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São Paulo, segunda-feira, 10 de setembro de 2001

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BORIS FAUSTO

Tolerância e religião
Não é demais lembrar que o direito à livre expressão
religiosa e, mais do que isso, o direito de duvidar ou de negar
a transcendência, resultaram um longo e penoso processo no
mundo ocidental.
Embora a Igreja Católica e o Estado nunca tenham sido
entidades que se confundiam, o peso representado pela igreja
e o reconhecimento de uma religião oficial estiveram na base
de violências de toda espécie, de que a Inquisição, as
Cruzadas, as guerras religiosas, após o surgimento do
protestantismo, são os exemplos mais conhecidos.
A nítida distinção das esferas civil e religiosa tem raízes no
pensamento liberal e ganhou corpo a partir do século 19. No
Brasil, os pais da República, liberais ou positivistas, foram
os responsáveis pela separação. A Constituição de 1891 e
leis posteriores, ao separarem a igreja do Estado,
estabeleceram o casamento civil, atribuíram aos municípios a
administração dos cemitérios, assegurando neles a liberdade
de culto, criaram o registro civil do nascimento e óbito das
pessoas e declararam que seria leigo o ensino ministrado nas
escolas públicas.
Entretanto, o processo de dessacralização do mundo, que
parecia inexorável, não chegou a se completar. As angústias
do ser humano, contendo interrogações sobre o sentido da
vida e a finitude, não foram resolvidas por nenhuma
"religião laica": a maior delas -o comunismo, de inspiração
soviética ou não- esboroou, levando a uma difícil, mas
salutar, revisão do pensamento dos crentes e à teimosia de
um punhado de órfãos.
Esse renascer religioso favoreceu a ampliação das
modalidades de crença, a quebra do monopólio da Igreja
Católica nos países de tradição luso-ibérica, num quadro de
pluralismo religioso, em princípio positivo.
Infelizmente, ao lado desse quadro, a intolerância persiste no
mundo de hoje. Em vastas regiões do globo, o islamismo
subsiste como religião de Estado, possibilitando a
perseguição dos dissidentes, embora a situação varie de um
país para outro. O caso do Afeganistão, em que o fanatismo
fundamentalista levou à discriminação brutal das mulheres,
impedidas de ter acesso à educação e a cuidados médicos,
assim como à destruição de bens culturais, representa um
exemplo extremo de intolerância. Lembremos aliás, nos dias
que correm, o processo contra um grupo de pessoas, sujeitas
à pena de morte, sob a acusação de estar difundindo o
cristianismo.
Entretanto, o mundo ocidental não está imune à intolerância
religiosa. São exemplos as guerras balcânicas e, em escala
menor, mas não menos condenável, a luta entre católicos e
protestantes na Irlanda do Norte. Os jornais da semana que
passou estamparam cenas de crianças católicas aterrorizadas,
impedidas de seguir seu caminho para a escola. São vítimas
bem vestidas, mas nem por isso deixam de ser vítimas.
Num momento em que a questão racial, justificadamente,
concentra todas as atenções, convém lembrar que as
injustiças deste mundo não se reduzem a ela; no leque das
injustiças, a discriminação religiosa tem também um lugar
privilegiado.

Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.

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