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ANAIS DO PROJETO “SEGUNDA ÀS 18 HORAS”

maio de 2016 a novembro de 2016


Administração Superior Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional

Antônio Sérgio Tonet Nedens Ulisses Freire Vieira


Procurador-Geral de Justiça Diretor do Centro de Estudos e
Aperfeiçoamento Funcional
Paulo Roberto Moreira Cançado
Corregedor-Geral do Ministério Público
Antônio de Padova Marchi Júnior
Coordenador Pedagógico do Centro
Alceu José Torres Marques
de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional
Ouvidor do Ministério Público

Márcio Heli de Andrande Ana Rachel Brandão Ladeira Roland


Procurador-Geral de Justiça Adjunto Jurídica Superintendente de Formação e Aperfeiçoamento

Heleno Rosa Portes João Paulo de Carvalho Gavidia


Procurador-Geral de Justiça Adjunto Administrativo Diretor de Produção Editorial

Rômulo de Carvalho Ferraz


Procurador-Geral de Justiça Adjunto Institucional

Edson Ribeiro Baeta


Chefe de Gabinete

João Medeiros Silva Neto


Secretário-Geral

Clarissa Duarte Martins


Diretora-Geral
Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Procuradoria-Geral de Justiça

PGJMG

ANAIS DO PROJETO “SEGUNDA ÀS 18 HORAS”

maio de 2016 a novembro de 2016

Belo Horizonte, 2017


Copyright © 2017 – Procuradoria - Geral de Justiça do Estado
de Minas Gerais/ Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Projeto “segunda às 18 horas” (2016: Belo Horizonte, MG)
Funcional/ Diretoria de Produção Editorial
Anais do projeto “segunda às 18 horas”, maio de 2016 a
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Minas Gerais. Ministério Público. Procuradoria-Geral de


Justiça. Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional.
Ficha Técnica

Editoração: João Paulo de Carvalho Gavidia

Revisão:

Amanda Carvalho Montanari

Josane Fátima Barbosa

Larissa Vasconcelos Avelar

Luiz Carlos Freitas Pereira

Projeto gráfico e diagramação:

João Paulo de Carvalho Gavidia

Izabelle Carla Martins (estágio supervisionado)

Produzido, editorado e diagramado pelo Centro de


Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério
Público do Estado de Minas Gerais (CEAF) em 2017.
Sumário Tema: Os reflexos do novo CPC na prestação jurisdicional
dos tribunais
Tema: Acordo de Leniência Data: 27 de junho de 2016
Palestrante: Bruno Dantas Nascimento Palestrante: João Otávio de Noronha
Data: 9 de maio de 2016 85
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Aula inaugural da pós-graduação - Escola Institucional
Tema: Garantismo judicial na improbidade administrativa
do Ministério Público de Minas Gerais
Palestrante: Napoleão Nunes Maia Filho
Palestrante: Rodrigo Janot Monteiro de Barros
Data: 16 de maio de 2016
Data: 8 de agosto de 2016
18
109
Tema: Improbidade empresarial
Palestrante: Fábio Medina Osório Tema: O novo CPC e os recursos do STJ
Data: 30 de maio de 2016 Palestrante: Sérgio Luiz Kukina
33 Data: 22 de agosto de 2016
129
Tema: Novo CPC: precedentes vinculantes
Palestrante: Rogerio Schietti Machado Cruz
Tema: Ministério Público na efetivação das políticas
Data: 13 de junho de 2016
públicas: visão jurídica do planejamento e do processo
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administrativo de política pública
Tema: Conciliação no novo CPC Palestrante: Juliano Ribeiro Santos Veloso
Data: 20 de junho de 2016 Data: 5 de setembro de 2016
Palestrante: Reinaldo Soares da Fonseca 143
71
Sumário Tema: Família contemporânea
Palestrante: Reyvani Jabour Ribeiro
Tema: Ministério Público no novo processo civil: da lei Data: 10 de outubro de 2016
à Constituição, do litígio à tutela dos direitos, da tutela 251
jurisdicional à tutela adequada
Palestrante: Hermes Zaneti Junior
Tema: O processo de transformação da vida em direito
Data: 12 de setembro de 2016
e o conhecimento do direito que se forma e transforma
162
Palestrante: Mônica Sette
Data: 17 de outubro de 2016
Tema: Direito penal do inimigo
274
Palestrante: Rogério Greco
Data: 19 de setembro de 2016
Tema: Sistema recursal do novo CPC
177
Palestrante: Dierle Nunes

Tema: O encerramento da campanha eleitoral e o dia da Data: 24 de outubro de 2016


eleição 287
Palestrante: Edson Resende de Castro
Data: 26 de setembro de 2016 Tema: Mediação e conflitos cíveis
201 Palestrante: Fernanda Tarture Silva
Data: 31 de outubro de 2016
Tema: Direitos fundamentais, Ministério Público e o 318
novo CPC
Palestrante: Gregório Assagra de Almeida
Data: 3 de outubro de 2016
220

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Sumário

Tema: A árvore como tema para o nosso futuro, propos-


tas para um projeto de desenvolvimento sustentável in-
tegral para a região dos circuitos das águas Minas Gerais
Palestrante: Ernst Zürcher
Peter Schmocker
Data: 07 de novembro de 2016
341

Tema: Recursos no segundo grau de jurisdição


Palestrante: Nelson Nery Júnior
Data: 21 de novembro de 2016
384

Tema: Os recursos hídricos e o MP


Palestrante: Paulo Affonso Leme Machado
Data: 28 de novembro de 2016
412

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TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: ACORDO DE PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA CARLOS
LENIÊNCIA PARTE DO EVENTO “SEGUNDA- ANDRÉ MARIANI BITTENCOURT: Boa noite.
FEIRA ÀS 18H”, REALIZADO EM 09 DE MAIO De início, cumprimento o Ministro Bruno Dantas
2016 COM O MINISTRO BRUNO DANTAS
Nascimento, o Vice-Presidente do Tribunal de
NASCIMENTO
Contas do Estado de Minas Gerais, Dr. Cláudio
Terrão; o ex-Procurador-Geral de Justiça do
Ministério Público e atual Diretor de CEAF, Doutor

PROMOTOR JARBAS SOARES JUNIOR: Boa Jarbas Soares Júnior; os colegas procuradores,
na pessoa da Procuradora de Justiça, Dra. Fátima
noite a todos. Sejam todos bem-vindos. Faço uma
Borges; os colegas Promotores de Justiça e alunos
saudação especial aos meus colegas do Ministério
das faculdades de Direito. Temos a honra de receber
Público. Saúdo o palestrante de hoje, o Ministro
o Ministro Bruno Dantas, que exerceu mandatos no
Bruno Dantas Nascimento, que, apesar de muito
Conselho Nacional do Ministério Público, onde ele
jovem, é doutor em Processo Civil e foi um dos
já demonstrava todo o seu conhecimento. E não
membros da comissão do Novo CPC. Ele é uma
sem razão que ele, rapidamente, galgou outros
das pessoas mais respeitadas e admiradas em
postos, esteve no CNJ e, agora, como Ministro do
Brasília. Venho concitá-los a participarem dos Tribunal de Contas da União. Agradeço a ele pela
próximos eventos, pois eles representam grandes presença, como também ao Dr. Cláudio Terrão, que
oportunidades de estarmos diante de autoridades vem desenvolvendo um trabalho brilhante junto ao
e de pessoas que formam o Direito. O Processo Tribunal de Contas do Estado. O Ministério Público
Civil, por exemplo, será formado basicamente tem celebrado cada vez mais parcerias com o
no Superior Tribunal de Justiça. Muito obrigado a Tribunal de Contas e com o Ministério Público de
todos pela presença. Contas. Hoje, o Ministério Público e o Tribunal de
Contas do Estado têm feito, em parceria, uma série

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de atividades, no que tange às verificações dos exatamente no caso mais rumoroso da nossa
desvios administrativos, da improbidade. Muito história recente. Ele é um grande desafio para todos
obrigado e bom proveito a todos. nós. A Lei Anticorrupção é nova, foi aprovada há
menos de três anos. Nós, brasileiros, temos pouca
MINISTRO BRUNO DANTAS NASCIMENTO: Boa experiência em utilizar o acordo de leniência, pois
noite. Gostaria de cumprimentar o nosso querido é um instituto recente e controverso. Nos Estados
amigo, o Procurador-Geral Dr. Carlos André Mariani Unidos, a utilização desse instrumento é mais
Bittencourt. Saúdo também o Vice-Presidente do corriqueira. Certamente, qualquer observação
Tribunal de Contas do Estado, Dr. Cláudio Terrão. que se faça em um momento de exaltação, tem
Saúdo também os senhores, na pessoa de um a chance imensa de ser enviesada. É preciso ter
amigo, Dr. Jairo. Também tive oportunidade de muito cuidado ao tratar de institutos novos em
conviver com ele, na época em que fui conselheiro situações assim, porque há um risco seriíssimo
do CNMP. Gosto muito de Minas Gerais, de Belo de se estabelecerem premissas equivocadas
Horizonte e tenho extremo apreço pelo Ministério com base em caso concreto. O ideal seria que
Público de Minas Gerais. a experiência sobre acordo de leniência fosse
decantada, para, aí sim, posteriormente, serem
Obrigado, Jarbas, pelo convite para essa palestra,
celebrados os primeiros acordos. Infelizmente,
que é uma grande oportunidade de dialogar um
não foi o nosso caso.
pouco sobre um dos temas mais palpitantes da
atualidade. Vou concentrar a minha fala em pontos mais
controversos. Começando por uma breve
A Operação Lava Jato colocou luzes sobre um
retrospectiva, o acordo de leniência foi previsto
assunto novo e altamente delicado. A primeira
na Lei do Cadê, que serviu para tratar de cartéis
experiência do Brasil em acordo de leniência será
em empresas que se sujeitavam ao controle desse

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organismo. No cenário atual, a previsão mais consciência, afirmaria que o Congresso Nacional
antiga existente é essa da Lei do Cade. Portanto, os decretaria o impedimento de um Presidente da
conselheiros do Conselho Administrativo de Defesa República se não fossem as revelações tão bem
Econômica - Cade e os membros do Ministério conduzidas pelo Ministério Público, pela Polícia,
Público que atuam nele, têm mais experiência em pelo Poder Judiciário, no âmbito da Operação Lava
acordos de leniência nos casos de formação de Jato. Sem dúvida alguma, o quadro político atual é
cartel, combatidos em razão da proteção genérica efeito de um processo que se desenvolve no âmbito
criada pelo CDC. Para este, a formação de cartel dos tribunais e no âmbito do poder de investigação
significa falha de mercado, que vai repercutir, em do Ministério Público, sobretudo, da força-tarefa
última análise, nos direitos do consumidor. Então, que atua em Curitiba, na Operação Lava Jato. A
o viés analisado pelo Cade na formação de cartel é legislação, que criminaliza a atuação de empresas,
de proteção do consumidor. Em 2013, com a força prevê a possibilidade de acordos de leniência para
das manifestações de junho, que derrubaram a a cessação de atividade ilícita, permitindo que,
PEC 37, houve a aprovação da Lei Anticorrupção, ao ser flagrada na prática de ilícitos, a empresa
que previu, além da criminalização de condutas possa contribuir com as investigações e com o
de pessoas jurídicas envolvidas em atos ilícitos, ressarcimento integral do dano. Dessa forma, a
a possibilidade de acordos de leniência. Seis empresa poderia ter um desconto na multa, porque
meses depois seria deflagrada uma operação que a legislação prevê também multa civil pela prática
mudaria a história do Brasil. Toda essa situação de atos enquadrados na Lei de Corrupção, e ter
política que está em debate hoje no Congresso abrandada, ou afastada a sanção gravíssima de ser
Nacional começou com a Operação Lava Jato. Essa impedida de participar de contratações públicas,
operação, que teve início em abril de 2014, teve a chamada inidoneidade de empresa. Assim, são
seu ponto alto com processo de impeachment esses os requisitos para a celebração do acordo
da Presidenta da República. Ninguém, em sã de leniência e, fundamentalmente, dois benefícios

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que as empresas podem ter. Iniciada a Operação definida pela própria Constituição? A Constituição,
Lava Jato, iniciam-se as primeiras tratativas para no mínimo, criou algumas barreiras à celebração
celebração de acordos de leniência, e isso se dá por de acordos desse tipo, tendo em vista que, se o
meio da Controladoria-Geral da União, órgão que, Ministério Público não participa da celebração de
por lei, é competente para celebrar esses acordos um acordo de leniência, evidentemente, ele não
no âmbito do governo federal. Começam aí os pode estar vinculado a ele. O mesmo se diz em
problemas. Primeiro, porque a nossa Constituição relação ao Tribunal de Contas do Estado, ou ao
Federal é tão cuidadosa com o patrimônio público, Tribunal de Contas da União.
que ela não se contentou em criar uma única
instituição responsável por fiscalizar o gasto do Em recente palestra que proferi na Associação
dinheiro público. Ela criou uma verdadeira rede de das Indústrias da Construção Civil, esse tema
controle: o Ministério Público; o controle interno gerou máxima atenção entre presidentes e
feito em cada Poder; o controle externo, exercido diretores jurídicos, pois essas sanções discutidas
pelos Tribunais de Contas; a esfera judicial e a esfera pelo Tribunal recaem basicamente sobre as
administrativa. Quanto a esta última, registro o empreiteiras. O Tribunal de Contas da União não
seguinte questionamento: como é que o órgão de deseja usurpar uma competência que não é sua,
controle interno da Administração Pública pode mas ele também não a renuncia, porque ele não
celebrar um acordo com uma empresa e tal acordo pode renunciar a uma competência constitucional.
produzir efeitos sobre a esfera de competência ou É a própria Constituição da República que expressa
de atribuição (conforme seja o caso da instituição: que o Tribunal de Contas da União, no plano federal,
no caso do Ministério Público, esfera de atribuição; e os estaduais, no plano de cada unidade da
no caso dos Tribunais de Contas, esfera de Federação, que dão a última palavra sobre desvios
competência) de outros órgãos, especialmente de recursos públicos, e não o controle interno. Na
se a competência/ atribuição desses órgãos for esfera administrativa, quem dá a última palavra

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sobre dano ao erário é o Tribunal de Contas. Diante de recursos desviado mostra que a corrupção era
disso, como é que o órgão de controle interno vai estratégia empresarial, não era um ato isolado de
dialogar com uma empresa e estabelecer que o um dirigente, não era um vice-presidente ou um
dano causado em razão de superfaturamento em executivo que praticava corrupção para aumentar
um contrato é de R$ 500 milhões, se a empresa o seu bônus. As empresas formaram um cartel com
está colaborando com as investigações, está a finalidade de desviar recursos, assim como existe
desenvolvendo programa de compliance, se se formação de cartel para fraudar licitações. Como é
compromete a ressarcir integralmente o dano? que se admite que essas empresas paguem um
A empresa não precisa, portanto, estar isenta dano menor do que o que foi causado, que sejam
do pagamento de multa. Como é que o órgão de isentas da multa e, sobretudo, que não recebem
controle interno vai estabelecer tudo isso? Ele vai nenhuma penalidade de proibição de contratar
dar uma “carta branca’ para a empresa para que com o poder público? Compreendo a dúvida dos
ela continue a contratar? E o Tribunal de Contas, empresários sobre celebrar ou não acordos de
que, pela dicção constitucional, é quem dá a última leniência. A confissão é irretratável. E, uma vez
palavra, nada vai fazer? E vai renunciar a sua feita a confissão, ainda que perante um órgão
função? E se o tribunal entender que o valor do administrativo, se o tribunal rejeitar o acordo de
dano não é de R$ 500 milhões, mas de R$ 1 bilhão? leniência, os empresários terão perdido o benefício,
O que fazer nesses casos? Eu me coloco muitas mas a confissão já vai estar em nosso poder. Então,
vezes na posição das empresas que, em última a sanção virá fatalmente. Infelizmente, a medida
análise, têm função social importante. Embora eu provisória que foi editada no final do ano passado,
critique aquelas posições que defendem que não em vez de trazer segurança jurídica, multiplicou por
se pode punir CNPJ, sob o argumento de que as dez a insegurança jurídica. Para que um acordo de
empresas são tão vítimas quanto o Estado, isso leniência vincule o Ministério Público, tem que ter
não pode ser tido como regra, porque o volume assinatura do promotor natural, ou seja, daquele

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promotor que tem, além da atribuição de atuar vai aceitar ter efetivamente conhecimento disso
naquele caso, deve ter o interesse de anuir com apenas para sua assinatura? A CGU, que é órgão
ele. No âmbito federal, não há legislação específica de controle interno, dialoga com as empresas,
de homologação pelo Conselho Superior. Não sei define as cláusulas, e o TCU só vai homologar
do âmbito do Estado de Minas Gerais. No caso do algo ao qual ele não teve acesso previamente? A
Tribunal de Contas da União, tomei a iniciativa de CGU, manifestando uma necessidade freudiana
propor ao plenário e este aprovou. Nós editamos de se afirmar como instituição, convenceu a Casa
uma instrução normativa, dizendo que o TCU Civil e a Presidência da República a incluírem um
acompanharia etapa por etapa a celebração dispositivo numa medida provisória que multiplicou
dos acordos de leniência. Na prática, a empresa a insegurança jurídica. E não é por outra razão que
procurou a CGU para celebrar um acordo. A CGU até hoje não houve nenhum acordo de leniência,
deveria comunicar ao TCU, não as cláusulas apesar de ser um instrumento importante, que
entabuladas no acordo, mas a verificação da serviria como mote para a cessação de condutas
existência de planilha que mostra o valor do dano. ilícitas, para, principalmente, contribuir para
O TCU não tem competência para fiscalizar política o desvendamento de outros ilícitos e para a
de compliance de empresa, mas tem competência reparação do dano. No âmbito dos tribunais de
constitucional para definir o dano. Quem tem contas, quando é identificado um dano, abre-
competência constitucional para arbitrar o dano é se a tomada de conta especial. O Tribunal de
o TCU, não a CGU. A CGU deveria abrir a planilha Contas da União leva algum tempo para processar
e a confissão das empresas e o TCU, a partir essa tomada de contas especial. Por meio desse
disso, verificar se o valor do dano estava correto. processo, estipula-se o valor do dano e, a partir
A Medida Provisória n. 903, diz: “O TCU só terá daí, condenam-se os agentes do ato lesivo à
conhecimento das cláusulas do acordo de leniência sanções cabíveis como o ressarcimento ao Erário.
depois da assinatura”. Alguém acredita que o TCU As sanções para as pessoas naturais vão de multa

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à inabilitação para ocupar cargo público pelo prazo A segunda vertente indica que o TCU pode,
de oito anos; para as pessoas jurídicas, de multa com fundamento na Lei Orgânica do Tribunal de
à declaração de inidoneidade para contratar com Contas, que é a Lei n. 8.443, aplicar a sanção de
o poder público pelo prazo de cinco anos. Um dos inidoneidade de empresas. A CGU, quando celebra
temas mais intrincados da nova sistemática está um acordo de leniência com uma empresa, ela diz:
ligado às licitações. A primeira vertente é de que a “Tá bom. O dano é R$ 500 milhões, eu aceito aqui,
Lei de Licitações prevê a possibilidade de a própria vou te isentar da multa e vou te isentar também
Administração Pública declarar inidoneidade de da pena de inidoneidade”. Aí vai para o TCU, o
empresas que tenham fraudado ou concorrido TCU recebe aqueles autos, vai abrir uma tomada
para fraude à licitação. Ocorre que essa lei não é de contas especial, fatalmente. Aquela tomada de
o único diploma legal, que contém essa previsão. contas especial vai durar um ou dois anos, e aí a
A Lei n. 8.443, a Lei Orgânica do Tribunal de tomada de contas especial, quando concluir que o
Contas da União, também prevê a possibilidade valor do dano não era de R$ 500 milhões, o que o
de o TCU declarar inidoneidade de empresa. O TCU vai fazer? Vai rejeitar o acordo de leniência,
Supremo Tribunal Federal, inclusive, já declarou vai condenar a empresa a ressarcir o valor integral
a inconstitucionalidade desse dispositivo. Há do dano, vai aplicar a multa e, provavelmente, vai
concorrência de dispositivos, porém com titulares fazer o quê? Declarar a inidoneidade da empresa.
diversos: de um lado, por ato da autoridade da Que era tudo que as empresas não queriam.
Administração Pública, que, no âmbito estadual, Evidentemente que entre uma coisa e outra, não
cada estado disciplina; de outro, no âmbito do dá para dizer que tudo é branco ou preto, que o
governo federal, o Ministro-Chefe da CGU pode sistema é tão binário assim. É claro que o TCU vai
declarar inidoneidade de empresas por até cinco verificar se houve, no acordo de leniência, uma
anos. Essa é uma das vertentes. efetiva colaboração, se o valor do dano já foi aquele
que a CGU encontrou, já foi totalmente recolhido.

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E se a diferença é pequena nós podemos falar: Como relator no Tribunal de Contas em relação às
“Olha, não, tudo bem. Nós vamos cobrar aqui a fraudes ocorridas no âmbito da Usina Angra III.
diferença, vamos aplicar uma multa e não vamos Fala-se em fraudes na ordem de R$ 2 bilhões.
declarar inidoneidade”. Quando se fala no caso do Comperj, Complexo
Petroquímico do Rio de Janeiro, o orçamento
É óbvio que pode ter aí um caminho intermediário. começou com R$ 15 bilhões. A Petrobras já gastou
Mas que haverá alguma sanção, sem dúvida haverá. quase R$ 100 bilhões e vai ter que abandonar o
Isso sem falar que, eventualmente, pode acontecer, projeto do Comperj, porque falta de viabilidade. O
se o Tribunal entender que a CGU falhou no cálculo prejuízo foi enorme, porque os ladrões que estavam
do dano, que embora tivesse condições de descobrir instalados (posso usar esse nome sem qualquer
o valor do dano, não o fez por negligência, nós violação ao princípio do estado de inocência,
podemos também condenar o gestor da CGU por porque já houve condenação por sentença passada
ter feito aquele cálculo de maneira inadequada. em julgado) procuraram perceber onde havia
Eu não estou aqui para distribuir ameaças, nem espaço para aumentar a distribuição de propina.
veladas nem declaradas, o que eu estou falando é Como descobriram que havia espaço na Diretoria
o que a Constituição estabelece. Basta uma leitura de Abastecimento, instalaram o esquema lá. Na
da Constituição e da lei orgânica do Tribunal para medida em que começavam a obra, iam ampliando
perceber isso. Portanto, o que quer me parecer que o esquema nas diretorias onde era possível fazê-
existe hoje no Brasil é um certo caos, por conta lo. Nas diretorias em que não era possível firmar
dessa novidade que eu relatei no início. Esse caos é o esquema, a obra ficava conforme o projeto
ampliado, porque nós temos um caso extremamente original. Isso gerava uma disfunção absurda,
rumoroso, um caso que tem cifras estratosféricas. porque os projetos da Diretoria de Abastecimento
Veja que ninguém fala nada em casa de dezena de sempre cresciam, ao passo que os que estavam
milhão, não. É tudo de bilhão em diante. fora dessa diretoria não vingavam. O projeto inicial

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do Comperj previa que ele seria um complexo a maior parte da responsabilidade é deles. Até
petroquímico, pouco tempo depois, tal projeto foi que o desfecho chegue, o Brasil ainda vai sofrer
alterado para que fosse feita uma refinaria, mais muito com perda da sua capacidade econômica,
um tempo depois, o projeto foi alterado mais porque todas as empresas do setor de construção
uma vez para um oleoduto. Isso não tinha fim, civil estão envolvidas. A Petrobrás é responsável

porque, para cada contrato celebrado na Diretoria por quase metade dos investimentos do Brasil,
mas há uma situação de paralisação geral, porque
de Abastecimento, havia 10% de propina, 10% de
ninguém investe mais no Brasil. Sem dúvida, é uma
superfaturamento e, posteriormente, distribuição
situação muito delicada, que precisa ser resolvida.
de propina. O resultado disso é um prejuízo na
É claro que não se pode resolver ao arrepio da
ordem de muitos bilhões de reais. Isso sem falar
lei. Tenho pouca fé em heróis, mas muita fé em
das refinarias premium, uma no Maranhão e outra
instituições. Instituições que funcionam, freiam
em Pernambuco, que também não têm viabilidade
os retrocessos. Autoridades voluntariosas, que
nenhuma. Apesar de já terem sido gastos alguns
pensam que podem resolver todos os problemas
bilhões de reais nesses projetos, elas também
apenas com coragem, ao fim e ao cabo, eclipsam
não serão implementadas, por falta de viabilidade
as instituições onde, pois as pessoas passam
econômica. Diante disso, seremos instados a a endeusá-las. Acredito mais em um trabalho
aplicar um instituto novo, de uma legislação nova, institucional, de acordo com as normas que regem
mesmo que a situação envolva pessoas muito a atividade de qualquer instituição. Estou certa de
apreensivas. Lamentavelmente, isso reflete um que temos muitos exemplos desse tipo de atuação
governo que parece não ter rumo e é pautado por no Ministério Público de Minas Gerais.
interesses corporativistas. A sociedade e o setor
produtivo acabam assistindo a tudo estupefatos. Como o Procurador, Carlos André, não estabeleceu
Não estou aqui defendendo empresa, acho que tempo para que eu concluísse a minha exposição,
eles têm uma parcela grande de responsabilidade, eu seria capaz de me alongar por muito mais

16
tempo. No entanto, vou retribuir a gentileza,
fazendo uso do tempo com moderação. Reitero o
agradecimento em relação convite feito pelo Ceaf.
Foi uma honra retornar ao Ministério Público de
Minas Gerais. Obrigado.

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TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: GARANTISMO Ministério Público, AMMP, Promotor de Justiça José
JUDICIAL NA IMPROBIDADE Silvério Perdigão de Oliveira e o Presidente da
ADMINISTRATIVA PROFERIDA POR AMAGIS – Associação dos Magistrados Mineiros,
NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PARTE
Desembargador Maurício Soares.
DO “PROJETO SEGUNDA-FEIRA ÀS 18H”
REALIZADA EM 16 DE MAIO 2016 Para a abertura, ouviremos o Diretor do Ceaf-
Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional,
Procurador de Justiça Jarbas Soares Júnior.

MESTRE DE CERIMÔNIAS: Gostaria de dar


PROCURADOR DE JUSTIÇA JARBAS SOARES
boas‑vindas a todos no Projeto “Segunda-Feira
JÚNIOR: Boa noite. Saudarei a Mesa na figura
às 18h”, uma iniciativa que tem por objetivo a
do meu chefe, o Procurador‑Geral de Justiça, os
discussão de temas jurídicos contemporâneos. Na
magistrados, os colegas do Ministério Público, os
edição de hoje, trataremos do tema “Garantismo
estudantes, os professores e os advogados.
Judicial na Improbidade Administrativa”.

Hoje é um dia muito especial para o Ministério


Convidamos para compor a Mesa o Procurador-
Público de Minas Gerais. Há muito tempo, tentamos
Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais Carlos
trazer o Ministro Napoleão Nunes Maia, que, além
André Mariani Bittencourt; o Corregedor-Geral do
de toda a qualificação jurídica, doutrinária e de
Ministério Público, o Procurador de Justiça Paulo
poeta, tem características muito especiais: é um
Roberto Moreira Cançado; o Ministro do Superior
homem amigo dos seus amigos e com Minas Gerais
Tribunal de Justiça, Napoleão Nunes Maia Filho; o
tem relação direta, pois morou em Pouso Alegre.
Diretor do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento
Com o Ministério Público tem relações de sangue,
Funcional, Procurador de Justiça Jarbas Soares
pois sua família faz parte da história do Ministério
Júnior; o Presidente da Associação Mineira do

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Público, com o Procurador de Justiça Antônio Casa Ministerial Mineira, em noite cultural, espero
Lopes Neto, e, atualmente, na nova geração, os conservar-me na trilha das pregações do nominado
dois competentes promotores Antônio Henrique e romano. Três qualidades devem ter a narração:
Paula. Ele dita o Direito no Superior Tribunal de brevidade, clareza e verossimilhança. Eminente
Justiça, com sua experiência de juiz federal e autor Procurador-Geral de Justiça do Estado de Minas
de várias obras. O ministro bacharelou-se pela Gerais, digníssimo e honrado Ministro do Superior
Faculdade de Direito do Ceará, fez Mestrado em Tribunal de Justiça, Doutor Arnaldo Esteves, na
Direito Público também pela Faculdade de Direito pessoa de quem saúdo todas as demais autoridades
do Ceará, é livre docente em Direito Público e presentes. Preclaro honrado e competente
Direito Processual na Universidade Estadual do conferencista, Ministro Napoleão Nunes Maia
Vale do Acaraú. É ministro do Superior Tribunal de Filho; colegas do Ministério Público, magistrados
Justiça, ministro suplente do Conselho da Justiça presentes, advogados, estudantes de Direito, meus
Federal, ministro substituto do TSE e ouvidor senhores, minhas senhoras. Saudar o eminente
da Corte da Cidadania, do Superior Tribunal de Ministro do Superior Tribunal de Justiça, o culto e
Justiça. Convido o Procurador de Justiça Antônio operoso jurista Doutor Napoleão Nunes Maia Filho,
Lopes Neto, primo do ministro Napoleão, para consagrado entre os maiores cultores do Direito na
que lhe faça uma saudação especial, falando por atualidade, com incomensurável satisfação e, ao
todos nós. mesmo tempo, uma responsabilidade desafiadora
ante sua esplendorosa potência literária e jurídica.
SENHOR ANTÔNIO LOPES NETO: Da Tribuna
magna da pomposa Roma Imperial, em dia de gala, Agradeço, antes de tudo, ao colega Procurador de
como o é o de hoje, o imortal Cícero proclamava: Justiça, Doutor Jarbas Soares Júnior, Diretor do
“Para viver com honradez e felicidade, bastam os Centro de Estudos, por me incumbir dessa honrosa
sentimentos e ações acertadas”. E eu, daqui da missão.

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Esta é uma oportunidade ímpar, haja vista a e horas do estudo de latim. E a certeza de que “a
ocasião de poder praticar a orientação de Sêneca, concórdia constrói e a discórdia destrói” no dizer de
incomparável filósofo que, em uma de suas tantas Salústio. Mas, em meio a tudo isso, havia também o
reflexões, registrou: “Valemos o que sentimos. sonho maior: as férias escolares na Fazenda Santa
Sintamos o que dizemos. Que a palavra concorde Mônica, marcadas pelos folclóricos contos avoengos
com a vida. Assim, harmonia entre o falar e o sentir e por colóquios amorosos. Prosseguindo seus
revela‑se uma preciosa honestidade intelectual”. estudos em Fortaleza, bacharelou‑se com galhardia
pela renomada Universidade Federal do Ceará, do
Napoleão Filho nasceu no romântico pedaço da chão de José de Alencar, Clóvis Beviláqua, Raquel
esperança, no enigmático e deslumbrante torrão de Queiroz, entre outros luminares da rica cultura
dos poetas, a lírica cidade do Limoeiro do Norte. nacional. Ainda jovem, aprovado em concurso
Sob a qualificada e criteriosa educação de seus público, exerceu o cargo de Procurador do Estado
pais -meus tios - iniciou seus estudos elementares. do Ceará. Anos depois, foi regularmente investido
Ingressou no ginásio Diocesano Padre Anchieta, na carreira da Magistratura Federal e passou pelas
instituição em que já se destacava como aluno seções judiciárias da Paraíba, Alagoas e Ceará. Na
exemplar. Continuou sua formação no seminário, seção cearense, foi diretor do foro. Promovido para
onde valorosos e competentes sacerdotes lazaristas o Egrégio Tribunal Federal da 5ª Região, com sede
holandeses primavam de modo intransigente pela em Recife, exerceu, como desembargador, cargos
formação moral e universal dos seminaristas. de notória magnitude.

Sei que o lema dos citados educandários era Embalado pelos seus vastos e seguros
o propósito: o homem sensato põe limite até conhecimentos e com incontáveis méritos pessoais
nas coisas honestas. O certo, prezado ministro e profissionais, foi, nos idos de 2007, alçado a
Napoleão, é que não há como esquecer as horas uma das cadeiras do Colendo Tribunal Superior

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de Justiça. Respeitado mestre de Direito Público Juiz”. Sua Excelência, de modo judicioso, consciente
e de Direito Processual Civil, ostenta, ainda, o e didático, como lhe é peculiar, enaltece, com
título de notório saber jurídico, outorgado pela maestria e sobriedade, o inabalável compromisso
Universidade Federal da Terra da Luz, na qual, por com a fiel observância do devido processo legal e
décadas, galhardamente lecionou com destaque da sacrossanta garantia da presunção de inocência,
e eficiência. pilastras fundamentais do Estado Democrático de
Direito, que estão gravadas na atual Constituição
Pontue‑se, igualmente, a latente veia poética do da República Federativa do Brasil.
erudito ministro Napoleão, que já aflorava em sua
mocidade e expandiu‑se por toda a sua vida como Autoridades presentes e demais convidados,
o sol de brasas das caatingas nas duas secas, parafraseando um estudioso da Idade Média
tornando‑se um dos mais afamados intelectuais da que dizia: “Não é a barba que faz o filósofo”.
Terra de Iracema. Ouso assegurar, peremptoriamente, que não é
a arrogância que enobrece o julgador. É mister
Devo realçar que o ilustre conferencista integra, agarrar-se, sobretudo, ao bom senso. Assim,
com louvor, os quadros da saleta Academia dentro dessa moldura, o ilustradíssimo, sereno,
Cearense de Letras, de cuja casa é titular da cadeira justo, honesto, garantista e humano, conferencista,
outrora pertencente à festejada escritora Rachel professor, poeta e ministro Napoleão Nunes Maia
de Queiroz. É de conhecimento do vasto universo Filho, convidado do nosso Ministério Público
acadêmico que o jurista poeta, aqui enaltecido, já do Estado de Minas Gerais, encarna com visível
publicou dezenas e dezenas de livros jurídicos e altivez a nobilitante missão do sacerdócio, a difícil
de poemas. Sem dúvida, é um dos precursores da prerrogativa constitucional de julgar. Parabéns.
carpintaria cultural de nossa família. Entre suas Muito obrigado.
obras, a que mais me impressionou foi “Cabeça de

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MESTRE DE CERIMÔNIAS: Ouviremos o De começo, gostaria de exaltar e ressaltar a evolução
Procurador-Geral de Justiça Carlos André Mariani do nosso Centro de Estudos e Aperfeiçoamento
Bittencourt. Funcional - CEAF. O nosso centro de estudos era
muito tímido e, ao longo dos anos, veio tomando
PROCURADOR DE JUSTIÇA CARLOS ANDRÉ forma, grandeza e estrutura. Recentemente,
MARIANI BITTENCOURT: Boa noite a todos. De atingiu um nível bastante satisfatório, pois, além
início, gostaria de cumprimentar os integrantes de cuidar da formação dos novos promotores e
da Mesa, a começar pelo palestrante, o Ministro de promover os nossos encontros pelo estado,
Napoleão Nunes Maia Filho, que nos honra com a também ganhou status de escola de governo,
sua presença. Cumprimentar o nosso Corregedor- com reconhecimento e capacidade para promover
Geral, o Dr. Paulo Roberto Moreira Cançado, o cursos de pós‑graduação, evoluindo em parcerias
Presidente do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento para efetivação de mestrados e cursos dessa
Funcional, Doutor Jarbas Soares Júnior, ex- envergadura no âmbito da instituição. O nosso
Procurador-Geral, que também empresta o seu centro de estudos, muito bem dirigido pelo
talento de organizações de eventos como esse. Doutor Jarbas e pela nossa colega, Daniela Arlet,
vem promovendo atividades culturais. Assim,
Cumprimentar o nosso Presidente da Associação
gostaria de fazer esse primeiro reconhecimento
Mineira do Ministério Público, o Promotor de Justiça
em homenagem aos seus dirigentes no âmbito da
José Silvério Perdigão de Oliveira, o presidente da
nossa instituição.
AMAGIS, o Desembargador Maurício Soares, todos
os procuradores de Justiça presentes na pessoa do A nova iniciativa, que constitui o “Projeto
Doutor Mauro Flávio Ferreira Brandão, de maneira Segundas‑Feiras às 18 horas”, também foi uma
especial, o Ministro Arnaldo Esteves, promotores e iniciativa extremamente feliz. Tivemos uma
servidores dessa Casa. exposição a respeito do evento da Samarco,

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ministrada pelos promotores de Justiça da área Peço permissão a todos para saudar as autoridades
ambiental, área essa que é das mais desenvolvidas presentes na pessoa do Procurador-Geral, Doutor
da instituição. Na segunda à noite, tivemos uma Carlos André, e do Diretor do Centro de Estudos,
exposição extremamente interessante a respeito Doutor Jarbas Soares Júnior. Todos os demais têm
de acordos de leniência, feita pelo Ministro Bruno toda a minha gratidão por comparecerem.
Dantas. E, hoje, temos a honra de contar com a
presença do Ministro Napoleão Nunes Maia para Realmente, é uma honra vir a Minas Gerais, a
discorrer sobre um tema também extremamente Belo Horizonte. Eu tenho a admiração que todo
atual e interessante: o garantismo judicial na brasileiro tem por Minas. E, no meu caso, eu tenho
improbidade administrativa. Passo diretamente a o acréscimo particular dos meus vínculos com
palavra ao ministro para que profira a sua palestra. Pouso Alegre. Realmente, vivi algum tempo lá,
Muito obrigado e bom aproveito. onde conheci mineiros exemplares, como o Doutor
Jorge Beltrão, o Doutor Simão Pedro de Toledo, que
MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO: foi prefeito de Pouso Alegre, deputado estadual,
Boa noite. Acabamos de ver as generosidades de conselheiro do Tribunal de Contas e professor de
Minas. Tudo aquilo que o meu prezadíssimo amigo, Direito Civil na Faculdade de Direito do Sul de
Doutor Jarbas, disse a meu respeito, só é verdade Minas. E conheci, com certa distância, por ser ele
na questão da minha admiração por Minas. O mais idoso do que eu, o Doutor Milton Reis, que
acréscimo que ele fez foi por causa da generosidade. foi deputado federal, pessoa bastante respeitada
O que o meu irmão Antônio Lopes Neto falou só naquela região e muito estimada.
tem explicação no exagero do afeto. Nunca tinha
ouvido ninguém dizer tanta coisa a meu respeito Venho falar sobre o garantismo judicial. Comecei
e de uma maneira tão torrencial. Fiquei realmente a despertar para os problemas desse tema com
muito comovido, agradecido e emocionado. o Professor Paulo Bonavides, que está hoje com

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91 anos de idade. Ele me alertava para a idéia contemporânea com a preservação e com as tutelas
de que a função de julgar consiste em garantir o penais do meio ambiente? Esse é um interesse novo
direito das pessoas. Atualmente, a função de julgar e emergente. A macrocriminalidade econômica,
está praticamente dividida em duas vertentes tributária, financeira e a globalização das práticas
igualmente importantes e desafiadoras. Uma infracionais levou à expansão do Direito Penal e
vertente, que costumo chamar de preocupação com ao recrudescimento da sancionabilidade punitiva.
o eficientismo e o punitivismo, e outra, preocupada Então, criaram-se figuras delitivas novas, por
com a preservação dos direitos das liberdades e das exemplo, os crimes na internet.
garantias. Criou-se artificialmente uma espécie de
contradição ou de oposição entre elas. Talvez todos Tem havido um movimento normatizador,
nós possamos, ao refletir sobre esse divórcio postiço, definidor de novos delitos e, ao mesmo passo,
aparente e raso, desenvolver uma metodologia de um movimento recrudescedor das sanções das
aplicação das normas repressoras sem descambar figuras delitivas mais antigas: a expansão do
para o eficientismo, o administrativismo na função Direito Sancionador. Visualizei algumas situações
sancionadora ou o punitivismo desembargado, que em que se verifica o encurtamento das garantias
é uma visão repressiva totalista. As duas visões das pessoas, em benefício desse pavor em que
são absolutamente compatíveis. A questão do vive a nossa sociedade. Podemos negar que
eficientismo no Direito Sancionador, tanto no Penal vivemos apavorados? Não. Temos que reconhecer
como no Direito Sancionador, tem se desenvolvido, que vivemos sob uma ameaça constante. E se
sobretudo, pela expansão das formas novas de pensarmos, por exemplo, no terrorismo, nos
atos infracionais, os novos interesses e os novos sequestros, nas expulsões forçadas como as que
bens jurídicos merecedores de tutela repressora. acontecem hoje com levas e levas de migrantes
Por exemplo, o meio ambiente. Como um jurista infelizes que morrem afogados no Mediterrâneo,
de 30, 40, 50 anos atrás, veria a preocupação fugindo da Síria, do Iraque, do Irã, em busca da

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Europa. São problemas absolutamente aflitivos. E o possam ser segregados em regimes disciplinares
Direito Sancionador contemporâneo tem resposta diferenciados, por longos períodos de tempo, sem
para isso? Será que o garantismo pode realmente sol, sem higiene, justamente pelo fato de serem os
ser confundido ou assemelhado a uma espécie de inimigos. Os terroristas, por exemplo. Alguém que
tolerância com a impunidade? Ou uma espécie de faz parte de um grupo de terrorista coloca uma
afago à criminalidade, aos atos infracionais? Ou bomba em uma estação de ônibus ou de metrô,
condescendência com essa situação que nos deixa como aconteceu na França e na Bélgica. Pegando-
completamente assustados? se esse sujeito, o que se pode fazer para obrigá‑lo
a revelar onde está a bomba? A resposta instintiva
Talvez as palavras garantistas soem aos ouvidos ou intuitiva é: tudo. Torturar e ameaçar a família
dos que são responsáveis pela movimentação dele na frente dele para que ele revele. Ou deixar
das instituições punitivas como uma espécie de que a bomba exploda e vitime dezenas, talvez
oposição. Tanto é assim que um famoso professor centenas de pessoas? Essa história do punitivismo
alemão, já bastante idoso, mas ainda atuante, e do preventivismo tem que nos alertar contra
o Professor Günther Jakobs, criou a expressão isso. Ela poderá nos levar, talvez, a um estado de
Direito Penal do Inimigo. Ele estruturou com barbárie, em que trataremos essas pessoas com a
tanta maestria e metodologia científica o seu crueldade própria que se reserva aos inimigos.
pensamento que acredito que ele tenha razão.
Diz ele: “A sociedade tem os seus inimigos. Quem Há um episódio interessante, referente a essa
são os inimigos? São aqueles que delinquem temática, que é atribuída ao general Massu. O
frequentemente ou aqueles que cometem ilícitos general Jacques Massu foi um general francês
pavorosos”. Esses são inimigos. Para os inimigos, que comandava as tropas de ocupação na Argélia
não há proteção das garantias. Por isso é possível até 1965, quando houve a rebelião dos argelinos
admitir, nesse plano do Professor Jakobs, que eles contra a missão francesa. Ele criou uma doutrina

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chamada de massuismo, que era apregoadora No meu livro, abordo as medidas que o nosso
da legitimidade da tortura, do suplício, da morte, sistema jurídico tem adotado na linha do Direito
para se obterem informações necessárias para Penal do Inimigo. Segundo essa linha, as cadeias
repressão ou prevenção de desastres originários não devem oferecer conforto, mas sim suplício,
de grupos de terroristas. Essa história do Direito sofrimento, para que o sujeito tenha medo. Em
Penal do Inimigo ou do Direito Sancionador do primeiro lugar, deve-se considerar a tipificação
Inimigo tem uma força atrativa enorme, porque expansiva de ilícitos de mera conduta, mesmo que
apela para o nosso sentimento de preservação e não produzam o resultado naturalista, o resultado
de defesa, como também para o sentimento de empírico lesivo. Chama-se a isso preventivismo.
vingança, de represália, de vendetta. Pela mera conduta, ele tem que ser punido logo. É
a tipificação expansiva de ilícitos de mera conduta,
Para que tem filha, neta, irmã, sobrinha, que sofreu independentemente da produção de efeitos lesivos
violência, digamos assim, pedófila. Se a autoridade concretos ou empiricamente verificáveis. Por
pública imobilizasse o ofensor e o entregasse a um exemplo, o artigo 11 da Lei de Improbidade, diz
parente, dando a este plena liberdade para aplicar “ofender os princípios da administração”. Sanção
uma pena que ele considera merecida, quem, em de ato ímprobo. Nós consideramos um ato ilegal
sã consciência, teria a moderação, o equilíbrio e automaticamente ímprobo? Se sim, sempre que
a humanidade de não degolar essa pessoa, se o se conceder um habeas corpus ou um mandado
Direito Penal do Inimigo apela para um sentimento de segurança, tem que processar a autoridade
“zoológico” nosso? Nós somos animais; defendemos impetrada por prática de um ato ímprobo. Evidente
as nossas crias, a nossa companheira, a nossa que não é assim. Então, no caso do artigo 11 da
família, utilizando todos os meios necessários para Lia, é preciso encontrar um moderador para isso.
imobilizar o agressor. Ou não? No STJ, achávamos que o moderador era o dolo.
Então, quando o sujeito ofendia os princípios,

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ainda que não houvesse resultados materiais, A adoção de nomenclatura agressiva de certos
empíricos ou verificáveis. Assim, quando há ofensa diplomas legais como a Lei de Combate à
dolosa aos princípios, é que o autor se sujeita às Corrupção, Lei dos Crimes Hediondos, etc. Usa-
sanções da Lei de Improbidade. Se não, é um se um rótulo assustador, intimidador. A redução
caso de mera ilegalidade. O ministro Fux afirma de garantias e prerrogativas processuais dos
que a improbidade é ilegalidade intensamente acusados, como a inversão do ônus da prova, a
qualificada. Do contrário, seria caso de Direito Penal presunção de culpa ou a postergação do exercício
do inimigo. Por exemplo, ofensa à impessoalidade, da defesa. Esse núcleo aqui é fundamental.
por compra de bens sem licitação. Diariamente, lido com isso na Primeira Turma.
Determinado agente público, fiscal da Receita
O segundo item importante é a elevação das sanções Federal, apresentou um descompasso entre os
de atos considerados apenas preparatórios de ações recursos disponibilizados na conta dele e os seus
ilícitas. O abandono da proporcionalidade entre a rendimentos como servidor público. Num ano, ele
ação do agente e a sanção a ser-lhe aplicada. Por apresentou um resultado de cem, mas o salário
exemplo, no caso da licitação que o sujeito deixou foi oitenta. Foi acusado de receber propina em
de fazer, se ele tivesse se apropriado de parte do relação aos vinte. Ele provar que não é propina.
dinheiro, objeto do contrato, qual sanção seria Inversão do ônus da prova. Como ele vai provar

dada a ele, já que só por não ter tido a licitação são que não foi propina? Essa inversão do ônus da

atribuidas a ele as sanções do artigo 12? Então, se prova carrega no imputado a prova da inocência,
já que ele vai ter de provar o fato negativo, ou
ele tivesse se apropriado para si ou para outrem,
seja, que não fez aquilo. No sistema garantista,
para guardar a proporção, ele deveria ser fuzilado.
quem deveria provar que aqueles vinte decorrem
Então, não há proporção.
de atos ilícitos é o acusador. É muito difícil provar
isso. É mais prático inverter o ônus da prova. Se

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ele é o inimigo, então que prove que não fez isso. Costumeiramente, o órgão da acusação não
Outra situação: presunção de culpa. Se a pessoa tem pressa em desenvolver um processo nessas
tem R$20 mil a mais na conta, é culpada por ter condições, porque o sujeito está afastado. Assim,
recebido propina. Essa soma extra só pode ser o processo não avança. Tenho adotado certa
propina, e não outra coisa. Fica assim o sujeito cautela em caso de afastamento. Só o tenho
crucificado. afastado naquelas velhas condições do artigo 312
do Código de Processo Penal: se há risco de o
No famoso livro “O Processo”, de Franz Kafka, há sujeito fugir, de voltar a delinquir ou de atrapalhar
um episódio parecido. Os agentes da polícia tcheca a instrução. Fora dessas hipóteses, não deve haver
prendem Joseph K., no dia do aniversário de 30 afastamento. Então, aquela atitude é uma espécie
anos dele e o conduzem para o comissário chefe. de antecipação da sanção.
O comissário chefe, diante dele, pergunta: “O que
você tem a dizer?” Ele responde: “Eu sou inocente”. A prisão policial para investigação ou averiguações
“Inocente em relação a quê?” Aí se instala um sem controle judicial. Por exemplo, a condução
processo no qual se desconhece o motivo da forçada de um sujeito que nem foi intimado para
acusação feita pelo acusador. “Sabe o que é isso? comparecer. Recentemente, um ex-ministro foi

Prova contra você. Você tem cinco dias para se conduzido sem ter sido convidado. O ideal era
convidá-lo a comparecer à Delegacia. Se ele
defender”. Há presunção de culpa e postergação
não comparecesse, aí sim seria razoável que se
do exercício da defesa. Essa situação leva o infeliz
mandasse conduzi-lo. No entanto, costuma ocorrer
bancário, Joseph K., ao suicídio.
o contrário, o que cria uma exaltação social em
prejuízo do sujeito, que, conduzido, vai abatido,
A abolição de limitação temporal de prisões
assustado e humilhado. Mas não fazer isso significa
cautelares ou preventivas acontece, às vezes,
ser condescendente com o que supostamente ele
quando o sujeito é preso ou afastado das funções.
fez? Eis um grande problema moral.

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A mitigação da exigência da justa causa para a fortuitas, infiltração de agentes. Quantos agentes
denúncia criminal e a admissão de delações infiltrados estão aqui? Não sabemos quem nos
anônimas. Mitigação da justa causa. Nos dizeres ouve e nem o que pensam a nosso respeito.
de Frederico Marques, “justa causa é o coração
da denúncia”. Criou-se uma expressão que A complementação judicial das falhas da
só tem de respeitável em latim, in dubio pro imputação. Na típica denúncia ou a ação inicial de
societate. Na dúvida, o juiz recebe a denúncia. improbidade que não contém a descrição “quem,
Recentemente, presenciei uma denúncia de ação quando, como onde e por quê”. Esses elementos é
de improbidade que foi recebida da seguinte que permitem que o sujeito faça sua defesa. Não
forma: “a documentação apensa me convence da é dever do juiz, procurar tais elementos relativos à
necessidade de instaurar a ação penal; cite‑se”. imputação, porque ele sai moralmente do nível da
E não há nenhuma fundamentação. O acusado é isenção. Trata-se de um encargo dos promotores,
que vai mostrar que não cometeu esse ilícito pela da acusação. A grande maioria dos promotores do
existência da presunção de “culpabilidade”. Brasil desempenha esse encargo com competência
admirável, o que confere solidez à acusação e
Nas delações anônimas, o indivíduo diz a respeito convicção ao juiz que recebe. Do contrário, o
do outro anonimamente o que bem entender. Na juiz terá de ser ampliador ou meio ampliativo da
delação premiada, também. O ministro Teori afirma: imputação, completando aquilo que a acusação
“Delação premiada não é prova de nada. É, no não especificou.
máximo, indício”. Adoção de métodos puramente
Rigorismo das condições carcerárias e mesmo
inquisitoriais de interceptação e de acolhimento de
a sua desumanização. Quem é que é acha que
provas de origem ilícita, como escutas telefônicas
bandido deve ser tratado a pão de ló? Ou a pão
clandestinas, buscas e apreensões inespecíficas ou
de queijo? Ninguém. Será isso o correto do ponto

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de vista humanitário? Prender alguém e deixá‑lo do nível de Ferrajoli e de Zaffaroni, pois não há no
completamente entregue às imundices, à falta de país preocupação em relação a essa problemática,
higiene, à falta de assistência, etc. A questão das como está havendo agora. Isso pode desagradar
cadeias. O Ministro Gilmar, quando foi presidente parcela do Ministério Público, pois o exercício da
do CNJ, fez um levantamento muito rigoroso função ministerial, que é repressora, é relativizada
sobre as condições carcerárias do país. Muitos pelas garantias processuais. Assim, a persecução
promotores têm uma preocupação agudíssima penal ficaria comprometida. Vivemos tempos
com esse tema. O Estado têm que providenciar difíceis de banalização do crime e do banditismo.
condições carcerárias minimamente humanas ao Qual é a solução para isso? Não sei se a radicalização
preso, ou, então, terá de soltá-lo. da repressão pode conduzir a um resultado
feliz. Julgamos um caso, na Primeira Turma do
Limitação e o controle eletrônico do livramento STJ, de um prefeito de uma cidade de cerca de
condicional e da liberdade provisória por meio do 20 mil habitantes do interior de Pernambuco,
uso de tornozeleira. O incentivo ao delacionismo
que, sem licitação, comprou uma quantidade de
oportunista. Com a premiação pelo indigitamento
urnas mortuárias, passagens para o pessoal ir da
de elementos de prova, ainda que isolado. No
cidade dele para Recife e medicamentos. Tudo
contraponto, houve o ressurgimento do garantismo.
sem licitação. Grampeado, o prefeito tornou-
Entre os cultores contemporâneos dessa idéia
se réu numa ação de improbidade. A prestação
está o Professor Luigi Ferrajoli, italiano e muito
desses serviços rendeu vantagem pessoal para o
conhecido, e o Professor Raul Zaffaroni, argentino,
prefeito? Com certeza, não. Os caixões de defunto,
aposentado há pouco tempo como ministro
da Suprema Corte. Eles têm um ponto de vista as passagens para Recife, foram compradas a

radicalmente oposto em relação ao Direito Penal mercado normal, e não em valor muito superior

do Inimigo. No Brasil, não há autores garantistas ao de mercado. Os prestadores de serviços não

30
eram parentes dele. Então, onde está o ilícito? Os Por que onde está a justificativa espiritual para
prefeitos são vistos, no mínimo, como suspeitos de esse tipo de repressão nesse exemplo? Olhe, essas
serem políticos corruptos. matérias aqui são matérias altamente explosivas,
altamente importantes, intensamente complexas.
Os promotores, os juízes, os desembargadores, os E, com certeza, exigem ou exigirão essas matérias
ministros, terão de encarar com muita seriedade muito tempo de reflexão, muitos debates, muitas
os problemas sociais que estamos vivendo. O iniciativas do Jarbas desse porte, para nós
problema do desamparo, por exemplo. Quem elaborarmos uma solução não atrase a eficiência
pode exigir que um sujeito faminto, doente, da repressão e não esmague a dignidade das
desempregado, tenha a resistência cívica e moral pessoas. Algo deve preponderar na repressão?
de rejeitar cem reais pelo voto dele? Quem no Podemos destruir a dignidade, ignorar a
lugar dele rejeitaria? Esse eleitor está em estado dignidade das pessoas em nome do punitivismo,
de necessidade. É um instituto do direito penal do eficientismo, do consequencialismo, da
clássico. Seria razoável esperar que um sujeito necessidade indiscutível e inegável de reprimir
nessas condições tenha a energia moral e ética de os ilícitos? Então, tudo é lícito em nome da
rejeitar tal soma de dinheiro? repressão? Quer dizer, o Estado, o poder público
pode delinquir para reprimir a delinquência?
Gostaria de encerrar a palestra, dizendo que o tema
do garantismo é muito maior do que preocupações Sempre termino as minhas falas e minhas
jurídico processuais. É um problema vital, de locuções com a lembrança da insuficiência de
sobrevivência como sociedade, como pessoa nossas palavras para expressar a grandeza e a
humana. Eu não condenaria esse eleitor que magnitude das coisas que nos cercam. As palavras
recebeu os cem reais. Ou cem telhas para cobrir conclusivas do último versículo do evangelho de
um casebre. Ou uma feira, ou um pneu de bicicleta. São João dizem o seguinte: “Se eu fosse escrever

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todas as maravilhas que este Homem realizou, Era essa mensagem que eu queria trazer para
todos os livros do mundo não caberiam.” Este vocês. Somos Noés que, com a inspiração e o
Homem é Jesus. Se eu fosse falar para vocês toda apoio do Senhor, construirão a barca, que não
a trama, todas as perplexidades, todas as dúvidas, naufragará. Muito obrigado.
todos os embates morais e éticos que enfrentamos
na atividade repressora, passaria a semana toda PROCURADOR DE JUSTIÇA JARBAS SOARES
falando e, mesmo assim, não expressaria tudo isso JÚNIOR: Entrego a Vossa Excelência o certificado
que pertence a esse domínio complexo. para registrar a sua passagem pelo Ministério
Público. Agradeço pela palestra, proferida do alto
Entretanto, isso não nos deve desanimar, nem nos da sua judicatura. Quero também agradecer a
fazer esmorecer, nem nos provocar desalento. Em todos os presentes. Muito obrigado.
uma outra passagem bíblica igualmente importante,
o Senhor fala para Noé sobre a relevância
indispensável do esforço. Ao receber a incumbência
de criar uma arca para nela colocar todos os seres
vivos, a fim de salvá-los de um castigo terrível,
Noé perguntou ao Senhor, desesperado: “É a mim
mesmo que o Senhor quer atribuir essa tarefa? Não
sou carpinteiro, não entendo nada de navegação,
não tenho serrote, prego, nem tábua. Eu não sei
fazer nada disso. Como que sou eu que vou fazer
isso?”. O que o Senhor disse a ele? “Comece que
eu te ajudarei”. Foi o que o Promotor Jarbas fez ao
começar a discutir tais assuntos. E, com certeza,
vai ter o apoio das luzes do Senhor.

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TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: IMPROBIDADE de Justiça José Silvério Perdigão de Oliveira. Para
EMPRESARIAL PROFERIDA POR FÁBIO a abertura, ouviremos o Diretor do Ceaf, Jarbas
MEDINA OSÓRIO, PARTE DO “PROJETO Soares Júnior.
SEGUNDA-FEIRA ÀS 18H” REALIZADA EM 30
DE MAIO DE 2016 PROCURADOR DE JUSTIÇA JARBAS SOARES
JÚNIOR: Boa noite a todos. Em nome do
Procurador-Geral de Justiça, Carlos André Mariani
Bittencourt, tenho a grata satisfação de saudar a
MESTRE DE CERIMÔNIAS: O “Projeto Segunda-
presença do eminente Advogado-Geral da União,
Feira às 18h” é uma iniciativa que tem por objetivo
Fábio Medina Osório.
a discussão de temas jurídicos contemporâneos.
Na edição de hoje, trataremos sobre improbidade
Seguindo a orientação do eminente Procurador-
administrativa. Convidamos para compor a Mesa,
Geral de Justiça, a Procuradoria-Geral tem feito
o Diretor do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento
constantes debates sobre temas contemporâneos
Funcional do Ministério Público - Ceaf, o Procurador
na nossa Casa, com juristas respeitados pelas
de Justiça Jarbas Soares Júnior; o Advogado-Geral
suas obras e pelas funções que exercem. Dando
da União, Fábio Medina Osório, o Procurador-
seguimento a esse trabalho, temos o privilégio de
Chefe da Procuradoria da União no Estado de
receber o nosso colega, ex-Promotor de Justiça,
Minas Gerais, Adilson Moreira Júnior; o Procurador
Fábio Medina Osório. Ele é Doutor em Direito pela
do Estado e Diretor do Centro de Estudos da
Universidade de Madri, foi Promotor de Justiça no
Advocacia-Geral do Estado, Alberto Guimarães
Rio Grande do Sul, fundou a disciplina “Princípios
Andrade, representando o Advogado-Geral do
de Direito Administrativo Sancionador” nos cursos
Estado, Onofre Alves Batista Júnior; o Presidente da
de mestrado e doutorado da Universidade Federal
Associação Mineira do Ministério Público, Promotor
do Rio Grande do Sul. É parecerista do Centro

33
de Estudos Judiciários e da Revista Brasileira da pessoas físicas e jurídicas, quando elas transgridem
Fundação Getúlio Vargas de Direito Administrativo. normas relacionadas à coisa pública do nosso país.
Ele nos atende, por amizade e apreço pelo Ministério
Público de Minas Gerais, já que, há poucos dias, Essa lei dispõe sobre a responsabilização
assumiu a Chefia da Advocacia-Geral da União e administrativa e civil das pessoas jurídicas
pela prática de atos contra a Administração
tem estado bastante ocupado.
Pública nacional ou estrangeira. São normas que
Passo a palavra para o ilustre palestrante, estão integradas no Regime Jurídico do Direito

agradecendo pela presença. Administrativo Sancionador. Ela se aplica a pessoas


jurídicas nacionais ou estrangeiras que estejam
MINISTRO FÁBIO MEDINA OSÓRIO: Boa noite a no Brasil e que são responsabilizadas por atos de
todos. Cumprimento a Mesa e todas as autoridades terceiros, ou seja, por haver vínculos dos mais

presentes, na pessoa do Doutor Jarbas Soares diversos com tais pessoas jurídicas (vínculos de
colaboração, de fornecimento, de comércio ou não,
Júnior. É uma honra estar no Ministério Público
de emprego) e que pratiquem atos no interesse
do Estado de Minas Gerais, podendo, mais uma
das pessoas jurídicas. A lei, que entrou em vigor
vez, partilhar algumas reflexões sobre o tema da
em 29 de janeiro de 2014, está irradiando efeitos
improbidade empresarial. A Lei n. 12.846, de 1º
desde 29 de janeiro de 2014, quando entrou em
de agosto de 2013, a chamada Lei Anticorrupção
vigência, podendo ser aplicada na via judicial
Empresarial ou Lei da Empresa Limpa, é vertente
ou administrativa, o que a diferencia de outros
do chamado Direito Administrativo Sancionador no
diplomas, aplicáveis apenas na via judicial.
Brasil. É um tema que nos aproxima sobremaneira
do Ministério Público brasileiro, porque é um desafio Na via judicial, ela pode ser aplicada em vários
das instituições republicanas a implementação legitimados ativos, entre os quais se destacam
dessas leis que tratam da responsabilização das os representantes dos entes federados. No

34
caso, no âmbito federal, a AGU tem legitimação passam a ter que suportar, no âmbito da chamada
ativa, mas em outros entes federados, as responsabilidade objetiva, as sanções previstas
advocacias públicas funcionam também como pela lei, que podem vir a ser aplicadas tanto na
colegitimados. Sem dúvida, o Ministério Público esfera judicial, quanto na administrativa.
brasileiro é um importante legitimado ativo. No
âmbito administrativo stricto sensu, há os entes A responsabilidade objetiva ocorre sob o viés
federados, a CGU como Poder Executivo, mas há da culpabilidade por organização defeituosa. A
também os Poderes da República, pois praticam pessoa jurídica é chamada a responder, porque
atos administrativos, pois estão na condição de ela tem uma organização defeituosa. Ela responde
contratantes com pessoas jurídicas privadas. porque não tem mecanismos de compliance, ou
ferramentas de proteção à integridade institucional.
O que significa a Lei Anticorrupção e que Que ferramentas seriam essas? A lei não prevê
obrigações ela institucionaliza para as pessoas explicitamente. Ela prevê apenas genericamente
jurídicas privadas? Qual o significado dessa lei no que é necessário haver mecanismos de proteção
ambiente brasileiro? Por que ela é chamada de Lei e procedimentos internos de integridade, auditoria
da Empresa Limpa? Fundamentalmente, essa lei e incentivo à denúncia de irregularidades e a
institucionaliza obrigações para que as pessoas aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta
jurídicas controlem seus ambientes corporativos, ou no âmbito da pessoa jurídica. E prevê isso como
seja, pois elas passam a ostentar deveres públicos forma de atenuar sanções.
de autorregulação, obrigações de prevenção, de
controle e de contenção de ilícitos nas próprias No Brasil, atualmente, há um decreto federal que
organizações corporativas. Se as pessoas jurídicas trata do compliance no âmbito da Administração
não atuarem na prevenção, na investigação e na Pública federal. A priori, é necessário um marco
cooperação com as autoridades públicas, elas legal para disciplinar esse compliance em todas

35
as administrações públicas e para dar segurança Trouxemos para o âmbito da Advocacia-Geral
jurídica às empresas em todos os níveis, dando da União, a ideia, aprovada recentemente pelo
maior transparência a essas obrigações. As Presidente da República, de coordenar um grupo
obrigações de compliance não estão previstas de estudos interministerial, para tratar desse novo
na Lei n. 12. 846/2013, Que obrigações seriam marco legal. Isso é muito importante, porque a Lei
essas? Quais as exigências que a pessoa jurídica Anticorrupção, ao tratar da questão da probidade
deve satisfazer para estar em conformidade com a empresarial, busca contemplar um sistema em
ordem jurídica, de modo a excluir o nexo causal de que as pessoas jurídicas deveriam estar obrigadas
um ilícito praticado por terceiros em seu interesse e a adotar determinados comportamentos que
que possa dar suporte à imputação contra ela? Isso não estão referenciados na lei. Quais seriam
não está claro na lei e ocasiona, eventualmente, esses comportamentos para prevenção de
grave insegurança jurídica, porque os Municípios
ilícitos? Os ilícitos referenciados no artigo 5º da
poderiam regulamentar de forma completamente
lei são praticados por terceiros, que exercem
díspar entre si. Os Estados e a União têm sua
condutas tipificadas como de corrupção ou não.
própria regulamentação, mas nada impede que,
Por exemplo, um funcionário da empresa que se
no interior das próprias agências reguladoras e de
envolve na conduta de prometer, oferecer, dar,
outros organismos, possam criar, por meio do poder
direta ou indiretamente, vantagem indevida a
regulamentar, exigências diversas. Sem falar nas
estaduais, pois não temos um cenário muito claro agente público; ou aquele que financia, custeia,

em relação ao compliance para o setor público. O patrocina ou, de qualquer modo, subvenciona a
grande desafio é tratar de um novo marco legal, prática de ilícitos previstos nesta lei; ou, ainda,
de uma lei de compliance, de proteção e de defesa aquele que se utiliza de interposta pessoa ou de
da integridade no Brasil que possa contemplar e pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular
identificar, efetivamente, o espaço das obrigações reais interesses ou identidades dos beneficiários
para as pessoas jurídicas, privadas e estatais. de atos ilícitos praticados. Há uma série de

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outros ilícitos relativos a contratos e licitações, ilícitos, de cooperar, de criar um sistema de
a fraudes, ajustes, cartel, tentativas de impedir denúncias anônimas e de capturá-las no interior
procedimentos licitatórios, de criação irregular ou da organização empresarial, de ter um compliance
fraudulenta de pessoas jurídicas para participar officer independente dentro da sua estrutura, de
de licitações ou de contratos. Há também outras ter investigação privada, com autonomia. Então, a
condutas um pouco mais abrangentes, como, por pessoa jurídica não é mais vista como um ser que
exemplo, a criação de dificuldades nas atividades apenas representa os interesses privados do dono.
de investigação ou de fiscalização de órgãos, Isso ocorre no mundo inteiro, não estando restrito
entidades ou agentes públicos, ou a tentativa de apenas ao Brasil, por força das manifestações de
intervir em suas atuações, inclusive, no âmbito de junho de 2013. O Brasil foi um dos últimos três
agências reguladoras e de órgãos de fiscalização países da OCDE a incorporar essas tratativas
do Sistema Financeiro Nacional. Tudo isso denota e a trazer a Lei Anticorrupção. O país estava se
que as pessoas jurídicas privadas estão sujeitas negando a baixar o instrumento, mas acabou
à fiscalização, pois elas têm deveres públicos de sendo obrigado, porque as pessoas foram às ruas,
cooperação com as autoridades. a fim de pressionar o governo.

A pessoa jurídica não pode, simplesmente, manter A lei traz sanções. Como a pessoa jurídica é
ativos ocultos, fazer lavagem de dinheiro, praticar responsabilizada e o que ela precisa fazer,
ilícitos em detrimento do Sistema Financeiro efetivamente, para não ser responsabilizada? A lei
Nacional e se negar a cooperar com as autoridades, não diz. Quais são as consequências para a pessoa
sob o argumento do exercício de direitos de defesa. jurídica que tem um funcionário, fornecedor ou
Ela está numa situação muito distinta das pessoas consorciado, que corrompeu um servidor público?
físicas. Ela tem que ter um sistema de enforcement Qual é a proporção dos efeitos e a extensão desses
interno, tem que punir os dirigentes que praticarem atos para a pessoa jurídica? As sanções são severas,

37
do ponto de vista financeiro e de gravidade, pois discorda das pautas do governo federal, ele
causam a interdição dos direitos da pessoa jurídica, também está subordinado ao poder sancionador
podendo chegar à dissolução compulsória da dos municípios, dos estados, das agências
pessoa jurídica, à suspensão ou interdição parcial reguladoras. É necessária a criação de um marco
de suas atividades, ao perdimento de bens, direitos regulatório mais seguro, para que o país tenha uma
ou valores, à proibição de receber incentivos, agenda compromissada com a segurança jurídica
subsídios, subvenções, doações ou empréstimos e nesse terreno, que é muito nebuloso ainda.
sanções pecuniárias, em percentuais elevadíssimos
que podem levar à queda da pessoa jurídica. Há aplicabilidade imediata da lei,
independentemente da demora do próprio
Para excluir o nexo causal, a pessoa jurídica tem governo, federal, estadual ou municipal, para
de comprovar a realização docompliance, conjunto regulamentar a Lei nº 12.846, o governo federal.
de obrigações que a pessoa jurídica assume, Entretanto, a ausência de regulamentação não
interna corporis, e que mostra a conformidade dela impede a aplicação dessa lei. Ela já é aplicável pelas
com o sistema efetivo de códigos de ética e de advocacias públicas e pelo Ministério Público, que
conduta, de normatividade, de autorregulação, de
pode postular perante o Poder Judiciário. Por isso,
investigação privada de ilícitos, de independência
a autorregulação por parte das pessoas jurídicas
do investigador, do compliance officer, de
tem que se dar por meio de pautas internacionais,
autonomia, de cooperação com autoridades e com
enquanto não há efetividade do ponto de vista da
o seu comprometimento efetivo com pautas de
normatividade nacional com segurança jurídica,
sustentabilidade ética.
com densidade. As pessoas jurídicas têm que

O decreto federal enuncia isso, mas a pessoa buscar socorro nas normativas internacionais

jurídica está sujeita ao poder sancionatório, não e ir buscando criar uma agenda interna com

só da União, mas também, se o Ministério Público independência, com vinculação a compliance

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officers independentes, que possam se estruturar mostra que ele não está exposto à ingerência
em cooperação com essas autoridades e mostrar daqueles que estariam, em tese, sujeitos ao seu
robustez. Como exemplo, cito um caso de uma poder investigatório.
grande empreiteira, que esteve sob investigação na
Operação Lava-Jato e já foi condenada. Ela alegou A Lei Anticorrupção empresarial seria muito mais
ter um compliance efetivo e um compliance officer. bem designada como Lei da Probidade Empresarial,
Este veio a ser chamado pelo juiz e inquirido, mas porque ela exige, além de honestidade das
não conseguiu responder vários questionamentos, empresas, que a pessoa tenha organização pautada
o que revelou então que aquele compliance era de por sustentabilidade ética e eficiente. Os ambientes
fachada. Isso agravou a situação dos dirigentes ineficientes, os espaços opacos de desgoverno
daquela empresa. e, principalmente, a ineficiência endêmica, que
caracteriza o terreno fértil para a corrupção, vêm
Atualmente, no Brasil, a maioria das empresas têm de longa data. Essa lei pune a ineficiência sistêmica
compliance de fachada. Isso é um problema sério, das organizações empresariais ineficientes. As
que agrava a situação das próprias empresas. Elas organizações empresariais que não tiverem
contratam escritórios que fazem um serviço irreal, as ferramentas de contenção serão punidas.
ou contratam auditorias que prestam serviços Quando houver um ato praticado no interesse
idênticos para todas as empresas, copiando e da empresa, ela será fiscalizada ou alvejada por
colando da própria internet os códigos de conduta uma investigação, tendo o ônus de comprovar que
e de ética. É um risco muito grande, especialmente fez o processo investigatório e que está atuando
quando o compliance officer não tem autonomia para punir o infrator. Além disso, ela tem que
e não consegue responder questionamentos mostrar que dispõe de instrumentos de contenção
referentes à garantia institucional frente ao poder e que eles são efetivos. Assim, ela exclui o nexo
dos acionistas ou do dono da empresa e que de causalidade entre os pressupostos de sua

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responsabilidade e a ocorrência do ato ilícito. Com Finalizando, porque palestra boa é palestra
isso, ela consegue escapar da pretensão punitiva curta, o meu querido orientador, falecido em
do Estado. É assim que funciona. Portanto, esta é 2013, o professor Eduardo García de Enterría,
uma lei que tem todas as condições para um pleno
um dos princípios estruturantes das democracias
funcionamento no ambiente brasileiro.
contemporâneas é o princípio de interdição à
arbitrariedade dos poderes públicos. Podemos
Para que a lei funcione adequadamente, é
avançar, sim, no alargamento da pretensão punitiva
fundamental que o Ministério Público e a AGU
do Estado e no princípio da responsabilidade,
posicionem-se e que as instituições tenham uma
que é ínsito ao princípio republicano, mas sem
articulação cada vez mais coordenada, ou seja,
perder de vista que a raiz do devido processo legal
atuem sob o princípio da unidade de entendimento,
está na interdição à arbitrariedade dos poderes
da interpretação da lei e da segurança jurídica.
públicos, fator de legitimação dessas democracias
Entendemos como de importância crescente a
contemporâneas, das quais não podemos abrir
concretização das leis pelo prisma da advocacia pública
mão jamais.
e também do Ministério Público, o qual, de certo modo,
atua como grande advogado da sociedade brasileira,
Muito obrigado novamente pela oportunidade de
construindo uma exegese compromissada com a
estar aqui e de rever tantos amigos queridos. O
pauta coletiva e com o entendimento institucional,
Ministério Público de Minas Gerais é também o
ou seja, interditando a arbitrariedade do Poder
Ministério Público do meu coração, ao lado do
Público. Isso é muito importante, porque mostra
Ministério Público do Rio Grande do Sul, que é
que a racionalidade rastreável naquela compreensão
meu berço.
do alcance das proibições, das excludentes e dos
institutos aplicáveis.

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PROCURADOR DE JUSTIÇA JARBAS SOARES a representam. E tais representantes podem ser,
JÚNIOR: Obrigado, ministro Fábio Medina Osório. eventualmente, não só os dirigentes máximos,
Está aberta a oportunidade para perguntas ao mas também os servidores. Obrigado.
palestrante.
SENHOR FÁBIO MEDINA OSÓRIO: Obrigado,
SENHOR ALBERTO ANDRADE: Meu nome Doutor Alberto Andrade. Um questionamento
é Alberto Andrade, sou Procurador do Estado. muito oportuno. De fato, esse grupo de estudos
Gostaria que o senhor falasse a respeito da questão deve, sim, contemplar a participação dos estados.
federativa, que é preocupante. Uma lei dessa A lei suscita essa preocupação sobre o papel da
natureza, que vem em tão boa hora, precisa ter regulamentação dos Estados e dos Municípios, até
harmonia com os estados federados, juntamente porque, da forma como ela está posta, há forte
com certa harmonia interpretativa e aplicativa do perspectiva de fragmentação nessa regulamentação
Ministério Público, por ele ser o guardião das leis e um descontrole muito grande. Queremos

e o advogado da sociedade. Pergunto também se, enfatizar que o foco é quanto às obrigações desse

no projeto que o senhor anunciou estão incluídos compliance. A Lei Anticorrupção já contempla toda
a perspectiva de responsabilidade das pessoas
representantes de Estado de outras entidades,
jurídicas, as sanções e o processo. Atualmente,
como o próprio Ministério Público, além de englobar
o que está em jogo, é o conjunto de obrigações
o Estado de Minas Gerais. Com relação à empresa,
que faz com que as pessoas jurídicas estejam
como está sendo encarar nessa lei e na proposta
em conformidade com o sistema e que tenham,
de reforma da lei a questão da responsabilidade,
então, excluída a sua responsabilidade. A lei fala
porque a responsabilidade que interessa, no final
em responsabilidade objetiva, mas dependendo do
das contas, é a pessoal, porque a empresa é
caso, a responsabilidade da pessoa jurídica poderia
entidade abstrata que age por meio daqueles que ser até excluída.

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É imprescindível uma lei que estipule um limitação do porte das empresas para as quais
marco jurídico mais estável para que haja uma deve ser instituído o compliance.
previsibilidade mínima para as pessoas jurídicas.
Precisamos abrir a discussão sobre esse tema para MINISTRO FÁBIO MEDINA OSÓRIO: A lei não
criar, inclusive, excludentes de responsabilidade, limita, mas o decreto federal, por exemplo, faz
tornando o Brasil um pouco mais seguro de cortes e limitações em microempresas. Porém, a
investimento para as pessoas jurídicas privadas. lei não faz essa limitação. Obviamente que deve
Lembrando que a lei é autoaplicável, não depende, haver proporcionalidade em relação ao tratamento
portanto, dessa iniciativa. Há um decreto federal conferido às empresas, sem dúvida alguma.
que já regulamenta o compliance em âmbito
PROCURADOR PRESIDENTE JARBAS SOARES
federal, a CGU aplica a lei, o Tribunal de Contas da
JÚNIOR: Pelo que entendi, Ministro Fábio Medina,
União tem também trabalhado essa lei, o Ministério
a lei estabelece que o empresário não corrompa,
Público Federal já tem investigações em curso,
não use mecanismos contra o mercado e a livre
vários estados da federação vêm aplicando, com
concorrência. Além disso, que ele controle os seus
secretarias de controle da transparência atuando
e tenha um sistema interno de controle efetivo.
em estados da federação. O estado do Espírito
Assim, qual é o cenário que o estudioso do assunto
Santo já aplicou essa lei pelo Poder Executivo
e membro do Ministério Público vislumbra para a
estadual. Portanto, o que se torna iminente é o
sua própria atuação? Em segundo lugar, em qual
ajuizamento de ações civis públicas, visando à
situação entra o advogado da empresa?
aplicação das sanções.

MINISTRO FÁBIO MEDINA OSÓRIO: É muito


SENHORA MARIA TERESA CORA HARA: Eu
importante que se iniciem construções cada vez
sou Maria Tereza Cora Hara, sou Procuradora
mais coletivas para o tema. Defendo, há longa data,
do Estado. Gostaria de saber se houve alguma

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a tese de que o Ministério Público tem que começar posicionando-se no âmbito da autorregulação
a privilegiar o princípio da unidade institucional, das empresas. O advogado também tem munus
buscando entendimento da instituição para a publico. Ele vai ter de orientar e de prevenir,
interpretação da lei, por meio de estratégias de porque o Judiciário caminha, cada vez mais, para
atuação. A atuação individualista simplesmente uma situação muito complicada. O Judiciário está
cria, muitas vezes, um cenário de alta insegurança congestionado e não tem dado conta dos conflitos
jurídica. Esse é um primeiro ponto. E, se possível, que desembocam nas instituições. É inevitável que
que o Ministério Público caminhe, cada vez mais, o advogado desempenhe o papel de resolvedor de
em direção às construções em âmbito nacional. O conflitos fora do campo jurisdicional. No campo das
Colégio Nacional de Procuradores-Gerais de Justiça leis, o advogado deve ter um papel de orientação e
pode começar a buscar estratégias conjuntas. Em de construção de ferramentas de autorregulação,
megaoperações, como a Operação Lava-Jato, por dentro das empresas privadas ou das estatais, em
exemplo, é muito importante que visualizemos a cooperação também com o setor público.
harmonização de estratégias entre o Ministério
Público de um estado e o Ministério Público Vejo a expansão dos espaços públicos não estatais.
Federal. As procuradorias e as promotorias, assim Em muitos países, como no caso da Alemanha, é
como outras instituições, já não podem mais andar requisito para atuar como advogado a prestação
isoladas. O Estado é visto pelo contribuinte e pelo prévia de concurso público. Então, o advogado
cidadão por um prisma unitário. Nós, prestadores também é quase um prestador de serviço público,
de serviços públicos, temos a obrigação, sempre, com essa importância na sociedade. Temos de
de atuar em conjunto, de forma integrada e fiscalizar a atividade do advogado, pois é uma
articulada. Do ponto de vista do advogado, vejo função essencial à justiça. Essa atividade deve
que ele, cada vez mais, vai se posicionar como ser valorizada nessa dimensão. Se ele exerce uma
solucionador de conflitos fora do Poder Judiciário, profissão de uma dignidade institucional enorme,

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ele tem, também, compromissos éticos. Saber empresarial não veem com bons olhos esse novo
defender a sua função com dignidade corresponde estatuto normativo em gestação. Assim, acredito
à tarefa que a Constituição lhe outorga. A que ele, por tal motivo evidente, não tenha êxito.
tendência do nosso Judiciário é que grande parte Abstenho de emitir opinião sobre isso, se procede
dos problemas sejam resolvidos pelos advogados ou não, pois não me debrucei sobre esse tema e
à margem do Judiciário, como ocorre no sistema não tenho opinião formada sobre ele. No entanto,
norte-americano. não é positivo quando você ouve de segmentos
importantes uma opinião dessa envergadura.
PROCURADOR DE JUSTIÇA GERALDO FARIA
MARTINS DA COSTA: Boa noite. Sou Procurador SENHORA ÂNGELA FLORES FURTADO:
do Ministério Público de Minas Gerais. Há alguma Boa noite. Meu nome é Ângela Flores Furtado,
reflexão em andamento a respeito do advento de sou assessora da presidência da Federação
um novo Código Comercial e há alguma linha sobre das Indústrias de Minas Gerais - Fiemg. Estou
antinomias, ou até mesmo sincronia, entre esse representando o nosso presidente, Olavo Machado
novo Código Comercial e a legislação de combate
Júnior. Antes de perguntar, em referência à
à improbidade empresarial?
sua última resposta, que é sobre o movimento
empresarial ser a favor ou contra um código mais
MINISTRO FÁBIO MEDINA OSÓRIO: Há muita
resistência do setor empresarial a esse novo Código ético, a Federação das Indústrias quer um país

Comercial que está sendo gestado no Congresso absolutamente ético, e não corrupto. Inclusive, nós

Nacional. O setor empresarial tem dito que esse nos manifestamos maciçamente a favor das Dez
novo Código Comercial é feito por advogados para Medidas Anticorrupção. Só a nossa entidade de
criar mais burocracia e mais dinheiro para essa Minas Gerais entregou mais de dez mil assinaturas.
classe. Vários segmentos importantes do setor

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Qual é o limite correto de um código, de um muito forte e muito robusto de autorregulação,
programa de compliance da Federação das de descongestionamento do Judiciário. A
Indústrias? Se, por um lado, ela é uma empresa autorregulação pressupõe um estreitamento com
privada, por outro, é o somatório de cento e as autoridades públicas, para que elas reconheçam
trinta e sete sindicatos, que são os “acionistas” as penalidades aplicáveis ou aplicadas. O cenário
e que estão vinculados a centenas e milhares ideal de futuro seria evidenciado pela aplicação
de indústrias. Minas Gerais tem cento e vinte de sanções no âmbito da autorregulação sem
mil indústrias. Como a Fiemg, por meio de um que elas fossem repetidas na retrorregulação.
código de compliance, como empresa privada, A autorregulação do compliance como fator
deve influenciar os demais comportamentos das excludente de responsabilidade. Qual é essa
indústrias e dos sindicatos a ela vinculados e autorregulação? Que sanções que devem ser
como ela pode denunciá-los e puni-los? aplicadas pelas empresas que tornem suficiente
e proporcional o exercício do enforcement e que
MINISTRO FÁBIO MEDINA OSÓRIO: O grande evite que a empresa seja processada, e não
desafio é criar um sistema de autorregulação. apenas sancionada. Hoje, o dano reputacional já
Há alguns modelos funcionando em mercado de ocorre com o fato de a própria empresa ser alvo
capitais como a ANBIMA – Associação Brasileira das de investigação. Enxergamos isso no âmbito da
Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais, Operação Lava-Jato, do ponto de vista até político,
por exemplo, que pode servir de referência para quanto aos danos reputacionais que uma pessoa,
e inspiração para construir novos referenciais ou empresa, sofre, por ter sido meramente citada
e aprimoramento. A ANBIMA parece um modelo numa operação, quanto mais estar investigada.
interessante para se tomar como referência. Há severa fiscalização da opinião pública sobre
No âmbito dos limites da minha função, não o que significa uma pessoa estar sob a égide
duvido que nós caminharemos para um sistema de uma investigação ou de um processo e os

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danos reputacionais inerentes a isso. Para que a pessoa precisa ter ativos contraídos ao longo da
empresa possa se proteger de eventuais riscos e vida empresarial para oferecer à autoridade,
de danos à imagem, ela deve ter um compromisso na hipótese de ser flagrada em ato ilícito. E que
efetivo com a autorregulação. Tornar isso real é ativos serão esses, senão gravações, imagens e
uma transformação de paradigma muito violenta informações valiosas para as autoridades? Trata-se
e muito difícil de ocorrer. É algo complicado, de um ambiente muito instável e muito volátil para
porque as empresas estavam acostumadas com a os agentes de atos ilícitos, o que traduz um novo
formação de cartel, com a prática da corrupção, modelo de espaço em que há uma revolução de
com condutas anticompetitivas que estão banidas. paradigmas. E esse novo ambiente reformula muita
Por que elas estão banidas? Ora, atualmente, coisa, pois traz a questão da investigação privada
além de vivermos em um ambiente tecnológico para dentro das empresas. A empresa passa a ter
altamente devassado que não existia antigamente, que investir não mais na conduta anticompetitiva,
temos ferramentas de investigação que tornam mas na fiscalização do concorrente. Então, ela terá
o espaço para a prática de ilícitos altamente de investir pesadamente contra o seu concorrente
paranoico. É muito difícil, portanto, para aqueles que faz algo errado. Pode-se dizer que tal situação
que estão praticando atos ilícitos, cultivarem laços é de denuncismo, de guerra e de selvageria. Só
de confiança entre si. É preciso ter uma rede de que esse é o mundo dos investigadores privados. É
contatos minimamente confiável para praticar um mundo de judicialização muito mais duro, mas
qualquer conduta, mais ainda para poder praticar que requer novas estruturas para as quais o setor
ilícitos. Isso acaba entrando em erosão quando há privado e o setor público não estão preparados.
instrumentos agressivos de delação premiada, de As pessoas que mantinham conversas ilícitas
acordos de leniência e de colaboração. Já se fala estão sendo derrubadas. O ambiente tornou-se
em gravações unilaterais como head de delação muito instável, muito volátil e muito perigoso para
premiada futura e incerta, o que significa que a o cometimento de crimes. O custo da corrupção

46
aumenta muito nesse novo ambiente em que as
empresas e o setor público investem em ferramentas
mais agressivas. Quem largar na frente terá, então,
melhores condições de competitividade.

PROCURADOR DE JUSTIÇA JARBAS SOARES


JÚNIOR: Eu quero agradecer ao Ministro Fábio
Medina Osório, por ter aceitado o nosso convite,
antes de ele se tornar AGU. Agradeço à equipe
do Ceaf, aos colegas do Ministério Público, aos
servidores presentes, à Fiemg, à Polícia Militar,
à Advocacia-Geral do Estado, à AGU, à OAB, aos
alunos da Faculdade Dom Hélder Câmara, ao Danilo
de Paiva, da Universidade Federal de Minas Gerais
e da Faculdade Milton Campos. Boa noite.

47
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: NOVO CPC: Schietti; o Defensor Público e Coordenador Cível
PRECEDENTES VINCULANTES PROFERIDA da Capital Alexandre Tavares, representando o
POR ROGERIO SCHIETTI MACHADO CRUZ, Defensor Público-Geral em exercício, Wagner
PARTE DO EVENTO “SEGUNDA-FEIRA, ÀS
Ramalho Lima e o Advogado-Geral Adjunto Marcelo
18H”, REALIZADO EM 13 DE JUNHO DE 2016
Pádua Cavalcanti, representando o Advogado-
Geral do Estado Onofre Alves Batista Júnior.

MESTRE DE CERIMÔNIAS: O Ministério Público Destacamos a presença do Diretor do Centro de

do Estado de Minas Gerais, por meio do Centro Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério

de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional - Ceaf, Público, Procurador de Justiça Jarbas Soares


dá as boas-vindas a todos no “Projeto Segunda- Júnior; do Presidente da Faculdade de Direito
feira, às 18h”, uma iniciativa que tem por objetivo Milton Campos, professor Pedro José de Paula
a discussão de temas jurídicos contemporâneos. E, Gelape; da Vice-Diretora da Faculdade de Direito
na edição de hoje, trataremos sobre os precedentes Milton Campos, Tereza Mafra e da professora
vinculantes do Novo CPC. Excepcionalmente hoje, Lúcia Massara.
teremos, também, a assinatura do Termo de
Cooperação Técnica entre o Ministério Público do PROCURADOR DE JUSTIÇA PRESIDENTE
Estado de Minas Gerais e a Faculdade de Direito JARBAS SOARES JUNIOR: Boa noite. Saúdo
Milton Campos. Convidamos para compor a todos os ilustres componentes da Mesa.
Mesa o Procurador-Geral de Justiça do Estado de
Minas Gerais, Carlos André Mariani Bittencourt; o O Ministério Público, conforme orientação do
Corregedor-Geral do Ministério Público, Procurador Procurador-Geral de Justiça, organizou as
de Justiça Paulo Roberto Moreira Cançado; o segundas-feiras para a discussão de temas jurídicos
Ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogério

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contemporâneos e com pessoas que agregam o de Justiça Jarbas Soares Júnior; pela Faculdade
nosso conhecimento e nossa atividade profissional. Milton Campos, assinam o professor Pedro José
Temos o privilégio de receber o colega, Rogério Paula Gelape e a professora Lúcia Massara. O
Schietti, cuja presença é da mais alta relevância. termo de cooperação vai devidamente assinado.

Vamos assinar um termo de cooperação com a PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA CARLOS


Faculdade Milton Campos. O convênio celebrado ANDRÉ MARIANI BITTENCOURT: Boa noite.
vai permitir ao Ministério Público realizar com as Cumprimento o Ministro Rogério Schietti, que nos
Faculdades Milton Campos a pós-graduação lato honra com sua presença; o Corregedor-geral, o Dr.
sensu, que será realizada na nossa instituição. Paulo Roberto Moreira Cançado, os representantes
Agradeço aos integrantes das Faculdades Milton da OAB, da Defensoria Pública, a Diretoria da
Campos, não só pelo convênio, mas pela presença. Faculdade Milton Campos. É grande a satisfação
Muito obrigado e um bom curso. de firmar esse Termo de Cooperação Técnica com
a renomada Faculdade Milton Campos.
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Termo de Cooperação
Técnica que, entre si, celebram o Ministério Público Cumprimento, também, de forma especial o
do Estado de Minas Gerais, por intermédio da nosso ex-Procurador-Geral de Justiça, Doutor
Procuradoria-Geral da Justiça, com a interveniência Epaminondas Fulgêncio, que intermediou e
do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, aproximou o Ministério Público da Faculdade Milton
Ceaf, e o Centro Educacional de Formação Superior Campo; o Doutor Jarbas Soares Júnior, Diretor do
Limitada - Cefos, com a interveniência da Faculdade Ceaf, que tem promovido várias atividades junto
de Direito Milton Campos. Assinam pelo Ministério ao nosso Centro de Estudos e Aperfeiçoamento
Público, o Procurador-Geral de Justiça Carlos André Funcional. O Ceaf foi tomando dimensão ao
Mariani Bittencourt, o Diretor do Ceaf, Procurador longo do tempo, deixando de promover apenas

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um treinamento inicial para os novos membros germânica, integrante da Civil Law, não se rege
da instituição, para alargar as suas atividades pelos precedentes, o que constitui um grande erro.
de formação e de desenvolvimento intelectual Mais do que nunca, tem se afirmado a noção de
de membros e servidores. Recentemente, que, como no Direito dos países anglo-americanos,
transformou-se numa escola de governo. Muito o Direito brasileiro também se rege pela força
obrigado e bom proveito. dos precedentes, não com a mesma tradição e
intensidade, mas com intensidade crescente. Daí
MINISTRO ROGERIO SCHIETTI MACHADO a dificuldade de vivenciar o estudo do tema com
CRUZ: Agradeço ao Ministério Público de Minas Gerais escassa literatura no país, e, acima de tudo,
pelo honroso convite que me foi feito na pessoa do com uma rarefeita assimilação conceitual de
Doutor Jarbas Soares, amigo de longa data. tudo aquilo que implica a noção de sistema de
precedentes. Notamos a divisão clássica dos
Registro um agradecimento muito especial ao
países integrantes do sistema do Common Law,
Doutor Carlos André Bittencourt, por me receber
em que sempre se teve muita confiança na figura
no Ministério Público. Estou realmente me sentindo
do juiz e, lado outro, o sistema de Civil Law, do
em casa, não apenas porque volto às Minas Gerais,
qual fazemos parte, em que a confiança sempre
mas porque sou nascido nesse estado.
foi muito maior na figura do legislador.

Trata-se de um tema relativamente novo, não


Percebemos isso ao analisar os dois grandes
só porque ele vem robustecido pelo Novo Código
movimentos sociais e políticos que ocorreram na
de Processo Civil, mas porque é um tema pouco
história do Direito ocidental, principalmente nos
estudado nas faculdades. Sempre tivemos a ideia
países da Europa Continental. Eles se firmaram,
de que o Direito brasileiro, por integrar a família
sobretudo, a partir da Revolução Francesa e,
do Direito romano-germânico, de origem romano-
mais ainda, a partir do Iluminismo. Essas duas

50
grandes Revoluções, Francesa e Inglesa, talvez desse poder. Não havia separação clara entre os
tenham sido os movimentos sociais e políticos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, e os
dos quais se originaram algumas consequências juízes nada mais eram do que representantes dos
jurídicas. Enquanto na Revolução Inglesa, a governantes, agindo, portanto, em nome deles.
ruptura com o modelo anterior não foi tão forte, Isso criou um modelo despótico e sem controle.
na Revolução Francesa, por sua vez, os países da Talvez não por outro motivo que floresceu,
Europa Continental sofreram grave ruptura. Enfim, nesse período, uma inquietude também na área
havia uma cultura denominada de Antigo Regime, do Direito, sobretudo penal, para a criação de
com as monarquias absolutistas dos séculos XVI garantias e de direitos que, até então, não eram
e XVII, havia a tradição inquisitorial, não só da sequer mencionados. A grande obra “Dos Delitos
Igreja, mas de todos os estados que compunham o e das Penas”, de Cesare Beccaria, que é uma
território europeu e, também, depois, da América obra seminal e de importância ímpar no Direito
do Sul e Central. Houve uma ruptura muito mais Penal, revela ideias que, até então, eram muito
forte e muito mais enfática nos países da tradição embrionárias, como a necessidade de que as penas
romano-germânica. fossem moderadas e proporcionais, além de que
fossem aplicadas num tempo justo e célere. Sob a
No diz respeito ao Poder Judiciário, as concepções
ótica do processo penal, importante que se desse
iluministas que inspiraram a Revolução Francesa,
oportunidade à defesa, que ele fosse regido pela
na voz de Montesquieu, diziam que o juiz deveria
publicidade, com decisões motivadas. Beccaria
ser apenas a boca que pronunciava as palavras da
lei, ser inanimado que não podia moderar nem a teve o grande mérito de reunir, nesse pequeno

força, nem o rigor das leis. O governo dos juízes foi livro, ideias que começaram a florescer na segunda

um pensamento muito forte na tradição francesa, metade do século XVIII. Com isso, tivemos um
sobretudo, quando não havia limites ao exercício controle muito grande da figura do juiz.

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No modelo inglês, o juiz é menos autoritário, Os recursos no sistema anglo-americano tinham
por constituir uma tradição menos autoritária. O como preocupação não tanto tutelar o Direito da
Direito inglês, até por ser uma ilha, não se fez parte, mas sim de preservar o Direito como sistema.
influenciar tanto pelas grandes mazelas da Idade Na Inglaterra, até 2009, não havia Suprema Corte.
Média, principalmente a Inquisição. Ele sempre As funções equivalentes às desempenhadas pela
teve um controle muito grande sobre o poder dos atual Suprema Corte eram desempenhadas pela
monarcas. E, no Direito inglês, a noção de que o Câmara dos Lordes, órgão do Poder Legislativo que
juiz é um verdadeiro oráculo, com a possibilidade tinha composição parcial para julgar os recursos
de criar o Direito, no sentido de dar a solução em última instância, em alguns casos.
concreta, ao que parecesse mais justo e mais
equânime, sempre com a preocupação de valer- No Civil Law, a confiança sempre recaiu com maior
se dos antecedentes. ênfase no legislador. O Direito Positivo sempre teve
proeminência, o que se acentuou com a Revolução
Os juízes, portanto, do Common Law eram, Francesa, principalmente com a positivação dos
historicamente, mais sensíveis à proteção dos direitos naturais, o que se fez por meios dos códigos,
indivíduos contra os abusos do poder. Havia uma sobretudo por meio dos códigos napoleônicos, a partir
confiança maior nos juízes, havendo destaque para do início do século XIX. O primeiro deles foi lançado
nomes que viraram grandes juízes na história, em 1804, o chamado Código Civil de Napoleão.
como Francis Bacon, Edward Coke, o grande juiz Napoleão teria dito que temia que uma simples
da Suprema Corte americana, Marshall, Oliver mudança de concepção quanto a alguma legislação
Holmes e Benjamin Cardozo. Quando verificamos pudesse por termo a todo um trabalho de positivação
no sistema dos países da nossa tradição brasileira, de direitos. Passou-se a acreditar que a lei contivesse
não recordamos de grandes juízes. todos os direitos, que tudo aquilo que se processava
como direito natural, como algo inerente ao ser

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humano e a seus direitos, estivesse, agora, dentro anteriormente julgados. No Civil Law, o primado
da moldura rigorosa das leis. Daí a dificuldade de se é da lei, a jurisprudência serve como suplemento
permitir ao juiz continental, a mesma criatividade para reforçar a interpretação da lei.
do Jugdment Law, do Sistema Inglês. A criação da
O precedente, portanto, no Sistema da Civil Law,
Corte de Cassação, cujo propósito era o de controlar
sempre teve aspecto de mera persuasão, ao contrário
a legalidade das decisões dos juízes e dos tribunais,
do Sistema inglês em que o precedente assumia - e
de acordo com as leis em vigor, integrava, inclusive,
assume - autoridade vinculante, a obrigar, o juiz a
o próprio Poder Legislativo. Era um controle muito
decidir tal como o fez outro juiz ou outro tribunal.
estrito da legalidade das decisões feitas pelo Poder
Somente por certos mecanismos previamente
Judiciário. Por outro lado, havia o recurso como direito definidos é que se permite ao juiz desse sistema
subjetivo, como ius litigatoris, o que talvez tenha rigidamente assentado sobre precedentes, desviar-
gerado reflexos na concepção de recurso especial, se da expectativa de que a decisão será a mesma
de recurso extraordinário em contraposição a outros, daquela tomada em caso semelhante.
como recursos de apelação, de embargos infringentes.
Os recursos extraordinários têm como objetivo tutelar Quanto ao modo de atuação do advogado, é

o direito objetivo e apenas, mediata ou reflexamente, interessante observarmos a diferença. No Brasil,


quando o advogado é procurado pelo cliente no
alcançar ou proteger o direito da parte.
intuito de resolver o seu caso, ele quer que a
Quanto ao modo de julgar no Direito Inglês, Justiça lhe atenda e que lhe dê o direito que ele
no Common Law, verifica-se o primado da acredita ter. E, além disso, pergunta prontamente
jurisprudência dos precedentes. Case Law é aquele ao advogado se ele vai alcançar o resultado
caso que está sendo examinado para verificar esperado ou o reconhecimento do seu direito. O
se ele se identifica ou se assemelha a casos advogado responde que é preciso saber primeiro

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qual juiz que vai examinar a causa. Se for uma maior, porque ele tem a possibilidade de editar
comarca do interior que tenha um só juiz, o súmulas vinculantes, que é o ato normativo de
advogado pode até conhecer como julga esse juiz, maior poder vinculante que existe no sistema. A
mas não pode garantir como será na fase recursal, noção de um sistema protegido por precedentes
já que o recurso é julgado pelos desembargadores obrigatórios traz consigo conquistas e resultados
no tribunal. Assim, é importante saber quem são que aportam ao nosso sistema. Primeiro, a questão
esses desembargadores e qual a Turma e a Seção da igualdade. Num sistema em que casos iguais
que eles integram. Enfim, o advogado vai dizer são julgados de maneira igual, faz com que se evite
que não pode prever o resultado, nem quando vai o que acontece hoje, por exemplo, na execução
ser julgado. Essa é uma visão grotesca, mas que penal. No presídio, é possível evidenciar muitos
pode retratar o que acontece no nosso sistema. condenados que cumprem penas pelo mesmo
No sistema do Common Law, quando alguém diz crime, mas um cumpre pena de cinco anos e o
ter um caso (have a case, em Inglês), significa outro, pena de dez anos; um cumpre em regime
dizer que há uma expectativa favorável de que
semiaberto e o outro, em regime fechado.
aquele caso será julgado de acordo com outros
previamente julgados, isto é, com os precedentes. Analisando os casos, é possível perceber que não há
Hoje, mais do que nunca, o Novo Código do diferença substancial entre eles. Quando se pede
Processo Civil diz, com muito mais clareza e
progressão de regime ou um benefício, dependendo
ênfase, que somos um sistema, cujos precedentes
do juiz, do tribunal, da seção, ou da Câmara, que
possui força que varia de acordo com a origem e a
irá julgar esses recursos, cada um dos presos terá
natureza da decisão modelo.
um direito diferentemente fornecido. Isso cria
desigualdade e traz reflexos à própria estabilidade
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal e o
do sistema penitenciário. Nada mais danoso e
Superior Tribunal de Justiça são duas Cortes de
mais angustiante para o sistema penitenciário do
precedentes. Evidentemente, o STF tem uma força

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que ter os seus sentenciados cumprindo penas em nome de outra a que já chegaram juízes ou
com a sensação de que a lei foi aplicada de forma tribunais. É muito difícil para um juiz, seja de que
desigual, porque um caso foi julgado por um juiz instância for, aceitar que a interpretação que ele
mais rigoroso do que outro. deu, ou que ele vinha dando a um determinado
instituto jurídico, passa a não mais servir ou
A existência de precedentes também revela a passa a não mais ser aceita por outros órgãos de
imagem de imparcialidade, porque, na medida jurisdição superiores na hierarquia constitucional
em que se sabe que certa situação fática gera da distribuição das competências jurisdicionais.
determinado direito, isso impede que outro juiz Juízes e promotores são independentes. Entretanto,
possa desviar-se daquilo que se espera como ambos exercem funções diferentes: o ato de julgar
resultado de um caso. A imparcialidade judicial e o ato de provocar, de propor, de pedir. O juiz,
acaba sendo observada quando se observam os de certo modo, tem mais poder de decidir do
precedentes. Também há coerência sistêmica, que decide efetivamente. Por outro lado, ele se
quando os juízes e tribunais direcionam as suas vincula muito mais a certos comandos normativos
decisões de acordo com precedentes que foram ou a certas decisões anteriores que outros juízes
julgados numa mesma direção. A segurança tomaram e que, portanto, acabaram por vinculá-lo
jurídica vai se expressar pela estabilidade do na sua decisão.
próprio direito e pela previsibilidade das decisões
que provém do Poder Judiciário. A visão de que o juiz tem poder absoluto para julgar
tem que ser desfeita, pois ele tem independência
A objeção é feita, muitas vezes, de maneira jurídica e política como condição de afirmação,
disfarçada por juízes e tribunais, que, até pela não só do seu poder, mas, acima de tudo, da
novidade dos institutos do Direito, ainda não proteção da sua judicatura. Isso vai assegurar ao
aceitam bem que devem ceder a sua compreensão cidadão que ele terá diante de si um julgador com

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liberdade para julgar e que não está, como um juiz No que diz respeito aos poderes decisórios, o juiz
do Antigo Regime, manietado por um governante. deve ter consciência de que integra um sistema
O governo é das leis, não dos homens, portanto, jurídico definido nas leis e na Constituição,
ele deve satisfações ao Direito e, evidentemente, considerando a distribuição de competências e
à sua consciência. determinados objetivos que são destinados a cada
tribunal. O Supremo Tribunal Federal, com a função
A interpretação das leis é um fenômeno de interpretar e fazer preservar a Constituição; o
essencialmente subjetivo, ainda que existam Superior Tribunal de Justiça com a função principal
critérios objetivos de interpretação. Não há como de interpretar o direito infraconstitucional e dar-
deixar de perceber em qualquer processo de lhe uniformidade; os Tribunais de Justiça e os
interpretação de um texto legal uma grande dose juízes com a função de responder às pretensões
de subjetivismo, não só pela formação intelectual formuladas em ações, dando o direito à parte que
do magistrado ou do membro do Ministério pede e que tem o direito ao seu lado. Quando
Público, mas também por sua formação moral, o STF ou o STJ edita uma súmula, mesmo que
religiosa, por suas experiências de vida, seus não seja vinculante, ou quando julga um recurso
traumas, as suas frustrações, o seu perfil, a sua especial sob o rito dos recursos repetitivos ou
educação familiar, etc. É evidente que qualquer define, no caso do STF, um tema de repercussão
interpretação de norma não é algo neutro. Ao geral e confere a interpretação que ele deve ter,
contrário, é um fenômeno permeado por uma não é possível que os juízes continuem apegados
série de fatores que interferem no subjetivismo a essas decisões. Isso, infelizmente, tem ocorrido
da decisão. Com muita clareza, Luigi Ferrajoli, com muita frequência. Na jurisdição criminal, há
quando se reporta a essas influências ou a esses boa quantidade de habeas corpus e recursos a
condicionamentos que interferem no processo de ele referentes que chegam ao STJ porque certos
criação do direito concreto. tribunais não acolheram um tipo de interpretação

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reiterada dos tribunais superiores a respeito de disponíveis para demonstrar a sua insatisfação.
certo tema. Exemplo, prisão preventiva, regime Quando percebi que eu era vencido em situações
e dosimetria de pena, questões colocadas nos concretas de julgamento do STJ, eu passei a
habeas corpus e que chegam ao STJ, já é possível declarar, nos processos seguintes, a minha
saber qual será o resultado. É um desgaste ressalva pessoal quanto a certo entendimento.
absolutamente desnecessário, pois se percebe que Se eu não fizesse isso, criaria desigualdade de
aquela causa já terá um resultado absolutamente tratamento e perplexidade do jurisdicionado. Afinal
tranqüilo, porque todos os precedentes indicam de contas, o STJ não é o tribunal que interpreta
que a interpretação a ser dada é a interpretação as leis? Como pode um ministro interpretar a lei
X, não a Y, que foi dada pelo tribunal. E, muitas em um sentido totalmente oposto aos dos demais?
vezes, os tribunais não se preocupam sequer em Isso vale em todas as esferas. Todas as esferas
demonstrar alguma peculiaridade que distinga devem ter essa compreensão, porque senão se
um caso de outro precedente que foi julgado, de cria a crise de autoridade, que é tão nefasta ao
modo a legitimar a decisão diferente. Então, isso meio, pois gera a proliferação de entendimentos
é muito angustiante, gera abundância de recursos. absolutamente díspares em relação à mesma
Seguramente, os tribunais superiores e os tribunais questão jurídica entre tribunais, ou entre juízes e
estaduais estão, em boa parte, inviabilizados pela tribunais. Podemos, também, utilizar os recursos
falta de compreensão sistêmica que ainda não foi repetitivos, ao verificamos que há vários recursos
assimilada na nossa cultura. especiais repetidos sendo julgados na Corte do
STJ e não, necessariamente, com tratamento
O juiz precisa entender que, quando ele segue jurídico distinto. É possível submetê-los a um rito
uma súmula de jurisprudência, ou uma súmula do previsto no Código de Processo Civil, que prevê
STJ, ou do STF, contrária a seu entendimento, ele a participação do amicus curiae, do Ministério
não está se desrespeitando, pois há mecanismos Público ou da Defensoria Pública, de tal sorte

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que, no final, quando eles forem julgados pela lado, pretendemos incorporar a visão de que os
seção, eles tenham vocalização da Corte e efeito precedentes devem ter força vinculante, é preciso
vinculante muito mais eficaz que a própria súmula também não engessar o sistema. É preciso ter
de jurisprudência. mecanismos que permitam dar-lhe flexibilidade,
que permitam dar ao juiz meios para, constatada
Procuramos estimular o uso desse mecanismo situação diferente em algum aspecto, julgar de
de julgamento de recurso, porque, quando se forma diferente. Ele não pode ser também um
julga um recurso repetitivo, ele exerce um poder robô que irá reproduzir precedentes em uma
vinculante maior do que a súmula, já que impede situação singular, que demanda julgamento
a proliferação de outros processos, pois ele será diferente. Isso é feito por variadas formas, sendo a
resolvido nas instâncias ordinárias (no segundo mais comum, a distinção (distinguishing), em que
grau, ou até mesmo no primeiro grau, com o NCPC, se verifica se, naquele caso, há um detalhe que
a exemplo de quando o juiz indefere a petição com justifique julgamento diferente do anterior, a ponto
base no recurso repetitivo sobre aquela questão de ensejar um resultado diferente. Um exemplo
jurídica que está sendo colocada na petição inicial). banal: tráfico de drogas. O roubo circunstanciado
Assim, há evidente importância de estimularmos a pelo emprego de arma, de acordo com o artigo
cultura de vinculação aos precedentes. 157 do Código Penal, é pelo emprego de arma,
não de arma de fogo. Então, a meu ver, o emprego
Falar em superação de precedentes é algo
de arma de fogo é um plus de maior gravidade,
absolutamente novo. Os tribunais, mesmo o STJ
maior periculosidade e maior letalidade do que
e o STF, ainda têm dificuldade de compreensão
um emprego de qualquer arma. Só isso já seria
desses institutos e das técnicas de modificação
bastante para justificar a imposição de pena acima
dos precedentes. Vai demorar ainda muito tempo
do mínimo, que é de cinco anos e quatro meses.
até que incorporemos a tradição nova. Se, por um

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Em um país que tem mais de 50.000 pessoas pelos precedentes, deveria ser a pena mínima.
mortas anualmente por uso de arma de fogo, não Aí está a grandeza de se compreender que, no
me parece que se possa dar tratamento igual ao sistema de precedentes, a motivação ganha maior
se que se dá a quem comete um roubo com um importância. Não é por outro motivo que o artigo
pedaço de pau ou com uma faca. No entanto, não 927 do NCPC, que introduz a força obrigatória
é essa a posição que prevalece. dos precedentes, está umbilicalmente ligado ao
artigo 489, §1º, V e VI. Tais artigos tratam da
Nos casos submetidos ao STJ, quando uma necessidade de que o juiz, na motivação do ato
decisão de um tribunal, aplica, por exemplo, seis decisório, indique a razão pela qual não seguiu
anos em vez de cinco anos e quatro meses, se um precedente, ou a razão pela qual se limitou
o juiz ou o desembargador-relator, ao sentenciar a repetir precedentes sem demonstrar que aquele
ou emitir o voto, não acrescentar ao emprego da caso julgado se ajusta exatamente àquela situação
arma de fogo algo que individualize a conduta que já foi anteriormente julgada.
para diferenciá-la em relação a precedentes que
vedam o aumento acima do mínimo, o caso deverá Haverá distinção, com a superação total do
ser julgado conforme os precedentes. Qual seria, precedente, quando a questão está obsoleta,
por exemplo, a distinção? Seria, exemplificando, como as questões de gênero. A própria condição
ao empregar a arma de fogo, verificar se houve da mulher modificou isso ao longo dos anos na
disparo ou a arma foi apontada para a cabeça da jurisprudência dos tribunais superiores. O mesmo
vítima, se, além de empregar a arma de fogo, ocorreu na questão dos adolescentes em conflito
foi dada uma coronhada, enfim, algum dado que com a lei. O Supremo Tribunal Federal, ao dar
ultrapasse o simples emprego de arma de fogo no interpretação absolutamente nova ao princípio da
crime de roubo. E, com isso, poderíamos, então, presunção de inocência, revela total superação do
permitir ao juiz dar uma pena superior àquela que, entendimento anterior, em um verdadeiro over

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rolling. Ao adotar nova compreensão de realidade de um juiz mais liberal ou mais conservador, mais
que talvez seja diferente da que foi dada em rebelde ou mais “obediente” à jurisprudência dos
2009, quando também houve superação total do tribunais superiores.
entendimento anterior, o Supremo passa a dizer
o contrário do que dizia antes. Isso ocorre porque Esses novos institutos devem estimular a
são apresentados argumentos que demonstram, formulação de uma compreensão mais acurada
ou que a interpretação anterior está ultrapassada, sobre a necessidade de, quando mudarmos
ou que ela é injusta, pois não mais se harmoniza uma interpretação, fixarmos o seu alcance,
com os anseios da sociedade moderna. Várias como diz a Lei da Ação de Declaração de
explicações foram dadas no HC 126.292, gerando Inconstitucionalidade. Quando se declara uma lei
alvoroço na comunidade jurídica, principalmente inconstitucional, é necessário que se definam a
entre os advogados, que, hermeneuticamente, extensão, os limites ou os efeitos da declaração
têm ótimos argumentos. Eu próprio teria muita em relação aos casos julgados.
dificuldade em não interpretar a presunção de
Nós tivemos uma discussão muito interessante no
não culpabilidade como algo que vige até o
STJ relativa à mudança radical de interpretação
trânsito em julgado, mas aceitei a interpretação
do artigo 594 do Código de Processo Penal, que
do STF, porque houve forte tendência no sentido
ocorreu após a Constituição de 1988. Ele dizia que
da adoção de uma interpretação não literal do
o réu condenado, caso tivesse maus antecedentes
preceito constitucional, ou seja, uma interpretação
ou fosse reincidente, não poderia recorrer, senão
sistêmica, que é seguida por ser a voz de quem
após o prévio recolhimento à prisão. Era uma
interpreta a Constituição. O juiz pode até registrar,
condição de admissibilidade ou de processamento
eventualmente, a sua opinião contrária, mas tem
do recurso de apelação. Isso já existia no Código
de seguir a orientação, porque senão o destino do
de Processo Penal, desde a sua origem. Com a
jurisdicionado vai ficar na dependência da opinião

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Constituição, os tribunais superiores, inclusive o os efeitos deveriam ocorrer retroativamente,
STF, continuaram a interpretar esse dispositivo alcançando todos os casos julgados no passado.
como constitucional. Só no final dos anos 2000, é É claro que há argumentos muito consistentes em
que esse entendimento começou a mudar. O STJ favor da liberdade do indivíduo, mas desconstituir
foi pioneiro nas novas compreensões, mas o STF a coisa julgada em processos julgados há 40 anos,
também aderiu a elas. Posteriormente, uma lei enquanto não alcançada a prescrição, geraria certa
revogou o artigo 594. insegurança. Aí está a importância de que ao se
superar um precedente, que se defina exatamente
Como relator em um caso em que o réu foi julgado, o seu alcance.
em 1993, sob a compreensão do artigo 594 que
limitava o recurso, não se recolheu, ele fugiu. Em Situação também interessante é aquela em que a
razão disso, houve a deserção do recurso, como Corte sinaliza a possibilidade futura de substituição
expresso no artigo 595, do NCPC. Ele ficou foragido de um entendimento num sentido por outro que
vários anos, foi preso, cumpriu pena durante 13 lhe é oposto, em virtude de bons argumentos
anos. Ele impetrou um habeas corpus no STJ para apresentados por advogados. A mudança no
ter o direito a recorrer da condenação em 1993. Eu entendimento será em outro momento, pois a
julguei esse processo em 2015. causa ainda não está madura, pois o tema não
foi suficientemente debatido. No entanto, já se
Fui vencido também. Nesse caso, a Turma entendeu demonstra que o entendimento pode mudar no
que não importava a coisa julgada, nem que, à futuro Trata-se de técnica de julgamento rotineira
época, houvesse súmula do STJ que autorizasse esse no Direito norte-americano, mas que conhecemos
entendimento. Entendeu-se que ele teria direito à muito pouco no Brasil. Vamos ter de avançar
reabertura de prazo, porque, se houve a revogação muito para chegar à plena compreensão sobre
do dispositivo por ser considerado inconstitucional, essa técnica.

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Chegando ao ponto mais importante, que é a nova O CPC anterior tinha tudo isso embrionariamente
realidade normativa do Código de Processo Civil destinado aos poderes do relator em julgamento
de 2016. O artigo 927 diz que juízes e tribunal de recurso, mas hoje isso está muito claro em
deverão seguir decisões tomadas, primeiramente, dispositivos do CPC de 2016.
nos atos normativos, ou atos judiciais, que são
as decisões do STF em controle concentrado de O artigo 332 permite ao juiz, nas causas que
constitucionalidade. Segundo, súmulas vinculantes, dispensem a fase instrutória, ou seja, nas que
que são as súmulas que exercem poder vinculante versem eminentemente questão jurídica, julgar
maior, com força obrigatória de obediência maior liminarmente improcedente o pedido que contraria
que qualquer outro instrumento, após a lei, é súmula do STF ou do STJ, acórdão em julgamento
claro. Súmula de jurisprudência do STF e do STJ. de recursos repetitivos, entendimento firmado
Acórdão em Assunção de Competência e Incidente em RDR ou em IAC, e em súmula de Tribunal
de Resolução de Demandas Repetitivas, que são de Justiça sobre direito local. Se a questão for
dois institutos criados na nova concepção de que o eminentemente jurídica e se verificar algo que já
sistema só sobrevive e só produz uma racionalidade foi julgado, a solução deve ser imediata.
sistêmica, se tiver as mesmas questões decididas
Situações em que o juiz julga de forma autoritária
da mesma forma. Para isso, é necessário criar
e totalmente avessa ao entendimento dominante
mecanismos que permitam a juízes e a tribunais,
do STF constituem uma patologia absolutamente
ao identificarem temas anteriormente julgados
danosa à saúde do sistema de Justiça Criminal e
de forma repetitiva ou de relevância muito
Cível. No Sistema Criminal, é muito pior porque
grande, julgá-los em certo rito que vai gerar força
lida com a liberdade, que é o que há de mais caro
vinculante, permitindo o indeferimento liminar
no ser humano.
de uma petição inicial, o não seguimento de um
recurso, o julgamento monocrático de um recurso.

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O NCPC também reforça poderes do relator chega ao STJ, o relator monocraticamente põe a
(desembargador ou ministro do tribunal superior) cobro aquela pretensão. Isso só deveria ocorrer
no julgamento de recursos, permitindo que ele nas situações em que não é opinião do relator,
negue liminarmente provimento ao recurso mas sim opinião formada por tribunais, em órgãos
contrário a uma súmula do STF, a acórdão do STJ colegiados que já julgaram de forma recorrente
ou do STF, ou um acórdão do STJ em julgamento aquela causa, dando origem a uma súmula
de recurso repetitivo, ou entendimento firmado em vinculante, a uma súmula de jurisprudência,
incidente de resolução de demandas repetitivas e um recurso repetitivo, como também agora no
assunção de competência. IRDR. Assim, seria contraproducente perpetuar
a demanda, simplesmente, para dar o seu
Então, é permitido ao relator, depois de facultada julgamento por órgão colegiado. Ainda assim a lei
a apresentação de contrarrazões, findar o permite que haja o recurso contra essa decisão
contraditório, dar provimento ao recurso, se a monocrática, por meio do agravo regimental, ao
decisão for contrária. Em ambas, evidencia-se a agravo interno, submetendo, portanto, a questão
força do precedente e o poder dado ao relator, em ao órgão colegiado.
nome da racionalidade e da celeridade na prestação
jurisdicional, de decidir monocraticamente a E, por último, são os dois mais importantes artigos,
causa. É claro que isso gera insatisfação. Muitos juntamente com o artigo 10 do NCPC. São artigos
recursos recebidos no STJ são de advogados que que revolucionam ou, pelo menos, condensam uma
colocam como primeiro item a insurgência contra compreensão que já deveria estar sendo solidificada.
a subtração do julgamento da causa ao órgão O artigo 489, § 1º, do NCPC, talvez seja o artigo
colegiado. Em alguns casos, há anos ocorre a luta mais importante, que se irradia para todo o sistema.
pelo reconhecimento do Direito, até que a parte Há opinião no sentido de que esse artigo não vale
consegue que o recurso seja admitido, daí quando na Justiça do Trabalho, nem na Justiça Penal. Ele

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vale para tudo, porque, na verdade, positiva um criou, que não cabe mais simplesmente invocar.
dever constitucional do magistrado, que legitima É necessário explicar a razão pela qual, naquele
a atividade jurisdicional. O juiz não é legitimado caso concreto, vai se aplicar aquele entendimento.
pelo voto popular, mas pela observância do Direito, É difícil mudar essa cultura. Tenho dificuldade
pela transparência e dos seus atos ao motivar as em deixar de seguir o enunciado de súmula
decisões, explicitando os fundamentos pelos quais jurisprudente ou precedente, invocado pela
ele se convenceu. Não cabe mais autoritarismo no parte, sem demonstrar a existência de distinção
Poder Judiciário, não cabe mais decreto à prisão em um caso em julgamento, ou a superação do
preventiva, não cabe mais expedição de mandado entendimento, em que existe há súmula sobre
prisão sem justificativa. Caso contrário, ele será o caso, mas se decide contrariamente a ela. Em
acusado de ter cometido grande iniquidade, um julgamento de recurso repetitivo, é preciso
tendo de se sujeitar ao controle de um tribunal demonstrar que há um detalhe naquele caso
e de ver sua decisão cassada. Uma decisão mal que o distingue dos casos anteriores. Só assim
fundamentada gera resultados negativos, já que, legitima-se a decisão.
muitas vezes, concede-se a ordem de soltura de
alguém que deveria estar preso, mas que, por Para encerrar, esse novo Código de Processo Civil é
falha de motivação, terá de ser solto. um código revolucionário em certa medida. Ele veio
com a pretensão de tornar a jurisdição mais célere,
Quando se interpenetra esse tema com o da mas, em muitos aspectos, ele não fará isso, pelo
vinculação aos precedentes, que é objeto dos contrário, ele vai atrasar mais ainda. Entretanto, é
incisos V e VI do artigo 489, § 1º, do NCPC, temos muito inovador em outros pontos. Então, mais do
de criar a cultura de fundamentação das decisões ao que uma nova lei, é preciso haver nova postura.
invocarmos precedentes ou qualquer outra súmula. Como sou otimista, daqui a alguns anos, vamos
São tantas súmulas que a jurisprudência defensiva olhar para trás e ver o quanto caminhamos. Mudar,

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acima de tudo, a nossa maneira de lidar com o Quando uma jurisprudência bem definida sofrer
processo, e não só mudar as leis e as instituições. alteração, como é o caso da Súmula 500 do STJ,
Muito obrigado. que deu definição mais liberal para o crime de
corrupção de menor, ela não deveria também
PROMOTOR DE JUSTIÇA ANTÔNIO DE
ser limitada aos casos futuros sem retroagir em
PADOVA MARCHI JÚNIOR: Boa noite a todos.
prejuízo da defesa?
Reforçando a palavra do Doutor Jarbas, é
orgulho de todos os mineiros, principalmente dos
Sinto falta, nessa nova sistemática, de institutos
promotores de Justiça, perceber o protagonismo
que pudessem levar o Superior Tribunal de Justiça
de Vossa Excelência nas decisões do Superior
a cumprir, de maneira mais eficiente, o seu papel
Tribunal de Justiça no campo do Direito Processual
principal de uniformizador da jurisprudência em
Penal. Vossa Excelência está adiantando, de certo
relação à legislação infraconstitucional.
modo, como será a postura do Superior Tribunal
de Justiça. O respeito aos precedentes pode trazer
Na questão da Súmula 500, que reconhece caráter
muitos benefícios tanto para o Ministério Público,
formal do crime de corrupção de menor. Em
como também para a defesa, especialmente, na
outro momento, a própria jurisprudência cai em
execução penal, em que há tanta desavença. Essa
contradição, como no caso de um acusado que
normatização pela própria jurisprudência vai trazer
maior previsibilidade das decisões. pratica roubo ou furto com um menor de idade.
Esse fato serve tanto para qualificar o furto ou para
A minha primeira pergunta é a respeito do tornar o roubo circunstanciado, como para punir
posicionamento de Vossa Excelência a respeito também pelo crime de corrupção de menor, porque
de se obedecer, numa mudança de orientação ocorre um bis in idem. Depois que se definiu o crime
jurisprudencial, aos preceitos do princípio da
de corrupção de menor como crime formal, não se
legalidade, especialmente quando ela tornar mais
necessita mais de fazer prova da efetiva ofensa ao
grave a situação do acusado.

65
bem jurídico tutelar. Seria um único fato gerando A questão do bis in idem entre o crime de roubo
dois efeitos, o que é uma incongruência, que há com a participação de adolescente e o próprio crime
muito tempo me incomoda. Por fim, gostaria de de corrupção de menor, é algo bem ponderável. A
parabenizá-lo pela excelente palestra. partir do momento em que se tem uma conduta
que, antes, exigia a demonstração da corrupção,
MINISTRO ROGERIO SCHIETTI MACHADO passa a ser tipificada pelo simples ato de agir na
CRUZ: Agradeço, Dr. Antônio de Padova, pela companhia de um adolescente na prática de um
observação final. Como membro do Ministério crime. Por outro lado, incrementa-se a pena de
Público, sempre tive a preocupação de exercer participação do adolescente no roubo, o que pode
efetivamente o papel de fiscal do Direito, custos configurar uma boa tese a ser defendida.
iuris, não mero custos legis. O custos iuris é mais
amplo, de maneira profilática, nesse exemplo. Se o Quanto à possibilidade de modificação de
membro do Ministério Público percebe ilegalidade entendimentos sumulados, não necessariamente
e com o resultado útil, está trabalhando com a originários de caso concreto, parece que isso
justiça material, que, no caso da prisão, é manter está, de alguma maneira, no NCPC, quando este
o réu preso. Se ele sabe que se houver um recurso determina que, para modificação de súmula, é
contra, o risco da decisão ser reformada é muito necessária a convocação de audiências públicas. E
grande. A intervenção do promotor não só corrige certas súmulas já deveriam ter sido modificadas,
o ato, como também corrige o juiz, pois mostra porque o Direito evoluiu. Às vezes até a sua
que há um promotor de Justiça que estará vigilante redação original já não era boa, mas com novas
para evitar ilegalidade. Então, não há culpa só do compreensões, possam ter outra redação, ou
juiz, mas de todos os envolvidos que, naquela até serem superadas. A lei prevê que o tribunal
decisão, não tomaram providência para sanar o convoque audiências públicas, chamando
vício formal. Ministério Público, Defensoria Pública e entidades

66
associativas que tragam ao Poder Judiciário a sua MINISTRO ROGERIO SCHIETTI MACHADO
visão particular sobre o tema, conferindo àquele CRUZ: A pergunta é absolutamente pertinente.
maior legitimação e de democracia àquele ato. Temos discutido isso nas seções para decidir quais
institutos ou quais artigos do CPC têm reflexo no
Se, para a edição de súmula, isso não acontece, para Processo Penal. O artigo 3º do Código de Processo
a sua modificação ou extinção, o NCPC permite. Penal permite a aplicação analógica de temas que
O artigo 10 é o terceiro artigo mais importante, não foram suficientemente tratados no Código de
porque determina que, mesmo nas decisões em Processo Penal por outras normas, inclusive no
que o juiz pode tomar ex officio, ele deve, antes de Código de Processo Civil. Há um artigo do CPC que
ele tomar a decisão, deve ouvir a parte contrária. fala que o NCPC se aplica a outras esferas, mas
É uma nova maneira de julgar. não menciona o Direito Penal, o Direito Eleitoral,
o Direito Administrativo. Então, não podemos
ADVOGADO-GERAL DO ESTADO MARCELO
duvidar da criatividade dos advogados, pois eles
PÁDUA CAVALCANTI: Parabéns pela palestra,
sempre serão capazes de encontrar teses novas.
que foi, realmente, bastante elucidativa. Atuando
na área tributária da AGE, aprendi um pouco de
O CPC é um código que, por ter tronco comum,
Código Civil, mas nada de Código Penal e Processo
para aqueles que acreditam na Teoria Geral
Penal zero. Desculpe se eu fizer uma pergunta
do Processo e, por ter institutos similares em
despropositada. No Código de Processo Penal, há
muitos aspectos, pode ser aproveitado, na parte
duas referências à aplicação do Código Processo
Civil, uma delas é de intimação. Essas inovações principiológica, pelo Processo Penal. A grande

que foram colocadas no Código de Processo Civil parte desses temas são perfeitamente aplicáveis

seriam aplicáveis no Processo Penal? As regras são a todas as áreas do Direito.


bem diferentes.

67
ADVOGADO-GERAL DO ESTADO MARCELO Acho que vamos continuar a anular e a devolver.
PÁDUA CAVALCANTI: Inclusive, a questão da Há um novo dispositivo do NCPC que permite ao
motivação? tribunal reconhecer nulidade e até prescrição.

MINISTRO ROGERIO SCHIETTI MACHADO ANALISTA DA ASSESSORIA CRIMINAL


CRUZ: Claro, claro, mas eu ainda diria no Processo AMANDA BASTOS ALVES: Gostaria de fazer
Penal. uma observação. Eu percebi que Vossa Excelência
fez somente elogios à tentativa de uniformização
ADVOGADO-GERAL DO ESTADO MARCELO de entendimento. Compreendo a necessidade
PÁDUA CAVALCANTI: Pelo CPC, constada a falta de se aumentar a credibilidade do sistema pela
de motivação, o tribunal pode motivar. uniformização, mas tenho a impressão de que
há alguns malefícios como o engessamento da
MINISTRO ROGERIO SCHIETTI MACHADO
liberdade de decisão, principalmente dos juízes
CRUZ: É. Nesse caso talvez não, porque vai
de primeira instância. Então, vou exemplificar
suprimir a instância.
com um caso de questionamento sobre a
constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas.
ADVOGADO-GERAL DO ESTADO MARCELO
Ela está sendo questionada agora em sede de
PÁDUA CAVALCANTI: Não anularia para voltar
recurso extraordinário. O STF ainda não julgou,
para o juiz, mas o tribunal motivaria um decreto.
mas já teve o reconhecimento na preliminar de
MINISTRO ROGERIO SCHIETTI MACHADO repercussão geral. No entanto, em Minas Gerais,
CRUZ: Não, no caso do tribunal, sim, mas temos nos Juizados Especiais Criminais de Belo Horizonte,
entendido que no STJ e no STF, haveria supressão os juízes vinham absolvendo, fazendo controle
de instância. , até porque nossa função é a mesma difuso de constitucionalidade. É claro que há
do tribunal, que é tutelar o direito da liberdade. decisões do STF, do STJ e dos Tribunais de Justiça,

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considerando a constitucionalidade, uma vez que não foi enfrentado seguidas vezes, não há súmula.
várias vezes chegaram decisões até lá e ninguém São importantes o voto vencido, o registro da
absolveu por esse motivo. Tenho a impressão ressalva e a doutrina. A doutrina exerce o papel
de que o sistema de precedentes engessa muito de provocar mudanças, de instigar os membros
a decisão e a interpretação, porque o Common do Poder Judiciário, o advogado, o membro do
Law tem muita liberdade criativa, mas também Ministério Público, a terem outra compreensão.
o Civil Law. Receio a forma como vai decidir a
maioria. Vão ser alguns, por exemplo, ministros O sistema de precedentes acaba limitando a
mais antigos que vão ter mais voz e influência, liberdade de julgar do juiz. Ele fica restrito ao não
determinando a posição mais recente? Ou serão poder demonstrar a sua compreensão jurídica de
os mais conservadores, porque terão maior adesão um instituto. Há bons fundamentos para achar que
popular? Em termos de discussão e de imposição o porte de drogas, para uso próprio, não poderia
de ideias para formação de um precedente, acho configurar um tipo penal. No entanto, se o Supremo
que há estranhamento quanto ao engessamento. Tribunal Federal decidir que é constitucional, o tipo
Não sei qual é a sua posição, por isso que eu penal que torna esse ato criminoso, deve se seguido
gostaria de provocá-lo. Obrigada. pelo juiz e pelos tribunais para não gerar prejuízo
à imparcialidade, à igualdade, à estabilidade, à
MINISTRO ROGERIO SCHIETTI MACHADO previsibilidade. Talvez ele seja, subjetivamente,
CRUZ: Agradeço pela provocação, Dra. injustiçado, mas é o preço que se paga por esse
Amanda Bastos. Ainda que existam técnicas de sistema que, do contrário, não sobrevive.
superação dos precedentes, que buscam evitar o
engessamento do sistema, vão ocorrer situações, O sistema atual é um caótico, pois cada um decide
em que o juiz de primeiro grau não poderia ousar como bem entende. O STJ, que deveria julgar
decidir uma questão por ela ser jurídica. Se o tema centenas de casos por ano, julga 40.000 casos. O

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STF julga 60.000 casos por ano. A homóloga Corte
Americana julga 80 casos por ano. O nosso sistema
não está funcionando. Para ele funcionar, deve
haver algum sacrifício. Talvez o melhor seria que
o juiz eventualmente cedesse, pelo menos na via
judicial, quando a questão é meramente jurídica, a
não ser que ele encontre algo que distinga o caso
do entendimento do tribunal superior. No entanto,
reconheço que a questão não é fácil, não. É bem
tormentosa. Encerro minha exposição. Obrigado.

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TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: CONCILIAÇÃO realidade, e o STJ, como responsável pela aplicação
NO NOVO CPC PROFERIDA POR REINALDO da lei federal, será essencial na formatação da
SOARES DA FONSECA, PARTE DO “PROJETO jurisprudência dos enunciados. Desejo a todos
SEGUNDA-FEIRA, ÀS 18H” REALIZADA EM 20
uma ótima palestra. Muito obrigado.
DE JUNHO DE 2016
PRESIDENTE CARLOS ANDRÉ MARIANI
BITTENCOURT: Boa noite. Cumprimento, de
MESTRE DE CERIMÔNIA: Para abertura,
início, o nosso Corregedor-Geral, Dr. Paulo
ouviremos o Diretor do Centro de Estudos e
Roberto Moreira Cançado, que nos honra com
Aperfeiçoamento Funcional - Ceaf, Procurador
a sua presença, nosso convidado palestrante,
de Justiça, Jarbas Soares Júnior e, em seguida,
Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Reinaldo
o Procurador-Geral de Justiça, Carlos André
Soares da Fonseca, que hoje vai discorrer sobre
Mariani Bittencourt.
“A conciliação no Novo CPC”; o Desembargador
Afrânio Vilela, que representa o Presidente Pedro
PROCURADOR DE JUSTIÇA JARBAS SOARES
Bitencourt, do Tribunal de Justiça, André Prado
JÚNIOR: Boa noite a todos. Sejam bem-vindos
Vasconcelos, que foi Promotor de Justiça, foi
ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
juiz federal e Vice-Presidente da Associação dos
Saúdo todos da Mesa e agradeço especialmente ao
Juízes Federais do Brasil; o Conselheiro da OAB,
Ministro Reinaldo pela vinda. O Ministro Reinaldo é
Flávio Gamboli, que representa o Presidente da
maranhense, foi Juiz de Direito do Distrito Federal,
OAB Minas, Antônio Fabrício.
juiz federal e desembargador federal. Ele compõe
a comissão que discute essa matéria no âmbito do
O Projeto “Segunda-feira, às 18h” é uma iniciativa
Superior Tribunal de Justiça - STJ. Isso é de uma
do Centro de Estudos, tendo criado pelo Doutor
importância muito grande, porque o NCPC é uma
Jarbas Soares Júnior que hoje dirige a nossa Escola

71
de Formação. É uma inciativa muito feliz. Temos jurisdição dada ao gaúcho, ao carioca, ao paulista,
tido a honra de receber ministros do Superior ao maranhense e ao amazonense. O Brasil está em
Tribunal de Justiça, como o Ministro Napoleão, o dívida com o Estado de Minas Gerais, com a Justiça
Ministro Rogério Schietti, o Ministro Nefi Cordeiro Federal da Primeira Região. Essas são as minhas
e o Ministro do TCU, Bruno Dantas, o Advogado- homenagens às Alterosas.
Geral da União, Fábio Medina. Obrigado pela
presença. Tenho certeza de que os senhores vão Agradeço imensamente ao Senhor Procurador
ter uma excelente noite, uma brilhante segunda- Geral, Doutor Carlos André, que me fez esse
feira, com o nosso estimado palestrante. convite honroso e que me permitiu estar hoje no
Ministério Público, instituição pela qual nutro o
MINISTRO REINALDO SOARES DA FONSECA: maior respeito.
Boa noite a todos. É uma honra voltar a Minas
Gerais, estado que considero que seja a síntese Fui convidado para tratar de um tema de acentuada
do nosso país. Fui juiz de Direito e juiz federal. importância, do qual gosto muito. Encontrei
Como juiz federal, ascendi ao Superior Tribunal sentido na vida da magistratura como agente de
de Justiça. Representei uma região continental pacificação social. Essa é a nossa responsabilidade
que corresponde a 80% do território nacional, que e de todos os operadores do Direito.
contém o maior estado brasileiro, com o maior
Agradeço ao Senhor Corregedor-Geral do Ministério
número de municípios e que mais representa as
Público de Minas, Doutor Paulo Roberto Moreira
realidades regionais desse país, que é o Estado de
Cançado que se preocupa, certamente, com a
Minas Gerais. Isso faz com que reflitamos sobre esse
disciplina do Ministério Público e com a realização
estado que merece, no âmbito da Justiça Federal,
da atividade ministerial no tecido social, mas,
um tratamento igualitário, que, efetivamente,
acima de tudo, com aquilo que hoje o Novo Código
proporcione ao mineiro a mesma resposta célere de

72
de Processo Civil traz no sentido da recuperação, O Novo Código de Processo Civil merece críticas
do empoderamento dos seres humanos e de quanto à tese de construção de justiça célere e de
construção de uma sociedade menos beligerante justiça com jurisprudência firme. Essa é a tese da
e mais pacífica. celeridade e da jurisprudência consolidada. O NCPC
trouxe o modelo da Common Law para um país que
Quero também cumprimentar o Doutor Afrânio Vilela,
é de tradição Civil Law, mas de forma diferente,
Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas
o que é interessante. Isso veio como reflexo dos
Gerais, referência nacional de Tribunal Mineiro. No
grandes modelos da teoria do Direito. O NCPC não
STJ, ele ajuda a construir a jurisprudência por meio
obriga o juiz a buscar a tentativa permanente de
dos mais variados temas referentes aos dramas
conciliar as partes. O artigo 3º trata da mediação
humanos. Após 24 anos atuando na Justiça Federal,
retomo a julgar crimes referentes à realidade da e da conciliação como norma fundamental. Há

vida. A realidade do bem vida, do bem identidade de inversão de paradigma. Já não se tem mais o
gênero, dos bens mais caros à humanidade. Desde acesso à Justiça em perspectiva da última ratio.
a Revolução Francesa, o tripé com que nós nos Ele continua sendo amplo, mas, antes de tudo, há
deparamos é liberdade, igualdade e fraternidade, um problema estrutural, que não vai ser resolvido
ou solidariedade. Rendo as minhas homenagens ao com a criação de tribunais, ou de cargos no
Tribunal de Justiça de Minas Gerais que figura, sem Ministério Público, na Magistratura e na Defensoria
sombra de dúvidas, como uma referência nacional Pública. Isso é importantíssimo, porque sempre vai
no Poder Judiciário do país. haver a necessidade do acesso à Justiça. O Novo
Código tem mérito, porque muda o paradigma e
Cumprimento o Senhor Conselheiro Seccional da
transforma o acesso à Justiça, dividindo-o em dois
Ordem dos Advogados do Brasil, Doutor Flávio
momentos: o do diálogo no tecido social e o do
Gamboli, que representa, o Senhor Presidente
diálogo no Estado-Juiz, na relação processual. Essa
Doutor Antônio Francisco de Matos Gonçalves.
é a razão pela qual não se fala mais em conciliação

73
ou mediação do processo judicial como solução. Por fim, homenageio todas as instituições que se
Isso é apenas um remédio para a crise em que fazem presentes e que marcam a história do Direito
vivemos. Talvez a solução dos conflitos esteja na brasileiro no estado grandioso das Minas Gerais.
reabertura do diálogo, na conciliação ou mediação
pré-processual. As câmaras de conciliação do O tema sobre o qual vou falar pode parecer óbvio,
Poder Público e de Direito Privado, como também porque, desde o Código de 1973, já havia artigos
a sociedade como um todo, devem recuperar que clamavam pela ocorrência da tentativa de
o poder do diálogo. Por que digo isso? Porque conciliação a qualquer momento processual.
estou homenageando a Ordem dos Advogados do Passados dez anos do lançamento nacional do
Brasil que, no lugar de ser contrária a esse tema, movimento nacional de conciliação em Minas Gerais,
exerce o papel fundamental de construção de novo apesar do esforço de coletivização do processo
paradigma. O advogado passa a ser, efetivamente, para tratar as demandas de políticas públicas de
um instrumento de pacificação social. Registro, forma coletiva e do esforço de criação das centrais
assim, minhas homenagens à Ordem dos de conciliação na Justiça Estadual, na Justiça do
Advogados do Brasil, com a esperança de que o Trabalho e na Justiça Federal, o caos continua.
NCPC, com seus novos princípios e propostas, não Havia 80 milhões de processos há dez anos,
constitua letra morta. hoje, segundo a última estatística do Presidente
do STF, Ministro Lewandowski, há 107 milhões de
Quero homenagear também o Vice-Presidente processos. Algo está errado, porque somos 200
da Associação dos Juízes Federais do Brasil, o milhões de brasileiros. Parece que aqueles que
Juiz Federal André Prado Vasconcelos, que é um defenderam a autocomposição como via natural
expert na área da mediação e da conciliação. Na para a solução dos conflitos estavam errados,
pessoa dele, homenageio todos os meus colegas porque trataram as consequências dentro do
da magistratura estadual e federal. Judiciário, enquanto o problema é anterior a esse

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processo. Daí a necessidade de que a conciliação preserva extraordinariamente a igualdade. No
e a mediação sejam normas fundamentais da entanto, ambos não encontraram o ponto da
regra instrumental. democracia. A igualdade e a liberdade passaram a
ser categorias políticas e jurídicas, e a fraternidade
Precisamos, efetivamente, pensar que a passou a ser, como dizia um grande filósofo italiano,
sociedade brasileira, ao proclamar, no artigo 3º um princípio esquecido. Esse resgate, felizmente,
do Novo Código de Processo Civil, duas figuras de tem sido a tônica da Constituição Cidadã, na
autocomposição e uma figura de heterocomposição medida em que ela preconiza a construção de uma
que não seja a estatal, está reafirmando o que o sociedade fraterna, comprometida com a solução
caos instalado na administração da Justiça produz pacífica das controvérsias. Isso é óbvio, mas há
na vida dos brasileiros. Esse modelo não responde quase três décadas que ele não se faz presente.
positivamente em qualquer âmbito. Em 1988, quantos processos havia? A Constituição
Cidadã abriu com muita razão as portas da Justiça.
Toda a cultura de conciliação que está no NCPC
O acesso à Justiça é o primeiro elemento das
guarda justificativa na história e na filosofia,
ondas previstas por Mauro Cappelletti há tantos
especialmente na Revolução Francesa. Vou
anos. Essa situação faz com que se encontre
discutir o resgate daqueles que efetivamente eram
justificativa na história e na Teoria do Direito, mas
responsáveis pelo trabalho em comparação com
também no arcabouço constitucional brasileiro.
a realeza. Para que eles tivessem participação
Alguns poderiam dizer que estou falando de
no contexto social, era preciso resgatar o
algo que não tem força normativa, porque o
tripé “liberdade, igualdade e fraternidade”. Os
preâmbulo da Constituição, no dizer mais recente
princípios influenciaram a humanidade, a ponto
do Supremo Tribunal Federal, chegou a afirmar
de dividi-la em dois blocos: um que preserva
que o preâmbulo não tem força normativa, por
extraordinariamente a liberdade, e outro que
não ter sido aprovado pelo parlamento. Outros

75
poderiam dizer que o preâmbulo é uma carta de No que tange à técnica do diálogo, da cultura, da
intenções de um grupo, o que não é verdade, pois construção e do resgate do diálogo, faço minhas
ele encontra alicerce no artigo 3º da Constituição homenagens à Justiça do Trabalho e à Justiça
Federal, que propõe a construção de uma sociedade Estadual, especialmente no Direito de Família,
livre, justa e solidária. Assim, o preâmbulo nada porque elas foram as precursoras do movimento
mais faz do que explicitar o conteúdo que está de autocomposição. Venho trabalhando com
previsto nesse artigo. Esse não é mais um tema Direito Público há muito tempo e, em 24 anos de
considerado metajurídico. O Código de Processo Magistratura, iniciava as audiências dizendo às
Civil de 1973 estabeleceu, no artigo 125, que era partes que, por estarmos diante de interesses e
dever do juiz dirigir o processo e tentar efetuar direitos indisponíveis, passaríamos prontamente
a conciliação das partes a qualquer momento. O à instrução. Sinto vergonha do tempo em que
Novo Código de Processo Civil reafirma isso como iniciava uma audiência sem sequer propor
norma fundamental da regra instrumental do uma conciliação. Era esse o modelo que as
Brasil, que se chama Lei Adjetiva Civil, ou Código universidades brasileiras ensinavam.
de Processo Civil. Esses exemplos reafirmam a
noção de modelo de constitucionalismo e de que Gostaria de relembrar o fundamento teórico da
esse tema é jurídico. Seja na história do Direito, na mediação, da conciliação e da arbitragem e, ao
Teoria Geral do Direito, na Constituição Brasileira mesmo tempo, o porquê de o NCPC ter se aliado
ou numa perspectiva de realismo jurídico, o Direito à Lei n. 13.140/2015, marco teórico da mediação
vivo sendo construído pelos tribunais, temos e à Lei n. 9.307/1996, a Lei da Arbitragem,
definitivamente afastado a tese de que o tema da com a redação dada pela Lei n. 13.129/2015.
mediação não é um tema jurídico. Esse tema faz Isso, efetivamente, muda o curso do Direito
parte, sim, do ordenamento jurídico. Processual Civil, sem validar todas as inovações
do Código: algumas muito positivas, outras, muito

76
questionáveis. Como inovações positivas, relembro acordo. Ao final do dia, ela foi informada de que o
a conciliação e a mediação, a simplificação da inquilino havia matado o proprietário do imóvel.
defesa do réu, a impugnação ao valor da causa, Isso mostra que o nosso compromisso com a
a exceção de incompetência. No entanto, ao conciliação não é formal, mas de resgate para
mesmo tempo, o NCPC também trouxe mudanças minorar o conflito, ou para construir uma solução
questionáveis, como nos embargos infringentes, que efetivamente o resolva. Nós, magistrados,
em que é extinta a provocação recursal daquele que não podemos pensar que somos deuses, que o
está inconformado, instituindo-se mais um modelo nosso discurso de autocomposição vai solucionar
de remessa necessária. Isso é problemático, mas de vez a questão.
estou defendendo com muita veemência o tom
do NCPC no sentido de promover mudanças e de O NCPC fez uma mudança completa nesse sentido,
trazer a conciliação como norma fundamental para pois a mediação e a conciliação passaram a ser
a administração da Justiça. Primeiro, a cultura do norma fundamental. Elas vêm repetidas vezes no
diálogo, que não é perda de tempo. Aqueles que artigo 3º, nos artigos 139, 165, 175, 334 e 359. A
trabalham com esse tema sabem o efeito prático norma fundamental retira o juiz do processo direto
da mediação na administração da Justiça. da mediação, passando a ser um supervisor desse
processo, porque compreende que a mediação e
Uma ministra, que trabalha há trinta anos com a conciliação não pertencem ao Poder Judiciário,
o tema da conciliação, numa certa audiência mas sim ao tecido social.
de locação presidida por ela, o proprietário e o
inquilino fizeram um acordo no qual o inquilino teria A primeira fase do acesso à Justiça consiste em
de desocupar o imóvel, mas teria mais de noventa levar a conciliação e a mediação para a sociedade
dias de prazo para isso. Ela percebeu que o inquilino civil, para os movimentos sociais. Nessa nova
ficou extremamente zangado, apesar de ter feito o visão, a norma fundamental não é mais uma ajuda

77
ou caridade, mas um trabalho de técnico, que desaceleração do congestionamento da Justiça
constrói a figura do conciliador e do mediador como brasileira. A conciliação não é a solução para o
indivíduos capacitados para tanto e que entendem congestionamento da Justiça brasileira. Isso é muito
da interdisciplinaridade. O conciliador passa a bom para nós, juízes, promotores, advogados.
reunir em si várias pessoas simultaneamente,
como psicólogo, sociólogo, jurista, tudo isso para A autocomposição é inacessível aos interesses
construir a cultura do diálogo. Ser mediador é indisponíveis, mas, na área de políticas públicas, é
ser aquele que não vai propor, mas que vai fazer possível desenvolver esse tema. A autocomposição
com que as partes reconheçam os seus conflitos revaloriza a duração razoável do processo, porque
e diferenças. Diferentemente, ser conciliador é faz com que o magistrado possa se interessar
ser aquele que vai propor e que vai intervir de efetivamente por aquilo que não conseguiu
certa forma. Isso acontece muito nas políticas resolver na cultura do diálogo. A fundamentação
públicas, Vara de Fazenda Pública na Justiça e o contraditório revalorizam também porque o
Estadual, Varas da Justiça Federal, e, esperamos juiz deixa de trabalhar com o excesso da demanda
que também ocorra no Direito Penal, próximo e passa a examinar os conflitos que não foram
passo da conciliação. Tudo isso leva à revalorização resolvidos pela cultura do diálogo. É fundamental
da instrumentalidade das formas, a gestão de que haja uniformidade e isonomia entre os
processos. Eu não estou fazendo apologia à brasileiros do Norte e do Sul. De certa forma, isso
conciliação e esquecendo a entrega célere da cria uma jurisprudência estável e a unidade do
prestação jurisdicional, mas apenas sinalizando processo, em que se acabam as fases processuais
que o Poder Judiciário deva se preocupar com como processos autônomos, conhecimento
aqueles conflitos que não conseguiram encontrar cautelar e execução. O processo é um instrumento
uma solução por meio do diálogo. E, talvez sim, de realização do bem da vida prometido pelo
possamos ter uma progressão geométrica de texto constitucional e desenvolvido na legislação

78
infraconstitucional. Como aspectos importantes comunicamos com pessoas de países longínquos.
no NCPC, temos a Central de Conciliação com Isso faz com que a mediação também trabalhe
os conciliadores. Os conciliadores não devem ser com a mediação digital. A Justiça Federal de São
considerados mais como pessoas caridosas ou de Paulo, que é da Terceira Região, chega a ter 180
boa vontade, mas pessoas preparadas, aptas ao mil processos de profissionais liberais. A Justiça
exercício da mediação. O NCPC chega a falar em Federal da Primeira Região tem 190 mil processos,
concurso público. Tenho algumas dúvidas a respeito que, em regra, têm como proveito econômico valor
disso, mas é uma possibilidade democrática para inferior a R$ 3 mil. Segundo o Instituto de Pesquisa
o mediador. O NCPC preconiza a conciliação pré- Econômica Aplicada - Ipea, cada processo gera um
processual como solução para gestão dos processos custo ao Erário de R$ 4,5 mil. É uma irracionalidade,
também, ou seja, como solução para a ideia de que depõe contra os princípios republicanos, que
acesso à Justiça. O livre acesso à Justiça parece agrava a condição do Poder Judiciário de imersão
ser uma solução paliativa da conciliação judicial, no caos. Pode ser que, nessas áreas, a conciliação
que não soluciona o problema. Ela é fundamental digital seja uma solução. O conciliador é um
por uma questão de pedagogia, a nova pedagogia profissional capacitado, que tem o compromisso
do instrumento do Direito brasileiro, mas só de realizar a justiça e de pacificar a sociedade.
vai mostrar resultado positivo, numericamente Essa conciliação tem que ser a mais transparente
falando, com a conciliação pré-processual. possível como um portal de conciliação. A Resolução
n. 125 do CNJ – Conselho Nacional de Justiça já
O NCPC prevê um Cadastro Nacional de preconizava isso com a Emenda n. 2.
Conciliadores, um cadastro local de conciliadores
criado pelo Tribunal de Justiça para servir os mais Deve haver fora do Poder Judiciário as Câmaras
variados órgãos. Ele também prevê a conciliação de Conciliação no Poder Público, porque, dos 107
digital. Atualmente, no mesmo instante, nós nos milhões de processos, 51% dizem respeito aos

79
entes públicos, só a União, 38%. Dos 107 milhões, sim alguém eleito pelas partes. Isso tem tido um
38%, dizem respeito a instituições bancárias e 8% efeito muito grande no Direito Privado, sobretudo,
à telefonia. Há excesso de demanda provocada por especialmente no Direito Internacional Privado.
políticas públicas equivocadas ou insatisfatórias, ou
por questões relacionadas ao Direito do Consumidor. No cotidiano, o juiz, o membro do Ministério Público,
O Poder Público tem que dar o exemplo, que seria a o defensor e o advogado público são agentes
criação de câmaras de conciliação. Não é à toa que mediadores, são agentes conciliadores de acordo
vimos brigas entre uma autarquia e o Estado, entre com o Novo Código de Processo Civil. Esse ponto
uma autarquia federal e a União, entre a Empresa tem uma importância extraordinária. Dos artigos
Brasileira de Correios e Telégrafos - ECT e a União, 165 a 175, há regras de conciliadores: seleção,
entre a Infraero e a União, entre o Banco do Brasil concurso, remuneração, etc. O artigo 165 expõe
e a Caixa Econômica Federal - CEF, uma empresa que “os tribunais criarão centros judiciários de
pública e uma sociedade de economia mista. solução consensual de conflitos responsável pela
Não é à toa que isso tem reflexo na sociedade. A realização de sessões, audiência de conciliação e
Resolução n. 125 de 2010, do CNJ, com a redação mediação, e pelo desenvolvimento de programas
da Emenda n. 02/2016, e a Resolução do Conselho destinados a auxiliar, orientar e estimular a
da Justiça Federal n. 398/2016, preconizam a autocomposição”. Essa previsão retira o juiz do
atuação em conjunto com os entes públicos. Isso protagonismo da conciliação, acrescendo as figuras
é fundamental. Essa política transforma, no art. técnicas de um mediador e de um conciliador,
3°, a conciliação, a mediação e outros métodos estando este sob a supervisão do juiz. As centrais
de solução consensual de conflitos em norma de conciliação foram idealizadas pelos pensadores
fundamental, e preconiza a arbitragem como uma do Direito como construções interdisciplinares
forma de solução dos conflitos em um modelo para um instituto importantíssimo, alicerçado
estatal, sendo que o Estado não é o terceiro, mas na mudança de paradigma. Cria-se a figura do

80
conciliador, que está sob a supervisão do juiz em na Justiça Federal, desenvolve-se a necessidade
um ambiente propício para a conciliação. Há a de estruturação dos centros de conciliação, que,
figura do coordenador, que está vinculado à Central diga-se de passagem, já deveriam estar instalados
de Conciliação. Esse sistema é regido pelo princípio no dia 18 de março de 2016.
da confidencialidade e pela cultura do estímulo à
conciliação e à mediação pré-processual. Tenho a O legislador deu poder ao Conselho Nacional de
firme convicção de que isso vai mudar a história Justiça de estabelecer a organização, composição
processual dos tribunais brasileiros, da gestão e estruturação das Centrais de Conciliação. A
dos processos, porque nós estamos atacando as Resolução n. 125, com a Emenda n. 02, reafirma a
causas. Efetivamente, é necessário instalar uma necessidade de um juiz coordenador das centrais,
central em cada localidade onde houver mais de onde houver mais de dois juízes, que não aquele
um juízo. Os tribunais estimularão a criação de que vai julgar o processo em si.
cursos de capacitação e de centrais de conciliação,
A conciliação dirigida por um magistrado é nula?
desenvolvendo a política jde tratamento adequado
Muitos querem vislumbrar a regra instrumental
aos conflitos de interesses. A Emenda n. 02/2016,
como um fim em si mesmo, mas não é assim que
que veio para regulamentar o Novo Código de
deve ser feito. A ideia é transformar a conciliação
Processo Civil, somada à Resolução 125 do CNJ,
e a mediação em normas fundamentais, retirar
o Poder Judiciário passou a estabelecer isso como
do juiz o protagonismo, colocar um profissional
política pública. Com a Emenda n. 2, consagram-
técnico capacitado em um ambiente propício, mas
se não só o marco teórico da lei própria, mas o
não retirar a função do juiz no processo judicial de
Novo Código de Processo Civil, estabelecendo a
pacificador. No artigo 359, que trata da audiência
mediação como norma fundamental. A Resolução
de instrução e julgamento, a primeira atividade
n. 398, do Conselho da Justiça Federal, no mesmo
atribuída ao juiz no NCPC é tentar conciliar as
diapasão e, verificando a realidade da conciliação

81
partes. Nesse ponto, há uma lógica perfeita de entanto, o Código não fala mais no tema “direitos
mudança de paradigma, de coerência com o indisponíveis”. Indisponível é a vida humana, é a
sistema processual brasileiro. felicidade humana. O NCPC fala em direitos que não
permitem transação. A ofensa aos princípios gerais
É preciso considerar o aspecto da remuneração dos de direito, aos direitos da criança e aos direitos do
conciliadores do Cadastro Nacional, como também hipossuficiente é questão impassível de transação.
o desligamento. Eles devem ter os mesmos
impedimentos e suspeições que os magistrados têm, Vejam a mudança do atual Código em relação ao
porque os conciliadores passam a ser auxiliares da antigo. O anterior tratava dos direitos indisponíveis,
Justiça. Ainda não houve regulamentação quanto e o atual trata dos direitos que não permitem
à remuneração no âmbito da Justiça Federal. transação. O NCPC prevê o mínimo de 20 minutos

Por enquanto, a conciliação seria em caráter para as sessões de mediação e de conciliação,


estabelecendo-se a possibilidade de ocorrência
voluntário. A audiência de conciliação, que é feita
de várias delas. Há consequências para a falta de
com o mediador, pode ser feita na mesa da sala de
comparecimento às sessões, como ato atentatório
audiência. E pode ser feita pelo juiz na audiência
à dignidade da Justiça, em função da nova política
de instrução e julgamento. Se houver audiência de
de mediação. Os juízes, promotores e defensores
conciliação em que o juiz presida, ninguém vai dizer
devem ter bom senso, no sentido de estimular o
que aquilo é nulo e se deu resultado. Mas, é que nós
movimento de conciliação e de mediação. Isso não
não queremos a resposta que aquela ministra teve foi feito para criarmos mais multas. Nós queremos
há 30 anos, uma solução conciliatória formal sem é que a sociedade volte a se empoderar e o Estado
nenhum respaldo no cotidiano que ensejou morte. não pode ficar substituindo a vontade das partes
Isso diz respeito ao princípio da confidencialidade, com a pretensão de que vai solucionar todos os
à possibilidade de enveredarem-se a conciliação e conflitos, embora ele seja fundamental naqueles
mediação nos chamados direitos indisponíveis. No conflitos que a sociedade não consegue solucionar.

82
Em 2014, havia 95 milhões de processos e um A grande vedete do século XXI é o processo eletrônico,
corpo de magistrados que, apesar de algumas a grande vedete do século XXI. Em 2015, 44% dos
deficiências, não é preguiçoso. Um corpo de 16 processos na Justiça brasileira são eletrônicos. Em
mil magistrados recebeu 28 milhões de casos 2016, segundo o Ministro Lewandowski, estima-se
novos, julgou 27,7 milhões, contando com 412 que 107 milhões de processos em curso também
mil servidores. A realidade indica ainda 51% dos serão eletrônicos, o que demonstra que a questão é
processos envolvem entes públicos, sendo que verdadeiramente estrutural.
dessas, 41% são execuções fiscais. A nossa Justiça
detém uma função arrecadatória dominante. Colaborei durante mais de dez anos em Juizados
O problema da Justiça fiscal brasileira é que Especiais Federais, na Turma Recursal de Tocantins
ela envolve milhões de processos, sendo que a e do Distrito Federal, e como coordenador dos
maior parte está na fase do artigo 40 da Lei de Juizados ou do Núcleo de Conciliação. A Primeira
Execução Fiscal, ou seja, aguardando a localização Região abarca 80% do território nacional, ou seja,
do devedor e dos seus bens. O congestionamento 13 estados, sendo que Minas Gerais é o carro-
permanece grande em todos os níveis. Em certa chefe. O Distrito Federal demonstra ter vivido uma
pesquisa, evidenciou-se que, cada juiz da Justiça experiência extraordinária na possibilidade de
Estadual recebe, em média, mil processos; cada concretização disso. São 175 unidades jurisdicionais
juiz federal, na Justiça Federal, recebe sete mil que trabalham com políticas públicas, previdência,
processos, em média; e cada juiz da Justiça do habitação, junto aos Juizados Especiais Federais.
Trabalho, 2,5 mil, em média. Em 2015, o quadro Esses dados demonstram como a distribuição das
não se alterou. O problema é que temos 71 milhões Varas é muito maior para os Juizados Especiais, e
de processos como estoque, o que reforça a ideia que isso é acesso à Justiça. E demonstra, ainda, que
de que estam sendo tratadas as consequências, e a solução da simplicidade e da oralidade é possível.
não as causas. Estou falando sobre os Juizados Especiais Federais,

83
mas os Juizados Estaduais têm uma experiência Relembro, nesse momento, alguém muito
muito mais rica. Os gráficos de tramitação, de importante para as Minas Gerais: Guimarães
julgamento e de distribuição fazem com que nós Rosa. Ele diz que o real não está na entrada e
possamos perceber que o modelo da simplicidade nem na partida, mas no momento da travessia.
pode ser levado ao modelo do processo ordinário, Que essa travessia seja realmente gloriosa, para a
mas o inverso, não. Assim, aqueles que defendem construção de um Estado melhor. Muito obrigado.
a aplicação irrestrita do Novo Código ao Juizado
estão equivocados. Os juizados chegaram para PROCURADOR DE JUSTIÇA JARBAS SOARES
simplificar e não para complicar. JÚNIOR: Obrigado, Ministro. Volte sempre!

Há uma experiência extraordinária da Justiça


Federal mineira, ocorrida com o resgate da
chamada “Fundação Navantino Alves” que foi
reentregue à Santa Casa de Misericórdia por meio
de uma parceria entre o Ministério Público estadual,
o Ministério Público Federal, a Justiça Federal, a
Caixa Econômica Federal e a Defensoria Pública.
Isso é resultado do que a mediação pode fazer. As
consequências de tudo isso são a desjudicialização.
Sem a mediação, a conciliação e a arbitragem,
nada seria possível.

Infelizmente, o tempo é curto; espero ter ajudado


na reflexão, porque hoje não há mais obstáculo
normativo, mas sim humano, mudando-se o
paradigma. Eram essas as considerações.

84
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: OS REFLEXOS muito bem os valores de Minas Gerais e é um
DO NOVO CPC NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL orgulho para esse estado. Ele é bacharel em
DOS TRIBUNAIS PROFERIDA POR JOÃO Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas,
OTÁVIO DE NORONHA, PARTE DO “PROJETO
especializado em Direito do Trabalho, Direito
SEGUNDA-FEIRA ÀS 18H” REALIZADA EM 27
Processual do Trabalho e Direito Processual Civil na
DE JUNHO DE 2016
Faculdade Mineira do Sul de Minas, é Ministro do
Superior Tribunal de Justiça desde 2002, membro
da 2ª Sessão e da 3ª Turma, membro da Corte
MESTRE DE CERIMÔNIA: Para abertura, ouviremos
Especial, membro do Conselho de Administração,
o Diretor do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento
professor de Direito Civil e Direito Processual Civil
Funcional - Ceaf, Procurador de Justiça, Jarbas
do Instituto de Educação Superior de Brasília - IESB,
Soares Júnior e, em seguida, o Procurador-Geral de
professor de Escola Superior da Magistratura do
Justiça, Carlos André Mariani Bittencourt.
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios,
PROCURADOR DE JUSTIÇA JARBAS SOARES professor de Pós-Graduação da Uniceub, Diretor da
JÚNIOR: Boa noite. Quero saudar o nosso Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento
Procurador-Geral de Justiça; o Ministro João Otávio dos Magistrados. Foi membro efetivo do Tribunal
de Noronha; o Advogado-Geral do Estado, Diretor Superior Eleitoral, foi Corregedor-Geral do Tribunal
do Fórum, Desembargador e Defensor Público que Superior Eleitoral, é o atual Corregedor Nacional
representa as instituições do Estado; e o Diretor da de Justiça, e, daqui a dois anos, irá assumir a
Escola da Advocacia-Geral, Dr. Alberto Guimarães. presidência do Superior Tribunal de Justiça.

O Ministro João Otávio é um homem simples, Nós que temos a honra de conhecê-lo, sabemos
de convicções muito fortes e bem formadas, de do seu jeito simples de ser, da sua vasta cultura
compromisso com a República. Ele representa jurídica e do seu compromisso com os princípios

85
republicanos. Além de trazer à discussão um tema Banco do Brasil e atual Diretor do Foro na Justiça
tão necessário e profundo, ele é um bom exemplo Estadual em Belo Horizonte, Dr. Rui Magalhães,
a ser seguido. Muito obrigado, que tenhamos um procuradores de justiça e demais presentes.
bom proveito.
O tema escolhido “Código de Processo Civil e o seu
PRESIDENTE DA MESA E PROCURADOR- reflexo na jurisdição dos tribunais superiores” é
GERAL DE JUSTIÇA CARLOS ANDRÉ MARIANI muito oportuno pela grande inovação apresentada
BITTENCOURT: Boa noite a todos. De início, pelo Código de Processo Civil. Esse Código trouxe
gostaria de cumprimentar o nosso palestrante algo que já estava ínsito ao sistema, que é a força
convidado, os Membros da Mesa e todos os colegas vinculante das decisões dos tribunais. O mais
presentes. Bom proveito a todos. Muito obrigado. importante é que a nova lei traz força vinculante,
não apenas para os tribunais superiores, mas
MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA: Inicio também para os tribunais de justiça e tribunais
as minhas saudações, cumprimentando o Dr. regionais federais, em suas respectivas jurisdições.
Carlos André Mariani, Procurador-Geral de Minas
Gerais, o Juiz Federal Miguel Lopes, Presidente Aplicar a força de precedente fere a Constituição,
do Fórum, Dr. Afrânio Vilela, Desembargador do porque, no nosso sistema, ao contrário do sistema

Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Dr. da Common Law, o juiz não tem o poder de

Onofre Batista Junior, Procurador-Geral do Estado, formular o direito. A jurisprudência não é uma
fonte imediata. Há força vinculante naquilo que
a Defensora Pública, Dra. Mariana Massara, o
é chamado na linguagem forense de precedente,
Presidente da Associação do Ministério Público,
que tem a mesma força daquele precedente do
Promotor de Justiça José Silveira Perdigão, o
sistema da Common Law. No sistema do Common
Ministro Arnaldo Esteves Lima, o ex-Advogado do
Law, o juiz sistematiza os fatos e observa o

86
direito consuetudinário. Não tendo precedentes, futuros. É preciso verificar, nesse ponto, se há
ele formula regra que há de ser aplicada àquele coincidência de teses, e não de fatos. Se a tese
caso. Essa regra é a fonte imediata, que inova a ser aplicada decorre da interpretação de uma
no sistema jurídico, por meio de uma nova norma federal infraconstitucional pelo STJ, ou de
norma, de um novo regulamento. No entanto, uma norma constitucional pelo STF, significa que
esse sistema do Common Law não é o adotado já existe uma orientação, da qual se extraiu uma
pelo Direito brasileiro. O Código Brasileiro não interpretação que deve regular os casos idênticos
importou o sistema do Common Law. Precedente, ou muito semelhantes.
no sistema jurídico pátrio, há de ser entendido
como interpretação dada por um tribunal a um Alguns juízes de primeiro grau pouco atentos
poderiam indagar em relação ao propósito
dispositivo de lei. A lei é a fonte imediata. É lógico
do legislador quanto ao livre convencimento
que, quando o juiz não encontrar na legislação
conferido aos magistrados. O juiz vai verificar
uma norma aplicável ao caso, ele deverá usar os
que o livre convencimento de que fala a lei é o
princípios gerais de direito, analogia, etc. A boa
livre convencimento motivado dos fatos. A livre
doutrina ensina que o juiz não cria a lei, pois ele
convicção dos fatos é tarefa reservada a cada
está extraindo pela interpretação do sistema uma
um dos julgadores. Quando se tratar de norma
regra que está subentendida. jurídica, ela se refere mais especificamente ao
texto da lei interpretada. Norma e texto são coisas
No Direito Brasileiro, os precedentes não se igualam
diferentes. Há texto de lei em que o juiz ou tribunal,
aos da Common Law, pois eles não tratam da força
ao interpretá-lo, extrai dele uma norma. É preciso
criadora do direito do juiz. O tribunal interpretou observar que as normas podem se alterar no tempo
certa lei e, a partir desse ato, extraiu a norma. sem que haja alteração do texto. Um dos melhores
Essa norma é que vai regrar ou regulamentar a Códigos Civis já existentes foi o Código Civil de
aplicação do direito do caso concreto em casos 1916, o famoso Código Civil de Clovis Bevilaqua.

87
O Supremo Tribunal Federal, quando ainda texto. A norma não pode ser estática. Se o texto
detinha competência para interpretar a lei federal é estático, a norma, não. No sistema Common
infraconstitucional (antes da promulgação da Law, a mesma Corte que, no passado, há quarenta
Constituição de 1988 e, antes, portanto, da anos, adotou a posição de que a segregação
instauração do Superior Tribunal de Justiça), por racial era constitucional, agora adotou outra
várias vezes, ao interpretar o texto do artigo 535 posição, no sentido de que ela é inconstitucional,
do Código Civil de 1916, extraiu da norma que o pois feria determinada emenda constitucional.
compromisso de compra e venda não registrado O Superior Tribunal de Justiça passou quinze
devidamente no cartório de imóveis não autorizava anos interpretando determinados diplomas
o ajuizamento de embargos de terceiros. Exigiam- legislativos que tratavam do crédito-prêmio do IPI
se a publicidade e o vínculo real da apólice, que (Imposto sobre Produtos Industrializados) para
dependia do registro. Posteriormente, com a os exportadores, no sentido de que esse instituto
criação do Superior Tribunal de Justiça, ele passou estava em vigência. Ao fim e ao cabo, o Superior
a apreciar uma causa idêntica ou semelhante, Tribunal de Justiça, que, por quinze anos, sustentou
abandonando o precedente do STF. A partir de a vigência do instituto, mudou de posição, porque
então, o STJ passou a considerar que o compromisso extraiu dos textos legais uma nova interpretação
de compra e venda, ainda que não registrado, para dizer que aquele diploma estava revogado, ou
autorizando o ajuizamento da ação de embargos seja, o crédito prêmio que era um incentivo fiscal,
de terceiro. Assim, o que se busca é a defesa da com a entrada em vigor da novel Constituição de
posse e posse significa fato. 1988, estava revogado, já que esta havia previsto
a extinção dos créditos setoriais. Considero que o
A jurisprudência vai evoluindo no seu exercício crédito-prêmio do IPI não é crédito setorial, pois
de interpretação. Nenhuma revogação de texto ele atua em todos os segmentos, em todos os
de lei foi feita. Houve interpretação evolutiva do setores da economia, da indústria e do comércio.

88
Não importa. Se se alterou a norma sem que se Como remédio, adotamos um sistema já adotado
alterasse o texto, houve evolução interpretativa. antes na ação declaratória de constitucionalidade
Para o Direito Brasileiro, os precedentes se referem e na ação declaratória de inconstitucionalidade.
à interpretação dada pelo Poder Judiciário a um É possível vislumbrar isso no Direito estrangeiro,
texto de lei, que foi aplicada em julgamentos quando ocorre a modulação dos efeitos da decisão
realizados na Corte. Quando esses julgamentos e quando ela altera a jurisprudência cristalizada.
são repetidos, ou seja, quando um entendimento Isso quer dizer que, quando tratamos da súmula
é sedimentado ou cristalizado, há, tecnicamente,
vinculante do STF, em força vinculante das
a denominada jurisprudência. Ela demonstra
decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas
o julgamento repetido, a cristalização de um
em sede de recurso repetitivo ou nas suas súmulas,
entendimento jurídico por um tribunal, que pode
não estamos pregando um engessamento ou a
se dar pela edição de uma súmula e essa, então,
fossilização do Direito, até porque ele é passível de
passar a orientar. As decisões judiciais traçam
modificação. A evolução do substrato social, que
pautas de comportamento assim como a lei. Na
verdade, a decisão judicial é a lei interpretada, a pauta o juiz na interpretação dos textos legais,
qual é chamada de norma. As decisões judiciais reflete na modificação das súmulas.
traçam normas de comportamento. Aquele
Alguns declaram que esse sistema de forças
que age em conformidade com as normas
comportamentais traçadas pela interpretação dos vinculantes detalhado no Código de Processo
textos legais, não pode ser surpreendido, de um Civil é inconstitucional, de acordo com o
dia para o outro, com a modificação de inopino entendimento próprio da Common Law, do
da jurisprudência cristalizada ou sedimentada. Se Direito Anglo Saxônico existente na Inglaterra,
alterada, a jurisprudência coloca em dificuldade nos Estados Unidos. Precedentes nada mais
aquelas pessoas que acreditaram no entendimento são do que decisões proferidas pelos tribunais
do tribunal e passaram a se comportar como tal. que interpretaram o dispositivo de lei. Por que

89
não são normas inconstitucionais aquelas que julgar, em grau de recurso, as causas decididas
falam de força vinculante no Código de Processo em última instância a) que negarem vigência à lei
Civil? Não há que se confundir a livre convicção federal ou a contrariarem; b) as causas em que
motivada dos fatos com a livre convicção da tese se contestam atos do governo local em face da
jurídica. E por que não se há de confundir valores lei federal. Lei contestada, lei local, municipal,
diferentes? Pela simples razão de que, quando ou estadual, contestada em face da lei federal é
interpretamos sistematicamente a Constituição matéria constitucional, é de princípio da reserva
Federal, tomamos conhecimento de que a estrutura e da competência. É matéria a ser decidida no
do Poder Judiciário brasileiro é desenhada sob a âmbito do Supremo Tribunal Federal. A Emenda
forma piramidal. A estrutura judiciária é de uma Constitucional n. 45 corrigiu a falha, manifestando
pirâmide. No ápice dela, está o Supremo Tribunal que, ao Superior Tribunal de Justiça, cabe apenas
Federal, logo abaixo, ainda no vértice do triângulo, controlar os atos locais contestados em face da
estão os Tribunais Superiores, o Superior Tribunal
lei federal, não mais das leis locais em face da lei
de Justiça, o Tribunal Superior do Trabalho, o
federal. Pelo artigo 105, III, o tribunal exerce um
Superior Tribunal Militar, que é um misto de Corte
papel deveras importante, que é o de unificação da
Superior e Corte de apelação. O STJ foi um tribunal
jurisprudência nacional. Cabe ao Superior Tribunal
criado para julgar, mediante recurso especial, as
de Justiça dar a última interpretação da lei federal
causas que contrariam a lei federal ou cuja decisão
e, por isso, quando um tribunal divergir de outro
diverge de outros tribunais. Visualizado pela ótica
tribunal, bem como da própria interpretação dada
da natureza jurídica, o Superior Tribunal de Justiça
é um tribunal criado para exercer o controle da ao STJ, cabe recurso especial para que esse Tribunal

inteireza do direito federal infraconstitucional. Em exerça a sua missão constitucional de uniformizar

razão disso, a Constituição Federal, no artigo 105, o direito federal infraconstitucional.


III, diz que cabe ao Superior Tribunal de Justiça

90
A par desses papéis preponderantes do No controle de constitucionalidade incidental, há
Superior Tribunal de Justiça, há outros como o o recurso extraordinário; no controle concentrado,
de julgar os governadores, desembargadores há as Ações Diretas de Inconstitucionalidade –
e subprocuradores da República na prática de Adin’s, a ADPF – Argüição de Descumprimento
crime; o de julgar os conselheiros dos Tribunais de Preceito Fundamental, a Ação Declaratória de
de Contas. É a chamada competência por Constitucionalidade - Adecon.
prerrogativa de função, vulgarmente conhecida
por foro privilegiado. Nesse caso, o STJ se equipara O STF foi criado para dar a última interpretação. Os
a um juiz de primeiro grau. Trata-se do exercício Tribunais de Justiça, por sua vez, estão previstos
da competência originária, porque, no próprio na Constituição Federal como órgãos de revisão
Superior Tribunal de Justiça, nasce a demanda, das decisões de primeiro grau. Cabe aos TJ’s dar
ajuizando-se o processo e executando-se a a última palavra quanto à interpretação da lei,
decisão. Assim, ele não está exercendo seu papel federal ou local, da lei do estado. O primeiro e o
existencial preponderante, que é o de exercer o segundo graus exercem a função mais importante
controle da legalidade da lei federal. da justiça, pois estão preocupados com a justiça
em si. Na Justiça Estadual, na Justiça Federal
Ao mesmo tempo em que o Supremo Tribunal de primeiro grau e segundo grau, exaure-se a
Federal desempenha a missão constitucional produção da prova. Desse modo, o valor justiça
de ser o grande guardião da Constituição, exercido pelo Poder Judiciário praticamente
cabe a ele zelar pela inteireza do direito federal termina na segunda instância. E por que termina?
constitucional ou da Constituição Federal. Ele se O ministro do Superior Tribunal de Justiça pode,
desincumbe desse mister, ou pelo controle de em sede de recurso especial, reanalisar provas e
constitucionalidade concentrado, ou pelo controle rever fatos? Se ele não pode, como fazer justiça
de constitucionalidade incidental. no caso concreto? Isso, de certa forma, causa

91
perplexidade àqueles que são alheios ao campo por um tempo. A posse pode gerar um conflito
do Direito, mas não pode causar perplexidade aos social tão grande que leve a conflitos pessoais
técnicos da área. que terminam em mortes. A preocupação do
legislador é justificável. Quando o legislador traça,
O Direito é composto, já nos ensinava Gustav no Código de Processo Civil, um procedimento
Radbruch, de vertentes, valores ou vetores. Uma sumário, a par do procedimento ordinário, para
vertente chamada justiça, a outra, de segurança determinados conflitos, ele define um prazo mais
jurídica. É desejável, tanto quanto possível, que enxuto, porque entende que esses conflitos devam
eles caminhem juntos, mas nem sempre é possível. ser rapidamente resolvidos, em virtude de fatores
Ora, esses valores se digladiam. O legislador, como dificuldade de produção de prova e como
então, vai ter de tomar partido. Qual deles há de a questão econômica das partes. Ao estabelecer
prevalecer: a justiça ou a segurança jurídica? o procedimento ordinário, ele está valorizando o
vetor justiça. Com maior amplitude no contraditório
Na filosofia jusnaturalista, deve prevalecer
e com maior prazo de resposta, ele contribui para
sempre o valor de justiça. Na filosofia positivista,
que a verdade processual se aproxime da verdade
preocupada com a paz social, cabe ao legislador
real, que é o fim colimado no processo.
posicionar-se. É ele que decidirá qual valor será
sacrificado e qual irá permanecer. Ao normatizar O legislador tomou partido pelo valor justiça e
a posse, o legislador toma partido no conflito, deixou definido como atribuição para as instâncias
afirmando que, na pendência da ação possessória, ordinárias. A missão das instâncias extraordinárias
não se pode discutir o domínio. No caso, ele tomou nos Tribunais Superiores também é de fazer justiça
partido em prol da segurança jurídica. Primeiro, no caso concreto, mas de forma limitada. Às vezes,
pacifica-se, para depois discutir-se o direito. ele acaba por ter que consagrar a “injustiça” no
Ele está postergando o direito do proprietário caso concreto, quando o recurso não foi conhecido,

92
porque a questão não foi prequestionada, ou Não se pode dizer que é inconstitucional seguir
quando o recurso não é conhecido, porque a a orientação da Corte que tem a competência de
decisão do tribunal, embora equivocada, decorreu interpretar a lei federal infraconstitucional, ou dizer
de interpretação da prova. A missão constitucional que a vinculação às decisões do STF, também é
dele não é imediatamente zelar pela justiça do inconstitucional, porque ela vincula o entendimento
caso concreto, pois ela é atribuída às instâncias da Corte que tenha por missão constitucional
ordinárias. O tribunal superior vai, sim, tutelar interpretar a Constituição. Os tribunais superiores
um interesse privado, mas, ao mesmo tempo, vai é que têm por missão interpretar o direito federal
permitir que o Estado faça prevalecer o interesse e a Constituição, de modo a assegurar a paz social
público na adequada e justa interpretação da norma e a dar estabilidade ao ordenamento jurídico.
do texto legal para que se assegure a prevalência Não é razoável pensar em não seguir a decisão
da ordem jurídica. Piero Calamandrei, na obra do STF em matéria de constitucionalidade. Se o
“Recurso de Cassação”, afirma que, no recurso STF diz que é inconstitucional, mas o ministro
de cassação, recurso de natureza excepcional e entende que é constitucional, desse modo ele
extraordinária que faz as vezes de recurso especial, vai julgar. Se o STJ aponta que o entendimento é
o interesse público segue pari passu o interesse um, mas o ministro não concorda, assim ele vai
privado, na busca de uma decisão que propicie ao julgar como bem entende. A razoabilidade escapa
tribunal, paralelamente, tutelar o interesse privado em todos os aspectos. Pelo aspecto econômico,
e manifestar um interesse público de prevalência porque gera um gasto desnecessário à máquina
da ordem jurídica. judiciária, um custo ao Poder Judiciário que vai ser
suportado pelos contribuintes, já que o Estado não
Se a Constituição cria tribunais com essa missão, fabrica dinheiro, mas o retira da sociedade para
o juiz deve seguir a orientação da Corte criada seu custeio. Há também o risco de realização de
com os propósitos elencados na Constituição. injustiça. Hipoteticamente, o vizinho tem uma

93
causa idêntica à minha. Ele pode se aposentar aos razoável ao juiz de primeiro grau contrariá-las para
65 anos, mas eu não. Isso ocorre pois o meu recurso ensejar mais um recurso. É nessa lógica que o Novo
não foi conhecido, já que o advogado perdeu o Código de Processo Civil pregou a força vinculante
prazo. Eu tenho direito, mas o juiz não o aplicou. das decisões judiciais proferidas pelos tribunais
Assim, ocorrerá uma profusão de decisões das mais superiores. Tais decisões judiciais devem ser
diversas, em que cada juiz decide a seu talante. entendidas como precedentes na forma citada pela
Haverá uma infinidade de normas jurídicas distintas norma processual, e não pelo precedente do sistema
aplicadas a milhões de brasileiros que custeiam a do Common Law. No Brasil, precedente faz alusão
máquina judiciária. A Alemanha jamais criou recurso a decisões interpretativas de textos legais. São
repetitivo para viger nas cortes superiores, só nas normas extraídas dessa interpretação. O legislador
cortes de apelação. Se o Superior Tribunal de Justiça processual traz uma obrigação para os tribunais,
já interpretou e sumulou determinada tese jurídica, tal a preocupação com a segurança jurídica. No
não pode receber mais nada para julgamento. A ida artigo 926, está previsto que os tribunais devem
de processos nessa circunstância para esse tribunal uniformizar a jurisprudência e mantê-la estável,
é uma procrastinação processual ou capricho de íntegra e coerente. O Código não é redundante ao
julgadores, que jamais contribuiu para a celeridade e dizer isso, porque o que mais ocorre nos tribunais é
a eficácia do direito. Não adianta que a Constituição a existência de colegiados de mesma competência,
preveja a duração razoável do processo se se permite de várias câmaras que estão julgando em sentido
que cada juiz julgue contrariamente à orientação contrário. Nesse caso, o tribunal deve unificar a
dos tribunais superiores. jurisprudência. Como Ministro do Superior Tribunal
de Justiça, integrante da 2ª Sessão, tenho o dever
Do mesmo modo, a nível estadual, em conformidade de aplicar a jurisprudência pacificada na sessão,
com as decisões do Superior Tribunal de Justiça e porque ela tem força vinculante. Não posso julgar
do Supremo Tribunal Federal, indaga-se se seria da forma como eu escolher. Nem é razoável que,

94
nos tribunais superiores, cada um julgue como responsabilidade de aplicar o ordenamento jurídico
bem entender, mesmo depois que a Corte tenha com coerência. O Código de Processo Civil afirma
pacificado, unificado ou sumulado o entendimento. que o ordenamento deve se manter estável, mas
O mesmo raciocínio vale para o STF e para os não necessariamente de forma definitiva. Fatos
tribunais estaduais. Não se deve entender que o novos, que refletem a alteração da consciência
juiz seja um mero “carimbador” de decisões. O social, justificam a evolução da jurisprudência.
juiz interpreta os fatos e aplica o direito posto; Por essa lógica é que as súmulas são superadas.
ele não cria direito. Quando o juiz contraria isso Cabe ao tribunal, diante do novo sentimento da
está subvertendo a ordem e atentando contra o sociedade, buscar nova interpretação, sem que
direito posto. Considerando-se que a norma foi isso importe vulnerabilidade à segurança. Portanto,
interpretada pelo julgado a quem a Constituição a alteração da jurisprudência deve passar por um
atribuiu competência, é necessário parar com a ciclo evolutivo. A mudança do substrato social vai
prolação de decisões contraditórias, que geram fazer com que o juiz tenha nova percepção da
instabilidade e incerteza. realidade. Nesse caso, ele vai trabalhar de modo
a dar ao texto outro sentido, praticamente criando
Não se deve transformar a justiça num sistema de uma nova norma.
roleta russa em que se dá tiro até acertar. O sistema
encontrado no Código de Processo Civil trata da força O Novo Código de Processo Civil, no artigo 489,
vinculante das decisões dos tribunais. A força das II, ao definir quais são os elementos essenciais da
decisões vem da Constituição e é ínsita ao sistema. sentença, expõe que “constitui um dos elementos
Não é possível interpretar a existência dos tribunais da sentença os fundamentos em que o juiz
apenas pela própria existência, não se cria órgão analisará as questões de fatos e direito”. No §1º,
por criar, apenas por missão constitucional. Os I, ele afirma que: “não se considera fundamentada
juízes e tribunais de todos os níveis precisam ter a qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória,

95
sentença ou acórdão, que se limitar à indicação, à do Poder Judiciário não pode ser penalizado. Isso
reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem vinha correndo quando o Superior Tribunal de
explicar sua relação com a causa ou com a questão Justiça mudava a sua orientação jurisprudencial.
decidida”. No inciso VI, acrescenta: “deixar de Tomavam-se os casos que já estavam ajuizados
seguir o enunciado de súmula, jurisprudência ou no passado e se aplicava a regra antiga. Em
precedente invocado pela parte sem demonstrar relação aos novos, mudava-se o comportamento e
a existência de distinção no caso em julgamento aplicava-se o novo entendimento.
ou a superação do entendimento”. A regra é que,
sempre que a parte invocar, o juiz tem que aplicar, No artigo 927, §3º, o CPC trata da possibilidade
ou, caso não aplique, deve apresentar motivação de modulação dos efeitos da decisão. Alterando
para isso. Se a súmula estiver vigente, e ele não a jurisprudência dominante do STF ou do STJ,
aplicar, haverá a subida de recurso extraordinário. a Corte pode modular os efeitos da decisão.
O legislador foi muito coerente ao se preocupar Modular significa definir a partir de quando aquele
com a segurança. Todo o sistema traçado para entendimento jurisprudencial será aplicável.
a força vinculante das decisões judiciais ou dos Indaga-se se seria razoável alterar, ou não
precedentes tem relação direta com os valores reconhecer como válido negócio jurídico celebrado
segurança jurídica e previsibilidade. Segurança no passado, que estava à época de acordo com
jurídica pressupõe previsibilidade evidente. o entendimento da Corte pela simples ocorrência
Quando há alteração de entendimento cristalizado, de mudança. Uma vez publicada, a lei só produz
o Código de Processo Civil traz a solução. A efeitos futuros, salvo a lei penal benéfica. Tempus
Constituição conferiu ao tribunal a faculdade de regit actum. Os negócios jurídicos anteriores estão
interpretar o texto e dele extrair a norma, que se resguardados por um dogma constitucional, qual
traduz em regras de comportamento. Aquele que seja, o ato jurídico perfeito. Se a lei só age para
se conduz em conformidade com a interpretação frente e o entendimento novo da jurisprudência

96
pode retroagir na interpretação da lei, se a Supremo Tribunal Federal não cabe nem recurso
jurisprudência é a interpretação do texto que extraordinário mais. Se ela não altera, mantém
extraiu a norma e essa norma é alterada, como a testilha, mantém o contraste com decisão, o
aplicá-la para o passado? Seria transformar a recurso segue para instância superior.
jurisprudência numa fonte de incerteza e de
insegurança. Daí a possibilidade de aplicação da Há uma série de dispositivos atribuindo essa força
modulação dos efeitos pelos juízes e tribunais. vinculante. Decisão que está em conformidade
com orientação do Superior Tribunal de Justiça
A mudança de entendimento é aplicável apenas às não autoriza conhecimento do recurso especial.
novas relações. Isso é coerente. Vamos encontrar Há o trancamento de vez. Tranca de vez. Se o
no sistema uma série de regras que determina interessado considera que o caso não é igual, deve
a observância dos precedentes. A ordem dos interpor agravo regimental para o órgão plenário
processos nos tribunais prevista no artigo 923 do para que se decida a respeito. Dessa decisão,
NCPC prevê que cabe ao relator indeferir recursos pode caber o agravo do STJ, que está limitado ao
manifestamente improcedentes, que contrariam a tema. Depois, decide-se pela ida do recurso para
súmula ou entendimento proferido no julgamento instância superior. O propósito foi dar razoabilidade
de recurso repetitivos, que é uma técnica de à situação, pois o Supremo Tribunal de Justiça não
julgamento. Uma vez proferida a decisão em sede pode ter um aporte de cinquenta mil demandas
de recursos repetitivos, o julgador manda rever relacionadas à telefonia e trezentas mil demandas
os processos nos tribunais. A turma que decidiu idênticas de banco. Essa força vinculante, ao
contrariamente deve decidir se vai ou não mudar contrário, não está prestigiando o Superior Tribunal
o seu entendimento. Se ela decidir por alterar de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. Ela está
o seu entendimento e resolver aplicar a decisão prestigiando a força da decisão do primeiro grau,
vinculante do Superior Tribunal de Justiça ou do da força de decisão do segundo grau de que não

97
cabe mais recurso. Se houver recurso, nos casos justiça é de uma extrema facilidade. Na Inglaterra,
excepcionais, será concedido efeito suspensivo, a petição inicial não é sequer conhecida, se ela não
prestigiando a eficácia da decisão. Esse Código já tiver repercussão econômica tal que justifique o
foi modificado na vacatio legis. processamento da demanda. Ninguém briga em
juízo. Causou-me perplexidade quando, na Corte
Só há celeridade processual, com eficácia da de Apelação de Atlanta, nos Estados Unidos, uma
decisão jurisdicional, se a decisão do juiz de senhora pleiteou a revisão da decisão numa ação
primeiro grau for tomada com eficácia imediata. A de revisão de pensão sem o acompanhamento de
regra é a eficácia, a suspensividade é a exceção. um advogado. Indaguei por que ela não estava
A exceção será a suspensividade dada pelo sendo assistida pela Defensoria se ela era carente.
próprio juiz ou pelo tribunal. Haveria redução Responderam-me que a Defensoria de lá só atua
do número de demandas procrastinadas. Se a na área criminal. Contestei que não era razoável
decisão proferida estiver em conformidade com as que ela ficasse desassistida. A resposta foi no
decisões dos tribunais superiores, evidentemente sentido de que, quando ela se casou, ela não
que a executividade será imediata. Nos dias perguntou ao contribuinte se ela devia se casar
atuais, o juiz de primeiro grau está reduzido a um com o então noivo, considerando a vida pregressa
órgão de passagem, pois independentemente do dele. Seguindo essa linha de raciocínio, ele me
posicionamento dele, o sucumbido irá recorrer ao indagou a razão pela qual, para se separar, o
tribunal. A perspectiva do interessado passou a contribuinte teria de pagar. Esse é um raciocínio
ser da interposição de recurso, e não da realização egoísta e inservível, que levaria à classe pobre
do direito. Isso é sinal de degradação do sistema brasileira a ficar desassistida caso a Defensoria
jurídico brasileiro. O Brasil avançou muito ao fosse extinta. Por isso, a Defensoria deve ser muito
prestigiar o acesso à justiça, mas é preciso coibir os forte. Também não é razoável que um cidadão de
abusos. Só no nosso país é que a acessibilidade à classe média alta, que seja remunerado com R$ 30

98
mil por mês, como se vê frequentemente no STJ, de todos os critérios de razoabilidade, inclusive
valha-se da Defensoria Pública. Na realidade, ele administrativa, pois vai chegar o momento em
está ocupando o tempo que deveria ser concedido a que comarcas com demanda insuficiente serão
quem realmente necessita. Então, a acessibilidade desativadas, para propiciar a redução de custos.
precisa ser mais bem medida e não deve ser Estamos no limite de gastos. É hora de frear o
confundida com abuso de direito. Além disso, a crescimento de tribunais e comarcas, porque a
Defensoria deve exigir razoabilidade mínima da situação é difícil. Se já estamos num momento
pretensão do cidadão. difícil, cabe a nós aplicarmos o princípio da
razoabilidade, reduzindo os custos que pudermos,
O Brasil é um país que enfrenta sérias dificuldades com base no uso da coerência. A contribuição que
econômicas. Ele não vai se recompor tão logo podemos dar ao país é aplicar o sistema que foi bem
como muitos pensam. Nós vamos passar por sérias traçado no Código de Processo Civil de modo lógico
modificações com reflexos no campo do direito. A e bem definido. E, ainda, respeitar as decisões dos
razoabilidade deve ser bem observada no Poder tribunais superiores, para que possamos dar ao
Judiciário para evitar custos desnecessários. Cada jurisdicionado a merecida justiça, a qual temos o
recurso que “sobe” ao Superior Tribunal de Justiça, dever de servir. Muito obrigado.
cada recurso de apelação que “chega” ao Tribunal
de Justiça tem um custo a ser suportado pelo SENHOR JUIZ FEDERAL CARLOS GERALDO
contribuinte. E o Estado está falido. Poucos estão TEIXEIRA: Ministro João Otávio, foi um prazer
entendendo que chegou o momento de reduzirmos ouvir a sua palestra. Sempre tive muita dificuldade
a estrutura do Poder Judiciário. Se examinarmos para entender, no microssistema do Juizado
as receitas federais e estaduais, elas estão caindo Especial, a quantidade de instâncias julgadoras
mês a mês, ao passo que a nossa estrutura de e de recursos. Temos um problema seriíssimo
custo fixo permanece a mesma. Devemos nos valer de racionalidade no sistema de julgamento, com

99
excesso de recursos e de instâncias julgadoras. instituição pública que não adote postura eficiente
Falando especificamente no JEF, pensando e responsiva. A sociedade ainda vai acabar se
nessa nova era, não seria hora de se reduzirem insurgindo contra o Judiciário, em regra, moroso e
as instâncias julgadoras no microssistema dos ineficiente. Obrigado.
Juizados? Se ele é um sistema simplificado, a
parte não teria o direito a um juiz e a uma turma MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA: Na
recursal. Nele, obviamente, o prestígio deveria ser verdade, JEF e Juizados Especiais estão falidos na
dado às súmulas, aos entendimentos dos tribunais Justiça brasileira. O Juizado Especial pressupõe
superiores e a novos instrumentos trazidos pelo informalidade e simplicidade. Se se falar para
NCPC. Trago também à reflexão a abusividade um juiz que o seu trabalho no Juizado deveria se
no pedido de gratuidade de justiça. Precisamos resumir a um formulário a ser preenchido a mão,
avançar nesse dois pontos no sentido de aperfeiçoar com as opções “defiro” e “indefiro”, é certo que
os sistemas. Não sou contra, de forma alguma, a ele vai se ofender. Nessa hipótese, o juiz não seria
dar acesso à justiça a quem não tem condição de um autômato no preenchimento de formulários,
arcar com as despesas do processo, sem prejuízo mas sim aquele responsável pela entrega da
do sustento próprio e de sua família. A ausência de prestação jurisdicional, que está garantindo in
critérios objetivos quanto ao tema e a extensão da limine o direito do cidadão. Por que o juiz precisa
jurisprudência trouxeram abusividade. Há vários fazer sentença de seis, sete, oito laudas? Uma
processos desnecessários, trazendo um custo ao das atribuições do corregedor-geral é ser também
contribuinte, só que a sociedade não percebe isso. presidente do Juizado da TNU, a Turma Nacional
São ações temerárias. Esses são exemplos de de Uniformização dos Juizados Especiais. Um das
pontos que poderiam ser trabalhados no sentido grandes contribuições de quando exercia a função
da redução de custos e de aumento de eficiência. de Corregedor-Geral da Justiça Federal foi acabar
Creio que a sociedade brasileira não vai admitir com os votos longos. Nós instituímos o voto

100
ementa, em que as decisões eram de uma a uma Nós precisamos rever os procedimentos do
lauda e meia. Nós produzimos muito mais assim. Juizado Especial da Justiça Federal, que é
À época, propus ao juiz que não se trabalhasse de diferente do da Justiça Comum. Naquele, discute-
beca, já que essa vestimenta conferia formalidade se preponderantemente Direito Previdenciário e
exagerada ao Juizado Especial. Deveria haver causas contra a Caixa Econômica Federal. Não é
informalidade. A TNU funcionou racionalmente, possível aplicar-se um sistema de aposentadoria
porque os juízes decidiam tudo rapidamente, além específico na turma julgadora e outro na turma
do fato de que só ia efetivamente para a Mesa o recursal. Em razão dessa situação, criou-se a TNU.
tema que continha divergência. No Juizado, pude Seria mais simples se houvesse um sistema de

perceber que chegavam tantos processos lá em unificação no próprio estado, independentemente

razão da não observância da jurisprudência. O de recurso. O problema nesse local é a prática


de se citarem três autores, três precedentes. Se
juizado é de equidade também e tem que seguir a
não for assim, as pessoas pensam que não está
jurisprudência dos tribunais superiores. Pergunto
havendo decisão. A decisão é do juiz, não é do
se podemos ter dois, três ou quatro Direitos no
Calamandrei, do Chiovenda, do Robert Alexy, ou
Brasil. Nós temos o Direito aplicável no Juizado
do americano de moda. Além disso, a decisão
e o Direito aplicável às instâncias ordinárias ou à
precisa ser simples, porque assim a Lei do Juizado
Justiça Comum? Não é razoável esse pensamento.
exige. Isso não vale só no âmbito do Juizado. A
Uma das causas que motivou a criação da TNU
citação de doutrina deveria ser proibida, pois ela
foi a divergência entre as turmas, em que cada não mais se harmoniza com a celeridade de que
membro julga no sentido que melhor lhe aprouver. precisamos atualmente. As decisões precisam ser
Foi preciso criar uma turma unificadora, que não mais sintéticas. A França, por exemplo, proíbe a
se coadunasse com o propósito dos Juizados. citação doutrinária quando o argumento é a mera
citação de precedente. A citação de doutrina era

101
muito eficaz, quando nós tínhamos tempo. Com o Por uma decisão do STF, conferimos a possibilidade
volume atual de processos, a citação de doutrina de haver reclamação no Juizado. No final,
só deveria ser feita na área penal. Não significa que estávamos julgando apenas as reclamações do
sou contra a decisão motivada, pois a motivação Juizado. Os bancos são os maiores responsáveis
não está na mera citação de doutrina. Mas é pelo ajuizamento de reclamações nos Juizados.
preciso simplificar os procedimentos para termos Assim começa a burocratização do tribunal. O
mais racionalidade e celeridade. Juizado não tem que demonstrar nada cabalmente,
pois ao juiz são dados os fatos e ele, a partir daí,
Sou contra a criação de TNU nos Juizados Especiais dá o direito. Além disso, é importante que haja
da Justiça Comum. Na verdade, nós precisamos decisões padronizadas no Juizado. Padronizar,
trabalhar com a consciência do juiz. É preciso haver decidir e executar. É preciso também investir na
maior diálogo entre os tribunais superiores e os formação e no aperfeiçoamento de magistrado. É
Juizados Especiais, pois nós somos muito distantes. um investimento, e não um gasto.
Então, acredito que o propósito filosófico do Juizado
tem sido incompatível com o sistema recursal da Uma das minhas propostas para o CNJ é estabelecer
prática. Por exemplo, tem havido uma corrente uma discussão profunda sobre esses temas. É

que quer aplicar a partir do NCPC a contagem de importante tratar da disciplina dos magistrados,
mas também do planejamento. O juiz de primeiro
prazos em dobro no âmbito do Juizado Especial.
grau faz planejamento estratégico na vara onde
Essas pessoas não sabem qual é a finalidade do
atua? Não.
Juizado Especial. Se houver a aplicação da dilação
de prazo, a finalidade desse órgão vai estar extinta, Sou radicalmente contrário ao fato de um processo
pois se vai criar um procedimento ordinário. Isso de Juizado chegar ao tribunal superior, assim como
é incompatível com o Juizado Especial, que tem lei acho absurdo que decisões já sumuladas cheguem
própria a ser aplicada, com prazos reduzidos. ao tribunal superior. Elas não deveriam chegar lá.

102
PROCURADOR DE JUSTIÇA ANTÔNIO DE voltado ao controle concentrado da legislação, da
PÁDUA: A primeira ideia que me vem a respeito jurisprudência, das súmulas e das decisões com
do que foi dito. Quanto às ações civis públicas repercussão, que obrigam as decisões inferiores.
relacionadas à improbidade administrativa, há a Seria uma forma de aproximar a academia dos
necessidade de o Ministério Público ter também Tribunais, para que ela possa participar de maneira
um limite. É preciso que façamos um debate mais efetiva das decisões do tribunal. Assim, ela
internamente para que não nos transformemos vai poder alertar e influenciar para a necessidade
no administrador municipal. Temos de ter desse ou daquele ajuste.
razoabilidade também nessa função. O promotor
não pode ser inimigo do prefeito. Ao contrário, ele Gostaria de saber se há algum estudo nesse
tem que auxiliá-lo inicialmente a fazer correções, sentido, até no Direito Comparado. Inaugurar um
tem que expor a opinião do Ministério Público, e, instrumento como esse seria importante para o
se não houver acolhimento e consenso, aí sim Superior Tribunal de Justiça, porque o STF decide,
deve acionar nos casos em que exista repercussão muitas vezes, questões claramente afeitas à
social importante. competência do Superior Tribunal de Justiça.

Relacionando o trabalho de doutorado que PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA CARLOS


desenvolvi e a exposição de Vossa Excelência, ANDRÉ MARIANI BITTENCOURT: Do alto grau
sinto falta de um instrumento que possa facilitar do cargo que ocupa, o de Corregedor-Nacional
a discussão da legalidade ou da uniformização do Conselho Nacional de Justiça, que tem uma
da legislação infraconstitucional. Proponho um força imensa sobre o Poder Judiciário, e em
instrumento que pudesse se assemelhar à ação seguida, daqui a dois anos, como presidente do
direta de inconstitucionalidade no STF, uma ação Superior Tribunal de Justiça. Uma das palavras
direta da legalidade no Superior Tribunal de Justiça mais marcantes que Vossa Excelência disse foi que

103
irá lutar pela execução imediata das decisões de deve adotar princípio, porque ele se altera. Uma
primeiro grau que não contrariem os precedentes. das leis mais perfeitas que já houve foi o Código
Considerando que o senhor ocupar o cargo de Civil de 1916. Esse Código não trata de princípio.
corregedor nacional, que ira ocupar depois o de Utilizar muitos princípios é o mesmo que não dizer
presidente da Corte, como que o senhor pensa que nada. Um juiz, quando quer decidir contra a norma
vai convencer os juízes tribunais sobre o “primeiro já interpretada, contra a disposição de lei, ele busca
mundismo” da justiça brasileira? princípio. Quando ele começa a citar princípio
a torto e a direito, na realidade, ele não quer é
MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA: Tudo aplicar a lei. O princípio da dignidade humana virou
isso decorrente de uma alteração no artigo 520 do panaceia. É citado freqüentemente em situações
Código de Processo Civil, em que se privilegiou a nas quais ele não é aplicado. Temos de mudar esse
celeridade. No entanto, a OAB não concordou com dispositivo do Código de Processo Civil. Devemos
a noção de eficácia imediata. Ainda assim reclama ser contundentes na crítica, porque, do contrário,
da morosidade da justiça. A suspensividade tem não mudamos.
que ser exceção. A regra é a executividade,
a eficácia. É preciso dar ao juiz de primeiro Só estava faltando mudar a regra do artigo 520
grau o status de um agente decisor de eficácia. do Código de Processo Civil anterior para que ele
Esse NCPC apresenta vários erros. O primeiro é ficasse muito bom. Já tínhamos sedimentado o
adotar posições filosóficas. O artigo 489, § 2º, é entendimento de diversos artigos, já tínhamos
um dispositivo filosófico. Um princípio filosófico pacificado a aplicação deles. Ele mudou na origem
agasalhado num Código. Isso é um absurdo. A por questão política. Havia muitas críticas em
filosofia evolui, o Código é dogmático. As correntes relação a ele, então, decidiu-se criar um Novo
filosóficas vão influenciar os intérpretes, não o Código de Processo Civil. Desse modo, a discussão
legislador direto e imediatamente. Então, não se é deslocada para o Código e a gestão passa. É

104
assim que funciona o Poder Legislativo. Sem acredito que precisa de muita ponderação. eu quero
contar também as manifestações de vaidade. O que a Corte aplique bem a norma. Nós precisamos
sucesso do Novo Código de Processo Civil vai de prudência, e em determinado momento,
depender muito da construção jurisprudencial. determinadas demanda, determinadas técnicas,
Podemos fazer desse texto de lei um bom ou mau nós precisamos de calma. Então a gente já tem
Código. Espero que tenhamos juízo para fazer um esse controle. Quanto à ação de improbidade, eu
bom Código. gostaria de requerer, principalmente aos jovens
promotores, muita razoabilidade. Aos que vão para
O Superior Tribunal de Justiça já faz um certo o interior, não se deve esperar que os prefeitos
controle de legalidade em abstrato por via do tenham a cultura do prefeito de Belo Horizonte,
julgamento do recurso repetitivo. Ali a gente de São Paulo, do Rio ou de outra grande cidade de
quando conclui julgamento a gente caso aplicado Minas Gerais como Três Corações. Vamos encontrar,
ao caso concreto. Julgamos no caso concreto e muitas vezes, prefeitos humildes, assessorados
julgamos para efeito do art. 543, para efeito de por uma equipe de desqualificada e, por isso tudo,
uniformização de jurisprudência. Na realidade, vão cometer muitos erros.
passou a ser uma construção até jurisprudencial
de um controle abstrato de legalidade. Se a parte É preciso substituir a ideia punitiva pela preventiva.
desistir do recurso, vamos julgá-lo, fixar a tese e O primeiro controle feito pelo Ministério Público é
não vamos aplicá-lo. E passou a ser o julgamento de legalidade. Tal instituição é importantíssima,
em abstrato. Quer dizer, nós criamos, ao lado por isso é um poder separado do Executivo. Ele
da ação declaratória de constitucionalidade uma é como o Poder Judiciário, é um poder autônomo,
ação declaratória de interpretação, ou seja, o uma espécie de quarto poder da República. Se
controle abstrato da norma, multiplicação abstrata se nota que o prefeito é mesmo corrupto e está
da norma, interpretação abstrata da norma, eu praticando crimes, é preciso, sim, tomar medidas,

105
mas com muita prudência. Tomei conhecimento que vai ser dado? Com a punição dela, ninguém
de uma ação penal de improbidade na qual uma mais vai fracionar licitação no Brasil ou no mundo?
jovem prefeita de Três Pontas foi condenada pelo Não tem propósito nenhum a punição dela. Então,
Tribunal de Justiça. Há cerca de onze anos atrás, eu e o Ministro Fux aventamos a ausência de dolo
ela fracionou a licitação para a contratação de e ela foi absolvida. Precisamos olhar a vida e nos
uma banda e de um palanque para a realização colocarmos no lugar daquela pessoa. Temos visto
do Carnaval nessa cidade do Sul de Minas Gerais. um grande número de pessoas ser condenada e,
O Ministério Público reconheceu que o preço era assim pensamos: agora, o Brasil vai para frente.
justo, que não houve prejuízo ao município. Ela Ele não irá para a frente se continuarmos só
não cometeu crime algum. Qual foi o crime que ela reativos, e não ativos. Proativos. Tenho visto chegar
cometeu? A formalidade. Não houve dolo nem má- ao STJ uma quantidade enorme de pequenas
fé, ela foi mal assessorada. Ela fez a contratação e bobas condenações relativas à improbidade
em separado de uma empresa para obter um administrativa. No entanto, há tantas outras coisas
palanque, mas a preço razoável e devidamente dando prejuízo maior. Há as operações políticas que
declarado. A relatora do caso, que é uma grande estão desvendando o Brasil. A Operação Lava Jato é
penalista, confirmou a condenação. Em diálogo
a ressonância de um corpo de profissionais, que se
que mantive com ela, argumentei no sentido de
mostra podre, política e administrativamente. Tudo
que essa prefeita não havia cometido crime, fato
isso revela que as acusações de corrupção atingem
reconhecidamente pelo próprio Ministério Público,
desde o prefeito e do vereador, até o Presidente
que disse não ter havido prejuízo, má-fé ou dolo.
da República. Isso é muito relevante. No entanto,
Se condenássemos essa prefeita, ela iria perder o
adotar a atitude de punir por punir gera gasto de
cargo de conselheira do Tribunal de Contas de Minas
tempo e uso desnecessário de energia.
Gerais, cargo que ocupa atualmente, por causa de
um equívoco de onze anos atrás. Qual é o exemplo

106
Ou falta maturidade, ou falta um pouco mais de ameaça. Essa não é a função do Ministério Público
conhecimento sobre o espírito da norma e sobre e nem do Poder Judiciário. Se o prefeito for
o que se quer punir. É muito importante que honesto e incompetente, certamente ele não vai
haja um bom diálogo de juiz, de promotor e de ser reeleito. Se ele for desonesto, ele vai comprar
prefeito. É fundamental. Promotor e juiz não votos. Aí haverá problema no Ministério Público
podem ter vergonha, nem medo de conversar Eleitoral e também no MPE, na área criminal. Se
com autoridade política. Aliás, eles não podem ele for competente e honesto, ele vai ser eleito.
ter medo de conversar com ninguém. O juiz que A resposta dele tem que vir pelo voto. O voto
não recebe advogado é um juiz despreparado. Do que elegeu é o voto que vai tirar determinadas
mesmo modo o promotor. NO interior, o promotor pessoas do poder. A indignação é grande, mas
é muito demandado também, não só pelas causas não podemos perder a razoabilidade. Receio
de família, mas pelo próprio prefeito. Há prefeito um pouco de estarmos cometendo excessos e
que não estabelece contato, por medo do Ministério colocando o povo contra o Poder Judiciário. Não
Público. Isso está equivocado. O Ministério Público tem nada a ver com a Operação Lava jato. Sou
não tem poder para isso, nem quer fazer isso. Ele defensor dessa investigação, para que se apure
só quer controlar a legalidade. Temos que ser um o que deve ser apurado nas questões criminais.
Essa operação recebeu uma crítica muito forte
instrumento de composição, de somatório e de
quando ela chegou no Senado Federal, quando ela
alerta. Há promotores que decidem o que deve ser
se aproximou dos “grandes”. Pela primeira vez,
feito no Município e, que se aquilo não for feito, ele
eles estão presos, o que é sinal de democracia
ameaça. Por exemplo, o promotor diz ao prefeito eficiente. Precisamos saber o caminho que é ilícito
que é necessária a instalação de uma escola em e o que é razoável. Se agirmos a ferro e fogo,
determinada região. Se o prefeito rebate, ele o todo mundo será processado.

107
PRESIDENTE DA MESA E PROCURADOR-
GERAL DE JUSTIÇA CARLOS ANDRÉ MARIANI
BITTENCOURT Muito obrigado mais uma vez,
foi uma honra tê-lo conosco. Tenho certeza que
as suas palavras vão ficar marcadas na carreira
dos novos colegas promotores de justiça e dos
nossos convidados.

108
TRANSCRIÇÃO DA AULA INAUGURAL DA PÓS- qualificou no campo do ensino, com mestrado e
GRADUAÇÃO - ESCOLA INSTITUCIONAL DO outros títulos. E, atualmente, ele assumiu a grave
MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS, missão de dirigir a Procuradoria-Geral da República
PARTE DO “PROJETO SEGUNDA-FEIRA ÀS
e tem cumprido bem o seu papel para orgulho de
18H” REALIZADA EM 8 DE AGOSTO DE 2016
todo o Ministério Público brasileiro. Muito obrigado.
COM RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS

PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA CARLOS


ANDRÉ MARIANI BITTENCOURT: Boa noite.

SR. JARBAS SOARES JÚNIOR: Boa noite a De início, cumprimento o nosso palestrante, o

todos. Bem-vindos ao Ministério Público. Saúdo o Procurador-Geral da República, Doutor Rodrigo

nosso chefe, o Procurador-Geral de Justiça Carlos Janot Monteiro de Barros, que nos honra com

André Mariani Bittencourt, o eminente Corregedor sua presença, para proferir a palestra inaugural

Paulo Roberto Cançado, o eminente Procurador- do nosso curso de pós-graduação. Cumprimento

Chefe do Ministério Público Federal, e agradeço o o nosso Corregedor-Geral, Dr. Paulo Roberto

eminente Procurador-Geral da República, Rodrigo Moreira Cançado, que vem realizando um trabalho

Janot, por atender o convite da instituição do dinâmico e diferenciado na nossa instituição,

seu estado, para dar essa aula inaugural da pós- o colega, Procurador-Chefe da Procuradoria da

graduação, a primeira pós-graduação da Escola República em Minas Gerais, Dr. Bruno Nominato

Institucional do Ministério Público de Minas Gerais. de Oliveira e o Diretor do Centro de Estudos e

O nosso palestrante construiu uma carreira muito Aperfeiçoamento Funcional da nossa instituição.

sólida na instituição, ocupando várias funções no Eu não poderia deixar de destacar que o Doutor

Ministério Público Federal, inclusive, a presidência Janot tem coordenado uma grande operação que

da Associação Nacional dos Procuradores da tem elevado, efetivamente, o nome e as funções

República durante a Constituinte e também se do Ministério Público, mas, principalmente, tem

109
despertado a esperança efetiva do povo brasileiro Público. O país tem evoluído, as instituições têm
de que o Brasil pode se livrar, efetivamente, de se consolidado. O importante é que fixemos que
velhas práticas ligadas à corrupção. O Ministério as instituições são importantes e que devem ser
Público de Minas Gerais também tem se estruturado respeitadas. Os homens passam, as instituições
com grupos de apoio e obtido resultados relevantes ficam. Como creio que a curiosidade de todos seja
no que diz respeito ao combate à improbidade em relação à investigação, digo que ela é uma
administrativa e à corrupção. Tenho verificado investigação como qualquer outra, que envolve
com apreço que os Gaecos, que são estruturas de um trabalho cooperado e coordenado de diversas
combate ao crime organizado na esfera criminal, instituições da República como o Ministério Público
como na esfera da improbidade e, também, os Federal, a Polícia Federal, Receita Federal, Coaf, o
Grupos Especializados de Defesa Do Patrimônio que tem permitido o seu avanço.
Público, têm avançando expressivamente com
bons resultados em Minas Gerais e no Ministério Vou começar dando alguns números dessa
Público Federal. Doutor Janot, muito obrigado pela investigação e depois vou fazer algumas perguntas
presença e pela honra de estar presente no nosso sobre eles. Até agora, há menos de três anos,
projeto “Segunda às 18h”. Muito obrigado. tivemos 574 buscas e apreensões autorizadas
em primeiro grau e 118 buscas e apreensões
PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal. Em
RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS: Boa primeiro grau, tivemos 05 prisões em flagrante,
noite a todos. Gostaria de dizer ao Dr. Carlos André 152 mandados de condução coercitiva, 152
que o fato de eu estar temporariamente chefiando mandados, e 155 mandados de prisão cumpridos,
o Ministério Público Federal nessa ocasião, não faz 70 prisões preventivas e 85 prisões temporárias.
de mim ou de qualquer outro colega, um homem Todas elas foram escrutinadas em todos os graus
diferente de todos os membros do Ministério de jurisdição, primeiro grau, Tribunal Regional

110
Federal da 4ª Região, Superior Tribunal de Justiça Pelos números, percebemos a densidade das
e Supremo Tribunal Federal. No âmbito do STF, investigações. Nas ações judicializadas, que
foram 126 quebras de sigilo fiscal, 146 quebras de envolvem ressarcimento, indenizações, multas,
sigilo bancário, 115 quebras de sigilo telefônico, 02 o valor alcança a ordem de R$ 21,8 bilhões. Os

quebras de sigilo telemático, 01 quebra de sigilo valores recuperados em acordos de colaboração ou

de dados, 13 sequestros de bens, 04 sequestros acordo de leniência são da ordem de R$ 2,9 bilhões.
Há mais de R$ 210 milhões repatriados. Essa
de valores e 05 prisões preventivas. Além disso,
investigação se espraia por diversos países. Há em
uma dessas prisões preventivas foi de um senador
curso 100 pedidos de cooperação internacional,
da República, em estado de flagrância, portanto,
87 pedidos ativos para 28 países e 13 pedidos
obediente à Constituição da República e de outro
passivos feitos por 11 países.
senador da República, um homem exponente e,
mais do que isso, líder do governo no Senado. Uma lenda que se criou em alguns segmentos é
Duas dessas buscas e apreensões das 118 a de que o Ministério Público e o Poder Judiciário
autorizadas pelo STF, uma aconteceu no gabinete prendem para que haja a colaboração premiada.
da liderança do governo e outra no gabinete do Até agora, houve 74 acordos de colaboração
premiada, 59 deles com pessoas em liberdade,
próprio senador. Houve também um julgamento
ou seja, 79.72% dos acordos de colaboração
não muito afeito à normalidade, que culminou
foram firmados com investigados soltos, 15
no afastamento do Presidente da Câmara, tanto
acordos de colaboração premiada foram firmados
da presidência da Câmara quanto do mandato com pessoas detidas, o que representa 20.27%
de deputado federal. O presidente do Senado do total das colaborações premiadas, ou ainda
responde a vários inquéritos em que se apuram firmados, 5 acordos de leniência com 12 empresas
eventuais indícios de prática de ilícitos. homologadas judicialmente.

111
Depois de passar esses números, pergunto: e marido sobre pensão alimentícia. Ao analisar os
antes? Essa investigação é um ponto fora da autos, ele notou que bastava despachar o processo,
curva? O sistema de controle falhou antes? Por pois ele era muito simples, já que havia acordo de
que chegamos a esse ponto? Nós devemos isso a pensão entre eles. Tudo estava OK. No entanto,
uma pessoa ou a um grupo de pessoas, ou houve ele resolveu olhar detidamente aquele processo.
estruturação institucional para que se chegasse a Ele percebeu que a pensão acordada era o dobro
esse ponto? É óbvio que o preparo aconteceu, mas da pensão inicialmente instituída, o que lhe causou
também é preciso sorte. O investigador tem que certa apreensão. Daí, ele resolver verificar quem
dar sorte na tentativa e erro. a identidade do ex-marido pensionista e os dados
fiscais da ex-mulher. A pessoa de nome Chiesa,
Fizemos um evento em Brasília recentemente, foi o ponto de partida para toda a investigação
denominado “Os grandes casos criminais Brasil Mãos Limpas. No primeiro acordo para fixação da
e Itália”, em que se tentou comparar os erros e pensão, Chiesa pagava a pensão no montante de
acertos, similitudes e divergências da Operação todo o salário que ele declarava receber, e, depois,
Mãos Limpas e da Operação Lava Jato. Na ocasião, fazia um novo acordo, de valor dobrado, sendo que
esteve presente o Antônio Di Pietro, que é um dos o salário dele era exatamente o mesmo. Di Pietro
remanescentes do primeiro grupo que iniciou a ficou curioso em saber como ele podia pagar tal
investigação Mãos Limpas na Itália. A Operação valor. Como diz o Ministro Teori: “Puxou uma pena
Mãos Limpas começou com ele. A Itália é Estado e veio uma galinha”.
Unitário, portanto, não há separação entre os níveis
federal e estadual. Em razão disso, o Ministério A Lava Jato aconteceu nos mesmos moldes. Era
Público de lá faz todo a trabalho. Di Pietro contou uma investigação de doleiros, com evasão de
que estava de plantão e recebeu um processo divisas e lavagem de dinheiro, localizada no interior
referente a um acordo entre a ex-mulher e o ex- do Paraná. E essa investigação alcançou um outro

112
doleiro de Brasília. A investigação inicial de um, de circunstâncias, é preciso fazer um recorte e
Charter, expandiu para outros dois e, depois, ver o que os órgãos de investigação fizeram para
para um terceiro. Então, ficaram quatro doleiros. chegarem no ponto aonde chegaram. Temos de
E entrou Youssef, antigo conhecido do Ministério separar fatores exógenos e fatores endógenos no
Público Federal, no caso do Banestado, das contas que tange ao Brasil. Há um filósofo que diz: “O
CC5. Como ele tinha sido réu colaborador e havia homem muda o mundo e o mundo mudado muda
quebrado o acordo, com as provas recolhidas o homem”. Por várias circunstâncias, o ambiente
àquele momento, o juiz autorizou a realização de internacional começa a se mobilizar para o combate
busca e apreensão nos escritórios do Youssef. Lá à corrupção, o que, no passado não muito remoto,
foram apreendidos papéis e computadores. Em um não atraía a atenção de inúmeros países de primeiro
computador, havia uma caixa de e-mails, que foi mundo. A coordenação, no âmbito de organizações
escrutinada. E o colega vê um e-mail de Youssef internacionais e dos blocos regionais, começou a
para um desconhecido, que não estava no radar de levar à criação de uma política penal global, que
ninguém com os dizeres: “Seu presente chegou. gerou impacto interno nos diversos países. Essa
Nós acabamos de blindá-lo, a placa é tal e será política penal global repercute primeiramente
entregue no seu condomínio no Rio de Janeiro”. na harmonização das legislações penais, no
O colega dele foi ao Detran, verificou a placa e tratamento dos crimes de lavagem, de narcotráfico
constatou que era uma Land Rover Evoque. Após e de terrorismo. Ela é um reflexo imediato na
pesquisar a identidade do remetente do e-mail, harmonização normativa. Surge também um
chegou-se ao nome de Paulo Roberto Costa, diretor ambiente cooperativo mais eficiente entre países
da Petrobrás. Assim nasceu a Lava Jato. Então, e órgãos de controle. Os países começam a
seja na Operação Mãos Limpas, seja na Operação se organizar para combater os delitos que se
Lava Jato, o investigador tem de ter a sorte de tornavam, por meio de acordos e de convenções
“puxar a pena e vir a galinha”. Além da conjunção internacionais, alvo de perseguição generalizada.

113
TRANSCRIÇÃO
E DOfoi
o terceiro ponto CICLO DE PALESTRAS
a inflação SOBRE
legislativa interna Contra a Corrupção, a chamada Convenção de
O por
e NOVO CÓDIGO
indução. TaisPROCESSUAL
tratados contêmCIVILmandados
– O MP Mérida. Ao lado disso, há recomendações do
NO NOVO CPC, PROMOVIDO
de criminalização e mandados PELOde MINISTÉRIO
toda sorte Gafi - Grupo de Ações Financeiras e da ENCCLA
PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS
para impor a alteração da legislação interna GERAIS,
dos - Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e
REALIZADO EM 13 JULHO DE 2015.
países. Essa indução traz novos instrumentos de à Lavagem de Dinheiro, que passaram a operar
utilização, novas técnicas especiais de investigação, e a induzir a atividade dos países nos crimes
meios especiais de obtenção de prova, etc. Essa definidos. Então, temos bloqueio e repatriação
organização internacional passa a refletir no plano de ativos de forma expedita, transferência de
interno dos países. Em ordem cronológica, ocorreu processos, equipes conjuntas de investigação.
a Convenção de Viena em 1988, com o combate Então, começam a surgir instrumentos novos para
ao narcotráfico e, de arrasto, a criminalização da o combate à corrupção e a outros delitos.
lavagem de dinheiro. Daí porque as legislações
ditas primárias, no crime de lavagem, tratavam Tivemos a preocupação de utilizar o ambiente
como crime antecedente só o narcotráfico. Ela favorável de cooperação para obter duas hipóteses
nasce exatamente na Convenção de Viena. Em que eram, para nós, paradigmáticas e que dariam
1996, ocorreu a Convenção Interamericana Contra um recado muito forte às pessoas que se dedicam a
a Corrupção, a chamada Convenção de Caracas. essa atividade criminosa. A primeira foi a extradição
Em 1997, a Organização para Cooperação e de Henrique Pizzolato. O Ministério Público Federal
Desenvolvimento Econômico, a OCDE, também se se interessou, como instituição, na extradição
organiza para o combate à corrupção internacional. dele, porque ele era um ítalo-brasileiro condenado,
Em 2000, ocorre a famosa Convenção de Palermo, que fugiu para a Itália, usando passaporte falso do
com a definição de organização criminosa e outros irmão falecido. Lá, ele se estabeleceu como cidadão
mandamentos que refletiram nas legislações italiano, com a documentação falsa do irmão
internas. Em 2003, a ONU aprova a Convenção falecido. O Brasil não extradita nacionais. O artigo

114
26 da Constituição Italiana autoriza a extradição que é um sistema que trabalha com dados
de italianos. Então, era emblemático quebrar essa bancários. Conseguimos firmar um acordo com
barreira e, por meio dos acordos bilaterais, trazer a Febraban - Federação dos Bancos para que
as pessoas para elas não se furtarem à jurisdição todas as informações de quebra de sigilo bancário
brasileira. Daí o empenho dedicado pelo Ministério viessem em um modelo de linguagem que permita
Público Federal ao caso Pizzolato. Além disso, que com ele trabalhemos rapidamente, gerando
está autorizada a extradição de um português, uma infinidade de relatórios. Esse programa está
que tem dupla nacionalidade, mas ainda pendem também nos bancos e no Judiciário, que pode, a
alguns recursos administrativos. Os bloqueios e qualquer momento, checar o tratamento dessas
as repatriações de dinheiro dão o recado claro de informações. Temos o Sitel, um programa que
que valores e pessoas não podem mais se furtar à permite o cruzamento de dados de interceptações
jurisdição brasileira. Em geral, os fatores externos, telefônicas, não de voz, mas de ligações de linhas
com reflexos internos, que impulsionaram as telefônicas dessa ou daquela origem.
investigações. Temos importantes alterações
também internas. A Constituição de 1988 é um ponto de inflexão para
o desenho do Ministério Público. O Ministério Público
No plano federal, trouxemos para o conceito da Federal só passa a ser Ministério Público puro em
investigação, o conceito de gestão. Fixamos o 1993 com a edição da Lei Complementar n. 75. Até
objetivo, a meta, o indicador e começamos a então, o Parquet cumulava a função de Ministério
observar se os caminhos percorridos ou traçados Público e de Advocacia-Geral da União, sendo que
mostraram-se suficientemente razoáveis ou 15% da nossa força de trabalho era absorvida
não. Passamos a usar tecnologia da informação. pela primeira e 85% absorvida pela segunda.
Trabalhamos frequentemente com Big Data, A Constituição traz autonomia administrativa
criamos sistemas próprios, o chamado Simba, orçamentária e independência funcional. Esse

115
modelo é visto com muita curiosidade lá fora. A Improbidade Administrativa, em 1992; a Lei da
questão da indicação pela Presidência da República, Responsabilidade Fiscal em 2001; a Lei da Ficha
a aprovação, a sabatina na Comissão de Constituição Limpa, em 2010; a Lei de Acesso à Informação de
e Justiça do Senado e a aprovação pelo Plenário 2011, a Lei Anticorrupção Empresarial em 2013.
do Senado. Isso é bom, pois fortifica o indicado, Toda esse arcabouço normativo cria um ambiente
que passa a receber um sinal de aprovação, do que permite uma atuação mais profissional,
escrutínio popular, já que os senadores são eleitos, fortalecendo os órgãos de controle.
com mandato fixo e há garantia do exercício por
autonomia funcional. Pela Emenda Constitucional A reação para o julgamento da Ação Penal 470
n. 35, de 2001, o processamento de parlamentares foi a edição da PEC 37, que retirava de vez a
só poderia ser feito mediante prévia autorização possibilidade de investigação realizada pelo
do Parlamento. Essa lógica se inverte. Um fato que Ministério Público. Essa PEC era tida como
passa despercebido, mas que vejo como um indutor certa pelo Congresso Nacional, não havia como
de toda a mudança foi a TV Justiça. A TV Justiça retroceder. Só que ocorreu o impensável. O nome
põe na agenda do cidadão as questões judiciárias. do Ministério Público popularizou-se, a PEC 37
É uma forma de permitir o acesso à informação, entrou nas manifestações de rua e a situação se
de transparência e de controle. Outro fato que reverteu no Congresso Nacional. A votação foi 430
merece destaque foi o julgamento da Ação Penal votos não, 09 votos sim e 02 abstenções. E essa
n. 470. Ninguém acreditava que o STF, à época, votação que era tida como favas contadas. Depois
enfrentaria tão rapidamente essas questões. veio a Lei n. 12.683/2001, a Lei de Lavagem de
O julgamento durou de agosto a dezembro Dinheiro, que estabeleceu o compliance e revogou
de 2012, ocupando 53 Sessões Plenárias. o rol taxativo de crimes antecedentes. Temos à
Agora, há também um cipoal de normas que disposição agora importantíssimo instrumento, a
vieram auxiliar os órgãos de controle: a Lei de Lei n. 12.850, que combate o crime organizado e

116
amplia a possibilidade da colaboração premiada, existência desse RE. Em levantamento explicitado
instrumento poderosíssimo para a investigação de em certidão fornecida pelo Supremo Tribunal
organizações criminosas e de crimes protegidos Federal, no período de 2006 até 2009, quando o
pela conhecida Omertà. Essa lei veio para quebrar STF modifica o seu entendimento anterior, foram
o silêncio, para quebrar a Omertà. Houve evolução autuados 86.299 recursos extraordinários, entre
e consolidação do processo civilizatório. Em maio os quais 3,015 recursos extraordinários criminais.
de 2015, o STF reconhece o poder investigatório Desses, 211 foram providos pelo STF, 41 recursos
do Ministério Público. Não existe mais dúvida sobre tiveram desenlace favorável aos réus e somente
a possibilidade de o Ministério Público investigar. 02 de 3.015 recursos extraordinários criminais
A decisão de fevereiro de 2016 é tão importante resultaram em liberação do réu. Os demais
quanto aquela decisão que reconheceu o poder trataram de progressão de regime, substituição de
investigatório do Ministério Público. O STF altera a pena, concessão de regime inicial de cumprimento
legislação. Até 2007, os mandados de prisão eram mais brando, todos alcançáveis por meio da via
cumpridos quando a condenação era confirmada expedita do habeas corpus. Essas questões podem
em segundo grau. Em 2009, o STF passa a exigir ser vistas pelo STF por meio de habeas corpus.
o trânsito em julgado da condenação para efeito Dos Recursos Extraordinários providos, 0,6%
de recolhimento à prisão. Em 2016, o STF retoma afetou, concretamente, a liberdade imediata
a antiga jurisprudência que vigeu até 2009. dos condenados. Um desses, que tratava de um
Nesse particular, faço algumas observações. Um caso envolvendo contravenção penal, não atingiu
artigo recente da Folha de São Paulo feito por um a restrição da liberdade individual, porque foi
advogado que dizia que essa condenação não pode julgado inconstitucional. A razão disso foi que
acontecer, pois viola o Estado de Direito, porque ele envolveu um artigo da Lei de Contravenções
os recursos extraordinários penais providos no Penais declarado inconstitucional pelo STF, o que
STF são em torno de 25%, o que justificaria a não refletiu no status libertatis do réu. Qualquer

117
ato de lesão à liberdade de locomoção, à liberdade desses recursos. Aumento de penas para corrupção,
ambulatória de qualquer cidadão, pode ser fácil mudança do sistema recursal, celeridade nas
e rapidamente resolvida pela via dos habeas ações de improbidade administrativa, reforma no
corpus. Não há razão para se insistir no recurso sistema de prescrição penal, ajuste nas nulidades,
extraordinário, ou, raciocinando ao contrário, há criminalização do caixa dois nas campanhas
razões inconfessáveis para se insistir em recurso eleitorais e respectiva responsabilização. Na
extraordinário em matéria penal. Em fevereiro de verdade, no processo eleitoral, há lavagem de
2006, o STF reconhece a constitucionalidade da dentro para fora e lavagem de fora para dentro.
Lei Complementar n. 105, o acesso a informações Então, é preciso criminalizar os dois tipos de
diretamente pelos órgãos de controle, como a lavagem. Medidas para recuperar o lucro obtido
Receita Federal, inclusive. com crime. É o famoso confisco alargado. Há outras
que estão em discussão que vamos sugerir para
Nós, a título de aprimoramento do sistema, que a discussão no Congresso não se sustente.
oferecemos ao Congresso Nacional as chamadas Primeiro, ampliar as hipóteses de colaboração
Dez Medidas, que não são dez projetos de lei, premiada, que, hoje, estão reduzidas aos crimes de
mas mais do que dez projetos. Na verdade, são organizações criminosas e os crimes que menciona.
dez temas de variado conteúdo, que tratam de Temos um número muito expressivo de processos
prevenção à corrupção, transparência e proteção na Administração da Justiça Penal, mas a conta
à fonte da informação. Trata de criminalização do não fecha. Em uma visita que fiz à Procuradoria
enriquecimento ilícito de agentes públicos. Isso é da República em Créteil, que fica a 90 quilômetros
um mandado de criminalização feito de fora para de Paris, entrei em uma sala na qual havia cerca
dentro. Não é possível que um servidor público de 10 pessoas, entre homens e mulheres, todos
tenha um patrimônio 100 vezes maior do que a com fone de ouvido e microfone próximo à boca.
renda que aufere, sem que justifique a origem Fiquei muito surpreso, pois pensei que era um call

118
center. A equipe de procuradores estava fazendo Para encerrar, pretendemos interromper o círculo
acordo com os presos, acompanhados de seus nada virtuoso em que o poder político autoriza o
advogados, acertando as penas e punições, na incremento do poder econômico, que, uma vez
maior agilidade, como num call center. Temos hoje incrementado, gera o aumento do poder político,
a discussão a respeito do informante que não é o numa roda sem fim. Na minha visão, todo o trabalho

réu, mas sim o sujeito que quer falar sobre algo feito até agora, não só nessa investigação, mas
também em outras, deve produzir efeitos que
em caso de corrupção praticada por uma empresa
envolvam toda a sociedade para que haja uma
ou no serviço público. Geralmente, esse sujeito
profunda reforma política nesse país. O exercício da
que delata recebe retaliações. Deve-se criar uma
cidadania ativa é para impor a mudança no sistema
estrutura de proteção jurídica para ele. Nós temos
político brasileiro para que caminhemos no nosso
que melhorar a questão da disciplina de leniência
processo civilizatório. Esse é o grande legado que
de maneira que o Ministério Público possa participar
podemos dar à sociedade brasileira. Obrigado.
dessas composições e, se assim não o fizer, esses
acordos de leniência não podem ter reflexo nos SENHOR EZEQUIEL FAGUNDES: Boa noite.
processos penais, porque o Ministério Publico detém Meu nome é Ezequiel Fagundes, da TV Record.
a titularidade exclusiva da ação penal pública. Esse Procurador, como estão as tratativas da delação
é um tema, assim, tratado com certo pavor, mas é do ex-empresário Marcos Valério? O que já foi dito
preciso regulamentar o lobby, de uma maneira ou interessa à Procuradoria-Geral?
de outra. Ou se proíbe o lobby, ou se estabelecem
regras em relação a ele. Nós não temos lei que crie PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
um sistema de assistência jurídica mútua com os RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS:
demais países. Devemos ter uma regulamentação A Lei da Colaboração Premiada não nos permite
clara do que vem a ser a cooperação jurídica. sequer reconhecer a possibilidade de tratativas de
colaboração, portanto, desconheço essa situação.

119
ANALISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO Parlamentares desses partidos estão envolvidos em
MARCOS: Boa noite. Meu nome é Marcos, sou fatos que podem levar à conclusão de investigação,
analista do Ministério Público em Nova Lima. que reserva surpresas ou decepções. É possível
Procurador-Geral, gostaria de saber, por gentileza, estabelecer uma linha de investigação que não
a respeito da seletividade das decisões atuais dos gera resultados e outra linha de investigação que

magistrados, porque ora se vê um enfrentamento claudica no começo, mas que depois se mostra
acertada. Tenho um vídeo de 2009 que chegou
muito grande a determinados partidos políticos e
de maneira lícita à investigação. Esse vídeo,
a outros, nem tanto, e a supressão de instâncias
que já faz parte de uma denúncia oferecida no
no caso do ex-deputado Paulo Bernardo. Obrigado.
Supremo Tribunal Federal, registra a conversa de
02 diretores de empreiteira Queiroz Galvão e a
PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
outra é ou Queiroz ou Galvão, eu não me recordo
RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS:
mais o nome. O Sr. Fernando Baiano, Sr. Paulo
Não vejo nenhuma seletividade, seja na atuação
Roberto Costa, o Sr. Sérgio Guerra, que era então
do Ministério Público, seja na atuação do Poder
presidente nacional do PSDB. Ali se acertou uma
Judiciário. Não posso entender que, num país
propina de R$ 20 milhões, sendo R$ 10 milhões
democrático, um órgão de investigação possa
por empreiteira, para que ele e alguns outros
escolher a pessoa que quer investigar. Isso
parlamentares “melassem”, a expressão usada
é ditadura plena. As investigações levam a foi essa, a CPI da Petrobras de 2009. Assim, ela
descobrir fatos. Os fatos envolvem pessoas. Os foi “melada”. A quantidade de parlamentares do
partidos políticos envolvidos nas investigações Partido Progressista sob investigação passa de 34.
até então foram: Partido Progressista, Partido dos Há várias investigações envolvendo parlamentares
Trabalhadores, Partido do Movimento Democrático do PMDB e do PT. Não vejo seletividade alguma.
Brasileiro, Partido da Social Democracia Brasileira As investigações seguem um padrão internacional
e mais um do qual não me recordo o nome. sem o menor problema.

120
PROMOTOR DE JUSTIÇA MAURO ELLOVITCH: PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Boa noite, Dr. Janot. Sou Mauro Ellovitch, Promotor RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS:
de Justiça. Primeiro, gostaria de agradecer ao Foi constituído um grupo de trabalho, a pedido do
senhor pela postura firme durante todo o seu promotor natural, que está sediado em Curitiba.
mandato e, principalmente, na questão da Lava Lá há 09 ou 10 colegas, como forma de diluir as
Jato. Para nós, é motivo orgulho ver o senhor responsabilidades. As investigações e as denúncias
indo a público falar que o Ministério Público é mais candentes são conduzidas pro vários
independente, que não se intimada com as mais colegas como forma de despersonalização. Toda
diversas pressões que a instituição possa estar a estrutura necessária para que esse grupo de
sofrendo em razão dessa atuação. trabalho funcione foi a eles atribuída. O orçamento
da força-tarefa de Curitiba é maior do que muito
Faço questionamentos de ordem procedimental. orçamento de procuradoria média da Procuradoria
Na sua avaliação, qual é a importância de se fatiar da República. A força-tarefa tem local próprio,
a investigação da Lava Jato em etapas e concentrar estrutura de tecnologia de informação e pessoal.
esforços em fatos específicos para, a partir dali, Quanto à questão de segurança, eu não posso
ver os desdobramentos. Qual é o diferencial dessa impor segurança aos colegas e eles não pedem
investigação em relação a outras mais genéricas segurança. A grande arma contra a intimidação ou
que nós vimos que não foram tão bem-sucedidas? contra as pressões dos investigadores chama-se
Qual é o trabalho que a Procuradoria-Geral da imprensa livre. Hoje, é impensável que qualquer
República tem feito para blindar os procuradores um de nós possa ser alvo de algum fato que a
que estão na força-tarefa da Lava Jato, de forma imprensa não noticie livremente e que não gere
a evitar que a pressão política e econômica aí, sim, pressão sobre pessoas que pretendem
prejudique a investigação? Obrigado. intimidar. O problema do fatiamento foi uma
questão de estratégia mesmo. Observamos que o

121
não fatiamento do processo no caso da Ação Penal minha curiosidade é quanto às formas de desvios
470, que era pequena, fez com que ele retardasse nas obras. A frouxidão na fiscalização repercutiu,
muito. A opção é evitar maxiprocesso, identificando de alguma forma, na possibilidade de desvio de
o fato e o autor do fato para fazer a denúncia. A recursos públicos?
investigação da organização criminosa vai ser o
único maxiprocesso com que vamos trabalhar. Os PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
quatro grupos já estão definidos: núcleo político, RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS: O
núcleo econômico. A ideia foi de planejamento problema é que os órgãos de controle têm que
estratégico de investigação. Queremos fazer o funcionar de maneira harmônica, assim como
fatiamento, mantendo noção de conjunto, para os órgãos de controle interno das empresas. A
permitir agilidade, o que tem funcionado. Diretoria de Controle da Petrobras, nem existia
ainda, tendo sido criada recentemente. Ela fazia
PROMOTOR DE JUSTIÇA LUCIANO: Boa noite. parecer que as contratações eram lícitas e, na
Meu nome é Luciano, sou promotor de Justiça em verdade, não eram. Agora, a técnica utilizada foi
Minas Gerais. A minha pergunta está em torno da a “técnica do Barnabé”. As empresas se reuniram,
forma como teriam acontecido os desvios, pois não formaram o cartel, dividiram o mercado e fizeram
temos acesso a isso pela imprensa. Um movimento a cooptação dos agentes públicos. Como não
de desregulamentação e de consensualidade havia um controle interno na empresa, essa virou
vem avançando a passos largos no Direito “a técnica”. Não houve nada muito criativo. A
Administrativo. Do ponto de vista de licitações e legislação de 2013 aponta que a questão desses
contratos, houve o avanço do Regime Diferenciado órgãos de controle no interior das empresas vem
de Contratações - RDC e, sobretudo, da contratação auxiliar isso. Então, estamos em um crescendo,
integrada, que nasce no regulamento da Petrobras, em um processo de aprimoramento das nossas
no final da década de 1990, início dos anos 2000. A atividades de controle. E, bom, enfim, modificação

122
legislativa para tentar flexibilizar ou enfraquecer os também entre a Operação Lava Jato e Operação
órgãos de controle, é um risco que corremos, como Mãos Limpas da Itália, que dizia que lá conseguiram
também o risco de modificações legislativas que minar todo o poder de investigação da operação
venham a garantir certo tipo de tranquilidade para italiana, porque houve uma junção do poder
as pessoas que cometem esse tipo de ilícito. Há econômico que ainda estava se reorganizando. O
uma citação do Di Pietro que é muito contundente. que pode ser feito no Brasil para que não aconteça
Era corrupção empresarial e suborno de agentes a mesma coisa aqui e para que os principais
políticos. Nessa investigação, ele descobriu que a caciques não sejam envolvidos nesses crimes de
atividade parlamentar de flexibilizar contratações e corrupção não sejam atingidos. Muito obrigado.
investigações. , além do que aprendemos na escola.
Aprendemos na escola que ou confiamos na Justiça PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
e nos entregamos a ela, ou fugimos e ficamos RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS:
foragido. Ele falou que, nessa investigação, ele As situações são diferentes. A situação em que
descobriu um terceiro modo que não foi ensinado vivemos hoje no Brasil não é a mesma dos anos
na escola, que seria entrar no Parlamento e fazer 1990, que foi vivida na Itália. Alguns instrumentos
leis para si próprio, de maneira a não ser julgado legislativos decorrentes das convenções de que
pela Justiça. Esse risco sempre existe e nós temos falei, atualmente existentes no Brasil, por exemplo,
que ficar atentos para que isso não venha a ocorrer. a colaboração premiada, não existiam na Itália. Qual
a dificuldade técnica com que os investigadores se
ALUNO DA FACULDADE DE DIREITO DA PUC defrontaram para atingir os agentes políticos que
CARLOS EDUARDO: Boa noite, Dr. Rodrigo Janot. recebiam suborno? Eles tiveram que fazer uma
Meu nome é Carlos Eduardo, sou representante escolha de Sofia. Não era possível trazer para a
dos alunos de Direito da PUC Minas . O Prof. Luiz colaboração um empresário, porque não havia tal
Flávio Gomes postou um vídeo que fazia analogia previsão. A única maneira de trazer o empresário

123
é ele apontar o crime feito pelo agente político, o estruturas estatais de televisão: Rai uno, Rai due e
que seria caracterizado como concussão. Di Pietro Rai tre, que, historicamente, era assim dividida. A
disse que as Mãos Limpas prosseguem até hoje. Rai uno era democristiana, a Rai due era socialista
Exatamente em razão da escolha de Sofia, é que (PSI) e a Rai tre era comunista. As 3 televisões
o empresário ia reconhecer a prática de um crime eram divididas entre forças políticas da Itália. O
para, assim, trazer o agente político. E qual era Berlusconi aparece fortificado pela Lega Nord,
a premiação que se podia dar a esse sujeito? Até contando com o dinheiro dos empresários e com as
aí, nenhuma. A única via possível foi denunciar os 3 televisões. Ele extingue o acerto tácito de divisão
políticos por concussão e, com isso então, parte das 3 Rai em direita, centro-esquerda e esquerda
do empresariado ficou livre dos processos penais. e entrega para a filha dele operar. Ele passa três
Esse mesmo empresariado se reorganizou e televisões privadas e três televisões públicas para
montou o mesmo sistema utilizados pelos políticos ela. Acho difícil que isso ocorra no Brasil, até mesmo
Há outra circunstância diferente. Na Itália, houve porque não existe uma seletividade por partido.
o efeito Berlusconi. Ele já tinha sido já investigado,
As pessoas dos partidos estão sendo igualmente
respondido a um processo e inocentado. Ele se
investigadas. Então, é assim que vejo a diferença
fortalece ao entrar no ambiente empresarial do
de circunstâncias. Então, acho que os momentos
poder econômico que existia. Na época, a queda
são diferentes.
da participação política dos partidos políticos na
Itália foi um arraso. E quem chega forte? A Lega
PROMOTOR DE JUSTIÇA GUILHERME:. Meu
Nord sai de 2 pontos percentuais na participação
nome é Guilherme, sou promotor de Justiça na
da Parlamento para quase 10%. Em seguida,vem
Comarca de Mariana, com atribuições também de
o Berlusconi, que era sustentado pela atividade
defesa do patrimônio público.
empresarial. A Lega Nord se fortalecia e também
3 emissoras de televisão. Nesse país, há três

124
Como o Dr. Janot disse em uma entrevista, o PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Ministério Público tem que ter atuação firme, o RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS:
que ele tem demonstrado nesses momentos O pedido de cisão de processos foi feito pelo
tão difíceis em que vivemos, principalmente no Ministério Público Federal, o que tem sido atendido
combate à corrupção. Não só os procuradores da pelo STF. A estratégia é de evitar ao máximo os
Lava Jato, mas todo o Ministério Público Federal maxiprocessos. Se não houver uma conexão
vem, realmente, erguendo o nome da nossa probatória muito próxima entre um acusado com
grande instituição, que envolve também o Ministro foro privilegiado e outro que não tem foro, a opção
Público Estadual. é mandar para o primeiro Grau ou para Tribunal
Regional, ou para STJ, de acordo com o órgão
A minha pergunta se refere à questão da mudança competente para o julgamento daquela pessoa. Tal
da jurisprudência do STF, que passou a entender estratégia tem se revelado boa, pois não se perdeu
que, em regra, deve-se dividir os processos. Quem a noção de conjunto, de contexto. E a ausência de
tem foro privilegiado, é acusado perante os órgãos cisão anterior provocou a demora demasiada na
jurisdicionais competentes, e quem não tem, na condução dos processos.
primeira instância. Na opinião do Sr. Procurador-
Geral, isso foi positivo? O encerramento do Quanto à questão do combate à corrupção,
foro privilegiado vai, realmente, significar uma nós não vamos acabar com a corrupção geral.
mudança de paradigma do combate à corrupção. Podemos acabar com a corrupção endêmica com a
Todos nós reconhecemos a importância da Lava atuação judicial. O problema da corrupção envolve
Jato, só que se ficar só no âmbito dessa operação, educação. Esse é o grande salto de qualidade. O
sem que haja um combate efetivo à corrupção nas que está a nosso alcance é fazer cortes a partir do
comarcas, principalmente do interior, a situação momento em que o índice de corrupção passe a ser
não ira se transformar. Obrigado. endêmica. A redução dos casos de corrupção não é

125
uma questão afeta unicamente ao Poder Judiciário. nem instruir processos. Os tribunais têm atuado,
É uma questão básica de educação mesmo. Nós ao longo do tempo, como órgão de revisão de
temos que nos esquecer do “jeitinho brasileiro”, processos feitos, com processos concluídos em
de furar fila. A UNB fez um trabalho interessante que se acerta a prova no segundo grau. A inversão
chamado teste de integridade. Ela colocava picolés dessa lógica é complicada.
em uma caixa aberta e o valor estipulado do picolé
para que o interessado o jogasse na caixinha PROMOTOR CARLOS EDUARDO FERREIRA
coletora. Entretanto, 42% dos estudantes da UNB PINTO: Boa noite, Dr. Janot. Sou Carlos Eduardo
deixaram de depositar o dinheiro do picolé. Ferreira Pinto, Promotor de Justiça atuante na área
de meio ambiente do MPMG. A minha pergunta
A mudança tem que ser civilizatória. Pode-se vai explorar um pouco a questão da colaboração
tentar induzir isso. O tratamento da corrupção premiada. Na área de meio ambiente, enfrentamos
não é uma questão judiciária. Eu não tenho uma muito essas negociações e vários interesses
opinião formada quanto ao foro privilegiado, contrapostos. O nosso Procurador-Geral, o Dr. Carlos
pois ele tem o lado positivo e negativo. Acho André, investiu muito em negociação de conflitos e
extremamente negativo é que cerca de 22.000 aprimoramento institucional. Qual é o investimento
pessoas tenham prerrogativa de foro atualmente. do Ministério Público Federal na preparação negocial
Isso não faz sentido. Vejo também com dificuldade para tratativa das colaborações premiadas? Têm
que, por exemplo, um presidente da República sido divulgados na imprensa, questionamentos em
possa responder a processo no interior do Ceará relação às colaborações, mostrando colaboradores
e no interior do Rio Grande do Sul. Tem que haver vivendo em grandes mansões. Há preocupação do
uma solução de meio nessa história. Não é que os Ministério Público Federal na banalização desse
tribunais são lenientes com essas pessoas. É que instrumento e quais as medidas tomadas para que
os tribunais não foram concebidos para formar e se evite essa banalização?

126
PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA No que se refere à premiação, ela é uma via de
RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS: A mão dupla. Muita colaboração, muita premiação;
estrutura tradicional das defesas em processos pouca colaboração, pouca ou nenhuma premiação.
penais era de trabalhar com nulidade e com Se um colaborador age a fim de antecipar anos
postergação do julgamento. Pouquíssimos de investigação, a importância da colaboração
processos em que os advogados discutiam teses tem reflexos na premiação. Em colaboração e em
jurídicas. A primeira crítica à colaboração é que ela
leniência, já conseguimos R$ 2,9 bilhões. Há um
seria um instrumento do direito anglo-saxão que
colaborador que continua morando na própria casa,
não se aplica à família romano-germânica. Isso
pois o pediu como bem de família. Outro pediu
foi aplicado com sucesso na Itália, na França, na
para ser mantido o imóvel de uma filha, outro,
Alemanha. Então, há precedentes de sucesso nas
que fosse feito um fundo para pagar o estudo dos
colaborações premiadas. Mais cedo ou mais tarde,
filhos. Houve premiação. Ele disponibilizou muita
isso iria acontecer, pois é um caminho da própria
administração da Justiça Penal. É necessário ter informação para nós. A situação não pode ser

esse tipo de acordo, acho que até mais ampliado. vista de forma sectária. O sujeito está morando
Com base nisso, vários colegas foram estudar fora em Fortaleza em uma casa com piscina, que tem
do país o instituto da colaboração premiada para 1.200 metros quadrados de área construída. Sim,
aprender regras básicas do acordo. Os escritórios mas ele está entregando $$ 90 milhões de dólares.
de advocacia não estavam preparados para isso Se um sujeito faz a colaboração, revelando dados
e não sabiam utilizar esse instrumento. Fizemos como se verdadeiros fossem, sem ocultar nada,
um investimento institucional para preparar as mas se descobrimos que ele ocultou, há quebra
pessoas para isso. Como blefe, para fazemos a de acordo. O acordo feito não implica redução de
negociação, no mínimo sempre duas pessoas. pena. Nós aprendemos isso com o Youssef. Fizemos
Dominamos regras básicas que tanto a doutrina, acordo no Banestado com ele, reduzimos a pena,
como a prática nos ensinaram.
aí ele quebrou o acordo. Fomos executar e já tinha

127
prescrito. Aprendemos a duras penas a percorrer
esse caminho. Negociamos muito com o regime de
cumprimento de pena. Se o colaborador mentiu ou
ocultou informações, a colaboração é desfeita. Não
podemos forçar o potencial colaborador a colaborar.
Como é que ele vai colaborar se não se deu nada
para ele? Assim, ele não vai colaborar. Então,
a ideia é dizer que vamos processar alguns por
concussão e que, se ele colaborar, vamos entender
que havia um sistema de corrupção generalizada e
que ele não podia reagir contra isso. Isso tem que
ser visto com cautela.

PROMOTOR DE JUSTIÇA CARLOS ANDRÉ


MARIANI BITTENCOURT: A evolução que está
havendo na nossa instituição em relação às práticas
de combate à corrupção e à improbidade. Nesse
contexto, é que eu mais uma vez agradeço ao Dr.
Janot pela presença e pela clareza na exposição
das idéias. Tenho certeza de que foi de grande
proveito para todos os presentes.

Nós nos colocamos à disposição, como Ministério


Público de Minas Gerais, para qualquer trabalho que
for necessário nessa mesma luta. Muito obrigado.

128
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: O NOVO CPC Agradeço ao Ministro pela presença, como também
E OS RECURSOS DO STJ, PROFERIDA POR aos procuradores, promotores, advogados e
SÉRGIO LUIZ KUKINA, PARTE DO “PROJETO magistrados que aqui estão. Boa palestra a todos.
SEGUNDA-FEIRA ÀS 18H” REALIZADA EM 22
DE AGOSTO DE 2016 PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA CARLOS
ANDRÉ MARIANI BITTENCOURT: Boa noite. De
início, cumprimento o ministro do Superior Tribunal
JARBAS SOARES JÚNIOR: Boa noite a todos.
de Justiça, o Ministro Sérgio Luiz Kukina, que nos
Cumprimento a eminente Mesa, na figura do
honra com a sua presença, o Desembargador
nosso chefe, o Procurador-Geral de Justiça Carlos
Afrânio Vilela, representante do Tribunal de
André. Para nós, receber o Ministro Sérgio Kukina
Justiça, a Ouvidora-Geral do Ministério Público, a
é motivo de alegria. Ele é egresso do Ministério
Procuradora de Justiça Ruth Lutz Scholte Carvalho,
Público do Paraná. Foi Promotor de Justiça em
o Defensor Público e Coordenador da área cível
várias comarcas, foi chefe da Procuradoria Cível e
da capital, Alexandre Tavares, o Procurador do
de recursos cíveis. Atualmente, ele é Ministro do
Estado, Diretor do Centro de Estudos da Advocacia-
Superior Tribunal de Justiça.
Geral do Estado, Alberto Guimarães Andrade,
representando o Onofre, o Diretor no Centro de
Esse é um momento de muita importância,
Estudos e Aperfeiçoamento Funcional Jarbas Soares
considerando que o NCPC já está em vigor e que
Júnior, a Danielle Arlé, também integrante desse
temos de nos adaptar a ele. Nada melhor do que
centro de estudos, órgão que promove os eventos
buscar a fonte que vai inspirar o direito. Cabe ao
do Ministério Público, os nossos colegas promotores
STJ exercer um papel preponderante na formação e procuradores de Justiça presentes, na pessoa do
dos precedentes e da jurisprudência. Doutor Sartório, nosso coordenador de recursos da
área criminal, junto aos Tribunais Superiores.

129
O Ministro Kukina é o presidente da Primeira Turma n. 13.105/2015 e antes da sua entrada em vigor,
e membro da Primeira Seção do STJ. Foi promotor sobreveio a Lei n. 13.256/2016. Essa lei foi fruto
de Justiça desde 1984, tendo atuado em diversas do desassossego dos Tribunais Superiores, tanto
comarcas do Paraná como Francisco Beltrão, Dois do Superior Tribunal de Justiça, como do Supremo
Vizinhos, Faxinal, Pitanga e Guarapuava, Foz do Tribunal Federal.
Iguaçu e Curitiba. Foi procurador de Justiça,
promovido em 2002, integrou a 2º Procuradoria Alguns pontos causaram preocupação. O primeiro
de Justiça Cível do Ministério Público do Paraná deles dizia respeito à previsão originária do Código
e chefiou a Coordenadoria de Recursos Cíveis do acerca da observância da ordem cronológica
Ministério Público do Paraná. É mestre em Direito, da resolução dos processos. Compreendeu-se
especialista em Direito Contemporâneo e Ciências que a observância a essa ordem poderia gerar
Penais. É uma honra receber o ministro Kukina, pelo desorganização no trabalho desenvolvido. Mesmo
fato de se tratar, portanto, de um ministro egresso existindo precedentes firmes em certos temas,
dos quadros do Ministério Público brasileiro. os ministros estariam impedidos de entregar
prontamente a resposta jurisdicional em casos que
MINISTRO SÉRGIO LUIZ KUKINA: Boa noite já contassem com um precedente firme e sólido.
a todos. É um prazer retornar a Belo Horizonte, O processo deveria aguardar a sua vez de ser
especialmente ao Ministério Público do Estado julgado em uma fila, ainda que se pudesse invocar
de Minas Gerais, que tão bem me acolheu em em favor do recorrente ou do recorrido a tese da
ocasião pretérita. existência de precedente advindo da técnica de
repetitivo ou de repercussão geral em sede de
Quando estivemos juntos, o projeto do NCPC recurso extraordinário. Procurou-se sensibilizar
ainda não havia sido aprovado. Desde então, os parlamentares nesse ponto e se obteve êxito
novidades surgiram. Após a promulgação da Lei nisso. A Lei n. 13.256 alterou o artigo 12 para

130
acrescer ao caput a expressão “será observada que era necessário extrair “n” cópias para formar
preferencialmente a ordem cronológica”. Esse foi o instrumento do processo físico. Passados alguns
um ponto acolhido por essa lei. meses, vinha o despacho do ministro, informando
que ele não enxergou a data da interposição do
Outro aspecto que talvez tenha causado mais recurso, porque o carimbo da página xerocopiada
inquietação nas Cortes de Brasília dizia respeito estava ilegível. Isso fazia parte daquilo que se
à extinção do chamado juízo de admissibilidade convencionou chamar de jurisprudência defensiva.
no tocante ao processamento dos recursos Qualquer filigrana mínima servia para evitar que
extraordinário e especial. Tradicionalmente, havia um recurso “subisse” e que fosse conhecido.
a metodologia de que, uma vez interposto o
recurso extraordinário e o especial, o primeiro filtro Era constrangedor trabalhar com essa técnica,
de admissão era realizado na instância local, no motivo pelo qual eu questionei por que a
tribunal em que era prolatada a decisão atacada por interposição não era feita de forma direta. Caso
tais recursos. Com o advento da primeira redação se prevalecesse a redação da primeira versão do
da Lei n. 13.105, suprimiu-se esse juízo prévio CPC/2015, no exato dia em que o Código entrasse
de admissibilidade na origem. Aparentemente em vigor, os vinte e sete tribunais estaduais e os
poderia significar um avanço. Como membro do cinco TRF’s passariam a enviar, de um dia para
Ministério Público atuante no setor de recursos, outro, cerca de 200 a 300 mil processos para o
eu questionava a necessidade de interposição de STJ. Isso inviabilizaria o trabalho. É certo que os
agravos de instrumento, no lugar de se permitir tribunais locais têm estruturas bem formadas e bem
que, desde logo, fosse feita a pronta interposição ao especializadas para fazer esse filtro. Atualmente,
tribunal destinatário. Essa perspectiva tinha muito praticamente finda a situação, especialmente nos
mais razão à época, quando se trabalhava ainda tribunais que adotam integralmente a técnica do
no sistema do antigo agravo de instrumento, em processo eletrônico, de o julgador argumentar que

131
não enxergou a data pelo fato de o xerox estar mal desrespeitando a autoridade de uma outra decisão
feito. Prevaleceu, portanto, a compreensão de que dada em momento anterior por essas duas
não haveria um bom resultado prático. cortes. Ou, ainda, ela era utilizada para veicular a
informação de que certo tribunal estava usurpando
Talvez o núcleo que dificultou a feitura do NCPC foi a competência do STF ou do STJ. Essas são as
exatamente aquele radicado no art. 5º, LXXVIII, finalidades básicas do instituto da reclamação
da CRFB/1988, que determina a observância da desde sua origem.
duração razoável do processo. Pergunta-se se a
existência de uma cláusula como a que determina Com o advento da Emenda Constitucional n 45,
a extinção do filtro prévio não deporia em acrescentou-se a terceira hipótese de emprego
desfavor da promessa de duração razoável. Após da reclamação, dessa feita manejada contra a
a compreensão dessa situação pelo Parlamento, a autoridade judiciária ou administrativa que deixe
Lei n. 13.256, retornou ao status quo. Esse foi o de observar comando posto em súmula vinculante.
segundo ponto de alto-relevo nessa lei.
Com o NCPC, passou-se a admitir também a
O terceiro ponto referiu-se à alteração do regime reclamação contra decisões dos tribunais de justiça
da reclamação. A reclamação constitucional tem
e tribunais regionais federais, cujas decisões se
fundamento na Constituição Federal. Ela era prevista
distanciem de cumprir ou que deixem efetivamente
como mecanismo a ser exercitado no STF e no STJ.
de dar cumprimento a decisões prolatadas em sede
Hoje, não. Com o NCPC, a reclamação poderá ser
de repetitivo ou de repercussão geral.
intentada nos tribunais estaduais e nos TRF’s.

Só que, nesse particular aspecto, não havia


Na sua origem, a reclamação tinha dois destinos
restrição maior, apenas se estabelecia que,
certos. Ela se prestava para que se comunicasse
quando uma decisão judicial contrariasse o recurso
ao STJ ou ao STF que uma certa decisão estava
repetitivo ou a repercussão geral, podia a parte

132
lesada com a decisão, interpor uma reclamação de primeiro grau terá de ser submetida, antes,
diretamente no STF ou no STJ, num verdadeiro ao crivo dos tribunais de 2ª instância, como ao
atalho, queimando etapas. Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

Na versão original, essa previsão permitiria à parte Além disso, ainda que sobrevenha a decisão
propor uma reclamação ao STF e ao STJ contra do tribunal e que ela manifeste que a decisão
um simples despacho inicial de juiz em primeiro interlocutória esteja correta, e a parte insista
grau, o que, seguramente, aumentaria o nível de que esse acórdão desrespeita o repetitivo, por
congestionamento das Cortes. O encurtamento exemplo, essa parte terá, primeiramente, que
de caminho, sem dúvida, seria positivo, mas, com interpor o seu recurso especial e aguardar o juízo
a estrutura existente, não seria razoável adotar de admissibilidade pela presidência do tribunal.
esse mecanismo. O que faz a reforma, ainda na Se a decisão do presidente for contrária à subida
vacatio legis? do recurso, ainda vai se exigir o esgotamento de
instância, por meio de um agravo interno para a
Pela dicção da Lei n. 13.256, é possível a interposição Corte local. Após o esgotamento de instância, é que
de reclamação em face de uma decisão que viole a parte poderá, simultaneamente à interposição
o repetitivo, decisão dada em repercussão geral. do recurso especial ou do extraordinário, interpor
Todavia, passa-se a exigir, a partir da Lei n. a reclamação. Esse foi um ponto bem detectado
13.256, que se tenha antes esgotado a instância pelo Ministro Gilmar Mendes, que providenciou
ordinária. Não tem mais a possibilidade de ocorrer que houvesse a modificação no artigo 988, para
a interposição de reclamação contra decisão de acrescentar, no parágrafo 5º, II, a exigência de
juiz de 1ª instância, ainda que ela ofenda decisão esgotamento da instância ordinária.
de repetitivo ou de repercussão geral. Essa decisão

133
O artigo final da Lei n. 13.256 definiu que ela 18 de março. Essa foi a tese prevalecente, que
entraria em vigor na mesma data em que o NCPC, foi aprovada por unanimidade. O CNJ adotou a
ou seja, um ano após a publicação. Esse diploma compreensão do STJ, e o STF, por sua vez, também.
normativo, a Lei n. 13.105, foi promulgado em 16
Assim, prevaleceu o entendimento de que a entrada
de março de 2015.
em vigor do NCPC seria no dia 18 de março.

Quanto mais se aproximava o final da vacatio legis,


Superado esse ponto, o STJ considerou necessário
mais cresciam os debates em torno da definição
quanto ao primeiro dia da entrada em vigor do o estabelecimento de alguns critérios mínimos.

NCPC. Ele não definiu a partir de quando começaria Nessa mesma reunião em sessão plenária, o STJ
a contagem do prazo de um ano. Indagou-se se o acabou aprovando sete enunciados.
termo inicial seria no dia 16 de março de 2015, ou
se seria no dia seguinte ou não. O Enunciado n. 1 previu que o CPC entraria em vigor
em 18 de março. A partir daí, sucederam-se seis
Havia três correntes doutrinárias que se outros enunciados que, ao menos internamente,
posicionaram em relação ao tema: a primeira,
serviram para orientar os primeiros passos rumo à
que considerou que NCPC entraria em vigor no
adaptação frente às exigências do NCPC.
dia 16 de março; a segunda, no dia 17 de março;
e a terceira corrente, no dia 18 de março. Essas
O Enunciado n. 2 previu que os requisitos de
correntes firmaram-se, não obstante a existência
admissibilidade dos recursos interpostos contra
da Lei Complementar n. 95, que trata da elaboração
da lei e da data em que ela vai entrar em vigor. decisões publicadas, na via adequada, ou seja, no
diário físico ou eletrônico, até o dia 17 de março,
Numa sessão plenária realizada em março de 2016, serão aqueles previstos no CPC/1973.
os ministros do STJ, reunidos, discutiram o tema
e decidiram que essa lei entraria em vigor no dia

134
O Enunciado n. 3, na contra-face, prevê exatamente A mensagem do NCPC para os tribunais foi muito
o oposto: que os requisitos de admissibilidade clara e direta: abaixo à jurisprudência defensiva.
de recurso interposto contra decisão publicada Não se pode mais deixar de conhecer do recurso,
depois de 18 de março serão aqueles postos no porque faltou assinatura na procuração, ou cópia
NCPC/2015. de documento, ou porque o recurso da parte foi
interposto antes que o acórdão dos embargos
O Enunciado n. 4 previu, no que tange à a declaratórios da parte adversária tivessem sido
competência civil originária e recursal do STJ, que publicados, ainda que o acórdão desses declaratórios
os atos processuais que vierem a ser praticados por em nada interferissem no interesse da parte. Todas
julgadores, partes, Ministério Público, procuradores, as súmulas defensivas, como a súmula n. 418 e a
serventuários e auxiliares da Justiça, a partir de 115, acabam sendo derrubadas pelo NCPC, cuja
18 de março de 2016, deverão observar os novos pretensão clara é que os julgamentos alcancem o
procedimentos trazidos pelo NCPC de 2015, sem mérito da demanda.
prejuízo do disposto em legislação processual
especial. Sabe-se que ainda prevalecem algumas Evidencia-se também a sinalização para que seja
regras postas em regimes especiais. feita, quando possível, a tentativa de conciliação,
notadamente nas ações de conhecimento. Sempre
Do ponto de vista prático, era importante que o que possível, deve-se privilegiar os métodos de
STJ se manifestasse sobre os enunciados 05 e 06. autocomposição, como a mediação, a conciliação,
O NCPC sinaliza, de maneira clara, que o Estado- etc. No entanto, caso não se queira, ou caso as
Juiz deve, o quanto for possível, resolver o mérito divergências não sejam solucionadas, a jurisdição
da lide, valendo também para o recurso. Busca-se terá de atuar. Pela redação, percebe-se que o
a decisão de mérito. papel da atuação jurisdicional efetiva acaba sendo
um papel supletivo. Quer-se, antes, que as partes

135
tentem encontrar a melhor solução para os seus Há atores altamente criativos na Justiça, embora o
antagonismos e para as suas divergências, já que trabalho em si, que envolve peticionar, etc, seja um
elas conhecem os seus pontos de vista e suas tanto sem graça e sem encantamento. No entanto,
pretensões. É difícil a missão de promotores e nos bastidores, há artistas escondidos.
juízes de dizerem qual o valor mensal da pensão
alimentícia do filho de um casal. É uma situação O artigo 932 do NCPC, antigo artigo 557, do
dramática, que revela a falência das relações CPC/1973, que cuida dos poderes do relator,
humanas, pois se delega a um estranho o papel prescreve que este, diante de algum vício sanável,
de dizer quanto um pai deve pagar de pensão não deve deixar de conhecer o recurso. Ele deve
para um filho. abrir vista e dar prazo para que a parte sane a
irregularidade. Na mesma linha, o artigo 1.029, §
Então, o juiz atuará de forma supletiva, mas 3º, do NCPC, dispõe que, a partir do momento em
quando for efetivamente convocado. O NCPC que o recurso não está mais sob a condução do
deliberadamente indica que o julgador deve tentar relator, não está mais sob o poder monocrático,
resolver o mérito em todas as instâncias. mas sim em situação de colegiado. Se o colegiado
perceber também um vício sanável capaz de impedir
A linha ideológica tomada pelo NCPC, seguramente, o acesso ao julgamento de mérito, deve converter
é fruto da ação muito consistente de parcela da
o caso em diligência para que seja sanado o vício.
advocacia durante os trabalhos legislativos que
Evidentemente que, se a parte recorrente não o
culminaram no NCPC. É evidente que, nesse
sana, o recurso não será conhecido, deixando-
assunto, o advogado posiciona-se de um lado e o
se de enfrentar o mérito. Esses dois dispositivos
julgador, de outro. O advogado é criativo e sempre
sinalizam que, em sendo possível, deve-se permitir
vai encontrar meios para contornar, ao passo que o
à parte que regularize o vício.
julgador vai também buscar outros meios para se
proteger do excesso de trabalho.

136
O enunciado n. 5 dispõe que, nos recursos foi considerado meramente formal para o Ministério
tempestivos interpostos com fundamento no Público quando recorrente, pode ser que não seja
CPC/1973, não caberá a abertura de prazo previsto para o relator. O NCPC/2015 erra por adotar, em
no artigo 932 e no 1.029 do NCPC. Nesse caso, certos casos, conceitos vagos e indeterminados.
também é usada uma espécie de escudo. A regra
benéfica do NCPC só será aplicada em recursos O enunciado da Súmula 7, que foi o último, que
interpostos contra decisões publicadas já na vigência nos serviu de parâmetro inicial, estabeleceu que
do NCPC. Ela não retroagirá, diferentemente da honorários de sucumbência recursal só serão
norma penal, que, em regra, retroage. arbitrados quando forem interpostos recursos
contra decisões publicadas a partir de 18 de março
O enunciado n. 06 expõe, na contramão do de 2016, ou seja, a partir da data da entrada em
enunciado anterior, que o recurso interposto vigor do NCPC/2015. Esse é outro ponto delicado.
contra decisão publicada sob a égide do NCPC/ Vamos ter de aprender paulatinamente sobre o
2015 recebe o benefício da diligência. O relator assunto, já que essa lei fornece poucas referências
converte em diligência para que a parte supra a acerca disso.
deficiência formal. Esse enunciado n. 06 aponta
que, nos recursos tempestivos, com fundamento A comissão de jurisprudência do STJ discute, de
no NCPC/2015, somente será concedido o prazo forma muito atenta, sobre o artigo 557 do CPC/1973,
de correção do artigo 932, ou seja, cinco dias, para que atribuía ao relator o poder de conhecer, dar
que a parte sane vício estritamente formal. Indaga- ou negar provimento a recursos e, especialmente,
se a respeito do que configura precisamente o vício no mérito, dar ou negar provimento, quando as
estritamente formal, pois não há definição precisa teses veiculadas nos recursos estivessem em
sobre o assunto. Ao contrário, a conceituação é conformidade ou em afronta à jurisprudência
variável caso a caso, o que a torna subjetiva. O que disposta em súmula e em jurisprudência consolidada

137
predominante. O artigo 932 do NCPC elencou legislador positivo. Ao discutir essa questão, a
os poderes do relator de, monocraticamente, a comissão de jurisprudência formada por seis
decidir os recursos, nos moldes do CPC anterior. ministros chegou à conclusão de que os advogados
Entretanto, ao tratar da questão de mérito do agradeceriam por isso. Indaga-se se, caso não
recurso, esse artigo estreitou o poder de atuação do fosse mais possível julgar monocraticamente
relator, pois apenas concedeu a ele a possibilidade recursos nos quais houvesse jurisprudência
de dar ou negar provimento, no mérito, quando predominante consolidada no tribunal, isso imporia
a tese recursal estiver de acordo ou contrária à a tarefa de submeter esses casos a uma pauta de
tese prevista em súmula ou à tese firmada em julgamento e ter de julgá-los todos em colegiado
repetitivo ou repercussão geral. O NCPC retirou, e se isso assoberbaria as pautas. A curtíssimo
portanto, a possibilidade de que o relator decidisse prazo, os advogados seguramente perceberiam
com base apenas em jurisprudência dominante, que teriam feito um mau negócio, porque o caso
porque ela, no mais das vezes, não chegou a ser seria julgado muito tempo à frente. Pela dicção
cristalizada em súmula, nem foi submetida ao crivo da Súmula 568, basta declarar a existência de
de um repetitivo, embora constitua o pensamento jurisprudência predominante, não precisa ser,
do tribunal. O STJ, no primeiro instante, deliberou portanto, em repetitivo e nem em repercussão.
no sentido de aprovar uma súmula de uso É o que basta para que ocorra a decisão singular.
interno, a Súmula 568, que entrou em vigor na Essa foi uma súmula à margem, a latere da
data da entrada em vigor do NCPC/2015. Essa legislação posta, em harmonia, contudo, com a
súmula expressa que é lícito ao ministro relator índole de trabalho do tribunal.
dar ou negar provimento a recurso com base em
jurisprudência predominante. Observa-se que a A questão da jurisprudência é tão importante
edição dessa súmula pode ensejar a ideia de que que refletiu na Súmula 568, pois foi prestigiada a
o STJ legislou, já que ele atuou como verdadeiro força da jurisprudência. A jurisprudência ganhou

138
um papel de indiscutível destaque no NCPC, artigo 926 estabelece a jurisprudência estável, que
tornando-se o centro de atenções dessa lei. A assegure a coesão da atividade judicial. É preciso
pedra de toque do sistema proposto pelo NCPC que a Justiça seja minimamente previsível e que
está no artigo 926, que diz que os tribunais ela cumpra o pressuposto da segurança jurídica.
devem uniformizar sua jurisprudência e mantê- Não é possível que, num país que se pretenda
la estável, íntegra e coerente. Tudo isso traz o sério, ter uma jurisprudência oscilante.
sentido de que a jurisprudência deve ser um
fundamento confiável. As partes têm que confiar Quando eu entrei na faculdade, na década de
na jurisprudência do seu país. A parte não vai 1970, a jurisprudência e os princípios do Direito
mais interpor um recurso desnecessário, cuja eram relegados a segundo plano. Não se dava
compreensão já firmada em sede de repetitivo. crédito à principiologia e ao contraditório. O
Essa mensagem vale para todos os recorrentes, foco era a lei. Então, dura lex sed lex. Havia um
para a advocacia privada e pública. A existência positivismo muito keynesiano. A partir da Carta
de jurisprudência firme, consolidada, estável de 1988 houve uma mudança. O princípio ganhou
e confiável fará com que ações não sejam status e a jurisprudência, agora, também alcançou
interpostas em vão, por já se saber, de antemão, patamares elevados.
que o resultado do processo vai estar de acordo
Atualmente, desconhecer a jurisprudência é um
com jurisprudência previamente consolidada.
erro fatal para quem atua no Direito. O STJ tem
Essa situação evita, inclusive, sobrecarga do
579 súmulas, sendo que algumas delas foram
aparelho de Justiça.
canceladas. O STF tem 736 súmulas, entre as
Ao contrário, quando não há cultura de confiança e de quais 56 são súmulas vinculantes, exceto a 30,
estabilidade no rigor da jurisprudência, permanece que até hoje não foi publicada. É preciso verificar a
a idéia modelo da loteria judicial vigente. Assim, o jurisprudência consolidada.

139
Proferi recentemente uma decisão monocrática de o STJ ter se manifestado no repetitivo em
no sentido da rejeição do recurso proposto pelo relação a tema distinto daquele que foi aventado
Ministério Público, porque ele era frontalmente na oportunidade.
contrário a uma súmula vinculante do STF. Pelo
O NCPC/215 tem um mandamento de que só se
artigo 932, extrai-se que não se pode admitir
afete aquilo que efetivamente deva ser objeto
recurso que contrarie súmula vinculante. É
da decisão. No STF, ocorre o mesmo. E o quanto
preciso ficar atento aos recursos repetitivos e à
possível, deve-se julgar com rapidez. De nada
repercussão geral.
adianta que recursos estejam afetados, em especial,
em repercussão no STF e lá permanecer por longos
O regime da repercussão geral e dos repetitivos,
anos, o que paralisa a Justiça do país. Assim, não
sofreu alteração no novo CPC. A partir de então,
se pode julgar, pois tudo está sobrestado. Então,
o repetitivo terá que ser tratado de maneira
tem que sobrestar em todo o território nacional em
mais séria. Era comum que o relator afetasse um
obediência à lei, esperando-se, assim, que haja um
recurso especial como repetitivo para definição
julgamento em tempo razoável. E, portanto, um
de um certo tema. Na sessão de julgamento do
julgamento sério, com indicação precisa da ratio
repetitivo, tratava-se de outro tema totalmente
decidendi, porque quem vier a ler o fundamento do
adverso àquele indicado no despacho de afetação. acórdão do repetitivo, da repercussão geral, saberá
Acabava-se desviando da tese e, não raro, o a razão pela qual se chegou a certo resultado. Isso
repetitivo acabava decidindo questões periféricas permitirá maior facilidade ao se fazer o cotejo.
que, mesmo mencionadas no acórdão, eram
Atualmente, o agravo interno e os embargos de
questões ali postas juridicamente apenas em
declaração continuam sendo aqueles recursos
caráter de obiter dictum, isto é, só de passagem,
cujo objetivo é evitar que se perpetue uma
ilustrativamente. Assim, tornava-se “lei”, apesar

140
decisão injusta. Busca-se a supressão de vício Assim, se por um lado se exige, agora, da
nos declaratórios de obscuridade, contradição e autoridade judicial, maior rigor na fundamentação,
omissão. No agravo interno, afronta-se o próprio por outro, passa-se a exigir mais responsabilidade
mérito da decisão do relator. do recorrente. Vislumbra-se hoje aquela figura do
chamado recurso responsável. Vai ser muito difícil,
É preciso lembrar que, agora, o agravo interno e os
especialmente para o advogado privado, estar
embargos declaratórios passaram a ser uma moeda
de duas faces. Ambos podem gerar para a parte, a sujeito a multas, pois terá de prestar contas depois

depender do resultado, benefícios ou desvantagens. para o seu cliente particular, ou para a coletividade, o
Se os recursos forem mal interpostos, serão que tem, inclusive, efeitos financeiros na demanda.
considerados manifestamente inadmissíveis ou
manifestamente improcedentes. Nesse caso, ambos Nessa perspectiva, é que se percebe a mensagem

irão impor o pagamento de multa. trazida pelo Novo Código de Processo Civil de
exortar a que todos os atores atuem de forma
Em última ratio, o que se espera da parte recorrente responsável. O novo modelo veiculado pelo NCPC
hoje, é mais responsabilidade. Do lado oposto, /2015 traz a perspectiva da virtuosidade, que vai
espera-se do órgão julgador a produção de uma exigir desses atores a mudança de cultura. A parte
decisão muito bem fundamentada, tanto que, o deixará de recorrer por saber de antemão qual
capítulo do agravo interno define que o relator não
será o resultado. Não se vai mais poder confiar
pode mais julgar o agravo interno conclamando os
na loteria jurisprudencial. Isso, em médio prazo,
seus pares a confirmarem a decisão monocrática
possivelmente, implicará menos recursos nos
por ele prolatada. Hoje não é mais possível esse
tribunais e menos ações que careçam de decisões
tipo de julgamento per relationem. O relator
judiciais em primeiro grau. A causa é a existência
deve atentar apenas ao conteúdo e pode repetir
de jurisprudência firme, estável e confiável.
decisão desde que acrescente fundamentos novos,
agregando valor à decisão que irá rejeitar o recurso.

141
Enfim, ainda não trago soluções, pois não tivemos
nem tempo de ver a jurisprudência maturar frente
ao NCPC. Ao menos, tivemos noção da dimensão
da nova ideologia desse Novo Código.

Agradeço, mais uma vez, pelo convite, ao Ministério


Público de Minas Gerais.

142
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: MINISTÉRIO Germano Arlé; o Procurador-Federal Juliano
PÚBLICO NA EFETIVAÇÃO DAS Ribeiro Santos Veloso; o Conselheiro substituto
POLÍTICAS PÚBLICAS: VISÃO JURÍDICA do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais,
DO PLANEJAMENTO E DO PROCESSO Licurgo Joseph Mourão de Oliveira.
ADMINISTRATIVO DE POLÍTICA PÚBLICA,
PROFERIDA POR JULIANO RIBEIRO SANTOS PROMOTORA DE JUSTIÇA DANIELLE DE
VELOSO, PARTE DO “PROJETO SEGUNDA- GUIMARÃES GERMANO ARLÉ: Excelentíssimo
FEIRA ÀS 18H” REALIZADA EM 5 DE Senhor Procurador-Geral, boa noite. Saúdo também
SETEMBRO DE 2016 os demais componentes da Mesa. Inicialmente,
agradeço a todos pela presença e, por mais uma
vez, confiarem na nossa instituição, especialmente
no Ceaf, que é uma escola que objetiva promover
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Dando as boas-
o crescimento institucional. O nosso convidado de
vindas a todos no Projeto Segunda-feira às 18h,
hoje é o Doutor Juliano Ribeiro, Procurador Federal
uma iniciativa que tem por objetivo a discussão
da Advocacia-Geral da União, professor da Escola
de temas jurídicos contemporâneos. Na edição
da AGU, doutorando em Direito Público pela PUC
de hoje, o painel será o “Ministério Público na
Minas, mestre em Direito Público, também pela
Efetivação das Políticas Públicas: Visão Jurídica
PUC Minas, pós-graduado em Direito Processual
do Planejamento e do Processo Administrativo
Civil, pós-graduado em Advocacia Pública com
de Política Pública”. Convidamos para compor a
graduação em Administração Pública pela Fundação
Mesa da honra, o Procurador-Geral de Justiça do
João Pinheiro, local onde obteve a especialização
Ministério Público de Minas Gerais, Carlos André
em Políticas Públicas e Gestão Governamental.
Mariani Bittencourt; a Assessora Especial do
É também graduado em Direito pela UFMG, com
Procurador-Geral de Justiça junto ao Centro de
MBA em Finanças e Banking pela Fundação Dom
Estudos e Aperfeiçoamento Funcional - Ceaf, a
Cabral, Programa Novos Talentos, Santander.
Promotora de Justiça, Danielle de Guimarães

143
A leitura da breve biografia do palestrante para que se cumpram os preceitos fundamentais
demonstra a seriedade com que o Ministério Público e as disposições contidas na nossa Constituição.
lida com o conhecimento. Como está escrito na Bom proveito a todos.
nossa escola, o Professor Paulo Freire, grande
PROCURADOR FEDERAL JULIANO RIBEIRO
educador brasileiro, estava certo ao dizer que
SANTOS VELOSO: Boa noite a todos.
onde quer haja homens e mulheres, há sempre
Cumprimento os presentes, agradeço o convite e
o que ensinar, há sempre o que aprender. Muito
parabenizo o Ministério Público por essa iniciativa
obrigada a todos os senhores por fazerem crescer
tão nobre de discutir assuntos pertinentes que
a nossa instituição.
influenciam a advocacia pública e os operadores
de Direito. O tema proposto, que envolve direito
PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA CARLOS
ao planejamento, decorre da minha dissertação de
ANDRÉ MARIANI BITTENCOURT: Boa noite a
mestrado. Nela, gostaria de ter tratado mais sobre
todos. Cumprimento todos os membros da Mesa.
a questão da importância de o Ministério Público
Temos recebido, de fato, palestras de alta qualidade
influenciar no planejamento das políticas públicas
e que vêm transformando as segundas-feiras em e na execução delas. O Ministério Público não vai
dias efetivamente proveitosos e produtivos. Pelo assumir a política pública como órgão de controle,
preparo do palestrante e pelo grau de alcance mas, juntamente com os outros órgãos, tem papel
para discorrer sobre esse interessantíssimo painel, fundamental em direcionar e manter a política,
é certo que ele será de muita valia para nós. O principalmente em períodos de eleições.
Ministério Público efetivamente tem se preocupado
com o planejamento de suas ações, em razão A capacidade de planejamento no Brasil é muito
da realidade orçamentária vivida atualmente e pequena. O mais importante é que o planejamento
da própria aplicação da política pública nessa exerce a função fundamental de alinhar os
questão. Buscamos, assim, influir positivamente órgãos e de focar na atividade da política pública.

144
Tanto a sociedade, como o Ministério Público, o Entretanto, esse não é o único motivo da ineficiência
Judiciário, o Executivo, cada um na sua esfera de das políticas públicas da gestão do serviço público,
competência, são responsáveis pela efetividade mas, se não há planejamento, já se está partindo
dos direitos fundamentais. Se a saúde e a educação do pressuposto equivocado. Esse raciocínio é
são ruins, é porque ainda não se compreendeu a baseado não em experiência de gestão, mas no
importância do planejamento e da execução desse que está escrito na Constituição e nas leis.
planejamento por cada um de nós, apesar da
grande capilaridade que o planejamento tem no Infelizmente, a doutrina até então ignorou a
ordenamento jurídico. Desse modo, a compensação existência do planejamento na Constituição. Há
jurídica do planejamento facilita a consensualidade docentes que dizem que planejamento não é
e a geração de consenso, direciona os esforços
instituto jurídico, o que, na verdade, é uma falácia,
de todos os órgãos na geração de resultados,
pois cerca de 16% do texto constitucional trata de
que são fundamentais para a sociedade. Além
planejamento. Toda legislação de política pública
disso, também gera accountability, traduzida
trata de planejamento, assim como há decisões
como responsabilização pela forma de prestação
judiciais que tratam de planejamento. Então,
de contas, conceito de extrema importância na
ignorar o dever de planejamento e o direito ao
administração pública em nível mundial.
planejamento do cidadão de exigir uma política
Propõe-se o desafio de se ligar a televisão e não pública planejada e eficiente, é, no mínimo, não
assistir a uma notícia sobre falta de planejamento querer ver a realidade como ela é.
ou planejamento inadequado nos jornais. O Brasil
Como o enfoque que é feito nessa palestra é
padece de um problema enorme de gestão, que
essencialmente prático, com aplicabilidade prática
decorre também da falta de compreensão do
para os operadores de Direito, os promotores de
aspecto jurídico de planejamento. A consequência
Justiça podem, em todas as comarcas do Brasil,
lógica da falta de planejamento é a ineficiência.

145
com base no conhecimento do planejamento, planejamento do Ministério Público demonstra
exigir que os prefeitos planejem e executem na claramente a percepção da judicialização da saúde
esfera das políticas públicas. em função da falta do planejamento obrigatório
das políticas públicas. Além disso, as medidas
Há uma decisão da Justiça Federal de Tocantins judiciais não dão soluções para as causas,
em uma ação civil pública proposta pelo Ministério porque falta a compreensão do aspecto da micro
Público Estadual, pela Defensoria Pública, pelo e da macrojustiça, da efetivação dos direitos
Ministério Público Federal, em que esses autores fundamentais com base no planejamento. Há
exigiram que o Estado de Tocantins realizasse um necessidade de propor ações judiciais estruturantes
plano de saúde em sessenta dias. No Tocantins, e refletidas. A partir daí, vai haver a indução da
nem plano de saúde existia. A situação lá está tão atuação coletiva, um planejamento regional e a
caótica que foi necessária uma medida judicial organização das redes de atenção à saúde. Enfim,
para elaborar um plano de saúde. A notícia de trata-se de uma questão prática e fundamental,
fevereiro, quando foi dada essa decisão liminar que pode ajudar muito na efetivação das políticas
e quando, recentemente, houve uma audiência públicas, na atuação do Ministério Público e de
pública para discussão desse plano. Então, é de operadores do Direito.
uma aplicabilidade prática muito grande a noção
do direito ao planejamento. Tanto é verdade Para reforçar esse argumento, cita-se a experiência
que, ao consultar o planejamento estratégico da Alemanha. O Professor Hainer Horn tem um livro
do Ministério Público de Minas Gerais, que está de História do Direito, que trata da importância do
disponível no site, um dos pontos que serve de planejamento no desenvolvimento da Alemanha
exemplo para essa apresentação é o projeto no pós-guerra. A Alemanha travou uma discussão
relativo à rede de cooperação entre o sistema de de quinze anos sobre a judicialização da questão
saúde e a Justiça. O texto que está descrito no do planejamento, discutindo a questão do

146
planejamento urbano em torno da década de considerando as nossas peculiaridades e que o
1950, logo após a Segunda Guerra Mundial nosso ordenamento foi construído de outra forma.
com a Constituição de Weimar. Ele descreve Então, diante da experiência exitosa da Alemanha
que foi fundamental para o desenvolvimento da e da Espanha, deve-se filtrar o que é bom, o que
Alemanha esse tempo de judicialização. Lá, houve é ruim e trazer para a nossa experiência a fim de
a construção da experiência jurídica em torno aproveitar a questão do planejamento na efetivação
do planejamento, o reconhecimento da noção de
das políticas públicas. Sem dúvida, o Ministério
juridicidade do planejamento e o início da aplicação
Público tem um papel fundamental nesse sentido.
da realidade vivenciada por esse povo, o que
ajudou a transformar a Alemanha em uma potência Em síntese, cerca de 16% dos artigos da
a partir da Segunda Guerra Mundial. Na Espanha,
Constituição Federal dizem respeito a plano,
ocorreu o mesmo. Os autores da Espanha, como o
projeto e programa. É o instituto com a maior
Professor José Vera, tratam da acefalia da aplicação
capilaridade no texto constitucional, salvo melhor
do direito público antes da compreensão jurídica
juízo. Praticamente toda a legislação federal
do planejamento. A partir do momento em que
que trata de direitos fundamentais refere-se
se compreendeu o planejamento como instituto
ao planejamento e ao processo administrativo
jurídico, a interpretação que se passou a dar aos
institutos de direito público foi outra, focando-se de política pública. O planejamento é objeto
muito mais na questão do resultado, na efetivação de várias decisões judiciais. Ele cria, modifica
do direito público e parou de se entender o direito e extingue direitos, no âmbito administrativo
como fim em si mesmo. ou judicial. Fica evidente então que o direito ao
planejamento, que envolve o direito em si, como
A experiência internacional é muito rica e pode também a elaboração e a execução do plano,
ser aproveitada. No entanto, é preciso que o está previsto no ordenamento jurídico e inspira o
nosso país construa a própria experiência jurídica, processo administrativo de política pública.

147
Pergunta-se por que não utilizar o direito ao A Comissão Econômica para a América Latina -
planejamento e ao processo administrativo de Cepal prega, por exemplo, que as titularidades
política pública para efetivar os direitos fundamentais dos direitos devem guiar as políticas públicas. O
no âmbito administrativo e, no caso, se necessário, desenvolvimento deve partir da compreensão
no âmbito judicial. Falta sensibilidade do operador do marco normativo dos direitos civis, políticos,
de direito de compreender a aplicabilidade do econômicos, sociais e culturais, que devem
planejamento e do processo administrativo de política estar presentes no ordenamento jurídico e
pública que permite a interlocução com as áreas de em acordos nacionais e internacionais. Há
gestão e de ciência política. Há um consenso. um pacto na legislação, só que ele é ignorado
pelos doutrinadores. A doutrina tradicional de
A ONU afirma que as políticas públicas, que são Direito Administrativo e de Direito Constitucional
efetivas e eficazes, adotam os poderes, dotam simplesmente ignoram a realidade do planejamento
os setores excluídos e pobres de poder por meio e do processo administrativo de política pública.
da atribuição de direitos pelo Executivo ou pelo A tradição brasileira é simplesmente tratar do
Judiciário. Para uma política pública ser eficiente e processo contencioso e ignorar a realidade de
eficaz, é necessário o empoderamento do cidadão e efetivação de Direito Público.
que ele seja titular de um direito. Além disso, esse
direito deve ser exigível, porque, por mais nobre É necessário que haja mecanismos jurídicos de
que seja o membro titular do Poder Executivo, ele política pública para que as pessoas possam
exigir a titularidade de seus direitos, muito do que
não vai conseguir atender todas as demandas. De
vem acontecendo na nossa experiência jurídica
certa forma, o processo de empoderamento da
atual. Se há um consenso na questão do direito
sociedade é fundamental na execução da política
como a via superadora, há um grande dissenso
pública. Segundo a ONU, isso é um consenso.

148
na questão do conteúdo e quais direitos devem de saúde. Resumindo, o direito ao planejamento
ser garantidos. Um dos grandes problemas, por é o direito à elaboração do plano, bem como
exemplo, da execução da política pública de a garantia de sua execução. No caso de Minas
saúde é o conceito do direito à saúde integral, Gerais, como já existe planejamento, como o
que está previsto na Constituição. PMDI, PPAG, LDO, LOA e outros instrumentos de
gestão, a política de fornecimento de remédio já
Indaga-se quanto ao que seja integralidade e se melhorou muito com a questão da judicialização.
chega à conclusão de que a quantidade de dinheiro Não seria o caso, por exemplo, de elaboração,
necessária para obter um tratamento de saúde mas sim de garantia de execução na geração de
integral. Nessa crise, por exemplo, foi noticiado que resultados, algo que deve ser debatido e utilizado
34% dos clientes dos planos de saúde passaram na questão do planejamento.
para o SUS. E se o Brasil voltar a crescer? O direito
à saúde é um direito, mas não se sabe ao certo O planejamento é o primeiro passo da política
qual é o conteúdo desse direito. Nesse aspecto, o pública e da ação humana. Citam-se exemplos
planejamento traz contribuições. de demonstração do conceito de política pública.
No artigo 6º do Decreto-Lei n. 267, que trata
Indaga-se quais são os objetivos e metas a serem da organização da Administração Federal,
alcançadas para que esse objetivo constitucional identificam-se os termos: “planejamento,
seja cumprido. A compreensão do planejamento coordenação, descentralização, delegação de
facilita essa discussão. O empoderamento só competência e controle. A Lei n. 8.202 que trata
garante a efetividade da política pública por meio do Custeio da Seguridade Social, usa os termos
dessa possibilidade de exigibilidade. Espera-se “planejar, executar, acompanhar e avaliar”. A Lei
que, algum dia, as ações judiciais cessem. Até que n. 8.080, que trata do SUS, no artigo 18, por
esses direitos estejam totalmente garantidos, a sua vez, aponta os termos: “planejar, organizar,
judicialização é necessária. A maior prova de que
controlar e avaliar”.
elas são necessárias é a melhoria da política pública

149
Todos esses processos mudam de nome, mas, no organizar o comportamento, permitindo alcançar
final das contas, têm o mesmo significado, como alguns fins que de outra maneira não seria possível.
planejamento e execução, bem como controle O pressuposto é que os planos delimitam a ação
de avaliação, que descrevem da melhor forma dos agentes em determinadas condições e, por
esses processos administrativos e sintetiza a isso, podem ser considerados como normas. Uma
ideia da política pública como um todo. Fica claro, norma é um plano, desde que seja criada por força
por exemplo, o papel dos órgãos de controle na de um processo criador de normas e que predispõe
efetivação da política pública e a exigibilidade o sujeito a objetos da norma.
do planejamento. Como órgãos de controle, o
Judiciário, o Ministério Público, o Tribunal de Contas O plano é um tipo especial de norma que se propõe

devem atuar no sentido de incentivar, induzir e a resolver o que deve ser feito. Ele analisa o fato de

fazer com que o Executivo alcancem resultados ao que os seres humanos agem de forma proposital,

longo do tempo. elaborando e executando planos. É muito natural


interpretar o ordenamento dessa forma. O
Quanto ao planejamento, um professor de Yale raciocínio de planejamento é feito a todo instante.
chamado Shapiro, no livro Legality, indaga acerca A percepção do ordenamento jurídico como plano
do que seja o Direito. Além disso, ele propõe que reforça a necessidade de compreensão quanto ao
seja possível visualizá-lo com base em um plano. planejamento na perspectiva jurídica.
As normas jurídicas podem ser feitas da mesma
forma que a aplicação de um plano em certas Atividades legais não são só um meio de atividade

condições. Todo plano é uma norma, mas nem de planejamento, mas um planejamento social.

toda norma é um plano. Os planos serviriam não só A preocupação deve ser quanto à ocorrência do

para organizar o pensamento, mas também para planejamento e quanto ao modo como ele é realizado.

150
Há diversos estudos na área de Ciência Política planos legais devem ser claros, consistentes,
que tratam da importância das regras de prospectivos, contentáveis e estáveis. Por meio
formulação de planos e de eleição. O modo de dos planos, os membros da sociedade devem ser
realização do planejamento social é fundamental capazes de prever a ação dos agentes oficiais e
na efetivação dos direitos. planejar sua vida efetivamente. Os planos devem
proteger os indivíduos e devem gerar economia de
As vantagens de se entender a lei por meio dos
energia cognitiva.
planos vão no sentido de que se deve reduzir
os custos de deliberação e de negociação, pois O planejamento, como descrito na Constituição
eles compensam em capacidade cognitiva e Federal, pode ser definido como método jurídico
assimetria informacionais. Ademais, permitem utilizado no âmbito nacional, regional, estadual,
que os membros da comunidade alcancem os metropolitano, municipal e setorial, por meio
objetivos e realizem os valores que estariam fora do qual são alocados os recursos financeiros,
de seu alcance. materiais, humanos, tecnológicos e operacionais.
Estabelecem-se diretrizes, objetivos e metas, no
O planejamento é um processo cumulativo, em
curto, médio e longo prazo, com vistas a alcançar
que a solução aumenta à medida que são criados
os fins constitucionais legais de forma concreta
subplanos. Os planos criados devem distribuir
e efetiva, por meio de valores democráticos,
direitos e responsabilidade de modo que o
permitindo a participação da sociedade na sua
exercício dos poderes atribuídos e a observância
elaboração, concepção, controle e avaliação como
dos deveres alcancem os objetivos selecionados
condição de validade e eficácia. O planejamento
e os valores designados. O planejamento é social
só pode ser alterado se não atendida a condição
por natureza, já que, em regra, regulamenta
rebus sic stantibus, podendo ser exigido quando
as atividades relativas às políticas públicas. Os
permanecem inalteradas todas as outras condições.

151
No que se refere à questão dos objetivos e das O artigo 5º enuncia “a execução do plano nacional
metas, a Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro, de educação (o planejamento e o cumprimento),
em recente artigo no Consultor Jurídico, defendeu a execução de suas metas serão objeto de
que a Constituição Federal seria um conjunto monitoramento contínuo (controle) e de avaliações
de metas. Entretanto, o pensamento dela nesse periódicas (avaliação) realizado pelas seguintes
sentido é questionável e merece ser explicado de instâncias”. Quase toda legislação federal de
outra forma. Os objetivos gerais são o ponto aonde política pública trata disso.
se quer chegar; as metas, isto é, os objetivos
O artigo 2º do Plano Nacional de Educação trata
específicos, devem ser inteligentes, claros,
das diretrizes, entendidas como os objetivos.
mensuráveis, específicos e limitados no tempo.
O plano nacional de educação quer erradicar o
Se não envolvem essas características, não são analfabetismo, universalizar o atendimento escolar,
metas. Assim, não se pode dizer que o conjunto superar as desigualdades educacionais, melhorar
de normas que está na Constituição são metas ou a qualidade de educação. As metas é que devem
objetivos. A legislação trata das metas. ser quantificáveis. Universalizar a pré-escola para
criança chegando a 50% até o final da vigência do
O Plano Nacional de Educação, a Lei n. Plano Nacional de Educação.
13.005/2014, é um excelente exemplo de como a
nossa experiência jurídica está amadurecendo em Em relação ao direito ao planejamento, destacam-

termos de planejamento. Tal plano trata dos três se onze características relevantes. O planejamento

relevantíssimos aspectos para o entendimento da é algo complexo e de difícil implementação. Para

questão do direito ao planejamento: o processo que ele seja implementado, é preciso desdobrá-

administrativo, os objetivos e as metas. lo em vários níveis de planejamento estratégico,


tático operacional e territorial. Não é algo simples,

152
mas isso também não pode significar um entrave 3º da Lei n. 8080, que trata do Sistema Único de
para que ele não seja realizado. Ele exige Saúde - SUS. Segundo esse artigo, “os níveis de
perseverança, foco, paciência. O conhecimento saúde expressam a organização social e econômica
relativo à implantação desse planejamento do país tendo a saúde como determinante e

estratégico não é afeito aos cursos jurídicos, mas condicionante, entre outros, a alimentação, a

está disponível no mercado. A perseverança é moradia, o saneamento básico, o meio ambiente,


o trabalho, a renda, a educação, a atividade física,
essencial na compreensão da necessidade de se
o transporte, o lazer e o acesso aos bens de serviço
respeitar o direito ao planejamento.
essenciais”. É muito mais fácil a realização de
O planejamento deve ser orientado finalisticamente, encanamentos em ruas do que a criação de postos
com objetivos específicos, com metas mensuráveis, de saúde e a contratação de médicos. Da mesma
atingíveis, alcançáveis, deve conter as finalidades forma, o investimento em educação diminui a
de interesse público e os resultados. Caso contrário, criminalidade, fazendo com que o investimento em
torna-se letra morta. O planejamento é seletivo e segurança pública também diminua.
progressivo, pois seleciona as políticas públicas,
ao mesmo tempo em que possibilita a visualização O planejamento deve ser flexível e afastar as
por meio de cenários a sua consecução ao longo estratégias e a falta de escolhas. Ele vincula a
do tempo. Embora constitua um conceito próximo Administração Pública, deve ter uma proteção
ao de reserva do possível, não pode significar uma mínima de segurança jurídica e um grau adequado
justificativa para a sua ineficácia. de discricionariedade decisória. O planejamento
estratégico de longo prazo tem flexibilidade
O planejamento é conexo com outras políticas
maior, ao passo que o planejamento operacional
públicas. Um bom exemplo de conectividade entre
de curto prazo tem flexibilidade mínima. A
a política de saúde e outras políticas é o artigo
Constituição alemã, por exemplo, prevê a

153
flexibilidade orçamentária, estabelecendo um O planejamento também considera a questão da
limite de 1,5% para efetivar a flexibilidade de temporalidade. Ele tem a perspectiva de curto,
planejamento financeiro. médio e longo prazo. Uma das questões que
são discutidas em relação à temporalidade é o
O planejamento tem que ser criativo. A capacidade comprometimento dos recursos atuais para as
inventiva dos gestores tem que arranjar soluções gerações futuras. O Professor de Direito Econômico,
legais para efetivar o planejamento. Essa é uma Washington Albino, diz que é preciso tratar do foco
característica essencial à gestão pública. do problema. Se o foco é tratar do problema, e
não da questão de adequação a certo mandato, é
O planejamento é multidimensional, vem desde a
preciso legitimar o comprometimento para gerações
questão estratégica, passa pelas questões táticas
futuras. a questão da temporalidade está muito
e vai até as questões operacionais, variando em
termos de tempo e abrangência. O edital de licitação presente na discussão da reforma previdenciária.

é um grande exemplo do planejamento operacional. O planejamento deve ser gerador de segurança


A contribuição da multidimensionalidade é jurídica e deve alinhar as expectativas da sociedade
justamente a necessidade de se alinharem todos em torno da concretização paulatina dos direitos
esses aspectos. As metas devem ser desdobradas fundamentais, deve impedir favoritismo de última
desde o plano estratégico, passando pelo plano hora e opções políticas eleitoreiras. O planejamento
estático até o plano operacional, a fim de se
tem que ser democrático e tem que permitir a
permitir a efetivação dos direitos fundamentais.
participação popular e dos atores envolvidos.

O planejamento também tem um aspecto territorial.


Há alguns riscos nessas situações. A doutrina
Na Constituição é previsto o planejamento no âmbito
nacional, regional, estadual, metropolitano, municipal questiona acerca da questão da separação dos

e setorial, que devem estar todos alinhados. poderes. Entretanto, essa é uma falácia. A

154
discussão em torno da separação de poderes, na indiretos serão a melhora no planejamento
verdade, demonstra a omissão daquele em relação orçamentário do Estado e dos Municípios, a
às efetividades das políticas públicas, pois todos diminuição do impacto econômico, a redução dos
são responsáveis por ela. atendimentos individuais pelo MP.

Há questões de abuso na judicialização da política Há um livro que chama Sonho Grande, do Lemann,
pública ou de medidas feitas pelo Ministério Público. que é o empresário mais rico do Brasil. Segundo
A indústria de medicamentos, por exemplo, paga o autor, a pessoa é do tamanho do sonho que
advogados para mitigarem e pedirem remédios. tem. A quantidade dedicada a sonhar pequeno é
a mesma daquela de sonhar grande. O Professor
O desafio é imenso, mas não impossível. É Shapiro afirma que não há maneira correta de
necessário o desdobramento das metas. O primeiro se utilizar a lei, mas ela continua sendo a nossa
passo é ter consciência e estabelecer estratégias esperança para aprimoramento da sociedade e
para a implementação. O problema é a falta do para a implementação dos direitos fundamentais.
planejamento obrigatório da saúde, considerando
a elaboração e a execução. O objetivo é tornar O Ministério Público é um agente de extrema
a política pública de saúde integral, solidária, importância na implementação desses
operacional, eficiente e eficaz. Quais seriam as direitos, por meio de ações judiciais, de ação
metas? Ações judiciais estruturantes refletidas administrativa estruturante, que pode exigir a
capazes de dar solução aos problemas da saúde, elaboração de plano, bem como a execução, o
a iniciativa de indução para atuação coletiva na direito ao planejamento no contexto do processo
elaboração e na implementação do planejamento e administrativo de política pública.
execução, no controle e na avaliação. Os benefícios

155
Ele não é o responsável pelo planejamento, mas que era exatamente de planejar a atuação da
pode induzi-lo, dando maior efetividade aos direitos Administração Pública. Outro aspecto que merece
fundamentais. Muito obrigada. atenção é o absoluto desconhecimento, não só por
parte do gestor público, localizado muitas vezes
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Boa noite. em municípios pequenos e mal aquinhoados, mas
Doutor Juliano. Inicialmente, gostaria de também de órgãos de controle. A mim me chamou
parabenizá-lo pelas pesquisas realizadas nesse muito a atenção quando, em um curso como esse,
ramo tão descuidado do Direito, que é o direito em uma palestra para operadores do Direito,
ao planejamento. Sou entusiasta desse tema, perguntei o que seria, na visão deles, uma dotação
mas gostaria de ouvir uma pouco mais sobre orçamentária. O conceito que está na lei sobre
a questão do planejamento instituído tal como dotação orçamentária é diferente do real. Não
previsto Constituição daqui a 30 anos. Plano raro, os prefeitos, governadores e até o Presidente
Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei da República, descumprem reiteradamente as leis
Orçamentária Anual. O tema do Direito Financeiro, orçamentárias. Não se vê possibilidade de mudança
do planejamento especificamente, está em nesse sentido se não mudar também a maneira
destaque no Brasil, nos últimos seis meses, em de encarar o orçamento com base no orçamento-
função de afastamento traumático da presidente programa. Tenho estudado bastante o orçamento
da República por causa do desrespeito ao “base zero”, que é um orçamento que funciona
planejamento em última análise. O fato concreto muito bem nos países mais desenvolvidos, para
é que a estrutura do orçamento-programa como que se possa ter realmente um novo paradigma.
pensado pelo Constituinte, em relação ao PPA,
LDO e LOA, não foi eficaz. É perceptível claramente SR. JULIANO RIBEIRO SANTOS VELOSO:
a ineficácia das leis orçamentárias anuais, do Agradeço pela pergunta. Desde a graduação,
PPA e da LDO para os fins a que se propuseram, escuto que o orçamento é uma peça de ficção.

156
A minha proposta é justamente esquecer um Daniele. Foi dito que o dever do planejamento da
pouco o Direito Financeiro. A gente começa o Administração Pública, obviamente é encontrado na
planejamento material sem dizer o quanto será Constituição. Partindo do dever do planejamento,
gasto. As discussões são muito tecnicistas e há um direito fundamental ao planejamento?
repetitivas. Para se falar de um planejamento Como é possível encarar esse direito fundamental
material, de um direito ao planejamento, da ao planejamento? Além disso, até que ponto essa
efetivação de política pública, é preciso partir dos falta de planejamento faz com que o Judiciário seja
objetivos que estão na Constituição. Em quanto cada vez mais ativista? Obrigado.
tempo será zerado o déficit de leitos? Em quanto
SR. JULIANO RIBEIRO SANTOS VELOSO:
tempo será zerado o problema da educação?
Obrigada pela pergunta. O direito à saúde é um
Talvez o orçamento base zero seja a solução. O
direito fundamental, mas para que ele seja exercido
planejamento não é apenas orçamentário, mas
de forma igual, respeitando o princípio da igualdade,
financeiro, material e de tecnologia. É importante
é preciso que haja antes o direito ao planejamento
analisar a questão do ponto aonde se quer chegar
da saúde. Nesse sentido, com base em todas
em termos materiais, de objetivos, de metas do
as características dos direitos fundamentais, é
planejamento financeiro. A questão do orçamento
possível demonstrar que o direito ao planejamento
“base zero” pode ser a solução. é um direito fundamental, pois, sem ele, encontra-
se exatamente o que está escrito no planejamento
SR. RODRIGO RIBEIRO: Boa noite a todos. Meu
do Ministério Público. As ações judiciais manuseiam
nome é Rodrigo Ribeiro, sou Diretor da Escola
o dinheiro público e desvirtuam o orçamento para
da Advocacia-Geral da União. Em primeiro lugar,
um grupo de pessoas que têm a capacidade de
gostaria de agradecer e de parabenizar o Centro de obter o que pretende na via judicial. Há uma
Estudos do Ministério Público em nome da Doutora

157
distorção. Então, você tem que compreender o a necessidade de planejamento e a garantia
planejamento como direito fundamental para dar desse direito. Aqueles que negam às pessoas a
esse aspecto coletivo. Nesse sentido, não tem possibilidade de elas utilizarem administrativamente
como se negar essa fundamentalidade do direito o Poder Judiciário para fazer valer seus direitos à
de planejamento. Trazendo à lume novamente o saúde estão totalmente contrários à realidade.

diagnóstico do planejamento do Ministério Público Como procuradores federais, já presenciei muitos


casos difíceis relativos à aposentadoria. Vi o caso
no que tange à questão do ativismo judicial, em
de uma pessoa que laborou a vida inteira na
função desse desconhecimento em termos de
roça, mas que, por não ter um documento, não
planejamento, são geradas dezenas de decisões
conseguiu administrativamente a aposentadoria,
judiciais que não resolvem o problema.
mas apenas no Judiciário. Esse é um dos maiores
problemas na questão da política previdenciária
É o que está escrito no relatório de planejamento
brasileira. É fundamental que se garanta tal direito
do Ministério Público de Minas Gerais. Não se
de acesso ao Judiciário a essas pessoas e, por
pode negar a importância da exigibilidade quanto
meio de testemunhas, possa provar o direito à
ao ativismo judicial, já que ele faz parte do
aposentadoria, pois, senão, nunca conseguiria.
processo de conhecimento, em que pessoas de
Distorções acontecem, como sempre vão acontecer,
diferentes lugares estabelecem um diálogo sobre
mas é fundamental garantir a exigibilidade. O
planejamento, para efetivar, e, com isso, chegar à
ativismo pode ser bom ou ruim. Se essa questão
meta de zerar as ações judiciais no futuro. Pode até
for tratada de maneira inteligente, como está
ser um sonho, mas isso seria possível se tivesse
sendo tratada em Minas Gerais, vai haver o
uma estratégia de implementação do planejamento
aprimoramento do ativismo, com a tendência a
estratégico do direito ao planejamento da saúde.
zerar as ações. O importante é que a sociedade
A Alemanha demorou quinze anos, o Brasil pode
tenha o direito à saúde respeitado, ainda que tenha
demorar o mesmo tempo ou mais, o que faz parte
do processo. Entretanto, não se pode ignorar de acessar o Judiciário.

158
SRA. DANIELA CAMPOS: Juliano, boa noite. Meu SR. JULIANO RIBEIRO SANTOS VELOSO:
nome é Daniela Campos, sou Promotora de Justiça, Há várias outras decisões, mas todas não estão
atualmente lotada na Coordenaria Regional das na perspectiva do direito ao planejamento. A
Promotorias de Justiça de Defesa da Educação e compreensão jurídica do planejamento ainda é
dos Direitos da Criança e do Adolescente do Vale do muito incipiente. Os manuais tradicionais negam
Jequitinhonha e Mucuri. Como o senhor percebeu a existência do planejamento, o que configura
no nosso planejamento estratégico, temos mudado
um desserviço ao país. Na Alemanha, ele já foi
essa concepção e buscado trabalhar mais do ponto
reconhecido em livros de História do Direito no
de vista difuso. A primeira vez que ouvi dizer sobre
século passado. Na Espanha, os autores falam o
a possibilidade do planejamento como um direito
mesmo, mas no Brasil planejamento não é direito.
ocorreu em um evento realizado aqui, o que mostra
Dezesseis por cento do texto constitucional fala de
que essa perspectiva desvia muito da nossa lida
planejamento. Então, pergunto qual fonte jurídica
diária de operadores do Direito e de promotores
de Justiça. O senhor citou uma decisão muito que não trata de planejamento. Deve-se mostrar

inovadora de Tocantins, mas há outras decisões para as pessoas com quem se atua que não é tão
judiciais em que o Judiciário brasileiro, tenha, complexo, que se tem é que buscar justamente
porventura, enfrentado tal questão? Hoje, uma das a efetivação dos direitos fundamentais. A decisão
grandes dificuldades enfrentadas no Judiciário é de Tocantins é a mais evidente em termos da
que, costumeiramente, quando se ajuízam ações compreensão jurídica de planejamento. Tornou-se
tendo como objeto o medicamento, ganham-se tão absurda a situação de ausência de prestação
todas as tutelas antecipadas e todas as sentenças. de saúde nesse estado que houve essa exigência.
Entretanto, quando se ajuíza qualquer demanda no
sentido estrutural, difuso e coletivo, a tendência é de SRA. LUDMILA: Sou Promotora de Justiça,
que a decisão judicial seja no sentido de que assim atuante na área do patrimônio público. Compartilho
vai ocorrer invasão na esfera do Poder Executivo. muito da sua visão em relação à importância da

159
interlocução entre o Direito e a Gestão pública. avaliação, você está ali gerando um aprendizado,
A nossa atuação se qualifica bastante com esse um comprometimento, uma consensualidade
ponto de vista. A frase em que você disse que “a entre os atores envolvidos. O planejamento só é
compreensão jurídica do planejamento facilita a válido se for democrático. É assim que o direito
consensualidade” chamou muito a minha atenção. ao planejamento vai se tornar existente, e essa
Nós estamos muito preocupados em enfatizar consensualidade vai surgir naturalmente na medida
mais a nossa atuação nos meios autocompositivos, em que se compreende que é um direito, e não uma
que é realmente a maneira mais efetiva. A minha faculdade. Quando todos começam a exigir o direito
pergunta é: como fazer do planejamento um aliado à saúde, vai sendo gerada a consensualidade. Isso
nessa atuação consensual? reflete o que se tem vivido hoje na questão dos
remédios, por exemplo. As distorções referentes
SR. JULIANO RIBEIRO SANTOS VELOSO: à indústria de remédio vêm diminuindo. Por quê?
Agradeço também pela pergunta. O que é o Eles aprenderam: “Não, tem que estar lá na lista
direito do planejamento? O direito à elaboração dos medicamentos do SUS”. Aqueles lá a gente
do plano e à execução. O que é a elaboração do dá porque ele já está no SUS. E aí, eles vão
plano? É um processo. O plano torna-se concreto compreendendo. Então, você percebe o círculo? A
com a audiência pública. Nesse momento, vai questão da consensualidade se formando? A questão
haver consensualidade, pois será aberta para o da audiência pública, nesses espaços democráticos
cidadão interessado e para as pessoas que podem de diálogo, esse momento no processo judicial
influenciar de alguma forma naquela política como está existindo lá em Tocantins agora, em que
pública a oportunidade de manifestação, o que os autores envolvidos estão discutindo a política
gera consenso. O planejamento é um processo pública de saúde? Está se formando um consenso.
de aprendizado. Quando eu falei ali, naquele Não está ali, o Ministério Público não está impondo
círculo, planejamento, execução, controle e nada, o Governo não está impondo nada, ali está

160
havendo uma mediação, está se formando uma
consensualidade. Então, ficou clara a questão
da consensualidade que eu quis dizer? E o Plano
Nacional de Educação eu acho que está sendo uma
experiência bacanérrima, está sendo muito bacana
nesse sentido, você está vendo vários atores
discutindo. Eu acho que na história do Brasil a
gente nunca teve um amadurecimento tão grande,
e a gente não pode deixar esse plano nacional
morrer. Está se formando, o que é que a Coreia do
Sul virou lá em vinte anos em função da educação?
Os promotores têm que ser intransigentes com
certas políticas públicas de educação. É preciso
exigir que as metas de planejamento de educação
sejam cumpridas pelos gestores públicos. O direito
está posto, o planejamento é uma lei. Educação só
vai ser igualitária dessa forma. Assim é que vai se
formando a consensualidade.

MESTRE DE CERIMÔNIAS: Agradecemos a


presença de todos e desejamos uma boa noite.

161
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: MINISTÉRIO Danielle Guimarães Germano Arlé; o Promotor
PÚBLICO NO NOVO PROCESSO CIVIL: DA LEI de Justiça do Ministério Público do Espírito
À CONSTITUIÇÃO, DO LITÍGIO À TUTELA DOS Santos, Hermes Zaneti Junior; a Promotora
DIREITOS, DA TUTELA JURISDICIONAL À
de Justiça Érica de Fátima Matozinhos Ribeiro,
TUTELA ADEQUADA, PROFERIDA POR HERMES
representante do Corregedor-Geral do Ministério
ZANETI JUNIOR, PARTE DO “PROJETO
Público, Procurador de Justiça Paulo Roberto
SEGUNDA-FEIRA ÀS 18H” REALIZADA EM 12
Moreira Cançado; o Defensor Público Alexandre
DE SETEMBRO DE 2016
Tavares, representante da Defensora Pública
Geral, Christiane Procópio Malard.

MESTRE DE CERIMÔNIAS: Senhoras e senhores, PROMOTORA DE JUSTIÇA DANIELLE DE


boa noite. É com grande satisfação que o Centro de GUIMARÃES GERMANO ARLÉ: Boa noite.
Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Nossos companheiros de Mesa, recebam nossa
Público de Minas Gerais - Ceaf dá as boas-vindas saudação especial. O “Projeto Segunda-Feira
a todos no “Projeto Segunda-Feira às 18h”, uma às 18h”, é um projeto que visa justamente ao
iniciativa que tem por objetivo a discussão de aperfeiçoamento contínuo e permanente de todos
temas jurídicos contemporâneos. os membros e servidores do Ministério Público. O
Ceaf acredita que o conhecimento é o maior valor,
Nessa edição, trataremos sobre o “Ministério Público o maior patrimônio que o Ministério Público tem e
no Novo Processo Civil, da Lei à Constituição, no deve ser preservado. Quanto mais conhecimento
Litígio à Tutela dos Direitos, da Tutela Jurisdicional tivermos, quanto mais ousarmos, quanto mais
à Tutela Adequada”. Para a Mesa de honra, questionarmos o saber posto, mais cresceremos,
convidamos: a Assessora do Procurador-Geral o que irá refletir no serviço prestado à sociedade.
de Justiça junto ao Ceaf, a Promotora de Justiça Para falar de um tema muito sensível e muito

162
importante para o Ministério Público, recebemos tratamento adequado em relação a seus conflitos.
o Dr. Hermes Zaneti Junior, que é Promotor de Tal sistema é que garantirá realmente o direito de
Justiça do Ministério Público capixaba, pós-doutor acesso à justiça.
em Direito pela Università degli Studi di Torino,
doutor em Direito pela Universidade Federal do Tenho certeza de que os Ministérios Públicos estão
Rio Grande do Sul, doutor em Direito também cada vez mais empenhados no projeto de construir
pela Università degli Studi Roma Ter, mestre em uma instituição que permita o acesso à justiça.
Direito pela Universidade Federal do Rio Grande
O nosso mestre, Dr. Gregório Assagra, é aquele que
do Sul, professor adjunto dos cursos de graduação
nos ensinou que o Ministério Público é, no fundo,
e mestrado da UFES, a Universidade Federal do
uma instituição de acesso à justiça. Assim sendo,
Espírito Santo, membro do Instituto Brasileiro de
devemos questionar o que estamos fazendo, para
Direito Processual, do Instituto Ibero-americano
que não limitemos esse acesso à justiça ao acesso
de Direito Processual e da Associação Internacional
ao Poder Judiciário. Pelo Ministério Público de
de Direito Processual, bem como da Associação
Minas, receba, assim, a nossa gratidão.
Brasileira dos Membros do Ministério Público do
Meio Ambiente - Abrampa e da Associação Nacional
PROMOTOR DE JUSTIÇA HERMES ZANETI
do Ministério Público do Consumidor - MPCON.
JUNIOR: Boa noite. Agradeço muito ao Ministério
Público de Minas Gerais por essa oportunidade.
O Ministério Público de Minas tem discutido que o
direito de acesso à justiça deixou de ser, na terceira
Com relação ao NCPC e à inserção do Ministério
onda renovatória do movimento de acesso à justiça,
Público na nova lei, é interessante tratar sobre
o direito de acesso tão somente ao Judiciário. Hoje,
a constitucionalização e sobre o processo de
essa instituição almeja que o cidadão, destinatário
recodificação, no quais essa instituição está imersa.
da nossa missão, tenha acesso a um sistema de

163
A recodificação e a constitucionalização caminham É preciso pensar o Ministério Público com base
juntos. Indaga-se o conceito de recodificação e em novas idéias. Para que ele possa atender
qual a razão pela qual o NCPC é chamado de código os deveres constitucionais, deve fazer uso da
da recodificação. Não há mais um código que criatividade e da inovação. As ideias são o bem
configure um sistema fechado. O NCPC estabelece que tem mais valor no mundo atual. O mundo não
um diálogo de fontes, com todas as outras normas é mais do campo dos bens materiais, do campo
do ordenamento, além de ser interpretado pela físico e estrutural, mas do campo das ideias.
Constituição. Ele muda totalmente a lógica de Há um lema de 1968 que diz: “Chega de ação,
como o Direito é pensado. O Código só reflete as queremos promessas”. Hoje, há um pouco mais
mudanças que vêm ocorrendo na Teoria do Direito, de exigência, pois as pessoas querem promessas
ao longo de mais de três décadas. e ação. Assim é preciso conjugar o pensamento e
a ação no Ministério Público.
O CPC de 1973 já nasceu defasado. Alguns
autores afirmavam que ele representava o triunfo Esse novo Ministério Público está inserido no
tardio da Revolução Francesa no Brasil, porque, contexto do Uber, em que a maior empresa de
na verdade, apesar de nunca ter havido um táxi não tem nenhum veículo; no contexto do
sistema de legalidade no país, ele era um código Facebook, em que a maior empresa de publicidade
extremamente legalista. O NCPC/2015 é uma
não faz propaganda; no contexto do Google, em
atualização desses problemas.
que a maior empresa, a maior biblioteca, a maior
fonte de pesquisa não tem sede sólida. Ele deve
Ao se pensar sobre a relação do Ministério Público
com o Novo Código, parte-se da premissa de que ser capaz de enfrentar esses desafios, e não mais

o problema dessa instituição não é de estrutura, já se ocultar diante da suposta legalidade estrita,
que ela está muito bem aparelhada. O problema pois o texto da lei não contém mais a norma, já
está no campo das ideias. que texto e norma são diferentes. Ora, há essa

164
diferença e se a norma é o resultado do trabalho Há normas expressas, que mostram que há
do intérprete, o Ministério Público vai interpretá- um diálogo de fontes entre o CPC e o processo
la para fornecer um resultado. É preciso que a coletivo. Há duas dessas normas, que demonstram
instituição questione para quem está trabalhando isso: o artigo 139, X e o artigo 985, I, que tratam
e qual é o direito que está defendendo, a fim da suspensão dos processos, da aplicação dos
de construir a noção de responsabilidade casos repetitivos aos processos coletivos. Há uma
interpretativa na defesa desses direitos. técnica nova chamada Incidente de Resolução de
Demandas Repetitivas - IRDR, para gestão de
Com o Novo Código de Processo Civil, o Ministério questões repetitivas. Essa técnica é aplicável tanto
Público vai assumir o papel de fiscal do ordenamento
nos processos individuais, quanto nos coletivos.
jurídico civil, que é muito mais relevante do que o de
fiscal da lei. Ele vai figurar como uma instituição de O NCPC revela que há normas incompatíveis com
defesa e de garantia do acesso à justiça, servindo o processo coletivo, como as do artigo 91, § 1º;
também à tutela de direitos fundamentais. Garantir
do artigo 18, parágrafo único, e do artigo 503, §
o acesso à justiça é fazer com que todos os poderes
1º, III, que tratam da substituição processual no
funcionem adequadamente, que a legislação seja
caso do problema probatório em perícias. Quem
adequada à tutela dos direitos e que as soluções
arca com o ônus de pagar a prova nem sempre é
dos conflitos possam se dar fora do Judiciário.
aquele que tem o ônus da prova em si, porque esta

O Ministério Público vai desenhar um planejamento precisa ser produzida. Soma-se, ainda, a questão
estratégico, a nível nacional, em que vai definir quais do controle de constitucionalidade.
são as causas que têm interesse social relevante
a justificar a atuação dessa instituição na área Pergunta-se se a coisa julgada sobre a questão

cível. A criação dessas normas tem por finalidade a prejudicial usurpa a competência do Supremo
construção de uma narrativa para essa instituição. Tribunal Federal e se pode haver coisa julgada

165
sobre a questão prejudicial ou incidental, que trate Como bem expõe McCormick, nesta passagem,
de conteúdo de constitucionalidade. Em princípio, a moral da responsabilidade como membros do
a resposta é não. Ministério Público está ligada a adquirir o exercício
das habilidades que possam fazer com que eles
Vive-se, atualmente, uma situação de interregno, trabalhem a favor de seus clientes. E não que
sem saber exatamente onde vai aportar o barco. cada membro isolado defenda sua ética pessoal
Zygmunt Bauman trata muito bem disso em nos processos. A necessidade de unidade, mais do
“A modernidade líquida”. A sociedade não sabe que de organização dos procedimentos internos, é
bem qual é o projeto atual, mas sabe que o uma necessidade de convergência com a finalidade
projeto anterior está falido. Anseia-se por algo, constitucional para que se tenha ética social, e não
porque se vive na pós-modernidade, na idade da pessoal. Nenhum promotor de justiça é uma ilha.
incerteza. Anseia-se tanto porque o que se tem
já não responde mais às necessidades. É preciso O Ministério Público é uma só instituição,
reconstruir esse projeto. independentemente de onde esteja localizado, se
é especializado ou não, etc, como decidiu o STF
Para que possa começar a entender o processo civil ao dizer que o Procurador-Geral da República é
como instrumento de efetivação de compromissos
quem deve define os conflitos. Trata-se de uma
constitucionais, o Ministério Público deve indagar
instituição de garantia e, segundo Ferrajoli, ela
quem é o cliente dele. A sociedade é o cliente.
deveria ser unitária. Não se pode pensar em um
Indaga-se se é a sociedade da favela ou a do
estado federado de instituições de garantia. A ideia
asfalto. Se o Brasil é o país da pluralidade,
é que as instituições de garantia, caso trabalhem
pergunta-se como o Ministério Público vai tutelar
com tutela do direito e dos direitos, deveriam ter
direitos fundamentais e qual é a concepção dele
quanto a quais direitos fundamentais orientarão uma atuação unitária em todo o território nacional.

a sua atuação. Os projetos do Ministério Público devem ser os mais

166
unitários possíveis, respeitadas as peculiaridades O chamado processo sincrético não existe mais,
de cada região numa atuação conjunta. A noção pois perdeu o sentido. O processo civil do NCPC
de planejamento nacional do Ministério Público não separa mais atividade executiva de cognição.
evidencia que haja uma só instituição e uma só O processo de execução é tipicamente para o
defesa de direitos fundamentais. O Código de processamento de títulos executivos extrajudiciais.

Processo Civil, como código da recodificação, foi


A principal novidade é o modelo de precedentes.
pensado, desde o início, para se articular com os
O que muda na justiça civil é a ideia de acesso à
demais modelos processuais ou microssistemas.
justiça por um sistema multiportas e a ideia de
O Código de Processo Civil é dividido em parte precedentes normativos formalmente vinculantes.
geral e parte especial. Essa diferença não existia no A justiça multiportas é que pode mudar a justiça
Código de 1973. Neste tinha apenas o processo de civil brasileira. Há vários artigos que chamam a
conhecimento no início. Havia três livros clássicos: atenção no Novo Código de Processo Civil, mas há
processo de conhecimento, processo de execução leis, como a Lei de Mediação.
e processo cautelar. O NCPC altera essa estrutura
e inaugura a parte geral, de caráter narrativo, As normas fundamentais são as primeiras doze
que descreve normas fundamentais para todo o normas do Código. A leitura de dezessete artigos
ordenamento jurídico; e uma parte especial, que do NCPC é essencial: os 12 primeiros artigos, que
trata de problemas mais específicos do processo são as normas fundamentais do CPC; o artigo
civil. Ambas as partes dialogam plenamente uma 190, que trata dos negócios processuais; o artigo
com a outra. 489, que trata da fundamentação adequada; o
artigo 926, 927 e 928. Esses artigos constituem
A parte geral engloba seis livros e a parte
as normas fundamentais do CPC, porque eles
especial, três. Na parte especial, há processo
mostram a mudança da justiça brasileira por meio
de conhecimento e cumprimento de sentença.

167
da mudança narrativa proposta pelo NCPC. O NCPC adequada, tempestiva e efetiva. Por exemplo,
não nasceu em 2015, mas muito antes, Ele nasceu de nas normas fundamentais, está previsto o dever
uma doutrina que vinha se desenvolvendo ao longo de solução consensual, no artigo 3º, § 3º. Então,
do tempo, de códigos de terceira geração, como o o NCPC rechaça a jurisdição como solução única.
Código de Processo Civil Francês. Esse código, que Ao estudar a fase instrumentalista do processo,

entrou em vigor em 1976, também trata de normas Cândido Dinamarco põe a jurisdição como polo
metodológico de toda a ciência processual.
fundamentais e foi chamado pelo atual presidente da
Entretanto, isso mudou. O NCPC existe para a
International Association of Procedural Law – IAPL,
tutela dos direitos e para aqueles que necessitam
Loïc Cadiet, de Código Doutrinário.
de tutela. Ele sai da posição de centro e passa a
ser uma forma de ordenar a tutela adequada e
É comum que se ouçam várias críticas ao NCPC,
efetiva dos direitos. Em razão disso, há o princípio
pois ele revela algumas incongruências. Tais
da primazia do julgamento de mérito. O Código de
incongruências sistemáticas deverão ser sanadas
1973 é eminentemente técnico e sistemático. Uma
por meio da interpretação. O NCPC é um código
vez que ele não fosse observado no sistema, a
doutrinário. A doutrina tem que construir a unidade
consequência seria a nulidade do ato. A depender
do CPC. Ele tem uma estrutura e uma unidade,
de como foi culminada a nulidade, ela seria
tem incongruências internas que só podem ser
absoluta. Sendo absoluta, nada poderia superá-la,
superadas pelo trabalho da doutrina. A tarefa da da mesma forma que os pressupostos processuais
doutrina é identificar a finalidade do processo civil e condições da ação eram estabelecidos de forma
e, com base nela, desenhar a aplicação do CPC. A peremptória e, se não cumpridos, geravam a
finalidade do processo civil é a tutela adequada, extinção do processo. O processo praticamente
efetiva e tempestiva dos direitos. Então, algumas “nascia para morrer” e o melhor processualista era
dessas normas fundamentais vão já mostrar aquele que conseguisse o feito de obter o término
claramente esta finalidade do CPC, de tutela do processo sem julgamento de mérito.

168
O princípio da defesa do princípio da primazia objetivos e aferíveis, que demonstram que há,
do julgamento de mérito, que veio do processo de ambas as partes, o compromisso de falar
coletivo, foi introduzido no NCPC, a pedido de a verdade no processo, de colaborar com a
muitos processualistas. A partir de então, o finalidade do processo, que é a solução de mérito
processo “nasce para ter o mérito julgado”. Todas adequada, tempestiva e efetiva. Esse dever pode
as deficiências processuais devem ser superadas. gerar sanções, inversão do ônus de prova e a
Há vários artigos espalhados no NCPC. O artigo necessidade de esclarecer matérias diretamente
488, do NCPC, estabelece expressamente que com o juiz. Esse dever justifica, por exemplo, o
uma deficiência processual não pode evitar o juiz cooperar com as partes. O juiz que exercitava
julgamento de mérito favorável a quem mereça. a jurisdição no Código de 1973, aplicava a vontade
O artigo 932, parágrafo único, procura combater concreta do direito, sem compromisso de entabular
a chamada jurisprudência defensiva. O recurso esclarecimento com as partes, porque, afinal de
chegava ao tribunal e não era conhecido por contas, iura novit cúria (o juiz conhece o direito),
qualquer peculiaridade procedimental. da mihi factum, dabo tibi ius (dá-me os fatos e
dar-te-ei o direito). A lógica era de que o tribunal
O Código visa tutelar o julgamento de mérito, que conhece o direito; de que o juiz é a jurisdição. Não
satisfaz o cliente da justiça, e não o julgamento importa se a questão é controversa entre as partes,
processual. Não há mais aquela visão tecnicista mas sim que o direito legislado seja aplicado. As
do processo. O código foi feito para construir a interpretações que geravam surpresa para as
tutela dos direitos e está focado na boa fé objetiva partes foram totalmente banidas do novo sistema
e na cooperação. Esta, inclusive, é muitas vezes processual. O juiz pode decidir algo que não foi
mal compreendida, vista como se as partes, ao debatido pelas partes, mas deve oportunizar o
litigarem, tivessem que estabelecer relações de contraditório prévio em respeito ao princípio da
amizade. Atos de cooperação são comportamentos vedação da decisão surpresa. Esse princípio não é

169
novo. Os alemães, os franceses e os portugueses oportunizar a produção da prova às partes. Em
o têm em seus ordenamentos. É característica de causas complexas, o juiz deve chamar as partes
um Estado Democrático o processo isonômico. Juiz para uma audiência a fim de fazer o saneamento
e partes, cada qual na sua função, devem cooperar compartilhado, conforme preceitua o artigo 354, §
entre si e dialogar no processo. Há deveres para o 3º. Então, há necessidade de diálogo no processo.
juiz, deveres de contraditório. Embora isso esteja previsto na lei, não vai ser fácil
a implementação disso, porque não se dialoga mais
O contraditório deve ser compreendido como uma nos processos. Cada um faz a sua petição e há
nova espécie de contraditório, que não é só ação e dificuldade de diálogo. Temos que reconstruir essa
reação entre as partes, mas o direito de as partes visão, porque a preocupação não tem sido focada
influenciarem a decisão e o dever de o juiz de na efetividade do processo, mas em garantir a
debater com as partes. Um dos maiores choques do marcha processual. O Ministério Público deve estar
processo brasileiro foi a inversão do ônus da prova. ativo hoje em todos os momentos processuais,
O argumento utilizado por muitos doutrinadores era da petição à baixa do processo. Ele tem exigido o
de que não podia o juiz inverter o ônus da prova como controle dos procedimentos administrativos, mas
regra de atividade no curso do processo, pois isso pergunta-se se o mesmo ocorre com o controle
romperia a sua condição de imparcialidade, como dos procedimentos judiciais. Cada promotor de
se ele estivesse antecipando o seu julgamento. justiça faz um acompanhamento contínuo dos
Então, as partes podiam ser surpreendidas ao final procedimentos judiciais? Como os membros esta
com uma regra de ajuntamento que invertia o ônus atuando como instituição? Como em um grande
da prova. Nesse caso, a parte que desconhecia a escritório de advocacia, em que há diálogo contínuo
necessidade de ter de produzir a prova acabava entre aqueles que atuaram no processo e os que
perdendo o processo. Com o artigo 371 do NCPC, ainda vão atuar, é possível dizer que isso também
ao proceder à distribuição dinâmica, o juiz deve ocorre entre os promotores e os procuradores de

170
Justiça? Se o objetivo é dar efetividade a esse resolver as pendências judiciais. É plenamente
processo dialogado, é necessário que se comece a possível fazer a conciliação com essa empresa,
dialogar para construir a solução para os processos. muito embora ela não seja parte no processo.

Pontuam-se algumas novidades no NCPC/2015. O O artigo 381 é um dos mais fenomenais do NCPC,
artigo 515, § 2º, trata da conciliação nas execuções porque é muito bem escrito. Ele é uma forma de
judiciais. Ainda é válida a regra de que, depois pre-trial (pré-julgamento) no direito brasileiro.
do despacho saneador, não pode haver alteração Esse é um pre-trail trail. É uma ideia que consiste
da causa de pedir. Essa regra, na prática, não em possibilitar a produção antecipada de prova,
existe, porque, se houver conciliação, é possível para saber, primeiro, se haverá litígio. Apesar de
alterar pedido, causa de pedir e partes a qualquer isso ocorrer também no inquérito civil, não há
momento. A estabilidade objetiva e subjetiva da nele o contraditório que tem em processo judicial.
demanda não é sagrada. A tutela dos direitos Então, às vezes, em contraditório, a parte fica
adequada, tempestiva e efetiva é que. Segundo o satisfeita com a prova produzida e faz a conciliação
artigo 515, § 2º, é possível o estabelecimento de ou entende que não há razão para mover a ação. Os
conciliação depois que o TAC está em curso. Isso dois incisos do artigo 381 são muito importantes.
é muito importante na prática, porque, às vezes, O primeiro que diz “a prova pode ser produzida
o TAC é inexequível. A administração pública, em antecipadamente, se ela for passível de viabilizar
alguns casos, quer cumprir o TAC, mas não há a autocomposição” e o segundo, “a prova pode ser
como. O título pode ser renovado no cumprimento produzida antecipadamente se ela for justificar ou
da obrigação, o que é uma ideia muito importante. evitar o ajuizamento da ação”. Em certos casos, a
O NCPC foi muito eficaz nesse ponto, inclusive, prova produzida antecipadamente em contraditório
com o sujeito estranho ao processo. É muito resolve o problema, pois nem chega a ter processo.
comum uma empresa que comprou outra querer Aqueles órgãos que não dispõem de inquérito civil

171
podem fazer uso desse artigo para fortalecer as do ilícito (tutela inibitória e tutela de remoção do
ações civis públicas. A Defensoria Pública, claro, ilícito), não há necessidade de provar o dano, a
deve ter algum tipo de procedimento administrativo, culpa ou o dolo. Essas tutelas são caracterizadas
mas pode produzir antecipadamente a prova. E, como sem dano, sem culpa e sem dolo. Isso não
nesses casos, o Ministério Público vai intervir como adentra no fatiamento cognitivo do processo.

fiscal do ordenamento jurídico, como intervém em Para obter uma tutela inibitória ou uma tutela de
remoção do ilícito, como aquela que vai evitar a
todos os processos coletivos. Um processo coletivo
continuidade de uma atividade poluente, no caso
que vise à antecipação de produção de prova
do meio ambiente, é desnecessário discutir o dano
demanda a intervenção do Ministério Público.
se a atividade não tem licenciamento. Nesse caso,

Há dois artigos muito importantes também: o artigo vai ser tratada a tutela inibitória.

139, IV, e o artigo 497, parágrafo único. O primeiro


Defende-se, há muito tempo, que é possível
visa à atipicidade dos meios de execução e é alvo
optar estrategicamente pelo ajuizamento da ação
de polêmicas. Esse artigo é muito importante para
com todos os pedidos, cumulando-se o pedido
o Ministério Público em razão da espécie de direito inibitório, o pedido de ressarcimento e o pedido
material que ele tutela, que são os deveres. Os de improbidade, ou pela separação das ações,
meios atípicos, sendo mais efetivos, podem se se isso facilitar a cognição no processo. Então, a
mostrar razoáveis. O artigo 497, parágrafo único, tutela inibitória deve ser tratada separadamente
trata da tutela inibitória e da tutela de remoção da tutela ressarcitória, se esta implica prova do
do ilícito, dois frutos da doutrina do Professor Luiz dano, de culpa ou de dolo.
Guilherme Marinoni, e são muito relevantes para a
aplicação do Ministério Público. Esse artigo diz algo É possível tratar essa tutela separadamente, dando
fundamental para a boa atuação institucional nos mais efetividade à tutela inibitória, tornando esse
processos coletivos. Ele prevê que, para tutelas processo mais célere e mais adequado à finalidade

172
de tutela dos direitos do que tratar conjuntamente e, consequentemente, qual seria a sanção por
e trazer para o processo todos os problemas que essa patologia existir? Para mim, o efeito seria a
nós vamos ter que enfrentar para comprovar que nulidade do processo.
houve dano. Gostaria de encerrar minha palestra
PROMOTOR DE JUSTIÇA HERMES ZANETI
com uma mensagem sobre o Ministério Público,
JUNIOR: A pergunta é excelente. Há várias
visto na perspectiva de unidade do Fernando
formas de resposta. A primeira é que se percebe
Pessoa. “Para ser grande, sê inteiro: nada do que
uma mudança cultural em curso. Aprecio muito
é teu exagera ou exclui. Assim, em cada lago, a lua
a literatura e tenho lido romances de escritores
inteira brilha, porque alta vive”. Muito obrigado.
americanos como John Grisham e Scott Turow, que

PROCURADOR DE JUSTIÇA AFONSO: Boa noite. tratam também do Direito. Um romance em especial

Parabéns ao colega pela exposição. Conhecedor da me impressionou muito, pois descrevia um diálogo
entre o juiz, o advogado de uma parte e o cliente. O
matéria, extremamente simpático e conhecedor
advogado afirmou que “o juiz tinha muito interesse
do Ministério Público e dos desafios institucionais
pela conciliação, porque seria uma oportunidade de
enfrentados. Trabalho na área de promotoria de
ele resolver logo o processo para ter mais tempo
conflitos agrários. Tenho discutindo com os colegas
para jogar golfe”. Os juízes ainda não perceberam
a questão da mediação, prevista como norma
que os processos de autocomposição auxiliam-nos
fundamental, que constitui um dever de todos
a, na verdade, atenderem as metas do CNJ. Assim,
aqueles que participam do processo. Pergunto.
há uma mudança cultural em curso, os juízes
Qual seria o efeito da não realização da mediação ainda buscam decidir todas as questões por eles
para a resolução no sentido conciliatório? Por mesmos, mas, quando eles se derem conta de que a
exemplo, se o juiz não conferiu a possibilidade de autocomposição é uma forma de atendimento mais
mediação para as partes. Qual seria essa patologia rápido das finalidades que eles têm como gestores

173
processuais, talvez essa questão ficará invertida. grau. Essa mesma lógica é aplicada em relação à
Pode haver até maior admiração dos juízes pela autocomposição. Se não houve autocomposição no
mediação e pela conciliação, pois eles vão se dar primeiro grau, ela deve ocorrer no segundo. Se o
conta de que ganharam poder, e não o contrário. A entendimento do tribunal é negativo, é caso de se
segunda resposta é que pode haver nulidade, mas permitir a autocomposição. O tribunal deverá remeter
a diferença é que essa nulidade poderá ser sanada, o processo às câmaras de conciliação, que existem
inclusive no recurso de apelação. O artigo 1013, na maioria dos tribunais. Os deveres de fomentar
§ 3º, IV, do NCPC, dispositivo muito interessante atemporalmente a autocomposição no curso do
que trata da possibilidade de sanar eventuais processo são deveres do juiz e do desembargador
nulidades, inclusive de fundamentação, também relator. Essa questão é muito importante, pois
trata da apelação. Segundo ele, se o processo mostra bem o quanto é possível ser resolutivo, por
estiver em condições de imediato julgamento, via da autocomposição. Mauro Capelletti diz que é
ou seja, a causa estiver madura, o tribunal deve preciso buscar a justiça coexistencial, e não aquela
decidir desde logo o mérito quando decretar a justiça que não tutela o direito, pois não atende a
nulidade da sentença por falta de fundamentação. finalidade constitucional do processo.
A tendência natural seria de considerar que, na
ausência de fundamentação, a sentença é írrita PROMOTOR DE JUSTIÇA GREGÓRIO
e nula, nas expressões de Rui Barbosa. Assim, ASSAGRA: Vou fazer um mero questionamento
ela deveria ser anulada por completo. Até no bem reflexivo. Quais são os principais desafios a
campo do processo penal ocorre essa discussão. serem enfrentados pelo Ministério Público com as
Tentar sanar as nulidades sanáveis, por falta de novas orientações do NCPC? A força normativa dos
fundamentação, respeitados os limites do que foi precedentes tem um lado muito positivo, mas, se
discutido no processo, mesmo em fase recursal, não houver cuidado, principalmente na formação
não caçar a decisão e devolver para o primeiro do precedente, com uma atuação efetiva, corre-

174
se o risco de haver uma forte opressão do poder pensar naquele brocardo latino “si vis pacem para
econômico e político em relação aos direitos bellum”, ou seja, “se queres a paz, prepara-te
fundamentais. Muito obrigada. para a guerra”. Os processos de cooperação, de
mediação, de conciliação e de negociação direta dos
PROMOTOR DE JUSTIÇA HERMES ZANETI TAC’s também não são pacíficos e transparentes. A
JUNIOR: Gregório, precisamos assumir que a preparação para a eventualidade da conversão da
responsabilidade do poder de agenda exige a conciliação para o litígio deve sempre estar presente.
coordenação na tutela dos direitos fundamentais e Ao ajuizar os os processos, o objetivo é de ganhar
que não adianta insistirmos na ideia de que deva a causa, que é a defesa dos direitos fundamentais.

haver intervenção do Ministério Público no grau Então, muitas vezes, deve-se desistir de atuar em
um processo, que está fadado ao insucesso, para
máximo toda vez em que a lei disser que existe
atuar em outros processos que servem melhor à
interesse público. É necessário reconhecer que há
causa. Por exemplo, deixar de recorrer em uma
graus de interesse público, que eles geram graus
matéria que em que todos os membros estão
de disponibilidade e que o Ministério Público é
tentando formar um precedente, se esse caso
quem tem o dever de dizer em qual situação há ou
concreto não é um caso bom para esse fim. Se um
não interesse público ou social que justifique sua
caso ruim for levado ao tribunal, é possível que se
intervenção. Isso é feito por meio do planejamento forme um precedente negativo para o Ministério
também. Então, o primeiro desafio é a gente Público. Então, conciliar com a consciência de
romper com essa visão genérica de que o interesse que ela não irá resolver todos os problemas e de
público está presente indistintamente em todas as que a boa-fé, a lealdade e a transparência devem
situações, sob pena de não atendimento do dever fazer parte do objetivo daquele que está querendo
constitucional, que prevê a tutela do essencial. conciliar com o Ministério Público. O Ministério
Dito isso, há três questões relevantes. A primeira Público não pode dizer que toda jurisprudência do
seria: como atuamos nos processos? É preciso STJ e do STF é favorável ao MP, se não é mais.

175
O NCPC impõe o diálogo constante e esclarecido
no processo. Não basta mais apenas a aposição
de um ciente no processo, pois esse ato causa,
sim, um dano. Despachos do juiz têm que ser
fundamentados, as petições dos promotores
também. O artigo 489, que trata da fundamentação
adequada, vale também para quem peticiona, não
só para quem decide. O NCPC pode ajudar o MP a
voltar a analisar os casos concretos e a construir
uma tutela efetiva dos direitos. O CNMP já tem
se inclinado nesse sentido, quando começa a
trabalhar com planejamento estratégico por meio
da Resolução n. 34. Esse instrumento afirma que
o Ministério Público, no âmbito de sua autonomia
administrativa, deve priorizar o planejamento das
questões institucionais e limitar a sua atuação
em casos sem relevância social. Ele acrescenta
que está a juízo exclusivo do Ministério Público a
definição acerca de qual seja o interesse público no
processo e destaca que os assuntos considerados
relevantes pelo planejamento institucional são
equiparados aos de relevância social. Conjugar o
NCPC com o objetivo institucional do Ministério
Público de exercer a tutela adequada, efetiva e
tempestiva dos direitos fundamentais. Obrigada.

176
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: DIREITO PENAL Estado de Minas Gerais, Christiane Neves Procópio
DO INIMIGO, PROFERIDA POR ROGÉRIO Malard. Para a abertura dos trabalhos ouviremos
GRECO, PARTE DO PROJETO “SEGUNDA-FEIRA a diretora do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento
ÀS 18H” REALIZADA EM 19 DE SETEMBRO DE Funcional do Ministério Público, promotora de
2016 Justiça Danielle de Guimarães Germano Arlé.

DANIELLE DE GUIMARÃES GERMANO ARLÉ:


Senhoras e senhores, Excelentíssimo Dr. Carlos
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Boa noite! É com André Mariani Bittencourt, procurador-geral de
grande satisfação que o Centro de Estudos Justiça, na pessoa de quem saúdo os demais
Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público de integrantes da mesa.
Minas Gerais (Ceaf) dá as boas-vindas a todos no
projeto “Segunda-feira às 18h”, uma iniciativa que O projeto “Segunda-feira às 18h” foi pensado para
tem por objetivo a discussão de temas jurídicos que o Ministério Público de Minas, por intermédio
contemporâneos. Na edição de hoje trataremos o do Ceaf, possa divulgar que acredita na educação
tema: Direito Penal do Inimigo. Convidamos para e no seu poder transformador.
a mesa de honra o procurador-geral de Justiça do
Como dizia Paulo Freire, onde quer que haja homens
Ministério Público de Minas Gerais, Carlos André
e mulheres há sempre o que ensinar, há sempre o
Mariani Bittencourt; a diretora do Ceaf, promotora
que aprender. Não estamos prontos nem estivemos
de Justiça Danielle de Guimarães Germano Arlé;
prontos e completos. A educação é sistêmica,
o subcorregedor do Ministério Público, procurador
permanente e tem o poder de transformar e de se
de Justiça Rodrigo de Souza Albuquerque; o
reinventar. E é por acreditar nisso que os membros
subcorregedor do Ministério Público, procurador de
do Ministério Público procuram servir a sociedade
Justiça Rogério Greco; a defensora pública Cibele
de uma maneira cada vez mais eficaz.
Maffia, que representa a defensora pública-geral do

177
Na gestão do procurador-geral Carlos André, o Ceaf Penais, professor de Direito Penal dos cursos
teve um crescimento enorme. Deixo, portanto, de pós-graduação da PUC Minas e da Fundação
registrado o nosso enorme apreço e gratidão Escola Superior do MP de Minas, doutor pela
por acreditar na educação e abrir a formação Universidade de Burgos na Espanha e autor de
do Ministério Público aos membros, servidores, diversas obras jurídicas. Obrigada diletíssimo e
estagiários e estudantes de Direito. A equipe do admiradíssimo colega por nos brindar com sua
Ceaf, convém ressaltar, vem-se desdobrando para presença nesta noite.
fazer cada vez melhor a educação dentro de casa.
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Ouviremos agora o
Temos aqui a Cibele Maffia, que está representando procurador‑geral de Justiça Carlos André Mariani
a defensora pública-geral Christiane Neves Bittencourt.
Procópio Malard, o que comprova que a união
CARLOS ANDRÉ MARIANI BITTENCOURT:
dos órgãos do Sistema de Justiça é que faz uma
Querido amigo Rodrigo Albuquerque,
justiça mais eficaz.
subcorregedor do Ministério Público; Danielle Arlé,
diretora deste Centro de Estudos; Rogério Greco,
Em qualquer banquete um grande chef costuma
nosso palestrante; Cibele Maffia, que representa
ter uma pièce de résistance, que é o prato mais
a Defensoria Pública; o Afonso, coordenador da
importante da refeição. Não por acaso, o prato
área de conflitos agrários do Ministério Público; o
principal desse banquete do conhecimento que o
Renato; o Franklin. Cumprimento, enfim, a todos
Ceaf está a promover é Rogério Greco, ouro na
nessas pessoas.
nossa Casa, procurador de Justiça na Procuradoria
Especializada em Crimes Contra a Vida, membro Para os que não trabalham conosco e vieram
fundador do Instituto de Ciências Penais e da nesta noite assistir ao Rogério Greco, gostaria de
Associação Brasileira dos Professores de Ciências explicar que esse programa foi criado em maio

178
deste ano (2016) sempre às segundas-feiras ROGÉRIO GRECO: Viajo o Brasil inteiro e
para transformamos essas segundas-feiras em dificilmente eu falo no Ministério Público. Então,
algo muito mais útil, ou seja, receber pessoas é muito bom estar aqui. Vivemos uma crise de
ilustres para palestras e exposições sempre identidade. Existe uma crise no executivo, uma
muito interessantes. crise no legislativo, uma crise no poder judiciário.
E essa crise tem reflexos profundos na área do
O fato é que vieram aqui a esse programa vários Direito Penal. O tema hoje vai ser Direito Penal
ministros do STJ, conselheiros do Tribunal de Contas do Inimigo, mas não posso me furtar a discutir
da União, o advogado-geral da União e juristas um pouquinho daquilo que tem acontecido
diversos, cada um num determinado enfoque. ultimamente: o Mensalão, a Lava-Jato, gente
Então, as nossas segundas-feiras ganharam muito. batendo muito no Moro e principalmente no
E eu, como procurador-geral, posso dizer que Ministério Público Federal, denúncia contra o Lula.
são tantas as realizações do Ceaf como nossa O Brasil está precisando virar essa página há muito

Escola de Formação do Ministério Público, que tempo. Quando fui promotor em Betim, entre

fica até difícil estar presente a todas. Mas hoje fiz 1994 e 1995, processei pelo menos a metade da
Câmara dos Vereadores. O presidente da Câmara
questão de estar aqui nessa mesa para receber
dos Vereadores ficou preso pelo menos uns quatro
o Greco, que, como sabem, e vocês estão
anos lá em Betim. O Brasil todo, infelizmente, está
aqui para isso, sempre traz uma palestra com
nesse processo de corrupção, processo que só nos
um conteúdo que cativa a todos, porque ela é
corrói, que acaba com o nosso país faz 500 anos.
dinâmica, alegre e é o reflexo da personalidade
Parece que alguém colocou os dentes na jugular do
do nosso amigo, querido Rogério Greco. Então,
Brasil e fica sugando, sugando. Mas, por mais que
senhores e senhoras, excelente proveito.
as pessoas suguem esse tempo todo, o Brasil ainda
é forte. Isso deixa a gente feliz. O Brasil tem muito

179
gás, muito fôlego. O papel do Ministério Público Para a felicidade dele, que nunca quis matar a
é importante porque há teorias segundo as quais mulher, erra-se o alvo. Só que nesse exato instante
o Direito Penal é a solução para os problemas do tinha um camarada cometendo um suicídio que se
Brasil. Contudo, não se trata de problema jurídico. passa em frente à janela dele, e o cara foi atingido
Já existem leis demais. Nosso problema é político, pelo tiro. Isso acontece toda semana.
o que é completamente diferente.
Existe uma realidade lá fora e a gente está
Eu recebo e-mail de todos os jeitos sobre Direito discutindo coisas que nunca vão acontecer. Então,
Penal, um dos quais é mais ou menos o seguinte: o cai-se no vazio, embora existam três movimentos
sujeito era casado há 50 anos e antes do casamento importantes no mundo do Direito Penal. De um
ele havia adquirido um revólver calibre 38. Nesses lado existe o movimento a que chamamos de
50 anos, ele nunca comprou uma única munição abolicionista, nome já até induzido, que consiste
para aquele 38. Toda semana, olhe o exagero do em acabar completamente com o sistema penal
exemplo: toda semana ele discutia com a mulher como um todo. Os abolicionistas têm fundamentos
dele, pegava o revólver 38, apontava em direção seriíssimos de eliminação do sistema, o que é uma
à esposa e puxava o gatilho. Só fazia o barulho do utopia. Abolicionismo não é preocupação. Toda vez
cão batendo - cleck! - Nunca teve uma munição que alguém se identificar como um abolicionista,
em 50 anos. A esposa ficava apavorada do mesmo pode ter certeza de que o camarada é gente boa. Ele
jeito, e ele ficava feliz. Nos 50 anos, ele pegava o quer preservar o princípio da dignidade da pessoa
revólver instintivamente. Um dia, alguém entra e humana de todo o jeito. Mas é um movimento
coloca uma única munição no tambor do revólver. utópico. O professor Louk Hulsman - para quem
Ele discute com a esposa, como fazia há 50 anos, tiver interesse em entender um pouquinho essa
pega o revólver, aponta em direção à esposa e puxa teoria abolicionista - escreveu um livro chamado
o gatilho. Só que agora vem o estampido – Pow!. “Penas Perdidas”, junto com a professora francesa

180
Jaqueline de Celis. Já o professor Ralf Dahrendorf, crime? É isso mesmo, vocês são associação
escreveu “Lei e Ordem”. E hoje o mundo vive um criminosa feliz ainda por cima porque sabem que o
movimento de lei e ordem muito forte. As pessoas Direito Penal não foi feito para nós. A gente pratica
acreditam que o Direito Penal é a solução de todos crime a toda hora. Só para ter noção: quem aqui
os problemas, e vou demonstrar que não é. No já comprou alguma coisa de camelô saiba que é
movimento de lei ordem, entende-se que o Direito receptador. Via de regra, os camelôs vendem o
Penal deve ser a prima ratio de intervenção. Ou
quê? Ou é fruto de contrabando ou descaminho. E
seja, qualquer bem é necessário e suficiente, a
a gente faz isso toda hora. Praticamos crime todo
ponto de ser protegido pelo Direito Penal. É um
dia, toda hora. Mas o Direito Penal não foi feito
raciocínio absurdo.
para a gente.

Ah, o Brasil “é o país da impunidade”. A gente


O que existe é essa coisa do simbolismo do Direito
aprende muito e aprende mal. Quem tinha que
estar solto está preso e quem tinha que estar preso Penal. O que significa isso? As pessoas vão criando
está solto. A realidade é essa. Somos o terceiro as leis e confundem expansionismo penal com
país que mais prende. Como é esse negócio de infração legislativa. São conceitos completamente
Brasil que é o país da impunidade? É impunidade diferentes. Nelson Hungria, talvez o maior penalista
por quê? Porque normalmente quem vai preso, e que o Brasil já conheceu, em 1940 imaginaria
quem conhece o sistema prisional por dentro sabe
criar um tipo penal que por meio do smartphone
muito bem o que estou dizendo, é o pobre. Quem
pudesse causar a morte de alguém na China? Não.
vai preso é o miserável.
Isso é expansionismo. Eu preciso hoje lidar com
Quem no auditório, incluindo toda a galera do os fatos da minha realidade. Mas o que fazer com
MP, nunca praticou um crime levante a mão? aqueles tipos penais que já são ultrapassados?
Entenderam a pergunta? Quem aqui nunca praticou Tenho que revogar. Quando não revogo aqueles

181
comportamentos que nem acontecem mais na sociedade. Gosta quando estiver parado no sinal
sociedade, em vez de expansionismo, tenho uma e vem um camarada lhe oferecer bala? Gosta do
inflação legislativa. E esse é o grande problema. ‘flanelinha’? Fale honestamente: você tem amor
pelo ‘flanelinha’? À noite, quando o ‘flanelinha’ não
No Brasil, há Código Penal, Código de Processo, Lei viu você, nem liga o farol, não é assim? Aí, ao
de Execução, Lei de Contravenções Penais, mais passar, o ‘flanelinha’ vem correndo, você bota a
de 200 legislações penais, periféricas. Ninguém mão para fora, dá até um tchauzinho, e fala: “Pô,
consegue entender essa legislação absurda. Eu um a zero para você”. Ninguém gosta de flanelinha!
tive a oportunidade de coordenar um vade-mécum Isso tudo acontecia em Nova Iorque também.
penal e processual penal para a editora Impetus, Naquele ano, o que o Giuliani resolveu fazer
já que 80% dos meus estudos são na área penal. como prefeito de Nova Iorque - inclusive ele era o
Quando comecei a compilação, não conhecia prefeito durante os atentados de 11 de setembro de
40% da nossa legislação. Existem coisas demais. 2011? Giuliani começou “uma limpeza na cidade”.
Precisamos, na verdade, é revogar tipos penais e Era um movimento muito forte. Os Estados Unidos
não criar mais tipos. são o maior sistema prisional do mundo. Eles
têm essa cultura da prisão. Entrou o Giuliani na
Em 1993, surgiu nos Estados Unidos o “Tolerância
prefeitura da cidade de Nova Iorque e conseguiu
Zero”. Ligado ao Direito Penal, esse movimento
colocar 40 mil policiais. Em Minas, devemos ter,
de lei ordem foi criado por um ex-‑representante
aproximadamente, uns 45 mil policiais militares,
do Ministério Público, o prefeito de Nova Iorque
no estado inteiro. Olhe o tamanho do nosso estado!
Rudolph Giuliani, e pelo então chefe do metrô
Em Nova Iorque, não é estado de Nova Iorque,
de Nova Iorque, braço direito do Giuliani, Willian
é na cidade de Nova Iorque, Giuliani colocou 40
Bratton. À primeira vista, parecia um movimento
mil policiais. Imagine sair daqui do evento e ter lá
bacana porque há coisas que incomodam a
fora uma dupla de policiais militares passeando ou

182
fazendo ronda perto do seu carro. Isso dá ou não de força, na verdade. Ao chegar a cavalaria, todo
dá tranquilidade? Tem que dar. É a presença do mundo vai embora. Não há jeito. Aqui em Minas
Estado ali. Aí você fala: “Pô, graças a Deus tem um parece que há dois blindados da Polícia Militar.
policial ali. Vou ficar tranquilo”. Então, a presença Para que blindado em Minas se a Polícia Militar
da polícia na rua é muito importante. consegue entrar em qualquer comunidade com a
viatura? Não precisa. Mas a presença do blindado
Faz mais ou menos uns dois anos Giuliani participou é uma demonstração de força. No Rio, é uma
de um congresso no Brasil. Alguém aqui esteve nesse necessidade. É diferente daqui.
congresso? Eu tive até a oportunidade de sair junto
com ele para jantar, bater papo. Giuliani colocou no Giuliani começou a limpeza e tentou vender esse
centro de Nova Iorque duplas de policiais a cavalo. movimento Tolerância Zero para o mundo inteiro.
Perguntei tudo a respeito disso. Você parou para Essa menina bonitinha, loirinha, é filha do Giuliani.
pensar por que a Polícia Militar tem cavalo? Há Ela foi presa no centro de Nova Iorque, numa loja
hoje guerra a cavalo? Venha a cavalaria para você da Mac, furtando maquiagem. A filha do Giuliani
ver. Perceberam que sou carioca? É que já perdi foi presa, processada, condenada por isso? Vocês
muito do meu sotaque. Ainda adolescente, morava viram alguma notícia disso na televisão? Não. Mas
na Tijuca, perto do Maracanã. Naquela época de o movimento não é Tolerância Zero? É, porém
dureza, não pagava ingresso. Pulava o muro do Tolerância Zero não é para todo mundo.
Maracanã. E quando vinha a cavalaria, só se ouvia
o barulho do casco. Que pavor! Os Estados Unidos são especialistas em teorias
que não condizem com a nossa realidade. Existe
Já teve a sensação de um cachorro da Polícia uma teoria chamada fixing broken windows, que
Militar solto contra você? Fica é um absurdo de quer dizer consertando as janelas quebradas,
nervoso. Então, a cavalaria é uma demonstração construída a partir de 1982 pelos professores

183
Kelling e Wilson. Quando estudamos teorias tênis... Era uma bicuda na hora. Alguém se lembra
americanas, até gostamos no começo. Imagine de cachorro pequinês? No Rio, havia muito. Era
o seguinte raciocínio: numa fábrica, se alguém um cão feio, mandíbula que expunha os dentes,
passa, quebra-lhe uma vidraça e o dono da fábrica mas tinha uma característica boa: um cocozinho
não conserta, no dia seguinte alguém vai e quebra pastoso. Quando o pequinês fazia cocô, voava todo
a segunda, que ele também não conserta. Na mundo no cocô. Era uma briga para pegá-lo e pôr
sequência, está a terceira quebrada, a fábrica num palitinho Kibon no negocinho do telefone.
inteira quebrada, o quarteirão inteiro quebrado, a Antigamente era só orelhão. Aí o camarada pegava
cidade. O raciocínio quer dizer o quê? Se a pessoa o cocô com aquela rodelinha. Eu sujei 400 assim...
é punida pelos menores desvios, você impede que
amanhã ela deixe de praticar um desvio mais Voltando às teorias criadas pelos americanos,
grave. O que pode ser bom nos Estados Unidos, a maioria não serve e queremos trazê-las para
no Brasil é diferente. Não adianta querer importar o Brasil, sem ter conhecimento. Existe uma
teoria que não vai condizer com a nossa realidade. chamada three strikes, que quer dizer o seguinte:
No nosso povo não há purinho, nenhum ariano. A na terceira infração penal, não importa a infração,
mistura é que é o legal do brasileiro. ou a pena é de 25 anos ou a pena é de prisão
perpétua. Tenho recorte de um jornal dos Estados
Tenho cinco filhos. Às vezes fico dando bronca no Unidos que noticia que um camarada no trânsito
que fazem e me dá uma dor na consciência, quando discutiu com um guarda, no qual cuspiu. Cuspir no
volto ao passado e penso: “ meus moleques são policial configura crime de desacato. Só que era a
santos demais e eu fico dando bronca por bobeira”. terceira infração penal do cara. E a notícia era de
Eu era doido por futebol. Se eu visse na rua uma que ele tinha recebido pena de prisão perpétua por
caixa de sapato eu dava uma bicuda na hora na ter cuspido no policial. A gente vai aplicar isso?
caixa de sapato. Podia estar de terno, descalço, de

184
Esse movimento de lei ordem agrada. Tenho 27 filho, não vá cheirar maconha”. Ele admitiu que ia
anos de Ministério Público, dos quais pelo menos fumar com um camarada e, por conta disso, foi
26 trabalhando ininterruptamente no crime, e indiciado no art. 12, por tráfico. Estava ele preso
cheguei à conclusão de que a gente só gosta de junto com o camarada.
direito penal máximo, só gosta de movimento de
lei ordem, quando esse direito penal é na casa dos O Direito Penal é como se fosse uma bomba atômica.
outros. Quando é na nossa, é direito penal mínimo Eu falo para os amigos do MP que a denúncia não
ou é, de preferência, abolicionismo. é uma mera folha de papel. A denúncia, para o
homem de bem, causa um estrago que vocês
O Afonso e eu tínhamos um curso preparatório nem têm noção. Leva inclusive ao suicídio. A
em Juiz de Fora. Eu falava com os meus alunos pessoa não suporta uma ação penal. Então, não
o tempo inteiro: cuidado com o Direito Penal que é simplesmente oferecer denúncia. Existem as
você quer. Na época da antiga Lei 6.368, que foi consequências seriíssimas do processo. Nesse
substituída pela 11.343, sempre avisava: cuidado. Direito Penal americano que se quer simplesmente
Um dia, no final do ano, vi a galera toda indo importar, como se aqui fossem os Estados Unidos,
embora da sala, quando um aluno, que ficou por há contudo uma teoria importante, a do labeling
último, veio todo triste até mim: “Poxa, Rogério, approach, ou teoria do etiquetamento, quando o
aconteceu um fato esquisito na minha família. O sujeito é condenado e já passa a introjetar que ele
meu primo estava num Fusca...”. Lembra-se do é um criminoso, aceita essa condição e passa a ser
Fusquinha? Então... “Meu primo estava no Fusca entendido dessa forma.
com um amigo dele e foi parado numa blitz. Aí, o
policial militar descobriu uma bucha de maconha e É muito diferente uma condenação na área penal
dirigiu-se ao meu primo: “Imagine o que você vai de uma condenação na área administrativa. Pode-
fazer com essa maconha...” Minha mãe dizia: “Meu se receber a mesma multa: uma multa na área

185
administrativa e uma multa na área penal. Se for meios de comunicação não permitem que se fale.
condenado criminalmente e receber uma pena de Hoje, é simplesmente uma teoria retributiva. É o
multa, esse estigma vai acompanhar a pessoa a pagamento do mal pelo mal e pronto. Acabou. A
vida inteira. mídia conhece o que acontece no sistema prisional
e se alegra porque quer torcer o camarada até a
Jesús Maria Silva Sánchez criou as chamadas última gota. Na Europa, realmente se ressocializa.
Velocidades do Direito Penal, a primeira das quais Sabe por quê? Olhe essa turminha de mortos
consiste no Direito Penal Tradicional. Para que se ali. No sistema prisional brasileiro é esse banho
aplique a plena privação de liberdade, tem que se de sangue. Na Penitenciária de Pedrinhas, no
preservar, a todo custo, os direitos e as garantias Maranhão, foram aproximadamente 80 mortos que
fundamentais. Via de regra, no processo, há não tinham sido condenados à pena de morte. O
preservação de direito e garantia fundamental? governo não sabe administrar o sistema prisional.
Minha tese de doutorado foi sobre sistema Na Espanha, no sistema prisional que conheci
prisional, e conheci muitos sistemas no Brasil existem quatro pavilhões, no meio dos quais tem
e fora. O Brasil não sabe lidar, definitivamente, uma piscina olímpica. Olhe só a cabeça dos caras:
com sistema prisional. O que está acontecendo é em cada pavilhão há uma quadra de futebol, uma
consequência do amadorismo. sala de musculação, são cinco refeições diferentes,
dependendo do preso, feitas por dois chefes de
Eu estudei numa cidade chamada Salamanca, na
cozinha. Aqui temos o tal do preso faxina, aquele
Espanha, onde conheci o sistema prisional na
que fica na moralzinha, faz a comidinha. Não é
periferia de um lugar chamado Topas. Entende-se
assim que funciona? Lá são dois chefes de cozinha,
ali a diferença da cabeça do europeu no que diz
há uma superalimentação se o camarada estiver
respeito à ressocialização. No Brasil, hoje, quando
desnutrido, comida vegetariana, comida comum,
se fala em ressocialização quase se apanha. Os
comida específica para preso muçulmano. Quanto

186
à carne, o gado não pode ser eletrocutado. Ele Nunca em um júri me refiro à pessoa do réu.
tem que ser degolado à espada. Até isso eles Estou ali para narrar um fato. Muito colega chega
respeitam. Na época em que morei na Espanha, os e aponta: “Aquele vagabundo, aquele marginal”. O
presos ganhavam, em média, 770 euros. cara grava isso. Nunca tive nenhum tipo de ameaça,
e eu só trabalhei no crime. O bandido sabe o que
Quando eu era professor de curso preparatório aqui,
ele praticou. Se trabalhar com honestidade, não há
fazia questão de levar meus alunos para conhecer
problema nenhum. Agora, não esculache porque
o sistema prisional antes que começassem a me
depois se volta contra você. É assim que funciona.
xingar nas aulas. O princípio da insignificância
se discute faz dez anos. Então, 20 anos atrás,
Hoje, em razão da morosidade da justiça, criou-se
quando se começava a falar, todo mundo criticava.
uma segunda velocidade, uma proposta de Jesús
Na antiga Delegacia de Furtos e Roubos, que era
Silva Sánchez. No Brasil, são os Juizados Especiais
um inferno, começava-se a entender ao chegar
Criminais. O que significa? Na segunda velocidade,
lá e deparar com um preso fazendo barquinho de
aplica-se uma pena não privativa de liberdade.
picolé Kibon. Aí a turma: “Olhe que legal, fazendo
barquinho, outro costurando bola”. Amigo, o preso Porém, para aplicá-la de uma forma rápida, eu vou

não sobrevive fazendo barquinho de picolé, não minimizar os direitos e as garantias fundamentais.
sobrevive costurando bola. Hoje nem se costura Isso é o que acontece no juizado. Mas em todos os
mais bola. É necessário se profissionalizar. lugares a que vou o juizado se perdeu. Sabe por
quê? Ele foi criado para julgar infrações penais de
Essa primeira velocidade está falida,
menor potencial ofensivo. Não é para julgar fato
completamente. O que dá mais angústia nas
de nenhum potencial mas se leva tudo. Qualquer
pessoas é a morosidade do processo. Por que
coisinha é juizado. Nós temos a cultura do processo,
se quer fazer justiça, por exemplo, por meio
de prisões de natureza cautelar? O processo é infelizmente, no Brasil.
demorado, longo.

187
No Japão, quando uma pessoa leva outra à justiça, mentor do Juizado Especial Criminal no Rio Grande
leva-se com vergonha. O cara chora. Não existe do Norte. E de manhã, quando eu estava na praia,
essa cultura de ficar processando os outros. É uma ele estava mostrando o juizado em loco para os
vergonha não se ter conseguido resolver só entre juízes, “Esse é o juizado”. Sabe aquele negócio em
você e ele. Vai precisar do Estado para resolver você vai lá e dá um bico no castelo de areia do cara?
um problema seu. Na Escola da Magistratura do
Rio Grande do Norte uns 30 juízes que haviam sido A ideia do juizado é sensacional. Só que no juizado
aprovados num concurso me chamaram para uma não há mais essa coisa de competência e infrações
palestra. Cheguei um dia antes , peguei aquela penais cuja pena máxima não ultrapasse dois
prainha lá em Natal. No dia seguinte fui à praia anos. Isso é um absurdo. Tem que, pelo menos,
de novo dar uma corridinha, almocei. A palestra colocar para quatro anos. Não é julgar fatos que se
era às 3h da tarde. Dei uma dormidinha depois encaixam no princípio da insignificância. Se levar
do almoço. Nesse dia, estava inspirado para falar para quatro anos, pelo menos de cara você coloca
de juizado e comecei dizendo: “Juizado só julga no juizado todas as infrações penais patrimoniais
porcaria. É só caso perereca, é só coisa que não não violentas. Isso vai aliviar demais o sistema
vale nada”, e fui detonando. Esqueci de falar o prisional, sabe por quê? Porque, infelizmente,
lado bom do juizado, passei para outros temas. como falei, a gente prende muito e prende mal.
Em casa, recebi um e-mail do diretor da escola me
Um caso aqui em Belo Horizonte me deixou
xingando da primeira à última linha. “Rogério, você
horrorizado. A imprensa noticiou que uma
foi de uma deselegância, de uma grosseria com a
mendiga tinha sido presa porque tentou furtar um
turma”. “Caramba, o que eu fiz?”, indaguei. Depois
xarope numa farmácia. Alguém se lembra disso?
falei com um amigo, que era juiz lá também, e
Na primeira infração penal que praticou, ela ficou
pedi desculpas: “Perdoa, rapaz, o que fiz”. Depois
presa cautelarmente mais de um ano. Aí o juiz
fui entender que ele era o diretor da escola, o

188
condena essa mulher a uma pena de um ano de da década de 1980, de uma série de raciocínios
furto simples e substitui essa pena. Cara, a mulher muito importante. Eu tive a oportunidade de ser
ficou mais de um ano presa e agora se substitui. A aluno de um discípulo do Jakobs na Espanha. As
imprensa noticiou porque já era o segundo caso de posturas do Jakobs são assim: ou se apaixona por
furto, inclusive de outro xarope. No primeiro tinha elas ou as odeia. Se adotar a imputação objetiva
que ser absolvido porque é um caso clássico daquilo do Jakobs, absolve-se todo mundo. Se adotar
considerado, na minha opinião equivocadamente, direito penal do inimigo, vai todo mundo para a
crime mas se trata de um fato famélico, de uma forca. Ele não é ponderado, digamos. Jakobs é
situação de necessidade. Aquela mulher tinha que suprassumo, superinteligente, mas é diferente do
ter sido é absolvida. Daí o Direito Penal. Por quê? Roxin, um outro professor também alemão, do
Entre o patrimônio da farmácia, que é um bem qual basicamente todo mundo gosta.
juridicamente protegido, e a vida e a integridade
física dessa mulher, o que tem de prevalecer? É a Essa tese do Direito Penal do Inimigo é muito antiga.
vida e integridade física dela. Quem sai de casa Em Roma já se fazia distinção entre direito penal
numa situação de normalidade e fala assim: “Hoje do cidadão e direito penal daquele considerado não
eu vou furtar um xarope”? Quem faz isso? Se o faz cidadão. Há uma passagem interessante na Bíblia
é por necessidade. É dessa forma que funciona. sobre Paulo e Silas. Eles estão presos e começam
Isso a segunda velocidade não conseguiu resolver. a cantar, vem um terremoto, as grades das celas
caem, o carcereiro iria se matar. Nesse momento,
Por isso, veio a terceira velocidade, à qual Paulo interveio: “Opa, não precisa se matar. Está
chamamos de Direito Penal do Inimigo, e aqui todo mundo aqui”. Por que o carcereiro se mataria?
corremos um grande perigo. O mentor intelectual O que o carcereiro tem a ver com o terremoto?
dessa tese é o professor alemão Gunther Jakobs. No Império Romano, devido ao rigor da guarda
Na verdade, Jakobs foi um dos defensores, a partir romana, se um soldado tivesse a incumbência de

189
tomar conta de alguém e houvesse fuga, tudo aquilo Antigamente o mensageiro ia levar a mensagem
por que o cara havia sido condenado recaía sobre a pé ou a cavalo. Aí tirava o rolinho, o canudinho,
o soldado. Imagine-se numa cela, onde tinha um e entregava para o camarada ler. Se não gostasse
monte de gente, e o carcereiro exclamasse: “Não, da mensagem, ele matava o mensageiro, que não
isso é muito para a minha cabeça?” Já se ia matar tinha nada a ver com a história. Então, o que o
quando Paulo falou: “Meu irmão, não faça isso. Está Jakobs está a dizer ao proferir: “Não me matem,
todo mundo aqui”. O carcereiro se converte, no dia eu só sou mensageiro”. Porque o Direito Penal do
seguinte o pretor manda soltar Paulo, que antes Inimigo já existe em toda e qualquer legislação. E
havia sido açoitado, jogado na cela, sem o devido nisso ele está certo. Quando se discute a respeito
processo. Paulo reagiu: “Opa, mande-o vir aqui do Direito Penal do Inimigo, quem exatamente
porque tenho cidadania romana”. Embora judeu, pode ser chamado de inimigo? Quando Jakobs
Paulo tinha também cidadania romana. Ninguém começou a discutir a tese do inimigo, a partir de
sabe exatamente como, mas ele era cidadão 1985, ele tinha um foco. Naquela oportunidade,
romano. Quando o pretor tomou conhecimento de o inimigo era efetivamente o terrorista, que tem
que Paulo era romano, o cara borrou, amarelou características bem próprias. No Brasil, não se
de um jeito. Por quê? Como cidadão romano, ele discute muito porque, graças a Deus, o terrorismo
jamais poderia ter sido espancado, preso, sem o não é realidade. Como estou escrevendo agora
devido processo legal. Então, desde Roma já se sobre terrorismo, tenho lido muito a respeito para
fazia essa distinção entre o direito penal do cidadão o curso que estou fazendo. Há uma preocupação
daquele do não cidadão. no Brasil inteiro por conta da Olimpíada no Rio.
Efetivamente, só o terrorista pode encaixar-se
Jakobs, muito inteligente, começa argumentando como esse inimigo? Vejamos os argumentos. Pelo
que não o matem porque ele só é um mensageiro. menos em primeiro plano, há que se preocupar
Por que a frase “eu só sou mensageiro”? com o fato do autor e não com o autor do fato.

190
Em 1989, trabalhei em Areado, no sul de Minas, uma das 4h da manhã. Inquérito policial é instaurado
cidade com 10 mil habitantes. Lá, eu jogava bola direitinho e encaminhado à comarca. A abençoada
terça, quinta, sábado e domingo. Adorava morar da promotora de Justiça, de cujo nome não me
naquele lugar onde todo mundo sabia quem eu era, lembro, graças a Deus, pediu arquivamento do
sabia quem era o promotor, o juiz, o padre, o pastor, inquérito policial sob o fundamento de que o menino
o médico porque eram poucas pessoas, inclusive era pessoa boa, a mãe dele era superquerida,
andando de terno eram pouquíssimas ainda. superbenquista. Na cidade usa-se esse termo
antigo: benquista. O fato de ele ter ficado preso
Em Direito Penal existem dois tipos de resistência: das 11h30 até as 4h da manhã já tinha servido de
a ativa e a passiva. Um policial pesa 55kg e vai lição suficiente. Ele não voltaria a praticar isso. A
cumprir mandado de prisão contra alguém que pesa promotora adotou um direito penal do fato ou um
130kg. Ao dar voz de prisão, o camarada deita no direito penal do autor? Do autor. Isso é intolerável.
chão e fala: “Me leva”. Isso é resistência passiva, o Imagine dois irmãos gêmeos univitelinos, A e B.
que não interessa ao Direito Penal. Já a ativa, é um Os dois praticaram crime de roubo. Um pode ser
ato de violência emanado de autoridade. O cara condenado a quatro e o outro a seis anos pelo

começa a resistir, e os policiais resolvem colocá- mesmo fato em concurso? Pode? Os dois fazem
tudo junto, A e B. A é condenado a quatro e B a
lo na viatura. “Meu amigo, você tem que entrar.
seis. Pode ou não? Pode, sabe por quê? Porque
O seu assento está reservado. É a 1ª janela”. Ele
existe a chamada culpabilidade. Culpabilidade
não quer entrar e se transforma naquele preso
significa juízo de censura, um juízo de reprovação
homem-aranha. Já viram preso homem-aranha?
pessoal. A diferença da minha infração penal para
Ao entrar na viatura o cara se estica todinho
a sua chama-se culpabilidade. É o juízo de censura.
na porta . Aí o policial fala: “Vou dar-lhe uma
Então, vou me preocupar com o camarada? Vou,
joelhadinha na costela só para você dobrar”. O mas primeiro tenho de me preocupar com o fato. É
moleque fica preso das 11h da noite até por volta assim que funciona.

191
Mas veio o Jakobs com essa tese do Direito Penal no mínimo, 12 anos a 30 anos de prisão. Alguns
do Inimigo punindo as pessoas simplesmente países discutem essa pena, mas ela tem que ser
por aquilo que pensam ou querem ser, não por indeterminada. Sabe por quê? Porque o terrorista
aquilo que fazem. É uma questão muito difícil, não tem que ter uma pena certa. Se é terrorista
principalmente no que diz respeito ao terrorismo. hoje, ele será terrorista amanhã, depois de amanhã.
Na Europa se discute basicamente se o tratamento
terrorista tem que ser diferente do tratamento Sobre o crime de tortura, os Estados Unidos e
do inimigo terrorista. Eu não tenho que esperar alguns países da Europa, principalmente depois
o cara apertar o botão vermelho do detonador do dos atentados de 11 de setembro de 2011,
explosivo para entender que ele deu o início a atos estão discutindo oficialmente o uso da tortura.
de execução, e só a partir dali ele possa ser punido. Não a tortura clandestina, o pau de arara no
Ele vai ser punido simplesmente por aquilo que calabouço. Não é isso. É o uso oficial da tortura,
ele é, por aquilo que ele pensa, por aquilo que ele como acontecia na época da inquisição praticada
quer ser. É dessa forma que se começa a identificar pela Igreja Católica. Eis o exemplo da bomba
um inimigo. E no que diz respeito ao terrorismo, é relógio. O terrorista está numa escuta telefônica,
complicado porque eles vivem uma realidade que em tempo real. De repente, ele fala: “A bomba
não vivemos. No terrorismo, a ideia é ter um ponto já está colocada. Tu, tu, tu.” Desliga o telefone.
de inoculação para realmente eliminar, antecipar Descobre-se de onde veio a ligação, você consegue
a punição. No Brasil, a lei que trata de terrorismo chegar e pegar o camarada e levá-lo preso. Você
já pune especificamente os chamados atos pode oficialmente torturá-lo para descobrir onde
preparatórios. Existem penas que são altamente colocou a bomba no Shopping Center, que quando
desproporcionais. No art. 2º dessa lei nova sobre explodir pode matar cerca de 3 mil pessoas. O que
terrorismo, a pena para quem simplesmente tem faz? Preserva a dignidade dele a todo custo ou o
em depósito qualquer tipo de explosivo varia de, tortura? É difícil. Se torturar oficialmente, vamos

192
ter um torturador. E o torturador é cargo público. noticiam menos práticas de crimes, o índice de
Você faria concurso para torturador? O edital criminalidade desce, baixa. É assim que funciona,
prevê prova técnica, prática. Aí, numa escala, e com o terrorismo não é diferente.
começa-se quebrando pescoço de frango. Como vai
torturar? Há os meios oficiais de tortura. Amigo, é Hoje, há o chamado homem-bomba, marcante entre
dificílimo. Hoje, na Europa, discute-se muito isso. o mártir e o suicida. O suicida é um covarde: mata-
Na execução penal quase não tem efetivamente se porque não conseguiu aturar uma determinada
nenhum benefício. O tempo de pena é praticamente situação. O mártir, não. O mártir morre por uma
todo cumprido. Não se preocupa com conclusão. Na causa. No fundamentalismo islâmico, de acordo
verdade, quer-se excluir o camarada da sociedade. com o Alcorão, não quero ofender ninguém aqui
E esse é o terrorismo. que possa ser muçulmano, mas a única certeza
absoluta de que se vai conquistar o paraíso é
Mas inexiste um conceito ou uma definição exata ser mártir. Sendo um mártir, assim que o sujeito
do que seja terrorismo. Nem tratados internacionais chegar ao paraíso ele já terá 72 virgens, com as
e nem convenções conseguem definir. Na verdade, quais poderá ter relação sexual todos os dias, que
o que se faz, e a lei brasileira fez, é apontar voltam a ser virgem. Olhe que espetáculo: o cara
atos que podem configurar atos terroristas. O morre mesmo. Ele não consegue ninguém, está
terrorismo pressupõe a inflição do terror e se numa secura, vai para o paraíso.
vale da surpresa. A mídia é fundamental para o
terrorista. Afinal, ele quer é aparecer e causar Maomé nasceu em 570. Maomé era comerciante,
um estardalhaço. Em alguns países da Europa, mas não sabia ler nem escrever. Em 610, teve
alguns atentados terroristas não estão sendo mais supostamente uma revelação do anjo Gabriel de
mostrados na televisão porque isso os diminui, que devia recitar. Mas Maomé era analfabeto.
segundo pesquisas sérias. Assim, quando as TVs Alcorão quer dizer “recite”. Maomé teria recebido

193
muitos versículos, que se perderam ou foram Estados Unidos, por intermédio da CIA, criaram
modificados ao longo dos anos. Hoje se vive um os talibãs e têm criado terroristas no mundo
fundamentalismo basicamente absurdo. Na bíblia inteiro por quê? Porque em 1979 houve a invasão
temos os capítulos. No alcorão, as suratas. As do Afeganistão pela União Soviética. E aí eles
suratas mandam matar cristãos, judeus, infiéis. criaram os mujahideens, aqueles guerreiros no
O que o Estado islâmico faz não é nada mais Afeganistão constituídos de islâmicos de todas as
do que cumprir exatamente o que está no partes. O exército que se formou conhecia aquela
alcorão. “Logo fundirei o terror nos corações dos região como ninguém. Dez anos de guerra contra
incrédulos, decapitai-vos.” Não dá para negar a União Soviética motivaram pouco tempo depois
aquilo que está escrito. Ao contrário da bíblia, em formar o grupo Talibã no Paquistão. A Al Qaeda,
que há uma história, no alcorão não há. O alcorão que significa a base, surgiu depois com Bin Laden.
começa com os livros que têm mais capítulos e
vai para aqueles que têm menos capítulos. De um O mundo se cala, sempre se calou, quando os
versículo para o outro não existe uma relação de Estados Unidos cometeram erro: Jogaram bomba
continuidade. Cada versículo trata de um tema, atômica em Hiroshima e Nagasaki, mataram
de um assunto diferente. milhões de pessoas. Não tenho nada contra o
povo americano, mas os governos americanos
Os grupos terroristas atuais são diferentes. têm falhado muito. Nos dois presídios por eles
Antigamente, o IRA, o ETA, o OLP formavam um administrados, o de Abu Ghraib, que voltou a ser
terrorismo nacional que brigava por libertação. dos iraquianos, e o de Guantánamo, praticaram-
O IRA na Irlanda do Norte e o ETA na Espanha se as maiores atrocidades. Dois terços dos presos
queriam a independência dos países baixos. Hoje, eram inocentes, e mesmo assim, eram torturados
não existe uma fronteira, e o terrorismo é chamado porque os Estados Unidos queriam saber quem
de transnacional. Talibã significa estudante. Os eram os terroristas e davam recompensas

194
altíssimas para que a população os dedurassem. irregular, assimétrica, normalmente feita por
Os presos eram colocados num latão de tinta com grupos terroristas. Nessa triste realidade sobre o
um capuz, de braços abertos, num formato de terrorismo, “quem poupa o lobo sacrifica a ovelha”.
cruz, entre dois fios pendurados num dedo e no
outro dedo. Os torturadores diziam: “Se cair da MESTRE DE CERIMÔNIAS: Nesse momento está
caixa, você vai ser eletrocutado”. O fio não estava aberto o espaço para as perguntas. O microfone
ligado em lugar nenhum, mas o camarada ficava encontra-se disponível.
ali em pé sem saber o que estava acontecendo por
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: O senhor tem
dias seguidos. Os interrogados eram colocados
algum conhecimento sobre o que acontece em
num espaço confinado de dois por dois com caixas
Israel, principalmente com o Mossad? Eu tive a
de som potentíssimas. Tocava-se música trash
oportunidade de ler um livro chamado “Filho de
metal durante um minuto, parava-se um minuto,
Hamas”, sobre a tortura e o terrorismo.
e depois de três dias interrogava-se o sujeito. Ele
virava um zumbi e falava o que eles queriam, já que
ROGÉRIO GRECO: É difícil discutir-se uma cultura
estava completamente louco. Isso tudo aconteceu
diferente. Tenho um livro de criminologia em
na gestão do Bush e, em menor proporção, do
espanhol. Nele tem uma foto de três terroristas
Clinton também. O Obama ficou de fechar essas
egípcios da Irmandade Muçulmana, os quais estão
duas penitenciárias.
abraçados, mas num sorriso de ponta a ponta.
Sabe por que estão nessa felicidade? Eles eram
O Estado islâmico, por sua vez, tenta formar um
homens-bomba, não conseguiram explodir e agora
exército para o qual tem equipamento e armamento
foram condenados à pena de morte pelo tribunal.
próprios, vestimenta própria. Os soldados do
Como conter pessoas assim? Bin Laden dizia: “O
Estado islâmico são diferentes e querem partir
seu temor é a minha alegria”. O que o governo
para uma guerra regular, que difere de uma guerra

195
israelense fazia se o camarada era terrorista? Se ORADOR NÃO IDENTIFICADO: A denúncia
fosse homem-bomba e ele se explodisse, destruía- tem que ser feita com responsabilidade. Como o
se a casa dele. Israel foi condenado na ONU diversas Ministério Público garante esse direito?
vezes por conta disso. “Pô, mas que absurdo. O
que a mãe, a esposa e o filho do cara têm a ver?”. ROGÉRIO GRECO: Cada pessoa pensa de um
O governo de Israel destruía a casa. Isso fez com jeito. Essa coisa de que o Ministério Público é
que fossem inibidos esses comportamentos porque uno, indivisível, é mentira, é formalidade. Como
o homem-bomba pode não se importar com a vida procurador de Justiça, às vezes, não concordo
dele, mas a família dele iria ficar mal, certo? É com o que um promotor escreve. Acho até que
justo, legítimo? Não sei lidar com isso, da mesma a função do procurador de Justiça tem que ser
forma que eles não têm a menor noção de como é
revista, honestamente. Não precisa ter procurador
o tráfico de drogas no Rio.
de Justiça, que fala inclusive a mais do que a
defesa, o que ofende até o princípio da isonomia.
Viram recentemente aquele policial da Força
Um falou, o outro falou, todo mundo já falou. Vai
Nacional? O coitado perdeu a direção que estava lá no
GPS, embicou na favela, tomou um tiro na testa e já dar parecer para quê? Cada um é uma cabeça.

morreu. Eles não têm ideia do que acontece aqui no Fundamentou, fundamentou.
que diz respeito ao tráfico, como nós não conhecemos
ORADORA NÃO IDENTIFICADA: Naquela
terrorismo. Então, julgar é muito complicado. Você
falou aí do Mossad. O que aconteceu em 1972 no passagem da possibilidade de se utilizar a tortura
atentado em Munique? Veio um grupo, não sei se como meio para obter a informação do sujeito de
era da OLP ou era outro grupo ligado à libertação haver confessado ter colocado uma bomba, porém
palestina, matou a delegação de Israel inteira em sem identificar a localização, o senhor se manteve
Munique. Alguns conseguiram sobreviver, mas a neutro. Se essa questão fosse objeto de prova
maioria foi morta pelo Mossad depois. discursiva, quais seriam os argumentos favoráveis?

196
ROGÉRIO GRECO: Até mesmo aquelas pessoas é crítica, não é imprensa. Posso não concordar
que são mais garantistas, em determinadas com o islã, discordar do cristianismo, posso
situações cedem por conta da gravidade que não concordar com absolutamente nada. Mas
representa o terrorismo. Obrigatoriamente, exige- colocar Jesus tendo relação sexual com Maria,
se a participação do Poder Judiciário, porquanto a que crítica é essa? Maomé sendo violentado. Isso
polícia não poderia fazer isso por conta própria. Em não é crítica. Ou seja, os caras estão plantando
caso de prisão, deve haver uma fiscalização tanto um ódio extraordinário. Existem coisas que não
do Ministério Público quanto do Poder Judiciário. É precisa. Morreram sete ali e a casa caiu. Na Síria
muito difícil aceitar que uma pessoa seja torturada. morreram mais de 400 mil e ninguém fala. É
Imagine o seu filhinho de três anos de idade ter assim, infelizmente.
sido sequestrado e o cara está a exigir um valor.
Descobriu-se que o grupo é de cinco, e a polícia ORADORA NÃO IDENTIFICADA: Faz muito
tempo que li Direito Penal do Inimigo, livro do
já descobriu o número e está lá na delegacia. E
Jakobs, para fazer TCC. Compreendi que é muito
o seu filho? Podemos tirar do terrorismo e trazer
mais fácil admitir que existe um inimigo e tratá-lo
para a extorsão mediante sequestro? Para os
diferente do que negar que existe um inimigo e
garantistas hiperbólicos, adeptos do garantismo
tratá-lo diferente do que você negar que existe o
ao extremo, não importa que ele vai explodir
inimigo e tratar todo mundo como inimigo, porque
ou vai matar 3 mil pessoas, e os outros que já
a sociedade lhe vai exigir que o trate de forma mais
começam a já se flexibilizar por conta da realidade dura pelo aumento assustador da criminalidade
europeia. Fala-se muito de Europa, de Estados aqui no Brasil.
Unidos, mas só na Síria, nos últimos cinco anos,
houve aproximadamente 400 mil mortos. Síria, ROGÉRIO GRECO: O Jakobs não vive a nossa
Afeganistão ou Iraque não nos importam. Agora realidade. O Direito Penal nunca resolveu e nunca vai
naquele jornal francês Charlie Abdo, aquilo não resolver a criminalidade. Quem resolve o problema

197
de criminalidade é o estado social. Eu fui com o Bope suporta isso. Só o Estado suporta. O Gripo morreu
a uma comunidade chamada Pavãozinho assim que numa troca de tiros pouco tempo depois. Faz uns
foi ocupada pelo batalhão, do qual estou instrutor oito anos, mais ou menos. Pavãozinho reunia uma
sobre direitos humanos. Queriam que lá estivesse população de 40 mil pessoas, sem assistência do
porque o Bope é uma tropa de última intervenção. Estado nas áreas de saúde, educação, lazer, cultura.
Depois das pacificações o Bope passou a ocupar Ali o moleque cresce e você não quer que ele
e a ficar. Se for tirar foto com algum policial no cuspa ou jogue papel no chão, que não furte o seu
batalhão, a pose é essa aqui. Não dê um sorriso. O celular? O Estado não dá educação. O Afonsinho
padrão da equipe de operações especiais é assim. sabe melhor do que ninguém, já que era ‘brizolista’
Só que agora tinha que mudar, porque estava tendo doente, que tivemos uma coisa espetacular no
relacionamento com a comunidade, e o padrão do Rio chamada Ciep, uma escola de estudo integral.
batalhão mudou. Conheci comunidades pacificadas O moleque entrava um pouco antes das 7h da
e não pacificadas Quando fui ao último barraco do manhã, tinha o primeiro cafezinho, o lanchinho do
Pavãozinho, o provedor da casa (o dono) estava meio da manhã, pediatra, dentista, lazer. Voltava
entrevado numa cama com a bacia quebrava e para o barraco dele às 7h da noite e “apagava”. Não
percebia-se que a mulher dele tinha traços de tinha condição de fazer mais nada. Dormia para
uma pessoa com doença mental, assim como duas estar no dia seguinte no Ciep. O referencial era o
filhas do casal. Além delas havia duas criancinhas, professor Darcy Ribeiro. Hoje, qual é o referencial?
da mesma família, brincando no chão daquele lodo É o tráfico. O moleque num morro desse quer ser
verde cheio de lama molhada. Brincavam ali igual entregador de pizza? Não, ele quer portar um fuzil,
porco no chiqueiro. Quando chegamos – René, porque com fuzil ele pega tudo quanto é gatinha.
Max, Gripo e eu – não tinha um grão de arroz na Mulherada dá em cima de quem tem fuzil. Não dá
despensa. Foi instintivo. Nós quatro já metemos em cima de nenhum entregador de pizza. Então,
a mão no bolso e fizemos vaquinha. Ninguém o Estado faz com que o índice de criminalidade

198
cresça, já que descumpre suas funções sociais. No justiça de uma forma absurda, coisas que não têm
Japão, o índice de crimes contra o patrimônio é o menor sentido. Então, o dia em que a gente tiver
baixíssimo. Sabe por quê? Porque o Japão cumpre essa cultura: “Ah, o MP não pode abrir mão”. Pode
as tais funções sociais. Quem possui graninha, não sim. O problema todo é querer ser mais realista
vai ter intenção de roubar o relógio do camarada do que o rei. No dia que lhe der ferramentas e
a seu lado, que é um pouquinho melhor do que o instrumentos para poder fazer vai ser muito bom.
seu, não vai querer roubar o carro do cara. Quando
o Estado é ausente, o crime é presente. Temos ALINE: O Michel Temer é constitucionalista. Quem
muitas vezes é que enxugar gelo. Mas se cumprir resolveria melhor a situação no Brasil seria um
as funções sociais, o Brasil muda. criminalista, especialista em Direito Penal, como
o senhor.
ALINE: Meu nome é Aline, oficial do MP. Gostaria
que explicasse a posição do senhor a respeito da ROGÉRIO GRECO: Mas política assim, estou fora.
Indo para a política, você fica ruim.
justiça restaurativa.

AFONSO HENRIQUE DE MIRANDA: A Danielle


ROGÉRIO GRECO: Hoje em dia, uma das
citou Paulo Freire. Escolas do MST do Rio Grande
alternativas é a justiça restaurativa. Muitas
do Sul foram fechadas sob o argumento de que se
pessoas querem, na verdade, é um abraço, um
ensinava Paulo Freire. A lei antiterror veio com um
pedido de desculpas, um aperto de mão. Só isso.
propósito que, fora o desses megaeventos, causa
Na Promotoria de Direitos Humanos a vida inteira
preocupação. Trabalhamos com direitos humanos,
sempre resolvi chamando uma parte, a outra. Para e esse Direito Penal do inimigo, que veio até de
evitar processo, a composição, a restauração são uma forma menos intensa, é aplicado a quem é
essenciais, principalmente no crime, para evitar vaiado por ser considerado politicamente incorreto
esse monte de bobajada que sobrecarrega a por determinadas posturas que adota.

199
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Neste momento o
procurador Rogério Greco vai receber o certificado.
Agradecemos a presença de todos e desejamos
uma boa-noite.

200
TRANSCRIÇÃO DE “O ENCERRAMENTO DA CARLOS ANDRÉ MARIANI BITTENCOURT:
CAMPANHA ELEITORAL E O DIA DA ELEIÇÃO”, Cumprimento o amigo Carlos Isoldi, que representa
PALESTRA PROFERIDA POR EDSON RESENDE na nossa Corregedoria; o palestrante Edson de
DE CASTRO COMO PARTE DO PROJETO
Resende Castro; o representante da GE, Alberto
“SEGUNDA-FEIRA, ÀS 18H” REALIZADA EM
Guimarães; os colegas aqui presentes, entre eles
26 DE SETEMBRO DE 2016
o nosso coordenador da área de saúde, Gilmar
de Assis. Não preciso apresentar a vocês Edson
Resende de Castro, autor de livros e maior

MESTRE DE CERIMÔNIAS: O Centro de Estudos autoridade em matéria eleitoral no nosso estado

e Aperfeiçoamento Funcional no Ministério Público e que organiza junto com o Tribunal Regional

de Minas Gerais (Ceaf) dá as boas-vindas a todos, Eleitoral de Minas Gerais os cursos e todo o trabalho

no Projeto Segunda-feira, às 18 horas. Na edição de preparação das várias eleições que ocorreram

de hoje trataremos do tema O Encerramento da ao longo dos últimos 14 anos. Então, a parceria

Campanha Eleitoral e o Dia da Eleição. Compõem sedimentada entre o Tribunal Regional Eleitoral

a mesa o procurador-geral de Justiça, Carlos André e o Ministério Público cresceu muito porque

Mariani Bittencourt; o promotor de Justiça e assessor entrávamos na eleição sem uma linha uniforme de

da Corregedoria-Geral do Ministério Público, Carlos conduta e, graças à criação do Centro de Apoio,

Alberto da Silveira Isoldi Filho; o palestrante de os promotores eleitorais passaram a contar com

hoje, o coordenador do Centro de Apoio Operacional uma organização e um apoio efetivo que deu uma

Eleitoral e da Central de Apoio Técnico do Ministério cara à atuação do Ministério Público de Minas na

Público, promotor de Justiça Edson Resende de área eleitoral. Poucos estados têm o privilégio de

Castro. Ouviremos agora o procurador-geral de contar com uma organização como a que temos,

Justiça, Carlos André Mariani Bittencourt. já que a legislação é sempre alterada. Professor
de Direito Eleitoral na pós-graduação da PUC e

201
do Instituto de Desenvolvimento Democrático modalidade de propaganda pode ser feita ou se
(IDDE), Edson Resende de Castro é professor de tem que terminar. As várias formas de veiculação
Direito Eleitoral na Escola Judiciária Eleitoral do da propaganda eleitoral permitidas até aqui
Tribunal Regional Eleitoral e na Escola Nacional de continuam inalteradas. Aquilo que vimos em outras
Magistratura, é coautor e coorganizador do livro Lei ocasiões de propaganda em bem particulares, em
da Ficha Limpa. Também foi membro da comissão veículos, em jornais, na internet, além da proibição
de juristas do Senado pelo novo Código Eleitoral, em bens públicos em geral, tudo isso continua
vice-‑presidente da Associação Brasileira de dessa mesma forma até na quinta-feira, última
Magistrados, Procuradores e Promotores Eleitorais. oportunidade da realização dos comícios e também
da propaganda no rádio e na televisão, porque diz
EDSON RESENDE DE CASTRO: Uma rotina de o Código Eleitoral que não será realizada
palestras às segundas-feiras está sendo assimilada propaganda mediante radiodifusão e comícios na
por todos. Cumprimento a quem assiste e véspera (sábado) e na antevéspera (sexta-feira).
acompanha das promotorias o que está sendo Nesses dias não pode haver. Uma modificação, de
transmitido. As regras eleitorais, especialmente as duas eleições para cá, permite que os comícios
da propaganda nesta última semana de campanha avancem até às duas horas da madrugada da
e também no próprio domingo da eleição, vigoram sexta-feira o que até então eram feitos das 8 horas
durante boa parte ou quase toda a campanha da manhã até à meia-noite. Só para o comício de
eleitoral, mas ao chegar à final as regras vão se encerramento da campanha o legislador entendeu
alterando e a propaganda vai acabando aos poucos. de prorrogar por mais duas horas. Normalmente,
Ela não começa toda no mesmo dia e também não o juiz, o promotor, e também o advogado,
termina toda no mesmo dia, no mesmo momento. defendem um lado e aí tem que se controlar o
Então, é interessante passear, diríamos assim, pelo outro. Enfim, esse controle recíproco sempre
calendário eleitoral para sabermos até quando uma encontra muita dificuldade quanto ao horário de

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encerramento, já que o candidato quer estendê-lo maiores, em que os locais são distantes um do
um pouco mais. Havia reclamação geral de que o outro, também há uma presença maior de
horário era muito cedo, e o legislador entendeu segurança pública, mais contingente policial, e isso
que o comício de encerramento pode ir até às duas acaba não despertando tanta preocupação, mas
horas da madrugada de sexta-feira, invadindo, nas cidades pequenas, quando há dois eventos
portanto, um pouco a antevéspera da eleição. É num mesmo dia, é preciso que o juiz ou o promotor
importante pontuar que não só esse comício da chame os partidos envolvidos para negociar quem
quinta-feira mas todos os comícios, que a lei chama vai usar o comício do último dia e, às vezes, até
de reuniões públicas em espaços abertos ou permite os dois, desde que em horários diferentes,
fechados, têm de ser comunicados previamente à diante da possibilidade de haver ali agressões
autoridade policial. No caso, entende-se como recíprocas e transformar aquele ambiente numa
autoridade policial o comandante da Polícia Militar. praça de guerra, como já vimos em inúmeras
Para efeito de reserva do espaço, outro partido, situações. Agora mesmo, vim direto do TRE, onde
outra coligação, outro candidato não podem funciona o Gabinete Institucional da Segurança
realizar ou ocupar o mesmo espaço, especialmente das Eleições, que é integrado pela presidência do
nos últimos dias, em que os ânimos costumam se TRE, pelo Ministério Público Estadual, pela
acirrar ainda mais, a temperatura tende a subir. A Superintendência da Polícia Federal, Comando-
legislação determina comunicar para exatamente geral da PM, Polícia Civil, Secretaria de Defesa
garantir aquele espaço ao partido, ao candidato ou Social e vários órgãos, para pensar a segurança
à coligação que primeiro fez a comunicação. Não nesses últimos dias e a distribuição de todo o
raro, há dois comícios planejados para locais muito contingente policial no dia da eleição. Estamos nos
próximos. Não seria o mesmo local, mas bem reunindo há umas três semanas, e em todas as
perto, e isso traz uma preocupação muito grande reuniões temos notícias de enfrentamentos, de
principalmente nas cidades pequenas. Nas cidades acirramentos de ânimos, principalmente nas

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cidades menores, que normalmente nem sede de circular na sexta-feira com a propaganda eleitoral,
comarca são. É o município que integra a comarca ou seja, continuam aquelas mesmas regras. O
pequenininho, cinco mil habitantes, e aí a confusão tamanho nos jornais não pode ultrapassar um
se arma quando há dois ou mais eventos num oitavo de página. Nas revistas, um quarto de
mesmo dia. No que diz respeito à quinta-feira, página. O importante é conjugar essa data final da
rádio e TV não transmitem a propaganda. Mas os propaganda veiculada em jornais e revistas com o
comícios despertam realmente alguma tensão. número de anúncios a que cada candidato ou
Cabe, pois, bom senso do candidato. Quando não partido político tem ao longo da campanha. O
for possível, a Justiça Eleitoral terá que impedir a limite não seria só da sexta-feira, mas, sim, o
realização, em nome da segurança pública. De um limite numérico de anúncios. A lei fixou, na reforma
lado, o direito de o candidato, de o partido fazer a eleitoral de 2009, o limite de dez anúncios ao longo
propaganda. De outro, o ato de propaganda não de toda a campanha, exatamente na linha do
seria um direito apenas do candidato. Em tese, combate ao abuso de poder econômico, porque
seria o direito de o próprio eleitor se informar a esses anúncios são pagos. Os anúncios pagos em
respeito das propostas que os partidos e os jornais e revistas, para frear um pouco o abuso da
candidatos têm a transmitir. Mas se houver utilização de recursos financeiros nas campanhas,
elementos concretos de acirramento, em que a foram fixados por lei em dez por candidato ou por
polícia não possa dar condições a essa segurança, partido em cada veículo de comunicação. Então, se
é preciso sacrificar algum interesse. Na sexta-feira, o candidato, ao longo de campanha, gastou esses
ainda é possível anúncio em jornais e revistas. A dez anúncios, claro que esse limite da sexta-feira
lei fala em imprensa, que consiste aqui é jornais e já terá sido atingido pela publicação dos dez
revistas, já que quando se trata de rádio e televisão anúncios anteriores. Mas para aquele que contou
há uma disciplina separada na Lei Eleitoral. Então, os seus anúncios, ele ainda poderá fazer o anúncio
imprensa aqui é jornais e revistas, os quais podem na sexta-feira. Até pouco tempo atrás, os anúncios

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poderiam sair até no próprio domingo da eleição colar adesivos e papéis em bens particulares,
no jornal que circulava com a data do domingo. No conforme art. 37 da Lei das Eleições, § 2º,
sábado da eleição não pode propaganda no rádio e dispositivo modificado na reforma de 2015, o qual
na TV, não há mais comícios, não existem mais as exclui automaticamente qualquer outro meio de
publicações nos jornais e revistas. É possível, divulgação nos bens particulares. Enquanto na
porém, a distribuição de material impresso, ou redação anterior a propaganda em bens particulares
seja, a panfletagem, o santinho que fica era livre e independente de autorização do
normalmente nas ruas, mas que obedece a algumas município ou da Justiça Eleitoral, podendo se
regras: mencionar o nome do vice, o partido a que manifestar em faixas, placas, cartazes etc., a nova
pertence o candidato, o CNPJ de quem contratou, lei diz que: “a propaganda eleitoral em bens
de quem pagou, e também a tiragem, tudo para particulares pode ser feita desde que em papéis e
efeito de controle financeiro das campanhas adesivos”. O ‘desde que’ significa a enumeração
eleitorais. Parte das informações é destinada ao de apenas duas formas: papel e adesivo, que é
eleitor, como o partido a que pertence, o nome do exaustiva. Costumo brincar que a lei simplesmente
vice. Já CPF e CNPJ são importantes para o controle cassou a criatividade dos partidos, das coligações
de gastos de campanha porque tudo isso vai depois e dos candidatos para inventar outras formas, e já
para a Justiça Eleitoral. Os fornecedores ou as tivemos ao longo da história inúmeros meios que
gráficas, em geral, têm as notas fiscais eletrônicas, foram sendo inventados mesmo pela criatividade
que hoje são disponibilizadas pelo próprio sistema do marketing dos próprios candidatos para aparecer
à Justiça Eleitoral. O sistema de prestação de o máximo possível. Lógico, na propaganda quem
contas eleitorais puxa aquelas informações para aparece mais, tem mais chances de fixar a sua
depois serem cruzadas com as prestação de contas imagem, de transmitir ideias, e isso era até
dos candidatos para eventualmente encontrar interessante. No sábado, ainda é possível pôr papel
alguma inconsistência. Ainda é possível no sábado ou um adesivo numa propriedade particular que

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até então não tinha. No domingo da eleição, essa reunião pública, mediante passeata e carreata, da
propaganda pode permanecer mas sem ser outra reunião pública que são os comícios. Houve
inovada. Colocada até o sábado, ela pode tempos em que entendíamos que carreata e
permanecer onde estiver, passando pelo domingo passeata se incluíam na mesma disciplina dos
da eleição. Trinta dias depois, toda a propaganda comícios, por serem também reunião pública e
deve ser removida, o que é objeto de muita ocuparem um espaço público. Mas o TSE foi fazendo
polêmica porque a lei não fixa obrigação de retirada essa distinção até que a lei positivou esse
de propaganda eleitoral. O TSE é que, por meio de entendimento e, hoje, está lá na lei previsão de
resolução, determina retirá-la, e a polêmica toda carreatas e passeatas até às 22 horas, para o
fica na hora de se exigir o cumprimento quando os desespero de muita gente, principalmente de quem
candidatos e os partidos não o fazem está incumbido da boa ordem eleitoral, porque no
espontaneamente. Mas o fato é que a propaganda sábado os ânimos estão realmente muito acirrados,
veiculada legitimamente, no momento em que é principalmente quando a disputa apresenta uma
permitida, pode permanecer onde estiver até 30 indefinição muito grande. Nos dias finais, a
dias pós-eleição. Também no sábado é possível tendência é a de os candidatos lançarem mão de
postagem na página do candidato ou do partido seus últimos argumentos, de suas derradeiras
político na internet ou nas redes sociais. Só para possibilidades. Logo, intensificam muito a
frisar: no sábado excluem-se aquelas da quinta- propaganda e, não raro, os meios ilícitos de
feira e da sexta-feira, sendo positivadas as captação de votos nesses últimos dias. Afinal de
carreatas e passeatas, as quais não deixam de ser contas, quem não fizer até ali, só daqui a quatro
uma reunião pública. A diferença é que as pessoas anos e, como brincava um político conhecido meu
vão caminhando pelas ruas ou se deslocando em lá da primeira comarquinha: “Dr. Edson, o político
seus veículos, ocupam espaço público. Ao longo do só conhece um crime eleitoral, que é perder as
tempo, o TSE estabeleceu diferenciação entre essa eleições. Só isso que não pode. Os outros crimes

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são menores e podemos cometer. Depois a gente O domingo da eleição, sabemos, é reservado para o
resolve como é que fica”. O sábado realmente é eleitor. E a lei claramente proíbe e chega, inclusive,
um momento tenso e há a necessidade de as a tipificar como crime eleitoral qualquer espécie
polícias civil, militar e federal terem uma presença de propaganda veiculada no domingo. A chamada
forte, principalmente nos municípios menores. Não boca de urna se caracteriza pela divulgação ou
satisfaz o envio de forças somente no domingo da veiculação de propaganda eleitoral e qualquer
eleição. É preciso presença da polícia, policiamento aliciamento de eleitores. Hoje ouço menos isso, mas
intensivo no sábado, e essas carreatas são um já houve tempo em que as pessoas eram levadas
verdadeiro tormento porque partidos ou candidatos a pensar que a ‘boca de urna’ significava estar nas
as querem realizar e, embora saiam de locais proximidades da seção eleitoral: “Olha, não pode
diferentes de cidades pequenas, vão se cruzar em fazer propaganda eleitoral a 100 metros do local
algum momento. Domingo mesmo houve o de votação porque isso caracteriza boca de urna”.
cruzamento de duas carreatas numa cidadezinha Fiquei curioso durante muito tempo para saber de
próxima daqui, o que acabou em tiroteio e uma onde saíram esses 100 metros e concluí que talvez
pessoa ferida gravemente. Uma festa democrática, sejam de um dispositivo do Código Eleitoral que
que deveria ocorrer num ambiente de disputa diz que o poder de polícia da seção eleitoral é do
racional, acaba gerando essas ocorrências. O juiz presidente da Mesa Receptora de Votos. Ele é a
daqui também pode e deve tomar parte nessas autoridade administrativa no exercício do poder
carreatas, chamar os envolvidos para tentar um de polícia, ou seja, se uma determinada pessoa
acordo sobre o momento de realização. Um realiza estiver tumultuando o ambiente, quem tem o
pela manhã, outro à tarde, para afastar a poder de determinar que essa pessoa seja retirada
possibilidade de os conflitos se transformarem em dali para resgatar a ordem é o presidente daquela
tragédia. seção eleitoral. A polícia só adentrará nesses 100
metros se chamada pelo presidente. Então, a

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autoridade do presidente da Mesa é na seção e eleitoral entregar santinho de campanha, impresso,
nos 100 metros em torno dela. Isso para colocar adesivo, seja o que for, ao eleitor no domingo da
a polícia distante desse ambiente, onde só deve eleição. O TSE avaliou cinco anos atrás o caso de
prevalecer a autoridade do presidente da Mesa. alguém que foi preso entregando santinho a um
Talvez dessa disposição que estabelece 100 metros eleitor. Abordado em flagrante pela polícia, ele
em torno da seção eleitoral tenha surgido essa ideia argumentou que foi um único santinho que havia
de que a boca de urna se caracterizaria quando a sido entregue e, na busca pessoal, não encontrou
propaganda fosse feita ali, mas a verdade é que mais nenhum santinho. Era só mesmo aquele. Se
não existe isso na lei. Ao contrário, tipifica como ele já tinha entregado outros, não se sabe. Há quem
crime a propaganda eleitoral divulgada no domingo diga que nenhum candidato ou cabo eleitoral faz
da eleição. Parece que a boca de urna tem muito uma única propaganda. O que continha nos autos
mais significado temporal do que de localização era isso: um único santinho. E ele foi processado
geográfica de veiculação de propaganda. Até pelo crime, não aceitou transação etc. e a coisa
porque algumas espécies seriam de difícil solução. foi subindo até chegar ao TSE. Como a prova
Imagine uma propaganda na internet. Em que demonstrava, um único santinho descaracterizaria
computador o sujeito estava no momento em que crime, pela insignificância. Nossa conterrânea
a veiculou? Estaria a uma distância de 100 metros? ministra Carmem Lúcia avaliou a aplicação do
Não haveria, inclusive, possibilidade de controle. princípio da insignificância no âmbito eleitoral e
O artigo 39, § 5º, da Lei das Eleições diz que a não se limitou à boca de urna. Ampliando um pouco
propaganda eleitoral veiculada no dia da eleição o raciocínio, quando terminou de votar os demais
caracteriza crime e sujeita a pessoa a condução ministros nem sequer fizeram comentário, porque
em flagrante até a presença de autoridade policial. o voto realmente foi brilhante. No entendimento
Por se tratar de crime de menor potencial ofensivo, dela, não se aplica o princípio da insignificância
será resolvido posteriormente. É, pois, propaganda em matéria eleitoral. Especialmente nesse crime,

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não se pode considerar o eleitor como uma peça jurisprudência consolidada no tribunal de que basta
insignificante no processo eleitoral. Na medida em um eleitor comprado para que se casse o registro
que a lei tipifica como crime veicular propaganda ou diploma do candidato que comprou esse voto.
eleitoral no domingo, a lei está protegendo a Eis a importância em si de cada eleitor, não a do
liberdade do eleitor, está consagrando o domingo eleitorado. Eleitorado, obviamente, é muito mais,
da eleição como um dia em que o eleitor deve estar mas basta considerar o eleitor, sem a necessidade
livre de qualquer processo de convencimento para de pensar em muitos eleitores.
que possa tomar a sua decisão com os elementos
que ele foi recolhendo ao longo da campanha E esse derrame de material impresso nas ruas
eleitoral, e aquele domingo seria o Dia do Eleitor, na noite de sábado é um verdadeiro tormento
e não o Dia do Eleitorado. Cada eleitor, portanto, é em cidades pequenas. Em Belo Horizonte também,
considerado como bem jurídico protegido. O bem mas em cidades menores costuma ser muito mais.
jurídico protegido é a liberdade do eleitor. Como É praticamente cultural os candidatos e os partidos,
cada eleitor é o próprio bem jurídico, não havia no final da noite de sábado ou na madrugada
falar em insignificância. de domingo, despejarem todo o material que
sobrou da campanha eleitoral. Talvez para não
No crime de compra de votos, o bem jurídico desperdiçar, jogam todo aquele material nas
protegido é também a liberdade da escolha do eleitor, proximidades das seções eleitorais. Forma-se ali
que acaba sendo corrompida pela substituição um verdadeiro tapete de impressos na esperança
do diálogo, do discurso, das promessas, dos de que um eleitor ainda indeciso possa apanhar
programas de governo, pela vantagem patrimonial algum santinho daqueles ali, adentrar na seção
que é oferecida ou dada ao eleitor. Tal raciocínio sai eleitoral e copiar aquele número na hora, já que
do âmbito puramente de boca de urna e vai para ele pode levar esse material como cola. E esse
outras situações, inclusive a compra de votos. Há derrame vem sendo combatido de variadas formas.

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Muitos colegas até fazem requisição à prefeitura propaganda eleitoral constitui crime se feita da zero
de limpeza ainda na madrugada. Agora mesmo um hora em diante. Mas há também quem pense que
colega comentou comigo que já ajustou a limpeza o material lançado às 10 horas da noite de sábado
urbana do município dele a partir das cinco horas permanece no local e estaria fazendo propaganda
da manhã . Vão fazer recolhimento de tudo aquilo permanentemente, até ser retirado dali. Alguém
que tiver sido jogado ali. E eu comentava, antes pode apanhar e ter contato com a propaganda
de começarmos, que esse derrame de material que, nesse caso, estaria sendo feita no domingo
provoca até algumas situações lamentáveis. Há da eleição. Tirem suas conclusões, já que o tema é
uns cinco anos, numa matéria passada inclusive no bastante polêmico.
Jornal Nacional, uma eleitora de 70 anos de idade,
no local de votação passou por aquele tapete Quem posta propaganda na internet, nas redes
todo ali e escorregou em cima dos santinhos. sociais, no dia da eleição também comete o crime
Na queda, quebrou a perna. Tudo isso por causa de boca de urna, e é fácil verificar porque as
desse artifício de última hora. Então, o fato de postagens ficam datadas. Proíbe-se colar adesivos
fazer esse derrame já caracteriza o crime de em imóveis ou em veículos no vidro traseiro ou
boca de urna porque aquilo tem o objetivo e a adesivos pequenos de 50cm por 40cm no máximo
potencialidade de propagar a candidatura no dia e nas outras partes do veículo no domingo da
chegar mesmo ao eleitor. eleição. Quanto à aglomeração de eleitores, em
conjugação com aquela manifestação individual e
O derrame de material impresso, mesmo que silenciosa que a lei permite, faria aqui a inversão.
feito na véspera da eleição depois das 22 horas, A lei diz que não configura crime de boca de urna a
caracterizar crime de boca de urna é questionável manifestação individual e silenciosa do eleitor pela
porque o crime é fazer a propaganda eleitoral sua preferência. Aqui o legislador e, nesse ponto
no dia da eleição. Em princípio, a veiculação de também a lei, seguiu os passos da jurisprudência,

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porque no momento anterior a legislação nada juntas pelas ruas ou duas pessoas paradas numa
dizia desse livre pensamento político. O TSE é que esquina, ambas com a propaganda de um mesmo
concebeu a ideia de que quando o eleitor traz nas candidato, caracterizaria ou descaracterizaria a
suas vestes, por exemplo, um brochezinho ou um manifestação individual. Logo, não se incluiria na
adesivo de peito — na época permitia-se camisa de exceção, porque essa norma é norma de exceção,
candidato — isso não podia ser considerado como e, como tal, deve ser interpretada estritamente.
propaganda. Ele não estava fazendo propaganda.
Estava simplesmente tornando pública a sua Exceção quanto à veiculação da propaganda, porque
preferência por um determinado candidato, a pessoa se levanta de manhã, põe a camisa, prega
e isso, então, ficava nos limites no Direito o broche, o dístico, e sai às ruas, em tese, veiculando
Constitucional da manifestação do pensamento a propaganda. A lei diz que não caracteriza o
político. O TSE instituiu a ideia, e a lei positivou crime porque prevalece neste momento o Direito
isso no art. 39. Mas vejam, o dispositivo foi fiel à Constitucional à manifestação do pensamento.
construção jurisprudencial: “Não caracteriza crime Duas pessoas ou mais já não estariam acobertadas
a manifestação individual e silenciosa do eleitor”. pela exceção (da lei). E a aglomeração de gente?
Existem duas condicionantes aqui: a manifestação Na verdade, conta mais a postura das pessoas do
ser individual e ser silenciosa. Quanto a ser que propriamente o número. A rigor, duas pessoas
silenciosa, alguém sairia às ruas com adesivo ou já não é mais manifestação individual, daí ser
uma coisa qualquer do candidato gritando, por muito mais importante verificar a postura delas.
exemplo, o nome dele, ou não seria silenciosa se Pode acontecer duas pessoas que saíram cada qual
ele saísse falando às ruas sugerindo às pessoas o da sua casa em direção à seção eleitoral para votar
voto? Isso não costuma ser o problema. O problema e se encontrem ocasionalmente. Olhando uma
reside nessa manifestação individual porque em para a outra e vendo que a propaganda era igual,
princípio, ou a rigor, duas pessoas caminhando diria uma delas: “Não se aproxime de mim”. Isso

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não parece razoável. Dois amigos resolvem votar 50cm x 40cm. Até a eleição anterior, tínhamos o
juntos, cada um coloca a sua camisa e não podem envelopamento, que em alguns locais chamam
ir juntos porque caracterizaria... A construção de plotagem. A depender de tamanho do veículo,
jurisprudencial não se inspirou nisso. Vejam bem: aquilo virava um outdoor. Bastava ser van ou
a permissão legal de o eleitor trazer consigo a caminhãozinho baú, que aquilo tinha mais impacto
propaganda do candidato da sua preferência, visual do que o próprio outdoor, e com a vantagem
desde que individual e silenciosa, é muito mais de que ficava circulando, renovando seu público a
para considerar o Direito Constitucional de todo momento. Agora a lei diminuiu isso. Ficou só
manifestação do pensamento, é muito mais para nessas medidas a que me referi. Mas imaginem
dizer que ali naquele gesto, naquele momento, quem leva o veículo adesivado, mesmo que com
não há propaganda eleitoral propriamente. esses limites, e o estaciona perto da seção eleitoral
Independentemente da aglomeração ou não de bem cedinho para pegar um lugar bom, aquele
pessoas, pode-se perfeitamente ter propaganda na portinha mesmo, pela qual todos os eleitores
eleitoral quando veiculada por uma única pessoa. têm que passar, deixa o carro lá e vai embora
para casa. Essa atitude é de franca propaganda
Há situações em que o sujeito coloca uma eleitoral. Ele não estacionou o carro para entrar,
propaganda de todo tamanho no peito e fica votar e ir embora. A intenção aí é obviamente de
parado por horas na porta de uma seção eleitoral. veicular propaganda eleitoral.
Nesse caso, embora ele esteja individualmente,
a postura dele é de franca propaganda eleitoral. No domingo da eleição, além do crime de
Imagine aquele veículo com adesivos ocupando o boca de urna, há o problema do transporte,
vidro inteiro. Agora, a lei até contribuiu um pouco, fornecimento e alimentação de eleitores. O
porque é possível a propaganda, desde que no transporte e alimentação de eleitores é proibido
vidro traseiro e nas laterais os adesivos sejam de pela Lei 6091/1974. Quanto ao crime, a lei trata

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um diferentemente do outro. Ninguém poderá controle inclusive sobre a compra de votos, já que
fornecer transporte aos eleitores, a não ser a o eleitor, muito acostumado a obter o transporte
própria Justiça Eleitoral, quando entender que, e a alimentação, saía procurando os candidatos
devido à distância das residências em relação ao para ganhar o almoço, o lanche da tarde. Porém,
local de votação, as pessoas realmente necessitem se a Justiça Eleitoral se organiza previamente, no
de transporte. Costumo dizer que o transporte de domingo na eleição quase não haverá transporte.
eleitores vai depender da prévia organização da Mas o juiz pode e deve organizar o transporte de
Justiça Eleitoral, ou seja, no alistamento eleitoral, eleitores ao requisitar veículos das prefeituras, das
na transferência. Se o cartório eleitoral tiver boa autarquias, em número suficiente. Afinal, os órgãos
visão do espaço territorial da zona, ele vai destacar públicos são obrigados a fornecer no dia da eleição
seções eleitorais próximas ao aglomerado de o veículo com motorista e tanque abastecido.
eleitores. Ninguém precisa ir muito longe para
exercer o direito de voto. Não há a necessidade A lei manda que o juiz publique antecipadamente
de transporte e nem aquela confusão gerada por os percursos dos veículos de transporte, para
pessoas indo e vindo no dia da eleição. Na zona que os eleitores se organizem. Transportar eleitor
rural, era difícil encontrar alguma seção eleitoral, desde o dia anterior até o dia posterior à eleição, ou
e as pessoas tinham de ir à cidade. O chefe do seja, no sábado, no domingo e na segunda-feira,
cartório me disse: “As pessoas gostam de votar constitui crime eleitoral dos mais pesados. A lei fixa
na cidade porque é um motivo para passarem o aqui uma pena de quatro a seis anos. Em 1974,
domingo inteiro ali. Então, a praça fica cheia de essa era uma realidade que mudava as eleições.
gente, fica aquele movimento”. Mas tanto para o Numa população majoritariamente rural na época,
Ministério Público quanto para a Justiça Eleitoral, os candidatos se organizavam para transportar
desculpem a expressão, é um inferno aquele eleitores porque esse era um meio eficiente para
tanto de gente se movimentando. Perdemos o a cooptação de votos. Também o fornecimento de

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alimentação no dia da eleição segue a mesma lei. instrumento que possa registrar o voto. O aparelho
A diferença é que os eleitores vêm para a cidade no celular que tem câmera fotográfica e filmadora e,
sábado, pernoitam, participam da eleição e voltam claro, a própria câmera seria uma forma de ele
na segunda-feira. Nesse período todo, o transporte comprovar o cumprimento da obrigação desse
constitui crime. Já a alimentação, constitui crime contrato. Imaginem o eleitor vender o voto e o
no dia da eleição. candidato dizer: “Traga a prova que você votou em
mim e eu pago o preço ajustado”.
A compra de votos, conforme o art. 299 do Código
eleitoral, constitui crime ao dar, oferecer, prometer Em algumas situações, o preço do voto é pago em
ou entregar vantagem pessoal de qualquer parcelas. Logo que entrei no Ministério Público em
natureza com o objetivo de obter o voto ou a Janaúba, recebemos notícias de que um candidato
abstenção do eleitor. Algo que pouco se vê e se estava comprando voto. Há uma diversidade
explora é o fato de que se pode comprar o voto do de formas de compra: cesta básica, material de
eleitor para votar no candidato como também, se construção, conta de luz, consulta, remédio. Nesse
não der para convencer o eleitor a votar nele, que caso, eram dentaduras. Solicitei um mandado de
pelo menos ele não vote no adversário. Então, dar, busca ao juiz, e o oficial quando a fez apreendeu
oferecer, prometer ou entregar vantagem pessoal um saco de dentaduras que, na conferência,
para o eleitor deixar de votar também constitui trazia o nome dos eleitores. Ao separar aquelas
crime. Trata-se, obviamente, de um crime formal, dentaduras, verifiquei que só tinha uma, não lembro
até porque o resultado ninguém pode atestar. se era a parte superior ou a inferior. Cada eleitor só
Ninguém é capaz de afirmar que o eleitor recebeu era contemplado com uma parte. E aí as pessoas
e votou, de fato, naquele determinado candidato. contaram que receberam a primeira parte e que
Pensou-se nisso inclusive ao proibir o eleitor de o candidato justificou que elas só receberiam a
ir à urna eletrônica levando consigo qualquer segunda parte caso ele fosse eleito. Normalmente,

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quando contamos isso, a primeira reação é de existem as penas de multa e de reclusão, no cível
dar risada. Passado esse momento, ficamos até há a cassação do registro ou diploma. No domingo
indignados porque, além de a compra de voto ser da eleição, a experiência mostra que os cabos
por si reprovável, ainda temos, é lamentável, que eleitorais criam muito mais problemas do que os
prender o eleitor. A forma utilizada era de tal forma próprios candidatos. Talvez por desinformação
eficiente que o eleitor não só se sentia obrigado a ou o tipo de orientação que recebem, os cabos
votar nele (na época não havia celular, máquina eleitorais acabam provocando muita desordem. O
para registrar, mas ele fazia com que o eleitor partido credencia fiscais para as seções eleitorais,
votasse nele ou, no mínimo, torcesse por sua mas eles em vez de fiscalizarem e assegurarem a
vitória. O contrato não era: “se votar em mim, eu lisura do processo, acabam criando muito tumulto
lhe dou a segunda parte”. O combinado era: “se eu nas seções eleitorais ao querer impor o ritmo dos
ganhar as eleições, se eu for eleito”, o que colocava trabalhos ali na Mesa Receptora de Votos. O Código
o eleitor torcendo e pedindo a seus familiares: “só Eleitoral tipifica como crime, de menor potencial
vou receber a segunda parte se ele for eleito; então, ofensivo é verdade, esse “provocar desordem e
votem todos aí”. Em tom de brincadeira, digo que tumultuar o trabalho de recepção dos votos”.
ele, no mínimo, rezava para o sujeito ser eleito.
A compra de votos ocorre a qualquer momento. MESTRE DE CERIMÔNIAS: Aqueles que tiverem
Ela não é um delito só no domingo da eleição. Eu perguntas podem levantar a mão e o microfone
citei o domingo porque ainda no domingo acontece será levado.
a compra de votos, mas já tivemos domingos da
ALBERTO: Há algum controle a respeito da
eleição sem que houvesse a compra de voto. Estou
candidatura de servidor público que pede
falando de crime, mas obviamente a captação
afastamento, salvo engano, de 90 dias? Porque
ilícita de sufrágio tem os mesmos núcleos: dar,
aconteceu um caso no estado muito engraçado:
oferecer, prometer e entregar. Enquanto no crime

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uma servidora, que era de um município menor, Portanto, existe e estamos de um tempo para
não teve nenhum voto, quer dizer, nem ela votou cá de olho nisso. Para essa eleição, inclusive,
nela. Isso existe mesmo? fizemos recomendação aos municípios de no
momento em que o servidor pedisse afastamento
EDSON RESENDE DE CASTRO: Alberto, para se candidatar ele fosse advertido quanto
infelizmente existe. Pedimos que o TRE um ano às consequências de uma licença apenas para
e meio atrás fizesse um relatório de todos os gozar desse período sem corresponder a uma
candidatos servidores públicos com até dez votos. candidatura de fato, o que denota configuração
Para nossa surpresa, veio uma lista de centenas do crime de improbidade. Fizemos isso este ano e
com zero voto. O que leva um candidato a não vamos ver o resultado. Mais ou menos na mesma
votar nele próprio? A hipótese levantada foi a de linha, as candidaturas femininas poderiam ter sido
uma candidatura fictícia, o que nos levou a remeter apresentadas apenas para suprir o percentual
essas situações para os promotores tanto eleitoral, de 30% que cada partido tem de apresentar nas
por se tratar de falsidade ideológica, quanto do candidaturas proporcionais, já que sabíamos que
patrimônio público, em razão da improbidade muitos partidos arregimentavam mulheres para as
administrativa. Na medida em que a pessoa afirma candidaturas, mesmo que elas de fato não fossem.
uma candidatura de zero voto, um voto, cinco O resultado foi semelhante: tivemos centenas de
votos, recomendamos aos colegas examinarem a mulheres com votação zero, configurada, pois,
prestação de contas, porque também se verificou a apresentação de candidatura fictícia só para
prestação de contas praticamente zerada, ou seja, preencher o percentual.
a pessoa arrecadou nada, gastou nada, não fez
um santinho. Outras faziam meia dúzia de coisas e ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Professor,
ficavam ali cinco votos. queria que falasse um pouco sobre os limites da
atuação das organizações não governamentais,

216
especialmente os sindicatos, nas eleições, já empresário como pessoa jurídica não pode fazer
que eles são canais legítimos de manifestação, doação e o sindicato também não. Fica, portanto,
principalmente do candidato sem recurso. para as pessoas físicas fazerem suas doações.

EDSON RESENDE DE CASTRO: O Supremo ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Desde 17 de


considerou inconstitucional a participação das setembro nenhum candidato pode ser preso,
pessoas jurídicas nas campanhas eleitorais, o que exceto quem for pego em flagrante, e a partir de
deu uma reequilibrada nessa questão. Mas até 2014 amanhã, 27 de setembro, nenhum eleitor poderá
as empresas podiam doar fortunas. Imaginem 2% ser, salvo em delito flagrante. Como funciona a
do faturamento dessas envolvidas na Lava-Jato. prisão preventiva? E faço até uma brincadeira
De um lado, uma só empresa era capaz de eleger apartidária: poderia amanhã haver a prisão
vários candidatos, inclusive majoritários. Do outro provisória do Palocci?
lado, o sindicato não podia doar. Então, sob o
ponto de vista socioeleitoral, era um desequilíbrio, EDSON RESENDE DE CASTRO: O dispositivo
ou seja, o empresário, dono do recurso financeiro, 236 do Código Eleitoral intitulado Das Garantias
podia doar e fazer, por exemplo, a sua bancada Eleitorais realmente veda a prisão do eleitor nos
ruralista no congresso, tudo resultado do poder cinco dias anteriores à eleição e a dos candidatos
econômico injetado no processo. Os trabalhadores nos 15 dias que a precedem. Com a ressalva da
não podiam fazer, como continuam não podendo. prisão em flagrante, mesmo a flagrante tem que
O argumento de bastidor é que o sindicato é ser convertida pelo juiz em preventiva, ou seja,
financiado com recurso público, o que nunca me ela é só mantida quando presentes os motivos
pareceu ser uma justificativa razoável. Havia ali, da prisão preventiva. O ato inicial é o flagrante.
com certeza, um tratamento desigual da própria O decreto de prisão preventiva é apenas para
lei. Agora, encontramos algum equilíbrio, já que o confirmar o flagrante ou manter a pessoa presa.

217
Nos 25 anos de Constituição, até hoje o TSE não volta para o sistema. Isso me parece absurdo”.
se pronunciou. O fato é que o dispositivo vem Ademais, a proteção não alcança aquela pessoa
sendo aplicado e já tivemos algumas situações que empreendeu fuga porque a situação jurídica
curiosas daquele prefeito, ou ex-prefeito, não dela continua sendo a de preso. Em situação
lembro mais, de Januária, que foi preso dez dias normal, o decreto de prisão preventiva não pode
atrás numa prisão preventiva, numa operação ser cumprido dentro dos 15 dias, quando for
da Polícia Federal, e fugiu de dentro da viatura candidato, ou dentro dos cinco dias quando eleitor
ao abrir a porta e sair correndo. Do gabinete comum. O juiz, se decretar, terá que esperar passar
institucional o superintendente da Polícia Federal esse período para só depois ele ser preso.
indagou: “Podemos continuar a busca?”. Como
adentrou o período de vedação, estabeleceu-se ORADORA NÃO IDENTIFICADA: Como deve
até uma discussão porque defendi a ideia de que, proceder o chefe da seção eleitoral na questão eleitor-
nesse caso, não se trataria de prisão e sim da celular. Hoje as pessoas, tão sem noção, tiram selfie
recaptura da pessoa, e foi voto vencedor dentro até no caixão com velório e, assim, a possibilidade
da comissão. A pessoa foi presa e, já nas mãos do de querer tirar selfie votando é muito grande.
Estado, ela consegue empreender fuga. Então, o
EDSON RESENDE DE CASTRO: Outro dia,
Estado simplesmente estaria buscando recompor
quando desci de uma conexão em Brasília, estava
aquela situação. Tratava-se de recaptura. Houve
um tumulto danado no saguão e, curioso que
divergência e eu disse assim: “Imaginem a situação
sou, vi uma aglomeração de pessoas tirando selfie
se a recaptura não puder ser feita. Os presos de
com o Eduardo Cunha. Fiquei impressionado com
uma penitenciária organizam uma fuga, saem da
o gosto disso, e ele posando para as fotos e se
cadeia e, ao pisar a calçada, não podem mais ser
achando o máximo. Mas a orientação passada
presos de volta porque, estando em liberdade por
aos mesários é para que eles advirtam a pessoa.
alguns minutos, o Estado não poderia trazê-los de

218
Praticamente todo mundo tem um celular com
câmera fotográfica. É só deixar o celular na mesa e
se dirigir até a urna ou, no mínimo, que mantenha o
celular no bolso. Como a urna tem aquela proteção
exatamente para que ninguém veja o voto, ela vai
tirar o celular do bolso e fazer. É algo difícil, mas
a orientação é para que os mesários advirtam o
eleitor e, se for o caso, determinar que ele ponha
o celular sobre a mesa para ir votar sem ele. Se
recusar, o presidente da Mesa pode perfeitamente
negar a ele o direito de votar, suspender o direito
de voto ou até determinar que ele seja retirado
de lá. O presidente da Mesa, por ser autoridade
e ter ali o poder de polícia, vai agir logicamente
sem excessos, mas o necessário para garantir o
cumprimento da lei.

219
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: DIREITOS MESTRE DE CERIMÔNIAS: O membro auxiliar
FUNDAMENTAIS, MINISTÉRIO PÚBLICO E da Corregedoria-Geral do Conselho Nacional do
O NOVO CPC, PROFERIDA POR GREGÓRIO Ministério Público, Promotor de Justiça do Ministério
ASSAGRA DE ALMEIDA, PARTE DO “PROJETO
Público do Espírito Santo, Marcelo Zencler.
SEGUNDA-FEIRA ÀS 18H” REALIZADA EM 3
DE OUTUBRO DE 2016 MESTRE DE CERIMÔNIAS: E o Promotor de
Justiça, o nosso palestrante de hoje, Gregório
Assagra de Almeida.

MESTRE DE CERIMÔNIAS: Hoje trataremos do


MESTRE DE CERIMÔNIAS: Gostaríamos também
tema “Direitos Fundamentais, Ministério Público e
de registrar a presença do Procurador do Ministério
o Novo CPC”. Convidamos para a Mesa a Diretora
Público do Trabalho em Minas Gerais, Antônio
do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional
Carlos Oliveira Pereira. Para abertura, ouviremos a
do Ministério Público, Ceaf, Promotora de Justiça
diretora do Ceaf, Promotora de Justiça Danielle de
Danielle de Guimarães Germano Arlé.
Guimarães Germano Arlé.

MESTRE DE CERIMÔNIAS: O Corregedor-Geral


PROMOTORA DE JUSTIÇA DANIELLE DE
do Ministério Público do Estado de Minas Gerais,
GUIMARÃES GERMANO ARLÉ: Excelentíssimo
Procurador de Justiça Paulo Roberto Moreira Cançado.
Procurador de Justiça Paulo Cançado, ilustre
Corregedor-Geral da nossa instituição, na pessoa
MESTRE DE CERIMÔNIAS: A coordenadora-
de quem eu cumprimento os demais integrantes
geral da Corregedoria-Geral do Conselho Nacional
da Mesa, senhoras e senhores, Promotores,
do Ministério Público, Promotora de Justiça do
Procuradores, servidores, estagiários do Ministério
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios,
Público e público externo que também nos dão a
Lena Daher.

220
honra de sua presença. Eu gostaria de cumprimentar O nosso ministério é público, a nossa missão, como
todos os membros do Ministério Público que bem disse o querido palestrante de hoje, Promotor
estão aqui presentes e que nos acompanham de Justiça Gregório Assagra, é justamente a missão
pela internet e, posteriormente, poderão assistir de promover a mais ampla justiça. Essa é a nossa
também. Cumprimento os ilustres Procuradores de missão constitucional, de promover uma sociedade
Justiça Afonso Henrique Miranda e Sérgio Abritta, cada vez mais livre, mais justa, mais solidária. E
que muito têm prestigiado o “Projeto Segunda- o Ministério Público de Minas acredita que isso
Feira às 18h” e que demonstram exatamente qual só é possível através de uma educação contínua.
é o espírito da nossa instituição. Obrigada a todos os senhores que acreditam nisso
e que sabem que tanto temos a aprender todos os
O Ministério Público de Minas Gerais é o Ministério dias de nossa vida.
Público Mineiro e chegou até aqui porque acredita
que somos homens, mulheres, pessoas que nunca O nosso palestrante de hoje, mais do que conhecido
chegamos ao conhecimento completo. Saber que por todos os senhores, é integrante do Ministério
nada sabemos é o nosso grande instrumento que Público, Promotor de Justiça Gregório Assagra de
nos permite continuar servindo a essa sociedade Almeida, pós-doutor pela Syracuse University, de
de maneira cada mais eficaz, de maneira cada vez Nova Iorque, Estados Unidos, onde foi bolsista da
mais comprometida. Capes em estágio sênior. É também Doutor em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Então assim, colegas, Procuradores de Justiça Paulo e Mestre em Direito pela mesma universidade;
Afonso e Sérgio, agradeço pela presença e graduou-se em Direito pela Universidade de
agradeço a presença de cada um dos senhores Ribeirão Preto. Foi professor e coordenador do
que sabe que somos uma instituição que existe curso de Mestrado em Proteção dos Direitos
para servir ao público. Fundamentais da Universidade da Itaúna. Promotor

221
de Justiça do nosso querido Ministério Público de Foi assessor de projetos e articulação
Minas, consultor institucional do Conselho Nacional interinstitucional da Secretaria de Reforma do
de Procuradores-Gerais de Justiça, membro jurista Judiciário do Ministério Público da Justiça e
da Câmara de Desenvolvimento Científico da membro da Câmara Consultiva Temática de Política
Escola Superior do MPU, diretor e coordenador Regulatória do Ensino Jurídico do MEC. Foi ganhador
pedagógico do nosso Ceaf, da nossa querida Escola do 57º Prêmio Jabuti 2015, como organizador e
Institucional, que hoje é o que é também em razão coautor do livro Direitos Fundamentais das Pessoas
do querido colega Gregório Assagra da Almeida. em situação de rua, da editora D’Placido. E é
justamente para falar sobre Direitos Fundamentais
Foi jurista e consultor do Ministério de Justiça na e dos seus instrumentos de garantias, Direitos
elaboração do anteprojeto da nova Lei de Ação Civil Fundamentais, Ministério Público e o novo CPC que
Pública, que integrou o segundo pacto republicano hoje o Ceaf tem a honra e a gratidão de receber o
do Estado, convertido no Projeto de Lei nº 5139 de querido colega Gregório Assagra de Almeida para
2009. É membro do conselho editorial da Arraes fazer mais uma, tenho certeza, brilhante exposição
Editores e assessor, atualmente, da Corregedoria- no nosso “Projeto Segunda-feira às 18h”.
Geral do Ministério Público de Minas, bem como
membro auxiliar da Corregedoria Nacional do Muito obrigada pela presença de cada um dos
CNMP. É ainda organizador da Revista Jurídica e do senhores. Obrigada, Gregório, se me permite, meu
Boletim Informativo da Corregedoria Nacional do querido amigo Greg, por prestigiar de uma maneira
CNMP e editor responsável da Revista Jurídica do tão singular o nosso projeto. Que todos possamos
MP de Minas, além de ser membro dos conselhos desfrutar do conhecimento generosamente
editoriais de várias outras revistas do Brasil e do compartido pelo Promotor de Justiça Gregório,
exterior. obrigada.

222
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Agradecemos aos por diante. Obrigado, Promotora de Justiça Lena,
integrantes dessa Mesa e convidamos para que por estar aqui, e é uma honra trabalhar com Vossa
tomem os assentos no auditório. Excelência na Corregedoria e ter a sua amizade e
a sua confiança. A Promotora de Justiça Danielle
PROMOTOR DE JUSTIÇA GREGÓRIO ASSAGRA Arlé, atual diretora do Centro de Estudos, querida
DE ALMEIDA: Boa noite a todos. Eu vou pedir amiga, querida amiga do coração, uma poetisa do
licença primeiro para cumprimentar os meus Ministério Público, pessoa sensacional e que está
chefes. Primeiramente o Procurador de Justiça fazendo um trabalho magnífico, sempre fez no
Paulo Cançado, querido amigo, muito obrigado Ministério Público e, agora, no Centro de Estudo.
pela presença, o nosso Corregedor-Geral. É uma Obrigado, Dani, por estar ao seu lado, participar
alegria assessorá-lo. O senhor tem sido motivo desse projeto e trabalhar com você nesse projeto
de luz para todos nós que trabalhamos com você e em outros nos quais nós estamos juntos, unidos
lá na Corregedoria. Obrigado por ter essa honra, pelos ideais de justiça e de transformação social.
que eu registro na minha vida e no meu currículo.
Sinta aqui o meu respeito e a minha admiração. E Eu gostaria de cumprimentar o Procurador de
também a minha chefe lá em Brasília, Promotora Justiça Afonso, aqui presente, querido amigo de
de Justiça Lena, que está aqui, acabou de voltar ideais, comprometido com o seu trabalho com
de uma maratona em Berlim. Eu acho que deve transformação social, com a inclusão social,
ter-se cansado, bateu o recorde dela na maratona, uma alegria sempre tê-lo aqui. Procurador de
foi muito bem. E ela é uma das responsáveis por Justiça Sérgio Abritta, o nosso intelectual, cujo
eu ter emagrecido, porque ela exige também, é conhecimento é multidisciplinar, é um grande
tão rígida que, além de quase matar a gente com pensador. Eu prefiro falar um filósofo, um poeta,
trabalho, como o Paulo faz, ainda exige que a um escritor, é uma alegria tê-lo aqui, sempre o
gente mude a alimentação, faça regime e assim senhor participando dos nossos eventos e sinta a

223
minha admiração. A Promotora de Justiça Magali cumprimentar e saudar o meu querido amigo,
Albanesi, minha amiga de concurso, está ali no professor Leonardo Nunes, Mestre e Doutor. Nós
fundo e, a partir dela, cumprimento todos os demais temos uma sintonia de pensamento enorme.
colegas do Ministério Público que estão aqui, que Tive a oportunidade de participar da banca de
sintam o meu carinho, a minha admiração. Mestrado e Doutorado do Dr. Leonardo, prefaciei o
livro de Mestrado e Doutorado, e estamos juntos,
Eu gostaria de cumprimentar o Promotor de escrevendo sobre tutela coletiva. E é uma alegria
Justiça Marcelo Zencler, um querido amigo, um tê-lo aqui, professor. Cumprimento os servidores,
grande jurista, tem obras extraordinárias, uma os colegas, o Renato, que está aqui, Froes, todos,
delas sobre a intervenção do MP no Processo Civil sintam aqui o meu carinho e todos que estão aqui do
publicado pela RT. O Zencler foi o secretário da Ministério Público ou não, e o meu amor por vocês,
transparência no Espírito Santo e hoje o Espírito o meu amor pela Justiça e pelo Ministério Público.
Santo acho que representa o melhor estado em O meu amor na esperança de um país mais rico em
transparência do Brasil. Então eu queria registrar inclusão social, mais rico em direitos fundamentais,
a competência desse Promotor de Justiça, desse isso não depende de lei simplesmente ou da
jurista e desse professor, e muito obrigado pela Constituição, depende de nós, do nosso trabalho.
presença, que aumenta a minha responsabilidade. Temos que ter esse comprometimento.

Gostaria de saudar e cumprimentar o Procurador Agora abordo mais especificamente os temas.


do Ministério Público do Trabalho, Antônio Carlos São três temas, na verdade, dos quais vou fazer
de Oliveira, que nos honra com a presença, o uma análise conjugada. O primeiro é direitos
querido amigo e professor Vitor, que está ali atrás, fundamentais, o segundo é o Ministério Público e
que está indo agora Syracuse, fazer uma pesquisa o terceiro é o novo CPC. Eu vou trazer algumas
lá no programa de pós-graduação. Gostaria de reflexões. Na primeira parte em torno dos Direitos

224
Fundamentais para que, em seguida, eu possa a partir dos verdadeiros autores da história, pode-
contextualizar o Ministério Público, inclusive o papel se ter outra conclusão em relação à origem dos
constitucional do Ministério Público e ingressar, por direitos fundamentais.
fim, na seara do novo CPC.
Outro aspecto importante para nossas reflexões
Então, agradeço a oportunidade de estar aqui com diz respeito a direitos fundamentais e direitos
vocês, aí está a ementa, Direitos Fundamentais e humanos. Há uma concepção clássica em quase
o Ministério Público e o novo CPC. todos os manuais de que os direitos humanos
são aqueles reconhecidos em declarações e em
A primeira questão seria quando surgiram os
convenções internacionais. E, se esses direitos
direitos fundamentais. Não há como afirmar de
humanos são positivados dentro de uma ordem
forma taxativa quando surgiram esses direitos.
jurídica, são considerados direitos fundamentais.
Depende de qual que é o objetivo de estudo. Se se
fizer uma abordagem mais sociológica, mais aberta, Então, se eles estão na Constituição de um país,

encontram-se direitos fundamentais em todo o são considerados direitos fundamentais.

decorrer da história, inclusive na antiguidade. Se


Particularmente, sou defensor da tese de que há
se fizer uma diferenciação como alguns autores
um grande equívoco nessa concepção, porque, na
fazem, que leve em conta a distinção entre Estado,
pessoa, autoridade, limites do exercício do poder, verdade, ela exclui o reconhecimento de outros

pode-se encontrar uma origem mais próxima já direitos, como, por exemplo, direito da natureza,

na idade contemporânea, quando surge o estado direito dos animais, direito dos vegetais. Mesmo
de direito. Então não há como afirmar quando que eu ainda não esteja convicto, e eu estou
surgiram os direitos fundamentais. Por fim, se a convicto que há direitos da natureza, defendo o
pesquisa parte para uma abordagem mais crítica, biocentrismo jurídico, eu acho que a essência e

225
o núcleo do direito no plano interno internacional que visam proteger a vida e sua existência com
são a vida e sua existência com dignidade, que se dignidade no plano internacional ou no plano
projeta para plano individual e plano coletivo. interno, que pode abranger, é óbvio, os direitos dos
animais, dos vegetais. Nesse aspecto, adianto que
Então, se eu adoto essa concepção que no plano direito fundamental pode abranger também uma
internacional é direitos humanos e se direitos geração que não existe. Olha só que quebra de
humanos são reconhecidos no plano interno e aí paradigma em termos de ciência do direito, a nossa
são direitos fundamentais, estou adotando uma Constituição, no art. 225, adota, expressamente,
concepção antropocêntrica, ou seja, estou olhando a teoria intergeracional, ou seja, nós devemos, o
direito simplesmente na titularidade humana, o Estado e as coletividades, proteger e preservar o
que não é nada inteligente. Eu até tenho afirmado, meio ambiente ecologicamente equilibrado para as
como hoje temos vergonha da escravidão negra, presentes e as futuras gerações.
num futuro próximo, vamos ter vergonha do que
fazemos hoje com as árvores, com a natureza e Essas gerações futuras não existem em direito difuso
com os animais. Até porque a ciência já prova que fundamental ou meio ambiente ecologicamente
os animais pensam, que as plantas têm sensações. equilibrado. É um rompimento com o paradigma
Não posso adotar uma concepção que feche para jurídico que traz grande reflexões, ou seja, como
uma abertura de diálogo para a construção de construir uma ciência jurídica e como construir
novos modelos de reconhecimento de direitos e uma dogmática de concretização de uma ciência
tutelas jurídicas. jurídica que abranja os direitos dos animais,
dos vegetais e que abranja direitos de gerações
Trabalho com a concepção de que os direitos futuras. Cabe aqui, direito fundamental no caso
fundamentais são compostos por um núcleo das gerações futuras, cabe ação civil pública,
essencial de princípios, garantias e normas inclusive para tutelar direito difuso de uma geração

226
que não existe. Se é direito fundamental e está no Então, naquele caso, um direito, em tese, que
art. 225, é abrangido pela cláusula aberta do art. seria patrimonial, torna-se fundamental, porque
5º, § 2º, possui força normativa em grau máximo ele é fundamental, em si mesmo, para tutelar a
e aplicabilidade imediata, no que seja norma vida e a existência com dignidade de uma criança.
regulamentadora.
Então, a ideia de direito como um problema
Outra questão que é importante para a compreensão e não simplesmente como um sistema serve
de uma doutrina, de uma teoria de direitos para quebrar essa distinção abstrata em direitos
fundamentais é a diferenciação que alguns autores subjetivos fundamentais e direitos subjetivos não
fazem entre direitos subjetivos fundamentais e fundamentais. É o caso concreto em que se vai
direitos subjetivos não fundamentais. E talvez identificar se a tutela da vida e sua existência com
uma obra clássica que trata dessa abordagem dos dignidade é fundamental pela essência, pelo grau
direitos subjetivos públicos [ininteligível], servir de aplicabilidade, pela finalidade que o direito deve
base para essa distinção. Eu, particularmente, não ter na vida daquela pessoa, daquela criança, no
concordo, porque é difícil estabelecer conceitos caso concreto.
abstratos que diferenciem direitos subjetivos
fundamentais e não fundamentais. Na minha tese Outro ponto importante aqui são o aspecto objetivo
e o aspecto subjetivo dos direitos fundamentais.
de doutorado, tive oportunidade dar um exemplo.
Nós vamos citar aqui o jurista alemão grande
Um senhor vende um Fusca, bem patrimonial dele,
constitucionalista Konrad Hesse, que faz a distinção
e o vende. Até aí se pode falar em direito subjetivo
entre os aspectos objetivos e os aspectos subjetivos
não fundamental. Após vender o carro, precisa
dos direitos fundamentais. Isso é importantíssimo
receber para tratar da saúde do filho, a pessoa
para compreender as múltiplas funções que os
não paga. O direito não é só sistema, não é só
direitos fundamentais podem exercer na vida da
sistema abstrato de conceito, o direito é problema. sociedade, na vida das pessoas e na natureza em si.

227
Os aspectos subjetivos são aqueles ligados à Então hoje se fala da múltipla funcionalidade
titularidade. Quando eu estudo pelo aspecto dos direitos fundamentais, das múltiplas funções
subjetivo, eu analiso a titularidade. Esta pode ser do que eles exercem. São inúmeras as possíveis
indivíduo, da coletividade; se houver uma abertura dimensões dos estudos dos direitos fundamentais.
maior, eu vou ter uma titularidade dos animais, dos Posso estudar os direitos fundamentais sob o
vegetais e das gerações futuras. Eu estudo o aspecto aspecto histórico, eu vou analisar o processo de
subjetivo dos direitos fundamentais nesse plano da luta, de conquista desse direito fundamental, o
titularidade, que é um plano importantíssimo de se surgimento, o reconhecimento. Posso fazer um
analisar e até expandir essa força irradiadora para estudo filosófico para compreender, por exemplo,
identificar quais são os titulares. a fundamentação dos direitos fundamentais. Não
estudaria só fundamentação, porque eu trabalho
O aspecto objetivo dos direitos fundamentais é com ideia de acesso à justiça como método de
aquele que diz respeito aos direitos fundamentais pensamento, então, não adianta pensar filosofia
como o núcleo essencial do sistema jurídico, no plano abstrato, tenho que pensar filosofia
por exemplo, aquele núcleo principiológico que no plano da realização de efetividade, porque a
traz força irradiante em grau máximo, ligado ao filosofia tem que dialogar com a realidade concreta.
comportamento do legislador, do administrador, O Cappelletti já dizia isso, o acesso à justiça é
do judiciário, dos particulares e, inclusive, deve método de pensamento. Existe ainda um aspecto
conduzir o controle de constitucionalidade, tanto sociológico. Eu vou analisar qual é a função social
o abstrato quanto o concreto. E aí os direitos dos direitos fundamentais, naquele meio social. No
fundamentais, no aspecto objetivo, podem ser caso do Brasil, a função é tornar real o princípio da
analisados com múltiplas funções dentro do transformação social, que é o compromisso magno,
sistema jurídico. mais importante consagrado na Constituição de
1988, no art. 3º: “São objetivos fundamentais da

228
República Federativa do Brasil: criar uma sociedade Agora, há uma discussão sobre dimensões
justa, livre, solidária, erradicar a pobreza e diminuir ou gerações, ou seja, quais são as gerações
as desigualdades sociais”. Realiza-se isso de forma dos direitos. E há várias classificações. Essas
democrática através da proteção e da efetivação classificações não têm uma base científica, elas
dos direitos fundamentais. Essa proteção pode ser servem para a finalidade didática, às vezes, para
potencializada, tanto em abstrato, com o direito compreender. A classificação leva em conta os
processual coletivo, que é o controle abstrato da modelos de estado de direito, estado liberal de
constitucionalidade pelas ações do controle, como direito terá o direito individual, estado social de
pode ser potencializada no plano concreto para direito, tutela de direito individual e de direitos
efetivar pelo direito social coletivo comum. No livro sociais, estado democrático de direito, no caso
que escrevi, em 2003, defendi que o direito social do modelo da Constituição, tutela de direitos
coletivo no Brasil é um novo ramo e se divide em individuais e coletivos amplamente considerada, o
especial, quando protege de forma potencializada que abrange os sociais, tutela ampla e irrestrita.
a Constituição e os direitos fundamentais, e Gosto desta classificação em que se compreende
comum, quando efetiva de forma potencializada o modelo de Estado pelo sistema de tutela dos
a Constituição visando a transformação social, direitos fundamentais.
induzindo a transformação social por intermédio
da ação civil pública, e, assim por diante, e outros Se uma pessoa vai a um país e quer saber se é
mecanismos, inclusive o TAC. Apesar de o TAC estado liberal de direito, se é estado social de
ser um acordo, tem natureza processual, integra direito ou se é estado democrático de direito, a
o direito processual coletivo, é título executivo melhor opção será estudar quais são os direitos
extrajudicial, portanto tem natureza processual. fundamentais reconhecidos de forma expressa e
Então, nós temos aí as várias dimensões de estudo. implícita naquele sistema e qual é o modelo de
tutela. Se no modelo de tutela não cabe ação

229
coletiva, é só de direito individual, pode se tratar estabelecer itens de forma linear até porque,
de um estado liberal de direito. Por outro lado, se muitas vezes, há avanços e depois retrocessos e
o modelo de tutela jurídica é amplo e irrestrito, assim por diante.
levando em consideração o que foi consagrado
na Constituição de 1988, nós temos o estado Agora é importante descrever as características.
democrático de direito. Uma é historicidade, os direitos são produtos
históricos de lutas da sociedade, reconhecimentos,
Há uma crítica à expressão “gerações”, que é às vezes, se avança ou há retrocessos. Outra é a
muito utilizada, porque geração daria a entender inalienabilidade, não se podem alienar, transferir
que uma supera a outra. E não acontece isso, os direitos. Existe a imprescritibilidade, e aqui
porque a conquista de direitos ocorre em primeira há uma questão importante dessa característica,
dimensão, a segunda é uma força incorporativa e tem que ser uma bandeira de luta do Ministério

não de exclusão, por isso é melhor a expressão Público, que é a defesa da imprescritibilidade

“dimensões”. Existe primeira dimensão, segunda, dos direitos fundamentais. Como no Brasil os
direitos fundamentais não são só individuais, são
terceira, quarta, quinta, há quem fale em
coletivos, temos que expandir essa característica
oitava e, assim por diante. São classificações
da imprescritibilidade para outras áreas que não,
doutrinárias que, muitas vezes, não têm uma base
por exemplo, só a imprescritibilidade da reparação
precipuamente científica. Por exemplo, em Roma,
do dano ao erário.
já existia direito difuso, tutela do direito difuso,
cabia ação popular para desobstrução de ruas e O STJ já reconheceu, inclusive, a imprescritibilidade
passagens. A reforma agrária norte-americana, da reparação do dano ao meio ambiente, que diz
quando foi feita no século 18, tinha tutela de respeito a direito essencial à vida. Tenho defendido
direitos difusos na sociedade. Então, não há como a imprescritibilidade e a “indecadencialidade” como

230
princípios do direito social coletivo, que os direitos complicada que gera muitas discussões, ou seja,
difusos e coletivos não estão sujeitos à prescrição são universais, pois não estão limitados a uma
nem à decadência, então são imprescritíveis e não pessoa, simplesmente a um gênero, eles atendem
sujeitos à decadência; a “indecadencialidade” é uma titularidade ampla, independente do gênero,
um neologismo por falta de significante, eu usei pode ser homem, mulher, independente do credo,
essa expressão. Geralmente, ou a prescrição está da raça e assim por diante. Essa universalidade
voltada para um aspecto de caráter punitivo, também não pode negar as diferenças culturais,
como acontece na área criminal ou nas sanções então tem que se buscar uma conciliação, porque
de improbidade, ou ela está relacionada a aspecto há o multiculturalismo, ou seja, a cultura de um país
patrimonial. Como todos os direitos fundamentais, é diferente da outra. Mas a universalidade de que
eles vão ter impacto na vida e na existência com eu estou falando é importante para sustentar que
dignidade, mesmo que a conversão em espécie, os direitos fundamentais são supraconstitucionais.
a reparação, vá ter que beneficiar a sociedade, E, portanto, se eles são supraconstitucionais, são
aplica-se a imprescritibilidade. Outra característica mais inclusivos do que cláusulas pétreas. Nem o
é a irrenunciabilidade, ou seja, são irrenunciáveis, novo poder constituinte originário pode retirar esses
portanto são indisponíveis, a pessoa não pode direitos ou enfraquecê-los, se é no estado de direito,
dispor deles. E essa irrenunciabilidade se porque eles estão ligados à vida e à existência com
expande com mais força quando se trata de dignidade, e a força tem que ser sempre expansiva.
direito difuso e coletivo. Há a interdependência, Existe a complementariedade. Um complementa o
porque um dependente muitas vezes do outro. outro. Aí existe, por exemplo, o direito de acesso à
Muitas vezes, o direito à saúde também depende justiça e um Mandado de Segurança, para tutelar
do meio ambiente ecologicamente equilibrado, os direitos difusos, no caso de ilegalidade e abuso
então há uma interdependência entre os direitos. de poder, caso de lesão, por exemplo, ao meio
Há a Universalidade, e aqui é uma questão ambiente. Outra característica é a efetividade, os

231
direitos não são direitos do papel, tanto é que a ampliativa, o rol exemplificativo. Por exemplo, o
nossa Constituição expressamente estabelece no Procurador de Justiça Paulo Cançado coordenou
parágrafo 1º do art. 5º a aplicabilidade imediata recentemente a Carta de Brasília. Nós reconhecemos
dos direitos fundamentais, ou seja, tem que se expressamente na Carta de Brasília, aquele
buscar a máxima efetividade, é uma característica. trabalho belíssimo, que o rol dos mecanismos
de atuação do Ministério Público é meramente
Na minha tese de doutorado, acrescentei algumas exemplificativo. Então se pode trabalhar com
características a essas presentes na doutrina. Existe inquérito civil, audiência pública, recomendação,
a máxima força concretizadora, ou seja, pode-se ação civil pública e assim por diante. É possível
utilizar de todos os meios para concretizar esses trabalhar com projetos sociais, projetos executivos
direitos, inclusive meios construídos pelo diálogo e no plano de atuação, outros mecanismos
pelo consenso. E, quando não for possível, meios legítimos que possam promover a efetivação dos
que depende da adjudicação da liminar da sentença direitos fundamentais e a transformação social
e até, se for o caso, da força policial, para no caso podem e devem ser utilizados pelo Ministério
de se concretizar. Existe a interpretação aberta e Público. Pode-se trabalhar com todas aquelas
ampliativa, isso é um aspecto importantíssimo, técnicas de negociação, de mediação. Então é
que está no art. 5º, parágrafo 2º, da Constituição. importante compreender a Constituição, o modelo
Aqui os direitos e garantias previstos lá no capítulo constitucional para se extrair a força irradiante e
1, art. 5º, não excluem outros decorrentes dos compreender o sistema jurídico e trabalhar com o
princípios dos regimes adotados pela Constituição sistema jurídico, inclusive na interpretação do CPC.
e dos tratados internacionais de que o Brasil seja
signatário. Isso significa que o rol exemplificativo, Outro aspecto é a máxima força irradiadora e
que a interpretação é ampliativa. Então são condutora do sistema jurídico e do comportamento
características importantes, interpretação dos operadores do direito em geral e dos

232
particulares. O sistema jurídico deve ser conduzido executivo, que deve desenvolver políticas públicas
numa interpretação que leve em conta as conquistas concretizadoras dos direitos fundamentais; por
magnas da sociedade e da natureza, os direitos fim, os particulares também se sujeitam aos
e as garantias constitucionais fundamentais. direitos fundamentais.
Deve conduzir o sistema jurídico na metodologia
em três dimensões: do estudo, da reforma e da Outra faculdade é a dinamicidade incorporativa
concretização. E concretização é muito mais do e valorativa, ou seja, eles são dinâmicos e vão
que interpretação, como já dizia Paulo Bonavides. incorporando, porque o sistema é aberto. Gosto de
Concretizar é uma atividade de criação, porque analisar a abertura constitucional, principalmente,
vai além da mera interpretação. Precisamos pela cláusula aberta de direitos fundamentais,
ser criativos, porque somos concretizadores de que são as conquistas magnas da sociedade.
direitos fundamentais. Induzimos a concretização Então eles vão incorporando novos valores. Nós
de direitos fundamentais, precisamos trabalhar já reconhecemos novos direitos, no casamento
com criatividade. homoafetivo, passa a ser reconhecido, fazer parte
da dignidade humana, o direito à felicidade das
E aqui, senhores, vamos ver que os direitos e pessoas e assim por diante. E aí vão incorporando
garantias fundamentais geram a situação de novos valores, por exemplo, mesmo que não
insujeição; existem direitos e deveres, surge a esteja de forma expressa, estaria implícito, direito
situação da insujeição pelos deveres correlatos também a cultura, dos animais, dos vegetais e
em quatro dimensões. Estes são os sujeitos que assim por diante.
devem se submeter aos direitos fundamentais: o
legislador, que não pode restringir, não pode impedir Outro aspecto importantíssimo que deve ser uma
a realização, não pode suprimir; o judiciário, que bandeira de luta do Ministério Público seria criar ou
tem que devidamente interpretar e concretizar; o desenvolver uma nova teoria da cognição. Hoje se

233
recorre a doutrina, jurisprudência, prova pericial, Esse é um problema seriíssimo que nós devemos
prova testemunhal, depoimento interrogatório, só discutir. Paga-se, por exemplo, mais de 300 bilhões
que esse tipo de cognição não é mais suficiente de juros por ano aos investidores em títulos de
para a transformação social para a sociedade dívida pública. E em 15 e 16 anos de Bolsa Família,
complexa. É preciso, hoje, construir uma cognição, nós pagamos 230 bilhões. Em um ano de juros para
uma prática de transformação social a partir de 20 mil pessoas, pagamos mais do que investimos
uma cognição que a abranja, com estatísticas, durante 15 e 16 anos em Bolsa Família. Quem fixa
provas por amostragem, indicadores sociais, os juros são técnicos que não me representam,
indicador do resultado e assim por diante. Então, eu acho que não representam vocês, não foram
é preciso mudar a nossa teoria da cognição em escolhidos, do Copom. É algo que precisa ser
termos da nossa atuação como instituição, não só oxigenado, que precisa ser discutido.
o Ministério Público como o judiciário. Já não é mais
É uma questão complicada. Por exemplo, nos
suficiente trabalhar só com provas clássicas. Para
Estados Unidos, juros são baixíssimos, na Europa
identificarmos situações de retrocesso, devemos
são baixos. Então é necessário discutir por que
ter condições de fazer uma interpretação, não só
esses juros são tão altos. E traz uma sobrecarga
abstrata do sistema jurídico, mas analisar os fatos,
enorme para o país e diminui o dinheiro para investir,
compreender bem os fatos, fazer uma leitura, por
inclusive na tutela de direitos fundamentais. Deve-
exemplo, dos indicadores sociais, fazer uma leitura
se combater a corrupção e todos os ilícitos de forma
do IDH de determinada região. No Brasil, quando
preventiva e, também, discutir qual é o modelo
há crise, o primeiro ponto afetado são os direitos
mais adequado de fixação de juros.
fundamentais. Nenhum governo na história
do Brasil, depois da Constituição de 1988, foi
Outra questão é a relativização. Eles são relativos,
devidamente constitucional em termos de direitos
não são absolutos, porque um precisa conviver
fundamentais, ou seja, promoveu efetivamente a
harmonicamente com o outro. É o que acontece com
transformação social como deveria.

234
a coisa julgada, que é uma garantia fundamental. Existe uma dimensão subjetiva; os direitos
Tem-se uma coisa julgada, amparada em uma fundamentais determinam um estatuto jurídico
decisão, que não reconheceu a paternidade e uma dos cidadãos, tanto em suas relações com o Estado
decisão em que não houve teste de DNA. Aqui se quanto em suas relações entre si. Seria como se
tem de um lado uma coisa julgada, que é uma fosse um estatuto básico dos cidadãos. Mas não
garantia constitucional fundamental, e de outro o do cidadão meramente abstrato, do cidadão real,
direito à dignidade humana, o direito a saber quem concreto, do cidadão eleitor, do cidadão consumidor
realmente é o pai. e é possível falar do cidadão natureza. Defendi na
minha tese de doutorado um conceito de cidadania
Às vezes precisa-se de uma liminar, relativiza-se o biocentrista, solidarista, universalista nesse aspecto
contraditório, a liminar é urgente, surge o chamado para reconhecer que a cidadania não é só individual
contraditório postergado, limitado ou deferido para e não pode ser vista simplesmente nesse aspecto
momento posterior. de produção de direitos fundamentais somente na
titularidade humana, precisa ser discutida.
Quanto à conceituação dos direitos fundamentais,
um grande constitucionalista espanhol, Pérez Aqui trago uma conceituação, que está lá no meu
Nuño, explica que, em uma significação axiológica livro Direito Material Coletivo, que foi minha tese
objetiva, os direitos fundamentais representariam de doutoramento. Direitos fundamentais são todos
o resultado de um acordo básico das diferentes os direitos individuais ou coletivos, previstos
forças sociais, conquistado a partir de relações expressa ou implicitamente em determinada
da cooperação encaminhadas diante das metas ordem jurídica, que representam os valores
comuns. Isso aconteceu com a Constituinte de maiores nas conquistas históricas dos indivíduos
1988, um grande pacto com a participação de e das coletividades, os quais giram em torno de
muitos segmentos sociais. um núcleo fundador do próprio estado democrático

235
de direito, que é justamente o direito à vida e sua traz procedimentos e normais materiais sobre
existência com dignidade. Quando alguém tiver direitos fundamentais. Traz garantias e traz os
que fazer uma interpretação em que há conflito, se direitos fundamentais em si, de forma substancial.
tem que ponderar, pondere sobre aquilo que mais Esse é o modelo da Constituição 88 e é o da maioria
protege a vida e sua existência com dignidade, das constituições do mundo.
porque isso é o núcleo central do direito e é núcleo
central de imposição de deveres. Eu já falei que eles exercem múltiplas funções,
possuem a multifuncionalidade. Outra questão
Temos, assim, modelos de construção dos direitos importante é estudar os direitos fundamentais
fundamentais. Temos um modelo puramente e os deveres fundamentais, nesses aspectos
procedimental, no qual a Constituição só dispõe dessas situações que geram sujeição em quatro
sobre procedimento, e quem vai deliberar dimensões: sujeição para o legislador, para o
sobre os direitos fundamentais geralmente é administrador, para o executivo e para o legislador,
o legislador infraconstitucional. Esse modelo é judiciário, para o administrador, judiciário,
frágil, porque valoriza a soberania do legislador legislador e para o particular.
infraconstitucional. Não o acho o mais adequado
para tutela de direitos fundamentais. O segundo Aqui se questiona se os direitos fundamentais são
modelo é puramente material, que é uma cláusulas pétreas. Uma interpretação literal pode
Constituição que, simplesmente, não dispõe de conduzir à conclusão de que seriam apenas os
procedimento de processos, ela dispõe só sobre direitos elencados no § 4º do art. 60 da Constituição.
os direitos fundamentais. Ele acaba também sendo Ocorre que a própria Constituição já nega isso, ela
frágil, porque não tem as garantias de tutela, e isso vai muito além. As cláusulas pétreas são conquistas
pode prejudicar. E existe um terceiro paradigma, o tão importantes para a sociedade que não se pode
eclético conciliatório, sob o qual uma Constituição alterá-las. Nesse aspecto, por exemplo, quando a

236
Constituição fala que o Ministério Público é uma O mínimo existencial é um problema seriíssimo,
instituição permanente, ela está dizendo, em porque tem um aspecto positivo, mas pode ter um
outras palavras, que o Ministério Público é uma aspecto devastador para os direitos fundamentais.
cláusula pétrea, uma cláusula superconstitucional. Enquanto pressuposto de uma ação judicial,
poderá sensibilizar o Juiz, que vai conceder uma
O Ministério Público com suas atribuições, liminar, pode ser um aspecto positivo. Mas o grande
com suas garantias e com suas vedações é o aspecto negativo é que não há como transferir tal
Ministério Público como uma cláusula pétrea. Por premissa para o Brasil, porque não passamos por
conseguinte, se uma das atribuições do Ministério uma transformação social. Se se expandir esse
Público é a defesa dos direitos coletivos, direitos conceito de mínima existencial, corre-se o risco de
coletivos também são cláusulas pétreas. Essa seria se criar uma doutrina dos direitos fundamentais do
a interpretação inteligente e potencializada das mínimo existencial, ou seja, só a tutela de direitos
cláusulas pétreas. fundamentais, no mínimo existencial. Aí será uma
doutrina dos direitos fundamentais incapaz de
Acredito que os direitos fundamentais são cláusulas
promover a transformação social. Isso é um grande
superconstitucionais, principalmente aqueles que
problema. Então é necessário tomar cuidado com
são conquistas universais, que dizem respeito à
essas transferências de doutrinas e de orientações
vida e a sua existência com dignidade. Agora, um
jurisprudenciais que surgem em outros países.
dos objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil, que é o compromisso maior da nossa A norma jurídica tem uma classificação bipartida
Constituição, com a transformação social, a qual, ou tripartida. Há quem divida a norma jurídica em
como eu disse, só ocorre de forma legítima com a princípios e regras. Existe a do Dworkin, a do Alexi.
efetivação dos direitos fundamentais. Em regra, os princípios são generalizados, são
valorativos e as regras são casuísticas, volto para

237
o caso concreto. Eu prefiro uma outra classificação adiantando o tema, a natureza constitucional do
que eu tenho defendido, uma classificação tripartida Ministério Público como uma garantia fundamental,
ou tripartite. E vou explicar, inclusive, as razões. cláusula pétrea de acesso à justiça, como garantia
institucional de acesso à justiça da sociedade.
Eu acho que a norma jurídica, principalmente
as normas de direitos fundamentais, tem três
Vou trazer uma classificação do José Afonso da Silva
dimensões. Elas sãos princípios, são mandamentos que é interessante para compreensão do tema. Ele
de otimização do sistema, valorativo generalizante. lista direitos fundamentais do homem indivíduo
Existem também as garantias. E as garantias destinado ao reconhecimento de autonomia dos
se bipartem em garantias instrumentais, como particulares, tais como direito a liberdade, igualdade,
numa ação civil pública, mandado de segurança, e segurança e propriedade. Há direitos fundamentais
do homem nacional, os quais se destinam à fixação
garantias institucionais, como é o caso do Ministério
da nossa nacionalidade e suas finalidades. Há direitos
Público. Por isso tenho defendido que a natureza
fundamentais do homem cidadão, consistentes nos
constitucional do Ministério Público atualmente,
direitos políticos de votar e ser votado. Menciona
pensado à luz dos direitos e garantias fundamentais, direitos fundamentais do homem social, vinculados
é de garantia fundamental, institucional de acesso ao homem no plano das suas relações sociais, entre
à Justiça da sociedade, do indivíduo em relação aos eles destacam-se educação, saúde, seguridade
direitos individuais indisponíveis, e da sociedade social. Cita direitos fundamentais do homem membro
em relação aos direitos coletivos amplamente de uma coletividade considerados como direitos
consideráveis. Então a natureza jurídica é essa. coletivos. Refere direitos fundamentais do homem
solidário ou do gênero humano, representado pelo
Eu tenho que pensar o Ministério Público à luz
direito à paz, ao envolvimento, à comunicação, ao
das conquistas magnas da sociedade. E aí, com
ambiente, ao patrimônio cultural, patrimônio comum
essa classificação tripartida, vou compreender,
da humanidade.

238
Essa classificação facilita compreender que os à propriedade. Em direito do trabalho, há mais
direitos fundamentais na Constituição vão muito avanços, eles já tratavam de questões individuais
além do art. 5º, do 6º, do 7º. Ela serve ainda e coletivas. O Código de Defesa do Consumidor
para fins didáticos e de compreensão do modelo. menciona individual ou coletivo. Se se pegar,
Mas ela não serve para induzir uma pragmática por exemplo, a classificação tricotômica, público,
de transformação social. Levam-se em conta os privado e transindividual, defendida pela Ada
modelos de tutela jurídica e de acesso à justiça [Pellegrini Grinover], por vários autores, também
e de ações. E por isso eu defendo, foi a minha não é adequado. O tema foi defendido até pelo
tese de doutorado, uma classificação dicotômica, Capelletti, que falava que entre o público e o privado
que é uma nova summa divisio constitucionalizada há um profundo abismo. Mas não é adequada,
na Constituição; os direitos fundamentais são porque não leva em conta os reais titulares. Não
bipartidos, ou eles são do indivíduo ou da leva em conta a titularidade, a situação de lesão,
coletividade. É uma nova summa divisio. Para fins de as necessidades, principalmente no caso dos
acesso à justiça jurisdicional ou extrajurisdicional, homens e necessidades humanas. As necessidades
não é mais adequado dividir em público ou privado. humanas podem ser individuais ou coletivas. A
Por exemplo, para compreender as atribuições Constituição expressamente estabelece que os
constitucionais do Ministério Público, já adiantando direitos e os deveres são individuais e coletivos.
o tema aqui, não é adequado eu falar assim: o
Ministério atua no público e não atua no privado, Então tratemos do dano moral, interpretado à
ou autua no público e no privado nessas áreas. luz do capítulo um. O dano moral, interpretado à
Não há como estabelecer o que é público ou o que luz da nova summa divisio, pode ter dimensões
é privado. Por exemplo, quanto à Constituição, é individuais e coletivas, essa é a nossa teoria dos
possível considerá-la público, porém ela contém direitos fundamentais. Conforme o artigo 5º, o
normas que dizem respeito à intimidade da pessoa, leitor tem que interpretar de acordo com o caput,

239
e os direitos e deveres lá são individuais e são No art. 6º, são tratados os direitos sociais:
coletivos. Então a doutrina quer negar direitos moradia, educação, saúde, assistência social. Os
coletivos, dano moral em direitos coletivos, isso é direitos sociais são vinculados à situação de lesão
inconstitucional, porque a Constituição determina e ameaça. Eles podem ser individuais, se a saúde é
que os direitos e deveres no Brasil são individuais de uma criança, ou de um idoso, no caso concreto;
e coletivos. Tem que se expandir isso para todos se a saúde, a situação de lesão e ameaça é de
os dispositivos. uma coletividade, pode ser direito coletivo; se é
de todos, pode ser direito difuso, vai depender da
Eu orientei um trabalho, inclusive foi publicado, situação concreta.
da Lílian Chequer, defendendo o mandado de
segurança coletivo. O mandado de segurança, Esses direitos sociais podem ser de dimensão

analisado à luz da nova summa divisio, pode individual ou de dimensão coletiva. E assim

ser individual ou coletivo. Em casos mandados também ocorre nos direitos políticos. Se houver
uma situação e lesão generalizada de direito
de busca e apreensão, com prisão arbitrária em
político de centenas de pessoas, cabe um mandado
relação a movimentos sociais e outras, cabe
de segurança coletivo, por exemplo. Vai depender
mandado de segurança coletivo. Inclusive no
da situação de lesão e ameaça. E as necessidades
trabalho foi discutido a possibilidade de habeas
humanas são individuais e coletivas. A titularidade
corpus até para tutelar o direito de ficar de uma
pode ser individual ou coletiva.
árvore. Habeas corpus é individual e coletivo.
Habeas corpus individual e coletivo, analisado à luz O estado democrático de direito no Brasil é força
da nova summa divisio, ou seja, as garantias são organizativa da sociedade, é um mero representante,
tutela individual e tutela coletiva. está dentro da sociedade. Nós estamos dentro da
sociedade. O Ministério Público é força organizativa

240
da sociedade, é força organizativa em grau II, Capítulo 1, Dos Direitos e Deveres Individuais
máximo. Como força organizativa, representamos e Coletivos. Ocorreu-me que ali havia uma nova
a sociedade e devemos atuar para defender os dicotomia. Assim acabei defendendo essa tese de
direitos coletivos amplamente considerados e os doutorado, uma nova summa divisio, uma nova
direitos individuais indisponíveis. Não é preciso dicotomia, que supera a visão público-privada,
discutir se é público ou privado, com a Constituição público-privada transindividual, para fins de acesso
e a nova summa divisio, resolve-se todo o problema a justiça e tutela jurídica. É o melhor modelo. Para
de atribuição constitucional do Ministério Público a acesso à justiça jurisdicional e transjurisdicional,
partir dos direitos fundamentais e a partir da nova deve-se saber se a ação é individual, se é coletiva,
summa divisio. se é medida individual ou coletiva. É uma nova
dicotomia constitucionalizada. E está aí, está na
Nelson Nery participou da banca da minha Constituição, Título 2, Capítulo 1, dos direitos
dissertação de mestrado, Direito Processual fundamentais como valores fundantes e os direitos
Coletivo: Um Novo Ramo, houve recomendação fundamentais como núcleo essencial do sistema
para publicação. Passaram a me dizer que o jurídico. É uma questão importante, porque os
assunto seria uma tese de doutorado e eu havia direitos fundamentais possuem dupla dimensão.
usado para defender um mestrado. Fui fazer uma Eles são fundamentos do estado democrático de
palestra, um curso, em parceria com o Ceaf, em direito, dão alicerce para a criação do Estado e da
Ouro Preto, no mestrado em geologia. Falei sobre o Constituição. Dentro da Constituição, eles são a
meio ambiente. Eu estava preocupado, pois queria força irradiante. Então, são conquistas magnas da
escrever sobre direito material coletivo e inverti, sociedade, da coletividade e até da natureza. No
deveria ter escrito sobre direito material coletivo Estado, são o eixo central que deve conduzir com
e depois processual. De volta ao hotel, dormi uma carga de eficácia irradiante em grau máximo.
meia hora e acordei, abri a Constituição e vi Título

241
Retomemos o Ministério Público para concluir Quando se analisa o Ministério Público como
a questão do CPC. O Ministério Público é uma órgão agente ou interveniente, como autor ou
instituição autônoma. É uma função essencial como órgão interveniente, suas atribuições
autônoma, ou ele está no executivo, ou no legislativo decorrem diretamente da Constituição. Conforme
ou está fora, é autônomo ou é um quarto poder. a Constituição, em seu art. 127, caput, o Ministério
Público é instituição permanente essencial à função
Vamos pensar o Ministério Público à luz dos direitos jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa
e garantias fundamentais, à luz da transformação do regime democrático, dos interesses sociais
social, que é o compromisso magno da nossa e individuais indisponíveis. Direitos individuais
Constituição. Assim se conclui que o Ministério indisponíveis são aqueles que estão ligados ao
Público possui natureza de garantia constitucional direito a vida e sua existência com dignidade. Essa
fundamental, garantia institucional de acesso à indisponibilidade pode ser subjetiva, quando há
justiça, é a força organizativa da sociedade e existe incapaz, e pode ser uma indisponibilidade objetiva;
para defender, de forma intransigente, sem dispor por exemplo, a pessoa está morrendo, não é
dos direitos individuais indisponíveis e dos direitos incapaz, está precisando de um medicamento, o
coletivos amplamente considerados. Ministério Público pode atuar. Isso porque faz parte
da identidade do Ministério Público a proteção do
O Ministério Público é a promoção da transformação
direito a vida e sua existência com dignidade.
social, é o eixo central que deve conduzir,
inclusive, a nossa forma de tutelar os direitos e Então, não é preciso interpretar o CPC simplesmente
garantias fundamentais para alcançar os objetivos vinculando a atuação do Ministério Público,
fundamentais da República Federativa do Brasil. submetendo a atuação simplesmente quando
Nós deixamos isso muito bem claro também na há interesse, se não houver interesse social ou
Carta de Brasília. público, ou quando há interesse de incapaz, ou

242
seja, baseado só numa indisponibilidade subjetiva. E eu fico feliz de ter contribuído para isso. Defendi
A indisponibilidade poderá ser objetiva. E é óbvio essa ideia e ficou definido que o MP agora é
que devemos estabelecer o grau de priorização. fiscal da ordem jurídica. Essa inserção tem um
De acordo com a situação concreta, a Defensoria significado muito importante. Fiscalizar a ordem
Pública vai atuar, mas, se há uma situação de risco jurídica significa defender um sistema jurídico
que demanda urgência e atuação, o Ministério adequado. Se ao final se verificar que o pedido do
Público não só pode, como deve agir, porque não
menor é espúrio, é ilegal, o órgão vai opinar pela
há como dispor se se deve ou não proteger a vida
improcedência. Se ele verificar que não é, como
de uma pessoa. Então, a indisponibilidade pode
numa ação popular, se não é uma ação popular
ser tanto objetiva quanto subjetiva. É necessário
indevida, busca-se a tutela jurídica mais adequada
frisar que a Constituição não é mais mera carta
e mais justa. O Ministério Público atua na defesa
política. É uma norma de direitos fundamentais
dos direitos coletivos amplamente considerados,
que traz força irradiante sobre todo o sistema
jurídico. Não é a Constituição de 1988 que tem individuais e indisponíveis. A Constituição

que se adequar à política ou se curvar à política, consagrou um modelo de acesso à Justiça e assim
mas a política é que deve se comportar de acordo chega-se ao CPC, a tutela jurídica por adjudicação,
com as diretrizes constitucionais, de acordo com o nos artigos 5º e 35, e a tutela jurídica por resolução
princípio da transformação social, com os direitos consensual, no preâmbulo. É um dos princípios
fundamentais. Ela é que traz a soberania do que regem as relações internacionais do Brasil, ou
sistema jurídico, por isso é que existe o controle seja, nas relações internacionais, o Brasil tem que
de constitucionalidade. priorizar a solução pacífica dos conflitos. Ora, se
lá ele tem que priorizar externamente a solução
As atribuições do Ministério Público decorrem pacífica dos conflitos, internamente com mais
diretamente da Constituição. Ele não é mais razão ainda. Dessa forma, existem dois modelos
meramente fiscal da lei. O novo CPC está atualizado. de sistema jurídico: o sistema da adjudicação em

243
que, às vezes, vai ser precisa uma liminar em normas previstas nesse Código”. Não foi realizado
sentença. E, às vezes, o agente tem que lutar estudo, por exemplo, para saber quais serão os
porque o mais adequado é liminar em sentença, se impactos de imediato, a médio e a longo prazo
a empresa descumpre TAC, por exemplo. Então, do novo CPC, em sede de recurso, em sede de
o Ministério Público atua jurisdicionalmente, por intervenção de terceiros. Nós não estudamos os
consenso ou por adjudicação, e extrajudicialmente, pontos de estrangulamento do sistema, onde estava
é aí que ele sempre vai buscar ser o intermediador funcionando, quando não estava funcionando, o que
da conflituosidade social diante dos embates precisava melhorar para identificar a realidade dos
que a ele incumbe defender. O novo CPC não foi problemas. A despeito da capacidade da comissão
planejado nem para tutelar direitos fundamentais elaboradora, um código não pode ser meramente
nem para tutelar outros direitos. O princípio do
intuitivo na era atual. Existem diretrizes, se bem
planejamento é um dos princípios essenciais do
aplicadas, poderão ser importantes para a tutela
Estado Democrático de Direito. Como estamos
de direitos fundamentais, mas não sabemos. Hoje
vinculados à realidade, a solução de problemas
temos aproximadamente, 110 milhões de processos
reais, como o nosso conceito de cidadão para fins
no Brasil. Planejar é estudar também quais serão
de criar legislação, não é um cidadão meramente
os efeitos da nova norma para ser aprovada, de
abstrato, mas cidadão real, concreto. Trata-se
imediato, a médio e a longo prazo, exige estudo
de cidadão consumidor, cidadão homem, cidadão
mulher, um cidadão meio ambiente, é concreto, de fatos e prognóstico, não o fizeram. O Código

precisamos é estudar a realidade dos problemas é belíssimo para discussões teóricas, muitas

para antes de criar uma lei. Em razão de críticas, doutrinas, muito requintado, mas não sabemos
foi inserido o artigo 1.069: “O Conselho Nacional quais serão os efeitos. Precisamos também de um
de Justiça promoverá, periodicamente, pesquisas código pragmático.
estatísticas para avaliação da efetividade das

244
Cito a importância do art. 1º do novo CPC para a representado na formação desses precedentes.
tutela dos direitos fundamentais: “O processo civil O poder político, o poder econômico certamente
será ordenado, disciplinado e interpretado conforme estarão. E aí vem o desafio maior de instituições
os valores e as normas fundamentais estabelecidos como o Ministério Público e a Defensoria Pública,
na Constituição da República Federativa do Brasil, porque isso pode trazer a unidade e pode trazer
observando-se as disposições desse Código”. Todos o engessamento. Tomemos, como exemplo, o
os dispositivos do Código precisam ser analisados art. 926, caput,: “Os tribunais devem uniformizar
à luz dos valores e dos princípios, especialmente sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e
dos direitos e das garantias fundamentais. Houve coerente”. Não se menciona: mantê-la preservando
uma palestra no Congresso de Ouro Preto, em que a vida e sua existência com dignidade, mantê-la
o Ministro Herman fez uma belíssima interpretação aberta para reconhecer novos valores e conquistas.
da importância do art. 1º, segundo a qual toda Aqui há uma aparente incompatibilidade entre
a ordenação do código, toda a disciplina e a o artigo 1º e o artigo 926, por isso o artigo 926
sistematização e a interpretação precisam estar de tem que ser interpretado à luz do artigo 1º e
acordo com os valores e as normas fundamentais sempre pela Constituição, não podemos admitir a
estabelecidos na Constituição. Existem normas criação, por exemplo, de precedentes com força
no código que são inconstitucionais. Preocupa- vinculante que gerem retrocesso, que fragilizem
me muito, por exemplo, e eu tenho falado direitos fundamentais, a briga deverá ser forte.
de forma reiterada sobre isso, a expansão da O Ministério Público vai ter que qualificar muito
força vinculante dos julgamentos dos tribunais, sua atuação nos tribunais, não só o Ministério
conforme os artigos 327, 926, 927; isso pode ter Público como a Defensoria, essas instituições
um aspecto aparentemente positivo, mas pode ser que defendem direitos fundamentais. No artigo
um bloqueio. Em termos de direitos fundamentais, 927, encontra-se o seguinte: “Os precedentes
aquele cidadão pobre, o excluído, não vai estar seguirão o Regimento Interno do Tribunal”. Para

245
a súmula vincular no Supremo, precisa-se de lei. “Ninguém poderá pleitear direito alheio em nome
O modelo constitucional é outro, precisa de lei, próprio, salvo quando autorizado por ordenamento
súmula vinculante. E mais, precisa-se de decisões jurídico”. É necessário sempre identificar qual que é
reiteradas do Supremo Tribunal Federal. O código, o titular. Quando se trata de ação coletiva, deve-se
agora, se for alterar o precedente, recomenda-se, demonstrar que os direitos são difusos, coletivos,
como se fosse um dever, ter audiência pública, individuais e homogêneos para se presumir a sua
com representantes adequados para mudar o legitimidade, a legitimidade é um dos princípios
precedente. Por isso enfatizo que, na verdade, se do Processo Civil, presume-se pela afirmação de
se quer fazer uma interpretação harmônica e justa, direito. Então, essa divisão legitimidade ordinária
deve-se considerar a Constituição, os precedentes e extraordinária é incompatível com o sistema
não podem estabelecer taxatividade dos direitos, do processo coletivo, tanto que o Nelson Nery
deve-se preservar a vida e sua existência com menciona que é uma legitimação autônoma para
dignidade. Considero importante haver Audiência a condição do processo. O direito processual
Pública com os representantes adequados no tem nos institutos estruturais a coisa julgada. “A
momento de construção do precedente, não só sentença faz coisa julgada às partes entre as quais
no momento de alteração e revogação. Outro é dada, não prejudicando terceiros”. Em outras
aspecto A aplicabilidade das normas do novo CPC palavras, a coisa julgada no CPC é pro et contra,
ao processo coletivo, aplicabilidade limitada e a favor ou contra, procedente ou improcedente e
condicionada com o novo CPC. Essa é uma questão, interpartes, entre as partes; tutela coletiva, coisa
mas devemos tomar muito cuidado. A porta de julgada, em regra, têm que ser erga omnes, têm
entrada e a porta de saída do novo CPC é tutela que ter validade para todos. Salvo nos coletivos,
individual; a base da tutela coletiva e dos princípios que é ultraparte, limitada a grupo, categoria ou
está na Constituição, o direito processual coletivo classe. Então, a porta de entrada e a porta de saída
está na Constituição. Considere-se o art. 18: do novo código são tutela individual. Veja-se o

246
enunciado que aprovamos na carta de Tiradentes. de um conjunto de técnicas voltados para a tutela
“A aplicabilidade do novo CPC ao direito processual individual, técnicas processuais. O novo CPC tem
coletivo continuará sendo limitada e condicionada fomentado novos estudos, pesquisas, publicações
a presença de compatibilidade formal e material”. e mudança cultural e estrutural na instituição,
Vou ter que analisar concretamente o que é eu acho que é importante. Ele fortaleceu muito
aplicável ou não a cada caso. Por exemplo, se se o diálogo do Processo Civil com a Constituição.
aplicar responsabilidade processual objetiva nas Essas normas fundamentais do artigo 1º ao 12 são
ações coletivas, ninguém vai mover cautelar; uma essenciais. O novo CPC adota o modelo dicotômico
associação não vai mover uma cautelar numa de acesso à justiça, isso é muito importante.
ação civil pública sabendo que, se ela perder, vai
responder independentemente de dolo ou culpa; Tenho defendido há muito tempo, desde o livro
a responsabilidade será fato gerador anexo da Direito Processual Coletivo, que o juiz tem que
conduta. Mesmo que não haja previsão na tutela flexibilizar a categoria da admissibilidade processual,
coletiva, a incompatibilidade, ela é substancial, ele tem que ter interesse, não de julgar a favor de
material. Então sempre que o agente for aplicar A ou B; o juiz deve ter interesse para legitimar
o novo CPC, terá que fazer uma análise da dupla a função jurisdicional e enfrentar as questões do
compatibilidade formal e material, sob pena de mérito. Da mesma forma, o juiz deve fundamentar
gerar retrocesso concreto, de fragilizar a tutela de a decisão, se a decisão não for fundamentada, não
direitos coletivos. E eu acho também que o CPC não terá legitimidade social. Michele Taruffo escreveu
deveria ter disciplinado o sistema de tutela coletiva. sobre isso, a fundamentação da decisão é fator de
O Código Civil não tem um dispositivo que trate de legitimidade social dessa sentença. É preciso zelar
direitos difusos coletivos. O direito à água é tratado pelo dever de cooperação entre todos que participam
dentro do capítulo de vizinhança. Corre-se o risco do processo para construção de uma decisão justa
de sufocar a tutela coletiva ao interpretá-la à luz e efetiva. Houve uma palestra aqui do Zanetti, que

247
falou sobre essa questão, que agora, pelo artigo 6º, conforme o Parágrafo Único do art. 497: “Para
a norma deixa claro que o contraditório também concessão de tutela específica destinada a inibir a
abrange o juiz, surge o contraditório como dever prática, a reiteração ou a continuidade de um ilícito,
ético, inclusive de participação, de cooperação: é o ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração
“Dever de cooperação entre todos que participam da ocorrência de danos ou a existência de culpa ou
do processo”. Todos são juiz, promotor, Ministério dolo”. Não é preciso demonstrar dano, não é preciso
Público, autor, réu, quem participa deve cooperar demonstrar culpa ou dolo, basta demonstrar que
para a construção de uma decisão justa e efetiva, há indício razoável que é possível uma empresa
então são pontos essenciais. funcionar sem licenciamento ambiental, que há
indícios razoáveis de que aquele prefeito vai
Outro aspecto muito importante é a tutela praticar uma improbidade para se mover ação de
inibitória para direitos fundamentais. Aqui se inclui forma preventiva, evitando-se a prática do ilícito.
a priorização da tutela preventiva, principalmente, E, quando já ocorreu ilícito e dano, pede-se tutela
a inibitória para combater a prática, a repetição e a inibitória para evitar a repetição do ilícito, inclusive
continuidade do ilícito. O Ministério Público sempre sob pena de multa pesada.
identificou muito sua construção na atuação
repressiva; quando foi criado, era órgão repressivo Então, nós temos que potencializar para o futuro.
do Estado, depois ele deixou essa função, passou E eu até tenho defendido que tutela inibitória cabe
a ser uma instituição indutora da transformação até em ação penal, na denúncia. Para potencializar
social e defensora dos direitos fundamentais. a ação penal, principalmente aquelas ações penais
Tem e deve atuar repressivamente também, mas coletivas, pede-se a tutela inibitória, porque se o
deve priorizar a atuação preventiva e combater a
reclamado repetir o ilícito penal, em outra ocasião, a
prática, a continuidade e a repetição dos ilícitos. A
multa será pesada também. Isso deve ser utilizado
tutela inibitória prevista no CPC é extraordinária,

248
em casos de violação de meio ambiente, saúde vai se extinguir o processo. Se ele não agrava,
pública, corrupção Podemos também estudar o extingue-se e se estabiliza, não é coisa julgada, mas
Direito Penal à luz da transformação social. é como se fosse coisa julgada. Essa estabilização
não está na Constituição, não é coisa julgada,
Há um aspecto negativo a ser mencionado. Trata- não é ato jurídico perfeito nem direito adquirido.
se da previsão de reconvenção em face do autor, eu Se se estabelecessem as hipóteses cabíveis, com
tenho preocupação que o uso da reconvenção possa limitações, poderia até funcionar, mas do jeito
prejudicar movimentos sociais, possa prejudicar a como está muito me preocupa a generalização. O
atuação do Ministério Público em improbidade. Não Ministério Público deve estar presente de forma
cabe essa reconvenção no processo coletivo porque estruturada dentro dos tribunais, participando
é incompatível, porque essa reconvenção seria de com argumentação devida e qualificada à luz da
natureza de direito individual, tutela individual e transformação social, dos direitos fundamentais.
não é cabível no processo coletivo. Deve-se analisar
a causa de pedir e o pedido para saber se a ação é Na abordagem do próximo tópico, vou mencionar
individual ou coletiva, porque, do contrário, se toda o Elton Venturi, um Procurador da República. Ele
ação movida em face do Estado se torna uma ação declara que a intimação do Ministério Público,
coletiva passiva, só vai haver ação coletiva passiva. dentro do processo, se ele não é intimado, é um
Outro problema a ser abordado se refere a esta vício de inexistência que não deve ser sanado.
estabilização: “A tutela antecipada, concedida nos Ele argumenta que o Ministério Público não é
termos do art. 303, torna-se estável se da decisão simplesmente um mero órgão interveniente,
que a conceder não for interposto recurso”. É um quando ele deve ser intimado para intervir no
problema seriíssimo que me preocupa, porque, se processo, é um representante de um interesse
alguém move uma ação cautelar antecedente e o social, de um interesse público da sociedade
réu não agrava, ele é obrigado a agravar senão dentro do processo. Ele assume uma função como

249
se fosse uma parte representando a sociedade. diálogo e o consenso na construção das decisões
Assim afirma: “Se o réu não é citado, é inexistente adequadas. As atribuições do MP como órgão
o processo, se ele não comparece.” Dessa forma agente e interveniente decorrem diretamente da
ele questiona o § 2º do art. 279: “A nulidade só Constituição, essencialmente, dos art. 127, caput,
pode ser decretada após a intimação do Ministério e 129. Então, em síntese, era isso. Muito obrigado
Público, que se manifestará sobre a existência ou pelo carinho de vocês. Muito obrigado.
a inexistência do prejuízo”.

Então, a preocupação dele é tratar o Ministério


Público, quando ele é fiscal da ordem jurídica,
agente ou interveniente, como um mero órgão
interveniente, sana qualquer vício. Se o Ministério
Público não atuou em primeiro grau, vem no
segundo, um Procurador ratifica e sana o vício;
faltou promotor natural. É necessário saber se
a sociedade foi devidamente representada. No
balanço geral, observo que é positivo o novo CPC no
plano do MP e da tutela dos direitos fundamentais,
contudo, não se vislumbra a diminuição da
sobrecarga do Judiciário por força do novo código.
A aplicabilidade do novo CPC no processo coletivo
continuará dependendo de dupla compatibilidade. O
aspecto mais inovador é a existência de priorização
da resolução consensual, que deve priorizar o

250
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA “FAMÍLIA em 1992. Professora de Direito Civil nos cursos
CONTEMPORÂNEA”, PROFERIDA POR de pós-graduação das Faculdades Milton Campos
REYVANI JABOUR RIBEIRO, COMO PARTE e Fundação Escola Superior do Ministério Público
DO PROJETO “SEGUNDA-FEIRA ÀS 18H” de Minas Gerais e de especialização do Instituto
REALIZADA EM 10 DE OUTUBRO DE 2016 Elpídio Donizetti e Escola Superior dos Notários
e Registradores do Estado de Minas Gerais,
leciona Direito Civil em cursos preparatórios para
concursos públicos e hoje nos brindará com uma
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Bem-vindos a mais
palestra sobre a família contemporânea.
uma edição do projeto Segunda-feira às 18h, uma
iniciativa do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento REYVANI JABOUR RIBEIRO: Nada de palestra,
Funcional do Ministério Público (Ceaf) que terá apenas uma troca de reflexões para alcançarmos o
como tema de hoje a família contemporânea. dinamismo necessário à nova concepção do Direito
Convidamos para a Mesa o coordenador da de Família, que exige coragem para quebrar
Coordenadoria de Defesa da Família, o procurador preconceitos, superar a hipocrisia. Talvez nenhum
de Justiça Bertoldo Mateus de Oliveira Filho, e a outro ramo do Direito Civil tivesse sido tão sensível
procuradora de Justiça Reyvani Jabour Ribeiro. Para às mutações sociais como aconteceu com o Direito
fazer a apresentação da palestrante, ouviremos o de Família. Talvez nenhum outro ramo do Direito
presidente da Mesa, Bertoldo Filho. tivesse vivenciado uma evolução legislativa tão
significativa como aconteceu com o Direito de
BERTOLDO MATEUS DE OLIVEIRA FILHO: A
Família. Na versão original do Código Civil de 1916,
procuradora de Justiça Reyvani Jabour Ribeiro,
havia tão somente um único modo de constituição
graduada em Direito pela PUC Minas em 1989,
de família legítima, que era por meio do casamento.
ingressou no Ministério Público de Minas Gerais
As pessoas precisavam casar-se para legitimar a

251
família, para legitimar os filhos, porque todas as lado do casamento, reconheceu-se também como
vezes que o legislador fazia menção a outras uniões entidade familiar a união estável, caracterizada
extramatrimoniais, aquelas surgidas à margem do pela convivência pública contínua e duradoura
casamento, era para punir ou para negar qualquer entre um homem e uma mulher que objetivasse
tipo de proteção. Tanto que os filhos só eram constituir família. O legislador constituinte faz
legítimos se tivessem sido concebidos por pais menção à denominada família monoparental, que
casados, isto é, na constância do casamento. Para se caracteriza pela convivência entre um dos pais
os filhos havidos fora do matrimônio, não se e a sua prole. E, muito embora o avanço tivesse
poupavam adjetivos para desqualificá-los. Eram sido significativo, porque antes só havia casamento
denominados espúrios, bastardos, incestuosos, como modo de constituição de família, teria sido
adulterinos, naturais. A mulher que convivesse acanhado por ter o legislador constituinte perdido
com um homem com quem não se casara era oportunidade de reconhecer outros modelos e
denominada concubina, pouco importando se núcleos familiares. A crítica é de que se poderia ter
poderia ser ou não. Ainda que não houvesse entre avançado ainda mais. Em outras palavras:
essas pessoas nenhum impedimento matrimonial, casamento, união estável e família monoparental
elas não mereciam nessa convivência nenhum tipo eram os únicos modelos de família ou poderia
de proteção, porque só se reconhecia mesmo, haver outros que não aqueles ali expressamente
naquela época, o casamento advindo da união consagrados? Qual a relevância dessa discussão? É
formal entre homem e mulher, cujo propósito que desde a declaração universal dos direitos
consistia em constituir família legítima. Mas a humanos a família tem sido cantada e decantada
Constituição de 1988, em um único dispositivo, como sendo base da sociedade e, portanto, digna
acabou espancando anos e anos de preconceito e merecedora de respeito e de proteção especial do
hipocrisia: emprestou juridicidade a outros arranjos Estado. Aliás, o Supremo Tribunal Federal, no
familiares, talvez até muito mais desafiantes. Ao julgamento de duas ações, uma Ação Direta de

252
Inconstitucionalidade proposta pelo Ministério homoafetivas concretas, o Supremo Tribunal
Público Federal e uma ação de arguição de Federal criou esse precedente importantíssimo de
descumprimento de preceito fundamental proposta aplicar às uniões homoafetivas as mesmas regras
no estado do Rio de Janeiro pelo seu governador que regem a união estável, por serem situações
acabou, de certa forma, colocando uma pá de cal semelhantes. E são mesmo. A única diferença
nessa discussão. Por quê? Porque para suprir a entre união homoafetiva e união estável é a
omissão do legislador estendeu às uniões questão da igualdade e desigualdade de sexos.
homoafetivas as mesmas regras que regem ou Usa-se a expressão união homoafetiva para
disciplinam a união estável. Não vigora até hoje, substituir a palavra homossexual, sempre muito
no território nacional, nenhuma lei que discipline a carregada de preconceito. Enquanto na união
convivência entre pessoas do mesmo sexo. Não se estável a convivência se dá entre pessoas de sexos
sabe se por incompetência dos nossos congressistas diferentes, homem e mulher, um convívio
ou se por falta de coragem mesmo, os projetos heterossexual, nas uniões homoafetivas a
ainda não se converteram em lei. Mas o julgador convivência vai-se dar entre pessoas do mesmo
não pode eximir-se da função de julgar ao pretexto sexo, homem e homem, mulher e mulher. Por
de que não existe uma lei em abstrato para ser ocasião do julgamento daquelas duas ações a que
aplicada a uma situação concreta. Na verdade, me referi, passou-se a aplicar a uniões homoafetivas
diante da omissão do legislador, o julgador tem de a mesma regra que disciplina união estável, por
ser virar, como se diz. E uma das formas de se serem situações semelhantes. Desde então, todos
virar é integrar as normas ao critério da analogia. os direitos e deveres dos companheiros passaram
O que é analogia? É aplicar a uma situação não a ser, também, direitos e deveres dos casais
prevista em lei as mesmas regras que regem ou homoafetivos. Nas mesmas circunstâncias que um
disciplinam uma situação semelhante. Sem companheiro for havido como meeiro do outro, o
nenhuma lei em abstrato aplicada a uniões convivente também terá assegurado meação. E se

253
admitirmos que um companheiro possa participar por ser uma forma de colocação em família
da sucessão do outro, também vamos admitir que substituta, duas pessoas só poderiam adotar
um convivente possa ser chamado à sucessão conjuntamente se formassem uma família, pelo
como herdeiro legítimo. Vê-se que esse precedente casamento ou pela união estável, comprovada a
do Supremo Tribunal Federal passou a reger as estabilidade daquela convivência. A partir do
uniões homoafetivas com as mesmas regras da momento em que o STF mandou que se estendesse
união estável. Os conviventes homoafetivos às uniões homoafetivas as mesmas regras que
passaram a ser protegidos desde o momento em disciplinam a união estável, os dois conviventes
que a união estável foi erigida à categoria de passaram a adotar conjuntamente, por precedente
entidade familiar. Aplicam-se, pois, regras inerentes jurisprudencial. Os dois irmãos podem adotar
ao Direito de Família às uniões homoafetivas conjuntamente uma mesma criança, malgrado não
também. Em um outro momento, o Superior vivam união estável ou união homoafetiva. Seria
Tribunal de Justiça (STJ) decidiu acerca da uma família substituta porque dois irmãos também
possibilidade de dois irmãos adotarem constituem a chamada família anaparental. Família
conjuntamente uma criança. A adoção mereceu anaparental é aquela que se caracteriza pela
verdadeira repersonalização. A adoção servia para convivência entre irmãos, entre tios, entre
dar a um casal estéril pelos métodos naturais um sobrinhos, ou seja, pessoas que não se casaram, e
filho de presente. Buscava-se a realização pessoal nem poderiam, mas que também estão em busca
por intermédio dele. Agora, presenteia-se o filho de uma comunhão plena de vida baseada na
com uma família acolhedora em uma família igualdade, na solidariedade, na responsabilidade
substituta. Tanto que a adoção só será deferida se e, sobretudo, na liberdade. Quando o STJ permite
realmente trouxer efetivos benefícios para aquele que dois irmãos adotem conjuntamente, verifica-
que se quer adotar. São os interesses do adotando se que o rol previsto na Constituição de 1988
que se levam em consideração para deferi-la. E cresce cada vez mais. Além dos vários precedentes

254
do STJ, uma miríade de decisões do nosso Tribunal estáveis paralelas, um homem em convívio
de Justiça vem permitindo que, mesmo que a concomitante com duas mulheres. Estou falando
pessoa seja solteira, divorciada, viúva e viva de um triângulo amoroso cuja convivência pública
sozinha alegue a impenhorabilidade do bem de e contínua tem o objetivo de constituir família.
família porque precisa de que lhe seja assegurado Tenhamos cuidado: esses avanços trazem
um patrimônio mínimo para que possa ter uma repercussão na divisão do patrimônio comum, ou
vida digna. Logo, a conclusão é de que existe seja, agora nem se vai falar de meeiro mais. Vamos
família de uma pessoa só, e essa chamada família ter que dividir a massa patrimonial comum por três
unipessoal vai merecer proteção e respeito assim e, por ocasião da morte de um deles, os outros
como de outros arranjos familiares que não seriam dois seriam chamados à sucessão como
ainda aqueles consagrados na Constituição. O companheiros sobreviventes. Até eu, que me
Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, reputo jovem, moderna e descolada, às vezes,
permitiu que um tabelião do cartório de notas tenho dificuldade em acompanhar toda essa
daquele estado lavrasse uma escritura pública de evolução. Por quê? Porque a sociedade está
união estável caracterizada pela convivência entre evoluindo muito mais do que a própria mentalidade
três pessoas, a chamada família poliafetiva, que das pessoas. O que era incrível ontem, hoje já
nos tempos da minha avó era denominada bacanal. aceitamos com mais facilidade e amanhã passará
A orientação sexual — nem digo opção sexual a ser supernatural. Nós temos é que ficar atentos
porque, honestamente, não acredito que as exatamente a essa modernidade das relações
pessoas optem por serem diferentes e receberem jurídicas familiares, porque as famílias tendem a
todo tipo de discriminação — é sinal dos tempos e ser cada vez mais desorganizadas, menos
precisamos saber respeitar. No Rio de Janeiro, esse hierarquizadas e muito mais focadas nas relações
tipo de escritura pública, no entanto, foi vedado de afeto do que nas próprias relações de
recentemente. Não estou falando de uniões consanguinidade. Sempre que falo às pessoas e

255
me refiro às relações jurídicas familiares, tenho pessoas exatamente porque já estou considerando
minha avó como fonte de inspiração. Ela sempre a possibilidade de, no Brasil, termos casamentos
foi uma mulher “porreta” porque mandava em todo entre pessoas do mesmo sexo. Não por permissivo
mundo, inclusive no meu avô, que morreu aos 85 legal. Como eu disse, não há até hoje nenhuma lei
anos de idade acreditando que era o chefe da vigorando no território nacional para disciplinar a
família, cabeça do casal. Ledo engano. De uma convivência entre pessoas do mesmo sexo. Esse
delicadeza tão singela, ela fez o meu avô acreditar permissivo decorreu daquele precedente do
ser ele que mandava mesmo. Mas hoje, Supremo Tribunal Federal a que me referi. Por quê?
definitivamente, isso não serve mais como fonte Porque o Supremo Tribunal Federal diz que nós
de inspiração, sobretudo na família tradicional deveríamos estender às uniões homoafetivas as
mineira, que acabou cedendo espaço a outros mesmas regras que disciplinam união estável. Na
arranjos familiares talvez muito mais desafiantes. Constituição, o legislador determinou que
Então, precisamos ter coragem para quebrar facilitássemos a conversão da união estável em
preconceitos, para superar as nossas hipocrisias. casamento. A reboque, precisamos facilitar a
Por quê? Porque se não ficarmos atentos, não conversão da união homoafetiva em casamento.
vamos perceber a evolução. A definição de Foi o primeiro passo dado no Brasil para passarmos
casamento que dou hoje não é a mesma de alguns a admitir casamentos entre pessoas do mesmo
anos atrás. Eu definia o casamento como sendo sexo. Além de admitirmos a possibilidade de
uma união formal entre homem e mulher que casamento entre pessoas de sexos idênticos,
tivesse o objetivo de constituir uma família legítima. homem e homem, mulher e mulher, percebam que
Uma definição clássica, nos termos da lei, entre o objetivo do casamento também mudou, porque
um homem e uma mulher. Convém ressaltar, entre antes as pessoas casavam para legitimar a família
um homem e uma mulher. Hoje passei a dizer e legitimar os filhos. Hoje, definitivamente, não é
pessoas. Casamento é, pois, união formal entre preciso mais se casar para esse fim. Por quê?

256
Porque há um modelo de entidade familiar liberdade. O maior desafio do casamento é propiciar
caracterizado pela simples convivência de fato. As felicidade. Buscam-na, embora o casamento não
pessoas, mesmo que convivam de maneira seja a garantia dela. Vejam que há pessoas que se
informal, estarão aptas a caracterizar uma entidade bastam, conseguem viver sozinhas e serem
familiar que foi equiparada ao casamento e à união extremamente felizes. Outras, como eu, como o
estável. Desde a Constituição de 1988, os filhos poeta, acreditam que é impossível ser feliz sozinho
são absolutamente iguais, vedada qualquer forma e vão se unir a outras pessoas exatamente em
de tratamento diferenciada entre eles. Portanto, busca dessa felicidade. E a Constituição de 1988,
não importa se foram concebidos na constância do que emprestou juridicidade a outros arranjos
casamento, se foram havidos fora do casamento, familiares, editou a Emenda Constitucional 66,
se são considerados pelo critério biológico ou pelo passando a permitir o divórcio direto sem fazer
critério socioafetivo, adoção, por exemplo, qualquer exigência de tempo mínimo de casamento,
porquanto terão direitos idênticos, absolutamente de prévia separação judicial ou administrativa ou
iguais. Então, se é desnecessário casar-se, já que de tempo mínimo de separação de fato. Quem se
a união estável marcada pela convivência de fato casou ontem e quiser hoje se divorciar poderá
caracteriza núcleo familiar e os filhos são legítimos fazê-lo diretamente. E houve quem sustentasse
qualquer que seja a origem, por que as pessoas se que a EC 66 veio banalizar, vulgarizar o casamento.
casam? Aí entra o momento romântico. As pessoas Como as pessoas que se casaram ontem, sem o
se casam porque querem ser felizes, objetivando menor período de convivência, podem divorciar-se
exatamente estabelecer uma comunhão plena de hoje? Nada disso, pessoal. Essa Emenda
vida. E aí me vão perguntar o que é comunhão Constitucional não é para incentivar ou fomentar o
plena de vida. É exatamente a busca pelo carinho, divórcio. Ela veio desdramatizar o fim do casamento,
pelo afeto, pelo amor, baseada na solidariedade, que traz uma dose muito grande de mágoa, de
na responsabilidade, na igualdade e, sobretudo, na ressentimento, porque sempre há a tendência de

257
um querer atribuir ao outro a culpa pelo fim do participei de um processo em que o marido tinha
sonho do amor eterno, quando nem sempre se provas irrefutáveis de que a mulher o traía. Entrei
tem culpado. Às vezes, podem existir causas mais com uma ação de separação litigiosa e nas
imediatas, mais visíveis, mas o que está atrás da audiências de conciliação a juíza com quem eu
vida a dois? Então, a Emenda Constitucional 66 trabalhava à época tentou reconciliar o casal, o
quis foi facilitar o término do casamento. Do mesmo que foi impossível. Sem conseguir a reconciliação
jeito que as pessoas são livres para se casar, elas do casal, ela propôs converter o pedido de
precisam ser livres para se descasar. Casaram-se separação litigiosa em separação consensual. A
porque pretendiam ser felizes e, portanto, só mulher, a requerida, disse que concordava. O
deverão permanecer casadas enquanto se sentirem marido, o requerente, não. A mulher voltaria a
bem. Quanto mais rápido se resolver o fim do usar o nome de solteira, abriria mão dos bens
casamento, menos dramático, menos traumático e móveis, porque imóveis eles não tinham, teria
menos doloroso é para todo mundo. Quem milita aberto mão da guarda dos filhos, ou seja, ela
ou militou nas varas de família sabe o quanto é aceitou tudo que ele pleiteou na petição inicial.
doloroso tomar a iniciativa de pedir a separação. Mesmo assim, reiterou que com ela não haveria
Divórcio é muito triste porque é sinal de frustração acordo, já que ele tinha provas irrefutáveis da
de ter querido ser feliz e não se sentir mais. Hoje, traição e não sei o quê. Vejam que loucura! Tentei
separação e divórcio passaram a ser direitos intervir naquele momento, para convencer as
potestativos de qualquer pessoa casada. O único partes a acabarem com aquela discussão que não
requisito para separar é estar casado. Não é preciso levaria a lugar algum. O advogado dele foi
mais discutir culpa nas ações de separação, de extremamente atrevido comigo ao dizer que era
divórcio. Por quê? Porque provar culpa na vida a direito o cliente obter prestação da atividade
dois se torna muito difícil. O que se passa na jurisdicional de ter decretado a separação por culpa
intimidade do casal vai saber? Eu mesma já da mulher. Eu, que sempre tive o estopim muito

258
curto, argumentei: “Doutor, francamente: o que o dentes. Se sair, não se perde nada porque hoje a
cliente do senhor vai obter com essa sentença? guarda compartilhada passou a ser regra. O juiz
Reconhecimento judicial de que é corno, chifrudo? confere guarda compartilhada para minimizar os
Ele quer a separação, a mulher concordou. É o efeitos traumáticos da separação dos pais para os
caso de decretar a separação imediatamente”. Mas filhos, que são os que mais sofrem. Se for impossível
não. Ele queria que fosse decretado com base na a guarda compartilhada, a guarda unilateral é
culpa dela, ou seja, queria reconhecimento de que deferida em favor daquele pai que melhor preservar
era chifrudo. Uma moça que trabalha na minha os interesses do filho. A mulher pode até ter
casa há muitos anos, quanto mais tempo passa, abandonado o lar, o marido ter traído a mulher,
mais atrevida fica. Ela me humilha e me ofende, mas o juiz não vai imiscuir na briga do casal. Ele
mas está lá até hoje porque preciso muito mais quer saber o que é melhor para o filho. Já a partilha
dela do que ela de mim. Ela vive me dizendo que dos bens, é feita de acordo com o regime escolhido
entende de lei. Fico humilhada porque estudo e antes de se casarem. Para amealhar o patrimônio
chego à conclusão de que de lei não sei nada. Ela comum, o juiz não leva em consideração de quem
diz que entende e, nessas de entender de lei, outro é a culpa, de quem é a inocência na separação. Ele
dia contou que tinha orientado a vizinha. Confesso vai perquirir o quê? O regime de bens. Quanto ao
que fiquei curiosa. O marido da vizinha estava nome, o cônjuge culpado perderá o direito de usar
desempregado, só chegava à casa dele bêbado, o nome do cônjuge inocente. Isso se tiver adotado,
drogado e batendo nela. Meu Deus, ele faz isso porque nos tempos atuais não estão exercendo a
tudo? – indaguei. “Nossa, está toda machucada”. faculdade de acrescer a seu sobrenome o do outro,
Qual orientação deu a ela? – quis saber. “Não sair já pensando nas facilidades para o divórcio. Vejam
de casa, senão ela perde os direitos”. Argumentei quanta intolerância! Já se casa pensando na
que ela corre muito mais o risco de perder ficando separação. Mas ainda que o cônjuge tivesse
do que saindo. Caso fique, ela pode perder os acrescido a seu sobrenome o do outro, ele só vai

259
perder se o cônjuge inocente requerer, e ainda que preocuparmos em achar um culpado para justificar
o cônjuge inocente requeira, ele não perderá, se o fim do sonho do amor eterno, essa modalidade
provar prejuízo para a sua identidade ou para a nova de usucapião permite que um cônjuge ou ex-
dos filhos. Então, o juiz vai levar em consideração ‑companheiro possa usucapir a meação do outro
a culpa de regra sim, mas admite-se que ela possa que o teria abandonado e caminha em sentido
ser refutada para assegurar ao outro continuar a oposto ao caminho trilhado pelo Direito de Família
usar o nome conjugal. Na questão de alimentos, o moderno, porque o abandono está muito ligado à
cônjuge culpado pode pleitear alimentos do cônjuge ideia de culpa. Quer nos parecer que o legislador
inocente. Nesse caso, porém, os alimentos serão quis proteger o pobre coitadinho, que foi
fixados só para lhe garantir subsistência, isto é, abandonado. Gente, ele foi abandonado, a fila
para que não morra de fome, enquanto que o anda e a catraca é seletiva. O que é abandono se
cônjuge inocente teria direito a alimentos que lhe posso divorciar-‑me do meu marido na hora em
manteriam o mesmo padrão social. E fico pensando que quiser. Basta-me querer. Se eu formular o
se no padrão social da vizinha da minha empregada pedido, não há nada que ele possa fazer para
vale a pena continuar apanhando para conseguir resistir à minha pretensão, porque, como disse,
que os alimentos sejam fixados num patamar divórcio é direito potestativo de toda pessoa
maior, se o cara está desempregado e não vai casada. Por que não posso sair de casa? O que vai
pagar. Mas não subestimem minha empregada. caracterizar abandono se não sou obrigada a
Ela, realmente, sabe de Direito. Criaram o conviver com outra pessoa o resto da minha vida?
famigerado usucapião familiar, que caminha em A única coisa, realmente, que ela perderia é a
sentido diametralmente oposto ao trilhado pelo possibilidade de o marido usucapir a meação dela,
Direito de Família. Enquanto no Direito de Família se o abandono do lar ficar caracterizado como
se avança para desdramatizar o término do indicativo de culpa dela. Graças aos avanços da
casamento ao facilitar a separação e não mais nos Constituição de 1988, houve reflexos no casamento

260
não só para que ele possa ser contraído por pessoas Sendo a união estável entidade familiar regida pelo
do mesmo sexo como também, a reboque, a Direito de Família, há reflexos: possibilidade de um
Emenda Constitucional 66 facilita o fim do companheiro adotar o nome do outro, de pleitear
casamento ao permitir que o divórcio direto seja alimentos do outro, de um companheiro ser
decretado independentemente de prévia separação, herdeiro do outro. Na relação concubinária, o
independentemente de tempo mínimo de separação concubino é tratado como sócio, e daí ser regida
de fato. Também houve repercussão nas uniões pelo Direito Obrigacional. Então, um companheiro
estáveis, as quais passaram a ser modelo de pode fazer jus a meação dos bens adquiridos pelo
entidade familiar equiparado ao casamento e, outro. A divisão dos bens na união estável vai ser
portanto, regido pelo Direito de Família. Mas de acordo com o regime. Por quê? Salvo contrato
cuidado porque nem toda convivência vai ser escrito, à união estável se aplicam regras que
conhecida como entidade familiar. De fato, união disciplinam o regime da comunhão parcial de bens.
estável decorre de convivência, mas nem sempre O contrato escrito, o contrato de união estável, o
quando as pessoas estão de fato a conviver contrato de convivência estão para a união estável
caracteriza união estável. Às vezes, a convivência assim como o pacto antinupcial está para o
gera mero concubinato, e é preciso muito cuidado casamento. Do mesmo jeito que os noivos são
para não o confundirmos com união estável. A livres para eleger um regime e negociar o que lhes
união estável é entidade familiar e vai ser regida aprouver no aspecto patrimonial, os companheiros
pelo Direito de Família. O concubinato é uma também poderão. E a depender do regime, mesmo
simples sociedade regida pelo Direito Obrigacional. que o bem tiver sido adquirido por um, o outro fará
Tratamos na união estável os companheiros como jus à sua meação, contanto que esse bem tenha
membros de uma mesma família. No entanto, sido conquistado na constância daquela convivência.
consideramos os concubinos como sócios porque a Já no concubinato, a divisão dos bens não se dá
relação concubinária é uma sociedade de fato. por força do regime. Baseia-se naquela regra de

261
ouro que não admite o locupletamento ilícito e nem convivência com o cônjuge, mas com outra pessoa
o enriquecimento sem causa. E o critério distintivo que também tenha o objetivo de constituir uma
entre a união estável e o concubinato é que se as família. Antes, concubina era a mulher que convivia
pessoas que estão de fato a conviver estiverem com o homem com quem não era casada. Hoje,
impedidas de casar, a convivência entre elas aquela mulher, embora pudesse ser chamada de
caracterizará simples concubinato. Para a união concubina, deve ser é companheira, porque ela
estável, é preciso que estejam de fato a conviver e também formou ali naquela convivência uma
só optaram por não se casar porque acreditam que família. O terceiro modelo de entidade familiar que
quem ama com fé casado é. Se quisessem se casar, foi consagrado na Constituição recebeu
poderiam. Não existe impedimento que os inibam denominação de família monoparental, que resulta
de constituir o vínculo matrimonial. Nas mesmas exatamente da convivência entre um dos pais e a
circunstâncias de não se poderem casar em virtude sua prole. Também houve reflexos no vínculo
do parentesco ou por caráter ético, moral, elas jurídico de filiação. Dois critérios o determinam: o
estão impedidas de caracterizar a união estável. clássico, tradicional, que é o critério biológico, o
Entre elas há simples concubinato, tratado como qual se fundamenta nos laços de sangue e resulta
uma sociedade de fato, questão interessante da na relação de consanguinidade; o moderno, mais
família moderna. Gente casada, mesmo que de vanguarda, que é o critério socioafetivo
separada de fato há 50 anos, continua ostentando resultante da posse do estado de filho. Mas o que
o estado civil que a impede de se casar de novo. é posse? Posse é o exercício de um direito diante
Mas pessoas casadas que já estiverem separadas de situação fática na qual uma pessoa, malgrado
de fato, um dia que seja, estarão livres para não tenha com outrem laços de consanguinidade,
constituir uma nova família. É possível, mesmo é tratada e nomeada como filha. O critério
que ostente nos assentos o estado civil casado, socioafetivo é o que resulta dos laços de afetividade,
possa ter uma outra família constituída não pela e nosso ordenamento jurídico pátrio prestigiou

262
tanto o critério biológico quanto o socioafetivo. que esses filhos tenham mais direitos. Digo é que
Exame de DNA é maravilhoso para comprovar ou eles têm uma pitadinha de vantagem, e essa
para negativar paternidade para o critério biológico, vantagem a que me quis referir é a presunção de
porém imprestável para detectar ou para afastar a paternidade que milita em favor deles, porque até
paternidade pelo critério socioafetivo, porque se que se prove o contrário, todos os filhos concebidos
reputam pai e filho, embora não exista entre ambos na constância do casamento da mãe, presumir-se-
laços de consanguinidade ou de vínculo biológico. ão filhos também do marido dela. Claro que é uma
E vejam que o nosso ordenamento jurídico quando presunção relativa, ‘iuris tantum’, porque desafia
admite adoção prestigia o critério socioafetivo, já que se prove o contrário. Se o filho foi concebido
que adotar é tomar o filho de outro como se nosso na constância do casamento da mãe, isto é, por
próprio fosse, colocando-o na situação análoga aos uma mulher casada, presumir-se-á filho também
filhos de sangue. Os por adoção são os filhos do do marido dela. E, para presumir a paternidade, o
coração porque são os eleitos. São os filhos que os legislador levou em consideração não só os
pais escolhem ter, e entre adotante e adotado não métodos naturais de concepção como também os
há laços de sangue. O que existe é uma relação de métodos artificiais, incluindo ali técnicas de
afetividade. Todos os filhos são absolutamente reprodução humana assistida. Presumem-se
iguais, vedada qualquer forma de tratamento concebidos na constância do casamento os filhos
diferenciado entre eles. Não importa se os filhos nascidos 180 dias contatos do início da convivência
foram concebidos na constância do casamento, se conjugal. É como se a mulher tivesse engravidado
foram havidos fora do casamento. Todos terão no primeiro dia pós-casamento de convivência
direitos idênticos, absolutamente iguais. Mas não conjugal e ter dado à luz a um filho com um prazo
podemos negar uma pitadinha de vantagem em mínimo gestacional de seis meses completos, no
relação aos filhos quando concebidos na constância sétimo mês de gravidez. Ou os que nascerem
do casamento. Não estou dizendo, e nem poderia, dentre de 300 dias contados da dissolução da

263
sociedade conjugal, como se a mulher tivesse fecundante congelado. Se o homem morre, mas
engravidado no último dia de convivência com seu deixa sêmen congelado, caso a viúva faça uma
filho e ter dado à luz a um filho com prazo máximo inseminação artificial utilizando o material genético
gestacional de 300 dias, nove meses completos no deixado por ele, ela terá um filho que a lei presume
décimo mês de gravidez. Esses são métodos concebido na constância do seu casamento e,
naturais de concepção, mas também se presumem portanto, filho do marido também. Hoje é
concebidos na constância do casamento os filhos perfeitamente possível um morto ser considerado
decorrentes de uma inseminação artificial pai de alguém. Vai ser filho, mas será que vai ser
homóloga, mesmo que o marido tenha falecido. herdeiro? Por quê? Porque o Direito de Família está
Inseminação artificial homóloga é aquela feita com avançando muito mais do que o Direito Sucessório.
material fecundante fornecido pelo próprio casal. A Minha intenção é mostrar o quão veloz está
mulher casada entra com o óvulo e o marido com caminhando e tende a caminhar considerarmos o
o esperma. A inseminação artificial que for feita filho como sendo do morto, mas não ser ele
poderá gerar um filho que a lei presume ter sido herdeiro porque se legitima herdar apenas quem
concebido na constância do casamento, e, portanto, já nasceu ou tiver sido concebido no momento da
o filho do marido também, mesmo que falecido. abertura da sucessão. Quando o pai morre e o filho
Esse inciso, costumo brincar, serviria para mostrar não houver nascido nem sequer concebido, o
o poder de nós mulheres conseguirmos fazer filhos rebento não tem vocação hereditária para participar
independentemente da vida dos nossos maridos. da sua sucessão. Também se presumem concebidos
No contrapé, um aluno muito mais esperto que eu na constância do casamento os filhos decorrentes
disse que, ao contrário, o inciso vinha para mostrar de embriões excedentários que resultaram de
o poder dos homens, porque conseguiam fazer inseminação artificial homóloga. A qualquer tempo
filhos mesmo depois de mortos. Basta imaginarmos que os embriões forem introduzidos no aparelho
a possibilidade de eles terem deixado o material reprodutor de uma mulher receptora, ela terá um

264
filho que a lei presume concebido na constância do afetividade. Então, é possível determinarmos a
casamento e, portanto, do marido ou ex-marido, paternidade por outro critério que não seja o
ou seja, a possibilidade de um casal ter um filho no biológico. Nesse caso, se o marido autorizou a
momento em que já se descasou. Além desses mulher a fazer uma inseminação artificial
critérios biológicos determinantes da paternidade, heteróloga, ele vai ser o pai. E não adianta nada
presume-se que a relação sexual tenha sido entrar com uma ação negatória de paternidade e
mantida pelo fato de o marido ter sido o fornecedor pedir exame de DNA, porque ainda que o exame
do material fecundante. Mas a lei também prestigiou de DNA aponte 99,99% de probabilidade de ele
o critério socioafetivo quando também presumiu não ser o pai, haverá de ser mantido como tal
concebido na constância do casamento os filhos porque o critério determinante da sua paternidade
decorrentes de inseminação artificial heteróloga, não é o biológico, mas sim o socioafetivo. Os filhos
que é aquela feita com material fecundante havidos fora do casamento não têm a pitadinha de
fornecido por um terceiro doador. Se a mulher for vantagem, porém precisam ser reconhecidos.
casada e estiver autorizada pelo marido a fazer Como tirar proveito dessa situação? Se a mulher
uma inseminação artificial usando o esperma de casada comparecer ao cartório para registro de
um terceiro, o filho dela teria sido concebido na nascimento do filho provando que o concebera na
constância do casamento e, portanto, é filho do constância do casamento, mesmo que vá sozinha,
marido também. Vejam que estamos considerando ela poderá registrar o filho em seu próprio nome e
pai não aquele que forneceu o material fecundante, no do marido. Mas se a mulher solteira, viúva,
mas quem quis ter o filho, porque quando o marido separada ou divorciada concebera um filho fora do
autoriza a mulher a fazer uma inseminação artificial casamento e for registrar o nascimento dele em
heteróloga é como se ele estivesse adotando o nome do pai, o pai vai ter que ir lá para o
filho de outro antes mesmo da concepção. Ou seja, reconhecimento voluntário a fim de admitir o filho
constitui com esse filho um vínculo de pura como dele, feito pelo critério biológico ou pelo

265
critério socioafetivo. Inclusive o Provimento nº 16 ele tratou, reputou e nominou o filho da companheira
do CNJ permite na adoção à brasileira que qualquer como se dele próprio fosse. Só que os anos se
pessoa que for ao cartório e se declarar pai, desde passaram, a convivência entre os dois tornara-se
que o filho ainda não tenha registro, possa incluir insuportável, veio o divórcio. Já divorciado, ele
o nome paterno sem qualquer questionamento. entrou com ação negatória de paternidade e, para
Ninguém pode vindicar estado contrário ao que provar que não era o pai, pediu o exame de DNA,
consta nos assentos do nascimento. Então, se uma cujo resultado não poderia ser diferente do
criança só estiver registrada em nome da mãe, esperado. No entanto, ele foi mantido como pai. A
qualquer um pode comparecer ao cartório e se mídia criticou a decisão ao argumento de que os
declarar pai, pelo critério socioafetivo, mesmo que juízes de Minas queriam ser mais realistas do que
não tenha laços de consanguinidade, e sim um rei, embora o exame de DNA tivesse negativado a
vínculo de afetividade. Depois, portanto, se quem paternidade com aquela precisão toda. A crítica foi
fez a adoção à brasileira entra com uma ação injusta porque eles deturparam a decisão: negou-
negatória de paternidade, não adianta nada pedir se a paternidade pelo critério biológico, mas o
exame de DNA, porque mesmo que o exame de manteve como pai pelo critério socioafetivo porque
DNA dê 99,99% de probabilidade de ele não ser o durante 12 anos aquela criança foi tratada,
pai, haverá de ser mantido pelo critério socioafetivo. reputada e nominada como filho. Ela vivenciou a
Aliás, a primeira decisão proferida no país que posse do estado de filho e, do mesmo jeito, se não
julgou improcedente uma ação negatória de tivermos o reconhecimento voluntário, vamos ter
paternidade, exatamente pelo critério socioafetivo, que partir para o reconhecimento forçado.
saiu daqui de Belo Horizonte, para orgulho de nós Reconhecimento forçado é o que se busca numa
mineiros. Numa adoção à brasileira, um sujeito ação de perfilhação compulsória, e hoje já temos
registrou o filho de sua mulher como se seu próprio ação de investigação de paternidade sendo julgada
fosse e criou um laço de afetividade. Por 12 anos procedente tanto pelo critério biológico como pelo

266
critério socioafetivo. Existem sentenças declarando estado de filho. E, uma vez reconhecido o filho, ele
o suposto pai como pai do investigante, vem com a ação de petição de herança para agora
independentemente dos laços de consanguinidade, ser reconhecido como herdeiro. Lamentavelmente,
mas simplesmente por uma relação de afetividade. nenhuma fórmula matemática estabelece qual
E parte da doutrina até critica essa investigação de critério é mais ou menos importante. O critério
paternidade pelo critério socioafetivo ao argumento biológico é apenas um dos critérios determinantes
de que estaríamos forçando uma pessoa a adotar da filiação. O Supremo Tribunal Federal reconheceu
o filho de outro. Não é isso. Essa investigação de recentemente, como tema de repercussão geral, a
paternidade tem natureza declaratória da necessidade de se ponderar qual critério deve
preexistência de uma situação. Ora, se aquela prevalecer. Tudo vai depender das circunstâncias
pessoa não quisesse adotar o filho de outro, então do caso concreto. Numa situação, o pai sabia não
não brincasse de ser pai, porque brincou de ser pai ser o pai biológico, faz a adoção à brasileira do
enquanto quis e agora não quer mais o filho. Logo, filho e depois quer negar a paternidade pelo critério
isso serve para regularizar a situação dos filhos de biológico. Noutra, quem achava ser o pai desenvolve
criação, aqueles que são tratados na família como uma relação de afetividade com o filho e depois
verdadeiros filhos. No ato registral, sem o descobre a infidelidade da mulher. Nas duas
reconhecimento voluntário, não foram nem situações, o STJ considerou que, se tem afetividade,
adotados à brasileira nem pelo devido processo deve ser mantido como pai. Mas vejam: no segundo
legal. Para participarem da sucessão e ser caso, o pai só teve relação de afetividade porque
reconhecidos como herdeiros, eles precisam antes ele acreditava que o filho fosse dele. Às vezes, é
ser reconhecidos como filhos. Então, entra-se com difícil determinar quem vai ser o pai. Curiosamente,
uma ação de investigação de paternidade pelo um pai biológico quando soube do nascimento do
critério socioafetivo exatamente para que o juiz filho refutou. Não quis saber, e o pai socioafetivo
declare que ele, de fato, vivenciou aquela posse do assumiu a paternidade. Só que os anos se

267
passaram, o pai biológico resolveu reivindicar o morreu no parto e a mãe socioafetiva, a tia, adotou
filho. Quem é o pai? Aquele que forneceu material o sobrinho. Desde janeiro de 2010 (ou 2011) vigora
fecundante, que manteve relação sexual com a um modelo de certidão de nascimento no qual não
mãe, ou aquele que deu carinho, afeto, amor? constam mais os campos distintos: pai e mãe, avós
Nessa situação, tende-se a ir para o caminho do paternos, avós maternos. Agora é campo único,
pai socioafetivo. Mas imaginemos uma situação para caber na filiação o nome de dois pais e de
diferente. Quando minha mãe ficou grávida, meu uma mãe; o nome de duas mães e de um pai; o
pai sumiu no mundo. Fui criada, sustentada, nome de duas mães só; o nome de dois pais. Talvez
educada pelo companheiro da minha mãe, que o nome de um pai e de uma mãe acabe virando
acreditava ser meu pai. Só que agora apareceu um raridade, a depender do avançar das coisas. Desde
moço dizendo ser meu pai biológico e que não o momento em que a união estável foi erigida à
sabia do estado gravídico da minha mãe e nem da categoria de entidade familiar, em que a união
minha existência. Tirar dele a chance de ser pai homoafetiva passou a ser regida pelas regras da
não foi justo, porque se ele soubesse, poderia ter união estável no âmbito da filiação, há situações
tido comigo relação de afetividade. O Supremo nas quais o pai morreu faz muito tempo e o filho
Tribunal Federal admite a multiparentalidade, a foi criado pelo companheiro da mãe, a quem
possibilidade de a pessoa ter dois pais: um biológico considera como seu pai, quer ser adotado por ele,
e outro pelo critério socioafetivo. E já tivemos aqui contudo sem querer retirar o nome do pai biológico
em Nova Lima sentença proferida em uma ação de dele. Isso soava estranho outrora. Hoje é
adoção que constitui um vínculo jurídico novo pelo perfeitamente possível, como naquele caso de uma
critério socioafetivo sem desconstituir o vínculo socialite do Rio de Janeiro que falou para o marido:
anterior pelo critério biológico. Permitiu-se que nos “Meu filho não é seu filho. Meu filho é filho do Acioli,
assentos de nascimento de uma criança constasse né?”. E mesmo sabendo que não era o pai biológico,
o nome de duas mães e de um pai. A mãe biológica mesmo tomando conhecimento da traição da

268
mulher, ele ponderou: “quero o filho porque o ou menos importante. Tudo depende da
considero como meu; estou com ódio de você circunstância do caso concreto. De acordo com o
porque você me traiu, mas nosso filho não tem Supremo Tribunal Federal, a hierarquia jurídica é a
nada com isso”. E o pai biológico, ao saber que o mesma. Tanto é filho aquele que mantém com o
filho era seu, também quis reivindicar a paternidade. pai laços de consanguinidade como aquele que
“Opa, o filho é meu e eu quero. Pelo critério mantém laços de afetividade por ser tratado,
biológico, ele é meu. A relação de afetividade é do reputado e nominado como tal. E, finalmente, a
outro porque eu não sabia da existência desse possibilidade jurídica da multiparentalidade. O
filho”. Nesse caso específico, a justiça do Rio decidiu casamento com duas pessoas, a bigamia, ainda é
pela paternidade em favor do Acioli porquanto crime. No entanto, se admitirmos uniões
prestigiou o critério biológico, o que se afigura poliafetivas, o passo seguinte vai ser descriminalizar
extremamente injusto porque quem educou, criou, e passar a admitir casamento entre três pessoas.
manteve relação de afetividade foi o outro. O Hoje, chocante? Pode ser, mas quem viver verá.
reconhecimento jurídico da afetividade como Por isso é que precisamos de muita coragem para
determinante de um núcleo familiar é prestigiado quebrar os nossos preconceitos, superarmos as
ao admitir que união estável e união homoafetiva nossas hipocrisias, porque não há nenhum outro
sejam consideradas entidades familiares ramo do Direito que seja tão sensível a essas
equiparadas ao casamento. Prestigia-se a votações cruciais.
afetividade quando admitimos a adoção à brasileira
e a possibilidade de a pessoa ter no seu ato registral BRUNO: Meu nome é Bruno, da Fundação João
dois pais. O outro reflexo a que chegamos é de que Pinheiro, estudante de Administração. Em relação
vínculo biológico e socioativo estão no mesmo grau àquela mulher que vai registrar o filho sem a
de hierarquia jurídica. Não há uma fórmula presença do pai, por desconhecimento ou por ele
matemática a apresentar quanto ao critério mais não haver se identificado, baseando-se na união

269
homoafetiva já reconhecida e no casamento que o pai reconheça voluntariamente, embora
também, não seria possível, no lugar de aparecer não espontaneamente, a paternidade que lhe foi
um pai e fazer a adoção à brasileira, uma outra atribuída. Se o suposto pai reconhecer, lavra-se o
mãe fazer também? termo e vai ser averbado no registro de nascimento
da criança. Se, ao contrário, o pai negá-la, os
REYVANI JABOUR RIBEIRO: Existe um código autos são enviados ao Ministério Público ou, em
de normas de Minas Gerais que estabelece a algumas comarcas, à Defensoria Pública, para que
seguinte diferença: quando a mulher for casada e seja proposta ação de perfilhação compulsória. Aí
provar a condição de casada, ao conceber o filho me vão perguntar por que a mulher solteira ou
na constância do casamento, poderá registrá-lo em casada pode registrar o filho em nome dela e do
nome dela e no do marido, mesmo que ele não vá marido e a companheira não pode registrar o filho
junto. Se a mulher tiver um filho fora do casamento em nome dela e do companheiro se a união estável
e for solteira, viúva, separada ou divorciada, no ato foi erigida à categoria de entidade familiar. Se essa
do registro poderá, se quiser, declinar o nome do é a dúvida, tenho uma resposta singela: a mulher
suposto pai. Se ela afirmar que o suposto pai é o casada tem prova pré-constituída do seu estado
companheiro, o próprio oficial registrador notifica-o civil de casada, enquanto a companheira da união
a ir lá para reconhecer ou não a paternidade estável mantém uma convivência informal sem
que lhe foi atribuída. Se não reconhecer, expede uma prova pré-constituída de que a união estável,
para o juiz o procedimento. Se a mulher solteira, a reboque, presuma que o filho dela seja também
viúva, separada ou divorciada deu o nome de uma do companheiro.
outra pessoa que não seja nem marido e nem
companheiro, as declarações são imediatamente BRUNO: Não, minha pergunta era se ela estivesse
enviadas ao juízo, para o registrador providenciar em uma relação homoafetiva com outra mulher,
a oitiva administrativa. O juiz faz a intimação para entendeu?

270
REYVANI JABOUR RIBEIRO: Entendi. Se estiver e nasceu uma menina, que já deve ter uns seis
numa união homoafetiva, ela pode registrar o anos. Embora morem em São Paulo, elas tiveram
filho em nome dela, porque ela o teve fora do que procurar um juízo ou algum advogado no Rio
casamento. O vínculo na outra linha é o da adoção. Grande do Sul para conseguir registrar a filha no
Então, a companheira homoafetiva pode adotar o nome delas. Na certidão da menina, inclusive,
filho dela pelo devido processo legal. Agora, se o consta o sobrenome das duas mães.
Provimento 16 for aplicado mesmo para os casais
homoafetivos, ela pode também se declarar como REYVANI JABOUR RIBEIRO: Costumo dizer que
mãe, uma atitude audaciosa que deve passar pelo o Código Civil de 2002 foi cantado e decantado
crivo do Poder Judiciário, até para verificar se isso como novo, mas esse código já veio velho, obsoleto
vai trazer, efetivamente, benefício para o filho. Se e ultrapassado. A Glória Peres está anos-luz à
a mulher homoafetiva registrou o nascimento do frente do nosso legislador porque a novela Barriga
seu filho biológico, a forma de constituir o vínculo de aluguel passou há mais de 20 anos e até hoje o
socioafetivo com a outra mãe é pelo devido processo nosso Código Civil não traz nenhuma regra sobre
de adoção. Não acho juridicamente impossível a a maternidade sub-rogada. Lembro bem que no
companheira requerer a adoção do filho da sua final da telenovela, depois da discussão de quem
outra companheira e constituir uma maternidade é a mãe, as duas personagens saem carregando
dupla. Sinal dos tempos... felizes a criança na praia. Quer dizer, se em Minas
não há praia, não dá nem para ter final feliz.
ORADORA NÃO IDENTIFICADA: Conheço um Mas a tendência é essa mesmo. Não há fórmula
caso concreto de amigas minhas que tiveram um matemática nem solução na lei para determinar
filho. As duas parceiras tiveram o filho usando quem é mãe, quem forneceu o óvulo, quem deu à
o óvulo de uma com o esperma de um doador luz ou quem quis ter o filho? Na Santa Casa foi pior.
anônimo. Ambas participaram da fertilização A mulher usou o óvulo de uma segunda mulher,

271
fez a fecundação com o esperma do marido e REYVANI JABOUR RIBEIRO: Posso começar
esse óvulo já inseminado foi introduzido no útero pela segunda pergunta? O Estatuto da Criança
de uma terceira mulher. Então, uma quis ter o e do Adolescente reconhece a todos um direito
filho, a outra forneceu o material fecundante e a imprescritível de saber a sua origem genética, mas
terceira gerou. Quem é a mãe? Considerem-‑se as nem sempre essa descoberta vai interferir no ato
três. Nessas questões de reprodução assistida, o registral. O direito de saber quem é o pai genético
legislador foi muito tímido e não há solução na lei. não significa dizer que no ato registral ele vai ser. A
As duas vão ser mães e, se quiserem pôr o nome lei diz que ninguém pode vindicar estado contrário
do suposto pai, desde que a identidade dele tenha ao que consta dos assentos de nascimento, salvo
sido revelada, porque normalmente o doador não provando erro ou falsidade. Então, se há um pai
tem a identidade revelada, o nome dos três. Isso biológico no registro, não posso vindicar outro,
também já foi tema de novela. a não ser que eu prove falsidade ou erro. Do
mesmo jeito, se há um pai socioafetivo que fez
ORADORA NÃO IDENTIFICADA: A decisão a adoção à brasileira, para eu vindicar um outro
do STF de agora um filho ter na sua certidão pai eu teria que anular o registro anterior. Só que,
de nascimento o nome do pai biológico e o do às vezes, o registro anterior não apresenta erro.
pai socioafetivo reconhece os efeitos jurídicos O pai que consta no ato registral ou é biológico
em ambas as hipóteses. Não haveria quebra de ou é socioafetivo, mas há um outro socioafetivo-
isonomia em relação às outras pessoas um filho biológico. Por exemplo, fui registrada com nome do
com duas linhas sucessórias quando o resto companheiro da minha mãe, porém descobri quem
da população só tem um pai e uma sucessão? é meu pai biológico. Tenho o direito de vindicá-
Será que esse paradigma poderia acarretar uma lo como meu pai sem desconstituir a paternidade
inseminação heteróloga da qual o filho requeira socioafetiva porque no meu registro não há
saber quem é o doador anônimo? erro. Ele verdadeiramente é meu pai, por outro

272
critério. Admitindo-se, porém, que no assento de REYVANI JABOUR RIBEIRO: Antes mesmo de
nascimento conste concomitantemente dois pais, o Supremo Tribunal Federal colocar a pá de cal
todas as decorrências da filiação virão a reboque: nessa decisão, o STJ vinha admitindo que casais
pleitear alimentos dos dois, ter direitos sucessórios homoafetivos pudessem adotar conjuntamente
dos dois. Aí se pergunta se isso quebra a igualdade. porque, na prática, um só entrava com processo
Não, vejo a possibilidade de uma pessoa participar de adoção. Um homem adotava, mas o adotado
de duas sucessões. Meu pai biológico faleceu, seria inserido na convivência com os dois. Como a
minha mãe ficou viúva, participei da herança da adoção não era deferida aos dois conjuntamente,
sucessão do meu pai biológico. Minha mãe, viúva, não se podiam pleitear alimentos do outro, não se
casou-se de novo e o marido dela entrou com podia ser dependente do plano de saúde e nem
processo de adoção. Ele me adota, constitui comigo se adquiria direito hereditário do outro, embora
vínculo biológico e morre. Estou participando da convivesse com os dois. Estudos demonstram
sucessão dele também. Agora, se os dois vão ser que isso não interfere absolutamente nada no
considerados pais, todos os reflexos decorrentes desenvolvimento psicológico, já que o que importa
da filiação vão vir a reboque: alimentos, direitos é a pessoa ser amada na convivência com o casal
hereditários, questão do nome e tudo mais. homoafetivo. Há filhos que têm pai e mãe. Mas
lhes falta esse carinho, esse amor. Então, o STJ,
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: O casamento antes da decisão do Supremo, já vinha deferindo a
entre pessoas do mesmo sexo, conforme falou, adoção a casais homoafetivos.
foi um permissivo do STF que reconheceu a união
estável homoafetiva e também é um precedente de
uma decisão do STJ que coloca a união estável e o
casamento como entidades familiares equiparados?

273
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: “O PROCESSO Hoje, Mônica Sette nos brinda com O processo de
DE TRANSFORMAÇÃO DA VIDA EM DIREITO transformação da vida em Direito e o Conhecimento
E O CONHECIMENTO DO DIREITO QUE SE do Direito que se forma e transforma, conferência
FORMA E TRANSFORMA”, PROFERIDA POR
ora gravada.
MÔNICA SETTE COMO PARTE DO PROJETO
“SEGUNDA-FEIRA, ÀS 18H” REALIZADA EM
MÔNICA SETTE: Do tema que vou explorar pus
17 DE OUTUBRO DE 2016
o subtema O Direito e os sentidos e os sentidos
do Direito. Eu dei um curso de pós-graduação
aqui no MPMG de Teoria geral do Direito dentro de

MARCELO: É um privilégio ter conosco a professora uma perspectiva muito pessoal, a partir de uma

Mônica Sette, professora de graduação e de pós- convicção muito acertada de que sejamos nós

graduação na Faculdade de Direito da Universidade advogados, promotores, procuradores, servidores

Federal de Minas Gerais (UFMG), à disposição de todas as esferas de produção do fenômeno

de um público seleto constituído de vários jurídico do Legislativo, do Judiciário, do Executivo,

colegas, procuradores e procuradoras. Mônica temos muito a dizer sobre os nossos fazeres não

Sette, desembargadora no TRT da 3ª Região, do apenas do ponto de vista da construção de um

Instituto de Estudos Transdisciplinares da UFMG, Direito melhor, mas do ponto de vista mesmo da

do programa radiofônico Direito e Música, de que epistemologia jurídica, da ciência, do conhecimento

sou fã, é professora residente da Universidade do Direito. No curso, pedi que os alunos fizessem

Laval, no Canadá, e nesta semana está em Belo uma crônica livre, inclusive sem bibliografia, para

Horizonte no Seminário Itália-Brasil, para o qual manifestar, numa espécie de relaxamento mesmo,

estão todos convidados, na Faculdade de Direito aquilo que fosse relevante, doloroso, alegre na vida

da UFMG. Ali vários temas perpassam a Filosofia do profissional de cada um. Recebi 30 trabalhos. A

Direito, o Direito Civil, o Processo Constitucional. maioria continha três páginas. No fim de semana, fiz

274
a leitura deles e mandei um bilhetinho muito curto na verdade, mexer com processos, preparar os
a cada um. Isso me trouxe enorme contentamento, pareceres. Mas gostava de ouvir, ainda que fosse
um riso aqui e ali, e um prazer pela compreensão meio aflitivo para as pessoas. Por quê? Aquela não
de algo que nos iguala e irmana dentro da vivência era a minha tarefa, contudo a densidade daquilo
do trabalho — no meu caso no Poder Judiciário, era a vida na voz delas, e o problema tinha de se
e no caso dos senhores no Ministério Público de resolver e não simplesmente ser ouvido”. Falaram
Minas Gerais. A minha constatação (já falei isso no de pilhas? Eu deveria ter posto a foto da pilha de
curso e vou repetir) é o básico daquela música do processos me esperando à noite em casa. Sei o que
Roberto Carlos: “eu tenho tanto para lhe falar, mas é pegar o primeiro e tão logo apresente problema
com palavras não sei dizer”. Temos muito da nossa passe a ser o último da fila. Aí se põe um para o qual
experiência para contar, mas certa dificuldade de se reza ser mais fácil a decisão. Pedi que os alunos
falar, até por questões ligadas à remuneração, à ilustrassem o trabalho deles com uma canção,
estabilidade, ao fato de sermos servidores públicos, por causa do programa Direito e Música. Não era
enfim. Isso não é muito valorizado como um saber uma exigência. Dos 30 trabalhos, a canção mais
que possa ser apropriado cientificamente. Nesses pedida representa, do ponto de vista metafórico,
vários trabalhos, senti orgulho enorme de ser do o que estou descrevendo? Qual a sensação mais
Ministério Público de Minas Gerais, que assume repetida na descrição dos sentidos? A repetição
para as mídias, para a opinião pública, que está é voluntária? Será que há mais modos de cantar
investigando, e há uma expectativa enorme de que essa canção? O que esses sentidos representam
os culpados sejam condenados, de que o Ministério para o conhecimento do Direito. O Abritta quis uma
Público vá apurar todos os fatos. Mesmo numa sala canção única, que não foi a mais pedida. Qual foi
cinza e cheia de processos chegou uma pessoa que a mais pedida? Posso cantá-la de dois jeitos: Todo
quis falar, foi ouvida naquele momento, naquela dia ela faz tudo sempre igual. Me sacode às seis...
hora, naquele lugar do interior. “O meu papel é,

275
Mandei e-mail perguntando se conversaram,
combinaram. “Não, foi por acaso. A gente até Seis da tarde como era de se esperar.

conversou depois e viu que tinha pedido a mesma Ela pega e me espera no portão.
Diz que está muito louca pra beijar.
canção”. Não sei se mentiram. Mas a canção
E me beija com a boca de paixão...
foi essa, e pensei nos dois jeitos de cantá-la.
Toda noite ela diz para eu não me afastar.
O primeiro é: “Todo dia ela faz tudo sempre
Meia-noite ela jura eterno amor.
igual. Me sacode às seis horas da manhã. Me E me aperta para eu quase sufocar.
sorri um sorriso pontual. E me beija com a boca E me morde com a boca de pavor...
de hortelã...” É marcada. “Todo dia ela diz que Todo dia ela faz tudo sempre igual.

é para eu me cuidar. Essa coisa que diz toda Me sacode às seis horas da manhã.

mulher. Diz que está me esperando pro jantar Me sorri um sorriso pontual...

e me beija com a boca de café...Todo dia eu só E me beija com a boca de hortelã.

penso em poder parar. Meio-dia eu só penso em


Nesse cotidiano há cotidianos. Recebo uns 50
dizer não. Depois penso na vida para levar.E me
processos por semana. Alguns têm de A a Y de
calo com a boca de feijão.
pedido, cada qual diferente. Estou cansada de olhar

O cotidiano, em si, não é uma coisa ruim. É aquilo a hora extra das pessoas, de julgar no intervalo

que falo sempre: “se não há uma máquina do entre a jornada. Sei o que passamos neste

tempo, o que a gente vive é o cotidiano mesmo, trabalho. No entanto, quando falamos o salário,

um dia depois do outro”. Logo, posso cantar essa vem logo: “Ué, vocês ganham para isso”. Mas é

canção de jeito diferente: algo que acaba sendo muito silenciado por causa
das instituições... Achei interessante essa canção
ter ganhado a minha parada de sucessos particular
na correção do trabalho. No texto de um assessor

276
veio à cabeça o novo e jovem poeta olindense isso na resposta que mandei a um dos alunos. Em
José Juva: “Que ilha você levaria para uma pessoa Confesso que vivi Pablo Neruda conta as memórias
deserta?”. Levei um susto quando li, mas achei da infância e em “Crônica de uma morte anunciada”,
bonito porque não tinha pensado nisso. Que Direito como jornalista, ele transfunde naquele realismo
você levaria para uma pessoa deserta? Do nosso mágico dele a realidade, que é mesmo mágica,
ponto de vista, será que estamos precisando de imprevisível, imponderável. A alguns alunos
uma ilha para onde possamos ir e deixarmos de perguntei se o que contaram era verdade. Não
ser desertos? Quer dizer, como é a nossa solidão? queria que ninguém ficasse inventando história
Pode-se dizer “você entendeu tudo errado”, e vou para mim. Mas era deliciosa a leitura. Alguém me
compreender. Mas senti que é uma solidão de contou de um rapaz deficiente que o Ministério
vocês e nossa também no Judiciário. Não porque Público tentou de tudo para alocá-lo num lugar
não queiramos trabalhar. Gosto muito de trabalhar, para lhe dar um tratamento e, quando conseguiu,
e meu serviço está absolutamente em dia. Mas me ele tinha morrido.
ressinto desses canais de comunicação. O cartão
de ponto, por exemplo, amofina-me terrivelmente. Hoje estava contando casos de mortes por acidente
Ninguém quer fazer uma tese sobre cartão de de trabalho quando alguns dos meus alunos
ponto, estudar esse obscuro objeto do Direito, para resolveram comentar fatos do cotidiano: “Ah, as
usar a frase do professor Rubens Costa no livro pessoas não imaginam o tanto que a gente lida com
dele sobre propriedade. Como, onde, para quê, por história de alguém capaz de abandonar animais;
quê vamos tratar da vida de Direitos de pessoas pessoa portadora de síndrome de down que quer
desertas até pela sua invisibilidade? E também da casar-se e vai se casar”. Por falar em pessoa com
nossa própria deserção, da nossa própria solidão? deficiência, outro dia, quando escovo meus dentes
Então vêm as histórias. “Quero que conte casos para ir trabalhar, vejo liminar ou decisão de que
da vida cotidiana, e que não invente”. Até pus posso internar uma pessoa deficiente que está

277
sendo malcuidada pela família, mas chego lá ela dele. Pode-se procurar a biblioteca inteira e às
já está morta. Uma velhinha carregava na bolsa vezes não vem a ajuda. Aí você tem que deixar é
o arroz e o feijão porque ela morava numa casa ali mesmo, tomar banho, passear com o cachorro,
que não tinha porta. Essa velhinha foi ao Ministério conversar, deitar na frente de televisão para ver se
Público em uma cidade do interior para falar e é vem uma ideia para a pilha do pensamento.
ouvida. Mas será que ela, numa solidão absoluta,
vai ter uma vida melhor? O Direito é algo muito A pilha se guarda para o tempo deixar deitar a
vivo, mesmo na sua ineficiência, e essas histórias história, mas é um trabalho que tem de se resolver.
todas é para construirmos algo que seja melhor e de A pessoa confessa que praticou um ilícito penal
que possamos participar mais atentamente. Passei e você põe um inesperado ‘por quê’. E o porquê
o fim de semana inteiro com o processo na “pilha é sempre uma história mais complicada do que
do pensamento”. O que é a pilha de pensamento? gostaríamos de ouvir. Na verdade, ela sempre
“Esse aqui vou separar porque preciso pensar. Essa torna aquela realidade crua de processos mais
aqui é a pilha”. Lindíssimo! Nunca tinha pensado complexa, mais emocional, mais complicada. Ela
nessa descrição para a pilha. “Esse aqui não posso sempre torna a letra da lei mais difícil de resolver.
de qualquer jeito. Tenho que pensar”. Como se Uma canção reflete bem a atividade do Ministério
explica a duração desse pensamento e o que isso Público e tem a ver com a oralidade presente
representa? “Pode ser que exista gente que não tem nas salas de audiências. Falo da canção do João
a pilha do pensamento. Mas acho que a maioria de Ricardo e do Luli, gravada pelos Secos e Molhados
nós a tem, pois se tenho dúvida tenho que pensar”. na década de 1970:
E não há nada na doutrina que me ajude a pensar.
Na pilha do pensamento, um processo pode ter só
30 páginas, mas ele é pesado pelo que tem dentro

278
ser possível mudar culturas e fazer as coisas. É
Eu não sei dizer nada por dizer. preciso falar manso, docemente, do seu jeito, a seu
Então eu escuto... modo. O ouvir e o falar, contudo, são a frustração
Se você disser tudo que quiser.
de muita gente. Será que o Ministério Público é só
Então eu escuto...
ouvido? Será que essa é a função dele? Percebi
Fala...
isso muito nos relatos de pessoas que estão fora
Lá, lá, lá, lá, lá...
Fala... de Belo Horizonte. Especialmente no interior, há
Se eu não entender. uma proximidade muito grande da necessidade de
Não vou responder... oitiva das pessoas. Nas escolas de magistraturas,
Então eu escuto... nas escolas do Ministério Público, há um trabalho
Eu só vou falar na hora de falar. muito claro sobre concurso público. Principalmente
Então eu escuto...
os muito jovens se preparam muito para uma
Fala...
realidade de trabalho e encontram muita frustração,
Lá, lá, lá, lá, lá...
a qual só é superada depois com a estabilidade
financeira. “Carregando na bagagem tantos nãos,
ela sequer pede para falar com autoridade, pois
Que melô do contraditório! Não sei se é meio
ficará satisfeita simplesmente por ser atendida. Se
piegas concitar as pessoas a fazerem o que
alguém nesse tão desconhecido solo forense ceder
vocês fizeram para mim. Não vejo muita saída
alguns minutos para ouvi-la, ela sentirá que valeu
em relação ao Direito em geral, o brasileiro em
a pena desvestir-se da máscara do anonimato
especial, se não começarmos a pôr o dedo na
para expor sua tão sofrida história de vida”. Muitos
ferida. A pesquisa jurídica tem que ir ao encontro
relataram essa sofreguidão de perceber que, às
dessa empiria, fundada em um monte de histórias
vezes, a pessoa quer ser ouvida, quer resolver
muito complexas, as quais temos de entender para
o problema dela: “Não, vou contar essa história

279
para eles lá”. Um aluno muito querido passou no aluno virou para mim e adiantou: “Música de igreja
concurso para a Defensoria e começou a atender as não sei cantar muito, professora. Mas sertaneja
pessoas. “Como é que você está lá?”, indaguei. “Ah, dou um jeito. Aí cantei sabe o quê? Vou cantar só
encontrei a realização da minha vida”, respondeu- o refrão, porque é o que sei: Ainda ontem chorei
me. “Realização da minha vida!”, reforcei. “Estou de saudade, relendo a carta...”
adorando atender as pessoas. Mas, professora,
não tem muito que a gente possa fazer não. Outro Essa cliente da Defensoria, quando se abre a
dia, por exemplo, resolvi que vou cantar agora”. uma relação com ele, talvez facilite explicar a
Se um aluno meu começa a cantar na Defensoria, dificuldade dele como profissional. Ela teria saído
isso aí é aplicação de um modo literal de entender de lá alegre, eles cantaram... Estabeleceu-se na
o Direito. Surpresa, perguntei: “Como assim?” Ele Defensoria a relação advogado-cliente. Contudo,
falou: “Eu tinha que desarquivar um processo penal não imagino o juiz cantando na sala, senão
do filho de uma senhora que lá chegou. Aquela vamos todos virar Noviços Rebeldes do Direito.
coisa dramática da mãe defendendo o interesse do Mas a comunicação, por causa dessa procura por
filho. Não posso ir lá e desarquivar o processo já. solução de problemas de toda natureza, é um
Isso costuma demorar muito. Depois é que vou ver papel constitucional a desempenhar. No caso das
o que posso fazer. Ela estava muito triste. Sabe o crianças e dos adolescentes em conflito com a
que fiz, professora? Perguntei do que ela gosta. lei, as situações não são simples, imagino. Há
Muito triste, respondeu que não gosta de nada, uma diferença abissal porque envolvem histórias
que a vida não vale a pena. Aí argumentei que muito específicas. Dentro de condições normais de
ela deve gostar de alguma coisa. Eu, por exemplo, temperatura e de pressão, crianças e adolescentes
gosto de música. Aí lhe perguntei de que tipo de têm níveis médios de vida. No entanto, ali está
música ela gosta mais? Respondeu-me que é de uma mãe dizendo que a filha teria sofrido abuso do
música de igreja e de música sertaneja”. Aquele pai dela. Isso é verdade, mentira, ou é alienação

280
parental? Qual é a realidade e que importância tem moravam. Ela pagava à prestação para ter onde
essa realidade? A teoria diz que o Direito procura enterrá-los. Aí o pequeno menino, que tinha entre
só a verdade formal. Qualquer pessoa que não tem 12 e 13 anos, morre. Quando a Elaine Brum foi lá
a responsabilidade por um julgamento ou por uma fazer a reportagem, aquela mãe estava comprando
produção de prova pode se satisfazer com a verdade o caixão para o segundo. É uma história duríssima.
formal, mas quem tem a responsabilidade de dizer Na revista Mary Clair sempre conto isso.
algo sobre a vida de alguém o mais próximo possível
daquilo que aconteceu, sob pena de cometer uma Alguém aqui falou do alvará para o trabalho do
injustiça enorme, sabe que a verdade formal é menor que na rua vende bala. Trouxe esta música
um recurso estrutural de Direito Cível, sem o qual para vocês:
não funcionaria. Não é tão simples, porém, dizer-
Tá relampeando. Cadê Neném?
se que um pai abusou de uma filha, quando ele
Tá vendendo dropes no sinal pra alguém...
pode não ter abusado. Não é tão simples dizer-se
Tá relampeando. Cadê Neném?
que é alienação parental quando pode ter havido Tá vendendo dropes no sinal pra alguém...
o abuso. Então, não há um meio termo nessa Tá vendendo dropes no sinal...
situação, do ponto de vista do que quero como Todo dia é dia, toda hora é hora...
verdade, para deitar à noite certo de que atuei ali Neném não demora para se levantar...

para a melhor solução, que não errei. A jornalista Mãe lavando a roupa, pai já foi embora...
E o caçula chora para se acostumar...
Eliane Brum, numa reportagem para o livro O olho
Com a vida lá de fora do barraco...
da rua, fez uma pesquisa de campo de uns meninos
Ai, que endurecer um coração tão fraco...
no norte do país, cuja mãe começou a comprar
Para vencer o medo do trovão...
para eles caixão, enterro, sem que eles tivessem Sua vida aponta a contramão...
doença alguma. Eles tinham, porém, começado a Tá relampeando. Cadê Neném?
se envolver com o tráfico de droga no lugar onde Tá vendendo dropes no sinal pra alguém...

281
Tá relampeando. Cadê Neném?... pedido de segredo, muitos deles também expondo
Tá vendendo dropes no sinal pra alguém... dificuldades, como o caso da colega de vocês que
Tá vendendo dropes no sinal...
tinha falecido naqueles dias e a dolorosa situação
Tudo é tão normal.Tudo tal e qual...
que isso representa. As pessoas não querem falar
Neném não tem hora para ir deitar...
sobre isso talvez seja porque é difícil as nuances,
Mãe passando a roupa do pai de agora...
De um outro caçula que ainda vai chegar... as contingências, as circunstâncias que envolvem
É mais uma boca dentro do barraco... a aplicação dessa lei tão importante. Algumas
Mais um quilo de farinha do mesmo saco... disseram esperar algo além de simplesmente
Para alimentar o novo João ninguém... punir, e aí o tratamento teria outra natureza. Mas
E a cidade cresce junto com Neném. o que me impressionou muito foi o vigor de ela não
querer que ninguém saiba o que pensa, e o que
Quem me mandou, sem que eu diga o nome é
essa pessoa pensa é de uma importância brutal. É
claro, fez uma observação assim: “Professora,
claro que ela não escreveu uma tese, não teorizou,
nesse trabalho resolvi dizer tudo que penso. Mas
mas legitimamente falou de questões que têm de
não quero que ninguém veja o conteúdo”. Eu abri
ser entendidas, têm de ser tratadas, conhecidas e
só agora para corrigir, porque aí já é uma questão
expostas. Minha aluna de pós-graduação, delegada
de operacionalidade. Li o texto e concluí que não se
nessa área, falou desse tema e não conseguiu
está falando nada de mais. Sobre as dificuldades
indicar uma canção, e eu pus uma canção sem
concretas de operacionalização da Lei Maria da
palavras porque ela não tinha coragem de dizer, e
Penha, conto-me cinco histórias de conteúdos
vi isso aqui agora de novo. Eu não me imaginava
absolutamente diferentes, todas difíceis de
dentro do Direito Penal. Não tinha vocação para
resolver em relação à vida das mulheres. E aí fiquei
isso. Agora percebo que, apesar de ter aprendido a
pensando por que não quer que ninguém veja o
trabalhar e a gostar, continuo vivendo dificuldades
que escreveu, já que houve outros trabalhos sem o
que não esperava que fosse ter. Os mais jovens

282
dizem que o Direito Penal é muito diferente daquilo de aplicação da lei não é de abracadabra, olho
que aprendem na escola. Alguns pontos estão de cabra. Não estou falando de mágica. Falo de
“cansados de saber”. Uma expressão campeã enxugar gelo, porque na verdade esses conflitos a
em vários trabalhos é ‘enxugar gelo’, e ela é resolver têm causa e decorrem de circunstâncias
muito simbólica dentro do cotidiano. Vejam toda que estão muito fora daquilo que podemos fazer
a beleza do trágico, do doloso: “Sobre a mesa com a nossa atividade da aplicação ou de solução,
empilhados estão os processos. Deles ouvem-se embora nem tenhamos tempo para isso, pelo
gritos, burburinhos, choros, risadas. São histórias volume. As escolas de formação de magistrados,
verdadeiras expostas ao veredito de estranhos, os as escolas de formação do Ministério Público, as
quais frequentemente enxergam a causa, ou seria escolas de formação em geral teriam de canalizar
a coisa, como se fosse tão somente um número”. A esse espaço para a abertura desse conhecimento.
humanidade é bonita por aquilo que ela faz de bem “Uma velhinha me procurou para resolver o
e de mal. Lindo, não? problema da casa arrombada dela. Ela mora num
lugar de baixíssima qualidade de vida. O que fazer
A atuação ministerial se traduz em denúncias, para tirar essa velhinha que não tem família de lá?
em recursos contra absolvição, ainda que Ela carrega arroz, farinha e coisas dentro da bolsa
insuficientes as provas, mensuradas, portanto, dela. Não é tarefa do Ministério Público nem de juiz
quantitativamente. Não posso deixar de mencionar resolverem isso. Quer dizer, é um negócio que foge
que parte dos presentes nas reuniões relatava daquilo que está dentro das nossas mãos”. Então,
não mais acreditar nas instituições públicas, entre as escolas são um caminho para começar a tratar
essas a Polícia Civil, a Polícia Militar, o próprio teoricamente com firmeza dessas circunstâncias.
Ministério Público e o Poder Judiciário. “O Direito Nós nos formamos, fizemos concurso, estamos
vai criando problemas que ele mesmo depois vai aqui para fazer isso melhor. Talvez exista um lugar
ter que resolver”. E não é mentira. O cenário em que possamos tratar teoricamente desses

283
temas com mais abertura para essa empiria, para rico e jurídico. Tudo muito próprio do Direito. Pôr
essa facticidade, para esse volume de conflitos o pé na realidade é que dá uma certa esperança,
a resolver. Há um único Ministério Público, uma já que fugir dela é mais triste. Posso imaginar o
instituição única, estruturada para a percepção de corredor do fórum um espaço inadequado, o qual
cada um dos agentes sobre problemas e questões. precisa ser tratado de uma forma clara, real. Essas
No Judiciário não é diferente essa solidão. Como histórias ninguém conta, como se elas não fossem
é possível atuar apenas no mundo dos autos? Se do Direito, como se não tivessem relevância
a estrutura dos fóruns não é adequada, como a para uma teorização que importa o Direito, que
pessoa vai testemunhar contra um traficante que importa a pesquisa jurídica, cuja decisão envolve
a está vendo ali? Como esperar que a pessoa vá circunstâncias muito vivas do corpo a corpo entre
lá para que a prova seja feita adequadamente? as pessoas.
Ele tem uma organização lá onde ela mora e tem
família, um dado de realidade muito relevante para O Sérgio Abritta indicou uma linda canção, cuja
ser tratado com menoscabo. Isso não é algo da interpretação, não sei se a dele é igual, fala do
sociologia do Direito, é algo do Direito em ação, do paradoxo da procura, da nossa caça: Caçador de
Direito fabricado, da realização do Direito formal. mim, música do Milton Nascimento. A outra canção
A investigação policial também não é de boa se chama Caça à raposa, uma caça numa relação
qualidade. Como resolvo isso? mais tensa, que é a do nosso trabalho em linhas
gerais no papel, na tela. É claro que o juiz tem a
O professor Milton Fernandes falava: “Que prazer
qualidade de intermediário entre aqueles que estão
mórbido é esse?” Talvez o meu prazer um pouco
litigando. Não há tanto contato com as pessoas,
mórbido seja ter esse contato tão próximo com algo
mas há tensão.
que dilacera, que faz com que vocês fiquem tão
preocupados. Mas gostei do que li. Achei denso,

284
Não tive tempo de ensaiar a canção a seguir porque um pouco da minha sensação sobre vocês. Pena
li esse trabalho ontem. Fique claro, todavia, que não haver conseguido cantar, mas nem sempre
quando se erra, o bom é que, às vezes, podemos conseguimos fazer tudo que queremos. Cada
começar de novo. um deve ter um livro de memórias muito denso
dessas pilhas, que não são só causos, mas uma
O olhar dos cães, as mãos nas rédeas... experiência concreta, real, do Direito como um
E o verde da floresta...
acontecimento enquanto acontece. Temos de falar
Dentes brancos, os cães...
mais no Brasil teoricamente sobre o processo de
A trompa ao longe, o riso, os cães, a mão na testa...
produção do fenômeno jurídico. Obrigada.
O olhar procura antecipa a dor no coração vermelho...
Senhorita, seus anéis, corcéis e a dor no coração
MARCELO: Professora Mônica, tenho certeza de que
vermelho.
O rebenque estala, o leque, a ponta foi por lá... professor não erra; professor abre possibilidades,
Um olhar de cão, as mãos são pernas e o verde da dizia Clarisse Lispector. Perder o caminho também
floresta. é uma forma de caminho; o silêncio também é uma
forma de manifestação. “É o silêncio eloquente”,
Como viram, não tive tempo de ensaiar. Depois uma expressão do Moreira Alves que não entendia
podem entrar no Youtube. Outro dia canto. Essa até vivenciar a experiência do casamento. Hoje,
canção linda fala de canções e epidemias, a sei o que é “silêncio eloquente”. Uma vivência
recomeçar com mais colheitas, como a lua e a transversal, essa polifonia, essa reconstrução
covardia, como a paixão e o fogo. Como comecei fazem parte do cotidiano de estagiários, analistas,
falando de um cotidiano que pode ser visto de oficiais, procuradores, promotores, que sabem
duas formas, essa canção mostra a caça que se faz muito bem o que a professora Mônica trouxe na
de várias formas até paradoxais. E, com vistas à sua poesia, na sua fala, na sua musicalidade, e o
produção de um Direito melhor, tentei trazer-lhes Direito é tudo isso. Antes de estarmos na condição

285
de membros e de servidores do Ministério Público,
precisamos desse aspecto transversal e desse
resgate da humanidade, e ouvir a professora
Mônica traz essa esperança. 

286
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: SISTEMA recebemos o Professor Dierle Nunes. Doutor.
RECURSAL DO NOVO CPC, PROFERIDA Dierle é doutor em Direito Processual pela PUC
POR DIERLE NUNES, PARTE DO “PROJETO Minas, em associação com a Università Degli
SEGUNDA-FEIRA, ÀS 18H” REALIZADA 24 DE
Studi di Roma “La Sapienza”, mestre em Direito
OUTUBRO 2016
Processual, professor permanente do PPGD da PUC
Minas, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG,
secretário adjunto do Instituto Brasileiro de Direito
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Sejam bem-vindos Processual, membro fundador do ABDPC, membro
a mais uma edição do projeto “Segunda-feira, às da International Association of Procedural Law,
18 horas”, uma iniciativa do Centro de Estudos e Instituto Panamericano de Derecho Procesal e
Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público Associação Brasileira de Direito Processual. Diretor
- Ceaf. Nessa edição, teremos o tema Sistema Executivo do Instituto de Direito Processual, Diretor
Recursal do Novo CPC. Convidamos para a Mesa do Departamento de Direito Processual do IAMG,
de Honra, a Coordenadora do Centro de Estudos e membro da Comissão de Juristas que assessorou
Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público, o Novo CPC na Câmara de Deputados e advogado
Promotora de Justiça, Danielle de Guimarães Germano sócio do Escritório Câmara Rodrigues Oliveira e
Arlé; o Professor Dierle Nunes; o Coordenador da
Nunes Advocacia.
área civil da capital, o Defensor Público Alexandre
Tavares, representando a Defensora Pública Geral, Com muita honra, o Ceaf recebe o brilhantismo
Christiane Neves Procópio Malard. do Dr. Dierle na certeza de que esse projeto
acredita que nós, seres humanos, temos sempre
SRA. DANIELLE DE GUIMARÃES GERMANO
algo a aprender. Sobre a nossa capacidade de
ARLÉ: Senhoras e senhores, boa noite. Com
aprendermos, compartilho com os senhores
muita honra, hoje, no nosso projeto de hoje,
algumas palavras de Rubem Alves contidas no

287
texto chamado “A Arte de Produzir Fome”: “Toda Ele disse que se a vizinha, ao ver seus olhos
experiência de aprendizagem se inicia com desejantes da pitanga, houvesse dado a ele as
uma experiência afetiva. É a fome que põe em tais frutas, a sua máquina de pensar não teria
funcionamento o aparelho pensador. Fome é afeto. funcionado, o seu desejo teria sido realizado por
O pensamento nasce do afeto, nasce da fome. Não meio de um atalho, sem que ele tivesse necessidade
confundir afeto com beijinhos e carinhos. Afeto, do de pensar. Anotem isso também: “se o desejo for
latim afetare, quer dizer ‘ir atrás’. É o movimento satisfeito, a máquina de pensar não pensa”.
da alma na busca do objeto de sua fome. É o Eros
platônico. A fome que faz a alma voar em busca do E, para nossa boa sorte, o seu desejo continuou.
fruto sonhado. Continuou e a sua máquina de pensar tratou de
encontrar outra solução: construa uma maquineta
Ele narra que, quando era menino, ao lado da de roubar pitangas. Uma maquineta de roubar
casa onde morava, havia uma casa com um pomar pitangas teria que ser uma extensão do braço, um
enorme que ele devorava com os olhos, olhando braço comprido com cerca de dois metros. Pegou um
sobre o muro. Lá havia uma árvore, cujo galhos pedaço de bambu e um braço comprido de bambu
chegavam a dois metros do muro. Essa árvore se sem a mão seria inútil, pois as pitangas cairiam.
cobriu de frutinhas que ele não conhecia. Eram Ele foi além. Achou uma lata de massa de tomates
pequenas, redondas, vermelhas e brilhantes. vazia, amarrou-a no arame, na ponta do bambu, e
A simples visão daquelas frutinhas vermelhas lhe fez um dente que funcionasse como um dedo
provocou o seu desejo de comê-las e, então, que segura a fruta. Feita a máquina, apanhou
provocado pelo desejo, a sua máquina de pensar todas as pitangas que quis e satisfez, então, o seu
se pôs a funcionar. Anotem isso: “O pensamento desejo. Anotem isso também: Conhecimentos são
é a ponte que o corpo constrói a fim de chegar ao extensões do corpo para a realização do desejo”.
objeto do seu desejo”. E vai além.

288
A nossa escola, senhores, acredita que é nossa O professor Marcelo, meu colega da Vetusta Casa
função despertar o desejo de construir máquinas de Afonso Pena da Universidade Federal de Minas
para, então, conseguirmos pegar nossas próprias Gerais, que abrilhanta o estudo do Direito Civil,
pitangas. Sendo assim, primeiramente, agradeço pediu que eu falasse um pouco para os senhores
o professor Dierle por nos ter, tão generosamente, do Novo Código de Processo Civil. Esse é um tema
ajudado a mostrar as pitangas; a Defensoria que me é muito caro por uma série de fatores, tanto
Pública, na pessoa do Doutor Alexandre, por pelo fato de eu ser processualista, pelo fato de ter,
participar do nosso desejo de construir máquinas mesmo que pouco, auxiliado na elaboração dessa
de roubar pitangas. A equipe do Ceaf, que de nova legislação, por ter permanecido ao longo de
maneira tão empenhada, está procurando novas quase dois anos na Câmara dos Deputados, na etapa
frutas para despertar novos sabores na nossa em que o CPC obteve maior prazo de gestação.
instituição e a todos os senhores, que tem
prestigiado esse projeto com vontade de construir O NCPC tramitou de 2010 a 2015, sendo que sua
tramitação no Congresso Nacional perdurou de
máquinas para satisfazer o desejo de comer cada
8 de junho de 2010 até 17 dezembro de 2014.
vez frutos mais brilhantes, mais saborosos, mais
Tal projeto de lei foi à sanção presidencial em 16
vermelhos e mais apetitosos. Que nós tenhamos,
de março de 2015, após vacatio legis de um ano,
assim, uma noite muito profícua. Obrigada, mais
e entrou em vigor em 18 de março de 2016. Fui
uma vez, pela presença.
incumbido de tratar, especificamente, da parte do
CPC que tenha sofrido a mudança mais brutal: o
PROFESSOR DIERLE NUNES: Boa noite a
sistema recursal.
todos. Primeiramente, agradeço o gentil convite
do Ministério Público do Estado de Minas Gerais,
Como o tempo para falar especificamente do
na pessoa da Doutora. Danielle e do professor
sistema recursal do Novo Código é curto, vou ser
Marcelo Milagres, que me fez esse gentil convite.
mais objetivo para subsidiar a todos o máximo

289
de informações, sendo mais provocativo do que Assim, estamos começando a lidar com um novo
propriamente informativo. Não dá para pensar o padrão de decisão, que não serve somente para
sistema recursal do Novo Código, precisamente permitir julgamentos por meio de tribunais, mas
os artigos 926 a 1.043, do Livro Terceiro da em alguma medida servir, inclusive, de fonte para
Parte Especial do Código, como tão somente um resolução de casos, causas e mais especificamente
conjunto de técnicas processuais vocacionadas à no fenômeno da litigiosidade repetitiva. Os
impugnação das decisões. órgãos e os atores do sistema jurídico em geral e,
notadamente, o Ministério Público e a advocacia,
O sistema recursal está servindo, no Direito precisam atentar para a mudança que o sistema
brasileiro, como um mecanismo de modificação está sofrendo. A partir de agora, a sucumbência
sistêmica do próprio ordenamento jurídico, de um num recurso, não representa só a perda de um
modo mais panorâmico. caso, mas a derrota de uma determinada linha de
defesa técnica que está sendo advogada.
Os recursos, no Código de Processo Civil de 2015,
de um modo bem evidente, deixam de ser tão- Se essa decisão for proferida num determinado
somente meios de impugnação às decisões e tipo de procedimento, o artigo 927 fala que essa
passam a servir, também, como técnica de formação decisão é um precedente normativo. Assim sendo,
de decisões denominadas de precedentes. Isso ela será uma decisão de aplicação a todos os
significa que, em grande medida, uma das grandes casos considerados idênticos. Perder um recurso,
premissas do Novo Código de Processo Civil é o então, pode significar perder milhares deles, o que
fato de que ele vai auxiliar um movimento que o afeta os órgãos que lidam especificamente com a
ordenamento jurídico brasileiro vem vivenciando, litigiosidade repetitiva, como o Ministério Público
ao longo dos últimos anos, de alteração qualitativa e a Defensoria Pública, que apresentam perfis de
da força das decisões dos tribunais. advocacia estratégica. Se não houver a criação de

290
células de atuação estratégica nos tribunais por Se não percebermos, de imediato, que recurso
essas instituições, o impacto negativo com a perda não se presta mais somente para impugnar
de determinados recursos poderá ser trágico. decisões, já começamos a lidar de forma errada
com o sistema, pois, muitas vezes, não vale a pena
E, infelizmente, nem todos os Ministérios recorrer já que o efeito negativo de certa decisão
Públicos do Brasil e nem todas as Defensorias pode ser catastrófico. Ao manejar uma linha de
Públicas estão percebendo isso. Os únicos que defesa errada, pode ser formado um precedente,
perceberam isso são alguns nichos da advocacia por exemplo, no recurso especial repetitivo ou
de alta performance. O recurso não serve tão- em um julgamento no Supremo Tribunal Federal
somente para impugnar decisões, mas também em recurso extraordinário, sendo que aquela
para formar precedentes. decisão, a partir daquele momento, passar a servir
de precedente para todos os casos idênticos. É
A formação de precedentes, especialmente no
preciso começar a entender a mudança qualitativa
Direito brasileiro, significa geração de impacto
e técnica do novo sistema processual.
para causas repetitivas, porque o sistema jurídico
brasileiro, a partir dos anos 2000, fundiu o discurso
Por via do processo civil, o ordenamento jurídico
dos precedentes e o discurso da litigiosidade
brasileiro passa por uma transição que, infelizmente,
repetitiva. Lidamos com os precedentes como uma
as pessoas que não são afetas à área, vão ficar
técnica de dimensionamento das causas repetitivas
completamente alijadas desse debate. Isso não
no Brasil. É uma característica tipicamente
brasileira que criou, então, em certa medida, uma impacta só o profissional que litiga na iniciativa

aproximação do sistema de precedentes com o privada, mas também todo o sistema jurídico. Por
sistema vinculado às questões das ações seriais. exemplo, os profissionais atuantes no processo
Isso, então, deve gerar uma mudança evidente no penal serão afetados, já que nessa seara é aplicável
modo como atuamos como sujeitos parciais. tecnicamente os dispositivos atinentes ao recurso

291
especial e ao recurso extraordinário elencados no para impugnar decisões, mas também para formar
CPC. Vale também para a advocacia consultiva decisões que, tecnicamente, são consideradas
previdenciária e tributária, porque, com base em precedentes. Precedentes esses que são de trato
determinadas decisões, consideradas tecnicamente e de respeito obrigatório em todos os casos que
precedentes, é possível se valer do conteúdo para sejam idênticos. Isso já altera a perspectiva.
fazer parecer, até para verificar se aquela decisão
pode ser utilizada em um termo ou outro. Há a necessidade de, a partir do NCPC, de que o
termo ‘precedentes’ seja visto de modo técnico,
A primeira coisa a ser percebida é que essa porque os três primeiros dispositivos do Código
mudança silenciosa produzida pelo NCPC está que tratam do sistema recursal, quais sejam, os
gerando efeitos em todo o ordenamento jurídico artigos 926 a 928, inauguram o Livro Terceiro,
brasileiro. A ideia de que o processo civil é uma área que trata dos meios de impugnação às decisões.
ilhada e restrita para um grupo seleto de experts,
que se satisfaz com essa quase exclusividade, ou Ao fazer isso, o NCPC cria um conceito técnico do
para o indivíduo que gosta de aprender a lidar com que seja precedente no sistema jurídico brasileiro.
o contencioso, foi superada. A partir do NCPC, o Precedente, no sistema jurídico brasileiro, é
domínio das técnicas que envolve o sistema recursal ordinariamente apresentado no sentido de decisão
diz respeito a qualquer tipo de militância jurídica.
do passado. No sentido coloquial, dito por um leigo
Isso vai no mesmo caminho trilhado pelo sistema
ou por profissional mediano no Brasil, precedente
jurídico brasileiro, de uma mudança qualitativa da
de um tribunal é um julgado do passado sob
força que as decisões dos tribunais passam a ter.
determinado tema. Com o NCPC, ele dá força para
algumas dessas decisões e força normativa de
É preciso entender as grandes premissas do
aplicação obrigatória em todos os casos idênticos.
sistema que o Código traz. A primeira delas, como
já dito, é a de que o recurso não serve mais apenas

292
A partir de agora, é preciso usar o termo uniformização de jurisprudência que existia no
“precedente” para algumas decisões dos tribunais. Código de Processo Civil revogado. O IAC, ou
As outras decisões são julgadas, mas elas têm força Incidente de Assunção de Competência, funciona,
meramente persuasiva, não sendo obrigatório precipuamente, para julgar causas relevantes, que
segui-las. Então, os julgados são as decisões em não sejam repetitivas. Como exemplos notórios
geral do tribunal. julgados nos últimos anos, pode ser citada a
união de pessoas do mesmo sexo. Trata-se de
Há algumas decisões proferidas nos tribunais uma questão relevante não repetitiva também a
de 2º grau e outras decisões proferidas no STJ
terceirização na Justiça do Trabalho.
e no STF que são consideradas, tecnicamente,
precedentes. Essas decisões são provenientes No entanto, o artigo 927 diz que, diante de causas
de alguns procedimentos, que o NCPC enumera, repetitivas, é caso da instauração do chamado
exemplificativamente, no artigo 927. Tal Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas -
artigo enumera alguns tipos de procedimentos IRDR, prescrito nos artigos 986 e 987 do NCPC.
vocacionados à formação dos precedentes. Além É um incidente que pode ser instaurado por partes
das decisões dotadas, costumeiramente, de força em processos que versem sobre temática repetitiva
vinculante por determinação constitucional, como pelo próprio Ministério Público, por um juiz de
súmulas vinculantes, julgamentos em ação direta de primeiro grau ou do próprio tribunal, que vislumbre
inconstitucionalidade - ADIN, ADECON, etc, o NCPC que esteja diante de um caso com tendência ou
dá força de precedentes para alguns procedimentos. que já tenha efetiva repetição no Poder Judiciário.

O incidente da assunção de competência do artigo Em situações previdenciárias, tributárias,


947 é um incidente para causas de alta relevância, consumeristas, etc, nas quais haja a temática de
que não sejam repetitivas. Ele é, na verdade, matriz unicamente jurídica, mas que não tenha
um supedâneo, um substitutivo do incidente de grandes digressões de índole fática, é possível a

293
instauração de um incidente perante o Tribunal de Além do IAC e do IRDR, dois grandes modos de
Justiça ou o Tribunal Regional Federal, a depender formação de precedentes, que também são de
da competência. O tribunal competente pode dimensionamento de litigiosidade repetitiva, são
formar uma decisão considerada precedente, que os recursos extraordinário e especial repetitivo
será aplicada aos casos idênticos. A função do prescritos nos artigos 1036 a 1041 do NCPC. Trata-
juiz nos casos de repetitivos seria de adequar o se do julgamento por amostragem, que havia desde
precedente às situações fático-probatórias do caso a vigência do CPC revogado, desde as alterações
em discussão. É importante detalhar que tanto o implementadas pelo artigo 543, “a”, “b” e “c” do
IAC, quanto o IRDR, têm o condão de suspender
CPC revogado, mas bem redimensionado.
todos os procedimentos idênticos ou que tratem
daquela temática, sejam individuais ou coletivos, Percebeu-se, sob a égide do CPC/1973, que o recurso
até o tribunal julgá-los.
especial e o recurso extraordinário repetitivos,
muitas vezes, eram julgados pelos tribunais de
Com a instauração do IAC e do IRDR, a primeira
decisão do relator é de suspender os processos. Essa modo superficial, o que induzia a formação de um
suspensão vai fazer com que todos os processos, padrão decisório que não era propriamente de um
no estágio em que se encontrem, fiquem parados. precedente e que deixava lacunas na aplicação.
O ideal seria que o relator, ao suspender os Em razão disso, o legislador, ao elaborar novas
processos, modulasse os efeitos dessa suspensão, técnicas de formação de precedentes, deu mais
para não suspender todos os processos. Na
importância ao contraditório e à fundamentação
prática, acontece de os processos pararem, o que
das decisões. O objetivo da adoção de novas
pode, inclusive, ser utilizado como modo indevido
técnicas era fazer com que os tribunais, ao julgar
para impedir que as causas repetitivas tenham
tramitação perante o Poder Judiciário. os procedimentos, fundamentassem as decisões
da forma mais analítica possível, a fim de obter

294
um verdadeiro precedente, ou seja, uma decisão todos os argumentos relevantes suscitados pelas
capaz de examinar todos os argumentos relevantes partes. Trata-se do chamado dever de consideração,
acerca da temática repetitiva. que é decorrente do princípio do contraditório.

E para evitar que o STJ e o STF, de modo muito Lamentavelmente, o STJ já tem decisões no
recorrente, analisasse o caso com base, às vezes, sentido de que ele não é obrigado a analisar todos
em um único fundamento e desprezasse todos os os argumentos apresentados pelas partes. Há um
demais. Se o Código for seguido na sua plenitude, julgado, em especial, desse Tribunal Superior, de
especialmente o disposto no artigo 489 que trata difícil apreensão cognitiva, que diz que o artigo
da fundamentação, a chance de se alcançar um 489, §1 º, IV, mantém o entendimento de que o
precedente é grande. Entretanto, se esse artigo STJ não é obrigado a analisar todos os argumentos
for desrespeitado, corre–se o risco de se ter um citados pelas partes. Na verdade, o dispositivo
sistema com decisões ruins e superficiais dadas fala o contrário. Os tribunais estão, em parte,
por ambos os Tribunais Superiores. afirmando que vão dar a leitura que lhes for mais
conveniente. O STJ e STF fizeram uma reforma no
Infelizmente, o STJ e o STF, até então, não estão
Código, antes da entrada em vigor da Lei 13.256,
aplicando o NCPC na sua integralidade e, inclusive,
para que fosse mantida a praxe de funcionamento
têm esvaziado alguns dos dispositivos como o
desses tribunais.
próprio artigo 489, § 1º, IV, que prevê que os
juízes têm o dever cooperativo de analisar todos
O STF é um tribunal que, estatisticamente,
os argumentos relevantes apresentados pelas
caracteriza-se por ser um tribunal de inadmissão
partes capazes de infirmar a conclusão adotada
de casos. Ele inadmite 90% dos procedimentos
pelo julgador. O julgador _ juiz de primeiro grau,
que lhe são apresentados. Na atualidade, ele tem
desembargador ou ministro _ é obrigado a analisar

295
noventa e seis mil processos, sendo que só 3% são que se nega provimento no STF, surge uma cadeia
de controle de constitucionalidade, o restante é de de recursos, porque, da decisão monocrática,
matéria recursal. cabem embargos de declaração, em seguida, cabe
um agravo interno, totalizando quatorze recursos.
Em matéria recursal, o STF é um tribunal que Seria mais inteligente que eles julgassem bem da
inadmite os recursos, pois têm jurisprudência primeira vez, mas eles não percebem esse mau
firme nessa linha de atuação. Esse é o único vezo do modo como é executado o trabalho no
tema que eles têm matéria consolidada, o resto âmbito do STF.
é uma anarquia, pois cada ministro decide a seu
alvedrio. Todavia, em matéria de inadmissão, Resumindo, o sistema de formação de precedentes
os ministros são bastante coerentes, íntegros tem esses grandes institutos: o IAC e o IRDR,

e estáveis. No Supremo Tribunal Federal, há do recurso especial e do recurso extraordinário


repetitivo. Nesses recursos ou procedimentos,
classes recursais dotadas de maior importância e
IAC, IRDR, recurso especial repetitivo e recurso
que, por isso, são mais respeitadas e outras que
extraordinário, a atuação como parte, como
eles, simplesmente, desprezam. Por exemplo,
advogado, ou como MP, tem que ser diferente,
agravo para destrancar recurso especial e recurso
porque esses são procedimentos fraturantes
extraordinário do artigo 1042. Ele é um recurso
que podem gerar precedentes. Nesse tipo de
analisado por uma unidade de gabinete composta
procedimento, se houver uma atuação técnica,
de técnicos e analistas, e não por assessores, por digamos assim, atabalhoada ou automática, o
isso é, sistematicamente, inadmitido. prejuízo pode ser brutal.

Infelizmente, em decorrência da falta de análise Se, atuando numa determinada linha técnica,
dos ministros em relação ao próprio trabalho, de o advogado, promotor, ou procurador, estiver
um recurso de agravo de admissão inadmitido, ou a diante de uma temática com potencialidade para

296
gerar precedente, ou mesmo, se algum desses Tribunal de Justiça, quando ele estiver embasado
procedimentos estiver em tramitação, o ideal em precedente do Tribunal Superior. No caso, a
é fazer uma pausa e uma atuação técnica mais vice-presidência manifesta para que esse recurso
individualizada. Não fazer isso pode produzir não suba, porque o acórdão está em conformidade
um prejuízo imenso, porque perder um é perder com o entendimento do STJ. Indaga-se como se faz
todos os casos idênticos. Pode-se até contestar para que esse recurso chegue ao STJ novamente.
no sentido de que, depois, será possível superar A resposta é que, a priori, não tem jeito, tendo em
esse entendimento. No entanto, a superação, vista que, dessa decisão de inadmissão do Resp,
após a reforma de fevereiro de 2016, obtida por não cabe o agravo previsto no artigo 1.042, mas
precedentes no Direito Brasileiro, é extremamente sim o agravo interno para o próprio TJ. Cabendo
complicada. Isso ocorre, porque vale a técnica um recurso para o próprio tribunal, não é possível
de superação de um entendimento fixado em um alcançar o STJ. Essa é a surpresa trazida pela Lei
precedente pelo tribunal. A superação só pode ser n 13.256, de fevereiro de 2016, que foi feita nos
feita estritamente pelo próprio órgão prolator da gabinetes dos tribunais superiores.
decisão. Se foi o STJ, só esse tribunal pode superar
esse entendimento; se foi o STF, somente ele pode Na atualidade, há duas teses: uma, que foi feita em
superar seu entendimento. Para alcançar esse parceria entre mim e o Professor Alexandre Freitas
tribunal depois de ter sido formado o precedente, Câmara, em que se defende o cabimento de um
vai ser uma verdadeira via crucis, especialmente novo recurso especial com base no artigo 927, §§
se ocorrer o artigo 1.030 do NCPC. Com 2º a 4º, pela negativa de vigência à superação; há
base no artigo 1.030, I e II, do NCPC, uma outra, produzida pelos professores Fred Didier e
vez apresentado o recurso especial ou recurso Leonardo Cunha, em que se defende o cabimento
extraordinário, ele pode ser inadmitido de plano da reclamação da decisão que julgou agravo
na origem pela vice-presidência, por exemplo, do interno. Contudo, isso é entendimento doutrinário.

297
Do ponto de vista legal, não há mecanismo algum. Os profissionais da área jurídica em geral usam a
A mensagem dos tribunais superiores é de que jurisprudência cometendo três erros: fazendo uso
uma vez formado o precedente, o caso não deve de julgados dos tribunais com base na descrição
mais retornar para lá. Considera-se que isso seja da ementa; deixando de atentar para o inteiro teor
extremamente perigoso, pois não se pode mais se do acórdão e, por fim, ignorando os julgados que
distrair com esse tipo de procedimento, sob pena lhes possam prejudicar.
de o resultado ser catastrófico.
A ementa exerce a função única no julgado de
A primeira grande premissa é o sistema de ser meramente catalográfica. Os precedentes são
precedentes. O sistema de precedentes não diz aplicados no inteiro teor mediante analogias e
respeito só à ideia da formação de decisões. contra-analogias completas de casos. Lidar com
Esse sistema de precedentes permeia o NCPC na o atual sistema de julgados no Brasil é lidar, no
integralidade. Desde a elaboração da petição inicial, cotidiano, do mesmo modo como se lida com
é necessário que se preocupe com o precedente, o recurso especial por dissídio jurisprudencial
pois o artigo 319 trata dos requisitos da petição do artigo 105, III, “c”, da CRFB/1988. O
inicial. O incauto procede à comparação desse recorrente vai interpor recurso para o STJ para fins
artigo com o revogado artigo 282, do CPC/1973, de uniformização de jurisprudência. Daí em diante,
chegando à conclusão de que, em regra, a petição extrai-se um acórdão do TJ local, que causou
inicial, em regra, não mudou no NCPC. Só mudaram prejuízo e do qual se sucumbiu, e extrai outro
poucos itens: o fato de a pessoa poder manifestar acórdão só que do TJ de outro estado, em um caso
se quer audiência de autocomposição prevista no idêntico, que gerou um resultado contrário, recorre-
artigo 334, não precisar mais o autor de fazer se para o STJ a fim de fazer a uniformização do
requerimento de citação. Essa pessoa não tem a entendimento. Nesse caso, o recorrente defende
menor noção sobre o sistema do NCPC/2015. logicamente o entendimento do acórdão do TJ do

298
outro estado, pois ele lhe favorece. Só que, para O terceiro erro cotidiano do profissional do Direito
tanto, quando da elaboração do recurso, deve ser brasileiro é desprezar os julgados que lhe são
feita a analogia completa entre os casos, mostrando prejudiciais. Há uma verdadeira jurisprudência
que o acórdão do TJ local e do TJ do outro estado self-service, em que cada um se serve daquela
estão versando sobre o mesmo caso. O raciocínio que considera como vantajosa e despreza aquela
necessário para lidar com os julgados, a partir do que lhe desfavorece. Se o profissional brasileiro,
NCPC/2015, no Direito brasileiro, é o analógico. desde a petição inicial, não mostrar que seu caso
Se for manejada apenas a ementa, o recurso está é diferente daquele de um precedente que lhe

fulminado. Desse modo, a primeira lição é que não é prejudicial, vai perder a causa liminarmente,
conforme prevê o artigo 332 do NCPC/2015.
se pode mais trabalhar só com ementas.

Segundo esse artigo, o julgamento liminar de


O segundo erro mais comum que é não mostrar de
demandas repetitivas, estabelece que, se o juiz,
modo descritivo, ao lidar com esses julgados, que
ao analisar a petição inicial verificar que, contra
os casos são idênticos ou diferentes por falta de
aquela pretensão, já existe o julgamento no STJ
domínio quanto às técnicas de diferenciação de casos.
em sentido contrário, ele pode julgar improcedente
Assim sendo, o recorrente, automaticamente, não
o pedido de imediato, sem mesmo conceder a
consegue escapar da aplicação de um precedente oportunidade do contraditório. Diferenciar o caso
que lhe seja contrário. é a forma de se escapar desse impasse. O método
aplicável para tanto é apontar as especificidades
Então, com o NCPC/2015, é imprescindível
do caso que o torna distinto do precedente.
aprender a fazer algo que, no Common Law, é
muito comum, que é trabalhar com analogias e O lado positivo disso é que, havendo um precedente
contra-analogias. favorável àquilo que se almeja, com base no artigo
311, II, do NCPC/2015, é possível obter a tutela

299
antecipada de evidência. Esse artigo define que se recurso também monocraticamente. O artigo
as alegações forem provadas por meio de prova 1.030, do NCPC, trata da admissibilidade dos
documental e se for possível mostrar que o caso recursos extraordinários. Com base no inciso I do
que defendo é idêntico a um precedente, é possível artigo 1.030, supondo que o Tribunal de Justiça
obter a concessão da tutela antecipada sem dê uma decisão contrária ao entendimento do STJ
urgência, liminarmente. A parte, então, propôs a em recurso especial repetitivo.
ação, o juiz deferiu a liminar sem urgência, daí já
é possível começar a execução provisória. Em um caso recente da área de família que pude
acompanhar, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais
Lidar com precedentes gravita em torno do proferiu decisão contrária a um julgamento que o
sistema inteiro. Há impactos no reexame STJ tinha dado em recurso repetitivo. Interpus um
necessário previsto no artigo 496, há impactos recurso especial para que fosse admitido o recurso
na apresentação da impugnação ao cumprimento e para que o vice-presidente do TJMG determinasse
previsto nos artigos 525 e 535, inclusive é técnica que o colegiado se retratasse da decisão. O artigo
de julgamento dos recursos. 1.030, do NCPC, prevê que o vice-presidente
pode determinar que o colegiado se retrate. Então,
O artigo 932, III e IV, indica que, na interposição a vice-presidência admite o recurso, verifica a
de recurso, se o recorrente demonstrar que o existência de precedente favorável e determina
caso é idêntico a um precedente, é possível pedir que o processo retorne ao colegiado para fins
para o relator julgar monocraticamente o recurso, de retratação. Se este não se retratar, o recurso
dando-lhe provimento. Se o recorrido demonstrar, especial segue e, provavelmente, será dado
nas contrarrazões, que a linha de defesa por ele provimento ao recurso especial monocraticamente,
defendida é idêntica àquela do precedente, pode- com base no artigo 932, do NCPC.
se pedir para que seja negado provimento ao

300
Então, a primeira grande premissa do sistema favoravelmente a quem aproveitaria o julgamento,
recursal é estar diante de um sistema de sem a extinção do processo sem resolução
precedentes. A segunda premissa do sistema do mérito, ele vai julgar o mérito. No sistema
recursal é integralmente uma premissa do NCPC. recursal, o dispositivo mais relevante é o artigo
O Código adota a chamada regra da primazia 932, parágrafo único. Esse dispositivo fala
do mérito, que é uma técnica de aproveitamento que é dever cooperativo do relator nos tribunais,
da atividade processual como um todo. Ela é
antes de inadmitir um recurso por vícios formais,
decorrência da norma fundamental do artigo 4º,
conceder o prazo de cinco dias para a parte
que trata da solução integral do mérito, mas a
recorrente corrigir o vício.
primazia do mérito perpassa todo o Código.

Pelo sistema processual do CPC/1973, o relator


A primazia do mérito significa analisar as formas
inadmitia de plano o agravo aviado se, por exemplo,
processuais com fulcro na busca da sua finalidade
fosse interposto um agravo de instrumento
e que o juiz tem o dever de mandar sanear vícios
diretamente no tribunal, mas sem que ele estivesse
processuais passíveis de serem corrigidos. Isso
não ocorre só na norma fundamental do artigo acompanhado de peça considerada obrigatória

4º. O artigo 139, IX, do NCPC, fala que é dever como cópia de documento.

geral e cooperativo do juiz mandar a parte sanear


Com base na primazia do mérito, no artigo 932,
vícios do processo como falta de pressuposto
parágrafo único e no artigo 1.017, § 3º,
processual e como falta de documentos. A ideia
é evitar julgamentos processuais. O objetivo é do NCPC/2015, o relator, antes de inadmitir o

julgar o direito do cidadão sempre que possível. recurso, deve abrir vista para a parte corrigir o
Os artigos 317 e 321 seguem essa mesma linha. vício formal, no caso, a falta de documento.
O artigo 488 estabelece que se o juiz puder julgar

301
No sistema revogado, deixar de efetuar o preparo a preliminar de repercussão geral. Se um recurso
do recurso gerava, de imediato a deserção. extraordinário for interposto sem demonstrar
Segundo o artigo 1.007, § 4º, antes de inadmitir relevância política, econômica, social e/ou jurídica
o recurso, o relator tem que conferir prazo para a e transcendência, que é a repercussão geral, ele
parte juntar o preparo, que deverá ser em dobro. vai ser inadmitido de plano por vício material,
É uma pena. Não significa que ela fica incólume, na verdade, por conteúdo. Então, temos que
mas ela é obrigada a pagar em dobro, porque iniciar todo recurso extraordinário pelo tópico da
deixou de fazer o preparo. Caso a parte não faça o repercussão geral, seguido da relevância e da
pagamento em dobro, será deserto, em função da transcendência. Caso não se faça, será inadmitido
primazia do mérito. de plano no STF. Isso é pacífico, de acordo com
as assessorias de todos os ministros. N prática,
Vícios formais apresentados em recursos então, a primazia do mérito no Supremo Tribunal
extraordinários. O artigo 1.029, § 2º, do NCPC, Federal não funciona muito. No Supremo Tribunal
prevê que, se houver algum vício formal passível Federal, segundo o entendimento dos ministros, o
de ser sanado, antes de se inadmitir o recurso, NCPC e o Regimento Interno só são aplicáveis nas
o Tribunal Superior tem de mandar sanar o vício. instâncias inferiores.
Vícios materiais não permitem a correção pela
primazia do mérito. Por exemplo, interpor recurso O Tribunal Superior é um capítulo à parte, por
extraordinário sem apresentar preliminar de isso militar nesses tribunais exige monitoramento
repercussão geral. Não é possível corrigir. constante de seu funcionamento.

O Supremo Tribunal Federal, internamente, ainda A terceira premissa é de que o Código adota um
continua exigindo a preliminar de repercussão juízo concentrado de admissibilidade no tribunal
geral, mesmo que o NCPC/2015 tenha acabado com ad quem, ou seja, no tribunal destinatário, com

302
exceção dos recursos extraordinário. Interpõe- Então, a admissibilidade passa a ser concentrada
se a apelação em primeiro grau, mas o juiz de no juízo a quo.
primeiro grau não faz a admissibilidade. Apenas o
órgão destinatário como o TJ faz a admissibilidade. Tratemos de algumas questões dogmáticas
Isso já era aplicável no agravo e na grande maioria importantes. A primeira delas é que os prazos dos
dos recursos. recursos foram todos unificados para quinze dias,
nos moldes do artigo 1.003, § 5º, com exceção
Em regra, não há mais dois juízos de admissibilidade dos embargos de declaração, cujo prazo é de cinco
para os recursos. A ressalva fica por conta dos dias. Assim, a questão dos prazos foi simplificada
recursos extraordinários, por força da reforma no Código de Processo Civil de 2015.
levada a cabo pela Lei n. 13.256/2016. Há então
o juízo de admissibilidade na origem, isto é, na Os prazos no NCPC/215 são contados em dias
presidência ou vice-presidência. Em Minas Gerais, úteis, nos moldes do artigo 219. Foi extinta a figura
nas duas vice-presidências, mais precisamente na do chamado recurso prematuro, que era aquele
primeira ou na terceira. Posteriormente, há um recurso interposto antes do prazo. A Súmula 418
segundo juízo de admissibilidade nos tribunais de foi suprimida pelo disposto no artigo 218, § 4º. A
segundo grau. No caso dos recursos extraordinários, prática do ato processual antes do início do prazo
da decisão de inadmissibilidade, pode caber um tem plena validade, sendo despiciendo, inclusive,
agravo interno, se a decisão da vice-presidência for a ratificação do recurso em regra. Entretanto, é
embasada em precedente. Cabe agravo em recurso preciso ter cuidado com essa ratificação, porque
especial ou em recurso extraordinário do artigo o STJ revogou a Súmula 418, que tratava desse
1.042, se o recurso for embasado em outras razões recurso prematuro, mas editou outra súmula,
como ausência de prequestionamento, insistência que é a de número 579. Na mesma sessão
no tratamento de matéria fática e probatória, etc. de julgamento, o STJ revogou o enunciado da

303
Súmula 418, mas editou o enunciado da Súmula não for ratificado, com base na interpretação
579. Esse enunciado diz que não se está obrigado da Súmula 579, corre-se o risco de que o
a ratificar o recurso se não houver modificação da entendimento do STF seja de que o recorrente não
decisão. Na verdade, o STJ está querendo criar tem mais interesse no recurso, razão pela qual
nova jurisprudência defensiva. podem indeferi-lo.

Se houver oposição de um ED e este modificar a O recurso de agravo é um capítulo à parte no


decisão de um recurso que já tiver sido interposto, Código. O NCPC fez um aprimoramento colossal
vale a pena ratificá-lo por conta do teor do no agravo por instrumento no que tange ao rigor
enunciado de Súmula 579. formal. Assim, na ausência de algum requisito,
adota-se a primazia do mérito, sendo possível
É muito comum ocorrer a sucumbência recíproca. a complementação da instrução do recurso.
Uma das partes faz um recurso especial, por Isso significou um avanço bem importante.
exemplo, e a outra apresenta um recurso de Em contraponto, houve um retrocesso muito
embargos declaratórios, ao mesmo tempo. Se não expressivo, pois o Código ressuscitou um modelo
houver modificação nenhuma, o recurso especial casuístico de ataque das decisões interlocutórias,
não é preciso ratificar o recurso especial já aviado. que já vigeu no Direito brasileiro sob a égide do
Se, no julgamento dos embargos declaratórios, CPC de 1939, inserindo-o no artigo 1.015. A partir
houver alguma modificação, é necessário fazer de agora, diante de uma decisão interlocutória,
duas coisas. Se a modificação causar prejuízos, ou cabe agravo por instrumento, com base na
deve-se, de acordo com o artigo 1.022, § 4º, previsão do rol taxativo do artigo 1.015, ou na
complementar as razões do recurso, com base no hipótese do artigo 1.037, § 13, quando houver
princípio da complementaridade do artigo 1.024, julgamento de caso repetitivo e o processo for
§ 4º. Além disso, deve-se ratificá-lo. Se o recurso suspenso indevidamente.

304
Supondo que haja uma questão de telefonia em que o caso é idêntico, ou seja, se ele não distinguir
que tenha sido interposto um recurso especial. Ao o caso em relação a essa decisão, cabe agravo
receber esse recurso especial repetitivo, o relator, por instrumento.
no tribunal, com base no artigo 1.037, manda
suspender todos os processos idênticos, individuais A fixação de um rol taxativo de hipóteses de
e coletivos da federação. Esse é exemplo verídico. cabimento do agravo de instrumento pelo
Há um recurso especial repetitivo em que o STJ NCPC/2015 foi algo péssimo. Há uma série de
mandou suspender todos os casos envolvendo decisões interlocutórias, que são extremamente
telefonia fixa. Se há suspensão de todos os importantes e que não estão no rol do artigo 1.015.
casos significa que um desses processos, se for Contra decisões interlocutórias de que não caiba
de telefonia fixa, vai ficar suspenso, aguardando de imediato o agravo de instrumento, caberá,
julgamento do STJ. juntamente da apelação, impugnação. Desse
modo, a apelação, no sistema do NCPC/2015 ataca
Entretanto, se o caso envolver telefonia móvel, ele as sentenças e as decisões interlocutórias, que não
não está abarcado pela suspensão, pois o caso é estejam contidas no rol do artigo 1.015. Só que se
diferente. Todas as vezes em que houver um caso a decisão é muito relevante e não dá para esperar.
diferente, ou diferenciação, ou distinção, o Código, Por isso, a doutrina defende duas formas para
nos artigos 1.037, § 9º a 13, estabelece um tentar fugir desse labirinto, quais sejam: a) tentar
procedimento de extinção. Nesse caso, é preciso fazer uma interpretação extensiva das hipóteses
apresentar uma petição perante o juízo em que do 1.015. Então, por exemplo, o artigo 1.015,
o processo está tramitando, demonstrando que III, expressa que cabe agravo por instrumento
o caso é diferente, que dever ser conferido a das decisões que tratam da negativa da cláusula
ele regular tramitação. Só que se o juiz, por de convenção de arbitragem. Convenção de
eventualidade, for de primeiro grau e ele afirmar arbitragem é tema afeto à competência, então,

305
numa interpretação extensiva, alguns defendem que eletrônica, não é preciso fazer a juntada da peça em
caberia agravo dessa hipótese. Isso tem aceitação três dias, como previsto no artigo 1.018 avisando
jurisprudencial pontual nos tribunais. No TJMG, o juiz de primeiro grau acerca da interposição do
há poucas decisões que aceitam o cabimento do recurso.
agravo por interpretação extensiva. Se não couber
o agravo por interpretação extensiva, assim como Do ponto de vista prático, é recomendável que isso
previsto no CPC de 1939, caberia impetração de continue a ser feito, pois, infelizmente, os sistemas
mandado de segurança. Isso é aceito, mas de modo eletrônicos de 1º grau e de 2º graus são softwares
muito pontual nos tribunais. Hoje, ordinariamente, diferentes que dialogam em línguas diferentes.
os tribunais não vêm aceitando. Isso demonstra Essa é uma característica de sistemas de vários
que se deve aguardar a apelação. Supondo que estados da federação. Em Minas Gerais, o processo
se vai esperar a apelação de uma matéria com eletrônico de primeiro grau não dialoga com o do
igual competência relativa. A situação não será tribunal. Então, o mais seguro é continuar fazendo
resolvida, mas apenas prorrogada a competência como se o processo não fosse eletrônico.
in loco. O tribunal vai manifestar no sentido de que
Há um detalhe muito importante no que tange
o juiz era incompetente, mas não será possível
aos prazos. Nos processos eletrônicos, não há
anular o processo. Esse é o primeiro problema: o
duplicidade de prazos por ter litisconsórcio diverso,
rol taxativo das hipóteses de cabimento do agravo.
com procuradores diversos; de escritórios diversos,
O procedimento do agravo é basicamente o já se o processo for eletrônico, por razões óbvias. A
conhecido. O agravo de instrumento é interposto duplicidade do artigo 229 só ocorre se a parte não
diretamente no tribunal, juntamente com as cópias. tem acesso aos autos. Se o processo é eletrônico,
A grande novidade, em termos procedimentais, é o acesso aos autos está disponível em período full
que, se o processo for de tramitação totalmente time, o que é importante.

306
O recurso de apelação é um recurso que sofreu prova seja o vencedor da demanda. O juiz julga
muitas modificações. A primeira delas é que favorável na sentença de mérito. O vencedor da
cabe apelação de decisões interlocutórias, não demanda será obrigado a, quando da resposta
albergadas pelas hipóteses de cabimento de agravo do recurso de apelação da parte contrária, do
por instrumento. qual se sagrou vencedor, nas suas contrarrazões,
terá de responder o recurso de apelação
Imagine-se a hipótese de uma decisão interlocutória da parte contrária e terá de apelar contra a
no meio do processo de indeferimento de prova decisão interlocutória na sucumbiu referente ao
pericial. Contra essa decisão, não cabe agravo indeferimento da prova pericial.
de instrumento, porque ela não está no rol do
artigo 1.015 do NCPC. Se dela não cabe agravo Se, por eventualidade, houver a reforma da
de instrumento, significa que o indeferimento sentença em primeiro grau e a pessoa perder no
da prova pericial será impugnado na apelação. tribunal, a produção da prova pericial será muito
Então, nessa peça, atacam-se a sentença e a relevante. Só que essa apelação, apresentada nas
decisão interlocutória de indeferimento da prova contrarrazões, não vai ser analisada de imediato.
pericial. Em caso de sucumbência, apela-se da Ela só vai ser analisada se for dado provimento à
sentença e da decisão interlocutória. Se o tribunal apelação da parte contrária, porque se for negado
der provimento à interlocutória, a sentença será provimento à apelação principal, a produção ou não
anulada, o processo “volta” para que haja a da prova pericial será, a essa altura, irrelevante.
produção da prova pericial. Entretanto, se der provimento, eles vão verificar
se o indeferimento da prova pericial é ou não
O problema ocorre na situação em que, havendo é relevante, se foi correto ou incorreto. Se foi
indeferimento de prova pericial no curso do incorreto, o processo será anulado até a produção
processo, o interessado na produção dessa da prova pericial.

307
A reforma pode induzir à ocorrência de “idas e tribunal. O modo de obtenção do efeito suspensivo
vindas processuais”, mesmo quando o objetivo do é duplo no recurso de apelação: ou se aguarda que
NCPC, em tese, era tornar o sistema mais célere. o recurso de apelação chegue ao tribunal e se faz
Em razão disso, sou contrário a essa reforma. o requerimento nas próprias razões recursais do
Tentei derrubá-la de todos os modos possíveis e recurso, ou caso se pretenda obstar por completo
imagináveis, mas não consegui. a execução provisória, interpõe-se recurso em
primeiro grau e se apresenta uma simples petição
Há mais dois caracteres que merecem atenção no tribunal, instruída com documentos que
em relação à apelação. Primeiramente, que, permitam ao tribunal verificar os requisitos para
agora, é possível obter o efeito suspensivo na obtenção de efeito suspensivo, fundado receio
apelação por meio de simples petição atravessada de dano irreparável e potencialidades de êxito do
diretamente no tribunal. Como não há mais juízo recurso. Assim, o relator poderá conceder o efeito
de admissibilidade na origem, uma vez que a suspensivo nessa hipótese.
apelação é interposta no primeiro grau, caso se
queira obter efeito suspensivo acidental, deve-se Além da questão de efeito suspensivo, o artigo
apresentar um recurso de apelação em primeiro 1.013, § 3º, ampliou o chamado efeito devolutivo
grau e uma simples petição no TJ, para que este em profundidade e o efeito translativo da apelação.
atribua tal efeito suspensivo. Por exemplo, se houver uma sentença que foi
proferida extra petita, ultra petita, ou, até mesmo,
Uma situação na qual a lei afirma que não há efeito citra petita, ou seja, uma decisão aquém do pedido,
suspensivo está prevista no artigo 1.012, do NCPC. todos esses vícios, por força do artigo 1.013, §
O relator que recebe a simples petição, atribuindo a 3º, podem ser corrigidos diretamente no tribunal.
ela o efeito suspensivo, vai se tornar prevento para O tribunal não precisa mais anular e fazer voltar
o processamento da apelação quando ela chegar ao o processo para o juiz de primeiro grau. Então, a

308
teoria da causa madura, foi sofisticada pelo artigo O artigo 1.022 aponta que se houver um
1.013, § 3º. Isso é muito relevante também, o precedente que o juiz ou um órgão jurisdicional
que significa que o tribunal pode corrigir mais desprezar, cabe ED por presunção normativa de
vícios no julgamento da apelação. omissão. A outra hipótese de presunção normativa
de omissão é se o juiz desprezar a fundamentação
Farei duas considerações breves sobre o recurso de analítica do artigo 489. Os juízes, praticamente,
embargos declaratórios e sobre o recurso de agravo não estão aceitando em termos práticos essa
interno. O recurso de embargos declaratórios, de espécie de omissão.
modo muito claro, tem cabimento em qualquer
decisão, mas isso já era o entendimento assente No âmbito pratico, o juiz diz não estar obrigado
na doutrina e jurisprudência. O atual Código deixa a analisar todos os argumentos apresentados
tudo muito claro, pois será possível apresentar pelas partes como se o artigo 489, § 1º, IV,
esse recurso de qualquer decisão. não existisse. Esperemos que, com o passar do
tempo, essa síndrome de efetividade seletiva, ou
Só que a partir de agora, haverá primeiro, uma nova seja, a aplicação do Código naquilo que interessa
hipótese de embargos declaratórios, além da omissão, e desprezo em relação àquilo que não interessa
da obscuridade e da contradição, que é o erro, que seja modificado. Momentaneamente, vive essa
era apontado em entendimento jurisprudencial situação que não é incomum na entrada em vigor
a respeito. O Código cria duas hipóteses de de nenhuma lei no Brasil. Em outros países seria,
presunção normativa de omissão, no artigo 1.022. mas no Brasil, não, pois faz parte do nosso modus
Haverá omissão presumida se o juiz desprezar um vivendi. Há aquela situação da lei que “pega” e
precedente. A autoridade judicial, às vezes, almeja da lei que “não pega”? O Brasil é um país muito
decidir de modo contrário ao precedente. O melhor pitoresco, também, nesse aspecto.
jeito de fugir do precedente é ignorando-o.

309
Além disso, no que tange aos embargos do tribunal mesmo após a oposição do ED com
declaratórios, o Código deixa textualmente fins de prequestionamento gerava a aplicação
estabelecida a hipótese dos embargos declaratórios do entendimento estabelecido no enunciado de
com efeitos modificativos. Se o juiz perceber a Súmula 211, do STJ, que dizia que não existia
potencialidade de a decisão ser modificada, ele prequestionamento se o tribunal não suprisse
deve abrir vista para a parte contrária em cinco a omissão no ED. Com o advento do artigo
dias para ela responder o ED. 1.025, se um ED for oposto, mas o tribunal ainda
mantiver a omissão, presume–se que houve
A grande novidade na parte dos EDs está prequestionamento.
inserida no artigo 1.025, que trata do chamado
prequestionamento ficto. É muito comum o uso O Código adotou a teoria do prequestionamento
dos embargos declaratórios com a finalidade de ficto. Havia alguns julgados isolados, que aceitavam
prequestionar matérias para os tribunais superiores. essa modalidade de prequestionamento no âmbito
do Supremo Tribunal Federal, apesar de que, nesse
Costuma-se provocar, em uma apelação, a análise tribunal superior, prevalecia o entendimento de
de uma questão jurídica. Se o tribunal fica omisso, que deveria haver, ao menos, o prequestionamento
para tentar colocar a causa decidida no bojo do implícito, ou seja, pelo menos a questão jurídica
acórdão, apresentam-se embargos declaratórios deveria ter sido posta. Agora, não mais.
com finalidade prequestionadora que, inclusive,
não deveria ser considerado protelatório por força Com o artigo 941, § 3º, o prequestionamento
do enunciado da Súmula 98 do STJ, já antigo. pode, também, estar previsto no voto divergente.
Normalmente, quando o tribunal analisa o ED, ele, O entendimento que predominava até a entrada
mesmo que tenha se omitido, de modo evidente, em vigor do Código era de que só poderia
nada declara. Em termos concretos, a omissão haver prequestionamento na parte majoritária

310
do acórdão. Agora, é possível haver a figura do 1.021 dos agravos internos procrastinatórios
prequestionamento também na parte minoritária em quase todas as hipóteses de negação de
com base no artigo 941, § 3º. provimento do recurso. Isso é algo que precisa
ser combatido aos poucos. O STJ está sendo mais
No que tange ao agravo interno, duas considerações. correto nesse aspecto, pois não há lógica que, de
Primeiro,o agravo interno cabe agora de todas todo agravo interno, caiba aplicação da multa. Não
decisões monocráticas dos tribunais. Além disso, há fundamento nenhum.
ele pode representar um mecanismo para tentar
quebrar a inadmissibilidade das decisões proferidas O ideal é que seja consolidado o entendimento
pela vice-presidência. Assim, ele passa a ser um jurisprudencial, segundo o qual seja efetivada a
recurso com maior relevância. aplicação da multa em recursos protelatórios,
especialmente nos embargos declaratórios e no
O Código estabelece uma modalidade de agravo interno, somente em hipóteses em que
sucumbência recursal no artigo 85, § 11, do fique demonstrada, de modo bem evidente, a
NCPC/2015. Tal modalidade de sucumbência finalidade de causar prejuízo.
recursal deveria ser cabível apenas em grandes
recursos, que julguem o mérito, etc. Os tribunais É possível a apresentação de dois ED’s sucessivos.
vêm utilizando a sucumbência recursal também Caso dois ED’s sucessivos sejam considerados
em recursos de embargos declaratórios, agravo manifestamente protelatórios, o terceiro não será
interno e isso, tecnicamente, estaria errado, mas o conhecido. Então, não há mais a possibilidade

STF e o STJ vêm fazendo isso. E, pior, dificilmente fática de, sob a égide do CPC/2015, o advogado
apresentar infinitos recursos de ED e sofrer
são encontradas decisões colegiadas em agravo
condenações sucessivas de recursos protelatórios.
interno no STF, que é um tribunal precipuamente
Então, o CPC/2015 cria novos modos de redução
monocrático. Ele tem aplicado a multa do artigo
de impactos dos recursos.

311
Agradeço, mais uma vez, pelo honroso convite e sou o vencedor e a parte contrária recorreu,
fico à disposição para responder as indagações. pois há risco de que a decisão seja reformada no
Muito obrigado. tribunal. Com a reforma do tribunal, a produção
da prova pericial será relevante. Ou, então, se
ORADORA NÃO IDENTIFICADA: Boa noite. perdi totalmente, vou buscar impugnar e apelar
Obrigada pela palestra, que foi excelente. No contra a decisão interlocutória de indeferimento de
caso da decisão que indefere um pedido de prova prova, pois quero a nulidade da sentença. Daí, o
pericial, se a parte vencida não apela, como é que processo volta para o juiz de primeiro grau, haverá
se pode impugnar essa decisão? a produção de prova pericial, há nova sentença e
nova apelação.
PROFESSOR DIERLE NUNES: Voltemos à situação
que você propôs. Ocorre o indeferimento da prova ORADORA NÃO IDENTIFICADA: Então, há
pericial. A parte vencedora no processo vai ter que decisão interlocutória que nunca vai ensejar
fazer a impugnação na resposta ao recurso, como possibilidade de recurso?
previsto no artigo 1009. Se a parte contrária, que
é a vencida, não recorrer, a situação fica tranqüila PROFESSOR DIERLE NUNES: Exatamente. Na
para o vencedor, pois vai ocorrer o trânsito em verdade, o objetivo em princípio do Código seria
julgado, após a apresentação da impugnação de criar um modelo de impugnação concentrada na
contra a decisão de deferimento de prova, só se sentença. Há uma sentença, tomo a grande maioria
trouxer algum benefício. Se a parte venceu na das decisões interlocutórias e faço a apelação
sentença, se a sentença já lhe foi favorável, vai apelaria de uma só vez. Só que, infelizmente isso,
transitar em julgado o processo, sendo que a no sistema jurídico brasileiro não é muito adequado.
produção ou não da prova pericial é irrelevante. A duração do processo é muito longa até chegar a
Então, ela só tem relevância nas hipóteses eu uma sentença. Assim, a importância das decisões

312
interlocutórias serem impugnadas imediatamente milita no Tribunal Superior já conhece de antemão
é grande porque, senão, criam-se idas e vindas, o esse panorama do artigo 1.030 há alguns anos.
que gera muita perda de tempo processual. Então Já se tentou, em outra oportunidade, que essas
é uma situação muito delicada e, por isso, vejo que decisões fossem precedentes no sentido técnico do
essa opção do legislador não foi a melhor, ao fim termo. Atualmente, nem o STF, nem o STJ, aceita
e ao cabo. nenhum dos dois. A defesa dessa perspectiva nesse
momento decorre do fato de que essas decisões
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Professor,
são precedentes, assim sendo, são obrigatórias.
quanto à divergência doutrinária referente à
Antes, elas não eram obrigatórias com a mesma
suposição do Didier e do Alexandre Câmara, há
força. Então, há a necessidade de ter mecanismos
algum precedente a respeito dos recursos que não
de superação de entendimentos, senão o próprio
são admitidos?
modelo do Código seria inconstitucional. Assim,

PROFESSOR DIERLE NUNES: O NCPC tem muito isso não se trata de criação de precedentes, mas
pouco tempo de vigência e o STJ tem algumas de fechamentos argumentativos nos tribunais. É
decisões monocráticas dadas pelo Ministro Kukina, como se o tribunal desse a última palavra. Em
dando a entender que, em algumas hipóteses, nenhum outro país, há esse nível de força para uma
seria cabível a reclamação, mas sem que fique decisão de um tribunal superior. Nem nos Estados
muito claro. O modelo de cabimento de agravo Unidos, nem na Inglaterra, havia esse patamar de
interno de decisões em conformidade com petrificação de entendimento. O que se busca, por
julgamentos do STJ e do STF não foi criado pelo meio dessa via, é uma ideia de tentar resolver o
Código. Isso já é dessa forma desde 2009, no STF, problema de acesso ao poder Judiciário por meio
e, desde 2011, no STJ. Só não é conhecido pelos
do Código. Isso é absurdo.
não militantes nos Tribunais Superiores. Quem

313
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: A dúvida não demasiadamente. O processo civil, se já não era
é nem só na questão da revisão do precedente. para amadores, agora que não será mesmo. A falta
Naquele caso em que foi negado o recurso pela de domínio dos meios, dos ônus argumentativos
vice-presidente, se seria ou não de acordo com o em todas essas técnicas fará com que o processo
precedente, porque, ao não se admitir a possibilidade não chegue ao tribunal. Literalmente.
de o recurso chegar ao tribunal, seja pela via que
for, como que o Tribunal Superior vai aferir se aquela SR. LUCIANO FRANÇA: Inicialmente,
decisão que se está tentando levar... cumprimento o professor pela qualidade da
palestra. Sou Procurador de Justiça atuante na
PROFESSOR DIERLE NUNES: Esse é o problema, Procuradoria de Direitos Difusos e Coletivos. Pelo
na medida em que dessa decisão, só cabe agravo fato de o senhor não ser um membro do Ministério
interno. Não há, a priori, um mecanismo para Público e, em razão disso, de ter visão de advogado,
alcançar o tribunal. Deve-se atacar a decisão creio que será uma indagação oportuna. Uma
que julgou o agravo interno. A discussão é entre questão de muita reflexão é aquela relacionada
a apresentação do novo recurso especial e a à atuação do Procurador de Justiça nas hipóteses
apresentação de uma reclamação, que são as em que o Ministério Público figure como parte,
duas únicas vias possíveis. É preciso construir o que é bastante comum na nossa realidade.
alguma forma de alcançar o tribunal. Nenhum Em que pese haver independência funcional do
advogado vai tolerar um sistema que cria esse órgão que atua segunda instância, há também o
grau de petrificação. O grande problema é que, princípio da unidade. O Código é muito incisivo na
em alguma medida, o Código sofistica o sistema questão do contraditório e da paridade de armas.
de recorribilidade extraordinária no Brasil. Assim, Temos a prerrogativa de, em segunda instância,
o nível de conhecimento técnico necessário para discutir sobre um recurso no qual já houve uma
se ter domínio do sistema recursal aumentou manifestação de um Promotor de Justiça, que

314
ofertou razões ou contrarrazões, ou contra- de liberdade que cada membro tem de atuar de
minuta, e de exarar uma manifestação. Em relação acordo com as suas ideias e que comece a fazer
a isso, como é que o senhor verifica essa atuação uma atuação em prol do que, do ponto de vista
em segunda instância diante, principalmente, institucional, ele tenha a defender, vai haver um
da nova sistemática do código, no sentido da problema muito evidente.
questão fiscal da ordem jurídica? As decisões,
sob a vigência do Código anterior, indicavam que O Ministério Público também deve pensar como
o Procurador de Justiça seria uma espécie de um instituição e, especialmente, verificar que o direito
fiscal da lei. Então, mesmo naquelas hipóteses jurisprudencial começa a ganhar um novo patamar.
em que já havia a atuação do órgão em primeira Do ponto de vista prático, o direito jurisdicional
instância, o Procurador de Justiça também faria tem um impacto, talvez, maior do que a lei e do
uma manifestação com certa “independência”? que a doutrina. A título exemplificativo, ocorre
uma discussão no Supremo Tribunal Federal,
PROFESSOR DIERLE NUNES: A sua pergunta envolvendo ações relativas à questão da presunção
é muito boa. A atuação do Ministério Público em de inocência, em que parecia que, realmente, o
segundo grau precisa sofrer uma modificação, entendimento desse tribunal, do ponto de vista
porque, primeiro, até partindo da própria literal, estava contrariando a Constituição Federal.
afirmação do senhor quanto à questão da unidade Assim, pergunta-se: aplica-se o entendimento
do trabalho dessa instituição, apesar da autonomia do Supremo Tribunal Federal ou a literalidade
de cada membro, cada órgão de execução, no final do artigo 5º contido na Constituição? Do ponto
das contas, tem a própria pressuposição de forma de vista prático, a primeira fonte de pesquisa
precedente no sentido concreto. Se o Ministério do profissional mediano não é a doutrina, não
Público não tiver uma atuação estratégica no é a lei. Ele abre um sítio do tribunal, ou então,
âmbito do segundo grau, que vá além da ideia sendo até mais superficial, digita no Google as

315
palavras correspondentes ao seu interesse, vai albergado. As instituições brasileiras deveriam
até o sítio Jus Brasil, visualiza aproximadamente começar a entender que existe um respaldo. Em
dez emendas. Assim, ele acredita que encontrou temáticas extremamente relevantes como em
a resposta para aquela situação. É urgente que o direitos coletivos e difusos, a instituição deveria
modo de atuação do profissional no tribunal seja repensar a sua conduta. Assim, com uma boa
mais sofisticado. O Ministério Público, no âmbito preparação técnica é possível lidar como célula.
dos tribunais, deveria especialmente criar células Há grandes escritórios que atuam na formação de
de atuação para temáticas tão fraturantes como jurisprudência nas áreas de telefonia, energética
essas em que o senhor milita. O trabalho dessa e tributária. Eles não fazem atuação de forma
instituição deve ser estratégico. Por exemplo, divergente, eles criam um pool de atuação, pois
em um caso semelhante ao da Samarco, se não gera o fortalecimento da instituição e do objetivo
houver uma atuação muito profissional entre os da instituição de ser defensor da ordem jurídica,
procuradores para estabelecer uma linha de defesa que é uma das funções mais relevantes. O traço
conjunta que se retroalimente e que a instituição individualista, às vezes, não é positivo, pelo menos,
quer albergar, vai haver um problema muito sério. na minha visão de terceiro externo em relação ao
Do contrário, ao invés de fortalecer o ponto de trabalho que o Ministério Público brilhantemente
vista do Ministério Público, vai enfraquecê-lo. A realiza, mas que, nesse ponto, pode ser mais
dispersão no Judiciário ou no Ministério Público, sofisticado. Obrigado.
sob o argumento da independência e da liberdade,
enfraquece a instituição. Em outros países, é algo ORADORA NÃO IDENTIFICADA: Boa noite,
impensável que um profissional do Judiciário vá professor. A minha pergunta é sobre a modulação
contra um precedente, porque ele não concorda dos efeitos no IAC e no IRDR. Não seria possível
com ele simplesmente. Ele tem que apresentar bons que o juiz de ofício verificasse questões processuais
fundamentos para ser contrário ao entendimento como a legitimidade de parte, pressuposto

316
processual ou a prescrição e a decadência antes ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Boa noite. O
de determinar a suspensão, ainda que o relator agravo de instrumento é, hoje, taxativo. O senhor
tivesse sido omisso? disse que, em alguns casos, é possível fazer uma
exceção por analogia ou mandado de segurança,
PROFESSOR DIERLE NUNES: Depende da decisão só que isso ainda não está pacífico.
que foi tomada pelo relator no procedimento.
Se ele foi omisso, o ideal seria que ele suprisse PROFESSOR DIERLE NUNES: Não há pacificidade
essa omissão. O juiz fazer isso ex officio seria um doutrinária ou jurisprudencial acerca do assunto.
pouco complicado. Até mesmo porque, a título
exemplificativo, o artigo 1.036, do NCPC, diz que, ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Como ficará essa
nas hipóteses de suspensão do processo, por causa situação, principalmente para os advogados, uma
de um recurso intempestivo, por exemplo, a parte vez que a condução disso, no congresso, não deixou
recorrida é quem deve alegar esse vício, e não o abertura mais concreta para os militantes na área?
juiz conhecer ex officio.
PROFESSOR DIERLE NUNES: Na verdade,
PROFESSOR DIERLE NUNES: Por razões de todos nós estamos vivenciando um momento de
economia processual, é até defensável que, em transição, no qual não sabemos muito bem o que
caso de prescrição e decadência, o juiz conheça de vai ser consolidado a médio prazo. E não foi por
ofício. No entanto, é preferível a defesa no sentido da falta de aviso, porque todos esses problemas foram
modulação da própria decisão, que é algo que começa indicados pelos militantes, que eram contra essa
a entrar na pauta dos Tribunais Superiores, como mudança legislativa. Na atualidade, o caminho
STF e STJ, como fonte de preocupação dos relatores. passa pelo sistema de ensaio e erro. É preciso usar
O âmbito de suspensão do código é federativo, e não esses mecanismos de impugnação das decisões
para vermos se conseguimos fazê-lo. Infelizmente,
só dos processos que estão nos tribunais.
não há previsibilidade.

317
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA “MEDIAÇÃO DANIELLE DE GUIMARÃES GERMANO ARLÉ: 
E CONFLITOS CÍVEIS”, PROFERIDA POR Membros e servidores do Ministério Público,
FERNANDA TARTUCE SILVA COMO PARTE estudantes, estagiários e profissionais do Direito,
DO PROJETO “SEGUNDA-FEIRA ÀS 18H” o tempo todo estamos vendo o mundo por meio
REALIZADA EM 31 DE OUTUBRO DE 2016 de paradigmas que, além de influenciarem nossas
percepções, também influenciam as nossas ações
ao nos conscientizarmos de que questioná-los é
processo longo que implica o colapso de toda uma
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Nesta edição o tema
estrutura de ideias. Assim, como operadores do
é Mediação e conflitos cíveis. Convidamos para
Direito, aprendemos a litigar o paradigma dominante
a Mesa de Honra a coordenadora do Centro de da competição, em que um ganha e o outro perde.
Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Como adultos, é preciso que reconheçamos que
Público, promotora de Justiça Danielle de crescemos no mundo ocidental, onde há o conforto
Guimarães Germano Arlé; a professora-advogada da heterocomposição como meio majoritário de
e autora de obras jurídicas, Fernanda Tartuce Silva; resolvermos nossos conflitos. Confiamos em que
o coordenador da área civil da capital, defensor alguém que não seja parte do conflito esteja ali para
público Alexandre Tavares, representante da resolvê-lo, e assim é desde crianças, quando a mãe
defensora pública geral Christiane Neves Procópio decidia a disputa do nosso brinquedo com o irmão,
Malard. Agora ouviremos a coordenadora do a diretora da escola decidia os conflitos surgidos

Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do nas salas de aula. Crescemos para ser pessoas que

Ministério Público, a promotora de Justiça Danielle estão sempre necessitando do juiz como externo,
como heterocompositor, para dizer qual é a melhor
de Guimarães Germano Arlé.
solução para aquele conflito que, como operadores
do Direito, já vimos que nem sempre é satisfatório.

318
É necessário olharmos para nós e sabermos que Paulista de Direito (EPD). Tartuce também é
temos interpretado a garantia constitucional de professora em cursos de especialização na Escola
acesso à justiça, ao judiciário. Não foi isso o que Superior de Advocacia da OAB São Paulo, advogada,
quis o nosso constitucionalista, o povo brasileiro. É medidora, autora de diversas obras jurídicas e,
a partir do reconhecimento desse nosso paradigma em especial, da belíssima Mediação nos conflitos
que poderemos pensar a justiça como valor e o civis, que já se encontra, salvo engano, na terceira
quanto que o Ministério Público, a Defensoria, o edição e está à disposição para aquisição no foyer,
Judiciário, os estudantes de advocacia têm feito caso seja do interesse dos senhores. Um exemplar
para realmente promover esse valor. Conforme será sorteado entre os presentes no final da
William Ury no livro Chegando à paz, “a coexistência nossa conversa. Ao defensor público da Regional
pacífica da humanidade não é mero ideal; ela é Alexandre Tavares, que representa a defensora
uma realidade possível”. A autocomposição está na pública geral, Cristiane Neves Procópio Malard,
nossa herança genética e é hora de resgatá-‑la. O obrigada pelo apoio que a Defensoria Pública tem
amor se manifesta de várias formas e uma delas é dado ao projeto “Segunda-feira às 18h”.
a mediação que, segundo Luís Alberto Warat, é a
introdução do amor no conflito. Esse processo nem MESTRE DE CERIMÔNIAS: Solicitamos que as
por isso é menos técnico, menos sério e menos autoridades da Mesa, à exceção da palestrante
eficaz. Para falar sobre ele recebemos Fernanda Profª Fernanda Tartuce Silva, tomem assento nas
Tartuce, doutora e mestre em Direito Processual cadeiras reservadas no auditório.
pela USP, professora do programa de mestrado
FERNANDA TARTUCE SILVA: A aplicação da
e doutorado da Faculdade Autônoma de Direito,
mediação nos conflitos civis é um tema que pode
Fadisp, professora e coordenadora nos cursos de
fazer diferença. Dou sempre alerta aos estudantes:
especialização em Direito Civil, Processual Civil e
cuidado com a mediação, porque nos encantamos
Processo Civil e Processo do Trabalho na Escola

319
com a mediação. Na interação é muito bom entender existem algumas tecnicalidades que atrapalham a
como a comunicação funciona, e a mediação provê vida das pessoas, especialmente pela demora na
esse olhar, essa sensibilidade. É um procedimento gestão dos conflitos. O poder judiciário, conhecido
de amor escutar o outro, olhar para o outro, reduto de recepção dessas causas, tem muitos
prestar atenção, colocar energia no conflito. O problemas instrumentais, estruturais. Quem vive
mediador traz a energia nova de alguém que está um conflito arrisca ter a angústia de nem saber de
escutando e acha que existe chance. Ele é uma perto ou de longe quando é que se pode obter uma
força de otimismo, de energia, para aquele caso resposta. A mediação, de uma forma diferente,
considerado perdido. Vem com aquele olhar de que otimiza essa percepção. Em uma ou duas reuniões
o que está acontecendo tem futuro. Quem já está já sabemos se haverá ou não proposta, como a
desanimado, cansado, conta com essa energia do conversa está andando. A mediação também vai
mediador. A missão dele demanda investimento, oferecer possibilidade mais concreta e célere de
abertura, mas quem vive experiências de mediação enfrentar os conflitos. Pensemos em alegações de
fica encantado com os efeitos que isso lhe pode violação contratual. Muitos contratos hoje em dia
trazer. Nos últimos 40 anos, ela tem sido resgatada são eletrônicos. Será que estamos amparados por
no Brasil, ou seja, algumas décadas depois de outros um espaço normativo apropriado para isso ou há
países. Mas esse atraso pode nos servir para, pelo muitas lacunas? O Direito acaba ficando para trás,
menos, beber dessas experiências que já foram dada essa movimentação na vida em sociedade.
muitas vezes pavimentadas por outros locais. Em Então, há contratos eletrônicos e, embora se
casos que envolvem posse e propriedade, esse diga que ninguém pode alegar desconhecimento
olhar consensual vem em contraposição à lógica do Direito, muitas pessoas celebram contratos
de julgamento. Segundo a Danielle, estamos verbais, o que pode ser um desafio quando se vai
acostumados a ter uma lógica de julgamento que tentar demonstrar a um terceiro quem tem razão.
parece ser confortável. Só parece. Na verdade, Contratos se protraem no tempo, e violações

320
contratuais são muito recorrentes. Há também autonomia, mas também o buscamos o aconchego,
descumprimento de situações relativas à posse, o ninho, conjugar todas as possibilidades, sabe-se
à copropriedade, à vizinhança. Quem vive em lá como, sem renunciar a nada. Por que renunciar
um edifício ou em uma casa sabe que lidar com se poderemos ter tudo? Ter tudo é o desafio, se
a vizinhança é complicado. Eu, por exemplo, vivo é que podemos. Crises em relações familiares
em um prédio em que compartilho a posse, o são muito recorrentes. Já temos família-mosaico,
condomínio, a propriedade com outras 59 pessoas, constituída por pessoas que estão na sua segunda
titulares de famílias que nunca vi e, muitas vezes, vou ou terceira união com filhos de uniões anteriores,
ficar conhecendo em um momento desagradável, de atuais. A acomodação dessas pequenas peças
de confronto. É muito recorrente haver conflitos do mosaico demanda tempo, paciência, e costuma
nessa interação de pessoas que não se conhecem dar bastante problema. Também nas disputas
e com as quais precisam realmente conviver. Na sucessórias, quando há patrimônio deixado por
era dos direitos em que nos situamos, as pessoas alguém, conta-se o condomínio inicial dos herdeiros
fazem pedidos de indenização porque querem ser e depois a divisão patrimonial. Oscar Wilde já
ressarcidas pelos prejuízos que sentem. Hoje se dizia: “herança é aquilo que o morto deixa para
discute, por exemplo, pedido de indenização pelo que os vivos se matem”. Ele tinha muita razão.
tempo perdido na fila do banco, entre os vários Meu marido, que não é da área jurídica, brinca:
pleitos impactantes na vida dos cidadãos. Vamos “e o testamento é o morto querendo mandar nos
pensar agora em casos de família: o abandono vivos”. Conflitos diferentes envolvem vínculos
afetivo, o pai ou a mãe que deixa de conviver com peculiares, que podem ser episódicos, e vínculos
a filha criança. A indenização, muitas vezes, é uma continuativos. Devem ser tratados da mesma
resposta que se busca para ter aí uma contrapartida forma? O enfrentamento é pela via contenciosa
diante da uma lesão ao patrimônio moral ou ou se buscam saídas pela via consensual? Pela
material de alguém. Queremos ter a liberdade, a via consensual, tudo fica com a via adjudicatória.

321
Sou advogada em São Paulo, especialmente na quer atender a quem está em crise. Só que processo
assistência judiciária, mas a minha advocacia judicial demora e as pessoas acabam se
é atividade mais reduzida, já que também sou acostumando e se reorganizando. Afinal, têm de
professora, coordenadora, escritora, mediadora, viver suas vidas apesar das perdas. Então,
enfim um mosaico de atuações. entramos com uma ação na justiça, conseguimos a
liminar, estamos protegidos. E agora? Na assistência
Chega-me o caso de pessoa que saiu pra comprar judiciária é necessário experiência. Eu a adquiri no
cigarro e nunca mais voltou, mas precisa divorciar- escritório da Associação de Alunos da Faculdade de
se. Alguém ocupa um imóvel que abandonaram e Direito da USP. Brinco que temos de criar o Manual
agora surgiu um herdeiro dizendo que aquele do cliente sumido, do assistido sumido. As pessoas
imóvel realmente era do pai, o que, aliás, não foi buscam uma resposta jurisdicional cujo processo
uma ocupação, foi invasão. Nessas histórias fico- demora tanto que, em certa hora, falam que aquilo
me perguntando qual é a melhor estratégia: não deu certo e, pelo jeito, a Defensoria também
enfrentar pela via contenciosa ou tentar pela via sofre com isso. Elas tocam as suas vidas e nós
consensual? Uma mulher precisa separar-se do continuamos a tocar o processo. Aí a pessoa some,
marido que está ficando violento, qual é a via para o juiz determina que tentemos buscá-la e, quando
preservá-la? Ela precisa de alimentos e fazer frente conseguimos localizá-la, ironiza: “Nossa doutora,
a uma nova vida. O marido dela já está pagando ainda está mexendo com isso? Achei que já tinha
alimentos ou nada paga? Se ele já estiver pagando, acabado, que não era mais relevante”. Então, antes
talvez eu tente uma via consensual para consolidar de iniciar a estratégia de litígio ou de consenso,
esse entendimento entre as partes sem torná-lo durante, no final, depois, é importante perguntar
réu, sem fazê-lo demandado. Pode ser que fique se é isso o que se quer, como se pode conseguir
com raiva mais ainda. Talvez ela precise de uma entregar o resultado. Realmente a pergunta é
medida liminar para ampará-la. O gestor de conflito importante. Quero também destacar uma reflexão:

322
se você não tem uma estratégia, você é parte da explicar isso às pessoas em crise. Mesmo na
estratégia de alguém. Se for judicializar um assistência judiciária, a pessoa, às vezes, está com
conflito, levar ao poder judiciário pela estratégia muita raiva. Ela não tem formação jurídica, mas
contenciosa, o poder judiciário tem uma estratégia procura entender: “doutora, parece que preciso de
consensual, um fomento aos acordos? O poder uma tal de liminar”. Respondi: “Nossa, está sabida.
judiciário tem campanhas como Conciliar é legal? Como assim, liminar?” Ela justificou que falaram
Se o seu cliente ou a sua cliente ou o seu assistido que precisaria pedir e ela veio buscar. Vejam, já
ou a sua assistida não levar a proposta e a outra sabe que vai precisar de uma proteção instantânea
parte levar, há uma diferença no tratamento do e está pensando nessa via litigiosa. Além desse
litigante que leva em relação ao litigante que não caminho, existem outros caminhos, entre os quais
leva, por exemplo, se for o juiz que estiver um canal de conversação. Ao encaminhar uma
conduzindo a conciliação? O olho do juiz brilha pessoa para a conversação, para a negociação,
quando chega alguém com a proposta? O pior é podemos vir a ser objeto de incompreensão, como
que brilha. O seu cliente pode estar certíssimo de se estivéssemos traindo a causa. “Como assim, a
não querer nem cogitar um acordo, dado um doutora conhece a outra parte pra que sugira
histórico de má-fé do outro, mas, naquele acordo com ela?”. Não. Conheço o seu caso e estou
momento, na cena daquele filme, daquela novela, tentando imaginar uma resposta interessante,
quem leva uma proposta demonstra cooperação, ponderei. Na tentativa consensual, vamos lidar
mostra o intuito colaborativo, que está muito na primeiro com a persuasão de nós mesmos sobre se
moda e, especialmente para o poder judiciário, essa é a melhor estratégia. Como gestora do
contempla a redução do acervo, um alívio nesse conflito, advogada, promotora, o que funcionaria,
número milionário de causas. Pensem nisso. Quem segundo a minha primeira lente? Vou economizar
trabalha a pauta consensual atende a alguns uma derrota pública em juízo. É difícil fazer esse
interesses, a algumas estratégias, e é importante teste de realidade com o cliente, e ele fica magoado

323
por não achar advogado suficiente para acreditar cuidadosa com minha fala, opinei: “nossa, mas
na causa dele. Mas é preciso coragem de fazer você fez tudo errado”. Assim, para o cliente, de
esse tipo de abordagem, sustentar isso perante o cara. O meu chefe e ele olharam para mim e
cliente. Quando recém-formada, não tinha reforcei: “e fez mesmo”. E ainda sustentei, aquela
estudado nada de mediação e conciliação. Quem coisa de criança. Dizem que os bêbados, os loucos
aqui estudou mediação e conciliação na faculdade, e as crianças são protegidos das loucuras que
levante o braço para eu ver. Vou imaginar que haja fazem. Não batem a cabeça, não morrem, porque
aqui umas 80 pessoas, só quatro estudaram. E existe uma proteção ali. Eu era um pouco de
talvez pouquinho tempo. Como a maioria, saí da “criança jurídica”. Recém-formada, não tinha ainda
faculdade sem nenhuma condição de entender muita noção. Perguntou-se o que sugiro e propus
qual seria uma tentativa consensual, e mesmo o caminho de negociação. Ele não queria negociar
assim era jogada em audiências de conciliação, nada. Aí ponderei que teríamos de encontrar um
assim como advogados e juízes despreparados caminho jurídico não evidente, e ele disse confiar
para essa tentativa, porque também não foram em que descobriria esse caminho para ele. A bola
treinados para essa negociação. O juiz perguntava: estava comigo e não dormi de noite porque
tem acordo? E eu queria responder: “óbvio que deflagrei naquele erro o caminho da negociação
não, senão estaria na petição; não estaríamos aqui que ele não estava pronto para trilhar. Fiquei com
litigando”. Então, sem condição de conhecer, não a bomba, depois aprendi a não ser tão incisiva. O
se tem noção estratégica. Quando começa a ter importante é entender que sustentar um caminho
experiência, percebem-se caminhos melhores. negocial é a melhor estratégia, mas tem de ter
Ainda recém-formada, num dos primeiros casos coragem, de alguma maneira, e paciência com o
que me vieram à mão, participei de uma reunião tempo das pessoas também. A autonomia da
entre um cliente e o meu chefe. Ingênua, sem vontade é o pilar dos meios consensuais, das
saber que teria de respeitar muito o cliente, ser negociações, das mediações, e respeitar a vontade

324
das pessoas é essencial para que esse caminho repensada. As pessoas não conseguem coexistir,
seja cogitado. Haveria uma segunda chance a interagir. O conflito soa negativo, desconfortável,
alguém que não respeitou sua vontade? Sentem- mas tem a propriedade de tirá-las da zona de
se à vontade para cooperar ou fechar qualquer conforto. Aliás, uma zona de conforto na verdade
interação com ela? Qual é a diretriz que nos ilumina falsa. Ficar no sofá é confortável à saúde? Num
e nos direciona ao tratar conflitos? Quanto à plano imediato, parece bem confortável. Só que se
adequação, o que é mais apropriado nesse ficar muito tempo no sofá, possivelmente a coluna
momento em que faltam recursos? Diante de vai logo travar e terá de ir a um médico, que
controvérsia, a ideia é o operador do Direito recomendará o quê? Exercícios de que não
encaminhar mecanismo adequado para compor gostamos. A coluna está inserida em um corpo
esse impasse, cuja análise não é fácil porque talvez humano que foi feito para o movimento e é preciso
o que achemos apropriado está muito longe de o acolher essa saída da zona de conforto. No meu
ser. É possível que ela mesma faça confusão entre caso, faço ginástica por recomendação médica, o
o que funciona ou não. Precisamos trabalhar essa que é literalmente sair da zona de conforto. O
persuasão conosco e depois com os outros conflito faz a mesma coisa. Aquela situação jurídica
envolvidos na controvérsia. Primeiro se conhece o parece confortável, e os dois fingem que está boa,
conflito e em seguida os meios de abordá-lo. Aqui até que alguém comente: “vamos parar de brincar,
vale uma associação às situações ligadas à doença. falemos sério agora, não está funcionando”.
Imaginem comparar conflito a uma doença. Doença Conhecer o conflito é importante, e isso é uma
é uma disfunção na saúde. É sinal de que o corpo falha nas nossas faculdades de Direito. Alguém
requer equilíbrio, de que alguma coisa está estudou a teoria e as causas do conflito na
funcionando mal. O conflito é uma disfunção na faculdade? É a mesma coisa que alguém que fez
interação humana, um sinal de que a interação não Medicina sem estudar as doenças, falar do
está funcionando e que, portanto, precisa ser tratamento para uma enfermidade sem saber qual

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é o problema que a originou. Cá entre nós, a ORADORA NÃO IDENTIFICADA: Inépcia...
medicina parece não buscar muito a causa. É
normal o médico apontar: “Não tem causa, mas FERNANDA TARTUCE SILVA: Inépcia. A
vou-lhe dar um tratamento que abafa o sintoma”. contestação lhe destrói a técnica, destrói-lhe o
Fico um pouco decepcionada: “Poxa, como assim?” mérito, traz documentos novos. Nunca se esqueça
O médico defende que vários fatores podem ter da Lei de Murphy: “nada é tão ruim que não possa
concorrido para a dor lombar. “Mas tem cura?”, piorar”. Passou vergonha na contestação? Aguarde
quis saber. “Não, a vida inteira você vai ter que a audiência de instrução e o julgamento, as
fazer exercício, tomar uma série de cuidados”. testemunhas, o depoimento de quem se emociona
Conhecer a causa é algo delicado, que envolve na presença do juiz, fala coisas nunca antes
análise mais completa. Quando lidamos com cogitadas. O advogado quer enfiar-se debaixo da
conflito, nada decorre de um fator só. Tudo é mesa. Também não sabia, Excelência. Então, é
multifatorial. Por mais que se diga “não, a outra muito interessante receber trechos que as pessoas
pessoa é louca”, essa é uma boa resposta porque acharam ser bons de contar para os advogados
as pessoas adoram ser simplistas. Do além se montarem esse quebra-cabeça mesmo, com as
inventou essa história. Ao judicializar uma questão, peças mais cabulosas, na presença de outras
faz-se aquela petição inicial e vem aquele orgulho pessoas. É muito importante que a pessoa não
de um projeto perfeito, de que o juiz vai julgar guarde cartas na manga, seja sincera, mostre a
totalmente procedente, vai copiar o que escrevi realidade para eu poder traçar uma estratégia
aqui nas bem lançadas linhas. O que acontece quanto ao melhor meio de abordar. Conhecer o
quando vem a contestação? Lembram aquela conflito envolve uma escuta que nós, às vezes,
música: “tristeza não tem fim, felicidade sim”. achamos até exagerada. Quando existia a rede
Fala-se o quê? Destruiu-se a petição inicial, havia social Orkut, o Orkut revelava a idade. Acabou o
documentos que a pessoa não lhe tinha contado. Orkut e agora é o Facebook, que é a principal. No

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Orkut, uma comunidade dizia: “advogado não é pauta, descomprometido de um script. Na sessão
psicólogo; não aguento mais; meus clientes acham consensual, fiquei chocada, mas quis escutar
que sou psicólogo e derramam tudo aquilo”. O porque realmente aprendi muito sobre o meu
advogado não é psicólogo, mas ele também precisa cliente ali. Não havia feito a petição inicial e isso
da escuta como ferramenta para conseguir lidar mudou o meu encaminhamento contencioso
com os conflitos. Aliás, não escolhemos só a justiça. porque obtive as respostas do meu próprio cliente.
Escolhemos lidar com o conflito de pessoas em Resta tentar entender ao máximo os vários fatores
crise. Escutar é muito importante para ter clareza que impactaram nessa situação controvertida, o
das várias nuances do conflito. O que a pessoa que gerou diversas disputas ou tem uma disputa
está dizendo pode não ser exatamente tudo. Nesse principal agora, conhecer os meios de abordar o
ponto dou testemunho de que, ao atuar como conflito, mudar paradigmas. Muita gente não
advogada na mediação, conhecer o cliente na escolhe os meios consensuais por falta de
sessão consensual impressiona porque no ângulo treinamento, por desconhecer os mecanismos.
do advogado se forma uma petição inicial ou uma Mas como funciona uma mediação? Vai depender
estratégia jurídica, fazem-se algumas perguntas da interação. Como mediadora, percebo que tem
do script. No caso de indenização, qual é o nexo de haver um pouco de coragem das pessoas
causal, o dano? Tenta-se, pois, entender como envolvidas. O que vai acontecer na mediação se
encaixar os elementos na responsabilidade civil. O compara a um capítulo inédito de novela.
mediador começa a pensar quando aconteceu essa Dependendo da pergunta e da resposta podem sair
interação, o risco de dar errado. A sinceridade que situações inusitadas. Aprendi em um núcleo
se traz na mediação é muito pedagógica. Talvez no avançado de conciliação de Manaus, onde o Gildo é
meu script não tivesse a clareza de perguntar. um juiz do IBDfan, a ideia de acordos provisórios
Conhece-se melhor o conflito quando escutamos nos núcleos de conciliação. Existe a ilusão de que
as pessoas num lugar descomprometido de uma a guarda unilateral é o melhor dos mundos e de

327
que a guarda compartilhada não funciona. Aí papel consiste em pensar com ele o que se quer,
querem a guarda unilateral e fazem um test drive qual é a fonte da resistência, por que o outro não
de duas guardas unilaterais simultâneas o que, deixa. “Ah, a outra pessoa é louca e não deixa...”
praticamente, seria uma guarda compartilhada Não existem respostas simples para casos
oferecendo espaço dividido. Muitas vezes, ambos complexos. “Não, até a semana passada deixava,
eram supercontra a guarda unilateral. Se a criança agora não deixa mais”. Aconteceu nada a semana
adoece é problema seu, ao passo que, quando se passada? “Deixei a criança sozinha quinze minutos
está compartilhando, a responsabilidade é dos enquanto fui ali rapidinho. Agora, ela diz não
dois. Muitos test drives ajudam a tirar um pouco as confiar mais em mim. Veja só que louca”. Louca
ilusões teóricas do que funciona ou não, os uma criança de dois anos sozinha quinze minutos?
preconceitos que podem ser tão danosos à ideia de A loucura, absolutamente, de quem é? Cabe tentar
tentar novas possibilidades. Nesse núcleo, por entender a força da resistência, o que aconteceu
exemplo, o teste será um mês de guarda no caminho e gerou esse resultado. As razões são
compartilhada, e já fica agendada a próxima sessão puramente objetivas e jurídicas? Na verdade,
de conciliação ou de mediação. É muito bom viver pouca coisa é jurídica, objetiva. A maior parte das
com seus clientes, seus assistidos, a postura situações é subjetiva, desrespeitosa, de
prática da mediação, a qual tem na base teórica 13 intolerância, até porque as pessoas conhecem
ou 14 princípios, técnicas variadas. Na conversação pouco o Direito. Pela nossa experiência, nem
discute-se o mérito do tema, faz-se proposta. Sem mesmo os dramaturgos e autores de novela
muita sustentação oral, tecnicalidade, a mediação conhecem o Direito, que dirá as pessoas normais.
tem grande chance de concretizar algumas pautas Elas chegam com uma história e querem ser
de uma forma até expedita. O conflito precisa ser atendidas no que entendem seus direitos. Às vezes,
diagnosticado com atenção. O próprio indivíduo até existe o direito e é preciso verificar como
que está em conflito deve tentar entender. O nosso encaminhar o que ensejou a violação. Em uma

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visão retrospectiva, quando começou a virar um anos. Existem teses que discutem usucapião entre
problema? É muito comum tolerar e aceitar alguns condôminos. Se os outros condôminos abandonaram
pontos. Há pessoas que acham que têm direito e o imóvel, o imóvel é daquele que ali ficou. Contudo,
não têm. Numa família em que uma filha ou uma ele não pode alegar usucapião. Afinal, ele ficou em
neta cuida da pessoa idosa, o papel de cuidadora é confiança ou ficou porque alguém tinha abandonado
muito pesado porque muitas vezes precisa anular e ele é um ocupante? Percebem como é delicado?
aspectos da vida dela para cuidar efetivamente de Que resposta faz sentido nessa família? Qual é a
quem passa por momentos ruins. É um alívio para razão? “Sempre tivemos a intenção de deixar para
a família quando há quem assuma essa figura, não ela mesmo. Mas quando fomos regularizar,
é verdade? Em vez de mobilizar toda a rede para aconteceu uma discussão”. O que os envolvidos
alternar quem vai ficar com o parente doente, esse desejam para o futuro? Numa visão prospectiva,
familiar assume gratuitamente devotamento a não só por bondade, mas, às vezes, por interesse
esse papel. E quando falece? Muitas vezes acaba mesmo, se ela já se revelou tão boa cuidadora em
ficando no imóvel a irmã que cuidou, que abriu relação a alguns parentes, ela pode ser vista como
mão da carreira e da situação de vantagem, sob o um recurso valioso adiante também em outras
argumento: “não, o imóvel agora é meu; eu cuidei oportunidades. E nem sempre as pessoas querem
da mamãe até morrer”. Não tem nada a ver o fato romper o relacionamento se estão tocando bem
de ter cuidado com a propriedade do imóvel. Ela é suas vidas. Pode ser interessante contar com
condômina, há um inventário. Juridicamente, não aquela pessoa no seu cenário de futuro. Então, é
existe uma contrapartida no Direito de Propriedade preciso pensar no que funciona ou não, qual o
em relação àquele cuidado, àquele serviço, se é ponto de desconexão, de dissonância, e daqui para
que possamos nominar assim, prestado como frente o que se quer fazer para construir um
cuidadora. Existe é uma gratidão moral daqueles caminho mais favorável. Feito esse questionamento,
que foram deixando aquela pessoa ficar lá por podemos encontrar quem não saiba o que quer no

329
futuro porque está tão impactado pelas revelações Essa bipolaridade da vida social, em que todo
e histórias do passado que talvez não esteja mundo quer tudo, deprime-se com tudo, fica alegre
preparado. Por isso, é preciso ter paciência com com tudo, lidar com a diferença pode ser desafiador.
essas percepções e descobertas das possíveis Entre casais é mais complexo porque é muito
causas para o conflito e esse monte de problema, comum buscar-se a complementaridade. Uma
de controvérsia, de intolerância e desrespeito às pessoa agitada e que fala muito rápido prefere
diferenças. E vejam como há elementos aptos a pegar alguém calmo, sereno, pacato, que ajude a
gerar diferenças: crença, valor, religião, descansar no fim de semana. Eu, por exemplo,
comportamento, interesse, objetivo, cultura, falei ao meu marido: “leve o laptop para trabalhar
opinião, educação e sentimentos. Vocês conhecem à noite”. Ele ponderou que iria descansar depois de
duas pessoas que comungam esses elementos de ficar o dia inteiro viajando, dando-me uma
forma idêntica? Não há quem comungue todos contrapartida que não tenho e, de repente,
esses elementos, de acordo com a ciência. provoco: “Nossa, mas você é calmo, muito pacato.
Podemos, por exemplo, pegar dois irmãos gêmeos, Que ritmo é esse, hein?” Exatamente isso faz a
um terá alimentos com glúten, outro sem. Um faz diferença, o que é interessante, mas de vez em
dieta, coitado, e fica mais estressado do que o sem quando dá uma irritada porque é muito diferente.
dieta, que tem engordado mais. Irmãos gêmeos, Então, lidar com a diferença e respeitá-la é algo
que seriam modelos genéticos idênticos, têm, é que precisamos entender como parte dessa
óbvio, reações e comportamentos diferentes interação. Buscamos, entre outras coisas, poder,
também. A questão é que todo mundo querer ser liberdade, pertencimento, segurança. Muitas
respeitado na sua diferença, mas também quer ser vezes, o problema não é o outro. O outro continua
homogêneo e aceito pelo outro. Quando alguém sendo como é. E há até uma brincadeira sobre isso
faz uma coisa que diverge muito, cabe pensar: em relação aos casais: a mulher casa querendo
“Estou errado ou essa pessoa está fora da curva?”. que o homem mude, e o homem casa querendo

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que a mulher não mude. Eis a diferença: a mulher porque ele não lhe presta atenção. Embora ela
sempre evolui, gente. É maravilhosa, está sempre tenha uma certa razão, a comunicação não pode
indo adiante; o homem não. Mais estável, ele fica ser objeto de desistência. Sem comunicação não
ali mais tranquilo. Tal dissonância pode gerar há relação, e é importante que se comunique.
problemas, mas não precisa ser objeto de conflito. Quem trabalha mediação sabe que a pior mediação
Os dois podem aprender nesses ritmos diferentes não é aquela em que as pessoas discutem, brigam.
e nessas potencialidades diferentes. Depende Qual é a pior mediação? É a do silêncio. Ninguém
muito de como vão encarar e realmente lidar com fala nada, não dá material: é, não, sim, pois é, é o
essas dissonâncias. Cuidado, porém, com os que está escrito, é o que temos. Se as pessoas
desgastes das interações, que podem comprometer ainda discutem, falam, engajam-se na comunicação,
fatores relevantes: comunicação, confiabilidade e há uma chance. O problema é quando chegam
compreensão entre as pessoas ou os representantes, rompidas na mediação, acham que não vale mais
se forem empresas. O dia a dia é muito atroz a pena manifestar-se porque o outro não é
quando se pensa na vida em condomínio, na vida confiável. Se paro de falar, o outro não sabe o que
em família. A vida não é o que aparece no Facebook: quero, eu não sei o que ele quer. Ninguém sabe o
todo mundo na nuvem cor-de-rosa. A interação é que o calado quer. Pressuponho que o outro está
desafiadora quando se tenta comunicar com de má-fé porque se ele não me está dizendo, ele
alguém que não lhe dá atenção. Se for um homem, esconde alguma coisa. E se está escondendo é
não presta atenção e fica focado na caixa do nada. porque aprontou alguma. Chego à mesa acreditando
A mulher começa a falar e ele medita no meio do na má-fé do outro. O conflito faz parte dessas
nada. A mulher não tem 25 mil pautas simultâneas interações disfuncionais. Compreender que há
acontecendo. Se ele movimenta a sobrancelha, outros pontos de vista é o início da sabedoria. Por
significa alguma coisa. Muitas vezes, a falta de que isso não aparece muito na mediação? Porque
atenção gera a ideia nela de não falar mais nada um contratante diz seis, mas pode ser seis mil,

331
seis milhões. O valor envolvido não muda muito. O pressupor nada porque não conhecemos as
que diz que é seis, do ângulo de onde enxerga, margens dessas pessoas. O mediador é um bom
tem certeza de que o que é devido é seis. Se o perguntador. Quem? Onde? Como? Por quê? Ele
outro quer nove, está querendo se locupletar. É pode, no bom sentido, ser ignorante nas pautas,
ilícito, portanto. Não é possível que ele queira mas perguntar na frente do interlocutor é uma
nove. Ele quer enriquecer-se à minha custa. chance de esclarecimento. Parece que tudo sabem,
Quando o mediador pergunta: “Por que seis? De mas, na verdade, muitas coisas não sabem. Então,
onde tirou esse seis?”. É uma indagação que parece a chance de esclarecer que a mediação provê é
óbvia, mas ao explicar ao outro o porquê, ele fica muito forte. Também existem controvérsias se a
um pouco chocado porque para ele é nove. Percebe- via judicial é a melhor opção para enfrentar os
se que ambos não estão de má-fé, embora aquilo conflitos e sob quais critérios vou decidir os vários
muitas vezes gere certo choque, um momento de meios de solucioná-los. Em alguns casos, pode ser
inflexão nas pessoas. Nossa, o outro não está de a via judicial. Em outros, um caminho negocial. No
má-fé. Logo, tem uma história para contar. Por caso de uma cliente que vem contar uma história,
isso é interessante a mediação. Pessoas estavam o que pode funcionar melhor? Vou precisar avaliar,
trocando notificações havia dois anos, venenosas, por exemplo, se os custos financeiros são
dizendo que iam tomar medidas cabíveis. Escutei impactantes entre os elementos que podem fazer
várias vezes na mediação: “Nossa, mas precisava a diferença. Num contrato de R$ 100 milhões entre
a gente estar aqui para explicar um para o outro duas empresas, pagar R$ 500 mil em uma
por que é seis e por que é nove? Se me chamasse arbitragem não é um problema, mas o custo
ao seu escritório eu lhe explicaria por que era seis. financeiro da demora dessa decisão pode ser
Por que não me contou que era nove?”. Porque eles impactante. A obra ficar parada com R$ 100 mil
não se comunicavam e estavam pressupondo a pelo maquinário alugado pode ser considerado
má-fé recíproca. Aprendemos na mediação nunca determinante em um certo ponto. Por isso, muitos

332
empresários preferem fazer rodadas de mediação mostrar-se, o que é importante para o outro
para tentar encontrar logo um final para a história. entender o ângulo de percepção. As empresas
Celeridade é o que todo mundo quer. Ninguém buscam a confidencialidade sem criar precedentes,
consegue sustentar por muito tempo um conflito, mas querem manter suas marcas ou contratos de
que é desgastante, a não ser para aquele que quer franquia. Imaginemos um engenheiro cuja carreira
explorar as mazelas do poder judiciário. Este, não esteja indo bem. Preciso dar exemplo no ramo
muitas vezes, beneficia-se disso. O cliente se da engenharia, porque no Direito não há esse
considera credor, considera-se correto, e cabe a problema, já que nunca abandonaríamos a área
nós formular um convite para vir para a mediação. jurídica para ser empresários. Não, estamos aqui
“Ele não vem, doutora”, antecipa. Aí argumento tranquilos na melhor das carreiras. O coitado do
que, se ele não vier, teremos a informação de que engenheiro pensa em uma franquia, procura um
não veio, e na justiça poderemos dizer: “Excelência, advogado, claro, e estamos aí sempre para verificar
nós chamamos para uma mediação extrajudicial e se a franquia tem problemas judiciais. Fazemos
ele não veio”. Mas a minha impressão é que em uma pesquisa e não há nenhuma ação judicial
90% dos casos a outra pessoa vem, o que já contra a franqueadora. Que beleza! O franqueador
mostra, muitas vezes, a intenção de ela resolver o está protegendo a sua marca, sobre a qual
problema. Caso não quisesse vir, ela simplesmente possivelmente existem cláusulas contratuais e, se
pediria para reagendar ou diria que só faria isso houver algum conflito, temos ótimas câmeras de
em uma outra oportunidade. O mais comum é que mediação e arbitragem. Ah, o sigilo pode ser muito
venha. Todo mundo quer ter voz, falar de si. interessante para as pessoas não se exporem. Já o
Percebe-se isso. Muitas conversas, contudo, são poder judiciário, é público por natureza e,
verdadeiros conjuntos de monólogos: “Estive lá obviamente, isso vai impactar. Um dos primeiros
outro dia”; / “Também estive”. Todo mundo quer casos que mediei foi o da Air France, o maior
falar, e na mediação é ótimo porque a pessoa vai desastre aéreo até hoje, ocorrido no Brasil em

333
2009, no qual faleceram 228 pessoas, um processo de indenização. Então, o sigilo é um ponto
de mediação organizado pelo Ministério da Justiça. importante. Se as pessoas são parceiras na vida,
No caso da TAM, a iniciativa de mediação entre os porque tiveram filho ou vínculo continuidade,
familiares e as empresas seguradoras na precisarão ter essa comunicação ou um contrato
indenização proposta, a partir dos critérios favorável às duas, o qual não pode ser rompido
geralmente reconhecidos na jurisprudência do STJ, agora. E os meios consensuais têm lá uma lógica
partiu de um design do sistema de solução de litigiosa que afasta as pessoas, enquanto os
disputas com Diego Faleck, que havia ido estudar processos construtivos são melhores para manter
em Harvard depois de ter entrado no Ministério da relacionamentos. A flexibilidade procedimental é
Justiça. O que acontecia a cada família era sigiloso, muito alta nos meios extrajudiciais porque pode
ao passo que no poder judiciário era exposto promover sessões, combinar o tempo de
porque, como era um caso midiático, a assessoria interrupção, suspensão, buscar mais elementos,
de imprensa do Tribunal gostava que os jornalistas subsídios. Se eu sair da mediação, meu título
dessem destaque. Certa vez, um familiar olhou a executivo vai judiciar ou extrajudiciar. No poder
proposta da Câmara e achou que os parâmetros do judiciário, o título já é judicial e vai ter uma adesão
STJ aplicados não lhe eram favoráveis e entrou na maior. Projetos interessantes contam com índice
justiça. Vi no sítio eletrônico do TJ que ele ganhou de 92% a 100% de cumprimento espontâneo dos
metade do que lhe foi proposto na Câmara, mas acordos celebrados. No caso da Air France, dos 19
recorreria para tentar melhorar. Comentei: casos, nenhum deles precisou ser judicializado. A
“coitado, além de ganhar metade, ainda ficou transferência de valores para a conta dos familiares
exposto quanto ele ainda estaria ganhando”. Nesse foi imediatamente depois da assinatura do acordo.
caso do desastre da TAM em São Paulo, contaram Se, porém, a parte tem receio desse cumprimento
que houve tentativa de sequestro de familiares espontâneo, pode-se combinar se vai ser título
porque o Tribunal de Justiça teria divulgado o valor executivo judicial ou extrajudicial. Na mediação, o

334
advogado vai dar a informação jurídica de como negociação. A negociação é a tratativa direta e, se
pode funcionar, sem custos e desgastes emocionais as pessoas conseguem negociar diretamente, sem
na solução. Outro dia, fui dar uma aula no interior envolver mais ninguém, é mais barato. Só que a
do estado de São Paulo. Lá um advogado questionou comunicação falha por ser ruim gera rompimentos
o quanto custa todo esse sistema de justiça. Já no na conversa, e contar com mediador para facilitar
segundo casamento, ele se arrependera de ter costuma ser considerado bem menos custoso. O
passado por um divórcio litigioso em que tiveram poder judiciário, nesse aspecto, dá uma grande
de fazer estudo psicossocial para discussão da força. A mediação judicial nos centros judiciários
guarda. Ele se lembrou da imagem de quando hoje é totalmente gratuita. Há inclusive mediações
chegou ao Fórum e viu os filhinhos sentados no comunitárias, de uma facilitação até exagerada.
corredor do Fórum esperando para serem ouvidos Deveriam cobrar, ter uma contrapartida. Teria de
pela psicóloga: “Poxa, eu poderia ter poupado ter um critério até para poder pagar os mediadores
meus filhos desse desgaste emocional. Se para e os conciliadores, que precisam ser remunerados
mim é uma coisa memorável, imagine para essas por seu árduo serviço.Têm que repensar um pouco
crianças”. Às vezes, o momento do processo judicial o desenho dessa gratuidade porque mesmo que se
faz refletir: “O meu filho vai ter de ir ao Fórum?”. tenha de pagar, como no caso das Câmaras de
Vamos conversar, tentar poupar as crianças da Mediação e Arbitragem, é muito barata. Enquanto
bagunça dos adultos. É um fator que se precisa uma arbitragem fica em R$ 500 mil, uma mediação
calibrar para ser considerado na hora de cumprir. vai custar no máximo R$ 20 mil, o que é muito
Quais os principais meios consensuais em relação barato perto dos outros custos. Mais rápida, por
ao que se quer quando buscamos negociação, causa do princípio da oralidade, conversas,
mediação, conciliação? A mediação, por ser uma esclarecimentos, propostas, depois de duas ou três
conversação facilitada por uma pessoa imparcial, sessões por semana já se sabe se haverá avanço,
costuma ser menos custosa. Só não o é que a o que assegura também a privacidade, a

335
confidencialidade, sem medo de que o que disser perceber, ao passo que outros são meio técnicos. A
seja usado contra. Escutar representa algo de Air France, mesmo tendo uma seguradora, pode
respeito, e mantém o relacionamento porque pode querer estabelecer precedentes, querer justificação,
haver saídas honrosas para as pessoas que arriscar-se por máxima vantagem de benefícios, a
perseguem esses objetivos. Pode haver outros fim de resolver os problemas de uma forma
objetivos? Sim, quando parte para os meios expedita, com privacidade, e manter
adjudicatórios, os meios impositivos. Na relacionamento. Por incrível que pareça, num dos
adjudicação por arbitragem ou por solução judicial casos em que atuei, uma família revelou que iria
é preciso precedentes para uma resposta pública continuar voando pela Air France porque entendeu
àquela pauta, uma declaração em relação àquilo. com o processo que aquilo foi um desastre também
Uma aluna contestou dizendo que às vezes é o para a companhia, que mostrou boa-fé ao envidar
contrário: a pessoa não quer precedentes, não esforços para não acontecer de novo, mas, se
quer uma declaração pública. Isso aí vai entrar acontecesse, a família iria ter um canal de conversa.
como um incentivo aos meios consensuais de que Fiquei chocada. Nunca imaginei pessoas que têm
não se quer um precedente, embora precise de um esses objetivos. Busca-se uma solução adjudicatória
para obter a justificação a um direito novo. Para a para uns objetivos que para nós nem são tão
empresa não é ainda um dano indenizável, mas importantes e deixam-se de lado outras finalidades.
quando o juiz reconhece diz: “Excelência, agora É bom pensar estrategicamente com a cliente. O
precisamos ter aqui. Já houve decisões a respeito arriscar por máxima vantagem também pode
e vamos ter que rever a nossa pauta”. Portanto, alterar. Em alguns casos de divórcio, por exemplo,
pode ser que se precise de precedente, de obter a raiva pelo final da união, o desaforo, a situação
justificação, arriscar-se por máxima vantagem absurda passada, leva comunheiras universais a
usando o poder judiciário nesse cenário. Existem querer arriscar a máxima vantagem, a almejar
objetivos mais naturais, intuitivos, fáceis de metade do patrimônio. Mas o tempo passa e as

336
pessoas se reorganizam e dali a um tempo aquilo empresa também não. Quero a minha parte em
pode não fazer muito sentido. Um colega advogado dinheiro”. Surpreso, indagou se reformularia o
recebeu uma ação de divórcio que envolvia dois trabalho e ela respondeu: “Claro, por favor, não
professores de Direito. Se fosse escolher um quero essa fazenda, pelo amor de Deus”. Com a
exemplo de litigantes complicados, citaria esse. E pauta atualizada, ele foi procurar o advogado do
era divórcio de quase dois anos, que se complicou outro lado e, como os dois advogados têm uma
porque um dos cônjuges tinha uma empresa que boa relação, facilitou-se o canal de comunicação.
se fechou porque estava com problema, enquanto Em consulta ao cliente, constataram-se justamente
o outro tinha herdado uma fazenda em outro local. os dois pontos nevrálgicos: a fazenda herdada,
Na fase das avaliações, o colega recebeu o caso da que tinha um valor afetivo por ter sido do pai dele,
quase ex-esposa, com a qual comentou: “li com e a empresa em situação delicada. Enfim,
atenção, mas agora quero escutar de você o que conseguiram desenhar um acordo satisfatório.
exatamente a contempla hoje, já que o processo já Vejam: passaram-se dois anos e as cartas teriam
tem quase dois anos”. Ela confessou que não mudado, mas houve a clareza de atualizar. A
pensara muito nisso e demonstrou desinteresse no máxima vantagem cogitada no início não é um
processo. Professora de Direito, e sem muita incentivo atual. Outra distinção que se aprende a
dimensão do que estava escrito possivelmente na fazer nos meios consensuais é a postura externada
época da separação, impactada, teria dito ao pela pessoa e o conjunto de desejos e preocupações
advogado: “peça tudo e depois eu vejo o que faço”. subjacentes. Alguém diz que quer alguma coisa,
Assim procedeu ele e pediu tudo: comunheira mas nem sempre isso se alinha ao que realmente
universal, metade da fazenda, metade da empresa, deseja, ao que lhe interessa. Muitas vezes, é
todo o patrimônio dividido. A fase agora é das preciso desconstruir um discurso de quer isso, quer
avaliações. Ela disse: “Pelo amor de Deus, tenho aquilo. Sempre olho o que está por trás do que
horror a essa fazenda. Não quero, é uma cilada. A efetivamente podem estar querendo. Podem

337
querer segurança, bem‑estar econômico, melhor escolha deve focar atenção mais no futuro
sentimento de pertença, reconhecimento, controle do que no passado. O que se quer daqui para a
sobre a própria vida, ou tudo isso ao mesmo tempo. frente pavimentará um resultado melhor. Na
Já ouviram a frase famosa de que não existe mediação, pergunta-se o que se quer fazer para
investigação de paternidade de pai pobre? O bem- frente. O poder judiciário não faz essa pergunta, e
estar econômico vai estar por trás até um pouco, olha para trás: quem foi o culpado, o responsável?
mas recebemos assistidos que falam querer pensão Vou apurar quem foi o responsável, vou dar
de R$ 150. Será que entendi mal? “Sei que ele não consequência. Olhar para a frente é algo de gestão
pode pagar. Ele tem outros cinco filhos, é carroceiro. de conflitos, de negociação, e a mediação acolhe
Nem isso aí vai dar para pagar, doutora. Mas ele bem porque faz sentido construir um caminho a
vai ajudar um pouco o menino, uns R$ 50. Dá até longo prazo e não pontuado apenas no passado. As
vergonha de escrever R$ 50, não? Às vezes, pede- pessoas pararam de expressar emoções. No litígio,
se meio salário mínimo, mas o juiz fixa provisórios quando se fala que vamos ter audiência de instrução
de um salário mínimo, coitado. Nem queria pedir e vamos ter de escutar as testemunhas, a cliente
tudo isso, imagine. O juiz fixou”. Mas o que está pergunta: “Mas, doutora, vou poder falar com o
por trás, muitas vezes, dessas demandas não é o juiz?”. Na audiência de instrução, só se a outra
bem-estar econômico. Qual desses valores está parte pedir o depoimento pessoal. Se não pedir o
presente na investigação de paternidade contra o depoimento pessoal, não vai falar. “Ah, como assim
pai pobre? Pertencimento a uma família, não vou falar?” A sua petição inicial já é uma fala,
reconhecimento do seu status, não ter pai argumento. Ela insiste em que gostaria muito de
desconhecido, a segurança de estar na rede de falar, e pondero que ela não pode pedir o seu
uma família. Junto com o pai ele tem irmãos, próprio depoimento. Isso também se sente na
primos, avós. Tudo isso conta. Mauro Capelletti, conciliação quando, às vezes, a pessoa faz um
que é um grande jurista italiano, considera que a discurso para explicar ao juiz. Estive em São Luís,

338
Maranhão, na Escola de Magistratura. Lá uma precisam ser enfrentados, muitas vezes, na
magistrada me contou que era juíza do Juizado mediação. A partir do momento em que se procura
Especial. Lá apareceu um problema de consumo. A um advogado, ele tem um espaço, um papel, uma
empresa fez uma proposta, a outra parte aceitou. pauta, e isso faz parte do conflito. Numa mediação,
“Aceito sim, Excelência”./ “Ah, então tá bom. fiz uma pergunta. O advogado respondeu uma
Vamos encerrar”. /”Não, Excelência, por favor. Faz coisa e o cliente outra, na frente da outra parte.
dois meses que estou preparando lhe contar o que Pedi uma pausa e sugeri que houvesse uma reunião
passei, como me senti. Até aceito essa proposta. individual. Foi uma mediação dois em um: mediação
Mas a senhora pode me escutar?”. Ela a escutou. master e mediação micro. Cliente e advogado
Essa necessidade de expressar emoções pode tinham uma dissonância e precisariam de um
estar na base do conflito. E as diferentes maneiras espaço reservado para falar sobre isso. Nem todo
de ver os fatos e o direito vão ser expressas, muitas mundo combina todos os passos consensuais ou
vezes, quando as pessoas têm a chance de perceber litigiosos do conflito. Na síndrome do grande
o que impactou e como. Há também outros prêmio, a pessoa pode estar muito confiante em
impedimentos comuns, como pressões externas, que o prêmio dela vai ser o primeiro caso de um R$
interdependência. Numa empresa francesa, o 1 milhão de dano moral por negativação indevida e
gerente no Brasil quis fazer uma surpresa para o é muito otimista: leu O segredo, aquele livro do
diretor executivo (CEO) da França: fez oito sessões pensamento positivo. Resolveu aplicar justo nesse
de mediação e levou o contrato prontinho para ele caso um teste de realidade. A parte não quer
assinar. O CEO protestou. “Está louco? Quem aceitar e chega como impedimento, barreira
autorizou a negociar? Não assino coisa alguma, cognitiva, cultural, de superar esse brocardo
está acabada essa conversa”. Por falta de popular. Antes o mau acordo do que um processo
comunicação prévia, interdependência, pressão demorado na justiça. Isso vem de uma cultura
externa, impactou-se o conflito. Tais problemas brasileira muito ruim de maus acordos, de

339
‘pseudoconciliações’, a que carinhosamente chamo efeito muito melhor. Casos pontuais, mas bem
de situações de coersiliações, situações de feitos, vão ensejar mais elementos pedagógicos do
consenso forjado, intimidação, constrangimento, que uma massa malconduzida, como se vê por aí.
ameaça, advogados traumatizados. Quem de nós No sistema de justiça, numa comparação entre as
nunca participou de uma sessão em que, para se técnicas, na contenciosa vai ter um controle por
livrar ali daquela situação constrangedora, o cliente terceiros e na não contenciosa as partes cooperam.
fala: “Assine qualquer coisa e vamos sair daqui. No caso daquele desastre aéreo que tinha uma
Estou com medo do juiz, do promotor”. Em acordo seguradora... Alguém aqui trabalha em seguradora?
judicial de alimentos, o que acontece? Medo da Seguradora não costuma fazer acordos, cumprir
fala do juiz, da fala do promotor, do próprio ou entregar o bem da vida. A própria seguradora
advogado, de que se não assinar vai sair preso da estar na mesa fazendo propostas, ajudando a
audiência. Quer dizer, faz um acordo. Acordo pensar em outros documentos, causava espécie,
sustentável ou uma execução, uma revisional, uma mas mostrou que também existe um espaço para
ação anulatória? Na boca do juiz, do conciliador, do a cooperação dos litigantes, dependendo do
mediador, mostra uma tentativa de persuasão a contexto, do conflito e do engajamento que vão
partir das mazelas da justiça, o que está superado. mostrar. Espero que a mediação desperte
Nenhum curso sério de mediação e conciliação no consciências e consiga, efetivamente, compor os
mundo fala mal da justiça. Fatores como demora e conflitos cíveis por aí.
insistências para acordo acabam por ensejar
descumprimento de obrigações, o que gera mais MESTRE DE CERIMÔNIAS: O Ministério Público
litígios onde poderia haver maior chance de adesão reafirma a sua missão de promover a justiça, servir
espontânea. Então, precisamos repensar também à sociedade e defender a democracia.
as estratégias de que conciliar a todo custo é legal.
Uma filtragem adequada de causas vai ter um

340
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: “A ÁRVORE telepresencialmente, muito boa noite. Aos
COMO TEMA PARA O NOSSO FUTURO, membros, aos servidores, aos estagiários do
PROPOSTAS PARA UM PROJETO DE Ministério Público, aos estudantes de direito e
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL aos demais convidados, é uma honra, para o
INTEGRAL PARA A REGIÃO DOS CIRCUITOS Ministério Público de Minas Gerais, tê-los aqui,
DAS ÁGUAS MINAS GERAIS”, PROFERIDA em nossa presença hoje. Esta é mais uma edição
POR ERNST ZÜRCHER E PETER SCHMOCKER,
do nosso projeto Segunda-feira, às 18 horas,
PARTE DO “PROJETO SEGUNDA-FEIRA, ÀS
cuja finalidade é exatamente a de proporcionar
18H” REALIZADA EM 07 DE NOVEMBRO DE
o debate de questões tão urgentes como essa,
2016
por exemplo, da água, que hoje será debatida
e o intercâmbio entre todas as instituições que
podem e devem fazer a diferença na mudança

MESTRE DE CERIMÔNIAS: Nessa edição, teremos do nosso mundo. Dr. Bergson Guimarães,


muito obrigada por ter proporcionado ao Ceaf a
o tema “A Árvore Como Tema Para o Nosso Futuro,
presença dos professores Ernst Zürcher e Peter
Propostas Para um Projeto de Desenvolvimento
Schmocker, ambos suíços, que hoje trarão sua
Sustentável Integral Para a Região dos Circuitos das
rica experiência para compartir conosco. Obrigada
Águas Minas Gerais”. Tem a palavra, a diretora do
também ao Franklin Frederik, ativista ambiental
Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do
de grande importância e, notoriamente, engajado
Ministério Público, promotora de Justiça, Danielle
nessa causa que nos une a todos, muito obrigada
de Guimarães Germano Arlé.
pela sua presença.

SRA. DANIELLE DE GUIMARÃES GERMANO


Senhores, eu vou fazer uma breve
ARLÉ:  Senhoras e senhores, que nos assistem
explanação resumida do currículo dos nossos
presencialmente, que nos assistem também
dois palestrantes convidados. O Dr. Ernst

341
Zürcher é professor em Ciência Florestal, com vastíssima formação, que tenho certeza, hoje,
pesquisador na Universidade de Berna. É também poderão nos brindar com o seu conhecimento.
professor convidado no Instituto de Tecnologia Muito obrigada, Dr. Ernst Zürcher e Dr. Peter
de Lausanne e no Instituto de Tecnologia de Schmocker pela presença de ambos. A palestra
Zurique. Suas atividades de pesquisa são focadas será proferida em inglês, com tradução simultânea
em vitalidade de árvores, seria essa a... Vitalidade com o auxílio do Franklin Frederik, ao qual, desde
de árvores, em estruturas espirais e cronobiologia. já, nós agradecemos. Vou passar a palavra ao
O Dr. Ernst Zürcher é formado em Engenharia Dr. Bergson para que explique, com um pouco
Florestal pelo Instituto de Tecnologia de Zurique mais de cuidado, o que trouxe os professores
e, desde 2001, é professor e pesquisador na da Suíça aqui, para Minas Gerais, e qual o escopo
Universidade de Berna, na Suíça. É também, como deste grande projeto no qual eles estão inseridos.
já mencionado, professor convidado no Instituto
de Tecnologia de Lausanne e de Zurique. O Dr. Peter DR. BERGSON CARDOSO GUIMARÃES: Boa
Schmocker também formado em Engenharia Civil, noite a todos e a todas. Muito obrigado,
no Instituto de Tecnologia de Zurique, e obteve Dra. Danielle Arlé, que preside o Ceaf nesse
complementar formação, também, em engenharia momento. Gostaria de agradecer todo o apoio
hidráulica, que me parece que seria melhor que nós obtivemos na condução desse evento e
traduzida como engenharia de águas ou engenharia da receptividade que os professores suíços, bem
hidráulica, mesmo? Não sei. Os senhores verão como o Franklin Frederik teve aqui, no Ministério
durante a explanação, e Engenharia de Sistemas. É Público. Na verdade, eles vieram da Suíça, além de
professor de hidráulica e de Engenharia Hidráulica trazer conhecimento, mas também para conhecer
em [ininteligível] e também em hidromecânica o trabalho do Ministério Público, conhecer a
aplicada na Universidade de Geologia de Berna. instituição, principalmente a Instituição de Minas
Estamos, assim, senhores, diante de dois doutores Gerais, do Ministério Público de Minas Gerais, que,

342
em função de contatos e convênios anteriores, mais importante, nesse diálogo de buscar esse
eles já tiveram, um pouco, noção do trabalho conhecimento, de buscar essa parceria com as
desenvolvido pelo Ministério Público no setor de empresas, com as instituições de ensino, com as
recurso hídricos e no setor ambiental, em geral, instituições públicas, como é o caso do Ministério
aqui em Minas e no Brasil também. Eu gostaria de Público. Os professores Peter Schmocker e
agradecer. Você já apresentou os professores, a Ernst Zürcher, eles estão dispostos a trabalhar
presença do Franklin Frederik. O Franklin tem sido, com o Ministério Público, através de parcerias
vamos dizer assim, um ator social, um ativista de com empresas, para que nós possamos, talvez,
fundamental importância na questão de buscar o vamos dizer assim, galgar alguns degraus no
conhecimento, trazer o conhecimento, fazer essa conhecimento, realmente, da questão das águas no
mediação prática do conhecimento, possa atingir as nosso estado e, quem sabe, do nosso país. Ou seja,
comunidades que tanto carecem dele. E o Franklin por que nós enfrentamos a crise de disponibilidade
tem sido fundamental na questão da luta pela hídrica e por que nós nunca nos preparamos para
tutela das águas e teve uma participação muito ela? As questões localizadas nas comunidades,
grande no Circuito das Águas, em função de vários por que há problema em torno da exploração das
movimentos, de vários questionamentos, várias águas? Quais são esses problemas? De que forma
questões que ali ocorreram e a sua participação e o conhecimento disponível em outros centros de
a sua intermediação, com, na verdade, unidades produção científica e acadêmica podem nos ajudar
de ensino da Europa, mais especificamente e de que forma eles podem vir nos ajudar?
da Suíça e da França também, onde nós temos
muito a aprender, ela é muito importante, Franklin. O Ministério Público se apresenta como parceiro
Você, tradicionalmente, ao longo de muitos anos, nuclear dessa perspectiva de trabalho conjunto,
tem sido esse ator sempre articulador,  não é? não só com os professores aqui presentes, mas
Sempre disponível e você se torna, cada vez também com outros professores que estão

343
dispostos a nos ajudar nessa empreitada. Então, É, realmente, fundamental a nossa... essa parceria
é com muita satisfação, que nós saudamos os dois com a Suíça começou por interesses em voltar
professores aqui no Ministério Público e agradeço a ver com mais carinho essa região única que é
também ao Franklin, que fará uma breve exposição o Circuito das Águas. Na Suíça, nós temos uma
do escopo do trabalho inicial dos dois professores. pequena cidade que se chama St. Moritz, ela
Muito obrigado! tem uma fonte de água, tem uma clínica de três
andares, fazem vários produtos com essa única
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Eu fonte de água. A cidade, nos períodos de verão
queria agradecer também por estar aqui, o apoio
fica cheia, por causa de uma fonte com água.
do Ceaf, do Ministério Público, da Dra. Danielle Arlé,
Só em Caxambu nós temos 11, diferentes. Os
do Dr. Bergson, que eu conheço há tanto tempo.
professores vão, depois, falar um pouco sobre isso.
E dizer que eu vejo aqui como uma confluência
Nós acabamos de chegar da região do Circuito das
de duas coisas muito únicas. O Ministério Público,
Águas, foi uma visita muito rápida, mas passamos
que é uma instituição única no mundo, e o Circuito
pelos parques todos. E a nossa proposta é criar
das Águas, que também é uma região única no
mundo. Eu moro há um certo tempo na Suíça e uma espécie de Centro Internacional das Águas,

só lá fora é que eu pude compreender o papel que traga junto todas as múltiplas visões dessa
fundamental e de vanguarda do Ministério Público. entidade muito misteriosa que é a água.
Nós estivemos na Suíça com o Dr. Bergson, que
realizou palestras em faculdades de Direito lá, A água, ela tem uma dimensão espiritual, ela tem

em Lausanne e os juristas suíços, eu sou dessa uma dimensão cultural, ela tem uma dimensão
área também, ficam completamente surpresos com econômica, ela tem uma dimensão medicinal,
o escopo de atuação do Ministério Público. Isso não ela é um ser muito vasto e merece, hoje em
existe. E eu fico muito orgulhoso de estar aqui, dia, ser respeitado como tal e, a partir dessa
com vocês, e poder falar aqui nessa instituição. visão, se fazer um projeto de desenvolvimento

344
sustentável integrado exemplar para aquela E uma outra coisa que talvez tenha sido esquecido,
região. Então, a gente tem tido contato com várias há um projeto de um artista de origem eslovena
universidades na Suíça e pretendemos, também, em todo o Circuito das Águas, talvez quem esteve
no futuro, trazer outros aqui. E queria lembrar nos parques tenha visto umas pedras grandes,
alguns detalhes que talvez vocês não saibam do esculpidas. Esse projeto já tem quase 18 anos,
Circuito das Águas. Talvez, vocês tenham ouvido foi o início do meu envolvimento com a questão
falar da ativista canadense Maude Barlow, é talvez do Circuito das Águas. Esse artista esloveno, na
a principal ativista pelo direito humano à água do época, ele foi quem fez a bandeira da Eslovênia e,
mundo hoje. Ela é canadense, foi conselheira da desde o ano passado, ele foi nomeado pela Unesco
assembleia geral da ONU, tem mais de 16 títulos embaixador, artista embaixador da paz. O único
de Doutor Honoris Causa de várias universidades projeto dele, até recentemente, na América do
no mundo, participa de debates com chanceleres Sul, era o Circuito das Águas. Foi feito agora um
de países, agora recentemente, teve um com segundo em Quito. A gente tem essa riqueza, a
a Ângela Merkel, e no Canadá, eles lançaram natureza já fez uma coisa maravilhosa lá, eles vão
uma iniciativa que chama Comunidade Azul, que falar do deslumbramento que é visitar essa região,
são alguns princípios básicos que uma cidade e eu acho que a gente tem toda a condição, com o
ou uma universidade se comprometem a cumprir apoio do Ministério Público, com apoio do Governo
para virar uma comunidade azul. No Canadá, há do Estado, com apoio de universidades daqui, criar
umas 17, 18 cidades que são comunidades azuis alguma coisa muito única e especial. E lembrar
e fora do Canadá existem só quatro cidades: St. que a água é o que une, não é o que nos separa,
Gallen, na Suíça, Berna, capital da Suíça, Paris, esse é o que une.
ano, e Cambuquira, no Brasil. Maude Barlow foi à
Cambuquira com o Dr. Bergson, organizamos isso, Uma pequena historinha sobre Berna. Em Berna
para dar o diploma de Comunidade Azul. Então, existe uma instituição chamada Casa das Religiões,
imagina, Berna, Paris e Cambuquira. em que se propõe a ser um espaço de todas as

345
religiões. E era preciso ter um espaço sagrado, falecimento e o Gabriel, nesse momento, onde
dentro dessa casa, que fosse a capela, vamos estiver, que ele continue torcendo por essa nossa
dizer assim. Mas que símbolo colocar num espaço luta, por essa nossa construção que, realmente,
que servisse a todas as religiões? E o que eles não é fácil, de um mundo melhor, em torno das
encontraram foi a água, porque, em todas as águas. E só fazer esse registro e lembrar que o

religiões, é um elemento sagrado. Então, é uma livro do professor Ernst Zürcher vai de encontro a


tudo isso que nós estamos propondo, realmente, de
sala vazia com uma fonte no meio.
uma qualidade de vida mais sadia. Muito obrigado!
Bom, obrigado pela atenção. Eu vou fazer a
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
tradução. Eu não sou tradutor profissional, me
idioma].
desculpa se eu ficar nervoso, se não traduzir bem,
pergunta. Eu vou fazer o meu melhor. Obrigado! SR. FRANKLIN FREDERIK
GONÇALVES:  Senhores e senhoras, eu gostaria
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Eu vou
muito de agradecer, em nome da Universidade
passar a palavra, então, para o professor Ernst de Ciências Aplicadas de Berna, por esse encontro
Zürcher. para falar aqui, do Ministério Público do Estado
de Minas Gerais.
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Eu gostaria só
de uma colocação rápida. Nós tivemos, há pouco, SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
uma notícia, pelo WhatsApp, do falecimento de idioma].
uma grande personalidade que atuou muito pelas
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Nós
águas ao longo de anos, também, no Circuito
visitamos, agora há pouco, as admiráveis cidades do
das Águas, que é um geólogo de nome Gabriel
Circuito das Águas, onde nos deparamos com esse
Junqueira. Eu gostaria de registrar aqui esse
sistema de águas curativas, que é espantoso, que

346
ele nunca viu isso em outro lugar. Comparou com a SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Vocês
Bulgária, por exemplo, que é o país mais conhecido entenderam essa parte.
por águas minerais com propriedades medicinais.
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
idioma].

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Nós SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Eu


fomos também informados, pelo trabalho do vou, então, passar para a minha apresentação,
Ministério Público em defesa dessas águas, e que que vai ser seguida, depois, pela apresentação do
é um conhecimento que não vem só do científico, colega ali, Dr. Peter Schmocker. A apresentação
mas também tradicional, observando e vendo o dele vai ser mais ampla, mais geral, sobre o
que tem acontecido lá.
significado de um desenvolvimento sustentável.
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele
ficou impressionado, eu pulei na última parte, SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E
com o trabalho do Ministério Público em defesa depois, eles vão, então, focalizar num pequeno
do bem cultural e dos bens imateriais, eles foram exemplo, um pequeno exemplo de uma coisa bem
informados sobre esse trabalho do Ministério
concreta que pode ser feita na região. 
Público e também me agradeceu por ajudar a fazer
essa ponte.
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro idioma].


idioma].

347
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E ele por árvores e dentro da cidade também, e tem
está contando com perguntas, com participação toda uma biodiversidade em volta desses parques
depois, porque se for só uma explanação dele de águas também, dessas cidades, perdão. 
fica muito chato. Ele espera contar, depois, com o
desafio de perguntas e um pequeno debate. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E se a
gente… Ao estudar a árvore, nós vemos que ela é
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Se nós apenas a ponta do iceberg, o papel real da árvore,
olharmos, tivermos um olhar mais próximo das a importância da árvore é um trabalho invisível,
árvores, nós vemos que ela está no centro do que que a gente não vê na superfície da Terra.
deveria ser um desenvolvimento sustentável e,
na realidade, é a partir da árvore que deve partir SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
um projeto sustentável. De uma visão profunda do idioma].
que é uma árvore, que deve partir essa proposta
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Como
do desenvolvimento sustentável.
nós vemos, as crises, múltiplas crises estão
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro se ampliando, perda de florestas tropicais,
idioma]. concentração de CO2, aumento de temperatura
no hemisfério norte em exponencial e é o cenário
SR. FRANKLIN FREDERIK desse best-seller do Dan Brown, Inferno. 
GONÇALVES: Visitando a região do Circuito das
Águas, nós podemos ver que essas cidades, os SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
parques das águas, estão cercados por florestas, idioma].

348
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E um SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
dado muito importante que só, recentemente, idioma].
entrou nas avaliações é a utilização da água, porque
a exploração está aumentando, o consumo de água SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: O que
está aumentando cada vez mais. Então, nesse é uma árvore? 
momento, é um momento muito perigoso, não vai
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
mudar agora, é uma tendência que vai continuar
idioma].
por algum tempo, a tendência é muito forte.

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: É mais


SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
velha do que a espécie humana, é maior do que o
idioma].
aspecto de qualquer homem. 
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Então,
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
agora, falando das árvores, nós as podemos ver desde
idioma].
de um ponto de vista espiritual, individual social
ou como comunidades, material, o aspecto tangível,
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:
real, e um sistema vital a partir dos ritmos. Obviamente, é uma estrutura feita de madeira. 

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. idioma].

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E todos SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E a
esses aspectos mostram contribuições invisíveis madeira, ela tem propriedades que são muito
que a árvore dá para a Terra, né? importantes não apenas para a árvore em si, mas
para a formação dos solos. 

349
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. idioma].

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E os SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: São


solos das florestas são muito diferentes dos solos, como pequenas plantas dentro de um organismo
por exemplo, de regiões agrícolas convencionais, maior.
especialmente na concentração de água e também
na qualidade dessa água. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Bom,
dentro da árvore, obviamente, você tem a madeira,
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: A que é um material importante.
árvore é capaz de produzir essas estruturas a
partir de uma coisa muito simples, em um pequeno SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
botão que, como ele mostrou, se desenvolve nas idioma].
bordas das folhas e--
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro cada árvore tem a sua qualidade particular de
idioma]. madeira, com suas qualidades particulares de uso
e propriedades muito particulares.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Se
desenvolve para novos galhos e, desses novos SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
galhos, mais outras folhas. idioma].

350
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: A SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
árvore também contem sinais eletromagnéticos idioma].
dentro dela.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E é
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro muito diferente quando você trabalha com uma
idioma]. floresta, se você se aproxima dessa floresta como
um organismo, se você a trata como organismo ou
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E uma
como apenas uma quantidade X de árvores.
árvore pode, por exemplo, perceber um terremoto
antes que ele aconteça. Ela tem essa sensibilidade,
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
como alguns animais também.
idioma].

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro


SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Nos
idioma].
anos passados, na Europa, na Suíça, a Engenharia

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E uma Florestal se ocupava mais de plantar árvores, como
coleção de árvores, como na floresta, é mais de ele mostra ali, como os eucaliptos, aqui no Brasil,
que uma coleção, é um organismo completo. Uma da mesma espécie, em vastas quantidades.
floresta é uma outra coisa mais do que um grupo
de árvores.  SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Mas
com esse pensamento de somar árvores, sem essa
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Uma visão orgânica da floresta.
floresta é um organismo em si mesmo.

351
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Mas
idioma]. tem algumas áreas com plantações de eucaliptos,
por exemplo.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E na
engenharia florestal moderna, eles tentam dar, agora, SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
essa abordagem da floresta como um organismo. idioma].

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:


idioma]. E os dois são necessários, ele não está
dizendo ‘não’ para os eucaliptos, mas como que
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Uma você vai plantar esses eucaliptos?
primeira ideia que podia ser aplicada de uma
maneira muito fácil aqui... SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Então,
naquele primeiro exemplo, por exemplo,
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Na suponhamos um grupo de eucaliptos, como no
proximidade dessas cidades do Circuito das Águas primeiro exemplo, em que eles estão muito bem
há remanescentes de Mata Atlântica, o que é muito espaçados, e pelo vento que passa, você seca
precioso. muito rápido a região e perde a água.

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. idioma].

352
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E a água SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
é o elemento mais importante para uma floresta. idioma].

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E eles
idioma]. trazem sementes para novas árvores.

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Na


SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
figura dois, ele mostra, então, uma árvore como
idioma].
um envelope que guarda essa água. E se você,
então, misturar essas árvores entre os eucaliptos,
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Nesse
já é um passo positivo na criação desse organismo.
sistema, então, você começa a ter uma regeneração

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro natural das espécies daquela área, de graça.
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Então, idioma].
você está envelopando os eucaliptos num
envelope vegetal. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele
menciona que quando você tem essas plantações
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
de eucalipto, ele trabalhou muito tempo na
idioma].
África com eucaliptos assim, cria uma situação

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E nesse triste, porque não há pássaros, não há canto de
envelope, então, você começa a ter os pássaros, pássaros numa floresta, que não é uma floresta,
os insetos. uma plantação de eucaliptos.

353
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: As
idioma]. árvores e as florestas são uma reserva de
biodiversidade.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Então,
de uma maneira muito simples, você pode, de SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
uma coleção de árvores tristes, transformar numa idioma].
floresta alegre.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Muito
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro rica em diversidade de espécies com árvores.
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Só um idioma].
exemplo, ele não vai falar do ciclo da água, porque
todo mundo já está sabendo disso. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E elas
são muito úmidas, são cheias de água.
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: O
segundo tópico dele é a importância das florestas SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E a
tropicais brasileiras. importância dessas florestas, e a água que elas
guardam, é muito maior do que a gente pensava
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro até cinco anos atrás, para a saúde do planeta como
idioma]. um todo.

354
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Uma
idioma]. pequena quantidade, mas a maior parte da água
está nas próprias árvores.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele
está mostrando aí, as florestas úmidas tropicais da SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
América do Sul e na África. idioma].

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E o

idioma]. que a gente sabe, descobriu recentemente, é que


essa água que evapora em grande quantidade das
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E uma florestas absorve energia solar.
floresta dessas, ela é...  ela quase não tem solo,
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
toda a riqueza dela está nas próprias árvores.
idioma].

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro


SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E aí
idioma].
você tem grandes chuvas que vão trazer ar fresco. 

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Toda a


SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
água que é capturada pelas florestas tropicais, ela
idioma].
está nas árvores, ela não está no solo.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:  E você
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro tem cinco ou sete ciclos: evaporação, precipitação,
idioma]. evaporação, precipitação, que vai da Amazônia até
os Andes, esse ciclo.

355
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Porque
idioma]. é um sistema planetário que está em jogo ali, não
é só brasileiro.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E
essa é uma proteção natural do planeta contra o SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
Sol, que é muito forte na dimensão dos trópicos, idioma].
do Equador. Se você tirar essa proteção, o Sol
incide muito fortemente e muito rápido você vai SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Isso
criar um deserto. tem sido chamado de ‘o coração climático’ ou uma
bomba de sucção biótica do planeta.
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E a
gente já está começando a criar esses desertos, SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: A gente
com o desflorestamento, né? precisa manter essas florestas intocadas.

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. idioma].

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E isso SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: O


é uma preocupação, não só para os brasileiros, segundo ponto importante é recriar florestas que
mas para pessoas em muitos outros países. já foram devastadas.

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. idioma].

356
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: A outra SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
coisa e regenerar rios, para que eles fluam mais idioma].
naturalmente, como está sendo feito desde de algum
tempo já na Europa, na Alemanha, principalmente. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Essa
é a foto de um projeto agroflorestal na França,
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro que eles reintroduziram árvores dentro das
idioma]. plantações agrícolas...

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:  E uma SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
das urgências que foi debatida na COP21, em Paris. idioma].

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E as


idioma]. árvores ajudam a manter a água no solo.

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: É a SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro


reintrodução de matéria orgânica rica em carbono idioma].
no solo das florestas.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Uma
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro das pesquisas que o Dr. Ernst fez recentemente é
idioma]. sobre os ritmos lunares, como eles influenciam nas
plantações, a época de plantio...
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Uma
árvore, pelas raízes, tem uma enorme quantidade SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
de matéria orgânica debaixo da terra. idioma].

357
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:  E SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Há um
na questão do dióxido de carbono, que é o tema potencial de utilização enorme de madeira para,
principal relacionado à mudança climática. por exemplo, climatizar as casas, seja para manter
o calor ou para refrescar ou como fonte de energia.
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Então,
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: É
um exemplo importante que se pode ver é para
melhor usar a madeira nas construções, porque
cada mil quilos, para cada tonelada de madeira,
vai precisar de menos energia, seja para climatizar
estoca 1.851 quilogramas de dióxido de carbono.
ou para aquecer.

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro


SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
idioma].

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Então,


SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E ele
toda vez que você planta uma árvore ou que
sabe de construções na Europa, em madeira que,
você usa madeira para construir alguma coisa, que não é necessário depois você investir em ar-
você está ajudando o meio ambiente, pela condicionado ou em aquecimento, se for um lugar
capacidade [ininteligível] carbono da madeira. frio, porque a própria madeira é autossuficiente,
ela cria um sistema próprio de clima.
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].

358
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E é uma SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E você
maneira de construir, um material de construção pode, perfeitamente, imaginar uma maneira muito
que é benéfico para o meio ambiente, você não sustentável de construir casas usando madeira
está usando energia fóssil ou coisas que derivam que seja da própria região, combinada com barro,
de petróleo. por exemplo.

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. idioma].

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E do SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E aqui


mesmo modo, a gente podia estar utilizando no Brasil, com a diversidade de madeira que nós
como material de construção muito mais argila temos, há um potencial enorme até para exportar
ou lama do que transformar isso em tijolo, em esse material de construção.
concreto, ou seja, trabalhar direto na construção
com barro, barro. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E aqui
tem um potencial econômico enorme, apenas
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Alguns pensando em utilizar a madeira de uma forma
exemplos de casas construídas em madeira. diferente.

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. idioma].

359
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:  E ele SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: É uma
acredita que as árvores e as florestas podem ser honra para nós, da Suíça, estarmos aqui. Não é a
nossos aliados na construção de um futuro mais primeira vez que a gente vem ao Brasil e esperamos
limpo, com água limpa, sem poluição. não ser a última.

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em


idioma]. outro idioma].

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E agora


não comentou muito sobre o Circuito das Águas, nós saímos dos pulmões da Terra e vamos para o
mas ele acredita que o Circuito das Águas sangue da Terra.
seja uma região que poderia se desenvolver
um projeto modelo nesse sentido. E agora ele SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: As
convida o professor Peter Schmocker para falar florestas são os pulmões da terra e as águas são o
um pouco, então. sangue da Terra.

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro


outro idioma]. idioma].

DR. FRANKLIN FREDERIK: Está agradecendo, SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Eles


também, do lado dele, pela honra de estar aqui. trabalham bem juntos.

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em


outro idioma]. outro idioma].

360
SR. FRANKLIN FREDERIK SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
GONÇALVES:  Primeiramente, ele vai falar um outro idioma].
pouquinho sobre a instituição que ele está, a
universidade dele, e depois, então, vai começar a SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: A
tratar desse exemplo concreto. revitalização de cursos de águas, que é um aspecto
muito importante.
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma]. SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:  Ele é
professor da Universidade de Berna desde 2001. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E a
proteção contra inundações.
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma]. SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele é do
departamento de Engenharia Civil para Hidráulicas, SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Instituto
Engenharia Hidráulica e Hidrólise. para a infraestrutura.

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em


outro idioma]. outro idioma].

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Com os SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Lá, há


estudantes, nós trabalhamos muito, por exemplo, a disciplina de mecânica de solos.
com o fluxo de águas em canais como esse.

361
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E se
outro idioma]. alguns de vocês gostaria de estudar na Universidade
de Berna, por favor, nos procure. Há estudantes
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: A estrangeiros, vários lá estão abertos para isso, há
proteção de encostas para evitar avalanches e possibilidades de convênios.
desabamentos.
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em outro idioma].
outro idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Nós
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Água tivemos a oportunidade de visitar, durante dois dias,
subterrânea e desastres naturais. a área do Circuito das Águas, os principais parques,
e ele ficou muito impressionado por esses parques.
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma]. SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:
Utilizando as árvores como instrumentos de... É, SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele tem
as árvores podem indicar a possibilidade de haver viajado e trabalhado muito em diversas partes do
um acidente ambiental. mundo e ele nunca viu, como aqui, essa quantidade
de fontes diferentes e ele vai explicar por quê.
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma]. SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma].

362
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: As SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Quase
fontes nos parques são tão próximas umas das tudo está bom.
outras e as qualidades tão diferentes, o gosto é
tão diferente. Ele não pode explicar agora, ele vai SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
entender esse sistema no futuro, mas ele achou outro idioma].
isso admirável e único.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Mas
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em os problemas, os poucos que ele reconheceu, são
outro idioma]. perfeitamente... Há soluções rápidas para isso.

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: As SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em


pessoas responsáveis por esses parques estão outro idioma].
fazendo, realmente, um excelente trabalho, que
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Uma
no caso, seria mais a [ininteligível].
coisa, apenas uma coisa eu fiquei realmente não
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em muito alegre de ver.
outro idioma].
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Tudo outro idioma].
está muito limpo, muito bem-organizado, muito
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele
bem-cuidado e funcionando.
faz, de novo, um elogio ao Dr. Bergson, ao
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em Ministério Público, por também ajudar a proteger
outro idioma]. esses parques.

363
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Vocês
outro idioma]. têm alguma sugestão, alguma ideia? Estão vendo?
Podem mencionar alguma coisa?
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E a
coisa que ele não gostou muito é essa imagem, por ORADORA NÃO IDENTIFICADA:
exemplo, do canal que está no parque de Caxambu. [pronunciamento fora do microfone].

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: 


outro idioma]. [pronunciamento em outro idioma].

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Nós SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em


falamos de biodiversidade. Para ele, isso é um outro idioma].
corredor de não biodiversidade.
DR. FRANKLIN FREDERIK: Ele também não faria
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em esses intervalos muito geométricos, muito regular.
outro idioma]. Tiraria uma ou outra, criaria um padrão rítmico
mais fluido, tiraria uma árvore e colocaria em outro
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele lugar, por exemplo.
vê, pelo menos, cinco pontos, cinco problemas
principais que não têm nada a ver com SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
biodiversidade nessa foto. outro idioma].

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele vai


outro idioma]. voltar a falar da forma, depois.

364
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em direito, que criasse esse movimento ondulante,
outro idioma]. que ajudaria a revitalizar a água e os peixes se
sentiriam melhor nesse ambiente.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:  Uma
das coisas mais importantes do fluxo da água é a SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
velocidade e a variação na velocidade desse fluxo. outro idioma].

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Às


outro idioma]. vezes, numa praia, por exemplo, você vê cursos
de água, numa chuva, que vão direto para o mar,
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E, numa linha reta.
nesse caso, desse exemplo que essa foto mostra,
não há nenhuma variação do fluxo, é uma SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
velocidade constante, permanente, sem variação. outro idioma].
Para a biodiversidade é um problema.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Vocês
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em já viram esse tipo de curso direto que vai para
outro idioma]. o mar? Isso não acontece, ele sempre faz esse
movimento, não existe linha reta.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Uma
coisa que se poderia muito facilmente fazer seria, SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
por exemplo, colocar pequenos grupos de pedra outro idioma].
aqui no lado direito, por exemplo, dez metros
no centro, 15, 20 metros mais acima, do lado

365
SR. FRANKLIN FREDERIK SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
GONÇALVES: Algumas pedras bem posicionadas outro idioma].
já ajudariam muito nisso.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Você
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
pode cavar buracos de até 30 centímetros, que façam
outro idioma].
esse desenho, para que a água se acumule ali.

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Outro


SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
ponto importante é que a altura da água não é
suficiente, é muito rasinho. outro idioma].

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:


outro idioma]. E peixes, animais da água, gostam de lugares para
se esconder, para descansar. Num caso desse, não
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: 
há esses lugares.
Precisa de, pelo menos, de 25 a 30 centímetros
de profundidade, para que haja a possibilidade de SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
uma vida dentro.
outro idioma].

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em


SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E o
outro idioma].
fundo desse canal também é pedra, empedrado,

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Como é artificial, não é? Na Suíça, hoje em dia, isso é
esse volume de água é muito rasinho, tem que se proibido, você tem que tirar isso.
fazer alguma coisa, talvez reduzir a abertura, para
que o nível suba.

366
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma]. outro idioma].

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Desse SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Um


modo, a água do rio pode interagir com a água ponto positivo é que, do modo como está agora,
subterrânea. você tem uma capacidade de fluxo grande e isso
não é ruim.
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma]. SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
outro idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: O
ponto cinco seria... SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Um
segundo ponto vantajoso, de uma certa maneira, é
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em que é que as pessoas que trabalharam nesse
outro idioma]. projeto, é muito fácil fazer um projeto assim, ainda
mais hoje em dia, é uma linha reta.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Que se
animais pequenos, um esquilo, um camundongo, SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
se ele cai aí, morreu, não tem como ele sair. outro idioma].

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Os


outro idioma]. cálculos hidráulicos necessários são muito fáceis,
também.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Mas ele
precisa admitir que, na Suíça, no passado, se fazia SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
assim também, não é um privilégio nosso esse erro. outro idioma].

367
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele tem SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
certeza absoluta, isso é apenas um exemplo, o que outro idioma].
ele falou, ele está seguro que juntos, a gente pode
encontrar soluções para esse tipo de problema e SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Por
realmente revitalizar os parques e a região. exemplo, isso é um exemplo de uma cidade na
Europa, de um lado está muito parecido com a
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em fotografia que ele mostrou de Caxambu, mas vocês
outro idioma].
estão vendo as pedras na água, pelo menos, essas
pedras ajudam um pouquinho nesse fluxo.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Aqui
no lado direito, por exemplo, deveria tirar essas
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
pedras e colocar plantas.
outro idioma].

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em


SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E o
outro idioma].
fundo desse canal é natural, não é pedra e nem
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Às concreto.
vezes, é difícil, isso é em frente ao parque de... Não,
não, isso aí é Cambuquira, aquele riozinho em SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em

frente ao Parque de Cambuquira. outro idioma].

SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Um


outro idioma]. outro exemplo, o quadro da esquerda é como era
essa região no passado, o que eles fizeram no
SR. FRANKLIN FREDERIK passado e a direita como eles regeneraram.
GONÇALVES: Caxambu.

368
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em também a silvicultura muito forte de eucaliptos, a
outro idioma]. produção muito forte de eucaliptos. E é importante
que o Brasil, que tem uma produção pequena
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E esse ainda, de madeira, possa crescer também nessa
lugar aí, três anos depois, ficou todo verde. fronteira, nós compreendemos isso, que a
gente tem que produzir mais, de uma forma
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
mais sustentável. Mas, de outro lado, nós não
outro idioma].
sentimos, assim, os órgãos que fazem o controle
ambiental, ou seja, o licenciamento ambiental,
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Então,
como nós chamamos aqui, com uma regulação
por enquanto, obrigado.
muito assim... Sistematizada, nesse sentido.
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Bom, Então, nós vemos muitas plantações,  não é? Ao
se houver... contamos, com o Ernst falou, com lado das outras, é contratos de grandes empresas
desafios, perguntas. O  Peter  também, estamos com esses pequenos produtores e isso forma
à disposição. Eu só queria pedir, eu não sou grandes extensões de silvicultura e, muitas vezes,
engenheiro, por favor, não façam perguntas com em prejuízo da biodiversidade, da fauna, como ele
termos técnicos complicados para eu traduzir. mesmo apontou. Eu gostaria de saber como é feito
esse controle, ou seja, na Suíça ou na Europa, como
SR. FRANKLIN FREDERIK é feito esse controle do número de plantações e de
GONÇALVES: Dr. Bergson. silvicultura. O licenciamento, se existe.

DR. BERGSON CARDOSO SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro


GUIMARÃES: Professor Zürcher, ele falou sobre idioma].
a questão da silvicultura e, no Brasil, nós temos

369
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Essa SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Mas,
questão do controle depende de quem são os na Suíça, os engenheiros florestais são muito
proprietários. Ele falou que um terço das florestas engajados, publicamente, a maioria deles.
da Suíça são propriedades privadas e dois terços
são, realmente, propriedades públicas, que SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
pertencem às comunidades.

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E se um


SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
proprietário de uma floresta quer cortar árvores
idioma].
para explorar economicamente...

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Mas,


SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
independente de quem seja o dono, a floresta é a
idioma].
mesma, seja uma floresta pública ou uma floresta
privada, a floresta em si é a mesma floresta. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele
é obrigado, então, a perguntar aos engenheiros
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro florestais do departamento do governo, a selecionar
idioma]. que árvores ele pode cortar e em que quantidade.

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:  E SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro


lá, a legislação florestal é a mesma para todo o idioma].
país e para todos os tipos de proprietários, seja
público ou privado. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele
gostaria de fazer uma observação em referência a
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro essas grandes plantações  de companhias  de
idioma]. eucalipto que você mencionou, por exemplo.

370
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Boa noite a
idioma]. todos. Eu sou presidente de uma associação que
visa preservar o único corredor ecológico que
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele existe na grande região metropolitana, que é o Vale
acredita que é até mesmo interesse das próprias do Mutuca. Sou também conselheiro da APA-SUL e
empresas conhecer esse sistema misto, que ele lá eu sou voto vencido na maioria das decisões,
mencionou antes, das árvores com os eucaliptos, uma vez que os empreendedores, o capital sempre
é do interesse deles também e eles próprios podem sobrepõe à razão.
querer adotar esse sistema.
Mas aqui, em Belo Horizonte, no máximo em
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro sete anos, haverá uma falta d’água muito grande
idioma]. e ninguém se ateve, até o presente momento,
a tal fato. Porque a captação de água de Belo
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: A longo
Horizonte vem por bela fama  a montante  e a fio
termo, uma floresta que é 90% eucalipto e 10%
d’água. Esta captação de água, hoje, está sendo
floresta, biodiversidade, é muito melhor do que
impermeabilizada com a Coca-Cola, com várias
uma floresta que é 100% eucalipto.
edificações e com um empreendimento dominado
de C Sul que impactará 4,5% de todo o território,
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
impermeabilizará cerca de 4,5% de todo o território
idioma].
que é responsável pela captação de água. Outro
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E problema que está ocorrendo no Sudeste, como o
essas florestas com 10%, elas são capazes de se senhor bem mencionou em sua profunda palestra
regenerar rapidamente, assim que a exploração de foram os rios aéreos do Amazonas e com o
eucalipto acaba ou para. desmatamento não está vindo água para as nossas

371
culturas, está prejudicando o sistema climático do que nós temos uma fronteira muito longa, muito
mundo todo, como, por exemplo, as Corn Belt nos extensa. Então, qual seria a solução que os
Estados Unidos, não é? senhores dariam para essa questão da fiscalização
do território do Amazonas e qual outra a solução que
Mas a questão eu encontro no Talmud, há cinco os senhores dariam para uma atividade que vem
mil anos atrás, o meu povo já sabia que não se depredando muito o nosso meio ambiente, que é a
podia desmatar árvores próximas às nascentes. O atividade minerária, que até hoje não lava o minério
calendário hebreu é todo lunar e sempre se planta a seco, embora a legislação esteja toda mudando
de acordo com a lua, até hoje, como faz parte do para tal fato. Se há algum estudo, por parte da
estudo do senhor. Não obstante, é pecado cortar universidade do país de vocês, dos senhores, nesse
uma árvore frutífera no judaísmo. Ocorre que não sentido de orientar essas minerações, de orientar
há, em nosso país, uma política de preservação de alguns governos em relação a efetivas fiscalizações,
espécies nativas eficaz. O que eu vejo é os nossos até mesmo porque aqui, no Brasil, aqui em Minas
órgãos públicos plantando árvores exóticas, que Gerais em si, os órgãos licenciadores, eles só
não trazem alimento para a nossa fauna. E há olham pontualmente cada questão, eles não olham
um hábito muito grande em nossos paisagistas e toda um macro questão, não têm uma visão macro
arquitetos valorizarem mais a vegetação exterior do de todo o sistema onde eles estão licenciando. O
que a nossa, ao contrário do que Burle Marx falava. que acontece é que muito pela Suplan, pelo IEF,
que às vezes, eles autorizam o desmatamento de
Mas a minha pergunta é a seguinte. O território do
uma área, mas essa área está interligada em todo
Amazonas é extremamente amplo e não há como
um corredor ecológico, em todo um bioma de Mata
se, a não ser via satélite, apurar o desmatamento
Atlântica e faz parte, por exemplo, como eu fui voto
naquele local, na mesma hora, que é um problema
vencido há pouco tempo na Apa Sul, em relação
territorial grave que nós enfrentamos, uma vez
ao assoreamento de um afluente, de um grande

372
rio, e as pessoas falaram: “Isso não pertence à Em relação à Amazônia, que você contou de como
Apa Sul. Isso aí não faz parte da Apa Sul”. E eu falei: você vai controlar, fiscalizar isso, ele citou essa
“Mas vocês demonstram um desconhecimento do estatística que é conhecida, que existe mais gente
que é uma microbacia”. A minha área é jurídica. empregada pelo departamento que cuida dos
Desculpa, eu estou-- parques da cidade de Nova Iorque do que do Ibama
da Amazônia. É um problema político, basicamente.
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: [pronunciamento
fora do microfone].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele
acredita que o principal é você ter trabalhos que
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Então,
sejam muito pagos, de engenheiros florestais,
eu vou fazer as duas perguntas. Em relação a essa
de pessoas engajadas com esse tipo de trabalho,
questão da mineração, das proteções, por que as
porque você, naturalmente, reorienta essas
pessoas fazem esse tipo de trabalho. Ele acha que
pessoas que têm disposição, que querem fazer
os que trabalham diretamente com mineração,
um trabalho construtivo, um bom salário, um bom
fazem esse tipo de trabalho como última opção.
suporte social, um bom reconhecimento público,
Não é um trabalho bom, não é um trabalho alegre,
para que essas pessoas, cada vez mais, se engajem
não é um trabalho que faz bem para a sua saúde. É
mais. Aí é uma questão de orçamento, não é? Não
uma pressão econômica que força as pessoas, como
é uma prioridade, infelizmente.
uma última tentativa de ganhar algum dinheiro. E
aí é uma pergunta política e civilizacional: o que
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
a gente quer para o nosso futuro? Manter esse
idioma].
padrão e, em 20 anos, você acaba com o planeta
ou mudar isso?

373
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E aí, a
citou um exemplo, isso poderia, por exemplo, taxa da água, não é? Porque a água vem da floresta,
se você começasse a replantar, reflorestar as que aqui a gente já tem, praticamente. Não está
zonas do deserto do Saara, que é possível, isso implantado, mas teoricamente... as florestas como
poderia ter efeito é até na diminuição de correntes produtoras de água. Mais perguntas?
migratórias, que é um problema muito grande
hoje, porque você criaria espaços vivos para que SR. ANTÔNIO ARAGÃO: Boa noite a todos. Meu
as pessoas pudessem ficar naquele lugar, não ter nome é Antônio Aragão. Eu sou responsável aqui,
que ir embora. eu sou engenheiro da Sudecap e sou responsável
por todas as bacias de detenção aqui, de Belo
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
Horizonte. Uma pergunta bastante interessante,
idioma].
eu não sei quantos aqui sabem, e é um fato, todas

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:  Ele as... A todo instante, a gente vê na televisão, na

vê duas soluções simples, financeiras, que ele mídia, sendo divulgado que todo esse fenômeno,
vai propor. tudo que está ocorrendo aí, de esquentamento
do globo terrestre e do resfriamento também lá
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro na Antártida é questão do fenômeno El Niño. O
idioma]. esquentamento é o El Niño, o resfriamento é a La
Niña. O interessante é o seguinte, não existe um
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: A taxa
estudo específico acerca disso. Quem descobriu
de carbono, que aí você paga para manter a floresta. 
o fenômeno El Niño, foi um pescador do Peru e do

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro Equador, não sei quantos aqui viram. Eles estavam
idioma]. em alto-mar, quando eles estavam tirando os peixes
da água, eles sentiram que a água do mar estava

374
extremamente quente. Estava perto do Natal, em Eu queria saber se lá também, no exterior... aqui,
função de 25 de dezembro, do nascimento de Jesus, no Brasil, eles falam que é o fenômeno El Niño,
eles botaram o fenômeno de El Niño. Isso é um só que quem deu o nome foi os pescadores,
negócio absurdo, não é? O fenômeno El Niño, que eu queria saber se lá também persiste essa
é o fenômeno de esquentamento e resfriamento, informação equivocada.
todo se deve ao desmatamento do planeta.
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
O desmatamento provoca o desbarrancamento idioma].
dos laterais dos rios e, consequentemente,
provoca... eu conheço o Rio Jequitinhonha de 1985, SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: É uma
eu estive lá em 1985, e estive lá agora, há três discussão complicada na Suíça, porque é um país
anos passados, tinha a calha do rio lá que tinha 18 que tem muita mobilidade, muita tecnologia, muita
metros de profundidade, imagina a quantidade de urbanização, tudo baseado em indústria fóssil,
armazenamento, hoje ela está com dois metros, então, o debate sobre a mudança climática é
hoje, a gente atravessa o rio a pé. complicado, porque eles também, como aqui, não
querem tocar em certos temas de que eles estão
A gente tinha que restabelecer esse conceito. Dois se beneficiando.
meninos, meninos são imaturos, um menino e uma
menina, são dois desgraçados que provocaram toda SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
essa tragédia. Nós precisamos trazer isso à tona, idioma].
que quem provocou, efetivamente, toda essa coisa
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: A gente
inconsistente foi a política nefasta, inconsistente,
não pode resolver o problema, ao mesmo tempo,
não tem sabedoria, os homens, não  é?  Correndo
para tudo.
atrás do capitalismo selvagem, do capital.

375
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E que
idioma]. possa ter um efeito concreto da questão de
mudança climática, na diminuição de dióxido de
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Você carbono, que está, realmente, muito alta.
tem que pensar setorialmente, senão, não tem
como você abordar tudo. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Seria
para reorientar a agronomia, por exemplo, mudar
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Na a forma como se produz alimentos.
Suíça, por exemplo, eles podem ficar muito alegres
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
com o sistema florestal deles, que é muito bem
idioma].
protegido e está em excelente saúde.

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Antes,


SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
você tinha a agricultura, se separaram essas
idioma].
disciplinas, você tem a agricultura e a Engenharia
Florestal. Hoje em dia, a solução que eles veem é
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E o
um modelo agroflorestal que reúna, de novo, essas
que a gente pode fazer, então, apresentar soluções
duas disciplinas que foram separadas e isso vai ter
a partir da Suíça, até para a qualidade da água e
um efeito muito benéfico para a manutenção com
para a mudança climática, seria, por exemplo...
carbono no solo, de água no solo.

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro


SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
idioma].

376
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Usando, SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
por exemplo, uma solução que vem daqui, que é a idioma].
famosa terra preta da Amazônia, não é?
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: 
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro E numa democracia, eles votam, porque
idioma]. a democracia suíça é muito baseada em
referendos, então eles têm vários referendos, e ele
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Que acredita que os suíços vão votar e essa iniciativa
é muito eficiente, biochar, como eles chamam na vai passar.
Suíça.
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro idioma].
idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES:  E você E essa mudança na produção de alimentos,
usando essa terra, você tem plantas muito fazendo o  agroflorestamento, você pode reduzir
saudáveis, não há necessidade de fertilizante e enormemente a quantidade de carbono na
não vai ter a necessidade de nenhum pesticida. atmosfera e que, dessa maneira, contribuir para
a questão da mudança climática.
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E há
dois dias, ele ouviu que, na Suíça, tem uma nova SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele acha
iniciativa que vai proibir o uso de pesticidas no que isso é muito fundamental, porque grande parte
país todo. de terrenos de cultivo agrícola hoje eram florestas,

377
ou seja, eram sistemas que estavam mantendo o SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E
carbono no solo. Quando você desflorestou e o uso seria um sistema muito fácil de reinstalar,
de fertilizantes, ele mencionou o termo que isso reintroduzir.
queima o gás carbônico e manda cada vez mais.
Então, o sistema agrícola é um dos contribuintes SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
mais fortes para a questão de mudança climática. idioma].

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E


idioma]. você tem produtos que tem uma qualidade muito
melhor. Melhores preços e fazendas, fazendeiros
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: É numa situação econômica melhor.
interessante observar quais são as técnicas mais
tradicionais de cultivo. ORADOR NÃO IDENTIFICADO
[01:27:46]: Agora, só uma informação para
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro terminar aqui, nas 17 bacias nossas, todas elas
idioma]. têm o fundo impermeável, todas elas. Todas as
nossas bacias têm o fundo impermeável. E aquilo
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: O que se que o moço falou ainda há pouco, nas bacias, nós
fazia sempre aqui, nas culturas indígenas da América estamos plantando árvores frutíferas para dar
do Sul e ele observou isso na África também, é que alimento para os pássaros. Nós estamos fazendo
eles sempre cultivavam perto de árvores. isso.

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: A

idioma]. pergunta?

378
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Não, não, eu é? Então, como foi feita a negociação para tirar
não tenho pergunta, agora é só uma informação. as pessoas, se eles fizeram isso. Ribeirinho não,
Todas as nossas bacias são de fundo impermeável, na verdade, é nas cidades,  não é? Retirar essas
embora a gente tenha um desgaste muito grande, pessoas que moravam na beira dos córregos.
porque o que está correndo dentro delas é esgoto.
Mas não tenho pergunta, ok? Um abraço e muito [pronunciamento em outro idioma].
obrigado pela informação aí.
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Mais outro idioma].
uma pergunta, então. Duas perguntas, então, duas
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele
perguntas mais, a Tereza e a moça ali.
está dizendo que... ele falou que o principal
SRA. TEREZA: Obrigada. Eu posso fazer a pergunta problema, a principal pergunta que se deve fazer
para eles em inglês? Eu vou falar para eles o que no caso de revitalização é: nós temos espaço? Tem
eu vou perguntar e aí eu pergunto. Bom, o que área para fazer isso? Nesse caso, por exemplo, não
eu quero perguntar para eles é como trabalhar tem, não tem jeito, não tem área, não tem como
com florestas diversas na produtividade, porque você tirar.
aqui eles só aceitam mecanização. Eles usam o
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
eucalipto e cortam tudo com mecanização. Então,
outro idioma].
para você trabalhar com florestas mistas, como
que você faria esse manejo? E para ele, eu vou
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E em
perguntar como ele faria o manejo, quando você
muitos... os limites são muito claros, não pode
vai revitalizar os rios, como você faria para tirar,
ter ilusão quanto a isso. Na Suíça, ele mencionou
porque aqui a gente tem muita inundação, não
muitos quilômetros que são necessários ser

379
revitalizados, mas muitos desses espaços são SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
propriedades privadas e você teria que comprar idioma].
essas terras ou indenizá-los. É aí é muito caro, a
Suíça é um país muito pequeno, o solo é muito SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E, aí,
valorizado. Seria o mesmo caso, talvez, daqui. Os a água não pode penetrar nesse solo, porque fica
limites são muito claros. muito compactado, ela vai fluir na horizontal e as
raízes das árvores não podem respirar, porque o
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro solo pressiona muito.
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
SR. FRANKLIN FREDERIK idioma].
GONÇALVES:  Primeiro, ele achou a sua
pergunta, realmente, muito importante. Antes SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Então,
de responder, ele queria lembrar que, mesmo na se você usar essas máquinas uma, duas vezes,
Austrália, que é a terra do eucalipto, o eucalipto você já mata as possibilidades de recuperação
natural, ele não cresce em monocultura, ele está, desse lugar.
realmente, com outras árvores, não é?
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro idioma].
idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Na
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E a Suíça, por exemplo, eles estão tentando diminuir
mecanização é realmente um problema muito sério, o tamanho dessas máquinas, por causa desse
porque quando você usa máquinas muito grandes, problema de compactação do solo.
tratores, você compacta o solo, é muito pesado.

380
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro Mas eles usam todas as empresas de silvicultura,
idioma]. tanto para carvão, em Minas Gerais, quanto para
celulose, em Minas e Bahia, usam mecanização,
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: [pronunciamento usam tratores,  né? E, depois, eles remexem a
fora do microfone]. terra toda e adubam de novo e, há anos, eles vêm
plantando assim. A gente não consegue vencer
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
essa monocultura.
idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: É, aí é
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele
uma questão política.
acha que o pagamento pelo uso da água, a água
produzida pelas florestas, seria uma solução de ORADORA NÃO IDENTIFICADA [01:38:22]: É,
você também pode financiar uma tecnologia menos há muito tempo que eu estou pensando no assunto.
agressiva. E o que eu estava lembrando ele de Estou pensando no Brasil, agora.
mencionar também, que é um ponto importante
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Faremos, então,
do trabalho dele, é a reintrodução de animais, você
nesse momento, a entrega dos certificados.
usar bois, você usar, de novo, cavalos. Você...

SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Faltou


ORADORA NÃO IDENTIFICADA [01:37:20]: É,
a sua pergunta. Por favor. Faltou a pergunta dela.
o que eu estou perguntando isso é porque eu acabei
de chegar do sul da Bahia, com uma experiência ORADORA NÃO IDENTIFICADA:
de análise de paisagem da Vera Cruz celulose, [pronunciamento em outro idioma].
com grandes plantios, que ela deixa o plantio da
mata ciliar, o que eles chamam de boqueirão, não SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
é? A  floresta fica ali e eles plantam nos platôs. idioma].

381
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: O SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Isso é
primeiro efeito é que você abre cicatrizes na terra, uma possibilidade, mas é claro que aí depende de
isso é óbvio. Os efluentes, dependendo do tipo de você não ter um lugar poluído, né?
mineração que você está usando, se é ouro, por
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
exemplo, mercúrio ou outros.
idioma].

SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro


SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele
idioma].
quer dar um exemplo da Europa, na Europa
central, eles têm, basicamente, 50 tipos de árvores
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Mas
diferentes,  só isso. É  uma [ininteligível] florestal
relativizando um pouco, você também pode ter
muito simples.
situações em que um lugar que foi minerado, uma
mina que está acabando o processo. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Já na
idade média, abrindo clareiras para plantar nessas
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Você florestas, criou esses buracos.
pode criar novas condições para novas espécies que,
talvez, não estariam, anteriormente, naquele lugar. SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma].
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro
idioma]. SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: E
essas clareiras que foram abertas, elas criavam

382
um microclima que era mais quente do que a da SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Ele não
floresta em torno e isso era atraente para espécies sabe se a empresa em causa tinha algum plano de
que vinham do Sul, então, criou certas correntes segurança, de saída de emergência, por exemplo.
migratórias de espécies do Sul para o Norte.
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
SR. ERNST ZÜRCHER: [pronunciamento em outro outro idioma].
idioma].
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Para
Então, só para a gente não ser tão pessimista e começar, a empresa teria que ter um plano. Ele
fundamentalista, de não fazer nada,  né?  Não, mostrou a foto dos peixes, por exemplo. Isso é
pode-se ter um aspecto muito positivo da atuação planificado. Você teria que ter condições de se o
humana na natureza. acidente acontece, ele citou, em menos de meia
hora, de retirar todos os peixes, porque, em meia
ORADOR NÃO IDENTIFICADO [01:43:33]: hora, eles vão morrer, então, você salvaria. Isso
[pronunciamento fora do microfone]. é planejamento. Quando chega a esse ponto,
quando se vê essas fotos, ele fala dos custos de
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em
infraestrutura, muita coisa foi destruída, sistema
outro idioma].
de esgoto, pontes e tal. Quando se fala de
revitalização numa tal catástrofe, isso aí é a última
SR. FRANKLIN FREDERIK GONÇALVES: Se
parte de um projeto aí, que vai levar 20 anos para
você olha as imagens, é de catástrofe.
limpar, para... até chegar nesse ponto, o melhor é
SR. PETER SCHMOCKER: [pronunciamento em prevenir, né?
outro idioma].

383
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA: RECURSOS PROMOTORA DE JUSTIÇA DANIELLE DE
NO SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO, GUIMARÃES GERMANO ARLÉ: Senhoras e
PROFERIDA POR NELSON NERY JÚNIOR, senhores, muito boa noite. Professor Doutor
PARTE DO “PROJETO SEGUNDA-FEIRA ÀS
Nelson Nery Junior, é uma honra contar com
18H” REALIZADA EM 21 DE NOVEMBRO DE
sua presença aqui na nossa casa; Sr. Alexandre
2016
Tavares, Defensor Público, coordenador da área
civil da capital que, hoje, representa a Defensora
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Sejam bem-vindos Pública-Geral Christiane Neves Procópio Malard,
a mais uma edição do Projeto Segunda-feira, muito obrigada, também, pela sua presença.
às 18h, uma iniciativa do Centro de Estudos e
Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público, O nosso Projeto Segunda-Feira às 18h é um
CEAF. E, na edição de hoje, será tratado o
trabalho do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento
tema: Recursos no segundo grau de jurisdição.
Funcional, da Escola Institucional, que visa à
Convidamos, para a Mesa, a diretora do Centro
de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do divulgação do saber jurídico. O CEAF acredita
Ministério Público, Promotora de Justiça Danielle que a educação é a ferramenta mais potente
de Guimarães Germano Arlé. de transformação do Ministério Público e da
sociedade a que ele serve. Nós somos servidores
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Convidamos, também,
do público, Dr. Nelson, assim como a Defensoria,
o nosso professor Doutor Nelson Nery Junior.
Sr. Alexandre, e cremos que a educação é a
MESTRE DE CERIMÔNIAS: Convidamos também forma de estarmos sempre melhorando a nossa
o Defensor Público, coordenador da área civil da atividade. Dr. Nelson Nery Junior comparece hoje
capital, Alexandre Tavares, aqui representando aqui para honrar a nossa Casa. E ele vem falar
a Defensora Pública-Geral Christiane Neves do novo Código de Processo Civil.
Procópio Malard.

384
Dr. Nelson Nery Junior, tenho certeza que todos já o Assim, Dr. Nery, com enorme gratidão, com o nosso
conhecem, é Doutor e Mestre em Direito pela PUC eterno obrigada, o Ministério Público o recebe e
de São Paulo, é doutor em Direito pela Universitat deseja a todos os Membros e Servidores do MP,
Friedrich-Alexander Erlangen-Nurnberg. É também estagiários e operadores do Direito de todos os
professor titular da PUC de São Paulo e da Unesp. demais ramos como Defensoria, Magistratura,
Coordenador do Núcleo de Direitos Difusos e Advocacia e estudantes de Direito, que possamos ter
Coletivos do programa de pós-graduação da PUC uma profícua noite de aprendizado. Muito obrigada.
de São Paulo, vice-chefe do departamento dois
da Faculdade de Direito da PUC de São Paulo e PROFESSOR NELSON NERY JUNIOR: Meu boa
sócio fundador, como advogado, do escritório noite a todos. Eu me sinto muito honrado em
de advocacia Nery Sociedade de Advogados; estar aqui em Belo Horizonte hoje, neste evento
professor colaborador permanente do Centro de importantíssimo que o Centro de Estudos e
Extensão Universitária; professor colaborador Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do
permanente do Instituto Brasiliense de Ensino Estado de Minas Gerais promove, Projeto Segunda-
e Pesquisa; membro da Academia Paulista de feira, às 18h. Quero cumprimentar a Promotora
Direito, da Academia Paulista de Letras Jurídicas; de Justiça Danielle, que é diretora do Centro de
fundador da União dos Juristas Católicos de São Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do MP Minas
Paulo, da Associação Iberoamericana de Direito Gerais; o Sr. Alexandre, que é Defensor Público,
Processual, da Academia Brasileira de Direito Civil, representa a Defensora-Deral de Minas Gerais, aqui
da Associação de Direito de Família e de Sucessões. conosco; acaba de chegar o Promotor de Justiça
É coautor dos projetos de lei que se converteram na Gregório Assagra. Nós nos conhecemos há muito
lei de Ação Civil Pública e no Código de Defesa do tempo. Hoje, ele representa, talvez, uma das mais
Consumidor, dois importantíssimos instrumentos importantes partes do Ministério Público no que
de atuação do Ministério Público brasileiro. respeita a formação funcional, nós estamos aqui no

385
Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, e dizer que os recursos para tribunais superiores são
ele tem dado uma colaboração imensa à atuação de fundamentação vinculada porque eles são de
funcional do Ministério Público, tem manual de difícil trato em manejo pelo profissional do Direito.
atuação funcional, enfim, é um grande formador O advogado tem dificuldade em manejar o recurso
das bases institucionais de estudos do Ministério especial extraordinário, enfim, o tribunal local, que
Público. Então, os nossos cumprimentos ao MP de proferiu a decisão passível de recurso aos tribunais
Minas Gerais através da pessoa do Promotora de superiores, também tem dificuldade no manejo,
Justiça Gregório Assagra, que está aqui conosco. muitas vezes, eles vão apreciar admissibilidade, já
entram no mérito e já começam a decidir temas
Hoje, vamos falar sobre os recursos no segundo que não lhes compete. Isso é muito complicado;
grau para tribunais superiores; segundo grau nem o juiz entende, nem o tribunal entende, o
não é bem o termo e eles não gostam que se advogado também não entende, e pasmem: nem
fale terceiro grau, quarto grau; STJ, TST, TSE e os Ministros do Superior Tribunal de Justiça e do
Supremo Tribunal Federal têm ojeriza quando Supremo Tribunal Federal entendem o que são
se fala que, lá, é terceiro ou quarto grau. Aliás, recursos especiais extraordinários, principalmente.
eles mesmos, os ministros falam em situação de Esses recursos são muito técnicos e são de difícil
tom pejorativo para dizer que não pode. Então, tratamento. Falemos dos recursos no sistema
recurso para tribunal superior é um tema bastante do Código de 2015 para, aí, fazermos, primeiro,
sensível; cada vez mais, há um afunilamento das uma contextualização do que seja esse tema dos
causas que são filtradas para subirem ao exame recursos em geral e, depois, entramos no tema
dos tribunais superiores, em grau de recurso. E, dos recursos para os tribunais superiores.
lá nos tribunais superiores, também se dá a esses
recursos interpostos, para o exame daquelas cortes, O Código, agora, tem uma parte geral, o de 1973 não
um tratamento muito estrito. Então, costuma-se tinha. Essa parte geral tem seis livros, que tratam

386
da generalidade do processo em si. Assim, existe o cumprimento de sentença. Ficou no processo de
primeiro livro das Normas Processuais; o segundo execução, no Código passado, só aquela fundada
da Função Jurisdicional; o terceiro, Sujeitos do em título extrajudicial. O Código de 2015 repete
Processo; quarto, Atos Processuais; o quinto, Tutela essa sistemática e, na parte especial no livro um,
Provisória, que engloba a antiga tutela antecipada trata do processo de conhecimento e cumprimento
e o processo cautelar, agora, estão todos fundidos de sentença; no livro dois, processo de execução,
no instituto denominado tutela provisória; o livro aí só de título extrajudicial; e, aí, o que nos
seis da parte geral trata da formação, suspensão e interessa: livro três da parte especial do CPC 2015,
extensão do processo. Aí, temos a parte especial. do processo nos tribunais. Tudo que deve ocorrer
A parte especial tem o primeiro livro, que é o do no tribunal está regrado nesse livro três da parte
processo de conhecimento e cumprimento de especial do Código de Processo Civil. Temos as ações
sentença. Esse cumprimento de sentença é uma de competência originária de tribunal como ação
coda, um rabicho, um prolongamento do processo rescisória, homologação de sentença estrangeira,
de conhecimento, já foi objeto de uma reforma no alguns incidentes dentro do processo, mas nos
CPC de 1973 porque, antes, proferida a sentença tribunais, incidente de inconstitucionalidade,
no processo de conhecimento, passávamos para o declaração de inconstitucionalidade; temos agora
livro dois, processo de execução, que era fundado a reclamação e temos o incidente de resolução de
em título judicial e título extrajudicial. Podia se demanda repetitiva, o incidente de assunção de
iniciar uma execução com base nessas duas competência, são vários incidentes que ocorrem
categorias e títulos executivos. O que aconteceu, ou que podem ocorrer no âmbito do tribunal, isso
numa reforma no CPC 1973, foi que uma execução no que tange à competência originária; depois,
de sentença ou de título executivo judicial temos os recursos, que é a segunda competência
passou a integrar o processo de conhecimento dos tribunais, também regrada nesse livro três da
como um prolongamento dele e com o nome de parte especial do CPC 2015.

387
Nessa questão dos recursos, mudou bastante a previamente definidos no regimento interno, em
matéria geral. Em primeiro lugar, extirparam- número suficiente para garantir a possibilidade
se alguns recursos, não há mais os embargos de inversão do resultado inicial [...]”. Em outras
infringentes e não existe mais o agravo retido. palavras, se houver um julgamento numa Câmara
São dois recursos que foram eliminados no Código de cinco e der quatro a um, teremos que trazer mais
atual. O agravo retido não existe, só se previu, desembargadores; ministro, nesse procedimento,
no primeiro grau, o agravo de instrumento, está não cabe. Deverá haver número suficiente para
lá regrado no art. 1.015 do Código de 2015, e se inverter o julgamento. Há tribunais estaduais
os embargos infringentes não têm mais guarida em que as Câmaras são formadas por cinco
no CPC de 2015, mas acontece que criaram um desembargadores. São Paulo é assim. São Paulo
fenômeno meio estranho chamado julgamento tem 366 desembargadores e outros 400 juízes de
com extensão do órgão julgador. Quando ocorre segundo grau, entre juízes substitutos de segundo
um julgamento de uma apelação, por exemplo, de grau, que é o nome, os juízes que estão convocados
uma ação rescisória, mandado de segurança, por em segundo grau e os de entrância final alocados
dois a um, não se encerra o julgamento, não se no tribunal. Ao todo, 650 desembargadores
pode promulgar a decisão; o presidente tem que tem o Tribunal de Justiça de São Paulo e os 650
aumentar o órgão julgador, que era de três, foi dois atuam. Dessa forma, não pode haver uma unidade
a um, passa a ser de cinco, no mínimo, em número jurisprudencial, isso não existe. As câmaras são
suficiente que dê para reverter a decisão inicial não compostas de cinco desembargadores. Os cinco
unânime. Então, esse prolongamento está previsto estão ali, e formam a Câmara e a turma julgadora.
no artigo 942: “Quando o resultado da apelação não Na turma julgadora, há três, que julgam a ação, os
for unânime, o julgamento terá prosseguimento em outros dois estão presentes, são cinco que estão
sessão a ser designada com a presença de outros no dia do julgamento. Deu dois a um, se os outros
julgadores, que serão convocados nos termos dois estiverem habilitados, o presidente continua o

388
julgamento e os outros dois já proferem voto. Se os Esses embargos infringentes não existem mais,
dois não estiverem habilitados, um deles pode pedir agravo retido também não, e mudaram a sistemática
vista e o presidente não promulga o resultado e do agravo de instrumento. Estou só contexualizando
adia para a sessão seguinte a continuidade daquele tudo para a gente entrar nos tribunais superiores.
julgamento. Os desembargadores costumam O agravo de instrumento, hoje, não é cabível de
dizer que ficou pior do que era antes. Hoje não é qualquer interlocutória, só das interlocutórias
possível interpor os embargos infringentes, hoje taxativamente previstas no art. 1.015. Deve ser
é de ofício, não se pode terminar o julgamento. considerado aquele rol do artigo 1.015: “Caberá
Aparecem embargos infringentes de ofício a toda agravo de instrumento das interlocutórias que
hora. Os desembargadores reclamaram muito decidirem sobre[...]”. São 13 itens, mas um foi
desse instituto. E há quem diga que ele é novo. vetado, assim, são 12 hipóteses de cabimento de
Quem elaborou esse instituto foi o Fredie Didier, agravo de instrumento; esse elenco é explicitado
lá da Bahia, nosso querido colega, quando estava em numerus clausus, taxativa a relação do artigo
ajudando a Câmaras dos Deputados. No meu 1.015. Não é cabível o agravo de instrumento e
comentário ao CPC, eu trago aqui uma nota, a nota parece que a interlocutória não é mais recorrível,
três ao art. 942, que dá a origem desse instituto ela é, só que não o é por agravo de instrumento.
exatamente como ele é aqui no CPC de 2015. Está Evidentemente que, quando houver a sentença, eu
previsto nas ordenações afonsinas, livro um, título poderei apelar e, na minha apelação, vou declarar:
um, nº 3, que são de 1446. Só tem 650 anos esse “Existia uma interlocutória lá atrás que não era
instituto, que o pessoal pensa que é novo. Foi agravável, só que eu quero impugnar agora, eu
repetido esse instituto nas ordenações manoelinas, acho que uma pergunta que eu fiz na audiência
em 1503, e nas Filipinas, em 1641. Novidade, não o juiz indeferiu, acho que cerceou minha defesa,
existe nenhuma. Isso aqui é uma velharia arcaica agora, eu vou afirmar”. Existe um dispositivo no
mesmo, do “tempo do onça”. art. 1.019, que regula a apelação, o § 1o, que

389
estabelece: “As interlocutórias que não precluíram de 1973, o juiz pegava a apelação, via se era
porque não foi objeto de interposição de agravo tempestiva, se tinha preparo, se a parte era
porque não cabia, não preclui, portanto, podem legítima, conferia os requisitos de admissibilidade
ser avivadas agora, na preliminar na apelação” e indeferia o procedimento, por ser intempestivo.
[sic]. Isso não é agravo retido. Agravo retido Se a parte quisesse, interpunha um agravo contra
tem que ser interposto na hora, fazer razões na essa decisão do juiz. A parte contra-arrazoava
hora e reiterar na apelação. A nova sistêmica é e mandava os autos para o tribunal. Hoje, na
aproximada com o recurso ordinário do processo sistêmica de 2015, eu não falo mais com o juiz, o
do trabalho. Interlocutórias não são agraváveis, juiz deu a sentença, terminou e acabou o seu ofício
quando o juiz do trabalho lavra a sentença, eu jurisdicional. Se eu quiser interpor embargos de
entro com o recurso ordinário, que é a nossa declaração, cabem, evidentemente, mas, saindo
apelação. Aqui, eu deixo as interlocutórias sem daí, não é mais possível ao juiz decidir nada, de
impugnar, não cabe agravo, quando o juiz profere modo que, se eu interpuser uma apelação, quem
a sentença, eu apelo e, na preliminar de apelação, vai decidir se cabe ou não cabe, se conhece ou não
especifico qual interlocutória quero impugnar. conhece, é o tribunal. Essa modificação achei correta
Não podem estar no rol do artigo 1.015. Se porque, no final das contas, é o próprio tribunal
estiverem e eu não agravei, precluiu, não tenho que sempre decide mesmo. Ficava um caminho
oportunidade de reiterar na apelação, ou de fazer duplo: o juiz dava admissibilidade, eu entrava com
uma preliminar de apelação. agravo para o tribunal apreciar. O sistema atual
abreviou isso. Fizeram isso com o recurso especial
O juízo de admissibilidade de apelação foi
e o extraordinário também, mas o STJ não gostou
modificado, ou seja, o juiz não pode mais receber
e editou uma lei, a nº 13.256 do começo deste
a apelação. Estamos falando tanto do processo
ano, mudando a sistemática de admissibilidade dos
físico quanto do processo eletrônico. No sistema

390
recursos especial e extraordinário. Foi modificada tribunais, inclusive com relação à produção de
a fórmula originária do CPC de 2015, que previa prova, bem como, quando for o caso, homologar
admissibilidade dos recursos em geral sempre no autocomposição das partes; apreciar pedido de
órgão ad quem, o órgão competente para julgar tutela provisória nos recursos, nos processos de

o mérito dos recursos. Na apelação de hoje, o competência originária do tribunal; não conhecer

juiz não examina nada. Se for um processo físico, de recurso inadmissível prejudicado ou que tenha
impugnado especificamente fundamentos da
ele vai determinar que suba ao tribunal. Ele pode
decisão ocorrida”. No inciso quatro, lê-se “negar
estar vendo que é intempestivo, está estampado
provimento a recurso que for o contrário a Súmula
que é intempestivo aquele recurso, ele não poderá
do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal
fazer nada, deverá mandar subir ao tribunal. Se
de Justiça ou do próprio tribunal;” Na letra b: negar
for um processo eletrônico, eu farei o upload direto
provimento quando for contra “acórdão proferido
no tribunal, então, o tribunal é que vai decidir se
pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior
meu recurso deve ser conhecido ou não deve ser
Tribunal de Justiça em julgamento de recursos
conhecido. repetitivos”; na letra c: “negar provimento quando
a decisão for contrária ao “entendimento firmado
Contextualizamos os recursos, vimos o que
em incidente de resolução de demandas repetitivas
mudou de mais importante, evidentemente que
ou de assunção de competência”. Depois, facultada
há outras modificações. Inicialmente, temos
a apresentação de contrarrazões, o juiz deve “dar
que verificar os poderes do relator nos tribunais
provimento ao recurso se a decisão recorrida for
superiores, incluindo o tribunal de segundo grau.
contrária a súmula do Supremo Tribunal Federal,
Esses poderes estão estatuídos no artigo 932
do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio
do CPC: “Incumbe ao relator”. Aqui, existem
tribunal; acórdão proferido pelo Supremo Tribunal
oito situações: “dirigir e ordenar o processo nos
Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em

391
julgamento de recursos repetitivos;” na letra c: para que seja sanado o vício ou complementada
“entendimento firmado em incidente de resolução a documentação exigível”. Aqui se manifesta uma
de demandas repetitivas ou de assunção de nítida posição do legislador de 2015 de, digamos,
incompetência”. No inciso VI: “Decidir incidente de ‘obstaculizar’ a denominada, impropriamente
desconsideração da personalidade jurídica, quando e de forma pejorativa, eu não gosto dessa
este for instaurado originariamente perante o terminologia, mas o pessoal usa, jurisprudência
tribunal”; No inciso VII: “Determinar a intimação defensiva. Em outras palavras, o relator não pode
do Ministério Público, quando for o caso”; No inciso indeferir o recurso porque falta procuração, falta
VIII: “Exercer outras atribuições estabelecidas no peça essencial não consta preparo. Ele tem que,
regimento interno do tribunal”. Pode-se dizer, o primeiro, intimar o recorrente. O Código não diz
relator pode tudo, não é quase tudo. Eu estava para sanar vícios sanáveis, ele determina sanar o
fazendo uma exposição no Instituto de Direito vício ou complementar a documentação exigível.
Público lá em Brasília, a convite do Ministro Gilmar O Código quer que o tribunal julgue o recurso. O
Mendes, do Supremo Tribunal Federal e falei que, sistema quer que o tribunal julgue o mérito. É uma
conforme o artigo 932, o relator seria um semideus. postura bastante interessante essa do artigo 932
O Ministro Gilmar Mendes interveio e perguntou do novo Código de Processo Civil.
por que seria semi. Uma determinação importante
que o CPC traz para, digamos, flexibilizar esse Deparei, na semana passada, com uma situação
poder quase que absoluto do relator, tanto nos inusitada. Ato do relator é sempre passível de
tribunais regionais, federais e tribunais de justiça agravo interno, segundo o artigo 1.021 do Código
quanto nos tribunais superiores, foi o Parágrafo de Processo Civil: “Contra a decisão proferida
Único desse artigo 932, o qual estabelece: “Antes pelo relator caberá agravo interno para o
de considerar inadmissível o recurso, o relator respectivo órgão colegiado, observadas, quanto ao
concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente processamento, as regras do regimento interno do

392
tribunal”. O relator pode tudo, desde que o ato dele 1.015 descreve: “Cabe agravo de instrumento
não seja impugnado. Ele é impugnável. Então, se contra as decisões interlocutórias que versarem
a parte se sentir prejudicada com o ato do relator, sobre”, inciso I: “tutelas provisórias”. É o caso.
poderá entrar com agravo interno. Segue para o Não pode ficar sem recurso uma medida dessas.
órgão colegiado resolver essa circunstância. Na Então, fazendo-se uma analogia com as decisões

semana passada houve uma situação diferente interlocutórias do primeiro grau, as de segundo
grau, evidentemente, têm que ser impugnáveis
porque se ingressou com uma cautelar, para dar
também e o recurso, cabível a agravo interno.
efeito suspensivo a um recurso no próprio tribunal,
Fui consultado a esse respeito, concluí que cabia
o Regional Federal da 3a Região São Paulo, e o
recurso. O processo é muito dinâmico e o Código
vice-presidente, a quem compete apreciar essas
tem que ser posto à prova para a jurisprudência
liminares em recurso especial ou extraordinário,
e a doutrina construírem as possibilidades que
proferiu uma decisão negando a liminar; a parte
têm que ser construídas e se aperfeiçoarem os
entrou com agravo interno e o vice-presidente do
institutos que foram adotados pelo CPC.
tribunal declarou não ser relator, mas presidente
portanto não caberia o agravo. Lendo-se literalmente Vimos que o relator pode quase tudo no Supremo
o CPC, ele tem razão, mas não é isso que o CPC Tribunal Federal, no Superior Tribunal de Justiça
quer. O sistema não quer que o presidente dê uma e nos tribunais, também, locais. Vamos, agora,
decisão gravíssima, como é o caso de uma liminar abordar os recursos para os tribunais superiores.
cautelar, dando ou negando, enfim, e que não seja No que nos toca aqui mais de perto, falemos do
passível de um recurso. Deve-se fazer uma analogia extraordinário e do especial, porque também há
com o artigo 1.015. Aqui, estamos diante de uma recursos para outros tribunais superiores, como
decisão interlocutória, não de um relator, mas de o recurso especial eleitoral, para o TSE; existe
um presidente do tribunal e essa interlocutória o recurso de revista para o TST. Então, existem
resolveu uma matéria de tutela provisória. O artigo recursos também para outros tribunais superiores,

393
mas o que nos ocupa mais, os que apresentam instância, em qualquer tribunal. Os específicos
mais problemas são os recursos para o Superior para os tribunais superiores são recurso ordinário
Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. constitucional e recurso extraordinário para o
Competência de tribunal superior só pode ser STF e especial para o STJ. Além disso, existe o
dada pela Constituição Federal. Isso é uma regra agravo interno cabível no âmbito de qualquer
absolutamente basilar, não existe a possibilidade tribunal, assim como também existe o agravo
de a lei ordinária criar competências para específico contra indeferimento ou negativa de
tribunais superiores não previstas na Constituição conhecimento, ou, ainda, desprovimento de
Federal. Isso é básico. Se não houver previsão na recurso especial extraordinário pelos tribunais
Constituição Federal, não será da competência do recorridos. O STF é que detém a competência final,
Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de última, definitiva sobre admissibilidade e mérito de
Justiça. Nem a lei infraconstitucional pode aumentar recurso extraordinário. O mesmo raciocínio vale
a competência do Supremo Tribunal Federal e do para o recurso especial do STJ. O TRF primeira
Superior Tribunal de Justiça, incluam-se aqui o região, que é em Brasília, julga questões federais
Tribunal Superior Eleitoral e o Tribunal Superior do de Minas Gerais. Se o presidente local, do tribunal
Trabalho; do mesmo modo, a lei infraconstitucional local, indefere o recurso, cabe um agravo contra a
não pode diminuir a competência desses tribunais decisão de negatória de especial e extraordinário
superiores. o art. 1.027 do CPC anuncia: “Serão que vai para o STF ou STJ, conforme o caso, e a
julgados em recurso ordinário” [...]. Os recursos previsão está no art. 1.042 do Código de Processo
para os tribunais superiores são recurso ordinário Civil, o qual preleciona: “Cabe agravo contra decisão
constitucional; recurso extraordinário, para o do presidente ou do vice-presidente do tribunal
STF; recurso especial, para o STJ; embargos de recorrido que inadmitir recurso extraordinário ou
declaração cabem de qualquer decisão judicial. recurso especial, salvo quando fundada na aplicação
Então, esse recurso é cabível em qualquer de entendimento firmado no regime de repercussão

394
geral ou em julgamento de recursos repetitivos”. de segurança, mandado de injunção, habeas
data decididos em única e última instância por
É importante frisar que a Constituição Federal tribunais superiores, desde que seja denegatória,
atribui a tribunal superior competência originária porque, se for concessiva, não vai caber o recurso
e recursal. Assim, competência não pode ser ordinário constitucional. Esse recurso ordinário
dada pela lei infraconstitucional, ainda que seja previsto no artigo 102, inciso 2, da Constituição
codificada, que seja o CPC. As hipóteses de também está previsto no 105, inciso 2, para o
cabimento do especial, do extraordinário e do STJ: “Compete ao Superior Tribunal de Justiça [...]
ordinário estão previstas expressamente no texto julgar, em recurso ordinário[...]”. O CPC dispõe:
da Constituição Federal. Estabelece-se o Recurso “A - Mandado de segurança decididos em única
ordinário, Supremo Tribunal Federal, competência, instância pelos tribunais regionais federais ou
no artigo 102, inciso II: “Compete ao Supremo pelos tribunais de justiça dos estados e do Distrito
Tribunal Federal conhecer em grau de recurso Federal e territórios quando denegatória a decisão”
ordinário” [sic]. A sigla do Supremo é ROC, [sic]. Quando for concessiva, só caberá a especial.
Recurso Ordinário Constitucional. Ali constam as Incluem-se os processos em que forem partes,
situações de cabimento do recurso ordinário para de um lado, estado estrangeiro, o organismo
o Supremo Tribunal Federal. O artigo 1.027 do CPC internacional e, de outro, município ou pessoa
estabelece: “Serão julgados em recurso ordinário”, residente, domiciliada no país. Então, esses são os
em seu inciso I: “pelo Supremo Tribunal Federal, casos de recurso ordinário para o STJ, previstos na
os mandatos de segurança, os habeas data e os Constituição, repetidos no CPC. O que o CPC faz é
mandatos de injunção decididos em única instância repetir a Constituição. Nem poderia ser diferente,
pelos tribunais superiores, quando denegatória a não pode nem aumentar nem diminuir as hipóteses
decisão [...]”. a competência do STF ocorre só nesse de cabimento do recurso ordinário constitucional.
caso, para conhecer de recurso ordinário, mandado

395
O recurso ordinário constitucional é uma apelação STF, eventualmente. Tenho percebido que o STJ e
na verdade. É uma apelação para o Superior Tribunal o STF querem fazer valer os preceitos dos recursos
de Justiça ou para o Supremo Tribunal Federal, excepcionais, extraordinário e especial, também
conforme o caso. Portanto, se é uma apelação, no ordinário. Isso é inconstitucional. O recurso
não apresenta aqueles rigores do especial e do ordinário é um recurso de apelação na verdade.
extraordinário. É como se eu estivesse apelando Eles não podem querer dificultar o andamento,
da decisão do tribunal. Por exemplo, abriga o o processamento, conhecimento do recurso
mandato de segurança originário contra um ato ordinário constitucional a pretexto de que é um
do governador do estado; certamente, existe uma recurso destinado a tribunal superior. É destinado
previsão na Constituição de Minas que, quando a tribunal superior, mas não tem vinculação, não
se tratar de ato administrativo do governador, se é um recurso de fundamentação vinculada, é
eu quiser impugnar e ele for o ator ou coautor, o um recurso de fundamentação ampla, de amplo
mandado de segurança deverá ser impetrado no espectro. Tanto assim é que o artigo 1.028 do
Tribunal de Justiça. Normalmente, ocorre assim CPC dispõe: “Ao recurso mencionado no art.
nos estados da federação. Para esse mandado 1.027, inciso II, alínea “b”, aplicam-se, quanto aos
de segurança originário do Tribunal de Justiça, se requisitos de admissibilidade e aos procedimentos,
a decisão for denegatória, poderei apelar para o as disposições relativas à apelação e o Regimento
Supremo se a matéria for constitucional. Devem- Interno do Superior Tribunal de Justiça”. Não é só
se esgotar as vias ordinárias para poder ir para o nessa hipótese, na verdade, como a apelação é
Supremo Tribunal Federal. Portanto, se Tribunal de um instituto ordinário do direito processual civil,
Justiça de Minas negar o mandado de segurança é o recurso ordinário por excelência; faz parte da
contra o governador, será interposto Recurso teoria geral dos recursos de que todos os preceitos
ordinário para o STJ. Essa é a medida. Se o STJ da apelação, em princípio, são aplicáveis aos
decidir o ordinário, caberá extraordinário para o demais recursos, salvo disposição expressa em

396
sentido contrário. Como aqui estamos diante de uma negativa de concessão da ordem, denegação
uma apelação para o Supremo Tribunal Federal e da ordem, e também entram as decisões que
para o Superior Tribunal de Justiça, que é o recurso resolvem o processo sem resolução do mérito.
ordinário, na verdade, no meu modo de ver, cabe Entenda-se que isto é uma decisão denegatória,
todo o procedimento e tudo que nós dissermos não me concedeu a ordem. Não importa se foi
sobre apelação caberá para enfrentarmos recurso pela forma ou pelo fundo, se foi pela extinção
ordinário constitucional. do processo de mandado de segurança e dos
outros [ininteligível] sem resolução no mérito ou
A competência de juiz federal de primeiro grau está se resolveu o mérito e denegou a ordem assim
regulada no artigo 109 da Constituição. A do STJ mesmo. Então, tudo isso é decisão denegatória
está descrita no artigo 105 e no Regimento Interno passível de recurso ordinário constitucional.
do STJ. Nesses casos, o TRF não tem competência
para decidir matéria recursal, portanto, cabe Falemos agora no recurso especial e no
direto recurso ordinário para o STJ ou o STF, extraordinário, que são recursos bastante
depende do caso. Agora é preciso entender o complicados para exame. São recursos
que é a decisão denegatória. Está estabelecido excepcionais, não se configuram como terceiro
que cabe recurso ordinário quando a decisão for grau de jurisdição, nem como quarto grau. Se são
denegatória, mandado de segurança, mandado de excepcionais, a fundamentação deles é vinculada
injunção, habeas data de competência originária. na própria Constituição Federal. A Constituição
Denegatória é aquela decisão que não concede a Federal em seu artigo 102, inciso 3, determina que
ordem, ou a injunção, ou habeas data, ou mandado compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer,
de segurança, ou habeas corpus, não concedeu no grau de recurso extraordinário, decisões,
por qualquer razão, não importa, é denegatória. causas decididas, em última única ou instância.
Aqui entram as decisões de mérito, em que há Assinala as hipóteses, como negativa de vigência

397
da Constituição. Por sua vez, o artigo 105, inciso hipóteses de cabimento. A Constituição determina
3, determina que compete ao Superior Tribunal que cabe recurso especial extraordinário, não é
de Justiça conhecer, em grau de recurso especial, o CPC. Lá na Constituição, estão as hipóteses. É
causas decididas em única e última instância pelos preciso discutir o que é causa decidida. Deve haver
tribunais; aqui é mencionado tribunal, o 102 não um ponto que suscita uma questão que é debatida,
menciona tribunal, por isso é que cabe recurso em seguida, é discutida e é decidida. Isso é causa
extraordinário, para o STF, de decisão de colégio decidida, se não for decidida, não caberá o especial
recursal, juizados especiais. Por isso é que não e o extraordinário. Temos décadas de discussão
cabe especial quando o colégio recursal ofende a lei no Brasil sobre prequestionamento. Isso aparece
federal, mas cabe extraordinário quando o colégio nos bancos da faculdade de Direito; nos cursinhos
recursal ofende a Constituição Federal. Isso já está de preparação; nos acórdãos locais; nos acórdãos
assentado em súmula do STJ, do STF, decisões já do STF e do STJ. Existiu, num pequeno momento
consolidadas. Isso porque a Constituição é que da vida nacional, na vigência da Constituição de
estabelece quais são os requisitos de cabimento 1946, que acatava prequestionamento; após esta,
do especial e do extraordinário. E, quanto ao adota-se a causa decidida. O ministro Moreira Alves
especial, descreve caber recurso especial, para o tinha uma metáfora que ele gostava de usar nas
Superior Tribunal de Justiça, das causas decididas palestras e eu sempre repito, hoje, está nos meus
em única ou última instância pelos tribunais livros. Deve-se colocar a questão no retângulo, a
regionais, federais ou tribunais dos estados. O fim de se decidir se cabe extraordinário ou especial.
artigo 1.029 nem trata da Constituição Federal Se houver uma questão sobre a qual o tribunal
nem dá as hipóteses. Estabelece assim: “O local não se pronunciou, não estará no retângulo.
recurso extraordinário e o recurso especial, nos Se a matéria está no acórdão, é causa decidida.
casos previstos na Constituição, serão interpostos O tribunal precisa decidir a matéria. Por isso é
perante presidente [...]”. Ele não define as que cabia recurso especial no sistema passado

398
por ofensa ao artigo 535 do Código passado. Se o não decidir, a lei considera decidida essa matéria.
tribunal não decidiu, o problema é dele, só que a A parte já vai para o Superior Tribunal de Justiça
Constituição não estabelece o prequestionamento ou para o Supremo Tribunal Federal sabendo
como requisito de admissibilidade do especial e que essa matéria está prequestionada, vamos
do extraordinário, a Constituição estabelece causa usar o termo errado, mas corrente, a matéria
efetivamente decidida. Não decidiu, não está na está prequestionada, está dentro do acórdão.
admissibilidade do especial e do extraordinário. Isto com uma condição, que é a última parte do
artigo 1.025: desde que, caso o tribunal superior
Percebe-se que é um falso problema o do considere existentes. Ele tem que considerar que
prequestionamento. O artigo 1.025 do Código eram cabíveis e deveria ter sido provido o recurso
de Processo Civil determina sobre embargos de de embargos de declaração. Se o tribunal superior
declaração: “Consideram-se incluídos nos acórdãos entende que os embargos de declaração não
os elementos que o embargante suscitou para os tinham aquela força toda que o recorrente pensa
fins de pré-questionamento, ainda que os embargos que tinham, ele pode dizer que o tribunal está certo
de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, e considerar não prequestionada aquela matéria,
caso o tribunal superior considere existentes erro, porque não deveria ter sido objeto de interposição
omissão, contradição ou obscuridade”. Traduzindo do especial e do extraordinário.
em miúdos: eu entro com embargos de declaração
“prequestionadores”, o tribunal nega provimento a Cito aqui a Súmula nº 282 do Supremo e a
esses embargos de declaração. Pretendo discutir nº 356 do Supremo, aquelas que dizem que o
situação em que o tribunal fica renitente e não ponto omisso sobre o qual não se pronunciou a
quer decidir uma matéria. Está decidida. Aqui, decisão não poderá ser objeto de recurso especial
encontra-se uma fictio iuris, é uma ficção jurídica extraordinário, a súmula fala só extraordinário,
que o sistema idealizou. Se o tribunal não decidir,
mas se aplica também ao especial, se não tiverem

399
sido interpostos embargos de declaração para excepcional. Em países como França, Itália,
prequestionar a matéria. Prequestionamento, na Alemanha, Portugal, existem cortes de cassação.
verdade, é um falso problema, o que nós temos Nesses países, os recursos excepcionais só têm
que ter é a decisão efetiva da matéria para que ela o juízo de cassação. Então, se alguém ofendeu a

possa ser submetida a “rejulgamento”. Ressalte-se, Constituição, entra com um recurso lá na Itália,

o extraordinário e o especial são recursos, não são chamado recurso de cassação, vai para a corte de
cassação. Esta dá provimento ao recurso e caça a
cursos. Por essa razão o Superior Tribunal de Justiça
decisão. Isto a torna inútil, sem efeitos, inválida;
e o Supremo Tribunal Federal não podem conhecer,
em seguida, ele devolve os autos para a corte
pela primeira vez, de uma matéria que não tenha
de Roma julgar de novo. No nosso sistema, os
sido objeto de recurso. Ele só pode rejulgar e não
tribunais superiores, além do juízo de cassação,
julgar em grau de recurso. Nos pontos em que o
têm o segundo juízo, que é o juízo de revisão. O
CPC determina que as matérias de ordem pública
juízo de cassação é esse previsto pela Constituição
não precluem e podem ser alegadas a qualquer
nos artigos 102-3 e 105-3, ou seja, se ofendeu a
tempo e grau de jurisdição, entendamos, graus Constituição, será o Extraordinário; se ofendeu a
ordinários, os graus excepcionais têm que ter lei federal, será o Especial. No Brasil, os tribunais
previsão na Constituição, senão, não cabe. superiores têm dois juízos, com competência para
não só caçar como também rejulgar. No juízo de
Neste último ponto, pretendo tratar com vocês a
cassação, ocorrem todas as limitações previstas
respeito do que faz o Supremo Tribunal Federal e
na Constituição do artigo 105-3 e do artigo 102-
o que faz o Superior Tribunal de Justiça no recurso
3, ou seja, questão decidida em última instância
especial extraordinário. No Brasil, nós não temos
e, portanto, eu tenho que esgotar as instâncias
uma divisão entre os dois juízos que ocorrem
ordinárias. Precisa ser uma questão de direito,
quando o tribunal superior examina um recurso
porque é uma questão decidida pelo tribunal,

400
não pode ser uma questão de fato, tem que ser tema: “Admitido o recurso extraordinário ou o
uma questão de direito. Depois, tem que ser uma recurso especial, o Supremo Tribunal Federal ou
matéria de estrita fundamentação como previsto o Superior Tribunal de Justiça julgará o processo,
na Constituição, não posso inventar uma matéria aplicando o direito”. Ressalte-se: “aplicando o
nova. Ofendeu a Constituição, divergência de direito”. O Parágrafo Único acrescenta: “Admitido
jurisprudência, especial, alínea “c” do inciso III do o recurso extraordinário ou o recurso especial por
art. 105. Por sua vez, na revisão, o tribunal superior um fundamento, devolve-se ao tribunal superior
pode tudo, literalmente tudo. Nos casos em que for o conhecimento dos demais fundamentos para a
necessário proferir uma nova decisão, será como solução do capítulo impugnado”. Aqui foi feita uma
se ele estivesse julgando apelação; poderá rever codificação, colocou-se dentro do CPC aquilo que
prova, poderá julgar de ofício matéria de ordem já estava expresso na Súmula nº 456 do STF e
pública que não tinha sido julgada na decisão no artigo 257 do Regimento Interno do Supremo.
anterior. Cassado o acórdão de juízo de revisão, os Tudo aquilo que consta no juízo de cassação,
tribunais julgam o que tiverem que julgar. Aplica- aquelas restrições, desaparecem quando cassam
se o direito à espécie, Súmula nº 456 do Supremo o acórdão. Nesse constexto, pode-se rever prova,
Tribunal Federal. Ocorre que existe uma atecnia julgar questão de ordem pública não decidida e
também, na Súmula nº 456: “O Supremo Tribunal ainda outros casos.
Federal, conhecendo do extraordinário, julgará a
causa, aplicando o direito à espécie”. O artigo 257 do Quero dizer que fiquei muito contente de poder
Regimento Interno do STJ segue a mesma linha. Na voltar a Minas Gerais e participar aqui no Centro
verdade, não é ao conhecer, ao prover, se o tribunal de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do
der provimento ao especial e ao extraordinário, ele Ministério Público do Estado de Minas Gerais, sob
cassará, passará a “rejulgar”, vai aplicar o direito direção da querida Promotora de Justiça Danielle,
à espécie. O artigo 1.034 do CPC trata desse para discutir com vocês essas questões dos

401
recursos nos tribunais superiores. Cumprimento continua não se pronunciando sobre a matéria. Eu
o Promotor de Justiça Gregório, agradeço muito estou entrando com o especial já com a premissa
a atenção que ele dispensou vindo aqui prestigiar de que isso está dentro do acórdão.
nossa exposição, Sr. Alexandre, representando a
defensoria pública, e a vocês todos, que tiveram ORADOR NÃO IDENTIFICADO: É, mas eu
a paciência de me ouvir nesse começo de noite. não alego mais aquela nulidade porque não
Espero revê-los numa outra oportunidade. Estou correspondeu?
à disposição para perguntas, se vocês quiserem
SR. NELSON NERY JUNIOR: Não se alega mais
fazer perguntas, por favor.
nulidade por conta disso.

ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Professor, muito


ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Então, até que
boa noite. Eu sou Procurador de Justiça aqui da
nós não estamos errando tanto. Quanto aos poderes
Procuradoria de Direitos Difusos. Atuamos muito
do relator, o que se observa é que, nos Regimentos
nessa parte dos recursos especiais e extraordinários
Internos tanto do Superior Tribunal de Justiça
e estão surgindo várias dúvidas. A primeira, o quanto do Supremo Tribunal Federal, os poderes
senhor mencionou, refere-se à possibilidade, nos ainda são ampliados, porque, praticamente, no
recursos especiais, de alegar a violação do artigo recurso especial, quase todas as decisões são
535; parece que agora perdeu o sentido em razão monocráticas, mesmo além daquelas hipóteses
do prequestionamento implícito. Não se justifica prevista no CPC. Então, eles estão ampliando,
mais fazer esse tipo de alegação? em Regimento Interno, o que não está nem
previsto no CPC.
SR. NELSON NERY JUNIOR: Não é que não se
justifica, você tem que mencionar o artigo 1.025. Se SR. NELSON NERY JUNIOR: Isso é um desvio
eu entrei com embargos de declaração, o tribunal evidentemente e é inconstitucional, além de ilegal,

402
porque fere o CPC. SR. NELSON NERY JUNIOR: Também não estão
errados, não. O STJ tem um procedimento, basta
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Praticamente, entrar no site e verificar o andamento dos processos
não tem mais decisão do Superior Tribunal de no Diário Oficial da União, as decisões do STJ e do
Justiça, primeiro, aquela primeira decisão é sempre Supremo em recurso especial e extraordinário: em
monocrática, o reclamante tem sempre que fazer o 99,99% dos casos, ele indefere o recurso especial
agravo interno. e o extraordinário, monocraticamente.

ORADOR NÃO IDENTIFICADO: E ainda está SR. NELSON NERY JUNIOR: Não é possível que
havendo um outro problema; no Regimento do
não haja um advogado deste país, um promotor
Superior Tribunal de Justiça, pelo menos, até a
de justiça, um procurador de justiça que faça um
semana passada, não o adaptaram ao novo CPC
recurso coerente. Falando com alguns ministros,
com relação ao prazo do agravo interno; ainda
alguns confidenciam, outros nem tanto, eles
estão mantendo aquele prazo de cinco dias, sendo
admitem que a ordem no gabinete é indeferir
certo que existe um dispositivo expresso que é 15
tudo. Se o advogado recorrer e for uma situação
dias, até no caso do Ministério Público, seria 30,
muito escandalosa, o tribunal vai rever, mas, em
com a contagem em dobro e ainda em dia útil.
princípio, indefere-se tudo.
SR. NELSON NERY JUNIOR: Agora é 15. Dias
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: E todos
úteis, exatamente.
monocráticos. E alguns já vêm da própria
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Nós estamos presidência, ao que parece.
considerando esse prazo, não estamos errados
SR. NELSON NERY JUNIOR: Indefere-se tudo. A
também.
regra é que os processos acabam morrendo mesmo

403
na decisão de indeferimento monocraticamente. para propor ação. Isso é um erro de estratégia de
advocacia. O MP, quando move Ação Civil Pública,
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Boa noite. é advogado, então, ele tem que saber como agir
Só para complementar a pergunta anterior. Em com cabeça de advogado. Em vez de argumentar
relação a esse prazo, deve-se considerar o do CPC, que o ministro está usando o prazo de regimento,
de interposição. Acredito que seria interessante que é ilegal e é inconstitucional, vou usar a lei
fazer uma preliminar, demonstrando-se a questão brasileira em vigor, que é o Código de Processo
que estaria dentro do prazo. Civil, e vou entrar com a medida. Se o tribunal
alegar: “Esse prazo, contado em dia útil, só vale
SR. NELSON NERY JUNIOR: Eu acho que nem
para os tribunais regionais, federais e Tribunais
há necessidade. Se o tribunal indeferir por isso, aí,
de Justiça”, estrá descumprindo o texto expresso
você entra com agravo interno alegando um erro.
da lei federal. Nesse caso, compete à parte entrar
Quando trabalhei no Ministério Público, vi o começo
com recurso extraordinário para o Supremo contra
da Ação Civil Pública, a lei da Ação Civil Pública
decisão do STJ. Cabe perguntar se o Supremo vai
é de 1985, participei da redação. Os colegas do
dizer que o STJ está errado. Estamos num país que
Ministério Público do Brasil todo me chamavam para
não é bem de estado de direito como se acredita
fazer palestra, pois o juiz indeferia as nossas Ações
aqui no Brasil. Se estivéssemos no estado de
Civis Públicas. Eu examinava a petição inicial, cujo
direito, juiz não faria lei, não iria lá o STJ aprovar
primeiro item anunciava: da legitimidade do MP.
essa Lei nº 13.256 e ficar na primeira fila do
O MP apresentava dez páginas para justificar que
parlamento até a lei ser aprovada, constrangendo
podia entrar com a ação. O juiz indeferia a inicial.
o parlamentar. O sujeito seria execrado em praça
Com isso, passei a falar para os colegas fazerem
pública e preso por crime de responsabilidade.
a petição inicial sem a discussão da legitimidade.
Como não estamos, essas inconstitucionalidades
Não é preciso discutir em dez folhas a legitimidade
do CPC, certamente, não serão pronunciadas

404
pelo Supremo Tribunal Federal, porque a eles, uma questão de técnica, de julgamento, que se
tribunais superiores, interessa ter um sistema que conhece, como não dar provimento ao recurso,
idealizaram como bom e nós, mortais, temos que interposto por violação de uma lei ou violação de
ficar quietinhos e obedecer às regras a que eles um dispositivo da Constituição. A técnica seria,
querem que nós obedeçamos. É assim que funciona simplesmente, fazer a fundamentação toda para
um país que não está no estado de direito, apesar conhecer o recurso, depois, simplesmente, num
de estar na Constituição escrito, não significa que, parágrafo conhecido, dá-se o provimento. Então,
na realidade, estejamos no verdadeiro e completo o senhor falou que, no primeiro momento, seria de
estado de direito. É o que eu penso. cassação e, depois, pode tudo, inclusive matéria
[ininteligível]. Gostaria de saber como conciliar isto:
SR. MARCELO PÁDUA: Dr. Nery, meu nome é se o recurso foi interposto por violação de uma lei,
Marcelo Pádua, eu sou, talvez, o único advogado pergunto se a consequência não seria o provimento.
público aqui, da Advocacia Geral do Estado, e na Já no recurso interposto por divergência, o
minha lida, quando ainda no contencioso, eu lidava jurisprudencial, quando naquelas raras situações
com interposição ou contrarrazões de recurso em que o Superior Tribunal de Justiça conhece, a
especial e extraordinário. Percebo, já há algum lógica já não é mesma, conhece porque divergiu,
tempo, na jurisprudência do STJ, com os poderes mas é possível dar ou negar provimento. Minha
excessivos do relator, meu colega ali do MP também dúvida, portanto, refere-se a essa diferenciação
já falou, há muita decisão monocrática, realmente, de conhecimento e provimento de um recurso por
acontece isso. Mas, na questão do conhecimento do violação de uma lei e conhecimento e julgamento
recurso, eu percebo muito isso. Às vezes, o recurso por divergência. Também, gostaria de indagar o
não é conhecível, mas eles conhecem e já julgam senhor o seguinte: o conhecimento amplo do
o mérito da decisão monocrática. Eu gostaria só recurso tanto extraordinário quanto especial por
que o senhor fizesse algum comentário, talvez, ausência, pelo fato de o tribunal não ter apreciado

405
ou não ter julgado a questão articulada em cassação e revisão, nós temos que compatibilizar
embargos de declaração; nesse caso, pergunto o que está na Constituição com a teoria geral dos
como fica a questão de fato. Às vezes, existe recursos. Quando o tribunal aprecia requisitos de
uma matéria de fato, às vezes, até uma data que, admissibilidade, ele conhece do recurso. Então,
apesar dos embargos declaratórios, o tribunal existe o juízo de admissibilidade cujo resultado
não conheceu; por isso pergunto como o tribunal é o conhecimento ou o não conhecimento do
superior vai superar a ausência do registro de um recurso. Se estiverem presentes os requisitos de
fato que seria importante para o enquadramento admissibilidade, nós dizemos que há um juízo positivo
jurídico do direito. Obrigado. de admissibilidade, o tribunal conhece do recurso.
Ausente um requisito de admissibilidade, ele tem
SR. NELSON NERY JUNIOR: São duas questões que proferir um juízo negativo de admissibilidade,
extremamente importantes. Quanto à primeira ele tem que não conhecer do recurso. Estamos
pergunta, eu, no início da minha exposição, disse no campo dos requisitos de admissibilidade, do
que nem os ministros do Supremo nem do STJ mérito. O mérito é a pretensão recursal, o que a
entendem de recurso extraordinário e especial, e é parte quer. Quer mudar a sentença, quer mudar
absolutamente verdade isso que eu estou falando. a decisão do juiz. Aqui, ele tem que prover. Uma
Sem demérito para eles, não é uma crítica, digamos, vez conhecido, ele passa para o segundo tempo,
pejorativa para ministro do Supremo, do STJ, não que é o julgamento do mérito do recurso. Nesse
é, a matéria é difícil mesmo. O Ministro Marco ponto, ele dá provimento ou nega provimento. No
Aurélio demonstrou sua dúvida na TV Justiça. O primeiro momento, ele conhece ou não conhece do
Ministro tem 26 anos de Supremo Tribunal Federal recurso. A alegação da violação da lei é o requisito
e ainda tem dúvida em matéria, se ele conhece ou de admissibilidade. A efetiva violação da lei é mérito
se ele dá provimento. Quando eu disse para vocês, do especial e do extraordinário. Se houve violação
os nossos tribunais superiores têm os dois juízos, da lei, é dado provimento ao recurso. Se a parte

406
alegou que se violou a lei, preencheu o requisito da evidentemente, porque, se eu entrei com um
Constituição, vai ser discutida a matéria de violação embargo de declaração, ele se nega a decidir, eu
da lei. Esse é o argumento que se usa muito por estou entendendo que ele, naquele fato, entendeu
conta dos erros cometidos em tribunais locais. como não aprovado, não conhecido. Essa matéria
Se eu aleguei lei ofensa ao art. 10 da lei federal que, aparentemente, pode ser uma matéria de
número tal, preenchi o requisito da Constituição. fato, seria transformada em matéria de Direito
Quem vai dizer se houve ou não ofensa não é o para ir para o STJ ou para o Supremo. Agora, lá,
tribunal local, é o tribunal superior, é o destinatário se eles tiverem que rever esse fato, eles vão ter
emérito do recurso. A admissibilidade se constitui que rever porque a matéria é de direito, mas com
em alegar a ofensa da Constituição corretamente, revisão de fato. Isso também é um exercício muito
o artigo X, o preceito Y, em alegar a ofensa a complicado de filosofia do direito e de filosofia do
lei federal especial. Isso é a admissibilidade, é
processo. Existe um livro muito importante do
preencher o requisito da admissibilidade. A efetiva
Antônio Castanheira Neves, um livro de umas 1.500
violação da lei já é mérito do especial. A efetiva
páginas, intitulado Questão de Fato, Questão de
violação da Constituição é mérito do especial e do
Direito. É um jurista português, muito autorizado,
extraordinário. Dessa maneira se compatibiliza a
e o Castanheira Neves diz que é impossível haver
teoria geral dos recursos, a Constituição Federal e a
uma questão só de fato e uma questão só de
divisão dos dois juízos, cassação e revisão, senão,
direito. Sempre há uma situação imbricada na
não é possível compatibilizar, daí, a confusão
explanada em sua pergunta. A outra pergunta outra; faz-se uma divisão só didaticamente para

se refere a questão de fato. O sistema brasileiro tentar mostrar que existe uma prevalecência de

determina agora, no artigo 1.025, que aquilo está uma questão de fato e uma prevalecência de uma
pressuposto como se tivesse sido decidido. Essa questão de direito.
decisão ocorre contrariamente ao embargante

407
SR. ROSAN AMARAL: Meu nome é Rosan Amaral, da causa, não seria um simples reexame. Há casos
sou advogado. Vou começar pelo fim, abordando da necessidade de avaliar a circunstância em que
questão de fato, questão de direito, é a Súmula a prova foi produzida. As súmulas não permitem
nº 7. A minha pergunta é sobre a Súmula nº 7 e o analisar o âmago estrito e exclusivo da prova,
que é revalorização de prova, e o que já é fato, já ou seja, a testemunha falou A, falou B, falou que
provado nos autos e que, para se aplicar o direito, conhecia, falou que viu o acidente, falou que
deve-se analisar o substrato fático do processo. não viu o acidente. Isso não pode ser formatado
em recurso especial e extraordinário porque não
SR. NELSON NERY JUNIOR: A pergunta foi é questão decidida, não é questão de direito,
excelente porque é sempre um problema recorrente stricto sensu. Por outro lado, diante da alegação
esse. O tribunal local acredita que a demanda se de que a testemunha levantou alguma suspeita,
enquadra na Súmula nº 7, o STJ também, e, muitas já não é simples revisão, é preciso rever a prova
vezes, não é esse o caso dos autos. Comecemos sim, mas não para simples revisão, alega-se uma
com a Súmula nº 279 do Supremo Tribunal Federal: questão de avaliar se aquilo podia ou não podia
“Para simples reexame de prova, não cabe recurso ser feito no processo. Deve-se analisar a situação
extraordinário”. Mesma abrangência da Súmula dos autos concreta para saber se, naquele caso,
nº 7 do STJ: “A pretensão de simples reexame de a solução é reavaliar a prova ou fazer um simples
prova não enseja recurso especial”. Trata-se de reexame da prova.
reanalisar o que a prova está demonstrando. Isto é
questão meramente de simples reexame de prova: ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Então, para
a testemunha falou A, a testemunha falou B, quebrar a timidez, professor, eu vou me permitir
simples revisão de prova. Se o juiz não poderia ter não uma pergunta, mas uma pesquisazinha que
feito essa pergunta para a testemunha, porque isso eu fiz rapidamente aqui na internet. Com relação
implica cerceamento de defesa, ou pré-julgamento ao verbo prover, para a minha surpresa, que eu

408
também imaginava que fosse previu, ele e ela ORADOR NÃO IDENTIFICADO: É só uma
previu, consta aqui... brincadeira para descontrair um pouco.

SR. NELSON NERY JUNIOR: Preveu? SR. NELSON NERY JUNIOR: Obrigado, está ótimo.

ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Preveu. Fiz uma ORADORA NÃO IDENTIFICADA: Parabéns pela
outra pesquisa aqui, por questão de curiosidade, palestra e agradeço bastante também a vinda
e olha o que eu encontrei, com relação ao “tempo aqui, prestigiando-nos e nos honrando com sua
do onça”. Eu achei interessante e oportuno e bem presença. Muito obrigada.
atual, veja bem. “No início do século 18, o Rio
de Janeiro era governado por Luís Vaía Monteiro, SR. NELSON NERY JUNIOR: Foi um prazer,
conhecido como ‘o onça’. Ele tinha este apelido por uma honra.
ser extremamente severo. Era exigente também.
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Há tempo para
Durante o período em que governou o Rio, ele
mais uma pergunta?
cumpria rigorosamente a lei e exigia que todos a
cumprissem também”.
SRA. ISABELA: Professor, boa noite.

SR. NELSON NERY JUNIOR: Muito bem. Então, é


SR. NELSON NERY JUNIOR: Sim, boa noite.
o “tempo do onça” mesmo.
SRA. ISABELA: O senhor falou sobre a interposição
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: “Tempo do onça”
dos embargos de declaração para a questão do
mesmo, exatamente.
prequestionamento que, na verdade, tem que ser

SR. NELSON NERY JUNIOR: Muito bem. Muito uma questão decidida. Eu interponho os embargos
obrigado pelos auxílios etimológicos e linguísticos. de declaração e, às vezes, o tribunal está com uma

409
vontade de julgar para não entrar no acórdão, de declaração, o tribunal continuava com erro,
então, os embargos, teoricamente, podem ser chegava a ajuizar embargos até o tribunal dar a
considerados prequestionamentos se o tribunal multa, sob alegação de litigância de má-fé. O STJ
superior entender que era uma omissão? sumulou impedimento de multa para embargos
de declaração prequestionadores. Já resolveu
SR. NELSON NERY JUNIOR: Que eles eram um pouco o problema, mas continuou. Eu já vi
cabíveis, que existia omissão. 18 embargos de declaração da mesma decisão.
Isso aconteceu com a Ação Penal nº 470, sobre
SRA. ISABELA: Eu entendo que essa necessidade o “mensalão”, com várias ações. Os embargos de
de o tribunal superior conhecer o cabimento declaração sempre serão cabíveis se persistirem
desses embargos tem uma certa razão de ser. os erros apontados no CPC como causas de
Mas a impressão que eu tenho é que os tribunais interposição de embargos de declaração. Isabela,
superiores barram muitos recursos, qualquer você é formada recentemente, então, eu vou lhe
motivo é motivo para não julgar, porque é uma explicar: o juiz não gosta de duas situações, entre

quantidade imensa. Então, é complicado eu deixar outras. Uma delas é dizer que ele é suspeito, que

esse cabimento dos embargos só na mão do é parcial. Em segundo lugar, o juiz não gosta de
embargos de declaração, porque você está falando
tribunal da instância ordinária. Mas gostaria de
para ele que ele não prestou a atenção ao serviço. A
saber se jogar para a instância superior resolve.
tendência dos juízes é dizer que nega, que não cabe.
SR. NELSON NERY JUNIOR: O sistema do Numa grande parte dos setores da magistratura,
Código agora determina que não há como interpor encontram-se os que não gostam de embargos de
mais de um embargo de declaração. No sistema do declaração e põem na cabeça que vão indeferir e
Código de 1973, a pessoa interpunha um embargo ponto final. Eles nem leem, declaram não haver
nada a esclarecer e negam o provimento. Por sua

410
vez, a tendência do tribunal superior é determinar
que não cabe o recurso. Assim, o advogado precisa
fazer muito bem feito o seu recurso especial, o seu
recurso extraordinário para dizer que errou mesmo
o tribunal daqui, quando deixou de acolher os seus
embargos de declaração. A argumentação deve
ser bastante plausível, bem expressa dentro do
seu recurso e deve haver uma negativa inequívoca
do tribunal.

MESTRE DE CERIMÔNIAS: O Ministério Público


reafirma sua missão de promover a justiça, servir
a sociedade e defender a democracia. Com isso,
agradecemos a presença dos participantes e
desejamos a todos uma boa noite.

411
TRANSCRIÇÃO DA PALESTRA OS RECURSOS de cavaleiro da legião de honra, e ele nos dá a
HÍDRICOS E O MP, PROFERIDA POR PAULO honra de recebê-lo aqui no Ministério Público
AFFONSO LEME MACHADO, COMO PARTE mineiro neste 28 de novembro de 2016 para a 17ª
DO PROJETO “SEGUNDA-FEIRA, ÀS 18H”. palestra do “Segunda-feira, às 18h”. Esse projeto
REALIZADA 28 DE NOVEMBRO DE 2016 de transformação do Ministério Público através da
educação integradora foi pensado pelo diretor que
me antecedeu no Ceaf, o procurador de Justiça
Jarbas Soares Junior. Gostaria de convidá-lo para
MESTRE DE CERIMÔNIAS: O Ministério Público
de Minas Gerais dá as boas-vindas a todos para esta Mesa para apresentar o Paulo Affonso Leme

mais uma edição do projeto “Segunda-feira, Machado, o qual poderá, assim, encerrar a última
às 18h”, uma iniciativa do Centro de Estudos e edição neste ano do projeto Segunda-Feira às 18h
Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público, com muito êxito.
Ceaf. Hoje, o tema será Os recursos hídricos e o
MP. Convidamos para a Mesa a diretora do Centro JARBAS SOARES JUNIOR: Fico muito satisfeito
de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do de estar na última edição do ano desse programa
Ministério Público, promotora de Justiça Danielle de que veio, professor Paulo Affonso, transformar a
Guimarães Germano Arlé, e o professor de Direito nossa segunda-feira num dia produtivo, sobretudo
Ambiental, Paulo Affonso Leme Machado. Para nesse horário das 18h, quando normalmente
abertura, ouviremos a diretora do Ceaf, Daniele de estamos indo para nossa casa. O objetivo é trazer
Guimarães Germano Arlé. aqui professores, autores, juristas e também
dar oportunidade para os talentos do Ministério
DANIELLE DE GUIMARÃES GERMANO ARLÉ: Público de Minas Gerais usarem uma tribuna tão
O Paulo Affonso Machado foi agraciado com importante para trazer o seu pensamento jurídico
a maior honraria do governo francês, que é a sobre determinados assuntos. As palestras são

412
transmitidas para o estado inteiro e depois ficam no mundo. Então, quero agradecer às faculdades
armazenadas na nossa escola virtual para aqueles de Direito que aderiram a esse projeto, à OAB, à
que, por um motivo ou outro, não puderam magistratura, e torço para que esse projeto seja
participar. Desde o início, procuramos originar mantido e aperfeiçoado porque é o momento que
uma discussão mais dinâmica sobre o novo CPC, temos de estar próximos aos grandes juristas para
sobre o qual, inclusive, vários ministros do STJ reciclar, sobretudo, o papel do Ministério Público.
vieram aqui falar. E é uma forma também de o Cumprimento também a amiga Danielle Arlé, braço
Ministério Público divulgar sua cultura trazendo direito e braço esquerdo nesse tempo do Ceaf
estudantes, advogados, juízes e operadores do comigo. Tenho certeza de que temos muito ainda
Direito a esta Casa de Justiça. Hoje, o professor a fazer no Ministério Público. Obrigado. Boa sorte.
Paulo Affonso encerra o semestre para nós, e
encerra-se também a gestão do procurador-geral DANIELLE DE GUIMARÃES GERMANO ARLÉ:
de Justiça Carlos André Mariani Bittencourt. Paulo Paulo Affonso Leme Machado é professor de Direito
Affonso foi o precursor do Direito Ambiental no Ambiental da Unimep, professor visitante na Escola
Brasil, um mestre que forjou gerações e gerações Superior Dom Elder Câmara de Belo Horizonte,
de ambientalistas, de estudiosos do Ministério ganhador do prêmio Elizabeth Haub da Alemanha,
Público, há quase 30 anos. Sempre em grandes doutor em Direito pela PUC de São Paulo, doutor
auditórios no Brasil e em outros países, mas honoris causa pela Vermont Law School, nos Estados
também nos auditórios, às vezes, mais modestos Unidos, e pela Unesp Brasil. Professor convidado na
do Ministério Público, faz questão de transmitir o Universidade de Limoges na França, mestre pela
seu saber, que não é pequeno. De um lado, sei Universidade Robert Schuman, também da França,
que para o senhor estar aqui é um sacrifício. De e cavaleiro da legião de honra da França. Promotor
outro, é uma forma também de cultivar os seus de Justiça aposentado, e promotores de Justiça
grandes admiradores, que estão em todo o país e nunca abandonam o amor a essa promoção de

413
Justiça, autor do livro Direito Ambiental Brasileiro, ao engendrar uma solução funcional para a bacia
que já está na 24ª edição. Sua presença enriquece hidrográfica e, portanto, nada mais oportuno que
esta Casa. Jarbas Soares Junior, mais uma vez, se fale aqui sobre recursos hídricos. Quero saudar
muito obrigada por sua gestão no Ceaf, por ter o Carlos Eduardo, da coordenação do Ministério
transformado o Ministério Público neste órgão que Público na parte ambiental; o Marcos Paulo,
hoje acredita na educação. Que a escola continue grande líder no patrimônio cultural; o procurador
crescendo e transformando sempre esse grande de Justiça Geraldo Faria; o procurador de Justiça
instrumento de acesso à Justiça. Lisandro Siqueira, que eu tive a satisfação de
participar da banca de doutorado dele na PUC do
PAULO AFFONSO LEME MACHADO: Parto da Rio de Janeiro; a Carolina Murta, com quem tratei
ideia da importância de uma escola. Também a parte burocrática da minha vinda aqui; o grupo
sou professor de um lado e estudante de outro. de especialistas em infraestrutura ambiental e de
Eterno estudante, sempre estou aprendendo urbanismo, de recursos naturais, de biologia e de
e me sinto feliz em estar. Dei aulas pela manhã outras áreas científicas. Fiquei feliz de o Ministério
na Universidade Metodista de Piracicaba e agora Público ter esse assento também indispensável
estou aqui com muita honra e felicidade. Quero na parte ambiental. A questão das águas deu até
saudar o eminente procurador de Justiça Jarbas ensejo a um pronunciamento do Supremo Tribunal
Soares Junior, que aprendi a admirar ao longo de Federal, num voto de um ex-promotor de Justiça do
muitos anos. Só que eu tenho cabelos brancos e o Rio de Janeiro, Cordeiro Guerra, visando à anulação
professor Jarbas continua sempre aquele moço que de duas leis paulistas, já que os estados naquele
conheci promotor 30 anos atrás, depois procurador tempo não podiam, de forma nenhuma, legislar
de Justiça, que, encantado com o meio ambiente, sobre águas. A competência era exclusiva. Hoje é
fortaleceu a atuação dos integrantes do Ministério privativa. E o ministro Cordeiro Guerra me mandou
Público de Minas Gerais. Este estado foi pioneiro uma carta justificando que o voto dele não era um

414
posicionamento pessoal daquilo que ele desejava das águas porque os efluentes precisam de ser
para a gestão das águas. Era uma interpretação que liberados da poluição. Depois de aposentado do
se curvava à letra da Constituição. Foi a única vez MP, fui contratado pelo governo do estado do Ceará
que recebi carta de um ministro do Supremo para para que fosse dado um parecer sobre se o estado
justificar um voto que eu tinha até criticado, como cearense tinha competência para legislar sobre
critiquei depois, e até saiu num livro, um voto da águas. O Ceará tem as competências acessórias,
ministra Helen Grace no caso de amianto em Goiás mas não a competência direta. A Constituição de
e no Mato Grosso do Sul, mas que felizmente foi 1988 criou um sistema nacional de gerenciamento
corrigido pelo Supremo Tribunal Federal. Sempre de recursos hídricos. É competência da União criar
fui rígido nos princípios, mas suave na maneira um sistema e mantê-lo. E quem fala em sistema
de exercer. Procurei sempre, não sei se consegui, não fala em segmentação, fala em conjunto. Quem
não ser arrogante nas minhas funções, não ser fala em sistema não fala na hierarquia de leis, mas
prepotente, agir pela força do direito. fala na execução de forma integrada dos cursos
de água. Como dizem os argentinos, águas acima
Comecei trabalhando sobre águas em 1982, e águas abaixo. A montante e a jusante. Nesse
na primeira edição. A Lei 9.433 foi promulgada sentido, o sistema nacional de gerenciamento
em janeiro de 1997. Participei apenas de uma de recursos hídricos nos convida a quê? À
audiência pública feita em Piracicaba. Não sabia integração tanto das bacias quanto de toda essa
que havia uma cidade em Minas chamada Rio rede hidrográfica que temos no Brasil. Integrei
Piracicaba, comarca onde fui promotor. Comecei em 1997 uma comissão de sete pessoas, cinco da
a trabalhar muito com águas, uma questão que área de hidrologia e engenharia e duas da área
não pode ser tratada nem pelos estados nem pelos de Direito (uma do Ministério do Meio Ambiente e
municípios. Entretanto, para o meio ambiente, no eu). Trabalhei, por exemplo, com o presidente da
art. 24, os estados podem legislar sobre a qualidade Sabesp Jerson Kelman, que é do Rio de Janeiro.

415
Esse grupo tentou regulamentar a Lei 9.433. A à informação, à participação e ao controle social.
primeira questão é: a quem pertencem as águas? Logo, o Direito Ambiental tem, nessa evolução,
As águas são inalienáveis, quer dizer, nunca se dá direito à informação, à participação, e que finaliza
direito de propriedade a ninguém. O início da Lei a partir da lei, principalmente, da política nacional
9.433, no entanto, diz: “As águas são de domínio de resíduos sólidos em jungir, unir, princípio da
público.” A palavra domínio pode levar ao quase informação e da participação, no controle social.
entendimento de propriedade e não é. Propriedade As águas podem ser controladas socialmente. O
das águas? As águas iriam dividir-se em quê? Águas desembargador Quadros, do Tribunal Regional
federais, águas estaduais? Conforme o art. 225 da Federal da 4ª Região, de opinião contrária à
Constituição da República, “todos têm direito ao minha, era juiz federal no Paraná. Ele acha que
meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de há uma exclusividade entre estados e União e
uso comum do povo.” Portanto, as águas são bens ninguém mais pode possuir água. Eu levanto uma
de uso comum do povo. Desde o direito romano, questão no meu livro sobre as águas da chuva. A
vemos essa noção de res communis omnium, coisa chuva, mesmo tendo essa movimentação de cair e
comum de todos. No Código Civil de 1916, há uma evaporar dos rios, incita a participação individual e
catalogação das águas, dos rios, como bens de uso social de colher sua água, de formar receptáculos
comum do povo. Mas a quem pertencem as águas? para que possa neles se alojar. Então, essas águas
Pelo art. 20 da Constituição, à União; pelo art. 26, eu indico como águas privadas. Não estou dizendo
aos estados. Os poderes públicos são gestores das que essa, abram aspas, ‘estatização das águas’ é
águas, gerentes, e não proprietários. Isto vai levar um contrassenso dentro do Direito Ambiental.
sempre a quê? Que a gestão das águas é uma
gestão que deve ser controlada pela sociedade civil. Quando faltam as águas, a prioridade é o consumo
Quer dizer, aplica-se todo esse correr do direito humano e em seguida a dessedentação dos
das águas, Direito Ambiental, o princípio do direito animais. A presença do Ministério Público vai

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aferir se há realmente carência d’água. Em São nas suas obrigações de prevenir a seca nas bacias
Paulo, durante o rodízio de águas, verifica-se se porque deixara de fazer bacias de retenção de
a vedação de águas em determinados horários águas. É inegável que, para podermos ter águas,
ou dias da semana está correta ou não. Então, é necessária a presença das áreas de preservação
no momento de crise é imperativa a presença permanente e de reserva legal. Antes do código de
do Ministério Público na sua função preventiva 1965 se falava de florestas protetoras, que aliás
e licitude do comportamento da administração foi o tema da minha dissertação de mestrado na
pública ambiental. Na comissão de que participei França estudando o Direito francês, porque não
houve muita discussão sobre a dessedentação havia a possibilidade de estudar o Direito brasileiro
dos animais. O Código Civil francês colocou que lá, Forêts de Protection.
os animais têm sensibilidade e, portanto, nossa
missão é zelar para que não haja crueldade nem Então, vejo as florestas como geradoras de
contra os homens e nem contra os animais. Eu tive águas. Houve até uma tese de doutorado na
a honra de ser conselheiro do patrimônio cultural Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, de
do Brasil de 2004 a 2008, mas fico chocado quando Piracicaba, que mostra que a presença adjacente
as pessoas usam tal argumentação para dar vezo a aos cursos de água tem uma ligação indiscutível
seus sentimentos mais deletérios, mais abjetos de com a seca ou com a fluência das águas. Reporto
crueldade contra os animais. A vaquejada e a farra rapidamente à minha experiência na pequena
do boi em Santa Catarina não podem ser acolhidas. República de Cabo Verde, com dez ilhas, ao lado do
A cultura é elemento de progresso, de elevação continente africano, onde depois que me aposentei
do espírito. No painel dos leitores de O Estado do Ministério Público fui convidado pela FAO para
de São Paulo, faz duas semanas, pronunciei-me ficar seis meses trabalhando em legislação agrária
sobre a publicidade do Cadastro Ambiental Rural ambiental. Lá senti o que é não ter APA, não ter uma
(CAR), já que o governo paulista estava omisso floresta ao lado dos rios, porque as necessidades

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econômicas eram terríveis, o grau de pobreza das Convenção das Nações Unidas na comissão de
populações enorme. Cortavam-‑se as árvores para Direito Internacional. E fiquem surpresos porque o
que os fogões das famílias pudessem cozinhar a Brasil, durante a atuação do embaixador José Sette
alimentação básica das pessoas. Rodeado pelo mar, Câmara e depois do embaixador Calero Rodrigues,
Cabo Verde não tinha nenhuma dessalinizadora, sempre torpedeou a ideia da bacia hidrográfica. O
como tem Israel. O país de grande secura passou Itamaraty não deixou que o tema bacia hidrográfica
a ter uma ausência absoluta de chuvas. O constasse dessa convenção. Então, fui pinçando
remédio para a terrível situação era as pessoas os posicionamentos dos diversos países e tive a
fazerem pequenas perfurações. Seria o que aqui sorte de ter sido publicado o annuaire, o yearbook,
chamamos de cisternas, só que para tomar o quê? porque a Comissão de Direito internacional,
Água salobra, ou seja, água com sal. Por quê? depois de alguns anos dessas sessões, publica o
Ausência da área de preservação permanente. anuário. Quem quiser o Direito Internacional que
Nossa função lá era fazer uma legislação que desse nasce desses trabalhos de gente muito talentosa
incentivos a nações como a Noruega e os países da Comissão de Direito Internacional vai tê-lo
escandinavos começarem um programa intenso de nesse anuário. Nesses anuários construí o meu
reflorestamento e a ideia da bacia hidrográfica. E trabalho de pós-doutorado. No Conselho Nacional
os senhores tiveram a primazia de ter as bacias do Meio Ambiente, um conselheiro falou em bacia
hidrográficas inseridas no contexto da atuação hidrográfica no Mato Grosso, mas o representante
funcional do Ministério Público de Minas Gerais, uma do Itamaraty pediu que esse tema não constasse
ideia pacífica no Brasil. Publiquei num livro que se nas nossas atas porque isso nos prejudicaria nas
chama Direito dos Cursos de Água Internacionais nossas relações internacionais, principalmente com
o estudo que fiz para o pós-doutorado na a Argentina. Mas o pioneiro no Direito Ambiental
Universidade Limoges, na França, e na Universidade brasileiro, embaixador Guillermo Cano, que foi
Milano-Bicocca, na Itália. Eu examinei 24 anos da embaixador da Argentina no Japão, embaixador na

418
antiga Iugoslávia, que recebeu a mim e a minha Pegavam-se outorgas fortes de águas para São
esposa em Buenos Aires para um jantar na casa Paulo, deixando à mingua todo o desenvolvimento
dele, no seu doutorado até tardio, ele fala dos rios da bacia do rio Piracicaba. E saliento: se não houve
internacionais da Argentina. E havia esse medo do a piora da situação, nós devemos ao Ministério
Brasil de que a bacia hidrográfica fosse além da Público. Não no meu tempo. No meu tempo de
água, fosse se dimensionar muito territorialmente. Ministério Público, não tive a felicidade de ter esse
É por isso que a posição de Sette Câmara e de Calero poder na mão. A atual promotora de Justiça do
Rodrigues, mas principalmente a de Sette Câmara, Meio Ambiente do Gaema de Piracicaba, Alexandra
que já foi governador do estado da Guanabara Facciolli Martins, e o Queiroz, que era promotor de
quando existiu o estado da Guanabara, e também Americana e foi para Marília, os dois do Ministério
da Corte Internacional de Justiça, um homem Público de São Paulo, além de uma procuradora
preeminente, seguiu as linhas do Itamaraty ao da República, que hoje é procuradora regional,
vetar esse conceito de bacia hidrográfica e também Sandra Shimada Kishi, esposa do promotor de
a análise das águas internacionais com recursos Justiça de Piracicaba, Paulo Kishi, batalharam
compartilhados. Eles não queriam de maneira nas negociações da outorga, fazendo com que a
nenhuma que houvesse a noção das águas como ANA, Agência Nacional de Águas, não se vergasse
recurso compartilhado. Nós nascemos, vivemos e totalmente, ainda que se vergasse um pouco, aos
morremos numa bacia hidrográfica. Ninguém vive e desígnios do governo do estado de São Paulo,
morre fora de uma bacia hidrográfica. Levei tempo que queria abocanhar cada vez mais águas do
a estudar essa questão da transposição de bacias, rio Piracicaba, do rio Capivari, do rio Jundiaí, o
que só constou na 24ª edição do meu livro. Não que nos deixaria à mingua, freando totalmente o
se consultavam os ribeirinhos, não se consultava a nosso direito ao desenvolvimento sustentável. A
sociedade civil daquela região para a transposição grande questão da montante e jusante das bacias
feita no tempo do governo militar para São Paulo. deixo para vocês sentirem o problema, já que o

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plano de recursos hídricos em vigor no Brasil não contra a convenção devido aos muitos problemas
foi favorável à Convenção do Direito de Uso dos de montante e jusante dos rios que a cercam.
Rios Internacionais Não Destinados à Navegação Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais fui
de 1997. Se a população a montante aumentar convidado a falar sobre a malfeita transposição do
muito, evidentemente a população a jusante rio São Francisco. Essa questão do uso da bacia
vai ter problemas. Entretanto, se a população a hidrográfica não está ainda densamente estudada.
jusante aumentar muito, ela vai querer mais água No plano de recursos hídricos é importantíssima a
da população que está a montante. E que não haja presença do Ministério Público, por zelar pelo efetivo

guerras! Mas um professor meu em Estrasburgo, respeito dos poderes públicos e dos serviços de
relevância pública aos direitos assegurados desta
o francês Pierre-Marie Dupuy, dizia: “Machado, as
Constituição, promovendo as medidas necessárias
próximas guerras serão guerras hídricas. Veja a
à sua garantia. Vejo na atuação preventiva do
situação hoje da Etiópia com o Egito. Todo mundo
dano ambiental e no âmbito administrativo, como
quando se refere ao rio Nilo fala: ‘O rio Nilo é do
na espera judicial, uma atividade obrigatória do
Egito’. Não é. O rio Nilo nasce na Etiópia, e a Etiópia
MP, com fundamento no inciso II do art. 129.
demorou a acordar”. Mas agora povo inteligente
Dessa forma, o MP tem a função constitucional
da Etiópia, onde estive rapidamente, quer ter o de acompanhar zelosamente a elaboração e a
seu direito ao desenvolvimento, quer diminuir as implementação dos diversos planos ambientais
vazões que passam do Nilo para o Egito. Isso já previstos na legislação infraconstitucional, recursos
está suscitando um problema sério, porque o Egito hídricos, resíduos sólidos, resíduos perigosos,
todo ergueu sua economia através da represa de barragens e outros.
Assuã num determinado nível de vazão, que não
comportava muito os interesses da Etiópia. No meu O Ministério Público é consultor de alguém? Não. O
livro cito os conflitos do Paquistão com a Índia, Ministério Público não vai funcionar como consultor
e também da Turquia, que foi veementemente jurídico, ele não é AGU. Ele é o grande órgão de

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guarda dos direitos difusos e coletivos indisponíveis. não tem importância. Importante é o que vão votar”.
O art. 127 casa com o art. 129 a presença de um Tenho duas filhas: uma médica e outra cirurgiã-
membro do Ministério Público que vai acompanhar dentista. Vejo como o mundo delas é diferente. A
a elaboração dos planos e aconselhar. Consegui que linguagem dos cientistas não acompanha os nossos
a presença das associações tivessem legitimação pensamentos jurídicos. Então, é preciso presença
para ação civil pública, utilizada num famoso do Ministério Público lá. Quando era do patrimônio
debate sobre agrotóxicos do Rio Grande Sul. O cultural, havia tantas ilegalidades. Pedi que o
procurador de Justiça Luiz Fleury era presidente procurador-geral mandasse um representante
àquela época da Associação do Ministério Público do Ministério Público Federal para acompanhar
de São Paulo. Afinal, o Paulo Affonso está a favor o conselho cultural, um dos mais antigos do
do Ministério Público ou contra? Queriam uma ação Brasil, criado pelo mineiro Gustavo Capanema.
civil pública em que só o Ministério Público tivesse Naquele tempo, de 2004 a 2008, gravava-se ‘ipsis
titularidade. Estou favorável, mas sou promotor litteris’. Meus alunos, às vezes, resgatam os meus
público que tem raiz no povo, porque não há nada posicionamentos, porque está tudo na internet.
fora do povo. Nesse sentido, o Ministério Público,
depois da Constituição de 1988, tem a feliz No plano dos recursos hídricos, o que se quer
função de aprofundar-se nos planos para evitar utilizar naquele rio em primeiro lugar? Como se dá
as ilegalidades. Sugeri ao procurador-geral da a participação popular e a presença do Ministério
República que enviasse um membro do Ministério Público na elaboração do plano, na sua execução,
Público para assistir às reuniões da CTNBio, na outorga dos direitos de uso? O que poderia ser
Comissão Técnica Nacional de Biossegurança. autorização para direitos de uso se coloca mais
“Doutor, o senhor precisa mandar um membro no sentido matrimonial: mulher outorgando ao
do Ministério Público para acompanhar, porque a marido o uso dos bens do casal. Ela vai controlar
maioria nunca viu Direito na vida. Dizem que a lei a qualidade das águas, a quantidade das águas,

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o efetivo exercício dos direitos de acesso à água. O Ministério Público precisaria concentrar esforço
Conforme a lei que estabelece direitos de acesso em reformular as competências dadas pela Lei 9.433
à água, existente ou sem destinação explícita, há ao comitê que aprova o plano da bacia hidrográfica.
um tipo de outorga para o sistema hidrelétrico As competências são imprecisas e fluidas. A outorga
resultante de reserva ambiental. Fora disso, não dificilmente parte do Ministério Público. Apesar
pode haver discricionariedade na outorga. Meu disso, os promotores da região de Piracicaba têm
posicionamento doutrinário quanto ao “exercício feito esforço de participar. Ao aprovar a prioridade,
dos direitos de acesso à água” é o de que a água cuida-se, por exemplo, se a região é agrícola, dar
é de todos. Havendo água, tem que distribuir primeiro água para a agricultura; segundo para
essa água. Porque o grande problema da água na avicultura; terceiro, se for em Chapecó, para a
outorga é quem chega primeiro. Por quê? Na lei suinocultura. A prioridade é dada lá no plano. O
de 2000, um deputado aqui de Minas, o Ronaldo art. 39, § 1º da Lei 9.433, diz que é paridade.
Vasconcelos, trabalhava em meio ambiente. Ele, Entretanto, engendraram maquiavelicamente
juntamente com o Fernando Gabeira e mais um uma chamada participação tripartite: primeiro,
deputado de Piracicaba, me ajudou nesse projeto totalmente o governo; segundo, órgãos a ele
que redigi, obrigando na outorga federal a plena afiliados; terceiro, a sociedade civil. Portanto, a
publicidade do pedido de outorga. Quer dizer, sociedade civil vai ser sempre perdedora, porque
quem pediu primeiro vai levar, claro, observando ela só tem um terço. O Ministério Público do
todas as condições da outorga, estruturada para Estado de São Paulo, instado pelo meu amigo,
ser paga dentro da bacia hidrográfica. Esse o engenheiro ambientalista Luiz Antonio Batista
efetivo exercício dos direitos de acesso é para Rocha, levou o que eu pensava a uma promotora
evitar o quê? O mandonismo, a arbitrariedade no de Barretos. A ação civil pública ajuizada declarou
uso da água. a irregularidade do comitê da bacia do rio que
banha Barretos (não lembro qual é o rio), e já tem

422
jurisprudência consolidada. Recorreram contra a Público Federal, assassinado quando saía de manhã
sentença da juíza. Contudo, os eminentes juízes a fim de comprar pão para sua família. Os dois
do Tribunal de Justiça de São Paulo, com coloração foram assassinados pela lisura nas suas funções.
ambientalista de José Renato Nalini, que depois No Ministério Público do Estado de São Paulo,
veio a ser presidente do Tribunal, confirmou a conheci e respeito muito o procurador-geral Mário
sentença. Qual a amplitude da possibilidade desse Albuquerque. Eis a expressão bíblica “o zelo da tua
Ministério Público? Recordo a história do Ministério casa me devorou”. Os concursos são necessários,
Público de São Paulo, em 1954, quando houve a difíceis. Mas não basta, porque os concursos não
chamada Lei Áurea do MP de lá, em que se deu avaliam idealismo, comprometimento. Os cursos,
ao Ministério Público a igualdade dos vencimentos sim. Quem não sabe o Direito, não digo que eu
com os magistrados, que não havia ainda em saiba, mas pelo menos quem não gosta de estudar,
São Paulo. Evidentemente, com a proibição de os resultado: enfraquece. O covarde não é só o
advogados e promotores de advogar. Eu ainda de covarde fisicamente. O covarde é aquele também
calça curta me lembro do promotor na minha terra, que não tem qualidades intelectuais para afrontar
São José do Rio Pardo, trabalhando como advogado advogados cultos e capazes. Na própria história da
em algumas questões. Meu pai dizia: “Esse senhor comarca de Piracicaba, em que estive à frente 18
está aqui porque é o nosso promotor na parte anos, um grande promotor, em 1954, processou os
cível, que não interfere no Ministério Público. Ele usineiros de açúcar por jogarem vinho no rio. Mas,
está aqui acompanhando as partes.” Isso era antes infelizmente, vejo por questão científica, Flamínio
da Lei Áurea do Ministério Público, um Ministério Fávero, um médico-legista professor da USP
Público que se engrandeceu na luta mostrando levado por um dos maiores criminalistas de São
serviço. Hoje vi a homenagem ao Francisco José, Paulo, Dante Delmanto, conseguiu a absolvição
um herói, e ao procurador da República, também dos usineiros do rio Piracicaba, um dos primeiros
de Pernambuco, a primeira vítima do Ministério casos ambientais julgados no país. Mas quis a

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providência de Deus que num caso que tinha sido PAULO AFFONSO LEME MACHADO: Fiz um
prescrito em Americana, na bacia do rio Piracicaba, mestrado ao lado de um rio internacional, o Reno.
um promotor que tive a honra de auxiliar nesse O rio Reno nasce na Suíça e desemboca nos Países
processo extraoficialmente, conseguisse a Baixos. E houve um caso levado a um tribunal
condenação da Ajinomoto. O relator foi o meu ex- na França: Pepinieres. Houve uma infiltração de
professor de Direito Penal, oriundo do Ministério sal por lançamento de produtos farmacêuticos
Público, Marino Emilio Falcão Lopes. Quer dizer, e químicos da Suíça, mas pelas minas de sal

é diuturna a presença do Ministério Público nas da própria Alsácia, que em francês é Alsace.

questões ambientais. E foi para ver promotores Reclamado pelos holandeses, o fato ocorrido no rio
Reno se tornou uma questão internacional, o que é
e promotoras como os de Minas Gerais que vim
muito apaixonante. Quando não se queria falar de
aqui falar que acredito na evolução do Direito
bacia hidrográfica, o Brasil assinou com o Paraguai
Ambiental na medida em que vocês continuam a
um acordo sobre o qual valeria a pena refletir. Num
ser o que são.
estudo rápido, de umas quatro páginas, percebe-
se que na bacia do Apa, um rio que nasce no Brasil
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: A questão de
e termina no Paraguai, as orilhas das ribanceiras
a bacia hidrográfica ter um campo vastíssimo
e a parte territorial que engloba formam, afinal,
para investigação mostra que há necessidade de
um rio composto das águas do talvegue, que é o
formação mesmo de recursos humanos. Na Europa,
leito do rio, do ar e das barrancas das margens do
como se trabalha a noção de internacionalismo,
rio dimensionadas nesse acordo. Eu cito primeiro
já que o nacionalismo é muito forte ainda? Há
o acordo governamental, depois o acordo dos
barreira a uma visão mais holística da questão
técnicos sobre a maneira como foram feitas as áreas
ambiental e das águas? que têm de ser necessariamente circunvizinhas
para evitar que a dimensão da bacia hidrográfica

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seja enorme. A internacionalização do curso da mas não tinha porque ela não podia aproximar-se
água tem o problema do governo das águas. das águas uruguaias porque a Marinha do Uruguai
Publiquei no livro Estudos de Direito Ambiental 2 não deixava que eles chegassem para coletar os
análise de dois julgados da Corte Internacional de elementos. Depois houve acordo, via respectivos
Justiça, o caso da Argentina contra o Uruguai, nas Ministérios das Relações Exteriores, e hoje se
Papaleras (um nome espanhol). Deu para seguir os permite que argentinos possam ir até as barrancas
posicionamentos dos advogados tanto da Argentina do rio Uruguai para coletar prova se há ou não
como do Uruguai. E o tribunal não foi feliz. Primeiro poluição. O tratado sobre o rio Uruguai feito pela
afirmou direito à firmação, mas na hora de punir a Argentina é internacional porque o rio Uruguai
poluição do Uruguai, não puniu. A questão acabou nasce no Brasil, onde tem a maior parte do seu
superando a própria Corte Internacional de Justiça. trajeto. Mas o rio Uruguai é binacional naquele
Pela pressão popular, o que o tribunal não deu, trecho uruguaio e argentino. No primoroso tratado
Gualeguaychú deu. Gualeguaychú, não conheço, nasce o princípio da não regressão. O Direito
mas me diziam que é uma cidade pequena da Ambiental não pode retroceder, mas isso não
Argentina. Como já estava sofrendo a poluição da foi considerado pela Corte. O mineiro Cançado
usina em terras uruguaias, o que afrontou o Direito Trindade tem sido um grande juiz, mas nesse
Internacional, fecharam a ponte entre Argentina e caso não foi muito claro no posicionamento dele.
Uruguai, e o Uruguai passou a sentir que precisava Ele brilhou, contudo, no maior julgamento da
negociar. Os argentinos não deixavam entrar Corte Internacional de Justiça: o caso da Austrália
e, se necessário, iriam morrer na ponte. Não juntamente com a Nova Zelândia contra o Japão.
abandonariam e nem permitiriam esse comércio O tribunal entendeu que o Japão estava agindo
para o Uruguai mudar o posicionamento. Depois o fraudulentamente ao capturar baleias para fins
Uruguai permitiu. Por quê? A Corte Internacional de científicos e venda comercial. O Tribunal tem 15
Justiça disse que a Argentina não tinha feito prova, membros, mas aí vota um juiz ‘ad hoc’. Então,

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foram 16 membros, 12 a quatro. E fica mostrada USP. Trata-se de uma jovem que não conhecia, mas
essa questão internacional. Já no caso da bacia cujo avô tinha sido diretor do Parque das Águas
do rio Apa, o Brasil mudou seu posicionamento e de Piracicaba, o engenheiro Paulo Serra. Ela me
enfrentou com critério e discernimento a questão apresentou o trabalho. Era uma obra difícil para fazer
da faixa territorial de um rio internacional. e tive até vontade de desistir. Era o grande problema
do que são águas minerais. A quem competia
ORADOR NÃO IDENTIFICADO: Sou da Justiça legislar águas subterrâneas e águas minerais se
Federal e quero aproveitar a oportunidade para
era tudo federal? O art. 26 da Constituição deixou
ouvir um pouquinho sobre a questão das águas
as águas subterrâneas como domínio dos estados,
subterrâneas. Apesar da amplitude de água, e
quando as águas subterrâneas, evidentemente,
ainda a gente não ter ido às águas subterrâneas
não têm uma divisão, uma fronteira para dizer que
com tanta velocidade, no médio e no longo prazo
é dos estados. A falta da presença dos estados na
isso vai ocorrer porque essa crise hídrica avança
gestão das águas é porque as águas superficiais
muito pouco a conscientização de toda a sociedade
quanto a um uso racional e mais consciente das são claramente de competência da União, mas as

águas. Então, fale principalmente sobre a questão águas subterrâneas, não. As águas minerais são
da competência para legislar e disciplinar a gestão todas governadas aqui por um órgão que Minas
dessas águas subterrâneas, obviamente, que na Gerais conhece muito bem, que é o Departamento
grande maioria, pelo menos das que já têm a Nacional da Produção Mineral. Com todos os
noção e a dimensão da abundância, elas passam problemas de mineração, um repórter perguntou
aos limites territoriais dos estados e até dos países. e eu falei durante cinco minutos sobre a Samarco.
Já havia feito palestra na Escola de Direito Dom
PAULO AFFONSO LEME MACHADO: É um tema
Helder Câmara sobre a segurança das barragens.
apaixonante, que aflorei de leve ao ser convidado
para fazer o prefácio de uma obra de doutorado na

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A Natura me contratou para parecerista. Contratou Não sou advogado ambiental porque não faço
também Tércio Ferraz, Gomes Canotilho, Ives contencioso. Sou parecerista, o que é diferente. O
Gandra e Eros Grau. Cada um, independentemente Édis tem um dos maiores escritórios de advocacia
de prévio acerto, obteve liberdade de acesso à em São Paulo, 16 advogados. Eu, outro ex-
pesquisa. Aliás, a Constituição garante direito de promotor que foi para a magistratura, o Vladimir
pesquisa sem censura prévia. Só que na parte de Passos de Freitas, o irmão dele, Gilberto Passos
repartição de benefícios a lei cometeu gravíssima de Freitas, compusemos a banca de doutorado do
injustiça ao contrariar a Convenção da Diversidade Édis Milaré, que se diz injustiçado por ter posições
Biológica. Minha ex-aluna Sandra Akemi Shimada diferentes e contrárias. Numa ação popular, um
Kishi trabalhou nessa área de biotecnologia em mestre, Ernesto Xavier, cotejou duramente com
Bremen, na Alemanha, com o professor Gerd o Édis num caso em Campinas. É preciso que as
Winter, do qual sou amigo. pessoas se respeitem. O Ministério Público tem
que estudar todos os posicionamentos, inclusive
Fico feliz que haja um centro de educação como o os que não são dele, para poder contraditá-los.
que têm aqui. Mas às vezes inquieta-me falar sobre
um tema em que há certo patrulhamento dentro
do Ministério Público. É absurdo, por exemplo, o
promotor que se aposenta passar a ser advogado,
se ele se insere na Ordem dos Advogados. Nem
sempre os posicionamentos dele vão ser afinados
com promotores que estão na área de meio
ambiente, mas cheguem lá e debatam. Não sou
um grande promotor, por exemplo, como o Édis
Milaré, que foi um dos primeiros coordenadores.

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