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O ESTADO E O DIREITO NAS RELAÇÕES PRIVADAS E A AUTONOMIA DA VONTADE

State and law in the private relations and the autonomy of the will

Patrícia De Battisti Almeida1


Fabio Rodrigues Teixeira de Almeida2

Resumo: O presente artigo visa discutir o tema Estado e o Direito nas relações privadas
e a conformação com a autonomia da vontade e a teoria da justiça de acordo com
John Rawls. O método de pesquisa utilizado foi da revisão bibliográfica. Conclui-se que
se adotada a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas
relações privadas verifica-se que a autonomia privada é mais limitada pela
Constituição do que se adotar a teoria da eficácia indireta ou mediata dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares.

Palavras-Chave: John Rawls; Liberdade; Autonomia da vontade; Autonomia privada;


Direitos Fundamentais.

Abstract: This article aims to discuss State and Law in private relations, considering the
autonomy of will and John Rawls’ theory of justice. The chosen methodology is that of
bibliographic research. In conclusion, the direct efficacy of the fundamental rights
leads to a greater limitation of the private autonomy by the Constitution than the
theory of indirect efficacy of fundamental rights.

1
Mestre e Doutoranda em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (FADISP-SP).
Mestre em Administração de Empresas pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV-
SP). Advogada. Email: patigralmeida@gmail.com
2
Mestrando em Direito pela Escola Paulista de Direito (EDP/SP). Graduado em Direito pela Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP). Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo.
Email: frtalmeida@gmail.com

1
Key Words: John Rawls; Freedom; Autonomy of the will; Private autonomy;
Fundamental rights.

1. Introdução

Os direitos fundamentais em sentido estrito são os direitos do homem que


estão positivados constitucionalmente e direitos humanos referem-se as posições
jurídicas comuns a todos os povos em todos os tempos (SARLET, 2006, p.35).
Nos direitos fundamentais o Estado é a condição para a existência destes
direitos positivados na ordem jurídica. Por outro lado, os direitos humanos antecedem
o Estado, são universais, inerentes ao indivíduo e independem de serem positivados
(DUQUE, 2014, p.52).
A eficácia vertical dos direitos fundamentais refere-se à relação entre cidadão e
Estado. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais trata da incidência destes
direitos nas relações privadas.
A autonomia da vontade pode ser entendida como plena liberdade para as
partes estabelecerem as relações privadas, estabelecerem todas as regras que regerão
o acordo firmado sem qualquer limitação pelas normas jurídicas.
Na autonomia privada as partes possuem liberdade para entabular os seus
acordos desde que sejam respeitadas as normas jurídicas vigentes. Ou seja, o Estado,
por meio do ordenamento jurídico, limita a autonomia da vontade, transformando-a
em autonomia privada.
No final do século XVIII e início do século XIX, a autonomia da vontade
caracterizada pelo voluntarismo constituía o cerne das relações privadas no sistema do
liberalismo econômico (Absenteísmo Estatal). As partes eram livres para estabelecer o
conteúdo, as regras e o procedimento que iriam reger os negócios jurídicos por elas
entabulados. A eficácia dos direitos fundamentais era apenas vertical.
Após a primeira guerra, o Estado de Bem Estar Social passa a ser o foco das
Constituições, notadamente a da Alemanha (Weimar – 1919). O Estado passa a intervir

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na economia e a regular as relações privadas. As prestações positivas do Estado são
exigidas como forma de se alcançar a igualdade substancial. Por exemplo, surgiram as
normas jurídicas de proteção aos trabalhadores.
As lições aprendidas com o final da segunda guerra mundial e os horrores do
holocausto inspiraram a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948.
Estabelece-se, assim, um núcleo mínimo de direitos humanos que se espera que se
façam presentes nas Constituições dos Estados.
Nesse contexto histórico, desponta a autonomia privada, em que a liberdade
das partes para celebrar negócios jurídicos é limitada pelas determinações do
ordenamento jurídico. As relações privadas devem ser regidas pela boa fé e a norma
jurídica deve tutelar a parte mais frágil nas negociações.
Posteriormente, desenvolvem-se as teorias da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais: Teoria da eficácia indireta ou mediata (os direitos fundamentais
incidem indiretamente nas relações entre particulares por meio de cláusulas gerais
existentes no próprio direito privado e não incidem diretamente nas relações privadas)
e Teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, a qual defende que
esses direitos se aplicam diretamente às relações entre particulares, como por
exemplo, no Brasil, dado que a Constituição Federal de 1998, em seu artigo 5º,
parágrafo 1º, estabelece que as normas que definem os direitos e garantias
fundamentais possuem aplicação imediata.
O Supremo Tribunal Federal, na década de 90, considerou em uma decisão,
pela primeira vez, a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. No RE
58.215/RS, estabeleceu que, no caso de exclusão de associado de cooperativa
decorrente de conduta contrária ao previsto no Estatuto, deve-se respeitar o devido
processo legal e possibilitar o exercício da ampla defesa. No mesmo sentido, no
julgamento do RE 201.819/RJ, a Corte Maior decidiu que a União Brasileira dos
Compositores, associação privada, deve respeitar o devido processo legal e o direito de
ampla defesa do associado excluído por não respeitar os deveres estatutários.
Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 1.008.625/SP o
relator Ministro Luiz Fux entendeu que a recusa da Associação das Farmácias de

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Município de Jundiaí e região (APROFARMA) quanto ao ingresso de Airton Alves
Rodrigues e Cia LTDA EPP na referida associação é injustificada e que o direito de
associação deve preponderar no caso. In verbis: “a jurisprudência do STF é firme no
sentido de reconhecer a eficácia horizontal dos direitos fundamentais”.
Nos julgados se observa que a autonomia privada garantida pela Constituição
Federal de 1988 às associações, ou qualquer outra instituição privada, deve se sujeitar
à incidência dos princípios constitucionais que asseguram os direitos fundamentais dos
associados. Isto é, a autonomia privada é limitada juridicamente, porque não pode ser
exercida com desrespeito aos direitos de outrem.
Neste artigo, após traçar um breve panorama histórico do conceito de
autonomia da vontade a partir de conceitos de John Rawls, serão examinados aspectos
das relações entre o Estado e o direito nas relações privadas quanto a liberdade,
autonomia da vontade e autonomia privada.

2. John Rawls
John Rawls, em seu livro “Teoria da Justiça”, apresenta o tema das liberdades
individuais e igualdade de oportunidades a partir da perspectiva Kantiana. Sua análise
tem como base os conceitos de autonomia, igualdade e liberdade de Kant.
Posteriormente, reviu sua teoria e incorporou à obra “Política como liberdade” um
conceito político de pessoa. (RAWLS. 2000. p.356).
O conceito de imparcialidade na obra “Teoria da justiça” é construído a partir
dos princípios de justiça que são formulados com base no contratualismo. Para o
autor, deve haver igual oportunidade de acesso aos bens essenciais para uma vida
digna a todos ao mesmo tempo que o Estado não determine qual seria a melhor forma
de vida. A não intervenção estatal permite que se preserve o pluralismo de concepções
daquilo que pode ser compreendido como uma boa forma de vida.
A justiça é estudada sob a perspectiva das instituições humanas e não com base
em cada ação humana individualmente tomada.
O autor, com forte influência Kantiana, assenta a sua teoria em base hipotética
e não histórica, utilizando-se do fundamento racional para obtenção dos princípios da

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justiça, que é regida pela imparcialidade existente no momento inicial em que os
homens discutem os princípios da justiça em absoluta igualdade. Esse momento é a
denominada posição original em que todos os homens estariam submetidos ao “véu
da ignorância”, o qual teria o poder de impedir que os interesses imediatos dos
indivíduos interferissem na integridade do procedimento deliberativo. Dessa maneira,
seria possível a tomada de decisão prudente em que a liberdade e a igualdade seriam
idealmente garantidas (RAWLS, 2000, p.14).
Nessa situação de equidade original as pessoas escolheriam os princípios da
justiça e toda a estrutura fundamental da sociedade estabelecendo um contrato social
sustentado em dois pilares:
1) Princípio da igualdade: cada pessoa tem o mesmo direito inalienável a um
sistema plenamente adequado de liberdades fundamentais iguais compatível com o
sistema idêntico de liberdades para todos;
2) Princípio da Diferença: as desigualdades sociais e econômicas devem
satisfazer duas condições: a) elas devem estar vinculadas a cargos e funções abertos a
todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; b) elas devem
redundar no maior beneficio possível para os membros menos privilegiados da
sociedade.

Rawls procura realizar uma composição dos valores liberdade (primeira


dimensão dos direitos fundamentais), igualdade (segunda dimensão) e fraternidade
(terceira dimensão). (RAWLS, 2000, p.15).
O princípio da igualdade trabalha a primeira dimensão dos direitos
fundamentais: liberdade - todos têm o mesmo direito inalienável a um tratamento
igual no que diz respeito à liberdade.

O princípio da diferença aborda a igualdade e a fraternidade (segunda e


terceira dimensões). Primeiro o autor buscou conciliar a ideia de liberdade para todos
com a ideia de igualdade. Em seu conceito de justiça, Rawls apresenta igualdade como
igualdade de oportunidades. O que significa dizer que a sociedade deveria se
estruturar de um modo em que ela pudesse oferecer oportunidades iguais a cada um

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dos cidadãos. O que não significa que seria desejável a busca pela igualdade total, ou
seja, a igualdade de todos e tudo, uma vez que essa busca pela igualdade absoluta é
infrutífera pelo simples fato de que as pessoas definitivamente são desiguais. (RAWLS,
2000, p.35).
Rawls trouxe a proposta de que a igualdade seja entendida como o mesmo
ponto de partida para cada uma das pessoas. O que é justo é a sociedade oferecer a
cada um o mesmo ponto de partida. Como exemplo pode ser mencionada a área
educacional: deveria ser garantido a todos os membros da sociedade um ensino
público com uma qualidade razoável. A garantia do mesmo ponto de partida não
elimina a possibilidade de haver diferença entre as pessoas e suas capacidades.
Nesse novo contrato social a liberdade não ocorre em sentido material, e sim
num sentido de respeito às pessoas e a valorização das possibilidades, igualdade de
possibilidades.
A etapa seguinte à posição original é o equilíbrio reflexivo. Os princípios
escolhidos pelos indivíduos estão ligados ao que entendem por justiça naquele
momento social – quando da realização do contrato social. Cada pessoa possui sua
própria convicção e as diferentes convicções são confrontadas com os princípios de
justiça que constam do pacto social. Caso o pacto não reflita o pensamento de todos e
persistam as dissensões, há duas possibilidades: o grupo pode mudar o que foi
originalmente pactuado ou os dissidentes acomodam suas convicções às do grupo. Isso
porque os princípios de justiça são criações humanas racionais, resultado de processo
discursivo (construtivismo). (RAWLS, 2000, p.23).
Posteriormente, o filósofo considerou relevante acrescentar ao seu modelo o
conceito de pluralismo razoável. As doutrinas abrangentes, definidas por ele como
diferentes ideais sobre moral, religião e ética presentes em determinada sociedade em
dada época, não devem ser adotadas como razão pública. Deve prevalecer o consenso
sobreposto, que se dá quando a concepção política responsável pelo governo das
instituições básicas é aceita pelas doutrinas abrangentes razoáveis ao longo de
gerações. (RAWLS, 2000, p.179).

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O ponto de convergência das diferenças entre o que cada um entende por justo
são as razões públicas (independem das doutrinas abrangentes). As razões públicas se
materializam quando os cidadãos atuam na argumentação política no fórum público e
quando votam nas eleições. As pessoas assumem um papel fundamental na defesa de
seus ideais e suas visões de justiça e na fiscalização da atuação dos governantes. Trata-
se aqui da pessoa política, aquela capaz de apresentar os seus ideais para formação de
uma concepção política de justiça e, ao mesmo tempo, de ouvir a apresentação de
ideais diferentes dos seus (argumentação pública). Desse debate resulta a construção
do consenso. O consenso é forjado aos poucos e pelo diálogo e não deve ser imposto
pelo Poder Público. O debate deve ser aberto e presente no processo legislativo ou
judicial. (RAWLS, 2000, p.276).
Os elementos constitucionais essenciais são classificados em dois tipos: a)
aqueles que especificam a estrutura geral do Estado e do processo político; b) os que
especificam os direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos. Os primeiros podem
ser estruturados de diversas formas, como por exemplo, o governo presidencialista e o
parlamentarista. O autor alerta que, depois de fixado o sistema de governo, sua
alteração só deve ocorrer se for necessária para realização da justiça social ou do bem
comum, e jamais para a obtenção de vantagens específicas para determinada
agremiação política. Já os elementos essenciais do segundo tipo somente podem ser
especificados de uma forma geral e com poucas variações não essenciais. Por essa
razão, para o autor, os conceitos de liberdade de consciência, liberdade de associação,
liberdade de expressão, por exemplo, são entendidos de forma similar nos regimes
livres. (RAWLS, 2000, p.278).
Outro aspecto que deve ser observado diz respeito aos elementos
constitucionais essenciais que abarcam os direitos e liberdades fundamentais das
pessoas e os que tratam da justiça distributiva (como os princípios que se aplicam às
desigualdades sociais e econômicas): eles expressam valores políticos de formas
distintas. Isso porque a estrutura básica da sociedade nasce de dois sistemas que
funcionam de maneira coordenada. O primeiro deles é formado pelos direitos e
garantias fundamentais, que são iguais para todos os cidadãos, e as regras que

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definem os procedimentos políticos considerados justos (especifica-se como se dá a
aquisição do poder político e os limites do seu exercício). O segundo sistema inclui as
instituições de base da justiça social e econômica. Tal diferenciação é relevante porque
os elementos que especificam os direitos e liberdades fundamentais e iguais dos
cidadãos são estabelecidos de forma consensual e sua implementação pode ser
averiguada com relativa facilidade, enquanto os princípios que regulam as questões
básicas da justiça distributiva são objeto de debates em que não é simples atingir o
consenso e, além disso, sua efetivação é de difícil averiguação. (RAWLS, 2000, p.280).
Os pressupostos fundamentais da concepção política de justiça de Rawls são:
concepção política ou normativa de ser humano (deve possuir senso de justiça e ser
capaz de conceber o bem de todos); Estado democrático de direito (sociedade bem
ordenada que incorpora uma concepção pública e política de justiça). O ideal é atingir
o consenso sobreposto a respeito da concepção política de justiça.
O autor reconhece a dificuldade para que se concretize na prática a sociedade
bem ordenada conforme sua concepção e já reconhecia, na década de 80, que o
consenso sobreposto era difícil de ser alcançado. Atualmente, em uma sociedade
globalizada, interligada pela rede mundial de computadores, caracterizada pela
velocidade, existem informações com diferentes níveis de qualidade ou mesmo de
confiabilidade. Infelizmente, não é rara a disseminação de informações “tóxicas” e
falsas, provocando confusão e fazendo com que as pessoas tenham dificuldade para
distinguir o falso do verdadeiro. A questão que fica é: como se pode chegar ao
consenso sobre algo quando não se sabe mais o que é verdade?
O autor diz que primeiro é preciso alcançar o consenso constitucional e depois
o consenso sobreposto. Considera o consenso constitucional como um estágio anterior
ao sobreposto. Por não se basear na concepção de pessoa política e não conter uma
concepção pública compartilhada, o consenso constitucional não é profundo. A
principal preocupação do legislador constitucional é traçar as linhas gerais para a
convivência pacífica da comunidade, sem descer demasiadamente a minúcias. As
normas constitucionais, em sua maioria, estão redigidas sob a forma de princípios.
Consegue-se a concordância sobre a liberdade e os direitos políticos fundamentais, por

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exemplo, direito de voto, liberdade de expressão e liberdade de associação.
Entretanto, há divergências sobre quais princípios, conteúdos e limites exatos dos
direitos fundamentais devem merecer a proteção constitucional. Assim, o consenso
constitucional estável também não é conquistado com facilidade. (RAWLS, 2000,
p.280).
Há três requisitos de um consenso constitucional estável baseado em princípios
que regulam efetivamente as instituições políticas básicas: i) deve-se fixar o conteúdo
de determinadas liberdades e direitos políticos fundamentais com prioridade especial,
de forma retirá-los das disputas políticas; ii) para a aplicação dos princípios de justiça, é
preciso que as diretrizes e normas sejam especificadas de forma simples e clara,
possibilitando sua compreensão pelos cidadãos em geral, de forma que a
argumentação pública seja vista pelas pessoas como correta e razoavelmente
confiável; iii) após atendidos os dois primeiros requisitos, o que se verifica somente se
funcionarem adequadamente por um período de tempo considerável, passam a ser
encorajadas as virtudes corporativas da vida política (razoabilidade, senso de justiça,
disposição de fazer concessões mútuas, conciliações) – efetiva-se a cooperação com os
outros em termos políticos.
Obtida a estabilização do consenso constitucional almeja-se o consenso
sobreposto. Este se apóia em uma concepção política de justiça fundada nos conceitos
de pessoa e de sociedade. Os aspectos que conduzem ao consenso sobreposto são
relativos a: a) profundidade – há diálogo e argumentação pública entre as doutrinas
abrangentes que adotam uma posição política comum a todos; b) extensão –
ultrapassa o consenso procedimental constitucional político e vai além dos direitos e
garantias individuais fundamentais. Isso porque é preciso incluir na equação os direitos
sociais como educação e saúde. Sem educação não é possível que o cidadão participe
de fato da sociedade pela falta do conhecimento necessário para fundar a
argumentação pública e apresentar seus pontos de vista; c) especificidade: o consenso
sobreposto fundamenta-se na concepção política de justiça que, por sua vez, parte da
visão da sociedade como um sistema equitativo de cooperação e de pessoa política
livre e igual. (RAWLS, 2000, p.212-214).

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A autonomia é vista dentro da situação original em que é possível fazer
escolhas via justiça procedimental pura, ou seja, opta-se sem ter que considerar
nenhum princípio de direito ou de justiça estabelecido previamente. De forma que o
consenso é constituído de forma autônoma com a incorporação das doutrinas
abrangentes razoáveis. (RAWLS, 2000, p.77).
Observa-se que autonomia, pessoa política, consenso e estabilidade estão
conectados. A estabilidade origina-se do consenso, que é construído a partir de
escolhas autônomas e só pode fazer tal opção o indivíduo (pessoa moral e livre).
O consenso constitucional tem sido alcançado em sociedades democráticas,
mas o consenso sobreposto continua sendo um ideal a ser atingido. Para a sua
realização, é necessário que as pessoas consigam desenvolver as características do que
o autor denomina “homem político” ou “homem social”. Trata-se do homem que se vê
como igual ao outro no espaço público, além de ser dotado de capacidade para propor
ou aceitar os termos de cooperação dos outros indivíduos. E ainda assume
responsabilidade política pelos fins almejados e pelos resultados efetivamente obtidos.
Esse homem também é capaz de fazer os devidos ajustes quando necessário para
alcançar a justiça por meio de cooperação social.
As críticas que são feitas a Rawls devem-se à inexistência, no mundo real, dessa
pessoa política. Não existindo a pessoa política, não há cooperação, argumentação
jurídica, consenso sobreposto, formação da razão pública. O que se observa não só no
Brasil, mas também em outros países são escândalos de corrupção em que o
representante eleito (que deveria se aproximar ao máximo da concepção de homem
social) age fundado em interesses pessoais e não prioriza a justiça, a moral pública e o
bem comum.

3. Interferência do Estado nas relações privadas e limitação à autonomia da vontade

Com o fim do absolutismo, no final do século XVIII, a burguesia detentora do


poder econômico construiu um sistema jurídico no qual imperavam a autonomia da
vontade e a liberdade contratual.

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A Revolução Francesa (1789) pode ser considerada um marco referencial da
constituição do Estado Liberal. O Estado Liberal foi marcado pela ausência do direito
como regulador da economia, pois adotou o modelo de regulação econômica natural
(oferta e procura). A lei geral e abstrata baseada na igualdade formal e no
abstencionismo econômico garantiu segurança para a efetivação das trocas mercantis.
Já no século XX, intensificaram-se os questionamentos ao modelo de Estado
Liberal. Diante da incapacidade estatal de resolver os grandes problemas sociais,
começou a ser proposto o modelo que veio a ser conhecido como Estado Social. Como
marcos iniciais, costumam ser apontadas a Constituição do México de 1917, que previu
em seu texto direitos dos trabalhadores, e a Constituição de Weimar, de 1919, que
introduziu elementos do Estado de Bem-Estar social na Alemanha. (BONAVIDES, 2004,
p.564).
Dentro da nova concepção, importantes instrumentos jurídicos foram
alterados. O direito contratual deixa de ter como único norte a autonomia da vontade
e passa a ser regido pela autonomia privada. Neste sentido o autor Francisco Amaral
faz a seguinte diferenciação:
“Autonomia da vontade é, assim, o princípio de direito privado
pelo qual o agente tem a possibilidade de praticar um ato
jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos. A
autonomia da vontade como manifestação de liberdade
individual no campo do direito, e autonomia privada, como
poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas, vale dizer, o
poder de alguém de dar a si próprio um ordenamento jurídico e,
objetivamente, o caráter próprio desse ordenamento, constituído
pelo agente, diversa mas complementarmente ao ordenamento
estatal”. (AMARAL, 2003, p.347).

No Estado Liberal imperava a autonomia da vontade, que possuía o mesmo


status da lei para conformação das relações jurídicas, fazia lei entre as partes. E as
partes estabeleciam livremente o conteúdo, a forma e os efeitos dos contratos. Já no

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Estado de Bem Estar Social há objetivação do negócio jurídico e o desenvolvimento da
autonomia privada, pela qual os contratantes podem auto-regular seus interesses
desde que respeitem o ordenamento jurídico e o princípio da boa fé objetiva.
Portanto, a liberdade individual é possível nos limites jurídicos conferidos pelo Estado.
Nesse sentido, Daniel Sarmento explica:
“No paradigma do Estado Liberal, a Constituição não se imiscuía
no campo das relações privadas. Estas eram disciplinadas pela
legislação ordinária, que gravitava em torno do Código Civil,
centrado na proteção da segurança jurídica, tão vital aos
interesses da burguesia. Com o surgimento do Estado Social,
multiplicou-se a intervenção do legislador no campo privado,
assim como a edição de normas de ordem pública limitavam a
autonomia da vontade dos sujeitos de direito em prol de
interesses coletivos. A Constituição se projetou na ordem civil,
disciplinando, a traços largos, a economia e o mercado e
consagrando valores solidarísticos, além dos direitos diretamente
oponíveis aos atores privados, como os trabalhistas”.
(SARMENTO, 2006, p.69).

Após a segunda guerra mundial, como uma reação ao holocausto, os direitos


humanos foram incorporados como direitos fundamentais pelas Constituições dos
Estados. Tais direitos foram tutelados no âmbito internacional, em 1948, com a
publicação da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Os direitos humanos são distintos quanto a sua eficácia conforme a dimensão a
que pertencem. Os direitos individuais (primeira dimensão), ou seja, os direitos civis e
políticos, apresentam definição clara e são expressos por meio de normas de eficácia
plena e aplicabilidade imediata. Ressalte-se ainda que são protegidos por garantias
fundamentais bem delineadas. Os direitos de primeira dimensão variam pouco de um
sistema jurídico para outro. Por outro lado, os direitos de segunda dimensão
(econômicos, sociais e culturais) possuem sua efetivação limitada por não serem bem

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definidos e por exigirem uma prestação positiva do Estado. A maior parte desses
direitos está expressa em normas constitucionais programáticas que apenas
expressam a intenção do Estado de concretizá-los.
As origens da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais apontam
para o ano de 1958, quando o “Caso Luth” foi julgado pelo Tribunal Constitucional
Federal Alemão. Erich Luth, Presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo,
conclamou os alemães a boicotarem o filme Unsterbliche Geliebte, de Veid Harlam,
diretor do filme Jud Süss, produzido no período do terceiro Reich. Veid Harlam e a
distribuidora ingressaram com uma ação cominatória alegando que o boicote atentava
contra a ordem pública, o que era vedado pelo Código Civil Alemão (p. 826, BGB). A
instância ordinária decidiu que Luth deveria se abster de conclamar o boicote ao filme
por ferir o p.826 do BGB. Contra essa decisão foi interposto recurso constitucional. A
Corte Constitucional alemã julgou o recurso procedente por entender que o direito
fundamental à liberdade de expressão deve prevalecer sobre a regra geral do Código
Civil Alemão que protegia a ordem pública. Considerado o primeiro caso em que se
decidiu pela aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas. (MENDES,
2014, p.43).
A Suprema Corte dos Estados Unidos da América, país de forte tradição liberal,
aplica a teoria do State Action, que considera que os direitos fundamentais são
exigíveis nas relações dos particulares com os poderes públicos. Na hipótese do
particular exercer uma função nitidamente pública aplica-se a teoria da Public
Function, os direitos fundamentais se aplicam nas relações deste particular com outros
particulares. John Nowak e Ronald Rotunda ensinam que:
“A propósito da state action, o tema tem sido objeto de
instigantes estudos e julgamentos nos Estados Unidos, os quais
têm reconhecido a aplicação de direitos fundamentais para os
casos em que estão envolvidos direitos civis, acordos privados, ou
ainda sob a alegação de que a questão decidida demanda um
conceito de função pública”. (NOWAK e ROTUNDA, 1995).

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A teoria da eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais determina
que os direitos fundamentais são aplicáveis às relações privadas de forma indireta por
meio das cláusulas gerais de direito privado. A regra geral do direito privado seria a
autonomia privada e os direitos fundamentais incidiriam somente em razão de
cláusulas gerais no próprio Direito Privado autorizando sua incidência. São exemplos:
boa fé, liberdade contratual, entre outros. Essa foi a tese adotada pelo Tribunal
Constitucional Alemão na decisão do caso Luth. Isso porque entendeu que os direitos
fundamentais possuem eficácia irradiante sobre a interpretação do direito privado,
mas não incidiriam diretamente nas relações privadas.
A teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais nas relações
privadas prevaleceu na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Os
particulares são obrigados a cumprir os ditames dos direitos fundamentais da mesma
forma que o Poder Público tem tal dever. Daniel Sarmento analisou a jurisprudência do
STF e comentou:
“(...) é possível concluir que, mesmo sem entrar na discussão das
teses jurídicas sobre a forma de vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais, a jurisprudência brasileira vem aplicando
diretamente os direitos individuais consagrados na Constituição
na resolução de litígios privados”. (SARMENTO, 2006, p.299).

Um exemplo de aplicação prática da eficácia horizontal foi a decisão do STF que


impôs à Air France (empresa privada) igualdade de tratamento entre trabalhadores
franceses e brasileiros; bem como o acórdão, também do Supremo Tribunal Federal,
que impôs a obrigatoriedade do respeito à ampla defesa para a exclusão de associado
em associação privada. E ainda, STF, Segunda Turma, RE 201.819/RJ:
“(...) A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a
qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos
princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que
têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da
República, notadamente em tema de proteção às liberdades e

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garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada
garantido pela Constituição às associações não está imune à
incidência dos princípios constitucionais que asseguram o
respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A
autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem
jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com
desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente
aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da
vontade não confere aos particulares, no domínio de sua
incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as
restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja
eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares,
no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades
fundamentais.(...)”

O art. 5º, §1º, da Constituição Federal determina que as normas definidoras de


direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Logo, cabe aos poderes
públicos (Judiciário, Legislativo e Executivo) desenvolver esses direitos. Isso, porém,
não significa – como ressaltam José Afonso da Silva e Paulo Gustavo Gonet Branco –
que todos os direitos e garantias fundamentais venham sempre expressos em normas
de eficácia plena ou contida. Há normas definidoras de direitos que são claramente de
eficácia limitada, como o art. 5º, XXXII, que prevê que “o Estado promoverá, na forma
da lei, a defesa do consumidor”. (BRANCO, 2007, p.243).
Neste sentido, afirma Jane Reis Gonçalves Pereira:
“A tese de que os direitos fundamentais são aplicáveis em
relações jurídicas dessa natureza (relações entre particulares)
tem em conta, principalmente, a dimensão funcional dos direitos
fundamentais. É intuitivo que, quando se vislumbra os direitos
fundamentais a partir de sua finalidade – a qual é, em suma,
assegurar níveis máximos de autonomia e dignidade dos

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indivíduos – torna-se pertinente sua aplicação em todas as
situações nas quais possa ser comprometida essa esfera de
autonomia, sendo irrelevante se isso ocorre em decorrência da
autuação de um poder público ou privado”. (PEREIRA, 2006,
p.77).

4. Considerações Finais
O filósofo político John Rawls abordou a autonomia privada sob a perspectiva
da situação original em que é possível fazer escolhas via justiça procedimental pura, ou
seja, opta-se sem ter que considerar nenhum princípio de direito ou de justiça
estabelecido previamente. Dessa forma, o consenso é constituído de forma autônoma
com a incorporação das doutrinas abrangentes razoáveis. Para ele somente o homem
político é capaz de chegar ao consenso sobreposto, na medida em que este é capaz de
desejar mais o bem comum do que realizar suas vontades particulares.
As relações entre o Estado e o direito nas relações privadas consideradas a
partir da liberdade e autonomia da vontade relacionam-se ao conceito de eficácia dos
direitos fundamentais. Enquanto na época do Estado Liberal só havia eficácia vertical
dos direitos fundamentais, com o Estado de Bem Estar Social surgiu o conceito de
eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
A aplicação da teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais
nas relações privadas resulta em maior limitação à autonomia privada pela
Constituição do que a aplicação da teoria da eficácia indireta ou mediata dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares.
O Brasil adotou o conceito de eficácia direta e imediata dos direitos
fundamentais nas relações privadas, fazendo com que tanto o Poder Público como os
particulares sejam obrigados a cumprir os ditames dos direitos fundamentais. Assim, o
STF em diversos julgados limitou a autonomia privada de particulares por fazer incidir
diretamente nas relações privadas os direitos fundamentais. Como foi o caso da União
Brasileira dos Compositores, associação privada, obrigada a respeitar o devido
processo legal e o direito de ampla defesa do associado excluído por não respeitar os

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deveres estatutários (apesar de terem sido seguidas todas as determinações do
Estatuto da associação para exclusão de sócio). De tal sorte que autonomia privada é
limitada juridicamente, porque não pode ser exercida com desrespeito aos direitos de
outrem.

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Brasileira de Compositores UBC x Arthur Rodrigues Vilarinho. Relatora: Ministra Ellen
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