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1. INT.

QUARTO DE JAMILA - DIA

Penumbra. A hélice do ventilador reduz sua velocidade até


parar por completo. Por entre duas pás dessa hélice, vê-se
JAMILA (30) deitada na cama, entre lençóis bagunçados.

Sua boca está seca. Abre os olhos de uma vez só, como se já
estivesse acordada. Parada, pensa por um tempo. Num ímpeto,
puxa o lençol e senta-se no meio da cama. Ela usa uma
regata velha. Por um momento, encara o ventilador parado,
que está sobre uma cadeira.

Levanta-se, segue para a janela e abre a cortina/persiana/


veneziana de uma só vez. Uma luz muito clara invade o
quarto, superexpondo a figura de JAMILA, que some na
imensidão da luz branca.

CORTA PARA:

Créditos iniciais sobre imagem aérea da ponte Hercílio Luz


imersa em uma neblina. (Imagem já captada)

2. INT. LANCHONETE - DIA

A lanchonete, que também é bar, é como qualquer boteco de


centro de cidade, daqueles que parecem estacionados nos
anos setenta. Atrás do balcão, SEU ALBERTO (78) dança
embriagado e sozinho, meio cambaleando, ao som de uma
música latina que sai cheia de interferência de um radinho
a pilhas, em sua mão. Segura um copo, que parece ser de
vinho, em uma das mãos. JAMILA interrompe, entrando na
lanchonete. Ela segura o ventilador na mão.

JAMILA
Seu Alberto?

SEU ALBERTO
(notando a presença dela,
embriagado)
Olha quem tá aqui! Jamila! Quer um
vinhozinho?

SEU ALBERTO oferece o copo com vinho com dois cubos de gelo
dentro.

JAMILA
2.

Vinho? Não, Seu Alberto. Eu só


passei pra saber se...

SEU ALBERTO
Um suquinho, então?

JAMILA
(sentando e colocando o
ventilador no balcão)
Tem suco, é?

SEU ALBERTO
(Gritando)
Vera?

Uma voz feminina e rouca surge da cozinha, gritando também.


E então aparece Vera (77), uma senhora tatuada nos braços,
com um charuto fino na boca, pano de prato nas mãos e
aspecto mal humorado.

VERA
(Off/On)
Mas, Alberto! Se não vai ajudar,
não atrapalha! Eu cheia de coisa
pra arrumar pra gente ir logo... E
desliga essa porcaria desse rádio
pra não gastar pilha! Ah, Jamila.
Não tinha te visto.

VERA olha para SEU ALBERTO e então para JAMILA. SEU ALBERTO
desliga o rádio.

SEU ALBERTO
(Embriagado)
Tem um suquinho?

VERA
Suco agora, Alberto?

SEU ALBERTO
É pra Jamila, nossa última
freguesa...

VERA
Mas suco de quê? Só tem uns dois
limão velho ali.
3.

SEU ALBERTO
(Embriagado)
Uma limonada!

JAMILA
Não, gente. Que é isso. Passei mais
pra saber se vocês sabem onde eu
posso consertar meu ventilador.

SEU ALBERTO E VERA


(quase ao mesmo tempo)
Hoje?

VERA
Não tem mais nada aberto, todo
mundo já se mandou.

JAMILA
Mas não vai acontecer nada.

VERA
(séria)
Já tá acontecendo.

VERA sai para a cozinha.

JAMILA
Tá acontecendo porque dessa vez
todo mundo tá acreditando. Você vai
ver, Seu Alberto. Vai chegar a
noite e vai ser como sempre foi.

RUÍDO do ESPREMEDOR na cozinha. JAMILA e SEU ALBERTO


aumentam o tom de voz por causa do ruído.

SEU ALBERTO
E você vai ficar aqui? Vai pagar
pra ver? A gente que é velho tá
indo embora!

JAMILA
Vão pra fora?

SEU ALBERTO
Não, pra dentro. Pro interior.
Comer comida da boa e encher o cu
de vinho (...)
4.

A LUZ FALHA. Fica escuro e o espremedor para. Ouve-se um


xingamento da cozinha. JAMILA olha ao redor. SEU ALBERTO
continua.

SEU ALBERTO
Mas vinho mesmo, de garrafão, sabe?

VERA volta da cozinha com um copo pela metade. No meio do


caminho a LUZ VOLTA.

VERA
Queimou o espremedor.

JAMILA
(apanhando o suco)
Tudo bem. Não tem problema.

VERA
Vai embora, Jamila. Não fica
sozinha nesse fim de mundo.

JAMILA sorve o suco pelo canudo, e o barulho que faz é


amplificado.

3. EXT. RUA - DIA

O RUÍDO DO CANUDO da cena anterior mistura-se com o RUÍDO


DO CARBURADOR de uma moto de viagem entulhada de coisas,
que passa no sentido contrário do qual caminha JAMILA,
segurando o ventilador. Vê-se o suor em seu corpo, rosto e
cabelo. E então o restante do grupo de MOTOCICLISTAS cortam
o quadro, no mesmo sentido contrário da moto anterior.
Voltamos a ouvir os ruídos dos chinelos de JAMILA, que se
arrastam pelo asfalto. JAMILA se distancia no horizonte por
essa rua cheia de entulhos e lixos, carros mal
estacionados, até com portas abertas. Uma cidade vazia,
abandonada. O dia está alaranjado.

4. INT. OFICINA - DIA

JAMILA solta o ventilador no balcão. É uma espelunca. Uma


fusão de oficina com museu. Muita poeira. O SILÊNCIO é
rompido por um RUÍDO vindo do fundo da loja. JAMILA deixa o
ventilador no balcão e segue para dentro. O lugar possui
objetos e tranqueiras de todas as décadas, entulhadas e
ocupando qualquer chance de espaço. Há uma luz pontual ao
fundo do corredor, em uma salinha apertada e de teto baixo.
5.

JAMILA aproxima-se.

JAMILA
Oi?

É um HOMEM (35) que está ali sentado e curvado perante uma


mesa cheia de peças e ferramentas de todos os tamanhos. Em
seu rosto suado, usa grandes lentes de aumento um pouco
embaçadas que formam uma máscara bizarra, distorcendo o
formato dos olhos, lembrando um inseto. É um óculos
steampunk. Encara JAMILA por pouco tempo e volta a lidar
com uma pequena televisão a pilhas. JAMILA o observa.

JAMILA
(um pouco receosa)
A porta tava aberta.

O HOMEM está muito concentrado, até que larga tudo o que


tem em mãos para apanhar um cronômetro, no qual aperta um
botão. Olha pra cima, como que para os céus ou como se
torcesse pelo resultado. Respira fundo. Então olha para o
cronômetro novamente.

HOMEM
(para si e depois para
JAMILA)
Quatro minutos e vinte e sete
segundos. Por quanto tempo te
olhei?

JAMILA pensa, confusa.

HOMEM
Uns 3 segundos. Vinte e sete menos
três, vinte e quatro.

Puxa um caderninho surrado, tipo Moleskine, que estava no


canto da mesa e faz alguma anotação.

JAMILA
Preciso consertar meu ventilador.

O HOMEM levanta totalmente o óculos.

HOMEM
(levantando-se)
Não vai dar.
6.

JAMILA
(seguindo-o)
Mas você acabou de arrumar a TV
agorinha! Deve ser só algum fio
solto dentro. Só tua oficina tá
aberta.

HOMEM
(Arrumando suas coisas)
Não tá aberta.

O HOMEM revira algumas prateleiras.

JAMILA
O que você tá procurando?

HOMEM
Caralho, é muito entulho... As
pessoas largam um monte de coisa
aqui pra arrumar e nunca voltam pra
buscar e... Achei!

O HOMEM encontra uma caixinha cheia de pilhas e olha para


JAMILA.

HOMEM
Pilhas. Vem, vou fechar aqui.

5. EXT. FACHADA DA LOJA - DIA

JAMILA está parada diante da fachada da loja. Aos seus pés,


o ventilador. Abana-se com a barra da regata em movimentos
mecânicos. O HOMEM estica-se todo para puxar a porta de
ferro que vem de cima. Do seu movimento sai um um barulho
metálico ensurdecedor, até chegar ao chão. Tranca com um
cadeado. HOMEM pega a bolsa no chão e a TV que estava
arrumando: pequena, portátil e a pilhas.

JAMILA
Não vai arrumar meu ventilador
mesmo?

O HOMEM olha para JAMILA.

6. INT. QUARTO DE JAMILA - DIA

HOMEM coloca uma chave teste na tomada. A luz da ponta da


chave pisca de maneira descontínua.
7.

JAMILA
E aí?

Retira a chave da parede, levanta-se do chão e fica em pé,


à frente de JAMILA.

HOMEM
Deve ter rompido o fio esmaltado.

O HOMEM põe as mãos na cintura e olha para Jamila.

JAMILA
E agora?

HOMEM
Que horas são?

7. INT. SALA - DIA

O HOMEM sintoniza a televisão a pilhas, posicionada no


móvel em frente a outra TV, plana e moderna, fixada na
parede. JAMILA e o HOMEM estão sentados em frente a TV.
Cada um bebe uma garrafa de cerveja. Na TV, imagens muito
ruins de um telejornal. Cenas ilustram a narração da
jornalista, que prossegue com interferência de sinal.

JORNALISTA
(...) as pessoas continuam deixando
as capitais litorâneas. (troca a
câmera) Cerca de duzentos animais
marinhos, de várias espécies,
apareceram encalhados e mortos
nesta manhã no litoral Sul. (começa
imagem de cobertura) O fenômeno que
vem acontecendo em diversos lugares
do mundo, se manifestou pela última
vez no Peru, quando (...) Ainda é
um mistério sobre como esses
animais apareceram e estudiosos
afirmam que o evento está
relacionado com a onda de
catástrofes que tem acontecido nos
últimos meses. Uma parte deles
continua a afirmar a real
possibilidade do (...)

O HOMEM desliga a televisão. JAMILA o olha.


8.

HOMEM
É reprise.

O HOMEM toma um gole da cerveja e faz uma expressão de


estranhamento.

JAMILA
A geladeira quebrou ontem.

8. EXT. TERRAÇO - DIA

JAMILA e o HOMEM estão no terraço do prédio, sentados em


duas velhas cadeiras de praia, enferrujadas e coloridas. Em
um banquinho redondo estão apoiadas duas garrafas de
cerveja e um narguilé. JAMILA dá uma longa tragada e solta
uma fumaça contínua.

HOMEM
Quando teu ventilador parou de
funcionar?

JAMILA
Hoje de manhã.

HOMEM
É um bom ventilador.

Ficam em silêncio.

HOMEM
Você escutou aqueles barulhos
vindos do céu?

JAMILA
Não. E você?

HOMEM
Uma vez, mas não tenho certeza.

JAMILA
E como eram?

HOMEM
Tipo máquinas.

JAMILA dá outra tragada no Narguilé e oferece. HOMEM dá uma


tragada e tosse, deixando a fumaça escapar desordenada.
9.

HOMEM
Eu não fumo.

Ele devolve o Narguilé para ela. Passam um tempo em


silêncio.

HOMEM
É hoje.

JAMILA
Você acredita?

HOMEM
Às vezes sim, às vezes não. Não
sei. E você?

JAMILA
Eu acredito no fim, mas não
assim... Anunciado.

HOMEM
Então você acha que não vai
acontecer nada hoje.

JAMILA passa o Naguilé para o HOMEM. Ele dá mais uma


tragada e dessa vez não se engasga. JAMILA olha para a
bolsa de ferramentas do HOMEM.

JAMILA
Você não larga dessa bolsa.

JAMILA mexe na bolsa e pega o óculos steampunk. Veste. O


HOMEM a observa. JAMILA olha novamente para a bolsa.

JAMILA
Qual é a do carderninho? E o
cronômetro?

HOMEM hesita em responder.

JAMILA
Fala.

HOMEM
É o tempo que levo para fazer as
coisas. Tá tudo anotado.

JAMILA
10.

Que coisas?

HOMEM
Tudo. Consertos. Caso aconteça
alguma coisa eu sei quanto tempo
vai levar pra resolver.

JAMILA olha para o horizonte e então encara o HOMEM.

JAMILA
E quanto tempo você leva pra gozar?

HOMEM olha para JAMILA.

9. EXT. PAREDE DO TERRAÇO - ENTARDECER

JAMILA e HOMEM transam em pé, seminus, contra a parede


pastilhada do terraço. JAMILA ainda usa o óculos steampunk.
Os dois suam muito, o calor é insuportável. JAMILA
interrompe, afastando o corpo do HOMEM. Os dois ofegantes.

10. INT. BANHEIRO - ENTARDECER

Um resto de luz do dia entra difusa pela janela do


banheiro. A cuba da pia em primeiro plano. Ao fundo, dois
corpos desfocados. Vê-se uma bombona de água com uma boca
de regador "enjambrada" na ponta. Dela sai a água rala e
irregular, como de um chuveiro fraco, que molha os corpos
de JAMILA e do HOMEM. Transam contra a parede de azuleijos.
Gemem. A água da bombona acaba. Molhados de suor e água,
gozam: primeiro ela, depois ele. Desmontam a posição e
encostam-se na parede, lado a lado, recuperando o fôlego.

JAMILA
Vou fazer alguma coisa pra gente
comer.

11. INT. COZINHA - NOITE

JAMILA, nua, cozinha com uma toalha na cabeça. Tira a


panela do fogareiro de camping, que está sobre o fogão e
leva-a até a pia, escorrendo a água quente do macarrão. O
vapor quente a faz suar ainda mais. Escuta um barulho de
algo caindo.

JAMILA
Tá tudo bem aí?
11.

Não há resposta.

12. EXT. TERRAÇO - NOITE

HOMEM e JAMILA estão sentados nus, nas velhas cadeiras de


praia. Comem macarrão com molho de tomate.

HOMEM
Tá bom. Tá bem bom.

JAMILA
É o que tinha.

HOMEM
Tá ótimo. Faz tempo que eu não como
comida "comida".

JAMILA
Ainda tem umas luzes acesas na
cidade.

E ficam ali. Fitando o nada. Esperando por algo que não


sabem o que é.

13. EXT. SEQ. DE IMAGENS CIDADE - DIA

Planos da cidade vazia. Prédios e Ruas.

14. EXT. TERRAÇO - DIA

O óculos steampunk largado no chão reflete os prédios da


cidade. Estão no mesmo lugar, JAMILA e o HOMEM, banhados
pelo Sol.

Coberta pela toalha que estava no cabelo, JAMILA acorda,


despertada pelo calor incômodo. Enquanto o HOMEM ainda
dorme, JAMILA olha para o horizonte. Levanta-se e caminha
para a ponta do terraço, sem medo da altura. Contempla a
vista, que é feita de prédios e de um mar ao fundo. Caminha
até a outra ponta do terraço. Olha novamente para o
horizonte. Volta-se para o HOMEM e caminha em sua direção.
Acorda-o, com um carinho no rosto.

JAMILA
Qual o seu nome?

O HOMEM abre os olhos um pouco assustado e olha ao redor.


Permanece sentado, ao tempo em que JAMILA abaixa-se à sua
12.

frente.

HOMEM
Já é amanhã?

JAMILA
(sorrindo)
Qual seu nome?

HOMEM
Marcos.

JAMILA beija-o na boca.

JAMILA
Jamila.

JAMILA levanta-se e o homem fica no terraço.

15. EXT. FACHADA DO PRÉDIO DE JAMILA - DIA

JAMILA e o HOMEM estão na fachada do prédio. O HOMEM


entrega o Moleskine para JAMILA.

HOMEM
Obrigado.

O HOMEM se afasta e JAMILA faz uma expressão de


estranhamento. Nota que o caderninho tem uma página marcada
por uma fita. Abre-o nessa página e lê, entre rabiscos, "8
minutos e 13" segundos, ao lado do desenho do que parece
ser um ventilador.

16. INT. QUARTO - DIA

Ventilador em primeiro plano. JAMILA vem em direção ao


ventilador. Senta-se na cama. Aproxima o rosto do
ventilador e aperta o botão de ligar. Seus cabelos dançam
em SLOW MOTION.

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