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O LOCKDOWN NÃO FUNCIONOU NA EUROPA, NEM FUNCIONARÁ NO CEARÁ

Por José Carlos Parente de Oliveira, Dr.


Publicado no jornal FOCUS, em 15/05/2020.

Resumo
Este estudo fenomenológico e observacional analisa os possíveis os impactos benéficos das
medidas mais rígidas de confinamento total - simulacro cearense da palavra lockdown - aplicadas
pelo governador do Estado do Ceará, em desfavor da população, escolas de diversos níveis e
meios de produção, a partir de 8 de maio de 2020, objetivando conter a “explosão” de novos
casos de Covid-19. Neste estudo nós consideramos os dados sobre o número diário de mortes e
três parâmetros foram analisados: o número de reprodução do vírus SARS-CoV-2, o tempo para
dobrar o número de mortes e a evolução temporal da taxa de mortalidade. Esses parâmetros do
Brasil e Ceará foram comparados com os dados de lockdown da Espanha, França, Itália e Reino
Unido e também com os dados da Suécia que não o adotou. Os resultados obtidos indicam que a
estratégia de usar o lockdown pode não ter salvado qualquer vida na Europa Ocidental, o que
pode ser extrapolado para o Brasil e o Ceará, em particular. Também mostramos que a Suécia que
aplicou apenas medidas restritivas de distanciamento social, em oposição à contenção domiciliar
imposta até por polícia, apresentou uma evolução temporal da epidemia semelhante aos demais
países.

Introdução
O recente surto de COVID-19 tem desafiado a capacidade de resposta dos governos de uma forma
jamais experimentada. Foram adotadas diversas ações públicas como resposta à epidemia, indo
desde o bloqueio total (Espanha, França, Itália, Reino Unido, parte do Brasil e Ceará) até ações
moderadas como a Suécia.
A cada dia surgem mais questionamentos quanto aos benefícios do lockdown no estado físico e
mental da população: não estaria aumentando a mortalidade devido a dificuldades de acesso a
cuidados básicos de saúde? não estaria aumentando o estresse e piorando as condições mentais
devido o isolamento? quão sérias serão as consequências humanas, sociais e laborais com a
recessão econômica que se avizinha inexoravelmente?
Estes são alguns pontos pouco discutidos claramente com a população pelos governos,
especialmente o governo do Ceará.
Nós utilizamos uma abordagem fenomenológica e observacional, comparamos as evoluções da
epidemia antes e depois do lockdown para produzir e inferir resultados visíveis e consideramos
que os novos casos diários do surto de SARS-CoV-2 segue uma evolução temporal polinomial:
após um grande crescimento inicial as infecções diminuem progressivamente, atingem o uma
região de pico e decaem, também seguindo o comportamento polinomial.
Consideraremos a existência de uma relação estável entre o número de casos e a taxa de
mortalidade: o número diário de mortes está vinculado ao número diário de novos casos através
da relação de proporcionalidade, porém atrasada no tempo.
A avaliação em tempo real da eficiência do lockdown é muito importante para ajudar nas decisões
de ação públicas visando à contenção da doença Covid-19. Os resultados recentes de modelagem
sugerem que o lockdown na China teve êxito na contenção da epidemia. [1] Um modelo SEIR,
testando diferentes parametrizações de lockdown na tentativa de projetar a eficiência nos países
europeus (Espanha, França, Itália e Reino Unido) sugeriu que medidas precoces de contenção
pública seriam eficientes. [2] Entretanto, os autores do trabalho reconheceram que a
parametrização em tempo real de um modelo para uma doença desconhecida é uma tarefa difícil
e incerta, além do que, os efeitos do lockdown podem variar de país para país. Uma tentativa de
obter resposta ao lockdown em países europeus utilizando a abordagem observacional para a
Itália e Espanha mostrou que houve resultados positivos em retardar a epidemia. [3]
Nossa abordagem tem semelhanças com esse último trabalho. Contudo, mostramos com os
dados que estão disponíveis que não há evidências de quaisquer efeitos do lockdown na Espanha,
França, Itália e Reino Unido na evolução temporal da epidemia da Covid-19.
O Brasil – particularmente o Ceará – adotou o lockdown tardiamente, portanto os resultados
poderão ser ainda mais inócuos na contenção da Covid-19.

Metodologia
Os surtos epidêmicos são sistemas dinâmicos complexos que apresentam comportamentos gerais
semelhantes. Em geral o número de novos casos diários segue uma evolução temporal
semelhante: após um rápido crescimento inicial, o crescimento das infecções diminui com o
tempo e decaem também rapidamente, como se a imunidade de grupo tivesse sido atingida.
Algumas ações públicas podem retardar a reprodução vírus, como se observa na influenza sazonal
e em recentes epidemias de coronavírus H1N1, SARS e MERS. [4, 5]
Neste trabalho a evolução temporal de novas mortes diárias é bem descrita por funções
polinomiais de segunda ordem. Aqui consideramos uma relação estável entre o número de casos
e o número de mortes sendo que o número de mortes diárias está vinculado ao número de novos
casos diários por meio de uma relação de proporcionalidade.
O tempo necessário para o número de mortes dobre é um parâmetros muito utilizado no
diagnóstico da evolução epidêmica, e ele é também inferido neste trabalho. O número acumulado
de mortes no tempo é o somatório no tempo do número de mortes diárias:
A evolução no tempo do número de mortes diárias é expressa pelo logaritmo do número de
mortes diárias e varia no tempo como uma função de potência. A taxa de crescimento do número
de mortes varia no tempo, sendo dado pela inclinação à curva de evolução no tempo do número
de mortes diárias, ou seja, a taxa de crescimento pode ser definida como a derivada temporal do
logaritmo do número de mortes diárias.
O tempo de duplicação do número de mortes é definido como o tempo necessário para que o
acumulado de mortes dobre.
Também estimamos a evolução do número de reprodução da epidemia, Ro, definido como a
relação entre os novos casos de um dia e o acumulado de casos e mortes diários até aquele dia.

Dados
Os dados utilizados neste trabalho foram obtidos nas seguintes fontes:
Organização Mundial de Saúde (https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-
2019/situation-reports/), Centro Europeu para a Prevenção e o Controle de Doenças, ECDC,
(https://www.ecdc.europa.eu/en/publications-data/download-todays-data-geographic-
distribution-covid-19-cases-worldwide) e da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará
(https://indicadores.integrasus.saude.ce.gov.br/indicadores/indicadores-
coronavirus/coronavirus-ceara).

Resultados
Análise da evolução da taxa de crescimento do número de mortes diárias mostra uma tendência
de diminuição da trajetória da epidemia antes mesmo de qualquer política de lockdown,
conforme mostrado na Figura 1. No início a taxa de crescimento é grande e diminui à medida que
o tempo evolui.
Nesta figura está assinalada a data de início do lockdown por linha vertical colorida, com cada
linha na mesma cor que a corresponde cor curva do país. Todos os países seguem o padrão
polinomial e não se observado qualquer desvio da curva de ajuste, em cada um dos países. Para o
Brasil foi considerado o dia 06/maio como o dia do início do lockdown, para o Ceará foi
considerado o dia 08/maio. A tendência geral de diminuição da taxa de crescimento do número
de mortes diário é evidente desde o início da epidemia em todos os países - os quatros que
aplicaram o lockdown, assim como Suécia, Brasil e Ceará. É possível observar alguma variação da
inclinação da reta tangente em diferentes curvas da Figura 1, considerando o mesmo intervalo de
tempo. Contudo, não são observados desvios “consideráveis” no comportamento do número de
mortes diárias, nem de sua taxa de crescimento antes e após a adoção do lockdown. Os desvios
consideráveis, se existissem, poderiam ser atribuídos, em princípio, à adoção de lockdown.

Figura 1: Evolução temporal do número de mortes diárias para a Espanha, França, Itália e
Reino Unido, Brasil e Ceará. As linhas verticais coloridas, com cor igual ao do país a que se
refere, mostra a data de início do lockdown. Os ajustes polinomiais da evolução temporal
também são mostrados.

Da Figura 1 é nítido observar que os países europeus adotaram o lockdown quando o número de
mortes diárias estava crescente, bem no início das curvas. Por outro lado, o Brasil e Ceará
decidiram pelo lockdown quando o número de mortes diárias tendia a se estabelecer – patamar
de pico - ou seja, os brasileiros e cearenses resolvem adotar o lockdown justamente quando a
pandemia entrava em sua fase de pico.
Na Figura 2 são mostradas as taxas de crescimento do número de mortes diárias para os seis
países e o Ceará. O ajuste polinomial representa bem o decrescimento desta taxa: as curvas desta
taxa apresentam um considerável decrescimento a partir da quarta semana e atingem um
crescimento nulo por volta da sétima semana, quando passam a diminuir o número de mortes
diárias (taxa de crescimento negativo), conforme o lado direito da figura.

Figura 2: Evolução temporal da taxa de crescimento do número de mortes diárias para


a Espanha, França, Itália e Reino Unido, Brasil e Ceará. Os ajustes polinomiais da
evolução temporal da taxa de crescimento também são mostrados.

O Brasil, surpreendentemente, volta a crescer a sua taxa por volta da sétima semana, com valores
relativamente bem pequenos. O Ceará apresenta um aumento na taxa após ter experimentado
um crescimento negativo – este comportamento se deve aos dois máximos da curva do número
de mortes diários, um pico devido o surto nos bairros Meireles, Aldeota e Barra do Ceará e o
outro pico devido às mortes nos demais bairros de Fortaleza.
Uma visão mais “focada” no crescimento ou diminuição do número de mortes diárias é visto na
Figura 3. Nesta figura são mostradas as curvas de mortes diárias para a Espanha e Itália. Na figura
estão assinaladas as datas de início do lockdown em cada país por linhas verticais de mesma cor
que a cor da curva do país correspondente. Também estão indicados por uma faixa vertical verde
(Itália) e lilás (Espanha) os períodos de duas a três semanas, após o início do lockdown,
correspondentes a cada país. Este é um período de tempo médio considerado para que se possam
observar as mudanças no comportamento do número de mortes diárias devido à adoção do
lockdown. Este período é definido em função do tempo médio de vinte dias, em que uma pessoa
vai desde a infecção, sentir seus primeiros sintomas e ir a óbito.

É fácil observar que na faixa onde deveria ocorrer uma diminuição na taxa de crescimento do
número de mortes, caso a adoção do lockdown fosse realmente efetivo na contensão da
expansão da contaminação, na verdade o que se vê, em ambos os países, é um aumento
consideravelmente maior desta taxa - na faixa de efeito do lockdown o que se observa é um
aumento na taxa de crescimento do número de mortes diária, o contrário do que deveria
acontecer.
Figura 3: Evolução temporal do número de
mortes diárias para a Espanha e Itália. As
linhas verticais coloridas, com cor igual ao
do país a que se refere, mostra a data de
início do lockdown. As faixas coloridas
definem o período em que as mudanças
devido a adoção do lockdown se tornam
visíveis e efetivas.

No final da faixa vertical de mudanças esperadas devido o lockdown, as taxas de crescimento


diminuem e isso poderia indicar um efeito do lockdown, mesmo que tardio. Entretanto, esta
conclusão não parece ser verdadeira, pois os dados analisados de todos os países apresentam o
mesmo comportamento – tanto os que adotaram o lockdown como os que não o adotaram, a
exemplo da Suécia, do Brasil e Ceará. Este comportamento geral pode nos levar a pensar que se
trata de um comportamento da dinâmica da epidemia – as pequenas variações que são
observadas neste comportamento geral talvez sejam devidas a características físicas e sociais
locais.
Na Figura 4 são mostrados os valores observados para os acumulados do número de mortes
diários para cada país, aqui a cada dia se somam às novas mortes as mortes anteriores. As linhas
verticais indicam o dia em que cada país adotou o lockdown e as linhas verticais tracejadas
representam, aproximadamente, a metade da faixa de tempo na qual os efeitos do lockdown
deveriam se mostrar visíveis.

Figura 4: Valores observados dos


acumulados do número de mortes
diários para cada país. As linhas
verticais indicam o dia em que cada
país adotou o lockdown e as linhas
verticais tracejadas representam a
metade da faixa de tempo na qual os
efeitos do lockdown deveriam se
mostrar visíveis
Observando o comportamento das curvas de acumulo de mortes não se vê qualquer modificação
considerável na sua taxa de crescimento. Em particular, é nítida na curva do Brasil a presença de
pequenos períodos de dias em que ocorreram decréscimos na taxa de crescimento do número
diários de mortes. Podemos inferir que a doção do lockdown não resultou em nenhum
decréscimo no acumulado de mortes em nenhum dos países que adotaram o lockdown, assim
como naqueles que não o adotaram.
O importante parâmetro do número de dias para a duplicação do número acumulado de mortes é
mostrado na Figura 5. Este parâmetro varia de um fator de quatro até a quarta semana, e em sete
semanas o fator é próximo de quatorze. Na figura 5 não é observado uma modificação brusca no
número de duplicação de mortes acumuladas que, se ocorresse, poderia ser atribuída à adoção
do lockdown. Um impacto devido o lockdown deveria ser visível por volta da sexta semana –
simplesmente todos têm o mesmo comportamento. Como esperado do comportamento geral da
diminuição da taxa de crescimento do número de mortes diário, o tempo de duplicação está
aumentando em todos os países desde o início da série temporal de cada um deles.

Figura 5: Tempo para a


duplicação do número de dias
para a duplicação do número
acumulado de mortes.

Da mesma forma que o tempo de duplicação, neste trabalho nós estimamos a evolução do
número de reprodução da epidemia, considerando que o número de mortes e o de casos guarda
entre si uma relação de proporcionalidade. Nós utilizamos a taxa de mortalidade de 1,6%
observada em estudos na Coreia do Sul. A evolução temporal do número de reprodução Ro é
mostrado na Figura 6 para a Espanha, França, Itália e Reino Unido, Brasil e Ceará.

Figura 6: Evolução temporal


do número de reprodução na
Espanha, França, Itália e
Reino Unido, Brasil e Ceará.
Para todos os países e Ceará a evolução no tempo exibe um padrão semelhante: uma constante
tendência decrescente de infecções, mostrando uma brusca queda na primeira semana e
decréscimos menores, mas constantes, nas semanas subsequentes, chegando a uma taxa próxima
de zero na sétima semana.
Em nenhum dos dados analisados acorreu uma descontinuidade na tendência geral de diminuição
do número de infecção. De particular interesse é que a Suécia que adotou política de
distanciamento social, sem lockdown, experimentou uma diminuição no número de reprodução
muito semelhante aos experimentados nos países com lockdown.

Discussão
Neste estudo observacional com metodologia fenomenológica baseada no número de mortes
diárias oficialmente registradas mostramos que as políticas de lockdown da Espanha, França, Itália
e Reino Unido ainda não mostraram os efeitos esperados na evolução da epidemia da Covid19.
Nossos resultados mostram uma diminuição nas taxas de crescimento e número de reprodução
nas duas a três semanas antes do lockdown, e que continuam decrescendo sem grandes
modificações em três ou mais semanas após o lockdown.
A comparação da evolução da epidemia entre os países totalmente fechados pelo lockdown e a
Suécia, que aplicou distanciamento social, confirma e reforça a ausência de efeito benéfico devido
o lockdown.
A evolução da epidemia na Suécia indica, porém, que, na ausência de qualquer medida de
distanciamento social, o decréscimo da epidemia pode apresentar flutuações maiores.
Portanto, este trabalho sugere que medidas de distanciamento social, como aplicados na Suécia,
Holanda e na Espanha, França, Itália e Reino Unido, antes das estratégias de lockdown, têm
aproximadamente os mesmos efeitos que os obtidos quando o lockdown é imposto.
Como observação final, deve-se salientar que, como as estratégias de lockdown não têm impacto
na desaceleração da epidemia, devemos considerar que sua adoção ao invés de salvar vidas
humanas, compromete ainda mais a saúde física e mental da população, seja pelo aumento do
estresse seja possibilidade real de desemprego e marginalização. No caso particular do Ceará, que
entrou tardiamente com o lockdown os resultados poderão ser potencialmente mais danosos às
pessoas e à sociedade.

[1] C. C. Ku, T. C. Ng, and H. H. Lin. Epidemiological benchmarks of the covid-19 outbreak control
in china after wuhan’s lockdown: a modellingstudy with an empirical approach. Available at SSRN
3544127, 2020.
[2] N. Picchiotti, M. Salvioli, E. Zanardini, and F. Missale. Covid-19 italian and europe epidemic
evolution: A seir model with lockdowndependent transmission rate based on chinese data.
Available at SSRN 3562452, 2020.
[3] A. Tobías. Evaluation of the lockdowns for the sars-cov-2 epidemic in italy and spain after one
month follow up. Science of The Total Environment, page 138539, 2020.
[4] J. B. Dowd, L. Andriano, D. M. Brazel, V. Rotondi, P. Block, X. Ding, Y. Liu, and M. C. Mills.
Demographic science aids in understanding the spread and fatality rates of covid-19. Proceedings
of the National Academy of Sciences, 2020.
[5] J. C. Lagier, P. Colson, H. T. Dupont, J. Salomon, B. Doudier, C. Aubry, F. Gouriet, S. Baron, P.
Dudouet, R. Flores, and others. Testing the repatriated for sars-cov2: Should laboratory-based
quarantine replace traditional quarantine? Travel Medicine and Infectious Disease, page 101624,
2020.

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