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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


CENTRO DECOMUNICAÇÃO TURISMO E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
Subárea Etnomusicologia

MPB e voz popular dos anos de 1980: Hibridismos no álbum Luz (1982)
de Djavan

João Pessoa
2017
FELIPE MENDONÇA HAUERS

MPB e voz popular dos anos de 1980: Hibridismos no álbum Luz (1982)
de Djavan

Dissertação apresentada ao Programa de Pós


Graduação em Música (PPGM) da Universidade
Federal da Paraíba - UFPB - como requisito para
a titulação do mestrado em Música, na subárea de
Etnomusicologia.

Orientadora Dra. Adriana Fernandes

Banca:
Dra. Adriana Fernandes
Dra. Eurides de Souza Santos
Dr. Amador Ribeiro Neto

João Pessoa
2017
AGRADECIMENTOS

Seria necessária uma extensa lista de agradecimentos para fazer jus a um curto período
vivido tão intensamente, seja em relação à ambiência acadêmica tanto quanto à vida familiar.
Assim, agradeço primeiramente à minha família intensa: Simone, Gaio, Uila e Cecília,
e à toda a minha família extensa representada nas pessoas de minha mãe Maria Lia e meu pai
Haulivers Hauers (in memorian).
Agradeço à minha orientadora professora Dra. Adriana Fernandes pela capacitação de
pesquisa proporcionada em relação à etnomusicologia e em relação ao estudos de voz.
Também cumprimento todo o corpo docente da subárea de etnomusicologia do Programa de
Pós-Graduação em Música (PPGM) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB): Dra Alice
Lumi Satomi, Dra. Eurides Souza Santos, Dr. Carlos Sandroni e o Dr. Luís Ricardo Queiroz,
além dos coordenadores do programa nesse período, o Dr. Valério Fiel da Costa e o Dr. José
Henrique. Agradeço imensamente à professora de canto popular Ms. Daniella Gramani, cujos
trabalhos sobre interpretação no canto popular brasileiro foram primordiais para meu interesse
em pesquisa na área de voz popular brasileira. Esses trabalhos, por sua vez, incitando
necessidades de observação de toda relação sócio-cultural ampliada acerca da performance
vocal popular, possibilitaram minha chegada ao enfoque de pesquisa etnomusicológica,
campo de pesquisa ideal para a observação ampliada dos objetos sonoros em relação direta
aos contextos culturais em que são produzidos em olhares científicos específicos e adequados.
Agradeço à agência Capes pelo fomento em todo o período de mestrado, que me
possibilitou condições de trabalho com maior aprofundamento, qualidade investigativa e
prosseguimento de atividades em nível doutoral. Também agradeço a mesma agência pela
contribuição na manutenção da estrutura de pesquisa/produção de conhecimento do país
direcionando possibilidades de criação de uma cultura de pesquisa ampliada.
Dedico enfim, a todos(as) cantores(as) populares que vivenciam cotidianamente a
informalidade de conhecimento, a marginalidade acadêmica, e que, apesar das incertezas
cotidianas de carreira seguem seus trabalhos de performance, pesquisa, auto-produção
musical e suas buscas identitárias por campos que vão da oralidade intimista de cantos e
canções populares às grandes mídias homonegeizadoras e ao canto das massas urbanas.
HAUERS, F.M. MPB e voz popular dos anos de 1980: Hibridismos no Álbum Luz (1982) de
Djavan. Dissertação de mestrado em etnomusicologia. Programa de Pós Graduação em
Música, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB, 2017

RESUMO: O long play (LP) enquanto um produto sonoro, que carrega consigo valor
documental no registro de processos e contextos, é o objeto de pesquisa desse trabalho. A
MPB passaria dos 1970 para os 1980 por uma transição observada para toda a música popular
global, na qual, contextos orgânicos de produção cultural passam a contextos ditos de caráter
sintético. Há direcionamentos acerca de certa hegemonia do produto sonoro tomado como
música em si, reordenando o conceito inicial de alta fidelidade para além do produto gravado
como sendo a estrita representação das performances musicais ao vivo. Observados contextos
de internacionalização e práticas transculturais de produção do período de interesse, o álbum
Luz de Djavan (1982) carregou consigo muitas das relações que são apontadas teoricamente, e
também outras condições e laços culturais que surgem em observação de pesquisa. A
atividade de cantautoria de Djavan revela-se vinculada à MPB surgida nos anos 1960, sendo
ele um dos últimos artistas a se vincular aos chamados “artistas de catálogo” da MPB inicial.
Conta-se, nesse álbum, com outros padrões industriais de sistematização inseridos numa rede
de produção cultural internacional bastante apurada em relação à identidade, referenciação às
performances ao vivo e difusão geradas por via do álbum Luz. Sistematização e equilíbrio de
faixas em relação ao suporte vinil, participações internacionais de pop stars e solistas
categóricos diversificados, produção musical internacional vinculada a músicos de estúdio da
soul music norte americana dos 1970, e ampla difusão/vendas somam-se às atividades de
Djavan e da banda Sururu de Capote que já operavam nessa direção conceitual A análise do
produto gravado, juntamente com a utilização de recursos da linguística e apontamentos da
semiótica demonstram boa adaptabilidade para análise da música popular e da vocalidade
desse cantautor. Tomando o padrão de difusão aural e o produto cancional híbrido (letra e
música) em adequação às observações, indica-se a pertinência na relação teoria e método
categórica da etnomusicologia. Luz apresenta caracteres híbridos, aponta a maleabilidade
vocal do canto popular brasileiro, indica uma nova camada de romantismo internacional que
adentraria a MPB em letra e música, e encerra, por fim, uma perspectiva de produção musical
mais detida sobre o suporte long play combinada à difusão em rádio, sem vinculação ainda à
produção áudio-visual que passaria a deter a hegemonia para a difusão musical a partir da
década de 1980 e definitivamente dos anos de 1990 à contemporaneidade. A sigla MPB e seu
caráter cancional híbrido, que já estabelecera diálogos com a música pop na década de 1970,
agrega também possibilidades de diálogo com uma música de padrão pop (neo)romântico
para o movimento. Esse padrão sendo gestado a partir de atividades musicais cosmopolitanas
categoricamente transnacionais, que observáveis em diferentes escalas em relação aos artistas
da MPB, são sistematizados, ilustrados e demonstrados a partir da produção internacional do
álbum Luz de Djavan no ano de 1982.

PALAVRAS CHAVE: MPB, Djavan, hibridismo musical.


ABSTRACT

The long play as a sound product, which brings with it a documentary value in recording
processes and contexts, is the subject of research of this work. MPB music would move from
the 1970s to the 1980s by a transition observed for all global urban popular music, in wich an
organic approach of musical‟s production would increasingly shift to a synthetic approach,
with a certain hegemony of the sound product such as music itself, reordering [rearranging]
the initial high-fidelity concept beyond the product recorded as a representation of live
performances. The Djavan‟s album Luz (1982) took with it many of the relationships that are
theoretically pointed out, as well as other conditions and cultural ties that are not necessarily
bounded by this theory for early 1980‟s. Djavan's compositional activity proved to be indexed
to MPB that emerged in the 1960s, being one of the last artists to be connected to the
"catalog‟s artists” of the primary MPB and counting in this album with other industrial
standards of systematization inserted in a network of international cultural production quite
accurate in relation to identity, reference to the live performances and diffusion generated in
the Djavan‟s album Luz. Systematization and balance of tracks in relation to vinyl support,
international pop stars and categorical soloists, international musical production linked to
North American musicians of soul music and studio, more wide diffusion sales are added to
the activities of Djavan and his brazilian group Sururu de Capote, that already came in this
direction conceptually, before that international production that resulted in this album. The
analysis of the recorded product, along with the use of linguistics and Peircean semiotics,
present good adaptability for the analysis of the popular music and the voice of the singer,
taking the pattern of auditory diffusion. Luz presents some hybrid characteristics in itself,
points out the vocal malleability of the brazilian popular song, indicates a new layer of
international romanticism that would enter the MPB in lyrics and music, and ended with a
production perspective more on support for long game and broadcasting not yet linked to the
audiovisual production that would sustain the hegemony for the musical diffusion of the
1980s. The acronym MPB and its hybrid music character, who already established dialogues
with pop music in the 1970s, also add possibilities for dialogue with an international (neo)
romantic pop song and cosmopolitan cultural activities.

Keywords: MPB, Djavan, musical hybridism.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Selo interno do vinil álbum Luz 1982 .......................................................... p. 71


Figura 2. Selo interno do vinil álbum Lilás 1983 ........................................................ p. 71
Figura 3. Selo interno do vinil álbum Meu lado 1986 ................................................. p. 71
Figura 4. Capa caixa CD‟s Raridades 2012 ................................................................ p. 72
Figura 5. Foto cabeçalho do sítio oficial de Djavan 2017 ........................................... p. 72
Figura 6. Detalhe do título na capa álbum Luz 1982 .................................................. p. 74
Figura 7. Detalhe do título no selo álbum Luz 1982 ................................................... p. 74
(Re)classificação das canções/obs. categorias Passionalização-Tematização ............ p. 164
LISTA DE TABELAS
Siglas:

AM - Amplitud modulation ou modulação de amplitude; termo associado prioritariamente à


banda de transmissão radiofônica (rádio AM), em extinção na contemporaneidade;
CCCA - Canto comercial contemporâneo norte-americano (MARIZ, 2013);
CBS - Columbia Broadcast System; gravadora responsável pelo álbum Luz no ano de 1982,
sendo incorporada pela Sony antes do fim da década de 1980;
DJ - Disc-Jóquei;
EUA - Estados Unidos da América;
FM - frequency modulation ou modulação de frequência; termo associado à banda de
transmissão radiofônica FM (rádio FM);
K7 - abreviação de cassete utilizada para as fitas cassete (áudiocassete ou musicassete); “Fita
magnética de gravação embutida em uma pequena caixa” (DOURADO, 2008, p.71), lançada
oficialmente em 1963 pela Phillips;
LP - long play;
MAU - Movimento Artístico Universitário;
MPB - Música Popular Brasileira em seu movimento específico pós-Bossa Nova;
MMB - Moderna Música Brasileira; no contexto dos anos 1960 seria uma sigla anterior à
sigla MPB;
MTV - Music Television, abreviação do canal de TV dedicado, em sua origem,
exclusivamente à transmissão de vídeo-clipes e shows de música;
PPGM – Programa de Pós-Graduação em Música (UFPB);
UFPB – Universidade Federal da Paraíba.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 11

1 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS ............................................ 21


1.1 Hibridismo cultural ................................................................................................ 21
1.1.1 Hibridismo musical ..................................................................................... 22
1.2 Cosmopolitanismo, a semiótica de Peirce e os campos musicais .......................... 28
1.3 MPB, cantautores(as) e internacionalização .......................................................... 35
1.3.1 Cantautores (as) ............................................................................................ 40
1.3.2 O canto popular urbano ................................................................................ 42
1.3.2.1 O canto e o popular ......................................................................... 43
1.3.2.2 Canto “popular” comercial contemporâneo .................................... 45
1.3.2.3 Canto popular urbano brasileiro (Canto MPB) ............................... 48
1.4 As categorizações de Luiz Tatit em aplicabilidade metodológica ......................... 53

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DO FENÔMENO MUSICAL ...................................... 58


2.1 Os anos de 1980 ..................................................................................................... 58
2.2 Djavan .................................................................................................................... 59
2.3 A música negra popular urbana em vocalidade solo .............................................. 61
2.4 O álbum Luz ........................................................................................................... 64
2.4.1 Os músicos e o álbum Luz .............................................................................. 75
2.5 A voz popular em zonas contextuais/processuais de hibridação ........................... 79

3 ANÁLISE DAS CANÇÕES DO ÁLBUM ............................................................ 87


3.1 Metodologias de análise melódica vocal ................................................................ 87
3.2 As canções: análises vocais e outros aspectos musicais ........................................ 92
3.3 Análise das canções ................................................................................................ 94
“Açaí” ..................................................................................................................... 96
“Banho de rio” ........................................................................................................ 102
“Capim” .................................................................................................................. 105
“Esfinge” ................................................................................................................ 110
“Luz” ...................................................................................................................... 115
“Minha Irmã” ......................................................................................................... 120
“Nobreza” ............................................................................................................... 123
“Pétala” .................................................................................................................. 127
“Samurai” ............................................................................................................... 131
“Sina” ..................................................................................................................... 134

3.3.1 Conclusões parciais de análise das canções .................................................... 141


3.4 A unidade conceitual do álbum ............................................................................. 144
3.4.1 A reiteração como unidade lírica do álbum ..................................................... 144
3.4.2 Considerações de análises das letras ............................................................... 160

4 MPB, Luz, vocalidade popular brasileira e observações de pesquisa .................... 165


4.1 O álbum Luz: conceitos finais e indexações .......................................................... 165
4.2 Djavan, a MPB dos 1960 aos 1980 e direcionamentos contemporâneos ............... 172
4.3 A voz popular e seus níveis de hibridação ............................................................. 179
4.4 Hibridismos no álbum Luz na observação de campos musicais ........................... 182
4.5 Hibridismo e perpectivas sociais de gênero .......................................................... 185
4.6 A semiótica nos estudos de música popular ........................................................... 187

5 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 190

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 194


Página em branco
11

INTRODUÇÃO:

O trabalho tem como foco e procedimentos de pesquisa a análise e observação de


padrões padrões vocais e compositivos1 da MPB no início da década de 1980, por via da
música gravada em disco long play (LP) constituindo um estudo de caso. Naquele período,
aponta-se, de forma geral, uma fase de transição da música global sobretudo relativa à essa
esfera cancional de caráter popular urbano a ser aqui tratada, passando-se de um contexto
orgânico de produção a um contexto sintético2 (FRITH apud NEGUS, 1992) numa dinâmica
que é paralela, em certa medida, à migração da representatividade das performances ao vivo
por via do produto gravado, para a consideração dos produtos gravados como sendo som e
música em si mesmos. Lembro que à época, início dos anos de 1980, isso se deu
prioritariamente ainda sob o suporte musical em formato long play (LP) à base vinil, que
unia-se à difusão aural da música prioritariamente em rádio e de forma crescente através da
TV.
No Brasil, as influências transculturais e possibilidades de entrecruzamento cultural
na música popular, que haviam ganhado uma dimensão ampliada já desde fins dos anos de
1960 e de forma evidente nos 1970, são potencializadas e plenamente sistematizadas pela
indústria cultural de forma muito evidente a partir dos 1980. Tal fato, tem relação com o
estabelecimento da categorização mundial da World Music3 e com a relocação da
sigla/categoria MPB no imaginário receptivo em esfera nacional. Ampliaram-se ali
possibilidades de hibridação musical e observações acerca de um viés cosmopolitano
relacionado às práticas culturais sob uma perspectiva mundial ampliada. Produtos e processos
1
Resguardo o termo “compositivos” aqui para seu sentido específico da elaboração de letra e melodia por parte
de compositores que são também intérpretes da canção brasileira, constituindo o ofício híbrido de composição
e.interpretação que categorizou boa parte da atividade da MPB, ou seja composição-interpretação de música
vocal em seu formato canção, atividade que diz respeito ao ofício de cantautoria. Outros caracteres de
composição instrumental e de arranjos instrumentais resguardo ao âmbito da concepção de arranjos e bases
instrumentais paralelos, e nesse caso encomendados a outros(as) atores da produção musical para refinamento do
produto sonoro cancional tratado aqui. Assim, o termo composição, nesse trabalho, diz respeito única e
exclusivamente à composição de letra e música sem um caráter instrumental prioritário.
2
A transição é reapresentada de forma aprofundada no capítulo dois, resumidamente Frith diz respeito à situação
da performance pública autenticando possibilidades de gravação (contexto orgânico) passando a um contexto no
qual a performance e elementos de gravação independem e desvincula-se de um prioridade relativa à
performance pública de apresentação. Contexto no qual a indústria musical pode criar artistas/movimentos a
partir da ótica de estúdio ou áudio-visual, sendo esse então um contexto sintético de abordagem da produção
musical.
3
Termo usado para categorizar canções populares urbanas comerciais de caráter global com fusões ou colagens
de elementos étnicos principalmente da África e América Latina. É um conceito diferente do conceito de world
music que ocorre no campo pedagógico de música e de pesquisa na etnomusicologia. Isso ocorre sem grandes
problema no Brasil pela tradução do termo nessas áreas disciplinares como “músicas do mundo”, de forma que o
termo world music funciona plenamente aqui como uma nova categorização de música popular de caráter global
que conte com elementos étnicos, regionais ou de música popular urbana local.
12

sonoros tornam-se assim passíveis de uma observação dinâmica direcionada à influência


crescente desses caracteres distintos e também na perspectiva de observação da produção
cultural, expandindo a relação redutora e sintética da música como objeto. Permite-se dessa
forma, observações que, a partir desses produtos, desconstruam em análise os processos
musicais de forma ampla, lançando luz nas relações de produção cultural, de uma possível
estética musical híbrida e da música direcionada aos ouvintes. Elementos do cenário musical e
cultural da música popular brasileira do período em questão seriam assim delineados.
Naquele cenário, e na MPB, também observam-se elementos de internacionalização
tanto das produções musicais quanto de práticas contextuais. As mudanças musicais inserem-
se então nesse quadro diferenciado de mudanças culturais, já que, em nossa área de pesquisa,
a etnomusicologia, pensa-se a música enquanto um fenômeno intrínseco da cultura, sendo a
esfera musical não só influenciada, mas também influenciando a cultura em diferentes
aspectos. Culturalmente e mesmo na linha de pesquisa específica dos estudos culturais, a
questão do hibridismo tem se tornado latente, caracterizando por vezes um clichê descritivo
relativo ao popular latino-americano, seja em caracteres urbanos ou folclóricos. Na
exploração do conceito de hibridismo, é a observação de seus processos dinâmicos de
hibridação que passa a constituir uma condição metodológica capaz de libertar o tema do
campo descritivo, de maneira a direcioná-lo ao entendimento desses processos de hibridação.
No período em questão, o início dos 1980, diversos artistas da MPB têm incentivo ou
apontam produções de caráter transnacional, fator identificado desde o período de transição
entre as décadas de 1970 e 1980 à meados da década de 1980, e que ocorreu ainda em outros
movimentos da década de 1970. Para ilustrar tal período e práticas, e após observados
diversos álbuns de artistas brasileiros inseridos num contexto de internacionalização e
também passíveis de análise, o álbum Luz (DJAVAN, Luz, CBS Records Inc., 1982) gravado
no ano de 1982, em Los Angeles nos Estados Unidos, pelo compositor e cantor Djavan
(Djavan Caetano da Silva, 27 de janeiro de 1949, Maceió-AL) mostrou-se objeto de pesquisa
pertinente e de relevante valor documental. Esse LP produzido internacionalmente, tendo
caracteres ainda atuantes na auralidade de difusão e passíveis de serem de certa forma
“vivenciados” processualmente em relação à contemporaneidade, ilustra alguns enfoques
teórico-metodológicos pretendidos numa escala dissertativa. Tais enfoques teóricos dizem
respeito a fatores internacionais de influência musical/cultural tanto em relação à produção do
álbum quanto às práticas sócio-musicais do artista brasileiro, destacando-se o hibridismo
musical, o cosmopolitanismo, a produção cultural e o canto popular urbano brasileiro. Nesse
contexto direcionado à contemporaneidade, todos esses campos teóricos e conceituais
13

apresentam tendências estéticas renovadas e necessidades de fundamentação passíveis de


direcionamento.
No caso da canção brasileira típica do século XX, e ainda mais especificamente na da
MPB, seriam pontuais álbuns de cantores(as) gravados e produzidos fora do Brasil com
lançamento simultâneo em diferentes mercados. Há recorrências desse tipo identificadas em
relação à música instrumental, ou então casos em que procurou-se preferencialmente
estabelecer uma carreira artística e profissional internacional nas cenas anglo-norte americana.
Cerca de vinte anos antes desse álbum Luz de Djavan em foco, houve a produção
internacional do álbum Getz & Gilberto (gravado em 1963 com lançamento em 1964) (GETZ,
GILBERTO, Verve Rec., 1964) fruto de conquista e amadurecimento da Bossa Nova no
mercado internacional norte-americano, e contando com características transnacionais de
lançamento simultâneo Brasil-Estados Unidos, apesar de uma escala muito mais reduzida de
difusão na ocasião4. Também naquele álbum de Bossa Nova passam a figurar outros
elementos de produção musical5 de maneira clara. O fato, só aparentemente deslocado em
relação ao atual objeto de estudo, é ilustrativo das novas camadas, processos e/ou atores que
cada vez mais passariam a compor o produto gravado enquanto elemento fundamental de
difusão e mediação do campo da alta-fidelidade de gravação6. No caso do álbum de João
Gilberto e Stan Getz esse conceito de alta-fidelidade ainda tinha uma relação mais estrita com
a busca da melhor representação das performances ao vivo. Tal álbum mereceria um trabalho
à parte contando com uma análise de sua permeabilidade pelos campos instrumental e vocal,
artístico e popular e relativa a amplitude de hits compilados constituindo uma espécie de
modelo canônico popular condensado em um LP. Naquele mesmo período pós-Bossa Nova,
mas em esfera nacional, também destacaria-se um outro álbum do ano de 1963, o disco de
Jorge Benjor (então Jorge Ben) chamado Samba Esquema Novo (BEN, Phillips Rec.,1963).
Esse álbum, aponta também caracteres relativos ao produto sonoro gravado de forma
identitária às hibridações musicais pelos artistas afro-brasileiros passando a ter maior destaque

4
Destaco a inexistência da transmissão em rádio FM no Brasil e menor incidência mercadológica de difusão e
vendagem do produto sonoro gravado em suporte de vinil (LP) em relação às camadas mais populares de
ouvintes no Brasil. O álbum acabou sendo mais bem sucedido em terras norte-americana sendo premiado com o
Grammy em 1965 e atingindo cerca de dois milhões de cópias vendidas, o que seria impensável para uma
produção nacional.
5
Destaca-se documentalmente o trabalho de engenharia de som de Phil Ramone que seria ali premiado como
melhor engenheiro de som daquele ano e também a produção de Creed Taylor que mediou certas tensões entre
João Gilberto e Stan Getz, demonstrando como outros elementos passam a ser valorizados e imprescindíveis na
elaboração e intermediação do produto sonoro.
6
O campo de alta fidelidade de gravação diz respeito à performance de estúdio com vistas a representar ou ser
icônica à performance ao vivo. Esse campo musical é apresentado e abordado por Thomas Turino a partir da
perspectiva de campo social de Pierre Bourdieau, e será oportunamente retomado e aprofundado à frente.
14

midiático em escala urbana no Brasil, a partir dos anos de 1960. Samba Esquema Novo
apresenta alguns caracteres importantes: fusão de elementos de caráter rural/tradicional com
outros da música pop internacional/cosmopolitanos com banda base de samba-jazz7 e a
proeminência da figura do produtor musical (nesse álbum tendo atuado o renomado Armando
Pittigliani8), e novamente apontanto ali outra boa amplitude de hits compilados em disco
(modelo canônico popular condensado em um LP) já observando agora esse fator como
resultado da cadeia de produção e difusão. Em fins da década de 1960 ainda outros dois
álbuns desse modelo cancional da MPB trariam caracteres observáveis de internacionalização,
o álbum Tropicália ou Panis et Circensis de 1968 (TROPICÁLIA, Phillips Rec. 1968) com
boa dose de hibridismo, transculturalismo e assunção da cultura pop de massas e o Elis
Regina in London do ano de 1969 com clara linguagem de samba-jazz, o primeiro lançado
somente no Brasil e o último, ao contrário, sem lançamento simultâneo no Brasil 9. A década
de 1970, segundo Marcos Napolitano, enfim redesenharia os diálogos da MPB com a música
pop. É contudo uma década mais categorizada por movimentos e agrupamentos do que por
artistas surgidos isoladamente, como por exemplo: o Black Rio (BAHIANA, 1980;
OLIVEIRA, 2016), os chamados “malditos” da MPB, a Vanguarda Paulista (MACHADO,
2007), o Clube da Esquina em Minas Gerais, dentre outros e ainda dois importantes
“movimentos10” de retomada e (re)afirmação musical a serem citados. O primeiro mais
central ao eixo Rio-São Paulo desenhado na virada daquelas décadas (1960/1970) é o de

7
No álbum atuou a banda de base “Meirelles e os Copa 5”, o artigo “O Samba Esquema Novo de Jorge Ben Jor”
de Alam D‟Ávila do Nascimento, traz alguns apontamentos importantes aqui resumidos. Disponível em:
<http://antigo.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/etnomusicologia/etnom_ADANascimento.pd
f.>, Acesso em: 20/01/2017.
8
Armando Soares Pittigliani (26/12/1934 Santos, SP); “Iniciou sua carreira profissional em 1955 na Companhia
Brasileira de Discos (depois Philips, Phonogram, PolyGram e Universal Music), trabalhando ininterruptamente
nessa gravadora até 1993. [...] Tornou-se, mais tarde, assistente de produção nacional e, a seguir, diretor artístico
da gravadora, quando foi eleito pela Associação de Críticos de Arte de São Paulo como melhor produtor de
discos em 1965, 1966 e 1967.” Observa-se então a grande importância que passa a ter o produtor musical em
toda a cadeia musical, uma espécie de mediador entre canção e público. Cravo Albin aponta que Armando
Pittigliani foi também: “pioneiro no uso do marketing na indústria fonográfica, foi o primeiro a produzir um
videoclipe de uma gravadora brasileira, com a cantora Maria Bethânia. Organizou e dirigiu quase todos os
departamentos da PolyGram, com destaque para direção artística, promoção internacional, marketing, imprensa,
relações públicas e serviços criativos”. Fonte: <http://dicionariompb.com.br/armando-pittigliani/dados-
artisticos>
9
O álbum seria relançado no Brasil somente após a morte da cantora já no ano de 1983.
10
No movimento de revitalização do samba para a década de 1970 surgem nomes muito definitivos como
Martinho da Vila, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Clara Nunes cujos primeiros sucessos e aparições
midiáticas se dão nas viradas dos 1960 aos 1970 com indexação à chamada velha guarda do samba. A nova
geração nordestina por sua vez traria nomes de estados nordestinos diversificados como Zé e Elba Ramalho,
Alceu Valença, Belchior, Ednardo e Fagner dentre outros(as), os três últimos identificados com um grupo local
chamado “Pessoal do Ceará” (ROGERIO, 2006), termo que acabou sendo erroneamente tomado no sudeste
também como “turma do Ceará” para designar todos esses artistas nordestinos ou então somente a Fagner e
Belchior que também não lançaram trabalhos com o grupo original “Pessoal do Ceará”, muito embora tenham
participado de tal movimentação artística regionalizada ainda nos 1960.
15

revitalização do samba, “surgido” pouco antes de um segundo movimento em diáspora interna


no Brasil na segunda metade dos 1970 trazendo então uma nova geração/movimento de
artistas nordestinos. Ambos os grupos e artistas permanecem firmados até hoje na cena da
música popular brasileira e já difusos dentro da sigla MPB. Como um último álbum a ser
citado nesse panorama de internacionalização, agora em fins dos anos de 1970, Realce de
Gilberto Gil (GIL, WEA, 1979) gravado em Los Angeles no ano de 1979 também seria um
long-play com algum panorama transnacional. Lançado e direcionado ao mercado brasileiro,
o álbum alavancado pela faixa-título “Realce”11, é considerado o fechamento da “trilogia dos
Re‟s12” de Gilberto Gil, contando pontualmente com músicos norte-americanos
(principalmente para a faixa-título). Porém Realce tem produção, engenharia e mixagens
brasileiras além de constituir um álbum de gravação de canções dispersas da carreira de Gil e
não propriamente um álbum concebido em estúdio e prioritariamente autoral, contando com
versões de canções anteriores suas (“Tradição” e “Sarará Miolo”) de outros compositores
(“Marina” e “Não chores mais”13) e outras músicas já pré-concebidas no Brasil.
Dessa forma, após esse período e cenário ilustrados para as duas décadas anteriores ao
recorte de trabalho, Luz de Djavan aponta e apresenta outros caracteres que seriam distintos
dessa primeira sequência de álbuns brasileiros citados, apartados também ao bojo de
movimentos dos anos de 1970 e também com um bom distanciamento temporal dos artistas
fundantes da MPB em fins dos 1960. Os LP‟s citados, contendo já algum caráter internacional
de forma mais pontual, demonstram fatores importantes acerca de uma produção musical
ampliada, capacitando expandir, de certa forma, a premissa analítica musicológica restrita ao
modelo canônico autor-obra e fidedignidade estrita de representação das performances ao
vivo por via do LP. Os movimentos dos 1970, por outro lado, demarcam nichos de
surgimentos de artistas com menor vinculação, ou mesmo restrição de vinculação direta

11
Adoto para o trabalho o padrão de escrita em itálico para os álbuns, e escrita entre aspas para as canções. Isso
importa na medida em que são muitos os álbuns e canções observados, e que, na MPB há um padrão “faixa-
título” ou “canção que dá título ao álbum” muito recorrente. Dessa forma, ao escrever Luz, Realce ou Seduzir
trato dos álbuns e long-plays, enquanto que “Luz”, “Realce” e “Seduzir” são canções que dão título aos seus
respectivos álbuns mas também formatos de escrita para outras canções. Orientação essa do professor Amador
Ribeiro em banca de qualificação.
12
A trilogia é descrita pelo próprio Gilberto Gil, em entrevista a Marcelo Fróes para a Caixa Palco, sendo
constituída pelos álbuns Refazenda, Refavela e Realce.
13
A canção “Marina” é um clássico da obra de Dorival Caymmi e “Não chores mais” uma versão de “No
woman no Cry” de Bob Marley, que já estava gravada e estourada nas rádios no ano anterior e foi então incluída
no álbum Realce. O álbum resultou em apenas nove faixas tendo um leque de canções autorais não incluídas que
passaram a bonus tracks no relançamento em CD para a caixa Palco de Gilberto Gil. Fonte: <
http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_info.php?id=18&texto >
16

desses, tanto aos chamados “artistas de catálogo da MPB”14 (DIAS, 2000) quanto até mesmo
ainda a uma segunda geração15 da MPB central surgida do MAU16 (Movimento Artístico
Universitário) na virada dos 1960 para os 1970. Ao cantor e compositor alagoano Djavan o
reconhecimento artístico não seria marcado nem por via dos festivais, que muito embora o
revelassem na TV apresentavam declínio da fórmula original nos fins dos anos de 1970, e
nem por via dos movimentos citados que categorizaram os 1970 (aos quais ele não teria se
enquadrado ou sido enquadrado esteticamente). O fato de sua chegada à centralidade de
difusão daria-se em definitivo, a princípio, através de um produto gravado de grande
circulação e de produção internacional – o álbum Luz no ano de 1982. Produção cancional
totalmente autoral, simultaneidade de lançamento entre EUA e Brasil e produção musical
categoricamente internacional redimensionando a padrão de lançamentos de álbuns nos 1980.
Os produtos sonoros em sua forma gravada ganham cada vez mais proeminência sobre
as práticas de performance ao vivo, criando inclusive o que seria teorizado como uma
transição ao conceito inicial de alta-fidelidade17. Assim, a observação de diretrizes técnicas e
contextuais do produto gravado tenderia a revelar possíveis caracteres desse propalado
período de transição já identificado para a década de 1980, e ainda elementos que vão além do
produto sonoro tomado em música por si, capazes inclusive de revelar fatores desse
redimensionamento do campo da alta-fidelidade. Assim, aponta-se um achatamento da
relação semiótica, que inicialmente tinha o produto musical como representação da
performance ao vivo (conceito primário da alta-fidelidade) para um padrão que agora toma o
produto sonoro gravado como a música em si mesmo, esse contando inclusive com algumas

14
Marcia Tosta Dias apresenta o termo em seu texto “Trajetória da indústria fonográfica brasileira: anos 70 e
80” (DIAS, 2000), apontando que no início dos anos 1970 a indústria fonográfica teria passado a investir num
elenco mais estável de artistas, os artistas de catálogo, contando com “artistas ligados à MPB, que produzem
discos com venda garantida por vários anos, mesmo que em pequenas quantidades” (DIAS, 2000, p. 82),
enquanto mantinha uma outra linha de produção reservada aos artistas de marketing. “O artista de marketing é o
que é concebido e produzido, ele, o seu produto e todo o esquema promocional que os envolve, a um custo
relativamente baixo, com o objetivo de fazer sucesso, vender milhares de cópias, mesmo que por um tempo
reduzido” (idem, p. 82-3). Segundo a autora “é em torno dessas duas vias de ação que a grande indústria
brasileira do disco e talvez mesmo, a mundial, organiza a sua produção e define as áreas e formas a serem
tomadas pela segmentação, dos anos 70 até os dias atuais.” (idem, p. 83)
15
Essa segunda geração destacaria nomes como Gonzaguinha, João Bosco, Ivan Lins, Aldir Blanc dentre outros.
Observo que é uma geração posterior a dos primeiros festivais mas ainda envolta nas siglas de movimentos e
festivais e com uma possibilidade cronológica de vinculação à primeira geração. Sendo ambas as gerações
envoltas no conceito de artistas de catálogo.
16
Fonte: <http://dicionariompb.com.br/mau-movimento-artistico-universitario/dados-artisticos>
17
Inicialmente o conceito de alta-fidelidade dizia respeito exclusivamente a melhor representação possível da
performance ao vivo pelo produto gravado. Já nas transições dos anos 1960/1970 com o surgimento das rádios
FM‟s o conceito vincula-se também à qualidade de transmissão radiofônica. Na contemporaneidade o conceito
chega ao estágio de criação de sensações de reprodução ao vivo e constantes melhoras na relação tecnológica
com os aparelhos domésticos e mesmo relação com o cinema e videos de alta-definição, com necessidade de
acompanhamentos tecnológicos.
17

atividades de gravação não necessariamente representáveis em performance ao vivo e aportes


da indústria cultural na diluição desse modelo. Nesses termos cabe como hipótese, num
cenário teorizado como de transição, observar novos elementos de mediação que colaborem
nessa nova relação identitária dada ao produto sonoro, apontando novas tramas estabelecidas
e possivelmente ilustráveis para a MPB através do referido álbum. O álbum observado em
seus processos, e não exclusivamente como um produto sonoro, por sua vez, revela conceitos
musicais relevantes acerca do artista, da vocalidade popular urbana em foco e desse cenário
transitório em relação à MPB direcionando o estudo de caso.
Simon Frith e Keith Negus delinearam um importante panorama da indústria
cultural/musical internacional para o período. Tem-se aqui então, um objeto sonoro
caracterizadamente da canção brasileira urbana apontado para fins do século XX e concebido
na ocasião sob destacadas condições internacionais de produção musical e de influências
transculturais no início dos anos 1980. Assim, o long play (LP) Luz em questão apresenta sua
pertinência enquanto objeto de análise em suas relações híbridas imanentes de observação,
seja sob a perspectiva de produção musical do objeto sonoro e de seus diálogos contextuais
amplos, ou das práticas musicais por si tomadas aqui com um foco mais detido das questões
vocais interpretativas e compositivas do cantautor18 alagoano. O álbum Luz, desconstruído em
pesquisa enquanto um mero objeto sonoro, traz indicativos diversificados para a música
popular urbana do período colaborando no entendimento do fenômeno musical.
O tema de trabalho consiste então num estudo de caso realizado através da análise das
práticas vocais e contextuais de produção musical situada dentro de um período histórico da
música popular brasileira na primeira metade da década de 1980, materializada por via do
álbum Luz (1982) de Djavan. Esse álbum é abordado para a observação de caracteres
processuais, vocais e compositivos, que se mesclam a caracteres contextuais de produção
cultural num cenário apontado teoricamente como transitório à música popular global. Tal
cenário musical/cultural demonstra-se germinal, em diversos aspectos, para o padrão
contemporâneo hegemônico de difusão musical direcionado prioritariamente ao campo de
alta-fidelidade de gravação. Além desse primeiro fator, dimensionamentos estéticos relativos
tanto à vocalidade popular quanto à composição de canções conteriam elementos estrangeiros
díspares, sob formas muito mais aparentes porém ainda assim equilibradas cancionalmente. A
tentativa de desconstruir o que chamou-se “achatamento semiótico19”, além de revelar muitos

18
Ofício híbrido da música popular relativo ao(a) cantor(a) e compositor(a) de letra e música.
19
O termo é aprofundado no próximo capítulo, mas diz respeito a uma mudança da condição de observação do
produto sonoro como representação da performance ao vivo (conceito inicial de alta-fidelidade) para a tomada
18

outros caracteres musicais e sociais pela via de observação pode trazer alguns indicativos de
como se deram diversas mudanças do período, dentre as quais: a tomada do produto gravado
como o som em si mesmo, a relocação da sigla MPB a partir daquele cenário musical, a
abordagem conceitual específica para o álbum/produto musical e elementos estéticos
diversificados (muito embora unificadores) de vocalidade e da composição de letra e música
de Djavan.
Tomando-se esse o produto sonoro gravado dentro de uma abordagem conceitual que
delineava-se desde a década de 1960 (BEN, 1963; GETZ & GILBERTO, 1964;
TROPICÁLIA, 1968; REGINA, 1969; GIL, 1979) e também contextual já aproximada ao
período em foco (BUARQUE, 1982; GIL, 1982; REGINA, 1982; NASCIMENTO, 1979)
intenta-se nessa pesquisa: levantar caracteres do álbum Luz, em sua perspectiva de produção
artístico-cultural, que contribuam para a observação de um período teorizado como de
transição para a música popular, essa agora marcadamente com caracteres globais. Tais
caracteres possivelmente catalizadores das sonoridades teriam sua base forjada também a
partir do arcabouço social e cultural do período, e por outro lado, passariam a recompor
culturalmente modelos de produção baseados nesses mesmos padrões sonoro-culturais.
O período em questão é não só observado como sendo transitório em relação à música
popular global, mas conta com uma carência de produção de pesquisa relacionada às duas
últimas décadas do século XX, sobretudo no Brasil. Um estado da arte a partir do qual
requisita-se uma maior e necessária aproximação de pesquisa documental acerca dos “long
playings e compactos entre 1950 e 1989 [...]” (NAPOLITANO, 2002, p.84), que possibilite
consequentemente “uma abordagem produtiva e instigante do documento-canção” (idem, p.
95). Os ábuns atravessam a década de 1980 saindo dos suportes físicos prioritariamente em
vinil e cassete para o suporte em Compact Disc (CD). Apontam uma futura transição
característica do terceiro milênio que é a ausência de suporte físico para a música em
lançamentos, álbuns e canções. É dentro dessa perspectiva que o álbum Luz ainda pertence a
um modelo de produção, difusão e contexto das duas décadas anteriores (1960/1970), mesmo
que aponte condições de produção e performance musicais de fins do século XX.
O capítulo um traz os conceitos teórico-metodológicos, dentre os quais destaco: o
hibridismo musical; o cosmopolitanismo, indicações primárias da semiótica peirceana e os
campos musicais de base social; e por fim, o canto popular brasileiro. O primeiro conceito
com base nos estudos culturais de Nestor Garcia Canclini, e os seguintes três conceitos por

do produto sonoro como música em si mesmo. No próximo capítulo cruzando observações de Simon Frith,
Thomas Turino e Heloísa Valente tal condição é explicada em profundidade.
19

via do etnomusicólogo Thomas Turino que assim constituem uma linha de fundamentação
teórica central, também complementados por outros(as) autores(as). No caso do canto
popular, como um último conceito teórico, há uma nova abordagem acadêmica em construção
que trago por via de algumas autoras, com destaque para Adriana Picollo, Regina Machado,
Heloísa Valente e Joana Mariz. E nessa perspectiva direcionada ao canto popular, retomo
caracteres de abordagem compositiva da canção e letras de música popular consolidadas pelo
semioticista Luiz Tatit que direciono metodologicamente à interpretação e performance vocal
populares.
O capítulo dois objetiva a contextualização histórica e antropológica do fenômeno
musical em estudo, o álbum Luz e Djavan. São tecidas considerações sobre a sigla MPB,
perspectivas de carreira artística do cantautor Djavan, dos músicos envolvidos, de contextos
de produção do LP e indicadores referenciais para essa vocalidade popular em processo de
“modernização”. Evita-se uma abordagem histórica extremamente linear tentando amalgamar
algo do conceito de rede de produção e das interinfluências híbridas relativas à canção
brasileira. O mesmo capítulo traz, para fins de pesquisa e recorte, uma historicização e
compartimentação da sigla MPB em relação às décadas de 1960 e 1970 (intitulada aqui MPB
exordial), mantendo uma possibilidade conceitual aberta temporalmente e passível a futuras
considerações no trabalho. Apresento algumas conclusões parciais a tal capítulo em foco
contextual e relacionado à produção musical do período.
O capítulo três visa uma análise mais focada do objeto sonoro, o álbum Luz, na
perspectiva híbrida de análise de letra e música, tendo incutida uma necessária
interdisciplinariedade já ensejada e aberta pelo campo da etnomusicologia. Seu intuito é o de
estabelecer uma perspectiva contínua de observação entre os elementos letra e música, mais
do que fixar algum modelo fechado de análise para os mesmos. Assim, a partir de uma
proposta de análise da canção, o trabalho adquire a característica de ensaio de análise de letra
e melodia vocalizada, ora polarizada por considerações linguísticas relacionada à emissão
vocal de letra-melodia, e ora polarizada por elementos musicais. Buscou-se algum padrão de
equilíbrio analítico entre as canções, muito embora cada uma dessas direcione diferentemente
as possibilidades de observação. Essa primeira análise cancional revelou a necessidade de
observação ainda mais apurada dos caracteres linguísticos e relativos aos conteúdos das letras
das canções. Surgem então os apontamentos acerca da reiteração e associação de temas das
letras cancionais feitos em busca de apontar um padrão lírico conceitual do álbum Luz. Essa
análise resultou no tópico “A unidade lírica do álbum” e seus diversos subtópicos então
relacionados, que muito embora detenham-se mais ao campo textual, surgiram das
20

observações de relações da vocalidade em atividade de enunciação das letras. Ou seja, é um


desdobramento e aprofundamento da análise híbrida das canções e da atividade processual de
composição-interpretação. Atividade essa que opto em chamar de cantautoria ao longo do
trabalho. As necessidades de ampliação dos direcionamentos relacionado às letras e textos
surgem como capazes de constituir uma unidade conceitual mais ampla, e ao mesmo tempo
específica, para caracterizar fundamentalmente o álbum Luz e a atividade musical de Djavan
dentro desse estudo de caso. Por fim, apresento conclusões parciais a esse capítulo com foco
no objeto sonoro híbrido da canção e da vocalidade em questão.
O capítulo quatro traz considerações gerais processuais sobre o trabalho. Uma reflexão
acerca dos principais apontamentos conceituais para o álbum Luz analisado, mesclando
observações da MPB e perspectivas futuras de observação de temas da música popular
brasileira. Nas primeiras considerações relativas ao álbum Luz procuro fazer cruzamentos
conceituais com a sigla MPB e parte do cenário da música popular urbana. Outros
apontamentos intermediários relativos à vocalidade específica do álbum e seus possíveis
caracteres de hibridação e de gênero social encerram-se com considerações acerca da
utilização da semiótica como ferramenta metodológica em relação à música popular.
O capítulo cinco é a conclusão geral, apontando frutos e perspectivas desse estudo de
caso, das observações em geral e necessidades futuras de observação dos próximos trabalhos.
Essas últimas puderam ser indicadas a partir desse trabalho porém constituem novos
problemas e hipóteses de pesquisa.
21

Capítulo 1: FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

1.1 O hibridismo cultural

Do mito das três raças de Mário de Andrade às recentes discussões acerca da


globalização e seus processos contemporâneos desiguais de influência cultural transnacionais,
evidenciam-se apontamentos relativos às mesclas e combinações que permeiam a formação
cultural brasileira. A música popular, nessa perspectiva, é um produto cultural
caracterizadamente híbrido e passível de eventualmente agregar elementos díspares.
Estudos culturais e musicais mais recentes atentam para a questão do hibridismo
(APPERT, 2016; BERND, 2004; BASTOS, 2010; HALL, 1999; PIEDADE, 2010) de uma
maneira geral. Na busca de uma perspectiva adequada à latinidade e também à
contemporaneidade, a definição de hibridismo abaixo relacionada, apresenta-se de maneira
pertinente e sintética, sendo também replicada por outros(as) pesquisadores(as) da área:

processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de


forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas [...] as
estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pela qual não
podem ser consideradas fontes puras (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. XIX).

Nesse trabalho, às possibilidades híbridas oriundas das diversas esferas de produção, e


já que “a nossa música tem se apropriado, reproduzido, recombinado blocos de significação
de várias matrizes, sejam elas cultas, artesanais ou industriais” (ARAGÃO, ULHÔA,
TROTTA, 2001, grifo meu) agrego, tal qual os pesquisadores brasileiros, propostas de
entrecruzamentos culturais oriundas do enfoque de Néstor García Canclini (2008; 2015). Em
função de sua perspectiva sere concretamente direcionada à latinidade e à contemporaneidade,
“em meio às ambivalências da industrialização e da massificação globalizada dos processos
simbólicos e dos conflitos de poder que suscitam” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p.XXV),
trago o autor latino-americano e seus estudos culturais, como referência a esse trabalho.
O mesmo autor aponta a necessidade de enfrentamento não só conceitual do tema.
Direciona-se uma necessidade de avanço metodológico dessas bases, para que se supere um
campo meramente descritivo, ou de observação das misturas sem as contradições que cercam
necessariamente os processos de hibridação. Assim, são os processos de hibridação, e não o
hibridismo por si, que constituem o interesse primordial de pesquisa, ao permitirem observar
também “o que contém de desgarre e o que não chega a fundir-se,” (idem, p.XXVII) e tendo
por base ainda que “uma teoria não ingênua da hibridação é inseparável de uma consciência
22

crítica de seus limites, do que não se deixa, ou não quer, ou não pode ser hibridado” (idem,
p.XXVII).
Dessas primeiras considerações passo agora ao ponto relativo à utilização do termo
hibridismo no campo musical, de onde decorrem terminologias como: hibridismo musical,
mesclas, fusões e sincretismo, dentre outros(as). Além disso, apresento algumas progressões
terminológicas e metodológicas relativas aos processos e produtos da hibridação.

1.1.1 Hibridismo musical

Melodias étnicas ligadas a rituais coletivos, se entrelaçam com música clássica e


contemporânea, com outras formas gestadas de hibridações anteriores como o jazz e
a salsa: de onde formou-se a chicha, mescla de ritmos andinos e caribenhos; a
reinterpretação jazzística de Mozart feita pelo grupo cubano Irakere; reelaborações
de melodias inglesas e hindus pelos Beatles, Peter Gabriel e outros músicos. Sabe-se
quantos artistas extrapolam estes cruzamentos e os convertem em eixos
conceituais de seus trabalhos (GARCÍA CANCLINI, 2015, p.34, grifo meu) 20

O hibridismo musical, embora citado como lugar comum nas definições mais gerais
sobre as músicas populares latinas, ainda é pouco investigado no campo da música popular
brasileira e menos ainda no que tange às práticas vocais do canto popular brasileiro, muito
embora haja alguns trabalhos relativos ao hibridismo na voz cênica (SOUZA, 2014) e na
world music (APPERT, 2016; GUILBAUT, 2013) que auxiliaram toda a pesquisa
bibliográfica.
O termo fusão surge, inicialmente, como o mais utilizado no campo musical21.
Contudo, tal termo acabou ganhando forte relação com os resultados de processos de
hibridação do produto sonoro por si só, ou ainda com a necessidade mais recente de
recategorizar alguns (sub)gêneros musicais com manutenção hegemônica da terminologia
anglo-saxônica: fusion. Dificulta-se a utilização dessa terminologia na apreensão de outras
mesclas contextuais, como por exemplo: a colaboração de músicos; a reconversão 22; o aporte

20
Melodías étnicas, ligadas a rituales de un grupo, se entrelazan con música clásica y contemporánea, con
otras formas producidas por hibridaciones anteriores, como el jazz y la salsa: así se formo la chicha, mezcla de
ritmos andinos y caribeños; la reinterpretación jazzística de Mozart hecha por el grupo afrocubano Irakere; las
reelaboraciones de melodías inglesas e hindúes efectuadas por los Beatles, Peter Gabriel y otros músicos.
Sabemos cuántos artistas exacerban estos cruces y los convierten en ejes conceptuales de sus trabajos.
21
Só para lembrar que o termo hibridismo ainda tem outras variantes que perpassam o conceito em áreas
próximas à etnomusicologia. O sincretismo é praticamente consensual no campo religioso, a mestiçagem domina
o campo sócio-antropológico guardando mais fortemente heranças do campo biológico. Cabe observar o tópico
“A hibridação e sua família de conceitos” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p.XXIV-XX) apresentada no livro
Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
22
O termo indica a utilização produtiva de recursos anteriores em novos contextos. Na longa lista apresentada
por Néstor García Clanclini: um pintor se converte em designer, [...] burguesias aprendem idiomas para
reinsvestirem seu capital de forma transnacional, índios adotariam um discurso ecológico e aprenderiam a
23

não equilibrado de “elementos discretos” contrastante com considerações que observam a


fusão como o ápice de um processo híbrido equilibrado; condicionantes sonoras/sociais que
limitam todo e qualquer tipo de fusão ou, por outro lado, práticas recorrentes que surgem mais
como colagens e/ou citação de elementos externos em músicas de caráter pop; e ainda os
diálogos amplos de forças transculturais heterogêneas da indústria cultural.
As chamadas “mesclas” também circundam processos híbridos do campo musical,
contudo percebe-se que elas guardam caracteres quantitativos com certo apego à dosagens,
normalmente de dois elementos, e a partir de polarizações dicotômicas com relativização
técnica desses elementos no todo a ser observado.
Por fim, na abordagem das variantes terminológicas, trago uma observação que Bruno
Nettl apresenta acerca de interações transculturais, destacando o termo sincretismo23.

Um conceito - ou melhor, um processo - que desempenha um papel ao longo das


interações que descrevi é o sincretismo. Era um termo amplamente utilizado nos anos de
1960 e de 1970, e agora geralmente abandonado, mas, na minha opinião, ainda útil para
explicar por que as sociedades fazem certas escolhas musicais. Definido pela Enciclopédia
Britânica simplesmente como "fusão de elementos de diversas fontes culturais", mas usado na
antropologia, mais especificamente, para explicar o crescimento de fenômenos culturalmente
misturados quando os elementos são semelhantes ou compatíveis, foi utilizado na
etnomusicologia mais notavelmente para explicar o amplo espectro de estilos em culturas
derivadas de África do Novo Mundo para a África. Também foi abordado como um fator
contribuinte na evolução das modernas músicas do Oriente Médio, da Índia e da África. Os
estilos mistos ou híbridos característicos da música mundial do final do século XX podem ter
se desenvolvido mais prontamente quando as fontes são semelhantes, compatíveis e
compartilham certos traços centrais24 (NETTL, 2005, p. 479, tradução minha).

Importa também observar como Nettl inicialmente apontando um conceito se corrige


para apontar um processo, e ao final, caracteriza melhores possibilidades de hibridação a
partir de caracteres semelhantes e compatíveis, colaborando com observações de Canclini
acerca do que não poderia ou não quer ser misturado em algumas condições culturais. Esse

comunicá-lo, dentre outros exemplos (p. XXII)


23
“(...) amálgama de doutrinas ou concepçõesheterogêneas (...) Fusão de elementos culturais diferentes ou até
antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários.” (FERREIRA, 2010, p.
1937)
24
A concept - or better, a process - that plays a role throughout the interactions I‟ve been describing is
syncretism. It was a term widely used in the 1960s and 1970s, and now largely abandoned but, in my view, still
helpful to explain why societies make certain musical choices. Defined by the Encyclopedia Britannica simply as
“fusion of elements from diverse cultural sources” but used in anthropology more specifically to explain the
growth of culturally mixed phenomena when the elements are similar or compatible, it was used in
ethnomusicology most notably to explicate the broad spectrum of styles in African-derived cultures from the New
World to Africa. It has also been touched upon as a contributing factor in the evolution of modern Middle
Eastern, Indian, and African musics. The mixed or hybrid styles characteristic of the later twentieth-century
world music may have developed most readily when the sources are similar, compatible, and share certain
central traits.
24

último autor citado aponta que na contemporaneidade é mais apropriado “falar de sincretismo
para referir-se à combinação de práticas religiosas e tradicionais.” (GARCÍA CANCLINI,
2015, p. XXVIII)
Dessa maneira, após observar e pesquisar outras possibilidades terminológicas, cabe
observar que na opção pelo termo hibridismo no campo musical, também encontra-se uma
boa “ductilidade”25 (idem, p.XXIX) e capacidade de adequação à via etnomusicológica de
pesquisa mais contemporânea, possibilitando se pensar a música enquanto fenômeno cultural,
em condições relativas à produção cultural, e não nos termos de dosagens mais afeitas ao
produto sonoro por si, ou direcionadas à categorizações mercadológicas, ou ainda fechadas
em algum campo mais restrito de interinfluências culturais (religioso, ritualístico, biológico,
etc.). Dessa maneira, e já trazendo a perspectiva da produção cultural também agrego a
definição de hibridismo da autora Zilá Bernd, que assim descreve o termo hibridismo:

um processo de ressimbolização em que a memória dos objetos se conserva e em


que a tensão entre elementos díspares gera novos objetos culturais que
correspondem às tentativas de tradução ou de inscrição subversiva da cultura de
origem em uma nova cultura.” (BERND, 2004, p. 101, grifo meu)

Essa citação soma-se às propostas de observação dos processos de hibridação, tal qual
Néstor García Canclini, e aponta apropriadas indagações relativas à tradução ou inscrição de
uma cultura numa outra, isso mesmo enquanto fator de sobrevivência dos produtos
culturais.Daí emergiu, por exemplo. a ideia de reconversão já apresentada acima e assim
inserida também nas perspectivas de produção cultural.
Retomando agora uma pertinente definição de cultura de Eduard B. Taylor
apresentada e esmiuçada por Bruno Nettl26 (NETTL, 2005, p. 237-9) e reforçada por Thomas

25
“(…) como designar as fusões entre culturas de bairro e midiáticas, entre estilos de consumo de gerações
diferentes, entre músicas locais e transnacionais, que ocorrem nas fronteiras e nas grandes cidades (não somente
ali)? A palavra hibridação aparece mais dúctil para nomear não só as combinações de elementos étnicos e
religiosos, mas também as de produtos das tecnologias avançadas e processos sociais modernos ou pós-
modernos.” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p. XXIX) Tal perspectiva traria um paralelismo ao conceito de
“fronteiras esponjosas” apresentado por via da semiótica da cultura (SC) (VELHO, 2009) ao considerar não só as
influências filosóficas e sociais mas também as tecnológicas e a adequação conceitual como “instrumento de
análise e reflexão sobre os mais diferentes tipos de produção cultural” (VELHO, 2009, p. 250)
26
Bruno Nettl, de maneira didática, divide essa conceituação em quatro blocos de observação. Primeiro observa
“o todo complexo”, em segundo “conhecimentos, crenças e arte” como sendo formas humanas de interpretar o
mundo, em terceiro “moral, leis e costumes” como sendo formas humanas de interpretar o “outro”, e por fim, em
quarto lugar, Nettl aponta a questão inata da cultura em função dos “hábitos adquiridos”. Isso, o autor faz no seu
capítulo dezesseis Music and “That Complex Whole”: Music in Culture do livro The study of ethnomusicology
(NETTL, 2005, p.237-255) que embasa toda a terceira parte do livro a partir das teorias de “música na cultura” e
“enquanto cultura” de Alan Merriam, que por sua vez resultaram em metodologias de relativização e práticas de
analogia da música a outros campos culturais, contando a partir de então com métodos como “descrever e, então,
encontrar formas de comparar estruturas formais e comportamentos radicalmente diferentes, tipicamente através
de uma redução dessas diferenças a um modelo estrutural comum emprestado da linguística e da semiótica (...)”
25

Turino27 (TURINO, 2008), na qual Taylor conceituou a cultura como “um todo complexo que
inclui conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes, e ainda outras capacidades e hábitos
adquiridos por pessoas” (TAYLOR apud NETTL, 2005, p.238), demonstrando que haveriam
diversos níveis e esferas passíveis de hibridação num espectro cultural mais amplo. Assim a
música, por exemplo, não seria somente um conteúdo fechado dentro da esfera arte trazida na
definição, ou ainda, indo além disso e citando Thomas Turino, “a música não é uma forma de
arte unitária (...) se referindo a diferentes tipos de atividades” (TURINO, 2008). Assim ela
envolveria o todo cultural, permeando interpretações acerca do “eu” (conhecimento, crenças e
arte) do “outro” (moral, leis e costumes) inserindo-se em tal amplitude complexa, e formulada
a partir de condicionamentos não inatos desses hábitos adquiridos. Hábito aqui como um
conceito focal tópico de entendimento de repetições de atividades que formam um corpo de
atividades culturais ao longo do tempo.
Nesses termos, condições diversificadas de difusão do “popular”, e agora
especificamente para a música dessa mesma categoria, apresentariam graus de interinfluência
que iriam, por exemplo, muito além dos agrupamentos e delimitações relativos ao midiático e
ao urbano, categorias que circundam com maior proximidade as observações contemporâneas
sobre a música popular não chegando porém a abarcar toda a diversidade da mesma. Somam-
se a isso, as condicionantes culturais da música dita artística erudita ocidental que também
atuam sobre a música popular em geral, e ainda mais especificamente em balizadores sobre a
música popular urbana, de forma a pasteurizar muitas das práticas musicais de todo o mundo,
num fator também apresentado por Bruno Nettl como capaz de constituir um “esmaecimento
cultural28”. Esse autor parte da premissa de “crenças musicais abandonadas em favor de

(ORTNER apud RICE, 2008, p. 43-4, tradução minha). O original em inglês: (...) describing and then finding
ways to compare radically different formal structures and behaviors, typically through a reduction of those
differences to a common structural model borrowed from linguistics and semiotics (...)” (ORTNER apud RICE,
p. 43-4).
27
Thomas Turino utiliza a definição para reforçar um conceito focal de hábito (TURINO,2008, p. 94-95), ao
qual ele dá significação a partir de C. S Peirce, como sendo “uma tendência para a repetição de qualquer
comportamento, pensamento ou reação em circunstâncias semelhantes ou em reação a estímulos similares no
presente e no futuro com base em tais repetições no passado. O valor de pensar sobre o eu, a identidade e a
cultura em relação aos hábitos é que os hábitos são relativamente estáveis e também dinâmicos e mutáveis;
assim, esse modelo explica a natureza consistente e dinâmica das formações individuais e culturais". Original em
ingles: “ Following C.S.Peirce, by habit I mean a tendency toward the repetition of any particular behavior,
thought, or reaction in similar circunstances or in reaction to similar stimuli in the present and future based on
such repetitions in the past. The value of thinking about the self, identity and culture in relation to habits is that
habits are both relatively stable and also dynamic and changeable; thus this model explains the consistent yet
dynamic nature of individual and cultural formations.” (TURINO, 2005, p. 95)
28
“Cultural Greyout?” (NETTL, 2005, p. 469) traduzo aqui como esmaecimento cultural, mas um termo que
diz respeito sobretudo à certa pasteurização da música mundial a partir de elementos e contrapartidas da música
ocidental artística de apresentação ao vivo e mesmo a de alta fidelidade nessa representação, numa espécie de
“ocidentalização ou modernização” (NETTL, 2005, p. 470) que atinge as diversas atividades musicais dispersas
26

contrapartidas ocidentais: concertos, profissionalismo musical pago, gravadoras e rádio,


performance sentada, aplausos e crítica jornalística” (NETTL, 2005, p. 498). Apresento essa
perspectiva para ilustrar como esses fatores poderiam chocar-se ou serem prioritários ao
caráter das reiteradas hibridações que forjam a música popular, que querendo ou não, mesmo
em seu caráter mais urbano, ainda conta com influências de música oral, rural, e de
performances de caráter mais “participatório29” (TURINO, 2008, p.26), com uso de redes
informais de difusão e performance (música e dança, rodas, saraus, ciclos, etc.) e boa
permeabilidade entre os campos artístico, popular (urbano) e folclórico.
No campo musical então, canções, performances, álbuns e procedimentos de produção
e difusão de um período determinado poderiam revelar em sua dinâmica contextual/musical
outros (e talvez “novos”) elementos culturais interrelacionados às performances e práticas
musicais, e vice-versa. Processos de mudança de procedimentos e de enquadramento nas
cenas musicais dinamizadas fariam-se aparentes na música e na cultura da qual fazem parte,
para então buscarem se reinscrever em um novo contexto cultural, como aponta Zilá Bernd, e
eventualmente realimentando o todo daquele cenário cultural. Ou seja, o documento álbum
apontaria dinâmicas culturais e musicais de determinado período de produção musical na cena
da música popular urbana.
Em relação aos processos de hibridação e os possíveis produtos resultantes desses,
relembro, em outras palavras, uma afirmação de Canclini de que não é mais possível observar
o hibridismo numa perspectiva quase sempre sem conflitos relativa aos processos de
hibridação. Dito de outra forma, os processos de adaptabilidade se tomados de maneira tácita
e/ou implícita gerariam generalizações redutoras, ou até mesmo constituiriam clichês de
abordagem conceitual descritiva que passam ao largo dos processos. No caso da música
popular a questão ganha ainda outros contornos ao revelarem-se questões estéticas de difícil
apreensão conceitual e de concordância social. Pode-se exemplificar para um dos objetos
sonoros do trabalho, as arriscadas tentativas de apreensões estéticas surgidas sob uma
perspectiva comparativa. Nesse caso, falo da voz popular que, em algum momento forjou-se
e/ou capacitou-se a uma circulação midiática bastante fluida entre campos tomados como
menos permeáveis a partir de perspectivas acadêmicas, dada a tricotomia que delimita as
músicas entre “artística, popular e folclórica” e também a dicotomia entre “música ocidental e

pelo mundo.
29
“Tipo especial de prática artística no qual não há distinção marcada entre artista-audiência, somente
participantes, e participantes em potencial exercendo papéis diferentes, o objetivo primário é envolver o maior
número de pessoas em algum papel (ou alguma função) na performance” (TURINO, 2008, p. 26-7).
27

não-ocidental” (BERGER, 2008, p.62),30 sendo então a voz do século XX observada de forma
comparativa à voz popular que hoje ocuparia a centralidade contemporânea de difusão. Isso
ocorre mesmo que agora direcione-se muito mais inflar especificamente todo o campo do
popular massificado em seu caráter pleno de entretenimento ou popularidade. Ou seja, o
popular é tomado prioritariamente em seu caráter de popularidade. “„Popular‟ é o que se
vende maciçamente, o que agrada multidões. A rigor não interessa à mídia o popular e sim a
popularidade” (GARCIA CANCLINI, 2015, p. 260). Não só algumas manifestações tomam a
frente da perspectiva popular passando a representar debilitadamente o todo, como o caráter
de popularidade sobrepuja as observações do popular em outras dimensões e em
manifestações de maior especificidade contendo possibilidades ou não de hibridação. Mesmo
que aqui se trate de um produto sonoro massificado cabe lembrar que diversas manifestações
populares figuram fora da difusão central amplamente massificada.
Demonstrando então que modelos comparativos, do que haveria passado a compor o
relato historiográfico central musical popular brasileiro das décadas de 1960 e 1970 e do que
hoje ocuparia uma centralidade de difusão mais massificada, constituem propostas de
observação pouco adequadas, lembro ainda a tarefa peculiar, ou mesmo a necessidade
conceitual, das considerações estéticas inserirem-se num diálogo que se propõe popular e
acadêmico.
Aceitas as condições de hibridação e processos dinâmicos para a música brasileira
popular, aponta-se, independente de temporalidades, que alguns produtos musicais brasileiros
resultaram numa “verdadeira metamorfose” (BRITO in CAMPOS, 1974), o que revelaria-se
em produtos mais autônomos em relação à indústria cultural. Isso ocorreria mesmo em se
fazendo uso dos chamados “elementos discretos” (GARCIA CANCLINI, 2015) de outras
culturas, resultando em algo mais próximo do chamado hibridismo homeostático. Porém,
alguns outros produtos musicais revelariam-se esteticamente com menor propensão à
hibridação, resultando ou em resultados esteticamente fracos ou descompensados
apresentando arestas não fundidas, muito embora tais produtos possam mesmo assim circular
midiaticamente na perspectiva da popularidade traçada pela indústria cultural. Assim, utilizo
outros dois conceitos: o hibridismo homeostático como sendo “aquele que pressupõe o corpo
híbrido como domesticado, equilibrado, onde há uma real fusão” (PIEDADE, 2010, p.104) de
forma que os chamados “elementos discretos” (GARCIA CANCLINI, 2015) se encontrariam

30
“Despite the obvious problems that they entail and the criticism that they have inspired the art music/ folk
music/ popular music trichotomy and and the Western music/non-Western music dichotomy are still alive in the
popular imagination and serve as the centers of gravity for music disciplines in the academy.
28

em “conjunção na construção de um novo elemento estável” (PIEDADE, 2010, p.104); e o


hibridismo contrastivo que associo a produtos menos autônomos artisticamente, esteticamente
desbalanceados e eventualmente forjados sinteticamente, não havendo necessariamente “fusão
nem equilíbrio” (idem), de maneira que os elementos discretos contrastariam entre si. Esse
último produto, de caráter contrastivo, também não seria referencial por si mesmo, apenas os
seus elementos, que tendo caracteres ainda apartados, seriam esteticamente observáveis e
referenciais a novos processos. Essa última característica é fundamental e bastante didática às
observações do hibridismo no campo musical e sobretudo em relação às vocalidades
populares que são aqui observadas.
Por fim, exponho em relação ao hibridismo, o que se tornou também um viés
metodológico de trabalho, surgido em função da necessidade de se avançar sobre a
predominância de caracterizações prioritariamente descritivas que tem sido lançadas ao
hibridismo na esfera do popular e também da música popular. Assim, caberia
metodologicamente em relação ao hibridismo: “dar-lhe poder explicativo: estudar os
processos de hibridação situando-os em relações estruturais de causalidade. E dar-lhe
capacidade hermenêutica: torná-lo útil para interpretar as relações de sentido que se
constroem nas misturas [...]” (GARCÍA CANCLINI, 2015, p.XXV, grifo meu).

1.2 Cosmopolitanismo, semiótica de C. S. Peirce e os campos musicais

Buscando superar certa generalização relativa ao termo globalização, aprofundo o


debate através do etnomusicólogo e semioticista Thomas Turino. Esse autor apresenta um
enfoque do termo cosmopolitanismo, ao fazer uso desse para:

[...] se referir a objetos, ideias e posições culturais que são largamente difundidos
pelo mundo mas ainda são específicos somente a certas porções da população dentro
de determinados países. [...] baseado no uso comum do termo “do mundo”: para ser
cosmopolitano, ideias dadas e características precisam ser largamente difundidas
entre grupos sociais particulares em localidades dispersas. [...] Sistemas culturais
cosmopolitanos são portanto sempre simultaneamente locais e translocais. [...]
Modos de vida, ideias e tecnologias particularmente cosmopolitanos(as) não são
específicos(as) de uma ou poucas localidades vizinhas, mas situam-se em sítios
diversos os quais não necessariamente estão em proximidade geográfica; de outra
maneira, estão conectados de diferentes formas e meios, contatos e intercâmbios (o
que eu chamo de “circuitos”). Os grupos cosmopolitanos estão conectados através
do espaço por uma constituição similar do próprio habitus, que cria as bases para
a comunicação social, alianças e competição (TURINO, 2000, p.7 e 8,
tradução/grifo meus)31.

31
“I use the term cosmopolitan to refer to objects, ideas and cultural positions that are widely diffused
troughout the world and yet are specific only to certain portions of the populations within given countries. My
29

A longa citação se justifica pela capacidade de definição/síntese conceitual do referido


autor, possibilitando através dessa, mitigar caracteres de senso comum relacionados aos
termos global(lização), world music e os seus constantes desdobramentos e ainda denota uma
diferença em relação ao termo cosmopolita de uso mais comum, assim como globalização.
Além disso, percebe-se um carácter heurístico desejável na definição pela possibilidade
transversal de se relacionar as questões culturais às ideias, objetos sonoros, e vice-versa. De
forma mais sucinta Turino apresenta ainda seu conceito de cosmopolitano como “um tipo de
formação cultural trans-estatal dispersa entre vários países e, muitas vezes incluindo apenas
certos segmentos da população, entre os quais o status de imigrante e de uma fonte pátria
original não são critérios para a identidade e significado32” (TURINO, 2008, p. 235). E ainda
se indivíduos “internalizam conceitos e práticas estrangeiras e fazem dessas suas próprias [...]
” (TURINO, 2000, p. 8) tem-se prontamente uma cruzamento conceitual com as perspectivas
do hibridismo já apresentadas e então, se internalizáveis, passíveis de uma abordagem de
caráter homeostático na formação de produtos e processos culturais. Possibilita-se
então, numa perspectiva metodológica e contando com a coleta dos dados de pesquisa,
apontar caracteres que de diferentes maneiras ou relacionem os agrupamentos musicais entre
si ou de outra maneira algumas práticas de agrupamentos diferentes. Esses agrupamentos por
sua vez poderiam ser relacionados entre si a partir dessa mesma perspectiva. Tais relações
seriam forjadas a partir da caracterização de uma “constituição similar do próprio habitus”
(idem, p.8-9), esse último conceito de habitus construído por Pierre Bourdieu e apontado por
Turino em auxílio à definição dos campos musicais. Faço aqui uma pequena ressalva pois
Turino também usa o conceito focal de hábito, já abordado quando abordei o conceito de
cultura, e ali então utilizado por via de C.S.Peirce com diferenças de enfoque relativas ao
conceito de habitus que em Bourdieu é definido como:

usage is based on a common meaning of the word, “of the world”: to be cosmopolitan, given ideas and features
must be widely diffused among particular social groups in dispersed locales. cosmopolitanism is a specific type
of cultural formation and constitution of habitus that is translocal in purview [...] Cosmopolitan cultural
formations are therefore always simultaneously local and translocal.[...] Particular cosmopolitan lifeways,
ideas, and technologies are not specific to a single or a few neighboring locales, but are situated in many sites
wich are not necessarily in geographical proximity; rather they are connected by different forms of media,
contact and interchanges (what I call “loops”). Most important,, cosmopolitan groups are connected acrosss
space by a similar constitution of habitus itself, wich creates the foundation for social communication, alliances,
and competition. (TURINO, 2002, p. 7-8)
32
“a type of transtate cultural formation dispersed among a number of countries and often including only
certain segments of the population, among whom immigrant status and an original homeland source are not
criteria for identity and meaning”
30

[...] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as


experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de
apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente
diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...] (BOURDIEU
apud SETTON, 2002, p.62)

Além do distanciamento geográfico supracitado na definição de cosmopolitanismo,


acabo observando o mesmo termo como capaz de agrupar também caracteres com certo
distanciamento temporal, de forma que o compartilhamento de atividades não se fecharia
dentro de um determinado ciclo de contemporaneidade. Apresento desde já a ideia de romper
certo predomínio de análise com base em linearidades temporais super delimitadas em favor
de uma observação mais cíclica e reticulada da historiografia musical em questão. Assim,
observo que elementos cosmopolitanos possam ocorrer tanto sem a citada proximidade
geográfica como não necessariamente em proximidade temporal ou, dizendo de outra forma,
sem uma necessária obrigatoriedade cronológica. Pode-se exemplificar dentro dessa base, por
exemplo, a perspectiva antropofágica de Oswald de Andrade, com sua inserção em diferentes
períodos e campos artísticos da cultura brasileira.
Chegando agora à teoria semiótica de Charles Sanders Peirce com sua base no campo
da fenomenologia, e que o mesmo Thomas Turino reforça como uma ferramenta
metodológica maleável e capaz de apontar relações acerca de músicas de diversas origens,
passei a vislumbrar as possibilidades de utilização dessas ferramentas na observação da
música popular brasileira.
Sendo basicamente três as tricotomias33 peirceanas relativas à semiótica, uma dessas é
a mais destacável em seus caracteres de interpretação da relação signo-objeto, e baseia-se em
nas classificações dessas relações (signo-objeto) como constituindo-se através de: ícones,
índices e símbolos. Esses mesmos itens interpretativos relacionam-se respectivamente a
fatores de primeiridade, secundidade e terceiridade. E esses últimos fatores, por sua vez, são
gradações das possíveis mediações de percepção subjetiva dessa relação signo-objeto, ou seja
representam proximidades representativas/relacionais (primeiridade) ou distanciamentos
nessas representações/relações (terceiridade). Propus trazer alguns desses itens principais de
mediação para algum ponto das análises e observações já na perspectiva da produção cultural,
e buscando em diferentes pontos de análise fatores que através da observação dessa relação
semiótica possam trazer indicadores e dados de pesquisa.

33
As três tricotomias fundam-se na relação signo-objeto e são mediadas pelas relações de primeiridade,
secundidade e terceiridade. A segunda, já citada, faz parte da relação do signo com seu objeto. A primeira e
terceira tricotomias exploram a relação do signo consigo mesmo e do signo com seu interpretante,
respectivamente.
31

Nessa perspectiva semiótica, observo enfim “a gradual mudança cosmopolitana de


pensamento do fazer musical como atividade social para a música como um objeto34”
(TURINO, 2008, p. 24) que o autor atribui em parte à “força e a omnipresença [penetração
ampla] da indústria da música e de seus produtos de massa mediados durante o século
passado”, e que assim, ajudaram a criar esse “hábito de pensar da indústria cultural35” (idem).
Dessa maneira, a gravação e/ou o produto gravado passaram a identificar totalmente a música,
deixando-se de se fazer perceber a música gravada como uma representação da música ao
vivo36. O produto sonoro gravado tomado cada vez mais como produto e fim em si mesmo, é
então o que observo em outros termos como constituindo uma espécie de “achatamento
semiótico” (VALENTE, 2003, p.85). Deixa-se de objetivar que esse(a) produto/gravação é
somente uma representação acerca da performance e das atividades musicais. O fator
apontado por Turino, foi também observado em outra escala e foco pela autora Heloísa
Valente, segundo ela “tal situação conduz a um problema semiótico relevante: o modelo
original de performance - o corpo do músico, executando a obra ao vivo - é preterido em
favor de uma diluição em várias camadas de intervenção técnica” (VALENTE, 2003, p. 85).
Tal primazia pelo produto e certa minimização do valor dos processos musicais enquanto
práticas sociais relevantes ao surgimento, referenciação e consubstanciação desses mesmos
produtos sonoros gravados embasam a proposta de trabalho. Intenta-se ampliar as
perspectivas de observação dos processos culturais relativos ao álbum Luz indo além de seu
formato gravado. A partir desse objeto sonoro como um objeto de análise busca-se então se
constituir e pesquisar um fenômeno musical ampliado. Dessa forma, busco outras condições
de interpretação semiótica envolvidas na produção do álbum que possam colaborar com o
entendimento dessa teoria de tomada do produto como música em si. Essa mudança teria
também relação com a mudança que Simon Frith aponta para a música global dos 1980.

34
If we briefly consider the products of the music industry over the time, we can glimpse cosmopolitan‟s gradual
shift in thinking of music making as a social activity to music as an object.
35
The strenght and pervasiveness of the music of the music industry and its mass mediated products during the
past century have helped to create this habit of thinking.
36
A autora Heloísa Valente em seu “Vozes da canção na mídia” (VALENTE, 2003), também discorre sobre a
mudança da perspectiva do conceito de alta fidelidade como caracterizado inicialmente pela maior fidelidade
entre o produto gravado e a performance ao vivo para um contexto contemporâneo no qual isso não ocorreria
necessariamente, podendo mesmo o termo se referir à criação de condições artificiais de reprodução com vistas a
criar uma ambiência mais próxima da audição que aparenta-se “mais real” com imitação de condições aurais de
estereofonia ,ou ainda, aquela que adequa-se melhor às últimas melhorias tecnológicas dos aparelhos sonoros
(VALENTE, 2003, p. 76), o que ocorre por exemplo com as adaptações da tecnologia surround, que, por sua
vez, teria sido desenvolvida para acompanhar o padrão sonoro recentemente exigido por imagens de alta
definição do cinema e das produções visuais em geral.
32

Nessa mudança, a consideração de transição de uma “abordagem orgânica37” para uma


“abordagem sintética” é fundamentada na questão da performance pública não sendo mais
decisiva na definição pela indústria cultural acerca daquilo que viria a ser possivelmente
gravado. Frith direciona a observação aos anos de 1980 enquanto Thomas Turino relembra,
em outras palavras, que foi sobretudo durante o século passado que a indústria cultural
musical e seus produtos massivo-mediados teriam ajudado a criar tal hábito de pensamento
direcionado ao objeto de representação do som como sendo esse mesmo o produto sonoro, o
som ou até a performance (TURINO, 2008, p.23).
Contudo, necessito agora fazer considerações mais precisas relativas tanto ao campo
da alta fidelidade de gravação, que será discutido no trabalho já que esse trata de uma análise
de produto gravado, mas também atentando para as perspectivas dos outros campos musicais
que Turino desenvolveu a partir da perspectiva de campo social de Pierre Bourdieau, assim:

(…) ao invés de se pensar sobre música como simples forma de arte subdividida em
vários estilos e categorias de status, encontrei uma utilidade em conceitualizar o fazer
musical em relação a diferentes domínios ou campos de prática artística. A noção de
campo social de Pierre Bourdieu se refere a domínios específicos de atividades
definidos por propósitos e objetivos de ofícios, práticas (atividades), assim como
valores, relações de poder, e tipos de capital (eg. capital, nicho acadêmicos, canções
de sucesso, perícia física e/ou habilidade de tocar violão) determinando o papel dos
relacionamentos, posicionamentos sociais, e status dos atores e atividades em relação
ao campo38. (TURINO, 2008, p. 25-6, grifos meus e tradução minha)

A partir dessa perspectiva, Turino apresenta quatro campos musicais baseados em


duas atividades musicais. A primeira, a atividade de performance musical ao vivo subdivide-
se em performance participatória e performance de apresentação e/ou apresentacional. A
segunda, a atividade de criação de música gravada ele subdivide entre os campo da alta
fidelidade de gravação e estúdio áudio-arte. Não sendo esses campos fechados ou
direcionados a gêneros musicais específicos, possuem também boa perspectiva híbrida entre
algumas atividade. Trago uma breve definição de todos os campos pelo autor:

37
Nessa, as performances ao vivo (e a aceitação da recepção) consubstanciavam as possibilidades de gravações
e registros em estúdio por parte das gravadoras, e só então artistas adentrariam o campo da alta fidelidade de
gravação, ou como afirma o autor “a performance pública sendo utilizada para autenticar recursos de
estúdio/gravação (abordagem orgânica)”(FRITH apud NEGUS, 1992, p.56). O mesmo autor cunha o termo
“abordagem sintética” que segundo ele passaria a operar incisivamente a partir dos 1980, e dentro da qual a
indústria cultural pode “criar” e “pescar” aleatoriamente determinados artistas, gêneros e movimentos, com
maior domínio de mercado e hegemonia ao campo de gravação em alta-fidelidade, que não dependeria
necessariamente, de uma capacitação performática vinculada ao campo da performance ao vivo.
38
Thus, rather than thinking about music as a single art form subdivided into various styles and status
categories, I have found it useful to conceptualize music making in relation to different realms or fields of
artistic pactice. Pierre Bourdieu‟s idea of social field refers to a specific domain of activity defined by the
purpose of the activity as well as the values, power relations, and types of capital (e.g., money, academic
degrees, a hit song, athletic prowess, the ability to play a guitar) determining the role relationships, social
positioning, and status of actors and activities within the field. (TURINO, 2008, p.25-6)
33

(...) performance participatória é um tipo especial de prática artística no qual não


existem distinções entre artista e audiência (...). Performance de apresentação [e/ou
apresentacional], em contraste, se refere a situações nas quais um grupo de pessoas,
os artistas, preparam e promovem música a outro grupo, a audiência, que não
participa nem fazendo música nem dançando. Alta fidelidade se refere à criação de
gravações intencionadas a indexar ou serem icônicas das performances ao vivo. (...)
técnicas e práticas especiais de gravação são necessárias para tornar essa conexão
evidente no som gravado, e papéis artísticos adicionais - incluindo técnico de
gravação, produtor e engenheiro de som - também ajudam a delinear a alta fidelidade
como um campo em separado. Estúdio áudio-arte envolve a criação e manipulação
de sons num estúdio ou num computador para criar um objeto de arte gravado (uma
escultura sonora) que não está intensionada a representar a performance em tempo
real. (TURINO, 2008, p. 87-92)

Para fins didáticos apresento ainda uma tabela comparativa baseada e adaptada de uma
outra tabela do livro Music as Social Life (TURINO, 2008, p. 90-1). Em sua tabela, o autor já
sistematiza algumas atividades que discorreu então com base nas atividades de campo social
de Pierre Bourdieu. Na minha tabela possibilito observar de uma outra maneira as diversas
atividades musicais intentando uma linguagem mais próxima da música popular e ampliando
focos processuais relativos às atividades musicais, isso, mesmo quando nos inserimos para a
observação dos campos da atividades de música gravada com grande propensão para
observação restrita aos produtos musicais. Nessa mesma tabela, em sua sétima linha, é
possível observar como o campo da música ao vivo tem seus prioritariamente os seus
processos direcionados, enquanto e o campo da música gravada tem prioritariamente os seus
produtos direcionados.
34

Tabela 1: Campos musicais apresentados por Turino (adaptação). (TURINO, 2008, p. 90-1)
Atividades Performance ao vivo Música gravada

Campo participatória de apresentação alta fidelidade estúdio áudio-arte

Objetivo Sonoridade máxima, Preparação da Gravada para Máxima atenção na


participação música para o representar a formatação do objeto
sinestésica de todos. máximo interesse música ao vivo sônico
dos outros.

Concepção Fazer musical como Música como Música como objeto Música como objeto
interação social e atividade e objeto a ser gravado por gravado/produzido de um
atividade cara a cara criada de um grupo um grupo para outro grupo a outro não presente
entre os participantes; (artistas) para outro grupo não presente face a face. Não
ênfase no fazer entre (audiência) cara a cara, mas referenciando situações ao
todos os presentes. referenciando tais vivo. Ênfase na
situações composição

Papéis/ Pequena ou nenhuma Distinções claras Artistas não estão necessariamente na presença
Mediação distinção artista- entre artista e dos outros no estúdio; artistas são mediados por
audiência audiência. devices eletrônicos, cabines de som, etc.; relações
artista-audiência mediada por gravações.

Tempo e Foco interno entre os Foco para os Músicos/produtores artistas e audiência com
atenção participantes, está no músico: neles com foco no som foco no processo
ato de fazer e no mesmos, no som e para uma audiência composicional e no
momento; o na audiência. Foco consumidora; para a produto; tempo de atraso
movimento sonoro para a audiência: no audiência o foco é não especificado entre
ocorre só no som e nos músicos. no som gravado; produção e recepção; som
momento. Atenção ao tempo de atraso não com existência semi-
momento e tempo especificado entre permanente
direto de produção e
transmissão público recepção; som com
-artista existência semi-
permanente

Direção Os processos são direcionados Os resultados são direcionados

Caract. Menor separação física/semiótica entre os Maior separação física/semiótica entre atores
gerais atores; menor planejamento e controle do (público + artistas); melhor planejamento e
som musical; mais atenção à música como controle do som; menor atenção à musica
atividade social; menos atenção à música enquanto atividade social; mais atenção à música
enquanto objeto de arte; a qualidade das como objeto de arte; qualidade do som é central
interações sociais são centrais à concepção para concepção de „música‟ e „boa música‟; tempo
de “música” e “boa música”; movimento de indefinido de atraso entre o fazer musical e a
som momentâneo; feedback imediato sobre recepção; feedback “atrasado”/posterior; som é
como está sendo feito; som efêmero; foco semi-permanente; foco social é extrínseco aos
social interno entre os participantes. músicos; produtores direcionam-se a uma
audiência e para a audiência direciona-se o som
sozinho.

Inicialmente tendo discorrido sobre o campo da alta fidelidade, trago a tabela


35

comparativa pois ela se fará útil em uma abordagem de processos híbridos observados entre
os campos descritos, auxiliando também na desconstrução dos objetos e em busca dos seus
processos e atividades também inter-relacionados(as). A tabela também possibilita observar
alguns caracteres de diferenciação entre a performance pública (seja participatória ou de
apresentação) e a performance de estúdio. Essa última, muito embora seja também
obviamente uma performance a ser considerada, já não é realizada necessariamente em
conjunto, e tende, cada vez mais por via de fatores tecnológicos, a apresentar uma maior
separação entre os(as) seus(suas) executantes aliada à sujeição a diferentes camadas de
mediação que não são processualmente simultâneas. Essas camadas, em nova simbiose de
caráter industrial, auxiliariam a construir a chamada abordagem sintética de produção musical
que Simon Frith descreve . Ou seja, o produto musical hipermediado e tomado como o som
em si mesmo, condiciona e possibilita o aporte de fatores que constituem e caracterizam a
chamada abordagem sintética de produção musical. E por outro lado, a performance pública
ao vivo, e assim necessariamente conjunta, direciona-se à abordagem orgânica de produção
musical. Ou seja, retomando algumas definições, a performance pública ao vivo é nessa
abordagem orgânica a base para a migração de determinda performance musical ao campo de
música gravada. E por outro lado, na abordagem sintética, ao surgirem cada vez mais
possibilidades de mediação, chega-se à possibilidade de criação de um produto sonoro em
formato gravado que independe da performance pública ao vivo. Abordagem essa, na qual a
indústria cultural teria maior controle e possibilidades “sintéticas” acerca do campo artístico
musical, passando a moldar seus próprios artistas e circuitos musicais.
Assim, encerro a perspectiva de teoria e método mais generalista ao trabalho,
constituindo até aqui os principais marcos conceituais e consequentes direcionamentos
metodológicos do trabalho. Passo agora a conceitos pertencentes a um foco mais aproximado
da música popular brasileira para situar o objeto de estudo numa escala mais aproximada ao
leitor. Trago considerações sobre a MPB, o canto popular, o ofício híbrido de composição e
interpretação que é aqui chamo de cantautoria, e uma perspectiva semiótica de Luiz Tatit da
qual farei uso analítico constante, e que já teve sua aplicação no estudo composicional da
canção popular brasileira.

1.3 MPB, cantautores e internacionalização

Atribuo, sobretudo para fins de pesquisa, uma relativa unidade à MPB dos anos de
36

1960/1970, à qual chamo de MPB exordial. Sabendo obviamente das diferentes vertentes de
tal período, estabeleço caracteres de identidade/unidade em: contextos de produção, difusão e
recepção sendo menos incisivos sobre os produtos sonoros naquele período, do que o que
observa-se de fins do séc. XX até a contemporaneidade; questões relativas à emissão vocal: e
ao equilíbrio lírico-melódico (compositivo e interpretativo) baseado no predominante ofício
híbrido composição-interpretação (cantautoria) e caracterização musical pelos(as) intérpretes.
Tomando como referência o autor Michel Foucault, em sua perspectiva pós-
estruturalista, lembro que é facultado ao pesquisador reestabelecer recortes temporais para
fins de pesquisa. Aqui, não pretendo achatar ou fundir as décadas de 1970 e 1960 mas
simplesmente assumir que nelas ainda havia alguma unidade em relação à sigla MPB, fator
não identificável na contemporaneidade. Lembro também que, em tal período e mesmo ainda
até o álbum Luz, caracteriza-se um sistema de produção musical com fatores comuns como:
padrão de suporte musical em vinil e/ou cassete; difusão crescente em rádio FM; difusão
ainda incipiente em TV guardando caracteres documentais de abordagem; predomínio da
performance pública autenticando as propostas de gravação posteriores; e o campo de
gravação ainda restrito tecnologicamente a grupos menores de artistas com maiores
possibilidades de difusão identitária.
Além dos fatores citados, a MPB exordial que defino para as duas décadas
(1960/1970) segue aberta dentro do trabalho. Sendo essa pesquisa assentada no início da
década de 1980, haveria ainda na década de 1980 caracteres sócio-musicais e/ou de habitus
compartilháveis na categoria ainda com forte relação aos anos de 1960 e 1970, apesar de
novos eixos de produção, difusão e suporte musical estarem sendo ativados.
A década de 1980, se melhor observada, possui referenciais teóricos e empíricos
relativos a um contexto mais amplo tomado como de transição. Inicialmente observo que a
sigla MPB possuía nas duas décadas anteriores (1960/1070) certa autonomia de circulação de
seus produtos não estando totalmente imersa, como na contemporaneidade, na hegemonia do
campo de alta-fidelidade de gravação. Essa relativa autonomia já foi apontada para os artistas
desse agrupamento chamados “artistas de catálogo” (DIAS, 2000), mas também tem
caracteres observados ainda na MPB nacionalista e engajada, que, superada em sua ideologia
estritamente conteudista, apontava que a sigla inicialmente “não se confundia nem era
determinada pelo mercado fonográfico” (NAPOLITANO, 2002, p. 66) também contando
naquele período com um grupo forte e/ou representativo(as) de cantautores39 homens e outro

39
Compositores-intérpretes: ofício híbrido que esclareço logo abaixo.
37

grupo forte de intérpretes femininas atuando principalmente a partir da obra desses


compositores-intérpretes. Ambos os grupos altamente referenciais e inseridos nessa categoria
de artistas de catálogo, suscitam inclusive as primeiras questões sociais de gênero levantadas,
mas revelam, independente disso, uma categoria artística ainda com grande respaldo e
autonomia frente à indústria cultural. Mesmo o último autor Marcos Napolitano ao propor ao
menos duas periodizações sobre o escopo temporal que sugiro em pesquisa como sendo a
MPB exordial (1960/1970), aponta que:

(...) a MPB continua fornecendo as balizas para o consumo da classe média, herdando
o reconhecimento cultural adquirido entre os anos de 1960 e 1970. Estas duas
décadas marcam uma historicidade que parece ter assistido à última grande
sistematização da tradição da memória musical brasileiras (...)” (NAPOLITANO,
2002, p. 75, grifo meu)

Gradualmente, daquela MPB nascente, aprimorou-se definitivamente também o


campo de temas e composições das letras e melodias, além do já citado equilíbrio entre
ambas, dentro de uma “rede de recados” (WISNIK apud DUNN & PERRONE, 2002, p.78), e
que segundo os autores foi aprimorada ao máximo no período ditatorial. Tais características
somadas às performances vocais singulares aprimoram definitivamente a junção dos campos
compositivo e da fala coloquial num modelo cancional brasileiro de alto valor agregado, e que
na contemporaneidade aparenta habitar novos “lugares sociais”, externos à uma centralidade
mais massiva calcada na popularidade e menos identificável de difusão midiática
contemporânea. Ou, em outras palavras, modelo cancional que é reconhecível aos artistas
daquele período (1960/1970), e que, mesmo ainda com esses(as) artistas atuantes não
apresentam na contemporaneidade uma sucessão muito clara de seu corpo artístico-musical no
século XXI e nem são os contemporâneos enraizados na sigla MPB. Tal sucessão tem um
caráter fragmentado e sujeito a outras dinâmicas de produção musical.
A sigla MPB, nascida no cenário pós-Bossa Nova dos primeiros festivais televisivos
da década de 1960, logo demonstrou agregar um certo grupo de práticas musicais, gêneros,
compositores(as) e intérpretes. Tal qual a Bossa Nova, a MPB apresentava um razoável
padrão de emissão vocal e a capacidade de aglutinar processos de hibridação que revelavam-
se esteticamente em produtos cada vez mais diversificados e pouco associáveis à um gênero
musical ou à alguma tradição específica. Criava ali a sua própria tradição (HOBSBAWN,
1976; NAPOLITANO40, 2002) muito embora contasse com elementos discretos não

40
O historiador musical brasileiro propôs a periodização de 1959 a 1968 como “O terceiro período histórico: o
corte sociológico epistemológico na música popular e a invenção da MPB” dizendo que “(...) por volta de
1965 surgiu a sigla MPB (...) pensada a partir da estratégia de “nacionalização” da Bossa Nova que traduzia uma
38

estritamente puros e já decantados durante a primeira metade do século XX, sobretudo no que
tange ao formato canção e a um “fio condutor comum relativo à emissão vocal desde o seu
expoente dito mais refinado, João Gilberto, ao expoente de maior popularidade, Roberto
Carlos” (TATIT, 2004). Aqui percebe-se prontamente um cruzamento estético para as
diversas expressões do popular que transcende a visão estrita da popularidade, capacidade
empírica da nossa música popular. Isso tudo como já abordei, embora ainda perdure em
ensino e pesquisa musical tanto a tricotomia que separa pedagogicamente as músicas em
artística, popular e folclórica, como a dicotomia entre música ocidental e não-ocidental.
Assim a MPB teria sua fase de afirmação, enquanto sigla e movimento e a partir da era
dos festivais, decantando e selecionando procedimentos da Bossa Nova que também já fizera
sua seleção de elementos discretos e não discretos anteriormente. O autor Marcos Napolitano
em estudo sobre a moderna música popular brasileira propõe uma periodização cujo recorte
iria de 1959 a 1968, constituindo um dos momentos de formação da tradição intitulada por ele
como “corte sociológico e epistemológico na música popular e a invenção da MPB”
(NAPOLITANO, 2002, p. 62- 6). Na sequência dessa periodização, Napolitano propõe outra
periodização para o período de 1972 a 1979, na qual surge a consideração de que a MPB
definiria “mais um complexo cultural do que um gênero musical específico” (PERRONE
apud NAPOLITANO, 2002, p.67-8) que é parelha ao apontamento de Álvaro Neder definindo
a MPB como “complexo músico-social” (NEDER, 2008, p. 269) e embasando assim também
a consideração de Marta Ulhôa de que a sigla seria uma espécie de termo guarda-chuva
(ULHÔA, 2000), dificilmente categorizável por modelos canônicos ou gêneros musicais
específicos. Nessa última periodização (1972-1979), Napolitano aponta que se redefine “o
diálogo musical presente-passado, tanto no sentido de incorporar tradições que estavam fora
do „nacional-popular‟ (por exemplo a vertente pop) quanto no de consolidar um amplo
conceito de MPB” (NAPOLITANO, 2002, P. 48-9). Observa-se que a MPB acaba sendo
recortada nesses períodos curtos muito mais em função de sua capacidade de hibridação,
conseguindo sempre rapidamente agregar e expandir suas fronteiras. Assim, um caráter
tradicionalista ou conteudista da MPB dificilmente poderia ser mantido e mesmo abarcado
por via da defasada abordagem musicológica canônica de gêneros musicais, autores e obras.
Nessa perspectiva, intenta-se aqui, de outra forma, um direcionamento de pesquisa que se
molde através de práticas sócio-musicais, destacadamente a atividade híbrida de

busca de „comunicabilidade e popularidade‟ sem abandonar as conquistas e o novo lugar da canção”


(NAPOLITANO, 2002, p.64). Segundo ele “(...) o conceito de MPB se consolidando nos anos de [19]70” (idem,
p.73).
39

canto/interpretação e de composição de letra e música no contexto do início dos anos de 1980,


sendo ambas registradas documentalmente em LP porém passíveis de desconstrução dos seus
processos musicais.
Mais uma observação deve ser feita em relação à essa diversidade de gêneros que a
MPB englobaria a partir da criação e interpretação musical diversificada de seus artistas.
Observa-se que na Bossa Nova os pesquisadores já faziam considerações dessa mesma
natureza apontando o movimento como:

Primeira e única tentativa de pensar a música brasileira em sua totalidade. Está longe
de ser um estilo ou gênero musical. É um pensamento musical, uma forma de
refletir sobre música [...] o advento definitivo da música popular moderna no Brasil.
(VENÂNCIO apud NAPOLITANO, 2002, p. 62, grifo meu)

A Bossa Nova também é descrita de forma parecida por Brasil de Rocha Brito no livro
de Augusto de Campos, ali na perspectiva de “uma concepção musical não redutível a um
determinado gênero, [e que] comporta manifestações variadas como: sambas; marchas, valsas
(“Luciana” de Antônio Carlos Jobim); serestas; beguines (Oba-lá-lá de João Gilberto) etc.”
(BRITO in CAMPOS, 1974, p.32, grifo meu). Dessa forma, começa a se perceber como as
manifestações musicais populares no cerne da formação do ofício moderno de cantautoria
carregam e carregavam certo caráter fluido, seja compositivo ou de performance, por gêneros
musicais variados, e por que não dizer a partir de agora das hibridações desses mesmos
gêneros. O fato, apesar de dificultar delimitações na linha canônica dos gêneros
musicais/autor-obra, aponta então o caráter híbrido dessas manifestações e os primeiros traços
sócio-musicais comuns e compartilháveis da canção popular brasileira, direcionando uma
primeira perspectiva de habitus. Um desses traços é definitivamente a atividade híbrida de
canto e composição, que por sua vez acabaria sendo restringida pela clássica abordagem
musicológica autor-obra. Abre, por outro lado, a perspectiva de observação das atividades
sócio-musicais dos(as) cantautores(as) e dinamiza a caracterização da obra como restrita
exclusivamente aos compositores, e tira por fim a vocalidade popular de um campo
estritamente interpretativo como é molde de pensamento aos cantos dramáticos. Como
veremos a seguir o intérprete popular, seja ele o seu próprio compositor (e assim cantautor) ou
não, é responsável pela caracterização da obra no nível da performance musical popular. Fator
que colabora com necessidades e metodologias de observação mais adequadas ao fenômeno.
40

1.3.1 Cantautores(as)

O termo cantautor(a) é largamente utilizado pelos países latino-americanos de língua


espanhola, inclusive no quantitativo de pesquisa musicológica popular dessas plagas o termo
seria mais consensual. O Brasil, por sua vez, em função de influências ampliadas e
polarizadas pelos mercados europeu e norte-americano, não faz uso consensual do termo.
Assim, observa-se; prioritariamente o(a) compositor[a]-intérprete (NAPOLITANO, 2004); e
aquela que seria uma geração de “dicção-autoral” (TATIT, 1999; 2004) com representação até
similar a de cantautor(a) porém restritamente usual aos(às) intérpretes. O último autor
estabeleceu também a categoria cancionista (TATIT, 1999), porém essa novamente é muito
ligada mais ao campo compositivo de canções, fator observável nas dicções composicionais
propostas pelo autor. O termo cantautores(as) incluiria a vertente interpretativa da
performance vocal popular. A categoria cantautor(a) tenderia a apontar também, dentro do
equilíbrio interpretativo e compositivo galgado na MPB exordial, o papel da interpretação
personalista/subjetiva relativa à vocalidade popular brasileira, tendo esse base na
representação vocal do(o) próprio(a) autor(a) da canção, ou ainda na caracterização da canção
pelo(a) intérprete.
Assim, utilizo e utilizarei preferencialmente o termo cantautor(a) buscando: um termo
híbrido que aponte além da relação de união de letra e melodia do cancionista a questão
interpretativa para os modelos de canção e emissão vocal também referenciais à canção
popular brasileira; que se contemple maior proximidade conceitual da canção brasileira em
relação às canções populares dos países de língua espanhola da América Latina (tanto em
terminologia de performance quanto de pesquisa); possibilidades de abarcar questões
prementes relativas a um movimento contemporâneo observado em nichos de coletividade
feminina que estariam reindexando alguns fatores políticos na retomada atual da
terminologia41 cantautoras; inserir a terminologia “canto” numa perspectiva popular já que as
terminologias decalcadas/negativas/dicotômicas comparativas a vocalidade lírica ainda
prevalecem em pesquisa, e por fim; tornar tácita possibilidades de abarcar o gênero feminino

41
Tendo observado, numa perspectiva semiótica, o termo cantautore(as) como um índice, aponto que os índices
são interpretações de signos que possibilitam o surgimento de uma “bola de neve semântica”, na qual o signo
reúne diversos objetos em si simultaneamente (TURINO, 1999, p. 237), fator específico da terminologia que
aprofundarei em outro trabalho. Exponho contudo, que a indexação pertencente ao campo da secundidade, é
dependente de experiências passadas e faz com que essas venham a se somar às experiências presentes. Os
índices são sem dúvida os temas da semiótica de Peirce com maior possibilidades de expansão teórico-
metodológica, havendo além da “bola de neve semântica” , o índice-dicente com boa aplicabilidade à música, e
ainda os índices de massa mais usados pelas empresas de marketing e propaganda, dentre outros casos.
41

na forma da(s) cantautora(s), já que o termo cantor-compositor já foi consolidado sob forma
masculina e é reiterado socialmente sem a devida variação de gênero social.
Inicialmente, na canção popular brasileira da primeira metade do século XX,
predominou o modelo que separava claramente compositores(as) dos(as) intérpretes.
Aparentemente seria um modelo espelhado tanto no modelo autoral erudito quanto no da
canção popular instrumental, ambos de mídias prioritariamente notacionais. Tal separação
entre as funções compositor, autor do texto e intérprete, naqueles cenários anteriores à
segunda metade do século XX, ligavam-se à especialização de funções musicais delimitadas,
contando com caracteres de profissionalização de atividades musicais e de maior valoração
econômica direcionada aos compositores. Tal padrão ainda carregou consigo um outro fator
que relaciona prontamente questões sociais de gênero. Nesse último caso, para a canção
brasileira urbana predominaram majoritariamente, na corrente principal e guardadas algumas
exceções, os compositores homens e intérpretes mulheres. A partir da metade do século XX
observam-se as “primeiras” cantautoras documentadas nessa perspectiva: Dolores Duran e
Maysa, e na cena contemporânea do de início do século XXI percebe-se um movimento por
parte das cantautoras (compositoras-intérpretes) populares, no sentido de um reconhecimento
maior do viés autoral feminino. Observo ainda que aos homens também ampliou-se a
perspectiva interpretativa, desde que fundada na interpretação da própria obra. Contudo, esse
é um tema vasto a ser melhor abordado e aprofundado em próximos trabalhos.
O “primeiro” cantautor identificável no cenário mais central de difusão urbana no
Brasil seria Dorival Caymmi, porém a expressão de suas músicas por meio de outras
intérpretes (principalmente Carmen Miranda) teve grande predominância naquela cena
musical. Naquela mesma cena, diversos compositores só eram gravados caso algum intérprete
assim desejasse ou recebesse em troca uma “co-autoria” da canção.
A dupla função (compor e interpretar) teria sido fortemente alavancada, segundo Luiz
Tatit, a partir do canto falado (GARCIA, 1999) de João Gilberto. A subjetivação da
interpretação que aproximou as vozes falada e cantada na canção brasileira, teria
possibilitado, juntamente com a captação e gravação em alta-fidelidade, que os(as)
próprios(as) compositores(as) pudessem interpretar suas canções e se auto-representassem
como intérpretes. O canto figurativo42 dos festivais teria amplificado ainda mais essa

42
O procedimento de figurativização é melhor explicado à frente em tópico específico. Porém, já em minhas
palavras e de maneira resumida, o canto figurativo amplia a expressão da voz que fala em relação à voz que
canta, e assim consiste num canto que a partir de sua relação com o ouvinte, aproxima ou conclama esse(a)
ouvinte às situações cotidianas relacionadas ao compositor-intérprete, em: conversas informais, ditos populares,
chamados, regionalismos, descrição do ofício de canto e/ou composição dentre outros procedimentos.
42

comunhão, momento em que firmava-se a referida MPB e então uma geração profícua de
cantautores(as) com atuação até a contemporaneidade, muito embora a terminologia híbrida
de canto e composição figurasse em segundo plano ou de forma mais visível nos países da
América Latina através do movimento “canção nova”.
O termo é observado, a princípio, na bibliografia espanhola e nas
performance/pesquisa das canções populares latinas (também sobretudo as de língua
espanhola), constando ainda no léxico de Portugal, com variantes observadas ainda em
vertentes da canção italiana: cantautori, porém diferenciadas da anglo-saxônica: singer-
songwriter. Essa última então muito próxima da tradução mais utilizada no Brasil: cantor-
compositor. O dicionário português Priberam apresenta a definição “autor da letra e música de
canções que é também o seu intérprete, geralmente a solo43”.

1.3.2 Canto popular urbano

O canto popular urbano tem sua historiografia marcada a partir das práticas de
gravação e difusão pelo rádio das primeiras décadas do século XX. O termo urbano agregou-
se inicialmente ao popular diferenciando-o de certo padrão de transmissão
oral/rural/folclórico e passando teoricamente à perspectiva de difusão aural, inicialmente em
rádio e disco como principais meio e suporte, respectivamente. Contudo, ao longo do século
XX ocorreram mudanças de suportes e meios, e ainda mais recentemente, a midiatização de
práticas de transmissão oral que seriam mesmo “anteriores” à esses marcos midiáticos
categorizando por exemplo a world music.
Dessa forma, a delimitação canto popular urbano vinculada àquelas mídias primárias
do século XX passou a não dar conta da dinâmica híbrida que envolve o seu objeto. Termos
como canto popular midiático, canto popular de massas, canto comercial, canto popular
contemporâneo e canto MPB passaram a figurar em trabalhos mais recentes. Também há
necessidade de avanço na apreensão contemporânea do termo, já que a historiografia e alguns
estudos sobre o canto popular no Brasil atém-se, normalmente, ao período anterior à década
de 1980.

compositivos.
43
(CANTAUTOR, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, versão 2008-2013). Disponível em:
<https://www.priberam.pt/dlpo/cantautor> ; acesso em 11-04-2017.
43

1.3.2.1 O canto e o popular

Segundo Richard Middleton há quatro modelos de conceituação dentro dos quais o


popular vem sendo definido (MIDDLETON apud NAPOLITANO, 2002, p.14-5). Sendo tais
definições: normativas, negativas, sociológicas e tecnológicas/econômicas. Para o autor, e
também segundo Marcos Napolitano, só seriam válidas definições resultantes dos
entrecruzamentos destas, e além disso, as mesmas deveriam basear-se no contexto histórico e
no sistema cultural específico em que se inserem (NAPOLITANO 2002, p.15).
O canto popular brasileiro, assim como a música popular brasileira, também acabou
acomodando-se em tais tipos de definições, seja na terminologia denominativa ou na
descrição de seus caracteres. Como exemplo:
● em definições normativas, o canto popular brasileiro seria, por exemplo, o canto
oriundo do “talento inato”, um canto de aprendizado informal/imitativo ou mesmo o
canto de exclusiva transmissão aural de cunho midiatizado;
● em definições negativas, observam-se caracterizações baseadas na oposição a padrões
estabelecidos, para o caso do canto popular brasileiro observam-se caracterizações
como: canto “anti-melismático”, “anti-contrastante”, canto “não-acadêmico” e canto
“não-artístico.” Lembro que algumas definições aparentemente normativas também
teriam surgido em relação de oposição a outros modelos dominantes (Ex: canto
coloquial em oposição ao erudito e o canto cool44opondo-se ao canto contrastante
dramático);
● em definições sociológicas, tivemos sobretudo os termos “de massas” e “urbano”
agregados à definição, sendo que o último se tornou lugar comum. Esse, por sua vez
passou a fazer menor sentido desde a World Music à contemporaneidade, passando
então a prevalecer definições tecnológicas e econômicas; e
● em definições tecnológicas/econômicas, observam-se delimitações mais recentes
como canto urbano midiático, midiatizado, ou a direcionada ao canto contemporâneo
comercial norte-americano (CCCA45).

44
O canto cool é associado aos primeiros procedimentos vocais do cool jazz por volta da década de 1940,
também caracterizado por um canto não-virtuosístico e mais aproximado à voz de fala dos cantores. Teve a
tecnologia hi-fi e a redução de intensidade e textura dos acompanhamentos instrumentais como procedimentos
correlatos para o surgimento de seu modelo de emissão vocal.
45
Sigla utilizada por Joana Mariz (2013) que tomo de empréstimo para esse trabalho, e que refere-se ao canto
popular norte americano mais referenciado na contemporaneidade. É tema do próximo tópico pela forte
influência midiática que exerce no canto popular brasileiro.
44

Ao mesmo tempo, a definição do popular em relação às correntes folclorizantes,


nacionais-populares e etnomusicológicas (do pós-guerra à contemporaneidade) incitou
diferentes visões a partir das temporalidades e praças de atuação, solicitando aqui recortes
bem mais definidos. Assim, o canto popular que aqui pretendo abordar, pede auxílio de outras
delimitações temporais/sociais específicas da música popular brasileira. Na cena da MPB, tal
recorte inicia-se em procedimentos de emissão vocal advindos da depuração estética que é
ilustrada categoricamente pela Bossa Nova, contudo logo dispersos em diferentes frentes
híbridas, mas estabelecendo nos campos musicais e sociais modelos comuns relativos àquela
voz midiática. A transição bossanovística vem sendo apontada de forma parelha por alguns
pesquisadores, ou como: triagem estética (TATIT, 2004); modernização, decantação e
depuração de movimentos anteriores (NAPOLITANO, 1999); ou libertação do campo musical
popular de padrões dramáticos com inserção em campo artístico (BRITO; CAMPOS;
MEDAGLIA, 1974), balizando um marco razoavelmente comum nas periodizações.
A Bossa Nova não enclausura procedimentos vocais e estéticos anteriores, faz
importante transição acerca de um período com padrões hegemônicos de emissão vocal, à
época observado como caricaturalmente dramáticos. Por outro lado, a Bossa também
apresentou uma “verdadeira metamorfose” (BRITO in CAMPOS, 1974) de “elementos
discretos” (GARCIA CANCLINI, 2015) que hibridizados resultaram em um produto
autônomo com forte incursão nos campos artístico e popular nacional/internacional.
Complicou-se ali definitivamente a já citada visão tricotômica entre as músicas artística,
popular e folclórica (BERGER, 2008, p.62) que cerca o campo musical, fato relevante
principalmente em se tratando da música popular latino americana.
Contrasta atualmente na centralidade de difusão, um canto popular brasileiro
contemporâneo que é observado a princípio em práticas mais homogêneas e desvinculadas do
pós-Bossa Nova. O canto daquela MPB exordial (1960/1970) nesse pós-Bossa Nova poderia
ser apurado como pluralista em suas várias correntes musicais que seriam assim mais
heterogêneas apesar de “delimitadas” pela sigla. Contraditoriamente, e em questão aqui
aprofundada, aquele canto dos anos citados apresentava um “fio condutor comum” (TATIT,
2004) desde seu expoente mais refinado, João Gilberto, a outro expoente de maior
popularidade, “Roberto Carlos” (idem) o ocupante daquela centralidade de difusão.
Já o canto popular contemporâneo da centralidade que teria um viés mais
homogeneizado e ligado sobretudo ao padrão norte-americano, inseriu-se num cenário de
propalada diversidade nos subgêneros de cunho prioritariamente comerciais expandindo-se
nas novas condições de auralidade. Galgando a centralidade de difusão, de forma visível,
45

desde a transição dos 1980 e 1990, chega na contemporaneidade a um padrão hegemônico


observável em rádio e TV. Assim permeia subgêneros cancionais que propalam diversidade
mas se assentam em padrões bastante pasteurizados musicalmente e contextualmente.

1.3.2.2 Canto “popular” comercial contemporâneo

Esse termo, vem sendo prioritariamente destinado ao canto norte americano


dramático, de forma que carecemos de mais delimitações para o canto popular contemporâneo
brasileiro (ou no Brasil). O termo comercial não está aí por acaso. Ao longo do trabalho
também acabo adotando uma delimitação relativa aos (sub)gêneros contemporâneos no Brasil
como sendo também de “cunho prioritariamente comercial”.
Vejamos alguns apontamentos relativos ao canto comercial contemporâneo norte-
americano (CCCA) já que esse exerceria ampla influência no cenário contemporâneo
brasileiro. Aponta-se:
uma “efetiva infinidade de estilos musicais contidos na sigla CCCA: teatro
musical, rock, pop, country, gospel, Rhythm‟n‟Blues, [...] busca-se uma
formação vocal que disponibilize uma gama de sonoridades muito
distintas entre si, tais como a voz soprosa e o vocal fry, por exemplo, ou o
falsete e o belting46 [...] o CCCA tem de fato diversas metas vocais
definidas que, juntas, compõem o todo da interpretação”. (MARIZ, 2013,
p.114-5, grifos meus)

Segundo Jeani Lovetri, “o canto popular [norte-americano] tem a ver com conseguir
manipular a sua voz falada e extendê-la em todas as direções: mais agudo, mais grave, mais
forte, mais piano, utilizando mais formas, qualidades e cores nos sons das vogais.”

46
Aponto que a voz soprosa trata de um modelo de voz com deslocamento de equilíbrio entre os processos de
fonação por parte das pregas (fonte) e a emissão (fluxo) de ar, com aporte sonoro de emissão aerada (ou soprosa)
resultando num recurso de timbre ou mesmo padrão vocal, seria uma variante do chamado ataque sincrônico
(considerado ideal nas referências acerca do bel canto), há casos de voz soprosa também relacionados com
disfonias como fendas ou calos. O vocal fry é um registro também chamado de basal no qual as oscilações muito
distanciadas das frequências (som grave) são percebidas ainda auditivamente na forma de pequenos estalos em
região de início do processo de fonação e região grave, ou até mesmo dizendo de máxima qualidade grave para
cada voz, com pouca aplicabilidade enquanto som tonal e possuindo característica ruidosa, até é observado no
processo de fala, estando relacionado com um ajuste no qual somente as mucosas que envolvem a prega vocal
chegam à oscilação enquanto a musculatura das pregas se mantem imóvel em sua extensão mais curta. O falsete
também é um registro, sendo de frequência mais alta do que a possibilitada pela máxima extensão das pregas e
maiores esforços indiretos de cartilagens, de forma que as pregas chegam a um novo ajuste muscular e de
operação que reduzem a sua zona funcional de fonação/oscilação em prol da obtenção de uma pequena passagem
de ar/som e resultante sonoridade agudo(a) superior àquela possibilitada pelo registro de cabeça, o falsete é
normalmente associado aos homens. O belting ou belt, é uma técnica desenvolvida para o teatro dramático
contemporâneo com privilégio das ressonâncias média e médio-alta, de forma que os demais sons (graves ou de
toda a extensão fora dessa ressonância desejada) são também emulados ou direcionados para essa região de
ressonância, há certo privilégio de uma sonoridade, a forma da boca tende à expansão horizontal e em grande
parte dos usuários da técnica ocorre elevação de laringe. Cabe uma breve observação de Sundberg acerca de
registros, pois todos variam de pessoa a pessoa não coincidindo analogamente. Assim, essa ressonância médio-
alta é relativa a cada extensão individual.
46

(LOVETRI apud MARIZ, 2013, p.115)


As definições, condensadas em seus universos culturais, esquecem por exemplo de
abordar que o CCCA é fundado na técnica dramática (contemporânea ou não), além de
caracterizado pela citada manipulação da voz falada. Dessas características desdobram-se
padrões razoavelmente uniformes, com forte predomínio de intensidade de emissão (apontado
na citação acima pela sonoridade polarizada sobre as vogais). Ainda, deve-se atentar que uma
flexibilidade do modelo supracitado dificilmente é atingida, em termos de performance, sem a
inserção de padrões caricaturaise assumpção de papéis, o que nos remete novamente à questão
da dramaticidade implícita. Lembro ainda algumas outras características do CCCA:

● Em praticamente todos os estilos contidos no CCCA a denominada taxa de vibrato 47 é


usada sem moderação, sendo que o canto cool é pouco observado;
● predomina a sustentação do som em oposição à agilidade. No canto dramático do bel
canto teria predominado o canto legato tendo tal modelo transferindo-se para os
padrões do canto popular até por volta de meados do século XX (VALENTE, 1999).
Atualmente também um canto de maior sustentação baseado na variabilidade dos sons
das vogais seria o modelo preponderante. Ambos padrões apontam a redução da
inteligibilidade para uma dicção ligada e readaptada à vocalidade brasileira
(hibridismo contrastivo), já que no modelo cancional desenvolvido a partir do canto
falado (GARCIA, 1999) que resulta numa dimensão potencializada da vocalidade
brasileira não ocorre manipulação da voz falada, predominado ao contrário a
manutenção das características da voz falada;
● predomina a exploração da intensidade de emissão para a ampla faixa de estilos aí
condensados. Muito embora se faça uso de captações eletrônicas, não se tira partido
interpretativo desse recurso em prol da subjetividade vocal da voz falada;
● o CCCA teria no campo dramático um caráter de canto coletivo originalmente baseado
na equalização de registros vocais (coros gospel, spiritual, quartetos vocais, corais) e
mesmo dos timbres;
● as destacadas metas vocais supracitadas dizem respeito também à um papel mais
delimitado para os intérpretes. Tal canto ao abarcar diversos estilos, suscitaria diversos
papéis possíveis aos seus intérpretes; e

47
Sundberg aponta o vibrato como uma variação acima e abaixo da frequência fundamental. Essa oscilação
passando de + ou - 3 Hertz resulta numa taxa de vibrato ampliada e observável no bel canto, porém com efeitos
diferentes para o ouvinte da mesma variação em frequências médias em relação à frequências mais agudas.
(SUNDBERG, 2011)
47

● alguns desses estilos preponderam com emissão vocal em laringe elevada (maioria
dos estilos de rock com intérpretes solo masculino e o belting). Posições elevadas ou
rebaixadas de laringe também alterariam o timbre de um canto cuja posição de laringe
predomina naturalmente próxima à da fala, como é o caso do canto MPB (popular
brasileiro) em sua íntima relação identitária com a voz falada para enunciação de letra-
melodia.

Assim muito embora aponte-se a proximidade do canto falado também para o CCCA,
diversos fatores não só apontam outra direção como demarcam distanciamentos culturais em
relação ao canto popular brasileiro. Um fator é a possibilidade do cross cultural48 relativa às
técnicas lírico-dramática (bel canto) e do CCCA; e o outro diz respeito às emissões e técnicas
forjadas prioritariamente em língua inglesa, com especificidades ainda maiores relativas, por
exemplo, a padrões de pronúncia e ressonância vocal diferente da língua latina. O primeiro
ponto revela a dramaticidade de ambos os campos como fator comum ao trânsito de
intérpretes. O segundo aponta as dificuldades de hibridação relativas às técnicas do CCCA
quando aplicada a outros idiomas. Revelaria, a priori, um padrão de hibridação contrastivo
na conjugação desse à dicção brasileira, com consequente redução de sua possibilidade de
fusão à canção mais categórica da MPB, isso independente da circulação mais ampla desses
procedimentos estrangeiros na mass media. Em outras palavras, esse modelo interpretativo
apresenta baixa adequação ao padrão cancional brasileiro forjado na identidade da voz falada,
com resultados contrastivos muito embora seja amplamente difundido na vocalidade dos
subgêneros comercias e circule midiaticamente em ampla escala.
Dessa forma, enfatizo que ocorrem generalizações redutoras a respeito da proximidade
da voz falada tanto do canto popular brasileiro quanto do CCCA. Alguns fatores devem ser
observados mais atentamente para possíveis categorizações e sobretudo generalizações, já que
a incidência mercadológica acentuada do CCCA e até mesmo problemas de tradução de
trabalhos estrangeiros acabam tomado também esse campo da voz popular, numa onipresença
que relaciona prioritariamente a proximidade de fala e canto (esse tipo de identidade vocal)
para si.
A partir dessa explanação opto por uma abordagem ao canto popular brasileiro
contemporâneo que é paralela, na medida do possível, ao canto MPB. Assim, evito
necessariamente ligá-lo ao modelo mainstream de difusão, dado que a MPB ou migrou da

48
Apontado por Lovetri como sendo um boa capacidade de performance em duas linhas estilísticas
razoavelmente diferentes (LOVETRI apud MARIZ, 2013, p.134).
48

centralidade ou adotou alguns padrões decalcados do CCCA com suas referidas práticas
homogêneas emissão vocal muito atuantes sobre a diversidade. Numa abordagem desse tipo
seriam necessários outros níveis de apreensão já que há certo predomínio do popular em seu
caráter estrito de popularidade, fator que destaco nesse trabalho. Toma-se o “popular” em seu
caráter de exclusivo de “popularidade” e de maior vendagem/difusão, havendo baixo
“interesse da mídia pelo popular e sim pela popularidade” (GARCIA CANCLINI, 2015, p.
260). Esse último fator é muito importante de ser observado, pois, a ampla influência da mídia
em questões de difusão possibilita que ela mesma passe a forjar o “popular” e cada vez mais
dominar o uso da expressão. Nas academias, por outro lado, o que acaba ocorrendo é um
outro fator, no qual alguns gêneros populares são eleitos (ou ainda melhor adaptados na
estrutura vigente) como representantes do popular dentro da estrutura de transposição
conservatorial estabelecida academicamente no Brasil. Basta observar, por exemplo, o jazz e
o choro, que seriam as poucas escolas que conseguem inserção na estrutura acadêmico-
musical. Isso também merece um trabalho a parte já que ambos os gêneros tem caráter
instrumental prioritário. Assim, a voz popular e a voz na canção popular são pesquisadas em
marginalidade acadêmica no campo musical. Daí a maior incidência de pesquisas de voz
popular em campo como comunicação e história.
Sem fugir ao tema e voltando conclusivamente ao CCCA, importa evitar uma
abordagem de caráter comparativo do que seria uma centralidade de difusão midiática
contemporânea em relação ao que passou à historiografia musical como sendo centralidade
em outro período (anos 1960 e 1970). Afasta-se uma abordagem cujos padrões e modelos de
canto sejam intrinsecamente vinculados ao caráter de popularidade e massificação. Expus o
tópico do CCCA com dois direcionamentos: levantar processos de hibridação que tenderiam a
ser contrastivos em relação à emissão vocal do português brasileiro e técnicas oriundas de
outros idiomas/culturas e mesmo não sejam passíveis de se misturar; atentar aos riscos das
conceituações negativas oriundas de modelos comparativos à escola popular norte-americana
de canto, muito mais sistematizada e incisiva mercadologicamente.

1.3.2.3 Canto popular urbano brasileiro (Canto MPB)

Optando pelo chamado canto MPB (MARIZ, 2013) poderíamos dizer que trata-se de
uma definição sociológica (ligada a um período e classe social), normativa (a partir do
estabelecimento da sigla no imaginário receptivo), e também com caracteres tecnológico-
econômicos ao ser tomado como produto pós-Bossa Nova. Nesse último caso significa
49

também que é capaz de extrapolar as subjetividades vocais a partir do padrão hi-fi de


captação49 e transmissão eletrônica valorizando-se enquanto um produto comercial e artístico,
nacional e internacional.
Assim, o complicado caráter do popular vinculado exclusivamente à popularidade
midiática teria menor preponderância. A MPB exordial, também não seria central se
tomarmos o modelo de maior vendagem e difusão direcionado aos “artistas de marketing” que
já nos anos de 1970 lançam mão “de fórmulas estandardizadas de sucesso” que prescindiriam
por exemplo de alguma “valorização de conteúdos” (DIAS, 2000, p. 63). Assim, direciona-se
o campo cancional da MPB aos chamados artistas de catálogo.
Cabe observar ainda que, o modelo de maior difusão e vendagens também transita do
modelo mais personalista dos “artistas de marketing” (anos 1970) para o generalista dos
subgêneros de cunho prioritariamente comercial. Esses últimos, são firmados em fins da
década de 1980 porém plenamente sistematizados industrialmente sobretudo dos 1990 à início
do terceiro milênio. Tais subgêneros, a partir de mudanças tecnológicas e da fusão da
indústria cultural com a indústria do entretenimento em circuitos específicos, adquiriram
ampla dominância na centralidade de difusão de rádio, TV e internet dos anos de 1990 até a
contemporaneidade. Os artistas desse nicho, não são personalizados na difusão senão a partir
de algum grupo musical inserido nesses subgêneros, como ocorre nos casos do pagode
romântico e da axé music. Ou seja, os artistas apresentam menor grau de autonomia em suas
produções prescindindo, por exemplo, de atividades composicionais e assim de cantautoria.
Aquela MPB, dos anos 1960/1970, teria passado à centralidade muito mais pela
correspondência de estudos acadêmicos acerca dela vincularem-se primariamente à
receptividade universitária dos anos 1960, e também além disso, como já apontou Marcos
Napolitano, galgando centralidade no período pela maior produção de valor agregado
relacionada aos artistas de catálogo (idem, p.65). Essa categoria, apesar de menores índices de
venda, contemplou e agregou toda uma cadeia estética e produtiva resultando em produtos
diferenciados esteticamente, personalistas, não homogêneos e consequentemente trazendo
maior valor agregado às produções musicais.
A grande dificuldade terminológica seria relativa à utilização do termo canto MPB
com algum consenso contemporâneo, muito embora o deslocamento terminológico em
relação à centralidade de difusão já seja extremamente útil. As apropriações e “cooptações”

49
Cabe observar que o canto da Bossa Nova tirou partido da tecnologia para apresentar uma emissão vocal em
sua intensidade mínima, e que segundo Walter Garcia (GARCIA, 1999) ampliou a precisão rítmica da
interpretação vocal.
50

sofridas pela sigla MPB seriam o grande entrave à continuidade de exploração do termo.
Alguns intérpretes também mesmo fazendo uso de procedimentos da MPB refutam
pertencimento à categoria com o sentido de apropriarem-se do campo autoral contemporâneo
popular, enquanto outras(os) seguem vinculando-se prioritariamente à sigla.
Com o intuito de fazer alguns entrecruzamentos, relaciono também o canto das mídias
apontado por Heloísa Valente (2003) já que em sua conceituação o canto popular apresenta
boa amplitude na perspectiva de considerar desde a partitura uma mídia primária, passando
pelas diversas mudanças do século XX e debruçando-se hoje sobre a diversidade de mídias
contemporâneas. Não é a perspectiva da mídia exclusivamente de massas. Nesse contexto de
canto das mídias, como foi aprofundado pela autora, haveria hoje outros modelos de canto
popular não centrais na difusão midiática baseados em suportes e difusão totalmente
alternativos(as), e mesmo na ausência física desses. Tal dinâmica, pouco apreensível em
função da contemporaneidade tecnológica, contrasta com a já rechaçada comparação simplista
dos modelos de canto popular que teriam possivelmente ocupado as centralidades de difusão
de épocas extremamente distintas. De qualquer forma, na difusão central contemporânea de
rádio e TV, predomina um modelo canto popular contrastivo bem mais aproximado ao canto
comercial norte-americano (CCCA), enquanto que o canto relacionado à música popular
brasileira nas décadas de 1960, 1970 e 1980 estaria em outras esferas de difusão não
necessariamente centrais, porém verificadas nos ofícios de cantautoria hoje marginas à
difusão central de música midiatizada.
Já buscando uma caracterização mais pessoal para esse tipo de canto discorro sobre
caracteres contextuais e técnicos de emissão vocal. Sabendo-se tratar tecnicamente de um
canto vinculado a um modelo cancional cuja relação letra melodia apresenta certo padrão
reconhecível de equilíbrio/estético entre a fala e canto. Também busco caracteres contextuais
a partir da caracterização de “conteúdo” como proposta por Bruno Nettl (NETTL, 2005, p.
268). Nessa, em outras palavras, caracteres fundantes e menos passíveis à variações estéticas
por parte de determinado agrupamento musical seriam apontados como “conteúdo”, numa
analogia que o autor faz aos conteúdos linguísticos. Outros caracteres mais passíveis de
mudança seriam denominados dentro do termo “estilo”, também utilizando Bruno Nettl da
mesma analogia. Assim, apontar o que seriam alguns “conteúdos” do canto popular propondo
estabelecer uma rede de performance e composição mais livre de delimitações terminológicas
recorrentes à gêneros, períodos canonizados, ou de forma comparativa aos cantos dramáticos
(lírico e/ou contemporâneo) constitui-se num desafio aos pesquisadores brasileiros(as) da
área.
51

Alguns caracteres contextuais e sócio-musicais, que tento vincular ao conceito de


“conteúdo” que Bruno Nettl propõe aos objetos sonoros, surgiriam como pressupostos
juntamente com a teoria de Luiz Tatit que aponta esse canto como dimensão potencializada da
fala resultando numa perspectiva semiótica num canto com o efeito de dizer algo. E além
disso com alguns outros apontamentos como:

● os(as) cantautores(as) como sendo um grupo identitário fundante ou representativo


desses procedimentos compositivos e interpretativos;
● a circulação mais fluida dos objetos sonoros e procedimentos desse tipo de vocalidade,
seja por campos da música: popular, artística e/ou folclórica (BERGER, 2008), pelos
campos sócio-musicais propostos por Thomas Turino: música participativa, de
apresentação, de alta-fidelidade e criação de estúdio (TURINO, 2008),
● circulação equilibrada pelos procedimentos variados de composição/emissão vocal:
“passionais, temáticos e figurativos50” (TATIT, 1999; 2004), ou ainda pela diversidade
de gêneros e/ou resultados híbridos desses dentro da MPB que assim constitui-se um
termo guarda-chuva (ULHÔA, 1999, 2000);
● redução da expressão notacional e canônica; e por fim,
● a caracterização de valorização processual do objeto sonoro, com a cadeia produtiva
apresentando um maior grau de autonomia entre seus agentes onde há maior aporte
conceitual sobre os produtos sonoros com “independência” de um necessário
invólucro visual atuante sobre produto final que se faria aparentemente bem acabado.
Enquanto “conteúdo”, o reconhecimento do produto sonoro por si ainda é primordial
sobre elementos visuais, colagens de roupagens instrumentais, e vinculação a circuitos
de cunho comercial e especializado em gêneros.

Expandindo o último tópico relativo à importância processual dessas atividades


cancionais, e já apontando certa primazia de observações de pesquisa resultantes, em grande
parte, dos estudos folclóricos acerca do popular, necessito apontar que:

dificuldades teóricas e epistemológicas, que limitam seriamente o valor de seus


informes, persistem em estudos folclóricos atuais. Mesmo nos países mais
renovadores na análise da cultura popular [Argentina, Brasil, Peru e México], essa
corrente controla a maioria das instituições especializadas e da produção

50
Falo detidamente dos procedimentos logo no próximo ítem desse trabalho, por hora cabe considerar que se
trata de uma certa fluência por procedimentos diversificados de emissão e interpretação a partir de modelos
compositivos da canção brasileira apontados pela via semiótica de Luiz Tatit.
52

bibliográfica. (...) Interessam mais os bens culturais - objetos, lendas, músicas - que
os agentes que os geram e consomem. Essa fascinação pelos produtos, o descaso
pelos processos e agentes sociais que os geram, pelos usos que os modificam,
leva a valorizar nos objetos mais a sua repetição que sua transformação. (...)
condicionados pelo nacionalismo político e humanismo romântico, não é fácil que
estudos sobre o popular produzam um conhecimento científico (GARCÍA
CANCLINI, 2015, p. 210-12, grifos meus).

Tento demonstrar que aproximar esses discursos do popular nesse campo cancional até
a contemporaneidade tem suas implicações, seja em firmar o estudo da voz popular para além
do canto lírico academizado e do CCCA de forte incisão midiática, ou expandindo modelos de
observação do folclórico nacional tomados como mais originais porém em certa estaticidade
de observação descritiva, como exposto acima. Canclini observa ainda, a partir de Renato
Ortiz, que, no Brasil houve certa necessidade de afirmação da intelectualidade da primeira
metade do século XX “frente a um sistema moderno de produção cultural” (ORTIZ, apud
GARCÍA CANCLINI, 2015, p. 211-2) , de forma que estudos sobre o popular urbano e do
popular enquanto processo dinâmico foram marginalizados em estudos mais sistematizados,
tendo se priorizado o modelo das escolas nacionalistas numa dicotomia preponderante:
erudito e folclórico.
Apontado agora para caracteres técnicos da vocalidade que procuro delimitar, tomo
como um “conteúdo” ou habitus a subjetivação do canto a partir de sua correlação com a fala,
criando um padrão identitário muito mais individualizado do que normatizado. É o canto
como “dimensão potencializada da fala” (TATIT, 1999; 2004) que carrega traços identitários
específicos de cada performer bem como uma “técnica” passível de variações individuais e
hibridações desde que o “efeito final de dizer algo” (idem) esteja preservado. Obviamente que
ao forjar-se tecnicamente a partir da fala, goza de íntima relação com a dicção brasileira mais
cotidiana. Nessa simbiose forja técnicas peculiares aos diversos intérpretes e à maneira de
cada um criar o seu efeito pessoal de cantar dizendo algo.
É nessas bases que apresento a possibilidade conceitual do canto popular subjetivo
brasileiro, como um eventual variante terminológica do canto MPB para a
contemporaneidade. Nessa perspectiva de utilização contemporânea do termo busco
contemplar cruzamentos epistemológicos do canto da mídias (VALENTE, 2003), do canto
MPB (MARIZ, 2013) e de apontamentos técnicos também muito específicos a cada intérprete
feitos por Adriana Picollo (PICOLLO, 2006) e também ao enfoque semiótico já presente em
Regina Machado (MACHADO, 2012). A perspectiva aqui abordada em relação ao subjetivo é
também de cunho filosófico/social, a partir daquilo que é “relativo ao sujeito (...) existente no
53

sujeito”51 (FERREIRA, 2010) não havendo necessariamente uma técnica unívoca/padronizada


mas sim a constituição coletiva de várias individualidades em performance vocal ligada à fala.
Cabe observar que Felipe Abreu, importante professor de canto popular brasileiro, aponta que
seu trabalho é específico com cada aluno e molda-se a partir daquilo que esse(a) apresenta
como técnica, não tentando moldá-lo a algum padrão, como ocorre por exemplo nos cantos
dramáticos escolarizados/academizados. Sendo relacionado a cada intérprete a partir do
arcabouço cancional delineado no séc. XX, o modelo de emissão vocal seria “válido para um
só sujeito e que só a ele pertence, pois integra o domínio das atividades psíquicas,
sentimentais, emocionais, volitivas, etc. deste sujeito” (idem). O conteúdo comum desse canto
seria constituído dessas várias individualidades, já que “provém de um sujeito enquanto
agente individual ou coletivo” (idem). Alguns outros habitus de caráter sócio-musical
auxiliariam a constituição de um agrupamento que então se ligaria à MPB, dando unidade à
essa diversidade vocal forjada subjetivamente a partir da relação do canto com a voz falada.
Nesse padrão subjetivo retomo então a potencialização da fala, já abordada por Luiz
Tatit, agora em seu padrão identitário mais extremo, e também em possibilidades de variações
técnicas pessoais. Mesmo a partir de caracteres tão personalizados percebe-se alguns
compartilhamentos de procedimentos vocais e padrões de performance (habitus) que fazem-se
necessários à construção identitária coletiva e estética. Tais habitus imersos em constantes
processos de hibridação, para o popular que aqui tento abarcar, constituem um objeto de
pesquisa extremamente dinâmico no espectro de difusão aural contemporânea. Dessa forma,
são melhor observados não somente através dos produtos sonoros, carecendo contar
necessariamente com elementos sociais e contextuais para uma afirmação como objeto de
pesquisa e fenômeno musical.

1.4 Categorizações de Luiz Tatit em aplicabilidade metodológica

Nesse trabalho utilizo algumas terminologias do semioticista Luiz Tatit (1999; 2004)
que perpassam tanto as análises quanto algumas questões conceituais. Trata-se
prioritariamente dos termos: figurativização, passionalização e tematização. Esses termos, e
suas variantes,52 aplicam-se à proposta de categorizar procedimentos principalmente de

51
Fonte: (FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5ª ed. Curitiba.
Ed. Positivo, 2010, p. 1972)
52
A visão do autor, aparentemente mais atrelada ao trabalho dos compositores será apresentada também em
54

compositores, e/ou letristas, dentro da mesma visão apontada pelo autor ao fazer uso do termo
cancionista (TATIT, 1999). De qualquer forma, expando o uso desses para a via interpretativa
de performance vocal popular.
Os termos apresentam vantagens em função também de sua abordagem semiótica. Ao
considerarem a relação da obra (canção) com o ouvinte, pressupondo a íntima relação de letra
e melodia com a fala, num processo que foi apurado e moldado ao longo do século XX,
permite-se uma apropriação terminológica de boa flexibilidade e pertinente ao modelo
desdramatizado de canto popular que então aproximou os ouvintes das canções populares.
Tatit ao relacionar o resultado desses procedimentos com a recepção, convida o ouvinte a
participar das características cancionais, e assim até de possíveis análises que façam uso
desses.
O procedimento passional, ou passionalização, buscaria trazer o ouvinte para um
estado passivo em relação à obra, criando um sentido de contemplação, e segundo ele
modalizado pelo ser (passionalização), com maior influência das alturas/frequências
melódicas. Nesse processo, haveria certa tendência ao alongamento de notas, ao aporte de
conteúdos de caráter romântico/existencialista, e também de um canto mais contrastante em
relação ao acompanhamento instrumental. Assim, haveria certa propensão de canções e
procedimentos passionais ao aporte de padrões vocálicos alongados, contando com o uso de
vibratos, maior intensidade de emissão e até eventual dramaticidade. Observa-se assim que
esses procedimentos são invariavelmente mais presentes nos cantos dramáticos, seja o lírico
e/ou o norte americano, de forma que é também pela hegemonia desse campo (e não a
diversidade desse juntamente aos próximos procedimentos apontados) que elementos
estrangeiros (europeus primeiramente, e norte americanos num segundo momento) se
apresentaram na vocalidade da canção brasileira, mesmo que surgidos e mais adequados à
outras vocalidades. Apontando inicialmente as influências da música vocal europeia de
ambiência acústica, cito Luiz Tatit:

A forma desacelerada de estabilização deixa que as vogais se alonguem e se


expandam no campo da tessitura valorizando o percurso melódico em seus
desbobramentos progressivos. Os temas tendem a se desfazer em direções que
sugerem a busca. Esses traços que já compuseram o éthos53 das serestas e das
modinhas migraram nos anos [de 19]20 e [19]30 para o samba canção (...) (TATIT,
2004, p. 43-4)

variantes interpretativas: canto temático, emissão vocal passional, procedimento figurativo dentre outras(as).
53
No campo musical, o éthos é utilizado para descrever ou se referir à influência da música nas emoções e
comportamentos dos ouvintes.
55

O procedimento temático, ou tematização, imprimiria uma condição de


ação/participação ao ouvinte, no qual “ a concentração de tensividade na pulsação [...] e a
redução da duração e da frequência” (TATIT, 1999, p.11) condicionariam um estado mais
ativo na relação obra-ouvinte, que então seria modalizada pelo fazer (tematização),
convidando o ouvinte à ação. Assim, canções ditas no senso comum como de caráter “mais
sincopado”, ou com mais recortes de divisão rítmica vocal, ou ainda inseridas
caracterizadamente em gêneros de origem rítmica (samba-de-breque, samba canção acelerado,
baião, coco, repente, dentre outros(as)), e assim também eventualmente direcionados à dança
(campo de música participatória), tendendo ainda a andamentos mais acelerados com
consequente aceleração da melodia vocalizada se enquadrariam dentro desses procedimentos
de práticas temáticas, ou tematização. Observo que esse campo seria consequentemente mais
característico na inserção de elementos afro-brasileiros com preponderância rítmica, enquanto
o campo passional poderia ser associado à música erudita europeia de preponderância
melódica, ilustrada pela vocalidade legato com mínima interrupção consonantal ou silêncio
entre as frequências de sons de vogais. No campo temático as interrupções ilustradas pelos
sons consonantais e potencializadas por exemplo com as aliterações colaborariam, por outro
lado com caracteres rítmicos para a melodia.
Por fim, aponto a questão dos procedimentos de figurativização. Esse é um
procedimento de aproximação mais extrema da letra/canto com a coloquialidade da fala
buscando a aproximação mais íntima do cantautor(a) em reconhecimento junto aos seus
ouvintes. Amplia-se a expressão da voz que fala sobre a voz que canta. Assim, o(a) ouvinte se
identificaria com ditos populares, expressões cotidianas, conselhos, modos de se expressar,
chamados de canções, práticas de composição/interpretação descritos em letra, regionalismos,
sotaques e etc. A figurativização seria um “elemento discreto” na canção brasileira, explorado
por exemplo: por Noel Rosa em “Gago apaixonado” (ROSA, 1927); por Geraldo Vandré ao
conclamar seu ouvinte em “[...] vem vamos embora que esperar não é saber” na canção “Prá
não dizer que não falei das flores” (VANDRÉ, 1964); por Chico Buarque ao criar uma
empatia na conversa de um casal inserida em situações machistas cotidianas prepara uma
recepção aos amigos (exilados) descreve a receita de uma feijoada em “Feijoada Completa”
(BUARQUE, 1978) em versos como “ [...] mulher você vai gostar tô levando os amigos pra
conversar [...] salta a cerveja estupidamente gelada prum batalhão e vamos botar água no
feijão” (idem) ou ainda; num xote mais recente “Farinhada” de Djavan “você não sabe o que é
farinha boa, farinha é a que a mãe me manda lá de Alagoas” (DJAVAN, Sony, 2001). Aqui
pode-se apontar novamente como a canção brasileira acabou tornando-se então uma “rede de
56

recados” (WISNIK apud DUNN & PERRONE, 2002) e firmou de maneira aprofundada em
suas diversas relações: obra-ouvinte, letra-melodia, texto-canto subjetivo, dentre outras(os).
Além disso, a figurativização colabora com certa confusão/mistura de papéis de autor(a),
do(a) intérprete e do(a) “eu lírico” das canções na recepção subjetiva dos ouvintes.
Tais procedimentos, aqui apontados por via de Luiz Tatit, também podem ganhar
ainda uma outra impressão dada pelo(a) intérprete, não se encerrando no modelo cancional
fixo, ou na perspectiva estrita do(a) compositor(a). Essa impressão interpretativa vocal em
performance, além de conter o tripé de estabilização por via do timbre vocal (TATIT, 1999, p.
14-5) pode potencializar, mitigar ou hibridizar alguns desses procedimentos através de
condições diversificadas, que são então subjetivas a cada intérprete a partir de: um estilo
personalista; uma técnica pessoal; um modo de dizer/cantar/enfatizar determinado trecho da
canção potencializando ou não caracteres figurativos; uma variação rítmica ou até de altura
melódica da melodia “original”; ou enfim e de forma geral a todas essas possibilidades, uma
capacidade de leitura de caracteres variados da obra popular urbana54 que podem(e
devem) ser moldados fortemente pelo(a) intérprete em busca de uma caracterização
personalista (sendo esse(a) intérprete eventualmente o(a) próprio(a) compositor(a)), dado que
a obra por sua vez, no âmbito popular, também “se notabilizaria com o(a) intérprete”
(ABREU, 2001; VALENTE, 2003, p.47). Se parte da metodologia baseada na produção
cultural visa romper ou limitar a análise direcionada ao cânone autor-obra que categoriza a
pesquisa musicológica55 (RANDEL apud DeNORA, 2005), na interpretação vocal da música
popular existiria uma relativização prática das caracterizações de obras musicais populares
por serem então mais permissivas às impressões dos(as) cantores(as) que não é contemplada
metodologicamente em lentes de observação mais específicas e adequadas. Assim, aponto
novamente que, apesar do termo cancionista de Luiz Tatit poder ser aplicado prioritariamente
aos chamados cantautores, só nessa última terminologia/categoria cantautores(as) poderia
passar a contemplar mais profundamente as questões da performance interpretativa vocal em
54
“No caso do canto popular, quem determina o caráter da obra é geralmente o intérprete. Ele pode, com
maior ou menor intensidade, subverter as características da canção: variações sutis ou gritantes na linha
melódica, na divisão rítmica, no andamento, na harmonia, no acompanhamento instrumental, na dinâmica,
tonalidade à sua escolha; um samba vira reggae, um rock vira MPB, uma bossa nova vira sertanejo. A liberdade
é tal que faz com que diversos autores passam a ser seus próprios intérpretes - mesmo sem terem "qualificação
vocal" para tal - a fim de assegurar às suas composições sua „integridade‟.” (ABREU, 2001, sem página)
55
(...) a maioria dos musicólogos provavelmente concordaria com a boa observação de Randel de que a "caixa
de ferramentas" tradicional da musicologia foi projetada para a construção e manutenção de um cânone de
tópicos aceitáveis, isto é, obras e compositores (DeNora, 2005, p. 36, tradução minha). Original em inglês: “(...)
most musicologists would probably agree with Randel‟s apt observation that musicology‟s traditional “toolbox”
was designed for the construction and maintenance of a canon of acceptable topics, namely, works and
composers.”
57

suas dinâmicas específicas da música popular.


Assim, a utilização desses procedimentos de passionalização, tematização e
figurativização direciona-se nesse trabalho tanto ao ofício híbrido de cantautoria como ao
ofício de interpretação e racaracterização de canções inscritas nesse modelo cancional.
Retomando a discussão sobre a MPB, e a apontando essa como um “conjunto de práticas
músico-sociais” (NEDER, 2008, p. 269) ou observando sua definição passar por “critérios
muito mais de tipo sócio-cultural, implicando em tipos de audiência, reconhecimento
valorativo e circuitos sociais de cultura” (NAPOLITANO, 2002, p.73), pode-se afirmar que:
os diferentes/diversos padrões compositivos/interpretativos aqui apontados por via de Luiz
Tatit também seriam agrupados pela sigla. Dessa maneira, a MPB em seu caráter exordial
dos anos 1960/1970 agruparia a diversidade compositiva/interpretativa desses diversos
procedimentos aqui apontados, sendo também ainda preferencialmente direcionada às práticas
diversificadas dos(as) artistas de catálogo. O caráter de fluência técnica interpretativa e
compositiva por esses procedimentos descritos seria então uma espécie de conteúdo sócio-
musical da sigla em seu contexto inicial de afirmação, podendo também se agregar como
habitus dessa prática cosmopolitana da canção popular brasileira. Assim, seus intérpretes,
compositores e cantautores mais referenciáveis apresentariam uma capacidade técnica ligada
à variabilidade em conjunto com o equilíbrio desses procedimentos, muito mais do que
estarem vinculados à (sub)gêneros específicos com procedimentos interpretativos mais
delimitados, com consequente mitigação da diversidade técnica de caráter subjetivo e restrita
a circuitos cancionais fechado e de caráter muito mais industrial do que artesanal.
58

Capítulo 2: Contextualização temporal/social do fenômeno musical

2.1 Os anos de 1980

Simon Frith (FRITH apud NEGUS, 1992) apontou uma mudança decisiva na
organização global da música popular nos anos 1980:

uma transição de uma abordagem baseada em passos lógicos ascendentes [...] com a
performance pública sendo utilizada para autenticar recursos de estúdio/gravação
(abordagem orgânica), para uma situação na qual as gravadoras transnacionais
irracionalmente pescam por ideias, sons, estilos e performers a partir de um tanque
de talentos com o marketing em vídeo redefinindo decisivamente as concepções de
audiência (abordagem sintética) (FRITH apud NEGUS, 1992, p.56, tradução
minha).56

Segundo Keith Negus, o argumento acima de Frith ignora, de certa forma, a


“persistência, adaptação e transformação da tradição criativa orgânica no interior da música
popular contemporânea (NEGUS, 1992, p.56)”. O fato deve ser lembrado e considerado nesse
trabalho sobretudo em se tratando de canção popular brasileira e tomado o hibridismo como
bias conceitual do trabalho.
Também a autora Jocylene Guilbaut, em seu estudo pós colonialista aponta que:

A música popular, que surgiu na década de 1980, é distribuída maciçamente em todo


o mundo, e ainda associada a grupos minoritários e países pequenos ou em
desenvolvimento industrial, que combinam características de música locais com os
de gêneros tradicionais e que passam a chegar aos mercado dos países
industrializados (GUILBAUT, 2006, p.138).

Trabalhos diversos apontam a segunda metade da década de 1960 e a década de 1970


como períodos de incremento das influências estrangeiras, e menor influência do conceito
nacional-popular sobre a produção cultural, resultando então na polarização acerca de
interinfluências transnacionais, de forma que “dificilmente a literatura sobre a indústria
cultural e os meios de comunicação de massas poderiam fugir desse quadro mais amplo, que
compreende a questão cultural como um confronto entre o nacional e o estrangeiro” (ORTIZ,
2006, p.185).
Marcos Napolitano como já abordei, sugere nesse contexto da MPB, uma última

56
“[...] a transition from an approach based on ever ascending logical steps up the „rock piramid‟, with public
performance used to authenticate studio appeal (an organic approach), to a situation where transnational
record companies irrationally fish for ideas, sounds, styles and performers from a talent pool, with video
marketing decisively redefinig conception of the audience ( a sinthetic approach).”
59

periodização de 1972-1979 relativa a um “período de reorganização dos termos do diálogo


musical presente-passado”, período que “englobaria por exemplo o termo pop”
(NAPOLITANO, 2002, p.48-9). Não se pode esquecer outros contextos sócio-políticos da
época, dentre os quais merece destaque:

o ressurgimento [visibilidade] de grupos étnicos; problemas crescentes da


multiculturalidade e polietnicidade; a consolidação do sistema de mídia global; a
reformulação da Ordem Econômica Mundial [...] sistema internacional mais fluído;
[...] o fim da bipolaridade” (GUILBAUT, 2006, p. 138-9).

A mesma autora lembra ainda a dissolução do bloco comunista, e em esfera nacional é


importante que aponte-se o período de declínio da ditadura culminando com a abertura
política que resultou nas eleições indiretas de 1985. No Brasil, na transição das décadas,
juntavam-se então fatores culturais diversificados, desde os cunho político com consequente
redução da abordagem de letras e conteúdos de canção direcionados à ditadura/repressão,
como os fatores mencionado e já consolidados nos 1970 com aceite e diálogo com a música
pop, as possibilidades mundiais expandidas de transmissão e distribuição de música, e mesmo
uma reordenação das categorias musicais em relação ao mercado, dentre outros(as).

2.2 Djavan

O cantor e compositor alagoano Djavan (Djavan Caetano Viana, 27/01/1949, Macéio-


AL) surge midiaticamente a partir da segunda metade da década de 1970. O migrante
nordestino, já havia trabalhado musicalmente na capital alagoana, porém buscou no Rio de
Janeiro, a partir de 1973, a centralidade de difusão para sua música, a qual sempre considerou
como tendo um caráter distinto e peculiar, muito embora tenha atuado inicialmente como
crooner de boates e então exclusivamente interpretando canções.
Naquela década de 1970, alguns movimentos e cenários predominavam, com destaque
para o Black Rio, o time intitulado “os malditos57”, e uma “segunda” geração do samba
impulsionada por duas intérpretes: Clara Nunes e Beth Carvalho e pelos cantautores Martinho
da Vila e Paulinho da Viola. Além desse cenário, também alguns festivais já minguavam em

57
Os malditos forma considerados, segundo Marcia Tosta Dias, os grandes encalhadores de discos da época,
entre eles figuraram: Jards Macalé, Walter Franco, Sérgio Sampaio e mesmo Tom Zé (esse último apesar de
participante do álbum e movimento Tropicália), seus trabalhos experimentais fora dos padrões estéticos em voga
colaboravam para um sentido anti-comercial (DIAS, 2000). Aponto de qualquer maneira uma certa orientação da
indústria cultural dos 1970 em agrupar os artistas, ou vinculá-los a movimentos, operando sobre possíveis
individualidades estéticas para o caso da música popular.
60

suas últimas edições, embora ainda possibilitassem revelar nomes como o do próprio Djavan.
No Festival Abertura da Rede Globo, em 1975, Djavan chega a segunda colocação
com um samba: “Fato Consumado” (DJAVAN, Som Livre, 1976). A partir daí possibilitou-se
a gravação de seu primeiro LP no ano seguinte (A voz, o violão e a música de Djavan, Som
Livre, 1976). Um outro samba desse seu primeiro LP chegava lentamente à centralidade de
difusão, um “clássico” ou cânone da MPB: “Flor de Lis” (DJAVAN, Som Livre, 1976).
O primeiro long play caracterizado como de lançamento e totalmente autoral em
música e letra é então A voz e o violão de Djavan (idem), considerado um fruto do Festival
Abertura da rede Globo no ano anterior:

O primeiro disco não repercutiu e, para me manter, continuei cantando em boate e


sem poder mostrar minhas composições. “Flor de Lis” só veio a tocar nas rádios um
ano depois. As pessoas começaram a me conhecer a partir dos discos lançados pela
EMI - Djavan [1978], Alumbramento [1980] e Seduzir [1981] - que sedimentaram
meu nome, e depois que tive músicas gravadas por Nana Caymmi (Meu bem
querer), Maria Bethânia (Álibi), Gal Costa (Faltando um pedaço) e Roberto Carlos
(A ilha)". (DJAVAN, 2014)58

O artista que já vinha participando como intérprete no elenco da Som Livre, surge
também na trilha sonora da novela Gabriela (Som Livre, 1975) no ano de 1975 interpretando
“Alegre Menina” canção de Dori Caymmi sobre letra/texto de Jorge Amado.
Passando então à EMI-Odeon, Djavan produz mais três elepês - ou seja, três álbuns
posteriores àquele primeiro supracitado e anteriores ao quinto elepê, o álbum Luz de que
tratamos aqui. São os três álbuns intermitentes desse recorte de carreira do cantautor
produzidos pela EMI-Odeon: Djavan (EMI-Odeon, 1978); Alumbramento (EMI-Odeon,
1980); e Seduzir (EMI-Odeon, 1981). Nesses, nota-se a existência de algumas parcerias e
algumas interpretações “não autorais”. Tais parcerias, observadas tanto em pesquisa
documental quanto pela experiência empírica de interpretação, ocorreram sobretudo para
feitio e/ou complementação das letras. Contribuíram como letristas: Aldir Blanc 59; Cacaso60;
Paulo Emílio61, Chico Buarque62; Filó63; José Neto; e Wagner64. Já nas interpretações

58
Fonte:<http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2014/11/19/internas_viver,543739/djavan-
lanca-coletanea-com-classicos-confira-cinco-discos.shtml)>
59
Aquele Um (DJAVAN, BLANC; faixa 7 in: Alumbramento, EMI-Odeon, 1980) ; Tem Boi na Linha
(DJAVAN, BLANC, EMÍLIO; faixa 1 in: Alumbramento, EMI-Odeon, 1980)
60
Lambada de Serpente (CACASO, DJAVAN; faixa 3 in: Alumbramento, Luanda Edições Musicais, 1980)
61
Tem Boi na Linha (DJAVAN, BLANC, EMÍLIO; faixa 1 in: Alumbramento, Luanda Edições Musicais,
1980).
62
Alumbramento (BUARQUE, DJAVAN; faixa 8 in: Alumbramento, Luanda Edições Musicais, 1980).
63
Jogral (DJAVAN, FILÓ, NETO; faixa 4 in: Seduzir, Luanda Edições Musicais, 1981). Essa aparenta ser a
única canção que também condensa elementos compositivos e musicais do parceiro Filó.
61

prevalesceram duas canções angolanas (folclore tradicional adaptado e outra de Filipe


Mukenga), a regravação e reinterpretação de “A Rosa” (Chico Buarque de Holanda) e uma
primeira interpretação de “Triste Baía da Guanabara” (Novelli/Cacaso).

2.3 A música negra popular urbana em vocalidade solo

A música vocal negra é de forte representação no imaginário receptivo da música


popular urbana, tanto nacionalmente quanto no cenário internacional. Tal característica deita
raízes em músicas populares de caráter rural e folclórico e/ou rurais ainda anteriores ao século
XX e se casa definitivamente com os grupos identitários para a afirmação/criação dos
primeiros gêneros nacionais americanos categóricos do Brasil e EUA: o samba e o jazz.
Percebe-se que na música popular urbana os(as) intérpretes negros(as) ganham uma projeção
mais acentuada a partir de fins da primeira metade do século XX (décadas de 1950/1960).
Assim, surgem grandes nomes no cenário norte-americano como: Ella Fitzgerald, Sarah
Vaughan, Ray Charles, Carmen Mc‟Rae, Stevie Wonder, dentre outros(as). No cenário
brasileiro também temos exemplos significativos dessa vocalidade, porém melhor considerada
aqui em seu caráter mestiço, já que no Brasil a mestiçagem e as fusões raciais são mais
presentes que nos EUA, sendo exemplos de uma vocalidade híbrida, e então de caráter afro-
brasileiro diversos artistas como: Jackson do Pandeiro, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Elza
Soares, Emílio Santiago, Luis Gonzaga, Tim Maia, Cassiano, Luiz Melodia dentre tantos (as)
outros(as).
Observo prontamente certas peculiaridades da miscigenação latino-americana. Vemos
que no cenário norte americano é mais fácil uma delimitação dentro do caráter étnico-racial
mais estrito “negro”, enquanto que no Brasil as miscigenações seriam mais caracterizáveis e
emanariam delimitações como: mulato(a), pardo(a), crioulo (a), mamelucos dentre outras(os).
Isso, obviamente independente da existência do racismo nacional direcionado tanto aos
negros quanto aos miscigenados e pobres, no Brasil. Garcia Canclini aponta em Globalização
Imaginada (2003) que nem mesmo existiria uma tradução para o inglês do termo mestiçagem
e que nos Estados Unidos predomina uma espécie de “segregacionismo multicultural”
(GARCÍA CANCLINI, 2003, p. 12) mais latente do que as possibilidades de mistura em
escalas diversas. Sendo o termo miscigenação mais pertinente à América Latina, é também
pertinente abordar que cantores(as) brasileiros(as) que seriam caracterizados(as) como

64
Minha mãe (DJAVAN & WAGNER, faixa 6 in Djavan, Ed. BMG Arabella, 1978).
62

brancos(as) também apresentariam elementos da vocalidade e musicalidade afro-brasileiras,


como seria o caso de João Gilberto, Caetano Veloso e Lenine, dentre outros.
Focando basicamente, e pela característica musical do trabalho, nos casos de modelo
de performance solo da música popular urbana no Brasil, nota-se que a proeminência de
cantores negros e mestiços na centralidade de difusão musical popular também torna-se mais
evidente a partir da segunda metade do século XX.
Mesmo que alguns(algumas) primeiros(as) intérpretes brasileiros negros e mestiços
apresentassem grande originalidade em seus procedimentos vocais (Jackson do Pandeiro, Elza
Soares, Luiz Gonzaga) ainda em meados do século XX, a partir da segunda metade do século
XX o canto negro norte-americano passa a preponderar e ter maior representatividade nesse
campo popular urbano em relação a difusão/recepção musicais mundiais. É interessante
observar que essa ascenção da música negra norte-americana “surgida” no vocal jazz,
perpassa a black e pop music, e chega atualmente à representações vocais dentro da
delimitação CCCA, numa diversidade mercadológica acentuada e sempre incisiva em relação
aos mercados latinos.
A década de 1970 é particularmente interessante para observarmos alguns decalques
de movimentos, correntes e modelos norte-americanos:

● aproximando-se da ideia norte americana do “showman” tivemos a atuação


relampejante de Wilson Simonal, espécie de intérprete e “entertainer” (in “Ninguém
sabe o duro que eu dei”, 2013);
● o movimento negro da disco music com o registro dos primeiros Disc Jockeys (DJ‟s)
e a Banda Black Rio, com nomes associados à esses como: Tim Maia, Gerson King
Combo e ainda o paraibano Cassiano; e
● Primeiros “decalques” - grupos vocais em voga no mercado anglo saxônico
respaldando a atuação de Golden Boys e The Fevers, isso já desde os anos 1960 no
cenário da Jovem Guarda, porém mais representativos no mercado de discos dos 1970.

A música vocal negra africana de caráter urbano é bem menos difundida no Brasil.
Contudo, a partir da world music e de estudos da etnomusicologia pós-colonial pudemos
observar a atuação de grupos vocais como o Ladysmith Black Mambazo e outros expoentes
como por exemplo o nigeriano Fela Kuti. No âmbito da performance vocal solo também
haveriam figuras pontuais mais projetadas como a caboverdiana Cesária Évora, os malineses
Salif Keita e Ali Farka Tourré, e a sul-africana Miriam Makeba. Contudo, observa-se que
63

quase todos se projetam em nosso mercado muito mais a partir do advento da world music e a
partir dos anos de 1980, revelando a ampla “dominância do mercado anglo-saxônico”
(NEGUS, 1992). O álbum Graceland (1986) de Paul Simon com o grupo Ladysmith Black
Mambazo tem sido considerado um dos marcos da world music, muito embora a inserção de
elementos de músicas do mundo nas músicas populares seja observável anteriormente mesmo
em álbum dos Beatles nos anos 1960.
Sendo impossível abarcar sinteticamente a riqueza musical daquele continente, aqui
busquei ilustrar alguns exemplos do canto solo popular urbano e algumas outras
manifestações. Obviamente, no cenário de difusão central, o canto popular norte-americano é
muito mais incisivo sobre os mercados latinos. De qualquer forma o cantautor em questão
demonstre influências e fluidez interpretativa também por aquele repertório de matriz africana
em outros álbuns, com necessidade de uma relativização de observação de Djavan como
sendo somente influenciado pela vocalidade norte-americana, ou exclusiva do jazz vocal.
Aponto então, algumas importantes interpretações de Djavan acerca desse repertório,
tanto anteriores quanto posteriores ao Luz. No álbum imediatamente anterior, o LP Seduzir de
1981 (DJAVAN, EMI, 1981), e no LP do ano de 1986 Meu Lado (Sony, 1986) encontramos
exemplos dessas incursões. No primeiro, Djavan interpretou canções nos idioma Kibundu e
Umbundo, uma canção folclórica angolana e outra do angolano Phillipe Mukenga. Já no
álbum de 1986 Djavan gravou o “Hino da Juventude Negra da África do Sul” (Grupo Cultural
do Congresso Nacional Africano, s/ data) e “Hino de Congresso Nacional Africano” de
autoria de Enoch Sontonga. Nos referidos períodos dos discos, em relação aos cenários
sociais, Angola saía de uma guerra de independência e civil resultante de condições pós-
colonialistas e a África do Sul travava sua luta contra o apartheid e pela libertação de Nelson
Mandela.
Outras cantoras afro-brasileiras atuantes podem ser citadas no cenário brasileiro pós
Bossa Nova, dentre as quais: Alaíde Costa, Leny Andrade, Áurea Martins, Dna. Ivone Lara,
Rosa Passos e inúmeras outras. A partir de fins dos anos de 1980 e da década de 1990
passando a preponderar os subgêneros de cunho comercial alguns intérpretes se alçando
também em carreira solo. Nesse caso um estudo à parte também poderia ser feito, abordando a
questão de vocalidade negra e afro-brasileira no cenário popular urbano nos circuitos e
(sub)gêneros de música prioritariamente comercial, com destaque, por exemplo, para as
vocalidades dos grupos de axé music e do pagode urbano romântico já nos anos de 1990.
64

2.4 O álbum Luz

Esse disco foi uma grande alegria, gravei com grandes músicos, ainda com a
Sururu de Capote também, e outros músicos americanos [...]. Um disco que
tem músicas que ficaram na história e que marcou a minha entrada definitiva
no mercado de vendedores de disco, foi um marco mercadológico e
musicalmente é um belo trabalho.65 (DJAVAN in: Caixa Djavan: „Luz 1982‟
[0:14 a 0:49], 2012)

Gravado e lançado no ano de 1982, o long play “Luz” (CBS, 1982) apresenta-se como
um álbum de carreira paradigmático ao cantor e compositor Djavan Caetano Viana. Sendo
então o quinto álbum de carreira/estúdio de Djavan, o disco foi gravado em Los Angeles (LA)
no ano de 1982 numa produção internacional da CBS. O período de gravação foi de cerca de
um mês (19 de julho de a 20 de agosto) e as locações constam no estúdio Yamaha da cidade
de LA nos EUA66.
O estudioso de música pop Roy Shuker enumera “três tipos de álbum: conceitual, de
tributo, e em benefício de uma causa [...]. Os álbuns conceituais [...] tem um princípio
unificador, uma temática a ser desenvolvida, que pode ser instrumental ou vocal, compositiva,
narrativa ou lírica” (SHUKER apud VALENTE, p.79, grifo meu).
No período imediatamente anterior ao álbum havia certa hierarquia de mercado
fonográfico baseada em dois suportes: o LP e o compacto67, e outra dimensão do mercado de
difusão musical na qual rádio e TV equilibravam-se enquanto principais meios. Esse último
meio, cada vez mais, tomava vulto capilarizando-se por todo o território nacional, e criando
certa “unidade de difusão” (ORTIZ, 2006) que é observável sobretudo a partir dos 1970, por
exemplo com as primeiras telenovelas chegando a todo território nacional.
Mais do que a TV pode-se dizer que a chamada cultura vídeo-musical dos anos 1980
(LIPOVETSKY & SERROY, 2009) é que traria novos elementos para as performances
musicais. A TV guardou caracteres de documentação sobre as performances musicais, como
foi o caso dos festivais que estenderam-se até fins do 1970, e de algumas transmissões de
shows. Ou seja, ainda havia certo predomínio documental nas transmissões musicais
televisivas. Já a cultura vídeo-musical contaria até mesmo com um canal exclusivo dedicado

65
Disponível em: <http://www.djavan.com.br/site/noticias/disco-disco-caixa-djavan-lbum-luz-1982> disponível
em <https://www.youtube.com/watch?list=PL-
jLSD1zyBYt5IFnSkFedUuW27L1sZlaj&time_continue=70&v=_ZS4PjIQlHo> acesso em 25/01/2017
66
Fonte: <http://www.allmusic.com/album/luz-mw0000700039>
67
Os suportes citados representavam o interesse na vendagem de artistas/movimentos através dos long plays, em
oposição à vendagem/lançamento de músicas isoladas em compactos. Esses, por sua vez, nas transições das
décadas de 1970 e 1980 eram os principais suportes para lançamento das canções internacionais aliados ao rádio
e televisão.
65

aos vídeo- clipes e com o star system alçando logo no início dos 1980 os pop stars icônicos
como Madonna e Michael Jackson já inseridos num âmbito da cultura visual, dos mega-shows
e da hiper mediação.
Contudo, não se trata mais de analisar pura e simplesmente as mudanças de suportes
ou das hierarquias dos meios de difusão musical. A Sony, mesma empresa que englobaria a
CBS que produziu o álbum Luz analisado, lança em fins da década de 1970 o walkman. Ali
por exemplo certa individualização da audição e maior liberdade sobre os suportes (fitas K768)
também aponta para outras formas de recepção que aproximam-se então do padrão
contemporâneo fragmentado. O walkman lançado pela Sony em 1979 (os vídeo-cassetes
também datam de fins dos 1970 porém com menor popularidade inicial se comparado aos
aparelhos de áudio individuais) difundiu-se em larga escala, trazendo para a recepção uma
maior mobilidade individual, fator até então mais exclusivo aos detentores de automóveis,
agregando também a possibilidade de individualização de espaços sonoros e de
reinterpretação desses. Esse é um caráter de popularização das audiências que torna-se
perceptível no Brasil sobretudo nos anos de 1990.
Somado a isso, pode se observar os representantes da indústria cultural, aqui no caso a
Sony Music Entertainment, ganhando status de mega corporações de entretenimento
transnacionais e não em atuação restrita como gravadoras. Keith Negus chama esse fator de
sinergia midiática, colabondo também com a procura de novos mercados e expansão
geográfica das atividades.

as empresas estão se consolidando e se embasando sobre essas tendências com


estratégias relacionadas de expansão geográfica - em busca de mercados fora de suas
bases nacionais do atlântico norte e europeias; e buscando novas fusões, aquisições e
empreendimentos nos domínios da comunicação e entretenimento em resposta a
oportunidades crescentes de "sinergia da mídia" 69 (NEGUS, 1992, p.3-4).

Assim, passaram a manter elencos artísticos ao mesmo tempo em que faziam algum
lançamento de produto eletrônico (Ex: walkman, video-cassete, CD‟s, etc.) e também
ampliavam seu espectro midiático de atuação também ao campo do áudio-visual. Sinergia
midiática70 e apropriação de espaços eletrônicos abstratos são duas diretrizes correntes

68
As fitas cassete de áudio ou audiocassetes teriam seu lançamento oficial no ano de 1963 pela PHILLIPS
69
(...) companies have been consolidating an building on these trends trought the related strategies of
geografical expansion - in search of markets outside of their North atlantic and European national bases; and by
pursuing ever more mergers, acquisitions and joint ventures within the fields of communication and
entertainment in response to increasing opportunities for "media synergy".
70
“Sinergia se refere a uma estratégia de diversificar dentro de tecnologias e áreas de entretenimento
relacionadas e usar as oportunidades que isso provém para extender a exposição de peças específicas de música e
artistas (...) diversificando em campos relacionados (...)” (NEGUS, 1992, p. 5)
66

daquele período amplamente consolidadas no cenário contemporâneo. Vejamos o que aponta


Keith Negus:

A dominação do mercado de música popular gravada por um pequeno número de


grandes corporações não é fenômeno recente, nem é a forma pela qual essas
companhias tem desenvolvido interesse numa faixa relacionadas de indústrias e
tecnologias de entretenimento. [...] há uma mudança de atividades de negócios
organizada em torno de companhias nacionais multi-divisionais para uma forma
dominada por corporações transnacionais operando através de fronteiras nacionais.
Nessa configuração, as companhias de gravação líderes atingiram suas metas desde
o início do século XX estabelecendo fábricas locais e redes de trabalho subsidiárias
em diversos países pelo mundo71 (HYMER, 1979; GRONOW, 1983 apud NEGUS
1992, p. 2-3, tradução minha).

Além dos fatores já apontados por Simon Frith de transição para a década de 1980, na
contextualização temporal e social do trabalho, coincidem também outras observações que
veem no “início dos anos 80, um período de intensificação dos fluxos globalizantes.”
(APPERT, 2016, p.279)
Voltando a observar o início de carreira de Djavan e já na década de 1980 o álbum
“Luz” (1982), é esse o álbum que permite um reconhecimento artístico mais central do cantor
e compositor brasileiro. Com os quatro primeiros LP‟s (1976; 1978; 1980; 1981) o cantautor
tinha acumulado bons sucessos ainda em músicas pontuais dispersas apresentadas em
festivais, compactos, trilhas de novelas (intérprete), gravações de outras(os) intérpretes e etc.
Assim ocorreu, por exemplo, com canções como: “Fato Consumado” (segundo lugar no
Festival Abertura de 1975 da Rede Globo72); “Flor de Liz” (relançada em compacto), “Alegre
Menina”73 (trilha de Gabriela música de Dori Caymmi sobre letra de Jorge Amado), “Meu
bem querer”, “Faltando um pedaço” e “Álibi”, as três últimas sucessos na voz de outras
intérpretes (Nana Caymmi, Gal Costa e Maria Betânia respectivamente).
O cantautor já havia gravado quatro long plays antes do LP “Luz” de 1982, angariando

71
The dominance of recorded popular music by a small number of large corporations is not a recent
phenomenon, nor is the way in wich these companies have developed interests in a range of related
entertainment industries and technologies. During its formative years its the recording industry developed within
a world economy which was shifting from business activity organised around multi-divisional national
companies, to one dominated by transnacional corporations operating across national boundaries (Hymer,
1979). In this setting the leading record companies set their golas from the very beginning and in the early years
of twentieh century established local factories and network of sbsidiaries in a large number of countries around
the world (GRONOW, 1983).
72
“O então crooner de boate Djavan, foi o segundo classificado com a música Fato Consumado, o jeito
sincopado de fazer samba e a voz trabalhada, exata estavam ali, mas não seria dessa vez que Djavan ia se
encontrar com o sucesso [...]” (s/ autor, TV Mofo 1995, 1:34 a 2:08/4:59) disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=1dBnB-gkQAA> acesso em 27 de maio de 2017.
73
“Em 1973 [...] a Som Livre me absorveu para cantar músicas de outros” (DJAVAN, in Programa Ensaio,
1999)
67

boa experiência de estúdio, de produção e conceitual. Resultados musicais e extra-musicais


são mais visíveis a partir daquele LP que é centro das análises desse trabalho. Contudo para
fins didáticos abordo primeiramente forças anteriores e concomitantes à gravação do álbum,
dentre essas:

● Associação de Críticos de arte de São Paulo elege Djavan como o melhor intérprete
dos anos de 1981 e 1982;
● a canção “Flor de Lis”, primeiro sucesso nacional do cantautor, se torna sua primeira
música gravada e executada internacionalmente no mesmo ano de 1982, pela cantora
de jazz Carmen McRae, com o título de "Upside Down74”
● o cantautor é escolhido para uma produção internacional pela gravadora CBS (futura
Sony Music), revelando características que seriam percebidas futuramente no mercado
da world music;
● Djavan agrega ainda no álbum anterior, a banda Sururu de Capote. Banda que segundo
os músicos tinha forte relação conceitual com a obra do artista75 e fazia paralelismos
com a ideia de titulação das bandas de outros artistas já consagrados da MPB;
● Djavan participa do Projeto Pixinguinha edição 1981 com Filó e Fátima Guedes76.

Além desses tópicos acima, incluo um relato de Djavan acerca de sua visita à Angola
na África, no ano de 1980:

Essa viagem foi muito marcante na minha vida por que ali eu consegui me
aproximar exatamente da minha origem musical, eu achei que ali estava a densidade
do folclore alagoano por exemplo, o folclore pernambucano, que é a minha origem.
A minha música descende muito disso, que eu morei inclusive uma parte da minha
vida em Pernambuco, em Recife. [...] o folclore nordestino ele tem uma africanidade
bastante acentuada, e a africanidade em mim ela decorre disso e eu fui encontrá-la
também ali em Angola. Eu vi que ali era o início de tudo, a coisa da divisão rítmica
e a complexidade que eles tem lá que é incrível, eu pude observar bastante nessa
viagem. E eu fiz quando voltei ao Brasil um disco chamado Seduzir que tinha
duas canções que eu trouxe de lá. Uma delas é a “Nvula” que é um folclore que a
gente fez uma adaptação e chamei até o Gil pra cantar comigo, e a outra é
“Umbiumbi” que é uma canção do Filipe Mukenga [...] adquirimos uma cultura
incrível, tudo que acontecia no folclore deles na música deles [...] (DJAVAN in:
Programa Ensaio, 1999, [19‟18” a 20‟41‟ de total 50‟31”]

74
Fonte: <http://recordarfazbem.blogspot.com.br/> domingo, 14 de julho de 2013 in: DJAVAN-Biografia e
Discografia acesso em: 27 de março de 2017.
75
Além disso, os principais intérpretes e compositores da MPB tinham sempre uma banda com nome próprio:
Jorge Ben e “A Banda do Zé Pretinho”; Tim Maia a “Vitória Régia”; Caetano Veloso a “A outra banda da
Terra”; e Gilberto Gil agregaria, em 1982, a “Banda UM”.
76
Fonte: <https://comendadoralbuquerque.wordpress.com/tag/djavan/>
68

Seduzir (DJAVAN, EMI-Odeon, 1981) é um álbum importante de ser abordado na


perspectiva que tem sido traçada no trabalho. Ali, Djavan agregara definitivamente uma
banda mais coesa e de caráter particular ao seu trabalho, além de um repertório cancional
qualificável e passível de observação. Demonstra-se uma rápida transição de produção do
lançamento de Seduzir em maio de 1981 ao álbum Luz lançado em agosto de 1982. Álbum de
baixa vendagem se comparado às quinhentas mil cópias registradas em venda para Luz,
Seduzir chegou na ocasião a cerca de trinta mil cópias vendidas. Em Seduzir Djavan gravou
quatro sambas “Pedro Brasil”, “Jogral”, “Êxtase” e “Total abandono”, três canções de cunho
passional/romântico: “A ilha”, “Morena de endoidecer” e “Faltando um pedaço” e outras duas
de cunho mais rítmico/temático, sendo duas dessas as canções da citação acima “Nvula” e
“Humbiumbi” comprimidas em uma faixa e “Luanda” que leva o título da capital angolana.
Uma última canção desse disco, “Seduzir”, enfim, reitera o modelo canção que dá título ao
álbum, o que ele fizera no álbum anterior Alumbramento (1980), nesse, o Seduzir de 1981, e
faria nos subsequentes Luz (1982), Lilás (1984) e Meu Lado (1986) criando uma linha interna
com esse modelo “álbum com canção título” em sua obra. Seduzir é um álbum caracterizável
na MPB de transição das décadas 1970 e 1980, porém sem uma amarra industrial mais clara
numa perspectiva de incisão mercadológica tal qual aconteceria a partir do próximo álbum
Luz, esse último num cenário descrito como de crise77 (DIAS, 2000, p.81), multiplicaria a
vendagem de LP‟s de Djavan de um ano para outro (1981 a 1982) em cerca de dezessete
vezes o seu número absoluto, sem contar a ampliação de difusão em rádio para todas as faixas
do LP e as consequentes regravações e reinterpretações informais. Para a EMI-Odeon, Seduzir
seria o álbum derradeiro do artista em seu elenco, porém a gravadora passaria a contar com o
leque de canções consideradas mais “raízes” da obra de Djavan: os sambas ao mesmo tempo
mais tocados e mais antigos; o caráter de artista ainda não consagrado e sem o definitivo
carimbo pop; marcos de uma juventude vocal e do ineditismo identitário do seu canto; e
canções com características mais artesanais e mesmo díspares entre si em função de um
padrão de mixagem menos homogêneo. Não à toa a gravadora antiga reeditou diversas
coletâneas dos primeiros álbuns pegando o gancho no sucesso alcançado pelo artista a partir

77
“(...) na década de 80, os números do mercado fonográfico retratam a inconstância e a incerteza da vida
econômica nacional. Desde 1979, quando o país chegou a ocupar a quinta posição no mercado mundial, os
números passam a ser decrescentes, até 1986, quando se recupera, mesmo que de maneira inconstante. Antes
disso, uma tênue reação é percebida em 1982 (...)” (DIAS, 2000, p.81). Cabe çembrar que o cenário de crise de
então não seria tão decisivo em uma produção internacional, “os discos de produção mais sofisticada estão
custando às gravadoras em torno de Cr$ l0 milhões, podendo chegar a Cr$ 50 milhões, como no caso do último
disco de Djavan, mixado em Los Angeles'' (DIAS, 2000, p. 89).
69

de 1982 até a contemporaneidade.


O cantor e compositor assina todas as composições do LP Luz de 1982, assumindo
letras e músicas do disco, fato que só é observado documentalmente em seu álbum de
lançamento, potencializando certa unicidade a esses produtos. Esse álbum, já citado, A voz, o
violão, a música de Djavan (DJAVAN, Som Livre, 1976), seria o primeiro “álbum de
carreira” e/ou “de estúdio” do cantautor alagoano. Assim o álbum Luz, que também conta
com todas as letras e músicas assinadas por Djavan, caracterizado assim como um álbum
clássico de dicção autoral e cantautoria, retoma de certa forma uma ideia de “lançamento”
apresentada em seu primeiro álbum, também com esse cunho totalmente autoral em letra e
música. Luz vislumbra e insere-se numa esfera de produção internacional e é construído após
cerca de sete anos de experiência artística e midiática do cantautor.
Percebe-se em Luz uma estrutura de produção musical, divulgação e difusão muito
mais preponderantes sobre os possíveis resultados finais do trabalho musical gravado. O
artista passava a se relacionar mais apuradamente com a indústria cultural, sendo ao mesmo
tempo produto e produtor, buscando certas questões de autonomia artística no produto final,
ao mesmo tempo em que agregou elementos da música pop internacional.
Outro fato que ocorre com o disco é que, a partir de então Djavan passou a possuir um
repertório de sucessos capaz de sustentar mais massivamente um show completo e suas
condições de performance ao vivo. Claro que como visto, o cantor e compositor já tinha
canções mais difundidas, porém que chegaram à recepção com um cunho pontual: no interior
de LP‟s, em participações em trilhas de novela (Trilha sonora da telenovela Gabriela) ou em
compactos, e mesmo ainda como compositor na voz de outras(os) intérpretes78. Dizendo de
outra forma, a partir de Luz ele poderia apresentar performances não totalmente baseadas no
álbum de carreira em que estivesse trabalhando, amalgamando pelo menos um outro show
e/ou álbum com as primeiras canções mais consagradas junto ao público que somavam-se às
difundidas por Luz. (Primeiras: “Flor de Liz”, “Fato Consumado”, “Faltando um pedaço”,
“Meu bem querer”, “Álibi” e “Seduzir”). O fato lhe possibilitaria por exemplo, a partir de
então, lançar um disco padrão coletâneas, o que acabou acontecendo por parte da sua antiga
gravadora e detentora dos direitos dos primeiros LP‟s ao relançar constantemente coletâneas.
No site oficial do artista, Hugo Suckman aponta, mesmo que com visão jornalística de
ampliado viés mercadológico, algumas características do álbum:

78 “
Álibi” foi sucesso na voz de Maria Bethânia, também dando título ao álbum da cantora (que foi o primeiro
álbum de uma intérprete feminina na história da Música Brasileira cuja venda ultrapassou 1 milhão de cópias).
“Meu Bem querer” e “Dupla Traição” foram gravadas por Nana Caymmi.
70

Por conta de sua musicalidade brasileira típica de exportação Djavan recebeu, em


1982, o convite da gravadora CBS (futura Sony Music) para, não só, ser lançado nos
Estados Unidos, como também gravar nos míticos estúdios americanos. Em solo
estrangeiro, trabalhou sob a produção de Ronnie Foster, até então um dos principais
produtores da soul music americana e, ao lado de renomados músicos lá
consagrados, além de sua inseparável banda Sururu de Capote, gravou mais um
álbum brilhante. Músicos brasileiros radicados nos Estados Unidos como o
trombonista Raul de Souza, o maestro Oscar Castro Neves e o grande Moacir
Santos, autor do arranjo de “Capim”, fizeram questão de participar do disco. Nessa
passagem pelos Estados Unidos, Djavan não conquistou apenas o público norte-
americano. Elogios oriundos de nomes como o do produtor Quincy Jones, são um
reflexo do prestígio que o artista adquiriu logo no início de sua carreira
internacional79. (SUCKMAN, Hugo. Sítio online de Djavan, Ed. Luanda Records,
2010)

A longa citação se justifica por ser hoje o principal meio de acesso resumido daquela
obra a estar documentado em sítio online oficial do cantor80, além de colaborar com algumas
das colocações já feitas anteriormente.
O formato LP ao ser observado também é generoso sob a perspectiva documental e
iconográfica, atualmente relegados a um terceiro plano (ou com vinculação imagética
obrigatória), tanto pelos formatos de Compact Disc, quanto pelos formatos online e sem
suporte atuais (sítio Youtube, formatos mp3 facilmente disponíveis para download, e
recentemente em aplicativos diversos de hospedagem). Lembro que Luz lançado
primeiramente em LP e simultaneamente em K7, foi remasterizado e lançado em CD e hoje
encontra-se em formato MP3 disponível extra-oficialmente para download em sítios diversos
da internet.
Em relação à iconografia cabe ressaltar que a partir de Luz passa a constar nos LP‟s
de Djavan um selo no interior do selo informativo dos vinis. Trata-se de sua imagem de perfil
tratada graficamente e personificada nos LP‟s. O último álbum antes de Luz possui o padrão
da gravadora, enquanto Luz apresenta pela primeira vez e em bom contraste o selo, que se
tomado pelo número de vendas de LP‟s em torno de 500 mil cópias como aponta Marcia
Tosta Dias, chegou então a cerca de um milhão de selos produzidos. Reproduzo na figura
abaixo:

79
Disponível em: <http://www.djavan.com.br/site/cds/luz>
80
Fonte: <http://www.djavan.com.br>
71

Figura 1: selo interno lado B LP Luz (DJAVAN, Sony [CBS], 1982) (Foto arquivo pessoal HAUERS,
F.M.)
, replicado em outros matizes na sequência dos próximos álbuns:

Figura 2: selo interno LP Lilás (DJAVAN, selo “Lilás”, Sony [CBS],1983) (Foto: arquivo pessoal
HAUERS, F.M.)

Figura 3: selo interno LP Meu Lado (DJAVAN, selo Meu lado, Sony [CBS], 1986) (Foto: arquivo
pessoal HAUERS, F.M.)
72

O selo-marca passou aos CD‟s e ilustra a última caixa de CD‟s com relançamento de
todos os álbuns em 2012, que inicialmente chamou-se Raridades e com problemas técnicos na
primeira edição teve a segunda edição então chamada Djavan: obra completa de 1976 a 2010
pela Sony Music em 2014 :

Figura 4: Contra-capa caixa de CD‟s Raridades (DJAVAN, Caixa CD‟s Raridades, Sony, 2012). Fonte:
da foto sítio: <http://www.blognotasmusicais.com.br/2015/01/sony-music-troca-coletanea-raridades-de.html>
Todos os direitos reservados à Sony Music.

E por fim na contemporaneidade consta como selo, rótulo e/ou marca81 no cabeçalho
de seu sítio oficial atual em <http://www.djavan.com.br/site/> :

Figura 5: Foto por Felipe Hauers

81
Evito o uso da palavra símbolo, com preferência por selo e marca, pela própria confusão que essa geraria em
relação às três descrições da tricotomia da semiótica peirceana direcionada à relação signo-objeto (ícones,
índices e símbolos).
73

Tomando a percepção de sistematização do produto sonoro em seu padrão gravado e


mesmo em observação ao suporte dos discos de vinil na época, faço algumas considerações O
selo em questão operaria como um ícone dentro da tricotomia semiótica, numa característica
que seria cada vez mais reforçado em relação ao artista através dos seus próximos trabalhos.
“A primeira maneira como as pessoas fazem uma associação entre um signo e o que ele
representa (seu objeto) é através da semelhança, o que Peirce82 chama de ícones ou símbolos
icônicos”83 (TURINO, 2008, p. 6). São três, basicamente, os tipos de ícones sugeridos por
Peirce: uma imagem, um diagrama e a metáfora. “Numa imagem a relação signo-objeto é
baseada em qualidades simples compartilhadas84” (TURINO, 1999, p.227). Em relação a esse
álbum em análise cabe uma observação ainda mais ampla, pois aponta-se que cada vez mais
as pessoas passaram a tomar os produtos gravados (a representação sonora) como a música
em si, no já falado “achatamento da relação semiótica”. Dessa forma, cabe observar que esse
trabalho de personalização do produto sonoro também contribuiria com essa última
perspectiva, não sendo algo meramente casual numa indústria cultural e musical bastante
sistematizada. Essa sistematização surge de forma muito mais clara e incisiva em sua plaga
internacionalizada, e Luz é moldado e difundido a partir desse sistema. Atuam diferentes
“linhas de produção” especializadas que trabalhariam em prol do alavancamento de discos
(difusão, comercialização) e no refinamento identitário do produto sonoro (produção visual,
musical, sistematizações em geral, vinculações a outros artistas, etc.).
Aponta-se que ícones e índices são os signos com maior incidência na música pela
possibilidade de relação mais direta e emocional. Ou seja, nesse caso o trabalho de
personalização do produto sonoro diz respeito a buscar um maior grau de sensibilidade e
identificação sobre o próprio produto mediado até a última camada de mediação anterior à sua
reprodução sonora, nesse caso o selo do suporte de vinil do LP.
Cabe mencionar ainda os símbolos, já que a produção sonora como um todo ganha em
possibilidades de observação através da semiótica. Se observado com calma o termo Djavan
como inserido no selo e na capa do álbum apresenta forte proeminência da segunda letra, o
“J”. Assim passa a ocorrer uma sigla interna ao nome do cantor, e que em sua forma escrita
resultaria em um padrão escrito similar a Djavan. Isso pode ser observado nas imagens
abaixo:

82
Lembro mais uma vez que Thomas Turino faz uso prioritário da semiótica peirceana, ou seja a linha
desenvolvida pelo teórico Charles Sander Peirce
83
The first that people make the connection between a sign and what it stands for is through resemblance, what
Peirce called icons or iconic signs. (TURINO, 2008, p.6)
84
In an image, the sign-object relation is based on simple quality shared (TURINO, 1999, p.227).
74

Figura 6: Detalhe título capa álbum LUZ Figura 7: Detalhe título selo álbum LUZ

A ferramenta semiótica possibilita várias interpretações desse símbolo, das quais


destaco ao menos duas: a inserção do anagrama DJ no nome de Djavan, e/ou a tentativa de
estabelecimento de uma segunda letra “forte” em relação ao nome artístico dado que Djavan é
um termo único. Nesse último caso, é relativamente comum, sobretudo na indústria cultural
norte americana mas também na nacional, o reforço das iniciais de nomes artísticos
compostos como: MJ para Michael Jackson, GM para George Michael, SW para Stevie
Wonder, SG para Stan Getz, JG para João Gilberto dentre tantos outros.
Além disso, o símbolo agrega os nomes de autor e álbum em sua simbologia mais
geral: Djavan Luz. Assim como ocorre na personificação do produto gravado através do ícone
descrito (imagem de perfil do cantautor), mais uma vez misturam-se e, de alguma forma,
fundem-se os termos citados na interpretação desses símbolos gráficos proeminentes
constituindo uma espécie de carimbo para esse álbum. O fator é claramente trabalhado de
forma mais específica para o álbum Luz, não sendo observado documentalmente nem
anteriormente nem posteriormente nos outros álbuns.
Assim, reduções da percepção do álbum/produto gravado como representação da
música para ser tomado em si como o som musical, não seriam fatorores meramente
aleatórios ou resultados contemporâneos exclusivos de uma hipermediação tecnológica, mas
sim também fatores construídos por essas diversas camadas de mediação que passam a
vincular artista-álbum e suporte-artista. Esse encaminhamento de triangulação de significados
foi sendo fortalecido pelas camadas de mediação, que passaram a ter a possibilidade de atuar
de forma cada vez mais preponderante e sintética sobre o produto sonoro até mesmo
constituindo identidades musicais vinculadas a padrões visuais diversos.
75

Luz traz em seu formato LP: capa, encarte com ensaio fotográfico, folha de letras/ficha
técnica e o vinil (suporte físico). Capa e vinil então trazendo algumas possibilidades de
aproximação identitária entre os objetos e o artista. O encarte por sua vez traz um grande
número de pequenas fotografias de situações de estúdio em contraste com uma foto maior de
Djavan cumprimentando Stevie Wonder. As pequenas fotos ganham um caráter de leitura
fotográfica, mesclando situações de execução dos músicos e cenas informais daquela
temporada de gravação em Los Angeles.

2.4.1 Os músicos e o álbum Luz

Faço algumas observações à parte pelas importantes atuações de músicos brasileiros e


norte americanos, observo que algumas características já fazem parte da análise musical do
álbum.

os músicos [norte] americanos sempre tiveram [...] um certo interesse pelo meu
trabalho, pela minha música. O Quincy Jones me falou uma vez o seguinte, a música
brasileira é uma das músicas mais interessantes do mundo porque ela tem uma
construção muito rica. Por tradição a música brasileira usa muita harmonia [...] ele
[Quincy Jones] fala que a maioria das pessoas que gostam da música brasileira, os
músicos sobretudo observam isso: a riqueza da harmonia, a riqueza da melodia e a
rítmica, a gente tem uma intimidade com a rítmica muito grande, porque talvez o
Brasil seja o país mais africano, musicalmente, que existe no mundo, logicamente
fora da África [...] (DJAVAN in Programa Ensaio, 1999 [24:30 a 26:12 de
50:31(total)]

O produtor musical foi Ronnie Foster, sendo observado como alguém que “topou
misturar o time”, isso segundo o baterista Téo Lima da “Sururu de Capote” agregando assim a
banda Sururu de Capote e ainda alguns músicos brasileiros radicados nos EUA ao time de
músicos da soul music que atuaram no álbum. Assim, haveria uma outra banda de
base/estúdio formada por Ronnie Foster (teclados), Harvey Mason (bateria) e Abraham
Laboriel (baixo) contrastando com a Sururu de Capote que foi formada na base por: Sizão
(baixo), Téo Lima (bateria), Luis Avellar (piano), muito embora conte ainda com os músicos
Café, Zé Nogueira, Marquinhos e Moisés como se descreve na ficha técnica do álbum
anterior, Seduzir de 1981 (DJAVAN, 1981). Esses últimos músicos também participaram de
Luz porém faço as primeiras considerações a respeito da banda base/estúdio, tão marcante
para o conceito do álbum e revelando primariamente algumas das diferenças e semelhanças
entre os álbuns Seduzir de 1981 e Luz de 1982.
Dois dos músicos da cena da soul music norte americana ganham muita importância
76

pela atuação na banda de base/estúdio. Ronnie Foster que além de tecladista também produziu
o disco e Abraham Laboriel que atua como contrabaixista na ampla maioria das faixas do
disco. A tríade da banda base A, se fecha com o baterista considerado “legendário”, Harvey
Mason85. Atualmente o baixista mexicano radicado nos EUA, Abraham Laboriel é endorsee86
da Yamaha, sítio de onde colhi algumas informações87

uma carreira de estúdio de imenso sucesso e diversidade, tocando e gravando com


expoentes do jazz e fusion como George Benson, Ella Fitzgerald, Herbie Hancock e
Joe Pass, e, no campo do pop e rock, com nomes de ponta, como Aretha Franklin,
Dr John, Robbie Robertson, Michael Jackson e inúmeros outros. Entre os créditos de
diversas trilhas sonoras para cinema, estão The Color Purple, Nine to Five e Terms
of Endearment (s/ autor, 2012, grifos meus).

Alguns elementos de destaque nesse curto trecho biográfico: diversidade; fusion,


caracteres de identidade comum dos artistas estabelecendo eixos cosmopolitanos
(instrumentistas/maestros latinos radicados nos EUA na década de 1970) como Abraham
Laboriel, Raul de Souza e Moacir Santos; e presença do termo “carreira de estúdio”
colaborando com as afirmações acerca da ascenção e autonomia do campo da alta-fidelidade,
e também já com os créditos à produção áudio-visual passando a figurar em biografias.
Harvey Mason possui sítio online próprio e também é endorsee de outra empresa de
instrumentos de percussão. Nota-se que há entre os músicos norte-americanos essa invariável
vinculação às marcas de instrumentos e equipamentos. Nesse caso, inclusive ocorre
inversamente o lançamento de instrumentos tomando o nome do músico como uma linha ou
versão dos instrumentos. Como exemplo nesse álbum, atua pontualmente o guitarrista Paul
Jackson Jr. que teve então uma versão da clássica guitarra Gibson Les Paul dedicada à ele,
conhecida popularmente como Les Paul Jackson88.
Ronnie Foster, por sua vez, atuou como produtor e músico das teclas eletrônicas do
álbum Luz. Descrito como um “organista de funk e soul-jazz e produtor de discos. Seus álbuns
gravados pela Blue Note Records nos anos de 1970 ganharam um culto de seguidores depois

85
<http://www.harveymason.net/>
86
A tradução literal é endossado, porém é um adjetivo de uso mais restrito no português brasileiro e ligado a
termos como fiador e avalista. Cabem para o caso da música, os sinônimos: apoiador, representante e/ou
patrocinado. O artigo de Cesar Conti da Revista Backstage esclarece bem isso, além das variações do termo e
das distorções dessa relação dos músicos com fábricas de instrumentos e equipamentos no Brasil, disponível em:
<http://www.backstage.com.br/newsite/ed_ant/materias/178/Endorsement,%20Endorser%20e%20Endorsee.htm
>
87
Fonte: < http://br.yamaha.com/pt/artists/guitars_basses/abraham_laboriel/ >
88
Gibson ES-347 Paul Jackson Jr. Signature.
77

de emergência do acid-jazz”89. Trazendo inúmeros elementos do cenário da música norte-


americana dos anos de 1970, Ronnie Foster dá muita impressão pessoal ao álbum tanto por
sua sonoridade como instrumentista quanto pela importante função de produtor musical sendo
mais um mediador da identidade do long play:

O produtor musical constitui a figura criativa central [...] Esse artista constitui o
centro de definição dos estilos, planejamento e concepção dos fonogramas para
localizá-los num conjunto que é uma obra de arte e se torna um produto cultural.
Entre essas decisões estão; que intérpretes utilizar, como organizar os temas, qual
será a faixa bônus [...] entre muitas outras decisões que constituem a mistura no
produto final.90 (ASIN, 2013, p 77-8)

Percebe-se em observação que ocorreu uma opção pela Sururu de Capote como banda
de base/estúdio sobretudo, e somente, nos sambas híbridos: “Capim” e “Minha irmã”. O fator
é considerável na linguagem rítmica necessária à execução do gênero samba, mesmo que aqui
já contando com elementos de hibridação. Isso consta nas fichas técnicas de ambas as canções
da seguinte forma: “Djavan e Banda Sururu de Capote (banda B91): arranjo base/Rhythm
section arrangement”92 (DJAVAN, Luz, 1982). Duas canções não contam com nenhuma das
bandas de base (as lentas de roupagem orquestral “Nobreza” e “Banho de rio”), e as outras
seis faixas contam preponderantemente com a banda de base norte-americana (banda A):
“Samurai”, “Açaí”, “Pétala”, “Esfinge”, “Luz‟ e “Sina”. Nesse ponto cabe salientar que seria
forçoso indicar certo hibridismo no manejo dos músicos, pois prepondera a banda de base
norte-americana com atuações das banda brasileira nos sambas e em outras situações com
músicos brasileiros mais pontuais nas gravações.
Outros solistas atuam também pontualmente: Stevie Wonder (solo harmônica em
“Samurai”), Hubert Laws (solo flauta em Luz), Ronnie Foster (solo mini-moog em Minha
irmã), Ernie Watts (solo sax tenor em Pétala) e Zé Nogueira (solo sax soprano em Açaí).
Destaco que harmonicamente, ainda em termos de banda base (e não na perspectiva
dos arranjos), optou-se pelo contraste acústico do violão ovation de Djavan com o de
89
“funk and soul-jazz organist, and record producer. His albums recorded for Blue Note Records in the 1970‟s
have gained a cult following after the emergence of acid-jazz.” (ERLEWINE, Stephen Thomas, s/ data) Fonte:
<http://www.allmusic.com/artist/ronnie-foster-mn0000332536/biography>
90
El productor musical constituye la figura creativa central [...] Este artista constituye el centro de definición
de los estilos, ordenamiento y resto del diseño de los fonogramas a ubicar en un empaque que es una obra de
arte y se convierte en producto cultural. Entre estas decisiones se encuentra; que interpretes utilizar, como
organizar los temas, que canciona será el bonus track [...] entre otras muchas decisiones que componen la
mezcla de producto final (ASIN, 2013, p. 77-78).
91
Chamarei a banda Sururu de Capote de banda B, e a banda de estúdio norte americana de banda A, sem
nenhuma indicação hierárquica desses termos, mas sim uma vinculação próxima aos norte americana termos e
brasileira (A e B), que facilite a exploração dos dados em tabelas e indicações.
92
Fonte: <http://www.djavan.com.br/site/cds/luz>
78

teclas/teclados eletrônicas(os) de Ronnie Foster e teclas acústicas distribuídas entre os


pianistas brasileiros Jorge Dalto e Luis Avellar. Contudo, percebe-se que houve uma soma de
timbres no uso de teclas eletrônicas e acústicas. Atuam conjuntamente na maioria das faixas, e
pontualmente ora optando pela sonoridade eletrônica e ora pela sonoridade pianística. O
caráter eletro-acústico nessa ambiência dos instrumentos de teclas revela sem dúvida um grau
de hibridação considerável, que teve um uso variável em função das distintas características
cancionais, e que perpassa a maioria das canções do álbum Luz.

Guitarras e teclados tiveram um papel fundamental na composição musical do


século XX, particularmente durante a era pop desde a Segunda Guerra Mundial.
Entre meados de 1950 e fins de 1970 a guitarra elétrica foi um símbolo fetichizado
da era rock. Desde o início dos anos 1980 teclados eletrônicos se tornaram centrais
para as faixas da pop e dance music promovendo um imaginário diferente e
mudando as convenções de composição e performance. Vale ressaltar a emergência
de instrumentos de teclado e, em particular do piano, como um exemplo de como as
tecnologias instrumentais mudaram a experiência da música e moldaram os
contextos sociais e culturais de composição e performance. Isso também fornece
uma perspectiva sobre a relação entre música e tecnologia de maneira mais ampla do
que o foco recente em tecnologias eletrônicas e sintetizadores [...]93 (NEGUS, 1992,
p.29, tradução minha, grifo meu).

Complementando a citação observa-se por exemplo que somente uma faixa –


“Esfinge” - conta com uso da guitarra elétrica, de forma que o timbre de cordas elétricas e
seus possíveis desdobramentos sonoros que se desenvolveriam a partir daí, foram preteridos
pelas possibilidades dadas às teclas eletrônicas naquele contexto de concepção do álbum. A
faixa “Esfinge” tem uma guitarra usada de forma pontual em todo o disco. Sendo essa
gravada pelo já citado Paul Jackson Jr. conhecido pelo conceito de rhythm guitar94 e que
peculiariza em uma faixa seu timbre da guitarra funk/soul no todo do álbum. Evita-se uma
concepção mais ampla desse formato mais típico da soul music seja a norte-americana ou
mesmo a sua versão brasileira no álbum. A preocupação e preferência pela proeminência de

93
Guitars and keyboards instruments have played a central role in the composition of twentieth century music,
particularly during the pop era since the Second World War. Between the mid 1950‟s and the late 1970‟s the
eletric guitar was the fetishized symbol of the rock era. Since the early 1980‟s eletronic keyboards have been
central to a range of dance and pop music, providing a different imagery and changing the conventions of
composition and performance.
It is worth dwelling on the emergence of keyboard instruments, and in particular the piano, as just one example
of the way in wich instrument technologies have changed the experience of music and shaped the social and
cultural contexts of composition and performance. It also provides a perspective on the relationship between
music and technology somewhat broader than the recent focus on eletronic technologies and synthesizers. It
allows a brief glimpse of debates - and despair - about music and technology to be seen reverberating back
through time.
94
Guitarra rítmica. O guitarrista além de seu sítio próprio (<http://pauljacksonjr.com/>) tem ainda uma série de
vídeos sobre o tema. Aponto uma tradução própria relativa ao termo como uma guitarra de encaixe que em
observação de outras descrições surge então em traduções como guitarra rítmica.
79

um timbre acústico de cordas também é obviamente polarizada ao violão do cantautor Djavan.


Os músicos norte-americanos também tendem a conceber a composição popular brasileira
como intrinsecamente ligada ao violão e essa é então uma opção clara do produtor. Assim o
contraste de violão com timbres de teclado eletrônico e piano acústico em relação às bases
harmônicas, seria um fator considerável já que o cantautor atua invariavelmente como
violonista na banda base e em nove das dez faixas do álbum Luz. Nesse caso em seis faixas
Djavan usa o violão ovation95 e em três o violão acústico. Cabe observar mais uma vez que
esse último é utilizado nos sambas híbridos (aqueles mesmos cuja concepção de base foi da
Sururu de Capote) e em uma das canções lentas de roupagem orquestral caracteristicamente
com concepção em voz e violão, “Banho de rio”.
Assim, ao analisar as duas das canções lentas de roupagem orquestral vê-se por
exemplo que uma dessas - “Nobreza” - predomina só o piano com os arranjos de cordas, e na
outra - “Banho de rio” - só o violão acústico e o arranjo de cordas. Ambas as canções
revelam na foto espectral o caráter da textura homofônica. “Uma melodia solo acompanhada
por acordes de violão ou piano ou cantada por outras vozes recebe a denominação de textura
homofônica” (TURINO, 2008, p. 44-5). Daqui também é de onde procede parte de minha
consideração de que seriam roupagens orquestrais colocadas nas canções e não propriamente
canções orquestrais em sua concepção primária.

2.5 A voz popular em zonas contextuais/processuais de hibridação

Esse tópico tem o intuito de apresentar como em função das caracterizações


contextuais, anteriores e concomitantes ao LP Luz, já revelariam-se caracteres de emissão
vocal de Djavan ligados sobretudo a uma grande diversidade de procedimentos vocais,
vocalidades referenciais e de abordagem de repertórios tanto nas observações quanto
mesmo em seu discurso pessoal. É interessante lembrar que processos de hibridação
permeiam a chamada voz popular urbana e/ou midiática desde sua “gênese” em formatos
gravados direcionados aos meios de difusão de massas, criando uma dinâmica híbrida de
difícil apreensão estética e conceitual sobretudo nas abordagens comparativas feitas em
relação às emissões dramáticas, seja a lírica ou a contemporânea.
No caso de Djavan, a interpretação vocal flutua referenciando-se em nomes mais

95
Como aponto na separação dos sambas híbridos do disco, ou pareamento de análise, nota-se uma concepção
diferenciada para os sambas (violão acústico e banda base Sururu de Capote), e o uso do violão elétrico ovation
nas outras seis canções com base concebida pela banda norte-americana.
80

sólidos da MPB primária/exordial daqueles anos de 1960/1970, apresentando suas


características bastante pessoais determinantes da relação do canto com a fala pela observação
de Luis Tatit de que “cantar é o efeito de dizer algo”, que seria o canto como representação da
fala. Surgem alguns elementos de música estrangeira, tanto das música norte americana e
quanto da popular africana, e por fim certa consideração do próprio cantautor em relação à
influências de vozes femininas. Musicalmente Djavan reitera um discurso pessoal acerca de
suas principais influências musicais, que segundo ele, seriam balizadas de Beatles a Luiz
Gonzaga, ou seja, um discurso apontando influências díspares e não alguma linha específica
mais especializada, modelo cancional único ou um gênero musical em especial.
Especificamente em relação às suas referências vocais, o autor apontou que possui
influências primárias relativas ao canto popular feminino (canto de trabalho materno, divas do
jazz e cantoras do rádio da década 1950), fator a ser considerado também por via de outros
cantautores da MPB. Demonstrar uma outra via de materialização do feminino na
vocalidade popular que apresenta-se predominantemente masculino também é um fator a ser
apontado seja como um hibridismo de vocalidade, ou no intuindo de contemplar questões
sociais de gênero ainda incipientes na abordagem da música popular.

A gente ouvia muito a rádio nacional principalmente com as cantoras que eu


adorava, a Ângela Maria que pra mim era a rainha [,,,] e eu sempre ouvia a voz
feminina, me apaixonei pela voz de mulher e não gostava muito da voz de homem,
para mim as mulheres cantavam com o coração e os homens queriam
demonstrar o poder das vozes que eles tinham. Então eu imitava todas...todas.”
(Nascimento, Milton in História do Clube da esquina: a MPB de Minas Gerais, [9:58
a 10:40] tempo total 0:49:59, grifos meus)

Destaco os processos imitativo e informal de aprendizado do renomado cantor e


compositor mineiro e retorno ao cantor alagoano Djavan, que também o faz, citando divas do
jazz e as “rainhas” do(a) rádio nacional:

Eu costumo dizer, com relação ao meu canto, que ele foi influenciado pelas
mulheres, pelas cantoras. Porque eu sempre ouvi Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan.
Sempre ouvi Ângela Maria pela minha mãe, Dalva de Oliveira. São cantoras que eu
sempre tive um apreço grande, pelo vibrato feminino, pela inflexão feminina. Sempre
me chamou muito a atenção. Eu tenho certeza absoluta que meu canto não foi
influenciado por cantores e sim por cantoras96. (Djavan in o Som do Vinil, 2012)

Em outra entrevista Djavan lança ainda a questão matriarcal e da oralidade de


transmissão de cantos de trabalho materno.

96
Fonte: <http://osomdovinil.org/djavan-luz-cbs-1982/>
81

A minha mãe é totalmente responsável pela música em mim. Por que ela cantava,
adorava cantar. [...] era lavadeira, trabalhava com um grupo de mulheres diariamente
num lugar que inclusive me levava [...] lavava roupa com as pessoas e cantavam,
todas, que é um hábito escravo, você cantar pra diminuir a força despendida ali [...]
elas faziam vocais e eu me impressionava muito com isso. Sempre tive esse olhar de
admiração por essa coisa da minha mãe. Nós somos três irmãos para os quais ela fez
uma música para cada. (DJAVAN in Zoombido, 2012)

Retorno a questão ao discurso de outro intérprete referencial da MPB. Caetano Veloso


afirma que “cantar e ler são identificações minha[s] (op. cit.) com a minha mãe” (VELOSO,
in Mosaicos, A arte de Caetano Veloso 5:37, TV Cultura, 2008) o que ele também teria
exposto na canção “Genipapo absoluto” “tudo são trechos que escuto: vêm dela. Pois minha
mãe é minha voz. Como será que isso era este som, que hoje sim gera sóis doi em dós?”
(VELOSO, in Genipapo absoluto, O estrangeiro, 1989).
Essa discussão sobre a materialização do feminino referencialmente aos homens
também não se fecha somente nessa questão. Muito embora aponte-se que João Gilberto teria
sido o divisor de águas para a canção moderna distinguido procedimentos em relação a um
canto caricatural à emissão lírica/acústica, essa de hibridismo basicamente contrastivo se
tomarmos a teoria do canto representativo da fala na qual o trabalho é baseado, aponto outros
fatores. Na verdade, a bibliografia aponta que as primeiras vozes a aproximarem o registro de
emissão cantada ao registro da fala, num contexto hegemônico de difusão, teriam sido as
cantoras Maysa e Dolores Duran, por sua vez, também compositoras e consequentemente
cantautoras. O rebaixamento dos registros de emissão vocal às vozes de peito (próxima à
fala), possibilitou então a identificação com a voz da fala. A predominância de conteúdos
existencialistas do pós-guerra as vinculou mais aos procedimentos exageradamente passionais
e românticos da latentes na década de 1950 do que à canção moderna brasileira. Também
nesse sentido, passo a concordar com a visão de Marcos Napolitano acerca de João Gilberto e
da Bossa Nova muito mais como depuradores e decantadores de procedimentos anteriores
(NAPOLITANO, 1998, p. 14-5), do que necessariamente marcos de uma ruptura como tem
sido descrito de forma preponderante.

Tem sido muito comum, na mídia sobretudo, reafirmar a Bossa Nova como o marco
zero da “moderna” MPB. Mas a análise de obras concretas e eventos específicos,
pode demonstrar que a relação com a tradição musical (e cultural) anterior foi mais
complexa do que a sugerida por alguns memorialistas e críticos musicais. Os músicos
da década de [19]60 herdaram formulações estéticas e ideológicas socialmente
enraizadas na forma de mitos fundadores da musicalidade brasileira e no
reconhecimento do Samba como música “nacional”, fazendo com que muitos deles se
propusessem a renovar a expressão musical sem romper totalmente com a tradição.
(NAPOLITANO, 1998, p.14-5)
82

Apresentei um recorte mais longo da citação, pois essa colabora com as observações
pontuais e também traz o início de algumas caracterizações que aponto como arriscadas
também à MPB. Isso diz respeito a tentativa de estabelecer marcos muito fixos e noções de
ruptura que pontuem a obrigatoriedade da linearidade cronológica, que em minha opinião se
torna invariavelmente uma armadilha para o estudo da canção híbrida brasileira.
Voltando agora ao tema tópico, tanto a caracterização da fala quanto as atividades de
cantautoria feminina, já são presentes de alguma maneira antes da Bossa Nova muito embora
relegadas a um segundo plano no discurso e cenário que se forjou desde meados do século
XX para a música popular brasileira. Cito também Regina Machado ao abordar “duas
tendências vocais” (MACHADO, 2012, p. 25) de canto popular pré-Bossa Nova, e observadas
desde fins da década de 1920 em esfera midiática. Uma seria a mais ligada à fala que acabou
também em segundo plano (Noel Rosa, Mário Reis e Carmem Miranda) e a outra seria a
caricatural lírica hegemônica ainda com resquícios de emissão acústica, e que hoje pelo
distanciamento de pesquisa passa a poder ser observada como uma emissão vocal de
hibridismo contrastivo na esfera popular.
Retornando agora às categorizações de Tatit também funda a partir da teoria do canto
representativo da fala ou como ele mesmo diz em outras palavras de um cantar como é o
efeito de dizer algo, e que apresentei na fundamentação teórica, cabe observar que Djavan não
tem um procedimento que se sobressaia aos outros, e isso também é equilibrado no álbum Luz
como veremos. Nas análises pude observar que mesmo em canções aparentemente
polarizadas ou iniciadas em algum tipo de procedimento surgem compensações em
procedimentos “opostos” que equilibram as canções. Isso, seja com uma transição na parte B,
em um pequeno trecho frasal, num improviso vocal ou numa introdução. O fato ocorre muito
em função da diversidade de gêneros musicais que ele interpreta, e que o capacitou a uma
vocalidade mais dinâmica, e menos afeita a um determinado gênero. Como ele mesmo diz
seria o contrário a fixar-se num caráter especialista, sendo intérprete exclusivo de determinado
(sub)gênero ou movimento mais restrito.

na época que eu estava me formando era um valor você saber tocar tudo,[...] (samba,
valsa, baião, choro, bolero, rock, bossa nova), o músico que toca tudo ele tem mais
facilidade de trabalhar [...] o músico tinha que saber tocar tudo por que é isso que a
princípio facilita o emprego, no meu caso é porque eu entendia que a música tem
que ser entendida na sua diversidade, como é que se faz um samba? qual a
essência original de um samba? (op. cit) de um gênero, como se faz uma rumba, [...]
um rock, [...] um jazz, tudo tem um princípio próprio é como línguas (op. cit.) você
estuda uma língua e as outras vão ficando mais fáceis [...] , a música é do mesmo
jeito as línguas se inter-relacionam, do mesmo jeito os gêneros se inter-relacionam.
(DJAVAN in: MOSKA Zoombido (6ª temporada), 2011, grifo meu).
83

Assim é importante observar que apesar de algumas canções de caráter passional e


conteúdo romântico das letras se notabilizarem mais do que outras sobretudo pela ampla
difusão das mesmas, existem caracteres relativos à sua fluidez interpretativa direcionados aos
campos temático e figurativo observáveis no álbum Luz. Como observarei isso é ainda muito
bem distribuído em relação ao suporte e mesmo no equilíbrio de canções do álbum.
Não posso deixar de mencionar na citação acima também a colocação feita pelo
próprio artista na relação que procurou estabelecer entre as línguas e os gêneros musicais. O
fator é explorado na relação teoria e método que permeia a etnomusicologia sobretudo após as
considerações de estudo da música na cultura e depois enquanto cultura feitas por Alan
Merriam nos anos de 1966 e 1974, respectivamente. Timothy Rice a aponta na vertente de
uma terceira teoria que libertava-se então dos métodos prioritariamente comparativos que
requeriam certa precisão, sistematicidade e replicabilidade dentro da notação ocidental. A
pesquisa (etno)musicológica transitava para novas perspectivas pelo surgimento de novos
paradigmas, sob esses a música passava a ser observada teoricamente como:

uma forma de comportamento humano criada dentro de um sistema cultural coerente


que, portanto, possui estruturas análogas ou homólogas a outras formas construídas e
culturalmente codificadas como arte, arquitetura, discurso cotidiano, ideias sobre sons
naturais e crenças cosmológicas ou religiosas sobre a natureza do mundo 97 (RICE,
2005, p.43-4).

Resultou assim então, segundo a relação teoria e método, em “novas” possibilidades


metodológicas para o campo.
Os métodos característicos desta terceira teoria envolvem descrever e, então,
encontrar formas de comparar estruturas e comportamentos formais
radicalmente diferentes, tipicamente através de uma redução dessas diferenças a
um modelo estrutural comum emprestado da linguística e da semiótica ou através
da elicitação98 de metáforas nativas e símbolos-chave que vinculam dois ou mais
domínios culturais em uma etno-estética (ORTNER apud RICE, 2005, p. 44, grifos
meus).

97
A third theory states that music is a form of human behavior created within a coherent cultural system, and
therefore possesses structures analogous or homologous to other culturally constructed forms encoded as art,
architecture, everyday speech, ideas about natural sounds, and cosmological or religious beliefs about the
nature of the world. The methods characteristic of this theory involve describing and then finding ways to
compare radically different formal structures and behaviors, typically through a reduction of those differences to
a common structural model borrowed from linguistics and semiotics or through the elicitation of native
metaphors and key symbols that link two or more cultural domains into a coherent ethnoaesthetic (Ortner 1973).
This theory minimally requires fieldwork methods that go beyond the accurate preservation and description of
music as an isolated cultural domain to the observation, recording, and analysis of other cultural domains as
well.
98
Elicitação consiste na técnica de elicitar, sinônimo de eliciar. Palavra expressa no tópico sobre estudos
linguísticos do dicionário aurélio como: “Extrair enunciados ou julgamentos linguísticos de (informante)
(FERREIRA, 2010, p.765).
84

Concluo, observando mais uma vez nessa perspectiva que os métodos da linguística e
da semiótica foram então aplicados pertinentemente por Luiz Tatit em relação à composição
das canções populares brasileira no século XX. Carecem de certa continuidade em sua
aplicabilidade e sendo fundados na teoria de analogias são totalmente passíveis a
direcionamentos intencionados à voz popular contemporânea em performance (seja ao vivo
ou por via do produto gravado) e ainda a algumas perspectiva amplas relacionadas à produção
cultural na música popular.
Por fim, essas vocalidades confundem a divisão entre campos de música artística,
popular e folclórica, demonstrando muito mais um caráter fluido entre esses campos do que
um direcionamento mais categórico a algum deles. O canto que tenho apontado como de
caráter mais especialista e vinculado a algum gênero específico, seria sem dúvida um canto
mais polarizado ao popular urbano massificado ilustrado contemporaneamente pelos
subgêneros de cunho comercial. A diversidade que vem sendo apontada também acaba por
capacitar tecnicamente um tipo de vocalidade mais maleável, com expertise99 de execução de
gêneros variados, e que quando sujeita a procedimentos díspares para a necessária inserção
dos chamados elementos discretos, resultaria em produtos mais equilibrados (hibridismo
homeostático). Isso tudo, obviamente dentro de um limite de procedimentos vocais e
compositivos afeitos a teoria do canto ligado à fala, e caracterizadamente desdramatizado.
Mesmo tendo optado por enunciar preferencialmente os processos que a princípio
forjam o canto híbrido de Djavan, não posso deixar de pontuar algumas considerações
descritivas já apontadas em relação ao cantor. Opto nesse momento em pontuá-los, pois, já
tendo trazido os enfoques prioritários pretendidos para esse caráter de vocalidade híbrida,
alguns tópicos agora são itens de pesquisa bibliográfica e/ou apontamentos já resultantes das
análises que vem a seguir:

● Refuta-se uma técnica e/ou um modelo de emissão de caráter “especialista”100


vinculado exclusivamente a determinado gênero/subgênero ou a alguma prática
dramático-vocal;
● scat singing “abrasileirado” (ELME & FERNANDES, 2012);

99
“Diz respeito ao experto” (FERREIRA. 2010, p. 901), sendo experto o “indivíduo que adquiriu grande
experiência ou habilidade graças à experiência, prática” (idem).
100
Termo utilizado em entrevista a Charles Gavin pelo próprio cantor Djavan, ao refutar ser um especialista
enquanto intérprete de determinado gênero musical, comentando a dificuldade de compartimentação inicial de
sua música em guetos, como da black music de fins dos anos 1970 ou mesmo do samba, e ainda da geração
nordestina.
85

● temática de letras/músicas com forte caráter romântico porém sem polarização


exclusiva romântico-passional, além de alguns caráteres regionais contrastando com
linguagem pop da transição entre os anos 1970 e 1980
● dicção pessoal (canto subjetivo de Djavan) que alia a produção autoral e performances
interpretativas das suas e de outras canções (categorizando temas de outros
cantautores). Tal gradação ao “conjunto de fluidez interpretativa” sobre o qual falei
brevemente no início desse tópico;
● discurso pessoal do cantor (e de outros contemporâneos) referenciando-se vocalmente
às mulheres, materializando vocalmente questões de gênero e ainda padrões de fusão
entre os cantos masculinos e femininos,101 que num grau extremo da MPB seriam
observados como “andróginos”102 por Felipe Abreu (ABREU, 2001);
● Voz com padrão estético e capacidade técnica reconhecível na relação triádica:
lírico-melódico-interpretativa guiada ainda pela capacitação rítmica de grande
independência entre acompanhamento e emissão vocal, seja no viés autoral ou no
viés interpretativo103.

Djavan opta, quase que de forma geral, por uma apresentação de primeira parte (parte

101
Lembro que os cantos dramáticos, seja lírico ou contemporâneo, de forma geral delimitam papéis aos
cantores(as) e consequentemente tessituras e registros vocais são mais delimitados. O canto popular urbano já
apresenta sua bibliografia relativa ao rebaixamento das tessituras femininas que passaram a cantar (em sua
maioria) em registro de peito bem como a maior liberdade das vozes masculinas no uso dos registros de peito,
cabeça e falsete. Além disso, apesar de ser tema controverso, no canto popular a equalização de registros é
prescindível, prevalecendo o timbre pessoal do(a) intérprete e não necessariamente havendo mitigação das
“quebras de registro”.
102
A androginia vocal também teria paralelos na hibridação cultural a partir da fusão dos papéis sociais de
homens e mulheres, fator apontado por Felipe Abreu no livro de Cláudia Neiva Mattos, Ao Encontro da palavra
cantada (MATTOS, 2001).
103
Uma característica comum por exemplo a Jackson do Pandeiro, João Gilberto e Djavan (além da
nordestinidade) e sob a perspectiva da virtuose do equilíbrio (e nunca dos excessos e/ou polarizações
dicotômicas), onde equilibra-se “a melodia no texto e o texto na melodia” (TATIT, 1999, p.9). Não se atendo a
correntes “conteudistas”, as melodias carregam qualificações “artístico-populares” e a chamada “métrica
derramada”, um termo utilizado por Martha Ulhôa que expressa, em certa medida, as variações métricas por via
de interpretações mais originais (e consequentemente subjetivas) sobre uma determinada rítmica-melódica,
envolvento tanto a reconfiguração de durações de notas quanto a relocação dessas no contexto melódico tido
como original. Segundo a autora: “Um dos elementos mais possantes de expressividade na canção popular
brasileira é a flexibilidade e em alguns casos quase independência do canto em relação ao acompanhamento,
fenômeno que chamo de métrica derramada (ULHÔA, 1999). Na canção popular, a noção de compasso está
sempre presente, mas o mesmo é flexibilizado, tanto nos seus limites, quanto na sua estrutura interna que é
modificada em termos da hierarquia das pulsações”(ULHÔA, 2000). Tais variações podem ser antecipações e/ou
atrasos de emissões vocais pontuais, ou reconfigurações mais complexas de frases. Essas características então
marcando traços com caracteres genealógicos na auralidade de difusão dessas vozes, ou melhor constituindo
parte de um habitus de performance para esse nicho interpretativo. Lembro ainda a característica de domínio de
acompanhamentos, sejam harmônicos ou rítmicos, com excelente grau de independência voz/acompanhamentos
ou mesmo fazendo dessa característica algo para o conceito musical de trabalho e constituição de seus estilos
vocais.
86

A) que poderia ser dita como mais “canônica” ou fixa (apresentando então os tema na
primeira exposição dessas partes A) e uma repetição dessa mesma já com possíveis variações
melódicas, da rítmica melódica ou ainda das letras. A parte A tem boa correlação com o
refrão final e todas as repetições desses podem conter variações (de letra, rítmica ou
melódica). Isso ocorre ainda também em função de condições de performance como aponta o
próprio, ao comentar que “se uma nota é muito aguda e não vou poder alcançar, invento
outra”104 (DJAVAN, Entrevista Ed. Abril, 1998). Tais fatores, apontam a questão de
caracterizações do intérprete em relação às obras, e que surgem em função de condições
diversificadas.

104
Fonte: <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=5981&cat=Artigos&autor=Mensageiro)>
87

Capítulo 3: Análise das canções do álbum

3.1 Metodologia de análise das práticas de emissão vocal

Logo no início das audições e observações percebeu-se, para o cantautor Djavan, certa
incompatibilidade entre as interpretações e o material escrito mais popularizado, sobretudo os
songbooks. Apesar da pouca produção e análise de música popular o fato já foi constatado nos
trabalhos de Martha Ulhôa. Sem nos atermos à crítica fácil aos songbooks105 o mais
interessante é posicionar a escrita/grafia musical em relação ao nosso fenômeno musical em
estudo e ao canto e música populares. Esses, como se sabe em formas predominantes aurais e
orais de transmissão, oriundas tanto de formatos gravados, ao vivo quanto informais.
Para nós, cantores(as) populares, a principal característica de apreensão de uma
música é fundamentalmente imitativa, com a partitura sendo uma exceção na prática. Ao
tomar contato com o modelo notacional percebe-se então que o padrão escrito é sobretudo
para efeito de registro. Como exemplo, podemos observar a ausência de notação das variações
melódicas de repetições de canção, sejam alterações ocorridas por meio da rítmica melódica,
da altura melódica, ou ainda da inserção de melismas (grupos de notas variáveis sobre uma
sílaba textual) sobre aquela que seria uma única nota nas primeiras exposições. Além disso,
improvisos e introduções vocais não são grafados em songbooks, revelando o caráter de efeito
de registro desse padrão de notação ainda exclusivamente sobre a letra da primeira repetição
cancional. Recordo que na análise observa-se que somente uma música não tem uma segunda
repetição completa em sua forma final, sendo um modelo recorrente em nove das dez
canções.
No caso de Djavan, intérprete afeito a: melodizações vocais introdutórias; improvisos
vocais (scats); duetos com instrumentos (tanto em uníssono/oitavado quanto em contraponto,
ou combinando tais procedimentos); variações melismáticas das repetições de letras;
variações melismáticas como improvisos entre as letras; variações rítmicas da melodia
original; variações melódicas descritas por ele em função de situações de performance ao
vivo, e ainda; especificamente em Luz uma gravação de coro de vozes sobrepostas por ele
mesmo, dentre outras práticas de emissão vocal, tal fato tornou-se bastante pertinente para as
observações de suas práticas interpretativas e compreensão de sua vocalidade.

105
A série de songbooks de Almir Chediak, guardadas as devidas proporções, preencheu certas lacunas de
mercado antes da difusão digital de partituras. Também naquela ocasião as reedições limitavam-se por padrões
não digitais o que é perceptível sobretudo nos primeiros songbooks de Caetano e Gilberto Gil.
88

A partitura ou mesmo a transcrição está ligada a um sistema de notação que


detalha altura, ritmo, instrumentação e a organização polifônica das partes.
Aspectos como técnica instrumental, timbre, detalhes de tempo e dinâmica,
ornamentação, articulação, a combinação de todos estes elementos no que se
chama de expressão [interpretação], bem como a improvisação são
transmitidos de forma oral, e em geral não aparecem na partitura. (ULHÔA,
2006, p.6)

A citação acima faz parte de uma proposta de análise da interpretação vocal de Elis
Regina, na qual, através da observação gráfica do espectro melódico percebeu-se que a
intérprete gaúcha fazia pequenas antecipações da melodia que eram notadas na cabeça do
compasso. Essas variações de “divisão”, somadas às outras possíveis variações também dadas
pelo caráter prosódico da canção brasileira denominada então como “métrica derramada”
(ULHÔA, 1999), procedimento descrito anteriormente em nota. Teria ainda uma relação com
defasagens e independência entre canto e acompanhamento. Tal conceito, ali aplicado a uma
intérprete referencial da MPB, merece menção também no caso do canto autoral de Djavan,
que inclusive denota em suas performances um caráter interpretativo sobre a sua própria obra,
caráter que contribui ainda na conceituação fluida que proponho para o canto popular
subjetivo. Ritmicamente também a música de Djavan de forma geral ganha um caráter
peculiar pela exploração da rítmica harmônica com destaque para ataques e encaixes de
acordes em relação à base cométrica e ainda em relação à rítmica que ele imprime em seu
próprio canto, fator que tem sido destacada no trabalho. Cabe uma breve menção aos termos
cométrico e contramétrico que passo a utilizar a partir de agora. Carlos Sandroni na
introdução de Feitiço Decente trouxe luz sobre a questão:

o caráter variado do ritmo pode confirmar ou contradizer o fundo métrico,


que é constante. Kolinski cunhou os termos “cometricidade” e
“contrametricidade” para exprimir estas duas possibilidades. A
“metricidade” de um ritmo seria pois a medida em que ele se aproxima ou se
afasta da métrica subjacente (SANDRONI, 2002, p.16, grifo meu).

Dessa maneira, primeiramente consultados os songbooks, procedi a algumas notações,


anotações e transcrições pessoais que também auxiliam o entendimento de diversos
procedimentos vocais e estéticos do cantor, como apontei fracamente absorvidos e/ou
representados pelas partituras seja como transcrição ou guia da performance. Observa-se
sobretudo nas variações das repetições de partes e em improvisos vocais então inseridos nas
composições em seu formato de música gravada, que tais limitações notacionais/escritas
deixam de revelar caracteres importantes acerca de procedimentos vocais. Mas, sobretudo
89

nesse caso, cabe observar que, mesmo que aqui se recorresse a um apuro transcricional esse
não seria uma fator preponderante para as análises, refletindo ainda muito mais um
cientificismo de escritório ou cópia do modelo de outras escolas, alheios às novas propostas
de observação de música gravada.
Outro fator que é apontado, o da predominância da grafia musical somente sobre o
material melódico com letras, também revela certa hierarquia e transposição do pensamento
notacional transposto para a música popular. A música instrumental popular e a erudita
ocidental são caracterizadamente de maior apego à grafia musical, ambas tomando partitura
enquanto mídia, e inclusive teriam prescindindo da gravação comercial quando das primeiras
utilizações desse recurso de modernização no início do século XX (NAPOLITANO, 2002).
Ao contrário, a música popular cantada teve, desde os primórdios das gravações, uma
possibilidade de transmissão na forma gravada bem próxima da oralidade, e essa passou a ser
apontada como transmissão aural ao contar com meios diversificados de difusão. Em ambos
modelos de transmissão predominam prioritariamente padrões imitativos, relegando-se
possíveis grafismos a outros campos e profissionais que não os(as) performers da voz popular.
O padrão tecnológico hi-fi de captação e as melhoras em conceitos e técnicas de mixagem, em
meados do século XX também possibilitaram ainda maior adensamento e fidelização da
informação gravada. Assim também aumentou o contato e interesse do ouvinte sobre a
subjetividade vocal, restringindo a notação como mídia informacional relevante a esse campo.
Bruno Nettl (NETTL, 2005) reitera que Alan Merriam observou dois caracteres principais
relacionados à grafia musical, sendo um de caráter descritivo e o outro prescritivo.
No caso da música popular cantada, a notabilização da obra pela via interpretativa faz
com que o campo prescritivo (guia da performance) seja muito mais relacionado ao
acompanhamento instrumental do que ao material melódico da voz, esse então, passível de
reinterpretações em diversos graus de aceitação e mesmo em função de condições
momentâneas de performance, como apontou Djavan aqui nesse mesmo trabalho. Como
exemplo, cabe observar que a partir dos lançamentos de songbooks, o que mais importou
primeiramente foi a melhoria do padrão de cifras para violão (tanto na métrica de
acompanhamento como nas harmonizações um pouco mais fiéis ao original), e enquanto isso
a melodia vocal seguiu (e segue) sendo apreendida majoritariamente de modo imitativo e com
implementos pessoais principalmente acerca da personalização das letras cancionais. Dessa
forma a parte melódica é então grafada prioritariamente para efeito descritivo e registro de
direitos nas editoras musicais. O fato é perceptível ainda pelo principal padrão de leitura de
música popular urbana: acordes cifrados sobre letra de música. Nesse caso a notação
90

tradicional é refutada duplamente e surge ainda uma questão mnemônica e interpretativa


relacionada prioritariamente às letras de canção sendo “tomadas” de forma cada vez mais
personalista. Tal fator que pode ainda ser influente em relação às variabilidades de melodias
observadas em diferentes interpretações de uma mesma canção nessa esfera popular.
Assim, no caso do campo descritivo para a música popular urbana prevaleceu um
material melódico notado sobretudo para mero efeito de registro de direitos autorais, que
como se sabe adotou o mesmo padrão de copyrigths daquelas músicas supracitadas: a erudita
e a instrumental popular. George Martin, renomado produtor dos Beatles, afirma que a música
gravada simplesmente adotou o modelo notacional que destinava-se prioritariamente aos
direitos autorais das músicas erudita e popular instrumental já que antigamente “compositores
e não intérpretes eram as estrelas” (MARTIN, 2002, p.365). A transcrição, por sua vez,
embasou-se como atividade técnica em duas vertentes principais: a do campo da
etnomusicologia que carregou (e ainda carrega) nessa ferramenta um status de ofício
primordial do etnomusicólogo em seu trabalho de campo com músicas de caráter exótico,
mesmo apesar das novas possibilidades tecnológicas, fator que segundo Bruno Nettl teria sido
ainda muito reforçado em função da afirmação disciplinar frente à musicologia (NETTL,
2005); e a técnica pedagógica do campo de música popular norte americana, que, de cunho
prioritariamente instrumental adotou a ferramenta pela necessidade de apreensão gráfica dos
improvisos instrumentais, o que acabou se desdobrando num caráter pedagógico reiterado
naquela escola.
Ao surgir material de voz popular notado, juntamente com as primeiras pesquisa da
área, as incompatibilidades e limitações da notação tem sido reveladas, encaminhando
análises notacionais que resultam na maioria das vezes em “abordagens parciais inadequadas
à heterogeneidade da música brasileira popular e folclórica” (TRAVASSOS, 2008, p. 7). A
parcialidade aqui apontada por Elizabeth Travassos ganha assim contornos polarizados de
padrões de análise da música erudita europeia, imprimindo grande dose do caráter
comparativo secular na base metodológica de observação. Percebidas outras possibilidades
tecnológicas de análise em relação aos grafismos de representação, a tendência é de que se
busquem novos procedimentos metodológicos de análise juntamente com entrecruzamentos
de outros campos de transmissão gráfica do som que não o campo estrito da notação musical
euro-ocidental. Isso foi observado em outras dimensões pela pesquisadora Martha Ulhôa, que
em seu trabalho demonstrou como a foto espectral sobre as alturas em relação ao tempo de
emissão revelou algo a mais do que aquilo que provavelmente seria grafado numa partitura,
ou até “simplificado” por meio da partitura. Essa última, lembre-se ainda também sujeita a
91

mediadores e suas possibilidades de reinterpretações e adequações inerentes ao ofício do(a)


transcritor(a), e que trata-se em suma se observarmos seu caráter semiológico de um símbolo
semiótico em terceiridade, ou seja, sujeito ao maior grau de mediação possível da relação
signo-objeto da tricotomia peirceana. Cabe observar, que o modelo notacional europeu foi
então desenvolvido para um tipo de música menos afeita às grandes variabilidades rítmicas,
com proeminência da representatividade harmônica e das altura melódicas. Carlos Sandroni
em seu livro Feitiço Decente já observou, em outras palavras, que naquele sistema (erudito
europeu) a síncopa tende a ser descrita como exceção, enquanto que aqui no Brasil (ou
mesmo na África e na América Latina) esse tipo de deslocamento de acentuação rítmica em
relação ao fundo métrico possa inclusive constituir um modelo muito mais categórico, ou
mesmo uma regra. Vejamos novamente o enfoque cultural na pesquisa do pesquisador
brasileiro Carlos Sandroni ao trazer novas perspectivas de observação de outros autores
acerca da música africana:

na teoria clássica ocidental palavras como “síncope” e “contratempo” expressam


casos de contrametricidade, ao passo que casos opostos [cométricos] não deram
origem a termos técnicos comparáveis. Isso demonstra mais uma vez que estes são
considerados procedimento normal, que dispensa menção, enquanto aquela [síncope]
seria a exceção (SANDRONI, 2002, p.16).

O autor trata acima de perspectivas de abordagem que se fizeram necessárias à


etnomusicólogos em pesquisa da música africana, destacadamente o etnomusicólogo
Mieczyslaw Kolinski, aponta “a existência de dois níveis de estruturação do ritmo musical: o
da métrica e o do ritmo propriamente dito. A métrica seria a infraestrutura permanente sobre a
qual a superestrutura rítmica tece suas variações” (SANDRONI, 2002, p.15-16).
Retornando ao tema do trabalho, Djavan apresenta então boa proeminência de
elementos contramétricos tanto a partir de sua vocalidade melódica quanto de emprego de
suas bases harmônicas em relação ao fundo métrico. O próprio cantautor já apontou que
considera tempo e ritmo como elementos constitutivos ainda originários da base de seus
procedimentos composicionais de suas músicas, não sendo esses elementos então meras bases
rítmicas fixas a servirem de moldura para encaixe das harmonias e melodias em suas canções.
Nessa perspectiva, outros modelos gráficos para análises desses objetos sonoros
carregariam elementos passíveis de serem considerados mais próximos das fontes primárias
de informação do que a notação tradicional. Em outras palavras enfim, seriam provavelmente
modelos muito mais adequados à análise e observação das contrametricidades que figuram em
diferentes camadas na música brasileira, pois, se a notação ocidental enquanto símbolo
92

semiótico constitui uma abstração, é lícito que outras abstrações adentrem, contribuam e
iluminem o campo de análise de música popular. Dessa forma, não se pode refutar a entrada
de novos meios, ferramentas tecnológicas e aprimoramento das audições gravadas que
resultem em novas representações e venham de encontro ao melhor desempenho disciplinar,
trazendo em relação ao objeto sonoro abordagens que sobretudo caminhem de forma mais
parelha ao seus principais meios de difusão, transmissão e prática de performance.

3.2 As canções: análises vocais e aspectos musicais

Apresento um foco mais delimitado nas análises vocais e aspectos mais


gerais/panorâmicos nas análises musicais (instrumentação/análise harmônica).
O álbum “Luz” conta com dez canções. Álvaro Neder apresenta as canções do
álbum106 como sendo: duas baladas pop (“Açaí”, “Pétala”), duas canções “lentas orquestrais”,
que guardando relação com a concepção no modelo voz e violão, porém vestidas em arranjos
de cordas optei por classificar como lentas de roupagem orquestral (“Nobreza” e “Banho de
rio”), e as outras seis faixas que segundo Neder seriam canções “suingadas”: “Sina”,
“Esfinge”, “Samurai”, “Minha irmã”, “Capim” e “Luz”. Nessas últimas seis canções, observa-
se que duas se caracterizam mais categoricamente pelo gênero musical, sendo sambas de
caráter híbrido, “Minha Irmã” e “Capim”, (ambas tendo ainda em comum as bases concebidas
pela banda Sururu de Capote em Luz) e ocupando cada uma dessas também um dos lados do
disco. Assim seriam agora três pares de canções com características aproximadas (duas
baladas pop romântica, duas lentas em roupagem orquestral e dois sambas híbridos)
distribuídas nos lados do LP. Das outras quatro que restam, numa escuta mais atenta, também
seria possível apontar mais dois pares tomando por base um conteúdo pop e
passional/romântico mais latente de “Esfinge” e “Samurai” e por outro lado, um caráter
rítmico e ainda preponderantemente temático na emissão vocal para as canções “Luz” e
“Sina”. Porém estas últimas duplas de canções agora, ao contrário das outras, se emparelham

106
This album marked Djavan's association with American producers. After signing with CBS, he recorded this
album in the U.S.A. (in Portuguese), which was produced by Ronnie Foster. For that occasion, Quincy Jones
acquired the publishing rights of many of his songs through Djavan's own publisher Luanda. The album is
divided between a romantic section and swinging tunes. "Pétala" and "Açaí" (pop ballads), "Nobreza," and
"Banho de Rio" (orchestral songs) take charge of the romantic part. "Luz," "Capim," "Sina," "Samurai,"
"Esfinge," and "Minha Irmã" are the swinging segment. The interesting harmonies/melodies and the jazz-like
arrangements of this section aroused interest for Djavan's music in the U.S.A. and some of these songs and
others were recorded by Manhattan Transfer, among others. The album had important guest artists: Stevie
Wonder, Ernie Watts, Hubert Laws, Harvey Mason, Abraham Laboriel, Raul de Souza, and the conducting of
Oscar Castro-Neves, and others; several hits were included, such as "Pétala," "Capim," "Sina," "Samurai," and
"Açaí." (NEDER, Álvaro, s/ data) Fonte: <http://www.allmusic.com/album/luz-mw0000700039>
93

nos mesmos lados do LP.


Muito embora o professor Neder exponha que as baladas pop e duas canções lentas
dariam conta da parte romântica do disco, já opto por algumas outras categorizações que irão
se revelar nas análises. Como exemplo, a canção “Açaí” não possui necessariamente um
conteúdo romântico e Nobreza foi feita para um amigo sob encomenda de um terceiro,
trazendo um conteúdo de amizade que pelo andamento lento toma-se caracterizadamente
romântico. E também, por outro lado, o caráter romântico das letras pode também ser
encontrado nas canções ditas suingadas. Uma primeira apresentação das canções em relação
ao suporte:

Tabela 2: Canções no suporte (categorizações iniciais)


LADO A LADO B

“Pétala” (balada pop romântica) “Samurai” (suingada pop )

“Luz” (suingada rítmica) “Banho de rio” (lenta roup. orquestral)

“Nobreza”(lenta roup. orquestral) “Açaí” (balada pop lenta)

“Capim” (samba híbrido) “Esfinge” (suingada pop)

“Sina” (suingada rítmica) “Minha irmã” (samba híbrido)

Os Lados A e B possuem então cada um:


● uma das duas baladas pop (legenda ___ ) ;
● uma das canções lentas com roupagem orquestral (legenda ___ );
● um dos sambas híbridos (legenda ___ ); e
● duas da músicas ditas “suingadas”:
○ suingada pop (legenda ___ )
○ suingada rítmica (legenda ___ )

O caráter de sistematização na distribuição das canções é um fator observável,


podendo remeter a uma sistematização industrial ou mesmo a uma adequação de equilíbrio
dos tempos de duração dos lados do disco, porém o último fator teria menor preponderância já
que haveria tecnicamente certa “sobra de tempo” no LP cabendo até uma ou duas canções a
mais em cada lado. O LP tem aproximadamente quarenta e um minutos e trinta segundos
94

(41‟31”) de execução contínua, tendo o lado A com aproximadamente vinte minutos e trinta
cinco segundos (21‟30”) e o lado B com aproximadamente vinte minutos (20‟01”).
Cabe ainda para os suportes em vinil observar certa importância que era dada às
primeiras canções de cada lado, nesse caso “Pétala” e “Samurai”, para os lados A e B
respectivamente. Pode-se perceber que os dois solistas instrumentais de maior peso midiático
abriram os lados do disco, Ernie Waltz e Stevie Wonder. Também observa-se amplitude de
textura e intensidade das mesmas canções marcando um padrão de mixagem e volume para as
primeiras faixas.
Cabe observar que esse disco teve ampla execução das faixas e também evitou-se que
suas canções fossem inseridas em trilhas de novelas/filmes. Marcia Tosta Dias aponta como
as trilhas passaram a influenciar o mercado de discos num paralelismo de lançamentos em
áudio (rádio, vinil, K7, compactos) e TV. Porém, para o álbum “Luz” a opção foi que ele
acontecesse midiaticamente por si só, independente de vinculação às trilhas de novela. Esse
fator só mais tarde seria sistematizado para esse artista, apesar de seu já citado início
exclusivamente como intérprete na trilha da novela Gabriela ainda em 1975.

3.3 Análise das canções

Opto, nessa parte, pela apresentação das canções em ordem alfabética. Com o intuito
de facilitar consultas aos anexos nessa mesma ordem. Já abordadas questões de distribuição
das canções em relação ao suporte, adoto então um modelo de análise aproximado, que conta
ainda com um parágrafo introdutório de apresentação da canção, e outro conclusivo em
relação à análise dessa.
O modelo de análise tem basicamente três tópicos: aspectos da linha melódica;
aspectos da emissão vocal; e aspectos da canção. O último tópico, aspectos da canção, tem
esse título com o objetivo de permitir certa permeabilidade entre as diversas análises possíveis
(harmônica, lírica, melódica, instrumental e/ou de letra) evitando fechar-se ou deter-se mais
em um aspecto, sabendo contudo que sempre algum fator pode preponderar. Por tratar-se da
canção como produto híbrido somente um de seus aspectos não contemplaria nem mesmo
superficialmente as possibilidades de apreensão e caracterizações.
Dentre algumas caracterizações, necessito fazer considerações primeiramente acerca
das rimas. As rimas podem se caracterizar pela “repetição de um som no final de dois ou mais
versos. (...) Repetição, no meio dum verso, de som que termina o verso anterior (...) Repetição
de um som em mais de uma palavra do mesmo verso (...) Identidade de som na terminação de
95

duas ou mais palavras (...)” (FERREIRA, 2015, p.1844). Aurélio Buarque de Hollanda lista
ainda outras classificações de rimas quanto à fonética, quanto ao valor, quanto à acentuação e
quanto à posição no verso e na estrofe, sendo rimas: “alternadas, consoantes, coroadas,
cruzadas, emparelhadas, encadeadas, femininas, interpoladas, masculinas, pobres, ricas e
toantes.” (idem)
Eventualmente, as rimas são observadas somente em seu caráter de consonância
perfeita e assim com relativa obviedade. Há que se observar também o caráter das rimas
toantes e de acentuação, que não são rimas de padrão óbvio porém muito importantes sob uma
perspectiva entoativa, ou seja tanto da letra cantada quanto escrita e ainda da própria emissão
vocal. Assim priorizarei as classificações fonéticas, evitando as classificações ligadas a
padrão (ricas, pobres, raras/preciosas) e à métrica que seriam de certa forma mais
direcionadas à poesia literária. Isso, embora saibamos que a canção faz parte de um campo
híbrido entre a música e literatura, mas que de alguma forma as letras se assentam sob uma
métrica musical.
As rimas fonéticas então se subdividem em rimas: consoantes107 (perfeitas); e as
imperfeitas subdivididas em toantes108 (assoantes) e aliterantes. Considerarei as aliterações de
maneira paralela por observar a relação rítmico-melódica já apontada também por Tatit como
encaminhamento dessa característica ao campo da tematização. Dessa forma, nas análises
farei considerações prioritária acerca das rimas consoantes e toantes, com aliterações 109
observadas separadamente.
As aliterações sendo “repetição de fonema(s) no início, meio ou fim de vocábulos
próximos ou mesmo distantes desde que simetricamente dispostos, em uma ou mais frases,
em um ou mais versos; aliteramento, paragramatismo” (idem, p.105), associadas aos sons
consonantais. Assim, são sonoridades que tendem a implementar o caráter rítmico da melodia.

107
“As que se conformam inteiramente no som desde a vogal ou ditongo do acento tônico até a última letra ou
fonema. Ex.: fecundo e mundo, amigo e contigo (...)” (FERREIRA, 2010, p. 1844).
108
“Aquelas em que só há identidade de sons nas vogais a começar das vogais ou ditongos que levam o acento
tônico, ou, algumas vezes, só nas vogais ou ditongos da sílaba tônica. Ex.: fuso e veludo, cálida e lágrima (...)
(FERREIRA, 2010, p. 1844).
109
Repetição de fonema(s) no início, meio ou fim de vocábulos próximos, ou mesmo distantes (desde que
simetricamente dispostos, em uma ou mais frases, em um ou mais versos; aliteramento, paragramatismo.”
(FERREIRA, 2010, p. 105).
96

“Açaí”

Essa é uma das canções caracterizadas inicialmente como balada pop romântica, fator
que ainda será melhor aprofundado. Também foi regravada, juntamente com “Sina”,
“Samurai” e “Pétala” desse álbum, no principal trabalho ao vivo de Djavan no ano de 2002.
Açaí foi primeiramente gravada na voz de Gal Costa ainda em 1981, já chegando à versão do
cantautor com um razoável reconhecimento por parte dos ouvintes, o que é um fator
considerável na transmissão aural e de afirmação do LP Luz.

1. Aspectos da linha melódica:

Tonalidade: Ré maior

Extensão: Ré a Fá# Primeira nota melódica: Ré Última nota melódica: Fa#


(uma oitava e dois tons)

Tabela 3: Parâmetros melódicos canção “Açaí”

Saltos principais:
Ascendente (compasso 13) e descendente (compasso 11)

O primeiro salto ascendente é parte da conclusão da estrofe em casa dois que leva ao
refrão, e o segundo descendente (compasso 11) levando a conclusão da primeira repetição da
estrofe com outro salto ascendente (“re” a „lá”).
97

2. Aspectos da emissão vocal:

Uso de registros:

Há predominância da melodia cantada em registro das vozes de cabeça e peito, porém


no curto improviso introdutório vocal Djavan apresenta uma curva descendente do falsete à
sua região grave do registro de peito, demonstrando num rápido recurso vocal não só sua
capacidade técnica mas um caráter da vocalidade popular de exploração das variações de
timbre entre vozes e registros (e não a equalização de registros preconizada em cantos
dramáticos).

Dicção e variações:

A letra é bem apresentada em seu caráter de inteligibilidade, e percebe-se tanto temas


quanto o sotaque regional nordestino em algumas palavras como “coração” e “açaí”, levando
a indicações de processos de figurativização. Isso fica mais evidente no tema da letra do
refrão em algumas acentuações regionais das palavras, contribuindo na teoria do canto ligado
à fala.
Também ocorre uma vocalização sem letra na introdução que então trancrevo abaixo:
Muito grande o tamanho da letra logo abaixo... “Açaí”

A principal variação relativa ao material tradicionalmente grafado é essa breve


introdução em humming executada no disco, mas além dessa Djavan faz uma repetição da
palavra ilusão em nota mais aguda que a da primeira repetição, diferente da que consta nesse
98

mesmo material grafado de songbook. Na variação ele volta a atingir o falsete, enquanto que
na primeiro repetição a nota se dá em voz de cabeça. São variações técnicas recorrentes.

É uma variação predominantemente melódica na repetição da parte A da canção em


seu compasso 10, contudo ela é brevemente mais longa nessa variação do que a figura inicial,
fugindo à métrica inicial. Também transparece que no campo passional aponta-se que há
alguma tendência de notas mais agudas serem também mais longas na interpretação vocal (e
assim mais contrastantes em relação ao acompanhamento instrumental). Aqui pode-se tomar o
procedimento como sendo pontualmente do campo passional.

3. Aspectos da canção:

Forma e harmonia:

Intro //: A ://: BB://: (re)Intro (solo sax)://: A ://:BB:// B em fade out
Harmonicamente é uma canção que alterna as regiões da tônica e da subdominante
com acordes interdominantes de preparo aos acordes dessas regiões também aparecendo sob
diversas formas: Xo, V/V-IV e Vsus. Assim a permanência na região de dominante é
mitigada, e basicamente em duas regiões tonais (tônica e subdominante) Djavan desenvolve
todo o tema cancional. A alternância de duas regiões (e não as três regiões categóricas do
sistema tonal), sobretudo tônica-subdominante ou tônica-dominante, também é fator apontado
para as canções de caráter oral no Brasil.

Instrumentação:

É a canção mais característica de uma mistura entre os músicos da banda de base. Não
se pode apontar a atuação de uma ou outra (bandas A e B). Ao contrário atua o baterista
brasileiro Téo Lima da banda Sururu de Capote juntamente com o baixista da banda A, o
mexicano radicado nos EUA Abraham Laboriel. Predominam teclas acústicas de piano e um
arranjo de cordas orquestrais em segundo plano também num bloco sonoro passional e em
notas alongadas e ligadas.
99

A canção inicia-se com uma curta frase de contrabaixo elétrico em rubato que passa a
um jogo de pegunta e resposta com o piano. Cordas orquestrais (violinos, violas e
violoncelos) fazendo a deixa anacrústica para entrada dos todos os acompanhamentos de base
detacando violão dedilhado e vocalização introdutório. O andamento lento torna a textura
instrumental ainda mais transparente e há forte impressão musical romantizada guiada pelo
solo de saxofone soprano tocado somente entre a primeira e segunda repetição da canção (não
volta na segunda repetição). Tal andamento resulta numa das canções mais longas do LP. O
equilíbrio do andamento lento e uma possível passionalização extrema da canção é
possibilitado pelo violão dedilhado e triângulo/condução de chimbal tocados com células
rítmicas dobradas sobretudo na parte A. Consta o arranjo dessa base rítmica por Ronnie
Foster. Abraham Laboriel também executa muitas notas em técnica de slap, que também tem
como resultado sons bastante percussivos e rítmicos. Nos refrões (parte B) a melodia vocal
ganha caracteres temáticos mais pontuais e passa a predominar a percussão do bongo também
direcionados para esse campo da tematização e do ritmo musical. O refrão encerra a música
com repetição ad infinitum até entrada do fade out.
O solo de saxofone tem seção intermitente entre as duas repetições da canção e o
instrumento figura só, e somente só, nesse ponto, sem outros contrapontos na canção. Esse
também é um fator de equilíbrio na exploração da sonoridade, já que seria natural, sobretudo
numa performance ao vivo, que o instrumento surgisse ou na introdução ou na finalização.

Letra:

Rimas: assento - vento; assombração - coração; afã - clã; sereia - areia; Açaí + guardiã
- ímã
As assonância de nasalidade estão em negrito
Aliteração geral na canção privilegia a reitação do uso do r em pronúncia dita “fraca”,
quando aparece ou entre vogais ou entre uma consoante (b,v,g) e uma vogal, seja; em A :
poeira (...) assombração (...) coração (...) sangrando (...) palavra; na repetição de A; puro (...)
sereia (...) areia (...) ira de tubarão (...) brilha; e no refrão: besouro (...) branca. Essa
pronuncia reiterada também aponta a qualidade de dicção ligada à fala por parte de Djavan.

Aliterações tópicas dos versos _ combinadas com assonâncias nasais (em negrito):
tomando assento (...) som de asombração. E aliterações gerais: rajada de , zum de bezou
sol brilha por si
100

Uma frase se destaca na fusão dos diversos procedimento citados (aliterações tópicas
destacadas e assonâncias nasais sublinhadas), começando a apontar a capacidade diccional
expandida do intérprete em relação à efeito da voz falada:

“som de assombração coração sangrando toda palavra sã.”

Obs: a frase também faz a transição para a repetição da parte A, tendo relação com um
“novo” desenvolvimento rítmico, que é fundamental pelo lento andamento que poderia
rapidamente esgotar ou saturar o interesse da canção pela polarização passional. Como
apontei isso é bem resolvido por dobras rítmicas de instrumentos percussivos (chimbal e
triângulo) e o violão dedilhado. Lembro que é a única canção em que djavan dedilha o violão
no LP, predominando o toque dos acordes em bloco para as outras faixas.
Em relação ao funcionamento do som de consoantes dentro da emissão vocal, sabe-se
que as vogais se comungam mais fortemente com o canto legatto, e as consoantes adquirem
um caráter rítmico pela interrupção do som. Contudo, num canto ligado à fala, as consoantes
bem pronunciadas irrompem um maior grau de inteligibilidade potencializando a
representatividade do dizer coloquial. Assim, pode-se considerar que as aliterações inseridas
nessa composição e a necessidade de enfrentamento rítmico dessas pela melodia denotam
também um caráter temático, mesmo sendo uma canção de conteúdo romântico e passível a
alongamentos de notas, vibratos, melismas mais recorrentes dentre outros caracteres desse
campo de procedimentos passional. Em sua subjetividade técnica esse enfrentamento é
naturalizado.
Além do fator aliteração, deve-se considerar também a colocação das palavras na
melodia e dessas no conjunto rítmico de acompanhamento e condução. Nesse caso, há um
recurso explorado por Djavan que é normalmente aproveitar uma pausa nos tempos fortes e
iniciais de compasso (fator que ele também explora harmonicamente). Assim poderia ser
apontado como um grau de contrametricidade melódico e harmônico em relação ao fundo
cométrico. Por fim, como um último fator de tematização destaco as variações de
interpretação na repetição do curto refrão, com destaque para essas no trecho “zum de
besouro”.
O compositor produz um material sobre o qual ele vem então a demonstrar sua própria
capacidade interpretativa, de maneira que forja sua dicção pessoal tanto quanto compositor
quanto como intérprete.
101

Assim concluo que há hibridação dos procedimentos fundada também na capacidade


interpretativa e de dicção, possibilitando que a emissão vocal flua pelos procedimentos, sem
perder seu caráter subjetivo de ligação à voz falada do próprio cantautor.
Há um caso de apontamento dessa canção pelo métier jornalístico, e
consequentemente pelo senso comum, acerca do caráter non sense relativo a conteúdo
semântico da letra, porém sabe-se que “a poesia é um desvio da norma”, apontamento trazido
pelo professor Amador Ribeiro Neto em banca de qualificação ao parafrasear Jean Cohen a
partir de seu artigo “A função poética” de 1978. Dessa maneira opto por desconsiderar tal
caracterização jornalística para a análise.
Por fim, na análise que faço da unidade do disco pela reiteração de palavras gerando
certa coesão, lembro que a palavra “zum” também é utilizada na canção “Luz”, porém com a
grafia “zoom” e em seu sentido relativo ao foco mais aproximado na fotografia. E assim são
reiteradas foneticamente no espectro amplo do LP.

Conclusões de análise sobre “Açaí”

Essa música seria colocada em uma escala final representativa das canções do álbum
como pertencendo ao campo passional, mas apresentando elementos temáticos em função da
rítmica melódica do refrão interpretada e reinterpretada com um razoável grau de
contrametricidade e de variabilidade sobre o material original. Também cabe considerar as
aliterações e assonâncias inseridas na composição como um outro fator rítmico preponderante
para a melodia. Por fim, se observado atentamente, o seu conteúdo não é predominantemente
romântico, e tal referência emerge pelo caráter lento da canção, algumas palavras fortes nesse
sentido reiteradas: a paixão, la passion e coração, e ainda o padrão de solo de saxofone para
canções românticas que faria a cena dos 1980. Ou seja, não é possível categorizá-la como
passional romântica sendo melhor optar por uma “balada pop lenta”. As principais inserções
sonoras com algum caráter estrangeiro, resultando em algum possível hibridismo, nessa
canção brasileira são: a sonoridade do saxofone soprano (executada então por músico
brasileiro) e; o bloco de cordas orquestrais. O saxofone seria um outro solista proeminente
além da vocalidade melódica do cantautor. Nesse idiomatismo instrumental a intensidade de
execução e os alongamentos de notas são muito característicos e moldáveis ao campo
passional. Para que isso seja possível, e consequentemente enfatizado, o andamento cancional
invariavelmente cai, um fator já apontado por Tatit acerca do tema da passionalização. A
sonoridade do saxofone seria extremamente reiterada nos anos de 1980, chegando a constituir
102

uma linguagem bastante compartilhada nas canções românticas de toda a América. Isso é
documentalmente observável no pop e rock nacionais dos anos de 1980 e nas canções pop
internacionais já desde meados dos 1970110. Numa análise relativa à MPB pode-se dizer que
essa sonoridade solo não era comum nos 1970 e 1960. O resultado talvez de um hibridismo
mais contrastivo numa canção da MPB é mitigado pela boa relação romântica que a canção
apresenta com o instrumento, mas também pelo uso alargado do instrumento a partir desse
período. A partir dos 1980 então essa sonoridade constituiria uma atividade muito
compartilhada nas canções populares centrais e com algum sabro romântico, passando
gradativamente a constituir um romantismo cosmopolitano nessas canções e mesmo tornando
as fronteiras da MPB mais permeáveis a um caráter romântico latente.

“Banho de Rio”

Canção que se inicia ao estilo voz e violão com forte impressão de signos nordestinos
como: “cantador”, “lampião”, “sede” e “secou”. Além de um canto de caráter lamurioso sobre
o tema da ausência de um amor que se potencializa na interpretação da canção, Banho de Rio
é inicialmente descrita como canção lenta de roupagem orquestral.

1. Aspectos da linha melódica:

Tonalidade: Am (Lá menor)

Extensão: Mi a Fá Primeira nota melódica: Ré Última nota melódica:


(uma oitava e meio Si
tom)

Tabela 4: Parâmetros melódicos canção “Banho de rio”

Saltos:

110
O músico Mário PC Filho, em seu livro “O saxofone pop dos anos 80” (CASTILHO FILHO, 2012), aponta
que o instrumento não só chegou a outro contexto musical nos anos de 1980 através da cena pop, mas também
foi vinculado de um forma extrema (chegando mesmo à saturação sonora nos anos 1990 com inserção em
subgêneros de cunho comercial) a contextos de filmes da época, de promoções de vendas, de comerciais
televisivos, e ainda à uma sensualização e erotismo também para jingles e temas românticos não cantados, dentre
alguns fatores principais de extrapolação daquele timbre e idiomatismo instrumental que esse autor apresenta.
103

Ascendente (compassos 14 e 15: Mi a Si)

Descendente (compasso 7 e 8: Si a Fá#)

2. Aspectos da emissão vocal:

Pequenos golpes vocais de referência a cantadores nordestinos quebrando a


“monotonia” e a sustentação das notas longas, e evitando assim uma interpretação do
procedimento como exclusivamente de cunho passional. Adquire-se dessa maneira um caráter
mais de lamento explicitado na interpretação. Pode ser descrito como um “portamento
popular” que acontece na pronúncia alongada da palavra “rio”, dando a impressão de um
berrante ou canto lamurioso (uma vez na primeira repetição e por duas vezes na segunda
repetição). Além disso, a mesma nota conta com um glissando feito sobre o salto supracitado,
trazendo outro caráter de variação de afinação também relacionável ao canto popular e à
“imprecisão de afinação da voz falada.” (WISNIK, 1999). Mario de Andrade já havia anotado
em relação aos aboios nordestino, que “o aboio é um canto melancólico, com que os
sertanejos do Nordeste ajudam a marcha das boiadas”. (ANDRADE, 1987, p.54) . O autor
lembra ainda que em sua proximidade oral extrema é um canto “todo pessoal que varia de
indivíduo para indivíduo. (...) Nota de Mário de Andrade: “o que verifica a minha observação
sobre o individualismo do canto brasileiro” (idem, p. 55). Esse último ponto observado se
refere à mesma ideia do canto subjetivo popular aqui apresentada. Lembro ainda que a
temática da letra da canção contribui para essa interpretação relacionada ao aboio, já que logo
lá na primeira frase da repetição ele apresenta a letra: “(...) Dias como bois passam e nem me
vêem, a meu cantador versejar pra quê? (....)” (DJAVAN, 1982).

Uso de registros:
104

Predomina o registro de cabeça, Djavan não usa improvisos vocais nessa canção
preferindo os efeitos supracitados.

Dicção e Variações:

Baixo grau de variação tanto melódica quanto rítmica, sendo que as últimas surgem
levemente na repetição do refrão da canção, enquanto as primeiras não foram observadas sob
o aspecto de redesenhar as alturas melódicas em repetições.

3. Aspectos da canção:

Forma e Harmonia:

//Intro // A // B // A // B //
Predomina a tonalidade menor em acorde de tônica, esse com variações nas
dissonâncias de notas como 7M; 6ª; 6ªm; 4ª, sendo colocadas no baixo do acorde. Também
ocorre manutenção do tema sobre a região de dominante, sendo a introdução e início da
melodia cantada realizados nessa região do acorde V7, aqui nessa tonalidade E7. Depois disso
também predomina a região da tônica (Am), e as passagens pela região subdominante são
cadenciais em acordes de passagem. Assim prevalescem duas regiões, tônica e dominante.

Instrumentação:

Voz violão e arranjo orquestral de cordas


Contrasta com a homofonia de voz e violão a instrumentação orquestral em naipes de
cordas. A sonoridade de violino aproxima-se de uma sonoridade de cunho regional e não se
caracteriza o bloco homofônico do naipe de cordas.

Letra:

Faz referências a signos nordestinos: cantador, [L]lampião, sede, secou, fumega.


Metáforas e comparações: “sonho secou”, “nesga de amor”, “dias como bois”
Caráter lamurioso no verso: “sem meu amor não tomo banho de rio nem sou feliz tão
cedo”
105

Rimas: brim - mim; secou - amor; parede - sede.

Conclusão:

Estilo compositivo e interpretativo que acabou sendo bastante referencial ao álbum de


estréia do artista,“A voz, o violão e a música de Djavan” (data). Nesse mesmo sentido cabe
lembrar alguns temas que vão ao encontro desse seu referencial próprio “cantador desejou pra
mim”.
Os efeitos mais “impuros” ou “sujos”, não permitidos por exemplo ao canto lírico,
figuram aqui, e possibilitam ao imaginário receptivo a associação da canção aos músicos
populares nordestinos: repentistas, improvisadores, “cantadores” e trovadores, sendo que
esses também em geral apresentam o auto-acompanhamento instrumental de cordas como
prática, ao contrário dos aboios que em registro de Mário de Andrade seriam cantos de
trabalho de caráter solo ou utilizando o termo técnico um canto “a capella”, contando
inclusive com variações de cunho pessoal como anotou o pesquisador brasileiro. Ainda nessa
mesma perspectiva, a sonoridade do violino acaba referencial a uma sonoridade aproximada
da rabeca que é muito utilizada no nordeste, restringindo uma caracterização propriamente
orquestral. Constitui-se uma reinterpretação de caráter híbrido trazendo a sonoridade do
universo instrumental cosmopolitano da música artística à uma caracterização propriamente
regional. O destaque do violino do naipe de cordas descontrói a caracterização típica feita em
bloco das interpretações orquestrais e sinfônicas de forma geral, ao deslocar o instrumento do
campo homofônico que se caracterizaria na execução juntamente com os outros instrumentos
de cordas.

“Capim”

O primeiro samba do LP, Capim seria um exemplo categórico de canção com


caracteres de tematização. Sua divisão rítmico-melódica caracteriza bem as possibilidades
interpretativas acerca da possibilidade de variabilidade da rítmica melódica, contento também
uma citação ao intérprete Jackson do Pandeiro, que teve e ainda tem grande
representatividade nesse campo cancional. Usa-se popularmente o termo “divisão” para
indicar a capacidade interpretativa de caráter rítmico sobre a melodia, seja pela
aceleração/retardo das notas ou por reinterpretações da métrica mais original da canção.
106

1. Aspectos da linha melódica:

Tonalidade: Fá maior

Extensão: Dó Primeira nota melódica: Última nota melódica:


central a Fá Dó Sol (5º grau do acorde
(5º grau do acorde F7M dominante C7(9); 2º grau
[I7M]) da tonalidade principal)

Tabela 5: Parâmetros melódicos canção “Capim”

Saltos: Ascendente (compasso 19: Lá a Fá):

Descendente (compasso 12: Re a Mi):

2. Aspectos da emissão vocal:

Uso de registros:

Há uma combinação do registro grave (de peito) passando a misto e cabeça com a
ascendência por graus conjuntos depois de grande reiteração temática das notas graves e
médio-graves iniciais.

Dicção e variações:

Canção temática com predomínio de caracterização rítmica da melodia (tematização).


Destaco a divisão rítmica da melodia nas frases iniciais “Capim do Vale vara de goiabeira na
beira do rio paro para me benzer” , revelando ainda o uso das aliterações reforçando o caráter
rítmico. Contudo, como tenho observado existe uma certa polarização de procedimentos
107

temáticos sem deixar de ocorrer procedimentos passionais. Dessa forma transcrevo os


compassos 26 e 27, que acaba configurando um ápice de altura e maior duração da melodia:

Seriam as notas mais alongadas da canção, com predomínio amplo de outra notas mais
curtas no todo. Observa-se que é exatamente nesse ponto da canção que Djavan insere algum
conteúdo romântico com o tema amor novamente surgindo, exatamente de forma parelha ao
ponto mais alto (agudo) e longo da melodia em “fim”, descendo a “levou” e depois a “amor”.
Enquanto isso, na melodia da canção predominam amplamente as divisões mais
rítmicas abaixo (Ex: trecho que contém a citação de letra (e não de melodia) “A ema gemeu
no tronco do Juremá”) basicamente em colcheias e semicolcheias em região grave (voz de
peito) com conclusão nesse padrão rítmico-melódico descendente após nota aguda:

3. Aspectos da canção:

Forma e Harmonia:

Intro // A // B // A // B // fade out (Intro)


Tonalidade maior, sendo o início a parte A uma repetição de uma quadratura de
acordes - I - Io - ii - V7 - que Djavan utiliza com algumas variações não só em outros sambas
como “Fato Consumado” mas também em algumas canções desse mesmo disco. A parte B
tem variabilidade do campo harmônico de Fá maior, apresentando acordes como: ii7, iii7, vi7,
e ao aproximar-se do fim da parte cadências “dois-cinco” e uma última cadência
V7/V7/V7M111/V7 para a tônica I7M, que então retoma a quadratura de acordes já citada.

Instrumentação:

111
É o próprio V7 “disfarçado” e que já havia figurado nessa forma no início da parte B.
108

Canção do disco cuja base instrumental foi concebida e executada pela banda
brasileira do artista (banda B), a “Sururu de Capote”.
Solo realizado na coda pelo produtor do álbum Ronnie Foster: solo de Mini-Moog
aparentemente contrastante num samba, porém Djavan já apresentara tal procedimento em
dois sambas, “Total abandono” e “Jogral”, do álbum anterior Seduzir (DJAVAN, 1981)
demonstrando sua predileção por hibridações de elementos aparentemente não tradicionais ao
gênero (instrumentação eletrônica). Em Luz contou com um solista mais categórico em
relação ao timbre de teclas eletrônicas que passa a ter proeminência na música popular urbana
desde meados da década de 1970 como um “sucessor” da guitarra elétrica que figurara logo
no pós-guerra. Essa mesmas teclas eletrônicas operadas em mini-moog haviam figurado no
álbum anterior de Djavan sendo executadas na ocasião por um músico brasileiro. Esse fator
pode ser apontado como um compartilhamento tecnológico entre os músicos urbanos,
indicando caracteres cosmopolitanos importantes nas atividade musicais.

Letra:

Indico uma citação ao intérprete Jackson do Pandeiro na letra ao referenciar um dos


sucessos do cantor paraibano em “(...) a ema gemeu no tronco do juremá (...)” da música “O
canto da Ema”112 (João do Vale/Aires Viana/Alventino Cavalcanti) de 1920 o que também
acontece de outra forma na busca das divisões da rítmica melódica muito peculiares e
“deslocadas”, consolidando uma menção referencial a esse mesmo intérprete paraibano
citado. O cantor e ritmista Jackson do Pandeiro veio a falecer exatamente naquele ano de
1982.
As Rimas principais: beira – goiabeira; benzer - fazer; amor - flor; pouquinho- ninho.
Surge pela primeira vez um anagrama nas análises, fator que será recorrente nas
faixas do álbum, no tema “o mar – amor”: “como areia no mar (...) que fim levou o amor?”.
Na análise futura desse trabalho abordarei o tema de forma específica.
O anagrama sendo é definido como “palavra ou frase formada pela transposição das
letras de outra palavra ou frase”113 (FERREIRA, 2010, p. 136). Contudo, a partir dessa
primeira definição mais simplista e dicionarizada, faço aqui as primeiras considerações mais

112
(CAVALCANTE, Alventino; VIANNA, Ayres; VALE, João do. Intérprete: PANDEIRO, Jackson do. O
Canto da Ema. in: Aqui tô Eu [LP] Phillips, 1970)
113
Na literatura brasileira o anagrama se caracterizou muito pela inversão em nomes próprios como os casos de
Iracema e América na literatura de José de Alencar, e mesmo a variação do nome próprio de Guimarães Rosa em
Soares Guiamar. (FERREIRA, 2010, p. 136)
109

aprofundadas acerca do anagrama. Os anagramas tiveram um enfoque poético e linguístico a


partir da perspectiva estruturalista de Ferdinand de Saussurre, sendo que “a lei do anagrama,
ou „paragrama‟, ou „hipograma‟, enfim, a lei do texto sob o texto, é a lei da língua” (SISCAR,
1997, p. 173). Nessa pesquisa, essa primeira incidência apontada conduz à uma busca do
mesmo processo em outras canções. Cabe observar que há um fator de ligação entre esses
elementos, sendo fundado a partir de um procedimento ou então da própria língua e assim da
linguagem cancional coloquial em questão:

A procura das leis de aparição do hipograma sob o poema é uma procura da


identidade do símbolo, desta lei que permanece a mesma de um poema a
outro, de uma leitura a outra, que sobrevive a ela. Desta lei que permitiria
fixar de uma vez por todas a forma de sobrevivência da língua ou da tradição
dentro do tecido do poema (SISCAR, 1997, p.175)

Segundo Marco Antônio Siscar, o próprio Ferdinand de Saussure, em suas pesquisas,


teria então enviado cartas a diversos autores interrogando esses a “respeito de uma virtual
intencionalidade do processo anagramático” (SISCAR, 1997, 175). Aqui nesse trabalho faço
primeiramente uma coleta dos possíveis anagramas como dados de pesquisa. Trago
considerações posteriores relativas não necessariamente à uma regra de uso desse anagramas,
mas da colaboração dos mesmos no estabelecimento tanto de uma unidade lírica ao álbum Luz
de uma estética cancional desse cantautor que o relaciona a outros da MPB.
Por fim, destaco que os anagramas, ou hipogramas nessa perspectiva cancional que se
pretende traçar, iriam além de um conceito mais fechado como o que é primeiramente
descrito, e que dessa forma, como também aponta Marco Antônio Siscar, revelariam o que
seria uma metáfora de um jogo de xadrez resultando na movimentação das peças para forjar
novas constituições simbólicas para as palavras. Ou seja, deseja-se levar em conta no trabalho
tanto a língua escrita como a falada, tanto o modelo de canto falado como a menor
formalidade aparente da escrita da letra cancional, e também os processos de reiteração que
acabam ocorrendo em anagramas. Por fim, cabe observar ainda os “quase anagramas” que
reiteram, de alguma maneira, os mesmos efeitos nas canções e na emissão vocal. Todos esses
elementos constituiriam práticas que vão além da mera transposição e combinação de letras
entre as palavras, mas permeando as canções de forma orgânica e plenamente inseridos no
“efeito de dizer algo” do canto popular brasileiro. Tomado ao pé da letra a reiteração
anagramática “o mar - amor” não constitui um anagrama por fugir de um núcleo de palavra,
mas sim o “quase anagrama” que em enunciação cantada é relevante na análise proposta.
110

Por fim, destaco que esse quase anagrama, “o mar – amor”, teria sido também
categórico à produção cancional de Dorival Caymmi, que apontei como sendo um primeiro
modelo de cantautor da música popular brasileira, porém numa época em que os trabalhos de
composição e interpretação eram mais apartados entre si pela cena radiofônica da primeira
metade do século XX.

Conclusão da análise de “Capim”:

Predomina uma fusão musical sobre o gênero samba. Alguns deslocamentos e


acentuações da caixa de bateria trazem elementos popularmente chamados de “funkeados”
que juntamente ao timbre de teclas eletrônicas (mini moog) resultam em caracteres híbridos e
consequentemente cosmopolitanos para a canção. Os timbres claros de teclas eletrônicas e
improviso/solo retiram o samba de um posicionamento de caráter mais tradicionalista ou
especializado ao gênero, rompendo também a forma cancional mais categórica e que teria
seções claras. Essa relativa abertura de forma ocorre por via do efeito de fade out e assim,
apresenta uma forma aberta e uma seção livre de improviso instrumental.
Mesmo nessa canção de caráter temático (aliterações destacadas, divisão rítmico-
melódica ilustrável e andamento ligado a um gênero dançante) o cantautor utiliza algumas
poucas notas alongadas em pontos mais agudos da extensão, reapresentando a ideia que venho
construindo de que os intérpretes mais referenciais da MPB circulam com desenvoltura
técnica e interpretativa seja pelos campos passionais, figurativos e temáticos, bem como pelos
registros vocais sem necessária equalização de timbres, e também fluindo por gêneros
cancionais. Gêneros que por si só na canção brasileira apresentam caracteres híbridos não se
fechando mais em um único termo para sua designação/categorização.

“Esfinge”

Canção passível de categorizar o estilo fusion do álbum porém razoavelmente


polarizada pelo estilo norte americano da soul music quando transparece o timbre da guitarra.
Djavan faz bom uso dos improvisos vocais (introdução, intermitentes e finalização da canção)
e apresenta uma letra de conteúdo romântico. Cabe iniciar a análise lembrando que a
“esfinge” é uma figura híbrida que permeou tanto a mitologia grega quanto a arquitetura
egípcia. Nesse último caso, a construção mais categórica é a esfinge de Gizé que possui
cabeça humana (de faraó) e corpo de Leão, situando-se no planalto de Gizé ao norte do Egito.
111

1. Aspectos da linha melódica:

Tonalidade: Mi maior (E)

Extensão: Si a Ré Primeira nota melódica: Última nota melódica:


(1 oitava + um tom e
Dó# Sol#
meio)

Tabela 6: Parâmetros melódicos canção “Esfinge”

Saltos:
Ascendente:
início da melodia: (Do# a Si)

Descendente:(compasso 19: Sol¹ a Dó#)

Uso de registros:

Esfinge é categórica na questão de apresentação de uma introdução vocal. Os


songbooks optam por grafar somente as melodias que contém letra, fato que se observa
também com outros compositores, principalmente no caso de Gilberto Gil.
O ínício da melodia cantada traz um salto de oitava de dó 3 a dó 4, sendo que o Do#
“pedal” é uma recorrência tanto do refrão (mote) quanto da parte B. O uso recorrente de
improvisos vocais pelo cantautor, e da nota do# (terça da Tônica) como espécie de “pedal”
vocal pode ser apontado como tendo relação com a técnica de scat singing norte americano.
112

Nessa mesma introdução retomo a questão de exploração de diferenças de registros


que já abordei em outros pontos do trabalho, e também a ser abordado principalmente na
canção Luz. Na última Djavan explora a diversidade de registros em letra enquanto que em
Esfinge o faz por variações melódicas e vocalizações não letradas.

Dicção e Variações:

As variações ficam por conta dos improvisos vocais, a melodia letrada é bem
representativa do material grafado.

3. Aspectos da canção:

Forma e harmonia:

// Intro // A // B // A // B //fade out


Maior incidência das cadências ii - V e iiº- V entre todas as canções e sobretudo na
parte B. Essa cadência, como se sabe, muito tipificadas pelo jazz e passível ao apontamento
de questões idiomáticas para improvisação. Também figuram muitos acordes com 7ª m,
caracterizados aos blues durante a primeira metade do século XX. Porém é predominante um
estilo de uma balada pop funkeada, caracterizado pelo timbre da guitarra rítmica 114 de Paul
Jackson Jr. Como apontei é uma guitarra de base de encaixe, que se coloca em tempos e
contratempos não explorados pelos outros instrumentos da base harmônica, assim destacando-
se na textura conjunta pontualmente mais do que simplesmente somar-se às bases harmônicas
já existentes.
A melodia com letra tem início pela região de subdominante, na cadência subV7 -
IV7M, seguindo uma quadratura estável de quatro acordes na parte A (I7M - sub V7 - IVM -
bVII7). A parte B traz o acorde de empréstimo modal bIII, e uma sequência de quatro

114
Rhythm guitar ao pé da letra séria guitarra rítmica, porém pode-se deduzir outros termos como “guitarra de
encaixe”, fator que o próprio guitarrista aponta, dizendo que “não é tão importante o quanto você brilha e sim
que onde você brilha brilhe intensamente. E a única forma com que você pode brilhar intensamente não é
pisando onde todo mundo está pisando, você espera a sua vez e é aí quando você vai [toca]” (JACKSON JR.,
Paul. in I Came to Play: Science of Rhythm Guitar [DVD], s/ data). Original em inglês: “It‟s not so much
important how much you shine, it‟s that when you shine you shine bright. And the only way that you can shine
bright is by not steping on everybody else is tolds, you wait your turn and that is when you go”. Fonte: Série de
vídeos “Paul Jackson Jr.- The science of the rhythm guitar”. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=BXufB17zcgo >, [2‟17‟‟ a 2‟29‟‟ de total 2‟30‟‟]; acesso em: 10 de agosto
de 2017.
113

cadências do tipo “dois-cinco” sem necessariamente serem resolvidas em suas tônicas (o que
ocorre propriamente só na última dessas cadências). Esse trecho musical coincide com o
trecho da letra “acasalar o canto do mar com minha voz de cantor e fazer do meu canto um
brado tão fundo que só um grande amor atinge”. A resolução da quarta cadência “dois-cinco”
(chegando no segundo grau menor ii - região de subdominante e passando ao relativo IV)
então sobre “amor atinge”. Essa conclusão parcial precede uma cadência final IV-V que
chega à tônica retomando a quadratura harmônica inicial já citada para a introdução e o refrão
(I7M - sub V7 - IVM - bVII7).

Instrumentação:

Piano e guitarra se destacam compondo a textura inicial, com timbres que remetem a
soul music norte americana dos anos de 1970. Banda base A responsável pela instrumentação
popular de baixo, bateria e teclas eletrônicas. Em relação às outras canções o timbre da
guitarra rítmica peculiariza a canção no todo do álbum. O guitarrista é elemento do mesmo
time de estúdio da banda A em outras produções. Claramente evita-se a utilização da guitarra
na maioria das canções, como opção ao timbre personalista e com linguagem brasileira
executado do violão de Djavan. Para essa canção a caracterização vocal em improviso é muito
mais latente, e o timbre de guitarra traz resultados de variabilidade de timbre e rítmicos para a
textura da canção em relação às outras canções do álbum, implementando maior diversidade
ao álbum Luz.

Letra:

A letra de esfinge revela novamente o anagrama: amor - o mar. Retomando que esse
tema trata da inversão das letras nas palavras, de forma que uma palavra está contida na outra,
e ambas seriam então reiteradas na canção. A parte A inicia a melodia cantada com “O mar
(...)” e a parte B por sua vez com “Se o amor (...) o canto do mar (...) que só um grande
amor”. Ou seja, pela primeira vez o quase anagrama também situa e demarca as partes
musicais da canção. É um fator relevante no modelo de análise que busco, sem polarizar letra
ou música, ou o que seria pior analisa-las de forma independente. Assim, trago elementos que
unem e misturam as análises de letra e música.
114

Rimas: o mar- uma; paixão - mão; meus- encheu; acasalar- mar; fundo - mundo;
atinge - esfinge.
A frase: “(...) um jeito de acasalar o canto do mar com minha voz de cantor e fazer do
meu canto” pode ser considerada tanto como contendo mais um anagrama (canto-cantor),
quanto na novamente na perspectiva de um processo de figurativização da atividade do
cantautor. Além disso, é possível apontar um paralelo da junção do canto do mar e voz de
cantor com a figura híbrida da esfinge, interpretando-se essa letra a partir do pano de fundo da
imagem da esfinge. A letra se encerra com a possibilidade do eu-lírico “amolecer o mundo e o
seu coração de esfinge”, metáfora essa que leva consequentemente à uma outra metáfora o
“coração de pedra” da sólida esfinge da arquitetura egípcia. Assim, constrói-se um jogo entre
os elementos concretos (da esfinge) e os elementos de desejo do eu-lírico que aparecem
durante toda a canção a serem solidificados (concretizados).
Ao apresentar a primeira parte cantada a partir de “O mar”, Djavan construiu os versos
subsequentes com verbos associados ao tema: “vazou” “encheu”, “evaporou”, “caiu” (em
gotas) “nublou”, com forte associação semântica. A segunda parte (parte B) é uma transição
de tema e então refere-se ao “amor”, os verbos que então se associam a amor (por via de
paralelismo à parte A) destacam-se em: “pode”, “fazer‟, “acasalar”, “fazer”, “atinge”
“amolecer”, fortalecendo um ideal de desejo de acontecimentos para a parte B. Assim, partes
A e B expressam-se em paralelo e são introduzidas por via do anagrama em destaque.

Conclusão de análise da canção “Esfinge”

Ao lado da canção Luz seria uma das canções com maior sequenciamento de acordes,
muito embora onte com a quadradura de acordes que Djavan usa recorrentemente na parte A
das canções. Contudo, o teor dos encadeamentos revelam sim um aporte jazzístico mais
característico já que na análise harmônica, Esfinge expõe a maior incidência das cadências ii -
V e ii7(b5) - V, os conhecidos “two-five” daquela que se categoriza hoje como “harmonia
funcional”, que aqui chamo de “dois-cinco” e são tipificados pela harmonia cadencial
jazzística. O fator não ocorre com essa incidência nas outras canções do álbum, com um dupla
incidência observada em “Capim” e outras somente pontuais.
Foi também uma das duas canções que contou com o uso da guitarra elétrica trazendo
uma linguagem funk, pop, smooth jazz caracterizadamente mais contemporânea através de
Paul Jackson Jr. que compões o time de músicos de estúdio da soul music norte americana.
115

Dessa maneira, “Esfinge” é a canção que se aproxima um pouco mais de características


cancionais norte-americanas. O pano de fundo da canção é ideal para certa proeminência de
uma maior liberdade vocal e exploração da voz como um instrumento (despida de letras), que
Djavan então apresenta amplamente nessa canção.

“Luz”

Canção que dá título ao álbum, Luz apresenta um difícil grau interpretativo vocal e
mesmo de execução instrumental. Também não possui regravações características ou que
possam ser mencionadas em valor documental parelho à essa gravação. Mesmo as
performances ao vivo de Djavan com outras formações de bandas contemporâneas resultam
em apresentações muito diferentes desse formato icônico gravado para a canção “Luz” no
álbum Luz.

1. Aspectos da linha melódica:

Tonalidade: Ré maior

Extensão: Lá a Ré Primeira(s) nota melódica: Última nota


(variação da 2ª repetição melódica: Ré
do compasso 26); duas
oitavas + um tom e meio.

Tabela 7: Parâmetros melódicos canção “Luz”

Salto: (ascendentes são mais característicos nessa canção)


Ascendente:

2. Aspectos da emissão vocal:


116

Uso de registros:

A canção categoriza a exploração ampla dos registros também ocorrendo na


enunciação da letra. Em Luz, Djavan usa inicialmente registro de peito vindo de uma região
grave da sua tessitura. Com o caráter ascendente da melodia faz a transição ao registro de
cabeça em parte médio-aguda da extensão, e por fim usando o falsete na frase “arcoirizando a
solidão”. Nesse caso, há exploração dos registros em melodia cantada, o que pode ser
considerado mais difícil tecnicamente do que em improvisos de sílabas sem sentido literal e
improvisos livres.

Dicção:

A inteligibilidade da dicção para a amplitude de registros que foi utilizada é destacável


enquanto um caráter técnico pessoal e de subjetividade do cantautor. Pelo caráter temático
ocorrem algumas elisões de palavras, nesse caso há a verbalização do termo
Candomblé→Oxum, resultando em “candombleou”, a transformação do substantivo em verbo
pode ser lida como um hibridismo linguístico gerado pelo caráter temático de enunciação
vocal. Tal fator é alavancado também pelas verbalizações paralelas anteriores e posteriores:
“marelou”, “zamburar115” que acabam indexando “candombleou”, primeiramente em rima e
depois em seu caráter verbal. Porém, de forma geral, é uma canção que categoriza uma dicção
muito inteligível, como tem-se dito também ligada à fala, sem perder coloquialidade mesmo
nesse ampliado grau de dificuldades técnicas interpretativas mencionado, seja na emissão
melódica expandida ou no alto grau de enunciação temática da letras. Assim, Luz revela um
alto nível interpretativo vocal de Djavan, o que amplia-se em subjetividade em função de não
haverem regravações verdadeiramente referenciais dessa mesma canção.

Variações:

Principal variação melódica também entre as repetições de “arcoirizando a solidão”


ambas em falsete, porém com diferenças melódicas na segunda repetição chegando à nota
mais aguda produzida no disco por Djavan, também não notada no material tradicional. O

115
Zamburar consiste em “praticar a adivinhação através do jogo de búzios (...) Consultar oráculo. Do quimbulo
- zambula, correspondente ao quicongo, zambula, „falar Nzambi para confirmar a verdade de qualquer coisa‟
(LAMAN apud LOPES)”. Fonte: (LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil: contendo mais de 250
propostas etimológicas acolhidas pelo Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro, Ed Pallas, 2006, p. 228).
117

grau de dificuldade interpretativa é bastante elevado, inclusive sem a perda da inteligibilidade


no trecho:

O trecho combina ainda o neologismo pela verbalização do termo arco-íris, merecendo


destaque na interpretação. Reparo que a variação da segunda repetição não ocorre somente na
sílaba “zan” (arcoirizando em nota ré no falsete), mas também duas notas depois em todas as
sílabas de “solidão”, fator que acaba por ampliar a distância melódica de retomada da próxima
frase. É um trecho também interessante de ser usado na prática do ensino do canto popular,
sobretudo com as transposições de tonalidades revelando novas possibilidades subjetivas a
cada intérprete na execução do trecho.
Nessa mesma perspectiva porém sem variação, cabe citar outro trecho anterior
inclusive recheado de termos afro brasileiros religiosos, muito interessantes na prática do
canto popular, e contendo ainda o salto mais ampliado de todo o LP sobre a palavra “Egum”:

a mesma frase melódica ocorre para a letra: “ (...) Mal-me-quer a vida segue o seu
lamento um tanto flor (...)”

3. Aspectos da canção:

Forma e harmonia:

//Intro// A// B// Intro AB (fade out)


Introdução no modelo convenção rítmico-harmônica. Tonalidade maior e uso
expandido de acordes do campo homônino menor. Maior incidência de algumas tensões (9ªs e
7ªs) nos acordes dessa canção do que por exemplo nas canções mais lentas de acordes
perfeitos “Açaí” e “Pétala” ou mesmo na canção “Sina” que apontei como paralela à essa no
primeiro pareamento de canções do álbum, as “suingadas rítmicas ou temáticas”.
118

Instrumentação:

Banda base A, percussões diversificadas (caxixi, caixeta, cow-bell, congas e bloco) já


em destaque na textura inicial e criando uma camada percussiva que possa se equilibrar na
textura das outras camadas instrumentais. O solo e os contrapontos de flauta transversal
também são proeminentes, e o idiomatismo de ataque de sopro desse instrumento também é
paralelamente do campo temático. Seria contrário ao movimentos de notas mais ligadas e de
maior volume dos solos de gaita harmônica e saxofones de outras canções, esses com
tendência ao campo passional pelo alongamento/intensidade das notas. A escolha da flauta
tem excelente resultado de hibridismo homeostático entre os fraseados da divisão ritmico-
melódica vocal (tanto em letra como em improviso), da divisão do solo instrumental e mesmo
da ambientação de introdução em flauta violão levando a convenção rítmica introdutória pela
banda A. É um solo digno de menção frente a outros solistas mais renomados que atuaram no
LP. No final, em fade out, contrapontos de improviso entre a flauta solista e a voz em
improviso vocal de seção livre. Canção que pode ser observada em camadas instrumentais
diversas: percussões; banda A; naipe de cordas; naipe de sopros; e camada de contrapontos
entre violão, voz e flauta.

Letra:

Canção cuja letra acaba constituindo forte inserção do campo temático de enunciação
vocal. O tema por si também é permeado do campo figurativo em regionalismos e descrições
do ofício, trabalho, desejos do cantatutor que aproximam o seu ouvinte. Por fim, é destacável
uma temática de letra híbrida na composição, indo de regionalismos a estrangeirismo, de uma
mística divina ampla (“fé” “viver da própria luz”) à temas do candomblé revelando caráter
sincrético da composição. As cores também são destacáveis no tema da letra (verde, azul,
marelou, arcoirizando).

Rimas: canga- tanga; um - num - azul - zoom - Egum; zamburá - tirar; marelou -
candombleou; riu-se - mim - triste; dor - dor; rio - cio; diz - triz - feliz - giz; traduz - luz; quer
- lamento;
Novamente surge o anagrama o mar - amor em: “(...) verde do mar (...) cheiro de
amor. É amor (...)”
119

As palavras trem e entrou constituiriam uma outra aproximação de palavras nessa


canção, porém não sendo propriamente um anagrama ou novamente atentando aos “quase
anagramas”, e ressaltando as sonoridades muito próximas e suas aliterações importantes sob a
ótica da rítmica melódica, ainda mais se considerarmos o verso completo “um trem entrou no
meu eu”. Djavan também reitera o uso da metáfora em “ trem entrou no meu eu e divagou”,
fator que também passa a ser observado recorrentemente.

Conclusão sobre a análise da canção “Luz”:

A extensão vocal é a mais ampla dentre todas as canções do álbum, merecendo uma
observação sob o ponto de vista de utilização dos registros vocais. Como se sabe no canto
popular não há uma necessidade de equalização de timbre entre os registros vocais e nem
necessidade de mitigação das “quebras de registro”. Djavan usa tanto o falsete quanto vozes
de peito e cabeça com desenvoltura técnica e sem tal equalização, além disso não deixa a
inteligibilidade da letra nunca ser perdida.
Há um caráter figurativo (figurativização) relativo ao tema “lição que o sol me traduz
viver da própria luz”, que também poderia ter algumas leituras diferentes. Também é um dito
popular e metáfora relativa ao sol, porém no caso de Djavan surge a leitura relativa ao ofício
de sua arte de cantor e compositor que ele mesmo reitera em diversas canções. Por fim, é
canção que dá título ao álbum, trazendo uma espécie de mensagem positiva, pois, na verdade
é Djavan quem interpreta e “traduz tal mensagem” dessa maneira colocando-a ao ouvinte.
Canção também de caráter temático e bastante divisiva em sua linha melódica,
gerando um difícil grau interpretativo. Percebidas também poucas regravações documentadas
talvez em função desse mesmo fator, pois há também boa dificuldade na execução
instrumental da canção seja em acompanhamento ao violão ou conjunto instrumental.
Colaboram com essa dificuldade: a extensão da linha melódica, nessa necessita-se tanto de
boa capacitação no uso do falsete quanto de dicção para manutenção da inteligibilidade da
letra e; relativa independência de acompanhamento de violão e melodia ambos com divisões
rítmicas peculiares. Destaco o ataque preciso e direto das notas agudas e o uso do falsete com
quebra de registro na frase “arcoirizando a solidão”. Isso seja na forma grafada (1ª repetição)
ou na variação da segunda repetição.
Haveria um caráter sincrético mítico-religioso em parte da terminologia da letra,
ocorrendo termos como “fé (...) zamburar (...) candomblé (...) viver da própria luz”. E também
surgem caracteres regionais (“verde do mar (...) burro (...) leito de rio”) e não deixam de
120

ocorrer termos românticos mesmo numa canção claramente temática, por exemplo em: mal-
me-quer, flor, paixão. Dessa forma, haveria um caráter híbrido relativo a diversidade de temas
da letra. Musicalmente também há boa combinação e mescla de camadas musicais: naipe de
cordas orquestrais; naipe de sopros116; banda base B; percussões (caxixis, caixeta, cow-bell,
congas e claves) O principal compartilhamento de atividade musical e que assim teria
caracteres cosmopolitanos se dá na grande interação entre o solista de flauta transversal
Hubert Laws e Djavan tanto em voz quanto no violão. Isso ocorre desde o início da canção na
ambientação simples de violão e flauta, até o final em improviso vocal e solos de flauta já
com toda a base harmônica e rítmica de fundo. Voz e flauta encerram a canção com
improvisos e jogos de pergunta e resposta de forte interação entre os dois artistas.
Por fim destaco que a canção em sua forma gravada para o álbum adquire um caráter
icônico razoavelmente diferenciado de diversas performances ao vivo posteriormente
documentadas. A concepção de estúdio adquiriu certo refinamento na concepção e equilíbrio
de camadas de instrumentos, que, a princípio não é facilmente reproduzida no formato de
banda popular categórico das apresentações ao vivo de Djavan. Colabora com isso ainda a
peculiaridade virtuosística do solo de flauta transversal e também a vocalidade gravada nessa
ocasião.

“Minha irmã”

A canção “Minha irmã” pode ser apontada com um samba híbrido. Apresenta
caracteres de composição oral e familiar combinados com instrumentação pop, improvisação
instrumental e a percussão urbana sintética com intensidade e volume de performance
relacionadas. Também traz a temática de letra familiar sendo canção de encerramento de um
dos lados do LP.

1. Aspectos da linha melódica:

Tonalidade: Mi maior (E)

Extensão: ( uma oitava + 5 Primeira nota melódica: Si Última nota melódica:


tons e meio) Sol#

116
Destaco a participação do renomado trombonista brasileiro Raul de Souza então radicado nos EUA.
121

Tabela 8: Parâmetros melódicos canção “Minha irmã”

Saltos:
Ascendentes e descendente no mesmo trecho (repetido uma oitava acima)

2. Aspectos da emissão vocal:

Uso de registros:

Primeira apresentação da canção com repetição em registro de peito e segunda em


registro de cabeça, lembrando que nessa canção o cantautor reapresenta toda a melodia uma
oitava acima em registro de cabeça. Não há improviso vocal, predominando os improvisos
instrumentais. Embora a extensão compreenda quase duas oitavas tem-se uma melodia
relativamente curta, estruturada em 8 compassos e que se repete uma oitava acima.

Dicção:

Frase de destaque: conclusão com colocação da voz nos contratempos (“passa pra
dentro menino que vai chover”).
Predomínio do campo temático de emissão vocal e assim as aliterações ganham corpo
na interpretação de uma forma geral.

Variações:

Djavan não apresenta variações melódicas, tal efeito já sendo caracterizado na


repetição de toda melodia oitava acima, muito embora as variações rítmicas possam ser
consideradas em outras performances, são de difícil execução pelo andamento acelerado.
122

Executada canonicamente e mesmo sem variações da rítmica melódica a canção já caracteriza


grande capacidade de execução sobre os procedimentos de tematização.

3. Aspectos da canção:

Forma e harmonia:

É uma canção sintética da quadratura de 8 compassos binários, sendo que sobre essa
se construiu uma variação introdutória.
Fora o acorde de tônica I7M se caracteriza por encadeamentos de acordes dominantes,
ora com tensões de nona (9) ora de décima terceira (13). Porém ganha mais relevo que a
harmonia por si o encaixe harmônico dos acordes, na forma de síncopas da harmonia que
coincidem com ataques melódicos também sincopados.

Instrumentação:

Canção cujo clima de ensaio, informalidade e continuidade é potencializado pelos


efeitos de fade in e fade out. Isso faz com que se considere que a música já estivesse
acontecendo quando inicia a faixa (fade in) e aparente que ela irá continuar ao final (fade out).
Predomina a sonoridade das acentuações de bateria, timbales e cow bell com encaixe
das congas em segundo plano. As primeiras tocadas tendo a intensidade como caractér
marcante já que a textura rapidamente se adensa com sopros e cordas em bloco num tema
introdutório. Durante o canto reduz-se a intensidade geral da canção com retomada dessa na
reapresentação do tema. O solo de mini moog encerra a canção em fade out.

Letra:

A letra de referenciação familiar, estruturada em oito compassos é muito próxima do


que documentou-se para a tradição oral prosódica. Sintética seria composta de duas quadras,
ocorrendo juntamente com as pronúncias ligadas à fala do intérprete em caráter bastante
coloquial.

Rimas:
roncou - matou; você - chover (rima de oralidade [chuvê])
123

Conclusão de análise da canção “Minha irmã”:

A canção Minha Irmã de Djavan apresenta estrutura e contextos compositivos que


apontam características dos cantos de lavadeiras apreendidos no acompanhamento do trabalho
materno pelo cantor e compositor, na região do nordeste brasileiro.
Através dessa canção, a temática de cunho familiar com estrutura musical de base
prosódica em oito compassos binários, as acentuações sincopadas e o canto com repetição
melódica oitava acima, denota certa proximidade à cantos de base oral, que Djavan já
descreveu acerca dos cantos de trabalho das lavadeiras, no qual ainda menino acompanhava
sua mãe.
Diferentes recursos técnicos são observados como: improvisação instrumental com
timbração de órgão eletrônico característico da soul music dos anos de 1970, recursos “fade
in” e “fade out”, conjuntos de base pop rock mesclado às percussões brasileiras já de
características urbanas pelas peles sintéticas e não as de origem animal/vegetal, resultando
num gênero híbrido aproximado do samba funk mas perspassado por uma base rítmica
nordestina aproximada do coco. Uma canção brasileira com características tradicionais e de
base oral sendo relocada em outros contextos comerciais a partir de técnicas pós-
composicionais, como: instrumentação; improvisação; mixagem e recontextualização
midiática.

“Nobreza”

Música feita sobre encomenda por Djavan a pedido de Fernando Faro para um amigo
comum de ambos117. Trata do tema de amizade. É uma das canções lentas de base orquestral,
apesar do tema amizade há indicações passíveis de serem observadas num campo romântico
ou mesmo híbrido “nossa velha amizade nasceu (...) dois homens apaixonados (...)”.

1. Aspectos da linha melódica:

Tonalidade(s): Lá menor (Am) e Dó maior (C)

117
O amigo é Paulinho, porém sem precisão relativa ao sobrenome, já tendo sido atribuída como feita a
Paulinho da Viola, Paulinho Albuquerque e Paulinho Nogueira, com indicações muito mais próximas para o
último.
124

Extensão: Dó a Fá Primeira nota melódica: Mi Última nota melódica:


(uma oitava + dois tons Dó
e meio)

Tabela 9: Parâmetros melódicos canção “Nobreza”

Saltos:
Ascendente: Fa# a Mi

Descendente: Dois em sequência Fá a Si e Si a Mi

2. Aspectos da emissão vocal:

Uso de registros:

Predominância do registro de cabeça descendo ao registro de peito, a canção tendo um


caráter descendente começa em sua região mais aguda e desce ao longo da estrofe e do refrão.

Dicção:

Frases destaque com melodias de divisão rítmica tercinadas (quiálteras):


“O amor se desnudando”.
“No meio de tanta gente” (“mei” dicção falada, a divisão rítmica não permite a
pronúncia “meio”).
125

“doce descascado” (prevalesce a pronúncia coloquial “discascado”) juntamente com as


aliterações destacáveis.

Variações:

A canção é a de divisão melódica mais “simples” do disco, predominando notas nos


tempos fortes e contratempos.

3. Aspectos da canção:

Forma e harmonia:

// A // B // A // B //
Canção em tonalidade menor conclusiva na relativa maior a partir de um acorde de
empréstimo entre os relativos maior e menor (lá menor e dó maior). É a única canção do
álbum em que não se usou o violão do cantautor na gravação (único caso do álbum).
Predomina a roupagem orquestral de piano, baixo e do naipe de cordas. Porém a concepção
em voz e violão é perceptível aqui e em reinterpretações, com destaque para a versão ao vivo
de Caetano Veloso para programa da Rede Globo 118 em 1988 no programa Chico & Caetano.

Instrumentação:

O piano é tocado em arpejos curtos contando logo com a entrada dos instrumentos de
cordas e baixo num clima jazzístico contemporâneo. A textura é homofônica com poucos
instrumentos e algum preenchimento maior ocorrendo por via de cordas orquestrais.

Letra:

Tema ambíguo, entre a amizade e romantismo: dois amigos e ambos apaixonados.

Rimas: nasceu - ascendeu; ver [vê] - prazer - você; frente- gente – dentes

118
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=FyE_fl8iljE>
126

A canção tem grande incidência metafórica em termos como: “olhos de abril”,


“talhada em você”, “capim pros meus dentes”, “velha amizade nasceu de uma luz”
“concedendo-me a graça de ver”, “mão do prazer”. Lembro que a metáfora acaba se
constituindo por via de um fator imagético muito forte que faz parte da categoria dos ícones
semióticos, sendo a metáfora um elemento paralelo à imagens e representações gráficas
(mapas, diagramas) incluídos nessa mesma categoria das relações signo-objeto (TURINO,
1999). Esse é um dos fatores que sem dúvida contribui para algumas observações do conteúdo
imagético observado por ouvintes nas canções de Djavan, sem que se percam referenciais
textuais significativos tanto de sonoridade vocal (aliterações) e de conteúdo das letras. Na
semiótica, as metáforas são descritas como ícones, atuando em primeiridade, ou seja,
aproximando signo e objeto, muito embora sujeitas à interpretações subjetivas ampliando o
caráter polissêmico de entendimento das canções.

Conclusão de análise sobre a canção “Nobreza”

A roupagem orquestral ganha maior incidência do que por exemplo na canção “Banho
de Rio”, tanto pelo tema da letra, quanto pelo uso do piano como acompanhamento
harmônico principal. Contudo, ao aproximar a linguagem da fala, com termos coloquializados
Djavan equaliza a possível polarização passional que seria tácita pelo conteúdo da letra com
caracteres de amizade e/ou romântico e ainda pelo andamento desacelerado. Djavan já havia
cantado o “nobre” na canção “Estória de cantador” também de caráter voz e violão no álbum
Djavan de 1978 e onde realiza coro vocal e duetos consigo mesmo naquela gravação. No LP
de 1976, A voz, o violão, a música de Djavan, ele canta “(...) entre nobres e caras-de-pau
sufocados no mesmo ideal (...)” (DJAVAN, 1976) na canção “Embola bola”. Isso ocorre
subliminarmente na canção de Dori Caymmi sobre texto de Jorge Amado, a já citada “Alegre
Menina”. Nessa última Djavan atua somente como intérprete para a trilha da novela Gabriela
mas traz alguns elementos do campo literário para as letras de suas canções, hibridizando a
“realeza” de Jorge Amado então na forma de “nobreza” reiteradamente e em algumas de suas
canções.
Como observei alguns efeitos vocais coloquiais também reduzem os alongamentos
vocais que resultariam possivelmente exagerados para os vibratos e melismas que surgem na
canção. Devo destacar novamente a interpretação dessa canção por Caetano Veloso para um
programa da TV Globo disponível no sítio Youtube, que revela a ideia que aponto acerca do
modelo compositivo de voz e violão para a canção. Ressalto que as linguagens e idiomatismos
127

pianísticos e do baixo aqui foram pontuais no disco, e usados para dar maior diversidade no
contexto do álbum e gerar diferenciação em relação ao arranjo da outra canção com esse
caráter “lento de cordas orquestrais” no LP Luz, diferenciando-a da canção Banho de Rio.

“Pétala”

Segunda canção de caráter romântico de Djavan nesse álbum, sendo


predominantemente do campo passional e também contando com a caracterização orquestral
mesclada com a banda de base.

2. Aspectos da linha melódica:

Extensão: fá a fá# Primeira nota melódica: Última nota melódica: Lá


Dó# (tônica)
(3ª M)

Tabela 10: Parâmetros melódicos canção “Pétala”

Saltos:
ascendentes (salto de 4ª#)

descendente: ré a fá#

2. Aspectos da emissão vocal


128

Uso de registros:

Registro de cabeça predominante, porém no principal salto descendente Djavan passa


da voz de cabeça a voz de peito. No geral predomina a tessitura médio-aguda

Dicção:

Há ligação/elisão entre as palavras que ocorre em função dos alongamentos de notas


finais, com alguma tendência ao legato. Um efeito disso é a passionalização já citada com sua
tendência a reinterpretações com aplicação contrastante de vibratos, melismas e mesmo da
intensidade de emissão.

Variações:

A presença de melisma no compasso 21 mostra que Djavan além de cantar no modelo


canto silábico mais categórico da MPB, já apresenta em sua emissão boa diversidade de
melismas, que seriam interpretações mais comuns por exemplo aos cantos lírico, comercial
norte-americano e à pop music. Aqui trata-se da vogal “a” da palavra encantado indo para a
nota mais aguda da extensão num intervalo ascendente de meio tom (fá # a sol) e volta
descendente por salto (sol a mi) para a última sílaba cantada “do” de encantado. Haveria um
paralelismo melódico entre esse trecho do compasso 21 e o mesmo trecho do compasso
anterior de número 19 da palavra “exato”, mas nessa ele não apresenta a variação à nota sol e
nem o melisma da vogal para essa palavra que é relativa a “amor”, da frase “(...) por ser exato
o amor(...)[sem a variação] por ser encantaado o amor (...)[com a variação melismática]”.
Aqui, sem dúvida prevalesceu uma relação interpretativa com a letra, pois a colocação de um
melisma sobre a palavra exato resultaria pouco convincente num aspecto interpretativo e
tomada a interpretação popular como efeito de dizer algo.

3. Aspectos da canção

Forma e harmonia:

//Intro//A // B // A (solo) //: B ://


129

Harmonia em tonalidade maior com reiteração da quadradura: / I iii / IV7M V7(4)


/, sendo o acorde dominante às vezes substituído ou por bVII7 ou por acorde de empréstimo
modal (iv6). A estrutura se mantém até mesmo no refrão com substituição do segundo acorde
da fórmula ou iii7 por acorde dominante perfeito de baixo invertido no 4º grau do acorde em
pedal com a tônica o V/4ª.
A fermata na penúltima sílaba/palavra tônica da canção reforça um caráter orquestral
não muito comum à canção popular, acontecendo na palavra “e” que liga as palavras “invade
e fim”, também com boa relação letra/música na suspensão do andamento e métrica (fermata)
em “e” retomada desse(a) em “fim”. A partir da palavra “fim”, então, retoma-se o andamento
normal da canção com abertura da sessão final e fechamento categórico de música de
apresentação.

Instrumentação:

Equilíbrio da banda de base A com arranjo orquestral.


Contracanto e solo de sax tenor: Ernie Waltt. Não se revela na introdução, surgindo na
primeira repetição de A com contracantos vocais.
Prevalecem timbristicamente as teclas (tanto de piano quanto de teclado), reforçando o
hibridismo elétrico-acústico das teclas, e destaca-se o saxofone. Mas a caracterização
orquestral se torna latente no início e no fim da canção, revelando que não são só as canções
lentas de caráter orquestral. O peso orquestral é equilibrado pelo peso da banda de base, não
resultando tão contrastante como nas canções lentas.

Letra:

A passionalização predominante se combina com caracteres líricos da letra como “Oh


meu amor”, a reiteração por cinco vezes da palavra “amor”, algumas elisões de vogais e
também melismas.
Rimas: destino - tino; pétala - devagar (oralidade [divaga(r)]); desejo -beijo -vejo; em
si - revela-se; viver - viver; exato - encantado.

Conclusão de análise da canção “Pétala”


130

Canção de abertura do álbum em seu lado A, com início e fim mais categóricos da
performance de apresentação que acaba se combinando com início e fins de caracteres
orquestrais. Na vocalidade há predominância de notas longas revelando um caráter passional
latente dos procedimentos e que se conjuga com o conteúdo romântico da letra. Assim
observam-se alguns recursos como: “todo sacrifício”, “quanto mais”, “muito mais” que
refletiria num desejo de totalidade e abrangência. Surge também, de forma um pouco mais
aparente em relação às outras canções do LP um lirismo cancional (neo)romântico para a
MPB, observável no verso “Oh, meu amor viver é todo sacrifício feito em seu nome”. A
palavra “amor” sendo reiterada cinco vezes na letra escrita da canção, oito vezes com uma
exposição e repetição do refrão, e quatorze vezes ao todo já que a forma opta por não repetir a
parte cantada em A (destinada então ao solo de saxofone). Assim, há um cenário musical
propenso ao alongamento das vogais, à exploração de vibratos e à redução do andamento da
canção que pode ser descrito como uma passionalização exacerbada pelo cancionista e
intérprete. Essa seria, no todo do álbum, a canção mais caracterizadamente do campo
romântico-passional. O solo de saxofone também contribui para a exacerbação do caráter neo
romântico que tento categorizar para a canção. O sax traz uma característica de música pop
romântica que seria ainda muito utilizada na década de 1980, inserindo-se e tendo utilização
saturada nos subgêneros de cunho prioritário comercial da década de 1990. Isso inclusive
enquanto característica de diferenciação entre as instrumentações dos “artistas de catálogo” e
a reiteração exagerada de tal recurso para as instrumentações/arranjos que prevalescem ainda
hoje nos subgêneros de cunho prioritariamente comercial, como exemplo o saxofone no
“pagode comercial dos anos 1990‟ e os naipes de sopro inseridos (contrastivamente ou não)
contemporaneamente no “forró de plástico”. Porém na época, como explorei já através da
canção Açaí, a sonoridade foi sendo colocada não só no pop e no rock nacionais, mas também
em filmes, comerciais e temas românticos instrumentais. Esse é um hibridismo sobre o qual
Canclini já havia ponderado, já que elementos de outras esferas passam a ser indexados na
música. E como apontei o saxofone se torna um elemento cosmopolitano na canção popular
ocidental, ilustrado sobretudo nos anos de 1980. A sonoridade chega às canções e subgêneros
de cunho prioritariamente comercial dos anos de 1990. Como exemplo, de possibilidades de
polarização ao campo passional, Pétala é regravada por Alexandre Pires (ano 2017 numa série
intitulada DNA musical) em dueto com Djavan. Ali observa-se: introdução de saxofone,
vibratos aparentes, menor diferenciação da sonoridade de vogais (distanciamento do canto
falado) e variações melismáticas contrastivas bastante exageradas. Demonstra-se ainda, nessa
mesma versão, como o campo passional pode ser extrapolado ou mitigado em função do
131

intérprete para o caso do canto popular, e como esse último, por sua vez, passou a sofrer as
influências do canto comercial norte americano na difusão central.

“Samurai”

Faixa inicial do lado B do disco que ganhou enorme importância pela participação de
um pop star da música norte americana, Stevie Wonder. Há uma interessante versão de Ed
Motta, contudo, a versão de Djavan apresenta um caráter relacionado à dicção amplamente
superior sob o aspecto da inteligibilidade, que, considero primordial ao canto popular que aqui
temos referenciado a partir do ofício híbrido de cantautoria que tenho delineado.

Aspectos da linha melódica:

Tonalidade: Mi maior (E)

Extensão: Ré# a Sol# Primeira nota melódica: Última nota melódica: Fa#
(uma oitava e dois tons)

Tabela 11: (continuação) Parâmetros melódicos canção “Samurai”

Saltos: ascendente (sol# a ré#)

desc. (comp. 17: sol a dó) desc.recorrente(comp. 2, 6 e 8 ré# a sol#)


132

2. Aspectos da emissão vocal:

Uso de registros vocais:

Predomínio de registro de cabeça para a melodia letrada, e improvisos em falsete na


coda em contraponto à gaita harmônica de Stevie Wonder. A mesma canção é reinterpretada
ao vivo com muitas variação das notas mais sustentadas, ou mesmo redução das variações na
forma em que foram gravadas originalmente em Luz. Fator observável em seu álbum ao vivo
de 2002, com simplificação de alguns melismas em prol de notas mais estáveis.

Dicção:

Há uma frases de destaque pela dificuldade interpretativa: “Eu quis lutar contra o
poder do amor, caí nos pés de um vencedor para ser um serviçal de um Samurai.” Tal frase
tem no primeiro trecho a nota mais alta da canção coincidindo com a sílaba “lu” de “lutar”, e
após uma curta pausa de colcheia para um trecho melódico longo com caracteres rítmico-
melódicos específicos, cujas acentuações de palavras caem prioritariamente nos contratempos.

Variações:

Canção particularmente interessante sob um aspecto que venho observando na


interpretação de sua própria obra pelo cantautor. Djavan tem apresentado normalmente um
padrão canônico para então propor outra linha nas repetições. Dessa maneira a letra da
primeira parte “Ai …. Ai” ganha variação em letra e melodia “Vai … sai” e melismas
aparentes na reapresentação do tema, também não grafados na maioria dos songbooks
consultados.

3. Aspectos da canção:

Forma e harmonia:

Intro //: A :// B // A // B // Intro (solo em fade out) //


Harmonia em tonalidade maior. Destaco um acorde bIII7M de empréstimo modal
(parte B) que aparece também em outras canções como “Luz” (bIII7M) e “Esfinge” (bIII7).
133

Novamente uma quadratura de acordes iniciais com pequena variação do último acorde dessa
da primeira para a segunda frase (I7M - Xo - iii7 - V7/ii) e ((I7M - Xo - iii7 - V7/I). A parte B
tem polarização da região subdominate na forma do acorde IV7M.

Instrumentação:

Banda base norte-americana.


O solo de gaita de Stevie Wonder figura logo aos 31 segundos nessa primeira faixa do
disco, valorizando a participação internacional. Contudo, percebe-se que o astro internacional
não figura como vocalista no álbum, o que seria um cuidado para a preservação da
característica vocal de um só artista, isso ocorrendo mesmo nos coros do disco. Assim, só há
uma vocalidade no álbum. Também relembro que Djavan é o único compositor e letrista do
álbum e que aponta-se que “para demonstrar a unicidade do produto é necessário atribuí-lo a
um criador singular." (FLICHY apud DIAS, 2000, p. 61)

Letra:

Mesmo aparentemente predominando o campo passional das notas iniciais, as linhas


melódicas subsequentes ganham importância pelos deslocamentos rítmicos-melódicos e
também pelo silêncio (pausas) de emissão vocal, possibilitando ou mesmo tendo
propositadamente sido aberto um espaço considerável para o encaixe de contracantos dos
arranjos de sopros e exploração maximazada de atuação do solista principal: Stevie Wonder
na gaita harmônica. Isso tudo, em relação à enunciação da letra, resulta num contraste entre as
partes A e B, possibilitando uma espécie de dobra do ritmo de emissão da melodia vocal de A
para B. O processo é acompanhado pelas características de letra e melodia que são
caracterizadamente de emissão temática na parte B.
Rimas: coração - paixão; praga - afaga; fere - pele; luar - lutar; amor - vencedor; ai - ai
- ai - vai - sai; samurai - atrai.

Conclusão de análise de “Samurai”:

As iniciais de frases Ai - ai - vai - sai constituiriam uma progressão da canção num


caráter cíclico que fecha-se na frase “(...) ser um serviçal de um Samurai, Ai mas eu tô tão
feliz, dizem que o amor atrai”. Enfim é uma canção de reiterados “ais” não de dor mas de
134

busca de um amor circundado durante toda a canção. Na próxima análise sobre reiteração
observo como existem palavras aparentes reiteradas e outras difusas, inseridas em termos,
metaforizadas ou substituídas. O ai dessa canção é considerado o caso típico de reiteração que
a princípio chamo de fonética, mas que na verdade constitui um recurso estilístico do
cantautor.
Também é interessante observar como a variação em letra proposta para as segundas
repetições em vai e sai, depois de dois ais “canônicos” é acompanhada de uma variação
melódica e/ ou melismática sobre o material inicial.
Por fim, destaco a importância da mediação do produtor musical no resultado final da
canção.

Quando fiz Samurai, e sabendo que ia gravar nos Estados Unidos, tive a idéia de ter o
Stevie Wonder tocando harmônica. Mas me parecia até certo ponto uma ideia um
pouco longínqua, difícil de ser concretizada. Só que o Ronnie Foster, que era o
produtor do disco, era amigo dele, tinha sido músico da banda dele. Ronnie falava que
o Stevie Wonder já me conhecia, tinha fitas, gostava e tudo. Quando chegamos a Los
Angeles, pedi para o Ronnie convidá-lo. E ele topou com a maior naturalidade.
(DJAVAN, 1998)

“Sina”

Faixa que encerra o lado B é provavelmente a canção mais executada do álbum e


também posteriormente a ele. Acabou, ao longo dos anos, tendo forte reprodução por via do
modelo do campo participatório de voz e violão das ambiências musicais de bares e casas
noturnas. Seu ataque harmônico inicial no contratempo traz um grau de contrametricidade que
se destaca no arranjo geral. Há regravações muito pertinentes de Caetano Veloso e Gilberto
Gil que merecem destaque e apontam a indexação de Djavan aos cantautores baianos da MPB
consagrada nos fim dos anos de 1960.

1. Aspectos da linha melódica:

Tonalidade: Lá maior (A)


Tabela 12: Parâmetros melódicos canção “Sina”

Extensão: Mi a Fa# Primeira nota melódica: Última nota melódica:


(uma oitava) Do# Lá
135

Tabela 13: Parâmetros melódicos canção “Sina”

Saltos:
ascendente (compasso de repetição de A) Mi a Do#

descendente: (intervalo recorrente) Do# a Fa

2. Aspectos da emissão vocal:

Uso de registros:

O coro de vozes sobrepostas pelo próprio Djavan, fazendo um arranjo vocal em até
quinze vozes, possibilitou que ele expandisse o uso de registros agora de forma harmônica
(“Esfinge” seria a categorização do uso melódico dos registros em improviso e “Luz” dos
registros sobre letra). Há uma longa repetição da introdução explorando e ressaltando essas
texturas vocais. Nesse ponto percebe-se que se evitou o aparecimento de outras vocalidades
que não a do cantautor no álbum, colaborando na afirmação da forma de colocação dos outros
solistas instrumentais no disco, evitando que esses caracterizem mais prontamente as linhas
melódicas através da introdução e resguardando o caráter solista à voz, ou ainda que os timbre
de solista instrumental não aconteçam com um certo grau de surpresa, nas canções em que
isso ocorre.

Dicção:
136

Típico canto temático de cunho afro-brasileiro. Palavras curtas e utilização do silêncio


na melodia dando relevo ao caráter rítmico já aparente na canção. Os alongamentos melódicos
são mínimos, sendo canção típica do campo temático.

Variações:

“Sina” não se categoriza por variações de melodia, pois o seu principal caráter é a
manutenção mais precisa da melodia sobre a base rítmico-harmônica prioritariamente
contramétrica, constituindo um grau de dificuldade interpretativa que é potencializado em
caso de canto com auto-acompanhamento harmônico.

3. Aspectos da canção:

Forma e harmonia:

// Intro A B C // Intro expandida (coro 15 vozes) // A B C (fade out) //


Síncopa harmônica e melódica são recorrentes firmando a base da canção, que é
variada somente no trecho B “a luz de um grande prazer” até “açoitar o ar reveillon” sendo
retomada no refrão.
Evita tensões fazendo opção por acordes perfeitos e acordes com variações de baixo
em A e C. Porém somente na ponte (parte B) Djavan coloca alguns acordes com tensões
combinados ao trecho intermediário “A luz de um grande prazer é irremediável neon, quando
o grito de um prazer açoitar o ar, reveillon”. Depois desse reabrindo novamente uma
sequência de acordes perfeitos para o refrão muito parecida com a parte A. Há equilíbrio entre
as três regiões tonais (tônica, dominante e subdominante)

Instrumentação:

Aparecem elementos percussivos afro-brasileiros com características regionais que


contrastam com a banda base A. Há um crescendo na inserção de instrumentos do início da
música ao início da parte cantada (parte A).
O coro de vozes é (quinze vozes) é colocado entre as repetições da canção
Os violinos por sua vez só entram ao fim da canção, em uníssono com a melodização
vocal de encerramento que também ocorre em fade out.
137

O crescendo na inserção de instrumentos é também observado no coro de vozes e


ilustrado pelos violinos na camada final da música.

Letra:

Sina tem um cunho cancional do campo temático. Djavan opta por palavras
paroxítonas na parte A evitando assim uma força passional em fins de frase, embora isso
também ocorra pontualmente. Parte A tem então: ouro, mina, desejo, sina, tudo, rotina, e
mesmo as oxítonas são mitigadas pela oralidade nordestina, como em “coração”, criando uma
espécie de acentuação híbrida “córação”: proparoxítona e oxítona. Tanto pela regionalidade
quanto pelo ataque da emissão vocal na síncopa em “desejo”, já que nessa última o sotaque
não é proeminente.
Rimas: mina - sina - rotina; mais - jazz (rimas forjadas na oralidade cantada); amor -
nouveau; princesa - natureza - beleza; mais - jazz (reitera a rima); neón - reveillon; luar - mar;
dom - front; lapidar - gerar - caetanear; som - bom.
Obs: jazz também tem aqui um caráter de fechamento de estrofe, surgido de jaz do
verbo jazer, caracterizando o findado, morto, sepultado.
Anagrama recorrente no álbum o mar - amor: “Tocarei seu nome pra poder falar de
amor (...) estrela do mar (...)” também aparece nessa canção.
Ocorre a citação a Caetano Veloso em “caetanear”. Essa merece alguma explanações à
parte. Realmente Caetano passou a admirador de Djavan, reinterpretando inúmeras canções
(“Nobreza”, “Oceano”), convidando Djavan para programas de TV (Caetano & Chico, 1989)
e chegando enfim à parceria de “Linha do Equador” (Caetano Veloso/Djavan). Apesar disso
não posso deixar de mencionar também a possível ambiguidade do termo “caetanear” já que o
nome próprio de Djavan é Djavan Caetano da Silva. Tal ambiguidade contemplaria ambos os
artistas, e acaba alavancada pelas recorrentes metáforas e possibilidades de sentido semântico
das letras que Djavan apresenta no álbum Luz, como irei mostrar ainda no próximo capítulo
contento um campo analítico de letras. Relembro que a gravadora de Caetano lança em 1985
uma coletânea de Caetano com o título Caetanear. Há uma espécie de sinergia artística e
industrial entre ambos no período, pois no mesmo ano Caetano inclui uma citação de Djavan
em seu álbum Cores, Nomes apontando ali que “(…) sou do clã do Djavan (...)” (VELOSO,
“Ele me deu um beijo na boca”, in: Cores, Nomes, 1982) no mesmo ano de lançamento de
Luz.
138

Conclusões de análise da canção “Sina”

“Sina” é a canção que apresenta mais elementos rítmicos latentes e caracterizadamente


afro-brasileiros ao lado de “Minha irmã”. É uma percussão mais de encaixe das células e dos
timbres do que a percussão caracterizadamente mais urbana. Essa última prima pela
intensidade e constituição de blocos sonoros, como ocorre em “Minha irmã ”.
A opção por acordes perfeitos em Sina, com raras tensões (exceto acorde dominante V
sus), também contribui para a afirmação de proximidade nas harmonizações de ijexás, cocos,
maracatus e ritmos tradicionais e/ou folclóricos do Brasil. Lembro que Djavan cita o uso de
acordes perfeitos a partir de referências à música dos Beatles.
É a canção na qual o cantautor extrapola possibilidades de estúdio para sua capacidade
técnica vocal, se apoiando em fatores tecnológicos que possibilitam a sobreposição de sua(s)
própria(s) voz(es) e exploração de registros numa perspectiva de efeito harmônico vocal, já
que a perspectiva melódica dessa exploração esteve presente de formas diferentes sobretudo
nas canções “Luz” e „Esfinge”.
O uso pontual dos violinos no fechamento da canção e em contraponto com a voz
aponta que esse instrumental resultaria contrastivo no bojo de uma canção rítmica popular, ou
mesmo saturando a textura apresentada no decorrer da canção. Também faz o papel dos
diversos instrumentos solo que encerram as canções do álbum em paralelo com a voz, já que
nessa canção o caráter solo instrumental foi substituído pelo coro de vozes entre as duas
repetições.
“Sina” teria caracterizações híbridas pela observação dos campos musicais. Remete à
música de dança de caráter participatório, e é canção do campo de gravação de alta fidelidade.
Porém, se observada na perspectiva do campo de estúdio áudio-arte, o seu coro de 15 vozes
sobrepostas é fator prioritariamente tecnológico e não executado em performance ao vivo (ao
menos para as performances posteriores documentadas), tornando-se um objeto sonoro muito
fechado e não unicamente referencial às performances ao vivo. Posteriormente, “Sina”
também adquire, gradativamente, mais um outro caráter de música participatória, ao ser uma
canção muito reiterada em bares e casas noturnas tornando-se praticamente um cânone do
formato voz e violão, ali para ser “cantada junto”.
139

Verticalização e sistematização dos dados:

Tabela 13: Sistematização comparativa de parâmetros musicais

Canção: Tonalidade Textura Banda de base Fade Recursos específico

Açaí - Ré maior Transparente Banda híbrida fade Violão dedilhado


3ª/B var. dinâmica out
(4‟35”)

Banho de Lá menor Transparente não há Voz e violão, com


rio - 2ª/B homofônica recursos de vocalidade
( 4‟35”) rural

Capim - Fá maior Transparente Banda B “Sururu de fade arranjo de metais de


4ª/B (F) leve (“sam- Capote” out Moacir Santos
(4‟19”) ba canção”) Divisão melódica
vocal.

Esfinge - 4ª/B Mi maior Transparente Banda estúdio fade guitarra funk


(4‟20”) (E) (USA) - base A + out Boa extensão vocal em
guitarra improviso

Luz - 2ª/A Ré maior Transparente Banda estúdio fade Ampla extensão vocal
(4‟06”) (D) (USA) - base A out em letra
Tematização categórica

Nobreza - 3ª/A Lá menor/ Transparente não há baixo fretless e


(2‟28”) Dó maior homofônica ausência de violão

Minha irmã - Mi maior Transparente Sururu de fade fade in


5ª/A (E) densa (“samba Capote - base B in e
(2‟10”) de rua”) out

Pétala - Lá maior Transparente Banda estúdio início e fim categóricos


1ª/ A (A) variação de (USA) - base A de performance
(4‟41”) dinâmica para orquestral ao vivo e
solo e abertura do lado A.
repetição Passionalização
refrão. categórica

Samurai - 1ª/B Mi maior Transparente Banda estúdio fade contracanto e solos de


(4‟46”) (E) densa (USA) - base A out Stevie Wonder e
abertura do lado B.

Sina - 5ª/A Lá maior Transparente Banda estúdio fade coro de 15 vozes,


(5‟30”) (A) (USA) - base A + out contrametricidade
guitarra. latente, ampla
execução de caráter
participatório.
Tabela 14: Sistematização comparativa de parâmetros
140

Tabela 14: Sistematização de parâmetros/ conclusões parciais

Canção: Solo Vocalidade Teclas de base Instrumental


instrumental geral.

Açaí - Sax soprano Passional/ eletrônicas + Banda base A, arranjo de


3ª/B (Zé Nogueira) tema híbrido acústicas cordas
(4‟35”) regional- paixão

Banho de S/ solo Passional/ tema sem teclas Violão e arranjo cordas


rio - 2ª/B regionalista-
( 4‟35”) romântico

Capim - mini moog Temática/ tema Piano elétrico Banda base B,


4ª/B (Ronnie Foster) regionalista. arranjo de metais e
(4‟19”) Citação a percussão (tamborim,
Jackson do congas, triângulo e surdo).
pandeiro.

Esfinge - s/ solo instrumental, Temática c/ eletrônicas + Banda base A,


4ª/B destaca-se a exploração de alongamentos acústicas guitarra. arranjos corda e
(4‟20”) improvisos vocais e passionais. sopros, percussão (claves
guitarra base funk. e bloco)

Luz - flauta transversal Temática acústicas Banda base B,


2ª/A Hubert Laws arranjo metais e percussão
(4‟06”) Obs (Solo + intro) (congas, claves, caxixi,
cow-bell, caixeta, cincerro)

Nobreza - S/ solo Passional/ tema Piano acústico Piano, baixo fretless e


3ª/A amizade e arranjo cordas
(2‟28”) romântico

Minha mini moog Temática + eletrônicas + Banda base B,


irmã - (Ronnie Foster) figurativa/ tema acústicas arranjo metais e percussão
5ª/A regional/
(2‟10”) coloquial

Pétala - Sax tenor: Ernie Waltts Passional eletrônicas + Banda base A,


1ª/ A acústicas arranjo cordas e sax tenor
(4‟41”) solo.

Samurai - Gaita harmônica Passional (parte eletrônicas + Banda base B,


1ª/B Stevie Wonder A) temática acústicas arranjo metais
(4‟46”) (Obs: solos mais (parte B)
contracantos)

Sina - 5ª/A Não há solo, destaque para Temática/ eletrônicas + Banda base A,
(5‟30”) o coro de 15 vozes Citação a acústicas violinos pontuais,
sobrepostas de Djavan Caetano Veloso percussões (timbales,
xequerê, blocos)

Conclusões e observações
141

Tempo Predomínio de solos de Fluidez pelos Piano acustico Instrumental base:


geral das sopro ou os de teclas três campos + Piano elétrico bateria, baixo, teclas e
faixas em eletrônicas (esses enunciativos / a + teclados violão.
torno de 4 especificamente para os temática eletrônico Arranjos ou de sopro ou
mins. dois sambas híbridos). romântica é revezam-se/ de cordas, exceto o de
predominante misturam-se. Moacir Santos de sopro
e de cordas.

Tabela 15: (continuação): Sistematização de parâmetros/ conclusões parciais

3.3.1 Conclusões parciais de análise das canções

A análise separada das canções possibilitou a observação de alguns elementos comuns


ou marcantes no todo do álbum ou algumas características compartilhadas entre algumas
canções, dentre os quais:

● Utilização comum do fade out em todas as faixas exceto nas lentas de roupagem
orquestral e “Pétala”;
Obs: Pétala também tem um forte corpo instrumental orquestral de cordas porém
resulta menos contrastante que as duas canções lentas orquestrais em função da atuação
paralela da banda base A. Nas três canções há uma finalização característica de performance
apresentacional. Poderíamos associar essas três canções com roupagem orquestral como mais
categóricas do campo da performance de apresentação, enquanto as outras sete sendo todas
encerradas em fade out apontam maior adequação à difusão gravada.
● a quadratura de acordes é recorrente nas canções, eventualmente também essa
coincide em ser ou Intro e/ou parte A e depois eventualmente repetindo-se no refrão,
gerando uma reiteração harmônica cancional também presente em canções orais.
● as introduções não têm caráter melódico preponderante, ressaltados caracteres de:
convenções rítmico-harmônicas (“Samurai”, “Luz” e “Pétala”); vocalizações
introdutórias sob as ambientações instrumentais (“Acaí”, “Esfinge” e “Sina”); somente
ambientações instrumentais (“Nobreza” e “Banho de Rio”); arranjos de sopros
introdutórios combinados com as convenções rítmico-harmônicas (“Capim”); ou fade
in sobre convenção rítmico-harmônica com posterior ataque de arranjo de sopros
“introdutório” (“Minha irmã”). Em outras palavras, essas canções não se constituem
identitariamente a partir de introduções instrumentais marcadas ou riffs119;

119
Lembro que os chamados riffs constituem repetições instrumentais com grande tendência de repetição e
142

● timbres dos instrumentos solos não figuram nas introduções, caracterizam algum grau
de surpresa, o que é observável na harmônica de Stevie Wonder em “Samurai”, no
saxofone de Ernie Watts em “Pétala”, no saxofone de Zé Nogueira em “Açaí” , e
mesmos nos solos de mini-moog de Ronnie Foster nas canções “Capim”, “Minha
irmã” que já surpreenderiam pelo contraste com o gênero samba mesmo que aqui em
caracteres híbridos. A exceção é no solo de flauta transversal por Hubert Laws em
“Luz” que também aparece na introdução criando o clima com o violão. Nas codas
(que normalmente se finalizam em fade out) os instrumentos seguem em improvisos
abertos, as canções encerram-se via fade out com solos instrumentais normalmente em
contraponto com os improvisos vocais contínuos que seguem em improviso aberto
sem uma seção definida;
● expressão vocal única e exclusiva de Djavan é paralela à “criação” exclusiva das
canções em letra e música comente por parte dele, lembro em outras palavras que as
atribuições a um só criador demonstrariam um padrão de unicidade do produto
(FLICHY apud DIAS, 2000, p. 61). Isso acaba expresso também na atividade híbrida
de cantautoria desse LP, assim um álbum com interpretação vocal e composições
exclusivas de Djavan;
● predomínio amplo de tonalidade maiores, exceção às duas canções lentas “de caráter
orquestral” em tonalidade menor (sendo que uma dessas, “Nobreza,” faz transição
harmônica para encerrar-se no relativo maior);
● reiteração de temas românticos, com boa repetição da palavra amor e ainda do
anagrama: amor - o mar. Obs. a reiteração será discutida de forma ampliada no
próximo tópico;
● exploração ampla dos registros vocais desde efeitos em fry (registro basal) no coro de
15 vozes aos falsetes de “Luz”. No registro intermediário (vozes peito, mista e de
cabeça) encontram-se a maioria das melodias com enunciação de letra. Já nos
improvisos vocais todos os registros são explorados, demonstrando grande capacitação
técnica na exploração das alturas pelo tessitura vocal.

Encerrando as conclusões parciais dessa análise cancional passo à uma análise


linguística que se faz necessária pelo surgimento de elementos reiterados nas letras. Antes
disso, cito novamente a importância do álbum Seduzir (DJAVAN, 1981) como já contendo

normalmente caracterizando as introduções. Característica muito observada no rock e na música pop, e que não é
característica dessas canções do álbum Luz de Djavan.
143

algumas ideias que seriam aprimoradas, potencializadas e melhor sistematizadas em Luz. Isso
se deu sobretudo; no modelo cancional romântico-passional mais extremo com solo de
saxofone, orquestração de cordas e conteúdo romântico da letra em “Faltando um pedaço”
(DJAVAN, Seduzir, 1981) no que seria a canção paralela a “Pétala” (DJAVAN, Luz, 1982);
no modelo samba híbrido com uso de mini moog e condução rítmica híbrida de samba já
observado em “Jogral” e “Total abandono” (idem) que seriam as canções paralelas a “Capim”
e “Minha irmã”; e no modelo balada pop que dá título ao álbum de “Seduzir” (idem) onde
surge um equilíbrio de tematização-passionalização em relação à emissão vocal. Além disso,
destaco que embora se fale de mistura entre os músicos ocorreu certa separação das chamadas
bandas de base A e B. Com o produtor Ronnie Foster polarizando a equipe de estúdio da
banda A em seis canções e optando pela banda B (Sururu de Capote) na execução dos sambas
híbridos. Nesses sambas, Ronnie Foster entra como solista de teclas eletrônicas caracterizando
a fusão de elementos cancionais a princípio díspares, muito embora como abordei, Djavan e a
Sururu de Capote tivessem utilizado uma fórmula parecida em dois sambas do álbum do ano
anterior. Sem dúvida observa-se que Luz insere-se num eixo cosmopolitano de musicalidade,
muito embora não se caracterize a fusão na atuação dos músicos. O revezamento e a atuação
de grandes instrumentistas brasileiros com renomados instrumentistas dos EUA e com outros
de nacionalidades diversas lá radicados monta o cenário de compartilhamento de atividades
para músicos de diferentes plagas, valorizando esse viés de um álbum de caráter global não só
pelo padrão de lançamento mas pela atuação transnacional dos músicos em suas práticas
cosmopolitanas.
144

3.4 A unidade conceitual do álbum

A análise anterior revelou a necessidade de um encaminhamento mais refinado acerca


das letras do álbum. A recorrência de certos recursos composicionais e interpretativos
apontam a necessidade de indicadores linguísticos. Esse indicadores além de trazerem a
interdisciplinaridade para estudo da canção passam a embasar a questão de processos
comunicacionaisl do álbum Luz. Apontados alguns primeiros caracteres de unidade musical
nas primeiras análises passo à análise de elementos ligados às letras desse álbum que são
potencializados pela enunciação vocal popular específica do cantautor.

3.4.1 A reiteração como unidade lírica do álbum

A análise agora ganha um foco ampliado em relação às letras em decorrência de


muitos dados levantados apresentarem ampla recorrência em primeira análise. Assim, no
contexto amplo do disco, observou-se uma outra característica de Djavan que é a reiteração de
palavras em diferentes canções do álbum e através de procedimentos distintos.

A reiteração é a relação pela qual elementos do texto vão de algum modo


sendo retomados, criando-se um movimento constante de volta aos
segmentos - o que assegura ao texto a necessária continuidade de seu fluxo,
de seu percurso - como se um fio o perpassasse do início ao fim
(ANTUNES, 2006, p.52, grifo meu).

Em busca da unidade destacada na citação lembro agora que a coesão textual faz uso
ainda de dois elementos além da reiteração, sendo esses: a associação e a conexão120.

a associação é o tipo de relação que se cria no texto graças à relação de


sentido entre as diversas palavras presentes. Palavras de um mesmo
campo semântico ou de campos semânticos afins criam e sinalizam esse tipo
de relação. [...] nenhuma palavra fica solta no texto [...] todo texto é marcado
por uma unidade temática [...] tal unidade condiciona a proximidade, a
contiguidade semântica entre as palavras do texto (ANTUNES, 2006, p.53-
4, grifo meu).

Assim ao valorizarem-se os procedimentos de reiteração e associação, valorizam-se


tanto as aliterações (reiterações sonoras), quanto as reiterações propriamente ditas, ou ainda as

120
Aponta-se a conexão como o “tipo de relação semântica que acontece especificamente entre as orações, e,
por vezes, entre períodos, parágrafos e blocos supra paragráficos. Realiza-se por meio de unidades da língua que
preenchem essa função - mais especificamente as conjunções, preposições e respectivas locuções - (…) Umas e
outras constituem o que tradicionalmente se tem chamado de conectores. (ANTUNES, 2006, p 54-5).
145

“substituições” do léxico.
Já no caso da associação, há uma “relação que se cria no texto graças à ligação de
sentido entre as diversas palavras presentes” (ANTUNES, 2006, p.53). Trata-se de palavras
de um mesmo campo semântico, como vemos, por exemplo:

● dentro de uma mesma canção - “Sina”: front, reveillon, neon121. Palavras


estrangeiras apropriadas e hibridizadas ao léxico da língua portuguesa;
● e no espectro amplo das letras do disco, como por exemplo: nas canções
“Pétala”, “Luz” e “Capim”: mal-me- quer; flor, pétala, cheiro; fulô; capim, -
nas canções “Açaí”, “Pétala”,“Luz” e “Sina”: branca, verde, azul, luz, clareza,
tom, neón, arcoirizando - nas canções “ Pétala” e “Sina” : tubarão, estrela do
mar, areia, sereia.

Ou seja são principalmente dois procedimentos de unidade textual que podem ser
usados analogamente à constituição das canções: a reiteração e a associação. Já a conexão
teria um uso mais restrito na unidade cancional, o que seria ainda um fator de diferenciação
dos campos textual e de letra musicada.
Voltando à reiteração, são outros dois procedimentos que predominam para o uso
dessa relação: repetição e substituição. Nessa análise, atento para o caso da repetição no bojo
de todas as letras. Embora a repetição apresente ainda outros modelos122, atento para o caso da
“repetição propriamente dita” (idem, p. 56) e então para o caso da exploração de outros signos
para um mesmo objeto, o que seria enfim a chamada substituição. Aprofunda-se um sentido
de unidade ao LP pela observação de campos culturais paralelos observados através de
elementos funcionais de coesão e coerência textual.
Num levantamento documental e fonográfico pude observar e tento aqui categorizar a
reiteração/associação em diversos níveis assim delineados: (1) Reiterações literais em mais de
uma canção; (2) Reiteração de temas (“substituição” de palavras e/ou trechos de letras); (3)
Reiteração “fonética e/ou velada”; (4) Reiteração de palavras da oralidade (via de
identificação do canto-falado coloquial e processos de figurativização) ; (5) Reiteração
propriamente dita no interior de uma mesma canção; (6) Reiteração de metáforas; (7)
Reiteração cíclica do LP ; (8) Associação; (9) Anagramas ; (10) Associação/reiteração de
verbos sob forma infinitiva ; (11) Outros recursos pontuais apresentados nas letras pelo
compositor.

121
Além do padrão de rima em si, aqui abre-se um campo de estrangeirismos de que o autor fez e faz uso
reiterado.
122
Paráfrase e Paralelismo. (págs.62-9) seriam elementos muito mais pertinentes aos textos escritos do que
letras cancionais.
146

(1) Reiterações literais das palavras em mais de uma canção

Palavra: “canção(ões)”
Amor: (“„Sina”, “Pétala”, “Capim”, “Esfinge”, “Nobreza”, “Samurai”, “„Luz”,
“Banho de rio”) / 8 recorrências
Areia: (“Açaí”, “Capim”, “Nobreza”) / 3 recorrências
Bom; (“Capim”, “Sina”) / 3 recorrências
Coração: (“Açaí”, “Esfinge”, “Samurai”, “Sina”) / 4 recorrências
Capim: (“Capim”, “Nobreza”)
Desejo: (“Pétala”, “Sina”) / 2 recorrências
Estrela(s): (“Esfinge”, “Sina”, “Pétala”) / 3 recorrências
Feliz: (“Luz”, “Samurai”)
Fim: (“Nobreza”, “Pétala”)
obs: enfim(Nobreza)
Fundo(a): brado tão fundo (“Esfinge”), fundo da dor (“Luz”), trevas fundas
(“Samurai”)
Leito: leito ninho “Capim”), leito de rio (“Luz”) / 2 recorrências
Luar: (“Samurai”, “Sina”) / 2 recorrências
Luz: (“Luz”, “Nobreza”, “Sina”)
obs: título do álbum e reluz (“Pétala”)/ 5 recorrências
Mãe: (“Capim”, “Sina”, “Minha irmã”) / 3 recorrências
Mão: (“Esfinge”,“Nobreza”)/ 2 recorrências
Mar: areia no mar (“Capim”), verde do mar (“Luz”), o mar e canto do mar
(“Esfinge”), estrela do mar (“Sina”)
Manhã: (“Açaí”, „Esfinge”)
Nome: Ver „seu nome‟
“O que há”: tudo o que há (“Luz”), o que há de bom (“Sina”)
Olho(s): (“Esfinge”, “Minha irmã”, “Nobreza”)
Prazer: (“Nobreza”, “Sina”)
Paixão: (“Açaí”, “Luz”, “Samurai”, “Esfinge”)
Obs; La passion: (“Açaí”)
Rio: leito de rio (“Luz”), banho de rio (“Banho de rio”), beira do rio (“Capim”)
Seu nome: (“Sina”, “Pétala”) / 2 recorrências
Sol: (“Açaí”, “Luz”, “Sina”) / 3 recorrência
Som: (“Açaí”, “Sina”) / 2 recorrências
147

Sonho: (“Banho de rio”, “Sina”) / 2 recorrências


Solidão: (“Açaí”, “Luz”) / 2 recorrências
Tudo: (“Esfinge”, “Sina”); Obs: todo (“Pétala”)
Vento: vento cantou (“Minhas irmã”), “rajada de vento” (Açaí)

Nas duas principais recorrências destacadas em negrito é interessante observar a


proximidade sonora das expressões “O mar” e “amor”, relação que já foi descrita como
constituindo um anagrama. Assim, Djavan usa pontualmente palavras repetidas em duas e
três canções (2 a 3 recorrências) e mais amplamente algumas outras poucas palavras (amor,
mar, paixão, luz e coração,) nas diversas canções (de 4 a 8 recorrências que destaco em
negrito). Acaba criando uma rede temática comum ao álbum nessas duas práticas com temas
que amarram as canções em duas escalas. No caso das recorrências mais repetitivas começa a
se delinear uma linha lírica:

● amor (8 recorrências)
● coração ( 4 recorrências)
● paixão (5 recorrências)
● o mar ( 4 recorrências)
● luz (4 recorrências)

(2) Reiteração de temas (“substituição” de palavras e/ou trechos de letras):

- clareza (“Pétala”), luz (“Luz”), iluminar (“Samurai”), brilha (“Açaí”), raio (“Minha
irmã”) , branca é a tez da manhã (“Açaí”);
- Ai (“Samurai”), Dor (“Luz”), sofrer (“Samurai”) , triste (“Luz”);
- lamento um tanto flor (“Luz”) , mei[o] de tanta gente (“Nobreza”), tê-los como
areia no mar (“Capim”), tudo mais (“Sina”), tô tão assim (“Banho de rio”), pode
de tudo (...) brado tão fundo (“Esfinge”), tão cedo (“Banho de Rio”), toda palavra
sã (“Açaí”), todo sacrifício feito (“Pétala”)
- quanto triste, quanto querer, quanto mais desejo muito mais eu vejo (“Pétala”);
- sacrifício (“Pétala”), afã (“Açaí”), amolecer o mundo e seu coração de esfinge
(“Esfinge”), perdeu mas lutou (“Capim”);
- Hoje eu tô tão assim/Prazer nenhum (“Banho de rio”), a vida segue seu lamento
(“Luz”);
148

- querer (“Samurai”), desejo (“Pétala”, “Sina”), quiçá um dia (“Sina”);


- Manhã (“Açaí”), cedo (“Banho de rio”)
- Menino (“Minha irmã”), menina (“Luz”);
- oh meu amor, (...) grande amor; o amor não cabe em si (“Pétala”), “o amor crescendo
enfim” (“Nobreza”)
- riqueza, nobreza (“Nobreza”), ouro de mina (“Sina”);
- O sol brilha por si (“Açaí”), a lição que o sol me traduz viver da própria luz (“Luz”);
- rajada de vento (“Açaí”)/ vento cantou na mata (“Minha irmã”);
- pele (“Samurai”), tez (“Açaí”);
- longe (“Banho de rio”), fundo (“Esfinge”), “ ;
- Som, zum, canto;
- brado (“Esfinge”), grito (“Sina”), roncou (“Minha Irmã”);
- ímã (“Açaí”), atrai (“Samurai”)
- carinho, afaga, descascado pra mim;
- clareza do tino, branca é a tez;
- um pouquinho, bem devagar

Essa reiteração temática, também chamada categoricamente na linguística de


substituição, faz surgir outras considerações e a ampliação das discussões já que se trata
resumidamente, e partindo da observação semiótica, de estabelecer novas formas de
representação para os mesmos objetos ou ampliar o campo de associação desses objetos.
Assim, ou seja na 2ª tricotomia - relação signo-objeto - seria uma busca por novos signos a
partir de sinônimos direcionados ao mesmo campo semântico daquele objeto. O fator amplia
as condições de reiteração, e ainda por isso mantive tal termo em relação à substituição
linguística. Djavan ao ser abordado em entrevista acerca do uso de dicionários também aponta
uma prática

[Entrevistador]: Você costuma ter sempre um dicionário ao lado, por exemplo?


[DJAVAN]: Tenho, você precisa de um dicionário até para sinônimos, embora eu
tenha também um livro de rima que é excelente. Se você pegar, digamos, palavras
terminadas com "ia", vai ali (ao livro de rimas) e tem 500 palavras terminadas com
"ia"123. (DJAVAN, 1998)

Obviamente que, numa análise todos esses seriam símbolos escritos em terceiridade,
mas que passam a compor possibilidades icônicas e indexicais (primeiridade e secundidade)
quando em canções chegam por via da transmissão aural como é a condição predominante
123
Fonte: <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=5981&cat=Artigos&vinda=S>
149

para a música popular brasileira, ao contrário do texto escrito, dissertações ou de análises


musicais notacionais que passam pela convenção social de simbologias comuns.

(3) Reiteração fonética e/ou Reiteração “velada”

A reiteração fonética seria o mesmo som com grafia ou sentidos diferentes, como:

Zum (“Açaí”) e zoom (“Luz”)


mata (fere) em “Samurai”, mata (vento na)

A reiteração velada seria uma reiteração fonética mas sendo uma palavra contida em
outra, como:

goiabeira na beira (“Capim”);


Borborema a ema (“Capim”);
som assombração (“Açaí”);
luz e reluz ( “Sina, Luz” e“Pétala”)
fim e enfim
Ai contido em “vai”, “sai”, “Samurai” e “atrai” (“Samurai”);
meu e eu (“Luz”)

Essas reiterações, também não podem ser consideradas como anagramas pela
definição utilizada para esse termo. Assim, aponto que se trata de um recurso literário mais do
que a simples ocorrência de uma palavra dentro da outra, e assim constituindo uma nova
informação estética (literária). Iriam então além dessa proposta inicial de “reiteração fonética
e/ou velada”, pois, apesar da sonoridade de uma palavra estar incluída na outra são signos
totalmente independentes. Assim, na sistematização dos dados passo a considerar essas como
“reiteração lírica”.

(4) Reiteração de palavras da oralidade (via de identificação do canto-falado coloquial


por meio de processos de figurativização)
150

fulô (“Capim”), marelou (“Luz”), “Boboema124” (Borborema em “Capim”), rai


(raio em “Minha irmã”), taí (“Luz”), fumega (imperativo oral em “Banho de rio”, o
sonho (sóin em “Banho de rio”), secô (“Banho de rio”), passa pa dentro (“Minha irmã”),
fio (filho em (“Minha irmã”), botasse olho (“Minha irmã”), mei (meio em “Nobreza”),
tô tão assim (“ Banho de rio”), deve ter um jeito (“Esfinge”)

(5) Reiteração propriamente dita no interior de uma mesma canção

Frases com palavras reiteradas na mesma canção (Obs: normalmente muito próximas):

“(...) branca a tez da manhã. Solidão de manhã [2ª repetição] ” (Açaí);


“(...) longe um cantador (...) ah meu cantador (...)” (“Banho de rio”);
“(...) flor deu capim. Capim do vale [2ª repetição] (...)” (“Capim”)
“Se o amor [...] O canto do mar com minha voz de cantor e fazer do meu canto [...] que só
um grande amor atinge (...)” (“Esfinge”). Obs: incidência interna de “o mar”, „sublinhado‟, já
observado como um anagrama no escopo geral do disco;
“(...) verde do mar é um verde (...)” (“Luz”);
“(...) falei de dor, como se no fundo da dor” (“Luz”);
“(...) um cheiro de amor. É amor (...)” (“Luz”);
“na mata trovão roncou filho de Juca que raio matou” (Minha irmã”)
“amor se desnudando (...) o amor crescendo (...)” (“Nobreza”);
“eu guardo pro fim (...) crescendo enfim (...)” (“Nobreza”);
“(...) o seu amor (...) oh meu amor” (“Pétala”);
“(...) Um beijo, um beijo seu (...)” (“Pétala”);
“(...) gosto em viver, viver (...)” (“Pétala”);
“(...) o amor não cabe em si, o amor revela-se por ser amor (...)” (“Pétala”);
“(...) contra o poder do amor (...) dizem que o amor atrai” (“Samurai”)
“(...) mata e se não mata fere” (“Samurai”);
“Ai quanto querer cabe em meu coração, Ai me faz sofrer (...)” (“Samurai”);
“(...) a luz de um grande prazer (...) quando o grito do prazer” (“Sina”)

(6) Reiteração de metáforas

124
Na audição gravada é a forma observada.
151

A partir do momento que Djavan recorre com certa frequência às metáforas, o


ouvinte/receptor tende a buscar sentido reiterado nesses termos metafóricos, ou então a
desagregá-los. Aqui, cito algumas dessas propondo uma reiteração não da ligação do sentido
entre elas, mas da constante repetição de busca de sentido que acaba ocorrendo em cada uma
dessas. E aponto que as metáforas são sugeridas por Peirce como sendo um componente
icônico, juntamente com imagens (fotos, selos, etc.) e diagramas (mapas), de forma a também
apontarem um caminho imagético.

metáforas, signos linguísticos justapostos que não são iconicamente relacionados


a seus objetos ou um ao outro, postulam algum paralelismo ou similaridade entre os
objetos dos signos. (...) O conceito de metáfora se tornou popular na antropologia e
etnomusicologia para denotar iconicidade em geral e frequentemente outros tipos de
relações semióticas125. (TURINO, 1999, p. 227)

Uma outra via de análise seria colocá-las dentro do tópico de associações, porém opto
pela reiteração por observar que essas não se associam tematicamente num campo semântico
como a bibliografia sugere para as associações. Eventualmente, nessas metáforas, ocorrem
também aliterações e adjetivações.

“viver da própria luz” ;


“doces gotas de amor” (§) ;
“Pai e mãe ouro de mina” ;
“o seu amor reluz que nem riqueza” ;
“asa do meu destino”;
“sonho secou” ;
“talhado em você” ;
“trevas fundas da paixão” (§) ;
“a luz de um grande prazer” (*§) ;
“art nouveau da natureza” ;
“lapidar o sonho” ;
“açoitar o ar”* ;

125
In metaphors, juxtaposed linguistic signs, wich are not iconically related to their objects or to each other,
posit some parallelism or simalirity between the objects of the sign (- e.g., “A mountain of a man” suggests that
the man is „large‟, „hard‟, or „durable‟.) The concept of metaphor has become popular in antropology and
ethnomusicology to denote iconicity in general and even other types of semiotic relations.
152

“mão do prazer acenando” ;


“serviçal de um samurai” ;
“trem entrou no meu eu” (*!) ;
“ Açaí guardiã” ;
“Som de assombração” (*!) ;
“ira de tubarão” (*) ;
“coração de esfinge” ;
“clareza do tino” ;
“dias como bois passam” ;
“palavra sã” ;
“derramou manhã” (*) ;
“atravessou os meus olhos” ;
“olhos de abril”.

Legendas do tópico:
* metáforas com aliterações
§ metáforas adjetivadas (Ex: grandes, fundas, doces)
! anagrama

(7) Reiteração cíclica do LP (repetição propriamente dita de uma canção a outra na


sequência do LP criando ganchos de audição sequencial)

2ª faixa do lado A encerra-se com “(...) viver da própria luz e a 3ª inicia-se com “
Nossa velha amizade nasceu de uma luz (...)”;
4ª faixa do lado A encerra-se com “(...) capim pro meus dentes.” e a 5ª faixa inicia-se
com “Capim do vale (...)”. Obs. Essa 5ª faixa/A também se encerra com “(...) deu capim”;
2ª/B se encerra com “Não sou feliz tão cedo” e 3ª terceira inicia-se com “Solidão de
manhã”. Obs: A 3ª faixa/B também se encerra com “(...) branca e a tez da manhã”;
3ª faixa lado B Açaí se encerra com “branca é a tez da manhã”, “(...) e derramou
manhã (...)” encerra a parte A de “Esfinge” (4ª faixa/B) nessa mesma sequência.

(8) Associação
153

● temas de cunho regional (norte/nordeste): nesga, lampião, pitombeiras, Pará, açaí,


cantador, fulô, burro, bois, verde do mar126, Borborema, fumega, açaí, tronco do Juremá;
Obs: Essa temática é fortemente associada ao processo de figurativização que
apresentei por via de Luiz Tatit. Observa-se como é necessária uma abordagem
sempre da letra inserida nas músicas, evitando a polaridade de análise texto - melodia.
Além disso, o procedimento de figurativização permeia o álbum todo e se dá em
conjunto com os chamados procedimentos de tematização e passionalização.
● temas religiosos, crenças, místicos e míticos: me benzer, Jari, mãe d‟água, Deus,
cacique, candomblé, Oxum, Egum, assombração, encantado, vento cantou na
mata, tronco do Juremá, mítico clã, fé riu-se de mim, viver da própria luz;
Obs: Cabe atentar que tal grau de associação se dá sem dúvida com base em seu
sentido sincrético. O sincretismo seria uma terminologia também relativa às hibridações e
tendo sido utilizada também no campo da etnomusicologia por volta das décadas de 1960 e
1970, e definido pela Enciclopédia Britânica simplesmente como "fusão de elementos de
diversas fontes culturais" (BRITÂNICA apud NETTL, 2005, p. 479), e sendo relativamente
abandonado para definições no campo musical nos anos de 1980. Após esse relativo
abandono da terminologia, o termo sincretismo passou ao campo mais específico de crenças e
cultos religiosos como aponta Nestor Garcia Canclini. Tal temática, de qualquer forma, está
num segundo plano em relação à temática romântica ainda aparentemente predominante,
sendo a temática religiosa paralela aos temas de cunho regional no LP.
● temas/termos verbais relacionadas à água: nublou, trovão, raio, chover, encheu, vazou,
caiu em gotas, evaporou, secou, derramou;
● temas do mar: mar, sereia, areia, tubarão, estrela do mar, fundo;
● temas de rio: leito de rio, banho de rio, mãe d‟água;
Obs: Os três temas tópicos acima podem ser agrupados ou indexados de
alguma maneira.
● Outros temas associados mais pontuais; temática familiar: filho, mãe, pai, irmã,
menino; minha mão, meus olhos, meus dentes, meu eu; aos pés, aos olhos, nos pés;
infinito, ilusão, o que não se vê; manhã, cedo; vivesse, viver; estrangeirismos: La
passion, reveillòn, front, neon, jazz.
Obs: lembrando que os últimos estrangeirismos são apropriações híbridas já inseridas

126
Verde mar já seria um signo comum na canção nordestina como em “Verde Mar de Navegar” (CAPIBA,
Verde Mar de Navegar, RCA Victor, 1967) mas na contemporaneamente o tema é reapresentado em diversas
canções por todo o território nacional, inclusive nos subgêneros mais comerciais da região sudeste.
154

na dinâmica oral da língua portuguesa127.

(8) Associação/reiteração verbais(a) sob forma infinitiva.

caetanear (“Sina”), fazer (“Esfinge”), benzer (Capim), fazer (“Capim”) acasalar


(“Esfinge”), versejar (“Banho de Rio”), lapidar (“Sina”), “zamburar” (“Luz”), açoitar
(“Sina”), viver (“Pétala”).

(9) Anagramas
Retomo o tema pois o mesmo tendo aparecido nas análises isoladas ocorre também
entre as canções do álbum, e também constitui um fator de unidade e reiteração.

cedo - doce : “Banho de rio” e “Nobreza” Obs: anagrama entre as canções lentas de
roupagem orquestral concepção voz e violão.
los - sol: “Capim” e “Luz”
me - em: “Luz” e “Esfinge”
mãe - ema: “Capim” e “Sina e Capim” “Minha irmã e Capim”
Des[s]e - sede: “Capim” e “Banho de rio”

Cito, ainda ilustrativamente e demonstrando como a observação de recursos


linguísticos pontuais levam ao entendimento mais amplo da obra do cantautor e de seus
processo de criação, um outro anagrama entre esse álbum Luz e uma canção (“Dupla
traição”) de um segundo álbum do cantor com título Djavan do ano de 1978 (DJAVAN, EMI-
Odeon, 1978):
Açoitar - traição: “Sina” em Luz e “Dupla traição” em Djavan.
Na mesma perspectiva ocorre um anagrama entre as canções “Alumbramento”, faixa
título do álbum Alumbramento (DJAVAN, 1980) e “Minha irmã” de Luz. Devo mencionar
que a letra de Alumbramento é resultado de parceria entre Djavan e Chico Buarque, com
provável letra do último e música de Djavan.
Juca - caju: “Minha irmã” de Luz e “Alumbramento” de Alumbramento

127
Aprofundando o tema, Canclini aponta o caso do spanglish, linguagem híbrida de algumas comunidades
latinas que se radicaram nos EUA. (GARCIA CANCLINI, 2015)
155

(10) Outros recursos pontuais apresentados nas letras pelo compositor

- Neologismo verbais: caetanear, arcoirizando, “candombleou”,


- Citação interpretativa “a ema gemeu no tronco do Jurema” (VALE, João & ) canção
de divisão melódica já inerente e referencial a Jackson do Pandeiro.
- Estrangeirismos: La passion, front, reveillon e neón.
- Referenciação a elementos da natureza.
- A associação trazidas para um nicho afro-brasileiro: (...) Marelou, Candomblé, Oxum,
Zamburá pra tirar Egum”.
- Aliterações:

● pitombeiras da borborema a ema gemeu, (“Capim”)


● tronco do Juremá (“Capim”)
● canga, tanga [...] azul [...] ao zoom (“Luz”)
● traz uma praga [...] crescei [...] trevas [...] samurai. (“Samurai”)
● zamburar pra tirar [...] trem entrou (...) (“Luz”)
● nobreza de frente (“Nobreza”)

Obs: Há uma ampla recorrência das aliterações da letra “R” em pronúncia dita fraca
ou branda. Isso se dá quando a consoante aparece sozinha em situação intervocálica, ou
quando aparece depois das consoantes “B, C, D, F, G, P, T e V” precedendo as vogais. O “R”
é uma das últimas sonoridades a ser pronunciada corretamente no desenvolvimento primário
da oralidade, sendo usual na formação de “trava-línguas” também devido à sua pronúncia ora
de forma fricativa (R brando som entre ponta de língua e incisivos superiores) e ora de forma
gutural (R forte fazendo uso do contato do fundo da língua com a úvula). Também é
caracterizador de sotaques regionais no Brasil. Na canção cantada do português brasileiro sua
reiteração também apresenta certo grau de dificuldade, o que revela para esse cantautor um
grau de inteligibilidade e clareza de pronúncia atrelados à sua dicção pessoal, já que Djavan
alterna à pronúncia fraca também o “R” forte em palavras como burro (“Luz”), reluz, revela-
se (“Pétala”), rotina (“Sina”) e riqueza (“Pétala”). Em finalizações de palavras as
regionalidades são mais incisivas, havendo situações de pronúncia conclusiva nas quais o “R”
eventualmente é “engolido” em função de oralidades regionais: amor, mar, acasalar, cantor,
saber, cantador, devagar. Ainda em relação ao “R” conclusivos a musicalidade da canção Sina
categoricamente, e de algumas outras, propicia o surgimento de elisões que tornam o “R” das
finalizações fricativos: açoitar↷o ar; lapidar↷o sonho; gerar↷o som.
Para que se tenha ideia da ampla ocorrência do R em sua diversidade de pronúncias e
processos, constituindo um fator rítmico da dicção de Djavan, observo através das canções:
156

“Açaí”: “poeira (...) rajada (...) assombração (...) sangrando (...) palavra”
“Banho de rio”: “brim (...) parede amor↷há sede (...) prazer (...) rio”
“Capim”: “vara de goiabeira na beira do rio paro para (...) pinheiros do Paraná (...)
areia (...) Pará (...) pitombeiras da Borborema (...) tronco do Juremá”
“Esfinge”: “mar atravessou (...) derramou (...) brado (...) coração”
“Luz”: “burro (...) verde do mar↷é um (..) marelou (...) zamburar pra tirar (...) riu-se
(...) triste (...) dor (...) quer↷a vida (...) flor↷um (...) rio um cheiro (...) triz um trem entrou
(dor (...) arcoirizando (...) traduz viver da própria”.
“Minha irmã”: “trovão roncou (...) raio (...) dentro”
“Nobreza”: “brim(...) demorado (...) nobreza de frente (..) alegria (...) prazer”
“Samurai”: “querer (...) coração (...)sofrer (...) fere (...) traz uma praga (...) crescei
Luar pra iluminar as trevas (...) poder do amor (...) serviçal de um Samurai”.
“Sina”: “ouro (...) coração (...) pura rotina (...) tocarei (...) pra falar (...) natureza (...)
pura(...) grande prazer irremediável (...) grito de um prazer (...) açoitar↷o ar reveillon (...)
luar↷estrela do mar (...) fúria front vira lapidar↷o (...) gerar↷o (...) querer”
“Pélata”: “reluz (...) riqueza (...) clareza (...) estrela (...) sacrifício (...) ser↷exato (...)
ser↷encantado (...) ser↷amor”.
157

Tabela 15: Sistematização comparativa de parâmetros textuais/letra

Canção: Metáforas Palavra Amor “Reiteração lírica” Anagramas/

Açaí - Não ocorre “som de


3ª/B “Açaí guardiã” assombração”
“sangrando (...) sã”

Banho de “Sonho secou” Uma vez cedo e doce de “Nobreza


rio - 2ª/B

Capim - “como areia no Uma vez Pará/ Paraná no mar/ amor


4ª/B mar” Ema- mãe

Esfinge - atravessou os Três vezes cantor-canto O mar/ amor


4ª/B meus olhos

Luz - 2ª/A viver da própria Duas vezes trem - entrou do mar - amor
(4‟06”) luz

Nobreza - “olhos de abril”, Duas doce doce e cedo de Banho de


3ª/A “talhado em vezes rio
(2‟28”) você”

Minha “vento cantou”, Não ocorre Mata/matou Juca e “Caju” da canção


irmã - 5ª/A “trovão roncou “Alumbramento” no LP
(2‟10”) Alumbramento (1980)

Pétala - “asa do meu Cinco vezes Destino-tino


1ª/ A destino”
(4‟41”)

Samurai - “serviçal de um Duas Ai/vai/sai/ samurai


1ª/B samurai” Vezes
(4‟46”)

Sina - 5ª/A “pai e mãe ouro Uma vez amor - do mar


(5‟30”) de mina”

Conclusões Há metáforas em 17 repetições em Recorrem essas O anagrama o mar - amor


parciais todas as canções, letra que somam- formações literárias ocorre em quatro canções.
fator que se às ocorrências
colabora para repetidas em
constituir uma refrão e às
espécie de dicção formas
desse cancionista, cancionais
(TATIT, 1999) também com
repetição.
Tabela 15: (continuação) Sistematização comparativa de parâmetros textuais/letra
158

Tabela 16: Sistematização comparativa de parâmetros textuais/letra.

Canção: Reiteração Reiteração com Especificidade temas e letras


interna outra canção

Açaí manhã-manhã Sim O refrão peculiar “açaí guardiã,


zoom de besouro um ímã (...)”

Banho de cantador- cantador Sim Temas do nordeste, imagéticos


rio “seca, lampião, cantador,”

Capim - capim - capim Sim Citação à intérprete


4ª/B goiabeira- beira * “mãe d‟água e tronco do Jurema”
(4‟19”) Borborema- ema *

Esfinge - canto-cantor-canto Sim Do título “Esfinge”


amor- amor Verbos relativos à água

Luz - verde- verde Sim Diversidade de cores e de temas.


dor- dor Temas afro e religiosos

Nobreza - amor-amor Sim “amizade e romantismo” Metáforas


exploradas como imagens.

Minha irmã mata-matou Sim A “Oralidade global” da canção em


- tema familiar.

Pétala - amor- amor Sim Não ocorre


1ª/ A beijo- beijo ou somente em seu título.
(4‟41”) viver- viver
amor- amor- amor

Samurai - amor- amor Sim Do título “Samurai”, “praga” e


1ª/B mata- mata serviçal
(4‟46”) ai- ai

Sina - 5ª/A prazer- prazer Sim Do título “Sina” e os


(5‟30”) estrangeirismos franceses
“front, réveillon, nouveau”

Obs. A reiteração interna Há uma boa A canção passional-romântica seria


Gerais: ocorre em todas as associação de a mais genérica em sua temática.
canções temas entre as
canções
Tabela 16: Sistematização comparativa de parâmetros textuais/letra

Obs: Cabe observar que a música Açaí inicialmente qualificada como balada pop
romântica não faz uso da palavra amor, e mesmo o seu conteúdo ao ser observado
sistematicamente não é de cunho prioritariamente romântico, o que contribui para as
observações que tenho feito acerca do equilíbrio de procedimentos e desvinculação do campo
passional ao conteúdo estritamente romântico. Muito embora nessa mesma canção a palavra
“paixão” e sua substituição “la passion” aponte traços desse (neo)romantismo para a MPB.
No caso de Djavan há conteúdo romântico em canções com procedimentos temáticos como
159

“Esfinge” e “Luz” e ao contrário canções passionais que não necessariamente tem esse
conteúdo latente, importando nessas análises mais uma vez apontar o risco de dicotomias
muito delimitadas. A outra balada pop romântica do disco, “Pétala, apresenta uma relação
mais categórica de conteúdo romântico e procedimento passional de emissão vocal, nela a
palavra amor se repete por cinco vezes. Na próxima tabela procurei apurar um pouco mais
essa relação.

Tabela 17: Sistematização dos parâmetros passionalização/tematização/figurativização em relação ao


tema e conteúdo de letras.
Canção: Figurativização Vocalidade Conteúdo de letra/ temas
(repetição tab.2) textuais

Açaí - regionalismo sutil no Passional (parte A) tema regionalista/de natureza.


3ª/B refrão temático (refrão)/ Palavras românticas “La
(4‟35”) passion” “coração” “a paixão”

Banho de “Ah meu cantador Passional/ tema regionalista- romântico


rio - 2ª/B versejar pra quê?”
( 4‟35”)

Capim - “que fim levou o Temática/ divisiva sem tema regionalista. (Citação
4ª/B amor?” deixar de incorrer em Jackson do Pandeiro)/ Indagação
(4‟19”) alguns alongamentos romântica

Esfinge - 4ª/B voz de cantor, meu Temática c/ alongamentos tema romântico


(4‟20”) canto passionais.

Luz - “a lição que o sol me Temática/ Figurativização tema romântico/


2ª/A traduz viver da
(4‟06”) própria luz”

Nobreza - 3ª/A doce descascado pra Passional/ tema de amizade e romântico


(2‟28”) mim eu guardo pro
fim pra comer
demorado

Minha irmã - Ampla na oralidade Temática + figurativa/ tema regional familiar


5ª/A da temática familiar tema regional/ coloquial
(2‟10”)

Pétala - não Passional mais categórica tema romântico


1ª/ A
(4‟41”)

Samurai - 1ª/B “tô tão feliz” Passional (parte A) tema romântico


(4‟46”) temática (parte B)

Sina - 5ª/A tocarei seu nome Temática/ Passionalização romântica


(5‟30”) “caetanear” suave em meio de palavras
paroxítonas (evita alongar
fins de frase)
160

Observações gerais

Tempo geral Recurso “menos” Fluidez pelos três campos Predomínio do campo romântico
das faixas em recorrente enunciativos com outros temas pontuais
torno de 4 pontualmente porém (regionalistas, afro-religiosos)
mins. observável no ofício
de canto, cantar, voz
que o compositor
apresenta e liga ao
título do disco.

Tabela 17 (continuação): Sistematização dos parâmetros passionalização/tematização/figurativização em


relação ao tema e conteúdo de letras.

3.4.2 Considerações de análises das letras

A construção de letras do álbum Luz aponta, a partir dessa análise, a existência de


alguns caracteres com certa unidade geral. A categorização numa esfera romântica moderna é
fator observável. Vale ressaltar contudo que, apesar dessa temática romântica ser visível como
unidade há um boa exploração de outros temas e dos procedimentos de emissão vocal que dão
equilíbrio ao álbum, não o jogando num pólo cancional que seria exclusivamente passional-
romântico.
Uma “ausência” amorosa, necessidade de apreensão de um amor e/ou busca do tema
amor surge em algum momento nas letras: “na nesga de amor há sede (...) sem seu amor não
sou feliz tão cedo” (“Banho de rio”), “Se o amor pode de tudo fazer deve ter um jeito (...)
amolecer teu coração de esfinge” (“Esfinge”), “ vai sem me dizer na casa da paixão (...) trevas
fundas da paixão (...) lutar contra o poder do amor” (“Samurai”), “desejo um beijo, um beijo
seu (...) “o amor não cabe em si (...) o amor revela-se” (“Pétala”), “um cheiro de amor, é
amor” (“Luz”) “tocarei seu nome pra poder falar de amor” (“Sina”), “eu tenho um carinho
para lhe fazer (...) “ que fim levou o amor? plantei um pé fe fulô deu capim” (“Capim”), “o
amor crescendo enfim” (“Nobreza”), aqui só não sendo citada as canções “Minha irmã” de
caracteres mais ímpares por si e Açaí que aparentemente reitera “a paixão (...) la passion”
como substituta da palavra amor. A consequente procura ou conquista desse amor de uma
forma ampla e totalizadora pode ser observada em duas perspectivas. Uma primeira
perspectiva aponto surgida no ítem 2 (tópico 2.1) com as reiterações do tipo: um tanto flor
(“Luz”) , meio de tanta gente (“Nobreza”), tê-los como areia no mar (“Capim”), tudo mais
(“Sina”), tô tão assim (“Banho de rio”), pode de tudo (...) brado tão fundo (“Esfinge”), tão
cedo (“Banho de Rio”), toda palavra sã (“Açaí”), todo sacrifício feito (“Pétala”) que somo às
observações do mesmo ítem em reiterações como: quanto triste (“Luz”), quanto querer
(“Samurai”), quanto mais desejo muito mais eu vejo (“Pétala”). Esses últimos termos, de
161

forma geral, tem grande variabilidade de utilização gramatical 128. Porém aqui, surgem
preferencialmente nas canções para ilustrar um grau de intensidade na forma de
adjetivos e advérbios. Numa segunda perspectiva contando as associações de temas dos
elementos “mar-água” fazendo esse mesmo contraponto de amplitude ou na mesma relação ao
termo água de “preenchimento”, “vazão”, “enchimento” e “fluidez”, que pode-se observar na
observação dos temas das letras com reiteração do anagrama “amor - o mar”, em muitas das
canções. Há também, nesse caso, a tendência de uso de uma das palavras na parte A (estrofe)
e da outra na parte B (refrão), forma comum a maioria das canções com essa ocorrência.
Contudo, observo mais uma vez que o romantismo tem seu grau de equilíbrio
(equilíbrio nas condições de emissão vocal e mitigação da passionalização em geral nas
músicas). A procura/amplitude/desejo são exacerbados(as), e não o amor em si. O fator conta
também com a negação da materialização amorosa personificada sem um sentido muito
direto/claro (como ocorreria em canções mais popularizadas em geral ali ainda fora da
categoria MPB). Isso desvincularia as canções daquela “rede de recados” com sentidos
ambíguos e informações não unívocas em significado que foram apuradas nesse formato
durante o período ditatorial. Esses elementos explorados por Djavan, sem dúvida
possibilitaram, juntamente a caracteres românticos cosmopolitanos musicais já estabilizados
nos anos de 1970, o aceite cancional de sua obra num campo que a princípio tem caracteres
mais conteudistas, como foi o caso da MPB principalmente de fins dos anos de 1960. Na
época de afirmação inicial, a sigla/movimento contava ainda com bom aporte conteudista, e
relegava o romantismo latente e explícito a outros campos e artistas, fator que retomarei nas
conclusões finais.
Metáforas são recorrentes em todas as canções, compondo algo relativo a sua dicção
autoral. Se traçarmos um paralelo às diversas dicções que Luiz Tatit apresenta para o
cancionista brasileiro (TATIT, 1999) a metáfora seria um conteúdo da dicção compositiva de
Djavan (obs: aqui difere-se da dicção relativa à análise vocal). Reiterações e associações de
temas também permeiam o álbum. Isso se dá tanto em cada canção, como demonstra-se em
“Samurai” e “Pétala”, respectivamente cançção dos “ais” e do “amor”, quanto na esfera geral
do álbum dando-lhe unidade, como observa-se com palavras como “luz”, “amor”, “mar” que
perpassam o todo do disco contando ainda com alguns sinônimos e também associações
semânticas.
Aponto que, Djavan escreve com certa recorrência sobre o seu trabalho de cantor
(mais do que o de compositor ou mesmo considerando intrínseco o hibridismo da dupla
função somente naquele termo), num tema que perpassa suas canções desde o início de
carreira em procedimento de figurativização de sua afirmação profissional e diáspora ao eixo

128
Advérbio, Adjetivo, pronome substantivo, adjetivo masculino e pronome conjuntivo. (FERREIRA, 2010)
162

RJ-SP. Encontrei alguns exemplos em: “Eu vou mudar de profissão eu vou ser cantor eu vou
pro Rio de Janeiro (...)” (E QUE DEUS AJUDE, in: A voz, o violão, a música de Djavan,
1976); “Cantar é mover o dom do fundo de uma paixão (...)” (SEDUZIR, in Seduzir, 1981);
“a meu cantador, versejar pra quê (...)” (BANHO DE RIO, in: Luz, 1982); “O pai do dia
encanta o cantor, essa ave tem um canto tão perfeito que encantou até o malfeito e o malfeitor
(...)” (O CANTO DA LIRA, in: Lilás, 1984); “ Eu vou cantar pra você do que é feito o novo
amor (...)” (INFINITUDE, in: Milagreiro, 2001), dentre outros casos. Esse fator além da
figurativização do tema resultando na aproximação do artista com o ouvinte, pode constituir
um elemento mais pessoal de seu estilo. Isso juntamente com as associações de palavras desse
campo semântico em uma perspectiva mais ampla de sua obra como: cantador, canto, cantor,
voz, brado, cantar, ouvir, perder o tom, etc, também incidindo na perspectiva de sua dicção
compositiva.
Por fim, nessa mesma perspectiva, porém não necessariamente no campo figurativo
mas num caracter pontual, Djavan aborda amplamente temas relacionados à natureza.
Recorrem os elementos naturais: terra, água e ar (areia/chão, mar e rio, açoitar o ar). Também
recorrem os reinos animal, vegetal e mineral (burro, açaí e capim, a pedra de“Esfinge” e ou
“ouro de mina” de “Sina”). Por fim, sol e luz também figuram amplamente no álbum.
Três recursos aqui observados na construção das letras de Djavan já foram apontados
na obra literária de Edgard Allan Poe. Esse último autor já apontara, em seu ensaio teórico
“Filosofia da composição”, algumas técnicas de comunicação importantes empregadas em
seus textos, dentre as quais:

elementos que se mantêm: na camada mais superficial, a repetição de palavras (...),


a ressonância de palavras com a mesma sonoridade (...) e as palavras que rimam
entre si; em uma camada um pouco mais profunda a manutenção de elementos
rítmicos e métricos (POE apud SEINCMAN, 2008, p.33-4)

Os recursos de repetição de palavras e ressonância de palavras (ou por reiteração


fonética) foram observados e tiveram suas relações demonstradas na análise de
reiteração/associação. As rimas estão destacadas no ítem letras das análises de canções,
embora elas também surjam eventualmente na análise de reiterações/associações. Faço ainda
algumas últimas considerações e interpretações na construção de rimas no álbum Luz. Djavan
utiliza um recurso para as rimas de verbos em diferentes flexões em função de outras palavras
não-verbais importantes (e fortes) à sonoridade canção (ai- vai, ai - sai; mar- acasalar;
desejo/beijo - vejo, olhos de abril - sorriu). Destaco também as questões de oralidade também
na concepção das rimas, ou mesmo rimas que se dão somente em função de um tipo de
pronúncia oral como: mais - jazz. E ainda rimas que brincam com o
163

moderno/estrangeiro/industrial e o rural/tradicional/artesanal como: zoom - Ogum, som -


reveillon, dom-neón, e por fim a oralidade também no neologismo da última palavra da rima
“luar - mar - lapidar - caetanear”. Destaco um caso pontual de uma rima de duas palavras com
uma em “açaí guardiã - ímã” exatamente no refrão da canção “Açaí”. Em entrevista o autor
falou também da utilização do dicionário de rimas e sinônimos na elaboração de letras,
citação que consta na pesquisa.
Edgar Allan Poe considerava ainda um nível ainda mais profundo, indo além dos dois
níveis já contemplados. Sendo esse nível o caso de “algo que permeia o poema inteiro, pois,
sendo adiada, como „imagem‟ está presente no futuro como algo que irá se consubstanciar”
(POE apud SEINCMAN, 2008, p. 34). Esse elemento seria presente no álbum Luz, criando a
possível unidade conceitual no todo das letras e músicas. Segundo as análise seria exatamente
essa busca do amor como um elemento amplo, e latente no romantismo cancional equilibrado
de Djavan. Surge tanto por meio de uma sonoridade romântica do pop internacional quanto no
conteúdo da ampla maioria das letras, elementos que hibridizados constituem uma “espécie de
eixo condutor do álbum Luz”. É um álbum com forte conteúdo romântico e esse conteúdo não
se restringe às canções de caráter passional, equilibrando-se também nas canções e trechos de
canções mais rítmicos/tematizados de onde galga melhor equilíbrio. Ao mesmo tempo sem
uma concretização ou personificação amorosa gerando fluidez, abstração e amplitude
constante ao tema.
164

Escala de (re)classificação das canções/obs. categorias Passionalização-Tematização:


Canções próximas de procedimentos de passionalização

“Pétala”
balada pop lenta romântica orquestral (solo sax): romantismo latente

“Banho de rio”
canção lenta violão/cordas orquestrais: romantismo/regionalismo

“Nobreza”
canção lenta piano/cordas orquestrais: amizade/romantismo

“Açaí”
balada pop lenta romântica-regional (solo sax): romantismo regional

“Samurai”
balada pop romântica (gaita harmônica): romantismo urbano

“Esfinge”
balada pop fusion (solos vocais): romantismo urbano

“Luz”
balada pop rítmica “título álbum” (flauta transversal): regionalismo/afro/romantismo

“Sina”
Canção rítmica (coro de vozes sobrepostas): familiar/natureza/romantismo

“Capim”
Samba híbrido com orquestra (solo mini moog): tema regional e romantismo pontual

“Minha irmã”
Canção rítmica (solo mini moog) : regionalismo-familiar

Canções próximas de procedimentos de tematização


165

Capítulo 4: MPB, Luz, vocalidade popular brasileira e observações de pesquisa

4.1 O álbum Luz: conceitos finais e indexações

Eu dedico esse disco ao amor. Quero dizer: ao amor de Jackson, Vinícius,


Elis, Bob Marley e John Lennon. O amor enquanto puderes não te percas de
mim... (DJAVAN, in: encarte Luz 1982).

O LP Luz destaca-se como “produto de relativa autonomia artística” em contraste aos


elementos industriais de produção, apontando seu grau de capacidade de hibridação, e fluidez
entre o artesanal, o industrial e o popular. Há certa polarização de produção aos dois últimos
campos (popular e industrial), e caracteres compositivos que surgem aproximando a obra de
caracteres artesanais/rurais/folclóricos/regionalistas.
Manteve ainda algum padrão relativo à MPB exordial, combinando qualidade artística
musical e mercado, numa simbiose já apontada por Napolitano como caráter daquela geração
que inicialmente se destacou na sigla MPB, os chamados artistas de catálogo, conceito trazido
aqui por via de Marcia Tosta Dias (DIAS, 2000). Ali então, haveria certa simbiose entre a
produção artística e o mercado e um grau de autonomia considerável aos cantautores de fins
dos anos de 1960. O período tem menor incidência da sistematização da indústria cultural
sobretudo nacional, como apontou Ortiz, e então as performances públicas dos festivais ainda
categorizavam os trabalhos de estúdio posteriores e independência conceitual. Para o caso de
Djavan, a produção em disco que galgou a centralidade da MPB através de Luz ainda foi
muito mais categorizada por seus próprios álbuns e performance anteriores à ele. Muito
embora a MPB dos 1960 já fosse uma geração com caracteres cosmopolitanos observáveis na
abordagem da canção popular urbana, alguns outros caracteres de sistematização do produto
sonoro ainda não eram tão incisivos, como ocorre em Luz.
Dessa forma, o álbum possibilita ao cantautor Djavan não só sua entrada definitiva no
mercado representativo de vendedores de disco (até mesmo em números absolutos para a
ocasião) mas, o que seria muito mais interessante a ele numa carreira de longo prazo e na
sedimentação de sua estética romântica, a sua vinculação aos artistas de catálogo da MPB.
Isso ocorre de forma concomitante ao álbum também em parcerias de composição,
regravações e interpretações pelas(os) intérpretes categóricas(os) da sigla bem como por
performances conjuntas com essas(es). Dessa maneira que se observa na bibliografia o nome
do cantautor já hoje vinculado àqueles artistas. Observa-se que, apesar de sua produção já ser
considerável no meio artístico até a virada das décadas de 1970/1980, é em meados dos 1980
166

e consequentemente após Luz que ele surge sistematicamente ao lado dos artistas de catálogo
da MPB.
Retomando um direcionamento mais detido ao álbum, a maneira como a indústria
cultural, que sistematizada de forma mais objetiva, intensa e perceptível nos EUA, atuou
nessa produção também constitui um dos caracteres conclusivos de análise. Percebe-se um
padrão de sistematização do produto sonoro que acaba sendo ilustrado pelas análises de
diversas camadas de mediação do produto ao ouvinte. Tal sistematização ocorreu através de
alguns procedimentos já observados, que agora pontuo novamente:

● Unidade compositiva e vocal, que acaba resultando em unidade conceitual ao álbum


na expressão única das atividades de canto e composição cancional do cantautor nesse
LP;
● distribuição sistematizada das canções em relação ao suporte da época, e equilíbrio do
padrão cancional proposto com forte perspectiva de execução da maioria das faixas e
relação entres essas;
● Padrões de mixagem com adequação à difusão gravada de rádio, vinil e musicassete.
Há alguma redução de indexação das performances ao vivo, embora essa ainda tenha
autenticado toda a realização de estúdio, e mesmo, como apontei, as realizações de
estúdio e ao vivo anteriores ao LP tendo autenticado a produção de Luz;
● sistematização/padronização de elementos e signos: selos, siglas, nomes vinculados a
marcas (endorsees), título, produção gráfica;
● rede de produção e distribuição totalmente interligadas e atuando em cooperação numa
simbiose fortíssima de execução em rádio das faixas em relação ao LP;
● vinculação cosmopolitana da música pop e negra das Américas do Norte e Sul,
principalmente em seu caráter mais romântico;
● consequente vinculação do artista e álbum à MPB ao mesmo tempo em que, para
essa sigla e categoria MPB, o álbum também passa a vincular novos elementos:
(neo)romantismo cosmopolitano pop anglo-norte americano; permissão a conteúdos
de letras mais românticos na MPB contando com a redução paralela dos conteúdos de
cunho político por fatores contextuais e sócio-políticos de transição e de mercado;
● álbum com vinculação de padrões relativos à MPB, tais como; equilíbrio canto
instrumental; modelo canônico popular com sucessos condensados em LP; figuras de
produção destacadas; romantismo também indexado na rede de recados da canção
brasileira.
167

Cabe ainda indagar se a sistematização relativa ao álbum teria um paralelo no processo


compositivo do cantautor, que em análise também surge como sendo bastante sistematizada e
com padrões literários e musicais, sem perda de um caráter estilístistico pessoal.

Não só as práticas de composição individual são afetadas pela organização produtiva,


como também o é a seleção de composições que são produzidas e comercializadas em
última instância. Peterson e Berger (1990) ilustram este ponto em um estudo
altamente influente que revelou como a inovação musical era ativada e restringida por
características de infra-estrutura da indústria da música pop; Seu trabalho sugeriu que
a inovação no pop surge da competição entre grandes gravadoras e seus rivais
menores, mostrando que a diversidade nas formas musicais (à medida que são
produzidas e chegam ao público) é inversamente relacionada à concentração de
mercado. (DeNORA, 2008, p.42-3)

Musicalmente, a produção conseguiu trazer caracteres sistematizados, e opta


majoritariamente pela banda base de estúdio da soul music norte americana. A opção pela
Sururu de Capote na concepção e execução dos sambas certamente evita uma execução
musical que poderia resultar contrastiva caso executada pelos músicos norte-americanos. No
álbum Luz há diversos fatores conceituais que já são aparentes até mesmo no álbum anterior.
Esses fatores são potencializados e equilibrados em relação ao suporte, contando com a
reiteração de audição/execução alavanca-se a recepção do álbum. A sua ampla execução
principalmente em rádio FM, conta com uma espécie de simbiose na execução quase
completa do conteúdo do LP para as rádios FM. Nesse caso, a execução de estúdio de Seduzir,
no ano anterior indexa a execução de Luz que contou com a ampliação das possibilidades
técnicas, de difusão e de produção, e como disse, amplia a vendagem de um LP ao outro no
curto período de uma ano em mais de dezessete vezes, passando de cerca de 30 mil cópias a
500 mil.
O disco muito embora seja um disco de carreira/estúdio pode ser apontado sob a
perspectiva de álbum conceitual já descrita (SHUKER apud VALENTE, 2003, p.79), contudo
somando agora a esses fatores de “unidade lírica-conceitual” as outras “novas” condições de
tratamento industriais e a pontualidade da produção internacional cosmopolitana. Esses então,
seriam outros fatores conceituais a serem possivelmente agregados numa definição conceitual
contemporânea de álbum. Soma-se na unidade conceitual a unidade das atividades vocais e
compositivas de Djavan exclusivas no álbum, que não possui parcerias de composição e nem
outras expressões vocais, ao contrário mesmo em coros vocais optou-se tecnicamente pela
sobreposição da vocalidade do próprio cantautor. Ou seja, em teoria seria também um álbum
de carreira/estúdio, como aponta-se no Brasil, porém sem limitações financeiras e de
168

produção, contando com o entendimento do cantautor acerca do cenário criado para a difusão
do produto, e mesmo, contando com a relação de observação de A voz, o violão, a música de
Djavan” (1976) em esfera nacional e de Luz (1982) em esfera internacional. Ambos são
álbuns de (re)lançamentos em diferentes esferas de difusão, ou utilizando um termo do campo
etnomusicológico, passando-se da perspectiva local a perpectiva global.
Paralelamente a alguns outros álbuns de lançamento de artistas brasileiros que trago
logo no início do trabalho, faço mais dois apontamentos com algum caráter comparativo. Se
tomarmos a proposta do modelo canônico popular com sucessos de carreira condensado em
LP, o álbum Luz teve uma outra simbiose de execução em rádio relativa ao suporte em LP
raramente observada anteriormente, na qual aponta-se que todas as faixas teriam sido
executadas em rádio FM. Observa-se ainda que, o álbum foi totalmente desvinculado de
execução dentro de trilhas de novelas, fator esse que passou a representar uma outra simbiose
de alavancamento de discos a partir dos 1980, porém não aplicável ao Luz. O álbum de Jorge
Ben Samba Esquema Novo também se caracterizou como de lançamento e condensa ao menos
quatro sucessos perenes, “Mas que nada”, “Balança Pema”, “Chove Chuva” e “Por causa de
você, menina”, no todo de doze faixas cerca de 2/3 das faixas. Luz além da ampla execução
em rádio, pode ser lido pela regravação de faixas no álbum duplo Djavan ao vivo de 2002,
numa típica regravação ao vivo com bonus track. Ali, em síntese de 27 anos de carreira,
Djavan regrava “Samurai”, “Sina”, “Açaí” e “Pétala”, quatro canções de Luz, que se
recordarmos é um álbum de somente dez canções, e conta com um pareamento estético de
duas a duas canções equilibrados no suporte da ocasião.
Seguindo ainda a perspectiva de comparação aos álbuns que menciono no início do
trabalho, recordo agora o álbum de Stan Getz e João Gilberto, Getz & Gilberto, no qual citei
uma questão relativa à hibridação da voz popular em formato canção com o instrumental solo,
ali exclusivamente o saxofone de Stan Getz. Em Luz também viu-se a recorrência de solos
instrumentais, contudo agora em diversidade de instrumentos, timbres, nomes de solistas que
se agregam ao álbum para valoração do produto, e também maior diversidade de formas de
colocação dos solos nas canções (livres, seções, codas, intro, sem solos, em contraponto com
a voz). Também relembro que na análise de Luz apontei que evitou-se a caracterização
melódica de caráter instrumental dando-se prioridade à caracterização melódica vocal, o que
naquele álbum de 1963 teria sido um dos principais desafios de produção musical: conjugar e
mixar tecnicamente a vocalidade quase falada de João Gilberto a um instrumento sinfônico e/
ou solista como o saxofone, com ampla perspectiva de intensidade e alongamento de notas e
intensidade de execução. Essa característica, sem dúvida, contribui para tornar aquele álbum
169

paradigmático sob a perspectiva da produção e mixagem. Mas, voltando ao álbum Luz,


mesmo com a participação de Stevie Wonder como solista evitou-se uma polarização estética
para algum solista em específico. Em Luz os solos são executados em cada faixa por um
solista, exceção feita aos dois solos de mini moog do produtor Ronnie Foster nos dois sambas
híbridos, “Capim” e “Minha irmã”.
Venho delineando uma perspectiva comparativista em relação aos álbuns, abrindo
assim perspectivas para a aplicação do conceito de habitus como uma ferramenta
metodológica e de auxílio analítico que, unida aos caracteres do conceito de
cosmopolitanismo apontam os partilhamentos de ideias/atividades entre nossos artistas da
MPB, em redes sutis de atuação e práticas musicais. Tal aplicação de conceitos
cosmopolitanos então cruzadas ao conceito de habitus numa tentativa de fundar e observar
vertentes, grupos e redes de nossa canção popular parece uma condição interessante e
promissora cientificamente, mais do que a busca de caracteres técnicos descritivos acerca da
voz, da canção e/ou de gêneros musicais. Contribui-se para uma ideia mais reticular que liga
algumas vertentes sob alguns aspectos e alguns cantautores sob outros. E essa, uma das
melhores perspectivas alcançadas a partir dessa análise de álbum. Ou seja, se direciono a
abordagem dos processos que ali estão presentes, fugindo da perspectiva descritiva do objeto
sonoro, posso a partir desses processos fazer outras observações de compartilhamento de
procedimentos musicais. Nessa linha, observo agora outros processos musicais.
Cabe observar que Djavan passa a vincular-se a uma geração de outra plaga que teve
uma atuação mais incisiva ainda da década anterior, a da soul music dos anos 1970 dos EUA,
ou seja, compartilhando práticas em distância temporal e espacial, muito embora tais habitus
também houvessem sido abordados em contemporaneidade ao movimento Black Rio no
Brasil. Porém é a sua vinculação simultaneamente local e transnacional que acaba sendo
definitiva em diversas frentes.
Assim, seguindo ainda nessa mesma linha de raciocínio, observa-se, por exemplo, que
seria muito mais tácita a vinculação de Djavan à chamada geração nordestina “pós-Luiz
Gonzaga”129 ou “Pessoal do Ceará130”, “turma do Ceará” como era erroneamente rotulada a

129
O termo é utilizado por Fagner no filme “O Homem que engarrafava nuvens”
130
Cabe observar que mesmo em textos escritos ocorre uma simplificação na rotulação das origens dessa
geração nordestina. Marcia Tosta Dias aponta por exemplo que “(...) podíamos encontrar no mercado de discos,
no final dos anos 70, músicos como os do Pessoal do Ceará (Elba Ramalho, Zé Ramalho, Ednardo, Alceu
Valença, Belchior e Fagner) (...)” (DIAS, 2000, p.79-80), de forma que tenho optado provisoriamente pela
definição de “geração pós-Luis Gonzaga” como chama Fagner.
170

profícua geração nordestina dos 1970 no sudeste131. Alguns elementos revelam contudo
características bastante distintas entre esses artistas nordestinos e o alagoano Djavan, do que a
mera procedência geográfica ou sotaque comum tomados como proposta de categorização.
Um primeiro exemplo nesse caso é um processo raro (e até mesmo não documentado) de
interpretação de sambas por aquela geração nordestina, enquanto que, Djavan surge em
festivais com seus sambas originais de temas românticos, reiterando a gravação desses
mesmos em gêneros especialmente híbridos nos diversos discos aqui observados e até a
contemporaneidade. O cantautor, nessa perspectiva, se vincularia muito mais facilmente (e
mesmo direcionando-se a uma outra proximidade geográfica entre a Bahia e o Alagoas) aos
baianos “artistas de catálogo” afirmados ainda em fins de 1960, Caetano e Gilberto Gil.
Djavan, em seu processo musical, teria ainda compartilhado através de sua banda Sururu de
Capote a ideia de banda própria de cantautor com uma denominação específica (por vezes de
termo retirado de canções e conceitos desses), assim como as bandas: “do Zé Pretinho” de
Benjor, “a outra banda da Terra” de Caetano, “a Banda Dois” de Gilberto Gil, a “Vitória
Régia” de Tim Maia, dentre outros(as). Dessa forma, Djavan seria mais cosmopolitano em
relação ao padrão cancional nacional do que vinculado ao movimento regionalizado, muito
embora o tema regional também aflore em letras de canções.
Esses diversos exemplos de vinculação que trago, moldei ao longo do trabalho com o
gradual amadurecimento conceitual das possibilidades de observação semiótica, agregando os
conceitos de partilhamento de atividades tanto do habitus quanto do cosmopolitanismo, que a
partir da análise mais detida dos processos do álbum, passo a expandir em outras frentes
diversificadas.
Assim, de forma a propor uma futura expansão dessa mesma perspectiva num novo
quadro de análise observo uma geração brasileira de cantautoria que compartilharia, a partir
do auto-acompanhamento instrumental, uma independência rítmico-melódica da vocalidade
popular subjetiva em relação ao fundo cancional cométrico, numa terceira construção musical
que não é meramente a soma independente desses caracteres e nem o de canção vocal com
outro músico em acompanhamento harmônico. Nessa perspectiva observo uma possibilidade

131
Lembro aqui em observação pessoal, certas reduções feitas pelos habitantes da região sudeste para designar
então todos os nordestinos. No Rio de Janeiro predomina o termo “os paraíba” para pessoas oriundas do nordeste
com aplicação inclusive à “Feira de Tradições Nordestinas” que ocorre no pavilhão de São Cristóvão (Centro
Luis Gonzaga de Tradições Nordestinas) da capital carioca, chamada popularmente então de “Feira dos Paraíba”,
enquanto que, em São Paulo isso se dá pelo uso do termo “baiano”, inclusive eventualmente usado com certo
valor pejorativo direcionado a alguma moda brega ou espalhafatosa. Evitando propostas preconceituosas de
delimitação relembro que no Nordeste, toma-se Rio e São Paulo como Sul, numa perspectiva relativista ao
Nordeste muito embora geograficamente o Sul do Brasil seja composto por outros estados da federação.
171

de indexação que comportaria uma longa linha brasileira ligada ao termo popular da
“divisão”132 melódica, contando, aparentemente e ainda de forma experimental, com: Jackson
do Pandeiro, João Gilberto, Gilberto Gil, Djavan e Lenine. Isso ainda em observação inicial.
Cabe ressaltar que a semiótica capacita essa liberdade de observação temporal, das amarras de
gêneros musicais, e transcendendo uma obrigatória linearidade discursiva, e ainda livre de
compartimentações em siglas como MPB, World Music, subgêneros comerciais dentre
outras(os). Mas esse outro trabalho também fugiria ao recorte proposto inicialmente para a
dissertação, apontando possibilidades futuras de pesquisa em relação às teorias e métodos
aqui aprofundados.
Fazendo a transição para o próximo tópico acerca da vinculação de Djavan à MPB
exordial, trago ainda novas indagações que dizem respeito às dificuldades compartimentais
datadas, ou cuja origem intenta-se invariavelmente demarcar. Álvaro Neder aponta que o
disco Samba Esquema Novo de 1963 também estaria fora do marco mais categórico da MPB -
marco descrito como sendo a interpretação de “Arrastão” (Edu Lobo/Capinam) no festival em
1965. Contudo, questionando para os anos 1960 quem seria o sujeito da MPB e os discursos
relacionados, Neder expõe que “inclassificável entre as categorias disponíveis no [naquele]
momento, Samba esquema novo projeta-se, assim, como talvez a primeira intervenção do
campo discursivo que iria apenas posteriormente obter um rótulo, MPB”. (NEDER, 2007, p.
5, grifo meu).
Interessa observar como Jorge Benjor também vinculou sucessos em LP ao dos
festivais (“Fio Maravilha”), e como as fronteiras da MPB são fluidas, dificilmente
demarcáveis, e porque não dizer ainda também esponjosas. Isso se daria temporalmente seja
em relação ao passado daquilo que seria a MPB ou em relação a perspectivas futuras, como é
o caso de Luz ou de práticas contemporâneas, mesmo apesar de nos últimos casos a questão
da cultura industrial preponderar discursivamente. Nesse sentido, passo a apontar agora como
132
Esse termo tem amplitude tanto em nível oral popular, quanto em textos acadêmicos. Nessa rede acadêmica
já abordei a perspectiva de Martha Ulhôa e sua “métrica derramada”, mas também observei um trabalho
etnográfico mais recente sobre João Gilberto, no qual o autor Thiago Martins Pinheiro utiliza os termos “pré-
frasear” e “pós-frasear” que teriam sido criados pelo etnomusicólogo australiano e pesquisador de samba Mike
Ryan (PINHEIRO, Thiago Martins; “Quem canta deveria ser como quem reza” in GARCIA(org.) João Gilberto,
Cosac Naif, 2012, p.411-2), nesse caso com um uso possível da terminologia seja em relação à melodia, a
harmonia e/ou ao ritmo. De qualquer maneira não há consenso nem sobre a terminologia popular nem sobre a
acadêmica que tomam a variação da “divisão” e reconhecendo nisso um importante conteúdo interpretativo de
nossa vocalidade popular, muito embora o tema seja repetidamente cercado em estudos como um conteúdo
musical popular brasileiro. Na perspectiva de Mike Ryan o “Pré/pós-frasear é a manipulação rítmica de um ou
todos os elementos musicais básicos - melodia, harmonia e/ou ritmo - em relação a uma pulsação fundamental
explícita ou implícita (...)” (PINHEIRO, 2012, p. 411-2), porém, aponto ainda que, para o caso da melodia
popular também variações das alturas melódicas (manipulações de frequências) podem ocorrer com maior ou
menor aceite em função de gêneros e movimentos. As variações rítmicas teriam maior aceite sobretudo entre os
instrumentistas.
172

através do álbum Luz é que uma vinculação de Djavan mais categórica à sigla MPB e aos
artistas de catálogo teria sido possível, mesmo não havendo mais uma unidade conceitual em
relação à sigla - unidade essa que se embaça definitivamente a partir dos 1980.

4.2 Djavan, a MPB dos 1960 aos 1980 e direcionamentos contemporâneos

O álbum Luz revela conceitualmente seu conteúdo romântico, ou fora de


categorizações mais generalistas, sendo um LP capaz de trazer elementos românticos de uma
forma bastante aparente e permeável entre suas canções. Isso se observou através da
exploração reiterada de alguns temas de letras e de sonoridades com preponderância e
incursão de uma estética pop-romântica. Para o caso aponto como uma tendência
(neo)romântica já que tal conteúdo não figurava muito explicitamente na MPB das décadas
anteriores. Essa estética, por sua vez, chega à canção da MPB a partir de um caráter
cosmopolitano compartilhado através de um tendência internacional anglo norte-americana
que se amplia na difusão nacional. Tal vertente romantizada internacional adensa sua
hegemonia a partir dos anos de 1980 influenciando não só a MPB, como também o rock
nacional (DUNN & PERRONE, 2002), e o novo nicho do pop nacional (FILHO, 2012). Essas
vertentes emparelhadas à entrada incisiva da música pop internacional e cada vez maior dos
reiterados (sub)gêneros de cunho comercial alimentados pela mídia fragmentariam
amplamente o mercado musical nacional a partir dos 1980. As categorias nacionais ainda
manteriam, na medida do possível, algum padrão cancional nacional de hibridação
homeostática porém em alguns casos modelos contrastivos começam a preponderar pela
polarização dos procedimentos sobretudo passionais, ou pela caricaturização desses mercados
internacionais na esfera cancional nacional. Esses últimos fatores, no caso específico das
vocalidades populares, possibilita uma incursão mais exagerada e mesmo de retomada de
cantos dramáticos e procedimentos de passionalização. Como exemplo de razoável
homeostase de hibridação, podemos apontar o rock nacional surgido nos anos de 1980 que
“composto, interpretado e gravado no Brasil, (...) criou seus próprios idiomas, ídolos e
paradigmas, complicando sem dúvida a noção de alienação através da música”133 (DUNN;
PERRONE, 2002, p.23-4, tradução minha). De qualquer forma as três primeiras linhas
“brasileiras” de músicas de massa tornam-se cada vez mais difusas, com fronteiras embaçadas
e fluidas entre si, e que dificultam as categorizações da MPB sobretudo a partir dessa década

133
“Composed, performed and recorded in Brazil, the new rock created its own idioms, idols and paradigms,
thus complicating the notion of cultural alienation via music.”
173

de estudo,134 com indicativos disso já em fins dos anos de 1970. Assim, como aponta Marcos
Napolitano, a MPB saiu de certa centralidade de difusão da qual gozou nos 1960 e 1970, não
só passando a dividir o espaço com as vertentes citadas, subgêneros comerciais e canções
internacionais que surgiriam reiteradamente, mas também, agora em minha concepção, ao
ampliar as suas próprias fronteiras estéticas e compartimentais, quando eventualmente
e depois até sistematicamente passa a agregar novos procedimentos musicais e/ou extra-
musicais. Dentre esses elementos observados nessa pesquisa destaco: o (neo)romantismo do
álbum, os procedimentos e ampliação de tecnologias de estúdio, a difusão do produto sonoro
(simbiose suporte e execução em rádio), o hibridismo da técnica expandida dessa vocalidade
popular, e ainda, a obtenção de um produto sonoro com elementos que vão além da
representação da performance ao vivo (campo híbrido tanto ao campo “ao vivo” quanto ao
“estudio áudio-arte”).
O cenário se torna ideal não só para a abordada cooptação da sigla MPB pela indústria
cultural, também apontada por Napolitano, mas também para um adensamento da diversidade
relativa à recepção musical de um maneira geral. Essa, seguiu (e segue) sempre em constante
reformulação, mas a partir dali tem uma expansão de possibilidades aurais 135. A maior
permeabilidade entre conteúdos e temas musicais que nas décadas anteriores seriam mais
estanques a determinados gêneros, movimentos e agrupamentos musicais urbanos, e o
incremento da participação de camadas mais populares não só na recepção, mas agora
também no campo da produção musical também são fatores importantes.
Ao vislumbrar os ouvintes e a rede de produção/distribuição do produto final incutem-
se novas perspectivas conceituais que não se encerram mais totalmente no âmbito da criação
musical, ou da performance ao vivo, ou ainda na pureza da concepção artística autor-obra.
Dessa forma o(a) ouvinte passa a ser considerado tanto na concepção, como no processo e na
finalização do produto gravado. Fato também apontado de outra forma no início das
conclusões.
Djavan se vincula definitivamente aos artistas de catálogo da MPB (dos festivais de
fins dos anos de 1960 e de toda a década de 1970), fator verificado bibliograficamente. Isso
ocorre mesmo numa perspectiva de ampliação de difusão de sua música somente ainda nos

134
Relembro que Marcos Napolitano encerra suas periodizações no ano de 1979, para o período 1972-1979.
135
Como abordei ao longo do trabalho há algumas mudanças recorrentes na difusão e no manuseio individual da
música, seja desde o walkman da Sony e sua pessoalidade e mobilidade de fruição musical ao aumento da
comercialização de fitas cassetes já com início das possibilidades de gravação doméstica, aos vinis seja em LP‟s
e compactos com maior acessibilidade das camadas populares, da expansão das rádios FM, e por fim a cultura
vídeo-musical e transição aos Compact Discs que se dariam ainda durante a década de 1980.
174

anos de 1980, ou seja, as vinculações indexicais e práticas cosmopolitanas transgrideriam as


fronteiras temporais, além das já citadas fronteiras geográficas. Também observa-se que, o
caminho inverso dessa via semiótica de indexação é colocado em atividade: Djavan vincula-
se aos artistas de catálogo da MPB, categoria que em suas fronteiras híbridas e esponjosas
também passa consequentemente a se vincular a uma produção de conteúdo mais romântico,
inicialmente desse mesmo cantautor e consequentemente a outros romantismos. Realimenta-
se a cadeia semiótica com a possibilidade de vinculação de uma “nova” abordagem da
temática romântica ilustrada por via desse artista à sigla MPB, em formato não observado
nesses moldes nas décadas anteriores. Na década anterior, se tomarmos a última periodização
de Marcos Napolitano, essa permeabilidade teria se dado entre a pop music e a MPB. Nos
anos de 1980, desse trabalho, essa via conceitual romântica se reforça também com os
intérpretes consagrados na MPB exordial fazendo parcerias, reinterpretações e performances
ao vivo conjuntas com o artista alagoano, como observa-se sobretudo com Caetano Veloso136
(uma citação/neologismo de Djavan que referencia o álbum Luz) e ainda com Chico
Buarque137 em parcerias. Contextualmente as décadas anteriores ao álbum Luz detiveram, em
relação à MPB, primeiramente o caráter “nacional-popular” que logo migraria para o de
conteúdo político-social. Essas linhas se abrandam, e cada vez mais não se necessita
detidamente de algum caráter conteudista mesmo já na década de 1970. A perspectiva
conteudista quase que “definitivamente” se encerra com a iminente abertura política dos anos
de 1980, tanto pelas novas perspectivas de um diálogo musical transcultural e mitigação da
temática local/regional, quanto pela saturação da fórmula ainda muito vinculada aos festivais
praticamente extintos nos 1980. As práticas culturais requisitariam paralelamente outros
temas, aparentemente mais suaves e não caracterizadamente conteudistas e políticos em
termos das letras cancionais, o que ocorre no álbum Luz acompanhando alguns novos padrões
sonoros, com resultados mais sólidos e compatíveis pela vinculação romântica híbrida em
letra e música. Djavan, como observei, chegou mesmo a ter uma música censurada no regime
militar ao abordar o tema do negro brasileiro, porém esse não era um viés compositivo
aparente de seus primeiros álbuns e canções aqui abordados(as). Nem mesmo o contexto
social exigia o aporte desse tipo de conteúdo ao cantautor alagoano, com predomínio de

136
Caetano na canção “Ele me deu um beijo na boca” do disco Cores, nomes afirma “(...) eu sou do clã do
Djavan (...)” (VELOSO, Cores, nomes, 1982), e em 1985 a Polygram lança uma coletânea sua chamada
“Caetanear”.
137
Chico Buarque convida Djavan para as viagens à Cuba e Angola. Compõem juntos ainda em fins de 1970
“Alumbramento” e Chico também o requisita bem mais tarde como intérprete da canção Meia-noite (Chico
Buarque/Edu Lobo) no álbum Edu Lobo & Chico Buarque - Álbum de teatro (1997).
175

lançamentos inicias de canções temáticas (sambas e baiões) com letras todas de caráter
romântico (as já citadas “Flor de Liz”, “Fato consumado” e “Alegre Menina”) num
hibridismo desse caráter já primário em sua obra, como pude observar em análise. Nos anos
de 1970, no Brasil, as músicas de caráter romântico se associavam em duas frentes 138: a da
popularidade hegemônica de Roberto Carlos e afins também não vinculados prioritariamente
à sigla MPB por certo apartamento dessa com o movimento Jovem Guarda icônico ao
surgimento do “rei”; e outro agrupamento cancional que era ilustrado por um caráter musical
pejorativo chamada “brega” ou “cafona” criando um paralelo popular ao conceito canônico
“negativo” apontado por Bruno Nettl, e que „selecionam e contemplam músicas por algo
que tem de “ruim” (NETTL, 2010, cap. 14, p.5, grifo meu), sendo essas últimas veiculadas
prioritariamente em rádio AM. A MPB manteve a primazia de vinculação ao início da difusão
em rádio FM no Brasil, cabendo observar que mesmo essas delimitações de bandas
radiofônicas em relação aos ouvintes têm certa permeabilidade de fronteiras a partir de fins
dos anos de 1990. A partir de então a televisão passaria a ascender como principal veículo de
difusão musical. Cabe observar que a banda AM manteve uma temática romântica brasileira
de mais popularidade que assim perpassou então todo o século XX. Já sendo a banda de
frequência radiofônica prioritária da música romântica-passional desde a primeira metade do
século XX, passa à saturação romântica de boleros valsas e sambas-canção lentos dos anos de
1950, e segue com a vertente romântica popular mesmo até os 1980. Em outra frente de
difusão, as rádios FM surgem com maior qualidade de transmissão vinculando
consequentemente a canção considerada mais moderna, com transmissão específica de curtas
distâncias principalmente nas grandes cidades. É importante observar que a MPB se firma em
meados dos anos de 1960 no mesmo período em que as primeiras rádios FM passam a operar
no Brasil, muito embora o discurso que relaciona MPB e festivais televisivos seja o
hegemônico e base da maioria das pesquisas as rádios FM também auxiliam a difusão da
moderna canção brasileira. A TV ainda deteve nas décadas de 1960 e 1970 certo toque
documental acerca das performances musicais populares. Como já abordei, por via de Renato
Ortiz (2006), a TV só consolidou um sistema de difusão nacionalmente unificado durante o
auge do período ditatorial e a partir da metade dos anos de 1970, numa simbiose de favores
entre grupos de mídia e grupos políticos que até hoje demonstra seu poder, capacidade de

138
Segundo Napolitano na década de 1970 então “(...) havia a tradição da música romântica que continuava
sendo o segmento de maior popularidade (em termos de vendagens absolutas), indo de produtos musicais mais
bem acabados (como no caso de Roberto Carlos) até produtos musicais mais toscos e simplórios (como o
„gênero‟ Brega, que explodiu nos anos [19]70, todos subprodutos do movimento Jovem Guarda e suas baladas e
rocks quadrados” (NAPOLITANO, 2002, p.71)
176

direcionamento das massas populares e efeitos culturais hegemônicos.


Lembro ainda que a MPB, como filha da Bossa Nova e herdeira de procedimentos
musicais de João Gilberto, também carregaria durante bom tempo certa separação de todo e
qualquer conteúdo romântico latente que já saturara as rádios na década de 1950. Dali, a
Bossa Nova enxuga procedimentos de romantismo melodramático mas também caracteriza o
canto subjetivo dos(as) cantautores(as) como sendo prioritariamente um ofício
desdramatizado, e que, ainda categoriza uma produção cancional observada numa perspectiva
“qualitativa” até a contemporaneidade.
Assim, a temática romântica desse foco cancional e de cantautoria de Djavan e sua
vocalidade subjetiva adentrariam a MPB por via de certo equilíbrio de emissão vocal
apontado na análise. Esses procedimentos não polarizam acentuadamente para caracterizações
de vocalidade passional-romântica que seriam mais tipicamente brasileiras em esfera
urbana139 (boleros, canções brega, temas existencialistas, canção de rádio AM, rock romântico
de temática adolescente da jovem guarda). Chega-se a isso, nesse álbum analisado, por via de
um caráter mais global e cosmopolitano e de romantismo internacional, que então com seus
caracteres mais “modernos” ou cosmopolitanos pôde então também ressignificar aquela que
seria a moderna canção brasileira (MPB) a partir da cena pop anglo norte-americana. Essa
última cena e seus elementos obteriam aceite de difusão e de hibridação na MPB, mas
também no pop e no rock nacionais dos anos de 1980. O fator é incipientemente observável
em elementos da década de 1970 porém ainda vinculados aos movimentos/grupos e não a
estéticas mais subjetivas e personalistas, como é hábito para os artistas da MPB. Essas
estéticas subjetivas e personalistas até então não se categorizavam por um romantismo mais
aparente, o conteúdo político, letras de representação do universo feminino e regionalismos
seriam os predominantes para os artistas de catálogo até a virada dos anos de 1970 e 1980.
Por fim, discussões reiteradas de apropriação e novos usos relativos a MPB, pelo
apontamento de uma transição global da música dos anos de 1980 podem e devem ser
observados sob uma nova perspectiva, que evite a abordagem tradicionalista.
À sigla MPB vincularam-se inicialmente os chamados cantautores(as) e as suas
intérpretes categóricas, constituindo então os chamados artistas de catálogo. Esses carregavam
o ofício híbrido de canto e composição e boa fluidez de cada cantautor(a) e intérprete por
diversos gêneros cancionais e mesmo fusões desses gêneros como prática musical. A isso
chamo agora de força centrífuga da MPB exordial. Djavan ainda seria indexical a esse padrão

139
Um único caso pontual seria uma interpretação de Roberto Carlos da canção “A ilha” de Djavan no ano de
1981, também já apontada no trabalho mas ocorrendo também já nos anos de 1980.
177

citado, ou seja, capaz de produzir um disco inteiramente autoral, interpretá-lo, apresentar boa
fluidez por campos interpretativos, campos compositivos, referenciar-se acerca dos gêneros
cancionais hibridizados, e ser ainda (re)interpretado e fazer parcerias, citações aos diversos
artistas da MPB de maneira a vincular-se à sigla em seu caráter tido como mais original e em
sua casta mais valorizada artisticamente, os(as) artistas de catálogo. Tudo isso ocorre, mesmo
sendo ele claramente influenciado pela pop music, pelo jazz contemporâneo, pela música
africana, e tendo uma veia estética prioritariamente romântica. A hibridação, para esse caso e
em nossa canção, se deu balizada por capacitação técnica vocal em procedimentos diversos e
assimilação personalista das práticas compositivas e interpretativas, galgando assim padrão
homeostático revelado em performance e gravação. Isso é observável no álbum e na carreira
do cantautor, e seria em suma a expertise e capacitação técnica reiterada na inserção de
elementos discretos que, estrangeiros ou nacionais, ele mesmo já vinha depurando ao longo de
anos de formação musical de cunho informal.
Após essa chamada transição, ao contrário da fluidez e capacitação de diversidade
performática compositiva de cada um desses artistas da MPB, passa-se a se tomar a
diversidade como a variedade relativa à música popular brasileira de forma geral. Diversos
gêneros e artistas passam a ser inseridos na sigla MPB sobretudo por intermédio da indústria
cultural a partir dos 1980. Passou-se a constituir a categoria numa diversidade generalista e
genérica. Essa não é mais necessariamente híbrida pontuando elementos diversos, e nem
representa a diversidade técnica pessoal direcionando-se a abarcar as variedades musicais sem
necessária unidade conceitual ou de ofício. Surge uma diversidade dada a partir do conjunto e
não mais a partir do ofício categórico de cantautoria. Nesse caso, passa a atuar uma força
contrária à força centrífuga citada, e que se direciona ao centro da MPB lançando à ela
subgêneros e artistas diversificados. A sigla então também já não é mais tão pontual e fechada
mas bastante ampla e permeável, o que demonstra-se por exemplo com a incursão dos
elementos românticos aqui apontados em letra e músicia. Agora então, a MPB torna-se
passível a remodelamentos, recategorizações, apropriações e mesmo a já citada “cooptações‟
que Marcos Napolitano (2002) aponta veementemente. Com a definição compartimental em
escala mundial através da categoria world music, e de uma enxurrada de subgêneros que
estariam por vir no cenário nacional (abordagem sintética apontada por Simon Frith), a sigla
MPB também passa a ser então uma espécie de “resumo em escala nacional da categoria
world music”. O cenário possibilita constituir o discurso hegemônico de diversidade muito
embora as práticas contemporâneas sejam mais polarizadas, homogêneas e suscetíveis a
modismos e circuitos estéticos na centralidade de difusão. Jocylene Guilbaut aponta que na
178

contemporaneidade haveria o “discurso da diferença e prática da homogenenidade”


(GUILBAUT, p.142, 2006), enquanto Canclini aponta a “rotulagem da diferença e
predominância de observação das misturas como processos sem choques” (GARCIA
CANCLINI, p. 233, 2012). Porém a discussão contemporânea acerca da MPB também
merece aprofundamento específico posterior, de forma que aqui faço somente alguns
apontamentos futuros.
Retomando a questão central, observar e analisar o ofício dos(as) cantautores(as) então
constituindo um habitus musical comum se torna uma possibilidade de pesquisa mais
palpável do que tentar administrar a dinâmica da MPB. Essa saindo da centralidade e sendo
redimensionada para outros grupos sócio-musicais por intermédio da indústria cultural tem na
atualidade caracteres muito distintos daqueles dos anos de 1960. Ou seja, as atividades dos(as)
cantautores(as) contando com: diversidade técnica pessoal, vocalidade subjetiva de
interpretação, abordagem sobre os diversos gêneros cancionais, auto-acompanhamento
instrumental e a tendência ao equilíbrio de procedimentos permitem uma referenciação mais
sistemática até mesmo na contemporaneidade. É então um resultado de observação da
pesquisa por via dos conceitos de habitus e do cosmopolitanismo, tomando por base as
práticas de performance vocal e compositiva fundamentadas teoricamente para a canção
popular brasileira.
Ocorre então a transição de forças lançadas pela MPB exordial (centrífugas) a partir
dos habitus descritos e que interpreto esteticamente como práticas sócio-musicais, para um
cenário de forças que podem ou não dirigir-se à MPB, e quando o fazem é para lançamento de
novos artistas em carreira solo com tentativa de indexação desses aos artistas de catálogo. A
indústria cultural busca assim a consequente valoração artística, não sendo mais
necessariamente os ofícios de cantautoria e interpretação sobre essa atividade conteúdos
principais de fomento artístico da sigla MPB. Fator observável a partir dos 1980 mas
sobretudo nos anos de 1990.
Finalmente, Djavan seria um dos artistas derradeiros a se vincular à sigla em seu
caráter mais original e aos artistas do catálogo. No álbum Luz o que se observa é que tal ofício
é potencializado e sistematizado pela indústria cultural e pela rede de produção musical na
forma de um produto gravado.
Buscando dessa maneira, os fatores da transformação social revelam-se uma
ferramenta analítica paralela de perspectivas conceituais e metodológicas. Essa tem melhor
aplicabilidade e evita certo caráter de liquidação/despedida da sigla ou outro tradicionalista
em relação à ela (observados em alguns autores e ambos fadados a um discurso reducionista
179

que não considera os processos). Retomo Nestor Garcia Canclini ao observar que no caso do
popular é melhor se preocupar com o que se transforma do que com o que a princípio
desapareceu. A MPB ao permitir certa permeabilidade intrínseca ao seu hibridismo cancional
seria invariavelmente realimentada com novos artistas e subgêneros perdendo seu caráter
compartimental inicial, transformando-se.
As apreensões identitárias e sociais que se apresentam permitem ainda a identificação
de caracteres até mesmo dos artistas contemporâneos em relação às atividades sócio musicais
da MPB que aqui caracterizei como exordial. É possível vincular e identificar atividades e
processos àquela que seria a MPB primária mesmo em outra temporalidade. Como exemplo,
se João Gilberto tomou o balanço das lavadeiras de Juazeiro hibridizando procedimentos
jazzísticos de emissão vocal cool para constituir uma música de câmara que caracteriza-se
artisticamente em sua performance ao vivo, Djavan agrega também o canto materno e das
lavadeiras aos procedimentos vocais já urbanizados da música popular africana do jazz num
álbum que orquestrado acaba também permeado de elementos de música artística em sua
forma gravada. Na contemporaneidade é importante notar que tais atividades não estão
necessariamente em um cenário central de difusão.
O conceito de MPB ao ser cooptado industrialmente passa cada vez mais a habitar
novos locais identitários e até a amalgamar certo desprezo contemporâneo na vinculação de
determinados artistas e banalização do termo. Porém, observa-se que o ofício de cantautoria
migrou para a marginalidade de difusão contemporânea com novos indicativos de atividade
até mesmo participatória, a exemplo das performances em voz e violão que marcaram Bossa
Nova e festivais. Na sociedade contemporânea a utilização de termos e siglas será sempre
mais permissiva a quem detém grande parte da difusão massiva, enquanto que, por outro lado,
ofícios e atividades sócio-musicais permitem uma demarcação identitária não necessariamente
massificada, mas passível de sistematização através de atividades e hábitos comuns, tornando-
se eixos identitários contudo já visivelmente fora de um campo midiatizado mais central.
Um fator de mudança na identidade da MPB foi potencializado principalmente nos
anos de 1990, e fugindo ao recorte do trabalho será citado só ilustrativamente. Quando os(as)
intérpretes vocais principais dos grupos de subgêneros em proeminência a partir de fins dos
1980 passam a ser alçados para uma carreira solo pela indústria cultural, essa mesma indústria
tenta rapidamente vinculá-los ao modelo mais valorizado artisticamente baseado nos artistas
de catálogo numa simbiose industrial moderna que visa manter a difusão massiva conquistada
via subgêneros sem perder os circuitos direcionados, além agregar maior valor artístico
indexando esses(as) aos cantautores ou intérpretes da MPB dos anos 1960/1970. Assim, a
180

indústria musical busca o que há de “melhor” nos diferentes campos para alavancar seus
“produtos musicais” em frentes distintas de difusão.
O outro fator que podemos citar como de mudança identitária da MPB dos anos
iniciais é o da cultura vídeo-musical alavancado ainda nos 1980 e melhor sistematizado no
Brasil quase uma década depois do álbum Luz. Vejamos que o modelo de vídeo sobre música
ainda detinha mais valor documental desde os festivais até por volta dos início dos anos de
1980. Passando a existir um canal exclusivo de música em vídeo140 muda-se radicalmente a
concepção do registro documental, com o próprio vídeo passando a influenciar modelos de
performance, de difusão e quiçá musicais. Isso é algo que vai além da sistematização da TV
em relação à difusão musical ou da vinculação de músicas a trilhas de novelas, trata-se de
uma simbiose que passa obviamente a influenciar as produções musicais desde sua concepção
inicial.
Encerro essa parte conclusiva apontando que as conclusões já passam a querer
extrapolar o recorte inicial muito embora baseiem-se em dados e interpretações aqui
produzidos, contendo perspectivas para futuros trabalhos e observações.

4.3 A voz popular e seus níveis processuais de hibridação

Em relação às práticas vocais e possibilidades de hibridação, nesse álbum, optei


basicamente pela observação em três frentes. Essas buscam observar os processos mais do
que descrever práticas pontuais que seriam consideradas de alguma outra cultura ou escola,
como é tendência em alguns apontamentos acerca do hibridismo na tentativa descritiva de
apontar colagens e decalques de forma mais generalista.
A primeira diz respeito a fluidez vocal pelos campos apresentados por Luiz Tatit, sob
processos descritos de figurativização, passionalização e tematização. A segunda seria uma
exploração que observa esse objeto sonoro vocal como capaz de circular pelos campos das
músicas artística, popular e folclórica, seja em caráter nacional ou transnacional e ainda em
conjunção com a fluidez de performance pelos campos musicais que Thomas Turino propôs
apresentados na primeira parte da conclusão fundamentadas teoricamente ao início do
trabalho. A terceira é uma vertente inicial que passo a observar nas relações de gênero social
onde aponto a hibridação vocal de Djavan a partir de um referencial feminino que
materializou-se em vocalidades masculinas. Esse referencial é compartilhado também com

140
A MTV, Music Television e lançada nos EUA em 1981, passando a estabelecer filiais mundiais a partir de
meados dos 1980. A MTV Brasil só é lançada em 1990.
181

outros cantores da MPB não sendo um fator pontual de interpretação e assim merecendo
futuras expansões de pesquisa.
Trazendo as duas primeiras dimensões de hibridismo, materializa-se então uma
vocalidade: expandida em registros e padrões de emissão; com características estéticas de
reconhecimento subjetivo de emissão vocal e mitigação de alguma dramaticidade técnica bem
como de intensidade da emissão vocal mais afeitos às escolas lírica e do teatro contemporânea
norte americano; e observam-se influências musicais díspares que vão do jazz à música
africana, bem como de seu propalado balizamento de influência musical que iria da música
dos Beatles ao lirismo de Luis Gonzaga. Tudo isso num produto equilibrado e com
direcionamento de mercado e com circulação em campos e gêneros sem fronteiras claras.
Retomando as observações acerca do hibridismo homeostático, aponto que Djavan é
um referencial importante aos cantores(as) populares, com forte inserção em públicos de
música de mais popularidade e outros que se intitulam mais refinados ou pertencentes a
camadas mais abastadas. Há críticas de certos grupos ligados ao samba mais tradicional
acerca das hibridações de seus sambas, e também de outros que o consideram
demasiadamente romântico em relação a artistas com caracteres de letras mais conteudistas.
Há que se considerar que a reiteração das canções românticas, sem dúvida tende a superar a
das outras canções sobretudo por meio das canções veiculadas em novelas e as camadas mais
populares de ouvintes que ganham proeminência no mercado musical, criando um cenário pop
romântico muito forte para esse artista.
Assim, essas performances e gravações seriam decorrentes do grande apuro técnico do
cantautor, que por sua vez seriam intrínsecos à sua formação musical diversificada. Djavan é
capacitado nessa grande diversidade de procedimentos sem a perda de sua perspectiva
subjetiva de emissão vocal em relação com a fala. Extrapolando os gêneros não só da música
brasileira, e tendo sua auralidade forjada pelos canto popular norte americano do jazz, do
canto urbano brasileiro, pelos canto de caracteres oral, folclórico e de trabalho como apontado
na análise da canção “Minha irmã” e mesmo em fontes cancionais africanas aqui observadas.
Além disso, surgem indicações claras relativas ao seu trânsito também somente como
intérprete por esse canto popular africano ou em canções de outros cantautores brasileiros.
Percebe-se a formação ampla e diversificada que revela-se na performance vocal seja como
cantautor (e assim intérprete de sua própria obra) ou exclusivamente como intérprete da obra
de outros(as) compositores.
Lembrando a MPB como complexo músico-cultural (NEDER, 2008) e sua restrita
propensão à delimitações por via de gêneros cancionais, eventualmente a partir de conteúdos
182

considerados para esses gêneros, alguns procedimentos são tomados como


descaracterizadores do modelo canção mais tradicional, o que ocorre porém dentro dessa
mesma visão mais fechada em gêneros musicais específicos. Como exemplo, certas variações
melódicas vocais apresentadas no canto pop de Djavan seriam menos aceitas a partir do
conteúdo de gêneros mais tradicionais como samba-choro, nos quais a melodia é tomada
como um conteúdo muito mais fixo, permitindo até variações rítmicas sobre o material
melódico, as chamadas “divisões” da música brasileira para canto solo, mas prioritariamente
caracterizadas pelo compositor e direcionadas a constituição de cânones populares.
Tomando a questão do canto subjetivo que proponho, concluo que o canto de Djavan
tem um alto grau de subjetivação na expressão canto e fala. E que, sua técnica subjetiva e
forjada informalmente conta com influências muito diversificadas assim exploradas em
performance pelo cantautor, de maneira que ele expressa um canto categoricamente híbrido de
caracteres homeostáticos em função de sua alta capacitação técnica oriunda da diversidade
musical. Tendo Luis Tatit como base referencial, abordo então que essa fluidez técnica resulta
de fluidez interpretativa pelos campos propostos por esse autor. Destacadamente Djavan tem
capacitação contínua entre os campos temáticos e passionais, apresentando os elementos
figurativos de forma mais pontual porém inseridos na sua dicção autoral.

4.4 Hibridismos no álbum Luz na observação de campos musicais

Sem dúvida podem ser observadas diferentes perspectivas de hibridação em Luz de


Djavan, bem como outras restrições à essa dinâmica processual de fusão.
Um ponto em que observo a restrição à execução musical de caráter híbrido, é aquele
demonstrado pela execução dos sambas do álbum. Ali optou-se pela banda brasileira de base.
Muito embora se estivesse trabalhando com os melhores músicos de estúdio da soul music da
ocasião, o produtor Ronnie Foster decide pela execução dessas faixas por músicos brasileiros,
com muito mais permeabilidade técnica nesse campo cultural e para essa execução. Além
disso, é interessante observar que desde suas primeiras composições, os sambas de Djavan
apresentam um caráter bastante personalista, que complicam uma categorização exclusiva de
seus sambas unicamente dentro do gênero tradicional brasileiro.
A canção “Minha Irmã” com caracteres compositivos oriundos da oralidade ganhou
roupagens, forma e elementos da música pop em voga na época. Elementos de mixagem
apesar de demonstrarem fatores do campo de alta fidelidade de gravação a vinculam a
performances participatórias. Incutiu-se uma representação de continuidade mais usual na
183

música participatória, através dos efeitos fade in e fade out, diferentemente das formas
musicais mais fechadas destinadas a performance de apresentação. No caso da performance
participatória a forma e o tempo de execução seriam muito abertos e alongados, dificilmente
adequáveis ao formato de faixas comerciais de LP‟s. Assim, pode-se observar um caráter
híbrido na fusão desses campos musicais participatório, de apresentação e de alta fidelidade, o
último aqui ainda guardando boa relação com a sua representatividade das performances ao
vivo.
Em relação aos campos musicais descritos por Thomas Turino, o autor já havia
observado que esses campos não são estanques entre si, e poderíamos considerar que a música
popular brasileira seja expressiva dessa permeabilidade.

Em certas tradições musicais aspectos de diferentes campos são combinados. Um dos


melhores exemplos dessa mistura é o karaokê que usa gravações de alta fidelidade
como acompanhamento para performances participatórias sequenciais que imitam a
performance de apresentação [ao vivo]. Avanços tecnológicos tornaram possível a
combinação de sons eletrônicos „tipo estúdio arte‟ com a performance ao vivo através
do uso de gravações ou faixas sampleadas no palco 141. (TURINO, 2008, p. 88, minha
tradução))
precisa colocar o texto original no rodapeh....
Observa-se que uma série de caracteres da gravação em alta fidelidade em Luz não
remeteriam necessariamente à performance ao vivo. Surgem fatores que convergem para
elementos do tipo estúdio áudio-arte, ou sendo somente mais icônicas do que representativas
às performances ao vivo, com valoração também específica do objeto sonoro disco. Como
exemplo, aponto o coro de quinze vozes sobrepostas por Djavan em “Sina” que não teria
possibilidades de execução ao vivo a não ser com efeito de looping ou em gravações play-
back (que não eram voga ainda na época e nem são identificados em performances ao vivo
posteriores ao álbum por esse artista) e muito embora seja referencial a coros populares
africanos se torna um elemento de “criação de estúdio” exclusivo do álbum e não referencial
da performance. De alguma forma também o solo de Stevie Wonder dificilmente seria
retomado ao vivo ou mesmo reinterpretado seja por esse mesmo artista e/ou por esse mesmo
instrumento (gaita harmônica) sendo assim um modelo de execução e performance em alta
fidelidade muito mais icônico do que referencial à performance ao vivo. Por fim, os efeitos de
fade out também não remetem às performance de apresentação/ao vivo mas ao uso da música
ou como ambiência ou prevendo a utilização desse efeito seja na difusão em rádio ou por

141
In certain musical traditions aspects of diferente fields are combined. One of the best examples of this mixing
is karaoke that uses high fidelity recordings as accompaniment for sequential participatory performances that
imitate presentational performance.
184

mediação dos DJ‟s. Cabe considerar certa transição da perspectiva original da alta fidelidade
como também oriunda da ampliação de possibilidades tecnológicas direcionadas ao campo
estúdio áudio-arte. Isso expande um pouco a caracterização irrestrita relacionada ao
achatamento semiótico relativo à tomada do produto sonoro com algo por si meramente como
um fator comercial da indústria cultural, ganhando representações tecnológicas e do
aprimoramento do trabalho de estúdio.
Ou seja, essa seria ainda uma hibridação entre a abordagem orgânica relativa à
performance pública e ao trabalho híbrido de estúdio (fundindo atividades do campo alta
fidelidade e estúdio áudio-arte). Ainda há maior polarização da primeira abordagem de alta
fidelidade para esse caso de Luz, ocorrendo a utilização pontual de elementos forjados
somente em estúdio que se somam à ideia do produto sonoro como sendo a música em si
sendo bem trabalhada em outras mediações identitárias do LP (visual e de difusão).
Por fim, cabe considerar que os campos de alta fidelidade e estúdio áudio-arte são
direcionamentos advindos da atividade de gravação, e que muito provavelmente a partir de
expansão de fatores tecnológicos passam a fundir, emprestar e/ou homogeneizar algumas
atividades dos dois campos.
Dessa maneira, as atividades do campo da performance ao vivo apresentam clara
fluidez para a música brasileira ainda com relativa predominância nessa esfera urbana do
campo da performance de apresentação e pontuações conceituais, de concepção e de
performance do campo de música participatória. Também as atividades do campo da gravação
em estúdio apresentam alguma fluidez com predominância ainda da alta fidelidade para a
música popular urbana mas pontuações crescentes a partir de aportes tecnológicos de
atividades de estúdio áudio-arte. De qualquer forma, nesse álbum, todos os campos podem em
algum momento ter referenciações, em maior e menor escala.
Nessas possibilidades de observação do hibridismo musical lembro que não só a
canção “Minha Irmã” e seus caracteres de música participatória, textura, volume e formas
apontam isso, mas também a canção “Sina” apresenta os recursos de manipulação e mixagem
vocais (15 vozes sobrepostas) em fatores muito próximo da música estúdio áudio-arte, já que
tal efeito dificilmente seria reproduzido ao vivo, havendo aporte de técnicas de estúdio sobre a
execução gravada. Assim, como apontado, tal elemento só existe como produto de estúdio e
em função das tecnologias da ocasião, diga-se de passagem ainda não digitais na época, e
contanto com alguns fatores analógicos que foram então explorados.
Esse seria um campo de hibridismo mais latente do que aquele relacionado à algum
fator de mistura dos músicos atuantes, ou mesmo o hibridismo relativo ao apontamento de
185

elementos descritivos de uma vocalidade meramente nacional ou internacional. A


interpretação dos sambas do álbum pela banda de base brasileira não é um fator aleatório. O
samba, híbrido ou não, tem elementos discretos ligados ao Brasil que sem dúvida conferem
uma linguagem de performance que vincula-se aos músicos com maior repetitibilidade nessa
execução ou com forte inserção em tal cultura. As execuções de “Minha irmã” e “Capim”
pela Sururu de Capote dificilmente teriam o mesmo resultado com a banda base norte
americana, o que independe inclusive da grande capacidade daqueles renomados músicos
norte-americanos de estúdio, mas sim da maior inserção em tal cultura musical e repetição das
possíveis execuções e variações do samba como um gênero mais específico. Ou seja, mesmo
num campo mais cosmopolitano de atividade musical urbana, onde sem dúvida muitas
condições são compartilhadas, existem referenciais locais que condicionam outros caracteres
de execução musical. Esses se tornam muito aparentes sobretudo num campo artístico-
musical, estando sujeitos a um resultado estético capaz de se relacionar ao hibridismo
contrastivo, com arestas aparentes não fundidas no produto final.

4.5 Hibridismo vocal e perspectivas de gênero social

As questões de gênero social têm ganhado cada vez mais voz nas pesquisas
contemporâneas e na etnomusicologia. Marcadamente a música popular brasileira também
decalcou padrões culturais que se refletem no campo de atuação de homens e mulheres dentro
do mercado de música popular brasileira. Nesse mercado, é visível o direcionamento de
papéis relativizados principalmente às mulheres e outros eixos que apresentam maior retorno
financeiro e também de reconhecimento artístico sendo destinados e priorizados, sobretudo,
aos homens. Ou seja, não existe igualdade nas condições de atuação e performance para o
trabalho das mulheres em relação aos homens no campo da música, e há ainda boa
delimitação de nichos nos quais as mulheres poderiam atuar ou ter algum destaque. Nessa
vertente é observável maior restrição do campo autoral, e do consequente retorno financeiro
desse campo às mulheres.
Para esse trabalho, quero destacar o referencial feminino às vozes dos cantautores
brasileiros. Tal referencial chegaria a uma materialidade nas vozes masculinas. Porém, tal
materialidade se forja em caracteres de informalidade e transmissão oral gerando uma
condição de invisibilidade de referenciação. Ganha alguma visibilidade na exposição de
referenciais vocais das grandes intérpretes femininas, porém retorna a Concluo apontando que
o feminino consegue ainda ocupar alguma dimensão formativa, constituinte e/ou referencial
186

de vocalidades. Tem mínimo espaço no campo autoral, com direcionamentos de direitos


autorais altamente polarizados aos homens. No campo da performance interpretativa ganhou
boa proeminência sobretudo quando da separação explícita e especialização de funções de
compositor(a) e intérprete. No caso da canção popular onde a caracterização de obras pelos
intérpretes tem boa preponderância chega a revelar características bastante pessoais de
diversas cantoras. E por fim, na contemporaneidade os campos autoral e de performance
musical vêm sendo reinvindicado pelas mulheres, o que se observa principalmente na
formação de coletivos, grupos e cenários femininos de atividades musicais.
Em relação ao álbum Luz menciono a materialização do feminino numa vocalidade
masculina como constituinte de um caracter processual híbrido de influências. A influência da
mão do cantor, a lavadeira Dona Vírgínia Viana, que é reiteradamente descrita por Djavan
como sendo segundo ele então “totalmente responsável pela música na vida” do cantautor,
deve ser considerada mesmo em seu caráter de informalidade, e merece alguma visibilidade
tanto em características compositivas como na de emissão vocal. Características essas que
Djavan veio a especializar e enquadrar dentro de um modelo comercial e no qual ocorrem
registros musicais e compensações financeiras por via desse ofício. Soma-se à essa a
influência das cantoras do rádio, tanto as nacionais quanto as norte-americanas, que também
foram descritas no trabalho.
Elencando por fim as atividades do campo da música gravada para o álbum Luz, é
observável o predomínio das atividades de estúdio e produção musical prioritariamente
direcionadas aos homens. Fator perceptível na documentação das fichas técnicas que reforça
as observações relativas à demarcações de atividades em função de gêneros masculino e/ou
feminino. Tal atividade, também de boa compensação financeira, denota caracteres de equipes
masculinas que se retroalimentam e constituem uma sinergia específica e demarcada
socialmente, seja através das bandas ou grupos paralelos de produção que se colocaram em
atuação naquela ambiência de gravação e produção musical.
Dessa forma, observo prioritariamente a materialização do feminino na vocalidade de
Djavan tanto na influência matriarcal de transmissão oral, quanto na influência das cantoras
midiatizadas por via da transmissão aural. Materialização essa que foi apontada no trabalho
também por via de outros nomes da MPB, com destaque para Milton Nascimento e Caetano
Veloso. Observo que muito embora se requisite um equilíbrio de reconhecimento do campo
autoral às mulheres na contemporaneidade, também o campo de gravação, estúdio e produção
musical aqui observados são prioritários à atuação masculina.
187

4.6 A semiótica nos estudos de música popular

Aponto por fim uma conclusão relativa ao uso de elementos da semiótica na


metodologia de estudo da música popular brasileira. A análise por via da semiótica de Charles
Sanders Peirce mostra-se bastante fluida e adaptável na observação de caracteres diversos do
objeto de estudo. Ao considerarmos também os outros elementos da produção cultural, essa
capacidade de criação de analogias por meio da semiótica possibilita então a observação de
diferentes processos de mediação da relação signo-objeto. Somam-se essas a observação do
objeto sonoro por si. Isso tudo, se nos atemos somente a uma das tricotomias mais categóricas
de observação das relações. Ou seja, além de se montar uma estrutura de analogia para estudo
do objeto sonoro, também outros objetos relativos à produção cultural podem figurar nesse
tipo de análise, num auxílio metodológico seja na constituição dos estudos interdisciplinares
ou numa observação ampliada necessária ao enfoque etnomusicológico. Como exemplo, fiz
uso dos referenciais que Luiz Tatit direciona a procedimentos de composição de canções,
direcionando-os muito mais aos procedimentos vocais e interpretativos, também aproximando
esses padrões de observação em relação à performance vocal popular por meio dessas mesmas
analogias semióticas. Nessa perspectiva contribui-se também com a continuidade de uma
linha teórico-metodológica de trabalhos relativos à música popular brasileira.
A semiótica acaba trazendo ainda, e consequentemente, uma importante discussão
relativa a notação euro-ocidental enquanto símbolo de terceiridade aplicável no estudo e
análise da música popular. Música essa que, por sua vez, tem pouca relação empírica com
essa representação de ampla mediação em terceiridade. Tal discussão já tem se ampliado com
a incursão da música popular em ambientes acadêmicos em alguns trabalhos que Martha
Ulhôa desenvolveu por meio de teorizações de Phillip Tagg.
Como se sabe a notação é um sistema de códigos simbólicos que teve seu
desenvolvimento forjado para a música erudita europeia ocidental e dentro de todo arcabouço
cultural daquele mesmo modelo de erudição, num aceite social bastante hegemônico ao
campo pedagógico musical dessas bases. Academicamente, também foi esse padrão
musical/pedagógico que galgou uma locação primária em âmbito institucionalizadas de
ensino, trazendo dessa forma esses padrões de análise, comunicação e relações sócio-culturais
mediados pela notação euro-ocidental. Além da hegemonia desse tipo de notação/escrita, há
também a hegemonia do campo de performance de apresentação e de observação da música
como uma forma artística bastante fechada e profissionalizada. A música popular por sua vez
acaba tendo que se moldar aos principais padrões previamente estabelecidos nessa estrutura
188

criada. Contudo, “o etnomusicólogo, ao trabalhar com um determinado tipo (gênero/estilo) de


música, vê-se diante da necessidade de compreender de que forma os saberes musicais
relacionados ao fenômeno abordado são valorados, selecionados e transmitidos
culturalmente,” (QUEIROZ, 2010, p.115), e tende, dentro de seu trabalho, a abordar as
diversas músicas em suas condições mais específicas de transmissão. A música popular, teria
passado de um modelo de transmissão oral primário quase que de forma direta aos meios de
transmissão tecnicamente midiatizados. Paul Zumthor discorreu sobre fatores que indicam
algum “nível de aproximação da oralidade com a escrita” (VALENTE, 2003, p.70). Para
Zumthor a performance mediatizada tecnicamente apresentaria quatro possíveis estágios, as
oralidades: primária, mista, secundária e mecanicamente midiatizada. A oralidade secundária
sendo “marcada por uma influência da escrita sobre a oralidade” (ZUMTHOR apud
VALENTE, 2003, p.70) e a mecanicamente mediatizada, em outras palavras, passando então
a não depender mais de fatores e condições escritas. É a partir desse panorama que tem-se
buscado também uma análise mais diversificada dos produtos sonoros da música popular e
não as análises estritas em notação, como é caso das análises de música popular gravada ou
mesmo de outras representações gráficas que sejam propostas.
Nessa estrutura didático-pedagógica da música erudita ocidental não só a música
popular é então abordada com menor pertinência (quando marginalizada), mas também
restringem-se nessas ambiências estudos que seriam mais afeitos às performances
participatórias (músicas rurais, orais, rituais, que incluem danças populares e/ou folclóricas
dentre outras manifestações musicais). Lembro que, é a etnomusicologia que acaba abarcando
também essas perspectivas marginais em âmbito musical acadêmico. “O objeto música
popular, na divisão universitária do trabalho [em música], tem sido reservado à
etnomusicologia” (SANDRONI, 2001, p.12), ou então a outras áreas como: comunicação e
história. Caberia mesmo observar até que ponto a estrutura acadêmica musical montada e o
seu arcabouço didático pedagógico não influenciam negativamente as propostas de trabalho
da área popular.
A notação, enquanto um símbolo, tem o grau de mediação mais distanciado possível
na relação signo-objeto, com uma relativização dessa relação em grau de terceiridade. Assim,
são abstrações convencionadas socialmente que na verdade representam outras
representações. Socialmente ainda, a partitura como mídia tem um direcionamento entre
músico e música em performances ao vivo, sem mediação com os ouvintes. Passou-se ainda
num segundo momento a exigências de transcrições nesse modelo notacional para as análises
num modelo comparativista etnocêntrico, fator que é abordado no encaminhamento da
189

metodologia etnomusicológica ainda em fins do século XIX até por volta de meados do séc.
XX, chamado musicologia comparativa. Acontece que no caso da música popular e
especificamente da música em seu formato canção a difusão se dá principalmente pela música
gravada e pela transmissão aural, e ainda no caso das performances vocais populares o uso de
partitura é uma exceção. Mesmo nas performances de música popular ao vivo seja como guia
da performance ou então como registro para efeito de direitos autorais, as duas funções
principais da notação apontadas por Alan Merriam segundo Bruno Nettl, a relação
partituras/notação com a performance vocal popular é amplamente mitigada tendo um uso
mínimo.
Já o predomínio também do campo da performance de apresentação categorizado pela
música artística euro ocidental, tenderia a tomar a música como uma forma de arte unitária,
com separação entre público e artista, espaços direcionados à prática e todo um corpo de
caracteres que acabam influenciando outras práticas sonoras muito diversificadas. E
novamente acaba sendo a etnomusicologia a responsável por estudos ditos fora do padrão
hegemônico, ou ao menos buscando adequar os modelos de estudo à cada cultura musical em
sua especificidade.
Nesse trabalho, aparentemente forjado somente no objeto sonoro gravado, intentei
reconstruir diversas relações semióticas que têm sido apontadas como reduzidas ou achatadas
a partir da tomada da representação do ao vivo para o objeto sonoro como música em si.
Desfazer um grande corpo de atividades envolvidas na produção musical, mediação do
produto e processos musicais criados para identificar esse objeto da forma mais estreita a um
padrão musical e artístico constituiu a busca dos signos diversos que são estreitados entre os
ouvintes e o artista, esse último agora amparado por outros atores de mediação.
Concluo o trabalho com perspectivas de aprofundamento posteriores, seja na
perspectiva teórico-metodológica mais ampla ou detida a esse tema. Nesse último caso,
mantendo o trabalho aberto a novas considerações e encaminhamentos a partir do diálogo que
busca estabelecer com a música popular brasileira, e mesmo em função da sujeição desse
objeto a outros(as) leitores(as), pesquisadores(as), escritores(as), estudantes, performers e
áreas afins ao objeto de estudo aqui tratado. Na perspectiva teórico-metodológica ampliada
aponto um direcionamento necessário de expansão de perspectivas empíricas e aplicadas que
venham se somar à vasta bibliografia etnomusicológica que passei a contemplar como
pesquisador.
190

Capítulo 5: Conclusão

A observação analítica de caráter sócio-musical das atividades do cantautor Djavan,


músicos e produção musical a partir de seu álbum Luz visa contribuir com a vertente da
etnomusicologia brasileira em seu caráter urbano, contendo também especificidades de
observações técnicas dirigidas ao canto popular brasileiro sob uma forma geral. Nesse
trabalho, buscou-se um caminho intermediário que possibilite um diálogo entre enfoques
extremamente acadêmicos que acabam exagerando em um discurso especialista, e os
enfoques extremamente midiatizados e jornalísticos que acabam por cercar artistas do
mainstream em considerações do senso comum ou carentes de elementos musicais relevantes
para uma pesquisa fundamentada e sistematizada. Trabalhar e pesquisar “o popular” no
campo da música ainda é um desafio aos pesquisadores, sobretudo nas especificidades do
Brasil e do campo da etnomusicologia.
Assim, esse estudo de caso tem forte caráter processual na constituição de uma
linguagem “acadêmica-popular”, muito embora tenha colhido resultados palpáveis
direcionados às necessidades conceituais contemporâneas. Resultados que viso trazer cada
vez mais para contribuírem com atividades atuais da música popular, seja em pesquisa,
docência ou em performance.
A afirmação midiática de Djavan e de seu álbum Luz, como apontei no trabalho,
figuram num campo transitório no que diz respeito à diversidade de práticas musicais e
contextuais de criação musical, com forte influência sobre o canto popular brasileiro. Ambos
os fenômenos musicais do estudo, vocalidade do artista e produto sonoro no formato álbum,
figuram de forma constante na difusão aural e referenciação da música popular brasileira
mesmo na contemporaneidade atual que vivenciamos.
As práticas de hibridismo musical aqui consideradas passam a serem observadas cada
vez mais sob formas difusas nas décadas posteriores, isso seja em condições estéticas
equilibradas ou não diante das misturas. Registram-se, por outro lado, movimentos de
acentuação de regionalismos e de salvaguarda aos caracteres locais, sendo ativados como
resistência às condições de homogeneidade musical nas esferas de difusão popular de massas
e também na esfera popular folclórica. Os limites do que apontei, por via de Acácio Piedade,
como sendo processos de hibridação homeostáticos ou contrastivos, tornam-se muito
embaçados nessa perspectiva de homogeneização da escala urbana de massas, e sempre
contam com caracteres subjetivos, contextuais e processuais de interpretação dos fenômenos
musicais na cultura contemporânea. Nessa perspectiva, a observação de um produto musical
191

como álbum Luz, contando hoje com um distanciamento de observação já em seus trinta e
cinco anos de lançamento, apontou uma série de vantagens na possibilidade de seleção
estética do álbum dentre tantos outros produtos sonoros daquele período, produtos esses que
ainda gozam de boa representatividade contemporânea no cenário da MPB. Por sua vez, o
mesmo período de lançamento não contava com tanta fragmentação de suportes, meios de
difusão e identidades musicais, encerrando, pro volta do fim dos anos de 1980 e como
apontei, certo modelo de difusão baseado numa simbiose de rádio FM e suportes de vinil e
cassete. Esse modelo seria também o de difusão categórica da chamada MPB exordial dos
anos de 1960 e 1970, muito embora todo o período já conte com algum implemento televisivo
e visual de difusão e lançamento, observado contudo ainda com pouca influência direta sobre
as performances e boa dose de caráter documental desses registros em vídeo.
Deve-se atentar para o fato de que, muito embora o hibridismo musical seja aqui
discutido e venha ganhando corpo no campo musical, muito do caráter transnacional
cancional pode, e deve ser também observado como vinculado à estética da antropofagia de
Oswald de Andrade, que perspassou as artes brasileiras do século passado de uma forma
geral, produzindo obras de grande importância não só na esfera musical da canção mas
também em outras expressões artísticas e culturais (artes plásticas, dança, moda e cinema),
com forte caráter cosmopolitano como apresentado pela perspectiva de Thomas Turino. Esse
fator de interinfluências entre os campos artíticos amplia-se definitivamente com a cena da
Pop Art, crescendo de forma considerável a partir dos anos de 1970, sendo redefinida em
outras terminologias e variantes a partir dos fenômenos da globalização e da transculturação.
Relembo que acerca do termo globalização, a proposta de um neologismo que surgiu sob a
forma do cosmopolitanismo de Thomas Turino, enquadra-se numa necessidade de
reordenação terminológica que cerca o fenômeno da globalização, apontando adequadamente
novas dimensões e possibilidades de compartilhamento de hábitos não necessariamente
hegemônicos e nem em proximidade geográfica que também não seriam plenamente descritos
sob a terminologia cosmopolitismo.
Um outro foco de observação que visa constituir e categorizar as práticas musicais de
cantautoria, mesmo em zonas permanentes de hibridação para o caso da música brasileira
popular, também ganhou relevo com o desenvolvimento do trabalho. Nesse caso destaco e
retomo conclusivamente a proposta de um canto subjetivo para o caso da performance e
composição desse grupo de cantautores(as) populares brasileiros(as). Nesse canto popular
alguns fatores se destacam como: processos de maior identificação das vozes cantadas com as
vozes faladas não só em timbre, mas em técnicas pessoais; e a intimidade textual em
192

performance vocal seja a partir da composição autoral ou da abordagem dos temas de letras
que venham assim a se confundir com as atividades artísticas dos(as) cantautores(as) sendo
caracterizadas por esses(as), explorando o processo de figurativização teorizado por Luis Tatit
e consequente identificação dos intérpretes com os seus ouvintes. Conclusivamente, nesse
último caso de cantautoria, também circula um caso de hibridismo, que se constitui de
maneira específica para cada voz da MPB. Um dos fatores constituintes dessa atividade de
cantautoria relacionaria-se às chamadas exploração de divisão melódica (pré e pós-frasear na
perspectiva do estudioso de samba e etnomusicólogo Myke Ryan, e que Marta Ulhôa aponta
como sendo a métrica derramada). Porém o trabalho indica que cabe um aprofundamento
também relativo ao implemento de variações melódicas para o caso do canto popular
brasileiro sobretudo quando sob maior influência da música pop, ampliando as
(re)caracterizações dos(as) intérpretes populares. Sem dúvida, a variação rítmica sobre a
melodia apresenta um aceite maior em determinados gêneros e movimentos constituindo
mesmo uma qualificação à atividade vocal popular urbana, e sendo respaldada também nesse
caso por instrumentistas. Porém, tanto nesse trabalho quanto de forma observável nas práticas
contemporâneas orais e aurais, as possibilidades de variações de alturas melódicas dadas pelos
intérpretes são fartamente observadas e também trariam um outro viés de recategorização das
obras populares pelos intérpretes. Marcadamente, a partir do aporte da cultura pop as
variações de altura e contorno melódicos ampliam-se na prática contemporânea e tornam-se
elementos efetivos de transmissão aural, haja aceite ou não relativo à isso dentre os diversos
musicistas. Por outro lado, as variações da rítmica sobre a melodia guardariam um éthos mais
próximo das reinterpretações de músicas instrumentais e notacionais com algum caráter
canônico sobre o material melódico principal. Importa observar que Djavan enquanto
intérprete e compositor circula bem em ambas práticas de variação, porém ao ser intérprete da
própria obra, adquire uma condição de plena liberdade nas diversas variações de altura
melódica realizadas sobre sua própria obra e aqui documentadas. Obviamente tal fator
denotaria outro enfoque, nos casos de variações melódicas, para os(as) intérpretes de obras de
outros compositores(as), e sobretudo em função dos gêneros musicais e cenas musicais em
que estejam envolvidos. Assim, haveria maior e menor grau de aceitação da variação de
alturas e contornos melódicos em função de contextos de atuação performática vocal popular,
enquanto que, a variação rítmica sobre uma melodia tomada como original teria um aceite
muito mais amplo e respaldado. Porém esse é um tema a ser aprofundado em trabalhos
posteriores, e só inicialmente observado nesse fenômeno musical pesquisado. Assim, concluo
que os estudos relativos ao fraseado devam levar em consideração o aporte de outros
193

elementos que aparentemente caracterizam a cena contemporânea diferentemente de uma


cena tradicionalista.
Em relação às atividades da indústria fonográfica observou-se claramente a
capacidade de formatação do produto sonoro já operante nos EUA. A perspectiva foi
assimilada de maneira dinâmica pelo cantautor. As sistematizações sobre a qual discorri
passam a ser mais evidentes no Brasil a partir dos 1990, no formato de circuitos de
subgêneros de cunho prioritariamente comercial e seus produtos correlatos. Os mesmos
circuitos mesmo em subgêneros diferentes por sua vez chegam a padrões muito homogêneos
de atividades sócio-musicais contemporâneas. A MPB muito embora perca a centralidade de
difusão a partir dos anos de 1980 seguiu com algum caráter de maior autonomia bastante
aparente e demarcando padrões bem estabelecidos até então, sobretudo pelos artistas de
catálogo. O álbum Luz, produto sistematizado na época e aqui discutido, também forjou um
repertório base para regravações do próprio cantautor e outros(as) intérpretes ao longo dos
anos. Lembro as observações iniciais acerca do modelo de LP com cânones e hits
condensados que permeou a MPB, e que pode eventualmente ser retomado.
O álbum Luz, por sua vez, nesse cenário de avaliação da indústria cultural, também
categorizou-se com tendo práticas sistematizadas não só no nível da produção musical, visual,
de gravação e difusão mas também demonstrando seu padrão de unidade lírica e
composicional. A partir dos elementos analisados que foram expostos, destacadamente a
reiteração dos temas românticos e de outros elementos de letra e canto, chegou-se a definição
do caráter conceitual do álbum, apontando-se que, também a composição/interpretações de
canções pode ser influenciada pelos processos gerais de sistematização. É também um ponto
conclusivo que algumas das práticas musicais dos anos de 1980 também aparentes nesse disco
ganham fluidez seja pela MPB, pelo rock nacional ou mesmo em outras categorias, com
destaque para o aporte de romantismos e sonoridades instrumentais que preponderaram nos
anos de 1980 criando boa parte do cenário musical dos subgêneros musicais, equilibrados ou
não esteticamente e contrastivos ou homeostáticos sob a perspectiva do hibridismo, que se
consolidariam na difusão dos 1990 principalmente por meio da cultura vídeo-musical.
Luz é um produto que revela processos compositivos e da indústria cultural que se
inserem num período de transição. É capaz de vincular o cantautor à geração da MPB exordial
ao mesmo tempo em que indica novas inserções musicais e contextuais de produção que
viriam a ser exploradas na cena nacional a partir da segunda metade dos anos de 1980 e
visivelmente nos anos de 1990. É álbum categórico à função de cantautor de Djavan, e traz a
vocalidade específica e personalista desse em novos e tradicionais elementos hibridizados.
194

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<http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontros-regionais/sudeste/3o-encontro-
2014/gt-4-2013-historia-da-midia-sonora/o-fenomeno-201ccafona201d-e-a-critica-musical-
nos-anos-1970/at_download/file>
ELME, M; FERNANDES, A. Canto Popular e Padronização Vocal. São Paulo, 2014
Disponível em:
<http://www.anppom.com.br/congressos/index.php/24anppom/SaoPaulo2014/paper/view/314
5>. Acesso em: 18 dez. 2015.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Latinoamericanos buscando lugar en nuestro siglo. Buenos
Aires: Paidós SAICF. ______ . 2003. Noticias recientes sobre la hibridación. Trans. Revista
Transcultural de Música [online], Acesso em: 28/ novembro/ 2015, Disponível em:
http://oai.redalyc.org/articulo.oa?id=82200702
NEDER, Álvaro. “Essa Moça tá Diferente”: Alteridade na MPB e na pesquisa e música.
XVII Congresso da Anppom. São Paulo, 2007. Disponível em:
<http://antigo.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/etnomusicologia/etnom_A
Neder.pdf>

Sítios online

DJAVAN.COM.BR. Luanda, 2010. Disponível em: <http://djavan.com.br> , Acesso em:


15/04/2016
O SOM DO VINIL, Episódio 106, temporada 1, Canal Brasil, 2012. Disponível em:
<http://canalbrasil.globo.com/programas/o-som-do-vinil/episodios/5359.html> Acesso em:
15/04/2016
O SOM DO VINIL, Epísódio 106, [transcrição]. Disponível em:
<http://osomdovinil.org/djavan-luz-cbs-1982/> acesso em 29/05/2017
ZOOMBIDO: é sempre a mesma canção. Canal Brasil, 2011, partes 1-3. Disponíveis em:
<https://www.youtube.com/watch?v=lFSZo5oMudg>;
<https://www.youtube.com/watch?v=KoriLeEcYFI>;
<https://www.youtube.com/watch?v=KeldGKsU3fE>, Acessos em: 20/dez./2015.
<http://www.blognotasmusicais.com.br/2014/12/reedicoes-de-discos-de-djavan-ganham-
no.html>
Blog Paulinho Albuquerque
<https://comendadoralbuquerque.wordpress.com/tag/djavan/>
DJAVAN, Entrevista Djavan, 1998.
<http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=5981&cat=Artigos&vinda=S>
<http://www.allmusic.com/album/luz-mw0000700039>
<http://pauljacksonjr.com/>
198

< http://www.gilbertogil.com.br>

Discografia

BEN, Jorge. [Long Play] Samba esquema novo. Phillips Rec.,1963.


BETHÂNIA. Maria. [Long play] Álibi. Phillips Polygram. 1978.
BUARQUE, Chico. [Long play] Chico en español. BMG, 1982.
BUARQUE, Chico. Feijoada completa in: Chico Buarque.[LP] Lado A, faixa 1. Phillips
Polygram, 1979.
DJAVAN. Luz [Long Play]; CBS, 1982.
______ . Seduzir [Long Play]; EMI-Odeon, 1981.
______ . Djavan [Long Play]; EMI-Odeon, 1978.
______ . Alumbramento [Long Play]; EMI-Odeon, 1980.
______ . Lilás [CD]; Sony, 1984.
______ . Meu lado [Long Play]; Sony, 1986.
______ . Farinhada in: Milagreiro [CD]; Sony, 2001.
______ . Ao vivo [CD]; Sony, 2002.
GETZ, Stan. GILBERTO, João. [CD] Getz & Gilberto; Verve Records, 1964.
GIL, Gilberto. Realce [CD]; WEA, 1979.
______ . Refazenda [CD]; Warner, 1975.
______ . Refavela [CD]; Warner, 1977.
NASCIMENTO, Milton. [Long play] Journey to dawn, 1979.
PANDEIRO, Jackson do [intérprete]. O Canto da Ema. in: Aqui tô Eu [LP] Phillips, 1970.
ROSA, Noel. Gago apaixonado, 1927
VANDRÉ, Geraldo. Pra não dizer que não falei das flores, 1964.
VELOSO, Caetano; GIL, Gilberto; ZÉ, Tom; DUPRAT, Rogério; OS MUTANTES;
Tropicália ou Panis et circencis [CD], 1968.

Filmografia

Programa ENSAIO: Djavan. [Documentário] Direção e roteiro: Fernando Faro. TV Cultura,


São Paulo - SP, 1998. Tempo total: 50‟32”. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=hmnGQG-YBD8&t=407s>
Os ALQUIMISTAS do som. [Documentário] Direção: Renato Levi; Roteiro: Fernando
Salém. 2003. Tempo total: 1 h. 00‟19”.
O HOMEM que engarrafava nuvens. [Documentário] Direção e roteiro: Lírio Ferreira. GOOD
ju-ju produções ltda. 2008. Tempo total: 1h. 47‟05”.
HISTÓRIA do Clube da esquina: a MPB de Minas Gerais. [Documentário] Trabalho final do
curso de Jornalismo da PUC-SP. Direção e Roteiro: Bel Mercês e Leticia Gimenez; Edição:
Thais Cortez; Apoio: TV PUC / TV Cultura. Tempo total: 49‟59”.
NINGUÉM sabe o duro que eu dei. [Documentário] Direção: Cláudio Manoel, Micael
Langer, Calvito Leal. São Paulo, 2009. Tempo total: 1 h. 23‟
Programa MOSAICOS: A arte de Caetano Veloso. [Documentário] TV Cultura, 2008.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=M5dvyjLbCKo>. Acesso em:
12/maio/2017
O SOM DO VINIL. Apresentação: Charles Gavin. Episódio 106, temporada 1, Prod. Samba
Filmes e Canal Brasil, 2012. Disponível em:
<http://canalbrasil.globo.com/programas/o-som-do-vinil/episodios/5359.html> Acesso em:
15/04/2016
199

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Campos musicais de Thomas Turino (adaptação de pesquisa) ........ p. 34


Tabela 2: Canções no suporte, categorizações iniciais ....................................... p. 93
Tabela 3: Parâmetros melódicos canção “Açaí” ................................................. p. 95
Tabela 4: Parâmetros melódicos canção “Banho de rio” ................................... p. 101-2
Tabela 5: Parâmetros melódicos canção “Capim” ............................................. p. 105
Tabela 6: Parâmetros melódicos canção “Esfinge” ............................................ p. 110
Tabela 7: Parâmetros melódicos canção “Luz” .................................................. p. 114
Tabela 8: Parâmetros melódicos canção “Minha irmã” .................................... p. 119
Tabela 9: Parâmetros melódicos canção “Nobreza” .......................................... p. 122
Tabela 10: Parâmetros melódicos canção “Pétala” ............................................ p. 125-6
Tabela 11: Parâmetros melódicos canção “Samurai” ........................................ p. 129-130
Tabela 12: Parâmetros melódicos canção “Sina” ............................................... p. 133
Tabela 13: Sistematização de parâmetros da canção/ conclusões parciais ...... p. 139
Tabela 14: Sistematização de parâmetros da canção/ conclusões parciais ...... p. 140-1
Tabela 15: Sistematização de parâmetros textuais/letra ................................... p. 157
Tabela 16: Sistematização de parâmetros textuais/letra ................................... p. 158
Tabela 17: Sistematização dos parâmetros (passionalização/tematização/figurativização)
em relação aos temas e conteúdo de letras .......................................................... p. 159-60
200
201

EH...REALMENTE ESSE TRECHO TAH MUUUUIIITO CONFUSO AINDA...

Retirado da análise de Luz para a versão final (melhorar a abordagem semiótica peirce!
Sugestão Amador)

Há ainda uma possibilidade de observação desse letra por via da semiótica de Charles
Sanders Peirce que tenho adotado a partir de Thomas Turino (2008). Observando a curta letra
que agora separo em duas frases (4 compassos para cada) cada uma formada por duas orações
(total de quatro orações), da seguinte forma:

“Vento cantou na mata trovão roncou, filho de Juca que raio matou/

Mãe disse que eu botasse olho em você então passa pra dentro menino vai chover.”

VENTO CANTOU EH METAFORA, TROVAO RONCOU EH


METAFORA....BOTASSE OLHO EH METAFORA....
Percebe-se o surgimento de signos indexicais (índices) na letra com seus interpretantes
nas conclusões das frases. Ou seja: “Vento cantou na mata trovão roncou” são os índices de
objetos situados nas duas conclusões de frases: “(...) raio matou” e “(...) vai chover”. A
primeira conclusão (ou objeto) opera em interpretação passada (e assim em rima consoante na
conclusão da primeira frase enfatizada pela oralidade „rai matô‟, e sem conectivo entre as
orações) e outra conclusão em interpretação futura (agora em rima toante de “você” também
enfatizada através da pronúncia de oralidade espontânea com “vai chover” também em
recorrência coloquial e com o conector conclusivo “então” entre as orações).

Vento cantou na mata + trovão roncou (índices de tempestade: chuva e raio)


raio + chover são interpretantes e conclusões das frases operando junto com outras
palavras que possibilitam as rimas consoante em “raio matou” e toante em vai chover
A segunda parte da segunda frase é sincopada e conclusiva:
“(...) então passa pra dentro menino vai chover”
202

Também remete a situações indexicais do fato real de se estar colocando o menino


para dentro de casa, contribuem com esse fator: aliterações em „p‟; ataques das síncopas
melódicas e harmônicas; e coloquialidade do tema “passa pra dentro menino vai chover”.

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