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6/02/2015

Fabular é preciso

Formado em Letras e mestre pela


Universidade de São Paulo, Jorge Miguel Marinho é professor de Literatura,
coordenador de oficinas de criação literária, roteirista, ator e escritor. Entre
suas obras estão O menino e o fantasma do menino, Uma história, mais outra e
mais outra e Lis no peito, esta última premiada em 2006 com o Selo Altamente
Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), o
Prêmio Jabuti de melhor livro juvenil e o White Ravens. Suas histórias são
marcadas por uma atmosfera em que sonho e realidade se misturam no
cotidiano das personagens.

Fabulação: um mundo onde todos sonham


Por Jorge Miguel Marinho

Fabular é preciso, fabular faz parte da natureza humana, fabular é um modo de


ser que acorda em cada um de nós o apelo ao sonho, a necessidade da
fantasia, a vivência da imaginação. Ninguém consegue viver sem conviver com
momentos de fabulação, que na arte literária acontece do feliz casamento do
sonho com o real. E é nesse jogo de contar e imaginar a vida surpreendida pelo
poder encantatório e inventivo da ficção que o ato de fabular revela como o
mundo é e como o mundo poderia ser.

Por isso mesmo a fabulação humaniza, não só por estar sempre voltada para a
condição humana, mas também, e talvez sobretudo, por atender à carência de
fantasia como contraponto da inteligência lógica, que faz da realidade um
território árido e carente de imaginação. Para viver e sobreviver, é preciso
sonhar, e sonhar com palavras é um modo de reinventar a vida e fazer da
existência um lugar de descobertas e de revelações.

São muitas as formas de fabulação como prosa ou poesia: o conto, a novela, a


peça de teatro, a história em quadrinho, a canção, a anedota, o causo e tantas
outras. Todas elas ganham forma e cor por força do imaginário, que faz parte
da natureza humana e, no universo literário, é sempre experiência criativa no
gesto de quem escreve, no movimento de quem lê.

Existe uma historieta, “A fábula do oleiro”, que identifica o traço lúdico de quem
fabula como aquele que brinca, que se diverte, que subverte as normas, que
reinventa a vida e sonha nas palavras o sonho de todos. Sugerindo mais do que
afirmando, o fabulador diz:
“Uma criança se aproxima de um oleiro que molda bonecos no barro e pendura
as estatuetas num varal para secar. Chega perto, admira os seres enfileirados,
fica fascinada com a perfeição daquelas pequenas criaturas que se multiplicam
nos movimentos exatos das mãos do escultor. Mesmo assim, pergunta:
– Por que você está fazendo tantos bonecos, se o mundo já está cheio de
gente?
E o oleiro, sem tirar os olhos e as mãos do trabalho, responde:
– É para preencher os vazios da vida, e não faz mal nenhum equilibrar as
criaturas de barro com os homens reais.”1

Esta breve narrativa, que se afasta da fábula de ensinamento e se oferece


como matéria de indagação, mostra como a fabulação presente na arte literária
joga a favor da vida e extrai do sonho e da fantasia um modo de corrigir o real.
O ato de fabular ou recriar o universo busca preencher o que o mundo tem de
falta ou de carência, anunciando de forma muito expressiva um mundo onde
todos devem inventar criaturas para “preencher os vazios da vida” com o
exercício da fabulação.

É aqui que a literatura entra como um direito de todos e um componente


essencial para uma vida motivada pelo equilíbrio harmonioso entre porções do
real e porções da fantasia. Sem o sonho de fato ou o sonho presente no espaço
da fabulação, seria impossível viver.

O professor Antonio Candido identifica o ato de sonhar como enseada


necessária para a existência do ser:
“Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar vinte e
quatro horas sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. [...] E
durante a vigília a criação ficcional ou poética [...] está presente em cada um
de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos...” 2
Muitos escritores e estudiosos reconhecem que a fabulação pulsa nas camadas
mais profundas do homem e ele precisa transitar no universo da fabulação para
viver a experiência lúdica da literatura, sonhar sonhos possíveis e impossíveis,
fazer o trajeto da fantasia para existir. É bom lembrar alguns:

“Fabular é uma questão de saúde”, diz Deleuze.


“Quanto é melhor quando há bruma/ Esperar por Dom Sebastião quer ele
venha ou não”, insiste Fernando Pessoa.
“Invente uma canção de roda para que o povo cante, principalmente as
crianças”, confirma Thiago de Mello.
“O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o
homem sonha sempre”, celebra William Shakespeare.
“Sonhe com aquilo que você quer ser/ Porque você possui apenas uma vida”,
clama Clarice Lispector.

Apenas uma palavra final: a fabulação sempre se anuncia como uma voz
coletiva que oferece palavras e cores acolhedoras e revela “um mundo onde
todos sonham”.

1
 Fábula popular recriada por mim em A maldição do olhar. São Paulo: Biruta,
2008, p. 112.
2
 CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo/Rio
de Janeiro: Duas Cidades, 2004, p. 174-5.

http://www.plataformadoletramento.org.br/em-revista/384/fabular-e-preciso.html

04/03/2020

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