Você está na página 1de 7

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MUSEOLOGIA E PATRIMÔNIO - PPG-

PMUS, UNIRIO / MAST

REPENSANDO O CONCEITO DE MUSEU



Hughes de Varine


Cada vez mais me convenço de que o museu deve encontrar o seu lugar entre os mais
proeminentes e efetivos instrumentos de pesquisa, comunicação e ação a serviço do
desenvolvimento geral - seja este cultural, social ou econômico. Mas isto apenas se o museu,
seus profissionais, os profissionais ligados ao mesmo e as autoridades a ele vinculadas
estiverem aptos a revisar as teorias e as práticas que dizem respeito aos seus objetivos, ao
seu funcionamento, aos seus métodos e ao seu papel junto à sociedade - o que levará a uma
dramática revisão da Museologia e da Museografia.
Para organizar minha apresentação de alguns pontos de vista pessoais - talvez um pouco
controversos - sobre este assunto, abordarei dois pontos distintos:
1. a recolocação do museu no contexto das mudanças sociais, econômicas e culturais das
sociedades de hoje;
2. o confronto do museu como desafio do desenvolvimento.
Ao final, tentarei qualificar o que considero o papel político fundamental do museu, nas
comunidades dominadas, ou dependentes, sejam elas vinculadas a minorias étnicas ou não.

O MUSEU NUM MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO
Esta conferencia, tal como muitas outras, relaciona-se principalmente com a salvaguarda e a
proteção da identidade cultural dos grupos minoritários - que foram, durante séculos,
esquecidos por uma história 'clássica', escrita apenas pelos representantes do poder
hegemônico, no mundo semifeudal em que ainda vivemos. Outras conferencias semelhantes
serão organizadas, em favor de outros grupos oprimidos. Em meu país, posso mencionar os
Bascos, os Bretães, os Occitanos - grupos regionais com linguagens específicas - os milhares
de portugueses, os 850 mil algerianos, os ciganos, e ainda muitos outros. Existem ainda as
subculturas que derivam de nosso sistema moderno de vida, ou da negação do mesmo, nos
países industriais: o chamado 'quarto mundo' - os jovens...
Mas o que vem a ser identidade cultural? Tal como carteiras de identidade ou passaportes,
a identidade cultural é uma coisa útil, às vezes até vital, a ser mostrada àquelas pessoas,
organizações, grupos que detém o poder real - que, em outras palavras, são 'superiores'.
Temo afirmar que a necessidade de demonstrar identidade cultural é, em si mesma, o
sintoma de um 'complexo de inferioridade' .
Defender esta identidade, o direito à existência de um indivíduo, uma comunidade, uma
sociedade e até mesmo uma nação, torna-se assim uma medida defensiva, tornada
necessária pela própria agressão que foi - e que ainda é, de certa forma, imposta aos
marginalizados, aos oprimidos, aos explorados e até mesmo aos grupos dizimados (como
algumas tribos de índios da Amazônia brasileira).
Mas isto não é suficiente: não se ganha uma batalha ou uma guerra apenas com
movimentos defensivos. E, mais ainda, se praticada como estratégia única, a promoção da
identidade cultural pode manter e até reforçar o complexo de inferioridade, sem de nenhum
modo compensá-lo. A Espanha, por exemplo, utilizou sua legendária imagem artística e
histórica para promover seu desenvolvimento, atraindo milhares de turistas. Agora que ela
se tornou uma força econômica na Europa, é respeitada e até mesmo temida.
Não há dúvida de que os museus podem - e devem - atuar de modo a defender a identidade
cultural: eles podem tornar-se os melhores cartões de identidade possíveis. Mas os museus
grandes e famosos, super-nacionalistas, como os da Cidade do México, tornaram-se centros
turísticos - eu deveria dizer 'armadilhas turísticas' , como tantos outros.
Para contrabalançar o objetivo da identidade cultural do ponto de vista da ofensiva, eu
defenderia a iniciativa comunitária. Em nosso mundo, se uma sociedade deseja ser
respeitada e acreditada, ela precisa criar mais do que apenas obras de arte ou de artesanato
- as primeiras geralmente copiadas nos trabalhos elegantes dos grandes centros culturais, as
segundas geralmente baseadas em tradições que, tendo perdido suas funções primárias,
não oferecem mais do que uma satisfação superficial ou uma impressão exótica. Em outras
palavras, a sociedade deve criar novas formas de vida, adaptadas às novas circunstancias - e
uma nova riqueza; ela deve mostrar sua força e sua habilidade de enfrentar os desafios vitais
do consumo moderno, a mudança de tecnologias, a competição mundial.
Para conseguir tais objetivos, o museu deve tornar-se mais do que é atualmente. Deve
tornar-se um agente ativo do desenvolvimento geral, e isto porque ele é um símbolo e um
repositório da identidade cultural. Mas, para tanto, o museu deve parar de concentrar-se
unicamente na cultura, no seu sentido mais artístico e tradicional, na conservação da
identidade natural e cultural apenas para seu próprio interesse, na aquisição e apresentação
de segmentos de saber científico. O museu, tal como eu o vejo, deve tornar-se um meio
original de comunicação, usando - já que é o único capaz disto - a linguagem dos objetos
reais para contribuir, entre outras coisas, para o desenvolvimento global da sociedade à qual
pertence.
Nesta perspectiva, podemos identificar quatro diferentes funções para este novo museu:
1. ser um banco de dados sobre objetos, servindo às demandas do presente e do futuro,
no que se refere à ligação com as raízes da comunidade, e prestando informações úteis à
ecologia total do homem contemporâneo. Isto é o que fez a Índia de Gandhi, quando
estabeleceu a sua política da indústria caseira, que incluía um museu especial para
demonstrar aos artesãos contemporâneos e aos seus clientes as técnicas do passado;
2. atuar como observatório de mudanças, testemunhando o impacto da modernização à
luz dos valores e costumes existentes (às vezes, ameaçados de desaparecimento). Isto
porque uma comunidade deve estar sempre pronta a intervir, por sua própria conta e
com suas armas bem preparadas, nos planos e políticas que ameacem seus padrões
morais e de vida.
3. tornar-se um laboratório, um workshop, um local de encontro, à disposição de toda a
comunidade - como incentivo à iniciativa, a fim de permitir às pessoas imaginar,
experimentar, realizar (ainda que em escala limitada) atividades criativas, mostrando o
que a comunidade pode realizar por si mesma e para si mesma, e ao mesmo tempo
levando em consideração e prontamente assimilando, por meio de escolha
independente, todo material ou informação útil que possa ser recolhido do mundo
exterior.
4. oferecer uma vitrine do presente estado da comunidade, com seus tesouros do
passado, sua consciência do presente, seus planos e projetos para o futuro, iluminados
pelos valores que ela considera importantes para a sua continuidade e expansão.

MUSEUS E DESENVOLVIMENTO

A seguir, apresentarei apenas ideias pessoais. Naturalmente, não quero dar conselhos aos
profissionais, nem dizer-lhes como deveriam dirigir suas instituições. Por outro lado, as
próprias condições de desenvolvimento das minorias aqui representadas são tais que eu não
me aventuraria a apontar uma solução única para todos os seus problemas.
Que museu poderia preencher todas essas novas funções, sem necessariamente abandonar
as antigas - pelo menos as que não se chocassem com o seu novo papel?
Em primeiro lugar, eu eliminaria a solução inadequada de se usar um rótulo - como
Ecomuseu - na esperança de que isto seja suficiente para renovar os velhos conceitos e as
velhas instituições. Em artigo publicado na revista Gazette, da Associação Canadense de
Museus, eu já relatei a história desta palavra, e a subsequente confusão que resultou em
várias teorias sobre a definição de Ecomuseu. Eu não repetirei isto aqui. Em vez disto, vamos
utilizar o diagrama fundamental do velho museu, para construir aqui um novo instrumento,
adaptado às necessidades das comunidades de hoje - as quais ainda teremos que definir.
Como os demais instrumentos de desenvolvimento, o novo museu deve ser capaz de atuar
simultaneamente em três direções: ação, capacitação e investigação. Não desejo classificar
esses três caminhos, nem atribuir-lhes prioridades. Cada um é independente dos outros;
nenhum pode ser implementado sozinho. Assim, o novo diagrama será organizado
respeitando-se este princípio fundamental, muito pouco seguido pelos museus já existentes
(os quais normalmente se concentram na pesquisa, às vezes desenvolvem programas de
capacitação e quase nunca embarcam na ação).

UMA LINGUAGEM ÚNICA
O museu (conceito este extensivo a todas as exposições, sejam elas permanentes,
semipermanentes, temporárias ou itinerantes) fala a linguagem das coisas reais, tal como
afirmou Duncan Cameron em 1970. Este é, talvez, o único ponto em comum entre o velho e
o novo museu.

Museu Clássico Museu desenvolvido pela comunidade

edifício território

coleções patrimônio (natural e cultural), com todos os
recursos disponíveis na comunidade

disciplina(s) científica(s) desenvolvimento integral

especialização approach interdisciplinar

público (voluntário, amador, cativo) população da comunidade /
visitantes da comunidade

busca do conhecimento (educação, lazer) capacidade de iniciativa criadora


Vocês perceberam que eu não mencionei a conservação. Ela existe enquanto função do
museu clássico, mas não (penso eu) no novo conceito de museu. Naturalmente, será
necessário conservar alguns objetos, mas não como meio de atingir os objetivos do museu:
não para constituir uma função específica, útil em si mesma. Para mim, a herança natural do
passado deve ser considerada como material cru ou semi-refinado, deixado à disposição dos
nossos contemporâneos e de seus sucessores, para permitir-lhes construir o seu novo
projeto.
Vamos falar em forma de parábola: um homem desejava construir uma casa, para si e para a
família. Após selecionar e adquirir um pedaço de terra e demarcar o seu território, decidiu
estabelecer normas e princípios gerais para a administração de sua futura casa. Depois,
selecionou - provavelmente numa loja ou construtora local, os materiais necessários: pedra,
cimento, tijolos, etc., e também os elementos para o telhado. Quando as paredes e o teto
estavam de pé, ele escolheu as janelas, as portas e o revestimento interno. Então começou
a equipar sua casa com canos, eletricidade, gás, etc. Depois decidiu que papel usaria nas
paredes de cada cômodo, e que mobília usaria...
O que este homem estava fazendo constitui um típico processo cultural, com o uso de
objetos reais. Num museu, como numa loja, devemos ser capazes de selecionar os materiais
para as nossas decisões, para reconstruir constantemente nossa sociedade e o futuro de
nossas crianças.
DEFININDO OS OBJETIVOS DO MUSEU

O que desejamos de nosso museu?


• aumentar nosso conhecimento - mas para quem, e com que objetivos?
• incrementar o turismo, ou educar os turistas?
• atuar de forma pedagógica, como veículo auxiliar da educação escolar ou da educação
de adultos?
• agradar à elite, ao publico educado, aos amadores cultos?
• ajudar o curador a tornar-se um 'colecionador particular' com dinheiro público?
• ajudar o desenvolvimento global - o que inclui lidar com a inevitável aculturação?
Qualquer que seja a resposta, deve ser clara, honesta e explícita.

DEFININDO OS MÉTODOS

É lógico que não existe modelo para o nosso museu. Vou dar-lhes um exemplo do que
aconteceu no Creusot. Aquele museu foi considerado, durante anos, como uma espécie de
local de peregrinação para os profissionais de museus que buscavam novas ideias e novas
soluções. Esses 'peregrinos' não apenas invadiram uma instituição em desenvolvimento -
provocando sérias perdas de tempo e de energia para os membros da equipe e para os
voluntários - mas também entenderam de forma equivocada a maioria das características
importantes do Creusot. Entre os museus franceses, o resultado foi surpreendente: velhos e
novos museus copiaram o que existia no Creusot, sem dar-se conta de que aquelas
características eram consequência de circunstancias locais. Os estatutos, que eu redigi após
longas e difíceis negociações com os governos locais, as associações, os sindicatos, as firmas,
a administração central, foram considerados compulsórios para todos os ecomuseus
'genuínos', pela Direção de Museus de França!
Devemos, ao contrário, estabelecer para cada caso um método adequado, e mantê-lo
suficientemente flexível para acompanhar a evolução do projeto e da própria comunidade.
Este método deve incluir os seguintes itens:
1. despertar, selecionar, treinar líderes, ativistas, voluntários e profissionais da própria
comunidade;
2. escutar a comunidade e provocar suas reações, por meio de ações experimentais (que eu
chamaria de ações-pretexto);
3. promover a cooperação entre atores, em vários campos e disciplinas;
4. criar, entre as pessoas, uma situação de autoconfiança (condição essencial para a
tomada de iniciativas), por meio da criação de grupos especializados, da realização de
ações-teste - particularmente exposições preliminares e exploratórias, mesmos que estas
sejam simples e amadorísticas;
5. implementar técnicas de exposição básicas e sofisticadas, usando materiais e talentos
locais, refinando a linguagem do objeto, seu vocabulário, sua gramática;
6. adotar técnicas e realizar projetos de educação e de informação, respeitando o que eu
chamaria de 'as subjetividades simultâneas';
7. e por fim, aumentar e aprofundar a capacidade de observação, avaliando criticamente o
patrimônio e os valores do passado e também as influencias vindas do exterior; buscar
novas oportunidades, etc.

DEFININDO OS MEIOS

Podemos classificar os meios para chegar à construção e ao funcionamento deste novo


museu em três fases básicas:
• uma ajuda inicial, com dinheiro e apoio técnico vindos de fora da comunidade. O
processo deve ser acompanhado em seus estágios iniciais;
• uma associação entre o maior número possível de pessoas e corporações ou agencias do
poder público e privado, que estejam - ou que deveriam estar - sensíveis aos objetivos
do museu;
• finalmente, logo que seja possível, a criação de uma auto-estrutura de financiamento,
que permita à comunidade expressar-se livremente e utilizar o museu da sua própria
maneira.
Devemos sempre ter em mente as enormes diferenças existentes nos meios disponíveis aos
museus de diferentes países, em termos de mão de obra, capacidade técnica e financeira.
Mais uma vez, eu diria que não deve haver modelos, e que especialistas de um país
geralmente não tem utilidade em outro país. Devemos também lembrar que o novo museu
é a expressão de sua comunidade: muito dinheiro pode asfixiar a instituição, dando-lhe uma
péssima imagem entre os membros da comunidade.

A MENSAGEM POLÍTICA DO MUSEU

Cada comunidade atual quer ser capaz de dizer: 'eu fiz o meu museu, logo, eu existo'. Eu
sinto muito, mas para mim tal afirmativa não tem sentido, além do impacto imediato,
sentimental e temporário das atividades de abertura do museu. Nem todo museu pode
desempenhar correta e efetivamente o papel de agente necessário da expressão política, da
existência e da vitalidade de uma comunidade.
Em primeiro lugar, a comunidade, como um todo, deve reconhecer-se plenamente em seu
museu; em segundo lugar, ela deve fazer uso dele, como instrumento de seu próprio
desenvolvimento; em terceiro lugar, ela deve controlá-lo permanentemente. Finalmente, eu
não acredito que exista uma 'revolução permanente'.
Este novo conceito do museu servindo aos interesses do desenvolvimento comunitário pode
até ser revolucionário. Mas não devemos tentar preservar para sempre este movimento de
renovação: com o tempo, o museu tenderá a tornar-se uma instituição 'normal', seja porque
perderá, com o passar dos anos, sua originalidade e criatividade, seja porque o
'establishment' conseguirá assumir o seu controle, ou mesmo porque o movimento da
museologia, como um todo, evoluirá na direção do 'museu revolucionário'.

Palestra proferida durante o Encontro ICOM/UNESCO sobre Museus e Comunidades.
Jokmokk, Suécia, junho de 1986.
Publicado em inglês no livro Okosmuseumsboka, de J. A Gjestrum e M. Maure.
Comitê Nac. do ICOM para a Noruega, 1988: 33-40.
Publicação em português autorizada a T. Scheiner pelo autor e pelo editor.

Tradução de Tereza Scheiner, em agosto de 1992.

Você também pode gostar