Co ou çados. O IEA foi fundado em 1986,
que voltasse a palavra raça, tão à Reitoria para dialogar sem que vai completar trinta anos no ano que
superada pela antropologia. Essa existisse o fenômeno da porta fecha- vem, e já em 1987 saiu o primeiro
é uma palavra muito infeliz e que da, porque, quando há uma porta número da revista. Ela já alcançou
já produziu muito mal por dividir fechada, você tenta arrombá-la. Co- mais de 27,6 milhões de acessos pela
a humanidade por características mo professor egresso da FFLCH, internet — só em maio deste ano,
físicas. O segundo é receio de pro- acompanho com muita esperança mais de 520 mil, o que significa que
fessor: será que isso vai permitir o que está acontecendo lá, porque realmente teve ressonância.
que se abandone de fato uma re- decisões recentes da congregação A minha trajetória aqui está
forma profunda na escola primária são favoráveis às cotas (leia ofício muito ligada à revista. Gosto mui-
e secundária, de onde devem vir da congregação da FFLCH no ende- to de elencar quem escreveu para
esses alunos? Meu receio era que reço eletrônico http://bit.ly/1OrLee4). ela. Claro, são mais de 1.500 arti-
nos dispensássemos de olhar para Quando se manifesta uma faculdade gos, mas quando olho para os co-
o ensino secundário, que é a ma- desse tamanho, que é uma verdadei- laboradores fico muito gratificado.
triz das iniquidades, uma vez que ra universidade, acho que é necessá- São nomes como Ignacy Sachs, que
se abriria mais espaço na universi- rio que haja uma sensibilização da criou a ideia de ecodesenvolvimen-
dade para alunos das escolas públi- parte do Co. to; o senador italiano Giovanni Ber-
cas. A escola deve ser uma priori- O caso do Hospital Universitário linguer, o primeiro a alertar sobre o
dade absoluta de todas as congre- (HU) também tem que ser gerido pe- mercado de órgãos para transplan-
gações, sobretudo nas faculdades las pessoas realmente envolvidas. Re- tes; Jacques Chonchol, ministro da
que formam professores. Dentro centemente professores da Faculda- reforma agrária de Salvador Allen-
dos meus limites, sempre militei de de Ciências Farmacêuticas (FCF) de no Chile; Ivan Izquierdo, um
para que os professores primários publicaram um manifesto demons- dos maiores cientistas do mundo
e secundários fossem valorizados, a trando que o HU é fundamental para sobre memória; Jürgen Habermas,
começar pelo salário. Mas o tempo a faculdade e que sua parceria dá que foi entrevistado e também es-
foi passando e fui me convencendo muitos frutos. Fico muito preocupa- creveu para a revista; Eric Hobs-
de que aquela dívida social enorme do quando vejo que há pessoas que bawm, que foi entrevistado pelo
que temos para com os descenden- querem desvincular o HU da Univer- Paulo Sergio Pinheiro; Aníbal Qui-

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Revista Adusp Dezembro 2015
jano; Michel Vovelle; Roger Char- cer. Precisávamos de uma sala e a de 2011], com todos aqueles danos,
tier; Robert Kurz; Jacques Derri- Adusp nos abrigou naquele momen- mostrou os riscos que corremos.
da; Noam Chomsky; Boaventura de to. Vinham pessoas do Greenpeace, Os italianos fizeram um plebiscito
Sousa Santos; André Gorz, entre professores de química e física que para acabar com as usinas atômicas
tantos outros. Entre os brasileiros, faziam análises das radiações, cien- e até os franceses, que dependem
não vou citar nenhum vivo para não tistas japoneses que tinham todo muito dessa energia, também estão
cometer involuntariamente algu- o material sobre as bombas atômi- pensando em fontes alternativas. O
ma injustiça: Aziz Ab’Saber; Otto cas de Hiroshima e Nagasaki e su- mesmo ocorre na Alemanha.
Maria Carpeaux, que era austríaco as consequências etc. Criamos um Já bem antes, em 1980, inclu-
e se naturalizou brasileiro; Ariano grupo de trabalho para lutar contra sive Drummond tinha nos ajuda-
Suassuna; Oswaldo Xidieh; Eras- a usina de Angra 3, porque Angra 1 do. Minha esposa escreveu para ele
mo Garcia Mendes; Octavio Ianni; e 2 estão funcionando e fornecem dizendo que precisávamos de um
Jacob Gorender; Raymundo Faoro; uma pequena parte da energia do grande nome ao nosso lado porque
José Paulo Paes; Benedito Nunes; Rio de Janeiro, embora o problema os deputados poderiam, naquele
também para citar só alguns. do seu lixo atômico ainda não tenha momento, época do acordo nuclear
sido resolvido. Fizemos vários atos com a Alemanha, aprovar a cons-
públicos com o objetivo de reco- trução de uma usina em Iguape.
lher um número de assinaturas que Fomos lá e fizemos até uma pro-
Drummond escreveu no chegasse ao Congresso Nacional cissão para demover as autorida-
e realmente paralisasse Angra 3. des da ideia. Essa luta foi vitoriosa:
Jornal do Brasil um
Esse movimento refluiu um pouco. seja por falta de dinheiro ou por
artigo chamado “Se eu Um de seus inspiradores é o Chico milagre, o processo foi desativado.
Whitaker, ex-vereador em São Pau- A região entre Peruíbe e Iguape,
fosse deputado”. Ele, um
lo, que não desiste nunca. Recente- no litoral Sul de São Paulo, seria
poeta que não tinha nada mente ele enviou uma carta aberta devastada pela usina, mas se trans-
que ver com o assunto, à presidente Dilma e ao ministro formou na atual Estação Ecológica
das Minas e Energia demonstrando Jureia-Itatins. Drummond escre-
foi estudar os males das que, com a atual crise econômica, veu no Jornal do Brasil um artigo
usinas atômicas e escreveu seria o caso de não finalizar a usina, chamado “Se eu fosse deputado”.
devido ao seu custo altíssimo. Eu Ele, um poeta que não tinha nada
um texto muito bonito e muitas outras pessoas assinamos que ver com o assunto, foi estudar
que mandamos para os a carta. Creio que é uma luta que os males das usinas atômicas e es-
deve continuar e que é preciso con- creveu um texto muito bonito que
deputados e foi reproduzido vencer a presidente Dilma de que o mandamos para os deputados e foi
em outros jornais Brasil tem muitas alternativas, e a reproduzido em outros jornais (leia
energia atômica não é uma delas. aqui o texto de Drummond: http://bit.
Nem todos os físicos pensam co- ly/1MR8IXp).
mo nós. Há pessoas que acham que A revista Estudos Avançados
Revista Adusp. O senhor partici- essa energia é necessária, mas nós vem publicando vários dossiês so-
pava de um grupo contrário à usina pensamos muito mais nos riscos. bre energia, com artigos assinados
nuclear, grupo este que se reunia Conseguimos produzir alguns do- por pessoas muito competentes. Já
na sede da Adusp. Como foi essa cumentos, folhetos e livretos para recebemos críticas dizendo que a
experiência? distribuir às pessoas. O que acon- revista era contra Angra 3 — e eu
BOSI. A Adusp foi muito ge- teceu em Fukushima [acidente nu- respondi: sim, de fato somos contra
nerosa conosco, só posso agrade- clear após o terremoto e o tsunami e assumimos isso.

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Brasil

Descaso e repressão,
política para ensino
público em SP e PR
João Peres, Moriti Neto, Thiago Domenici
Jornalistas
Joka Madruga/Terralivrepress.com

Desde as décadas de 1980 e 1990, mandatários paulistas e paranaenses pouco dialogam com a
categoria dos professores — e, no limite, reagem com violência a greves. Em 2015, duas efemérides
ligadas à educação pública e avaliações pessimistas quando se fala de avanços nessas redes
estaduais demonstram uma situação que parece interminável: de um lado, educadores reivindicam
salários dignos, plano de carreira e melhor estrutura de trabalho; de outro, governantes fazem
ouvidos moucos. Os exemplos do passado descortinam o que se vivencia no presente. A imagem
acima mostra o início do ataque da PM aos professores em 29 de abril, em Curitiba

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Revista Adusp Dezembro 2015
A Praça da República, no centro Nos anos seguintes, os profes- crática que sustentavam os discur-
de São Paulo, abrigava aproximada- sores sentiram as consequências. sos anteriores deram lugar às de
mente 100 professores acampados Numa condição paradoxal, a ca- natureza gerencial. “Como a polí-
em frente ao Colégio Caetano de tegoria passou a ser avaliada por tica era municipalizar, o governo
Campos, sede da Secretaria Esta- mecanismos externos, como o Sis- desmantela a rede, com impacto
dual de Educação (SEE). Pela ma- tema de Avaliação de Rendimento nos municípios menores, mais sus-
nhã, uma faixa estampava a frase Escolar do Estado de São Paulo cetíveis de pressão política, criando
“Professores em greve acampados (Saresp), e internos, a exemplo dos uma desestruturação. Hoje, há uma
em defesa da escola pública, do em- testes de desempenho. Na esteira inversão: o Estado repassa quase
prego e do salário”. A ocupação era das mudanças, a carreira do ma- R$ 4 bilhões para os municípios”,
pacífica. A Polícia Militar mantinha gistério sofria com a rotatividade avalia Marcelino.
uma viatura no local: “Estamos aqui, de educadores nas escolas, o alto
também, para garantir a segurança número de alunos por sala de aula,
dos professores”. Horas depois, o a violência no cotidiano escolar,
cenário mudaria drasticamente. À o arrocho salarial que obrigava a “É complicadíssimo darmos
tarde, na avenida Paulista, durante jornadas exaustivas e a criação da
aula para um aluno que
manifestação de servidores públicos aprovação automática de alunos. A
estaduais, o movimento sofreria vio- categoria ainda assistiu ao que o go- não foi alfabetizado”, diz
lenta repressão da Tropa de Choque: verno chamou de “reorganização da Guiomar Ferreira. “A aula
bombas de gás, balas de borracha e rede”, fechando 8 mil salas de aula
muitos feridos. Atingido por estilha- em 105 escolas, com a demissão su- é missa de corpo presente
ços, o professor Ronaldo Ferreira mária de 22.629 professores, o que apenas, como se bastasse a
dos Santos perdeu um dos dedos da preparou o caminho da política de
mão e o repórter-fotográfico Alex municipalização da educação, con- presença física de professores
Silveira (que cobria a manifestação cretizada em 1996 com a instituição e alunos”, comenta Ana
para o jornal Agora SP) recebeu um do Programa de Ação e Parceria
tiro de bala de borracha no olho es- Educacional Estado-Município. Lídia, que leciona para 16
querdo, que o deixaria cego. Ocor- A reforma transferiu para as salas com 45 alunos cada
rido há 15 anos, durante uma greve prefeituras parte da responsabilida-
que durou 43 dias, o episódio, se de pelo ensino fundamental, num
comparado aos eventos violentos movimento apelidado de “Jack,
mais recentes de 2015 envolvendo o estripador” pelo professor José Guiomar Ferreira, professora
a categoria, demonstra que nem a Marcelino de Rezende Pinto, da de Geografia da rede pública há 22
situação do professorado nem os Faculdade de Educação da USP de anos, também fixa essa divisão entre
métodos do governo evoluíram. Ribeirão Preto. “Naquele momen- prefeitura e Estado como um marco
Mário Covas (PSDB), que assu- to, o Estado tinha uma rede pública fundamental para a precarização do
mira o mandato em 1995, era um única que receberia um aporte de ensino. “A prefeitura está preocupa-
governador alinhado aos objetivos do muitos bilhões, o suficiente para da só com a verba que vai receber e
governo federal, presidido pelo cor- estruturar uma rede que já tinha as não com a educação. Há municípios
religionário Fernando Henrique Car- condições básicas.” em que há comprometimento. No
doso. Covas tinha como meta “novas A maioria das entidades da so- meu, não há. É complicadíssimo dar-
condições para o financiamento da ciedade civil, especialmente na área mos aula para um aluno que não foi
educação”, e a “reforma educacional” sindical, foi contra a proposta, mas alfabetizado”, diz a docente, que atu-
teve como eixos descentralização, pri- não conseguiu barrar o processo. almente leciona para o ensino médio
vatização e desregulamentação. As justificativas de natureza demo- em Itanhaém, no litoral paulista.

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Mirophotos
Ao falar sobre os problemas em que os profissionais alcancem uma
sua cidade, ela toca em outro ponto série de metas, o que inclui verifica-
apresentado como solução no dis- ção das taxas de aprovação, reprova-
curso tucano: a chamada “progres- ção e abandono escolar de alunos.
são continuada”, prevista pela Lei de Bebel, que reassumiu a presidên-
Diretrizes e Bases, de 1996, adotada cia da Apeoesp em 2008 e segue à
em São Paulo por Covas sob a ideia frente do sindicato, compara as mo-
de que a aprovação automática redu- bilizações de 2000 e deste ano. “São
ziria a taxa de evasão por evitar de- greves históricas que provam, por
sestímulo dos alunos. O mecanismo um lado, a força do movimento dos
pensado por educadores visa a res- professores e, por outro, demons-
peitar o tempo de aprendizado de ca- tram a continuidade da má gestão
da estudante, mas prevê que se passe do Estado de São Paulo.” A dirigen-
por um processo contínuo de acom- te sindical avalia que Geraldo Alck-
panhamento para monitorar pontos min (que foi vice de Covas) conserva
Professor José Marcelino (FFCLRP)
que devem ser alvo de melhoria. É uma postura truculenta em relação
raro encontrar um professor que se mesmo sob vaias, o então governa- aos professores, algo que, segundo
arrisque a dizer que esse projeto é dor decidiu passar duas vezes pelo ela, ficou evidente na maior greve da
devidamente implementado na rede acampamento dos professores na história da categoria. “Durante 92
pública paulista. “O aluno vai pas- Praça da República. Em retaliação dias, o governo limitou-se a atacar a
sando, passando, passando. Chega à às vaias recebidas, seguranças do Apeoesp e a renegar o movimento,
quinta série com o mesmo problema tucano destruíram algumas barracas. mesmo diante de todas as evidências
da primeira”, constata Guiomar. Policiais usaram bombas de efeito da insatisfação.” De fato, o governa-
Ana Lídia Aguiar, professora de moral contra os ativistas, que res- dor declarou não existir greve: “Os
sociologia no ensino médio em São ponderam com pedras, paus e laran- professores estão dando aulas e, os
José dos Campos, também é críti- jas. Atingido, Covas sofreu dois leves alunos, estudando”.
ca à política educacional tucana. cortes, na testa e no lábio superior.
Ela se questiona como vai garantir Cinco professores foram presos. Ou-
atenção às potencialidades dos alu- tros quatro ficaram feridos.
nos “num cenário assim”. Respon- Presidenta da Apeoesp à época, No Paraná, o governo de
sável por 16 salas, que recebem, em Maria Izabel Azevedo de Noronha,
Alvaro Dias (1988) é autor
média, 45 alunos, faz 32 horas de a Bebel, afirmou que a atitude do
carga horária, mais 3 horas de Aula mandatário o fez sair “como vítima”. de uma agressão histórica
de Trabalho Pedagógico Coletivo O desfecho não foi dos melhores. O à categoria, ao jogar sobre
(ATPC), além de tarefas que leva que se viu em seguida foi a imple-
para casa. “Cada aluno é um ca- mentação da “política de bônus”, ela a cavalaria da PM.
so, tem diferenciais. Só que, nessa na qual gratificações de até R$ 6 mil Mas as tropas do também
situação, a gente faz de conta que eram pagas aos docentes com “boa
dá aula e o aluno faz de conta que assiduidade”, situação que dividiu a tucano Beto Richa (2015)
aprende”. Para a educadora, “a au- categoria, dificultando a possibilida- produziram verdadeiro
la é uma missa de corpo presente de de movimentos grevistas sólidos.
apenas, como se só a presença física Tal bonificação jamais foi incorpo- massacre: 170 feridos,
de professores e alunos bastasse”. rada aos salários e está na origem da muitos com gravidade
Presença física foi o que ofereceu polêmica “política de meritocracia”
Mario Covas. Em junho de 2000, no ensino público, que prevê, ainda,

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Revista Adusp Dezembro 2015
Douglas Mansur/Apeoesp Daniel Garcia

Assembleia da Apeoesp no MASP, em São Paulo Bebel, presidente da Apeoesp

Como ficou demonstrado na gre- testar em frente ao Palácio Iguaçu, Estado que não tinha sido escrita”,
ve dos professores paranaenses des- mas a polícia fez um cordão de isola- avalia Hermes Silva Leão, presi-
te ano, a atitude dos governos do mento. As agressões não demoraram dente da APP-Sindicato. Para ele, o
PSDB não se limita a São Paulo. a ocorrer. Enquanto os professores confronto caracterizou um governo
Além da violência perpetrada pela lembram a data pelas marcas da vio- com um “traço de ditadura”. Ao
atual administração de Beto Richa lência estatal, Alvaro Dias nega a menos 170 pessoas ficaram feridas,
em abril, outra data simboliza o his- repressão e afirma que o sindicato muitas com gravidade. Os docentes
tórico de conflagrações no Estado. “usou a manifestação politicamen- mantiveram uma greve de 45 dias e
Em 1988, Alvaro Dias, hoje senador te”. Em declaração ao jornal para- a repercussão das ocorrências der-
peessedebista, comandava o executi- naense Gazeta do Povo, em 2013, rubou os secretários de Educação,
vo, e uma greve entrava para a histó- chegou a minimizar a intensidade do Fernando Xavier, e de Segurança,
ria pela agressividade do desenlace. ataque da polícia: “Se compararmos Fernando Francischini.
No dia 30 de agosto, policiais mili- com tumultos recentes, aquilo vai “Hoje, temos uma democracia
tares avançaram com cavalos, cães e parecer uma brincadeira.” muito mais consolidada do que tí-
bombas de efeito moral contra uma Se a cavalaria deixou um rastro nhamos em 1988, o que torna esse
multidão que protestava por melho- de brutalidade em 1988, o grau de rompimento de agora (pelo governo
res salários e condições de trabalho violência com Beto Richa em 2015 Beto Richa) muito mais grave”, en-
na Praça Nossa Senhora de Salette, foi ainda pior. Na luta por reajuste fatiza o professor Marcos Ferraz, in-
em Curitiba. A repressão deixou dez salarial e contra o projeto do gover- tegrante do Núcleo de Pesquisa em
pessoas feridas e resultou na prisão nador que modifica a previdência Políticas Educacionais da Univer-
de cinco manifestantes. dos funcionários públicos estaduais, sidade Federal do Paraná (UFPR).
A greve durava duas semanas 15 mil manifestantes — segundo a Em meio à repressão e a protestos,
sem que o governo e a Associação associação dos professores — foram a Assembleia Legislativa aprovou o
dos Professores do Paraná (APP) atacados por disparos de balas de projeto que transfere do governo es-
chegassem a um acordo. O pico de borracha, spray de pimenta, bom- tadual para um fundo dos servidores
insatisfação veio com uma passeata bas de gás e mordidas de cães da públicos a responsabilidade pelas
da Praça Rui Barbosa até o Centro PM. “O ataque que a gente sofreu aposentadorias de 33.556 beneficiá-
Cívico. Os docentes planejavam pro- marca uma página da história do rios com 73 anos ou mais.

21
Dezembro 2015 Revista Adusp
Fotos: Joka Madruga

Hermes Leão, presidente da APP

Estudo da OCDE revela que


o Brasil paga segundo pior
salário para professor entre
os 44 países pesquisados. A
nossa média de US$ 10.375
Flagrantes da brutalidade policial no Paraná
é 3 vezes inferior à média das
pesquisadas. Ficamos atrás a lei 11.738, de 2008, que fixa o piso professor. A média de US$ 10.375
salarial dos professores do magisté- é três vezes menor que a auferida
até de quem também adotou rio e a lei que destina ao setor parte entre as nações pesquisadas e fica
receitas neoliberais: Chile (US$ considerável da arrecadação com seis vezes abaixo do que é pago em
royalties do petróleo da camada pré- Luxemburgo, com US$ 66 mil ao
17.770) e México (U$ 15.556) sal são indicadores desse cenário. ano, segundo dados coletados em
Se crescem os recursos disponíveis, 2012 e reunidos em pesquisa divul-
a vontade de aplicação e o destino gada no ano passado. Até mesmo
Em âmbito nacional, nos últimos nem sempre seguem o caminho an- quando comparado a países que
anos, o financiamento e a organiza- siado por trabalhadores da área. adotaram receituários neoliberais
ção da educação apresentaram avan- Estudo feito pela Organização na seara educacional, o Brasil fica
ços graças a decisões do Legislativo para a Cooperação e o Desenvol- bem atrás: US$ 17.770, no Chile, e
e do Executivo. Ainda que quanto vimento Econômico (OCDE) mos- US$ 15.556, no México.
a todas elas possa haver poréns, o tra que, entre 44 países, o Brasil “O professor é desprestigiado
Plano Nacional de Educação (PNE), paga o segundo pior salário para o de longa data, tanto socialmente

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Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
garantir a valorização monetária da Os relatos sobre a falta de con-
carreira docente. Estudo feito pela dições de trabalho são conheci-
Confederação Nacional dos Tra- dos há anos. Salas superlotadas,
balhadores em Educação (CNTE) alunos carentes de conhecimentos
mostra que sete Estados ignoram básicos e baixo nível de infraes-
a legislação e outros 14 a descum- trutura eram, são e possivelmente
prem parcialmente. São os casos de continuarão a ser problemas fre-
São Paulo, que paga o valor corre- quentes (vide, por exemplo, Revis-
to, mas não respeita a necessidade ta Adusp 38, de 2006: http://www.
de o professor dedicar um terço da adusp.org.br/files/revistas/38/r38a01.
jornada a atividades extraclasse, e pdf). Novo, ou relativamente no-
do Paraná, que não paga o míni- vo, é o cenário global de transfor-
mo estabelecido — atualmente R$ mações aceleradas frente ao qual
Professor Rubens Camargo (FE) 1.917,78, na tabela do Ministério uma situação ruim fica pior. “A
quanto economicamente e, não te- da Educação. gente não consegue dar atenção
nho dúvida, reverter isso demanda O resultado está refletido em individualizada. É uma educação
uma política de valorização”, diz outro relatório, que foi elaborado a toque de caixa”, avalia Bianca
Rubens Barbosa de Camargo, pro- em 2014 pelo Instituto de Pesquisa Lunna, professora de sociologia no
fessor da Faculdade de Educação Econômica Aplicada (IPEA). Ape- ensino médio.
da USP. Entre 20 metas, o PNE de- sar da entrada de 220 mil profis- Há cinco anos na rede pública
fine que o salário dos docentes do sionais da educação todos os anos estadual de São Paulo, ela se depa-
magistério deve ser equiparado à no mercado de trabalho, não há ra com questionamentos comuns
média garantida a outros servidores sinais de excesso de oferta de força entre colegas: até quando vale a
públicos de nível superior até 2020. de trabalho entre professores dos pena continuar? “Foi o meu mais
“As elites do nosso país nunca apos- ensinos básico a médio, pois muitos efetivo engajamento político, acre-
taram numa educação das massas desistem da carreira. dito, para oferecer uma visão de
de qualidade, nunca pensaram que mundo, uma transformação social,
a educação servisse para formar ci- mas eu confesso que estou bem
dadãos, para que se tivesse uma desencantada”, contou, durante
melhoria da própria sociedade. En- Salas superlotadas, alunos uma das assembleias da última gre-
xergam a educação pública como ve da categoria. “Porque a gente é
carentes de conhecimentos
provedora de mão de obra”, diz Ca- tratado como lixo e porque esse
margo, ex-secretário municipal da básicos e baixo nível de modelo de escola funciona para
Educação de São Carlos. não funcionar”.
infraestrutura eram, são e
Outro instrumento legal mostra Em termos de danos à imple-
como discurso e prática se divor- possivelmente continuarão mentação de projetos pedagógicos
ciam quando o assunto é educação. a ser problemas frequentes. sólidos, nada é mais nocivo do que
Governadores de vários Estados a precarização da força de traba-
apresentaram duas ações tentando Mas a situação tem piorado. lho, avalia o IPEA. O estudo “Sub-
derrubar parte das obrigações pre- “A gente não consegue dar sídios e proposições preliminares
vistas na lei 11.738, também conhe- para um debate sobre o magisté-
cida como Lei Nacional do Piso do atenção individualizada. É rio da educação básica no Brasil”
Magistério. Na primeira, perderam. educação a toque de caixa” constata que professores temporá-
Agora, esperam que o Supremo rios ou terceirizados chegam a 1/4
Tribunal Federal os desobrigue de do total nas redes públicas esta-

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Dezembro 2015 Revista Adusp
duais e municipais, superando os não foram respondidos até o fe- público. Ou seja, um trabalhador
40% em física e química. chamento deste texto. dispensado em dezembro só pode-
Lilian Barbosa lança um olhar rá voltar a assumir aulas entre ju-
de resignação sempre que per- lho e agosto. “Você fica mais des-
guntada sobre o futuro como pro- motivado ainda. Sem contar que,
fessora. “Se não tivesse esse ou- Uma das grandes queixas se começo a trabalhar em junho,
tro trabalho, não sei como estaria dos educadores temporários só vou receber daqui a três meses”,
agora”, diz, durante uma conversa diz Lilian. Formada em Letras no
na praça de alimentação do shop- em São Paulo diz respeito à ano de 2009, ela esperou até 2011
ping em que trabalha, na zona sul “duzentena”, prazo de 200 para buscar trabalho como profes-
de São Paulo. Aos 37, a balança sora eventual, atividade que exer-
de Lilian oscila entre duas pai- dias ao término do contrato ceu até 2012.
xões: a beleza e a educação. Nos no qual o professor não pode Nos dois anos seguintes, foi
últimos tempos, o design de so- integrante da chamada categoria
brancelhas tem vencido a disputa
estabelecer novo vínculo com “O”, designação oficial que se
ao oferecer estabilidade e melho- o poder público. “Você fica dá aos professores temporários.
res rendimentos. O contrato foi encerrado em de-
mais desmotivado ainda”,
Lilian fez parte dos mais de 112 zembro passado, com duzentena
mil professores não concursados diz Lilian Barbosa terminada em julho de 2015. Co-
(temporários ou eventuais) ante mo o vínculo começa a contar no
os 139 mil efetivos, segundo dados prazo de 24 meses a partir do ano
do ano passado. Em São Paulo, o em que foi estabelecido (não do
índice chegou a ser de 73,9% de Uma das perguntas, no caso mês), Lilian não tem intenção de
não concursados em 1999, no go- do órgão paulista, dizia respeito buscar agora um novo trabalho
verno Covas. Atualmente, está em ao levantamento inédito do mes- como docente. “Vou ver o que vai
44,7%, menor patamar da histó- trando em Educação pela USP ser da minha vida para decidir se
ria. A contratação de funcionários José Quibao Neto. O pesquisador fico na educação ou não. Porque
temporários pelo Executivo esta- identificou que o Estado não só viver nessa instabilidade é difí-
dual é sustentada na Lei Comple- não conseguiu diminuir o núme- cil”, constata.
mentar 1.093, de 2009, que diz que ro de não concursados em quase Categoria “O” em São Paulo,
os professores são uma categoria duas décadas, como o histórico “PSS” ou Processo Seletivo Sim-
à parte, com possibilidades quase dos temporários demonstra que plificado no Paraná. As nomencla-
irrestritas de abertura de contra- “a anomalia da excepcionalidade turas mudam, o quadro de preca-
tos com duração de até 24 meses. é a regra”, já que a Constituição rização é parecido. No Paraná, o
Sempre que houver aulas dispo- de 1988 prevê aprovação em con- sindicato da categoria calcula em
níveis, salas precisando de docen- curso público. Os seis processos 25% a faixa de docentes tempo-
tes ou cargos não preenchidos por de seleção realizados em São Pau- rários. No final do ano, o governo
concurso, pode-se apelar aos tem- lo entre 1999 e 2014 efetivaram Richa deixou de pagar salários dos
porários. A legislação deixa claro somente 83 mil professores. professores contratados pelo PSS.
que esses servidores têm apenas Uma das grandes queixas dos “É horrível”, define Sonia Rosa
dois direitos: décimo-terceiro salá- educadores temporários diz respei- Pires. Professora concursada em
rio e pagamento de férias propor- to à chamada “duzentena”, prazo São Paulo durante 17 anos, ela se
cionais. Questionamentos enviados de 200 dias ao término do contrato mudou para Alto Paraná, no no-
pela reportagem às secretarias de no qual o professor não pode esta- roeste paranaense, há três anos.
Educação de São Paulo e Paraná belecer novo vínculo com o poder Nos dois primeiros, antes de ser

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Revista Adusp Dezembro 2015
Fotos: Daniel Garcia
estimulado os professores a in-
gressar com ações individuais con-
tra a duzentena. Nos primeiros
cinco meses do ano, ações movi-
das em cinco cidades resultaram
em concessão de liminar para que
os professores cumprissem ape-
nas quarenta dias de afastamento,
prazo considerado normal para
o serviço público. Nas decisões,
juízes manifestaram que o impe-
dimento ao trabalho por duzentos
dias cria uma situação que fere os
princípios básicos da igualdade.
A Apeoesp quer concursos mais
frequentes. “Os professores tem-
porários deveriam ser limitados
Professora Bianca Lunna José Quibao Neto
a 5% ou 10% do total de efetivos
aprovada em concurso, teve de se Os relatos coincidem com al- e os concursos deveriam ter uma
submeter à condição de temporá- gumas análises e estudos que indi- periodicidade menor. Enquanto
ria. “É lamentável porque a gente cam que a profissão tem, cada vez permanecem como temporários,
tem que fazer uma inscrição on- mais, se tornado um “bico”. eles devem ter assegurada a dig-
line, colocar a documentação ne- nidade no exercício da profissão”,
cessária. E conforme vão surgindo diz Bebel.
as necessidades no ano letivo é que Camila Lisboa é professora há
eles vão chamando os professores Ações individuais contra a dois anos. Crescida e formada na
por ordem de pontuação. No final “duzentena” resultaram em rede pública paulista, entendeu
do ano, você é cortado do sistema que lecionar no sistema gratuito
e fica sem receber.” liminares contra o governo e aberto a todos seria uma ma-
Num dos anos, Sonia foi cha- estadual. A Apeoesp quer neira de retribuir à sociedade e
mada para trabalhar apenas em de utilizar a educação como um
abril. Mesmo agora, como con- mais concursos e limite de instrumento de transformação so-
cursada, ela se depara com o de- 10% de temporários na rede. cial. “Mas, quando a gente chega
sânimo trazido pelas condições de na escola, a realidade é bem difí-
trabalho dentro da sala de aula e
Enquanto forem temporários, cil. Você tem salas superlotadas,
pela baixa remuneração. “Era um “eles devem ter assegurada crianças em situação social deli-
sonho e foi o que eu segui. Gosto cada. Aí você começa a entender
a dignidade no exercício da
muito de escola, de estudar, de por que tantos professores adoe-
ficar em constante aprendizado, profissão”, diz Bebel cem”, admite.
gosto de ler, de escrever”, afir- No primeiro ano de profissão,
ma. “Estou pensando em fazer integrou a lista de profissionais da
um curso de modelista e estilista. categoria O. “A gente não pode
Minha mãe é costureira. Se der Na falta de avanços na nego- ter falta. Você fica à margem. As
certo, vou mudar de ramo, sim. A ciação com o governo de São Pau- condições de trabalho são ruins,
tendência é piorar cada vez mais”. lo, representantes sindicais têm ganha-se pouco”, afirma. Ser tem-

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Dezembro 2015 Revista Adusp

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Revista Adusp Dezembro 2015
porário é um problema para co- mandaria que o reajuste em 2015 fos-
meçar o contrato, outro para ter- se de 19,6%, no geral, e de 24,4%, no
minar. “Primeiro, o pessoal efeti- Para que fosse cumprido caso específico dos professores que
vo faz atribuição. O que sobra vai lecionam até a quinta série do ensino
para quem é contratado. Chega de imediato o PNE, os fundamental. Em valores atualizados,
a ser humilhante. Vai um monte professores da rede estadual o salário médio do segmento equiva-
de gente numa escola, fica o dia leria a R$ 1.946 para uma jornada de
inteiro para talvez ter aula, talvez
deveriam ter direito a uma 30 horas-aula semanais, frente a uma
não. Chega de manhã e sai de lá à remuneração equivalente realidade de R$ 1.565. Além disso, o
noite”. Dieese avalia que a média da remune-
à média do funcionalismo
Outro levantamento ainda iné- ração do quadro do magistério da re-
dito, realizado pelo mestrando em público estadual paulista, hoje de estadual não satisfaz as necessida-
educação João Batista Silva dos des básicas de uma família de quatro
em R$ 4.247, o que implicaria
Santos, da Universidade Federal de pessoas (dois adultos e duas crianças).
São Paulo (Unifesp), mostra que, se um reajuste de 75,33% A Apeoesp, considerando a mé-
todos os docentes fossem concursa- dia geral da categoria, fala em salário
dos, os investimentos do governo de R$ 2.422 para uma jornada de 40
estadual em folha de pagamento Na última edição, o programa con- horas semanais. Mas, para que fos-
subiriam em torno de 10%. Num templou 10,7 mil professores, direto- se cumprido de imediato o PNE, os
recorte específico, que exemplifica res e supervisores. “Passei na prova do docentes deveriam ter direito a uma
a situação, Batista explica que, no mérito, mas isso não é certo. Quando remuneração equivalente à média do
mês de outubro de 2013, “o Estado houve a primeira prova, deu 25% de funcionalismo público estadual, hoje
poupou R$ 63 milhões ao manter o aumento só para 20% dos aprovados. em R$ 4.247, o que implicaria um
percentual de professores temporá- Aí começou a divisão, inclusive com reajuste de 75,33%.
rios na rede, o que representa em posturas preconceituosas dos próprios O desestímulo criado pela situação
um ano o equivalente a mais de R$ colegas”, lamenta Filomena Leal, pro- aquém do esperado é verbalizado por
750 milhões”. fessora de Geografia na rede pública praticamente todos os professores. E é
Obviamente, a recente contra- há quase duas décadas. ainda mais claro no caso daqueles que
tação de professores na rede pau- Nos cálculos do governo estadu- atuam também nas capitais. Um pro-
lista não significa que as condições al, a valorização máxima para apro- fissional da educação no estágio mais
salariais sejam excelentes. Longe vados nas políticas de avaliação é de alto da carreira pode receber R$ 8.400
disso. “Quando os governos co- 45% entre 2011 e 2014. Um profes- na rede municipal, salário inalcançável
meçam a acertar um pouquinho sor de ensino médio que recebia R$ para um professor da rede estadual.
mais a questão do piso, fazem isso 1.655 chegou a R$ 2.415 em 2014, “Então, se invisto na minha formação,
à custa de dois movimentos: ou segundo a Secretaria de Educação, vou ter um retorno. No Estado, não.
do achatamento da carreira, o que quase R$ 600 a mais em compara- Tenho pós-graduação, tenho cursos de
acontece em São Paulo, ou do uso ção com a média dos profissionais especialização e isso não me dá uma
de professores precários”, avalia em exercício na mesma função. condição melhor de trabalho”, recla-
Rubens Camargo, da USP. Criado Ao fazer os cálculos, o Departa- ma Luciana Ferreira, professora da
em 2010, o Programa de Valoriza- mento Intersindical de Estatísticas e rede estadual há 22 anos.
ção do Mérito garante reajustes Estudos Socioeconômicos (Dieese) Se depender de Alckmin e Richa,
acima da média para uma cota de concluiu que a recuperação do poder Luciana, Bianca, Filomena, Sonia e
docentes que consegue os melho- de compra de 1998 para os profes- Guiomar terão mesmo de procurar
res desempenhos em uma avalia- sores como um todo, sem separação outros lugares para promover educa-
ção aplicada anualmente. entre abonados e desabonados, de- ção de qualidade.

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Dezembro 2015 América Latina (I) Revista Adusp

Ataque midiático à
Democracia e aos
projetos nacionais
Frederico Füllgraf
Jornalista

“...Nossos adversários dizem: ‘Sim, anos atrás,


nós garantimos a liberdade de opinião a vocês’. Sim vocês a nós!
Mas esta não é uma prova de que nós a devemos garantir a vocês!
Que vocês a deram a nós é apenas uma prova do burros que são!”
Joseph Goebbels
(discurso, 4/12/1935)

Hugo Chávez reassume em 2002

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Revista Adusp Dezembro 2015
Em uma audiência para rádios de comunicação, que não consegui- Ao obter folgada maioria de
e televisões católicas, ocorrida em ram conter as escaladas dos jornais 56,20% dos votos, em 6 de dezem-
março de 2014, ninguém menos que Clarín (Buenos Aires) e El Universo bro de 1998, o então tenente-coro-
o Papa Francisco declarou: “Hoje, (Quito). No recém-lançado livro nel da reserva Hugo Chávez, can-
o clima midiático tem suas formas La internacional del terror mediático didato de uma frente ampla, na-
de envenenamento. As pessoas sa- (Buenos Aires, 2015), Aharonian cionalista e progressista, elegeu-se
bem, percebem, mas infelizmente fulmina: “Sem uma democratiza- presidente da Venezuela com um
se acostumam a respirar do rádio ção da comunicação é muito difícil projeto de reformas centradas na
e da televisão um ar sujo, que não que tenhamos novas sociedades e nacionalização do petróleo e no
faz bem. É preciso fazer circular democracias mais inclusivas e mais combate à pobreza, na qual estavam
um ar mais limpo. Para mim, os equitativas”. mergulhados 43,9% da população.
maiores pecados são aqueles que Concertações e conspirações mi- Consciente da oposição que lhe
vão na estrada da mentira, e são diáticas não são novidade no Brasil, fariam a tradicional oligarquia e as
três: a desinformação, a calúnia e a cuja frágil república enfrentou duas novas forças neoliberais, Chávez
difamação”. delas: a partir de 1950, o ataque vislumbrou uma reforma da Cons-
O uruguaio Aram Aharonian, fun- cerrado ao governo Getúlio Vargas, tituição como ferramenta jurídica
dador da TeleSur, alerta: “Vivemos e — pela mesma falange constituí- para deslanchar os programas pro-
em plena batalha cultural: a guerra da por Correio da Manhã, Jornal do metidos em campanha. Para legiti-
pela imposição de imaginários coleti- Brasil, O Globo, Diário de Notícias, mar a reforma, realizou-se o Refe-
vos se dá através de meios cibernéti- O Estado de S. Paulo e os Diários rendo de abril de 1999, mediante o
cos, audiovisuais e da imprensa... São Associados — a desestabilização do qual 87,75% dos eleitores se pro-
golpes baixos permanentes, notícias governo João Goulart, entre 1961 nunciaram favoravelmente a uma
que não têm contextualização, mas e 1964. Vejamos agora, resumida- Assembleia Constituinte e a uma
que conseguem impactar o coletivo mente, como se deu na Venezuela nova Constituição. Promulgada em
e já foram empregadas para deses- a acachapante promiscuidade e en- dezembro de 1999, ela garantiu a
tabilizar os governos populares da volvimento institucional da mídia reeleição de Chávez em 30 de julho
América Latina”. privada em um golpe de Estado. de 2000. Em novembro do mesmo
Está em curso a insurreição im- ano, a Assembleia Nacional apro-
pulsionada por um “latifúndio mi- varia a Ley Habilitante, que dotou o
diático” contra os governos da Ve- Pesquisa feita por Eva presidente de poderes especiais pa-
nezuela e Argentina, do Brasil e ra aprovar um pacote de 49 medidas
Golinger, uma advogada
Equador, assinala Ignacio Ramonet, de notável impacto social e político.
ex-diretor do Le Monde Diplomati- norte-americana, revelou Da Ley Habilitante derivaram a
que: “A principal batalha a ser esgri- Lei Orgânica de Hidrocarburetos,
que em 64 dias de locaute
mida pelos governos democráticos e que aumentou em 30% a tributa-
distribuidores de renda na América na Venezuela as quatro ção das petroleiras transnacionais
Latina é a da comunicação”. maiores emissoras de TV e fixou em 51% a participação acio-
No Brasil, enquanto hesita em nária do Estado nas sociedades mis-
aprovar a regulação do mercado de trocaram os programas tas, como a Petróleos de Venezuela
comunicação, prometida em campa- habituais por nada menos (PDVSA), na qual Chávez denun-
nha, o governo Dilma Rousseff vai ciara uma “caixa preta” de opera-
perdendo a batalha. Na Argentina do que 17.600 anúncios ções ilícitas; a Lei de Pesca, que
e no Equador, com penosa tramita- contra o governo Chávez proibiu a pesca industrial de arras-
ção judicial, foram adotadas leis de to, com benefícios para os pescado-
regulação de mercado e de políticas res artesanais; e a Lei de Terras e

29
Dezembro 2015 Revista Adusp
Desenvolvimento Agrário, que per-
mitiu a expropriação de latifúndios,
beneficiando camponeses sem terra
e pequenos agricultores.
Mal foram aprovadas, o setor
empresarial e seus partidos as acu-
saram de “inconstitucionais”, e ao
governo Chávez de “anti-democrá-
tico”. Confrontacionista, já em 10
de dezembro de 2001 a central pa-
tronal Federação Venezuelana de
Câmaras de Comércio (Fedecáma-
ras) conclamou a Venezuela a uma Na Venezuela, golpista Pedro Carmona assume a presidência (2002)
greve geral patronal “de advertên-
cia”, com palavras-de-ordem pela Partido xiita, legalmente constitu- “Insultado, comparado a Fuji-
renúncia de Chávez. ído, e maior rede de assistência mé- mori, Idi Amin Dada, Mussolini e
A advogada norte-americana dica e social do Líbano, o Hezbollah Hitler, tratado como fascista, dita-
Eva Golinger, citada pelo jornalis- fora colocado na lista de países e or- dor e tirano, o presidente ‘boliva-
ta Renato Rovai no livro Midiático ganizações “terroristas”, urdida pelo riano’ sofre ataques que, em qual-
poder: o caso Venezuela e a guerri- Departamento de Estado dos EUA quer país, dariam lugar a uma ação
lha informativa (São Paulo, 2007), e países europeus, aliados de Israel. legítima por ofensa ao chefe de Es-
revelou os resultados de pesquisa Ridiculamente, até meados de 2015 tado”, anotava Maurice Lemoine
que conduziu, segundo a qual nos Cuba também figurava nesta “lista ne- em seu emblemático ensaio “Dans
64 dias do locaute as quatro princi- gra”. Apropriando-se da difamação, a les laboratoires du mensonge au Ve-
pais emissoras de TV suspenderam intenção de El Nacional foi compro- nezuela”, publicado por Le Monde
sua programação habitual, banindo meter Chávez com o “eixo do mal”. Diplomatique em agosto de 2002.
da grade comerciais, telenovelas e No Brasil, factoide semelhante
desenhos animados, para inserir na- seria plantado anos mais tarde por
da menos do que 17.600 anúncios Olavo de Carvalho, dublê de arti-
contra o governo, que incitavam à No Brasil, Olavo de Carvalho culista e astrólogo, e reverberado
sabotagem da economia. pelo jornalista Reinaldo Azevedo,
e Reinaldo Azevedo tentaram
Como trama paralela, em março blogueiro da revista Veja e sorte
de 2002 a criminalização de Chávez vincular o governo Lula às de porta-voz midiático dos porões
alcançava o paroxismo. No ultra- FARC e ao narcotráfico, da extrema-direita: tentava-se vin-
conservador El Nacional, editoriais cular o governo Lula às Forças
eram substituídos por manchetes esgrimindo uma teoria da Armadas Revolucionárias da Co-
garrafais como “O terrorismo está conspiração segundo a qual lômbia (FARC) e ao narcotráfico
entre nós” (15/3/2002), ou “Hu- (“Relações perigosas: as FARC,
go Chávez confessou ser o che- o Foro de São Paulo seria o PT e o Governo Lula”, Veja,
fe de uma rede de delinquentes” núcleo de uma intentona 16/5/2010), esgrimindo uma teoria
(21/3/2002), insinuando que “fon- da conspiração repetida ad nause-
tes dos serviços secretos revelaram continental para instalar uma am, segundo a qual o Foro de São
acordos feitos com elementos liga- “pátria grande comunista” Paulo, coordenação de partidos
dos ao Hezbollah […] controlados de esquerda e nacionalistas latino-
pela Embaixada do Irã”. americanos, seria o núcleo de uma

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Revista Adusp Dezembro 2015
intentona continental para instalar De fato, às primeiras horas de 13
uma “pátria grande comunista”. de abril, Pedro Carmona, líder da
Desde a chegada de Chávez à Fedecámara, toma posse como pre-
Fenômeno ainda não
presidência, “os cinco principais ca- sidente de facto. Dissolve a Assem-
nais de televisão privados — Ve- bleia Nacional e a Corte Suprema suficientemente estudado,
nevisión, Radio Caracas Televisión com uma só canetada e declara letra
durante os governos Lula
(RCTV), Globovisión, Televen e morta a Constituição Bolivariana de
CMT — e nove dos dez grandes 1999. Neste dia, Ibéyise Pacheco e da Silva e Dilma Rousseff
jornais nacionais (El Universal, El Patricia Poleo são incensadas como
o Brasil foi tomado de
Nacional, Tal Cual, El Impulso, El as grandes vedetes da TV venezuela-
Nuevo País, El Mundo etc.) subs- na e farão carreira não como profis- assalto por fundações e
tituíram os partidos políticos tra- sionais do jornalismo, mas como mi- ongs (institutos Liberal,
dicionais, relegados ao vazio pelas litantes de um fenômeno doravante
vitórias eleitorais do presidente”, conhecido como mídia golpista. Millenium e outras) que
resume Lemoine na sua crônica. Previsivelmente, Estados incitaram manifestações
Quatro meses após sua reelei- Unidos e Espanha, incentiva-
ção, na madrugada de 12 de abril dores dos golpistas, precipitam- de 2014 e 2015
de 2002, Hugo Chávez é preso por se, reconhecendo quase ime-
um comando golpista do exército diatamente o espúrio governo
venezuelano e abduzido à ilha de Carmona. Mas o Chile, governado
Orchila, distante 160 quilômetros então pelo “socialista” Ricardo La- A escalada anti-Chávez ganhou
da capital. A maioria dos meios gos, junta-se também a eles. em intensidade após o anúncio feito
de comunicação anuncia sua “re- Alarmados, eleitores e simpati- por ele, no V Foro Social Mundial
núncia”, mas não apresenta qual- zantes de Chávez acodem às ruas de (Porto Alegre, 2005), do “Socialis-
quer declaração de próprio punho Caracas. A Polícia Metropolitana mo do século XXI” como programa
de Chávez, ou gravação em vídeo. tenta, mas não consegue debelar as de governo, e a fundação, em 2008,
Naquelas horas, no maior canal multidões que tomam a cidade. Em do Partido Socialista Unido de Ve-
privado de TV, o Venevisón do menos de 48 horas, forças consti- nezuela (PSUV).
multibilionário Gustavo Cisneros, tucionalistas do Exército libertam É oportuno recordar que na-
reina clima de confraternização de Chávez. Eleito em 1998, “relegiti- queles anos ocorriam protestos na
militares com jornalistas. “Tivemos mado” em 1999 e reeleito em 2002, Ucrânia, conhecidos como “Revo-
uma arma de importância capital: 2006 e 2012, ele assumiu seu terceiro lução Laranja”, que culminaram
a mídia. E como se apresenta a mandato como alvo de uma escalada com a anulação da vitória eleitoral
ocasião, aproveito para felicitá-la midiática sem precedentes, na qual de Viktor Yanukovich à presidência
por isso”, declara ao vivo o vice- todas as armas da guerra psicológi- e um segundo escrutínio ordenado
almirante Victor Ramírez Pérez ca (factoides, mentiras, difamação, pela Suprema Corte (submetida a
à apresentadora Ibéyise Pacheco. incitação à violência e ao golpe de uma escalada ensurdecedora na mí-
Vaidosa, Pacheco admite que “há Estado) foram empregadas. dia internacional), que consagrou
muito tempo” mantinha ligações Em 2013, quando Chávez faleceu Yushchenko como vitorioso sobre
privilegiadas com os oficiais gol- e Nicolás Maduro assumiu o gover- Yanukovich, com 52% contra 44%
pistas. Sua colega Patricia Poleo, no, Pacheco e Poleo emigraram para dos votos.
surpreendentemente bem informa- Miami, onde dão continuidade ao Investigações sobre a “Revo-
da, anunciava à TVE espanhola: periodismo basura, que em suas pági- lução Laranja”, entre elas do The
“O próximo presidente será Pedro nas do Facebook pede “curtidas” da Guardian londrino, concluiram que
Carmona”. extrema-direita continental. o principal articulador dos protes-

31
Dezembro 2015 Revista Adusp

tos era Givi Targamadze, ativista Na rubrica “Quem Somos”, o dações e ongs (como os institutos
que em 2003 instalara na vizinha instituto apresenta-se como uma Liberal, Millenium e outras) que
Georgia um governo aliado da Or- “organização não governamental” incitaram as manifestações de 2014
ganização do Tratado do Atlântico (ong) e resume sua missão neoli- e 2015, usadas pelo PSDB contra o
Norte (OTAN), feroz inimigo da beral militante: “O Instituto Liber- governo federal e nas quais grupos
Rússia, contra a qual instigaria a dade é um think tank por excelên- de extrema-direita conquistaram
guerra de 2008. Targamadze tinha cia, pois firma-se no mercado lo- um protagonismo que não se via
ligações com uma organização de- cal, nacional e internacional como há muitos anos. Prova disso é a de-
nominada “Instituto Liberdade”. produtor de idéias e construtor de senvoltura com que circulou nessas
Ora, o Instituto Liberdade está influências. […] O Instituto Liber- marchas o ex-delegado Carlos Al-
presente no Brasil. Sua filial opera dade defende o Estado de Direito, berto Augusto (“Carlinhos Metra-
em Porto Alegre e integra uma rede a descentralização do governo, a lha”), identificado como torturador
de 40 think tanks distribuídos por economia de mercado e apóia os pela Comissão Nacional da Verda-
América Latina e Caribe. Entre seus empreendedores intelectuais mul- de: ele chegou a discursar em defe-
curadores internacionais constam tidisciplinares na produção de aná- sa da Ditadura Militar e do fuzila-
diretores da Mont Pelerin Society lises e recomendações em políticas mento de militantes de esquerda.
(MPS), com sede na Suíça, fundada públicas, seguindo os preceitos da O cientista político Gene Sharp,
por luminares do pensamento neo- Escola Austríaca de Economia” da Universidade de Ohio, é aponta-
liberal militante, como Ludwig von (http://goo.gl/fuSdrk). do como estrategista de operações
Mises, Milton Friedman e Friedrich Fenômeno ainda não suficiente- subversivas ditas “não-violentas”
Hayek — os dois últimos sempre mente estudado, durante os gover- e mentor do conceito de “golpe
lembrados como consultores da po- nos de Luiz Inácio Lula da Silva e de Estado brando”. Seu livro, Da
lítica econômica da ditadura de Au- Dilma Rousseff o Brasil foi tomado ditadura à democracia: uma estru-
gusto Pinochet, no Chile. de assalto por uma pletora de fun- tura conceitual para a Libertação

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Revista Adusp Dezembro 2015
(Bangkok, 1993), financiado pelo ção de preconceitos anticomunistas, foram à luta com gritos de “Fora
Instituto Albert Einstein, de Bos- acusações de totalitarismo e pensa- Correa!”.
ton, traduzido para vários idiomas, mento único; 3ª. Esquentamento das A campanha midiática lançada
inclusive o português, e disponível ruas: reiteração de conflitos, fomen- contra a Alianza País de Correa
em PDF na internet, ainda hoje é to de passeatas e marchas, expondo data de 2007, mas recrudesceu em
cultuado como bíblia e manual das falhas do governo; 4ª. Combinação fevereiro de 2012, quando a Cor-
organizações de extrema-direita na de diversas formas de luta: marchas te Nacional do Equador ratificou
América Latina. convertidas em plataforma publici- a sentença contra El Universo por
tária, operações de guerra psicoló- injúria a Correa. O motivo: segun-
gica, criação de clima de ingoverna- do editorial deste jornal intitula-
bilidade, boataria de golpe militar; do “NO a las mentiras” (6/2/2011),
Em 2013, o Congresso do 5ª. Forçar a renúncia da/o Presidente durante o motim de 30 de setem-
de turno: arruaças, provocação de bro de 2010 contra a lei que previa
Equador aprovou a Lei
guerra civil, contemplando a ‘desti- cortes nos salários da polícia, ape-
Orgânica de Comunicação, tuição constitucional’ do Presiden- lidado “30S” (motim este unanime-
que proibiu, de forma te”. Quem acompanha o desenrolar mente caracterizado por observa-
da cena brasileira ao longo de 2014 dores e mídia independentes como
inédita na América Latina, e 2015 certamente encontrará for- tentativa de golpe de Estado), Cor-
que bancos sejam sócios ou tes coincidências com este script. rea mandara uma tropa que lhe
Ao reduzir os índices de pobre- era leal abrir fogo contra um hos-
controladores de veículos za de 38,3% para 25,8% em oito pital repleto de civis. El Universo
de comunicação. Neste anos e resgatar da miséria 1,3 mi- decidiu, assim, definir Correa como
lhão de equatorianos numa popula- “ditador sanguinário” que cometera
momento a campanha do ção de 15,7 milhões de habitantes, “crime de lesa-humanidade”.
jornal El Universo contra desde que assumiu seu mandato O editorial não correspondia aos
presidencial, em 15 de janeiro de fatos. Seu autor, Emilio Palacio, foi
Rafael Correa foi encampada 2007, Rafael Correa é uma pedra condenado a três anos de prisão e
pela mídia escrita espanhola no sapato dos “mercados” e da geo- o jornal a uma reparação de danos
política dos EUA. morais no valor de US$ 40 milhões.
Em 2009, o equatoriano rompeu Posteriormente, editorialista e jor-
o acordo que permitia aos EUA nal tentaram safar-se da sentença e
Segundo Sharp, a estratégia do manter uma base militar em Manta pediram desculpas. Correa perdoou
“golpe brando” pode executar-se e em 2013 a Corte Nacional de Jus- o crime de imprensa, mas antes
em cinco etapas hierarquizadas, ou tiça condenou a petroleira Chevron disso Palacio preferiu pedir “asilo
implementadas de modo simultâ- (ex-Exxon) a pagar US$ 9,5 bilhões político” aos EUA, onde dá conti-
neo, assim resumidas por Enrique por graves danos ambientais na nuidade ao cerco midiático ao go-
Alfonso Rico Cifuentes (La guerra Amazônia equatoriana. No primei- verno equatoriano. Em outubro de
mediática y el “golpe suave”, Argen- ro semestre de 2015, bastou Correa 2012, Palacio foi recompensado ao
press, 4/5/2014): submeter ao parlamento seu proje- receber o Prêmio “Columnista del
“1ª. Criação de matrizes de opi- to de lei sobre taxação de heranças Mundo”, ruidosamente outorgado
nião, centradas em déficits reais ou e vendas de bens de raiz (baseando pelo jornal conservador espanhol
potenciais, cavalgamento (= rei- os tributos não no valor em escri- El Mundo, espécie de porta-voz do
teração) de conflito e desconten- tura, mas segundo a valorização no Partido Popular.
tamento, denúncias de corrupção, mercado: “impuesto de plusvalía”), Quando o Congresso equatoria-
etc.; 2ª. Deslegitimação: manipula- elite e classe média equatorianas no aprovou a Lei Orgânica de Co-

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Agência Estado
municação, em 2013, estabelecen-
do a proibição, inédita na América
Latina, de bancos como sócios ou
controladores de veículos de comu-
nicação, a campanha do El Universo
foi encampada pela totalidade da
mídia escrita espanhola: os fran-
quistas ABC e La Vanguardia, os
jornais do grupo Prisa El Mundo y
El País (envolvidos com o PSOE), e
a agência noticiosa EFE, cujo prin-
cipal acionista é o Estado.

Na América Latina, o grupo


espanhol Prisa controla
emissoras de TV e rádio na
Bolívia, Colômbia, México, Rafael Correa toma posse em 2007
Argentina. Neste último econômicos e financeiros, pode-se A excelente investigação realiza-
país associou-se aos grupos às vezes compreender a razão de da pelo documentário El segundo de-
tais ‘sinergias’”. Uma delas entrou sembarco. Multinacionales españolas
proprietários dos jornais em ação quando o governo Cristina en América Latina não deixa dúvi-
Clarín e La Nación na Kirchner decretou a expropriação das: a mídia espanhola, capitaneada
da multinacional Repsol (controlada por El País e Grupo Prisa, opera co-
empresa Papel Prensa por capitais espanhóis) no consórcio mo guarda pretoriana midiática do
petroleiro YPF, tornando-se objeto grande capital ibérico no continente.
de furiosa campanha de El País con- Atraídos pela privataria neoliberal
No ensaio “Golpes Sem Fron- tra a Argentina. que antecedeu a maioria dos gover-
teiras?” (Le Monde Diplomatique Na América Latina, a holding nos progressistas, os bancos Santan-
Brasil, 1/8/2002), Maurice Lemoine Prisa controla um canal de TV e der, BBVA e Bankia, juntamente
adverte que para entender algumas três jornais da Bolívia, bem como com Telefónica, Repsol, Iberdrola,
estranhas “sinergias” é recomendá- várias das emissoras mais influentes Endesa e Gas Natural Fenosa, reali-
vel observar que “a versão dos fatos do continente, como a TV Cara- zam simbolicamente o “segundo de-
difundida pelos órgãos de imprensa col na Colômbia, Grupo Latino de sembarque” espanhol nas Américas,
locais é encontrada freqüentemente, Radio, Radiopolis no México. Na empreendendo o truculento saque
de forma idêntica, em vários meios Argentina possui a Rádio AM 590 dos mercados de serviços e de recur-
de comunicação internacionais: New e é sócia dos grupos proprietários sos naturais. Não é de estranhar-se
York Times, Washington Post, CNN, dos jornais Clarín e La Nación na que, eventualmente, tais interesses
El Tiempo, Rádio e TV Caracol, empresa Papel Prensa: juntos tor- coincidam com os de grupos nacio-
RCN... Entre eles, destaca-se par- naram-se donos de 90% do papel nais engajados na desestabilização
ticularmente o diário espanhol El de impressão para jornais e revistas de regimes democráticos, e a eles se
País. Sobre um fundo de interesses na Argentina. associem em tal empreitada.

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Revista Adusp América Latina (II) Dezembro 2015

Um
governo que
sangra depois de
“virar do avesso”
Tatiana Merlino
Jornalista

Nem mesmo a adesão à agenda neoliberal e ao


“ajuste fiscal” preconizado por seus adversários
— fixação de altos juros, cortes nos gastos sociais
e outras medidas recessivas — livrou a presidenta
Dilma Rousseff da crise econômica e das ameaças
de destituição. Depois de estimular o golpismo
nas jornadas de março de 2015, o oligopólio
da mídia dividiu-se em agosto, quando o
Grupo Globo passou a censurar o PSDB
por insistir no impeachment. A esquerda
lembra: o governo Dilma precisa
assumir o programa que a elegeu

35
Dezembro 2015 Revista Adusp
A virada foi surpreendente. Elei-
ta com um programa claramente de
esquerda para os padrões brasileiros,
centrado no crescimento econômico,
na geração de empregos e nos gastos
sociais, a presidenta Dilma Rousseff
deu o dito por não dito e assumiu a
agenda neoliberal. O roteiro é bas-
tante conhecido, mas vale a pena re-
capitular, em rápidas pinceladas.
Tudo começou com a escolha de
Joaquim Levy para o Ministério da
Fazenda (lembrando-se que o pri- Genial charge de Laerte na Folha de S.Paulo critica editorial do próprio jornal
meiro a ser convidado por ela para
o cargo foi Luiz Trabuco, presidente apoio no parlamento contra as O anúncio presidencial, feito um
do Bradesco) e o pacote, anunciado ameaças de impeachment, Dilma dia depois da publicação de um edi-
já em 2014, de restrições ao seguro- realizou uma reforma ministerial torial do jornal Folha de S. Paulo
desemprego, seguro-defeso, pensões que não apenas concedeu maior intitulado “Última Chance”, gerou
e auxílios. Depois a ruralista Ká- número de pastas ao PMDB — os manifestações de movimentos so-
tia Abreu seria convidada a assumir deputados Marcelo Castro e Celso ciais e sindicatos. O Movimento dos
a pasta da Agricultura, sinalizando Pansera, ligados ao presidente da Trabalhadores Rurais Sem Terra
a clara opção pelo agronegócio. O Câmara dos Deputados, Eduardo (MST), por exemplo, externou um
Banco Central, a pretexto de com- Cunha, passam a comandar Saúde duro protesto: “Somos contra o
bater a inflação, elevou a taxa Selic e Ciência, Tecnologia e Inovação ajuste fiscal e consideramos que o
a 14% ao ano, catapultando os juros — como eliminou oito ministérios, governo Dilma está implementando
de todo o sistema financeiro e im- a maioria deles ligados a temáticas medidas de ajuste neoliberal, que
pondo forte retração na economia. populares, em nova agressão aos ferem direitos dos trabalhadores e
Depois veio novo pacote, tendo movimentos sociais neles repre- cortam investimentos sociais”.
como eixo o corte de R$ 60 bilhões no sentados. O presidente da Central Úni-
Orçamento, que implica reduzir em “O atual caminho não passa de ca dos Trabalhadores (CUT), Vag-
30% os investimentos no programa uma capitulação em câmera len- ner Freitas, defensor declarado do
Minha Casa, Minha Vida e congelar ta”, define Valter Pomar, professor mandato da presidente contra as
os salários do funcionalismo público da Universidade Federal do ABC reiteradas ameaças de impeach-
federal. Vivendo sob uma crise políti- (UFABC) e ex-secretário de Re- ment, deplorou as novas medidas
ca e econômica agravada no segundo lações Internacionais do PT, sobre do governo: “É um pacote reces-
semestre de 2015, com impacto nega- o novo pacote de “ajuste fiscal” sivo, que imputa a culpa da crise
tivo sobre a arrecadação provocado apresentado em 14 de setembro aos trabalhadores. Se a intenção do
pelo próprio ajuste fiscal recessivo, por Dilma. “A política de ajuste governo com o pacote era tentar
Dilma anunciou que pretende recriar recessivo é um golpe contra a ex- aliviar a pressão da grande mídia,
a CPMF pelo período de quatro anos pressão majoritária do voto popu- ela continua contrária ao pacote do
e transformar o déficit de R$ 30,5 bi- lar. Golpe que agride e desorienta mesmo jeito, chamando-o de ‘inci-
lhões nas contas públicas, em 2016, nossas bases sociais e alimenta o piente’. Ou seja, não dialoga nem
em um superávit de R$ 60,4 bilhões. golpismo de direita”, afirma Po- com o empresariado, nem com os
Por fim, no início de outubro, mar, em artigo intitulado “Capitu- trabalhadores que são aqueles para
buscando recompor sua base de lação em câmera lenta”. quem o governo deveria governar”.

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Revista Adusp Dezembro 2015
diante das classes dominantes” e que
fazem o papel de feitor dos interesses
de quem manda. “Como não tem es-
colha? Claro que tem escolha!”, afir-
ma. “A escolha passa pela presidente
abandonar a mediocridade, o com-
promisso com seus patrocinadores fi-
duciários e voltar a se conectar com
quem a elegeu. Passa por abandonar
a covardia e a vergonhosa moderação
que adotou”.
Pomar, por sua vez, acredita que
o editorial da Folha, “mais do que
Venicio Lima Maria Inês Nassif
chantagista”, é golpista. “O título é
“Medidas extremas precisam ser muito claro: ‘última chance’. Ou seja,
tomadas”, disse a Folha de S. Paulo caso Dilma não aceite destruir os di-
Na opinião de Maringoni, no editorial publicado na capa do jor- reitos sociais, eles destruirão Dilma”.
nal. “Impõe-se que a presidente leve Mas a presidenta tem outra opção,
o editorial da Folha de
o quanto antes ao Congresso — e a propõe: “Esta outra escolha é sim-
13/9 (“Última Chance”) que este abandone a provocação e a ples: cumprir o programa vencedor
chantagem em prol da estabilidade nas eleições de 2014. Resumidamen-
“vocaliza a vontade da
econômica e social”. Defendeu, ain- te: reduzir a taxa de juros, alongar o
Casa Grande”. Pomar, por da, “cortes nos gastos”, os quais “te- pagamento da dívida pública, impor
sua vez, acredita que “mais rão que ser feitos como radicalidade controle de câmbio, lançar mão das
sem precedentes, sob pena de que se reservas internacionais, tributar as
do que chantagista”, esse tornem pesadelos ainda piores, como grandes fortunas e compreender que
editorial é golpista. o fantasma da inflação descontrola- o caminho para superar a crise pas-
da”. E segue: “Serão imensas, escusa- sa pelo crescimento e o crescimento
“Ou seja, caso Dilma não do dizer, as resistências da sociedade exige ampliar — e não cortar — os
aceite destruir os direitos a iniciativas desse tipo. O país, con- investimentos públicos e sociais”.
tudo, não tem escolha. A presidente Ao iniciar governando com o pro-
sociais, eles a destruirão” Dilma Rousseff tampouco: não lhe grama do adversário, avalia Pomar,
restará, caso se dobre sob o peso da “Dilma perdeu parte do apoio que
crise, senão abandonar suas respon- a elegeu e não ganhou um traço de
Na visão de Pomar, a nova roda- sabilidades presidenciais e, eventual- apoio dos inimigos. Resultado: optou
da de cortes confirma que a política mente, o cargo”. por tornar-se um governo politica-
de ajuste recessivo provocou mais Na opinião de Gilberto Maringoni, mente minoritário”. O mais grave,
desajuste fiscal, além de recessão também professor da UFABC e candi- acredita, é que o governo não de-
e desemprego. “Precisamos imple- dato a governador de São Paulo pelo monstra aprender com seus erros. “O
mentar o programa que o povo es- PSOL nas eleições de 2014, o editorial ajuste não ajustou nada, desajustou.
colheu em outubro de 2014. Esse é o da Folha “vocaliza a vontade da Casa E desajustou principalmente o em-
caminho, também, para defender as Grande, os desígnios de quem sempre prego e o crescimento. E os acenos à
liberdades democráticas e garantir o foi chamado de ‘senhor’”. A seu ver, o direita só fortalecem a direita”.
mandato da presidenta Dilma”, afir- texto se aproveita de “uma presidenta “Os grupos empresariais de mídia
ma o professor da UFABC. e de um partido que se acovardaram sempre estiveram envolvidos nas prin-

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Dezembro 2015 Revista Adusp
cipais crises políticas e sempre estive- sim, as manifestações antiDilma que principia alvejando Lula por suas de-
ram numa posição de articulação di- ocorreram em 16 de agosto foram clarações sobre a decisão da agência
reta e de participação direta de movi- mais esvaziadas que as de março. de classificação de riscos Standard
mentos contra a democracia”, afirma Dez dias antes, as federações das & Poor’s de rebaixar o Brasil e con-
Venício Lima, professor titular da indústrias de São Paulo (Fiesp) e do tra cortes no Orçamento. (A “nota
UnB Rio de Janeiro (Firjan) divulgaram baixa” conferida pela Standard &
A movimentação pelo impeach- uma nota conjunta de apoio à pro- Poor’s tornou-se, aliás, novo motivo
ment de Dilma Rousseff contou, des- posta de “união” apresentada no dia de histeria da mídia, em especial do
de o início, com a cobertura sistemá- anterior pelo vice-presidente da Re- Grupo Globo, cujos comentaristas a
tica por parte do monopólio midiáti- pública, Michel Temer, que fez um interpretaram como uma espécie de
co brasileiro, que, por exemplo, des- apelo para que “todos se dediquem “pá de cal” no governo.)
tacou intensamente as manifestações a resolver os problemas do país”. “Esta postura populista clássica
ocorridas em março deste ano. A TV Na nota, assinada em nome da [de Lula] não é surpresa, mas ganha
Globo chegou a deixar de transmi- “indústria brasileira”, as federações importância por ser exposta num
tir duas telenovelas para priorizar a afirmaram que a situação política e momento-chave de Dilma, em que
cobertura do ato nacional. A Globo econômica do país é a “mais aguda ela, diante do rebaixamento do país
News passou todo o dia 15 de março dos últimos vinte anos”. “É hora de na avaliação da agência internacio-
em cobertura ao vivo: os âncoras e colocar de lado as ambições pesso- nal, precisa optar entre fazer um
repórteres defendiam as manifesta- ais ou partidárias e mirar o interesse correto ajuste no Orçamento, pelo
ções e anunciavam a chegada de “mi- maior do Brasil”, diz o texto, que de- lado das despesas, ou enveredar pela
lhares de pessoas” à avenida Paulista, fende que o governo “faça sua par- aventura da ‘fuga para frente’. Quer
em São Paulo, em tom efusivo. te cortando suas próprias despesas, dizer, assumir o discurso de que o
“Eu não vejo esse cenário com priorizando o investimento produti- verdadeiro problema não é cortar o
surpresa. Se olharmos para a história vo; deixando de sacrificar a sociedade Orçamento, mas gerar receitas tri-
política do Brasil desde que existem com aumentos de impostos”. butárias por meio da retomada do
os oligopólios de mídia, salvo raras No dia 7 de setembro, o jornal O crescimento”, diz O Globo.
exceções, os grupos empresariais de Globo publicou um editorial surpre- “É um jogo de ‘quase lógica’, em
mídia sempre estiveram envolvidos endente, intitulado “Manipulação do que teses erradas são justificadas por
nas principais crises políticas e sempre Congresso ultrapassa limites”, no qual jogo de palavras e contorcionismos de
estiveram numa posição de articula- se posicionou contra o impeachment raciocínio. O grave é que, dentro do
ção direta e de participação direta de de Dilma, defendeu o esforço pela governo e no PT, há quem defenda es-
movimentos contra a democracia”, governabilidade da presidenta e criti- ta ‘fuga’, numa volta de 180 graus na
afirma o jornalista e sociólogo Venício cou o PSDB, chamando-o de “incon- política econômica de Joaquim Levy”.
Lima, professor titular de Ciência Po- sequente”. Um dia depois, o “Jornal Por fim, adverte o diário da família
lítica e Comunicação da Universidade Nacional” da TV Globo, telejornal Marinho: “Como não existe mágica, a
de Brasília (UnB) e autor de vários li- de maior audiência do país, também ‘virada à esquerda’ é a receita de uma
vros sobre o tema, como Mídia: Teoria se colocou contra o impeachment e hecatombe. Talvez sequer o governo
e Política (2001) e Cultura do Silêncio e chamou de irresponsáveis os que pre- Dilma resistisse a um Congresso pres-
Democracia no Brasil (2015). tendem tirar Dilma da presidência. sionado pela disparada da inflação,
Porém, a partir de agosto, os ve- Cinco dias depois, O Globo vol- fuga de capitais e aprofundamento da
ículos de comunicação e setores do taria à carga, mas agora contra as recessão. Tudo ao mesmo tempo e de
empresariado que estavam apos- pressões do PT para que Dilma maneira quase instantânea”.
tando no impeachment de Dilma cumpra o programa para o qual foi Portanto, enquanto a Folha de S.
mudaram de posição e passaram a eleita. Intitulado “A opção suicida Paulo concede ao governo a “última
defender um caminho mais light. As- da ‘virada à esquerda’”, o editorial chance”, O Globo vaticina: se Dilma

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Revista Adusp Dezembro 2015
Agência Estado
nomia se realizassem”, define.
Além disso, pontua, o pacote fiscal
que foi anunciado depois das eleições
levou a um esvaziamento das bases
sociais, as mesmas que foram respon-
sáveis por definir a vitória de Dilma
no segundo turno. Assim, acredita, “a
presidente ficou sem defesas diante de
um ataque especulativo do mercado,
das oposições e da mídia; e desarma-
da diante da ofensiva do juiz Sérgio
Moro contra a Petrobras”.
Desse modo, o ataque constante e
Eduardo Cunha reiterado da oposição, da mídia e da
recuar e quiser cumprir o programa assumido pelo governo, o presidente Justiça enfraqueceu tanto o governo
aprovado por 54 milhões de brasilei- do Senado bancaria a governabilida- quanto a economia, “inclusive por-
ros, levará o país a uma “hecatombe”. de no Congresso. Porém, a agenda, que esterilizou medidas para enfren-
que se supõe tenha surgido de encon- tar o impacto econômico da Opera-
tros entre Renan e a família Marinho ção Lava-Jato, num momento em
(Grupo Globo), previa, inicialmente, que a economia já se desaquecia, por
“Por falta de avaliação cobrança dos usuários do Sistema razões externas e devido a decisões
Único de Saúde, privatizações, con- erradas do passado, como a reten-
correta do governo, a crise
cessões, perda de direitos trabalhistas ção do preço interno do petróleo por
tornou-se muito maior do e previdenciários, redução das garan- muito tempo”, avalia Maria Inês.
tias territoriais dos povos indígenas. A Operação Lava-Jato, da Polícia
que era. Dilma acreditou no
E recebeu forte repúdio dos movi- Federal, escândalo sob forte holofote
movimento especulativo do mentos sociais e partidos de esquer- da mídia brasileira, pode ser consi-
mercado contra seu governo. da. Ao que parece, a recomposição derada uma das principais causas da
ministerial relegou a Agenda Brasil a crise política pela qual passa o país.
Superestimou o problema segundo plano. A jornalista a avalia como “assus-
e deu motivos para que Na avaliação da jornalista Maria tadora”, em primeiro lugar porque
Inês Nassif, a mudança de tom do um juiz federal de primeira instância
profecias catastróficas se momento pode ser atribuída a uma abre mão de ritos processuais que
realizassem”, diz Maria Inês pressão “de fora para dentro”. “O garantem a defesa dos acusados.
fato é que, por inabilidade de Dilma, “É aplaudido por isso e não é con-
falta de avaliação correta do gover- tido pelo Supremo Tribunal Federal
no e uma ofensiva irresponsável da (STF), ou pelo Conselho Nacional
Dias depois dos recuos das enti- oposição, a crise tornou-se muito de Justiça (CNJ)”. (Registre-se que
dades da indústria e do oligopólio da maior do que era efetivamente para as declarações de Maria Inês à Revis-
mídia, o presidente do Senado, Re- ser. Dilma tinha problemas a resol- ta Adusp foram anteriores à decisão
nan Calheiros (PMDB-AL), apresen- ver, mas acreditou no movimento do STF de retirar da alçada do juiz
tou a chamada “Agenda Brasil”, con- especulativo do mercado contra seu Moro uma parte dos processos, cau-
junto de propostas para sair da crise e próprio governo. Superestimou o sando enorme irritação de certos ob-
retomar o crescimento econômico. O problema e deu motivos para que as servadores midiáticos.) Em segundo
documento envolveria uma troca: se profecias catastróficas sobre a eco- lugar, porque “é óbvio que as prisões

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Fotos: Agência Estado
dos implicados foram feitas como
coação, para forçar a delação pre-
miada”. Depois, porque é seletiva. E,
por fim, por consolidar o “absurdo
jurídico inventado pelo então minis-
tro Joaquim Barbosa, no julgamento
do mensalão: o domínio do fato”.
A soma de todas as ações jurídicas
que se consolidam desde o julgamen-
to da ação do denominado “mensa-
lão”, resume Maria Inês, “dão poder
desmesurado à Justiça, relativizam
o direito de defesa do cidadão e co-
Augusto Nardes, do TCU Gilmar Mendes, do STF
locam qualquer um em risco”, daqui
para frente. “Existem outras formas, crise estrutural não resolvida que se de fazer política: “Radical, direitista
mais legítimas, de fazer uma inves- arrasta desde os anos 1980. “Essa cri- e, sobretudo, golpista”. A seu ver,
tigação de corrupção e de combater se tem uma dimensão macroeconô- o discurso de defesa da renúncia
esse mal com eficácia, mas garantindo mica e tem uma dimensão política: a se enquadra nesse padrão, “como
os direitos de defesa dos acusados”. fórmula cristalizada na Constituição antes se enquadrava o discurso do
Já na opinião de Maringoni, em- de 1988 é ‘populista’ demais, do pon- impeachment, que na prática se tra-
bora a Operação Lava-Jato não seja to de vista das elites; e conservadora duz numa recusa em aceitar o fato
neutra, ela é extremamente positiva, demais, do ponto de vista dos setores de que perdeu as eleições”.
já que é a primeira operação judicial populares. Na ausência de solução
de envergadura que vai atrás dos cor- para a crise estrutural, a crise política
ruptores. “Nesse sentido, ela já seria vira crônica e degenera na violência
positiva, pois está indo atrás da fra- endêmica, na corrupção sistêmica, na “Quando a gente fala em
ção do capital, o topo de empresários desmoralização das instituições, e, na
estelionato da Dilma, não é
mais ligados ao Estado, que são os ausência do fator militar, na judiciali-
empreiteiros. Gente que cresceu na zação da política”, diz. uma questão moral: é uma
Ditadura, nos governos Collor, Lula Maria Inês, que se notabilizou na
questão política séria, ela
e FHC. Mas claro que ela é parcial. crônica política, observa que a equa-
Os governistas ficam perguntando: ção oposicionista, de derrubar o go- rompe com sua base. Isso
‘Por que não vão atrás do  SwissLe- verno a qualquer preço, teve como é gravíssimo porque passa
aks?’ Mas não podem dizer que essa efeito colateral (e paradoxal) a im-
operação não pode acontecer por- posição de sérias restrições ao setor a ser um governo que não
que está indo apenas em cima do PT. financeiro e produtivo, que viveram representa ninguém. Ela fica
Não é verdade: está indo para cima anos de bonança nos governos do PT.
do Renan, do Eduardo Cunha, do “As declarações dos empresários con- solta no ar”, avalia Maringoni
Fernando Collor e do próprio Aécio. tra o impeachment foram seguidas
Ela é extremamente positiva”. de um influxo na própria posição da
A Lava-Jato seria uma das mui- grande mídia e no enfraquecimento A reorientação de uma parte dos
tas materializações dos fenômenos da ala golpista do PSDB”. setores que pediam o impeachment
da criminalização e da judicialização Ela acredita que até os dias de de Dilma para uma linha de “defesa
da política, acredita o petista Pomar. hoje a oposição brasileira não con- das instituições” ocorreu quando a
Ambos seriam decorrentes de uma seguiu se livrar do modelo udenista crise econômica do país se acentuou

40
Revista Adusp Dezembro 2015
a fatura do desemprego, da queda de
renda, da inadimplência. ‘A culpa é
do PT, deixa a conta na mão deles’”. “Nossa posição é que o PT
Porém, avisa ele, essa não é uma
rota tranquila, “porque Dilma não diga ao governo para que
tem habilidade política nenhuma e mude, imediata, radical
acha que pode fazer acordo com a
elite e governar como se nada tives- e globalmente a política
se acontecido”. Para chegar a 2018 econômica. E combata Cunha,
no cargo, Dilma terá de fazer nego-
ciações quase diariamente, acredita Renan e Levy. Se não, o PT
Maringoni. O que ocorreu ao longo não recupera o apoio da velha
do último ano, das eleições até agora,
Senador Aécio Neves
foi uma mudança na representação
classe trabalhadora e nunca
e tais grupos viram que o governo política do PT no governo, avalia. vai conquistar o apoio da nova
Dilma “faria qualquer negócio pa- “Se em 2002 e mais acentuada-
ra se manter no poder, para chegar
classe trabalhadora”
mente em 2006 ele representava os
em 2018 nas condições que forem”, interesses do capital financeiro ao
acredita Maringoni. Tais grupos garantir taxas de juros, superávit pri-
mudam de posição “de acordo com mário, numa etapa de expansão con- A postura do Partido dos Traba-
seus interesses de classe e avaliaram seguiu garantir também uma parte lhadores diante da crise política do
que fica mais barato não acontecer o do orçamento para o aumento do país também é criticada por militan-
impeachment, do ponto de vista de- salário mínimo, aumentos reais no tes e representantes do partido, que
les — e digo barato não só no preço, salário, a garantia de alguns progra- veem como principal erro o distancia-
mas que vai causar menos turbulên- mas sociais focados para garantir a mento de suas origens. O V Congres-
cia institucional manter esse gover- expansão do crédito”. No entanto, so Nacional do PT, ocorrido em junho
no. Não é necessário um golpe, não quando a crise chega e “o cobertor de 2015 na capital baiana, foi mar-
é necessário um impeachment”. fica mais curto”, esse excedente or- cado por contradições. Embora uma
O cálculo seria o seguinte: se ini- çamentário se encolhe e o PT tem expressiva minoria que reunia mais
ciado um processo para impedir a de fazer uma escolha, mostrando-se de 40% dos delegados, composta por
presidenta Dilma Rousseff, o país um partido do status quo, que não se várias correntes internas, propusesse
ficaria parado por meses, com os propõe a fazer uma mudança social. uma resolução dura, que expressava
negócios refluindo. “Então, melhor “A escolha é por garantir o que forte crítica à política econômica do
para eles é tocar esse governo até está aí, a rentabilidade do capital. governo e propunha uma guinada
onde dá”. O professor acredita que o Então a mudança que ocorre é a da à esquerda no partido, ao final do
impeachment seria contraproducente representatividade do PT junto aos encontro foi vitoriosa a posição mo-
para tais setores não só por conta da pobres, aos trabalhadores. Ela foi derada do grupo de Lula, fazendo da
turbulência no país, mas porque “não rompida. Quando a gente fala em “Carta de Salvador” um documento
interessa hoje ao PMDB, PSDB as- estelionato da Dilma, não é uma anódino. (O que não impediu Lula
sumir um país que está com a econo- questão moral: é uma questão polí- de, dias depois, fazer acusações ao
mia entrando no seu segundo ano de tica séria, ela rompe com sua base. partido e aos seus militantes.)
recessão”, e sofrer desgaste por causa Isso é gravíssimo porque passa a ser Dentro do PT há duas posturas,
disso. “Para eles, é melhor que Dil- um governo que não representa nin- explica Valter Pomar. “Um setor que
ma toque o país até 2018, que fique guém. Ao romper com a base, com compartilha das mesmas ilusões de
sangrando pela recessão, que pague os de baixo, ela fica solta no ar”. Dilma: que 2015 será como 2003; e

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Dezembro 2015 Revista Adusp
outro setor, do qual eu faço parte, barrar o avanço conservador é uma “enfraquece o governo democrati-
que considera que essas ilusões equi- preocupação prioritária. Assim, com camente eleito e amplifica a crise
valem a ‘suicidar’ o partido. Nossa a participação decisiva de dirigentes política e as ações antidemocráticas
posição é que o partido diga ao go- e militantes petistas, e decididos a e golpistas que estão em curso, se-
verno para que mude, imediata, radi- “lutar contra o golpismo, represen- guindo o roteiro traçado nos ante-
cal e globalmente a política econômi- tado pelos setores mais conservado- cedentes da campanha eleitoral de
ca. E que combata as agendas [Edu- res, e o sequestro da agenda gover- 2014 para desconstruir os méritos do
ardo] Cunha, Renan e Levy. Se não namental pelos interesses do capital governo e evitar sua vitória”. O do-
fizermos isto, o PT não vai recuperar financeiro”, movimentos sociais, sin- cumento representa, portanto, uma
o apoio que perdeu na velha classe dicatos, partidos e personalidades enérgica tomada de posição, que
trabalhadora e nunca vai conquistar lançaram no início de setembro, em desmente aqueles que vaticinavam a
o apoio da nova classe trabalhadora”. Belo Horizonte, a Frente Brasil Po- derrocada do PT.
A postura do partido diante da pular. CUT, MST, UNE, PT, PCdoB, Não obstante os esforços do go-
situação é péssima, acredita a jorna- Consulta Popular e agrupamentos verno e das esquerdas, a máquina do
lista Maria Inês: “Ela reflete o PT políticos menores, como PCO e Uni- impeachment avançava em outubro
como é hoje: ao longo de onze anos dade Popular (ex-PCR), integram a e novembro, parecendo ignorar a
de governo, afastou-se das bases e frente de esquerda, que pretende, recomposição do ministério. O Tri-
consolidou uma burocracia que, se unitariamente, responder à ofensiva bunal de Contas da União (TCU)
tem boas intenções, não consegue conservadora. aprovou por unanimidade em 7 de
traduzir isso em defesa do governo, Por outro lado, a intelectualidade outubro um relatório do ministro
ou dele próprio”. Seu diagnóstico: se petista também dá sinais de insatis- Augusto Nardes que rejeitou as con-
o partido não se abrir a quadros no- fação. A Fundação Perseu Abramo tas de 2014 do Executivo, oferecendo
vos e não dialogar mais francamente (FPA), após reunir o seu Conselho um saboroso pretexto para os articu-
com os movimentos populares, não Curador, lançou em fins de setem- ladores do impedimento de Dilma.
irá reconquistar seu espaço. bro, com outras entidades, o docu- Um dia antes, o cerco já se estreitara
De acordo com Maringoni, o PT mento “Por um Brasil Justo e De- quando o Tribunal Superior Eleitoral
ficou a reboque do governo. “Não mocrático”, segundo o qual “a lógica (TSE) formalizou decisão definida
é mais um partido que dirige o go- que preside a condução do ajuste é por maioria em agosto e acatou ação
verno, que tem influência sobre ele. a defesa dos interesses dos grandes do PSDB contra a chapa Dilma-Te-
Claro que sabemos que poder de bancos e fundos de investimento”. mer, sob a alegação de abuso de po-
Estado, de governo, é muito maior Fundação oficial do PT, a FPA é der econômico, e que teve como artí-
que de partido — depende de no- presidida pelo economista Márcio fice e grande defensor naquela corte
meações, de ministérios. Mas essa Pochmann, professor da Unicamp e o ministro Gilmar Mendes.
subordinação está comprometendo ex-presidente do Instituto de Pesqui- Assim, caminha-se para um des-
um partido que tinha vitalidade, his- sas Econômicas Aplicadas (IPEA). fecho que pode lembrar a deposi-
tória junto aos movimentos sociais, e O ajuste fiscal em curso, diz o docu- ção “constitucional” dos presidentes
está levando-o a perder sua legitimi- mento da FPA, provocou recessão, de Honduras, José Manuel Zelaya
dade e representatividade na socie- deterioração das contas públicas e (2009) e do Paraguai, Fernando Lu-
dade brasileira”. redução da capacidade de atuação do go (2012). Que os principais prota-
De qualquer modo, os seto- Estado em prol do desenvolvimento. gonistas da movimentação pró-impe-
res petistas mais vinculados às ba- “Mais grave é a regressão no empre- achment sejam figuras como Nardes,
ses sociais do partido continuam a go, salários, no poder aquisitivo das Cunha (investigados por corrupção)
mobilizar-se com vistas a enfrentar famílias, nas políticas sociais”. ou o presidenciável Aécio Neves, al-
em melhores condições o desastre A deterioração do ambiente vo de processos e delações judiciais,
anunciado. Unificar a esquerda para econômico e social, adverte a FPA, diz bem sobre os interesses em jogo.

42
Revista Adusp USP em xeque Dezembro 2015

As
veias abertas da
Faculdade de Medicina
Luiza Sansão
Jornalista Ilustração de Vitor Flynn

Grupos de alunos veteranos da Medicina da USP, pertencentes a duas antigas


organizações — a fraternidade Show Medicina e a Associação Atlética —
reproduzem e perpetuam trotes humilhantes e violentos — machistas, homofóbicos,
racistas — aplicados em calouras e calouros. Nesse contexto, como comprovam
sindicâncias, inquéritos policiais e uma CPI realizada na Assembleia Legislativa,
ocorrem até mesmo crimes sexuais, seguidos de forte assédio moral às vítimas

43
Dezembro 2015 Revista Adusp
Terminou em 14 de março de Daniel Garcia

2015 o trabalho da Comissão Parla-


mentar de Inquérito (CPI) que, ins-
taurada pela Assembleia Legislativa
do Estado de São Paulo (Alesp) em
dezembro de 2014, apurou viola-
ções de direitos humanos ocorridas
no âmbito das universidades paulis-
tas, em especial trotes violentos e
crimes sexuais. Antes de ganharem
espaço na mídia, os diversos casos
de violência praticados em ambien-
tes universitários eram ainda igno-
rados por grande parte da socieda-
de, que se chocou ao tomar nota Alunos da FMUSP depõem à CPI
dos casos denunciados na CPI por
alunos de diferentes universidades são hoje médicos formados. Não antes de ser aprovado no vestibu-
do Estado. Não por falta, contudo, perderam nem a liberdade, nem o lar do curso da USP.
de precedentes gravíssimos. diploma. “Não será tolerado qualquer ti-
Há 16 anos, em 22 de fevereiro O episódio mesclou violência fí- po de manifestação estudantil que
de 1999, o calouro Edison Tsung sica, racismo e preconceitos diver- cause, a quem quer que seja, agres-
Chi Hsueh, da Faculdade de Medi- sos. Frederico Carlos Jaña Neto, são física, moral ou outras formas
cina da USP (FMUSP), foi encon- então aluno da FMUSP e principal de constrangimento, dentro ou fora
trado morto na piscina da Associa- acusado da morte de Edison, che- do âmbito da universidade”, dizia
ção Atlética Acadêmica Oswaldo gou a ser preso por alguns dias, a portaria divulgada pela USP na
Cruz (AAAOC), onde foi jogado depois que a polícia descobriu que esteira do caso, em abril de 1999,
durante o trote — embora não sou- ele declarara, numa festa: “Eu ma- reiterando que a punição para atos
besse nadar, conforme relatou, à tei o japonês [sic] que se afogou”. como estes seria de suspensão ou
época, a família do jovem de 22 Ivan Marsiglia, repórter do jor- expulsão. Pura retórica. Embora
anos. Quatro alunos “veteranos” nal O Estado de S. Paulo, apurou tenha sido proibido por lei naquele
do curso de Medicina foram indi- que ao longo de dez anos a família mesmo ano (lei estadual 10.454, de
ciados e denunciados pela polícia, Hsueh, oriunda de Taiwan, não re- 20/12/1999), o trote universitário
acusados de serem os autores do cebeu uma única visita de repre- ainda é frequentemente visto co-
homicídio por afogamento, na festa sentantes da USP, ao passo que no mo um mero rito de passagem, em
de “recepção” em que calouros le- seu curto período de cárcere Jaña que estudantes mais velhos, “vete-
varam sucessivos “caldos”. Um caso Neto gozou da solidariedade de ranos”, recepcionam os novos alu-
emblemático por suas circunstân- oito professores da faculdade (ht- nos, seus eternos “calouros”, com
cias e por seu desfecho. O Superior tp://goo.gl/HKz05p). Mas isso não “brincadeiras”. Assim, apesar da
Tribunal de Justiça (STJ) determi- é tudo. Quando o corpo de Edison proibição, o trote segue acontecen-
nou, em 2006, o trancamento da foi retirado sem vida da piscina, do em sítios e outros locais distan-
ação penal, por falta de provas. O descobriu-se que nas suas costas tes das faculdades, ou mesmo em
Ministério Público Federal recor- estava pintado, em tinta colorida, dependências dessas instituições de
reu, mas a decisão do STJ foi man- o nome “Santa Casa”, referência ensino, travestido de outras formas.
tida pelo Supremo Tribunal Federal depreciativa à escola de medicina O tema é sazonal e, após denún-
em junho de 2013. Todos os ex-réus que ele cursara por dois semestres, cias pontuais, cai no esquecimento.

44
Revista Adusp Dezembro 2015
“A imprensa, às vezes, o mantém que, vítimas de violência em trotes tembro de 2014, chegando também
na agenda em fevereiro e março, e festas universitárias, romperam à Comissão de Defesa dos Direi-
mas logo depois tudo volta ao que corajosamente o silêncio reinante, tos da Pessoa Humana, da Cidada-
era antes. Essas coisas recrudescem levou a mídia a dedicar mais aten- nia, da Participação e das Questões
depois que saem da agenda porque ção à questão. Denúncias de graves Sociais (CDH) da Alesp. Assim,
a tradição é mais forte”, diz Marco violações de direitos humanos que realizaram-se duas audiências em
Akerman, professor titular e vice- vêm sendo feitas desde 2013 por novembro de 2014, nas quais foram
chefe do Departamento de Prática alunos da FMUSP resultaram na ouvidos depoimentos de estudan-
da Faculdade de Saúde Pública da abertura de um inquérito civil pela tes sobre casos de assédio moral e
USP, que desde 2010 pesquisa a Promotoria de Justiça de Direitos sexual, estupros, racismo e homo-
prática do trote nos cursos médicos. Humanos e Inclusão Social do Mi- fobia, a maioria deles ocorrida na
Porém, a iniciativa de estudantes nistério Público (MPE-SP) em se- FMUSP.

I
Os
chocantes relatos à CPI.
agressões a calouras e calouros da Medicina

O então deputado Adriano Dio- funcionários, vítimas e supostos ticadas por membros da Associação
go (PT), que presidia a CDH, re- agressores foram convocados pela Atlética e do “Show Medicina”, que
latou à Revista Adusp que houve comissão, cujo objetivo foi promo- são organizações antigas e fortes
fortíssima pressão por parte da di- ver não apenas o debate sobre a da FMUSP, geridas por estudantes
reção da FMUSP para que uma questão, mas a responsabilização mais velhos.
das audiências não fosse realizada. civil, penal e administrativa de pes-
Os relatos colhidos nas duas au- soas e entidades que tiveram en-
diências da CDH revelaram uma volvimento com atos de violações,
realidade de profunda discrimina- de forma ativa ou omissa. Embora As calouras sofrem as
ção, especialmente contra mulheres tenha ficado conhecida como “CPI
primeiras violências na
e homossexuais, na FMUSP e na do Trote”, a comissão foi além, ao
Faculdade de Medicina de Ribei- revelar que tais violências não se semana de recepção, quando,
rão Preto (FMRP-USP), e deram restringem ao trote em si, e que
levadas por veteranos da
ensejo, por sua gravidade, à cria- este transcende o período de recep-
ção de uma CPI, finalmente insta- ção aos novos alunos ao assumir di- Atlética a fazer um círculo
lada em 17 de dezembro de 2014. versas formas que se estendem por ao redor do famoso busto
A faculdade, lembra Diogo, enviou todos os anos dos cursos.
advogados para embaraçar a CPI. Se há casos de trotes violentos do “Dr. Arnaldo”, são
“Todos os dias eles estavam lá me em várias universidades paulistas, obrigadas a ouvir “hinos”
intimidando, me coagindo, esva- como se demonstrou durante o tra-
ziando a sessão para que não desse balho da CPI, estes parecem en- machistas e degradantes
quórum”, conta. contrar terreno especialmente fér-
A legislatura encerrar-se-ia em til entre estudantes de faculdades
março de 2015, de modo que a CPI tradicionais, como as de Medicina.
teve menos de quatro meses para Grande parte das denúncias apre- Para as calouras da Medicina, os
trabalhar. Ao longo desse período sentadas por estudantes envolve abusos começam já na semana de
diretores de unidades, professores, violações de direitos humanos pra- recepção, quando são colocadas em

45
Dezembro 2015 Revista Adusp
Daniel Garcia
círculo, por veteranos da Atlética, mesmo tempo, político e alienan-
ao redor do famoso busto de Arnal- te. E de violência, de um ufanismo
do Vieira de Carvalho, fundador e cego pela instituição. Elas se forta-
primeiro diretor da faculdade (“Dr. leceram a partir de 1965 como uma
Arnaldo”), e recebem a ordem de forma de contraposição política aos
gritar “Bu!”, após o que os vetera- então grêmios estudantis, ou seja:
nos emendam um de seus “hinos” uma anulação daquilo que é político
altamente machistas e degradantes: de fato. Nesses cursos que têm uma
“Buceta! Buceta!/Buceta eu como a inserção social muito forte e são al-
seco!/No cu eu passo cuspe!/Medi- tamente elitizados e tradicionais, co-
cina é só na USP!”. Foi assim que mo Engenharia, Direito e Medicina,
Renata Mencacci, 20 anos, aluna do as atléticas passaram a ter um papel
segundo ano da FMUSP, teve seu preponderante”, explica Kobayashi,
primeiro e chocante contato com os cujo trabalho serviu de fator moti-
“atletiqueiros”, em 2013. vador da CPI, em função dos casos
“Eles fizeram a gente andar até de violência que conhecia e levou à
Renata Mencacci
a Atlética de ‘elefantinho’, o que é CDH da Alesp.
‘superdesagradável’, porque nessa um discurso louco de que, se você Augusto Ribeiro Silva, 24 anos,
posição a mão de alguém fica ro- não treinar para a Calomed, não aluno do quarto ano da FMUSP,
çando seu genital. Quando cheguei vai fazer amigos; se não tiver ami- conheceu de perto tais práticas vio-
à Atlética, falei que não queria, gos, não vai ter panela no internato; lentas, o que o levou a depor contra
mas eles abriram minha boca para se não tiver panela no internato, a Atlética na CPI. “O trote não é só
jogar bebida — ‘tem que beber’. vai ter uma formação ruim; se tiver violência física, dar tapas e socos,
Uma invasão absurda!”, indigna-se uma formação ruim, não vai passar nem só pintar a cara, raspar a ca-
a estudante. O abuso não parou na residência, enfim. As pessoas beça. É um processo complexo, que
por aí: um veterano do sexto ano são muito coagidas a treinar”. A es- teve que se construir na Faculdade
foi beijando cada uma das calouras. tudante chegou a participar de dois de Medicina da USP desde a mor-
Quando chegou a vez de Renata, treinos, mas não gostou do ambien- te do Edison”, inicia o estudante,
ela se recusou a beijá-lo, mas não te e, desde então, adotou a atitude aludindo ao fato de que, em função
adiantou. “Ele segurou meu ros- que a levou ao ostracismo na facul- de o episódio de 1999 ter atraído a
to, roubou um beijo e continuou dade: não frequentar competições atenção da mídia, os grupos promo-
andando. Minha semana de recep- nem mesmo para torcer. “Não que- tores do trote (“trotistas”) passaram
ção acabou aí, e já fui meio que me ro compactuar com as violências a se esforçar para evitar a identifi-
blindando”, recorda. que acontecem lá”, explica ela, hoje cação e divulgação de outros casos
A pressão feita pelos veteranos ativista do Coletivo Feminista Geni. de violência na faculdade. Assim, o
para que os ingressantes treinem Assessor da CPI, Ricardo Ko- trote passou por uma ressignifica-
para a Calomed, competição uni- bayashi destaca que o fortalecimen- ção, assumindo outras roupagens,
versitária anual entre alunos ini- to das associações atléticas nas fa- igualmente violentas. “Eles te ab-
ciantes de algumas faculdades de culdades tradicionais se deu no perí- sorvem com a Calomed, te seduzem
medicina, tornou-se outro grande odo da Ditadura Militar (1964-1985) com a ideia de uma autodetermina-
incômodo para Renata. “Eles co- como um mecanismo de despoliti- ção de elite, com a afirmação pelo
meçam a colocar essa mentalida- zação dos jovens universitários. “As esporte e pela competição esporti-
de corporativista em você desde atléticas são um traço característico va”, relata, em entrevista à Revista
o primeiro momento em que pisa das faculdades de Medicina. Todas Adusp. Num primeiro momento,
aqui”, critica ela. “Eles vêm com elas cumprem um papel que é, ao isso veio a calhar para ele.

46
Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
cê cria um ponto de vista próprio,
então se dá o direito de fazer tudo”,
explica o professor Marco Akerman
“Em uma faculdade de (FSP), outro importante estudio-
so do tema. No artigo “‘Currículo
Medicina os professores
oculto’: há que se evidenciar ainda
titulares são quase todos mais a sua associação com precon-
brancos. E quase todos ceitos, abusos, humilhações e vio-
lências nas escolas médicas”, publi-
são homens. Então vou cado em 2015, o professor define a
me formando dentro de expressão como “um conjunto de
tradições, valores, normas, regras,
uma cultura machista, de rotinas que não estão escritas em
elite branca”, sem saber nenhum documento da escola, mas
que são transmitidas, consciente-
“o ponto de vista do negro, mente ou inconscientemente, entre
Professor Marco Akerman
da mulher”, diz Marco professores e estudantes, e que po-
trotistas, de acordo com o professor dem gerar tanto um ciclo virtuoso
Akerman (FSP) Antonio Ribeiro de Almeida Junior, quanto um ciclo vicioso de atitudes
do Departamento de Economia, e ações que podem marcar o corpo
Administração e Sociologia da Es- e a alma dos estudantes durante o
Inseguro ao entrar no curso, cola Superior de Agricultura Luiz de período escolar, ou para o resto do
mas familiarizado com a prática Queiroz (Esalq-USP). “Nos apelidos tempo de vida fora da escola”.
de esportes, viu na Atlética uma dados aos alunos, preconceitos de Augusto conta como se sentia ao
chance de se integrar. Ao contrário gênero, relativos à aparência física chegar à faculdade: “Eu não tinha
da maior parte dos estudantes da da pessoa, étnicos, raciais, relativos à leitura política, ainda não entendia
FMUSP, Augusto não é branco nem opção religiosa ou sexual, entre ou- como me enquadrava naquele espa-
provém de uma família de classe tros, manifestam-se constantemen- ço. Ainda não me declarava negro e
média alta. Seus pais se esforça- te”, escreveu ele no texto “Trotes, não entendia por que alguns espa-
ram para pagar-lhe boas escolas violências e hierarquias nas univer- ços lá dentro não estavam abertos
em Santos, onde nasceu, e tudo o sidades”, publicado originalmente para mim”. Convencido do quão
que esperavam dele era dedicação no relatório final da CPI. Sociólogo, difícil seria manter-se no curso, o
aos estudos — expectativa à qual o Almeida Jr. estuda a cultura trotista estudante estabeleceu como meta a
jovem correspondeu naturalmen- de longa data e é o maior especialis- construção de uma rede de pessoas
te. Recém-chegado à faculdade, ta brasileiro no tema. que possibilitasse sua integração no
em 2011, participou do chamado “Em uma faculdade de Medi- novo ambiente, como “uma questão
“Churrasco da Invasão”, promovi- cina, os professores titulares são de permanência estudantil”. Ao ver
do por veteranos da Atlética, a par- quase todos brancos, não há profes- no esporte a chance de integração,
tir do qual passou a ser chamado de sores negros. E quase todos são ho- entrou para o time de handebol,
“Léo Moura” (alusão ao jogador mens. Então eu vou me formando que, segundo o estudante, é uma
negro do Flamengo), apelido que dentro de uma cultura machista, de das modalidades mais envolvidas
herdou de “um colega maranhense uma elite branca. O ‘currículo ocul- com a gestão da Atlética. Possui
que tinha traços nordestinos”. to’ vai me conformando como al- maior influência quem compõe a
A atribuição de apelidos pejora- guém que não sabe o ponto de vista diretoria da entidade, mas essa as-
tivos a calouros é típica de grupos do negro, da mulher, do pobre. Vo- piração de grande parte dos “atle-

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Dezembro 2015 Revista Adusp
tiqueiros” não estava nos planos de quentar algumas das pizzarias onde em algumas, ao invés de pasta de
Augusto. costumava realizar tais encontros. dentes, aplica-se pimenta. Segundo
Nos espaços de confraterniza- Assim, algumas “pizzadas” passa- Marco Akerman, este é o caso da
ção, a hierarquia da equipe se ma- ram a acontecer na própria sede Faculdade de Medicina do ABC
nifesta de forma intensa. “Apenas da Atlética, a poucas quadras da (FMABC), em Santo André, onde
os mais velhos têm voz, algo que FMUSP. “Há histórias de pessoas o professor tomou nota da ocorrên-
é imposto também de forma vio- que levaram pasta numa ‘pizzada’”, cia do pascu em 2010, quando era
lenta”, conta. Uma das tradições diz Augusto, referindo-se a uma vice-diretor da instituição e recebeu
do time de handebol é a “pizzada” prática repulsiva, empregada por denúncias anônimas de pais de alu-
semanal que “é praticamente obri- veteranos, da qual ele também foi nos que haviam sido vítimas.
gatória para quem é do time” e, vítima. Embora profundamente envol-
às vezes, frequentada também por A “pasta” ou pascu é uma espé- vido com aquele universo, Augusto
veteranos já formados. cie de ritual em que se passa pasta passou a se sentir mal com uma
“O estudante que estivesse pela de dente no ânus do novato, dan- série de situações que o abalaram
primeira vez na ‘pizzada’ era obri- do-lhe tapas nas nádegas. Pode ser durante o tempo em que integrou a
gado, como um ritual de passagem, um ritual de iniciação, apenas por equipe, cujas práticas violentas ele
a contar uma história, que deveria trote, ou significar uma punição, nunca reproduziu. Assim, manteve-
ser misógina ou autodepreciativa”, por exemplo no caso de descum- se no time, mas, em meio a uma
explica. E a ordem era clara: a his- primento de uma ordem dada por situação de “fragilidade social”, co-
tória tinha que envolver “putaria” veteranos. Aplicam-no aqueles que mo ele denomina, buscou conhecer
ou o calouro “se dando mal”. “De também já foram submetidos ao ri- outros aspectos da faculdade e, no
preferência, os dois”. Em decor- to, no qual, às vezes usando-se len- seu segundo ano de curso, prestou
rência de episódios que envolve- çóis e luvas roubados do Hospital “vestibular” para o Show Medicina.
ram quebrar pratos e até estapear das Clínicas, simula-se um procedi- Foi quando conheceu outra face
colegas sobre a mesa, o time che- mento cirúrgico. A prática ocorre perversa do universo trotista da fa-
gou a ser expulso e proibido de fre- em diversas faculdades médicas — culdade.

II
Show Medicina — a fraternidade masculina,
homofóbica e misógina e seus trotes violentos

Composto apenas por homens, estudantes de Medicina no grupo é “As meninas são alienadas do
alguns dos quais membros também chamado de Costura: são elas que processo criativo, estão ali para ser-
da Atlética, o Show Medicina é uma produzem as peças do cenário e os vir, porque a demanda vem dos me-
organização constituída em torno figurinos usados pelos homens nas ninos e elas não podem propor na-
de uma apresentação teatral satírica apresentações. E só. Sem partici- da”, comenta Renata Mencacci. Po-
baseada no cotidiano da faculdade. pação no Show, elas desempenham rém, parte das mulheres recrutadas
Uma espécie de fraternidade, à se- somente o trabalho que lhes foi pela fraternidade não é de alunas
melhança das existentes no exterior. atribuído pelos homens. Como so- da FMUSP. A prostituição feminina
Os ensaios para o espetáculo anual mente estes preparam e atuam nos também comparece. “O Show Me-
ocorrem por cerca de dois meses, espetáculos, nos quais representam dicina dá alguns papéis claros para
sempre de madrugada, no teatro da inclusive papéis femininos, eles são as mulheres, que aparecem nele em
faculdade. O espaço reservado às chamados de estrelos. três momentos: na Costura; nas ‘so-

48
Revista Adusp Dezembro 2015
ciais’ [reuniões festivas da organiza- organização. no escuro, de modo que os novatos
ção], quando contratam prostitutas; Para ingressar no Show, o calou- não veem, do palco, quem os assis-
e na limpeza, quando pagam fun- ro passa por uma espécie de vesti- te. Só depois foi que Augusto pôde
cionárias terceirizadas para fazer bular interno, que pode ser presta- ver que, na parte da frente, ficam os
um trabalho esdrúxulo, porque eles do em seu primeiro ou segundo ano veteranos já formados, enquanto os
deixam as coisas em um estado la- de faculdade. Como a organização que ainda estão na faculdade ficam
mentável”, critica a estudante. é permeada por um grande segre- na parte de trás, sem se manifestar.
Em todos esses papéis, a mulher do, não se sabia de fato o que acon- Tal distribuição não é por acaso.
aparece como uma figura subser- tecia neste “vestibular”, até come- “O fato de o trote ser aplicado por
viente ao homem, o que começa çarem as denúncias de estudantes pessoas já formadas é um fator de
por esta delimitação de espaço den- na CPI — entre os quais Augusto, proteção, porque elas estão imunes
tro do Show: “Enquanto os homens que foi submetido ao processo. “As a qualquer processo administrativo.
fazem festas e todo o trabalho cria- pessoas que vão prestar o ‘vesti- Por não serem mais alunos da facul-
tivo, as mulheres ficam reclusas nu- bular’ estão preparadas para uma dade, elas não estão numa posição
ma salinha”, resume Renata. “Eles prova que avalia habilidade, mas de fragilidade perante a direção,
podem ocupar todos os espaços, in- não sabem que a única habilidade que nem sempre é um aliado dessa
clusive o da Costura, mas elas ficam que vai ser testada nesse processo fraternidade”.
só no espaço que é delimitado para é a de silenciar diante de violência
elas”, diz a militante, que também para pertencer a um grupo pode-
depôs à CPI. Ela destaca que não roso”, relata o estudante. Ele conta
se trata de desvalorizar o ato de que, ao final da prova com questões No chamado “vestibular” do
costurar, desempenhado profissio- “meio impossíveis” sobre temas di-
Show Medicina, os veteranos
nalmente na sociedade por homens versos, veteranos sextanistas e “sa-
e mulheres, mas de compreender pos” — membros do Show que já se estimulam os calouros a
como o Show reforça o papel des- formaram e “estão sempre presen- trocarem tapas. “Obrigam a
tinado ao gênero feminino numa tes, porque são figuras importan-
tradição conservadora e misógina. tíssimas” — chegam com bebidas gente a beber mais, nos jogam
Renata critica a objetificação da alcoólicas e obrigam os calouros a bebidas, mandam todos
mulher no contexto da contrata- beber. Augusto foi forçado a virar
ção de prostitutas pela organização: uma garrafinha de Fanta Laranja ficarem nus. Todo mundo
“Eles fazem um ritual misógino e com alta dose de cachaça que, por precisa ficar nu. Quem não
expositivo, porque, além de usar a sorte, vomitou em seguida, o que
mulher como objeto sexual, usam o evitou que se embriagasse. ficar não passa no vestibular,
sexo como forma de declarar e de- Depois, é a vez da parte práti- tem que ir embora”
marcar poder. Quem pode encostar ca da prova, em que os calouros
primeiro nas prostitutas são os sex- apresentam suas peças no palco do
tos anos e a diretoria, e só depois teatro. “Enquanto apresentávamos
isto é permitido aos outros”. Há, a peça, os ‘sapos’ jogavam coisas na Após as apresentações dos ca-
ainda, o cargo de esfiha, exercido gente, xingavam, diziam que nosso louros, todos se reúnem e tem
por um membro do Show cuja fun- trabalho era horrível. Meu amigo início outra etapa do processo de
ção é frequentar prostíbulos para estava muito bêbado e o outro, que seleção: “Aí começam as humilha-
transar com prostitutas de luxo e ia apresentar a peça comigo, estava ções, o trote mesmo”, momento no
selecionar aquelas que serão leva- se debatendo no chão, bêbado tam- qual os veteranos “estimulam os
das aos demais — incumbência pa- bém”, narra o estudante. Durante a primeiranistas a trocarem tapas, e
ra a qual conta com uma verba da apresentação, a plateia permanece as pessoas fazem isso”, diz Augusto.

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Daniel Garcia
“Obrigam a gente a beber mais, rituais de passagem e o trote, uma
nos jogam bebidas, mandam todos tradição forte, altamente masculi-
ficarem nus. Todo mundo precisa na, homofóbica, misógina e focada
ficar nu. Quem não ficar não pas- no estabelecimento de laços fortes,
sa no vestibular, tem que ir em- de cumplicidade em torno de atos
bora”. Neste momento, em que os extremos e do uso de drogas”. Tra-
calouros, despidos, encontram-se ta-se de uma cadeia de poder muito
completamente vulneráveis, os ve- bem estruturada.
teranos simulam um telefonema A cumplicidade entre os mem-
da mãe do calouro considerado “o bros da Atlética e do Show Medici-
mais rebelde durante o processo”, na evidenciou-se claramente no de-
como se esta o estivesse procuran- curso da CPI, quando todos aqueles
do, e torturam-no psicologicamente que compareceram negaram não
(“Você ‘tá fodido, mano, sua mãe apenas seu envolvimento nos fatos
tá aí!”), até entrar no palco um ve- de que foram acusados como a prá-
terano completamente nu, usando Professor Antonio Almeida Jr. tica de violações de direitos huma-
peruca e gritando, representando nos por membros das fraternidades
a mãe do calouro escolhido para a sentir, quando tudo termina, que de modo geral. Até mesmo os mais
“brincadeira”, e o derruba, simulan- recebeu poder. indubitáveis elementos foram nega-
do um ato sexual, com movimentos No Show Medicina, assim co- dos, ainda que diante de evidências
caricatos. “A pessoa está embriaga- mo na Atlética, há regras específi- incontestes dos fatos (vide p. 61).
da, sem conseguir reagir, naquela cas, práticas violentas, forte coesão Segundo Almeida Jr., a capa-
situação extremamente absurda, e entre os membros e músicas que cidade de silenciar é pré-requisito
todo mundo em volta, olhando, sem revelam o sentimento de orgulho básico de inserção no grupo tro-
fazer nada. É uma situação que não por pertencer a uma elite. “Eu sou tista. “Nessas escolas existe uma
te deixa escolha”, recorda Augusto, aluno da Faculdade de Medicina da seleção para entrar numa falange,
em tom de indignação. USP/Da Faculdade de Medicina da aquela coisa militar, dos caras uni-
“Nessa hora, está todo mundo USP eu sou aluno”, entoam repe- dos, indo para a guerra. Então, pa-
puto. É a hora extrema, de humi- tidamente os veteranos do grupo, ra entrar, você precisa ser testado.
lhação máxima, em que você pensa cujo símbolo é uma caveira vestida E o teste é se você fica quieto, se
‘se aquilo aconteceu com meu cole- de fraque, gravata, cartola e piteira. você obedece. Por isso as coisas não
ga, podia ter acontecido comigo’”, Claramente burguês, o signo dis- serão leves. Para ser efetivo, o teste
prossegue. Após este último núme- pensa maiores esforços para sua tem que machucar, irritar, provo-
ro do espetáculo trotista, as luzes, compreensão semiológica. Curio- car, mexer emocionalmente com a
até então apagadas, são acesas. “E samente, o símbolo da Atlética é pessoa. E aí eles vão ver se a pessoa
aí está todo mundo sorrindo pra igualmente uma caveira. O Show realmente aceita aquilo, obedece e
você e dizendo ‘parabéns, você é existe há 71 anos: “Foi ganhando entra no grupo, ou se ela reage de
do Show Medicina agora, você foi esse caráter, até o momento em que uma forma que o grupo considera
aceito, você faz parte desta institui- eles adquirem uma estrutura de fra- inapropriada, e aí ela é descartada”,
ção!’, e a pessoa que estava choran- ternidade sem medo de se assumir. explica o sociólogo à Revista Adusp.
do cinco minutos antes de repente Alguns alunos foram para a França, “O trote é um processo seletivo pa-
está feliz e se sente bem”, conclui conheceram fraternidades e trouxe- ra entrar em um grupo dessa natu-
Augusto, que atribui esta aparente ram o modelo para cá”, conta Au- reza, que é uma coisa propícia para
facilidade para superar o processo gusto. “Eles trouxeram uma música corrupção, para desmando, para
de humilhação ao fato de o calouro francesa que é cantada no Show, todo tipo de coisa”, completa.

50
Revista Adusp Dezembro 2015
Indagado sobre como o que acon- “Ninguém que não queira arranjar alunos da FMUSP que realizaram
tece no “vestibular” do Show Medici- problemas para si fala sobre esses denúncias vêm sendo assediados na
na não vaza para o resto da faculda- assuntos”. Tal afirmação se confir- faculdade desde então, ou relegados
de, Augusto responde prontamente: ma na maneira como ele e outros a uma espécie de ostracismo.

III
Denúncia: “Show Medicina é uma apologia ao crime.
E tem uma regra. Homossexual tem que ser
perseguido até desistir”

Houve outra vez, entretanto, na após apresentarem seus esquetes,


história da instituição, em que es- eram forçados a ficar nus, a se abra-
tudantes denunciaram práticas vio- çarem, a pegarem bananas e outros
lentas da entidade. Isso se deu em objetos com as nádegas.
1993, quando textos críticos dos en- Ele também mencionou a or-
tão estudantes Leon de Souza Lobo dem de sigilo absoluto dada às víti-
Garcia e Luís Fernando Tófoli, ho- mas, sob ameaças de serem “preju-
je psiquiatras, foram publicados no dicados em sua carreira acadêmica
jornalzinho Bip, do Centro Acadê- e profissional” em caso de descum-
mico Oswaldo Cruz (CAOC), apon- primento — como ainda acontece
tando a discriminação de gênero, hoje em dia. “Em resumo, o Show
humilhações e abusos patrocinados Medicina é uma apologia ao crime,
pelo Show Medicina, bem como sua apologia a tudo de ruim que a so-
“blindagem” na faculdade. As reta- Médico Leon Lobo Garcia ciedade imagina. Só que eles ainda
liações vieram na forma de faixas estão no século passado, achando
com dizeres agressivos e fezes, que histórico número do Bip trouxe que esse tipo de apologia ao crime
foram depositados na sede do CA- outros textos críticos ao Show, de está no capítulo da vida privada,
OC, que foi depredada. autoria de Paulo Germano Mar- que a vida privada não está en-
O ataque ao CAOC é narra- morato, Luciana Gonçalves e “Fre- quadrada na vida pública, como se
do, em detalhes, no artigo “Sobre dão” (vide quadro na p. 53). um homem chegasse, esbofeteasse
Pontas, Portas e Bostas”, assina- No seu depoimento à CPI, em uma mulher, chamasse um cara de
do por Tófoli e publicado no Bip janeiro de 2015, Leon Garcia, hoje bicha, de gay... [sem que isso seja
número 14, ano 10, que precisou médico assistente do Instituto de passível de punição]. E tem uma
ser reimpresso por razões alheias Psiquiatria do Hospital das Clínicas, regra: homossexual não pode se
aos seus editores. Os exemplares contou que a seleção para integrar formar médico a não ser que se
da reimpressão, ou “segunda edi- o grupo, embora “anunciada como esconda o tempo todo, porque é
ção”, traziam na capa a seguinte apresentação de um esquete humo- como se fosse um alistamento mili-
informação, em letra manuscrita: rístico, na verdade não era isso, era tar. Homossexual tem que ser per-
“Primeira edição [foi] confiscada apenas um pretexto para que hou- seguido até desistir”, registrou Le-
pelo presidente do Show, Rodri- vesse um trote que era realizado no on Garcia na audiência, lembrando
go Reiff” (Reiff formou-se e hoje teatro da faculdade”. Trote do qual ainda que, na última apresentação
trabalha como ortopedista). Esse participavam muitos novatos que, do Show, “pegaram um aluno co-

51
Dezembro 2015 Revista Adusp
mo símbolo, o Felipe Scalisa, para Reprodução

destruí-lo no palco”.
Por ter sido cruelmente satiriza-
do na edição de novembro de 2014
do Show, Scalisa, de 23 anos, hoje
aluno do quarto ano da FMUSP,
dispôs-se a depor contra a frater-
nidade na CPI. Militante do movi-
mento LGBT, o estudante tornou-
se liderança no combate à violência
de gênero na faculdade ao fundar,
em 2013, o Núcleo de Estudo em
Gênero, Saúde e Sexualidade (NE-
GSS), reunindo estudantes envol-
vidos no combate à homofobia. Ao
final de 2013, o NEGSS tornou-se
autor da primeira denúncia conhe-
cida de estupro à direção da facul-
dade, tirando da sombra o debate
da questão e abrindo espaço para
uma sequência de outras denúncias,
que culminaram na CPI.
O estupro ocorreu em novem-
bro de 2013 no estacionamento da
FMUSP, durante uma “cervejada”
do sexto ano, no porão do CA-
OC. “Conheci dois rapazes que
eram de uma turma mais velha, A nota em que o NEGGS, ocul-
e daí eles me convidaram para ir tando o nome de Phamela, tornou
para o carro deles, que eles iam O parecer da comissão público o caso, foi mal recebida
me dar mais bebida. Eu estava pela maior parte da faculdade. Mais
sindicante sobre o caso de
vulnerável porque tinha bebido, negativa ainda foi a acolhida às ma-
eu resisti, e nisso foi quase meia Phamela concluiu que não nifestações contra a violência sexu-
hora de insistência, até que fui até al que se seguiram, que propunham
houve abuso, e sim uma
o carro deles, e lá eles começaram debater o tema: “As pessoas nos
a me agarrar à força, a me beijar, relação consensual. “Todo o acusaram de fazer uma acusação le-
enfiaram a mão na minha calça, viana e generalizante, alegando que
meu depoimento foi jogado
eu fiquei acuada, comecei a gri- se o suposto caso, que ainda não
tar, tentei sair do lugar e eles não no lixo. Então eu sou louca? se sabia se tinha acontecido, fosse
me deixavam sair. Até que uma Foi um absurdo!”, indigna- verdadeiro, seria um caso isolado,
colega surgiu com o namorado não algo que extrapola para uma
no estacionamento, me chamou e se a estudante, que exigiu realidade”, relata Felipe. “É a prin-
eu consegui sair”, relata a vítima, reabertura do processo cipal defesa do estado das coisas.
Phamela Silva Feitosa, 22, que na Se aconteceu, é sempre um excesso,
época cursava o terceiro ano. não uma essência”, critica.

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Revista Adusp Dezembro 2015

CRÍTICAS REMONTAM A 1993


Excertos de artigos publicados no jornalzinho BIP, do CAOC

“Show Medicina: uma visão crítica”


“O Show é covarde quando esquiva-se de questionar a situação da Faculdade e seu status quo. Não é
difícil imaginar então que o Show através do seu corporativismo participe e beneficie-se desse status quo.
Assim, o menosprezo a paramédicos e médicos que não pertençam a suas castas, o machismo e até o ra-
cismo contra pacientes são lugar-comum. Tudo isto soa bonito e engraçado no Show. Sem falar nos infan-
tis ataques ao Centro Acadêmico, de forma que o aluno da Faculdade que tem como diretor um possível
presidenciável seja incentivado a levar dentifrício no ânus e ridicularizado ao discutir política estudantil”.
Paulo Marmorato, ex-membro do Show

“Show de Machismo”
“As mulheres, já que não podem participar do Show, podem, é óbvio, contentar-se em dar uma ajuda
costurando todas as noites, o que corresponde ao estereótipo da mulher Amélia [...] Estas costureiras
aplicadas têm a honra de serem citadas em músicas extremamente depreciativas, preconceituosas e gros-
seiras realizadas pelos integrantes do Show enquanto elas trabalham. Só pra ilustrar: ‘Nada mais escroto
do que a bu... da Fulana’. É triste, mas as mulheres tornaram-se diversão para os homens. [...] As pessoas
abraçam calorosamente a tradição machista e a disseminam por outros setores da faculdade. Formam-se,
então, diretorias da Atlética com maioria arrasadora de homens, que tiveram como berço de sua for-
mação o Show Medicina seguindo seus ensinamentos. Chamam uma ou duas meninas, na maioria, com
função apenas decorativa. O machismo encontra seu caminho e ruma para os mocós da cirurgia e para o
hospital”.
Luciana Gonçalves

“Qual é o tesão do Show?”


“Há muita gente inteligente e íntegra no Show que, no entanto, mantém um silêncio, não sei se cons-
trangido ou inconsciente, em relação a atitudes que deveriam ser revistas. Há algum tempo vem se tor-
nando público o que acontece no vestibular do Show. Os calouros são convidados a subir no palco do tea-
tro da Faculdade de Medicina onde começam a ser alvejados com bolas de papel e etc. pelos seus colegas
mais velhos. Não faltam xingamentos e humilhações verbais [...] o ponto alto chega quando os calouros
são instruídos a retirarem suas roupas em pleno palco iluminado [...] a estas alturas é difícil simplesmente
ir embora. A coação física é clara. Os calouros continuam assim sofrendo as agressões físicas e verbais de
seus colegas, nus, humilhados e iluminados para que todos os vejam melhor. São obrigados a dançar lam-
bada juntos, a sentarem um no colo do outro e a segurar frutos e objetos entre as nádegas. Sequer podem
defender-se das bolas de papel que são lançadas contra os seus genitais [...].”
Leon Lobo Garcia

53
Dezembro 2015 Revista Adusp
Daniel Garcia
A partir de uma reunião do NE- pauta principal”, questiona Felipe.
GSS, alunas da FMUSP sentiram a Presidida por Paulo Saldiva, pro-
necessidade de criar um grupo es- fessor titular da FMUSP, a Comis-
pecífico para defender a pauta das são de Direitos Humanos criada na
mulheres, o que resultou na criação época discutiria, a princípio, apenas
do Coletivo Feminista Geni. A co- esta temática, mas terminou por se
ragem de Phamela ao denunciar a estender à questão da violência de
violência sexual que tinha sofrido forma mais abrangente. “Na comis-
foi “fundamental para quebrar o são a gente expôs a homofobia, o
pacto de silêncio que existe na fa- racismo, o machismo, todos os casos
culdade”, ressalta Renata Mencac- de violência sexual e assédios que
ci, uma das fundadoras do Geni. conhecíamos. A comissão teve isso
“O único apoio que eu tive foi dos relatado, então não tem como a di-
coletivos. Não tem outro espaço de reção da faculdade dizer que não sa-
acolhimento. Porque tem um total be das coisas”, resume o estudante.
descaso da faculdade em relação a is- Acusados de difamar a faculdade
Aluno Felipe Scalisa
so, e não é só da faculdade como insti- ao denunciar o caso e problematizar
tuição, é das pessoas. Fui ridiculariza- do a vítima, que exigiu a reabertura a questão, os militantes foram for-
da, estigmatizada. Foi uma coisa hor- do processo. “Tive que me expor temente hostilizados. “Ficamos bas-
rorosa”, diz Phamela, hoje no quinto diante de toda a congregação, foi tante desamparados e vulneráveis,
ano. Pressionada pelo NEGSS e pelo uma fala emocionada. A partir disso, porque vários grupos que estavam
Geni, a faculdade abriu uma sindicân- eles resolveram fazer as comissões articulados acabaram se desmobi-
cia para apurar o caso. “A comissão foi de investigação de abusos”. lizando. As medidas proibitivas ge-
formada, na maioria, por homens, que Somente quando prestou de- raram hostilidade, um certo rancor,
ficaram perguntando coisas relaciona- poimento pela segunda vez, para e teve a criação de núcleos, através
das à minha moral, se eu tinha bebi- abertura da nova sindicância, é que dessas diretorias, que tentavam co-
do, feito uso de drogas, com quantos Phamela constatou o quanto o pro- optar a pauta, mas sem confiança
caras eu tinha ficado durante a festa, cesso anterior havia sido ilegítimo: alguma das vítimas”, relata Felipe.
se eu já tinha saído com os acusados. “Eu não tive acesso ao documento,
Eu senti como uma tentativa de des- ao meu depoimento, não assinei na-
qualificar o que aconteceu, de mudar da, e tinha várias falas adulteradas”,
o foco do assunto”, critica. denuncia. A única atitude tomada “Casais homossexuais eram
O parecer da comissão sindican- foi a de desconsiderar o primeiro proibidos de entrar numa
te, divulgado no primeiro semestre documento, sem que ninguém fosse
de 2014, concluiu que não houve responsabilizado pelas adulterações. parte da festa ‘Carecas no
abuso, e sim uma relação consensu- A resposta imediata da faculdade Bosque’. A segurança dizia:
al, e atribuiu incidentes do tipo ao à quebra do silêncio sobre os casos
consumo de álcool. “O resultado foi de violações foi estreita, o que inten-
‘Só entram casais normais’,
lido em congregação e foi um mo- sificou a hostilidade aos coletivos. “A isto é: homem e mulher, e
mento de muita revolta. Todo o meu instituição abordou o tema que para
depoimento foi jogado no lixo e eles ela era mais conveniente, que era o
muitos gays e lésbicas que
falaram que foi consensual. Então do álcool. Então, houve a proibição tentaram entrar com parceiros
eu sou louca? Foi um absurdo!”, in- absoluta do álcool na faculdade, al-
e parceiras foram impedidos”
digna-se Phamela. As estudantes do go que nós, quando denunciamos
Geni refutaram o resultado, apoian- as violências, não tínhamos como

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Revista Adusp Dezembro 2015
A tensão aumentou após um do. “O ato foi recebido com uma do sabe o que o Show Medicina fez
caso de homofobia ocorrido em hostilidade imensa. Depois disso comigo, saiu um documentário na
2014, em uma das festas promo- não consegui mais frequentar a [TV] Band, estava na CPI, está no
vidas pela Atlética, nas quais, se- faculdade, fui considerado traidor, MP, nós expusemos na comissão.
gundo Felipe, homossexuais não pária em relação àquela realida- Não foi aberta uma sindicância so-
podem demonstrar afeto em pú- de. Rasgavam nossos cartazes, pi- bre o meu caso. Eles esperam que
blico. “Casais homossexuais eram chavam coisas com nossos nomes, eu peça?”, desabafa Felipe.
proibidos de entrar numa parte meu nome foi pichado pela facul- As instituições são as principais
da festa ‘Carecas no Bosque’, era dade inteira”, conta o estudante, responsáveis pela manutenção de
um apartheid. A segurança dizia: que também foi alvo de postagens práticas trotistas como as perpetra-
‘Só entram casais normais’, isto é: difamatórias em redes sociais. das pela Atlética e pelo Show Medi-
homem e mulher, e muitos gays e O assédio dos colegas ao ati- cina, acredita o sociólogo Almeida
lésbicas que tentaram entrar com vista chegou ao ápice quando, no Jr. “A universidade dá a impressão
seus parceiros e parceiras foram final de 2014, um dos esquetes do de que quer esse grupo, porque é
impedidos”. Ao tentar entrar na Show Medicina apresentou um como um pacto: o grupo protege a
“área hetero” da festa com o par- personagem que mimetizava Feli- universidade independentemente
ceiro, um aluno da Faculdade de pe, ridicularizando, diante de cer- do que a universidade faça. Nas
Direito da USP foi barrado pela ca de 400 pessoas, seus trejeitos músicas das Atléticas, todas as uni-
segurança, que permitiu sua en- e sua militância — e referindo-se versidades são ‘as gloriosas’, todas
trada somente quando ele deu a a ele como “aquele que defen- são lindas e maravilhosas. É um
mão a uma amiga. Ao vê-lo com o de a diversidade de pensamentos enaltecimento louco da universida-
namorado no espaço, a segurança iguais aos dele”. O estudante foi de, não importa o que esta esteja
ordenou que o casal se retirasse, estigmatizado ainda em outro es- fazendo, se está cumprindo seu pa-
argumentando que estava “apenas quete, no qual o personagem, uma pel social ou não”, afirma o profes-
seguindo ordens” da diretoria da espécie de censor denominado sor da Esalq.
Atlética. Mais seguranças intimi- “Fiscaliza” — em clara alusão ao Foi exatamente esta a sensação
daram o casal, até que um deles sobrenome de Felipe (Scalisa) — que Renata teve quando, acompa-
percebeu que o estudante estava acusa um grupo de homofóbico e nhada de dois colegas, questionou
gravando a cena homofóbica com machista por suas piadas. Na CPI, pessoalmente o professor José Ota-
o celular e o agrediu. porém, os dirigentes do Show ne- vio Costa Auler Junior, diretor da
“Ele saiu de lá e foi para a en- garam que as representações se FMUSP, sobre as práticas da fra-
fermaria. O médico era ex-membro referissem a ele. ternidade, e ouviu como resposta
da Atlética e se recusou a prestar Apesar da repercussão do as- que “o Show não pode morrer”.
socorro, disse que ele estava exage- sédio moral de que o estudante “Os interesses são muito complica-
rando, deixou-o lá plantado, com a foi vítima, a direção da FMUSP dos, a Medicina é muito corporati-
boca machucada, sangrando. Ele não se manifestou, tampouco abriu vista. Pedir para o Auler contestar
foi denunciar o que aconteceu e a sindicância a respeito. “Algumas o Show Medicina é pedir pra ele
Atlética se recusou a falar com ele, sindicâncias que deveriam ter sido contestar muitos livres-docentes,
negou o fato. Só que ele filmou tu- abertas não foram. Quem vai ale- mesma coisa com a Atlética ou
do, a segurança falando, o estado gar, hoje em dia, que não sabe que qualquer outra instituição. Quando
dele machucado”, narra Felipe. O houve um caso grave de homofobia a gente fala em enfrentar de fato,
fato ganhou repercussão após ser na Atlética em 2014, que saiu na significa mexer com pessoas muito
noticiado pela imprensa. Indigna- mídia, saiu na CPI? Por que a fa- poderosas, além da esfera estudan-
dos, coletivos da USP se uniram culdade não tomou a iniciativa de til”, critica a feminista, que defende
em um ato de repúdio ao ocorri- abrir uma sindicância? Todo mun- o fim da organização.

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Dezembro 2015 Revista Adusp

IV
Associação Atlética: “Pode ser que você
tenha sofrido uma violência, então vamos lá
tomar a terapia antirretroviral”

Entre os casos de estupros de minha calça”, narrou a estudante abuso”, sem maiores detalhes.
que alunas da FMUSP foram víti- na audiência. “Não entendi o que estava acon-
mas, um dos mais emblemáticos, Marina só sentiu coragem de tecendo, saí do atendimento sem
denunciados à CPI ao final do ano denunciar o fato quando o Co- fazer exame nem nada. Nisso eu
passado, foi o de Marina Souza letivo Feminista Geni foi criado. encontrei o presidente e o diretor
Pikman, 24, aluna do quinto ano. “Conversei com as minhas cole- social da Atlética lá no hospital, o
Em depoimento durante a primei- gas, a gente trocou várias experi- mesmo que tinha me assediado, e
ra audiência na Alesp, em novem- ências, várias meninas passaram eles me levaram para a casa de um
bro de 2014, Marina relatou duas por situações parecidas, inclusive outro ex-diretor que era do sexto
situações em que foi vítima de vio- com esse mesmo colega: ele já ano. Ele me falou: ‘Vamos para o
lência sexual durante seu primeiro agrediu outras meninas. É uma hospital, a gente não sabe direito o
semestre de faculdade, em 2011, e coisa bastante comum”. que aconteceu com você, pode ser
ressaltou a importância da oportu- Dois meses depois, Marina foi que você tenha sofrido uma violên-
nidade de denunciar, após sentir- violentada novamente. Desta vez, cia, então vamos lá tomar a terapia
se profundamente silenciada nos o estupro ocorreu na festa “Care- antirretroviral”.
últimos quatro anos. cas no Bosque”, promovida anual- Marina passou então por um
A primeira violência de que Ma- mente pela Atlética e na qual há atendimento na infectologia. “Já
rina foi vítima ocorreu na semana várias barracas de bebidas, cada nesse atendimento o médico ques-
de recepção de calouros, após um uma com o nome de uma moda- tionou muito, falou que não sabia,
happy hour na Associação Atlética. lidade esportiva. “Eu estava bem, que não podia falar que tinha uma
Ela ia para outra festa em seguida, estava acordada, e na barraca do violência. O ex-diretor também
no Centro Acadêmico, que é um Judô eu bebi algumas doses de não quis falar muito bem o que
pouco distante, e o diretor social uma suposta tequila — que na tinha acontecido, falou que tinha
da Atlética na época, “pessoa res- verdade não é tequila, é uma mis- um cara em cima de mim, mas que
ponsável por orientar e cuidar dos tura de destilados que eles fazem, ele não podia falar o que tinha
calouros nas atividades da organi- eles manipulam as bebidas antes acontecido porque ele não estava
zação”, disse que a acompanharia de servir. Algumas bebidas me fo- lá”, prosseguiu. Ao voltar para
para ajudá-la, porque ela estava ram oferecidas por um menino da casa, contou à mãe que achava
embriagada. “Quando a gente es- minha turma, e depois disso já não que tinha sido sexualmente vio-
tava saindo da Atlética, ele me pu- tenho mais memória do que acon- lentada. A mãe de Marina decidiu
xou para uma salinha escura que eu teceu”, relatou à CPI a estudante, levar a estudante à ginecologista
acho que é um depósito de mate- que acordou no atendimento do para realizar um exame de corpo
riais, não sei exatamente o que era, pronto-socorro de um hospital, de delito.
e começou a me agarrar, começou acompanhada de uma diretora e Na segunda-feira seguinte, teve
a tentar me beijar, e eu tentava re- uma ex-diretora da Atlética. início para a vítima uma verdadei-
sistir, e nisso a gente caiu no chão, As duas colegas lhe disseram ra saga em busca da verdade. Ao
ele veio em cima de mim, abaixou apenas que ela havia “sofrido um procurar a diretoria da Atlética,

56
Revista Adusp Dezembro 2015
o então presidente da organiza- Da mesma forma, o então presi- “Eu não sabia o que tinha acon-
ção recusou-se novamente a falar, dente da Atlética dissuadiu Marina tecido comigo, fiquei quase três
orientando-a a procurar um atleta de fazer a denúncia, argumentando anos sem saber exatamente. Passei
do Judô, que era quem “sabia o que não era possível afirmar que por dois atendimentos hospitalares
que tinha acontecido”. Após con- houve estupro porque ela estava junto com os diretores da Atlética,
versar com o rapaz, ela começou a embriagada e não sabia o que havia que sabiam o que tinha acontecido,
entender parte da história. Atrás ocorrido. “Eu ainda conversei com a tinham conversado com o agressor,
da barraca do Judô havia, como diretoria da Atlética, falei sobre meu conversado com a testemunha, e
em todas as outras barracas da interesse em fazer uma denúncia na não me falaram”, relatou. Ela re-
festa, um “cafofo”, estrutura mon- justiça, e eles se mostraram bastante cordou as sucessivas tentativas de
tada com colchões, “para onde os esquivos para testemunhar”, rela- membros da Atlética de abafar o
meninos da barraca levam as me- tou a vítima que, ainda assim, fez a caso, a pretexto de que, se o caso
ninas com quem estão ficando”, denúncia no dia seguinte, o que re- vazasse, a “imagem” da festa (e da
conforme Marina. “Ele falou que sultou na abertura de um inquérito organização) seria destruída.
tinha me deixado na barraca dor- policial. Nos meses que se seguiram, Tal comportamento é comum
mindo, e que cerca de uma hora foi profundamente desestimulada entre membros das chamadas “fra-
e meia a duas horas depois, tinha por colegas a dar continuidade ao ternidades”, como explica o pro-
voltado e visto um cara em cima processo judicial de apuração. fessor Almeida Jr. “Num momento
de mim com a calça abaixada. Fa- Pressionada por membros da pior, esse grupo se assemelha a uma
lou que tirou o cara de cima de Atlética, que alegavam que ela era quadrilha, porque acontece um cri-
mim e bateu no cara”. Chocada, culpada por ter bebido, a estudante me e, ao invés de auxiliar as autori-
ela manifestou sua vontade de de- acabou deixando de lado o inquéri- dades a entender o que se passou e
nunciar o fato, mas ele a desesti- to policial, retomando-o apenas em efetivamente punir os responsáveis,
mulou com o argumento de que 2014, amparada pelo Coletivo Geni. ele omite informações, distorce os
ela “não teria como provar” o que Foi quando teve acesso, por meio do fatos, faz pressão contra a vítima,
houve — “ele, que era a testemu- inquérito, a diversas informações ne- faz pressão contra o denunciante,
nha principal do que tinha aconte- gligenciadas desde 2011. Testemunha difamando-os. Então é uma quadri-
cido comigo”. principal, o rapaz que a encontrou na lha que está dentro da universidade
barraca só foi chamado a depor em e não é vista como quadrilha, mas
2014, e relatou que a havia encon- como uma fraternidade”, afirma o
trado completamente desacordada. especialista.
Só em 2014 Marina “Na época, ele não tinha falado sobre O caso de Marina repercutiu na
descobriu que o autor meu estado de consciência”, contou imprensa pouco antes da primeira
Marina, que descobriu também que audiência da CPI. Seu relato enco-
do estupro era um um seu estuprador era um funcionário rajou outras vítimas de estupro a
funcionário, que conseguiu que conseguiu entrar na barraca por- denunciarem seus casos, apoiadas
que subornou os funcionários. (Ao pelo Coletivo Geni. Entretanto, a
entrar na barraca da depor, o funcionário alegou que pa- estudante foi alvo de ataques, por
Atlética porque subornou gou para deitar-se com uma das pros- estar expondo negativamente a fa-
titutas que estariam disponíveis no culdade e porque, supostamente,
os seguranças. A direção da local, mas só encontrou Marina.) A “não tinha provas”. Comentários
associação sabia de tudo, estudante soube ainda que a polícia no Facebook questionaram seu re-
havia sido chamada no momento em lato, na linha de que “menina direi-
mas queria abafar o caso
que tudo aconteceu, mas teria sido ta não bebe até ficar desacordada”.
“impedida de entrar”. Ela sentiu-se, novamente, alvo do

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Dezembro 2015 Revista Adusp
machismo e corporativismo predo- tem?/Se reclamar/vou estuprar vo- Público do Estado de São Paulo
minantes na FMUSP. cê também’”, relatou a estudante à para apurar os casos de violações
“Depois disso ainda, na Inter- CPI, referindo-se à competição es- de direitos humanos na USP está
med deste ano [2014], as outras fa- portiva entre escolas de medicina. em andamento. Procurada diversas
culdades usaram muito o estupro O inquérito civil instaurado em vezes pela Revista Adusp, a promo-
para ofender e zoar nossa faculda- setembro de 2014 pela Promoto- tora Beatriz Helena Budin Fonse-
de, e alunos da própria faculdade ria de Justiça de Direitos Huma- ca, responsável pelo inquérito, não
cantavam ‘Estupro sim/o que é que nos e Inclusão Social do Ministério quis conceder entrevista.

V
De um lado, medidas institucionais insatisfatórias.
De outro lado, “Não Cala USP”!

“Depois da CPI nós tivemos um viado por intermédio da assessoria de rido na própria grade curricular. “O
momento de latência”, define Fe- imprensa da instituição. núcleo teria que ser mais incisivo”,
lipe Scalisa. Algumas das sindicân- Entre as providências tomadas critica o militante LGBT, que se
cias abertas nos últimos meses na pela FMUSP está a criação, em diz “agredido pela posição concilia-
FMUSP, relativas aos casos de es- dezembro de 2014, do Núcleo de dora” do NEADH, o qual, na sua
tupros, estão em processo de con- Estudos e Ações em Direitos Hu- avaliação, “é muito subordinado à
clusão. Os resultados daquelas que manos (NEADH), coordenado pela diretoria e tem um caráter muito
foram concluídas (e que, a pedido procuradora de justiça aposenta- mais conciliador do que nós, en-
dos denunciantes, não serão divulga- da Vânia Balera desde janeiro de quanto vítimas, estamos dispostos a
dos) são, no entanto, insatisfatórios, 2015. “O núcleo não é para receber conciliar”. Outros militantes, como
de acordo com as vítimas. No único denúncias. Pode até vir a receber Renata Mencacci, também não con-
caso em que houve algum tipo de e fazer o encaminhamento neces- fiam no núcleo criado pela diretoria
punição, foi meramente simbólica: sário, mas foi instituído mais pa- da faculdade: “O NEADH não está
acusado de estuprar três colegas, um ra fomentar a política institucional do nosso lado, não está lá para aco-
aluno da faculdade que está prestes na defesa dos direitos humanos”, lher e ajudar a tocar as lutas que
a se formar foi suspenso por seis afirma Balera. Ela aponta como precisam ser tocadas na FMUSP”,
meses, período após o qual poderá “atuação concreta” do NEADH a diz a feminista.
se formar normalmente e exercer a criação de uma comissão perma- Outra medida da FMUSP foi a
Medicina. Em suma, o resultado do nente para estudar “o uso de álcool criação, em fevereiro de 2015, de
processo sindicante foi somente o e outras substâncias pelos alunos”, uma Ouvidoria própria, para rece-
adiamento de sua formatura. após promover fórum que tratou ber denúncias e queixas de alunos.
Procurado pela Revista Adusp pa- do tema, em abril. O objetivo do “A Ouvidoria e o NEADH traba-
ra comentar a questão e as acusações núcleo, segundo a coordenadora, é lham em conjunto. Separadamen-
de omissão diante das denúncias, o “tentar implantar, de forma trans- te, porém com o mesmo propósito
professor José Otavio Costa Auler versal à grade curricular”, grupos de averiguar, receber, acolher, en-
Junior, diretor da FMUSP, não deu de estudo sobre os temas conside- contrar soluções, sugerir medidas,
retorno aos pedidos de entrevista rados “oportunos”. cobrar”, sustenta a ouvidora, soci-
nem respondeu, até a conclusão des- Na opinião de Felipe Scalisa, óloga Elisabeth Vargas, que parti-
ta matéria, ao e-mail que lhe foi en- contudo, o debate precisa ser inse- cipa das reuniões promovidas pelo

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Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
núcleo. “A ideia é que todo o apoio com princípios e diretrizes de como
seja dado à vítima no que ela preci- as professoras podem acolher as de-
sar, seja apoio psicológico ou jurídi- núncias” e “mapeando os serviços
co”, explica Elisabeth, que conside- dentro e fora da USP, e as nossas
ra importante ter autonomia para experiências pessoais, para criar um
trabalhar. “Não presto contas à di- tipo de protocolo”; o de campanhas
reção da faculdade. Faço relatos de educativas e comunicação, voltado
números e temas, garantindo total para o planejamento e execução de
sigilo a todos os denunciantes”. campanhas educativas relaciona-
Até julho de 2015 a Ouvidoria das ao tema; o de coordenação de
havia recebido 19 denúncias, sendo intercâmbio e apoio às atividades
a maioria de assédio moral e ne- locais; e o de Regimento, responsá-
nhuma de violência sexual. Para a vel pela identificação de lacunas no
ouvidora, faz-se necessário na facul- Regimento da universidade “para
dade o debate sobre humanização. propor alterações que visem um
“Essa sensibilização não pode ser Professora Ana Flávia D'Oliveira aprimoramento dos mecanismos de
feita de cima para baixo, tem que ser apuração e punição das situações
feita horizontalmente”, defende a professor Paulo Saldiva, extinta por de violência sexual e de gênero”,
socióloga, para quem é preciso abrir ocasião da criação do NEADH. conforme documento elaborado
sindicâncias, principalmente em ca- “A gente precisava também de um pela rede, que já conta com mais de
sos de violência sexual. “Como ouvi- espaço de atuação autônomo e inde- 220 apoios manifestados.
dora, não posso exigir uma punição, pendente para enfrentar a questão de
mas posso sugerir à direção da facul- forma propositiva e não necessaria-
dade que tome tais providências e mente apenas pelos canais adminis-
mobilize pessoas”, conclui. trativos da universidade, que têm seu “As histórias da Medicina
Diante da gravidade dos casos papel, mas não são suficientes”, diz a
são bem específicas. Além
denunciados e da ausência de uma professora. “Nosso grande incômodo
política institucional concreta de foi a falta de proteção dos denun- das festas, tinha a questão
amparo a vítimas de violência se- ciantes, e é nosso papel, como pro- dos trotes e o fato de os
xual e de gênero na USP, um grupo fessoras e mulheres mais velhas que
de professoras resolveu encarar o sabem o que estão falando, tomar a estupros lá serem bem
desafio. A rede “Não Cala USP” frente da defesa das meninas. Elas criminosos, planejados. Dão
foi criada a partir de uma “carta de estavam vocalizando a dificuldade de
desabafo” elaborada por docentes enfrentar a estrutura administrativa remédios para as meninas,
de diferentes unidades da universi- da universidade, e a dificuldade nas tem estupro coletivo. É bem
dade e enviada a colegas “sensíveis a relações de poder internas da insti-
esta questão”, segundo a professora tuição”. Assim, define Ana Flávia, a assustador”, diz a professora
Ana Flávia D’Oliveira (FMUSP). rede configura uma “tentativa de nos Heloísa Buarque de Almeida
“Menos de uma semana depois, nós articularmos para a proteção das me-
tivemos surpreendentes 94 pessoas, ninas de uma forma independente,
simbolicamente dentro do prédio autossustentada e propositiva”.
da Faculdade de Medicina, onde co- Quatro grupos de trabalho fo- Ana Flávia questiona o regimen-
meçaram as denúncias públicas”, ram organizados: o de acolhimento to atual da universidade, no qual “a
orgulha-se Ana Flávia, que havia às vítimas, “que está pensando o vítima de violência não é parte do
integrado a comissão presidida pelo treinamento e um certo manual, processo”, que envolve apenas “o

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Daniel Garcia
infrator disciplinar contra a univer- pecialidade “muito ligada ao pessoal
sidade”. “O regimento da universi- da Atlética”, segundo a estudante, a
dade é de 1972, época ainda da Di- ortopedia é eminentemente domi-
tadura Militar, com pedacinhos de nada por homens, tendo sido apenas
lei de 1990, e trabalha com a ideia uma vaga, de um total de 15, ocu-
de infração disciplinar, então não pada por uma mulher. “Se formos
há nele crimes de violações dos di- falar de urologia, é bizarro, porque
reitos humanos”, diz a professora, são 10 vagas e nenhuma foi ocupa-
destacando que “embora aconteça da por mulher, e não é por falta de
há muito tempo, a violência sexual é capacidade. É uma discrepância: as
de uma visibilidade bastante recente mulheres não podem fazer urologia,
dentro das universidades”, sendo um mas os homens fazem ginecologia e
“problema de grande dimensão e di- são muito valorizados”.
Professora Heloísa Buarque de Almeida
fícil abordagem”. Ela destaca que é Nas práticas trotistas, “também
preciso combater o senso comum de cista com professor, assédio sexual há uma violência marcadamente
que a educação formal é suficiente também entre professor e aluno, e com metáforas de gênero, sexuali-
para prevenir esse tipo de violência. várias dessas questões estão apare- dade e raça”, segundo Heloísa. “O
Professora de estudos de gênero cendo mais, não só porque agora chamado pascu, por exemplo, é uma
na Faculdade de Filosofia, Letras estão achando canais para denun- coisa que feminiliza os rapazes e, se
e Ciências Humanas (FFLCH), a ciar, mas também porque houve uma você pensar stricto sensu, é estupro.
antropóloga Heloísa Buarque de mudança na forma de classificar al- Perante a lei, é estupro”. Para a pro-
Almeida, uma das fundadoras da gumas coisas”, explica. Assim, não fessora, “a palavra violência esconde
rede “Não Cala USP”, coordena, são denunciadas apenas as violências muitas coisas” e “se a brincadeira de
desde março de 2014, o programa físicas, mas tudo o que é vivido co- uns é a humilhação de outros, não é
USP Diversidade. Fundado em 2012 mo uma agressão. “As meninas estão mais brincadeira, é violência”. Ela
para pensar a questão da homofo- chamando de violência simbólica, ressalta que, diferentemente do tro-
bia, o programa foi o espaço que violência moral, violência psicológi- te, cuja ocorrência varia entre as di-
a professora encontrou para deba- ca. E nós também”, defende a pro- versas unidades da USP, a violência
ter a violência sexual e de gênero, fessora, enfatizando que “essa no- sexual é “uma problemática geral”.
após tomar nota de casos ocorridos va forma classificatória demanda da Diante da inaptidão das comis-
em festas, passando a ser procurada universidade uma postura diferente”. sões sindicantes em lidar com as de-
também por alunos da FMUSP. “As Assim, enquanto muitos atribuem núncias das estudantes, a criação da
histórias da Medicina são bem espe- gravidade apenas a violências físicas rede “Não Cala USP” é sinônimo
cíficas. Além das festas, tinha a ques- contra mulheres, Renata Mencac- de esperança para as vítimas. “Evi-
tão dos trotes e o fato de os casos de ci, do Coletivo Geni, afirma que na dentemente, no limite, um dos em-
estupros lá serem bem criminosos, Medicina as violências simbólicas se bates com que a gente vai ter é com
bem planejados. Dão remédios para dão até mesmo no direcionamento a própria estrutura hierárquica da
as meninas, tem estupro coletivo. É profissional. “Numa prova de resi- universidade. Mas esperar o Estatuto
um negócio bem assustador”, diz. dência [médica], os caminhos ficam mudar para fazer alguma coisa seria
O aumento do número de denún- muito claros: tem as especialidades paralisante. Então tem que ir fazen-
cias deve-se, a seu ver, a uma nova dos homens e as das mulheres. A do de outro jeito. A ideia da rede é
forma de enxergar a violência. “Tem mulher vai ser ginecologista, obste- pensar como é que a gente pode ir
uma série de abusos, violência se- tra, pediatra, profissões delicadas, fazendo alguma coisa paralelamente,
xual, homofobia, machismo em sala relacionadas ao cuidado e à questão que não seja esperar da Reitoria ou
de aula, piadinha homofóbica e ra- da maternidade”, conta Renata. Es- da institucionalidade uma solução”.

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Revista Adusp Dezembro 2015

Atlética e Show Medicina


rejeitam acusações

Em depoimento à CPI da Alesp, estudantes da Medicina que


dirigem as organizações negaram a contratação de prostitutas
nos seus eventos e disseram não haver recebido denúncias
de crimes sexuais. Sílvio Tacla, do Show Medicina, negou a
ocorrência de trotes violentos, machismo e homofobia

Daniel Garcia

O presidente da Associação
Atlética Acadêmica Oswaldo
Cruz (AAAOC), Diego Vinicius
Santinelli Pestana, comprome-
teu-se, em contato telefônico
com a reportagem, a responder
às perguntas que lhe seriam en-
caminhadas por e-mail. Contu-
do, não o fez até o fechamento
desta edição. Assim, a Revista
Adusp reproduz aqui excertos de
seu depoimento à CPI realizada
na Alesp. Pestana, que assumiu
a presidência da Atlética em ou-
tubro de 2014, depôs em 28 de
janeiro de 2015. Na mesma audi-
ência, depôs Raphael Kaeriyama
e Silva, que fora tesoureiro da Adriano Diogo, presidente da CPI, interpela aluno Raphael Kaeriyama, da Atlética
associação em 2011.
Sobre as festas “Carecas no não voltaria a promovê-las antes que nenhuma menina está em
Bosque” e “Fantasias no Bos- de resolver a questão da seguran- risco, nenhum rapaz está em ris-
que”, promovidas anualmente e ça. “Eu não vou fazer uma festa co, e que não tenha problema
nas quais ocorreu a maioria dos sem ter uma garantia de que tem nenhum. Eu não sei quanto tem-
casos de assédio e estupros de- profissionais de segurança, por- po isso vai demorar para a gente
nunciados por alunas da FMUSP, que até então a gente tinha, mas ter esse know-how de saber fazer
Pestana assumiu que elas respon- pelas denúncias parece que eles uma festa bem feita, bem organi-
dem por grande parte da recei- não estavam funcionando direito. zada, com segurança” (p. 700-701
ta da Atlética, mas declarou que Então, eu quero ter certeza de do relatório da CPI).

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Dezembro 2015 Revista Adusp

Pestana afirmou que, devido existam quartos improvisados nos de machismo, homofobia e outras
ao “acidente” com o calouro Edi- fundos das barracas. violações de direitos humanos
son Hsueh (1999), a organização “Posso afirmar a todos os pre- no âmbito da AAAOC”, Pesta-
perdeu patrocínios e, por isso, a sentes que a Atlética não contra- na afirmou: “Eu nunca presenciei
verba oriunda das festas é cada tou, nunca contratou e não con- nada desse tipo, mas eu também
vez mais necessária. “A minha pre- trata nenhuma prostituta. [...] Eu não posso fechar os olhos para as
ocupação agora é procurar novas posso afirmar categoricamente denúncias” (p. 720). Teria tomado
fontes de renda para não voltar que, em 2011, quando fui tesou- conhecimento das denúncias so-
a fazer a festa... Óbvio que tem a reiro, não foi repassado nenhum mente por meio “dos boletins da
parte que nós gostamos das festas, dinheiro para a contratação de CPI e da mídia”, pois segundo ele
nós somos jovens, gostamos, OK, prostitutas. De verdade. Isso não ninguém o procurou antes para
mas se a gente pudesse optar, elas aconteceu. A gente não apoia, fazer denúncias, apesar de sempre
não seriam feitas do jeito que são não é apoiado esse tipo de coisa. terem estado “abertos para diálo-
feitas” (p. 702), dizendo preferir Não é que a Atlética foi lá e pa- go com os coletivos” (p. 721).
eventos mais modestos. gou para uma prostituta estar ali.
O deputado Adriano Diogo, Isso não acontece”, disse Silva
presidente da CPI, censurou Pes- (p. 704-705).
tana por referir-se à morte de Sobre os quartos improvisa- Sílvio Tacla, que dirigiu
Edison como “acidente” e por dos, alegou que são usados para
o Show em 2014, alegou
acrescentar que a morte do estu- se armazenar bebidas e outros
dante “atrapalhou os lucros” da itens vendidos nas barracas, o jamais ter presenciado
Atlética. “Soa mal”, disse Diogo. que explica a presença de segu- coação sobre calouros:
O presidente da CPI também ranças na porta. “Se [...] as pes-
dirigiu ao presidente e ao ex- soas usam como quartos, eu real- “Nunca fui a favor de
tesoureiro da Atlética, Raphael mente desconheço” (p. 705), dis- ninguém consumir bebida
Kaeriyama e Silva, perguntas so- se o ex-tesoureiro, que afirmou
bre os “relatos sistemáticos” da não saber “de onde veio o termo alcoólica em excesso ...
contratação de garotas de progra- ‘cafofo’” (p.706). nunca presenciei ninguém
ma para, nos referidos eventos, O presidente da Atlética, por
ficarem “nas barracas das mo- sua vez, limitou-se a dizer que as ser obrigado a ficar nu em
dalidades para que os frequenta- denúncias foram um alerta para nenhum espaço do Show”
dores possam tomar bebidas em que o sistema de segurança das
seus seios” e sobre a verba des- festas seja revisto. “O que, talvez,
tinada a isto, além da existência essas denúncias demonstrem para
dos chamados “cafofos, quartos a gente é que nossa segurança, Ao telefonar para o atual di-
improvisados que são montados nesse aspecto, se aconteceram es- retor do Show Medicina, Erik-
atrás das barracas de bebidas” sas denúncias, falhou. É um alerta son Hoff, a Revista Adusp propôs
para que rapazes tenham rela- para a gente mudar” (p. 706). encaminhar-lhe perguntas por e-
ções sexuais com tais prostitutas Questionado pela vice-pre- mail e obteve como resposta que
ou com garotas que os estiverem sidente da CPI, deputada Sarah ele as veria e as responderia, “se
acompanhando. Silva negou ca- Munhoz (PCdoB), sobre já ter for do meu interesse”. A repor-
tegoricamente tanto que a Atlé- presenciado ou tomado conheci- tagem encaminhou as questões,
tica contrate prostitutas e que mento de “atos de assédio sexual, conforme o combinado, mas não

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Revista Adusp Dezembro 2015

obteve resposta de Hoff até o fe- O presidente da CPI também o roteiro do Show”, mas aquele
chamento desta edição. perguntou a Tacla sua opinião que “vê quais quadros vão sair,
Na CPI, quem respondeu pe- sobre “alunos serem citados no- organiza a ordem” (p. 1382).
lo Show Medicina foi o diretor minalmente na peça do Show”, Com relação aos calouros se-
da organização em 2014, Sílvio como no caso de Felipe Scalisa rem forçados a beber nos ensaios,
Tacla Alves Barbosa, que de- (satirizado em dois esquetes da Tacla alegou nunca ter presencia-
pôs em 10 de fevereiro de 2015, edição de 2014 do Show Medi- do tal situação e disse desconhe-
quando já havia deixado esse cina), e sobre menções depre- cer que ocorra tal coação. “Eu,
cargo. Ele havia exercido outros ciativas ao Coletivo Geni. O ex- enquanto diretor, fiz questão de
cargos no Show em anos ante- diretor respondeu que nunca foi fiscalizar que nenhum excesso
riores: de tesoureiro (2012) e de “a favor de citações individuais de fosse cometido. Nunca fui a favor
secretário (2013). alunos” e que “não houve menção de ninguém consumir bebida al-
A Revista Adusp telefonou pa- direta a nenhum deles” (p. 1380); coólica em excesso”, garantiu (p.
ra Tacla para obter uma entre- que não viu na peça, “de maneira 1415). Sobre os novatos serem
vista sobre os fatos ocorridos ou nenhuma”, “relação com o Felipe obrigados a ficar nus, respondeu:
denunciados em 2014, mas o es- Scalisa” e “relação com o Coletivo “Eu nunca presenciei ninguém
tudante recusou-se: “Quem pode Geni”, e que não sabia se a músi- ser obrigado, coagido a ficar nu
responder melhor pelo Show é ca “Geni”, de Chico Buarque, “ia em nenhum ensaio, nenhum es-
o diretor atual”. A reportagem fazer parte ou não” (p. 1390); que paço do Show” (p. 1481).
explicou que estava aguardando “o tema não foi o [Coletivo] Geni, “Em relação a casos de estu-
retorno de Hoff, mas que várias o tema foi a Ópera do Malandro” pro especificamente relacionados
questões se referiam a denún- (p. 1384). Alegou que o Show não ao Show eu não recebi nenhum
cias feitas ao período em que Ta- é machista nem homofóbico. relato até agora. Relacionados à
cla dirigia a organização, sendo, Perguntado especificamente faculdade sim, a gente tem vá-
portanto, apropriado que se ma- sobre o esquete em que o estu- rios relatos. No Centro Acadê-
nifestasse. Ainda assim, ele não dante Felipe Scalisa foi mimeti- mico [Oswaldo Cruz (CAOC)],
quis conceder entrevista. zado e no qual ele mesmo atuou, o que surgiu e foi bem pautado
À CPI, quando questionado Tacla sustentou tratar-se de uma foi essa questão de novembro de
sobre a prestação de contas da brincadeira sobre o internato da 2013, da cervejada do sexto ano,
organização, e indagado sobre a Medicina (“quem iria ser exclu- o caso da menina que veio depor
contratação de prostitutas, Tacla ído dos grupos mais concorridos aqui, todo mundo já sabe do que
respondeu: “O Show não contrata do internato”): “Como eu era di- se trata”, disse Tacla, referindo-
prostitutas” (p. 1376). “O Show retor, não tive muito tempo de se à denúncia feita por Phamela
não organiza evento com prostitu- participar da produção ativa des- Silva Feitosa em novembro de
ta, até existe mesmo esse dia [em] se quadro, mas como eu era da 2013, ano em que ele era vice-
que os calouros vão de terno, uma turma do quarto ano, tinha que presidente do CAOC. “Certa-
brincadeira que é feita, mas o en- pegar algum papel. Acabei repre- mente a gente tem relatos, a
saio se encerra e, posteriormente, sentando o Pedro Bial, a gente gente conversa muito entre nós e
cada um vai para onde quiser. Eu, fez um quadrinho do ‘Big Bro- ouve pessoas falando ‘tal menina
pessoalmente, não tenho o hábito ther’” (p.1384). Indagado sobre me disse que sofreu’, mas eu não
de frequentar eventos com prosti- sua posição no processo criativo sei, não cabe a mim especificar
tutas”, disse ainda, em outro mo- do Show, afirmou que “o diretor tudo o que eu já ouvi, nomes”,
mento (p. 1447). geral não é quem elabora todo completou Tacla (p. 1462).

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Dezembro 2015
Políticas afirmativas Revista Adusp

A USP que se nega


a ser preta, parda
e indígena
João Peres, Moriti Neto, Tadeu Breda e Thiago Domenici
Jornalistas

O ano de 2015 marca a chegada a um nó


no debate sobre desigualdade étnica na
USP. A Ocupação Preta, coletivo estudantil,
conseguiu aglutinar insatisfações — e expor
desconfortos alheios — ao entrar em
salas de aula com o objetivo de
discutir racismo e políticas
afirmativas. Sua abordagem
forte tem reaberto velhas
feridas de uma universidade
forjada pela oligarquia e
inicialmente destinada apenas
aos bem nascidos. O Conselho
Universitário autorizou a adoção do ENEM
como opção à Fuvest para o ingresso, a
critério das unidades. Medicina, Direito e
Escola Politécnica negaram-se a aderir

64
Revista Adusp Dezembro 2015
“Quantos pretos você viu ho- mais interessados em aprender mi- mínimos, a principal universidade
je? Resistiremos eternamente”. As croeconomia. brasileira está longe do equilíbrio
palavras martelam o muro. Ora na Nos anos 1990, a criação da Co- étnico-racial, o que para Oliveira
tentativa de evitar que avance, ora missão Permanente de Políticas expõe as muitas contradições da
na esperança de colocá-lo abaixo. Públicas para a População Negra instituição, nascida em 1934 de um
Não estão sozinhas. “Povo forte, da USP funcionou como incentivo projeto de parte da elite paulista
povo preto”, “Odeio os racistas da para que o NCN cobrasse um de- ligada ao Partido Democrático e
USP”, “O racismo está aqui”: cada bate profundo nesse sentido, o que ao jornal O Estado de S. Paulo —
espaço da parede metálica que bus- acabou não ocorrendo. Na mes- intelectuais orgânicos da burguesia
ca isolar, na USP, o futuro prédio ma década, no âmbito mais geral agroexportadora e políticos com
do Instituto de Relações Interna- da universidade, a USP tornou-se ambição de se tornarem (ou se
cionais (IRI) foi estampado com di- “prosaicamente realista”, explica manterem como) a elite dirigente
zeres que evocam uma trajetória de a filósofa e professora Marilena do País. Ao longo dos seus 80 anos,
resistência. Do lado de fora, o Nú- Chauí em Escritos sobre a Universi- completados em 2014, esse projeto
cleo de Consciência Negra (NCN), dade (Unesp, 2001). Ela opina que foi se transformando num sistema
cujo espaço há anos é assediado pe- do lado das associações de docen- cada vez mais de massa, só que uma
la Reitoria, parece o agricultor fa- tes, de estudantes e de funcioná- massa predominantemente branca.
miliar que, cercado por latifúndios, rios, o discurso ficou “centrado na Oliveira acredita que a USP refle-
defende seu território. O vizinho, ideia de interesses das categorias”, te o país ao reproduzir um tipo de
que cresce a cada dia, exerce uma enquanto do lado das direções uni- racismo que Darcy Ribeiro chama
pressão imensa sobre ele. versitárias “prevaleceu o discurso de tolerância opressiva. “Esse mito
A sede de concreto do então rei- da eficiência, produtividade e com- da democracia racial está marca-
tor J. G. Rodas fez com que todos petitividade”. A absorção do ideá- do por essa situação. A tolerância
os barracões localizados ao lado rio neoliberal pela oligarquia que racial acontece quando os lugares
da Faculdade de Economia, Admi- controla a USP deu-se, entre outros de hierarquia racial são mantidos.
nistração e Contabilidade (FEA) fatores, também pela instalação de Quando começam a ser rompidos
fossem abaixo na gestão anterior. fundações privadas dentro da uni- ou se começa a reivindicar seu rom-
Menos um. O galpão ocupado anos versidade, levando à naturalização pimento, o preconceito vem à luz”.
a fio pelo NCN e mantido a salvo da ideia de uma gestão eficiente, No bojo de acirrados conflitos,
pelos militantes, a duras penas, é nos moldes de uma empresa. relacionados ao papel do negro na
como o debate sobre a democrati- “Hoje a USP fica entre essa sociedade nacional, os movimen-
zação do acesso à USP: isolado, po- pressão por mão-de-obra e essa tra- tos passaram a questionar o pacto
rém barulhento. Ainda não se sabe dição da erudição. Uma coisa mal social, e as políticas de ações afir-
quem será vencedor e quem será resolvida. É uma universidade ana- mativas ganharam fôlego. Espécie
vencido, mas é certo que a convi- crônica porque não consegue fazer de cereja desse bolo, as cotas ga-
vência fica a cada dia mais tensa. bem nem uma coisa, nem outra”, nharam tração a partir de 1996, so-
É engano achar que o debate so- avalia Dennis de Oliveira, professor bretudo no plano federal, e depois
bre cotas na universidade começou do curso de Jornalismo da Escola em 2001, quando o Brasil aderiu ao
hoje, como pode sugerir o vídeo de Comunicações e Artes (ECA) Plano de Ação de Durban (África
que “viralizou” nas redes sociais em e integrante do Núcleo de Estudos do Sul), ocasião em que o “uspia-
março de 2015 e que colocava de Interdisciplinares sobre o Negro no” e então presidente Fernando
lados opostos um grupo de ativistas Brasileiro (Neinb-USP). Henrique Cardoso admitiu que o
negros da Ocupação Preta — que Atualmente, mesmo abrigando país ainda é racista e que o Estado
interrompeu uma aula da FEA para 60% de alunos cuja renda familiar precisaria adotar políticas públicas
discutir o tema — e alunos brancos mensal é inferior a dez salários para alterar essa realidade.

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Fotos: Daniel Garcia

O Ministério da Educação
estima que estudantes pretos,
pardos e indígenas ocuparam
20% de 48.676 vagas
ofertadas pelas universidades
federais em 2014. “Enquanto
isso a USP tem 7% de alunos
negros”, diz o professor
Ricardo A. Ferreira Juliana Levra de Jesus Professor Ricardo Alexino

clusp), sempre com resultados pí- vre “Alexandre Vannucchi Leme”),


fios, a universidade finalmente deci- argumenta que a USP vai na con-
Somente em 2012 passou a vigo- diu, em 2015, aderir ao Exame Na- tramão do País ao não implementar
rar a Lei 12.711, conhecida como cional do Ensino Médio (ENEM), as cotas raciais. “Para quem a Uni-
Lei de Cotas, que determina às uni- cujos resultados passam a contar na versidade é feita? As cotas não são
versidades federais distribuir 50% forma de créditos aos estudantes implementadas. Nossa avaliação é
de suas vagas entre quatro subco- interessados em ingressar na USP de que a USP é um grande exemplo
tas: candidatos egressos de escolas como alternativa ao vestibular da de como não ser democrática”.
públicas; de escolas públicas com Fuvest, por meio do Sistema de Se- Julgada constitucional pelo Su-
baixa renda; candidatos pretos, par- leção Unificado (SISU). Porém, ca- premo Tribunal Federal (STF) em
dos e indígenas (PPIs) de escolas be a cada unidade de ensino decidir 2012, a Lei de Cotas tem sido exito-
públicas e PPIs de escolas públicas se vai ou não adotar essa modalida- sa na sua implementação. O Minis-
e baixa renda. Cada instituição fe- de, bem como a proporção de in- tério da Educação estima que 20%
deral tem autonomia para decidir gressantes via Fuvest e via ENEM. das 48.676 vagas ofertadas pelas
se vai ou não adotar uma política O professor Oliveira avalia que universidades federais foram ocu-
de ação afirmativa. As cotas podem o movimento por cotas cresceu na padas, em 2014, por estudantes de-
ser raciais (para negros, pardos e USP nos últimos anos. Primeiro, clarados pretos, pardos e indígenas.
índios), sociais (para oriundos de porque a universidade foi obriga- “Enquanto isso, a USP tem só 7%
escolas públicas e pessoas com de- da a dar algumas respostas, “ainda de alunos negros”, critica o jornalis-
ficiência) ou uma combinação dos que insuficientes” como no caso ta e professor Ricardo Alexino Fer-
dois modelos, ou seja, dentro da co- da adoção do ENEM, já que vários reira, coordenador do Neinb-USP,
ta de vagas para estudantes vindos dos cursos mais concorridos deci- citando dados de 2012. “Essa situ-
de escolas públicas são reservadas diram não aderir. Segundo, porque ação gerou o documentário ‘USP
vagas para negros, pardos e índios. “o movimento estudantil colocava 7%’, que constata o racismo estru-
A USP resiste, impávida (vide essa questão de uma maneira muito tural da universidade”, lembra o
Revista Adusp edições 43, 2008; e pontual, e agora é o principal item educador. Os números mais recen-
47, 2010). Depois de adotar por da pauta de reivindicações”. Juliana tes fornecidos pela instituição indi-
mais de uma década o claudicante Giaj Levra de Jesus, do Diretório cam um aumento de 1,4% no dado
Programa de Inclusão Social (In- Central dos Estudantes (DCE-Li- que titulou o filme: pretos, pardos

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Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
trajetórias. E o cruel é o cara não tem só para demonstrar que é de-
poder sonhar que ele pode”. mocrática. Isso é bobagem”, avalia
Entre os que se posicionam con- o professor Borges Pereira.
trariamente às cotas raciais, falar
em política de reparação histórica
parece não fazer sentido. “Não sou
contra a cota, mas não acho que “Claro que política de
ela deva beneficiar etnicamente.
ação afirmativa é algo
Ela deve beneficiar populações sem
condições financeiras, geralmente provisório, temporário. Mas
vindas de escola pública”, resume
até quando? Até quando
João Baptista Borges Pereira, pro-
fessor emérito do Departamento existirem esses mecanismos
de Antropologia da Faculdade de sistêmicos que impedem que
Carine Nascimento Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas (FFLCH). A professora Eunice determinados grupos possam
e indígenas agora são 8,4% do total Durham (FFLCH) avalia que a de- concorrer em condição de
de estudantes da universidade. sigualdade econômica, e não a cor
A estudante negra Carine Nasci- da pele, é o fator mais importante igualdade com outros”
mento, 21 anos, lembra bem do co- do desnível educacional brasilei-
mentário que a patroa de sua mãe ro. “A cota é um jeito de resolver
fez à época em que prestou Fuvest, o problema com pouco trabalho.
em 2011: “A Carine não vai pas- Você não precisa superar as defici- Tal alegação de princípio, de que
sar, porque as minhas filhas [bran- ências do ensino médio. É antide- as cotas são injustas porque violam
cas] não passaram”. Atualmente mocrático, antieducativo, porque a meritocracia e a isonomia para
cursando o último ano do curso de você coloca pessoas com deficiência vagas públicas, é “equivocada”, ava-
Educomunicação na ECA, diz que séria de formação na universidade”. lia Ronaldo Barros, secretário de
até hoje tem a sensação de que a Hoje, os negros representam Políticas de Ações Afirmativas da
universidade não foi feita para ela 70% dos 10% mais pobres do país, Secretaria de Políticas de Promo-
— “parece que eu sou uma coisa ao passo que os brancos somam ção da Igualdade Racial (Seppir).
meio marginal” — e questiona os 85% dos 10% mais ricos. Por trás Para ele, o ponto é perceber como
reais motivos de a USP recusar-se a do debate, uma outra questão con- injustiças históricas foram cometi-
adotar as cotas sociais e raciais. Ela troversa, o vestibular: método que das por meio dessa ideia, ou seja,
avalia que entrar na universidade valoriza o aluno capaz de estudar entender que pessoas aprovadas
sem o uso dessa política afirmativa ou prova discricionária, que elimina em exames vestibulares (ou concur-
foi possível por uma conjunção de possibilidades de quem não teve sos em geral) não chegam ao pódio
fatores positivos, como ter viven- acesso a uma formação mais com- unicamente por causa de seu em-
ciado outras políticas e programas pleta? “Na minha opinião, cotas são penho. “Claro que política de ação
sociais voltados para estudantes de estratégias emergenciais. Se o aluno afirmativa é algo provisório, é algo
baixa renda: “Hoje o sujeito sonha está em uma escola boa, não impor- temporário. Mas até quando? Até
um pouco mais com o ensino supe- ta a cor. Vai prestar o vestibular. Se quando existirem esses mecanismos
rior, mas sonhar com a USP é mais é bom, é bom. A USP tem de sele- sistêmicos que impedem que deter-
difícil, porque a universidade não cionar muito bem intelectualmente minados grupos possam concorrer
participou do processo de constru- seus alunos. Porque não pode jogar em condição de igualdade com ou-
ção de políticas que podem mudar fora o capital intelectual que ela tros. Então, enquanto houver um

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Daniel Garcia
sistema que hierarquize, secundari- se posicionou como “uma ilha de ex-
ze, impeça o acesso e crie barreiras celência no país, esforçando-se muito
e mecanismos de acessibilidade, vão pouco para que essas benesses de
existir cotas”, afirma Barros. formação fossem acessíveis aos dife-
É importante que a USP passe rentes segmentos sociais”.
a refletir e adotar medidas mais Quando questionada sobre a
eficazes, provoca o secretário de adoção de cotas raciais, a univer-
Ações Afirmativas da Seppir. “Ima- sidade se defende, lembrando que
gine o que um indígena não provo- desde 2006 possui o Inclusp como
ca de mudança na sala de aula: na política afirmativa. Voltado para
forma de vestir, no saber que traz, alunos de escolas públicas, o pro-
na necessidade que o professor tem grama consiste na aplicação de di-
de traduzir, retransmitir e potencia- ferentes bônus sobre a nota do ves-
lizar esse conhecimento. Então, a tibular: de 12% para o aluno que
presença desses grupos na universi- cursou o ensino médio em escola Professor João Baptista Pereira
dade muda processo, muda cultura, pública; de 15% para quem cursou
muda estado civilizatório. E os da- o ensino fundamental e o ensino São Paulo (Univesp), com duração
dos têm mostrado que muda para médio na rede pública; de 20% pa- de dois anos. “É muito cruel”, avalia
melhor, não precisa ter medo, não”. ra os alunos do Programa de Ava- Carine. “É como se dissessem: ‘Ah,
O medo a que Barros se refere liação Seriada (Pasusp) que cursa- tem de fazer isso porque ele não é
diz respeito também a uma segunda ram o ensino fundamental na rede tão bom assim’”, critica.
alegação meritocrática muito co- pública e ainda estejam no segundo
mum (que aparece na formulação ou terceiro ano do ensino médio
da professora Eunice Durham), a em escola pública. Há ainda um bô-
de que os alunos cotistas, por te- nus extra de 5% concedido àqueles “A USP aderiu ao ENEM
rem menor base de conhecimento, que se declararem pretos, pardos
porque, ao mesmo tempo que
rebaixariam a qualidade da insti- ou indígenas. Porém, ao longo de
tuição. “Estudo promovido pela uma década, o Inclusp não conse- não quer implementar cotas
UERJ [Universidade Estadual do guiu ampliar de modo expressivo a raciais, sabe que não dá
Rio de Janeiro] demonstra que o presença de negros na USP (e indí-
desempenho dos cotistas e não-co- genas menos ainda). mais não querer fazer nada.
tistas é muito semelhante. Segundo Lançado em 2013, outro progra- É estratégia de amenizar um
a pesquisa, as notas de cotistas che- ma gerou inconformidade do movi-
garam a 8,077 contra 8,044 de não mento pró-cotas. Trata-se do Progra- pouco essas reivindicações.
cotistas em cursos como o de Admi- ma de Inclusão por Mérito (Pimesp), Não pode dar um braço
nistração, só para citar um exemplo. proposto às universidades públicas
Outras universidades que adotaram estaduais pelo governador Geraldo inteiro, então dá um dedo”
o sistema de cotas comprovam de- Alckmin. O Pimesp prevê a adoção
sempenho semelhante”, explica o de cotas gradativas para alunos da
professor Alexino Ferreira. rede pública, até atingir 50%, sen-
“Mesmo pública, a USP tem do- do 35% para autodeclarados pretos, Há dois anos, em reação ao Pi-
nos”, diz o coordenador do Neinb. pardos e indígenas. Estes estudan- mesp, a Frente Pró-Cotas Raciais
Na sua avaliação, a universidade mais tes, porém, teriam de submeter-se a encaminhou um anteprojeto de lei
famosa do país padece de um “com- um curso à distância oferecido pela à Assembleia Legislativa (Alesp) no
plexo eurocêntrico”, por isso, sempre Universidade Virtual do Estado de qual propõe uma reserva total de

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Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
13,5% das vagas que ofertará em de, narrativas como a dela, “negra de
2016: 1.489, de um total de 11.057. escola pública que entrou na USP”,
E dos 143 cursos de graduação da devem servir para evidenciar o quan-
USP, somente 13 farão reserva de to as cotas são necessárias.
vagas para candidatos autodeclara- A estudante conta que depois de
dos pretos, pardos ou indígenas. um ano de ativismo político dentro
Os cursos de Medicina, Direito e do campus, resolveu militar no âm-
Engenharia, a tríade da graduação bito da academia. “Comecei a es-
tradicional da USP, rejeitaram ade- tudar e ler várias obras, para fazer
rir ao SISU do Ministério da Edu- pesquisa de literatura, que é minha
cação como método alternativo de área, sobre escritores negros, então
ingresso de estudantes — e, por ex- estou comparando Lima Barreto
tensão, descartaram toda e qualquer com Carolina Maria de Jesus. Hoje
política de cotas. São justamente os em dia eu digo que minha militân-
Fernanda Silva e Souza espaços em que ações afirmativas cia é minha pesquisa e que minha
fariam mais diferença. José Rober- pesquisa é minha militância”. Nesse
55% das vagas, nas proporções de to Castilho Piqueira, diretor da Es- sentido, ela reforça o argumento
25% para negros e indígenas, 25% cola Politécnica, vê como positiva do secretário Barros, da Seppir, e
para estudantes da rede pública e a autonomia para que as unidades pontua que a entrada do estudante
5% para pessoas com deficiência. decidam a respeito. “As diversas uni- negro na universidade não serve so-
Também tramita na Alesp um pro- dades procuram ingressantes com mente para a diplomação. “Possibi-
jeto de lei apresentado em 2012 pe- perfis diversos e podem adaptar o lita que pesquisem, como eu, assun-
lo deputado estadual Luiz Cláudio ingresso aos seus objetivos”. tos que nunca foram pesquisados”.
Marcolino (PT), o qual cria um sis- Segundo a Fuvest, nas carreiras O reitor M. A. Zago, ao come-
tema de cotas, com vigência por dez com mais de dez candidatos por vaga morar a decisão do Conselho Uni-
anos, para um total de 35% das va- no vestibular, a faixa de matrícula versitário (de junho de 2015) que
gas na USP, Unesp, Unicamp e Fa- de autodeclarados pretos, pardos e optou pela adesão ao ENEM mas
tecs. Essa fatia seria dividida entre indígenas é de 13,2%, enquanto o negou-se a discutir a implementa-
afrodescendentes e indígenas (15%), total de alunos de escolas públicas ção de cotas raciais, cometeu um
alunos da rede pública (outros 15%) é de 25%. Nas faculdades com nível ato falho ao declarar que a USP
e pessoas com deficiência (5%). de concorrência intermediário, as fa- ficara “ilhada” por anos, mas que
Fernanda Silva e Souza, 21, que tias sobem para 18,1% e 33,1%, res- agora começava “a quebrar essa
cursa o penúltimo ano de Letras, pectivamente, e ascendem a 24,5% e parede”. Por certo, não se trata da
avalia que todos esses programas 45,8% nos cursos menos procurados. mesma parede metálica que isola
criados pela USP são paliativos. “A Apesar do crescimento geral nos as futuras instalações do IRI (no-
USP aderiu ao ENEM porque, ao últimos anos, os percentuais ainda es- va e promissora unidade de ensino
mesmo tempo que não quer imple- tão bem abaixo do considerado ideal da universidade), separando-as do
mentar cotas raciais, sabe que não pelos movimentos que se batem por teimoso Núcleo de Consciência Ne-
dá mais não querer fazer nada. É cotas. Pretos e pardos somam 34,6% gra. “Quantos pretos você viu ho-
uma estratégia da universidade de do total da população paulista, se- je?” As palavras seguem a martelar
amenizar um pouco essas reivindi- gundo o último Censo Demográfico o muro. Ora na tentativa de barrar
cações. Já que ela não pode dar um do IBGE, de 2010. Para Fernanda, sua expansão, ora na expectativa
braço inteiro, então dá um dedo”. que mora no extremo leste da cidade de botá-lo abaixo. Nesse caminho,
De fato, a USP reservou ao SISU e demora duas horas para ir e outras a velha estrutura resiste, não sem
do Ministério da Educação apenas duas horas para voltar da universida- rangidos e fraturas.

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Dezembro 2015 Opinião Revista Adusp

Como
a USP tem
tratado a questão
das ações afirmativas
Adriana Alves
Professora do Instituto de Geociências da USP

“Por que os colegas das ciências exatas e biológicas creem ser a discussão de cotas pautada
pelo fígado e coração? Por que não são legitimados como ciência/racionalidade os inúmeros
trabalhos que tratam da questão? Por que, num ambiente científico de mentes ditas
analíticas, as discussões e opiniões estão no plano dos achismos e conclusões baseadas
apenas nas vivências pessoais dos tomadores de decisões da universidade?” Este artigo à
moda de ensaio procura oferecer respostas a tais indagações

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Revista Adusp Dezembro 2015
Quando o telefone tocou na- E mais importante e paradoxal: ra revela os eventos históricos que
quela quinta-feira, pouco antes de “Por que, num ambiente científico marcaram a transição do regime
minha saída para quinze exausti- de mentes ditas analíticas, as dis- escravocrata para o regime de tra-
vos dias de trabalho de campo, não cussões e opiniões estão no plano balho livre e oferece ao leitor um
esperava que fosse por parte da dos achismos e conclusões basea- panorama completo que vai desde
Adusp. Tampouco esperava que o das apenas nas vivências pessoais o início dos movimentos abolicio-
convite para escrever sobre como a dos tomadores de decisões da uni- nistas até a constituição da chama-
universidade tem tratado a questão versidade?” da “nação brasileira”, que passa
das cotas sócio-raciais fosse feito Divido o presente ensaio trazen- inevitavelmente pelas campanhas
a mim, professora do Instituto de do informações que creio são des- “imigrantistas”.
Geociências, área, em tese, das ci- conhecidas por boa parte de meus O século XIX foi marcado pe-
ências exatas. colegas, uma perspectiva históri- las pressões internacionais sobre
Não faltam elucubrações e con- ca baseada em um fim de semana nosso país para que fosse dado fim
tribuições científicas a respeito do de pesquisas e leituras a respeito. ao regime escravocrata, e pressões
tema vindas de autores das ciências Quem sabe dessa maneira, ao le- internas. As razões humanitárias
humanas, daí a estranheza do convi- rem essas palavras, meus colegas levantadas pelos primeiros aboli-
te. Entretanto, a resistência encon- empreguem parte de seu tempo in- cionistas pouco efeito surtiram so-
trada no âmbito de meu instituto de formando-se sobre a questão, para bre os senhores de escravos, posto
origem e o papel árduo que venho fundamentar suas discussões para que nada se sabia sobre as impli-
tentando desenvolver junto a alunos além das emoções e achismos. cações econômicas da libertação
e professores (iniciado ainda nas dis- dos escravos.
cussões sobre o Pimesp) trouxeram Somente quando a inevitabilida-
à memória algumas das passagens de da abolição da escravidão ficou
e embates travados ao longo desses “Ao final da escravidão, a clara, surgiram as primeiras teorias
meus curtos cinco anos de docência. sobre a impulsão econômica do tra-
proporção de negros para
A grande vantagem de ser das di- balho livre e “prazeroso”, que já co-
tas ciências exatas é ver como por brancos era de 3:1 e havia lhia frutos na Europa e nos Estados
aqui o tema é tratado como se fosse Unidos durante o florescimento da
grande temor quanto ao que
uma discussão emocional e, portanto, revolução industrial.
no ver dos cientistas exatos, desprovi- poderia acontecer quando Já ao final do regime escravocra-
da do embasamento científico/racio- da abolição. Uma política ta, a proporção de negros (libertos
nal tão apreciado pelos das Exatas. ou não) para brancos no Brasil era
Pois bem, uma rápida pesquisa de imigração europeia de 3:1 e havia grande temor quanto
sobre o tema na mais poderosa fer- reduziria a desvantagem ao que poderia acontecer quando
ramenta de busca disponível a todos da abolição.
os meus colegas revela um sem fim numérica dos brancos” O imaginário da época foi to-
de publicações, dentre livros, artigos mado pelas imagens dos relatos,
científicos e ensaios. As primeiras funestos para os proprietários de
perguntas que ficam então são: “Por escravos, da Revolução de Santo
que os colegas das ciências exatas Aos iniciantes na temática das Domingo (1791-1804), ou Revo-
e biológicas creem ser a discussão relações raciais brasileiras reco- lução Haitiana, que subverteu a
pautada pelo fígado e coração? Por mendo a leitura do livro Onda ne- ordem colonial e escravista, dei-
que não são legitimados como ciên- gra medo branco, de Celia Maria xando um rastro de senhores e
cia/racionalidade os inúmeros traba- Marinho de Azevedo. Em suas famílias brancas mortas. Lidera-
lhos que tratam da questão?” pouco mais de 200 páginas a auto- da pelo general negro Toussaint

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Dezembro 2015 Revista Adusp
L’Ouverture (1743-1803), a Revo- na e da biologia contribuíram para
lução Haitiana derrotou os exér- a ideia do negro como irremedia-
citos da França, aboliu a escra- “A ideia que a sociedade velmente atrasado.
vidão, declarou a independência A política imigrantista foi o pri-
e instaurou, em 1804, a primeira
nutria (negro ‘preguiçoso’ meiro sistema nacional de cotas expe-
República negra da história. e indisponível ao trabalho) rimentado pela sociedade brasileira.
No Brasil, os últimos suspiros O branqueamento gradual da nação
floresceu também nos
da escravidão foram marcados por era propalado por intermédio de leis
tentativas de protelar a abolição trabalhos de FHC. Ficam de incentivo à imigração, isenção ou
por meio da cultura do medo, que diminuição de impostos e incentivo
claras as bases racistas
pregava ser inevitável a vingança a latifundiários dispostos à venda
dos libertos, com consequente eli- do sistema trabalhista ou arrendamento, subsidiados pelo
minação de seus antigos opresso- governo, de pequenos lotes de suas
brasileiro, e a ciência é parte
res — daí o nome do livro de Celia terras como incentivo à vinda e per-
Azevedo. Entretanto, dada a ine- importante na consolidação manência de imigrantes, de prefe-
vitabilidade iminente da abolição, da posição inferior do negro” rência brancos, para o país.
uma política pública de imigração,
preferencialmente europeia, visava “Não se pense que, propon-
diminuir a desvantagem numéri- do a abolição da escravidão, o
ca dos brancos, ao mesmo passo As justificativas para os incen- meu voto seja de conservar no
em que fortaleceria o progresso da tivos imigrantistas passariam a ser país a raça libertada: nem isto
economia e da cultura/moral via calcadas no próprio negro uma vez conviria de sorte alguma à raça
trabalho livre. que “o isolamento econômico, so- dominante, nem tampouco à
Os projetos emancipacionistas cial e cultural do ‘negro’, com su- raça dominada. Os primeiros
podem ser vistos como intermedi- as indiscutíveis conseqüências fu- teriam de sofrer as reações, e os
ários entre os dois (abolicionista nestas, foi um produto ‘natural’ de segundos teriam sempre a su-
e imigrantista) e previam a pres- sua incapacidade relativa de sen- portar os resultados de antigos
tação de serviços compulsórios tir, pensar e agir socialmente co- prejuízos, que nunca cessariam
por parte dos libertos por um pe- mo homem livre”, como escreveu a seu respeito”
ríodo que permitisse aos latifun- Florestan Fernandes. “Ao recusá-lo, Cezar Burlamaqui (1803-1866)
diários proceder à adequação de a sociedade repelia, pois, o agente
seu sistema produtivo, fosse pelo humano que abrigava, em seu ínti- “As duas raças, latina e saxô-
“treinamento” dos escravos pa- mo, o ‘escravo’ ou o ‘liberto’”. nia, neste país, hão de produzir
ra a aceitação do trabalho livre E essa ideia que a sociedade nu- alguma coisa melhor [...] quero
(uma vez que o trabalho era visto tria do negro preguiçoso e indis- ir gradualmente, isto é, trazendo
como castigo forçado), fosse pela ponível para o trabalho floresceu o estrangeiro precipitadamente
incorporação da mão-de-obra es- também nos trabalhos de Fernando para a província de São Paulo,
trangeira. Henrique Cardoso, nosso ilustrís- porque eu, primeiro que tudo,
Qualquer que fosse o modelo simo ex-presidente da República. sou paulista. Venha, pois, o es-
pensado e preferido à época, o ne- Ficam claras as bases racistas do trangeiro, sr. Presidente, façamos
gro misteriosamente some da dis- sistema trabalhista brasileiro, sendo tudo quanto estiver ao nosso
cussão após a abolição e o tema que a ciência é parte importante na alcance para chamá-lo, e mais
do trabalho passa a contemplar consolidação da posição inferior do tarde teremos a restauração de
preferencialmente a mão-de-obra negro, já que as medições cranianas nossos foros”
estrangeira. e os estudos fisiológicos da medici- Deputado Aguiar Witaker em 1869

72
Revista Adusp Dezembro 2015
As políticas de incen- Estão apresentadas,
tivo de permanência dos sucinta e grosseiramen-
imigrantes deveriam, es- te, as bases das relações
trategicamente, garantir raciais brasileiras. Se
um ambiente pacífico e por um lado somos his-
seguro. Portanto os temo- toricamente vistos como
res da “onda negra” pre- preguiçosos, perigosos,
cisavam ser derrubados a não-afeitos ao trabalho li-
fim de passar aos novos vre e irremediavelmente
cidadãos a imagem de atrasados, por outro não
país tranquilo. A cultura há qualquer intervenção
do medo é então parcial- do Estado na condição do
mente substituída pela negro, uma vez que, co-
ideia de que as relações mo dito no hino lançado
escravo-senhor no Brasil apenas dois anos após o
diferiam daquelas exis- fim da escravidão, somos
tentes nos Estados Uni- todos iguais.
dos e no Haiti, por serem Uma análise mais
amistosas e integradoras. aprofundada revela que o
Nasce a ideia da de- Brasil considerava o ne-
mocracia/harmonia racial gro como principal res-
brasileira, uma vez que os ponsável pelo atraso no
senhores eram bons, os crescimento econômico
escravos dóceis e repeti- do país ao mesmo tem-
ções de episódios como po que o torna respon-
o de Santo Domingo se- sável historicamente por
riam improváveis. sua própria sorte, uma vez que
as oportunidades seriam (são) as
Liberdade! Liberdade! mesmas oferecidas aos brancos…
Abre as asas sobre nós, “Análise mais aprofundada Essa é talvez a face mais perversa
Das lutas na tempestade do racismo brasileiro.
revela que o Brasil via o negro
Dá que ouçamos tua voz Em todas as discussões sobre a
Nós nem cremos que escravos como principal responsável adoção de políticas públicas para a
outrora ampliação do número de alunos po-
pelo atraso no crescimento
Tenha havido em tão nobre País... bres nos quadros discentes das insti-
Hoje o rubro lampejo da aurora econômico do país, tuições públicas de ensino superior,
Acha irmãos, não tiranos hostis. ao mesmo tempo que o torna o jargão sempre presente é: “deve-
Somos todos iguais! Ao futuro ríamos lutar pelo fortalecimento da
Saberemos, unidos, levar responsável historicamente escola pública e não pela facilitação
Nosso augusto estandarte que, por sua própria sorte. do acesso ao ensino superior por
puro, uma parcela de estudantes despre-
Brilha, ovante, da Pátria no altar! É talvez a face mais perversa parada e desprovida de mérito”.
do racismo brasileiro” Com variações sutis no discurso, é
Parte do Hino da Proclamação da esse o argumento mais utilizado em
República (1890) relação à adoção de políticas afir-

73
Dezembro 2015 Revista Adusp

“Preservar e desenvolver
“Em 1920, nada menos que
as características
60% dos brasileiros eram
mais convenientes
analfabetos. Os restantes
da ascendência europeia”
40% haviam sido julgados
Decreto-Lei 7.967, de 27 de agosto de 1945 e selecionados por meio
O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere
o artigo 180 da Constituição e considerando que se faz necessário,
de rigorosos mecanismos:
cessada a guerra mundial, imprimir à política imigratória do Brasil os exames de admissão
uma orientação racional e definitiva, que atenda à dupla finalidade de
proteger os interêsses do trabalhador nacional e de desenvolver a imi-
no ginásio só seriam
gração que fôr fator de progresso para o país, formalmente extintos com a
DECRETA:
lei 5.692/1971”
TÍTULO I
Da entrada de estrangeiros no Brasil
CAPÍTULO I
ADMISSÃO Numa análise histórica, Beisiegel
Art. 1º Todo estrangeiro poderá, entrar no Brasil desde que satisfaça (1986) conclui que nos primórdios
as condições estabelecidas por esta lei. da educação brasileira o sistema era
Art. 2º Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade organizado para atender aos interes-
de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as ses e expectativas de uma minoria
características mais convenientes da sua ascendência européia, assim privilegiada (qualquer semelhança
como a defesa do trabalhador nacional. com a atualidade não é mera coin-
cidência). Em 1920, 60% dos bra-
sileiros eram analfabetos e os 40%
mativas nas poucas universidades colonos e da realeza era de respon- restantes haviam sido julgados e mi-
que ainda não adotaram o sistema sabilidade da Igreja e, salvo raras nuciosamente selecionados via rigo-
federal de cotas socio-raciais. exceções, vedada aos escravos e à rosos mecanismos (os exames de ad-
Os primeiros pontos a esclarecer população mais pobre. Os importa- missão no ginásio só seriam formal-
são: 1) o movimento cotista jamais dos ideários educacionais que visa- mente extintos com a lei 5.692/71).
levantou bandeira alguma contra a vam preparar as crianças para uma Segundo Oliveira & Araújo (2005),
melhoria das condições educacio- inserção feliz e eficaz no mercado “quando nos deparamos com evo-
nais no país; e 2) os procedimen- de trabalho motivaram a implanta- cações saudosas da qualidade da es-
tos não são mutuamente exclusivos, ção de centros de educação voltados cola do passado, há que se levar em
sendo possível e recomendado que à capacitação de mão-de-obra. conta que estamos falando de uma
as cotas sejam temporárias e aliadas Contam os mais velhos que até a escola que já era diferenciada pela
a um plano nacional de valorização década de 1970 os colégios públicos clientela atendida”.
do ensino. eram excelentes. Instituições parti- Graças à universalização do ensi-
O cenário atual da educação bra- culares de ensino eram destinadas à no e à obrigatoriedade de matrícula
sileira deve ser analisado sob uma elite e aos meninos-problema conti- de crianças no ciclo básico, há um au-
perspectiva histórica. Num primeiro nuamente rechaçados pelas institui- mento vertiginoso da demanda, sem
momento, a educação dos filhos de ções públicas. que haja contrapartida na qualidade

74
Revista Adusp Dezembro 2015
A lógica de mercado permanece
presente em nosso sistema de ensi-
no e se traduz, mais claramente, na
competição instigada pelos exames
de acesso ao ensino superior públi-
co. Não fosse a competição por si
só não recomendada em ambientes
educacionais, o fato de ser travada
entre indivíduos com oportunida-
des de estudo de qualidade muito
contrastada torna-a, por conse-
guinte, desleal.

“A USP falha ao não


apresentar estatísticas
"Batuque", ilustração de Rugendas. Acervo digital da Biblioteca Brasiliana
detalhadas da composição
(e quantidade) da oferta. O reduto leva a uma corrida generalizada de
discente nos seus cursos.
de poucos passa a ser o da maioria alunos de famílias de classe média
e, com a flagrante desvalorização de aos bancos das escolas particulares. Os atuais 32% de egressos
professores e do ensino, o sistema Vão-se com esses alunos as vozes da escola pública parecem
educacional como um todo se revela pressionadoras de seus pais, que já
um nicho econômico atraente. entenderam ser a educação o prin- satisfazer o Inclusp. Mas
Se, por um lado, o primeiro in- cipal (se não único) meio de galgar as assimetrias favoráveis
dicador de qualidade incorporado degraus na escala social.
na cultura escolar brasileira foi con- Mesmo as mentes mais liberais, aos egressos de escolas
dicionado pela oferta limitada, e defensoras do ensino público de qua- particulares continuam
um dos seus principais efeitos foi lidade, têm seus filhos matriculados
a política de expansão da oferta em instituições particulares. A ten-
graves e acentuadas”
pela ampliação da rede escolar, por dência generalizada da nossa socie-
outro lado a ampliação das oportu- dade de dar mais ouvido aos clamo-
nidades de escolarização da popu- res oriundos de uma parcela muito Das breves exposições sobre
lação gerou obstáculos relativos ao específica da sociedade (as classes os contextos históricos de acesso
prosseguimento dos estudos desses média e alta) é o que leva à aparente a bens sociais, principalmente à
novos usuários da escola pública, invisibilidade dos sucessivos apelos educação, por parte de negros e
visto que não tinham as mesmas ex- por melhoria da qualidade de ensino pobres, são apresentadas as ba-
periências culturais dos grupos que por parte de uma classe social despri- ses que justificam as formulações
tinham acesso à escola anterior- vilegiada e de representação política das políticas afirmativas de acesso
mente, e esta não se reestruturou limitada. Está armado o cenário para ao ensino superior. A experiên-
para receber essa nova população. a competição desleal nos vestibula- cia relatada a seguir sugere que
A degradação do sistema edu- res. Está colocada, ainda, a postura é possível encaminhar um debate
cacional público e a popularização de clientela cada vez mais ostentada equilibrado nas unidades de ensi-
das instituições privadas de ensino pelos alunos para os quais dou aula. no da USP.

75
Dezembro 2015 Revista Adusp
“No dia 4 de fevereiro nos
foi encaminhada a proposta do
Governo Estadual de São Paulo
para implementação do sistema
de cotas nas universidades esta-
duais paulistas. Como informa-
do no corpo do e-mail encami-
nhado pela assistência técnico-
acadêmica, a manifestação da
Congregação do IGc deverá ser
discutida na Congregação do
dia 20 de março.
Creio que vários dos senho-
res e senhoras podem não ter
atentado para a importância do
documento, mas adianto que
em nossas mãos está deposita-
do o poder de decisão sobre o
perfil do aluno ingressante nes-
sa instituição e as consequên-
cias (sejam elas boas ou ruins,
em função da visão de quem as mada com base nos ‘achismos’ reunião vários colegas e alunos es-
aprecia) para nosso instituto, e preconceitos que todos (in- tavam presentes. A discussão uti-
para a universidade e para a clusive eu) carregamos e faço lizou como base os documentos
sociedade à qual servimos (ou um apelo para que organize- “Avaliação do desempenho e da
deveríamos servir). mos debates e discussões com situação acadêmica dos ingressan-
Faço um apelo para que dei- especialistas no assunto (QUE tes pela política de cotas instituída
xemos a lógica produtivista de NÃO SOMOS!), para somente na Universidade Estadual de Pon-
lado e para que discutamos a então nos posicionarmos frente ta Grossa no período 2007-2011”,
questão com a retidão e reflexão à questão. “Avaliação Qualitativa dos Dados
merecidas, baseando-nos para Atenciosamente, sobre desempenho acadêmico –
tanto nos dados disponíveis de Adriana Alves” relatório ano 2011” da Universi-
instituições que já passaram pe- dade Federal do Rio de Janeiro e
lo mesmo processo e na produ- A mensagem acima foi enviada o “Relatório de desempenho de
ção científica abundante sobre por mim, por e-mail, a todos os alunos cotistas” apresentado pela
o assunto. Lembrem-se que, professores do IGc-USP em 26 de Universidade Estadual de Londri-
apesar de tudo o que nos é co- fevereiro de 2013. Se por um lado na (UEL) referente ao período de
brado no que tange à ciência e à o Pimesp falhou em fornecer uma 2005 a 2010.
administração, nossa obrigação alternativa viável de ampliação do A discussão foi longa e frutífe-
primeira é com o ensino e este é número de alunos de escolas públi- ra, uma vez que o mito da queda
certamente um tema deste foro. cas aos quadros da USP, por outro na qualidade de ensino caiu por
Ademais, creio que como lado logrou abrir as discussões so- terra frente à análise dos dados
cientistas que somos, seria no bre o tema nos institutos e faculda- apresentados e a Congregação do
mínimo inadequado e parado- des dessa instituição. Para minha IGc acabou por sugerir que a USP
xal que nossa decisão fosse to- surpresa, na data marcada para a adotasse o sistema federal de re-

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Revista Adusp Dezembro 2015

Estímulo aos estudantes “A composição étnica do


negros? “O gato comeu” quadro docente da USP é
esmagadoramente branca
GESTÃO MARCOVITCH
“II- criar condições na Universidade para divulgação, debates, en- e, arrisco dizer, socialmente
sino regular e extracurricular, e pesquisas sistemáticas relacionadas à privilegiada. A resistência
ampliação da inclusão social no âmbito da USP;
III- estimular o ingresso e a permanência dos negros nos quadros
à implementação das cotas
discentes da USP, dentro dos padrões acadêmicos e de acordo com as sócio-raciais é reforçada
condições financeiras da instituição;
V- alertar permanentemente docentes, alunos e funcionários
pela ausência de vozes
técnico-administrativos da USP sobre o papel que a Universidade dissonantes. E no debate
deve ter perante a sociedade brasileira, com vistas à ampla inclusão
impera o amadorismo”
social”.
Portaria GR 3.156, de 29/4/1999, artigo 2º

GESTÃO RODAS Num primeiro momento, parece


“II- criar condições na Universidade para divulgação, debates, en- irrelevante determinar que os dife-
sino regular e extracurricular, e pesquisas sistemáticas relacionadas à rentes cursos sejam constituídos por
ampliação da inclusão social no âmbito da USP; alunos de diferentes backgrounds so-
III- alertar permanentemente docentes, alunos e funcionários ciais e étnicos, desde que os núme-
técnico-administrativos da USP sobre o papel que a Universidade ros absolutos satisfaçam a opinião
deve ter perante a sociedade brasileira, com vistas à ampla inclu- pública. Falhamos aí em reconhecer
são social”. um dos principais objetivos dos de-
Portaria GR 4.846, de 12/11/2010, artigo 2º fensores das políticas afirmativas.
Dos bancos dos cursos legitima-
dos pela nossa sociedade como os
serva de vagas para alunos oriun- Entretanto, a USP falha ao não maiores modificadores de paradig-
dos de escolas públicas, SISU (res- apresentar estatísticas detalhadas mas sociais saem, atualmente, estu-
peitando-se a constituição étnica sobre a composição dos quadros dis- dantes de vivência/cor homogenei-
do Estado). centes nos diferentes cursos que mi- zada e privilegiada pelo dinheiro. A
Infelizmente, a decisão da nistra. Dessa forma, os atuais 32% principal e mais lógica consequên-
Pró-Reitoria de Graduação foi de egressos da escola pública pa- cia é que a futura elite, nas diferen-
pela ampliação do sistema de bô- recem satisfazer as metas de am- tes acepções do termo, responsável
nus, que teve reflexo positivo no pliação do Inclusp. Entretanto, uma pela elaboração de novas políticas
número de alunos egressos da es- análise mais detida revela que as as- públicas de saúde e desenvolvimen-
cola pública, motivado também, e simetrias favorecedoras dos egressos to para as comunidades carentes
principalmente, pela inauguração de escolas particulares continuam e negras será formada por nossos
do campus leste e de novos cur- graves e acentuadas nos cursos de atuais alunos — que, tolhidos da
sos noturnos (como o de Licen- maior procura: Engenharia, Eco- convivência com grupos étnicos e
ciatura em Geociências e Meio nomia, Medicina, Ciências Sociais, sociais distintos, pecarão em reco-
Ambiente). Jornalismo, Geologia e outros. nhecer as necessidades do outro.

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Corpo docente e composição étnica
Branco Preto Pardo Amarelo Indígena
Categoria
Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem Mulher Homem
Titular 262 744 0 2 7 12 13 28 0 0
Associado 510 967 1 3 5 13 28 34 0 0
Doutor 1242 1662 5 8 20 31 53 88 0 2
Assistente 7 50 0 0 0 1 1 4 0 0
Auxiliar de ensino 0 5 0 0 0 1 0 0 0 0
2021 3428 6 13 32 59 95 154 0 2
Fonte: Departamento de Recursos Humanos (DRH) - Universidade de São Paulo - USP. Abril de 2011.

Um exemplo clássico o aluno de escola pública


é o da Universidade de como categoria distinta e
São Paulo e sua estru- problemática. Assim co-
tura de poder vigente. mo à época da abolição,
A composição étnica do ninguém se pergunta “o
quadro docente da USP que fazer com o aluno
é esmagadoramente de escola particular?”.
branca e, arrisco dizer, Fica então a mais im-
socialmente privilegia- portante das questões:
da. A resistência à im- O que fazer para educar
plementação das cotas a todos, já que esta de-
sócio-raciais é reforçada ve ser a missão de uma
pela ausência de vozes dissonantes. aula. É preciso redimensionar a po- instituição pública? E por fim: como
Assim como nos debates do Pi- larização entre as ideias de eficiência evitar retrocessos, como o verifica-
mesp, a recente discussão acerca das e democracia na educação, pois não do (vide p. 77) entre as gestões J.
formas alternativas de ingresso via SI- são ideias antagônicas, e sim comple- Marcovitch (1998-2001) e J.G. Ro-
SU deixou claro o amadorismo com mentares (Oliveira & Araújo, 2005). das (2010-2013)?
que o tema é aqui tratado. O número A formulação da pergunta dos
mágico de alocação de vagas (10%) senhores de escravos na transição
citado durante a reunião da Congre- do regime “o que fazer com os ne- Referências
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra medo
gação no IGc não foi apresentado à gros?” carrega em si, segundo Peter branco. São Paulo: Annablume, 2004. 2a edição revista
e ampliada (1a edição: 1987).
comunidade de forma justificada e, Eisenberg, “um grande viés racista, BEISIEGEL, C.R. (1986). “Educação e sociedade no Brasil
no âmbito da universidade como um na medida que somente um grupo após 1930”. In: FAUSTO, Boris (org.) História geral
da civilização brasileira – III. O Brasil republicano. 4.
todo, as discussões foram novamente subordinado, como o ‘negro’ ou o Economia e Cultura (1930-1964).  2ª ed.  São Paulo:
Difel, p. 381-416.
realizadas de forma não integrada e ‘índio’, foi pensado como categoria BURLAMAQUI, F.L.C. Memoria Analytica á cerca do com-
mercio d’escravos e á cerca dos males da escravid”ao Do-
com base nas percepções pessoais dos social distinta e problemática”, uma méstica. Rio de Janeiro: Comercial Fluminense, 1837.
CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão
docentes dos diferentes institutos. vez que ninguém perguntava “o que no Brasil meridional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
Se por um lado a USP continua fazer com o branco?” 1977.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na Socieda-
a ser extremamente eficaz no papel Da mesma maneira, quando o de de Classes. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1978.
OLIVEIRA, R.P. e ARAÚJO, G.C. “Qualidade do ensino:
educativo a que se propõe, por outro quadro docente da USP se pergunta: uma nova dimensão da luta pelo direito à educação”.
Revista Brasileira de Educação, 28, 5-23.
está ainda longe de ser democrática, “o que fazer com o aluno de escola WITAKER, Aguiar. In ALPSP (Assembleia Legislativa
na medida em que privilegia o acesso pública?”, investe-se de um manto Provincial de São Paulo), 1869, p. 168, 169; idem, p.
140, 141.
de grupos específicos às suas salas de preconceituoso que pensa somente

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Revista Adusp USP Dezembro 2015

Desmanche tem como


alvos RDIDP e caráter
público da universidade
Pedro Estevam da Rocha Pomar
Editor da Revista Adusp

Reprodução/FFLCH

Momento crítico: ao lado do diretor Sérgio Adorno, Ricardo Terra apresenta à FFLCH propostas do GT-AD (20/8/15)

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Dezembro 2015 Revista Adusp

Reveses institucionais parecem não inibir a gestão M.A.


Zago-V. Agopyan, que insiste nos planos de demolição dos
pilares acadêmicos da Universidade de São Paulo: o Regime
de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP), a
carreira docente e o caráter público e gratuito da instituição.
Quer ainda a redução do corpo de funcionários via PIDV e
terceirizações e o estrangulamento financeiro do HU. Agora,
estrondosamente derrotadas as propostas do GT-Atividade
Docente, a Reitoria cria uma “supercomissão” encarregada de
propor nada menos que uma reforma do Estatuto...

Ao encerrar-se seu segundo ano te o significado da proposta de um oferta de cursos pagos: enveredam
de mandato, o mandarinato M.A. regime de 40 horas sem dedicação por todo tipo de negócio e criam
Zago-V. Agopyan (2014-2017) dei- exclusiva, acalentada pela Reitoria. ou amplificam graves distorções no
xou razoavelmente claras suas in- O caráter público e gratuito da ins- ambiente acadêmico. Que o diga a
tenções. Pretende desmontar a USP tituição, já deteriorado nos dias que Fundação de Apoio à USP (FUSP),
tal como a conhecemos, por meio correm, é portanto outro alvo. de quem falaremos ao final.
de uma reforma regressiva dos regi- Os dados da Pró-Reitoria de Querem ainda os mandarins, por
mes de trabalho — o alvo principal Cultura e Extensão Universitária intermédio do Programa de Incen-
é o Regime de Dedicação Integral (PRCEU) registram que a “indús- tivo à Demissão Voluntária (PIDV)
à Docência e à Pesquisa (RDIDP) tria” de cursos pagos arrecada, na e de novas terceirizações, a redução
— e da carreira docente. A reforma USP, quase R$ 90 milhões por ano. do corpo de funcionários, que con-
pretendida está conjugada às pers- Sem que a Reitoria faça mais do sideram superdimensionado. Dese-
pectivas de intensificar o controle do que exercer, via PRCEU, a fiscali- jam, igualmente, o estrangulamento
corpo docente pela via das avalia- zação de rotina, que legitima e dá financeiro do Hospital Universitário
ções centralizadas e, paralelamente, um verniz de legalidade a tal indús- (HU), deixando ainda ao azar o fu-
conceder uma abertura ainda maior tria. Evidentemente, as atividades turo do Hospital de Reabilitação de
ao engajamento nas fundações pri- das fundações privadas autoprocla- Anomalias Craniofaciais de Bauru
vadas ditas “de apoio” à USP: é es- madas “de apoio” não se limitam à (HRAC), depois de capitanearem,

80
Revista Adusp Dezembro 2015
de modo irregular e totalmente irres- machismo por conselheiras do Co Se a Caeco redundou em fiasco,
ponsável, sua desvinculação da USP. — algumas das quais, pasme, tor- bem pior para a estratégia de des-
Na execução da estratégia de naram-se objeto de processo dis- monte da Reitoria foi o desfecho da
desmanche, o mandarinato colecio- ciplinar, por terem se manifestado comissão criada, no âmbito do Co,
na derrotas e vitórias, cujo balanço “em voz alta” (sic) — e que cer- com a finalidade de equacionar os
se impõe, a esta altura dos acon- ceou toda tentativa de andamen- problemas do Hospital Universitá-
tecimentos. Entre as vitórias con- to mais democrático e equilibrado rio (HU) e que resultou em redon-
tam-se o êxito — do ponto de vista dos debates e dos trabalhos. do e unânime “não” aos planos de
da Reitoria, bem entendido — do A série de reuniões extraordiná- M.A. Zago e V. Agopyan de des-
PIDV, que obteve a adesão de cerca rias do Co dedicadas, com base no cartar esse equipamento público de
de 1.500 servidores; a cooptação script da Caeco, à reforma fatiada excelência (vide p. 94).
de ponderável parcela da comuni- do Estatuto — realizadas em 3 de Igualmente ruinosa para os
dade da Escola de Artes, Ciências junho e 11 de novembro de 2014 e mandarins foi a trajetória do Gru-
e Humanidades (EACH), aparen- 7 e 14 de abril de 2015 — foi inter- po de Trabalho Atividade Docente
temente convencida de que a terra rompida no decorrer desta última, (GT-AD), criado pela Portaria GR
contaminada depositada ilegalmen- quando manifestantes liderados pe- 6.545, de 30 de abril de 2014. A
te em 2010 e 2011 não oferece ris- lo movimento por cotas ocuparam julgar por relatos de seus próprios
cos à saúde dos frequentadores do o local onde o colegiado se reunia integrantes, a heterogênea compo-
campus Leste (vide p. 87); a citada (nas dependências do Instituto de sição desse numeroso GT — vin-
desvinculação pelo Conselho Uni- Pesquisas Energéticas e Nucleares, te e quatro nomes, saídos da pena
versitário (Co), ainda que ilegal, do IPEN) e M.A. Zago, antes de bater do reitor sem consulta a qualquer
HRAC. em cinematográfica retirada, decla- instância — e as divergências lo-
Os reveses, é verdade, também rou, à moda imperial, que o pro- go surgidas no seu interior, aliadas
são contundentes. A greve de 2014 cesso só seria retomado em 2016 à condução nada democrática dos
foi o mais notável (vide Revista (Informativo Adusp 398, http://goo. trabalhos, teriam inviabilizado qual-
Adusp 57), mas dentro da própria gl/6m9SoF). Posteriormente recuou quer contribuição digna de nota.
estrutura de poder os planos da e deu início às votações. A ponto de um de seus membros,
gestão defrontam-se com inespe- o professor José Sebastião Neto,
rados obstáculos. A Reitoria culti- da Faculdade de Medicina de Ri-
va o hábito de criar comissões ad beirão Preto (FMRP), proclamar
hoc e grupos de trabalho, nenhum O ácido debate entre o em debate, em agosto de 2015, que
dos quais consegue chegar a bom “nem [mesmo] os documentos” ofi-
porto. A Comissão Assessora Es- presidente do GT-AD, que ciais falam em nome do GT-AD
pecial do Conselho Universitário leciona no curso de Filosofia, (Informativo Adusp 406, http://goo.
(Caeco), por exemplo, surgiu para gl/1qLIKv).
formatar a reforma do Estatuto.
e seus colegas foi gravado em De qualquer modo, ainda que
Mas não fez avançar qualquer te- vídeo e publicado no site da sem realizar debates públicos e
ma relevante e ainda teve seu pre- transparentes, e esquivando-se dos
FFLCH. A reprodução desse
sidente, professor Carlos Martins, insistentes convites da Adusp nes-
praticamente desautorizado pelo embate levou docentes de se sentido, o GT-AD presidido pe-
reitor numa das reuniões do Co. lo professor Ricardo Ribeiro Terra
outras unidades a tomarem
Reuniões essas, por sinal, sempre apresentou, em junho de 2015, um
conduzidas com autoritarismo por posição contra Terra esquálido relatório final, “Propos-
M.A. Zago, que em mais de uma tas Iniciais sobre Valorização da
ocasião deu ensejo a acusações de Docência e Avaliação”, cujo teor

81
Dezembro 2015 Revista Adusp
causou comoção na universidade. documento defendido por Terra. A progressão horizontal na
Avaliação quinquenal de todos Causaram forte impacto a arro- carreira seria mantida, passando
os docentes, vinculada à possibi- gância do presidente do GT-AD a vincular-se à avaliação quinque-
lidade de mudança de regime de e a atitude de deboche frente aos nal. O docente com desem­penho
trabalho; integração da Comissão sérios questionamentos que sofreu “excepcional” viria a ser agraciado
Especial de Regimes de Trabalho (Informativo Adusp 406, http://goo. com a progres­s ão, ao passo que
(CERT) à Comissão Permanente gl/HZXZAZ). o docente cujo desempenho seja
de Avaliação (CPA) e à Comissão No tocante ao ingresso na car- considerado insatisfatório “poderá
de Atividades Acadêmicas (CAA); reira, a finalidade da mudança é ter seu regime de trabalho alte-
criação de um “Regime de Tempo permitir à Reitoria punir o do- rado”, implicando rebaixamento
Integral” (RTI) com 40 horas sema- cente em RDIDP cujo desempe- salarial. “De modo absolutamen-
nais, porém sem dedicação exclu- nho seja considerado insatisfató- te ilegal, a USP transfere alguém
siva à universidade; criação de um rio, impondo sua transferência de do regime de experimentação do
outro regime que consolide o atual regime. O mecanismo, inspirado RDIDP para RTP ou RTC. Isso
Regime de Turno Completo (RTC), no modelo vigente na Unicamp, fere a estabilidade no emprego,
com jornada de 32 horas; e ingresso foi assim descrito por Terra: “O fere o princípio constitucional da
na carreira exclusivamente em Re- docente é aprovado e quando as- irredutibilidade nos salários, fere
gime de Tempo Parcial (RTP) e não sina o contrato começa a receber o pressuposto e o princípio de que
mais em RDIDP, com indicação no em RDIDP. Qual a consequência o servidor público, para ter isenção
edital do concurso do regime pre- disso? O docente pode perder o na condução da sua responsabili-
ferencial especificado pela unida- RDIDP a qualquer momento da dade pública, precisa ter estabili-
de. Estas as principais propostas carreira. A razão é clara. É poder dade no cargo e irredutibilidade
do GT-AD, quase todas rechaçadas rebaixar [de RDIDP para RTP]. de salário”, sintetizou o professor
pelas congregações, instadas pela [É permitir que] Alguém que ab- Ciro Correia no debate “Carreira
Reitoria a se manifestarem. solutamente não tem proficiência, Docente em xeque” (Informativo
Terra apresentou o documento seja rebaixado”. Adusp 404, http://goo.gl/7cNLdb).
do grupo em reunião aberta da As congregações da FFLCH, da
Congregação da Faculdade de Fi- EACH, da Facul­dade de Medicina
losofia, Letras e Ciências Humanas Veterinária e Zootecnia (FMVZ) e
(FFLCH), em 20 de agosto, oca- “De modo ilegal a USP do Instituto de Física (IF) estiveram
sião em que suas inconsistências entre as que rejeitaram cabalmente
transfere alguém do regime
foram postas a nu por muitos do- as propostas do GT-AD. O Institu-
centes da unidade, com destaque de experimentação do to de Biociências (IB) igualmente
para a inexistência de um diagnós- reprovou o documento. Departa-
RDIDP para RTP ou RTC.
tico e de motivações claras para as mentos da Faculdade de Educação
mudanças propostas. O ácido de- Isso fere a estabilidade (FE), da Escola de Enfermagem de
bate entre o presidente do GT-AD, no emprego, fere o Ribeirão Preto (EERP) e da Facul-
que leciona no curso de Filosofia, dade de Filosofia, Ciências e Letras
e seus colegas foi gravado em ví- princípio constitucional de Ribeirão Preto (FFCLRP) tam-
deo e publicado no site da FFL- da irredutibilidade nos bém o fizeram.
CH. A reprodução desse embate A Congregação da FFLCH con-
foi determinante para que muitos salários”, sintetizou o siderou por unanimidade que o do-
professores de outras unidades se professor Ciro Correia cumento do grupo “possui bases
inteirassem das questões em jo- pouco sólidas, devido à ausência de
go e tomassem posição contra o diagnóstico amplo e fundamentado

82
Revista Adusp Dezembro 2015
Fotos: Daniel Garcia
a cada um deles um papel diferen-
ciado na instituição”.
A Congregação da EACH, por
sua vez, pronunciou-se expressa-
mente “contrária ao teor do docu-
mento” do GT-AD, por entender,
como a FFLCH, que “não apresen-
ta qualquer diagnóstico sobre a si-
tuação dos docentes da universida-
de e seus regimes de trabalho ou a
situação da avaliação docente”, mas
também por “falta de transpa­rência
na construção do docu­mento” e por
viver-se um “momento inoportu­no
de crise financeira, que esta uni-
versidade enfrenta com corte de
14 de abril de 2015: reitor M.A. Zago bate em retirada do IPEN...
gastos inclusive nas atividades fins
da universidade”. A EACH levou
em conta, ainda, “que os docentes,
desta unidade em particular, so-
frem de uma grande sobrecarga de
atribuições”, e que o GT-AD deixou
de apresentar “qualquer outro ins-
trumento complementar para atin-
gir os supostos objetivos”.

“Diante das imprecisões


e dos riscos existentes nas
propostas apresentadas pelo
... puxado por uma funcionária e apoiando-se na pró-reitora Maria Arminda GT Atividade Docente, os
que explicite sua real necessidade e Quanto ao ingresso em RTP,
docentes do IB rejeitam o
objetivos”, e que o RDIDP “é con- mesmo com a indicação no edital
dição necessária para que o tripé de de outro regime preferencial, “indi- atual documento e requerem
atividades que possibilita a efetiva ca um direcionamento para um tipo que qualquer discussão sobre
promoção dos fins da Universida- de universidade muito próximo ao
de — ensino, pesquisa e extensão das institui­ções de ensino superior regime de trabalho e avaliação
— seja exercido com qualidade”. A privadas que, para atender às exi- docente e institucional seja
proposta de criação do RTI, sem a gências mínimas do MEC [Minis-
obrigatoriedade de vínculo empre- tério da Educação], mantêm cotas baseada em dados e estudos
gatício exclusivo com a USP, im- rígidas de professores conforme o aprofun­dados”
plicaria “perigosa precarização do regime de trabalho (horistas, tempo
trabalho docente”. parcial e jornada integral), cabendo

83
Dezembro 2015 Revista Adusp
Fotos: Daniel Garcia
O IB encampou análise elabo-
rada por uma comissão constituída
no âmbito da Congregação, segundo
a qual o “único vínculo lógico” en-
tre as premissas que supostamente
orientaram o GT-AD e as propostas
apresentadas é o da “contradição”.
Por exemplo: “tratar o RDIDP, que
é um regime de trabalho, como uma
gratificação por desempenho” con-
tradiz a valorização da carreira do-
cente — um dos objetivos do grupo,
segundo a portaria GR 6.545. Dados
irrefutáveis: a USP conta hoje com
88% de seus docentes em RDIDP,
sendo “notória, no Brasil, a correla-
Na saída do prédio, recebe a proteção de guardas e seguranças...
ção entre a qualidade da pesquisa,
ensino e extensão das universidades
e a propor­ção de seus quadros em
dedicação exclusiva”, o que explica o
fato de que, embora os docentes da
USP representem 1,6% dos docen-
tes universitários do país, “eles são
responsáveis por 25% da produção
científica nacional”.
A conclusão do texto do IB é ca-
tegórica: “Diante das imprecisões e
dos riscos existentes nas propostas
apresentadas pelo GT Atividade
Docente, os docentes do IB rejeitam
o atual documento [em destaque no
original] e requerem que qualquer
discussão sobre regime de trabalho ... e se encaminha, célere, até o carro que o espera
e avaliação docente e institucional convincente. Apenas afirma-se que Mendes e Diogo R. Coutinho, o
seja baseada em dados e estudos esse seria o regime daqueles que texto avalia que não há razão para
aprofun­dados que embasem uma trabalham em tempo integral na ampliar o número de regimes de
análise crítica de novas propostas” Universidade, com engajamento trabalho. Propõe, ao contrário, que
(http://goo.gl/kLtxCg). institucional, mas com a possibili- eles sejam reduzidos a dois: tempo
Outra severa crítica às propostas dade de assumir compromissos ex- parcial e dedicação exclusiva. “A
do GT-AD partiu de um grupo de ternos. A justificativa, como se vê, criação do RTI em uma ativida-
professores da Faculdade de Direi- não é uma justificativa, mas uma de profissional cuja carga horária
to (FD). Principiam por questio- descrição do que seria o regime”. cotidiana não pode ser controla-
nar as alegações oficiais a propósito Assinado pelos professores Vir- da, como é a atividade acadêmi-
do pretendido RTI: “A justificativa gílio Afonso da Silva, Jean Paul ca, apenas faria com que todos os
dada pelo GT é sucinta e pouco Veiga da Rocha, Conrado Hübner docentes que hoje são RTC (ou

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Revista Adusp Dezembro 2015
Fotos: Daniel Garcia
institucional sólida para tal refor-
ma. “A elite acadêmica internacio-
nal não é composta por professores
com dois ou três empregos, mas por
professores que se dedicam a uma
única atividade”.
Assim, de todos os quadrantes
e latitudes da universidade parti-
ram duríssimas críticas às propos-
tas do grupo presidido por Terra.
Que talvez possam ser resumidas,
abstraindo-se diferenças conceitu-
ais entre elas, neste singelo porém
devastador trecho da manifestação
do Departamento de Filosofia da
Educação e Ciências da Educação
Em meio a pequena confusão, o reitor prepara-se para embarcar
da FE: “Após a necessária funda-
mentação, explicitação dos modelos
e fontes pesquisadas, explicitação
da metodologia utilizada, podere-
mos começar a discutir essa temáti-
ca em um patamar adequado a uma
universidade como a USP”.

Um restrito time, composto


por docentes da absoluta
confiança do reitor, portanto
uma supercomissão para o
Carro do reitor deixa o local, sob protestos que der e vier. Dois diretores
ao menos uma parcela significati- forem os vencimentos do docente de unidades controladas
va deles) migrassem para o RTI, em RTI”, muitos dos hoje contra-
com impacto financeiro sem con- tados em RDIDP poderiam migrar por fortíssimas fundações
sequente alteração no perfil desses para o RTI, de tal modo que a USP privadas: FMRP e FEA.
docentes”, argumentam. “Afinal, “estaria fomentando uma transfor-
por que receber vencimentos me- mação claramente negativa em seu A procuradora geral da
nores (RTC) se é possível receber quadro docente ao incentivar que universidade, autora de
vencimentos maiores (RTI) dado seus professores e pesquisadores
que a jornada de trabalho não po- dividam seu tempo entre a universi- longo parecer favorável à
de ser controlada?” dade e outras atividades (incluindo oferta de cursos pagos
Ademais, acrescentam os auto- o envolvimento com instituições ri-
res, “a depender de quão atrativos vais)”. Para eles, não há justificativa

85
Dezembro 2015 Revista Adusp
Visto que os ataques ao RDI- uma supercomissão para o que mento da USP, que precisa ser
DP não convenceram nem mes- der e vier. Dois diretores de uni- rechaçado!”
mo alguns setores que se pau- dades controladas por fortíssi- E la nave va. A FUSP abriga
tam pela meritocracia, a aven- mas fundações privadas: a FMRP licitações de fachada, servindo
tura do GT-AD revelou-se um (Faepa) e a FEA (FIA, Fipe e de intermediária para a contrata-
constrangimento para a gestão Fipecafi). A procuradora geral da ção de empresas pertencentes a
M.A. Zago-V. Agopyan. A Co- universidade, autora de longo pa- docentes? Tudo será investigado
missão Especial de Regimes de recer favorável à oferta de cursos e com transparência, promete o
Trabalho (CERT), que retomou pagos, à revelia da Constituição reitor, ao designar para dirigir a
seu caráter inquisitorial, tendo a Federal. E os (ex?) presidentes entidade privada um funcionário
presidi-la o afável professor Luiz de dois grupos atropelados no ca- público, o professor José Dru-
Nunes, mais uma vez voltou a minho, a Caeco e o GT-AD, que gowich, superintendente de As-
enfrentar resistências, como a da ganham contudo nova oportuni- suntos Institucionais. M.A. Zago
Adusp, que chamou os docentes dade de demonstrar fidelidade à e dois pró-reitores continuam a
a se defenderem dos abusos de Reitoria. integrar o conselho curador da
poder praticados pela comissão. Assim, “agora que o GT-AD se fundação privada, como se nada
Que fazer, portanto? Como co- vê deslegitimado face ao volume tivesse acontecido.
locar em movimento novamente e à contundência das críticas ... à Há corrupção na Prefeitura
a engrenagem antiRDIDP? Sim- inconsistência das ‘propostas’ por do Campus de Ribeirão Preto,
ples, resolveram os mandarins: ele rascunhadas, a Reitoria, em envolvendo cerca de R$ 2 mi-
criando-se uma nova comissão, novo ato monocrático, nomeia lhões, e um dos envolvidos foi
com mais poderes. outra comissão”, denuncia o edi- promovido? Bem, nada pode ser
Eis que surge, no Diário Ofi- torial do Informativo Adusp 407 divulgado, porque o assunto é
cial do Estado de São Paulo de (http://goo.gl/yeM6fs). “Desta vez, sigiloso. (O caso foi denunciado
5/9/15 (Poder Executivo, Seção com poderes para substituir seja em 2013!)
I, p. 65), portaria do reitor M.A. o processo coordenado pela Ca- O professor Jorge Boueri Filho
Zago que designa os professores eco no Co, seja o devido trâmite cometeu um grave crime ambien-
Carlos Gilberto Carlotti Júnior das manifestações das unidades tal, ao promover transporte ile-
(FMRP, presidente), Adalberto às ‘propostas’ do GT-AD, atri- gal de 109 mil m³ de terra para a
Américo Fischmann (Faculdade buindo-lhe a tarefa de selecionar EACH, e ainda tentou convencer
de Economia, Administração e ou descartar ao seu bel-prazer a comissão processante de que a
Contabilidade), Carlos Alberto qualquer item, questão ou pro- terra procedia do Parque do Ibira-
Ferreira Martins (Instituto de posta que derive, ou não, de todo puera? Sim, a Reitoria concorda
Arquitetura e Urbanismo), Jo- esse inconcluso processo”. com as acusações. Tanto que lhe
sé Rogério Cruz e Tucci (FD), Não há dúvida, adverte a aplicou a severíssima punição de...
Maria Paula Dallari Bucci (FD), Adusp no editorial, que tal pro- 120 dias de suspensão.
Ricardo Terra (FFLCH) e Vic- ceder “poderá levar propostas à O presente mandarinato, não
tor Wünch Filho (Faculdade de deliberação do Co — como se resta dúvida, será lembrado por
Saúde Pública), atribuindo-lhes a sabe, já minado por conflitos de muitas décadas. Mas é bom que
“incumbência de analisar e pro- interesse e enormes distorções se cuide: caso a USP lhe sobre-
por alterações estatutárias e regi- na sua composição — sem que viva, pode ser que algum futuro
mentais no âmbito da USP”. tenham sido amplamente discu- reitor queira imitar o seu gesto
Um restrito time, composto tidas, o que caracteriza mais um de cassar a aposentadoria de an-
por docentes da mais absoluta golpe contra o corpo da universi- tecessores. Tal como se tenta fa-
confiança do reitor, portanto dade e um atraso no aprimora- zer a J.G. Rodas.

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Revista Adusp USP Dezembro 2015

EACH, sob “investigação


detalhada”, convive por
ora com aterro ilegal
Paulo Hebmüller
Jornalista
Arquivo

O então diretor Boueri entre J.G. Rodas e o governador Alckmin: “costas quentes”?

A Reitoria da USP apoia-se nos pareceres da Companhia de Saneamento Ambiental


(Cetesb) e decide que a terra contaminada depositada clandestinamente no campus da
Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) em 2010 e 2011, quando a unidade
era dirigida por J.J. Boueri, pode permanecer no local sem oferecer riscos a quem trabalha
ou estuda lá. Uma empresa de engenharia foi contrada para executar, até junho de 2016,
“serviços de investigação ambiental detalhada” e “avaliação de riscos toxicológicos”

87
Dezembro 2015 Revista Adusp
A Superintendência do Espaço
Físico (SEF) da USP assinou um
contrato com a empresa de enge-
nharia ConAm-Consultoria Am-
biental para “execução de serviços
de investigação ambiental detalha-
da” e “avaliação de riscos toxicoló-
gicos” na Escola de Artes, Ciências
e Humanidades (EACH).
O extrato do contrato foi publi-
cado no Diário Oficial no dia 20 de
junho de 2015. A empresa terá um
ano para executar o trabalho nas
áreas AI-02 e AI-03 no campus da
USP Leste. A AI-02 é a chamada
área da chaminé, remanescente de
uma antiga fábrica de cerâmica,
e fica à esquerda de quem chega
à EACH pela Estação USP Leste
da Companhia Paulista de Trens
Metropolitanos (CPTM). A AI-03
é o terreno cedido em 2012 pelo
Departamento de Águas e Energia
Elétrica (DAEE) para expansão
do campus, e se estende até a vizi-
nhança do Centro de Treinamento
do Corinthians.
A assinatura do contrato é o
mais recente capítulo das ações da
USP em relação aos graves proble- utilizado em segmentos industriais serviços para os quais a ConAm foi
mas ambientais na EACH. A área e está banido em muitos países – contratada nas áreas AI-02 e AI-
da chaminé recebeu a maior parte inclusive no Brasil – devido aos 03 “completam a investigação já
dos 109 mil m³ de terra deposi- potenciais efeitos nocivos à saúde realizada na área AI-01” – a região
tados clandestinamente no cam- e ao ambiente. De acordo com a central do campus, onde estão as
pus entre 2010 e 2011, caso que ação civil pública da Promotoria edificações da EACH e que tem
acabou levando ao afastamento de Urbanismo e Meio Ambiente boa parte de seu espaço atualmen-
do então diretor da unidade, José do Ministério Público do Estado te cercado por tapumes de alumí-
Jorge Boueri Filho, e motivou a (MPE) que levou à interdição da nio. A empresa fará o diagnóstico
interdição da EACH entre janei- EACH, parte do depósito clan- dos problemas e também a execu-
ro e julho de 2014 por decisão destino veio do terreno em que ção das medidas consideradas ne-
judicial. Análises identificaram a foi erguido o Templo de Salomão cessárias. A ordem de serviço foi
presença de diversas substâncias da Igreja Universal do Reino de emitida com data de 13 de julho e
contaminantes na terra, entre elas Deus, no bairro do Brás. a conclusão está prevista para ju-
bifelinas policloradas (PCB, na O superintendente da SEF, pro- lho de 2016. O valor do contrato é
sigla em inglês). O composto era fessor Osvaldo Nakao, diz que os de R$ 2,379 milhões.

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Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
certeza de que não estão correndo
risco, mas muita gente está em dúvi-
da. Eu tenho certeza de que há risco
porque ouvi um geólogo da Cetesb
[Companhia Ambiental do Estado
de São Paulo] dizer que apenas colo-
car grama em cima não isola a terra
contaminada”, enfatiza a professora
Adriana Tufaile, dos cursos de Ciên-
cias da Natureza e Gestão Ambien-
tal da EACH. A declaração à qual
ela se refere foi feita em maio de
2014 pelo geólogo Elton Gloeden,
gerente do Departamento de Áreas
Contaminadas da Cetesb. Em audi-
ência na CPI da Câmara dos Verea-
Marcos Bernardino de Carvalho e Osvaldo Nakao dores de São Paulo sobre áreas con-
O início dos serviços da Co- taminadas, Gloeden afirmou que o
nAm praticamente coincidiu com plantio de grama representava uma
o final de mais um semestre leti- Elton Gloeden, geólogo da medida de “caráter emergencial”, e
vo, enquanto outro deve se iniciar não “uma solução definitiva” para o
Cetesb que em maio de 2014
em meio à incerteza da comuni- isolamento do solo do campus.
dade sobre a segurança de fre- declarou a uma CPI que “Na época da CPI, os resultados
quentar o campus e a existência das investigações do solo indicavam
a grama não era “solução
de riscos à saúde. “Uma coisa é a presença de PCB total acima do
solucionar os problemas enquanto definitiva” para aterro valor de intervenção, o que indicava
o local está interditado e fecha- a necessidade de complementação
ilegal, diz agora que novos
do ao acesso. Outra é colocar as das investigações e intervenções, co-
pessoas de volta sem haver uma testes indicam que “o uso mo o isolamento da área com grama
segurança e uma certeza absoluta da área é seguro” e não e tapume. Após a obtenção dos no-
quanto ao nível de problemas que vos resultados para os congêneres
as coisas que estão aqui podem há mais “necessidade de de PCB, essas medidas não são mais
trazer”, afirma o professor Marcos remoção do solo” necessárias”, declarou Gloeden à
Bernardino de Carvalho, docente Revista Adusp. Para o geólogo, “não
do curso de Gestão Ambiental e há necessidade de remoção do solo”,
coordenador do Programa de Pós- e “o uso da área é seguro”.
Graduação em Mudança Social e A colocação dos tapumes de alu- A existência desses “novos resul-
Participação Política da EACH. mínio (que isolam também a área tados” é justamente um dos nós a
“O campus está esquizofrênico, da chaminé) e a cobertura do aterro emaranhar a teia bastante complexa
porque uma parte dele diz cla- com o plantio de grama foram al- de problemas da EACH. A empresa
ramente o seguinte: ‘Isto não é gumas das medidas tomadas para Servmar Serviços Técnicos Ambien-
seguro’. Basta olhar para todos mitigar os problemas na área central tais, contratada pela USP para inves-
os espaços que estão cercados por da EACH. Porém, sobram dúvidas tigação do solo e da água subterrânea
tapumes e eles dizem isso a você”, quanto à sua eficácia. “Eu não me nas áreas AI-01 e AI-02, realizou son-
completa. sinto segura. Há pessoas que têm dagens e investigações em diversas

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Dezembro 2015 Revista Adusp
etapas e concluiu no início de 2014 mento de Proteção Individual (EPI), em tempos a Cetesb faz essas al-
que havia 21 pontos no solo nos quais e seja feito monitoramento de gases terações e se torna mais rígida em
estavam presentes substâncias acima inflamáveis no solo”. É “recomen- alguns índices e menos rígida em
dos “valores de intervenção para o dável também”, segue o texto, “que outros, obedecendo a parâmetros
cenário residencial”. Logo a seguir, na AI-01 seja mantido o tapete de internacionais”, rebate Neli.
entretanto, a Cetesb divulgou os no- grama ou que seja realizada a colo-
vos valores orientadores para solos cação de bloquetes” (tipo de peça
e águas subterrâneas no Estado de de concreto para pavimentação). É
São Paulo, em substituição aos que com base nessas conclusões que o “Tudo o que se está fazendo
vigoravam desde 2005. A decisão e as superintendente Osvaldo Nakao de-
no campus é muito lento e
respectivas tabelas do órgão ambien- fende, assim como o geólogo Gloe-
tal foram publicadas no Diário Oficial den, da Cetesb, que não é necessário podemos estar brincando
de 21 de fevereiro de 2014. retirar o aterro clandestino na área com a saúde das pessoas.
A Servmar encaminhou à USP os central do campus (vide declarações
resultados analisados sob os parâme- de Nakao na p. 89). Essa é a desconfiança, é o
tros revistos, reduzindo drasticamen- A Cetesb ainda não deu um pa- que qualquer ambientalista
te o número de pontos considerados recer sobre o relatório da Servmar
problemáticos. Questionada por re- entregue em novembro do ano passa- sabe”, diz o docente Marcos
presentantes da EACH e da SEF, do, e não respondeu à Revista Adusp Bernardino de Carvalho
em março do ano passado, a respeito se há alguma previsão para emiti-lo.
desse e de outros itens, a empresa Caso o órgão referende as conclusões
respondeu por escrito: “No relatório da empresa, os tapumes de alumínio
em epígrafe foram utilizados os va- poderão ser retirados para a cons- A controvérsia sobre a necessida-
lores de intervenção novos, de 2014, trução de novas edificações na área de da retirada da terra contaminada
para comparação com os resultados central da EACH. A vice-diretora da não é o único problema da EACH. A
analíticos obtidos. Desta forma, algu- escola, professora Neli Aparecida de concentração de gás metano no sub-
mas concentrações que se encontra- Mello-Théry, defende a manutenção solo é outra realidade a preocupar a
vam superiores aos valores de inter- dos tapumes até que a universidade comunidade de alunos, professores,
venção de 2005 não se encontravam receba esse posicionamento oficial. funcionários e outros frequentadores
mais superiores quando considerados A professora tem procurado inter- da unidade. Como salienta a ação ci-
os valores de intervenção atualizados vir nas questões ambientais que en- vil pública do MPE, “a área por anos
em 2014 pela Cetesb”. volvem o campus, mas ressalta que foi utilizada como bota-fora, notada-
O relatório de fevereiro conclui a Cetesb não recebe a diretoria da mente de sedimentos removidos du-
que “após a interpretação dos resul- EACH, pois a interlocução da Com- rante as operações de dragagem do
tados analíticos e avaliação de risco panhia com a USP se dá apenas por rio Tietê”. “Não era o melhor lugar
à saúde humana pode-se afirmar intermédio da SEF. para construir um campus, porque
que não há necessidade de adoção A mudança dos valores de inter- não se sabe a origem dos aterros an-
de medidas de intervenção para o venção é um dos fatores que cola- teriores”, reconhece a vice-diretora.
solo superficial e solo subsuperficial boram na criação de um clima de Recorde-se, além do mais, que a USP
da área AI-01”. Um novo estudo desconfiança em relação à Cetesb e Leste está localizada no perímetro do
complementar foi entregue em no- às afirmações de que a área do cam- Parque Ecológico e Área de Preser-
vembro, reforçando a conclusão e pus está segura, aponta a professora vação Ambiental (APA) da Várzea
recomendando ainda que, “caso se- Adriana Tufaile. Para a vice-diretora do Rio Tietê.
jam realizadas obras civis na AI-01, da EACH, no entanto, trata-se de O superintendente da SEF, Os-
os trabalhadores utilizem Equipa- um processo normal. “De tempos valdo Nakao, e o geólogo Elton

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Revista Adusp Dezembro 2015

“USP cumpre orientações da Cetesb”, diz Nakao


Leia a seguir as respostas que temas de exaustão nos edifícios de de de adoção de medidas de inter-
o titular da Superintendência do acordo com o projeto de autoria do venção para o solo superficial e solo
Espaço Físico (SEF) da USP, Os- IPT [Instituto de Pesquisas Tecno- subsuperficial da área AI-01”.
valdo Nakao, enviou por e-mail às lógicas]. Foram construídos abrigos
perguntas da Revista Adusp: para todos os sistemas de extração. Revista Adusp – Uma vez con-
A evolução das obras dos abrigos e cluídas a investigação e a avaliação,
Revista Adusp – Como a SEF a eficiência dos sistemas podem ser quais os próximos passos? A USP
avalia a situação atual da área da acompanhadas nos relatórios men- acredita que será necessária a re-
EACH? A SEF considera que ela é sais de Monitoramento de Intrusão moção de toda a terra contaminada
absolutamente segura para as pes- de Gases, também disponíveis nas ilegalmente depositada no campus?
soas que a frequentam? páginas da SEF e da EACH. Nakao – Os documentos técni-
Osvaldo Nakao – A USP tem cos da Cetesb para gestão de áreas
realizado as ações definidas pela Revista Adusp – De acordo com contaminadas definem que os pró-
Companhia Ambiental do Estado o geólogo Elton Gloeden, da Cetesb, ximos passos devam ser determina-
de São Paulo (Cetesb). somente o plantio de grama não ga- dos em função dos resultados dos
rante o encapsulamento da contami- estudos de investigação detalhada
Revista Adusp – A manutenção nação do solo. Por que a USP não e de avaliação de riscos à saúde
dos tapumes restringindo o acesso tomou outras medidas em relação à humana. Caso seja identificado so-
a boa parte do campus não indica presença da terra contaminada? lo contaminado nas áreas AI-02 e
que há problemas que não foram Nakao – A USP cumpre as AI-03, em concentrações acima das
sanados e que, portanto, as pessoas orientações da Cetesb. quais existam riscos potenciais reais
da comunidade ainda estão expos- à saúde humana para os usuários,
tas a diversos riscos? Revista Adusp – Qual a estima- esses solos serão objeto de medidas
Nakao – O cercamento foi realiza- tiva de gastos que a USP projeta de gerenciamento ambiental de for-
do atendendo orientação da Cetesb. para todo o processo de desconta- ma a permitir o uso seguro da área.
minação?
Revista Adusp – Quantos são Nakao – As ações e atividades Revista Adusp – Há um prazo
os exaustores de metano instalados necessárias para o cumprimento de para que todo o processo de des-
na área? Eles são suficientes para todas as etapas do gerenciamento contaminação seja concluído?
resolver as questões ligadas ao gás ambiental da área estão sendo re- Nakao – Até o momento, a única
no campus? Todos serão cobertos alizadas pela USP de acordo com necessidade apontada pela Cetesb
pelos abrigos em construção para as orientações da Cetesb. De acor- é o sistema de extração de gases do
reduzir o nível de ruído emitido? do com os estudos conduzidos e os subsolo, que foi instalado em toda a
Nakao – O relatório “Instalação resultados obtidos até o momento, área AI-01 (área ocupada pela EA-
do Sistema de Exaustão de Gases do conforme apresentado em relatório CH) que permite, por meio da ven-
Solo Sob os Edifícios”, de agosto de técnico intitulado “Investigação De- tilação do subsolo, o uso seguro do
2014, da empresa Weber Consulto- talhada, Avaliação de Risco à Saúde campus e garante a ausência de risco.
ria Ambiental Ltda. e disponível em Humana e Plano de Intervenção na Esse sistema será mantido enquanto
www.sef.usp.br e http://each.uspnet. AI-01 e Investigação Detalhada de o monitoramento indicar a presença
usp.br/site, indica a localização dos Gases”, de fevereiro de 2014, dispo- de metano, mesmo em níveis abaixo
22 exaustores de metano instalados nível em www.sef.usp.br e http://each. de inflamabilidade, e sua operação é
na USP Leste. Foram instalados sis- uspnet.usp.br/site, “não há necessida- objeto de acompanhamento diário.

91
Dezembro 2015 Revista Adusp
Gloeden, da Cetesb, afirmam que que qualquer ambientalista sabe”, Até agora, porém, não é possível
a implantação de um sistema de diz Marcos Bernardino de Carvalho. comprovar que há efeitos”.
extração de metano garante a se- “Uma coisa muito perversa é que “A USP está sofrendo o que a pe-
gurança das edificações e das pes- não se consegue fazer a relação de riferia sofre, e poderia dar o exem-
soas. De acordo com Nakao, foram nexo causal dos problemas de saú- plo de mostrar que a periferia tem
instalados 22 exaustores do gás no de”, continua Adriana Tufaile. Antes o direito a ser um lugar em que as
campus. Para minimizar o proble- do plantio da grama e da colocação pessoas vivam de forma saudável”,
ma do ruído constante emitido pe- dos tapumes, os frequentadores do considera o professor Marcos Ber-
las máquinas, algumas localizadas campus respiraram muita poeira vin- nardino de Carvalho. Para ele, a ar-
ao lado de janelas de salas de au- da da terra contaminada. “Mesmo gumentação de que muitos lugares
la, estão sendo construídos abrigos que os parâmetros para os compos- da cidade — ou praticamente a ci-
nos quais os equipamentos ficarão tos isolados tenham sido reduzidos, dade toda — estejam contaminados
isolados. As construções previstas o que acontece quando várias dessas não é justificativa para minimizar os
para a expansão da EACH já serão substâncias estão presentes ao mes- problemas da EACH. “Ter um es-
edificadas com base em projetos mo tempo e agem cumulativamen- paço livre de contaminação é muito
que incluem sistemas de ventilação te? Um só organismo e um só siste- difícil. No entanto, não pode ser cas-
e extração do metano, afirmam os ma imunológico têm que dar conta sado o direito de lutar para se viver
representantes da USP. de tudo.” Vale lembrar que, em de- num espaço livre de contaminação,
A eficácia dessas providências é zembro de 2013, três semanas antes ou no mínimo para diminuir a ex-
questionada pelos professores da do início da interdição determinada posição a alguma coisa que nos faça
EACH ouvidos pela Revista Adusp. pela Justiça, as atividades da EACH mal. Não somos apenas organismos
“A USP demorou quase dez anos já haviam sido paralisadas por causa ou máquinas em que o ar entra de
para tomar medidas sobre o metano de problemas com a água e com in- um jeito e o contaminante de outro.
e tinha ciência dessa questão desde festação por piolhos de pombo em Somos todos também corpos sociais
a implantação da escola. Será que salas de aula. e políticos, que não têm por que to-
vai demorar dez anos ou mais para A ação civil pública movida pelo lerar um grama que seja de matéria
tomar medidas efetivas em relação à MPE continua tramitando na 2ª Va- de origem criminosa”, defende.
terra? Espero que não”, diz Elizabe- ra da Fazenda Pública e vem sendo A professora Elizabete Franco
te Franco Cruz, docente do curso de acompanhada pela promotora Cláu- Cruz concorda. “Há uma questão
Obstetrícia e do mestrado em Mu- dia Cecília Fedeli, da Promotoria de simbólica muito significativa. Esta
dança Social e Participação Política. Urbanismo e Meio Ambiente. Pelo terra é um lixo e nós não somos
“Com a propalada crise financeira menos mais uma ação já foi movida um depósito de lixo! Nós semea-
da instituição, tenho dúvidas se vão na Justiça depois da desinterdição. mos uma flor no solo pantanoso
retirar a terra. Às vezes penso que Após sofrer uma alergia que a fez que a USP nos deu. Sonhamos com
vão tentar nos convencer cientifi- perder cabelos e sobrancelhas, a um projeto lindo para este espaço,
camente de que não há problemas aluna Rosangela Toni, do curso de trabalhamos duro e fizemos nas-
e portanto a terra poderá perma- Gestão Ambiental da EACH, está cer muita coisa. Realmente não me
necer. Outras vezes penso que vão processando a USP por entender conformo”, diz. “Para mim, depois
adotar medidas parciais, paliativas, que a causa do problema é a conta- de tudo que vimos e vivemos, é
para poder dizer: ‘Retiramos a terra minação por elementos existentes muito difícil a convivência pacífica
contaminada da EACH’.” no solo do campus. A vice-diretora com esse lixo contaminado fruto
“Tudo o que se está fazendo no Neli de Mello-Théry salienta que de um crime ambiental. Nós todos,
campus é muito lento e podemos es- também inalou a poeira, mas res- professores, alunos, funcionários e
tar brincando com a saúde das pes- salta: “Não posso afirmar que essa comunidade, não merecemos esse
soas. Essa é a desconfiança, e é o situação não vá causar problemas. estado de coisas.”

92
Revista Adusp Dezembro 2015

Reitor suspende ex-diretor J. Boueri por 120


dias. Comissão Processante queria só 30 dias
Arquivo
A Comissão Processante Dis- do réu deveria
ciplinar (CPD) designada em ser levada em
7/11/2013 pela Reitoria da USP pa- conta ao se fi-
ra conduzir processo administrativo xar a pena. As-
contra José Jorge Boueri Filho, ex- sim, apesar da
diretor da EACH, emitiu parecer, gravidade das
um ano e meio depois (29/5/2015), faltas aponta-
recomendando a suspensão do pro- das, M.A. Zago
fessor por trinta dias de suas ativi- decidiu aplicar
dades na Universidade. a punição de
No dia 2/7/2015, o reitor M. A. 120 dias de sus- Boueri, segundo à esquerda, e Alckmin
Zago acolheu, em parte, as conclu- pensão.
sões da CPD, ao entender que o ato A Diretoria da Adusp emitiu USP devem ser responsabilizados,
praticado por Boueri “deve ser con- nota em que condena a decisão do além do ex-diretor. Ela lembra que
siderado como de maior gravidade”, reitor: “A suspensão de 120 dias é a interdição da unidade entre ja-
na medida em que o então diretor uma sanção que não condiz com neiro e julho de 2014 provocou
da EACH “autorizou a utilização a gravidade do caso e das condu- muitos prejuízos que não podem
de considerável volume de terra não tas do então diretor da EACH. A ser medidos: “Projetos de pesqui-
certificada no campus da EACH”, e mesma Reitoria que, a pretexto de sa parados, laboratórios fechados,
isso mediante a ausência de requisi- ausência de dolo, deixa de demitir alunos que desistiram de discipli-
tos fundamentais, tais como: “pro- o responsável por um crime am- nas por causa dos deslocamentos
cedimento licitatório ou de dispensa biental de proporções ainda não para outros lugares, falta de biblio-
ou de declaração de inexigibilidade”; inteiramente conhecidas, que vio- teca e de bandejão, possíveis danos
“contrato formal, escrito”; e “a falta lou diversas leis e o Estatuto do à saúde das pessoas etc.”.
de comunicação aos órgãos adminis- Servidor Público (ESP), dispõe-se Há também, diz a professora,
trativos e ambientais para formalizar a processar e expulsar estudantes outras perdas que podem ser conta-
e obter as autorizações necessárias”. por falarem em voz alta nas reuni- bilizadas e com as quais a USP vem
O reitor reconheceu, ainda, que ões do Conselho Universitário”. arcando sem cobrar dos demais en-
tais condutas “desencadearam sig- “Vale lembrar, a respeito da volvidos. Um dos atores do proces-
nificativa perturbação para o de- alegada primariedade de Boueri, so, por exemplo, obtém duas van-
senvolvimento dos serviços admi- que o ESP relaciona a penalidade tagens: “As construtoras compram
nistrativos da EACH, com a inter- à infração, sem levar em conta os terrenos contaminados porque são
dição daquele campus, suspensão antecedentes”, continua a nota da mais baratos e, em vez de desconta-
das aulas e posterior transferência Adusp. “Portanto, a primariedade minar, o que custa muito dinheiro,
dos alunos para locais externos”. não deveria ser entendida como pegam a terra e jogam noutro lugar.
Por outro lado, ele acatou o en- atenuante ou óbice à demissão”. Lucram duas vezes: comprando ter-
tendimento da Comissão de que não A professora Adriana Tufaile reno mais barato e descartando a
houve dolo e de que a primariedade considera que outros dirigentes da terra em vez de tratá-la”.

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Dezembro 2015 USP Revista Adusp

HU e HRAC, ou como
se livrar de hospitais
de renome acadêmico
Paulo Hebmüller
Jornalista
Daniel Garcia

Protesto dos funcionários do HU durante reunião de 26/8/14 do Conselho Universitário da USP

O Hospital Universitário da USP (HU) e o Hospital de Reabilitação de Anomalias


Craniofaciais de Bauru (HRAC) sempre tiveram alta reputação acadêmica e cumprem
importantes funções sociais. O HU, em especial, desempenha papel de longo alcance na
formação de profissionais de diferentes áreas vinculadas à Saúde. Mesmo assim a gestão
M.A. Zago-V. Agopyan não hesitou em propor a desvinculação de ambos da universidade e
sua subordinação à Secretaria Estadual da Saúde — ao que parece, sem consultar a pasta

94
Revista Adusp Dezembro 2015
Foi como um raio em céu azul. do próprio Co o reitor encontrou posta por funcionários de diferentes
No dia 16 de agosto de 2014, pre- resistência à medida. setores do HU, um representante
mida pela revelação dos seus pla- Desse modo, a decisão sobre o do Conselho Gestor de Saúde do
nos, dois dias antes, pelo jornal Fo- HU foi adiada para “melhor ava- Distrito do Butantã e os presidentes
lha de S.Paulo, a Reitoria da USP liação”, inicialmente marcando-se a da Adusp e do Centro Acadêmico
divulgou oficialmente seu pacote decisão para trinta dias depois. Po- Oswaldo Cruz (CAOC). A eles, rei-
de medidas de contenção da alega- rém, de modo totalmente irrespon- terou o que já havia manifestado à
da “crise financeira” da instituição, sável, a desvinculação do HRAC imprensa: “Nunca este governo se-
entre as quais encontravam-se a foi aprovada, tendo contado com a quer cogitou de assumir a responsa-
desvinculação do Hospital Univer- adesão declarada de ninguém me- bilidade pelo Hospital Universitário
sitário (HU), na capital, e do Hos- nos que a diretora da Faculdade de ou de incorporá-lo”, afirmou. “Está
pital de Reabilitação de Anomalias Odontologia de Bauru e presidente dito: não será feito, nem o HU nem
Craniofaciais de Bauru (HRAC), o do conselho deliberativo do hos- o HRAC serão assumidos pelo Es-
“Centrinho”, em Bauru. pital, Maria Aparecida Monteiro tado, isso está fora de cogitação”. O
Um e outro deixariam de ser Machado. A votação no Co regis- secretário estadual da Saúde, David
“órgãos complementares” da Uni- trou 64 votos a favor, 27 contra e Uip, também já havia se pronun-
versidade e se transformariam em 15 abstenções, resultado que a Rei- ciado numa coletiva: “Tem alguém
“entidades associadas”. Na práti- toria proclamou como suficiente, que quer vender, mas o outro não
ca, os dois importantes hospitais, fazendo crer que bastava maioria quer comprar. Não tem discussão.
conhecidos pelos excelentes servi- simples para validar a medida. “Só A decisão nasce morta”.
ços médicos prestados (e, no caso que não”. Procurada para esta reportagem
do HU, também por seu papel na Por se tratar de extinção de ór- pela Revista Adusp, a Assessoria de
formação de profissionais de dife- gão complementar, a desvinculação Imprensa da Secretaria da Saúde
rentes áreas da Saúde), seriam des- do HRAC precisaria ter sido apro- confirmou: “Os hospitais perten-
vinculados da USP e repassados à vada por maioria qualificada — dois cem à USP e a Secretaria não irá
Secretaria de Estado da Saúde. terços do Co — e não por maioria assumi-los”.
Apenas dez dias depois do anún- simples, segundo o próprio Estatuto
cio, sem qualquer debate prévio com da USP. Assim, seriam necessários
a população atendida, a comunidade pelo menos 77 votos favoráveis. Em
universitária, ou sequer as unida- abril de 2015, depois de tentarem A desvinculação do HU
des de ensino da USP diretamen- sem êxito fazer o próprio Co rever
é desaconselhada pela
te envolvidas com esses hospitais, a e anular a medida diante do evi-
alteração foi submetida à reunião dente descumprimento do Estatu- comissão que a própria
do Conselho Universitário (Co). to, a Associação dos Docentes da Reitoria criou, por meio
Reunido, excepcionalmente, nas de- USP (Adusp), o Sindicato dos Tra-
pendências do Instituto de Pesqui- balhadores da USP (Sintusp) e o da Portaria GR 965, de
sas Tecnológicas (IPT), em razão da Sindicato dos Médicos de São Paulo 11/9/2014, para analisar
greve de funcionários e docentes da (Simesp) submeteram ao Ministério
universidade, iniciada em maio, o Público Estadual (MPE) uma repre- o caso, e que em 7/7/2015
Co realizou-se sob pressão do pesso- sentação contrária à decisão. aprovou a recomendação
al médico do HU. Enquanto a reu- Em setembro de 2014, poucos
nião transcorria, no portão principal dias depois da votação do Co, o go- de que “o HU permaneça
do IPT centenas de manifestantes vernador Geraldo Alckmin (PSDB) vinculado à USP”
realizavam ato de protesto contra a recebeu no Palácio dos Bandeiran-
proposta de desvinculação, e dentro tes uma numerosa comissão com-

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Dezembro 2015 Revista Adusp
A contundente demonstração de Produção e Financeiro do HU,
do Palácio dos Bandeirantes de em 2013 as verbas do SUS respon-
que não tem interesse em assumir diam por apenas 6% das receitas Diversas unidades de ensino
a gestão dos hospitais levou a Rei- do órgão, cerca de R$ 20,7 mi-
toria a enveredar pelo “plano B”: lhões. Uma queda expressiva em da USP que formam alunos
deixou o HRAC à própria sorte relação a 2011, quando equivaliam no HU, como a Faculdade
e partiu para o sucateamento do a 9% (R$ 22,2 milhões). Todo o
HU. O pagamento dos plantões restante (cerca de R$ 330 milhões,
de Ciências Farmacêuticas
dos médicos foi cortado, estrangu- em 2013) era proveniente da USP. e Escola de Enfermagem,
lando imediatamente o atendimen- A Revista Adusp procurou o
têm apontado o papel
to. E a implantação do Programa superintendente Waldyr Jorge
de Incentivo à Demissão Voluntá- para que comentasse a evolução relevante do hospital e sua
ria (PIDV) resultou, em abril de dessas “tratativas”. O Centro de
contribuição, vista como
2015, na saída de 213 funcionários Comunicação do HU informou
do HU (cerca de 15% do quadro), que o professor estava com a “fundamental”
entre os quais 18 médicos. “agenda lotada” e pediu que as
É fato que o financiamento do perguntas fossem enviadas por e-
HU requer mais recursos dos go- mail. As perguntas seguiram por
vernos estadual e municipal, pois escrito, mas a revista não teve A comissão foi composta pelos
é praticamente o único hospital retorno. Sobre o assunto, a As- professores José Otavio Costa Auler
público de porte numa região da sessoria de Imprensa da Secreta- Junior, diretor da FM; Maria Amé-
capital, a do Butantã, com popula- ria de Estado da Saúde informou: lia de Campos Oliveira, diretora da
ção de cerca de 600 mil habitantes, “Os atendimentos no HU são re- Escola de Enfermagem (EE); Carlos
e que por sua posição geográfi- munerados com recursos fede- Gilberto Carlotti Júnior, diretor da
ca termina por receber pacientes rais, do Ministério da Saúde. A Faculdade de Medicina de Ribeirão
de cidades do entorno, tais como tabela SUS está congelada há 10 Preto (FMRP); Floriano Peixoto de
Osasco, Taboão da Serra e diversas anos e não cobre os reais custos Azevedo Marques Neto, chefe do
outras. Mas, ao invés de trabalhar dos procedimentos”. Departamento de Direito do Estado
nesta direção, a Reitoria preferiu A desvinculação do HU não é da Faculdade de Direito (FD); Wal-
apostar no desmanche. recomendada pela comissão que dyr Jorge, superintendente do HU;
Uma busca por recursos junto a própria Reitoria criou, por meio pelo médico Gerson Salvador, vice-
ao governo do Estado já vem sen- da Portaria GR 965, de 11 de se- diretor clínico e representante dos
do empreendida pela direção do tembro de 2014, para analisar o funcionários do HU; e pelos acadê-
hospital. Em ofício encaminhado caso. No dia 7 de julho de 2015, micos Ivo Jordão Guterman e Filipe
em março de 2015 ao diretor da depois de nove meses de traba- Kiyoshi de Oliveira, representantes
Faculdade de Medicina (FM) da lho, a comissão aprovou suas re- dos estudantes da FM e da EE.
USP, José Otavio Costa Auler Ju- comendações. A primeira delas é A comissão recomendou ainda:
nior, o superintendente do HU que “o HU permaneça vinculado “que se mantenham as característi-
menciona “tratativas no sentido à Universidade de São Paulo”. A cas do HU como hospital secundá-
de realizar uma nova contratua- segunda defende “que sua gover- rio, inserido na rede de atenção à
lização junto à Secretaria Esta- nança continue a ser exercida pe- saúde”; “que se busque a repactu-
dual da Saúde, visando adequar las unidades que lá atuam, com a ação do financiamento para o HU
o repasse vindo do SUS [Sistema atual composição do seu Conse- com os gestores do SUS”; “que lhe
Único de Saúde] de forma factí- lho Deliberativo em igualdade de seja delegada maior autonomia na
vel”. De acordo com o Relatório condições”. gestão de seus recursos, com respon-

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Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
te, proporcionando a integralidade
da assistência e do ensino”, diz o
documento, que alerta ainda para
o fato de que a desvinculação “irá
despatrimoniar parte da USP” e que
“o hospital perderá autonomia na
diretriz de ensino”.
Outra manifestação partiu da
EE, que em março deste ano emitiu
recomendações para a manutenção
da excelência do ensino no hospital,
ressaltando que “o diferencial posi-
tivo do HU no processo de ensino e
aprendizagem de alunos de bacha-
relado e residência da EE deve-se
José Pinhata Otoch, diretor clínico do HU, durante debate realizado em 22/8/14 no IF
à adequação quanti-qualitativa de
profissionais de enfermagem”.
sabilização e transparência”; “que pela Congregação da Faculdade de Essa adequação vem sendo colo-
se garantam as condições para seu Ciências Farmacêuticas (FCF). No cada em risco pela perda do pessoal
funcionamento, compatíveis com a texto, o colegiado reitera a “parceria de enfermagem, de médicos e ou-
qualidade de assistência, a seguran- extremamente bem-sucedida” com tros funcionários que aderiram ao
ça de pacientes e trabalhadores e a o HU, reconhece a “contribuição PIDV. O número de médicos que se
excelência do ensino”; “que sejam fundamental do HU na formação de desligaram depois da conclusão do
aprimorados os processos gerenciais profissionais competentes” e rejeita PIDV, em abril, é ainda maior, diz
para garantir a eficácia, a eficiên- “qualquer medida que comprometa Gerson Salvador: pelo menos outros
cia e a efetividade de suas ações”; e esta atuação”. 12 pediram demissão, somando 30.
“que se mantenha o atendimento à Vale lembrar que a preocupação
comunidade uspiana no HU”. com a formação já havia sido mani-
O encaminhamento oficial das re- festada em documento assinado por
comendações da comissão à Reitoria seis profissionais chefes de departa- Em vistoria, o Cremesp
ficou a cargo do diretor da FM. O mentos, divisões e serviços do HU e
constatou a desativação
objetivo é que elas subsidiem a dis- divulgado antes da reunião do Co de
cussão a respeito da desvinculação agosto de 2014. O texto aponta que de 45 leitos e encontrou
no Co. “Se houver um mínimo de co- o HU recebe anualmente 2.430 alu- 20 pacientes atendidos
erência, a Universidade deve acatar nos entre graduandos e pós-gradu-
o que recomendou a comissão consi- andos de sete unidades da USP: FM, em macas. As mudanças
derada pelo reitor como competente EE, FCF, Faculdade de Saúde Públi- impostas pela Reitoria
para estudar o assunto”, diz o mé- ca (FSP), Faculdade de Odontologia
dico Gerson Salvador, vice-diretor (FO), Instituto de Psicologia (IP) e “ocasionaram grande
clínico do HU e integrante da direto- Escola de Artes, Ciências e Humani- desorganização, colocando
ria do Simesp. Outras manifestações dades (EACH). “Uma característica
das mais diversas fontes vão na mes- diferencial do Hospital é possibilitar em risco a qualidade do
ma direção. Uma delas foi a “Carta o ensino baseado numa abordagem atendimento realizado”
Aberta aos Alunos, Docentes e Fun- multidisciplinar integrando todas as
cionários da USP” emitida em maio áreas da saúde num mesmo ambien-

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Daniel Garcia
Também em abril de 2015, uma
vistoria do Conselho Regional de
Medicina de São Paulo (Cremesp)
detectou vários problemas no HU:
desativação de pelo menos 45 lei-
tos, dos quais 11 de terapia intensi-
va ou semi-intensiva; mais de vinte
pacientes que deveriam estar na ala
de internação sendo atendidos em
macas no Pronto-Socorro; doze am-
bulatórios desativados parcialmen-
te, entre eles os de pediatria, clínica
cirúrgica e obstetrícia; e fechamen-
to do ambulatório de ortopedia. O
Cremesp destaca a excelente in-
fraestrutura do HU e seu “grande
número de profissionais titulados”, Debate realizado em 25/8/14 na FMUSP
mas aponta que as mudanças im-
postas pela Reitoria “ocasionaram em todo o hospital e afetou todo po, os médicos precisam escolher
grande desorganização, colocando mundo”, completa uma servidora quem vão salvar, porque não dá
em risco a qualidade do atendimen- da área administrativa. para entrar em duas cirurgias de
to realizado”. O HU cumpre na rede o papel emergência ao mesmo tempo num
“A situação é grave em relação de hospital secundário. Em 2013, plantão noturno”. A formação dos
ao acolhimento, ao conforto do pa- realizou 282 mil atendimentos de alunos também é prejudicada: com
ciente e ao risco ao qual ele está emergência, 13 mil internações e menor número de pacientes em te-
exposto”, diz Gerson Salvador. “Os mais de 3.500 partos, e teve uma rapia intensiva, por exemplo, eles
pacientes não têm tido um prejuízo média mensal de 12 mil consultas conhecem menos casos e fazem um
maior por conta das equipes, que ambulatoriais e 400 cirurgias. Em número menor de procedimentos.
têm se desdobrado para cuidar de- razão da redução do número de Para os próprios médicos fica difícil
les”. Funcionários ouvidos pela Re- profissionais, as pessoas cujos casos acompanhar, supervisionar e dis-
vista Adusp confirmam a opinião do são considerados mais leves e clas- cutir intercorrências nos diferentes
médico. Em todas as áreas, desde sificados como de baixo risco são setores.
as envolvidas diretamente com os orientadas a procurar as Unidades “É fundamental que se recompo-
pacientes e familiares até as admi- Básicas de Saúde (UBAS) e os pos- nham os recursos humanos no HU
nistrativas e de apoio, os relatos são tos da Assistência Médica Ambula- para que os médicos não se colo-
de servidores sobrecarregados com torial (AMAs). quem em risco no exercício da pro-
tarefas que antes do PIDV eram As situações de urgência e emer- fissão e para que os usuários tam-
executadas por equipes maiores. gência continuam a ser atendidas. bém não sejam colocados em risco”,
“Mesmo com a diminuição do nú- Entretanto, há problemas que me- afirma Salvador. O mesmo ponto de
mero de leitos, a nossa impressão é recem destaque, como aponta Ger- vista é defendido pelo promotor Ar-
que a quantidade de atendimentos son Salvador: “Nossa escala original thur Pinto Filho, da Promotoria de
aumentou”, diz uma enfermeira. era de três cirurgiões por plantão Saúde Pública do MPE. A contra-
“O serviço que um funcionário que no Pronto Socorro, e agora temos tação de pessoal, diz, “é fundamen-
saiu fazia ficou acumulado na me- dois. Isso quer dizer que, se chega- tal”, porque no momento “o HU es-
sa de outro. O impacto aconteceu rem dois baleados ao mesmo tem- tá trabalhando numa situação muito

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Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
aventadas pela direção é a possível
criação, em Bauru, de uma Faculda-
de de Medicina da USP, conforme
ata de reunião ordinária do Conse-
lho Deliberativo do Hospital reali-
zada em maio de 2015. O curso de
Medicina traria “maior valorização
e impacto social”, de acordo com a
ata. Os membros do colegiado reco-
nhecem que, se realmente trilhado,
o “caminho a percorrer é longo” e
demandaria, entre outros aspectos,
“envolvimento de vereadores, de-
putados e prefeito e governos esta-
dual e federal”, além de, no âmbito
Passeata de protesto da comunidade em 7/4/15 da USP, “aprovação no Co”.
O documento relata que vá-
precária, com enorme prejuízo para ria foi contatada para encaminhar rios problemas do HRAC — co-
a comunidade”. a ele várias questões sobre a pro- nhecido em Bauru como “Centri-
posta de desvinculação do HU e nho” — foram apresentados por
do HRAC, mas não deu retorno à representantes do órgão numa
reportagem da Revista Adusp. reunião com o reitor M.A. Zago.
Vários problemas do HRAC O Ministério Público Estadual De acordo com o texto, o reitor
(MPE) solicitou no final de julho “informou que não teria como
foram apresentados por sua
de 2015 esclarecimentos sobre os ajudar” e “pediu para o Hospi-
direção numa reunião com relatórios financeiros do Hospital tal procurasse (sic) a Secretaria
Universitário (HU) encaminhados da Saúde”. Entre os problemas
o reitor da USP. Ata de maio
pela USP. O pedido faz parte dos apresentados estão a falta de mé-
do Conselho Deliberativo do procedimentos relacionados ao in- dico infectologista, a necessidade
HRAC registra que o reitor quérito civil aberto pelo MPE para da contratação de neurologista,
apurar a real situação do hospital. a ausência de um oftalmologista
“informou que não teria “Os números não nos pareceram e um cirurgião plástico na equi-
como ajudar” e “pediu para claros. Não conseguimos entender pe de craniofacial e o reduzido
na discriminação da USP o que é número de anestesiologistas na
o Hospital procurasse (sic) a custeio e o que é despesa com re- equipe. Outras questões aponta-
Secretaria da Saúde” cursos humanos”, diz o promotor das no documento se referem ao
Arthur Pinto Filho, responsável plantão de disponibilidade, “pois
pelo inquérito. O superintendente somente quatro profissionais da
do HU, professor Waldyr Jorge, Cirurgia Plástica participam da
Até o fechamento desta edição, reuniu-se com os técnicos da insti- escala de plantão”, e à inexistên-
o reitor ainda não havia se mani- tuição para tirar as dúvidas suscita- cia de uma UTI para adultos. Em
festado sobre o documento da co- das pelos documentos. 2013, o “Centrinho” realizou 61
missão que recomenda que o HU No HRAC, que se tornou uma mil atendimentos médicos, 89 mil
permaneça vinculado à USP. A referência internacional na sua área atendimentos odontológicos e
Assessoria de Imprensa da Reito- de atuação, uma das alternativas 8.500 cirurgias.

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Dezembro 2015 Novos olhares Revista Adusp

Paleoantropologia
corre risco na USP,
adverte Walter Neves
Vinicius Crevilari
Estagiário de Jornalismo da Adusp

Daniel Garcia

“Trabalhos de décadas não podem ser ignorados simplesmente porque temos uma politica de
contratação [de docentes] que é absolutamente restritiva”, diz o professor Walter Neves, do
Instituto de Biociências (IB-USP), ao falar do risco de interrupção das pesquisas do Laboratório
de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH). Além de criticar a Reitoria por ignorar apelos, o
descobridor de “Luzia”, que se aposentará em 2017, receia que o Departamento de Genética e
Biologia Evolutiva venha a contratar um geneticista para substituí-lo, e não um paleoantropólogo

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Revista Adusp Dezembro 2015
Aconteceu em junho de 2015. O existência do laboratório, consegui- em que hoje se encontra a cida-
professor Walter Neves, arqueólogo, mos formar um grupo de excelência de de Belo Horizonte, em Minas
antropólogo e “pai” do mais anti- nessa área”, completa o docente. Gerais. Antes de receber seu atual
go fóssil humano até hoje encontra- Essa descrição inicial já eviden- nome, dado por Neves, Luzia era
do nas Américas resolveu divulgar cia a importância do LEEH para as conhecida como “Esqueleto da La-
o manifesto intitulado “Estudos de pesquisas concernentes à história pa Vermelha IV”, que designa o lo-
evolução humana na USP estão ame- da evolução humana. Porém, Neves cal onde seu crânio foi encontrado,
açados de extinção”, com o objetivo vai aposentar-se em 2017 e não há no sítio arqueológico localizado nos
de chamar a atenção da comunidade quem o substitua. “Não há a menor municípios mineiros de Lagoa San-
acadêmica, da mídia e da sociedade possibilidade de que seja contrata- ta e Pedro Leopoldo (as duas cida-
para o risco de interrupção das ati- do um docente para assumir o labo- des distam cerca de 40 quilômetros
vidades do Laboratório de Estudos ratório”, diz ele no manifesto. Em de Belo Horizonte).
Evolutivos Humanos (LEEH), per- primeiro lugar, porque devido à po- O apelido dado por Neves ao es-
tencente ao Departamento de Ge- lítica de contenção de despesas, “a queleto é uma alusão ao fóssil Lucy,
nética e Biologia Evolutiva do Insti- Reitoria não está provendo novas fêmea da espécie Australopithecus
tuto de Biociências da Universidade vagas de docente”. Em segundo lu- afarensis achada na Etiópia em 1974
de São Paulo (IB-USP). Criado em gar, porque “mesmo que ela o faça, e que tem 3,5 milhões de anos. A
1994, o LEEH realiza pesquisas re- nada garante que o Departamento descoberta de Luzia em meados da
ferentes ao povoamento humano da de Genética e Biologia Evolutiva década de 1970, fruto de uma missão
América do Sul, tanto nos aspectos aloque essa vaga para a área da An- franco-brasileira liderada pela arque-
culturais quanto biológicos, as quais tropologia Biológica”. óloga francesa Annette Laming-Em-
compreendem o período final do Depois que a Revista Adusp to- peraire, reativou as indagações acer-
Pleistoceno, época geológica na his- mou conhecimento do manifesto, ca das origens do homem americano.
tória da Terra que começou há cerca marcamos um encontro com o pro-
de 1,75 milhão de anos e terminou há fessor, para conhecer seu laborató-
aproximadamente 10 mil anos. rio e entender melhor suas preocu-
O LEEH é, segundo Neves, o pações. Ao adentrar uma pequena “Nosso departamento
único laboratório da América do sala, localizada no segundo andar
é de excelência, mas
Sul que trabalha com paleoantro- do Departamento de Genética e
pologia: o estudo da evolução hu- Biologia Evolutiva, custa acreditar é departamento
mana por meio dos fósseis dos nos- que aquele acanhado espaço tenha majoritariamente de
sos ancestrais. “O laboratório foi sido utilizado para estudo tão gran-
criado por mim em 1994 e nesse dioso como o que Neves realizou Genética, especificamente
intervalo de tempo nos tornamos com o crânio de Luzia, “primeira Humana. Então, os nossos
uma referência mundial, sobretudo americana”, que se tornou o “ícone
quanto aos estudos da origem do da pré-história brasileira”, segundo colegas têm uma dificuldade
homem no continente americano. palavras do próprio pesquisador. muito grande de entender
Nós estabelecemos o primeiro pro- De fisionomia semelhante às dos
jeto paleoantropológico da Amé- primeiros australianos e africanos, nossa área de pesquisa,
rica Latina no Velho Mundo [na Luzia era uma jovem mulher de exatamente porque a gente
Jordânia]. Na América, a gente tra- aproximadamente vinte anos que,
balha com uma temporalidade de entre 11.000 e 11.500 anos atrás,
percola pelas Ciências
cerca de 12 mil anos. Na Jordânia, fez parte de uma população de in- Humanas e pelas Biológicas”
estamos trabalhando em uma esca- divíduos caçadores-coletores que
la de 2 milhões de anos. Durante a viviam numa região próxima àquela

101
Dezembro 2015 Revista Adusp
Neves estudou o fóssil de Luzia, da teoria clovista, e abriu caminho
que fez parte da primeira população a um debate muito mais rico no que
humana que teve acesso ao conti- cerne à questão do povoamento do
nente americano e, após analisar o Novo Mundo.
formato do crânio, o pesquisador “Sem querer, foi minha desco-
percebeu que Luzia era um negróide berta mais midiática e me orgulho
que possuía traços que remetem aos muito do fato de ela (Luzia) ter se
atuais negros africanos e aborígenes tornado um ícone da pré-história
australianos. Ou seja, sua morfolo- brasileira”. Neves aponta que, após
gia era bem diversa da dos índígenas o advento de Luzia, curiosamente
brasileiros, fazendo com que a equi- tem recebido muitos telefonemas
pe de Neves propusesse, ao fim da denunciando a destruição de sítios
década de 1980, que a América teria arqueológicos, em comparação aos
sido ocupada por duas populações que recebia antes da descoberta:
distintas. A população mais antiga “Veja o poder que ela teve de levan-
da América teria atravessado o Es- tar, vamos chamar assim, a autoesti-
treito de Bering (canal marítimo que ma da população brasileira, com re-
liga o Alasca à Sibéria), há 14.000 ferência à sua pré-história. Acho que
anos e, a partir do Alasca, chegou só por isso já teria valido a pena”. É
ao Brasil. Só 3.000 anos depois um a prova de que Luzia se tornou o
outro grupo chegou ao país: o dos símbolo da pré-história brasileira.
ancestrais dos índígenas atuais. “Em várias partes do mundo,
Os resultados dos estudos de Ne- o fato de se ter um ícone da pré-
ves desafiaram o modelo predomi- história local ajudou muito na co-
nante de povoamento do continente municação entre os cientistas e o
americano, denominado Clovis First. público em geral. Por exemplo, na
O nome deriva do sítio arqueológi- Alemanha tem o Neandertal. O ho-
co Clóvis, localizado no estado do mem de Neandertal ajudou muito
Novo México, nos Estados Unidos. a aproximar o público alemão da
Tal corrente também acredita que a ciência que é feita na Alemanha. Na
população mais antiga da América Etiópia, tem a Lucy e o fato de ela
tenha acessado o continente ameri- existir ajudou muito a aproximar os cara sua produção e trata seus pes-
cano pelo Estreito de Bering (acre- etíopes dos cientistas que estudam quisadores. Para Neves, não basta ser
ditava-se que o caminho era um cor- isso por lá”, diz Neves. “Já a França substituído por um outro docente,
redor de gelo, devido ao período possui o Homem de Cro-Magnon e se o departamento onde o docente
Glacial); porém, afirma que apenas todo francês sabe o que é o Homem realiza suas pesquisas não concentra
um único contingente populacional de Cro-Magnon, todas as crianças profissionais interdisciplinares. Se-
humano, de tipo mongolóide (e não sabem quem foi o Homem de Cro- gundo seu manifesto, o Departamen-
negróide, como atestam os estudos Magnon e isso ajuda nesse diálogo to de Genética e Biologia Evolutiva
de Neves), tenha penetrado a Amé- entre o cientista e o povo. A Luzia é, na sua maioria, formado por gene-
rica, há aproximadamente 12 mil preencheu esse espaço no Brasil”. ticistas que são refratários ao enten-
anos. A teoria de Neves desafiou um De um lado, o congelamento das dimento de que a Paleoantropologia
modelo explicativo apoiado na hege- contratações de docentes na USP. envolve diversos campos do conhe-
monia norte-americana na arqueo- De outro lado, a forma antidialética cimento. “A minha área de trabalho
logia e no dogma “inquebrantável” e unidisciplinar com que a USP en- está inserida em diversos tipos de

102
Revista Adusp Dezembro 2015
tamento é de excelência, mas é um O professor Luis Eduardo Soa-
departamento majoritariamente de res Netto, chefe do Departamento
Genética, especificamente de Genéti- de Genética e Biologia Evolutiva
ca Humana. Então, os nossos colegas do IB, reconhece a importância das
têm uma dificuldade muito grande pesquisas do professor Neves e do
de entender nossa área de pesquisa, LEEH “no cenário nacional e inter-
exatamente porque a gente percola nacional”, mas aponta normas ins-
pelas Ciências Humanas e pelas Ci- titucionais que limitam as decisões
ências Biológicas”, explica Neves à departamentais (a íntegra de suas
Revista Adusp. declarações está na p. 106).
As dificuldades impostas pela falta
de interdisciplinaridade não são pon-
tuais e sim estruturais. Neves argu-
menta que o convívio com tal obstá- “Os maiores
culo é permanente, apontando que
paleoantropólogos do mundo
o LEEH está sempre no final da fila
no Departamento: “Aqui, no LEEH, mandaram mensagens
informalmente dizemos que estamos em apoio, reconhecendo a
divididos em duas grandes vertentes: a
dos vivos e a dos mortos. Eu trabalho excelência do laboratório
especificamente com os mortos, com e das suas coleções.
restos arqueológicos e paleontológi-
cos. E tem um outro colega, o profes- Essas mensagens foram
sor Ruy [Sérgio Sereni] Murrietta, que enviadas para o reitor e
trabalha com populações vivas. Mas,
mesmo quando trabalhamos com po- para o vice-reitor. Se não se
pulações vivas, fazemos sob uma pers- sensibilizarem com isso, então
pectiva do darwinismo, da biologia
evolutiva. Então, pelo fato de a maior
eu me pergunto o que pode
parte do colegas daqui [Departamen- sensibilizar a Administração
to de Genética e Biologia Evolutiva]
departamento. Às vezes está inserida
para a nossa situação”
ter uma formação unidisciplinar, prin-
nos departamentos de Antropologia, cipalmente na área de genética, eles
às vezes nos de Arqueologia, às vezes possuem uma certa dificuldade de en-
nos de Biologia Evolutiva — como é tender o que a gente faz, e com isso O embate entre concepções dis-
o caso aqui — e às vezes nos depar- a gente sempre está no final da fila e tintas não é novidade para o profes-
tamentos de Anatomia. Justamente nunca somos uma área prioritária”. sor. Na década de 1980, trabalhan-
por causa dessa interdisciplinaridade, Contudo, o próprio Neves pondera: do como arqueólogo no Instituto
não existe uma ‘caselinha’ específica, “Isso não quer dizer que esses colegas de Pré-História da USP, local onde
onde a gente se encaixe. Isso acon- não façam uma pesquisa de excelên- iniciou seus estudos, Neves se vol-
tece no mundo, mas é especialmente cia — eles são excelentes geneticistas. tou contra a metodologia atrasa-
agudo no Brasil — que faz todo o Mas nós sempre estamos no final da da então usada na arqueologia. Ao
discurso da importância da interdis- fila. Nos últimos anos, houve concurso adotar um tratamento mais moder-
ciplinaridade, mas na verdade não a para diversas áreas no departamento, no para as pesquisas da área, foi
aplica corretamente. O nosso depar- menos na nossa”. sumariamente demitido da univer-

103
Dezembro 2015 Revista Adusp
sidade em 1985. Anos de pesquisa que estão à frente vão se aposentar brir a ineficiência administrativa,
de campo foram perdidos. Hoje, e não serão repostas. Tem outra porque mesmo quando a universi-
mais experiente nesse tipo de con- coisa que me preocupa muito, algo dade tinha recursos, a parte admi-
flito, Neves enxerga a realidade da que chamo de política da terra arra- nistrativa nunca funcionou bem. Eu
universidade com olhares ainda sada: nós gastamos milhares de dó- gastava de seis a sete meses para
mais céticos e realistas. Descrente lares para montar nosso laboratório comprar um cartucho de impresso-
quanto a uma possível reversão no e temos uma infraestrutura na área ra. Na verdade, a administração da
modo como a USP avalia, enxerga de paleoantropologia que nada de- universidade, em todos os níveis, é
e fomenta a produção científica, as- ve aos outros centros do mundo. Aí extremamente amadora”.
severa: “Houve um avanço no dis- eu me aposento, o laboratório deixa Neves destaca o apoio que vem
curso, mas não houve progresso de de existir, vão entrar aqui, derrubar recebendo da comunidade científi-
fato. As pessoas confundem muito tudo e perder esse alto investimen- ca internacional: “Esse manifesto é
multidisciplinaridade com interdis- to feito na nossa infraestrutura. Se um pedido de socorro para o mun-
ciplinaridade. Multidisciplinaridade o laboratório for desmantelado, no do todo. E os maiores especialistas
é quando uma questão científica outro dia entra aqui uma equipe de da nossa área mandaram mensa-
é ‘atacada’ por várias disciplinas, pedreiros, derrubam tudo e vai ser gens que me emocionaram muito,
como se cada campo fizesse ‘sua construído um outro tipo de labora- dizendo que o nosso laboratório é,
parte’ e depois se juntasse a outros, tório. Quando se abre um concurso, em referência à questão da origem
como se eles não ‘conversassem’ uma das coisas que tem de ser leva- do homem na América, o grande la-
antes da sobreposição. Interdiscipli- da em consideração é o quanto já boratório de excelência no mundo.
naridade envolve o que eu chamo se investiu de dinheiro naquelas in- Os maiores paleoantropólogos do
de sobreposição de campos teóri- fraestruturas. Nós podemos torrar mundo mandaram mensagens em
cos, que é o nosso caso aqui. Então, dinheiro da Fapesp e eu acho isso apoio, reconhecendo a excelência
a universidade até melhorou um absolutamente inaceitável”. do laboratório e das suas coleções.
pouco nas questões de multidisci- Quando perguntado se no co- Recebemos mensagens do todo o
plinaridade, mas infelizmente não tidiano acadêmico seu laboratório mundo e essas mensagens foram
avançou no acolhimento daqueles tem se deparado com falta de re- enviadas para o reitor e para o vice-
profissionais que realizam seus tra- cursos para seu devido funciona- reitor. Se eles não se sensibilizarem
balhos de forma interdisciplinar”. mento, Neves afirma que, apesar com isso, então eu me pergunto o
A crise que levou a USP a con- de M.A. Zago ter assumido a admi- que pode sensibilizar a administra-
gelar as contratações de docentes e nistração com a universidade já em ção central da universidade para a
a carência de uma visão interdisci- crise de financiamento, o LEEH nossa situação”.
plinar não são os únicos temores de sofre com falta de materiais básicos Ele não consegue vislumbrar na-
Neves em relação ao LEEH e à se- e por vezes tem de utilizar, para seu da de concreto surgindo das instân-
quência de seus estudos. Para o do- custeio, recursos destinados à pes- cias burocráticas da USP e mostra
cente, a “política de terra arrasada” quisa. “Aqui está faltando o básico. que, para mudar sua situação e ob-
vigente na universidade pode não Às vezes não tem papel, às vezes ter perspectivas de um outro tipo de
só fadar o LEEH ao sucateamento não tem cartucho de impressora, universidade, a comunidade univer-
(e ao seu fim), como também ou- às vezes não tem cola. O que você sitária só pode confiar em suas pró-
tros núcleos e centros de excelência faz? Você acaba pegando dinheiro prias forças e capacidade de mobili-
na universidade, afirmando que seu da pesquisa e aplicando em coisas zação: “O pró-reitor de Pesquisa es-
caso pode não ser o único: “Me que deveriam ser a contraparte da teve aqui nos visitando, mas infeliz-
preocupa também se outros casos universidade”, observa. “Essa su- mente não trouxe nenhuma solução
similares não estão acontecendo posta falta de recursos está sendo objetiva. O chefe do departamento
na universidade, porque as pessoas usada como desculpa para enco- também se manifestou, dizendo que

104
Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
é impotente em relação à si- de pesquisa, o ensino, a produ-
tuação. Agora, do reitor e do ção de pesquisa científica e tec-
vice-reitor, eu não tive nenhum nológica da USP; e incentivar
feedback, não obstante as mais o fortalecimento e ampliação
de 200 manifestações do mun- das ações de pesquisa dos pro-
do inteiro em solidariedade gramas de pós-graduação stricto
ao nosso trabalho. Posso não sensu (mestrado e doutorado)”,
conseguir, mas vou lutar até a segundo a Capes (http://goo.gl/
última gota do meu sangue pa- SlcaMK). No acordo entre as
ra fazer com que esse labora- instituições, há o comprometi-
tório sobreviva a essa situação mento da USP de abrir vagas
pela qual nós estamos passan- nas respectivas áreas de atua-
do na universidade. Eu digo ção dos bolsistas, nos departa-
sempre: não estou defendendo mentos das unidades que vie-
uma causa pessoal, estou de- rem a receber os pesquisadores
fendendo a universidade brasi- visitantes, permitindo a assimi-
leira e isso não pode acontecer lação destes como docentes da
na USP. Trabalhos de décadas universidade.
não podem ser ignorados sim- Quanto à queixa do professor
plesmente porque temos uma Neves de não ter partido da Pró-
politica de contratação que é Reitoria de Pesquisa nenhuma
absolutamente restritiva”. solução objetiva para a situação
Pró-reitor José Eduardo Krieger do LEEH, Krieger defende-se
quem conversara pessoalmente no afirmando que conheceu “um poten-
LEEH. Krieger afirmou ser legíti- cial candidato, que é um dos alunos
O pró-reitor de Pesquisa mo que todos os chefes de labora- dele [Neves] e que está na Alema-
tório e pesquisadores estejam pre- nha”. “Citei, falei da proposta, falei
José Eduardo Krieger diz
ocupados com a continuidade de que ele deveria inclusive se antecipar
que propôs uma solução suas pesquisas, durante a conjuntu- e já pedir um ‘jovem pesquisador Fa-
ra de crise na USP, e que “há várias pesp’. Então, talvez ele não tenha
ao professor Neves: um
formas de lidar com isso”. prestado muita atenção, talvez ele
“potencial candidato” ao Para ele, por conta do atual pe- estivesse um pouco distraído”.
programa de bolsas Capes- ríodo de dificuldades financeiras, Perguntado sobre se garante que
a USP começou a buscar alternati- o LEEH continuará funcionando,
USP. “Citei, falei que deveria vas e uma delas, já anunciada ofi- após a aposentadoria do professor
antecipar-se e pedir um cialmente, é um programa conjunto Neves, responde: “Garantir, eu não
com a Coordenação de Aperfeiçoa- sei se alguém vai conseguir garantir.
jovem pesquisador Fapesp” mento de Pessoal de Nível Superior Eu diria que com a experiência que
(Capes). Trata-se de convênio fir- tenho e sabendo quais são os instru-
mado em março de 2015, que tem mentos da universidade e como a vi-
O pró-reitor de Pesquisa, profes- por objetivo trazer pesquisadores da acadêmica funciona, acho que tem
sor José Eduardo Krieger, declarou e professores do exterior, por meio todas as chances. Se algo está funcio-
à Revista Adusp que se surpreendeu da concessão de 60 bolsas, com du- nando bem, por que é que vai parar?
ao receber por e-mail o manifes- ração de até 30 meses, objetivando Frequentemente, os bons pesquisa-
to do professor Walter Neves, com “estimular a execução de projetos dores têm bons financiamentos”.

105
Dezembro 2015 Revista Adusp

Departamento reconhece contribuição do LEEH


e promete preservar investigação antropológica
“O Departamento está ciente des- de, tendo tido contribuições extre- a chefia do departamento não pode
te risco e da grande importância des- mamente relevantes para o conhe- interferir no processo, mesmo que tal
te laboratório [LEEH] no cenário na- cimento da evolução humana, no- concurso seja aberto na área de An-
cional e internacional. O Dr. Neves é tadamente no campo das origens tropologia Biológica. Ou seja, não há
um docente e pesquisador de enorme do homem no continente america- garantias de que seja contratado um
inserção acadêmica na Universidade, no. Suas descobertas em relação à docente com perfil ideal para dar con-
tendo tido contribuições extrema- “Luzia”, com ampla repercussão no tinuidade aos trabalhos do Laborató-
mente relevantes para o conhecimen- meio científico e na mídia, bem ates- rio de Estudos Evolutivos Humanos;
to da evolução humana, notadamente tam suas qualidades como cientista. (3) é importante salientar que
no campo das origens do homem no Apesar das inegáveis qualidades além do Dr. Neves, o Departamento
continente americano”, reconhece o do Dr. Neves, e do grupo de pes- conta, no momento, com dois outros
chefe do Departamento de Genética quisa por ele criado, existem regras docentes que atuam na área de An-
e Biologia Evolutiva, professor Luis institucionais que restringem ações tropologia Biológica, sendo que uma
Eduardo Soares Netto, ao comentar, por parte da chefia do departamen- docente recentemente contratada
a pedido da Revista Adusp, o manifes- to. Entre elas: também trabalha num campo de
to do professor Walter Neves. (1) o Chefe de Departamento exe- pesquisa com interface com evolu-
“Apesar das inegáveis qualidades cuta políticas que são definidas pelos ção humana. No entanto, não há, de
do Dr. Neves, e do grupo de pes- membros Conselho do Departamen- fato, garantias de que estes docentes
quisa por ele criado, existem regras to. Em alguns momentos, as áreas deem continuidade aos trabalhos
institucionais que restringem ações nas quais os concursos são abertos desenvolvidos pelo Dr. Neves; e
por parte da chefia do departamen- são determinadas em fóruns mais (4) como é de conhecimento de
to”, argumenta o chefe do departa- amplos, que contam com a partici- todos, tem havido restrições a no-
mento. Confira a seguir, na íntegra, pação de vários, se não de todos os vas contratações na USP, o que faz
a manifestação. docentes do Departamento, sempre com que a abertura de novas vagas
“Esta chefia tomou conhecimen- com o aval final do Conselho. Em para a contratação de docentes seja
to, apenas recentemente, da inten- discussões acadêmicas recentemente bastante difícil na atual conjuntura.
ção do Dr. Neves em se aposentar. realizadas em reuniões do conselho, Mais uma vez, existe pouco espaço
Este fato é, realmente, bastante pre- a importância da área de Antropo- de ação para a chefia do departa-
ocupante, tendo em vista a possibili- logia Biológica foi reconhecida por mento nessa direção.
dade de uma eventual descontinui- seus membros, tanto que, ficou deci- De qualquer modo, apesar das
dade dos trabalhos de investigação dido que, em vagas futuras para do- limitações e dificuldades que se
desenvolvidos pelo Laboratório de cente, esta seria uma área prioritária, apresentam o Departamento de
Estudos Evolutivos Humanos (e das juntamente com a de Licenciatura, Genética e Biologia Evolutiva do
valiosas coleções que ele abriga). também detectada como importante IB-USP continuará envidando es-
O Departamento está ciente deste para o departamento, e que, atual- forços no sentido de preservar suas
risco e da grande importância deste mente, também carece de docentes; linhas de investigação, particular-
laboratório no cenário nacional e (2) por normas regimentais, o in- mente da Antropologia Biológica,
internacional. O Dr. Neves é um gresso de docentes nas universida- que tantas contribuições importan-
docente e pesquisador de enorme des públicas estaduais se dá através tes têm dado para o conhecimento
inserção acadêmica na Universida- de concurso público. Assim sendo, da evolução de nossa espécie.”

106
Revista Adusp Novos olhares Dezembro 2015

Crise do jornalismo
leva ECA a adaptar o
currículo do curso
Luciano Victor Barros Maluly
Professor da ECA-USP
Daniel Garcia

Debates como o realizado pela Adusp


no Auditório Lupe Cotrim (ECA, 2012)
indicam vitalidade do jornalismo
alternativo e independente
representado por profissionais como
Alberto Dines e Lúcio Flávio Pinto,
frente ao jornalismo mainstream
praticado sob o comando das famílias
Marinho, Civita e outras

Memória Globo
Daniel Garcia

Fábio Rossi/Agência Globo

107
Dezembro 2015 Revista Adusp

O professor Dennis de Oliveira, chefe do Departamento de


Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP,
aborda as mudanças que desafiam os jornalistas e assinala o caráter
singular do jornalismo, que possui estética, ética e metodologia
próprias, as quais lhe conferem caráter transversal frente às diferentes
plataformas de mídia. Estudioso do jornalismo alternativo e da
cultura popular, Dennis critica a cômoda superficialidade do
jornalismo mainstream praticado pelas empresas monopolistas

O professor Dennis de Oliveira de discriminação como o racismo, o DENNIS. Como princípios éti-
é considerado um dos principais machismo e a homofobia, bem co- cos necessários na abordagem das
estudiosos em comunicação, cultu- mo a outros comportamentos que pautas, das fontes e da linguagem
ra popular e jornalismo alternativo desrespeitem os direitos humanos. jornalística. Racismo, machismo e
do Brasil. Como pesquisador e do- Também rejeita o emprego de este- homofobia, para citar os principais
cente, defende o diálogo como ar- reótipos no tratamento dos grupos procedimentos de desrespeito a di-
ma contra o autoritarismo e o pre- subalternizados, como mulheres, versidade e aos direitos humanos
conceito, tanto que, na sua tese de negros e homossexuais. se expressam em todas as relações
livre-docência, discute o jornalismo O Curso de Comunicação Social cotidianas e o maior problema de
por meio do pensamento do edu- da ECA, com habilitação em jorna- tudo isto é quando tais práticas são
cador Paulo Freire. Recentemente, lismo, vive uma reforma curricular, “naturalizadas” ou ainda são vistas
assumiu a chefia do Departamen- com a finalidade de adaptação “à em uma dimensão menor que elas
to de Jornalismo e Editoração da situação da profissão de jornalista, realmente têm. Por isto, o jorna-
Escola de Comunicações e Artes que passa por uma crise”, segun- lismo, como atividade intimamen-
(ECA-USP), onde leciona desde do Dennis. A seu ver, o jornalismo te ligada aos valores democráticos,
2003 e estudou na graduação e na transcende as linguagens e as mídias deve ter como eixo central nos seus
pós-graduação. A nova função pro- e sobreviverá à crise, por ser “uma procedimentos o combate tenaz a
põe desafios e discussões em torno modalidade singular de comunica- estas formas de discriminação bem
do jornalismo, como a defesa dos ção”. Além disso, é preciso superar como a outros comportamentos de
direitos humanos, as contestadas a mediocrização e buscar alternati- desrespeito aos direitos humanos.
experiências pedagógicas, a conver- vas: “O coração do jornalismo é a Quanto a isto, o jornalismo deve ter
gência digital, a carreira docente, reportagem e o lugar do jornalista é nitidamente um lado e não só co-
a reforma curricular e a crise na na rua e não no gabinete”. mo posição, mas como prática. Por
Grande Imprensa. exemplo, quando falamos na lin-
Na conversa a seguir, Dennis Seus estudos (bem como sua ati- guagem, é puro machismo a recusa
explica que o jornalismo, “como vidade política) tocam na questão dos jornalistas em chamar a atual
atividade intimamente ligada aos dos direitos humanos. Dessa forma, mandatária do país de “presiden-
valores democráticos”, deve ter co- como você aborda temas como a ta” como o movimento feminista
mo “eixo central nos seus procedi- igualdade e a diversidade em suas reivindica para marcar a condição
mentos” o combate tenaz a formas aulas de jornalismo? de mulher. Como é racismo tratar

108
Revista Adusp Dezembro 2015
Daniel Garcia
DENNIS. Aos poucos isto está
acontecendo, ainda há uma certa
prevalência dos meios impressos,
porém existem projetos interessan-
tes como a Agência Universitária de
Notícias (AUN), que nasceu como
veículo impresso e hoje é digital,
e vem incorporando a linguagem
multimidiática. Entretanto, acre-
dito que ainda é preciso implantar
uma reflexão mais aprofundada so-
bre essa linguagem na produção da
informação, que implica estudar as
possibilidades várias que as plata-
formas digitais geram para a produ-
ção e apropriação da informação.
Professor Dennis de Oliveira
Entretanto, sou da opinião que jor-
estes grupos subalternizados — mu- Jardim São Remo foi agregando ou- nalismo transcende as linguagens e
lheres, negros, homossexuais — a tros valores importantes para o fazer os suportes, ele tem particularida-
partir de estereótipos. jornalístico, como a questão ética, o des que transversalizam todas estas
compromisso político com as classes possibilidades, que são a sua ética,
O curso de jornalismo da Uni- subalternizadas, a necessidade de se a sua metódica e a sua estética co-
versidade de São Paulo possui uma ampliar o escopo da cobertura jor- municativa.
disciplina em que os alunos elabo- nalística para além dos cinturões de
ram um jornal destinado à Comu- ferro das esferas do poder político e Como motivar os colegas a en-
nidade São Remo, em São Paulo. econômico, e de um fazer jornalísti- frentarem novos desafios na gradua-
Como surgiu essa ideia e por que co fora dos gabinetes das redações. ção e na pós-graduação?
essa experiência ainda é contestada O aluno de jornalismo da ECA DENNIS. Há uma dissociação
por muito estudiosos da área? inicia o seu aprendizado em jor- entre o ensino, a pesquisa e a ex-
DENNIS. A disciplina surgiu há nalismo com esta rica experiência, tensão. Isto tem criado professores
21 anos, mais especificamente em que demonstra que as ações exten- que consideram mais importante
setembro de 1994 por iniciativa do sionistas da universidade são uma o ensino, outros que acham que
professor Manuel Carlos Chaparro. dimensão especial de construção do é a pesquisa e outros, a extensão.
Na ocasião, esse professor ministra- conhecimento e de aprendizado. A USP é uma universidade que se
va uma disciplina chamada “Labora- notabiliza pela pesquisa, pela pro-
tório de Texto”. A iniciativa de criar O Departamento de Jornalismo dução do conhecimento. Há vários
um jornal comunitário, inicialmente e Editoração possui publicações tra- docentes envolvidos nisto. Porém, o
um mural, deveu-se à constatação dicionais, como o  Jornal do Cam- que falta é estabelecer pontes entre
do professor de que o texto jorna- pus, o  Notícias do Jardim São Re- esta produção de conhecimento,
lístico depende do seu público. Daí mo,  o  Suplemento Claro!  e a Revista que é notável, e as atividades de en-
então que o desafio de escrever para Babel, esta agora apenas  on-line. É sino e mesmo de extensão.
um público com perfil radicalmente possível dizer que o Departamento A extensão não pode ser vis-
distinto do aluno da USP seria um segue o atual quadro de migração ta apenas como eventos, uma vi-
aprendizado interessante. Com o dos periódicos impressos (jornais e são pobre e superficial. É uma
tempo, a experiência do Notícias do revistas) para a versão digital? dimensão de produção de conhe-

109
Dezembro 2015 Revista Adusp
cimentos, difere da pesquisa por modalidade singular de comunica- danças que a sociedade, em espe-
ter metodologias singulares. O que ção, transcende as mídias. Foi com cial a brasileira, vem passando. Por
se necessita é uma discussão mais esta preocupação que foi elaborada isto, esta crise. Nos meus tempos
aprofundada do projeto político- a nova proposta de grade curricu- de estudante de jornalismo, nos
pedagógico da universidade e dos lar, que inclui determinadas práti- anos 1980, todos nós chegávamos
seus cursos, e como isto se rever- cas jornalísticas ausentes no atual na aula com um jornal ou revista
bera nas ações de ensino, pesquisa currículo, como o jornalismo orga- debaixo do braço. Hoje, raramente
e extensão. Com isto, os professo- nizacional; ampliando o prazo para isto acontece. Determinados te-
res ficariam menos desorientados a produção do Trabalho de Conclu- mas, como a homossexualidade, o
quanto a estas exigências e com- são de Curso, que passa a ser de um racismo, a violência contra a mu-
preenderiam melhor os seus papéis ano, sendo seis meses para elabora- lher, a vida nas favelas, são muito
dentro dos departamentos, núcleos ção do projeto e seis para execução; mais retratados nas telenovelas do
de pesquisa, unidades etc. regulamentando os estágios que que no jornalismo e isto é muito
passam a ser permitidos somente complicado, porque telenovela é
O Curso de Comunicação So- após o quinto semestre; instituindo ficção e não tem compromisso com
cial, com habilitação em jornalismo, as atividades complementares para o interesse público e muito menos
passa por uma reforma curricular. incentivar os alunos a participarem com a veracidade das informações.
A nova proposta trará benefícios à de atividades de pesquisa e exten- Vejo uma mediocrização geral
formação profissional ou será apenas são na universidade; e fomentando nas redações, comentários e aná-
uma mudança nos horários e nos um campo de reflexão crítica sobre lises superficiais e movidos muito
nomes de disciplinas? o jornalismo e não apenas (embora mais por dogmas do que por argu-
DENNIS. A nova proposta isto continue) das mídias e da socie- mentações lógicas, reportagens pa-
adapta o curso à situação da pro- dade em geral. drão “Boletim de Ocorrência” que
fissão de jornalista, que passa por se satisfazem apenas com decla-
uma crise. Esta crise do jornalismo Existe uma crise nas grandes em- rações de fontes dos “dois lados”,
decorre do fato de que o jornalista presas de jornalismo, com o retorno tudo isto como produto de uma ro-
perdeu o monopólio da novida- da demissão em massa de profissio- tineirização dos procedimentos de
de e da produção da informação. nais da área. Como um dos poucos produção jornalística. O que é mais
A informação circula em grande professores que trabalham com o grave é a arrogância de vários cole-
quantidade independentemente da jornalismo popular e/ou alternati- gas, em especial os que comandam
mediação jornalística. O que fazer vo, é possível dizer que existe uma as redações, que se recusam a ver
diante disto? Definir as fronteiras relação deste momento com o mo- criticamente esta situação.
do que é e não é informação jor- nopólio dos meios de comunicação Por outro lado, esta crise tem
nalística. E tal modalidade de in- de massa no Brasil, em especial do motivado vários profissionais a
formação pode circular em vários Grupo Globo? buscarem alternativas, seja em ter-
suportes, desde as mídias tradicio- DENNIS. O que existe é uma mos de plataformas e linguagens,
nais até as novas plataformas. crise de credibilidade das mídias seja em projetos midiáticos, o que
O curso de jornalismo tem que hegemônicas. A sociedade hoje é muito positivo. Gosto muito de
deixar de ser um curso para ensinar desconfia do jornalismo pratica- uma frase do Gay Talese que diz
a fazer jornal impresso, on line, de do por estes grupos, que se refu- que prefere entrevistar os perdedo-
rádio e de TV para ensinar jorna- giaram no comodismo dos seus res ou anônimos, pois os famosos e
lismo — isto é, quais são as carac- monopólios, acreditam que fazer vencedores tem um discurso pronto
terísticas centrais desta atividade? jornalismo é simplesmente seguir e previsível. O coração do jornalis-
Nem tudo que temos nas mídias é determinados procedimentos téc- mo é a reportagem e o lugar do jor-
jornalismo; e jornalismo, como uma nicos e não acompanharam as mu- nalista é na rua e não no gabinete.

110
Revista Adusp Ditadura militar Dezembro 2015

Violência do regime
intimidava docentes,
lembra Emília Viotti
Pedro Estevam da Rocha Pomar
Editor da Revista Adusp

Daniel Garcia

“Afora os atos de solidariedade


individual, como a dos professores
Sérgio Buarque de Holanda e
Antonio Candido de Mello e Souza,
que compareceram às sessões da
Auditoria Militar, e as manifestações
de solidariedade de parte dos alunos e
de alguns colegas, não houve reação”,
relembra a historiadora Emília
Viotti, professora da FFLCH-USP, a
propósito do Inquérito Policial Militar
que investigou suas atividades e de sua
aposentadoria pelo Ato Institucional
número 5 em 1969. Emília lecionou na
Universidade de Yale de 1973 a 1999,
quando voltou ao Brasil

111
Dezembro 2015 Revista Adusp
A jovem professora Emília Viotti Adusp. Em 1969, depois de pro-
mal iniciara sua carreira no curso de ferir aula inaugural na USP, inti-
História da Faculdade de Filosofia, tulada A crise da Universidade, e
Ciências e Letras da USP — hoje debater o assunto com o ministro
Faculdade de Filosofia, Letras e Ci- Tarso Dutra, da Educação, em um
ências Humanas (FFLCH) — quan- programa de TV, a senhora foi pre-
do foi compulsoriamente aposentada sa, segundo os Inventários da UFS-
por obra do Ato Institucional número Car. A senhora pode relembrar esse
5, o AI-5. Assim, foi no exterior, mais episódio e seus desdobramentos?
precisamente na Universidade de Ya- EMÍLIA VIOT TI. L embro-
le, ao longo de vinte e cinco anos, me  perfeitamente. Essas coisas
que Emília tornou-se uma das mais nunca se esquecem. A sequência
importantes historiadoras brasileiras. dos fatos é o único detalhe sobre o
Quando ainda lecionava na FFL- qual não tenho certeza. De fato em
CH, publicou Da Senzala à Colônia 1969 fui convidada pelo professor
(1966). Depois viriam Da Monar- Eurípedes Simões de Paula para
quia à República (Grijalbo, 1977), proferir a aula inaugural dos cursos
A Abolição (Global, 1992) e por da Faculdade de Filosofia, Ciências
fim Crowns of glory, tears of blood: e Letras da USP (tal como se inti-
the Demerara slave rebellion of 1823 tulava então), na qualidade de mais
(New York Oxford University Press, jovem livre docente. Pouco tempo
1997), publicado um ano depois no depois fui aposentada pelo gover-
Brasil pela Companhia das Letras. no militar. Meu nome foi incluí-
Além dessas obras, que se torna- do numa lista que continha  vários
ram referenciais, publicou diversos outros professores da  Universida-
capítulos de livros e artigos. de que também foram afastados.
A convite da Revista Adusp, a pro- Nessa época o professor Michael
fessora respondeu a algumas pergun- Hall, que estava no Brasil fazen-
tas referentes ao período ditatorial, à do pesquisas para sua tese, ofere- para minha família, pois eu tinha na
sua trajetória acadêmica nos Estados ceu-me a oportunidade de assumir ocasião três filhos, sendo dois com
Unidos e a questões da historiografia. temporariamente o seu lugar na menos de onze anos, resolvi seguir
Suas respostas, redigidas em estilo le- Universidade de Tulane em New o conselho de meu advogado e fui
ve, conciso e cristalino, dão uma boa Orleans.  Meu advogado, preocupa- dar um curso nos Estados Unidos..
ideia do que se passou na USP e no do, aconselhou-me a sair do Brasil
Brasil naquele momento. por uns tempos, tendo em vista que Revista Adusp. Em abril de 1969
“A violência dos governantes o clima político repressivo tendia a a senhora e outros professores de
intimidava a maioria”, relembra a se agravar. Caio Prado Junior fora renome foram aposentados com-
historiadora e professora emérita preso, condenado a dois anos de pulsoriamente pelo general Costa
da FFLCH e de Yale. “A USP não prisão, e eu estava respondendo a e Silva com base no AI-5. Qual foi
foi responsável pela violência que um processo na Auditoria Militar. a reação do corpo docente frente a
sofremos eu e minha família. Algu- As arbitrariedades e a violência au- esse gesto brutal do regime?
mas pessoas da USP aproveitaram- mentavam dia a dia. Era impossí- EMÍLIA. Hoje é difícil para os 
se da situação política para eliminar vel prever o que poderia acontecer. jovens que não viveram aquela ex-
concorrentes e desafetos. Regimes Apesar das dificuldades que essa periência compreender o compor-
ditatoriais propiciam esses atos”. decisão de sair do  país acarretava tamento das pessoas que viveram

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Revista Adusp Dezembro 2015
sistir à sessão que tratava do meu
e outros casos.  Novamente fui ab-
solvida. Assim terminou o caso. Ou
melhor, deveria ter terminado. A
aposentadoria no entanto foi manti-
da e só anos mais tarde fui chamada
a voltar ao meu cargo na Universi-
dade. Nessa altura já estava ocupan-
do a posição que ocupei até 1999 na
Universidade de Yale e a situação
no Brasil me parecia incerta. Re-
solvi permanecer em Yale. Em 1993
tive um pequeno acidente vascular e
passei a trabalhar meio período até
1999, quando me aposentei.

Revista Adusp. Uma vez apo-


sentada, o que a senhora decidiu
fazer da vida? Que rumos tomou a
sua carreira profissional? Yale foi a
primeira opção?
EMÍLIA. Naquela época (refiro-
me a 1969), recebi um convite do
professor Joseh Love, da Univer-
sidade de Urban-Champaign, para
dar cursos de História da América
Latina por um semestre  naquela
Universidade. Desta vez resolvi le-
naquele período. A violência dos isso ocorreu? var meus fihos comigo. Separei-me
governantes intimidava a maioria. EMÍLIA. De fato houve um do meu marido e aceitei o convite e
Afora os atos de solidariedade in- IPM. Eu fui chamada a depor e vá- fui novamente para os Estados Uni-
dividual, como a dos professores rios colegas também foram chama- dos. Ao final do semestre me candi-
Sérgio Buarque de Holanda e An- dos. Nunca soube quem depusera datei a um cargo no Smith College
tonio Candido de Mello e Souza, contra mim. Nem procurei saber. e fui aceita para dar cursos sobre a
que compareceram às sessões da O mal já estava feito. De que vale- América Latina. No ano seguinte
Auditoria Militar que investigavam ria buscar o responsável, se é que Yale estava contratando um profes-
o meu caso, e as manifestações de houve um? Nunca procurei saber sor para dar cursos sobre a América
solidariedade de parte dos alunos e quem estava envolvido nessa trama, Latina, O professor Richard Morse,
de alguns colegas, não houve reação. ou qual o procedimento seguido. que já me conhecia do Brasil, era o
Na verdade o processo instaurado responsável  pelo setor e amigo do
Revista Adusp. Antes da cassa- contra mim continuou depois da mi- professor Sérgio Buarque de Ho-
ção a senhora já havia sido objeto nha aposentadoria. Fui absolvida na landa e de Antonio Candido. Eu
de um Inquérito Policial Militar, primeira instância, mas o processo me candidatei e fui contratada.
por denúncia de um colega. Quem continuou até a segunda instância. Desde 1973 até 1999 lecionei na
era esse docente e em que contexto Em 1971 fui ao Rio de Janeiro as- Universidade de Yale. Resumido

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Dezembro 2015 Revista Adusp
Daniel Garcia
em poucas palavras esse percurso pa- revisionista”, que envolve historia- forma adequada. Isso torna-se tan-
rece fácil. O que fica oculto são as dores como Daniel Aarão Reis Fi- to mais urgente quanto a herança
inúmeras dificuldades de aprender lho (UFF) e Marco Antonio Villa da Ditadura se faz sentir de forma
uma nova língua com todas as nuan- (UFSCar). No texto “O Sol na Pe- evidente no Brasil de hoje.
ces necessárias para dar uma boa aula, neira”, publicado na Revista Histó-
as dificuldades que meus filhos encon- rica da Biblioteca Nacional (edição Revista Adusp. Coroas de Gló-
traram em se acostumar com a língua 83, 2012), embora reconheça que ria, Lágrimas de Sangue trata da
e as escolas, a falta dos amigos e ami- o país “conheceu cinco generais- escravidão na Guiana Inglesa, um
gas que ficaram no Brasil, a sensação presidentes”, Aarão Reis insiste em pequeno país que os brasileiros
de viver num exílio forçado longe de que a ditadura foi “civil-militar” e costumam ignorar apesar da pro-
nossas tradições e de nossa cultura. chega a afirmar: “É inútil esconder ximidade. O que levou a senhora
a participação de amplos segmentos a pesquisar um objeto tão original
Revista Adusp. Em 1999 a se- da população no movimento que e ao mesmo tempo tão distante de
nhora se tornou professora eméri- levou à instauração da ditadura em uma certa historiografia que ignora
ta da FFLCH. Ouve alguma outra 1964. É como tapar o sol com a pe- nossos vizinhos?
iniciativa da USP para reparar os neira. As Marchas da Família com EMÍLIA. Uma parte significativa
danos causados pela aposentadoria Deus pela Liberdade mobilizaram do meu trabalho como historiado-
compulsória em 1969? dezenas de milhões [sic] de pessoas, ra tratou de múltiplos aspectos da
EMÍLIA. A USP não foi res- de todas as classes sociais, contra o escravidão  e da Abolição no Bra-
ponsável pela violência que sofre- governo João Goulart”. sil. No início  o meu interesse era
mos eu e minha família. Algumas Como a senhora enxerga essas estudar como fora possível fazer,
pessoas da USP aproveitaram-se da visões revisionistas, que surgem sem provocar uma convulsão social,
situação política para eliminar con- coincidentemente num momento uma reforma tão importante como
correntes e desafetos. Não se pode histórico em que os familiares de a Abolição. Nada mais natural do
esperar desses que reconheçam o mortos e desaparecidos políticos (e que analisar esse processo no Brasil
mal que fizeram. Regimes ditato- a maioria dos ex-presos políticos, e e compará-lo com outras partes do
riais propiciam esses atos. dos exilados e perseguidos) tentam mundo onde a escravidão tivera um
repor a verdade e a memória, e pro- papel semelhante. Quando passei a
Revista Adusp. O então reitor curam fazer justiça, ao passo que os lecionar em Yale entrei em contato
Jacques Marcovitch a nomeou, em generais e o governo insistem em com a documentação referente à re-
2000, para o Conselho Consultivo proteger a impunidade dos agentes volta de escravos em Demerara. A
da USP. Hoje não se fala mais desse da Ditadura Militar? riqueza de informações me atraiu.
Conselho, é como se nunca tivesse EMÍLIA. Acho lamentável, mas Desde logo reconheci que esta me
existido. O que a senhora pode nos compreensível, que os setores res- permitiria escrever a história a par-
dizer dessa experiência? ponsáveis pela repressão tentem tir de múltiplos pontos de vista: um
EMÍLIA. Foi uma experiência ocultar a realidade. O mais difícil é tipo de abordagem que sempre me
muito fecunda;  o convívio com co- entender que liberais façam o mes- atraíra desde  meus primeiros anos
legas interessados no aperfeiçoa- mo. Quem como eu participou di- como aluna do curso de história,
mento do ensino e da convivência retamente do sucedido e foi vítima quando eu me perguntava por que
universitária. Lamento que não te- das arbitrariedades cometidas terá os romances  frequentemente da-
nham dado continuidade a esse em- inevitavelmente uma visão contrá- vam uma visão mais concreta do
preendimento. ria. A discussão desse assunto pre- passado do que os próprios livros
cisa não de um depoimento pessoal, de história. Coroas de Glória, Lá-
Revista Adusp. Voltando à Di- mas de uma análise  ampla que  só grimas de Sangue resultou dessas
tadura Militar: hoje há uma “onda um simpósio poderia examinar de reflexões.

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Revista Adusp Ponto de vista Dezembro 2015

Revisitando
as alternativas
de renda básica
Francisco Nóbrega
Professor titular aposentado do ICB-USP e presidente do Conselho Municipal
da Renda Básica de Cidadania de Santo Antonio do Pinhal (SP)

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Dezembro 2015 Revista Adusp

A renda básica é um direito de qualquer pessoa que não tenha renda suficiente,
qualquer que seja a razão. A crescente eficiência em produção e os grandes avanços
na microeletrônica, inteligência artificial e robótica estão causando uma eliminação maciça
de postos de trabalho. Pesquisas revelam que o avanço contínuo em produtividade
foi acompanhado, nas duas últimas décadas, por uma redução substancial
nas oportunidades de trabalho e pela extinção de ocupações

O debate e as manifestações em aceitam o experimento do Alasca


favor da idéia da renda básica têm como exemplo de renda básica, pois
ganhado importância e alcance glo- paga um dividendo anual e variável, É dever civilizado prover
bal. No Brasil nos mantemos em algo incompatível com um atendi-
uma renda mensal a quem
alerta devido ao sucesso de polí- mento efetivo daqueles em preca-
ticas de transferência de renda (o riedade econômica. não disponha de recursos
Programa Bolsa Família) e também Este texto é um resumo de mi-
para atender às suas
devido à Lei 10.835 de 2004, que nha visão atual sobre como fazer
permanece letra morta, mas indica com que essa utopia se transforme necessidades básicas. O
que a renda básica incondicional numa “protopia”, termo inventado modelo clássico de renda
e universal deve ser instaurada no por Kevin Kelly e que designa um
Brasil, “por etapas”. Muitos veem “avanço humanitário gradual”, ou básica é injusto, porém, ao
o Bolsa Família como uma dessas seja: uma utopia viável. dar dinheiro também aos que
etapas. Tenho acompanhado esta O campo da renda básica é di-
ideia há mais de cinco anos, jun- verso e podemos distinguir duas estão bem economicamente
tamente com outros ativistas, com correntes distintas e extremas.
os quais tentamos criar um projeto Um grupo vê a renda básica
piloto numa pequena cidade, San- como maneira de aumentar a in-
to Antonio do Pinhal (São Paulo). fluência do governo e “eliminar” Essas visões extremas revelam
O projeto foi concebido pelo ex- o trabalho, que enxergam como uma característica importante da
senador Eduardo Suplicy segundo uma forma de escravidão e imagi- proposta: ela atrai pessoas ao lon-
o modelo do Fundo Permanente do nam manutenção integral dos ser- go de todo o espectro político, algo
Alasca (EUA). viços sociais e de decisões centra- que certamente deve ajudar sua
Um recurso considerável precisa lizadas, além do pagamento men- implementação futura. No Brasil,
ser acumulado para que os rendi- sal incondicional e independente diria que o grande divulgador da
mentos sejam suficientes para pa- de trabalho. proposta, o ex-senador Eduardo
gar aos cidadãos a renda básica. O Outro considera a renda básica Suplicy, se inclinaria mais para
projeto permanece na estaca zero, uma ferramenta para reduzir forte- a primeira visão 1­, mas não tanto
pois os doadores imaginados en- mente a atuação do governo, substi- quanto Josué Pereira da Silva, au-
tre indivíduos, empresas e governos tuindo vários programas sociais pe- tor de Por que Renda Básica?2. A
não apareceram. Ademais, entre lo pagamento mensal independente visão mais chegada ao neolibera-
os defensores da idéia, muitos não de trabalho. lismo encontra defensores impor-

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Revista Adusp Dezembro 2015
tantes como Charles Murray3, um Brynjolfsson e McFee4 demons-
libertário americano. traram que o avanço contínuo em
Existe outra coincidência sur- produtividade foi acompanhado, nas
preendente em todas as modalida- duas últimas décadas, por uma re-
Vale notar o sucesso da
des de renda básica divulgadas por dução substancial nas oportunidades experiência feita em Londres,
escrito ou em vídeo: a apresentação de trabalho. Frey e Osborne5 publi-
quando foi dada quantia
unânime do que vou denominar caram estudo muito interessante, en-
“modelo clássico” — a transferên- volvendo 702 ocupações, calculando substancial a cada um de 13
cia mensal feita para todos: ricos, aquelas que estão mais ameaçadas de
moradores de rua crônicos;
classe média, pobres e desempre- extinção em função das tendências
gados. Raramente encontro pes- mencionadas. Os autores estimam ou do experimento recente
soas, entre os defensores da renda que os EUA tem cerca de 47% das em Utah providenciando
básica, que contestem a justiça de ocupações estudadas em risco de ex-
beneficiar aqueles que têm recursos tinção dentro de uma a duas décadas. casas para indivíduos sem
e estão empregados. Essa visão, a Também devemos considerar que habitação; ou no Quênia
meu ver, contrasta com o núcleo da existe uma barreira psicológica im-
proposta que é eliminar a pobreza portante derivada da noção enrai- e Uganda (GiveDirectly)
assim como o resultado mais malig- zada que vincula renda ao trabalho.
no dos programas de ajuda social: a As pessoas terão que superar essa
“armadilha da pobreza” ou arma- percepção como fizemos no passado
dilha da dependência. Esta reside recente com a escravidão, a tortura O modelo clássico possivelmente
no fato de punirmos o sucesso eco- e os direitos de mulheres e minorias, nasceu de nosso preconceito relati-
nômico, removendo os benefícios, finalmente aceitando a solidarieda- vo à renda sem trabalho. Podemos
assim que o indivíduo consegue um de no campo econômico. É dever imaginar que ele veio apaziguar os
emprego ou se torna um empreen- civilizado prover uma renda mensal bem sucedidos, aqueles mais indig-
dedor. A armadilha da dependência a todos sem recursos para atender nados com a idéia de dar dinheiro
faz com que o beneficiário tema a às necessidades básicas. No entan- “à custa de nada”. O modelo clás-
perda do benefício e o consequen- to considero o modelo clássico de sico talvez pretenda “comprar” a
te enfrentamento da competição renda básica injusto ao distribuir di- adesão dessa classe fazendo-os tam-
externa, não se empregando nem nheiro também aos que estão bem bém beneficiários. No entanto de-
empreendendo. economicamente. Essa idéia seria vemos dar sim “dinheiro por nada”,
A renda básica é um direito de aceitável se imaginarmos uma popu- porque as ricas sociedades de hoje
qualquer pessoa que não tenha ren- lação que esteja iniciando sua vida devem assumir a responsabilidade
da suficiente, qualquer que seja a com o mesmo nível de renda. Neste pela deficiência de oportunidades
razão. A justificativa lógica repousa caso o benefício seria igual para to- de emprego. Dando dinheiro aos
no fato de a sociedade ter sido inca- dos. Mas todos os países registram necessitados e deixando-os escolher
paz de oferecer a todos oportunida- séculos de desigualdade econômica. o que fazer com ele foi demonstra-
des de emprego no setor público ou Na Suíça um de cada treze cidadãos do ser não apenas justo, mas tam-
privado assim como possibilidades precisa de ajuda do Estado. No Bra- bém economicamente eficiente.
para empreender. A crescente efi- sil cerca de um quarto da população Além de experimentos como
ciência em produção e os grandes é pobre e se encontra amparado pe- aquele da Índia6, vale notar o su-
avanços na microeletrônica, inte- lo Bolsa Família. O custo de benefi- cesso da experiência feita em Lon-
ligência artificial e robótica estão ciar a todos vai representar uma bar- dres7 quando foi dada uma quan-
causando uma eliminação maciça reira formidável para a aprovação tia substancial a cada um de treze
de postos de trabalho. dessa política. moradores de rua crônicos; ou do

117
Dezembro 2015 Revista Adusp
experimento recente em Utah8 pro- o beneficiário progrida economica- tura também permitem a criação de
videnciando casas para indivíduos mente. Caso ainda não tenha renda muitos postos de trabalho. Em ter-
sem habitação. Os resultados ex- a pessoa ou família poderá solicitar mos de viabilidade econômica, esta
celentes custaram menos do que a a permanência no programa por proposta busca a eliminação da ar-
cidade gastava para cuidar do pro- mais um período. Portanto quem madilha da dependência ao cortar as
blema em ambos casos. Também o estiver necessitado ou cair em ne- condicionalidades oficialmente por
sucesso da atuação da GiveDirectly cessidade econômica será ajudado. alguns anos. O gasto será algo supe-
no Quênia e Uganda ressaltam o A quantia paga deve ser suficien- rior ao atual com o programa Bolsa
acerto de focar nos pobres incondi- te para as necessidades básicas da Família pois indivíduos também po-
cionalmente. Muitos outros são co- família ou indivíduo. Aqueles que deriam se inscrever no programa. A
nhecidos, todos demolindo receios. desejarem melhorar de vida irão despesa será muito inferior àquela
A rede de proteção social exis- buscar emprego em tempo parcial exigida pelo “modelo clássico”, que
tente em todos os países deve ser ou integral, ou iniciar negócio pró- seria universal. Os valores bastante
usada. A primeira medida entre nós prio. A renda básica ou mínima de- modestos do Bolsa Família atual de-
seria remover as condicionalidades ve ser acompanhada, idealmente, de vem ser reajustados paulatinamente.
ligadas à Bolsa Família e auxílio de- instalações comunitárias de supor- Reduzir a incerteza econômica
semprego. A burocracia deve anali- te e educação onde for necessário. resultará em muitos benefícios pa-
sar as solicitações dos necessitados, Paralelamente, algumas sugestões ra a sociedade: haverá significativo
famílias e indivíduos sem renda. apresentadas no estudo “Get Ame- impacto positivo na saúde mental
Após ingressarem no programa, os rica Working!”9 poderiam ser imple- dos beneficiários ao abater a ansie-
beneficiários terão bastante tempo mentadas no sentido de fazer altera- dade causada pela incerteza; a so-
(alguns anos) até que a ajuda incon- ções na estrutura de impostos para ciedade estará mais segura; e, mais
dicional seja encerrada. Este longo reduzir a despesa das empresas com importante, a armadilha da pobreza
intervalo vai anular a “armadilha os empregados, o que aumentaria seria desativada, liberando a ener-
da dependência” ao aumentar sig- a oferta de postos de trabalho. Am- gia criativa de homens e mulheres.
nificativamente o tempo para que pliação e manutenção de infraestru- francisco.nobrega@gmail.com

Nota do Autor.
As opiniões aqui exaradas são responsabilidade exclusiva do Autor, não sendo posição oficial do Conselho
acima mencionado. Um texto semelhante, em inglês, está sendo submetido à sessão de opiniões do Basic Income
Earth Network (BIEN). Agradeço a Marina P. Nóbrega por suas sugestões.

Nota de rodapé
1- Renda de Cidadania, Eduardo M. Suplicy. Cortez Editora, 2013.
2- Por que Renda Básica?, Josué Pereira da Silva. Annablume, 2014.
3- In Our Hands - a plan to replace the welfare state, Charles Murray, The AEI Press, 2006.
4- Race Against the Machine - how the digital revolution is accelerating innovation, driving productivity, and irreversibly
transforming employment and the economy. Erik Brynjolfsson and Andrew McFee, 2011, Digital Frontier Press, Mass, USA.
5- The future of employment: how susceptible are jobs to computerization?, Carl Benedikt Frey and Michael A. Osborne, 2013,
http://www.oxfordmartin.ox.ac.uk/downloads/academic/The_Future_of_Employment.pdf
6- Basic Income: a Transformative Policy for India. Sarath Davala, Renana Jhabvala, Soumya Kapoor Mehta, and Guy Standing.
New Delhi: Bloomsbury Publishing India, December 2014.
7- Sem-teto de Londres: http://www.washingtonpost.com/opinions/free-money-might-be-the-best-way-to-end-
poverty/2013/12/29/679c8344-5ec8-11e3-95c2-13623eb2b0e1_story.html
8- O experimento de Utah: http://www.newyorker.com/magazine/2014/09/22/home-free
9- Get America Working!: http://www.getamericaworking.org

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