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Continuemos, então, a examinar o empirismo de Quine, na perspectiva de nosso curso sobre


sua filosofia da matemática.

No ensaio Five Milestones of Empiricism , publicado no livro Theories and Things ( Harvard
University Press, 1981), páginas 67 a 72, Quine apresenta cinco pontos do empirismo,
assimilados a partir da segunda metade do século XVIII, que, segundo ele, constituem
progressos para essa doutrina. Vejamos.

O primeiro é a mudança do discurso sobre ideias para o discurso sobre expressões


linguísticas. Nos séculos XVII e XVIII, vários filósofos concebiam esses objetos mentais que são
as ideias como coleções de propriedades (essa concepção é, de certo modo, derivada da
concepção aristotélica de objeto físico como coleção de propriedades). Hume (1711 – 1776),
por exemplo, usou essa ideia de ideia (ou seja, a ideia de ideia como coleção de propriedades)
em sua tentativa de explicar o conhecimento matemático (em um curso como o nosso, não é
preciso examinar esse ponto). Quine assinala que o filólogo John Horne Tooke, no volume 1 da
obra The Diversions of Purley, de 1786, constata que é difícil combinar adequadamente a
concepção de ideia com a posição empirista segundo a qual o conhecimento está baseado em
impressões sensoriais, isto é, impressões visuais, auditivas, táteis, olfativas e gustativas
(considerando a simplificação de que falamos no texto 1), e sustenta que o que de fato estava
em jogo era a linguagem (mais uma vez, em nosso curso não é necessário detalhar esse
ponto).

O segundo progresso, de acordo com Quine, é a introdução da definição contextual,


originalmente concebida por Bentham (1748 – 1832) e aplicada magistralmente por Frege
(1848 – 1925) no estudo dos fundamentos da matemática.

Observação: por fundamentos da matemática, não queremos dizer, aqui, as partes, digamos,
mais fáceis da matemática, isto é, aquelas partes pelas quais começa nossa educação
matemática, mas sim os alicerces sobre os quais o conhecimento matemático pode ser
edificado com a perspectiva de torná-lo tão imune quanto possível à dúvida racional (supondo
que existam tais alicerces).

No parágrafo 62 da obra Os Fundamentos da Aritmética, de 1884, Frege escreveu “ Apenas


no contexto de uma proposição as palavras significam algo”. Isso pode parecer uma
trivialidade, mas não é, e com Frege essa ideia (volto agora a usar a palavra “ideia” como no
discurso cotidiano) produziu consequências muito substanciais. Vejamos.

A ideia de definição contextual consiste no reconhecimento da sentença como unidade básica


de significado. Vamos entender. Na perspectiva do senso comum os significados das palavras
que formam uma sentença se combinam para constituir o significado dessa sentença. Por
exemplo, o significado da sentença “Sócrates é sábio.” é constituído pela combinação dos
significados das palavras “Sócrates”, “é” e “sábio”. Assim, as palavras são as unidades básicas
de significado. Já em uma definição contextual a unidade básica de significado é a sentença,
não as palavras. Um exemplo tornará isso mais claro. Consideremos a sentença “O limite de
1/x quando x tende a zero por valores positivos é +infinito.” O significado dessa sentença é:
dado qualquer número real positivo A existe um número real positivo b tal que se x é maior
que zero e menor que b, então 1/x é maior que A. Notem que não demos os significados das
palavras “limite”, “tende” e “infinito” consideradas isoladamente. O que fizemos foi dar o
significado da sentença como um todo, ou seja, tomamos a sentença como unidade básica de
significado. O uso de definições contextuais foi um recurso muito importante no processo que,
dando rigor ao cálculo diferencial e integral, levou ao desenvolvimento da análise matemática.

Observação: tanto empiristas quanto racionalistas usaram a definição contextual; no caso dos
empiristas, um problema no estudo dos fundamentos da ciência (fundamentos da ciência em
sentido análogo ao de fundamentos da matemática que mencionamos acima) era o de explicar
a noção de corpo em termos de impressões sensoriais; tratando desse problema, Hume
identificou os corpos com as impressões sensoriais. Nessa perspectiva, por exemplo, a mesa
que tenho, agora, diante de mim é identificada com certas impressões visuais e táteis. É claro
que isso está em total desacordo com o senso comum. Esse desacordo, contudo, não
perturbou Hume. Quine, no ensaio Epistemologia Naturalizada (vejam a referência da coleção
Os Pensadores na bibliografia), primeiro qualifica essa posição de Hume como corajosa e
simples e depois como procedimento desesperado. Pois bem, usando a definição contextual
podemos, em princípio, traduzir sentenças sobre corpos em sentenças sobre impressões
sensoriais sem que seja necessário identificar os corpos mencionados nessas sentenças com o
que quer que seja. Fazemos, em princípio, traduções de sentenças inteiras do discurso sobre
corpos, e não das palavras que mencionam corpos e aparecem nessas sentenças. A abordagem
de Hume, em completo desacordo com o senso comum e considerada por Quine, ao fim, como
desesperada, não será mais, em princípio, necessária, isto é, não será necessária se pudermos,
de fato, traduzir sentenças inteiras sobre corpos em sentenças inteiras sobre impressões
sensoriais. Uma tal tradução foi arduamente buscada por Russell (1872 – 1970) no livro Nosso
Conhecimento do Mundo Exterior, de 1914, e especialmente por Carnap (1891 – 1970) no livro
A Construção Lógica do Mundo, de 1928, mas não foi obtida. A razão desse insucesso, segundo
Quine, está associada a um tópico que abordaremos adiante, o holismo. Antes porém,
examinaremos mais um exemplo de definição contextual. Esse exemplo, devido a Frege, é
muito importante em filosofia da matemática e requer a apresentação de considerações
preliminares. Trataremos dele no próximo texto.

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