Você está na página 1de 45

RICARDO LODI RIBEIRO

Mestre em Direito Empresarial e Tributação


Professor de Direito Tributário dos Cursos de Pós-Graduação
e da UFF, e de Graduação da UCAM.
Procurador da Fazenda Nacional.

JUSTIÇA, INTERPRETAÇÃO
E ELISÃO TRIBUTÁRIA

EDITORA LUMEN JURIS


Rio de Janeiro
2003
Copyright © 2003 Ricardo Lodi Ribeiro

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Capa
Márcia Campos

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA


não se responsabiliza pela originalidade desta obra
e pelas opiniões nela manifestadas por seu Autor.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer


meio ou processo, inclusive quanto às características
gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais
constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei l}Q 6.895,
de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e
indenizações diversas (Lei nº 9.610/98).

O trabalho e o estudo são a ponte lançada


sobre o abismo onde escabujam a miséria e a fome.

Todos os direitos desta edição reservados à


Eolo de Alvarenga Ribeiro
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Ricardo Lodi Ribeiro

tema tributário permeado com os valores e princípios, e da Capítulo 2


compatibilidade dos mesmos com o texto constituciona1. Evolução Histórica
O trabalho é encerrado, no capítulo 6, com a conclusão
de q',le '3 bl'SC8. d8 fiscal, em nosso país, exige
da Interpretação Jurídica
necessariamente a aUlUCo,Q,-

brasileiras, das idéias que, há décadas, vêm sendo defen-


didas em outras nações, com a devida adaptação à realida-
de nacional. Só assim, será possível a superação da ten-
dência, atualmente verificada, de o legislador buscar fatos A interpretação da lei tributária seguiu historicamen-
geradores que se notabilizem, não pela capacidade contri- te um movimento pendular, em que cada um dos pólos
butiva efetiva, pela generalidade e pela igualdade, mas por representava uma posição apriorística em relação à prote-
melhor se adequarem às práticas administrativas simplifi- ção do direito do fisco ou do contribuinte. Em alguns
cadoras, erigidas como fórmulas mágicas para conter a momentos, adotava-se a parêmia in dubio contra fiscum;
evasão e a elisão fiscal no Brasil. em outros, o posicionamento diametralmente oposto. Outra
tendência histórica foi a fixação de normas que vedavam a
interpretação, fortalecendo o poder do monarca em deter-
minar o direito.1 Provendo o poder real de Deus, a vontade
do soberano, como reflexo da vontade divina, não poderia
ser objeto de interpretação pelos súditos.
O pensamento jurídico moderno nos dois últimos
séculos é marcado pelas opções por métodos de interpreta-
ção que, se não se aliam claramente às posições favoráveis
ou contrárias ao fisco, tendem a assumir, veladamente ou
não, tais posturas. Assim, durante o predomínio da juris-
prudência dos conceitos, optou-se claramente pelo método
sistemático, tendo como pano de fundo uma sociedade
individualista que caracterizou o século XIX.
Como reação ao formalismo da jurisprudência dos con-
ceitos e em consonância com o desenvolvimento das idéias
socialistas inspiradoras do Estado Social, a jurisprudência dos
interesses aderiu ao método teleológico, que no direito tribu-
tário acabou por desaguar na teoria da interpretação econôIDÍ-

1 Sobre a evolução das normas que vedavam a interpretação, vide TOR-


RES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação e Integração do Direito
Tributário. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 3 e segs.

6 7
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

ca do fato gerador e em todos os excessos que a sua apropria- o que há em comum entre a jurisprudência dos con-
ção pelo nacional-socialismo revelou ao mu..'1do jurídico. ceitos no século XIX, e a obra de Kelsen, no século XX, é o
A derrocada do Estado do Bem Estar Social (Welfare positivismo formalista, que se caracteriza pelo corte entre
State), com o surgimento do Estado de Risco, marcou histo- o direito e a moral, redutor da realidade jurídica à norma.
ricamente a ascensão da jurisprudência dos valores, ali- Segundo Kelsen, o que não está na norma não interessa ao
mentada, pouco depois, pela virada com o resga- direito. Assim, para o jurista austríaco, a questão da justi-
te do valor da justiça que andava esquecido nas discussões ça só interessa ao direito quando introduzida por uma
jurídicas desde o Iluminismo. norma do ordenamento jurídico.4
A concepção formalista da jurisprudência dos conceitos
2.1. A Jurisprudência dos Conceitos e o entronizou o valor da segurança jurídica, tão caro ao Estado
Positivismo Formalista Liberal clássico - o Estado "Guarda Noturno" -, fruto de uma
sociedade individualista, que tinha como valor supremo a
Surgida no mundo liberal e individualista do Iluminis- proteção da liberdade do indivíduo contra o Estado.
mo, onde a legalidade representava uma forma de defesa da Nesse contexto, o princípio da legalidade passou a ser
burguesia ascendente contra os desmandos da realeza, e o grande pilar do sistema jurídico, que elegia o método sis-
onde o direito tinha como objetivo maior a preservação da temático como o mais importante de todos, em fenômeno
segurança das relações jurídicas, a jurisprudência dos con- que, como não poderia deixar de ser, exacerbou as dificul-
ceitos do século XIX teve em Puchta seu criador e principal dades em relação à problemática da justiça.
defensor. Segundo Puchta, a ciência do direito se organiza a A aplicação ao direito tributário da tese da suprema-
partir de um sistema lógico no estilo de uma pirâmide de cia do método sistemático acabou por resultar na subordi-
conceitos, onde cada conceito superior autoriza certas afir- nação dos conceitos tributários aos do direito civil, em de-
mações; assim, se um conceito inferior se subsume a um de trimento da realidade econômica subjacente ao fato gera-
ordem superior, serão necessariamente válidas para aquele dor definido em lei.
todas as afirmações que se fizerem para este.2 Assim, estabelecido o império das categorias do direi-
A jurisprudência dos conceitos do século XIX lançou to civil sobre os institutos do direito tributário, desconside-
as bases para a retomada do formalismo jurídico que, mais rando a realidade econômica, o contribuinte teria liberdade
tarde, no século XX, seria desenvolvido por Hans Kelsen, para planejar os seus atos, dando-lhes a roupagem jurídica
em reação ao positivismo sociológico da jurisprudência dos que permitia o afastamento da situação definida em lei
interesses de Philipp Heck, e ao movimento para o direito como fato gerador do tributo, mesmo que o ato por ele pra-
livre, preconizado por Herman Kantorowicz.3 ticado tivesse os mesmos efeitos da descrição legal. Neste
contexto histórico, foi amplamente admitida a elisão fiscal.
2 Para um exame detalhado da evolução das idéias da jurisprudência dos
conceitos, vide LARENZ, KarL Metodologia da Ciência do Direito. Tradu-
ção de José Lamego. ~ ed. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, Renovar, 1999, p. 94), a Escola do Movimento para o Direito Livre promo-
1997, pp. 21 e segs. ve o ressurgimento do direito natural de molde histórico-jusnaturalista.
3 Segundo CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. (Hermenêutica e 4 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista
Argumentação - Uma Contribuição ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Machado. &. ed. São Paulo: Martins Fonte, 1998, p. 395.

8 9
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

Por outro lado, face à supremacia da legalidade sobre nhou muita força na doutrina pátria, fazendo com que a
a capacidade contributiva, restou limitada a atividade her- legislação tributária no Brasil se tornasse casuística e efê-
menêutica e vedou-se o uso da analogia, adotando-se a mera. Com isso permitiu-se que a elisão fiscal passasse a
tipicidade fechada, com a obrigatoriedade do legislador - ser uma atividade utilizad.a em escalas que inviabilizaram
herói maior do fenômeno jurídico, capaz de prever todas as um sistema tributário baseado na isonomia e na capacida-
situações dentro desse ordenamento sem lacunas - a des- de contributiva, em nome de uma falsa segurança jurídica,
crever detalhadamente o fato gerador do tributo, a partir de geradora de imensa incerteza sobre a legitimidade dos
conceitos inequívocos, capazes de transformar a interpre- atos praticados pelos contribuintes.
tação numa atividade menor.
A escola formalista teve muitos adeptos na doutrina 2.2. A Jurisprudência dos Interesses e o
tributária, no início do século :XX, destacando-se Heinrich Positivismo Economicista
Kruse,5 A. D. Giannini6 e Gian Antonio Micheli.7
No Brasil, a concepção formalista do direito tributário A jurisprudência dos interesses surgiu no final do
encontrou receptividade ampla na doutrina, destacando-se século XIX como uma reação ao formalismo da jurisprudên-
Alberto Xavier,8 Alfredo Augusto Becker,9 Rubens Gomes cia dos conceitos, e teve como pano de fundo o Estado
de Sousa,10 Geraldo Ataliba,ll Paulo de Barros Carvalho12 e Social, que se propôs a garantir ao cidadão as prestações
Sacha Calmon Navarro Coelho,13 acabando por ser consa- indispensáveis à manutenção de suas necessidades bási-
grada em nosso CTN. cas, tais como saúde, educação, previdência e assistência
Tal visão - que reduziu a interpretação da norma tribu- social, o que nos países desenvolvidos, culminou no cha-
tária à mera subsunção, como se o aplicador da lei fosse um mado Welfare State, a partir da ascensão de governos de
autômato e o legislador capaz de prever todos os signos de inspiração social-democrata, e como resposta ao fortaleci-
manifestação de riqueza em seus mínimos detalhes - ga- mento das idéias socialistas e ao surgimento da URSS.
Tal escola teve em Philipp Heck seu principal defensor,
tendo despontado a partir da virada de Jhering para uma
5 Steuergerichte, p. 109, apud TORRES, Ricardo Lobo. Normas de jurisprudência mais pragmática, abandonando suas posi-
Interpretação ... , cit., p. 195.
6 Instituzioni di Diritto Tributário. 3ª ed. Milano: Giuffre, [194_], p. 8. ções anteriores, vinculadas às idéias de Puchta.1 4
7 Curso de Direito Tributário. Tradução de Marco Aurélio Greco e Pedro
Luciano Marrey Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 43. 14 LARENZ. Metodologia ... , cit., p. 63. Vale trazer a análise de Karl Larenz,
8 Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: a respeito da jurisprudência dos interesses: "A Jurisprudência dos inte-
Revista dos Tribunais, 1978, p. 37. resses - e esta é a sua afirmação justeorética fundamental - considera o
9 Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1972, pp. 441 Direito como "tutela de interesses". Significa isto que os preceitos legis-
e segs. lativos - que também para HECK constituem essencialmente o Direito -
10 Compêndio de Legislação Tributária. Edição Póstuma, São Paulo: "não visam apenas delimitar interesses, mas são, em si próprios, produ-
Resenha Tributária, 1975, p. 99. tos de interesses" (GA, p. 17). As leis são "as resultantes dos interesses
11 Hipótese de Incidência Tributária. 4fl ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, de ordem material, nacional, religiosa e ética, que, em cada comunidade
1991, p. 64. jurídica, se contrapõem uns aos outros e lutam pelo seu reconhecimen-
12 Curso de Direito Tributário. 5fl ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 6. to". Na tomada de consciência disto, garante-nos HECK, reside "o cerne
13 Curso de Direito Tributário Brasileiro. Pio de Janeiro: Forense, 1999, p. 199. da Jurisprudência dos interesses", sendo também daí que ele extrai

10 11
Justiça, Interpretação e Elisão Tributária
Ricardo Lodi Ribeiro

pessoas. Assim, um pequeno mal a uma pessoa, pode ser jus-


Para os juristas que integraram a escola da jurispru-
tificado por um grande benefiCio a várias pessoas.
dência dos interesses, o legislador, como pessoa, vem a ser
Dentro desse prisma, a jurisprudência dos interesses
substituído pelas forças sociais, que são por eles denomi-
n8.das de intereSc;A8, extraídos pela lei do contexto social.
°
deslocou centro da problemática jurídica da norma, como
anteriormente sustentava a jurisprudência dos conceitos,
Assim, o centro de gravidade d.Gcisão pes-
para o fato, seja ele histórico, social ou econômico.
soal do legislador para os interesses que motivaram a pro- Com o triunfo das idéias de justiça sobre as de segu-
dução legislativa. Nessa visão - e a posição de Heck é rança jurídica, ainda que a primeira se apresentasse sob
emblemática nesse sentido - a interpretação deve remon- uma concepção positivista, o princípio da legalidade foi
tar aos interesses que foram causais para a lei, figurando o relegado ao segundo plano com a entronização da capaci-
legislador como mero transformador destes.1 5 dade contributiva e a supremacia do método teleológico
A escola da jurisprudência dos interesses, rompendo sobre os demais.
com a lógica formalista até então dominante, adotou um A aplicação da jurisprudência dos interesses, no direi-
positivismo científico, que com Eugen Ehrlich, a partir das to tributário, deu origem, na Alemanha, à teoria da inter-
idéias de Max Weber, se constituiu num viés de índole so- pretação econômica do fato gerador, a partir da obra de
ciológica, a buscar o nexo causal da conduta humana. Já Enno Becker, autor do anteprojeto do Código Tributário
com Stuart Mill, a jurisprudência dos interesses ganhou co- Alemão de 1919. O referido diploma, bastante influenciado
res de um positivismo econômico, com o utilitarismo,16 que por essas idéias, assim dispunha em seu art. 4,Q: "Na inter-
enfatizava a preponderância dos aspectos econômicos so- pretação das leis tributárias, devem ser observadas sua
bre a norma jurídica. finalidade, seu significado econômico e o desenvolvimento
Segundo Stuart Mill, o utilitarismo consiste no credo que das relações" .17
aceita a utilidade ou o princípio da maior felicidade como a De acordo com os seguidores da interpretação teleoló-
fundação da moral. Sustenta ainda o economista inglês que gica, o direito tributário, sendo ramo autônomo em relação
as ações são corretas na medida em que tendem a promover ao direito civil, não abre espaço à elisão fiscal, na medida
em que cabe ao aplicador da lei - este sim o grande astro
a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrá-
do fenômeno hermenêutico - o afastamento da forma jurí-
rio da felicidade. Nessa visão economicista, a medida mais
dica adotada pelo contribuinte, pela prevalência da realida-
adequada não é necessariamente justa, mais a que propor-
de econômica subjacente. Foi a fase da preponderância da
ciona beneficios maiores para um número significativo de
economia sobre o direito.

a sua fundamental eXlgencia metodológica de "conhecer com rigor


17 Apud LEHNER, Moris. "Considerações Econômicas e Tributação confor-
histórico, os interesses reais que causaram a lei e de tomar em conta, na
me a Capacidade Contributiva. Sobre a possibilidade de Uma Interpreta-
decisão em cada caso, esses interesses" (GA, pág. 60) (Metodologia ... ,
ção Tel€ológica de Normas com Finalidades Arrecadatórias" . In: SCHOUE-
cit., pp. 65 e 66).
RI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurélio (Coordenadores). Direito Tri-
15 Ibidem, p . 65.
butário. Estudos em Homenagem a Brandão Machado. São Paulo:
16 MILL, Stuart. A Liberdade do Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes,
Dialética, 1998, p. 147.
2000, p. 187.

13
12
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

Triunfante na Alemanha, a teoria da interpretação eco- resgate da idéia de justiça, tendência que, mais tarde, na
nômica do fato gerador se preocupava mais com os efeitos década de 70, foi intensificada, por um viés neokantiano,
econômicos do fato praticado do que com a previsão legal na obra de John Rawls.
do fato gerador, admitindo a tributação por analogia gravo- A partir do afastamento dos positivismos e da supera-
sa. Com a ascensão do naclOnal-socialismo, tais idéias fo- ção do corte entre a moral e o direito, a jurisprudência dos
ram cooptadas pelo regime, afastada a legalidade, valores, não podendo destes prescindir para a resolução
a tributação vinculada aos ideais do Estado nazista. Mes- dos casos concretos, fez ressurgir o relacionamento entre a
mo com o ocaso do regime totalitário, a teoria da interpre- ética e o direito, criando o ambiente propício à virada kan-
tação econômica do fato gerador ainda continuou demons- tiana, e ao resgate das teorias dos direitos fundamentais e
trando certo vigor na Alemanha, até meados da década de da justiça. 19
50, quando se deu a retomada formalista. A virada kantiana e o resgate do valor da justiça - que
andava tão esquecido após dois séculos de positivismo
2.3. A Jurisprudência dos Valores e o (formalista e sociológico) - tiveram como marco a obra de
Pós-Positivismo John Rawls: Uma Teoria da Justiça, em 1971.
Seguindo uma visão contratualista na esteira de Hob-
A partir da força do pensamento neokantiano alemão bes e Rousseau, John Rawls desenvolveu a sua teoria da
do início do século XX, filósofos como Rudolf Stammler, justiça a partir de um acordo entre todos os membros da
Wilhelm Windelband, Heinrich Rickert, e Gustav Radbruch, sociedade em igualdade de condições. Tal acordo seria
criaram a jurisprudência dos valores 18 que, na segunda obtido em uma posição inicial, hipotética, abstraída de
metade do século, é desenvolvida no campo do direito por qualquer contexto histórico determinado, em que as pes-
Karl Larenz. soas racionais interessadas na promoção de seus interes-
Após o ocaso da jurisprudência dos interesses e da ses, sem conhecer sua posição na sociedade, optariam pela
teoria da interpretação econômica do fato gerador, por adoção da justiça como eqüidade.20
volta de 1955, e de uma breve retomada formalista, até Seria o véu da ignorância a respeito das características
1965, os tribunais alemães passam a ser influenciados individuais de cada um, a garantia de que todos os cida-
pelas idéias expostas por Karl Larenz, em Metodologia da dãos, na posição inicial, optariam racionalmente pelos prin-
Ciência do Direito, disseminando a jurisprudência dos valo- cípios ligados à justiça. Sem que cada um conhecesse sua
res por todo o pensamento jurídico ocidental. posição social, nível cultural, idade, sexo, profissão e todos
A jurisprudência dos valores rompeu com o positivis- os demais dados pessoais, haveria unanimidade na escolha
mo - tanto o de origem normativista da jurisprudência dos dos princípios a serem aplicados nas situações concretas.
conceitos, quanto o de cunho sociológico da jurisprudência
dos interesses - reaproximando o direito e a moral, com o
19 TORRES, Ricardo Lobo. "Ética e Justiça Tributária". In: SCHOUERI, Luiz
Eduardo/ZILVETI, Femando Aurélio (coord.). Direito Tributário. Estudos em
Homenagem a Brandão Machado. São Paulo: Dialética, 1998, p. 179.
18 CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Ob. cit., p. 114. 20 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 128.

14 15
Justiça, Interpretação e Elisão Tributária
Ricardo Lodi Ribeiro

Rawls desenvolveu sua idéia de justiça - que denomi- econômicas e sociais entre os indivíduos não só são inevi-
na justiça como eqüidade - a partir de dois princípios: o da táveis, como também podem trazer benefícios para a par-
liberdade e o da diferença. 21 cela social menos favorecida. Os regimes do socialismo real
O primeiro princípio garante o valor da liberdade. nos mostraram que a igualdade absoluta leva à estagnação
Assegura a todos os indivíduos, em condições de igualda- e ao desestímulo, se todos são igualmente aquinhoados
de, as liberdades, como a livre manifestaçao, o direito de independentemente de seus esforços. O maior esforço de
votar e ser votado; enfim, os todos os direitos individuais. um, que é incentivado pela possibilidade de maiores lu-
Dentre os direitos a serem preservados pelo princípio da cros, pode levar à melhoria de todos os outros, que embora
liberdade, se encontra também, por estar vinculado ao pró- recebendo menos que o primeiro, conhecerão um benefício
prio direito à vida, o mínimo social, capaz de garantir a em relação à situação anterior. Somente distinções basea-
sobrevivência digna de todos. das em tal princípio são justificadas no âmbito da justiça
No entanto, o primeiro princípio não se contenta com como eqüidade.
as liberdades formais. É preciso garantir a efetividade dos Segundo Rawls, as liberdades garantidas pelo primei-
direitos por ele preconizados, o que somente se torna pos- ro princípio não podem ser sacrificadas em nome da efeti-
sível com a aplicação do segundo princípio. vidade do princípio da igualdade eqüitativa de oportunida-
Já o segundo princípio, vinculado à idéia de igualda- des e da diferença, como sustentavam os utilitaristas.
de, estabelece o pressuposto para legitimar as diferenças As idéias de Rawls causaram grande impacto no pen-
sociais e econômicas, e se desdobra, por sua vez, em dois samento jurídico e resgataram o valor da justiça, abrindo
subprincípios. caminho para a discussão sobre uma justiça tributária ba-
O primeiro subprincípio é o da igualdade eqüitativa de seada em valores e princípios, e não numa visão arrecada-
oportunidades, que assegura o acesso às posições sociais tória como a preconizada pela escola da interpretação fun-
de destaque a todos os indivíduos. E para garantir que os cional ou econômica.
menos favorecidos tenham acesso às posições privilegia- Com o triunfo do pós-positivismo, embalado pelas
das é preciso, segundo Rawls, garantir, a toda população, idéias da jurisprudência dos valores e pela virada kantiana,
a educação e a cultura. adota-se o pluralismo metodológico, afastando-se a aplica-
O outro subprincípio é o princípio da diferença, segun- ção apriorística de qualquer dos métodos de interpretação,
do o qual, as distinções entre as pessoas só se justificam se
com a utilização de todos eles, de acordo com os valores
trazem benefícios para toda a sociedade, especialmente
envolvidos no caso concreto e imanentes à norma, como se
para os menos favorecidos. Para Rawls, as desigualdades
revelará no capítulo destinado à interpretação no direito
tributário.
21 Assim Rawls concebeu os dois princípios: "Primeiro: cada pessoa deve O cenário histórico para o desenvolvimento das idéias
ter direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais
concebidas pela jurisprudência dos valores foi o de um
que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as
outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser orde- mundo que saía do ocaso dos regimes socialistas e da
nadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo: (a) consideradas como falência do Welfare State, numa era globalizada, caracteri-
vantajosas para todos dentro dos limites do razoável; e (b) vinculadas a
posições e cargos acessíveis para todos". (Ob. cit., p. 64).
zada por um Estado de Risco, que sendo incapaz de garan-

17
16
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

tir todas as prestações sociais intrínsecas ao Estado Social, de da ordem jurídica significa a existência de uma ordem
constitui campo para o florescimento do princípio da subsi- racional, baseada em critérios de justiça, e que constitua
diariedade, pelo qual a atuação estatal só se justifica em uma unidade.
atividades que não podem ser desempen..1!adas pela socie- Com o equilíbrio entre os princípios do direito civil e
dade, e em que a atuaçao desta só é justificada quando o do direito tributário, e com a ponderação entre a legalidade
próprio indivíduo não puder atuar. 22 e a capacidade contributiva, a justiça fiscal passa pelo
Se na jurisprudência dos conceitos o legislador era o combate à elisão fiscal abusiva, sem os excessos da juris-
único intérprete, posição ocupada pelo juiz na jurisprudência prudência dos interesses, por meio de cláusulas antielisi-
dos interesses, na era da jurisprudência dos valores, adota-se vas capazes de deter o abuso de direito. 25
a pluralidade de intérpretes, envolvendo todos os agentes do
processo, desde o legislador, passando pelo juiz, pelos dou-
trinadores, empresários, contadores, entidades representati-
vas de classe e todos os cidadãos interessados. 23
Influenciada por esta evolução, a questão da autono-
mia dos conceitos de direito tributário em relação aos ins-
titutos do direito civil fica então superada pela teoria da
unidade da ordem jurídica. Segundo Klaus Tipke,24 a unida-

22 Posição ilustrativa do Estado subsidiário nos é dada por Tipke que parte
da premissa de que o Estado não possui dinheiro originariamente, mas o
retira parcimoniosamente dos cidadãos, de acordo com uma regra de jus-
tiça. O autor alemão defende que: "O Estado é o intermediário entre o
cidadão contribuinte (Gerbeden Bürger) e o cidadão beneficiário (neh-
menden Bürger). Se o cidadão pudesse exigir diretamente do seu conci-
dadão as prestações sociais e as subvenções, talvez se lhe tornasse evi-
dente que não se deve exigir mais de estranhos (contribuintes) do que de
seus parentes próximos - antes pelo contrário". (In "Über richtiges
Steurrechts" . Steuer und Wirtschaft 65 (3): 281, 1988, apud TORRES, ideal da ordem jurídica. (... ) O direito tributário não precisa estar orienta-
Ricardo Lobo ("Legalidade Tributária e Riscos Sociais". Revista de Direito do por princípios do direito civil ou por princípios de outros ramos do
da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro 53, 2000, p. 185). direito público; ele deve observar os princípios de outras ordens jurídicas
23 HÁBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional- A Sociedade Aberta dos parciais suficientemente, apenas, para impedir que ocorram contradi-
Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista ções axiológicas na ordem jurídica total. Nenhum princípio tem validade
e "Procedimental" da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. absoluta. Em caso de colisão ou concorrência de princípios de ordens
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 13. jurídicas parciais, então terá preferência aquele que tiver o maior peso
24 Segundo TIPKE a unidade se dá:"quando os princípios da justiça são jurídico". ("Sobre a Unidade da Ordem Jurídica Tributária". In: SCHOUE-
seguidos à risca. Daí surge um direito homogêneo, consistente e harmô- RI, Luiz EduardoIZILVETI, Fernando Aurélio (Coordenadores). Direito
nico, livre de contradições axiológicas. A incoerência leva a infrações ao Tributário. Estudos em Homenagem a Brandão Machado. São Paulo:
princípio da igualdade. A observância da igualdade é, outrossim, uma Dialética, 1998, p. 60).
característica essencial da justiça. Somente quando uma ordem jurídica 25 Nesse sentido, GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Fiscal e Interpreta-
é baseada em um único princípio fundamental, é que surge a unidade ção da Lei Tributária. São Paulo: Dialética, 1998, p. 181.

18 19
Capítulo 3
Os Valores da Segurança Jurídica e da
Justiça como Cânones da Interpretação
no Direito Tributário: Os Princípios da
Legalidade e da Capacidade Contributiva

A doutrina mais moderna, na esteira de Dworkin26 e


Alexy,27 entende que o gênero normas jurídicas divide-se
em princípios e regras. Os princípios são normas de grau de
abstração elevada que, segundo Larenz, se traduzem em
pensamentos diretivos de uma regulação jurídica existente
e possível. São, em si mesmos, insuscetíveis de aplicação,
pois carecem das regras para serem concretizados. No
entanto podem transformar-se em regras.28
Os princípios são comandos de otimização, que se tra-
duzem em enunciados genéricos posicionados na faixa inter-
mediária, no que tange à abstração, entre os valores e as
regras. Os primeiros, idéias abstratas, dotadas de grande
placidez e amplitude, mas que guardam, porém, um baixo
grau de concretitude. Embora não contidos necessariamen-
te nos textos legais, os valores informam todo o ordenamen-
to jurídico, como a justiça, a segurança jurídica, a liberdade
e a igualdade. As regras, ao contrário, revelam um alto grau
de concretitude, atribuindo direitos e deveres, se subordi-
nando aos valores e princípios. Segundo Canotilho, as últi-

26 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Havard


University Press, 1980, p. 24.
27 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Tradução de
Ernesto Garzón Valdés: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993, p. 86.
28 LARENZ, KarL Derecho Justo - Fundamentos de Ética Jurídica. Tradução
de Luis Díez-Picazo. Madrid: Civitas, 1985, p. 32.

21
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

mas contêm fixações normativas definitivas, sendo insusten- na primeira o intérprete que se depara com uma possível
tável a validade simultân.ea de regras contradítórias.29 colisão entre eles verifica, a partir dos limites imanentes, a
Situando-se entre os valores e as regras, os princípios, existência da real contradição. Se esta foi constatada
como exposto vào v8,riar, em grau de abstração, entre passa-se à segunda fase, onde o intérprete irá verificar o
estes dois pólos. Prevê a extrema- princípio de maior peso, que irá prevalecer sobre o outro.
mente abstratos, como a isonomia, onde o constituinte traz Tratando-se de interesses que na escala de valores apre-
para o Texto Maior o próprio valor da igualdade, com toda sentada pela Constituição apresentam o mesmo peso
a sua carga abstrata, demandando uma concretização e genérico, restará ao intérprete verificar o peso específico
i!ltegração pela regra. De outro lado, temos princípios, que a legalidade e a capacidade contributiva possuem no
como o da anterioridade, que se revela verdadeira regra caso concreto.
inspirada no princípio da segurança jurídica.30 Na passagem do Estado Liberal para o Estado Demo-
Ao contrário das regras, que convivem de forma anti- crático e Social de Direito, o valor da segurança jurídica
nômica, e por isso adotam, quanto à sua aplicabilidade, a passou a ser efetivado não apenas pela legalidade numa
lógica do all-or-nothing, os princípios, constituindo exigên- acepção individualista, mas, a partir da sua reaproximação
cias de otimização, são ponderáveis, permitindo o balan- com o valor da justiça, vinculou-se com os interesses da
ceamento de valores e interesses. sociedade. 32
Com efeito, constituindo-se a segurança jurídica e a Mediante a aproximação da segurança jurídica com a
justiça os valores supremos do ordenamento jurídico, o tri- justiça, a ponderação entre esses dois valores promove a
buto justo passa a ser aquele que cumpre os princípios da convivência pacífica entre os princípios deles decorrentes,
legalidade e da capacidade contributiva. Não havendo hie- em especial, o da legalidade e o da capacidade contributi-
rarquia entre os dois princípios, eventuais tensões entre va. 33 Em conseqüência, será revelada uma norma tributária
eles são resolvidas pela ponderação. A ponderação de prin- que será interpretada de acordo com a manifestação de
cípios, segundo Daniel Sarmento,31 se dá em duas etapas: riqueza do contribuinte, a partir de uma atividade valorati-
va, e não meramente cognitiva, do aplicador do direito, não
tendo cabimento soluções formalistas como as que limitam
29 Sobre a distinção de princípio e regra, diz J.J. CANOTILHO: ''As diferenças o fenômeno jurídico aos conceitos fechados.
qualitativas traduzir-se-ão, fundamentalmente, nos seguintes aspectos.
Em primeiro lugar, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma
optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os
condicionamentos fáticos e jurídicos; as regras são normas que prescre- 32 Para PÉREZ LUNO, Antonio-Enrique: "La aproximación entre seguridad y
vem imperativamente uma exigência (impõem, permitem ou proibem) que justicia se produce ahora a partir de una concreción de ambos valores. EI
é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: applicable in all-or-nothing primero deja de identificarse con la mera noción de legalidad o de posi-
fashion);" CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e tividad deI Derecho, para conectarse inrnediatamente com aquellos bie-
Thoria da Constituição. 2ª ed. Coimbra: Almedida, 1998, p. 1.035. nes jurídicos básicos cuyo "aseguramiento" se estima social y política-
30 Nesse sentido SARMENTO, Daniel na obra A Ponderação de Interesses na mente necessario. La justicia pierde su dimensión ideal y abstracta para
Constituição Federal (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 51), onde o incorporar las exigencias igualitarias y democratizadoras que informan
autor sustenta ser o princípio da anterioridade, previsto no art. 150, m, b, su contenido em el Estado social de Derecho". (La Seguridad Jurídica. 2ª
da Constituição de 1988, uma verdadeira regra, e não um princípio. ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, p. 72).
31 Ibidem, p. 102. 33 TORRES, Ricardo Lobo. "Legalidade Tributária e Riscos Sociais", cit., p. 179.

22 23
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

3.1. Segurança Jurídica, Princípio da se confundia com o do Estado. Com o desenvolvimento do


Legalidade Tributária e a Teoria dos Tipos feudalismo, o tributo teve sua importância elevada, na fei-
ção de direitos regalianos exigidos pelo senhor feudal dos
'l'radiclol1alniGllte c valor da segurança jurídica na tri- seus vassalos, cobrados por meio da capitação, ou seja, da
butação é associado ao divisão de determinada quantia pelos habitantes do feudo.
histórica do princípio da legalidade tributária acompanha a Por sua vez, a nobreza feudal também pagava tributo
própria história da tributação moderna. 34 Na Antigüidade, ao rei para a defesa do território do reino e manutenção das
a principal fonte da receita pública era a pilhagem e o despesas deste. Nessa fase histórica, assim como na Anti-
saque aos povos vencidos, caracterizando a fase denomi- güidade, não há que se falar em princípios que limitassem
nada por Aliomar Baleeiro, de parasitária.3 5 A despeito de o poder de tributar,38 dado o caráter eventual e secundário
sua importância secundária dentro desse contexto históri- deste. A tributação, até a crise do feudalismo, se traduzia
co, os tributos já eram conhecidos dos povos antigos do num ato voluntário do senhor feudal, de subsídio às despe-
Oriente, do Egito, da Grécia e de Roma, muitas vezes pa- sas do reino, inerente ao pacto feudal.
gos in natura, por meio de uma percentagem da produção A preocupação com a limitação do poder do rei de
agrícola, mineral ou animal. Há registros históricos de tri- impor tributos surge somente na Inglaterra, a partir do
butação, no período clássico, sobre a importação, sobre o século Xl, em face do fortalecimento do monarca e da exi-
consumo, sobre as terras, as heranças, as vendas e as pes- gência, cada vez mais rotineira de tributos para a manuten-
soas, incluindo o gérmen do imposto de renda, experimen- ção das despesas permanentes do Estado. Diante desse
tado na Grécia: a eisfora. 36 quadro, os senhores feudais ingleses se insurgiram contra
Tais impostos tinham o cunho de receitas extraordiná- a imposição de tributos mais pesados, exigindo, em deter-
rias, exigidas para fazer frente às despesas que as cidades- minados casos, a autorização da cobrança pelos seus
estado helênicas, e depois o Império Romano, despendiam representantes. 39
nos seus conflitos bélicos. 37
No início da Idade Média, a receita pública teve o
caráter predominantemente dominial, com o recebimento 38 FANTOZZI, Augusto. Diritto Tributario, Torino, Utet, 1991, p. 70, apud
de receitas pela exploração do patrimônio do príncipe, que DERZI, Misabel Abreu Machado, nota de atualização à obra de BALEEI-
RO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7ª ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1997, p. 50.
34 A respeito da evolução histórica da tributação, incluindo detalhado estu- 39 UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário.
do sobre os impostos na Grécia, na Macedônia, em Roma, entre os visi- Tradução de Marco Aurélio Greco, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976,
godos, nas Idades Média, Moderna e Contemporânea, e a disciplina nos p. 11, onde o autor registra interessante caso de autorização prévia para
regimes totalitários fascista, nazista e soviético, vide SAINZ DE BUJAN- cobrança de tributos, quando, em 1192 foram realizadas assembléias e reu-
DA (Hacienda y Derecho, v. 1, Capítulo VI, Organizacion Politica y Dere- niões, na Inglaterra, para discutir a cobrança de tributos para o pagamen-
cho Financiero. Madrid: Institutos de Estudios Politicos, 1955). to de cem m? libras esterlinas para o resgate de Ricardo I, aprisionado pelo
35 Uma Introdução à Ciência das Finanças. 142 ed. Rio de Janeiro: Forense, Duque da Austria, o que acabou sendo autorizado pelos contribuintes.
1987, p. 116. Assinala o autor que, embora fosse um direito consuetudinário exigir tribu-
36 BALEEIRO. Uma Introdução ... , cit., p. 255. tos dos vassalos para o resgate do senhor feudal, em tal oportunidade a
37 SAINZ DE BUJANDA. Ob. cit., p. 142. soma exigida :oi tão pesada que não prescindiu da autorização.

24 25
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

o marco histórico da primeira declaraçáo de dj.reitos caráter provlsono dos tributos. O artigo XIV da Magna
contra a tributação arbitrária exigida pelo monarca foi a Charta preconizava que a fixação de tributo, afora os casos
Magna Charta, em 1215, ocasião em que os barões feudais previstos no art. XII, onde se dispensava a autorização,
ingleses impuseram ao Rei João Sem Terra, a exigência de deveria ser objeto de convocação do Concilium pelo rei,
aprovação pelo Commune Consilium para haver a com antecedência de 40 dias. 42
cobrança de tributos, exceto estes fossem destina- Portanto, até o fim do Estado Patrimonial, os tributos
dos ao pagamento do resgate do rei, caso este caísse cativo não eram responsáveis pelo custeio das despesas ordiná-
em suas guerras; para armar seu filho primogênito como rias do Estado. Daí ser necessária a autorização para a sua
cavaleiro e para pagar o dote de casamento de sua filha cobrança por período certo de tempo. Sendo os tributos
mais velha, mas desde que cobrados em medida razoável temporários, a idéia de autorização pelo Parlamento (lega-
(art. XII, da Magna Charta). As exceções se justificavam por lidade) se confundia com a aprovação temporária (anuali-
já estar sedimentado pelo costume o pagamento de tributos dade), pois à época não havia a dicotomia posteriormente
em tais casos. 40 A Magna Charta , a despeito de constituir verificada entre a lei instituidora do tributo e a lei de orça-
um marco na evolução do constitucionalismo, representa mento, que inexistia, como hoje conhecemos, até as revolu-
uma manifestação do corporativismo medieval, inserida ções liberais dos séculos XVII e XVIII.43
num ambiente histórico de reação ao fortalecimento do Somente na Idade Moderna, quando os tributos deixa-
monarca em decorrência da decadência do feudalismo. ram de ser responsáveis apenas por despesas extraordiná-
Data dessa época, o surgimento dos princípios do con- rias, passando a ser a principal fonte de receita do Estado,
sentimento e da temporariedade,41 germens dos princípios é que podemos conceber a tributação como hoje a conhe-
da legalidade e da anualidade. A necessidade de consenti- cemos, ou seja, destinada a custear genericamente as des-
mento do próprio contribuinte para que seja legítima a tri- pesas públicas. 44
butação constitui conseqüência direta da perda do caráter Com o advento do Estado Fiscal, feição financeira do
excepcional dos tributos e do agigantamento das despesas
Estado Democrático, e a partir do desenvolvimento do
estatais. Se durante o auge do período feudal as contribui-
capitalismo, as despesas públicas passam a ser financia-
ções eram voluntárias, com o absolutismo, o consentimen-
das por tributos (ingressos derivados), especialmente
to surge como contra-ponto ao caráter impositivo dos tribu-
por impostos, além de empréstimos públicos, em substi-
tos, se revelando pela prévia aprovação pelos representan-
tuição à exploração do patrimônio do príncipe, que carac-
tes da aristocracia feudal, o que posteriormente se univer-
salizou para os demais estratos sociais.
A temporariedade se notabilizava pelo aspecto limita- 42 Ibidem, p. 78.
do no tempo dessa autorização, que precisava renovar-se 43 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e
Tributário, vai. v., 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 3.
regularmente e que se coadunava perfeitamente com o 44 Para TORRES: "é inútil procurar o tributo antes do Estado Moderno, eis
que surge ele com a paulatina substituição da relação de vassalagem do
feudalismo pelos vinculas do Estado Patrimonial, com as incipientes for-
40 UCKIVIAR. Ob. cit., p. 13. mas de receita fiscal protegidas pelas primeiras declarações de direitos".
41 NOVELLI, Flávio Bauer. "O princípio da anualidade tributária" Revista (A Idéia de Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de
Forense 267: 75-94, p. 77. Janeiro: Renovar, 1991, p. 2).

26 27
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretaçãc e Elisão Tributária

terizava O Estado Patrimonialista, provido por ingressos Assim, a segurança jUl;ídica mais não se coaduna com
originários. 45 um regime legal que dê proteção máxima para que um indi-
Após a consolidação do Estado Fiscal, os tributos pas- víduo (contribuinte) deixe de dar cumprimento a uma
saram, então, a ser cobrados de forma permanente, ocor- norma, em detrimento dos outros indivíduos, a partir de
rendo o fortalecimento do tributá- sua menor ou maior astúcia na manipulação das formas
ria, como princípio da reserva de lei, que, a partir do final jurídicas, pois a legalidade tributária se traduz, hoje, como
do século XVIII e ao longo de todo o século XIX, ganhou assinala Tipke,48 na segurança diante da arbitrariedade da
falta de regras, uma vez que a segurança jurídica é a segu-
caráter universal, na esteira da Revolução Francesa e da
rança da regra. A certeza na aplicação da norma tributária
independência dos Estados Unidos. É de se destacar que a
para todos os seus destinatários é que garante a aplicabi-
consagração da legalidade como princípio supremo se deu
lidade e império da lei.
num ambiente de afirmação da burguesia revolucionária
A despeito da aceitação cada vez maior que essas
contra a opressão dos monarcas do antigo regime. Assim, idéias obtém em todo o mundo, no Brasil, a segurança jurídi-
inevitável sua configuração como um princípio de viés niti- ca ainda padece de uma coloração individualista, contempo-
damente individualista. rânea do iluminismo, o que de certa forma pode ser explica-
Modernamente, no Estado Democrático e Social de do pelo grande desenvolvimento do direito tributário pátrio
Direito, os Governos são exercidos por representantes dire- no período da ditadura militar (1964-1985). Em certa medida,
tos do povo, tal como ocorre com o Parlamento. Porém, como a luta contra o arbítrio cria um ambiente político propício ao
vimos, foi no contexto histórico em que se produziram as fortalecimento da legalidade. Dentro desse contexto, se
aspirações iluministas que se fortaleceu a idéia de que só os explica o aferramento à legalidade como única forma de
representantes do povo, reunidos no Parlamento, poderiam defesa contra o arbítrio dos generais-presidentes, mas que
criar obrigações, e de que o Poder Executivo seria um mero com a redemocratização do país, soa sem sentido e em dis-
executor das políticas por eles definidas.46 sintonia com as tendências verificadas em todo o mundo.49
Em conseqüência, nesse novo contexto, que ora se mos- De fato, em nosso país, a interpretação da lei tributária
tra dominante, o princípio da legalidade passou a ter, como vive um momento de isolamento cultural. Ainda estamos
afirma Pérez Royo,47 um viés plural, como meio de garantir a acorrentados a um positivismo de índole formalista que não
democracia no procedimento de imposição das normas de encontra mais paralelo alhures. É que a nossa doutrina, ani-
repartição tributária, bem como a igualdade de tratamento mada com a tese da tipicidade fechada, abraça a segurança
jurídica como único valor a ser tutelado, fazendo da justiça,
entre os cidadãos e a unidade do sistema jurídico.

45 TORRES, Ricardo Lobo. Ibidem, p. 97. 48 "Rechtsetzung durch Steuererichte und Steuervewaltungsbehorden"?
46 ARAGÃO, Alexandre Santos de. "Princípio da Legalidade e Poder Regu- Steuer und Writschaft 58 (3): 194, 1981, apud TORRES, Ricardo Lobo.
lamentar no Estado Contemporâneo", Revista de Direito da Procuradoria- (Legalidade Tributária e Riscos Sociais, cit., p. 179).
Geral do Estado do Rio de Janeiro, 53, 2000, p. 42. 49 OLIVEIRA, José Marcos Domingues. Direito Tributário e Meio Ambiente -
47 PÉREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributaria - Parte General. Proporcionalidade, Tipicidade Aberta e Afetação de Receita. 2ª ed. Rio de
10ª ed., Madrid: Civitas, 2000, p. 42. Janeiro: Renovar, 1999, p. 92.

28 29
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

da igualdade e da capacidade contributiva, meras figuras c) O princípio do exclusivismo, que obriga o tipo tributá-

retóricas, quando não, objeto de críticas mordazes.5o rio a abrigar uma descrição completa dos elementos
A adoção da segurança jurídica como princípio abso- necessários à tributação, capaz de conter uma valora-
luto do direito tributário. mediante a íntima convicção de ção definitiva da realidade, sem carecer ou tolerar
esse ramo possuiria características que sequer qualquer outro elemento valorativo estranho a ela; e
seriam encontradas no direito penal, reflete, como bem d) o princípio da determinação, pelo qual o conteúdo
destaca José Marcos Domingues de Oliveira,51 uma posi- da decisão deve ser rigorosamente previsto na lei,
limitando-se o órgão aplicador à mera subsunção
ção ideológica de privilegiar a liberdade vinculada ao patri-
do fato ao tipo tributário, uma vez que todos os ele-
mônio em detrimento da liberdade vinculada à pessoa.
mentos componentes deste são minuciosamente
Ilustrativa da postura, até hoje muito formalista, da
descritos pela norma, que não pode conter concei-
doutrina brasileira é a posição de Alberto Xavier com sua
tos indeterminados.
teoria da tipicidade fechada. 52
Segundo o festejado autor, o princípio da tipicidade
Para a definição de tipo fechado, Alberto Xavier, se-
tem como corolário: gundo indicado na própria obra citada,53 partiu de uma
classificação adotada por Karl Larenz na obra Metodologia
a) o princípio da seleção, segundo o qual a lei tributária da Ciência do Direito, de tipo aberto e fechado, sendo este
deve selecionar os fatos que revelem capacidade último caracterizado por elevado grau conceitual.
contributiva, sendo impossível a tributação com No entanto, conforme relatado por Misabel de Abreu
base num conceito geral ou cláusula geral de tributo; Machado Derzi,54 Karl Larenz abandonou a tese da possibi-
b) o princípio do numerus c1ausus, que determina que os lidade do tipo fechado a partir da terceira edição de sua
tributos devem estar taxativamente previstos na lei, obra, datada de 1975. De fato, segundo o posicionamento
não havendo espaço para a analogia na imposição tri- adotado pelo citado autor alemão nas últimas edições de
butária, em face da regra nullum tributum sÍDe 1ege; sua obra clássica, a estrutura tipológica é sempre aberta,
ao contrário do conceito abstrato, que em situações ideais,
50 Como a de Alfredo Augusto Becker, que considerou que os textos consti- apresenta-se fechado. 55
tucionais, ao consagrarem o princípio da capacidade contributiva, cons-
titucionalizaram o equívoco (Ob. cit., p. 442).
51 Direito Tributário e Meio Ambiente ... , cit., p. 114. 53 Os Princípios da Legalidade ... , cit., p. 92, nota de rodapé nº 16.
52 Para XAVIER: "A tipicidade do Direito Tributário é, pois, segundo certa 54 Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. São Paulo: Revista dos Tribunais,
terminologia, uma tipicidade fechada: contém em si todos os elementos 1988, p. 61.
para a valoração dos fatos e produção dos efeitos, sem carecer de qual- 55 LARENZ, Metodologia ... , cit., p. 646. Larenz, citando Strache, deixa evi-
quer recurso a elementos a ela estranhos e sem tolerar qualquer valora- dente o caráter aberto do tipo: "Os usos do tráfego, os usos comerciais e
ção que se substitua ou acresça à contida no tipo legal. (... ) Como já se a "moral social", enquanto tais, têm pâra os juristas o significado destar-
viu, uma reserva absoluta de lei impõe que a lei contenha não só o fun- dards, quer dizer, de "pautas normais de comportamento social correto,
damento da conduta da Administração, mas também o próprio critério de aceites na realidade social". Tais stardards não são, como acertadamen-
decisão que, desta sorte, se obtém por mera dedução da norma, limitan- te observa STRACHE, regras configuradas conceitualmente, às quais se
do-se o órgão de aplicação do direito a nela sub sumir o fato tributário". possa efetuar simplesmente a subsunção por via do procedimento silo-
(Os Princípios da Legalidade ... , cit., p. 92, ob. cit.). gístico, mas pautas "móveis", que têm que ser inferidas da conduta reco-

30
31
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

Por sua vez, Misabel de Abreu Machado Derzi, reco- sunção de todos os casos jurídicos a conceitos legais.
nhecendo a inexistência de uma estrutura tipológica fecha- Sendo esse ideal inatingível, não tendo sido alcançado
da,56 parte de outro pressuposto teórico para entronizar o sequer no auge da jurisprudência dos conceitos, surge a
valor da segurança jurídica no direito tributário. Segundo a necessidade de, na maioria dos casos, o legislador lançar
referida autora, neste ramo do direito, assim como no direi- mão de tipos, que muitas vezes revelam uma pauta de valo-
to penal, em razão da necessidade exacerbada de seguran- res que carecem de preenchimento. Afinal, são eles capa-
ça jurídica na aplicação da lei, prevalecem os conceitos zes, ao contrário dos conceitos abstratos, de coordenar a
classificatórios sobre a estI'~tura tipológica.57 conduta humana em toda a sua riqueza e mutabilidade.6o
Contudo, a abstração dos conceitos afasta a possibili- Como se vê, portanto, a subsunção de um fato imponí-
dade de sua utilização para a qualificação do fato gerador vel a um tipo tributário inexiste como fenômeno represen-
da obrigação tributária, que como descrição de uma condu- tativo de uma atividade desprovida de apreciação valorati-
ta do contribuinte, é necessariamente estruturado de forma va da realidade. 61 O que ocorre por ocasião da incidência
tipológica, como reconhece o próprio Karl Larenz ao elencar
os tipos jurídico-fiscais, ao lado dos tipos jurídico-penais,
60 De acordo com LARENZ; "O que o jurista freqüentemente designa, de
entre as espécies tipológicas. 58 modo logicamente inadequado, como "subsunção", revela-se em grande
A própria segurança jurídica restaria arranhada se os parte como apreciação com base em experiências sociais ou numa pauta
fatos geradores tributários fossem veiculados por estrutu- valorativa carecida de preenchimento, como a coordenação a um tipo ou
como a interpretação da conduta humana, particularmente do sentido
ras conceituais, uma vez que os tipos, como manifestações juridicamente determinante das declarações de vontade. A parte da sub-
da realidade social e econômica, são bem mais concretos do sunção lógica na aplicação da lei é muito menor do que a metodologia
que aquelas,59 sendo portanto mais adequados a descrever tradicional supôs e a maioria dos juristas crê. É impossível repartir a mul-
tiplicidade dos processos da vida significativos sob pontos de vista de
o fato-signo manifestador de capacidade contributiva.
valoração jurídicos num sistema tão minuciosamente pensado de com-
Partindo ainda da distinção que Larenz oferece entre partimentos estanques e imutáveis, por forma a que bastasse destacá-
conceito abstrato e tipo, não é difícil perceber as dificulda- los para encontrar um a um em cada um desses compartimentos. Isso é
impossível, por um lado, porque os fenômenos da vida não apresentam
des teóricas por que passa a teoria da tipicidade fechada,
fronteiras tão rígidas como as exige o sistema conceitual, mas formas de
ao defender a subsunção do fato imponível à hipótese de transição, formas mistas e variantes numa feição sempre nova. É impos-
incidência. Sendo a norma tipológica aberta à realidade sível ainda, porque a vida produz constantemente novas configurações,
social e econômica, não ocorre a subsunção, fenômeno pe- que não estão previstas num sistema acabado. É também impossível, por
último, porque o legislador, como várias vezes sublinhamos, se serve
culiar ao conceito. Mas a coordenação do fato ao tipo. Se- necessariamente de uma linguagem que só raramente alcança o grau de
gundo Larenz, o ideal em um sistema jurídico seria a sub- precisão exigível para uma definição conceituaL Não pode portanto cau-
sar espanto que o ideal de um sistema abstrato, fechado em si e isento
de lacunas, construído com base em conceitos abstratos, nem mesmo no
nhecida como "típica" e que têm que ser permanentemente concretiza- apogeu da "Jurisprudência dos conceitos" tenha sido plenamente reali-
das, ao aplicá-las ao caso a julgar". (Ibidem, pp. 660-661). zado". (Ibidem, pp. 644-645).
56 Direito Tributário, Direito Penal ... , cit., p. 61. 61 Em sentido contrário ENGISCH, Karl (Ob. cit., p. 259), que entende ser
57 Ibidem, p. 113. possível a utilização da expressão subsunção para designar aquilo que
58 Metodologia ... , cit., p. 656. Larenz designa como coordenação do fato ao tipo. Observe-se, no entan-
59 No sentido do texto LARENZ, Metodologia ... , cit., p. 656, citando Karl to, que a divergência é muito mais de nomenclatura, não constituindo a
Engisch em defesa de sua posição. posição de Engis,ch uma oposição real às conclusões de Larenz.

32 33
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

tributária é a coordenação de um fato jurídico praticado social,54 posição superada em quase todo o mund06 5 - tem
pelo contribuinte a um tipo legal, que como tal, ao ser apli- como função identificar a manifestação de riqueza, suscetÍ-
cado, carece sempre, ou quase sempre, de uma apreciação vel de ser objeto da tributação, sem nunca perder de vista
axiológica, em maior ou menor grau, por parte do aplicador a quantificação do quinhão que cada contribuinte deve
da lei. É a definição da hipótese de incidência legisla- arcar no custeio das despesas públicas.
dor que vai definir a maior ou menor abertura do tipo. No Assim, se um fato praticado por um agente - ainda
entanto, sempre restará ao intérprete um espaço de ade- que pareça repulsivo e antijurídico à sociedade - não é con-
quação da norma à realidade. siderado descrito na norma penal, a atipicidade não ense-
Assim, o fato gerador da obrigação tributária se mani- jará conseqüências punitivas para quem quer que seja.
festa, indubitavelmente, pela descrição de uma conduta No direito tributário ocorre fenômeno distinto. Se as
humana, descrição tipológica, que por natureza sempre é despesas públicas são custeadas por exações instituídas
aberta. Como salienta Karl Engisch, os tipos se abrem à conforme a capacidade contributiva dos mais variados seg-
aplicação teleológica do direito. 62 Desta forma, não existe mentos de contribuintes, a caracterização da atipicidade
tipicidade fechada no direito tributário, nem em qualquer de determinada conduta que revela o mesmo signo de
outro ramo do direito, sendo admissível, de acordo com a riqueza identificado pelo legislador acabará por gerar con-
definição de fato gerador adotado pela Constituição seqüências nocivas aos demais segmentos da sociedade.
Federal, a utilização de conceitos indeterminados. Se a absolvição de um acusado não leva qualquer
A constante comparação estabelecida por parte da outro cidadão à cadeia, o não pagamento de tributo por
doutrina - de que, aliás, a citada obra de Misabel de Abreu alguém que revela capacidade contributiva, vai gerar,
Machado Derzi é o mais eloqüente dos exemplos - entre o mais cedo ou mais tarde, a necessidade do Estado negar
tipo penal e o tipo tributário se baseia na subordinação da prestações positivas a outro cidadão, ou, o que é mais fre-
instituição de tributos, crimes e penas ao princípio da qüente, a imposição tributária a quem não revela capaci-
reserva de lei. No entanto, há mais dissonâncias do que dade contributiva. 66
identidades entre os dois ramos do direito. A consagração da teoria da tipicidade fechada na dou-
A diversidade entre as funções das normas tributária trina brasileira representou o triunfo de uma peculiar
e penal constitui o principal ponto de distinção a inviabili- opção, fora do contexto histórico mundial e sem paralelo
zar a equiparação dos critérios de interpretação estabeleci- em outros ramos do direito pátrio, da segurança jurídica
dos em cada um dos referidos ramos. A norma penal tem a
função retributiva, visando a evitar a prática do ato típico
antijurídico. 63 Portanto é uma norma odiosa punitiva. 64 Considerando a norma tributária como norma de rejeição social: MAR-
TINS, Ives Gandra da Silva. Sistema Tributário na Constituição de 1988.
Já a lei tributária - abstraindo-se a radicalidade de 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 12.
parte da doutrina que a considera como norma de rejeição 65 JARACH, Dino. Finanzas Públicas y Derecho Tributário. 3ª ed. Buenos
Aires: Abeledo-Perrot, 1996, p. 298.
66 No Brasil, o fenômeno é por demais conhecido, como se verá adiante,
62 ENGISCH, Karl. Ob. cit., p. 257. com a criação de tributos que a despeito de não se adequarem ao princí-
63 FRAGOSO, Helena Cláudio. Lições de Direito Penal - A Nova Parte Geral. pio da capacidade contributiva, são prestigiados pelo legislador pela
10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 2. menor suscetibilip.ade à elisão fiscal.

34
35
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

como valor absoluto e insuscetível de ponderação com 1978, embora o artigo 31.3 admita a possibilidade de insti-
qualquer outro. 67 tuição de prestações patrimoniais ou pessoais na forma da
A adoção do princípio da legalidade tributária pela lei, o art. 133.1, dispõe que a potestade de estabelecer tri-
U08SH Constituição Ferleral- que longe de representar uma butos é exercida mediante lei. Por sua vez, a Constituição
peculiaridade nacional, como parecem snsteDtaI Francesa de 1958, em seu artigo 34, cumprindo o compro-
brota como fruto da evolução da ciência do direito em todo misso firmado pelo povo francês desde a Declaração dos
o glob0 68 - não é desprestigiada pela superação das teorias Direitos do Homem de 1789, garante que a lei deva fixar os
ligadas ao positivismo formalista que recomendam a vin- impostos, taxas e as modalidades de sua cobrança. Na
culação absoluta do aplicador do direito à norma. Argentina, a Constituição de 1994, em seu art. 49., determi-
Na verdade, a maior prova de que essa tão propalada na que todas as contribuições ingressas no Tesouro serão
legalidade tributária absoluta não deriva da Constituição impostas pelo Congresso Nacional. No Uruguai, a Consti-
brasileira é o exame dos textos constitucionais dos países tuição de 1966, em seu artigo 10, também subordina a cria-
que adotam outros paradigmas na interpretação da lei tri- ção de tributos à lei. A exceção fica por conta da Itália, que
butária. Tais constituições, a exemplo da nossa, também por prever um dispositivo genérico para todas as presta-
consagram o princípio da reserva legal. Nos EUA, o art. lQ, ções pessoais e patrimoniais, adota, no artigo 23 da
Seção VIII, da Constituição de 1787, atribui ao Congresso Constituição de 1947, o princípio da legalidade em sentido
Nacional a criação de tributos. Na Alemanha, o artigo 105 amplo, a partir da cláusula em virtude do disposto em lei.
da Constituição de 1949 garante que os impostos serão Mas nem por conta dessa previsão constitucional, a doutri-
objeto da competência legislativa exclusiva da Federação na italiana admite a criação de tributos por outro instrumen-
ou dos Landers (Estados). Na Constituição Espanhola de to que não a lei, e nem a delegação à autoridade adminis-
trativa da fixação dos elementos da obrigação tributária.69
O que diferencia a Constituição Brasileira de 1988 dos
67 Observe-se que os próprios seguidores da doutrina formalista reconhe- textos constitucionais supracitados é uma minuciosa
cem o caráter peculiar dessa opção no panorama do direito comparado.
Por todos, vide COELHO, Sacha Calmon Navarro (O Controle da repartição de competências entre os entes federativos, o
Constitucionalidade das Leis e do Poder de Tributar na Constituição de que só indiretamente é pertinente à matéria da legalidade.
1988. Belo Horizonte: Del Rey, 1992, p. 335) e MARTINS, Ives Gandra da Na verdade, o tema da competência se prende muito mais
Silva ("Direitos Fundamentais do Contribuinte" In Martins. Ives Gandra
da Silva (coord.). Direito Fundamentais do Contribuinte. Pesquisas à questão federativa e à delimitação da capacidade contri-
Tributárias - Nova Série - n Q 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 45-81, butiva visualizada pelo legislador constituinte, cOmo limi-
2000, pp. 77 e 79) que justifica a necessidade do contribuinte brasileiro tes à ação do legislador ordinário, do que à forma, mais ou
ter maior proteção do que é conferido em outros países, em virtude da
ganância do Estado brasileiro, e do subdesenvolvimento das instituições menos casuística ou detalhada que este último vai utilizar
nacionais, despreparadas para a utilização de mecanismos de combate à
elisão adotados alhures, numa apreciação que obviamente extrapola os
limites da ciência do direito. 69 Pela necessidade de lei definindo todos os elementos da obrigação tribu-
68 Vide UCKMAR, Vitor (Ob. cit., p. 24), onde o autor revela que o princípio tária mesmo em face do art. 23 da Constituição Italiana, vide GIANNINI,
da legalidade tributária é adotado em todos as constituições vigentes, A. D. (Ob. cit., p. 12), PUGLIESE, Mario (Instituciones de Derecho
exceto, à época, na da ex-URSS, e reproduz, inclusive, o dispositivo cons- Financiem. México: Fondo de Cultura Económica, 1939, p. 116) e MICHE-
titucional de diversos países. LI, Gian Antonio \Ob. cit., p. 19).

36 37
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

para a definição do fato gerador. Buscar na repartição cons- lamento passa ser um instrumento essencial para a defini-
titucional das competências tributárias o arcabouço consti- ção dos aspectos técnicos das regras jurídicas, com a ade-
tucional para uma tipicidade fechada é extrair da quação à realidade de alguns conceitos indeterminados de
Constituição uma sistemática que não só nela não é previs- origem científica ou tecnológica, que nem sempre podem
ta, como contraria todos os por ela consagrados. ser precisados pela dinâmica do Parlamento. Deste modo, é
Como se vê, a Constituição no que tange a compatível com a feição atual do princípio da legalidade,
consagração do princípio da legalidade tributária, não que os aspectos técnicos da norma sejam definidos em
apresenta qualquer peculiaridade em relação ao direito regulamento, ficando o Poder Legislativo com a definição
comparado. O que há de diferente em nosso país, é uma das grandes diretrizes políticas nacionais, fenômeno que
criação doutrinária sem lastro constitucional e em desacor- não se revela estranho ao direito tributário. 73
do com os valores e princípios mais caros ao nosso ordena- Em conseqüência desse entendimento, se revela bas-
mento. Como bem observado por Ricardo Lodo Torres,70 a tante equivocada a posição do Superior Tribunal de Justiça,
utilização das expressões tipicidade "fechada ", legalidade espelhada no verbete nº 160 de sua súmula, que prevê que
"estrita ", e reserva "absoluta" de lei, não derivam da nossa só a lei poderá elevar o valor venal do imóvel para fins de
Constituição, mas de construção de nossa doutrina, emba- definição da base de cálculo do IPTU, acima dos índices ofi-
lada por razões mais ideológicas que científicas. ciais de correção monetária. Ora, tanto o CTN, quanto o
A possibilidade do aplicador da lei expedir atos admi- legislador municipal já definiram a base de cálculo do
nistrativos normativos para interpretar e detalhar a lei, a IPTU: o valor venal, que se traduz em valor de mercado. A
definição do valor de mercado de cada imóvel é função
partir de uma valoração objetiva, não se traduz em aceita-
essencialmente administrativa, no desempenho na ativida-
ção do regulamento autônomo no direito tributário, o que
de lançadora. Não cabe ao parlamento municipal deliberar
contrariaria o princípio da reserva de lei. O regulamento
sobre o valor dos imóveis em cada região. É o ato adminis-
sempre precisará se basear em uma habilitação legal mais
trativo, a partir da realidade do mercado, que irá valorar o
ou menos precisa71 e respeitar o conteúdo mínimo e essen-
valor venal, (a base de cálculo legal), no caso concreto,
cial reservado à lei.72
sendo a planta de valores um mero mecanismo interno faci-
No Estado Democrático e Social de Direito, superada a litador da atividade lançadora, que, nesse caso, deve se
dicotomia entre a vontade do monarca e a do povo repre'- dar de ofício, nos termos do art. 149, I, do CTN.
sentado pelo parlamento, e estabelecida a necessidade de Por outro lado, é imperioso reconhecer, como bem
harmonização e interdependência entre os poderes, o regu- salienta Valdés Costa,74 a dificuldade do legislador para o
combate à fuga de impostos, notadamente a partir de defi-
70 "Direitos Fundamentais do Contribuinte". In MARTINS, Ives Gandra da nições legais muito detalhadas. Assim, o regulamento apa-
Silva. Direito Fimdamentais do Contribuinte. Pesquisas Tributárias - Nova rece como importante instrumento de combate à evasão
Série - nQ 6. São Paulo: Revista dos Tribunais, 167-186,2000, p. 185.
71 FERREIRO LAPATZA, José Juan. Curso de Derecho Financero Espanol,
vaI. l, 21ª ed. Barcelona: Marcial Pons, 1999, p. 53. 73 GONZÁLEZ, Eusébio/LEJEUNE, Ernesto. Derecho Tributaria I. 2ª ed.
72 CALVO ORTEGA, Rafael. Curso de Derecho Financero I - Derecho Salamanca: Plaza Universitaria, 2000, p. 47
Tributaria (Parte General) . 4ª ed. Madrid: Civitas, 2000, p. 100. 74 Instituciones de ~erecho Tributaria. Buenos Aires: Depalma, 1996, p. 127.

38 39
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

fiscal, desde que expedido dentro dos limites do tipo legal Os conceitos jurídicos, como bem assinala Engisch,
e respeitada a capacidade contributiva, ao concretizar e são predominantemente indeterminados, sendo os absolu-
detalhar as situações abstratas previstas pelo legislador. tamente determinados muito raros no direito. Destes,
Isso se dá, por exemplo, quando o regulamento identifica temos, por exemplo os conceitos numéricos, tais como, 50
km, prazo de 24 horas, 100 marcos .. .76
casos de incidência e não ÀH'~"_"G'.
A confusão entre as três categorias normativas leva o
do fato gerador pela lei.
formalismo positivista a identificar qualquer forma de valo-
ração pelo aplicador do direito com a discricionariedade
3.1.1. A Legalidade Tributária e os Conceitos
violadora do princípio da legalidade tributária.
Indeterminados Para García de Enterría, os conceitos determinados
delimitam o âmbito de realidade a que se referem, de forma
Após a demonstração de que o princípio da legalidade inequívoca e precisa. É o que ocorre quando o legislador
tributária não constitui uma peculiaridade brasileira, e nem utiliza-se de um numeral para quantificar a medida de
apresenta um conteúdo particular em nosso direito, é impe- determinada situação. Exemplifica García de Enterría com
riosa a análise da possibilidade, em face dele, da legislação a fixação de idade ou do prazo para a prática de determina-
tributária utilizar-se, na definição do fato gerador da obri- dos atos. O contrário se dá com os conceitos indetermina-
gação tributária, de conceitos jurídicos indeterminados. dos, situação em que a lei se refere a uma esfera de reali-
Segundo Karl Engisch, a consagração constitucional dade cujos limites não aparecem bem precisados em seu
do princípio da legalidade não está a exigir a limitação do enunciado. Estamos nos referindo a expressões como inca-
fenômeno jurídico à subsunção, mas à valoração autônoma pacidade permanente, boa-fé e improbidade. Nos conceitos
pelo aplicador, determinada pelo próprio legislador. A atri- indeterminados não há exatidão quanto a uma quantifica-
buição pelo legislador de uma valoração pelo intérprete vai ção ou determinação rigorosa; neles estão presentes con-
se dar pelo afrouxamento do vínculo que prende o aplica- ceitos de experiência ou de valor. Porém, não obstante a
dor à lei, por meio da utilização de fenômenos como os con- imprecisão conceitual, a indeterminação se extingue no
ceitos indeterminados, os conceitos discricionários e as momento da aplicação.??
cláusulas gerais. 75
76 Ibidem, p. 208.
75 Para ENGISCH: "O princípio da legalidade da atividade jurisdicional e 77 De acordo com GARCÍA DE ENTERRÍA: "La Ley utiliza conceptos de
administrativa, em si, permanece intocado. Conhecemos já o art. 20, alí- experiencia (incapacidad para el ejercicio de sus funciones, premedita-
nea 13, da nossa Constituição, que vincula à lei o poder executivo e a ción, fuerza irresistible) o de valor (buena fe, estándar de conducta deI
jurisdição. As leis, porém, são hoje, em todos os domínios jurídicos, ela- buen padre de familia, justo precio), porque las realidades referidas no
boradas por tal forma que os juízes e os funcionários da administração admiten otro tipo de determinación más precisa. Pero al estar refiéndos a
não descobrem e fundamentam as suas decisões tão-somente através da suspuestos concretos y no a vaguedades imprecisas o contradictorias, es
subsunção a conceitos jurídicos fixos, a conceitos cujo conteúdo seja claro que la aplicación de tales conceptos o la calificación de circusntan-
explicitado com segurança através da interpretação, mas antes são cha- cias concretas no admite más que una solución: o se da o no se da el con-
mados a valorar autonomamente e, por vezes, a decidir e agir de um cepto; o hay buena fe o no la hay; o el precio es justo o no lo es; o se ha
modo semelhante ao do legislador". (Ob. cit., p. 207). faltado a la probidad o no se ha faltado. Tertium no datatur. Esto es lo

40 41
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

Convém não olvidar que conceito indeterminado dis- A vinculação do conceito indeterminado à lei é garan-
tingue-se substancialmente do conceito discricionário. tida pelo caráter objetivo da valoração, a que alude
Neste último, o legislador atribui ao aplicador da norma a Engisch. No entanto, há, se comparado ao conceito deter-
possibilidade de escolher entre os vários caminhos a minado, uma redução do grau de vinculação do aplicador à
seguir, a de uma subjetiva, de acordo com literalidade da leI, autorizada pelo próprio legislador que,
suas convicções pessoais. A confere à ao utilizar-se da indeterminação conceitual, atribui ao
autoridade administrativa o poder de determinar, de acor- intérprete o exame a respeito do chamado halo do conceito,
do com o seu próprio modo de pensar, o fim de sua atuação. representado por uma zona intermediária entre uma região
Quando a lei estabelece o conceito de interesse público ou de certeza sobre a existência do conceito (núcleo do con-
de bem comum, o seu alcance será determinado por aquilo ceito), e outra sobre a sua inexistência.81 Por halo concei-
que a autoridade considerar como sendo de interesse tual se entende uma certa margem de apreciação por parte
público ou concernente ao bem comum,78 da administração, onde esta, a partir de uma valoração
Por sua vez, nos conceitos indeterminados, a lei não objetiva, vai interpretar a norma de acordo com as concep-
abre espaço para uma escolha subjetiva do aplicador, ções morais dominantes na sociedade, que não se confun-
muito embora careçam eles sempre de um preenchimento dem com a moral pessoal do juiZ. 82
valorativo. Não que exista uma única solução lega1,79 mas
nos conceitos indeterminados há, como explica Engisch, 81 GARCÍA DE ENTERRÍA Ob. cit., p. 460.
uma valoração objetiva, a partir das concepções dominan- 82 Como explica ENGISCH: "Saber se o dedo indicador é um "membro
importante do corpo", se os combates de boxe e as lesões corporais que
tes no corpo socia1. 8o neles se aceitam são compatíveis com os "bons costumes", se um cura-
dor "violou gravemente as suas obrigações de curadoria", se uma repre-
sentação gráfica (George Grosz: Cristo na máscara de gás) é "blasfema"
(§ 166 do Código Penal, fórmula anterior) ou pelo menos "injuriosa" para
esencial deI concepto jurídico indeterminado: la indeterminación deI a Igreja cristã (§ 166 do Código Penal, nova fórmula), se um casamento
enunciado no se traduce en una indeterminación de las aplicaciones deI "fracassou", tudo isso são questões que a lei não quer ver respondidas
miesmo, las cuales sólo permiten: una "unidad de solución justa" en cada através de uma valoração eminentemente pessoal do juiz. A lei aqui é
caso, a la que se llega mediante una atividad de cognición, objetivable antes de opinião de que há concepções morais dominantes pelas quais o
por tanto, y no de volición". (Curso de Derecho Administrativo, voI. I. lüª juiz se deve deixar orientar. "Decisivas são as circunstâncias do caso
ed. Madrid: Civitas, 2000, p. 457). concreto tendo em conta as concepções dos correspondentes setores po-
78 LAUN, Rudolf. Apud ENGISCH (Ob. cit., p. 216). pulacionais" (SCHÓNKE-SCHRÓDER). OS "correspondentes setores
79 No sentido do texto, recusando a possibilidade de uma única solução populacionais podem sem dúvida ser sempre aqueles setores da popula-
legal, vide ANDRADE, José Vieira de (O Dever de Fundamentação ção cujo juízo é aceito como válido por cada ordem estadual e jurídica. Se
Expressa dos Actos Administrativos. Coimbra: Almedina, 1992, p. 367). o próprio juiz se situa dentro destes setores, ele também pode, evidente-
Contra: GARCÍA DE ENTERRÍA (Ob. cit., p. 460), defendendo a inexistên- mente, consultar o seu sentimento ético. Mas, ainda neste caso, haverá
cia de uma pluralidade de soluções justas em cada caso. de ter o seu cuidado de averiguar se porventura se não encontra bastan-
80 Para ENGISCH: "a valoração que aqui se faz, desde que não se verifique te isolado na sua concepção. Se o juiz se sabe inteiramente fora daquele
a atribuição de um "poder discricionário", não precisa de ser uma valo- setor populacional que, por força do Direito, representa o padrão ou cri-
ração eminentemente pessoal do órgão aplicador do direito. Os conceitos tério (se ele é, por exemplo, inteiramente indiferente do ponto de vista
"normativos" podem antes significar que o órgão aplicador do direito religioso ou se os prazeres da multidão apaixonada pelo desporto são
deve procurar e determinar as valorações preexistentes num setor social para ele horrores plebeus), não é este seu ponto de vista eminentemen-
"dirigente" "relevante". Nesta medida, falaremos de valorações objeti- te pessoal que interessa, mas, antes, aquilo que "as pessoas" pensam e
vas". (Ibidem, p. 236). sentem nos setores em questão". (Ob. cit., p. 237).

42 43
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributória

São conceitos jurídicos indeterminados, carecedores cão,85 O instituto é utilizado pelo legislador não porque o
de uma valoração objetiva, utilizados amplamente pelo conceito é indeterminável, "mas porque, na norma em que
Código Penal brasileiro. É o caso de mulher honesta previs- está indicado, a determinação integral do seu conteúdo
to nos artigos 215 e 216. Obviamente que o conceito de não foi possível, por isso que para tanto é necessário con-
mulher honesta em 1940, quando o código foi promulgado, siderar dados empíricos, fácticos, técnicos ou científicos de
não define mais a situação lei. O exemplo que somente o intérprete e o aplicador, em cada hipótese
citado mostra que o tipo penal sofre alterações com a concreta, disporão".
mudança dos costumes sociais, sem a necessidade de alte- Embora a adoção de conceitos indeterminados seja
ração legislativa. 83 tabu para a maioria da doutrina brasileira, não são poucos
A estrutura tipológica adotada no direito penal e no os autores que defendem a sua possibilidade aqui e alhures.
direito tributário, embora avessa à discricionariedade, não Nesse sentido, Valdés Costa86 que - mesmo em face
é incompatível como os conceitos indeterminados. Bem ao do sistema constitucional uruguaio onde, assim como nos-
contrário. Como bem destacado por Engisch, os tipos cons- so, legalidade tributária se confunde com reserva legal -
tituem subespécies dos conceitos indeterminados, apre- sustenta a possibilidade da lei tributária utilizar-se de con-
sentando toda a fluidez que caracterizam estes.84 ceitos indeterminados. Diante do sistema constitucional
A indeterminação do conceito legal utilizado pelo espanhol, que também consagra o princípio da legalidade
legislador tributário não gera a incerteza apregoada pelos tributária como princípio da reserva legal,87 Perez Royo,
positivistas, pois, como assinalou Amílcar de Araújo Fal- admite a utilização de conceitos indeterminados, desde
que sejam definidos pela lei os limites e critérios da fixação
83 É o que Engisch chama de conceitos normativos apoiados em valores tributária. 88
mutáveis de setores populacionais em mudança: "O problema da lei Por sua vez, Ferreiro Lapatza89 admite que o regula-
moral objetivamente válida é um problema filosófico-moral demasiada- mento aclare, interprete e precise os elementos da obriga-
mente delicado para que o abordemos aqui de modo canhestro. É bastan-
te que, em certas questões, exista uma tradição moral firme e tão segu- ção tributária, desde que a própria lei instituidora tenha,
ra que o Direito a pode tomar por base com o sentido de uma "lei moral explícita ou implicitamente, ou a partir de uma definição
objetiva". "Mas, quer o preenchimento dos conceitos objetivos-normati- legal dos elementos essenciais, mais ou menos precisa,
vos "carecidos de um preenchimento valorativo", que há pouco referi-
mos, se possa apoiar numa tradição moral inteiramente firme, quer se atribuído à autoridade administrativa, a complementação
tenha de orientar pelos juízos de valor mutáveis de "setores populacio- indispensável a sua aplicação.
nais em mudança" - a função desses conceitos normativos em boa parte
Em Portugal, onde também a Constituição adota o
é justamente permanecerem abertos às mudanças das valorações -, a
"valoração" que o conceito normativo exige aqui é, num caso como no princípio da reserva legal para a instituição de tributos,
outro, uma questão de conhecimento. O órgão aplicador do Direito tem de
averiguar quais são as concepções éticas efetivamente vigentes. A sua
própria valoração do caso é tão-somente um elo na série de muitas valo- 85 Fato Gerador da Obrigação Tributária. 4,il ed. Anotada e atualizada por
rações igualmente legítimas com as quais ele tem de confrontar e segun- Geraldo Ataliba. São Paulo: Revista dos 'D:ibunais, 1977, p. 113.
do as quais ele, sendo caso disso, a deverá corrigir. A valoração própria 86 Ob. cit., p. 144.
(pessoal) é, portanto, apenas parte integrante do material do conheci- 87 Art. 133.1 da Constituição de 1978.
mento, e não o último critério de conhecimento. (Ibidem, p. 239). 88 Ob. cit., p. 46.
84 Ibidem, p. 258. 89 Curso de Derecho ... , cit., pp. 53-54.

44 45
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisãc Tributária

José Casalta Nabais90 defende a utilização dos conceitos parcela dedutível na apuração da base de cálculo do impos-
indeterminados a partir da ponderação do principio da to de renda da pessoa jurídica.
legalidade, e do seu corolário, o princípio da determinação, A legislação aduaneira é um farto manancial de exem-
com o princípio da praticidade. A aplicabilidade do princí- plos de conceitos indeterminados utilizados pelas leis de
pio da praticidade no direito tributário transcende, hoje, às incidência fiscal. Nesse sentido, o art. 148 do Regulamento
suas origens economicistas moldadas cameralistas, Aduaneiro (aprovado pelo Decreto nQ 91.030/85) que, na
de busca de uma maior produtividade com o menor custo. isenção de imposto de importação de bem destinado à fina-
Ganha modernamente o princípio uma dimensão axiológi- lidade específica, apresenta algumas dessas hipóteses. O
ca que se prende ao princípio da isonomia e ao valor da jus- dispositivo em questão determina a cessação do benefício
tiça, na medida em que o legislador tributário, ciente de quando os bens deixem de cumprir sua finalidade por tor-
que não é onipotente, busca a simplificação, por meio da
narem-se obsoletos, sofrerem modificação das condições de
adoção de conceitos mais abertos, capazes de captar toda
mercado, ou qualquer outro motivo devidamente justifica-
a manifestação de riqueza por ele considerada relevante,
do, a critério da autoridade fiscal.
desprezando descrições detalhadas do fato gerador que se
mostram passíveis de ser facilmente elididas, ou cuja fisca-
3.1.2. A Legalidade Tributária e as Cláusulas Gerais
lização, por demais complexa e cara, geraria um custo insu-
portável para a sociedade. 91
No Brasil, Amílcar de Araújo Falcão,92 Ricardo Lobo Ao lado dos conceitos indeterminados, a lei utiliza-se
Torres,93 Marco Aurélio Grec0 94 e José Marcos Domingues ainda, como técnica desvinculadora, as chamadas cláusu-
de Oliveira,95 entre outros, admitem a utilização dos concei- las gerais, que se traduzem na formulação da hipótese legal
tos indeterminados pela norma de incidência. que, dada sua grande generalidade, abrange todo um
A despeito da resistência da maior parte da doutrina domínio de casos subordinados a seu tratamento jurídico.
brasileira em aceitar a utilização dos conceitos indetermirla- São conceitos multisignificativos, que se contrapõem a
dos pela lei de incidência tributária, não raras vezes o legis- uma elaboração casuística das espécies legais.96 A sua uti-
lador lança mão desse expediente, como é o caso de moléstia lização pelo legislador não significa uma opção por concei-
profissional, previsto no art. &1, XIV; da Lei nQ 7.713/88, como tos abstratos, discricionários ou indeterminados, uma vez
causa de isenção de imposto de renda dos proventos recebi- que não possuem qualquer estrutura própria, embora
dos pelo contribuinte. Outro exemplo é a expressão despesas quase sempre resultem em um conceito indeterminado.97
necessárias, utilizada pelo art. 47 da Lei n,Q 4.506/64, como No direito penal brasileiro também é comum a utiliza-
ção de cláusulas gerais como a do termo substância entor-
pecente, utilizado pelos artigos 12 e 16 da Lei de Entorpe-
90 O Dever FUndamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 373.
91 Ibidem, p. 378. centes (Lei nQ 6.368/76).
92 Fato Gerador ... , cit., p. 112.
93 Curso de Direito Fínanceiro e Tributário. 10ª ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 98.
94 Planejamento Físcal ... , cit., p. 70. 96 ENGISCH. Oh. cit., pp. 228-229.
95 Direito Tributário e Meio Ambiente ... , cit., p. 99. 97 Ibidem, p. 233.

46 47
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação c Elisão Tributária

Sendo amplamente previstos na definição dos tipos Assim, afastada a esdrúxula possibilidade de uma
penais, seara em que os interesses em jogo prestigiam única cláusula geral tributária, é forçoso reconhecer que as
mais o valor da segurança jurídica, como vimos, fica fragi- cláusulas gerais constituem um importante instrumento de
lizada a tese da impossibilidade de utilização dos concei- combate à elisão fiscal, a partir da definição genérica de
tos indeterminados e das cláusulas gerais no direito tribu- um fato gerador, capaz de abarcar toda a manifestação de
tário. Muitas vezes, tal fragilidade fica escondida por baixo riqueza eleita pelo legislador como signo de capacidade
de uma caricatura que se faz da utilização de cláusulas contributiva.
gerais para a definição de tributo. É comum encontrar na Vale mais uma vez trazer a posição de Engisch, desta
doutrina98 o desprezo à possibilidade de utilização de cláu- feita, a respeito da utilização de cláusula geral como instru-
sulas gerais, como se a idéia que ora se defende autorizas- mento destinado a evitar as lacunas. Segundo o referido
se a definição de uma cláusula geral tributária, capaz de autor, as cláusulas gerais, em razão de sua generalidade
abrigar todas as manifestações de capacidade contributi- "tornam possível sujeitar um mais vasto grupo de situa-
va. Nem no auge da teoria da interpretação econômica do ções, de modo ilacunar e com possibilidade de ajustamen-
fato gerador, com Enno Becker, ou da interpretação funcio- to, a uma conseqüência jurídica. O casuísmo está sempre
nal, com a Escola de Pavia, chegou-se a se pensar em tal exposto ao risco de apenas fragmentária e provisoriamente
possibilidade. dominar a matéria jurídica" .1 00
Não se pretende erigir a expressão tributo como uma Além da definição genérica do fato gerador, as cláusulas
cláusula geral, mas permitir que o legislador identifique gerais são também utilizadas como instrumento de comba-
determinados fatos econômicos considerados signos pre- te à evasão e à elisão pela adoção de fatos geradores suple-
suntivos de riqueza para, a partir de uma definição bem tivos ou suplementares, ao lado do fato gerador típico,
generalizadora, definir o fato gerador do tributo. A utilização como sustentou Amílcar Falcão. 101
do método casuístico para a definição da hipótese de inci- Para Ricardo Lobo Torres, a utilização das cláusulas
dência tributária, ou a sua definição carregada de detalhes gerais na definição do fato gerador do tributo, é inevitável
irrelevantes no que tange à capacidade contributiva, geram diante da ambigüidade da linguagem no direito tributário,
uma possibilidade ilimitada para a prática da elisão fiscal, não sendo afastada pelo princípio da tipicidade. 102
sem que seja garantida a segurança jurídica. Afinal, quanto Exemplo de utilização de cláusula geral pelo legisla-
mais a norma especifica, maior é a sua indeterminação.99 dor tributário é revelado na própria definição do fato gera-
dor do imposto de renda pelo artigo 43 do CTN, que esta-
belece acréscimo patrimonial como uma cláusula geral a
98 Por todos, ver XAVIER, Alberto (Os Princípios da Legalidade ... , cit., p. 85).
99 Como salienta NABAIS, Casalta:"não se pode esquecer que o principio ser detalhada pelo legislador ordinário. Nesse mesmo sen-
da determinabilidade não se confunde com um suposto dever de porme-
norizar o mais possível ou de otimizar a pormenorização da disciplina dos
impostos, uma vez que, quanto mais o legislador tenta pormenorizar, res, perdem o plano de que partiram, acabando, ao invés, por conduzir a
maiores lacunas acaba por originar relativamente aos aspectos que ficam maior indeterminação". (Ob. cit., p. 377).
à margem dessa disciplina, aspectos estes que, como facilmente se com- 100 ENGISCH. Ob. cit., p. 233.
preende, variarão na razão inversa daquela pormenorização. Ou seja, as 101 Fato Gerador ... , cit., p. 57.
especificações excessivas, porque se enredam na riqueza dos pormeno- 102 Curso de Direito Financeiro ... , cit., p. 98.

48 49
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

tido, O artigo 3º da Lei nº 7.713/88, que define como inci- buto, não sendo vedada a utilização de conceitos indeter-
dência o rendimento bruto da pessoa física. minados e cláusulas gerais.
Outro exemplo de utilização da cláusula geral pela
legislação tributária nos é dado pela lei instituidora da 3.1.3. A Tipicidade Fechada como Causa da Crise
CPMF, a Lei nº 9.311/96, que ao definir o fato do tri- Axiológica no Direito Tributário Brasileiro
buto, utilizou-se de uma combinaçáo entre a cláusula geral
e o método casuístico, gerando o método exemplificati- A despeito do que já foi exposto, a maioria da doutri-
VO. 103 De fato, o artigo 2º da citada lei, a.lém de estabelecer na brasileira ainda segue as idéias formalistas baseadas na
o lançamento a crédito, o lançamento a débito, a liquidação teoria da tipicidade fechada, concebida por Alberto Xavier.
ou pagamento de valores pelas instituições financeiras nas Note-se que a referida posição, no grau aqui verifica-
contas dos contribuintes, o que revela utilização do méto- do, não encontra paralelo em outros países. De fato, não há
do casuístico, adota a cláusula geral consagrada na expres- outro país em que a doutrina abrace, com tanta radicalida-
são qualquer movimentação ou transmissão de valores, de como a nossa o faz, a defesa das idéias vinculadas à
dotando a enumeração de caráter exemplificativo e redu- segurança jurídica no direito tributário, em detrimento do
zindo drasticamente, senão eliminado, as possibilidades valor da justiça e do princípio da capacidade contributiva.
de elisão fiscal.1° 4 E justamente pelo fato da doutrina brasileira passar ao
Também constitui uma cláusula geral a expressão largo das discussões sobre justiça, não sabendo como dar
valores e títulos mobiliários utilizada pela legislação do IOF, aplicação ao princípio da capacidade contributiva, a juris-
seja na Constituição, no CTN ou na Lei nº 8.033/90, que prudência segue a mesma orientação, limitando-se a per-
carece de integração pelo regulamento, dada a inexistência ceber o fenômeno jurídico tributário por meio das regras,
de previsão legal definindo o seu conteúdo. desconhecendo os valores e princípios.
Deste modo, fica evidenciado que os tipos no direito Por outro lado, durante as últimas quatro décadas, o
tributário, como em qualquer ramo da ciência jurídica, são legislador tributário brasileiro resignado com o fortaleci-
abertos, e que a maior ou menor abertura do tipo é deter- mento do positivismo formalista que acaba por suprimir o
minada pelo legislador, na definição do fato gerador do tri- princípio da capacidade contributiva da Constituição
Federal com a EC nº 18/65, aprofunda uma tendência de
adotar como paradigma para a escolha dos fatos geradores
103 ENGISCH. Ob. cit., p. 231.
104 A observação do texto, que se limita a examinar a técnica legislativa uti-
dos tributos, não a manifestação de riqueza, mas a menor
lizada com vistas a evitar a elisão fiscal, não fica invalidada pela crítica suscetibilidade da lei tributária ao planejamento fiscal.
contida ao longo desse trabalho, a respeito da eleição pelo legislador da Tal fenômeno faz com que a legislação tributária reve-
CPMF de um fato gerador que nem sempre observa a capacidade contri-
butiva. Ao contrário, reforça a nossa idéia de que, no injusto sistema tri- le um quadro bem distante dos comandos constitucionais
butário brasileiro, muito em função das questões suscitadas nesse traba- vinculados à idéia de justiça. Embora a Constituição de
lho, o maior mérito das normas tributárias, na visão do legislador, não é
revelar capacidade contributiva, mas sua menor suscetibilidade à elisão
1988 volte a consagrar expressamente o princípio da capa-
e evasão fiscal. cidade contributiva, a legislação tributária não dá qualquer

50 51
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

efetividade ao princípio que deveria ser aplicado sempre se arrecadar tributos dos segmentos de maior capacidade
que possível. contributiva, (quase sempre ancorados a planejamentos
Assim, revela-se uma grave contradição axiológica fiscais abusivos) - parte para busca de soluções mágicas,
violadora dos princípios constitucionais tributários vincula- capazes de obter recursos independentemente da capaci-
dos à justiça e à igualdade, o que dos sistemas dade contributiva, elegendo como alvo principal os consu-
tributários mais iníquos do mundo, onde os assalariados midores, trabalhadores e correntistas, como se dá com a
suportam a maior parte da carga tributária e as grandes tributação dos bens de consumo popular pelos impostos
empresas pouco contribuem. Estas, utilizando-se do plane- indiretos, quase nunca atentos ao mínimo existencial, com
j9.mento fiscal, não raro baseado na elisão abusiva, desbo- o imposto de renda com retenções exclusivas na fonte, sem
tam o texto constitucional que elegeu os princípios da iso- qualquer adequação à renda auferida em todo o ano, com a
nomia e da capacidade contributiva como principais veí- COFINS e o PIS, que incidem sobre empresas que apresen-
culos da justiça fiscal.1 05 tam prejuízos e a com CPMF, que adota fato gerador que
Alheios ao fenômeno, nossos tribunais e juristas, no nem sempre revela manifestação de riqueza.
afã de defender o contribuinte da forma mais simples, se A escolha de tais fatos geradores não deixa de ser
apegam aos aspectos formais do direito tributário, permi- uma resposta encontrada pelo legislador às dificuldades na
tindo que passem despercebidas as maiores violações aos apuração do verdadeiro lucro dos contribuintes, e que é
direitos vinculados à justiça. feita a partir de uma ponderação entre a praticidade admi-
Por sua vez, o legislador tributário - como que aceitan- nistrativa e a capacidade contributiva, cujo resultado reve-
do a lógica formalista, e verificando a dificuldade fática em la grave prejuízo à justiça fiscal.
No entanto, como já se observou, o formalismo positi-
vista, aqui com algum atraso, vai cedendo lugar a uma
105 o fenômeno, que não é uma exclusividade brasileira, foi descrito com visão que concebe o direito tributário de uma forma mais
grande felicidade por NABAIS, Casalta: "A falta de uma efetiva e eficaz
fiscalização de tais declarações leva efetivamente a que se estabeleçam, condizente com o princípio da unidade da ordem jurídica,
entre nós, na prática dois tipos de contribuintes: os que pagam os impos- com a reunião dos valores da segurança jurídica e da justi-
tos determinados (com base) na lei, (maxime, os trabalhadores depen-
dentes), e os que pagam os impostos determinados, ao fim e ao cabo,
ça, e a ponderação dos princípios da legalidade e da capa-
com base no que eles desejam declarar (maxime, os profissionais liberais cidade contributiva, abrindo-se a uma interpretação axioló-
e as empresas), valendo assim para estes uma autotributação muito gica. Dentro desse novo contexto, ganham fôlego os ques-
especial (já que, por um lado, direta e individualmente exercida e, por
outro, concretizada na inteira liberdade na fixação do quanto dos impos- tionamentos à teoria da tipicidade fechada, permitindo ao
tos) e que, a nosso ver, suscita a questão de saber se não se está, de legislador a adoção de descrições que melhor traduzem a
algum modo, perante uma manifestação, sui generis, da lei sociológica de
G. Geze (segundo a qual a classe ou as classes detentoras do poder ten-
manifestação de riqueza do contribuinte, sendo possível a
dem a desonerar-se dos impostos) se e na medida em que estes contri- adoção de conceitos indeterminados e cláusulas gerais
buintes dominem o Parlamento (e o Governo) em termos de constituírem pela lei definidora do fato gerador, bem como a introdução
o (verdadeiro) suporte duma ausência de adequada articulação entre a
lei fiscal, preocupada com a tributação do rendimento real, e a correspon- em nosso ordenamento de cláusulas antielisivas genéricas
dente fiscalização praticável". (Ob. cit., p. 391) e específicas. ,

52 53
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

3.2. O Princípio da Capacidade Contributiva Em São Tomás de Aquino também já havia a preocupa-
ção com a tributação secundum faculta tem ou secundum
e a Interpretação
equalitem proportíonis, sendo tidos como injustos os tribu-
tos que não seguissem esse crltério)09
1. Breve HIstórico da Capacidade Contributiva No entanto, somente a partir da obra de Adam Smíth
é que foi possível se vislumbrar o prinCÍpio da capacidade
A idéia de capacidade contributiva foi desenvolvida a contributiva. Este foi então concebido como manifestação
partir das reflexões sobre a justiça aplicável ao direito tri- do benefício que os contribuintes auferem das atividades
butário. Embora na Antigüidade greco-romana sejam en- estatais: "Os súditos de todos os Estados devem contribuir
contradas importantes discussões sobre o tema da justi- para a manutenção do governo, tanto quanto possível, em
ça,106 não há estudos sobre a sua aplicação aos tributos. A proporção das respectivas capacidades, isto é, em propor-
ausência de obras sobre o tema não impediu, contudo, que ção do rédito que respectivamente usufruem sob a prote-
desde a mais remota antigüidade determinados tributos ção do Estado" .1 10 Extrai-se da obra de Smith o princípio da
fossem graduados de acordo com a riqueza do contribuin- proporcionalidade, baseado na premissa de que os benefí-
te, como ocorria em Atenas, onde Sólon determinou a exi- cios estatais são gozados pelos cidadãos na proporção de
gência de imposto direto por quatro categorias de contri- sua riqueza.
buintes, de acordo com a fortuna de cada um delas.1 07 Já com Stuart Mill e seu utilitarismo economicista, a
A aplicação das reflexões sobre justiça aos tributos capacidade contributiva é justificada pela teoria do sacrifício
somente veio se dar na Idade Média com a publicação de igual e pela utilidade marginal do capitaJ. Segundo ela, a
importantes obras como a de Frei Pantaleão Rodrigues riqueza passa a ser menos útil ao seu titular na medida que
Pacheco e de São Tomás de Aquino. Observe-se que na aumenta, o que seria o fundamento da progressividade.ll1
obra de Frei Pantaleão Rodrigues Pacheco já pode ser A visão utilitarista de Stuart Mill inspirou os juristas
encontrado o gérmen do princípio da proporcionalidade: "O vinculados à jurisprudência dos interesses a identificar a
terceiro requisito para a imposição do tributo é a proporção, capacidade contributiva como a causa do tributo. Dentro
à qual Suarez chama forma do tributo, de tal modo que os dessa visão economicista, a preponderância da economia
pobres não sejam obrigados a contribuir com tanto ou com sobre o direito influenciaria sobremaneira os tributaristas
mais que os ricos, como se deduz das Leis Romanas" .108 alemães do início do século XX, como Enno Becker e Albert
Hensel, que a partir de uma visão causalista de capacidade
contributiva, criaram a teoria da interpretação econômica
106 Nesse sentido, a obra de Aristóteles (Ética A Nicômaco. São Paulo: do fato gerador, consagrada pelo Código Tributário Alemão
Martin Claret, 2000) é um marco.
107 Exemplo extraído de CONTI, José Maurício (Princípios Tributários da
Capacidade Contributiva e da Progressividade. São Paulo: Dialética, 1997, 109 PALAO TABOADA, Carlos. "Isonomia e Capacidade Contributiva".
p.37). Revista de Direito Tributário 4, 1978, p. 126.
108 Tratado da Justa Exacção do Tributo. In: AMZALAK, Moses Bensabat. 110 Riqueza das Nações. 3" ed. Lisboa: Calouste Gulberkian, 1999, vol. n, p.
Frei Pantaleão Rodrigues Pacheco e o seu "Tratado da Justa Exacção do 485.
Tributo". Lisboa: Academia de Ciências, 1957, p. 82. 111 Princípios de Ec.0nomia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 290.

54 55
Ricardo Lodi Ribeim Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

de 1919. Embora baseada teoricamente na justiça e na Ranelletti. 113 Segundo Griziotti, a causa jurídica do impos-
capacidade contributiva, a doutrina da consideração eco- to se traduziria no fornecimento de serviços e bens capazes
nômica do fato gerador, que ignorava a forma jurídica do de dar satisfação às necessidades públicas. No entanto,
ato praticado pelo contribuinte, para atingir os fins econô- seu segui.dor, Dino Jarach, desenvolveu a tese segundo a
micos almej ados, acabou - num ambiente em que qual a causa jurídica do imposto seria, antes de tudo, a
o Estado precisava arrecadar cada vez mais para fazer capacidade contributiva.1 14 Desta forma, em obra posterior,
frente às suas novas obrigações como provedor das neces- Griziotti l15 reviu sua posição e passou a entender, como
sidades sociais - por desq'J.alificar o fim almejado pela Jarach, ser a capacidade contributiva, de fato, a causa do
norma confundindo-o com a necessidade de angariar mais imposto, embora a considerando como causa específica, ao
recursos. lado de uma causa geral (as prestações estatais).
Na verdade, o que se buscava nessa visão utilitarista Outro representante da Escola de Pavia, Mario Puglie-
de justiça, não era a sua condição enquanto valor jurídico, se,116 também identificou a causa do imposto na capacida-
mas uma forma de arrecadar mais recursos, devido ao de contributiva. Porém, assim, como Griziotti, paralelamen-
aumento da demanda das prestações estatais, inerentes ao te a esta (causa específica), contemplou uma causa mais
Estado Social. ampla: a prestação de benefícios estatais.
Com a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha, A radicalização das idéias da Escola de Pavia levou ao
a doutrina da consideração econômica do fato gerador foi afastamento da legalidade para se buscar a manifestação
apropriada pelo novo regime, que introduziu a sua visão do de riqueza ou a capacidade contributiva, independente-
mundo como elemento teleológico a ser seguido pelo intér- mente da previsão legal. Exemplificativa dessa tendência é
prete. Diante de tamanhas contradições com os objetivos a posição de Ezio Vanoni que admite a cobrança de um tri-
que a inspiraram, a teoria da consideração econômica do buto em hipóteses não previstas pela lei, a partir da ativi-
fato gerador entrou em declínio, na Alemanha, a partir de dade hermenêutica. 117
1955, dando-se a retomada ao formalismo do método siste-
mático.1 12 113 Natura Giuridica dell'imposto, 1898, apud BALEEIRO, Aliomar. Limi-
tações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7ª ed. Atualizada por
Na Itália, as idéias causalistas influenciaram muitos Misabel de Abreu Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 714.
juristas, especialmente os da Escola de Pavia, como Ben- 114 O Fato Imponível - Teoria Geral do Direito Tributário Substantiva Tradução
venutto Griziotti, Dino Jarach e Ezio Vanoni, que desenvol- por Dejalma de Campos. São Paulo: RT, 1989, pp. 99-100.
115 Riflessioni di diritto internacionale, política, economia e finanza, R. Univ.
veram a interpretação teleológica por meio da visão funcio- di Pavia, 1937, apud PUGLIESE, Mario, Instituciones de Derecho Finan-
nalista. ciero, p. 111.
Deve-se a Griziotti, o desenvolvimento da tese da 116 Ob. cit., p. 112.
117 Segundo Vanoni: "a extensão da lei tributária a hipóteses não expressa-
causa do imposto, a partir na noção de causa utilizada por mente compreendidas pelo legislador, ou não previstas por ele, quando
ocorra segundo as regras jurídicas e lógicas de interpretação que temos
mencionado, não pode contrariar em caso algum a disposição do art. 30
112 BEISSE, Heinrich. "O Critério Econômico na Interpretação das Leis da Constituição, porque essa extensão não representa a criação de um
Tributárias Segundo a Mais Recente Jurisprudência Alemã". In: Brandão novo tributo, mas a realização da norma tributária". (Natureza e Inter-
Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa pretação das Leis Tributárias. Tradução por Rubens Gomes de Sousa. Rio
Nogueira, 1984, p. 13. de Janeiro: Edições Financeiras, 1952, p. 189).

56 57
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

Porém, foi na própria doutrina italiana que a teoria da entre as idéi.as de capacidade contributiva e da busca do
capacidade contributiva como causa jurídica do tributo, so- aumento da arrecadação. Segundo Falcão,126 a interpretação
freu sua mais dura crítica. A D. Giannini118 considerava ser a econômica se daria diante da atipicidade da forma jurídica
lei a causa juriclica do imnosto. Assim, o imposto seria cobra- adotada pelo contribuinte com a finalidade exclusiva de evitar
do pelo simples fato de estar fie .lei. do o fato gerador, a partir da prática de ato com os mesmos efei-
de império do Estado, restando à capacidade contributiva a tos econômi.cos daquele descrito pela lei. Na verdade, o pen-
natureza de uma mera causa pré-jurídica. Nesse sentido: samento de Falcão se aproxima muito mais das idéias hoje
Blumenstein,119 na Suíça; Giuliani Fonrouge,120 na Argenti- defendidas pelos juristas pós-positivistas do que com os
na; Rubens Gomes de Sousa,121 e Alfredo Augusto seguidores da escola funcionalista, o que denota a moderni-
Becker,122 no Brasil. dade, ainda nos dias atuais, da obra do autor brasileiro.
A teoria da capacidade contributiva como causa jurídi- Por outro lado, Baleeiro, ao adotar as teorias causalis-
ca do imposto ga..'1hou adeptos em outras partes do mundo, tas, não descurou no respeito à legalidade tributária como
como Ottmar Bubler,123 na Alemanha, Louis Trobatas,124 na limite à ação do aplicador da lei em busca do princípio da
França, e Aliomar Baleeiro,125 no Brasil. Porém, a aceitação capacidade contributiva - principal equívoco incorrido pe-
das doutrinas causalistas baseadas na jurisprudência dos los juristas da Escola de Pavia.
interesses no Brasil, nunca foi integral. Embora a teoria da Durante o período de retomada formalista, o princípio
consideração econômica do fato gerador tenha tido em da capacidade contributiva sobreviveu como mera vedação
Amilcar Falcão um seguidor, e a tese causalista da capacida- à arbitrariedade, ou seja, como limite a distinções que não
de contributiva tenha encontrado apoio em Aliomar Baleeiro, fossem razoáveis. Não resta dúvida que nessa fase o legisla-
tais idéias nunca penetraram em nosso país com a radicali- dor passou a ter uma maior liberdade para a definição dos
dade verificada nos ordena.mentos de seus precursores. fatos geradores, e o princípio da capacidade contributiva
De fato, a teoria da consideração econômica do fato gera- entrou em crise.1 27
dor na obra de Falcão não chegou aos extremos verificados na A redução do princípio da capacidade contributiva a
Alemanha, com o afastamento da legalidade e a confusão mera vedação à arbitrariedade degenerou no Tribunal
Constitucional Alemão na simples exigência de fundamen-
tação. Assim, qualquer justificativa para o afastamento do
118 I1 rapporto giuridico dell'imposta, apud PUGLIESE, Mario, Instituciones
de Derecho Financiem, p. 111. referido princípio era aceita, como, por exemplo, a necessi-
119 System des Steuerrechts, Zurich, 1951, voL I, p. 8, apud GUIMARÃES, dade financeira do Estado, a tradição do direito tributário
Carlos da Rocha. "O Problema da Causa no Direito Tributário". Revista de
alemão, a convicção do legislador e a paciência do contri-
Direito Administrativo 45/1.
120 Derecho Financiem. 7ª ed. Atualizada por Susana Camila Navarrine e buinte. Fenômeno não muito diverso se deu nas jurispru-
Rubén Oscar Asorey. Buenos Aires: Depalma, 2001, p. 452. dências constitucionais espanhola e italiana, onde a sim-
121 Ob. cit., p. 99.
122 Ob. cit., p. 93.
123 Apud BALEEIRO, Limitações ... , cit., p. 727. 126 Ibidem, p. 78.
124 I.:a applicacione della Teoria della causa nel Diritto Finanziario, apud 127 HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Econômica y Sistema Fiscal -
BALEEIRO, Limitações ... , cit., p. 725. Análisis deI ordenamiento espano1 a la luz deI Derecho alemán. Barcelona:
125 Limitações ... , cit., pp. 740-741. Marcial Pons, 1~98, p. 77.

58 59
pjcardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

pIes finalidade extrafiscal do tributo era motivo suficiente econômica do contribuinte que seja idônea a concorrer às
para o afastamento da capacidade contributiva.1 28 despesas públicas.1 34
A inocuidade do princípio da capacidade contributiva As décadas de 1980 e 1990 foram palco da reabilitação
perante o Tribunal Constitucional Alemão levou ao seu des- do princípio da capacidade contributiva, não só na jurispru-
crédito frente à doutrina daquele A cética de dência dos tribunais constitucionais como na doutrina euro-
Kruse constitui o melhor exemplo dessa situação. De acor- péia. São juristas como Tipke, Vogel e Lang, na Alemanha;
do com o citado autor tedesco, não existem critérios objeti- Moschetti, Tosi e Fantozzi, na Itália; e Calvo Ortega, Ferreiro
vos para ordenar a tributação, mas apenas necessidades Lapatza e Falcón y Tella, na Espanha, que dão ao referido
financeiras que precisam ser atendidas.1 29 princípio uma nova dimensão, que vai bem além da vedação
Mas se o princípio da capacidade contributiva, em sua ao arbítrio na escolha dos fatos geradores. 135
visão causalista, entrou em colapso no final da década de Nessa nova diretriz, a capacidade contributiva repre-
50 na Alemanha, no começo dos anos 60, na Itália, começa- senta não só um limite negativo que exclui os fatos que não
ram a surgir novas obras sobre o tema, com uma visão sig- revelam manifestação de riqueza, como constitui critério
nificativamente diferente da adotada pela escola funciona- indispensável para a repartição da carga tributária pelos
lista. A mais importante delas é a de Emilio Giardina,130 cidadãos. Essa reabilitação do princípio, não apenas supe-
datada de 1961, onde o autor buscou dar alguma aplicabi- rou o ceticismo formalista, como foi bem além do causalis-
lidade prática ao dispositivo do art. 53 da Constituição ita- mo economicista, buscando conteúdo no valor da igualda-
liana que consagra o princípio, até então tido como progra-
de, e no direito fundamental de pagar tributo na mesma
mático pelos tribunais, a partir do afastamento dos tributos
proporção daquele que possui a mesma riqueza.
confiscatórios e aqueles que gravam as rendas mínimas e
Contudo, o princípio não é, como foi considerado na
da graduação progressiva do sistema tributário. A partir
época da jurisprudência dos interesses, absoluto, devendo
daí, vários autores italianos publicaram obras que busca-
ser ponderado com outros interesses buscados pela tribu-
ram dar uma maior efetividade ao citado dispositivo cons-
titucional: Manzoni (1965),131 Maffezoni (1970)132 e Fras- tação, tais como a extrafiscalidade e a praticidade adminis-
cesco Moschetti (1973).1 33 Segundo Moschetti, a capacida- trativa. 136 Assim, - e é aqui que os juristas modernos supe-
de contributiva não se confunde com qualquer manifesta- ram o argumento dos céticos que enxergavam no fenôme-
ção de riqueza, mas se traduz, tão-somente, na real força no da extrafiscalidade a negação da capacidade contributi-
va como princípio cogente - não basta a alegação de que
128 Ibidem, p. 78.
determinada norma tributária busca um fim econômico
129 Apud HERRERA MOLINA, ob. cit., p. 78. diverso da arrecadação para se driblar o princípio da capa-
130 Le Basi Teoriche Del Principio della Capacità Contributiva. Milano: cidade contributiva. É preciso que tais motivos sejam justi-
Giuffre, 1961, p. 439.
131 MANZONI, Ignazio. Il Principio della Capacità Contributiva nell 'Ordina- ficados, à luz do princípio da proporcionalidade.
mento Costituzionale Italiano. Torino: G. Giappichelli, 1965.
132 MAFFEZONI, Federico. Il Principio della Capacità Contributiva nel Diritto
Finanziario. Torino: UTET, 1970. 134 Ibidem, p. 238.
133 MOSCHETTI, Francesco. Il Principio della Capacità Contributiva. Padova: 135 HERRERA MOLINA Ob. cit., pp. 73-77.
Cedam, 1973. 136 Ibidem.

60 61
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

Vale reprisar que, ao contrário do que ocorria na fase ocorre, o elevado custo da açlministração estatal represen-
áurea das teses causalistas, a capacidade contributiva, ta uma diminuição do direito à prestação. Assim, mais vale
conforme se entende modernamente, busca seu fundamen- deixar que o indivíduo tenha recursos para atender suas
to em valores, como o da igualdade, e não mas numa visão próprias necessidades básicas, do que tributar suas parcas
economicista, vinculada à necessidade do Estado angariar rendas a fim de garantir o atendimento dessas pelo Estado.
recursos para promover as prestações estatais garantido- Isso não significa, no entanto, que no Estado Demo-
ras da justiça social. É essa característica que difere a jus- crático e Social de Direito não seja imperioso que o Estado
tiça tributária, na teoria da int'3rpretação econômica do fato tribute a capacidade contributiva de alguns para atender
gerador, da sua acepção na fase pós-positivista. as necessidades básicas de outros que, com seus próprios
Nota-se aí uma mudança de paradigma. Não vale recursos, não podem custeá-las.
mais pesquisar quanto o Estado vai gastar para se atingir Convém lembrar que, modernamente, o princípio da
o ideal de justiça social, e qual será o quinhão de cada cida- capacidade contributiva goza de aplicação universal, seja
dão para atingir esse montante, como na era da jurispru- como uma derivação do princípio da igualdade, previsto
dência dos interesses. Ao contrário, o ideal da justiça fiscal, em todas as constituições,138 seja por meio de cláusulas
hoje, se realiza na investigação de quanto cada cidadão po- constitucionais que determinam a tributação proporcional
de contribuir com as despesas públicas,137 à luz dos valo- ou mesmo de previsões expressas.1 39 No plano normativo,
res e princípios reatores do Estado Democrático e Social. o princípio foi implicitamente consagrado na Constituição
Portanto as despesas públicas devem se limitar ao somató- revolucionária francesa, de 1791, como decorrência do prin-
rio da capacidade contributiva de cada um, sob pena de as cípio da igualdade.1 40 E desse também se extrai a capaci-
prestações estatais serem realizadas à custa de parcelas dade contributiva na Constituição Alemã. Já na Argentina,
indispensáveis à vida digna do homem. Resta-nos, assim, o princípio também aparece, implicitamente, no artigo 412
concluir que a justiça é um valor que já deve ser concreti- da Constituição de 1994, que prescreve que os tributos
zado no momento de se arrecadar o tributo, e não somente serão instituídos eqüitativa e proporcionalmente. No
mediante prestações públicas, viabilizadas com os recur- México, a Constituição de 1917 adotou modelo semelhante,
sos tributários. em seu art. 31, com a determinação de que os mexicanos
Ora, legitimar a tributação onde não há manifestação contribuíssem em medida proporcional e equânime. Na
de riqueza, em nome das prestações estatais, por mais Espanha, o princípio da capacidade contributiva está ex-
relevantes que sejam, constitui uma ilusão, pois mesmo
que o Estado preste serviços públicos que venham a suprir
138 UCKMAR, Victor. Ob. cit., p. 53.
as necessidades básicas do cidadão, o que nem sempre 139 Como salienta Klaus Tipke: "Muitas constituições citam expressamente
o princípio da capacídade contributiva como parâmetro. Mas mesmo
quando isso não ocorra, o princípio da capacidade contributiva é o único
137 Segundo TIPKE: "O princípio da capacidade contributiva não investiga o princípio justo no âmbito tributário; é portanto o único parâmetro justo
que o Estado e comunidades podem fazer pelo cidadão isolado, senão o de comparação para a aplicação do princípio da igualdade. Todas as
que o cidadão isolado, com base na sua capacidade contributiva, pode constituições dos estados democráticos reconhecem o princípio da igual-
fazer por seu Estado e sua comunidade". ("Sobre a Unidade da Ordem... ", dade". ("Sobre a Unidade ... ", cit., p. 64).
cit., p. 64). 140 PÉREZ ROYO, Fernando. Ob. cit., p. 35.

62 63
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

pressamente previsto no art. 31.1 da Constituição; o mes- com se esta fosse o único valor fundamental na ciência do
mo se dá no art. 53 da Carta Constitucionalitaliana.141 direito.
No Brasil, a Constituição Federal de 1946, em seu arti- O princípio da capacidade contributiva constitui-se
go 202,142 agasalhava de modo expresso, o princípio da em uma decorrência da igualdade,146 na medida em que
capacidade contributiva, que no entcmto, integrava todos devem contribuir para as despesas públicas, em
nosso ordenamento, implicitamente, desde a Constituição razão de suas possibilidades econômicas. Assim, de acor-
de 1824 (art. 179, XV).1 43 Embora ausente nos textos auto- do com esta diretriz, somente são legítimas as distinções
ritários da Constituição de 1967 e da EC nQ 1/69, após ser que se baseiem na diferença entre as riquezas que vários
suprimido pela EC nQ 18/65, podia a capacidade contributi- contribuintes manifestam.1 47
va ser extraída do próprio princípio da isonomia. 144 Hoje, o Modernamente, de acordo com Moris Lehner,148 supe-
princípio ressurge no art. 145, § lQ, da Constituição Federal
rada a fase em que o princípio da isonomia se limitava a
de 1988.1 45 vedar o arbítrio, o princípio da capacidade contributiva se
3.2.2. Fundamento, Conteúdo e Extensão do traduz em parâmetro constitucional da igualdade.
Princípio da Capacidade Contributiva Como bem assinala Tipke,149 a igualdade, ao contrário
da identidade, é sempre relativa, pois o que é completa-
Com a previsão constitucional do princípio da capa- mente igual é idêntico. Há que se inquirir em relação a que
cidade contributiva na Carta de 1988, não há mais como as coisas são iguais e, a partir daí, averiguar se as distin-
justificar o ceticismo kelsiniano da doutrina brasileira ções encontradas justificam, de fato, a atribuição de um
que, diante das dificuldades em definir um conteúdo tratamento diferenciado pelo legislador tributário. As dis-
substantivo para a justiça, agarra-se à segurança jurídica tinções que devem ser levadas em consideração pela lei
são as que se baseiam numa diferente manifestação de
141 Para uma visão mais ampla da capacidade contributiva nas constituições riqueza, salvo se presente outro fundamento a se ponderar
de vários países vide UCKMAR, Victor. (Ob. cit., pp. 66-67).
142 Constituição Federal de 1946, art. 202: "Os tributos terão o caráter pes- com a capacidade contributiva.
soal sempre que isso fôr possível, e serão graduados conforme a capaCI- O princípio da igualdade, consagrado na Constituição,
dade econômica do contribuinte". não se contenta com a igualdade formal, mas almeja tam-
143 Constituição Imperial de 1824, art. 179, XV: "Ninguém será exempto de
contribuir para as despezas do Estado em proporção dos seus haveres". bém sua concepção material. Nesse sentido, está a capaci-
144 FALCÃO, Amílcar. Fato Gerador, cit., p. 68. BALEEIRO extraía o princípio
do art. 153, § 36, da EC nº 1/69, que prescrevia: "A especificação dos
direitos e garantias expressos nesta Constituição não exclui outros direi- 146 TIPKE, Klaus. "Princípio da Igualdade e a Idéia de Sistema no Direito
tos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota". Tributário". In: Brandão Machado (coord.). Estudos em Homenagem ao
(Limitações ... , cit., p. 687). . Prol. Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 517.
145 Constituição Federal de 1988, art. 145, § 1º: "Sempre que posslvel os 147 Não que sejam impossíveis distinções baseadas em outros critérios
impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacIdade diversos da capacidade contributiva, como se demonstrará ao longo do
econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, espe- texto, mas são as distinções baseadas na manifestação de riqueza as que
cialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respei- se fundamentam no princípio em estudo.
tados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendi- 148 Ob. cit., p. 151.
mentos e as atividades econômicas do contribuinte". 149 "Princípio da IgLI,aldade ... ", cit., p. 519.

64 65
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

dade contributiva intrinsecamente vinculada à solidarieda- nômicos, enqua.nto a última se refere à capacidade econô-
de 150 e à dignidade da pessoa humana. 151 mica eleita pelo legislador como fato gerador do tributo.
Sendo uma das tarefas do Estado Democrático e Social Assim, como não é possível ao legislador identificar a
a. da. d'ô' pessoa humana - o que está capacidade contributiva de cada pessoa, ele visualiza
sempre a exigir prestações necessa- situações que a revelam: são os fatos geradores dos impos-
rio angariar recursos daqueles cuja sobrevivência digna tos.1 56 É por esse motivo que a existência de um sistema
não depende das prestações estatais para, desta forma, de tributário melhor atende ao princípio da capacidade contri-
acordo com o princípio da solidariedade, socorrer os recla- butiva, do que a idéia de imposto único, desde que, como é
óbvio presumir, tal sistema seja concebido à luz de fatos
mes elementares da grande massa que, embora não tenha
geradores que se revelem em signos de manifestação de
recursos para contribuir, necessita das prestações estatais.
riqueza e que sejam harmônicos entre si, e não por simples-
Nesse sentido, o princípio da capacidade contributiva se
mente se moldarem a uma arrecadação menos complexa.
traduz num instrumento da justiça distributiva e da redis- Dentro da concepção de que o fato gerador se traduz
tribuição de rendas.1 52 em signo de manifestação de riqueza é possível vislumbrar-
Segundo Ricardo Lobo Torres, o princípio determina: se a acepção objetiva da capacidade contributiva. E para
"que cada um deve contribuir na proporção de suas rendas que esta seja efetivada, o legislador deve escolher como fato
e haveres, independentemente de sua eventual disponibi- gerador do tributo, um ato que seja revestido de conteúdo
lidade financeira" .1 53 Para Aliomar Baleeiro, "a capacidade econômico. Violada será, portanto, quando houver tributa-
contributiva do indivíduo significa sua idoneidade econô- ção de atos que não se revelem em signos presuntivos de
mica para suportar, sem sacrifício do indispensável à vida riqueza, como os do uso de barba e bigode, por exemplo.1 57
compatível com a dignidade humana, uma fração qualcfuer
do custo total dos serviços públicos" .154 156 Não que os demais tributos também não se subordinem ao princípio da
Deste modo, a capacidade contributiva consiste na capacidade contributiva, como abaixo se demonstrará.
157 Com toda a propriedade, assinala Dino Jarach: "Todas as situações e
manifestação econômica, identificada pelo legislador, como todos os fatos aos quais está vinculado o nascimento de uma obrigação
signo presuntivo de riqueza a fundamentar a tributação. E impositiva possuem como característica a de apresentar um estado ou
um movimento de riqueza; isto se comprova com a análise indutiva do
embora as expressões capacidade econômica e capacidade
direito positivo e corresponde ao critério financeiro que é próprio do
contributiva sejam utilizadas como sinônimas, é correta a imposto: o Estado exige uma soma de dinheiro em situações que indicam
distinção de Carrera Raya,155 segundo a qual a primeira de- capacidade contributiva. É certo que o Estado por capricho, pelo seu
poder de império, poderia exigir impostos com base em qualquer pressu-
signa a disponibilidade da riqueza, ou seja, de meios eco- posto de fato, mas o Estado, afortunadamente, não age assim". (O Fato
Imponíve1..., cit., pp. 95-96). No mesmo sentido, Victor Uckmat: ':Ademais,
o dimensionamento à capacidade contributiva exclui "graduações da
150 HERRERA MOLINA. Ob. cit., p. 92. carga tributária que não sejam relacionadas a diferenças na condição
151 Ibidem, p. 82. econômica dos indivíduos". Único elemento para diferenciar as cargas
152 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro ... , cit., p. 88. tributárias entre várias pessoas é a sua capacidade econômica: portanto,
153 Ibidem, p. 79. não seria consentido estabelecer que "os loiros devem pagar mais que os
154 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução ... , cit., p. 259. morenos" ou que todas as pessoas calvas ou míopes devam, enquanto
155 Manual de Derecho Financiero. Madrid: Tecnos, 1993, voL I , p. 92. tais, pagar um tributo" (Ob. cit., pp. 69-70).

66 67
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

Assim, de acordo com o princípio da capacidade contri- dade. Nesse sentido, uma de .suas funções sociais seria a de
butiva em seu aspecto objetivo, os fatos geradores de cada contribuir, através de uma parcela de seus frutos, para o
imposto têm origem em duas espécies de riqueza: a renda e atendimento das despesas públicas. Assim, a tributação não
o patrimônio. Os demais fatos geradores previstos no siste- pode atingir, senão, os rendimentos do patrimônio.1 61
ma tributário devem constituir desdobramentos desses doi.s Ainda segundo Tipke,162 não ofende o princípio da
fenômenos econômicos; constituem eles técnicas diferentes igualdade a tributação dos rendimentos do capital de
para se atingir o mesmo resultado. Obviamente quando se forma mais onerosa que os rendimentos do trabalho. Ao
reduzem os signos de manifestação de riqueza à renda e ao contrário, em face do primado constitucional do trabalho,
patrimônio, estas expressões são utilizadas em sentido bem trata-se de uma medida da mais alta justiça.
mais amplo do que lhes são dados pela legislação que defi- Por outro lado, é de acordo com seu aspecto subjetivo,
ne os impostos sobre patrimônio e renda. Retrata bem essa que o princípio se destina a aferir a capacidade de paga-
visão a idéia de Pérez de Ayala. Segundo o Conde de Cedillo, mento de cada um, graduando-a de acordo com o signo de
a riqueza é manifestada por meio de uma visão fotográfica, manifestação de riqueza escolhido pelo legislador, ao defi-
e portanto estática, pelo patrimônio. No entanto, a riqueza nir o fato gerador de cada tributo.
também pode ser visualizada por uma visão cinematográfi- Como princípio que é, a capacidade contributiva apre-
ca, dinâmica, a exigir uma delimitação temporal a determi- senta grande fluidez em sua definição, constituindo verda-
nado período. É o que ocorre com a renda.1 58 deiro conceito indeterminado, cujo núcleo é revelado pela
Vale ainda ressaltar que, diante do binômio renda/pa- riqueza disponíve1.1 63 E essa indeterminação constitucional,
trimônio, como signos presuntivos de riqueza, os impostos característica do halo conceitual, é enfrentada pela regulação
pessoais devem ter como fato gerador algum fenômeno que de cada imposto, oferecida pelo legislador, que leva em con-
revele a renda disponível para a pessoa física e o lucro para sideração, não só a definição do fato gerador em seus aspec-
as empresas, como assinala Tipke. 159 tos material, temporal, espacial e quantitativo, mas também
Nos impostos reais, a riqueza é revelada pelo patrimô- os subprincípios da proporcionalidade, da progressividade,
nio, estando a capacidade contributiva, neste caso, também da seletividade e da personalização.1 64 É desta forma que a
relacionada com a função social da propriedade,160 num riqueza disponível será revelada em atendimento ao aspecto
ordenamento que não absolutiza os direitos do proprietário. subjetivo do princípio da capacidade contributiva.
A função social da propriedade, atualmente, não é mais A proporcionalidade consiste na variação da tributa-
encarada como um limite extrínseco aos direitos do proprie- ção em razão da diferença da base de cálculo, a partir da
tário, mas como verdadeiro fundamento do direito à proprie- aplicação da mesma alíquota. É o padrão clássico para efe-
tivação da capacidade contributiva concebido por Adam
158 PEREZ DE AYALA, Jose Luis. Derecho Tributario I. Madrid: Editorial de
Derecho Financiero, 1968, p. 89.
159 Segundo o referido autor: "Todo o cidadão deve pagar impostos em con- 161 TIPKE. " Sobre a Unídade ... ", cit., p. 63.
formidade com o montante de sua renda disponível para o pagamento de 162 Ibidem, p. 65.
impostos; toda empresa deve pagar impostos de acordo com o montante 163 BERRERA MOLINA. Ob. cit., p. 145.
de seu lucro". ( "Sobre a rJnidade ... ", cit., p. 64). 164 Os quatro subprincípios são elencados por Ricardo Lobo Torres (Curso de
160 BERRERA MOLINA. Ob. cit., p. 94. Direito FinanceirÇJ ... , cit., p. 83).

68 69
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

Smith a partir da teoria do benefício, segundo a qual se pre- quada ao estímulo da produção, reconhece também que
sume que as pessoas se beneficiam das prestações esta- nos sistemas tributários de países em que haja maior desi-
tais na proporção de suas riquezas.1 65 Contestada por gualdade social, a progressividade dos impostos sobre a
Stuart Mill, a teoria do benefício encontrou oposição na teo- renda é medida exigida pelos princípios da liberdade, da
ria do igual sacrifício, que acabou por consagrar o subprin- igualdade eqüitativa de oportunidades e da diferença.1 69
cípio da progressividade como instrumento do Nesse mesmo sentido, Tipke entende, na esteira do
Welfare State. Juntamente com este, no entanto, a progres- Tribunal Constitucional Alemão, que a progressividade
sividade começou a perder fôlego, a partir das décadas de rompe com a igualdade, mas este rompimento é justificado
1970 e 1980, quando a teoria do benefício foi retomada pelo princípio do Estado Social, que tem por objetivo a dis-
James Buchanan.1 66 Nos dias atuais a proporcionalidade é tribuição de riquezas.1 70
saudada como o melhor índice de capacidade contributiva Deste modo, numa sociedade marcada por profundas
por John Rawls 167 e Klaus Tipke.1 68 desigualdades sociais como a nossa, a progressividade é,
Por sua vez, a progressividade se concretiza pela eleva- em vários impostos, o instrumento mais adequado à aplica-
ção da alíquota na medida em que é aumentada a base de ção do princípio da capacidade contributiva, baseando-se
cálculo. Seu fundamento era, originariamente, a distribuição na justiça social. É que a proporcionalidade, embora seja
igualitária do sacrifício social da tributação conforme defen- uma manifestação da capacidade contributiva, uma vez
dido por Stuart Mill, como vimos. O economista inglês partia que não adota um valor fixo na tributação, se traduz num
da idéia de que na medida que o capital aumentava, sua uti- instrumento bastante tímido na distribuição de rendas.
lidade para o seu possuidor diminuía, sendo legítima sua Como bem observa Luciano Amaro,171 a capacidade contri-
apropriação pelo Estado em parcela maior. butiva não se esgota na proporcionalidade, uma vez que
Após a retomada da teoria do benefício pelos economis- aquela exige .. a justiça da incidência em cada situação iso-
tas neoliberais do final do século XX, a progressividade, hoje, ladamente considerada e não apenas a justiça relativa
não mais deve ser extraída de uma visão utilitarista de igual entre uma e outra das duas situações".
sacrifício, mas como importante instrumento de redistribui- No mesmo sentido, Pedro Herrera Molina, para quem é
ção de rendas no Estado Democrático e Social de Direito. a progressividade que confere conteúdo ao princípio da
O próprio Rawls, embora defenda que os tributos com' capacidade contributiva, uma vez que aquela deriva dos
finalidade arrecadatória incidentes sobre as despesas ou valores da igualdade l72 e da solidariedade.
rendas devam ser proporcionais em sociedades com alto No entanto, o Supremo Tribunal Federal vem enten-
grau de respeito aos princípios da justiça como eqüidade, dendo que a progressividade não é decorrência natural do
uma vez que essa modalidade de tributação é mais ade- princípio da capacidade contributiva, que por sua vez, se

.-~~-

165 SMITH, Adam. Ob. cit., p. 485. 169 RAWLS. Ob. cit., p. 308.
166 BUCHANAN, James. The Limits of Liberty - Between Anarchy and 170 TIPKE. "Princípio da Igualdade ... "., cit., p. 527.
Leviathan. Chicago: The University of Chicago Press, 1975, p. 98. 171 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2-ª ed. São Paulo: Saraiva,
167 RAWLS. Ob. cit., p. 307. 1998, p. 136.
168 TIPKE. "Princípio da Igualdade ... ", cit., p. 527. 172 Em sentido cont.ário: TIPKE ("Princípio da Igualdade ... ", cit., p. 527).

70 71
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça. Interpretação e Elisão Tributária

realiza pela proporcionalidade, a não ser que o próprio tex- Outro subprincípio que vai dar efetividade ao princípio
to constitucional determine expressamente a utilização de em estudo é a seletividade, que se materializa pela varia-
alíquotas progressivas.173 ção de alíquotas em função da essencialidade do produto
Porém, a posicão de condicionar a aplicação da progres- ou da mercadoria, e que representa a modalidade mais
sividade à expressa previsão constitucional esvazia mortal- adequada à aplicação do princípio da capacidade contribu-
mente o princípio da capacidade contributiva, q~ue encontra, tiva nos impostos indiretos, como o ICMS e o IPI,pois afere
no Estado Democrático e Social de Direito, a progressivida- o índice de riqueza do contribuinte de fato, a partir do grau
de corno mecanismo mais eficaz para sua realização, mor- de indispensabilidade do bem consumido. Dentro dessa
mente numa sociedade tão desigual quanto a brasileira. lógica, o consumo de bens populares é gravado com alíquo-
No entanto, como a tese da necessidade de previsão tas menores, como ocorre com os produtos da cesta básica.
constitucional expressa para a aplicação da progressividade Já os bens supérfluos são tributados com base em alíquo-
foi vitoriosa no STF, este subprincípio, como instrumento rea- tas maiores, como se dá com cigarros, bebidas e perfumes.
lizador da capacidade contributiva, se limita ao imposto de Em sendo assim, não é difícil perceber que a aplicação
renda, e após a EC nº 29/00, ao IPTU. da proporcionalidade nos impostos incidentes sobre os
Por outro lado, também já entendeu o STF pela impossi- bens de consumo popular, como gêneros alimentícios de
bilidade de aplicação de alíquotas progressivas nos impostos primeira necessidade, acaba gerando um efeito regressivo,
reais.1 74 No entanto, nos parece inexistir qualquer óbice à pois retira das classes menos aquinhoadas, relativamente,
progressividade dos impostos reais, uma vez que o patrimô- mais do que é suportado pelos abastados,176 não se res-
nio do contribuinte é índice de riqueza hábil a ser quantifica- guardando o mínimo existencial.
do na fixação do aspecto subjetivo do princípio da capacida- Por sua vez, situação parecida ocorreria na aplicação
de contributiva, como se extrai do próprio art. 145, § 1º, da da progressividade aos impostos sobre o consumo, uma
Constituição Federal, e, mais recentemente, da EC :nQ 29/00, vez que não suportando o sujeito ativo a carga tributária, a
que, dando nova redação ao art. 156, § 1º, do Texto Maior, pre- tributação de acordo com a sua riqueza, teria o condão de
viu a progressividade no IPTU, vinculada à capacidade con- transferir para o consumidor, contribuinte de fato, um
tributiva e calculada em razão do valor venal do imóvel.1 75 encargo que não seria necessariamente adequado à sua
capacidade contributiva. 177
173 STF. Pleno. RE nQ 153.771/MG. ReI. Min. Moreira Alves. DJU de 05/09/97. Por fim, o subprinGÍpio da personalização, que segundo
p. 41.892. em relação ao IPTU; e STF, Pleno. RE nQ 234.105/SP ReI. Min. a Constituição Federal, no art. 145, § 1º, deve ser aplicável
Carlos Velloso. DJU de 31/03/00. p. 61. em relação ao ITBI. sempre que possível, determina que o legislador leve em
174 STF. Pleno. RE nQ 153.771/MG. ReI. Min. Moreira Alves. DJU de 05/09/97.
p. 41.892. No mesmo sentido Ricardo Lobo Torres (Curso de Direito consideração dados pessoais da vida do contribuinte para
Financeiro ...• cit .. p. 82). mensurar a tributação, como ocorrem com as deduções de
175 Já existem importantes vozes que se levantam contra a constitucionalida- despesas com dependentes, médicas e de instrução, no
de do IPTU progressivo previsto na EC nQ 29/00. Por todos. Ricardo Lobo
Torres (Curso de Direito Financeiro ..., cit .. p. 83). Embora a discussão do
tema não seja objeto desse trabalho. entendemos não ter a referida emen-
da constitucional. nesse ponto. violado qualquer cláusula pétrea. sendo 176 BALEEIRO. Aliomar. Uma Introdução ... , cit .. p. 211.
compatível com nossa Lei Maior. pelas razões expostas no texto. 177 VALDÉS COSTA. Ob. cit .. p. 455.

72 73
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

imposto de renda. Como parece óbvio, o princípio da perso- ção até o limite em que sejam atendidos os requisitos míni-
nalização terá aplicabilidade plena nos impostos pessoais. mos para uma vida humana digna.17 9
Daí a dicção constitucional do sempre que possível. Porém, De acordo com Tipke, o mínimo existencial não deve
há hoje uma tendência à personalização também dos impos- ser fixado em patamar inferior ao estabelecido como bene-
tos reais, quando o legIslador leva em consideração dados fício de aposentadoria, pois, em regra, o cidadão ativo pos-
pessoais do contribuinte, como ocorre na de IPTU sui mais necessidades vitais que o aposentado.1 80 Sustenta
para ex-combatentes e aposentados que percebam até ainda o professor emérito da Universidade de Colônia, que
determinada renda. Embora tais medidas não importem na o mínimo existencial não se aplica somente ao imposto de
transformação do aludido tributo em um imposto pessoal, renda, mas a todos os tributos, e que as parcelas que fica-
vez que suas características principais continuam vincula- rem isentas do imposto de renda não podem ser tributadas
das ao bem imóvel, há dados de personalização que presti- por impostos especiais.1 81 Por seu turno, os impostos indi-
giam o referido princípio constitucional. retos também devem respeitar o mínimo existencial, o que
é viabilizado, pelo mecanismo da seletividade, por meio da
Vale ainda advertir que o aspecto subjetivo do princí-
isenção dos bens de primeira necessidade.1 82
pio da capacidade contributiva encontra como limites o
No outro extremo, como limite máximo da tributação
mínimo existencial e a vedação do confisco, que se revelam
de acordo com a capacidade contributiva encontra-se o
como verdadeiras fronteiras delimitadoras do referido prin-
princípio da vedação ao confisco que deriva do próprio
cípio em suas porções mínimas e máximas. Não se pode tri-
direito de propriedade.1 83
butar abaixo do mínimo existencial, pois não há riqueza No Brasil, a Constituição Federal contém dispositivo
disponível. Não se tributa acima dos limites confiscatórios, expresso vedando a tributação com efeito confiscatório.1 84
onde a seara da capacidade contributiva exaure-se. Confisco é a perda da propriedade em favor do Estado em
Embora não possua dicção constitucional própria, o razão de um ato ilícito. Por ser vedado pela Constituição,185
mínimo existencial deriva, segundo Ricardo Lobo Torres,178
da idéia de liberdade, de igualdade e dos direitos huma- 179 LEHNER, Moris. Ob. cit., p. 151, citando precedente do Tribunal Constitu-
nos, e tem seus contornos definidos pela linha que separa cional Alemão que delineou os contornos do mínimo existencial.
180 TIPKE. "Sobre a Unidade ... ", cit., p. 61. No mesmo sentido, HERRERA
a vida simples do cidadão humilde da pobreza absoluta MOLINA (Ob. cit., p. 144).
que deve ser combatida pelo Estado, não só por meio de 181 TIPKE. "Sobre a Unidade ... ", cit., p. 67.
182 HERRERA MOLINA Ob. cit., p. 144.
abstenção na tributação, como também por prestações 183 VOGEL, Klaus. "Tributos ReguIatórios e Garantia da Propriedade no Direito
positivas, envolvendo além dos direitos individuais, os Constitucional da República Federal da Alemanha". In: Brandão Machado
sociais, relativos à saúde, à alimentação, à educação e à (coord.). Estudos em Homenagem ao Proi Ruy Barbosa Nogueira. São Paulo:
Saraiva, 1984, p. 550, onde o autor alemão informa que naquele país, dada
assistência social. Assim, no campo tributário, o mínimo a inexistência de dispositivo constitucional expresso que proíba a tributa-
existencial deixa o contribuinte livre de qualquer tributa- ção confiscatória, o excesso tributário é vedado pelo art. 14 da Lei
Fundamental, que consagra o direito de propriedade.
184 Artigo 150, IV. da Constituição Federal.
185 Exceto nos casos da pena de perdimento de bens importados irregular-
178 Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário, v. m. z... ed. Rio mente; do confisco das terras onde se produzem substâncias entorpe-
de Janeiro: Renovar, 1999, p. 146. centes, bem como dos instrumentos e produto da prática criminosa.

74 75
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

não é admitido que a lei estabeleça a perda da proprieda- Durante muito tempo, a doutrina, aqui e alhures, con-
de pela tributação em razão de atos lícitos. Portanto, é con- siderou que a existência de uma finalidade extrafiscal afas-
fiscatória a tributação excessiva, que supere a capacidade tava a alegação de confisco. No entanto, quando examinar-
contributiva. Embora não exista na legislação, na doutrina mos a relação da capacidade contributiva com a extrafisca-
ou na junsprudêncla um cntério objetivo para identificar o lidade, veremos que os objetivos sociais, econômicos e
confisco 186 - o que permite que, dada a fluidez desse con- políticos buscados pela norma tributária devem justificar,
ceito, em cada caso o aplicador examine se foi superada a por meio de um juízo de proporcionalidade, o afastamento
capacidade contributiva, o Supremo Tribunal Federal consi- da capacidade contributiva que, como princípio que é, não
derou confiscatória a exigência de contribuição previden- é dotada de caráter absoluto, podendo ser ponderada com
ciária dos servidores públicos federais no percentual de outros interesses. 189 Assim, não basta a simples alegação
25%.1 87 É interessante perceber que na referida decisão, a de extrafiscalidade para que se afaste o exame do caráter
Corte Maior considerou, e com acerto, o efeito confiscatório confiscatório da norma.
diante da carga tributária como um todo, e não em razão de Quanto à sua eficácia, a capacidade contributiva é
um único tributo. No entanto, essa apreciação só é exeqüí- princípio cogente,190 obrigando não só o legislador, mas
vel diante de tributos que incidam sobre bases de cálculo também o aplicador da lei,191 seja por meio da atividade
similares, como ocorre com o imposto de renda e a contri- regulamentar ou jurisdicional. Podemos vislumbrar esta
buição previdenciária do servidor, que incidem sobre a característica quando o Poder Judiciário afasta a aplicação
remuneração deste. de uma regra que prevê uma isenção que propicia um pri-
Embora a vedação constitucional não se limite aos tri- vilégio odiosO;192 ou, no reconhecimento pelo juiz de que,
butos incidentes sobre a propriedade,188 nestes ela ganha embora o tributo esteja previsto em lei, determinado seg-
uma maior dimensão. É tais tributos não podem ter alíquo- mento de contribuintes não revela capacidade contributiva
tas muito elevadas, sob pena de haver perda da proprieda- para suportá-lo, por ter sido violado seu mínimo existen-
de após alguns exercícios. Assim, por exemplo, se o IPTU cial, ou por aquela situação, definida em lei como revelado-
tivesse uma alíquota de 20%, em cinco anos haveria a perda ra de riqueza, não produzir esse efeito em relação ao seg-
da propriedade, revelando-se confiscatória esta tributação.
mento considerado.
No entanto, tal possibilidade não habilita o juiz, no caso
186 A Suprema Corte argentina fixou o percentual de 33% como limite à tri- concreto, a reconhecer a ausência de capacidade contributi-
butação sobre uma mesma base de cálculo, conforme noticia BALEEI-
RO (Limitações Constitucionais ... , cit., p. 566); já a Corte Constitucional va de determinado contribuinte, quando a lei, em sua acep-
Federal da Alemanha, como informa TIPKE ("Sobre a Unidade ... ", cit.,
p. 70) decidiu que o imposto sobre o patrimônio não pode superar a
50% da renda bruta. 189 HERRERA MOLINA. Ob. cit., p. 178.
187 STF, Pleno, ADIMC-2010 / DF, ReL Min. Celso de Mello, DJU de 12/04/02, 190 Está inteiramente superada historicamente a tendência de se considerar
p. 51. No caso em questão o Tribunal considerou que a contribuição pre- a capacidade contributiva um princípio programático, como salienta
videnciária dos servidores públicos federais somada aos outros tributos CARRERA RAYA (Ob. cit., p. 94).
incidentes sobre a remuneração do servidor, como o imposto de renda, 191 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro ... , cit., p. 81, e CAR-
causava o efeito confiscatório. RERA RAYA. Ob. cit., p. 91.
188 Note-se que o precedente do STF acima citado se refere a tributos pes- 192 Sobre o conceito de privilégio odioso, vide TORRES, Ricardo Lobo. Trata-
soais. do de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário. VoL IH, ... , cit., p. 341.

76 77
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

ção genérica, não se revelar violadora do princípio. Se o tri- 1988. Por esse motivo, não se pode afastar sua aplicação
buto é fixado de forma adequada ao signo de manifestação em relação aos demais tributos, que não os impostos, pelo
de riqueza, revelado pelo fato gerador previsto em lei, a ex- simples fato do texto constitucional utilizar a expressão
clusão de determinado contribuinte por razões individuais impostos, ao invés da palavra tributos.
se traduziria em privilégio odioso)93 O mesmo não ocorre Embora a Constituição se refira somente aos impos-
quando a aplicação da norma se revela il1GOnstitucional para tos, uma vez que nesta espécie tributária só há a riqueza
determinado grupo de contribuintes, em sentido genérico. do contribuinte a se mensurar, o princípio também é aplica-
Neste caso, tal norma não deve ser aplicada a esse grupo, do aos tributos vinculados, como a taxa, conforme já reco-
sendo válida em relação aos seus demais destinatários. nheceu o STF,195 e a contribuição de melhoria, por meio da
Também não parece possível a modificação judicial da desoneração dos hipossuficientes.1 96
alíquota do tributo pela declaração parcial de inconstitucio- É bem verdade que nos impostos, dado o seu caráter
nalidade da lei tributária, por apenas em parte superar a de tributo não vinculado, o princípio tem uma acepção mais
capacidade contributiva.194 Se a tributação tornou-se exces- ampla. Afinal, não havendo atividade estatal a se mensu-
siva em razão de um aumento de alíquota, a declaração de rar, o único critério quantitativo a ser levado em conta pelo
inconstitucionalidade da lei teria o condão de restabelecer a legislador é a riqueza do contribuinte.
legislação anterior do imposto. No entanto, se a fixação des- Mas isso não significa que os demais tributos não se
medida do tributo se der por ocasião de sua instituição pri- subordinem ao referido princípio.1 97 Ao contrário, devem
meira, não restará solução senão a declaração de inconstitu- todos eles apresentar como fato gerador um ato que revele
cionalidade da exação. Caso o Poder Judiciário pudesse re- conteúdo econômico. Nas taxas, por exemplo, embora o
duzir a alíquota do tributo, estaria estabelecendo regra não fato gerador seja relacionado com uma atividade estatal
prevista pelo Poder Legislativo, invadindo o espaço de con- específica em relação à pessoa do contribuinte, a capacida-
formação deste e legislando positivamente. de contributiva pode ser reconhecida para a concessão de
Quanto à sua extensão, o princípio não se aplica ape- isenção para aqueles que, embora beneficiários da ativida-
nas aos impostos, como podem imaginar os intérpretes de estatal, não possuam riqueza a ser tributada. É o que
mais apressados do art. 145, § 1Q, da Constituição Federal. ocorre no fornecimento gratuito de certidões de óbito e no
Se a capacidade contributiva deriva da igualdade, aplica-
registro do casamento civil para os comprovadamente
se mesmo quando não prevista expressamente na consti-
pobres (art. ~, LXXVI, da Constituição Federal). 198
tuição, como é o caso da Alemanha, e do Brasil de 1965 a
Por outro lado, o valor a ser exigido em razão da taxa
pode também variar de acordo com a capacidade contribu-
193 Em sentido contrário: OLIVEIRA, José Marcos Domingues (Direito Tri-
butário - Capacidade Contributiva. ~ ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998,
p. 147), que sustenta a possibilidade de a lei ser considerada constitucio- 195 STF, Pleno, RE nº 177.835/PE, ReI. Min. Carlos Velloso, DJU de 25/05/01,
nal em sentido genérico, mas ser violadora da capacidade contributiva p.18.
de determinado contribuinte. 196 TORRES, Ricardo Lobo, Curso de Direito Financeiro ... , cit., p. 87.
194 Em posição divergente a do texto: OLIVEIRA, José Marcos Domingues 197 CALVO ORTEGA. Ob. cit., p. 85.
(Ibidem, p. 155), onde o autor considera ser possível a redução da aliquota 198 SEIXAS FILHO, Aurélio. Taxa. Doutrina, Prática e Jurisprudência Rio de
pelo magistrado a partir da declaração parcial da constitucionalidade da lei. Janeiro: Forense,.1990, p. 58.

78 79
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

tiva, como já foi reconhecido pelo STF no julgamento supra- uma orientação de caráter ab.soluto, levou à crise do princí-
citado, desde que não seja ferida a referibilídade entre o pio diante da ocorrência de alguns fenômenos, como a
valor exigido e a complexidade da atividade estatal. Ou extrafiscalidade. Os contornos normalmente fixados pela
seja, se a maior capacidade contributiva se dá em decor- doutrina para a formulação da capacidade contributiva,
rência da maIor cornplexídade e onerosidade, para a não pareciam suficientes para a explicação do fenômeno da
Administração, da atividade a sua con- tributação extrafiscal. Nesse contexto, o princípio em tela
sideração, como se deu em relação à taxa da CVM, no pre- reduziu-se a mera proibição do arbítrio,202 e embora fosse
cedente citado, onde as empresas que demandavam maior até levado em consideração pelos tribunais, poderia ser
fiscalização, de acordo com o critério adotado pelo legisla- afastado diante de qualquer alegação fundamentada.
dor, eram as empresas de maior patrimônio líquido, o que
No entanto, não é suficiente a simples alusão a um
não deixa de ser um signo de maior manifestação de rique-
objetivo extrafiscal ou à praticidade da arrecadação para
za. Segundo ficou assentado na decisão do STF, é essencial
afastar, como num passe de mágica, a aplicação da capaci-
que o critério de distinção escolhido pelo legislador para
dade contributiva. A contradição entre esta e outros valo-
mensurar a taxa, além de atender ao princípio da capacida-
res caros ao direito é resolvida mediante a ponderação de
de contributiva, deve também guardar relação com a ativi-
interesses e a aplicação do princípio da razoabilidade.
dade estatal.1 99
Tais conflitos, como assinala Pedro Rerrera Molina,
Já em relação às contribuições de melhoria, a capaci-
podem se dar entre os próprios elementos integrantes da
dade contributiva é·medida pela própria valorização imobi-
capacidade contributiva, como, por exemplo, a aplicação
liária. 2oo Ademais, pode haver isenção para aquelas pro-
de uma progressividade que afete o princípio da renda
priedades que, embora tenham sofrido valorização imobi-
liária, ainda não revelam capacidade para contribuir. líquida, o que o referido autor denomina de conflito interno;
Quanto às contribuições parafiscais e empréstimos ou entre a capacidade contributiva e outros princípios jurí-
compulsórios, que não possuam fatos geradores próprios, dicos e objetivos almejados pelo legislador, como a extra-
utilizando-se dos fatos geradores de impostos e taxas, fiscalidade e a praticidade administrativa, configurando os
assim como esses, deverão respeitar a capacidade contri- denominados conflitos externos.
butiva, nos termos acima definidos. 201 Os conflitos internos podem aparecer até mesmo entre
o distanciamento da previsão abstrata da norma que con-
3.2.3. Conflitos da Capacidade Contributiva com cebia determinado critério de distinção como relevante, do
outros Interesses Almejados pela Tributação ponto de vista da manifestação de riqueza, e a sua adequa-
ção aos fatos concretos. 203 Exemplo desse conflito se dará
Durante muito tempo uma visão exclusivista do princí- na legislação do IPTU progressivo, que venha a determinar
pio da capacidade contributiva, que lhe concebia como uma diferenciação de alíquotas em razão da localização do
imóvel (art. 156, § 1Q, da CF, com redação dada pela EC nQ
199 RE nº 177.835, já citado.
200 OLIVEIRA, José Marcos Domingues. Direito Tributário - Capacidade
Contributiva, ... cit., p. 109. 202 HERRERA MOLINA. Oh. cit., p. 77.
201 Ibidem, p. 112. 203 Ibidem, p. 158. ,

80 81
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

29/00). Se tal diferenciação se traduzir em uma alíquota A capacidade contributiva que será tributada estará pre-
majorada para os bairros mais nobres, a aplicação desta vista na lei, em respeito à segurança jurídica. Por sua vez,
alíquota aos imóveis de baixo valor, ainda que localizados o legislador definirá o fato gerador do tributo de acordo
nesses bairros,204 revelar-se-á desastrosa à capacidade com a capacidade contributiva, e o aplicador do direito irá
contributiva. A solução desse conflito, nesse exemplo, se interpretar a lei de acordo com o referido princípio. As cláu-
daria pelo afastamento da pr~Ja]res sulas antielisivas e a adoção de conceitos indeterminados
Podem, por vezes, esses conflitos internos ser resolvi- e de cláusulas gerais na definição de fato geradores de tri-
dos por meio de uma hierarquização dos elementos internos butos constituem exemplos da tendência à ponderação en-
da capacidade contributiva. Deste modo, uma progressivi- tre legalidade e capacidade contributiva, pelo próprio le-
dade não poderá dar à tributação um caráter confiscatório, gislador, com a primeira cedendo espaço à última. Já a ve-
do mesmo modo que a proporcionalidade não pode atingir o dação ao uso da analogia para a criação de tributo pelo § 1º
mínimo existencial. Em tais exemplos fica fácil perceber tal do art. 108 do CTN, constitui exemplo de prevalência da
hierarquização, pois tanto a vedação ao confisco como tam- segurança jurídica sobre a capacidade contributiva.
bém a imposição de respeito ao mínimo existencial, consti- Os conflitos externos também aparecem no fenômeno
tuem limites à capacidade contributiva. No entanto, no mais da extrafiscalidade, tensão muitas vezes não compreendi-
das vezes, tais facilidades não se apresentam na prática, da pela doutrina. Muitos autores, ainda hoje, defendem o
devendo o aplicador resolver o impasse pela ponderação afastamento da capacidade contributiva em nome do esta-
entre os elementos em jogo no caso concreto. belecimento de uma política extrafiscal nos campos social,
Os conflitos externos ocorrem entre a capacidade con- econômico, ambiental e da saúde por meio da tributação.205
tributiva e outros princípios e normas do nosso sistema E foi justamente essa tendência que ocasionou o despres-
constitucional. A justiça e a igualdade, concretizadas pelo tígio do princípio da capacidade contributiva nos anos 60 e
princípio da capacidade contributiva, podem entrar em 70. No entanto, como é quase consenso na moderna doutri-
tensão com o valor da segurança jurídica e com o princípio na, não se pode afastar a aplicação da capacidade contri-
da legalidade. A ponderação entre capacidade contributiva butiva diante de um mero objetivo extrafiscal. É preciso, ao
e legalidade, sem que a priori se possa defender a preva- contrário, que o objetivo extrafiscal seja razoável,206 e que
lência de qualquer delas, não dá margem para que o juiz prevaleça diante de um juízo de ponderação de valores
possa tributar o contribuinte apenas com base na capaci- entre a igualdade e a capacidade contributiva,207 a fim de
dade contributiva, sem que haja previsão legal do tributo. que não sejam criados privilégios odiosos sob o pano da
extrafiscalidade. 208
Em nosso país, o Supremo Tribunal Federal teve opor-
204 Vide o caso das favelas localizadas nos morros da Zona Sul do Município tunidade de reconhecer a necessidade do objetivo extrafis-
do Rio de Janeiro: se adotado o regime progressivo em razão da localiza-
ção do imóvel, de acordo com o bairro, teriam os imóveis ali localizados
uma alíquota maior do que imóveis bem valorizados da Zona Norte da 205 Por todos: CARRERA RAYA. Ob. cit., p. 94.
cidade, estabelecendo-se uma verdadeira regressividade. Registre-se 206 PEREZ ROYO. Ob. cit., p. 37.
que, até o momento, o Município do Rio de Janeiro não adotou a progres- 207 HERRERA MOLINA. Ob. cit., p. 100.
sividade do IPTU na forma da EC nº 29/00. 208 TORRES, Ricarqo Lobo. Curso de Direito Financeiro ... , cit., p. 86.

82 83
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça. Interpretação e Elisão Tributária

cal ser razoável, não transbordando para o arbítrio, no jul- tais normas dependerá da proporcionalidade dessas medi-
gamento onde se discutia a constitucionalidade do critério das vista sob o ângulo do princípio da capacidade contri-
temporal de distinção, promovida pelo art. ()Q do Decreto- butiva. No entanto, pouco adianta uma definição legal que
Lei nº 2.434/88, para a concessão de isenção do IOF inci- abstratamente seja fiel à capacidade contributiva efetiva,
dente sobre as operações de câmbio vinculadas às impor- mas que no entanto, dada a complexidade na apuração da
tações cujas guias tivessem sido até determina- base tributável, seja de difícil controle pela Administração.
da data. 209 E diante de tal dificuldade, muitos contribuintes poderão
De fato, a quebra do tratamento igualitário conferido deixar de recolher seus tributos, o que provocará uma
pelo legislador aos que revelam a mesma capacidade con- injusta repartição das despesas públicas e uma violação do
tributiva só pode se dar em função da finalidade extrafis- princípio da isonomia.
cal, como observa Ferreiro Lapatza,210 caso estejam presen- A rigor, sendo o princípio da capacidade contributiva
tes os requisitos mínimos do referido princípio e quando os uma decorrência do valor da igualdade, uma norma simplifi-
fins extrafiscais almejados sejam também amparados pela cadora que daquele se afaste em alguns casos individuais,
Constituição. mas que venha a garantir a prevalência da isonomia (que
Ainda há que se observar que os fins extrafiscais poderia ser violada pela facilidade no descumprimento da
almejados, num regime federativo, devem estar inseridos legislação tributária pelos contribuintes, ou pelo alto custo
na competência do ente da Federação para promover aque- para a sociedade na adoção de medidas que impeçam esse
la política pública, não lhe sendo lícito invadir a esfera de descumprimento), não atenta contra o referido princípio.
atribuições materiais dos demais entes. Por isso, é incons- É que, como ressalta Pedro Herrera Molina, o próprio
titucional a adoção pelos Estados-membros de alíquotas princípio da capacidade contributiva é violado se não há
diferenciadas para o IPVA em função da origem estrangei-
possibilidade de se estabelecer mecanismos de controle do
ra do veículo, uma vez que o objetivo extrafiscal presente
cumprimento das obrigações tributárias pelos contribuin-
no caso - a proteção à indústria nacional - é matéria da
tes menos imbuídos do dever de contribuir para as despe-
competência da União.
sas públicas ou quando o alto custo desses controles é
Outra fonte de conflito externo aparece com as noxmas
suportado por toda a sociedade.211
de simplificação da legislação tributária, baseadas no inte-
No entanto, tais medidas simplificadoras não podem
resse da fiscalização em combater a elisão fiscal, reduzir os
descambar para uma tributação que, na maioria dos casos,
custos da arrecadação e do contribuinte, e simplificar o
não reflita a capacidade contributiva de cada um dos con-
procedimento de recolhimento, arrecadação e fiscalização
tribuintes, e nem impingir a qualquer deles uma carga tri-
dos tributos.
Não se confundindo, modernamente, a justiça tributá-
ria com os interesses da arrecadação, a legitimidade de 211 Defende Pedro Herrera Molina: ':Ahora bien. la ineficácia administrativa
lleva consigo uma aplicación deficiente deI sistema fiscal. y ésta supone
necesariamente un reparto desigual de las cargas fiscales en beneficio de
209 STF, 1ª Turma. AGRAG nº 142.348-1/MG. reI. Min. Celso de Melo. DJ de aquelloe menos homados o con menos possibilidades de defraudar. A sensu
24/03/95. p. 6.807. contrario. la eficacia deI contraI administrativo constituye una condición
210 Curso de Derecho Financiero ...• cit .. p. 62. necessaria (no ~uficiente) deI sistema tributaria justo" (Ob. cit .. p. 161).

84 85
Ricardo Lodi Ribeiro Justiça, Interpretação e Elisão Tributária

butária radicalmente distinta da que seria devida caso não Ora, se a base de cálculo presumida foi maior do que
houvesse a medida simplificadora.212 a efetivamente realizada, seria lógica a necessidade de res-
Há, mais uma vez que se analisar a razoabilidade da tituição do indébito. No entanto, o STF, aderindo ao argu-
medida simplificadora. Em primeiro lugar, deve-se verificar mento dos Estados-membros de que a devolução de tal
se a mesma é realmente necessária para assegurar a manu- montante acabaria por comprometer a sistemática da subs-
tenção da isonomia tributária no das obriga- tituição tributária, diante da impossibilidade do fisco esta-
ções pelos contribuintes, ou se a tributação pela capacidade dual calcular, em cada caso, a diferença entre a base de cál-
efetiva já não seria suficiente para atingir esse objetivo. culo presumida e a base de cálculo realizada, consagrou a
Quanto à adequação, deve-se perquirir se a medida prevalência das normas de simplificação, em detrimento da
simplificadora realmente resulta em vantagens, no que capacidade contributiva efetiva.214 É de se observar que o
tange à isonomia e à capacidade contributiva, a partir do
Tribunal considerou a necessidade da permanência dessa
cumprimento das obrigações tributárias por todos os con-
norma de simplificação para a manutenção do regime de
tribuintes, em relação à tributação pela riqueza efetiva,
substituição tributária e a conseqüente promoção de uma
considerando que as dificuldades de controle levariam a
arrecadação mais imune à evasão. Considerou também o
uma grande evasão fiscal.
Tribunal a ausência de discrepância entre o valor presumi-
Por fim, num exame de proporcionalidade em sentido
do e o valor efetivo na maioria dos casos, em face da ado-
estrito, resta verificar se na maioria dos casos a capacida-
de contributiva efetiva é atendida pela medida de simplifi- ção do regime de substituição tributária em mercados
cação e se nenhum contribuinte será tributado em valor sujeitos a preços uniformizados, constituindo a tributação
significativamente maior do que o determinado pela capa- excessiva apenas uma eventualidade.
cidade efetiva. 213 No entanto, deixou nossa Corte Maior de considerar a
É preciso ainda estabelecer uma relação de cus- possibilidade do regime estabelecer uma radical discre-
to/benefício, a fim de evitar que a tributação pela capacida- pância em determinados casos individuais, compromete-
de efetiva se revele tão cara para o Estado, e em última dora da própria legitimidade da norma. Por outro lado, o
análise para o conjunto dos contribuintes, que acabe por art. 150, § 7Q, da Constituição Federal, como ressaltado nos
comprometer uma sistemática que pouco irá distinguir-se, votos vencidos, não autoriza normas simplificadoras na
em termos quantitativos, do regime simplificado. substituição tributária que se afastem da capacidade con-
Exemplo de norma simplificadora que entrou em con- tributiva efetiva. É que o referido dispositivo constitucio-
flito com a capacidade contributiva efetiva nos é dado pela nal, ao determinar ser devida a restituição imediata e pre-
legislação do ICMS, no caso da substituição tributária pra ferencial caso o fato gerador presumido não ocorra, estabe-
frente, quando o preço da mercadoria, praticado na opera- leceu que a presunção é relativa, negando abertura a qual-
ção substituída, é inferior à base de cálculo presumida, que quer norma simplificadora que evitasse a tributação con-
serviu de parâmetro para o recolhimento do imposto. forme a riqueza efetivamente auferida.

212 Ibidem, p. 162. 214 STF, Pleno, ADIN nº 1.851/AL, reI. Min. Ilmar Galvão, j. em 08/05/02, noti-
213 Ibidem. ciado no Informativo STF nº 271 (acórdão pendente de publicação).

86 87
Justiça, Interpretação e Elisão Tributária
Ricardo Lodi Ribeiro

A rigor, apenas a partir de uma interpretação mera- normas tributárias,2í6 como se demonstrará no capítulo se-
mente literal, como a efetuada pelo Tribunal, se poderia guinte, dedicado à interpretação no direito tributário.
admitir que o fato gerador não ocorrido difere do fato gera- A capacidade contributiva como princípio interpretati-
dor O'"'l)rrido sob 1J!'1~ bas o de cálculo menor, máxime quan- vo, decorrente da aplicação do método teleológico, no direi-
do a norma não dispõe de meCi3XÜSHlOS o to tributário, manifesta-se pela análise das normas criado-
montante dessa diferença entre o valor presumido e efe- ° ras de tributos a partir do critério econômico,217 tão caro à
tivo, a fim de se dimensionar, à luz do princípio da razoabi- revelação da manifestação de riqueza do contribuinte.
lidade, os prejuízos que eventualmente sejam impostos ao No entanto, não se deve confundir a consideração do
contribuinte. critério econômico, recomendado pelo princípio da capaci-
dade contributiva, com a teoria causalista da interpretação
3.2.4. A Capacidade Contributiva como Princípio econômica do fato gerador, uma vez que aquela não parte,
como esta, da interpretação tributária para os negócios
Interpretativo
jurídicos previstos no direito civil, mas da constatação de
que a metodologia hermenêutica nesse ramo da ciência
Observe-se que o princípio da capacidade contributi-
jurídica não se distingue substancialmente da interpreta-
va não é dirigido apenas ao legislador, que ao escolher o
ção na teoria geral do direito. 218
fato gerador da obrigação tributária deve considerar um
signo presuntivo de riqueza, e ao mensurar a carga tributá- Em conseqüência, a utilização do método teleológico
ria por todos os contribuintes deve levar em consideração não vai afastar a aplicação aos negócios jurídicos, dos con-
os subprincípios que dão efetividade a este princípio em ceitos definidos pelo direito privado, mas buscar o objetivo
da norma que possuindo finalidade arrecadatória, não
sua acepção subjetiva.
Ao contrário, o referido princípio é dirigido também ao poderá se afastar da apreciação sobre a manifestação de
aplicador da lei, seja por meio da atividade regulamentar riqueza definida pelo fato gerador.
da administração, seja na interpretação do ordenamento.215 Assim, como assinala Francesco Moschetti,219 entre
É que a capacidade contributiva, como princípio reator do duas diversas interpretações deverá sobreviver aquela que
direito tributário, revela que o objetivo primordial desse assegura respeito ao princípio da capacidade contributiva.
ramo é a repartição das despesas públicas de acordo com Não sendo nenhuma das interpretações possíveis adequa-
a riqueza de cada um. das ao referido princípio, inevitável será a declaração de
Traduzindo-se a tributação de acordo com a capacidade inconstitucionalidade da norma. 220
contributiva em um dos objetivos principais, senão o princi-
pal, do direito tributário, fica evidenciada a sua estreita liga- 216 Nesse sentido, LEHNER, Moris (Ob. cit., p. 149) e BEISSE, Heinrich. (Ob.
ção com o método teleológico aplicado na interpretação das cit., p. 7).
217 BEISSE, Heinrich. Ob. cit., p. 7.
218 LEHNER, Moris. Ob. cit., p. 145.
219 MOSCHETTI, Francesco. La Capacità Contributiva. Padova: Cedam,
1993, p. 13.
215 Nesse sentido, TORRES, Ricardo Lobo. Normas de Interpretação ... , cit., p.
220 HERRERA MOL}NA. Ob. cit., p. 113.
224, e LEHNER, Moris. Ob. cit., p. 152.

89
88
Ricardo Lodi Ribeiro

Como se vê, o resgate do valor da justiça pelo direito Capítulo 4


tributário, assegura o equilíbrio entre a capacidade contri-
butiva e a legalidade, com a retomada da primeira sem as
Interpretação da Lei 'Iributária
conotações vinculadas à arrecadação da maior quantidade
de recursos, característica do período da jurisprudência
dos interesses; há sim, uma aos valores da
justiça e da liberdade. Como salienta John Rawls,221 o sis-
tema de tributação tem o intuito de arrecadar a receita exi- A problemática da interpretação da lei tributária se
gida pela justiça, devendo o governo receber os recursos prende à elucidação da questão da hermenêutica na teoria
necessários ao fornecimento de bens públicos para que o geral do direito, estando superadas, historicamente, as
princípio da diferença seja satisfeito. teses que recomendavam uma exegese especial para o
direito tributário,222 seja a partir da ótica do interesse dos
contribuintes, que na esfera de sua autonomia privada
poderiam fazer, sem o ônus fiscal, tudo o que não fosse ex-
pressamente, e sem sombra de dúvidas, previsto em lei-
como queriam os autores de índole formalista -, seja por
meio de uma interpretação economicista que, desprezando
a segurança jurídica, descambou para uma visão causalis-
ta da justiça, como pregavam os defensores da teoria da
consideração econômica do fato gerador. 223
Não são mais aceitas as teorias que consideram a
norma tributária como penal-odiosa conforme bem assina-
la Ezio Vanoni: "Não pode ser odioso aquilo que é necessá-
rio à própria existência do Estado, e que tem por única fina-
lidade o benefício dos cidadãos". Como no Estado Fiscal,

222 A maioria dos autores assim tem entendido, seja no Brasil, seja no exte-
rior, como relata TORRES, Ricardo Lobo (Normas de Interpretação ... , cit.,
p. 52). P(jr todos, vide PEREZ DE AYALA (Derecho Tributaria ... , cit., p. 99)
e FALCAO, Amilcar (Introdução ao Direito Tributário. 3ª ed. Atualizada
por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 63).
223 Considerando ultrapassadas as teses que recomendam uma interpreta-
ção especial no Direito Tributário se colocam até mesmo os juristas da
escola funcionalista, como Vanoni, para quem: "Desde que as caracterís-
ticas jurídicas das normas tributárias não se distinguem das demais nor-
mas de direito, a opinião que pretende negar aplicabilidade, às leis tribu-
tárias, dos mesmos métodos de interpretação que se aplicam às leis em
221 Ob. cit, p. 307. geral parece des;tituída de qualquer fundamento". (Ob. cit., p. 181).

90 91

Você também pode gostar