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RESUMO
O pensamento complexo entende a ética não apenas pelo respeito moral ao outro e ao meio. Ele a enxerga como uma
construção entre os antagonismos da natureza humana. O objetivo dessa pesquisa concentrou-se na verificação de como
ocorre na prática da escalada escolar a relação com o outro. O método baseado na Epistemologia Qualitativa permitiu
confrontar estudantes do Ensino Fundamental com a ética da escalada. Os resultados da pesquisa apontam para o
desenvolvimento de um senso de responsabilidade com a vida, pouco comum nas práticas educativas tradicionais. Os valores
da dignidade humana, solidariedade e assunção dos riscos na aventura foram assimilados pelos alunos pela ligação ao outro
por uma corda, sentindo a fragilidade da vida em suas mãos. Essa experiência aponta para novos caminhos para uma
educação cidadã, pautada na ética humana.
Palavras-chave: Complexidade. Ética. Montanhismo.
*
Mestre. Professor da Universidade Nove de Julho, São Paulo-SP, Brasil.
**
Doutora. Professra da Universidade Federal Técnica de Minas Gerais, Uberlândia-MG, Brasil.
Participar da escalada é uma luta constante, não se amarra a vida” (CF). Ele compreende que o
apenas contra a própria morte, quando a nó na corda é um cordão umbilical com poder de
aventura chega aos limites físicos do ser unir as pessoas, portanto aprender a escalar é
humano, mas uma luta para compreender as criar um elo de responsabilidade com a vida das
nossas relações com a natureza. As colocações pessoas. Pimentel (2006) observou fenômeno
dos sujeitos conferem com o que Portela (2005) parecido em praticantes de voo livre, que
afirma sobre a ética na escalada: apresentam a relação de socialidade, risco e
corpo como elementos complementares na
A Escalada em Rocha não está limitada assunção da responsabilidade sobre a vida.
por regras formais. Os seus conceitos Le Breton (2003, p. 98) discute a questão
estabelecem-se por um consenso geral, ética em relação aos resgates na escalada: “Se a
há uma ética que tenta descobrir o que
legitimidade de colocar sua existência
é ´certo´, e o que é ´errado´. A maior
liberdade do escalador está em ser
deliberadamente em perigo só diz respeito à
capaz de definir o jogo e como vai consciência do esportista, este não pode, de
jogá-lo (PORTELA, 2005, p. 39). forma alguma, ocultar sua própria
responsabilidade caso esteja em dificuldade”. Os
No primeiro dia de filmagem na escola, os sujeitos da pesquisa compreendem esse dilema
sujeitos 1 e 2 tinham a missão de guiar a corda quando se expressam sobre os aprendizados
ao topo da parede. Eles arrumam os incorporados nas aulas de escalada.
equipamentos: O sujeito 2 abre e coloca a corda Escalar é um exercício de respeito para a
no freio de proteção. O sujeito 1 escala levando maioria dos praticantes. Os escaladores
a corda consigo, sob a supervisão do costumam se reunir em grupos para sua
pesquisador. Com informações do pesquisador o
sujeito 2 consegue sozinho liberar a corda. diversão; em função dos locais, da amizade, do
Ressalta-se que o sujeito 2 é portador de companheirismo, das necessidades de segurança
Síndrome de Down, mas que isso não impede e do exercício do diálogo, se definem como
que desenvolva seu potencial para a escalar durante a vivência.
responsabilidade sobre a vida de outra pessoa (F). Indivíduos, sociedade e espécie são
Comparando essa situação com a pesquisada inseparáveis e coprodutores um do outro,
por Spink, Aragaki e Alves (2005) na qual supondo as autonomias individuais, a
sujeitos refutavam a participação de guias participação coletiva e o sentimento de
turísticos de aventura, pois isso tirava o caráter pertencimento, anunciando uma ética em cadeia
de risco da ação, verifica-se que os praticantes (MORIN, 2005b). Não uma ética de regras
da escalada vão incorporando a responsabilidade prontas, mas uma construção de regras para
da vida como pertencentes a si mesmos, como preservar a vida.
desejam também outras pessoas que buscam A ética na escalada se configura como
esse tipo de confronto com o perigo. Mas no autoética, isto é, como regras criadas que o
caso de pessoas que buscam um aprendizado escalador deve conhecer e decidir se seguirá, ou
para enfrentar essas dificuldades, há uma não, dependendo das suas convicções e das
tendência à conquista da autonomia que guiará o necessidades existenciais do indivíduo e do
senso ético do praticante. planeta. Isso carece de uma construção para a
A escalada envolve riscos que se devem autonomia na escolha dos rumos a seguir.
controlar para preservar a vida. Nesse jogo, a O sujeito 2 afirma: “Você precisa cuidar da
responsabilidade é dividida e aprendida com o natureza e dos animais principalmente alguns
outro. “Ninguém é autônomo primeiro para que mordam” (Q). Ele entende que cuidar da
depois decidir. A autonomia vai se constituindo natureza significa não destruí-la, tanto quanto,
na experiência de várias, inúmeras decisões, que não ser destruído por ela. Esse é um pensamento
vão sendo tomadas” (FREIRE, 1996: 107). do tipo recursivo, pois o mesmo que dá a vida,
O sujeito 1 ao dar segurança diz: “Tomo pode tirá-la. A complexidade está em manter os
cuidado e presto atenção para que ninguém se antagonismos pertencentes à nossa natureza bio-
machuque”, marcando a responsabilidade em antropo-social.
seu ato (CF). O sujeito 6 diz: Fazendo nó: “é que
Para Heywood (1994), a popularização da biótopo: meio geofísico, com a biocenose, isto
escalada também é responsável pela degradação é, as interações entre os seres vivos desse
ambiental, o que a própria cultura da escalada biótopo. Isso dá um caráter ativo ao
nega pela promoção de atitudes responsáveis por ecossistema, mostrando nossa dependência de
grupos montanhistas. Marinho (2003) acredita articulação com as imposições e restrições do
que o simples aumento de praticantes de biótopo para nossa sobrevivência.
atividades esportivas na natureza não significa Foi isso que percebeu o sujeito 1 quando
um enfoque na preservação da mesma, pois, a respondeu sobre a natureza: “É legal e com
sensibilização para com o meio natural depende muitas aventuras, mas que podem ser
de um tratamento educativo quando se inicia a perigosas”. Apesar de se sentir instigado pela
atividade. natureza, ele não esquece a precaução (CF).
Essas contradições e antagonismos fazem O sujeito 5 fez observações no DC, em que
parte da democracia. Nela, segundo Morin acredita na importância desse contato com a
(1991), todos ganham e todos perdem, cada um à natureza na escalada em rocha:
custa de si mesmo e dos outros, nela há um
diálogo entre posições opostas. [...] a experiência de escalar, de ter
O sujeito 4 entendeu o que significa a ética um contato mais próximo do meio
do montanhismo: “Acho que quando escalamos ambiente é muito importante, pois
talvez, quando os alunos atuais forem
na rocha temos que preservar o meio ambiente
adultos que pretendem derrubar um
para os outros também poderem escalar” (Q). pequeno e insignificante pedaço do
Ele acredita na preservação do patrimônio que resta de floresta em São Paulo,
natural, como forma de conservar o direito às tenham motivos pelos quais pensar
gerações futuras a escalar. Durante a prática duas vezes antes de realizar a ação (5
sempre haverá algum impacto ao meio, mas esse – DC).
deve ser mínimo, porque o sujeito se reconhece
como parte da natureza. Sustentar o equilíbrio Quando escalaram na rocha, havia apenas
natureza e cultura é avançar além da contradição uma árvore para abrigar do Sol. Essa árvore é
dos termos. sentida como importante nesse momento. O
Apesar dos esforços no estabelecimento de sujeito 5 acredita que essa vivência pode gerar
uma forma organizada de se escalar, alinhada mudanças nos comportamentos das pessoas.
com ideais de preservação e sustentabilidade, há
exemplos de atitudes antiéticas entre os Auto-organização no montanhismo
escaladores. Niclevics (2007) aponta a remoção de A Declaração do Tirol sobre a Boa Prática
toneladas de lixo do Everest como uma das formas nos Esportes de Montanha, adotada pela
de percebermos que nem todos os escaladores que Conferência sobre o Futuro dos Esportes de
tentam seu cume são tão preservacionistas. Para Montanha ocorrida em Innsbruck, Áustria, entre
Marinho (2003), a escalada cria um diálogo com a 6 e 8 de setembro de 2002, na busca por uma
preservação ambiental por meio da sensibilidade, prática respeitosa entre o ser humano e seu
do lúdico e do prazer, mas ela ressalta, nos tempos ambiente cria o Código de Ética do
atuais, uma comercialização do espírito do prazer. Montanhismo, difundido pela Confederação
Surge uma contradição entre conquista e convívio Brasileira de Montanhismo e Escalada. Essas
sugerindo que não há apenas a ideia de cuidado. regras se baseiam em valores gerais difundidos
O sujeito 5 falando sobre a escola: Minha internacionalmente e se pautam pelos seguintes
escola: “Tem árvores” (CF). As árvores na aspectos: definir os valores nos esportes de
escola representam um ponto de equilíbrio, montanha; conter padrões de conduta; formular
numa cidade na qual o concreto predomina. critérios para tomada de decisão em situações
Conviver com algum verde aproxima nossa incertas; apresentar princípios para o público
percepção da Terra como oikos, ou hábitat em julgar os esportes de montanha, e introduzir os
grego (MORIN, 2005c). Esse sentimento de iniciantes em valores morais do esporte
pertencimento planetário possibilita a eco- (FEMERJ, 2009).
organização, isto é, a compreensão do
O art. 1º do código afirma que cada escaladora daquela via devem decidir o destino
escalador é responsável por si mesmo, e que não da mesma, de forma democrática e pelo diálogo.
deve se colocar em perigo, nem o próximo e O objetivo da Declaração é definir valores
nem o meio ambiente. O art. 2º aponta que um atuais nessas práticas, não se instituindo como
membro de uma equipe deve fazer concessões leis deterministas para o esporte, mas
em favor do grupo. O art. 6º mostra que o colocando-se como orientação à reflexão do
socorro deve ter prioridade sobre os objetivos escalador. Buscar a conscientização dos
estipulados anteriormente. Responsabilizar-se é praticantes de atividades esportivas na natureza
reconhecer a unidade na diversidade (MORIN, nos reporta a Morin (2003) quando afirma que é
2003). por essa reflexão que pode nascer a consciência
O art. 3º diz que quando somos visitantes, para a concretização de valores.
respeitamos as regras locais. Já o art. 7º traz os O pensamento complexo propõe tratar com
acordos referentes ao meio ambiente, a incerteza do mundo concebendo organização
consolidando a noção de que se deve praticar a nele (MORIN, 2000), assim, um conjunto de
escalada preservando a natureza. Para Morin valores quando colocados a serviço da
(2000), a sustentabilidade é um elemento organização social, são formas de conceber a
complexo que está no âmago do conceito de democracia sem impedir as liberdades
preservação, é um princípio da solidariedade. individuais, nem a possibilidade de intervenção
No art. 8º é posto que a qualidade e a forma nas próprias regras.
como escalamos é mais importante do que a Em Kant (1997), concebemos esses valores
realização da escalada. A escalada comporta morais como sendo o imperativo categórico, ou
vários estilos, desde as subidas de montanhas seja, uma regra, ou lei, que pode ser considerada
com gelo em grandes altitudes, passando pelas tão boa pelo indivíduo, que ele não apenas a
escaladas em rocha, que vão de um pequeno respeitaria, mas gostaria de tê-la criado. Na
bloco a 2 m do solo, até grandes monólitos complexidade, a ética não se baseia apenas
rochosos, nos quais se passam dias para se numa lei universal, pois o bem e o mal não
chegar ao topo (PEREIRA, 2007). É preciso aparecem de forma nítida, pelo contrário, devem
lembrar que há também a possibilidade de ter finalidade para o indivíduo, a sociedade e a
escalarmos em paredes construídas pelo ser espécie. A incerteza do destino humano
humano, que oportunizam às pessoas com necessita de senso crítico, de obter
nenhuma experiência, a apreciação dessa prática conhecimento pertinente, de combater a ilusão,
esportiva com menor risco. Essa variedade de de afetividade e de compreensão, portanto o
opções permeia a subjetividade que cada desafio ético é disciplinar o egocentrismo
indivíduo pode ter em relação à escalada. É exagerado e desenvolver o altruísmo (MORIN,
possível praticar a escalada independente das 2005a).
características físicas, da idade, do gênero, da No montanhismo, esse é um exercício
nacionalidade e da condição social. A realizado diariamente quando se ascendem as
acessibilidade à escalada, nesse sentido, montanhas e as paredes. Mesmo em situações
depende mais da cultura, do que de fatores imperativas, as contradições continuarão
genéticos, financeiros, estéticos ou sociais. existindo. O desafio está em conceber que em
O art. 9º diz que a conquista de uma via é cada ocasião há uma prioridade, e que devemos
um ato de criação. Ela deve ser feita de acordo fazer uma escolha. Essa escolha é dependente da
com as tradições da região em acordo com a consciência do individuo, mas não se detém
comunidade local, e pensando nas gerações nisso. Ela também se forja na norma cultural de
futuras. Paralelamente a isso, Morin (2005b) uma sociedade.
afirma que a democracia requer consensos nas Entre os valores defendidos pelos
decisões e a aceitação majoritária, mantendo a montanhistas, nos quais podemos perceber essa
diversidade e os antagonismos. Não significa tentativa de ligação, encontram-se:
que uma via, como foi conquistada, será para A dignidade humana – sendo que todos os
sempre, mas que o conquistador e a comunidade seres humanos nascem livres e iguais em
ABSTRACT
The complex thought understands the ethics not only as the moral respect to the other and to the environment. It sees it as a
construction between the antagonisms of human nature. The objective of this research has focused on verification on how
occurs the relationship with the other in the practice of climbing in school. The method based on Qualitative Epistemology
allowed confronting elementary school students with the ethics of climbing. The results point to the development of a sense
of responsibility to life, not common in traditional education. The values of human dignity, solidarity and risk taking in the
adventure were assimilated by the students, by binding to the other by a rope, feeling the fragility of life in their hands. This
experience points to new ways for citizenship education, based on human ethics.
Keywords: Complexity. Ethics. Mountaineering.
Endereço para correspondência: Dimitri Wuo Pereira, Rua Ernestina de Castro Marcondes, 263, casa 145, CEP 13214
554, Jardim de Represa. Jundiaí – SP. Email: dimitri@rumoaventura.com.br