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Poupança 950

entre os Kwakiutl e é conhecida pelo menos de alguns Salish, zação tem recebido atenção crescente nos últimos anos, envol-
Haida e Tsimshian. O fato significativo é que o empréstimo vendo a a,Plicação de análises de insumo-produto, programação
e a retribuição não fazem parte da distribuição no potlatch. linear e varias técnicas desenvolvidas pela pesquisa opera.cional.
São preliminares e realizados com a finalidade de. acumular Os problemas relativos ao bem-estar social envolvem conside-
as somas necessárias à distribuição. Dawson reconheceu isso rações quase idênticas. Nesse caso, pode-se falar em poupança
e, mais recentemente, Curtis e Murdock verificaram-no clara- quando o aumento do bem-estar da sociedade como um todo
mente" ( The nature of the potlatch. In: American anthropo- não é feito em detrimento do bem-estar individual.
logist. 1938. v. 40, p. 353 ).
D. Esse termo pode ser empregado, em todas as quatro acep-
D. 3. Diferenças reais de interpretação surgiram em grande ções, sem referência a dinheiro ou bens materiais. Em econo-
parte como resultado do contraste que o potll.l.tch dos Kwakiutl mia, a primeira dessas definições tem recebido sistematicamente
do sul apresenta quando comparado com formas e práticas maior destaque, uma vez que as características estatísticas e
entre outras tribos da costa noroeste. Foram principalmente financeiras da moderna sociedade industrial transformam a esti-
os Kwakiutl do sul que realizaram as contendas destrutivas, mativa da poupança sob formas não monetárias numa tarefa
"lutando com propriedade" num grau e por motivos raramente muito difícil. Entretanto, os anos do pós-guerra provaram que
gratos a seus vizinhos. E , se a análise de F. Boas está correta, as poupanças de dinheiro e bens materiais podem substituir-se
eles formavam o único grupo que encarava seus presentes como mutuamente (o que foi demonstrado por uma relação inversa
empréstimos. entre dispêndios em bens de consumo duráveis e poupanças
H. G. Barnett monetárias). t de esperar que no futuro esse problema des-
Ver também: DOM (também DOAÇÃO). perte atenção ainda maior.
Robert Ferber
Ver também: CONSUMO; EFICI~NCIA; FUNÇÃO CON-
Poupança (Saving) SUMO (também FUNÇÃO POUPANÇA) ;
PROPENSÃO A CONSUMIR (também PRO-
A. O termo poupança designa: a) o processo de acumulação PENSÃO A POUPAR).
de dinheiro ou bens materiais para uso futuro; b) o fluxo
de dinheiro ou recursos que, através desse processo, é acumu-
lado durante determinado período; c) o processo ue econo-
mizar ou conservar recursos; e d) os recursos conservados Povo (Filologia)
por tal ato de economizar.
A. Tanto o significante' português povo quanto o significado
B. Em economia, a poupança no sentido a é tratada como importam para a tentativa de definição do termo. Os diciOná-
renúncia ao consumo no presente com o objetivo de acumular rios correntes nas línguas modernas de cultura levam ao grego
haveres. A poupança no sentido b é o resultado desse processo. e ao latim no caso em apreço. Acresce que os dicionários enci-
Em termos analíticos, "todos concordam com o fato de que clopédicos ou enciclopédias gerais modernos pouco ou nada
poupança (no sentido b) significa o excesso de receita sobre dizem para uma conceituação da matéria. Em verdade, uma
dispêndios em consumo" ( KEYNES, J. M. The general theory busca revela que apenas em política, politicologia. ciência polí-
of employment, interest and money. London, Macmillan, 1936. tica e, em especiál, direito constitucional, o significante e o
p. 61), definição ·usada por órgãos governamentais como base significado se alçam à categoria de conceito com valor termi-
para estimativas das poupanças dos consumidores. Uma defini- nológico, cuja definição é relevante para esses ramos do saber.
ção alternativa, presumivelmente mais significativa para o Isso explica, mas não justifica, por que seu tratamento é evitado
estudo do efeito da renda sobre o comportamento do consumi- nas enciclopédias de ciências sociais e afins.
dor, foi fornecida por D. H. Robertson ( Saving and hoarding.
In: Economic fournal . 1933. v. XLIII, p. 399-413). Segundo B . 1. Em grego. Demos são propriamente "os habitantes de
ele, a pou,Pança corrente é equivalente à renda obtida no uma área, região", razão por que, numa relação em que a
último penodo, subtraída~ as despesas de consumo correntes. ênfase semântica ora é sobre o continente, ora sobre o con-
Embora ambas as definições sejam valiosas para certos aspectos teúdo, ora é mais "área, em geral povoada", ora "povo que
da teoria econômica, seu valor empírico é duvidoso. Vários habita certa área". Mas laós é também povo, com freqüência
estudos estatísticos demonstraram que a definição de J. M. "gente do povo, massa", por vezes "massa de soldados, de
Keynes tende a fornecer estimativas inferiores à poupança real. combatentes", "multidão de homens (sós, sem mulheres, no
Por outro lado, a definição de D. H. Robertson só tem signifi- Novo Testamento) " . Quando se trate de povo como "multidão
cação quando os períodos de pagamento são freqüentes e padro- de gente indiscriminada sexual, social ou etariamente", ókhlos
nizados. As estimativas diretas parecem constituir o enfoque é a palavra. Ademais, éthnos pode responder a "raça, nação,
mais conveniente. povo, tribo" ou a "classe, corporação, raça de animais, gentes
ou animais de um sexo" vinculados entre si por vida em comum,
C. A definição c pode ser parcialmente extraída da definição ou por características sociais em comum, ou por traços culturais
a, já que o processo de acumulação de recursos através do comuns afeiçoados pelo viver comum: isso veio a gerar con-
adiamento do consumo realmente os conserva para o uso futuro . fusão nos usos modernos, sobretudo antropológicos, do adjetivo
Isso se Dplica particularmente a instalações produtivas, na derivado étnico (espanhol étnico, italiano etnico, francês
medida em que o adiamento de sua utilização pode conservá-las ethnique, inglês ethnic, ethnical, alemão ethnik) , ora tomado
para objetivos produtivos futuros. Independentemente dessa como cultural, ora como físico-genético, ora como histórico-
faceta, permanece, todavia, o problema da poupança ou con- social. Por fim, o grego - sobre o radical do verbo gígnomai
servação de recursos enquanto são alcançados níveis de pro- "fazer-se, ser, chegar a ser; nascer; sair de; pertencer a, ser
dução determinados ou, mais amplamente, níveis de bem-estar de; tornar-se", a que está associada génesis, "gênese, causa,
social determinados. Esse problema econômico encerra também princípio, origem da vida ; produção, geração, criação; nasci-
um problema de engenharia, já que a poupança pode ser mento, origem; raça, espécie; geração, grupo etário, idade" -
efetuada através de uma melhor alocação de recursos e de oferece ainda geneá, "gênero, espécie; geração, família; raça,
processos produtivos mais eficientes. Esse problema de otimi- nação, povo, origem; nascimento; pátria, lugar de nascença";
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genéthlé, "raça, família; descendencia, posteridade; lugar de (donde a eminência do termo tribunus, com seus epítetos clas-
nascença", e génos, "nascimento; origem, descendência;. raça, sificatórios) que, cedo, na antropologia empírica dos primeiros
gênero, espécie; família, parentela; filho, rebento; povo, nação, contatos interétnicos dos descobrimentos, renascia nos empre-
tribo; sexo; geração, idade, grupo etário". gos verbais corno eruditisrno nas línguas de cultura daqueles
contatos, ao lado, aliás, de natio, em geral no plural nationes.
B.2. Vê-se que em grego - e em latim se deu o mesmo - De fato, natio - substantivo feminino feito sobre ·o radical
houve, ao longo da evofução semântica registrada no léxico, do supino natum do verbo depoente nascor "eu· nasço" - era
conotação especial: a) ou no número dos componentes; b) ou usado para os povos pensados como provindos, cada um, de
na consangüinidade; c) ou na convivência local continuada; um só gerador, por conseguinte, de nascimento contínuo co-
d) ou na convivência continuada de populações afins e locais mum. Já em baixa época, o pensamento judaico e sobretudo
próximos; com isso, houve relativa especialização conexa: a) cristão dizia nationes para os pagãos, os gentis, o gentio; nas
laós, b) génos, c) demos e d) éthnos, ficando e) ókhlos várias línguas modernas esse fato semântico continuou o uso
ligado ao conceito de massa. Uma noção como população é eclesiástico já registrado na Vulgata.
claramente tardia, analítica e derivada - enoikoúntes, literal-
mente "os [homens] que estão dentro de área habitada deter- D. Nas línguas românicas. Vê-se que a noção de povo foi
minada". significada por vários significantes em latim, cada um dos quais
realçava, corno denotação, uma conotação implícita ou explícita
C. Em latim. O latim parece oferecer um repertório mais rico em populus, já na direção da quantidade dos componentes, já
do que o grego. Populus é de uma raiz ple-, de pleo "encho": na direção dos vínculos, naturais ou outros, entre os compo-
é "o que enche, os que enchem, i. e., estão presentes, convivem nentes. Trata-se de urna rica matização semântica documentada
numa área". Se essa noção é discriminada em função das presu- por um enorme exernplário, cujo crivo é difícil; por recobrir
midas origens sangüíneas, tem-se gens "gente", melhor, gentes uma evolução histórica dos significantes e dos significados
"gentes", os descendentes de um mesmo grupo sangüíneo, desde os primeiros tempos do latim escrito até os ensaístas
grupos fundadores do populus romanus (povo romano), acor- e tratadistas cristãos, renascentistas, neoclássicos, até o séc.
dados ·entre si nessa unidade maior através do jus gentiwn XVIII e mesmo começos do séc. XIX.
(direito das gentes), melhor, com Tácito, jura gentium (direi- Entretanto, a realidade falada, sobre a qual se ergueram
tos das gentes), nesse sentido primeiro de direitos de convívio as línguas românicas (num extremo de diferenciação localista
dentro do povo romano (que, ampliando-se com as conquistas seguida de unificações tendencialmente nacionais), postula que:
e dando o modelo futuro, passou a equivaler a direito interna- a) algumas palavras dessa sinonímia não foram usadas no
cional [público e/ ou privado]); são essas gentes fundadoras, românico, i.e., não pertenciam aos usos falados do chamado
que têm entre si o connubium - relação de casamento endo- latim vulgar: tribus, stirps, genus (há outro senUdo que dará
gâmico, que cairá -, que se originam da patria, a terra dos o português genro e sua contrapartida nas línguas românicas);
pais antepassados, razão por que são as gentes patriciae. As b) algumas palavras dessa sinonímia tiveram sobrevida falada
gentes outras que vão com elas conviver, de origem não pa- restrita a certas áreas (é o caso de plebs, plebem, italiano pieve,
trícia, i . e. , não provindas da mesma patria (i . e. , sem terem "paróquia"; veneziano p;ove, genovês ceive, ladino pli, pliof);
antepassados remotos nobilitados por terem nascido no mesmo c) algumas concorreram com a principal, rápido assumindo
torrão primevo), essas novas gentes serão gentes plebeiae, i. e., matiz menos abrangente (é o caso de gens, gentem, italiano
ligadas à plebe. Plebs é o povo, mas sem os patrícios, sena- gente, sardo z.ente, romeno ginta, pro:vençal gent-z, francês gent,
dores e éqüites, assim, pois, a parte miúda do povo, a arraia- catalão gent, espanhol gente, português gente); d) uma so-
miúda, o populacho, a plebe. brevive corno esforço de eruditos (eclesiásticos) sobre· o româ-
O vocábulo plebs é da mesma raiz da ple- de populus, afim nico para salvar a noção (e talvez o instituto): com efeito, o
do grego plethos (multidão). Mas em plebs a noção de povo tratamento fonético de família, familiam acusa algo assim, no
comum é oposta à inclusão de senadores e cavaleiros, enquanto romeno familie, provençal familla, frances famille, espanhol
populus inclui até senadores e cavaleiros. A sigla mais que família (compare-se filia ~ hifa), português família ( compa-
consagrada nas epígrafes romanas de SPQR - senatus populus- re-se filia ~ filha). Restam, como vivos e extensivos no româ-
que romanus - é ambígua, pois ora é interpretada como hen- nico, populus, populum e natio, nationem, que ainda assim
díade, figura de retórica que desglosa em dois entes um só se distinguem entre si.
("as armas e os barões assinalados"), ora é interpretada corno O tratamento fonético de natio, nationem presume um tempo
a caracterização perfeita da res publica - potestas in populo, de divulgação popular românica mais tardio do qu~, por exem-
auctoritas in senatu sit, na fórmula de Cícero (que a potestade plo, ratio, rationem, qu~, por sua vez, tem dois tempos, no
esteja no povo, a autoridade no senado). sentido de "intelecto e afins" e no sentido de "distribuição. e
Sempre conexos com algumas das conotações de populus afins": italiano nazione, ragione, razione; espanhol nación,
(povo), além de gens e plebs, o latim apresentava natio, genus, razón, ración; portugues nação, razão, ração; francês nation,
stirps, família, tribus. Na verdade, essa falsa sinonímia provinha raison, ration, e assim nos demais casos.
da excessiva abrangencia e inespecificidade de populus. Usado Populus, populum é fonte do italiano populo, sardo pobulu,
este com a conotação de "meu povo", era familia que o dizia, velho-veneziano puovolo, velho-lombardo povoro, povero, ro-
pois que, figuradamente, era não só "o grupo social vinculado meno popor, reto-rornanche pievel, provençal poble-s, francês
pelo conúbio e sua geração, mas também por cada tamulus
peuple, espanhol pueblo, puebro, catalão poble, português povo.
dos muitos que serviam sob-a direção dos matrona e o comando
do pater, o pater famílias". Mais episodicamente, stirps, tirada Em verdade, para o povo mesmo, povo era uma forma românica
da terminologia botânica (do verbo stare, donde a idéia de de populus. Se esse é o estado de coisas oral, no escrito não
repouso, fixidez de tronco com seus esgalhamentos e ramifica- há solução de continuidade entre o latim escrito e as futuras
ções, em suma, de árvore genealógica), ou genus, da linguagem línguas românicas escritas e de cultura. Já o cristianismo, com
biológica e, cedo, lógica "conjunto de afins da mesma geração sua vocação missionária, começou a especializar o sentido de
ou base, tipo, semelhança", podiam cobrir aspectos da noção alguns eruditisrnos, o que a erudição medieval continuou, ofe-
genérica do povo. Já tribus manteve por longo tempo urna tal recendo aos descobrimentos e ao Renascimento, através do di-
força significativa como um "dos três terços em que se dividia reito das gentes, da emergência do Estado nacional, do huma-
o povo romano para o exercício de representação e comícios" nismo, cientificisrno e evolucionismo, da antropologia, um sem-
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número de distinguos semânticos: vão-se buscando, por exem- das . constituições dos tempos modernos. Trata-se, por conse-
plo, a horda, ou o clã primitivos, as tribos, ou ramos, os troncos guinte, de um fato empírico, cuja delimitação (e caracteriza-
étnicos, as raças, as nações, as etnias naturais e históricas, a ção) teve de ser feita, para que a interpretação e exegese
nação moderna - aí, em tudo, há povo, mas há conceitos ou de seu emprego não fossem passíveis de controvérsia, equívoco
denotações que se impõem ainda, já na linha da quantidade, ou mesmo fonte de desavenças e lutas. Por extensão, mesmo
já na da natureza dos vínculos: por exemplo, população (e os Estados que não dependem de constituição formalmente
suas co-morfológicas em línguas de cultura, românicas ou anglo- estabelecida e transmitida por texto definido passam também
saxônias ou eslavas etc.) e nacionalidade (repitam-se os parên- a referir-se ao seu povo.
teses anteriores). Nestes casos, a definição mais abrangente parece sugerir
três componentes: a) um conjunto de indivíduos; b) que
D.l. O caso de população é pitoresco: em latim, populatio, constituem algo; c) delimitado por um território legalmente
onis é abonada em lúlio César, em Tito Lívio, no agrônomo definido por instituições políticas: esse algo é que é, tautolo-
Columela, no natura ista Plínio, mas em conexão com o verbo gicamente, o povo - o povo é o conjunto de indivíduos que
depoente populari, significando, por isso, "devastação, depre- constituem um povo delimitado por um território legalmente
dação, estrago, saque, saqueio, presa, apresamento, corrupção, definido por suas instituições políticas; esse algo pode ser,
corrompimento". Só com Célio Sedúlio, poeta cristão, já por então, mais que povo: o povo é um conjunto de indivíduos
470 d. C., é que a palavra tem o sentido moderno geral de que constituem uma nação definida por um território legal-
aspecto quantitativo de povo - sentido que se fará indispen- mente delimitado por instituições políticas. Sobrevêm, nesta
sável às ciências geográficas, demográficas, estatísticas. Mas altura, os casos polares limites, do tipo a) povo cigano, povo
não há por que crer que entre Sedúlio e os usos modernos de judaico, povo palestino, povo curdo etc.; ou do tipo b) povo
população tenha havido continuidade semântica. Em inglês, soviético. Sem entrar no mérito do conceito de nação aqui
population aparece timidamente por 1612, generalizando-se empregado, a extensão da definição de povo, nesse contexto,
apenas a partir de 1803; em francês, ocorre em Voltaire, por não é passível de controvérsia, pois em verdade o território
1757; em português parece ser de 1785 etc. Mas nacionalidade, delimitado e as instituições políticas serão tais que disporão
o caráter, a qualidade, o vínculo de alguém (ou alguma coisa) sobre seu povo, não só quanto aos indivíduos que gozam do
com sua nação, não é menos pitoresca; em inglês aparece em estatuto de nacionais, mas também quanto aos indivíduos que,
1699, mas como "caráter do que é próprio a uma nação indíge- pertencentes a outros povos ou nações, convivem com seus
na". J.-J. Rousseau é que empregará nationalité no sentido mo- pacionais dentro do território nacional em causa e dentro dos
demo, isso pouco antes êie 1778, o que o inglês nationalíty limites legais nacionais, até mesmo quanto àqueles que gozam
consagrará a partir de inícios do séc. XIX, por cujos meados do estatuto de exterritorialidade ou extraterritorialidade, pois
aparecerá o português nacionalidade. esse gozo não poderia existir se não fosse garantido pelo direito
nacional do território em causa e o direito das gentes, reconhe-
E. No presente. Todas as palavras até aqui consideradas em cido implícita ou explicitamente nas instituições políticas do
função do conceito povo vivem na linguagem escrita de cultura, povo em causa.
e vivem por vezes até como meras palavras históricas, quando, Em contextos semelhantes, o valor terminológico de povo é
por exemplo, um helenista se refere a demos como o demo quase inequívoco - já que sobre cada indivíduo, de nascituro
!tico etc. Mas povo (e seus equivalentes formais, ou signifi- a morto, há toda uma rede de instituições políticas (morais,
cantes, nas diversas línguas, românicas ou não, aqui conside- jurídicas etc.). Se alguma possibilidade de dúvida perdura,
radas) é avPrbado, nos dicionários, com aproximativamente os ela se desloca para as demais noções conexas - indivíduo,
seguintes sentidos: a) conjunto de homens que vivem em território, instituição política e, sobretudo, nação. Historica-
sociedade - e, figuradamente, seres quaisquer antropomorfi- mente, com exceção de nação, esses elementos têm pouco so-
zados; b) conjunto de indivíduos que constituem a soma dos frido de mudança substancial. Já nação, no presente, continua
habitantes de uma área, região, Estado etc.; c) conjunto da- a encerrar todas as fases de sua gama semântica evolutiva:
queles indivíduos que, habitantes de um Estado, gozam dos nasc~mento, conjunto de nascidos de fonte comum ~ grupo hu-
traços nacionais, i. e., são tidos como cidadãos, súditos (ou mano autônomo nascido de fonte comum ~ conjunto de gru-
afins) desse Estado; d) conjunto de nacionais de várias na- pos nascidos de fonte comum e com aspirações comuns ~ con-
ções ou várias nacionalidades que se articulam num mesmo junto humano organizado de tal forma que, tendo ou alegando
Estado, multinacional, multirracial; e) conjunto de pessoas ter tido fonte comum, ou vicissitudes comuns, ou vivências
que não habitam a mesma área, região, país, mas se consideram comuns, diz aspirar a algo comum ou diz projetar algo em
ligadas por origem e/ ou instituições religiosas, morais, culturais, comum.
e/ou qualquer outro vínculo; f) conjunto de cidadãos de um
país em relação aos seus governantes e administradores; g) F. ~ como termo final dessa evolução semântica que, nas
conjunto de pessoas que pertencem à maioria, i.e., os pobres, o condições modernas, nação é a condição de ser de um povo
proletariado, o operariado, o campesinato, os não-proprietários; situado no espaço e organizado na sua estrutura. Esse caráter
h) lugarejo, aldeia, vila, povoação; o português usou de re- dominante de soma ou somatório de indivíduos determinou,
curso morfológico alternativo, póvoa, paralelo ao espanhol desde o início da formação dos Estados modernos, a necessi-
puebla, semi-arcaizados; i) o terceiro "Estado", por oposição dade de um conceito de valor terminológico derivado, nacio-
ao clero e à nobreza. nalidade, para evidenciar o caráter jurídico, legal, vincular,
Em quase todas as ciências, em especial as sociais, o conceito abstrato que a nação dá a cada pessoa ou coisa de seu âmbito,
de povo é fluido; isso não impede o seu uso, nos vários signi- nacionalidade que, ao contrário de nação (sempre pensada
ficantes referidos, inclusive no de povo (e seus afins nas em termos quantitativos advindos de povo), não encerra cono-
Unguas de cultura) ; mas esse uso pede, em cada situação tação quantitativa.
semântica geral, um esforço de conceituação ad hoc, para ter ~ óbvio que no campo do léxico, os usos figurados jamais
valor terminológico. Mas em ciência política, em direito cons- desaparecem. Compreende-se, assim, que se possa dizer povo
titucional e disciplinas afins, povo tem emprego tradicional, judaico, nação judaica, povo cigano, nação cigana e, por futu-
senão às vezes insubstituível; pois está integrado na redação ridade quase certa, povo namíbio, nação namíbia, por reivindi-
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cação povo palestino, nação palestina, povo corso, nação corsa cracia, tanto na teoria, como na prática, designa sob o nome
etc. O caráter de extensão ou de figuração desses casos parece de povo, não é o povo real, no sentido físico da palavra,
não invalidar a oonceituação a que se chega para o geral dos constituído de todos os indivíduos que integram o grupo, mas
casos. um conceito de povo, i.e., uma sistematização abstrata de
Antonio Houaiss certos elementos extraídos do real, e a partir dos quais se
Ver também: POVO (Política). elabora a noção de povo" ( Traité de science politique. Paris,
LGDJ, 1952. t. IV, p. 105).
Coincide então a formulação do conceito político-jurídico
Povo (Política) do vocábulo com a constatação da existência de povo na quali-
dade de elemento integrante do sistema político, dotado de
A. A utilização, de modo indistinto, das acepções sociológica vontade e de interesses próprios. Todavia, o estabelecimento
e político-constitucional do termo povo - explicável pela ine- de requisitos de diversas ordens para a manifestação válida
xistência de critérios diferenciais universalmente reconhecidos dessa vontade e desses interesses reduz o povo àquela parceh
- pode ser fonte de equívocos e incompreensões, sobretudo da população que pode preenchê-los. Esta concepção estará,
se se tiver em conta que a primeira é, nitidamente, mais ampla assim, vinculada ao enunciado, em nível constitucional ou
que a segunda. Impõe-se, portanto, distingui-las, invocando doutrinário, das condições necessárias à participação do povo
os elementos identificados pelos cientistas sociais, de um lado, no processo político, não podendo, por isso mesmo, coincidir
e por juristas e politicólogos, de outro, para caracterizá-las, com a noção sociológica do termo, imune às formulações que,
ressalvando-se porém que tais elementos não são de aceitação aprioristicamente, o limitam.
nem generalizada, nem pacífica. Dar-se-á aqui maior atenção Além de concorrer para a distinção das duas acepções, este
ao exame do significado político-constitucional do vocábulo critério político-constitucional gera conseqüências para o pró-
e· de suas variações no tempo e no espaço. prio entendimento da palavra nesse campo.

B. Distinção entre a acepção sociológica e a política-consti- C. Decorrências do critério poUtico-constitucional. Um exa-


tucional. As ciências sociais de modo geral, e a sociologia em me da definição do termo em função de formas legais e dou-
particular, recorrem a critérios sobretudo de natureza quanti- trinárias preestabelecidas revela não só a diversidade, no tempo
tativa, étnica, cultural, lingüística, religiosa etc. para a concei- e no espaço, das faixas da população consideradas como cons-
tuação de povo. Examinam as condições reais em que se apre- tituindo o povo, como a elasticidade dos conceitos elaborados
sentam os agrupamentos humanos, procurando identificar os dentro dessa ótica.
elementos que concorrem para sua integração. Extraem da
observação do real os critérios para as suas definições, ora C .1. Variações no tempo. Remontando-se ao período áureo
utilizando-os isoladamente, ora conjugando-os. Se prevalece o da democracia ateniense, verifica-se que povo - na sua quali-
elemento quantitativo, tem-se povo equiparado a população, dade de participante do sistema governamental, capaz de eleger
i.e., à soma de indivíduos que habitam determinado território; seus representantes para a assembléia popular .(a Eclesia) -
se o realce é conferido ao elemento moral, à existência de era apenas a9uela parcela da população no gozo dos direitos
interesses e aspirações comuns, assim como à sua permanência privados e c1vicos. Dela se achavam excluídos, portanto, os
e defesa através dos tempos, assimila-se o termo à nação; se metecos (estrangeiros), os escravos e as mulheres, admitindo
predominam considerações de ordem étnica, igualam-se as no- a grande maioria dos estudiosos que dos cerca de 400· mil habi-
ções de povo e raça; se preponderam apreciações sobre a tantes daquela cidade-Estado, rto séc. V ·a.C. apenas 40 mil
estratificação social e a valorização de uma classe em detri- eram cidadãos, i.e., o povo no sentido político-constitucional
mento de outra, confunde-se povo com plebe, proletariado, aqui focalizado.
campesinato, maioria, contrapondo-se o vocábulo à elite, à Restrições ainda maiores são encontradas no início do período
burguesia, à minoria privilegiada etc. real de Roma, designando o vocábulo populus tão-somente a
Ilustra o emprego conjugado de alguns desses critérios a classe nobre, o patriciado (de patres, fundadores da pátria),
seguinte noção de povo: "Sociedade composta de um número ao qual era reconhecido o direito de votar e de ser eleito para
variável de grupos locais de relativa homogeneidade cultural a assembléia popular (a comitia curiata). Posteriormente, es-
que ocupem um território definido e tenham desenvolvido a tendeu-se o direito de voto (que não implicava o de ser ele-
consciência de sua semelhança" (ODUM, H. W. Povo. In: gível) aos plebeus, que, como homens livres, passam também
Dicionário de -iOciologia. Porto Alegre, Globo, 1974. p. 270). a ser considerados cidadãos romanos, multiplicando seus canais
Entretanto, a partir do momento em que há o reconheci- de representação nas fases republicana e imperial. A exemplo
mento de que povo é um componente do sistema político, do que se verificara na Grécia, a cidadania não era conferida
dotado de uma vontade distinta da soma das vontades indi- aos escravos, classe composta em grande parte de prisioneiros
viduais, é flagrante a insuficiência da observação de suas con- de guerra, calculados na península itálica no séc. 11 a.C. em
dições reais (físicas, sócio-culturais e espirituais) para carac- cerca de 12 milhões, contra 5 milhões de homens livres (LIMA,
terizá-lo nessa situação. Ela proporciona, porém, subsídios para M. de Oliveira. Hist61ia da cit:Jilização. 11. ed. São Paulo, Me-
construções abstratas, a exemplo do que ocorre com outras lhoramentos, s.d. p. 1.117).
noções-chave do direito constitucional e da ciência política. Na concepção de povo, encontrada não só em textos legais
E, neste ponto, deve-se salientar a necessidade de uma coope- como nos tratados de filosofia política dos períodos feudal e
ração estreita entre as duas disciplinas, a fim de que o conceito dos Estados absolutistas, parte da população continua segre-
gada, uma vez que ela não abrange a plebe, o populacho.
de povo seja elaborado não só em função de dispositivos consti- Tal noção restritiva surpreende à primeira vista, sobretudo se
tucionais e do funcionamento das instituições políticas esta- se considerar que, a partir dos sécs. XVI e XVII, os estudos
belecidas, mas também à luz de estudos relativos ao grau, às sobre os fundamentos da existência de uma vontade popular -
formas de sua participação efetiva no processo político e aos já admitida desde a democracia grega - conhecem um desen-
fatores suscetíveis de ampliá-la .ou restringi-la. volvimento ímpar, exercendo profunda influência na formação
Constitui, portanto, a natureza abstrata da noção político- dos Estados liberais. Entretanto, é precisamente pelo objetivo
constitucional do termo a linha de demarcação das duas acep- de captar-se a vontade popular, de difíc;il identificação segundo
ções. Na observação precisa de C. Burdeau, "o que a demo- o critério puramente sociológico, que são fixados certos requi-

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