Você está na página 1de 9

Problemas de (In) traduzibilidade em João Guimarães Rosa

Olga Belov Moreira


Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

Resumo
O presente artigo apresenta, de forma sucinta, as questões de (in) traduzibilidade no conto “A Hora e Vez de
Augusto Matraga”, contido em Sagarana, de João Guimarães Rosa. Primeiramente discursou-se sobre a teoria
concernente aos “Estudos de Tradução”, uma matéria interdisciplinar que veio a surgir como matéria autônoma,
apenas na segunda metade do século XX, apesar de a espécie humana sempre tentar transpor suas idéias, suas
palavras, de um idioma para o outro, isto é, “traduzir”. O caminho percorrido até o surgimento da disciplina foi
longo, tendo sido influenciada, ultimamente, pelo Desconstrutivismo, de Jacques Derrida e seus seguidores,
trazendo uma nova visão sobre os conceitos de signo lingüístico, criado por Saussure. Discursa-se, também,
sobre o estilo peculiar de Guimarães Rosa, adepto da inovação do léxico e da sintaxe. Finalmente, citam-se
alguns exemplos do “Cotejo de Tradução” com exemplos da versão em língua inglesa e de língua russa.

Palavras-chave: (In)traduziblidade – Desconstrutivismo - Descritivismo.

Abstract
The article brings a brief presentation of questions related to (non)translatability in the short story “A hora e a vez
de Augusto Matraga” in Sagarana, by João Guimarães Rosa. Firstly, it addresses the theory concerning
Translation Studies, an interdisciplinary subject which came up as an autonomous subject only in the second half
of the 20th century, despite the fact the human beings have always tried to transpose ideas and words from one
language to the other, that is, to translate. The path followed until the rise of the subject was long, and it has been
influenced lately by the deconstructivist Jacques Derrida and his followers, shedding a new light on the concepts
of linguistic sign created by Saussure. The article also discusses the particular style of Guimarães Rosa, an
innovator of the lexical forms and of the syntax. It finally mentions some examples of comparative analysis drawn
from English and Russian translations.

Key words: non-traductibility – deconstruction - descriptivism

O título deste artigo, “Problemas de (In)traduzibilidade em ‘A Hora e Vez de Augusto


Matraga’, de João Guimarães Rosa” nas versões de língua inglesa e língua russa”, recorre a
minha tese de doutoramento (2006). São tratados problemas de “intraduzibilidade”, ou não, na
tradução do conto, acima citado, com base nas mais recente s teorias dos “Estudos de
Tradução”.
A respeito da nova disciplina, denominada por André Lefévère de “Estudos de
Tradução”, penso que as teorias de Nietzsche e de Heidegger anteciparam os estudos para o
surgimento do Deconstrutivismo, de Jacques Derrida (1991), e sua aplicação para a tradução.
Foi examinada a linguagem e o estilo de João Guimarães Rosa, um inovador da
linguagem. Falou-se da sua correspondência com alguns tradutores e das particularidades da
sua escrita, de que ele próprio fala na sua entrevista ao jornalista alemão Guenter Lorenz.
Também se procurou ver como as inovações de Guimarães Rosa puderam, ou não, ser captadas
e reproduzidas pelas suas respectivas tradutoras.
2

Voltando à questão do título do trabalho em si, convém dizer que a questão da


“traduzibilidade”, ou não, da possibilidade em se traduzir ou da sua “impossibilidade”, já é
uma questão antiga, levantada por vários teóricos “prescritivistas”. Entre estes, tanto John
Catford quanto Román Jakobson (1959) abordaram a questão da “impossibilidade” da
tradução, uma vez que não se podia conseguir uma total equivalência, como se esperava, no
período estruturalista. O que, apenas, seria possível era uma “transposição criativa”, admite
Jakobson. Para que houvesse “fidelidade”, ou uma total “equivalência”, do ponto de vista
lingüístico, pelo menos, seria preciso que as línguas (língua-fonte e língua-alvo, ou,
simplesmente, LP e LC) possuíssem as mesmas estruturas lingüísticas, vocábulos equivalentes,
etc. – o que, de fato, não acontece.
Caso se fizesse a tradução “literal”, segundo os ditames do Logocentrismo, perder-se-ia
o “sentido” do texto traduzido. Problemas com a falta de “equivalência” se ressaltavam, acima
de tudo, na tradução de ditados, provérbios, trocadilhos. Nesse caso, só o conhecimento da
cultura da língua de chegada é que poderá levar o tradutor a verter esses fenômenos,
cristalizados pela sabedoria popular. Assim, John Catford dividia as traduções em literal e free,
privilegiando a última.
Uma “realidade social”, ou “extralingüística”, diferente, implicaria em línguas
diferentes. E cada língua corresponderia a uma cultura. Antes de Catford e de Jakobson, o
lingüista Edward Sapir já dissera que: No two languages are ever sufficiently similar to be
considered as representing the same social reality. Os mundos – retratados pelas diversas
línguas – seriam diferentes, e não apenas os seus “rótulos”. As pesquisas do americano Lee
Whorf comprovariam, posteriormente, estes postulados.
Por sua vez, a disciplina chamada Análise do Discurso trouxe novos horizontes para os
“Estudos da Tradução”. Diferente da Lingüística, que se preocupa com o período, a Análise do
Discurso lida com o texto, de onde se criou a noção de “contexto”. Assim, as diversas maneiras
de traduzir deveriam ser praticadas, em função do contexto, da finalidade, das necessidades do
“pólo receptor”, isto é, do leitor da tradução.
Foi com enfoque na língua de chegada, numa tradução target oriented, que se
desenvolveu o Descritivismo, onde Gideon Toury, entre outros teóricos da tradução, examinam
o TLC, como uma obra autônoma, que não carrega consigo a obrigatoriedade de ser mero
reflexo ou “cópia” do TLP, do assim-chamado “original”. Como o próprio nome diz, os
descritivistas não “prescrevem”, e sim, descrevem o produto final, a tradução, levando em
consideração um grande número de fatores, tais como as necessidades do leitor do TLC, o
público-alvo, etc.
3

Aqueles que advogavam a “impossibilidade” da tradução, na verdade, esperavam uma


total “fidelidade”. E tendo constatado que esta “fidelidade”, na verdade, não acontecia,
decretavam que a tradução era “impossível”. No entanto, já antes do surgimento dos
descritivistas e desconstrutivistas, Georges Mounin (1975) já tinha escrito que “a prática da
tradução antecedeu toda a teoria sobre a tradução e sobrevive a qualquer teoria que negue a
possibilidade de traduzir” – como é mencionado pelo desconstrutivista da UNICAMP, o
tradutólogo Paulo Ottoni (1998), seguidor de Jacques Derrida no que se refere à aplicação do
Desconstrutivismo à tradução.
Abandonando-se a exigência de “fidelidade” que os teóricos, anteriores ao
Descritivismo e Desconstrutivismo procuravam alcançar, a tradução é “possível”, sim, mas
dentro de determinadas limitações. Assim, uma tradução é, de fato, uma “recriação”, como
dizia Lefévère (1992), ou como queria Haroldo de Campos – uma “transcriação”, tanto que
tradutores do mesmo TLP produziriam TLCs, diferentes, embora semelhantes.
A esse respeito, Jacques Derrida se expressou, usando um verdadeiro paradoxo: a
tradução seria uma “necessidade impossível”, algo que estaria nos limites do “possível e do
impossível”. Assim, Derrida escreve, em Posições: “Dentro dos limites em que é possível, em
que pelo menos parece possível, a tradução pratica a diferença entre significado e significante”.
Como esta “diferença nunca é pura”, a tradução pode ser chamada, na verdade, de uma
“transformação”.
No decorrer do cotejo do conto “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, tanto na sua
versão em língua inglesa, como na sua versão em língua russa, procurou-se comprovar os
preceitos pós-estruturalistas, ou melhor, desconstruvistas, quanto às traduções realizadas pelas
duas tradutoras, Harriet de Onís e A. Koss, respectivamente, levando-se em consideração o que
foi estabelecido por Jacques Derrida e seus seguidores. Chegou-se, desta forma, à conclusão de
que a tradução não é uma operação “exata”, e sim, “aproximada”, não se podendo, portanto,
exigir, nem mesmo buscar, “fidelidade” como desejavam os teóricos prescritivistas da
tradução, pertencentes ao período da vigência do Estruturalismo. Assim, tanto o Descritivismo
quanto o Desconstrutivismo derrubam a idéia de uma perfeita “equivalência”, ou “fidelidade”.
Pode-se lembrar que os teóricos prescritivistas baseavam-se nos conceitos de um
significado original e estável, como queria Saussure. O Desconstrutivismo veio para alterar
esta noção, introduzindo o conceito de “rasto” que acompanharia o “significado”, ao qual
Derrida chega a chamar – além de “flutuante” – de “transcendental”, e que se amoldaria ao
contexto (OTTONI, 2005).
4

O que se escreve, em um determinado texto, não teria nem começo, nem fim, e seria
semelhante a um “palimpsesto”, como escreveu Rosemeyre Arrojo (1986). Sobre o tal
palimpsesto já se escreveu inúmeras vezes, de forma que ele deixava entrever as escrituras
passadas. Estes preceitos foram constatados no curso do cotejo, ao se verificar a falta de
“correspondência” total entre o TLP e ambos TLCs. Ao se fazer a retroversão da versão russa,
de volta para o português, por exemplo, via-se que muitas coisas tinham sido alteradas, tanto
no léxico, como na morfossintaxe.
Foram frisadas não apenas as diferenças lingüísticas e estilísticas entre as línguas, mas
também as culturais. A cultura – como é mostrado no cotejo – interfere bastante no processo
tradutório. Tanto Georges Mounin quanto Mary Snell-Hornby encaram a tradução como um
ato que envolve conhecimento de cultura (a tradução seria um ato ”transcultural”, como diz
Mounin (1975), que acreditava que o tradutor, antes de ser bilíngüe, precisaria ser, também,
“bicultural”.
Mas, mesmo que o tradutor tenha bom conhecimento da “Cultura de Chegada”, os
problemas persistem. Por exemplo, pergunta-se: Como é possível traduzir algo que “inexiste”
na “Cultura de Chegada”? A tradutora russa, por exemplo, precisou traduzir “presépio” (de
Natal) por “estábulo” – já que nos templos da religião Cristã-Ortodoxa, – não se admitiam
“figuras”, e sim, apenas os “ícones” (pinturas planas, só com duas dimensões, desprovidas de
“perspectiva”), não podendo, desta forma, ser armado um “presépio”.
O narrador do conto comenta que o ananás selvagem traz a lembrança de “presépio” a
Nhô Augusto enquanto vagueia pelo mato. Ora, este dado cultural constitui uma informação
que poderia, apenas, ser “inferida” do próprio contexto pelo leitor do TLC-1 (versão
americana) ou do TLC-2 (versão russa). Afinal, ele inexiste nessas duas culturas de chegada.
Não apenas a cultura interfere na tradução, como a ideologia. Tendo sido imposto o
“ateísmo” após a vitória da revolução de 1917 – quando a religião ortodoxa foi substituída pela
filosofia marxista-leninista – exigia-se da população em geral, e da mídia, em particular, a
aceitação das idéias ateístas, o que se refletia até na grafia. Tanto Deus como outros termos de
cunho religioso deveriam ser grafados com inicial minúscula. Com todos os meios de
comunicação nas mãos do Estado, a censura jamais permitiria que fosse ao contrário. A versão
russa de “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (1980, portanto, antes da perestroika) não
poderia fugir à regra.
A tradutora russa muitas vezes lançou mão de notas de rodapé para traduzir termos
regionalistas. Estes eram tomados de empréstimo, transcritos em alfabeto cirílico, mas
explicados nessas notas. Isto ocorreu, por exemplo, com Kariama (termo para designar
5

“Sariema”). Na versão de língua inglesa não houve esse recurso, vendo-se a tradutora obrigada
a procurar uma tradução, pelo menos, aceitável. É interessante observar a tradução inglesa de
termos recorrentes, como “capangas” e “jagunços”. As denominações, em ambas as traduções,
são um tanto aleatórias, sem se observar uma “constante”. Por exemplo, tanto, “guarda-costas”,
como “cacundeiros”, ou “capangas”, e até mesmo “bate-paus” eram, frequentemente,
traduzidos em inglês pelo hiperônimo de bodyguards (com o que se perdeu a cor-local). Em
outras ocasiões, “capangas” figuravam como outlaws, enquanto “jagunços” aparecia como
gunmen ou, simplesmente, como his men. Pode-se observar que não houve, portanto,
uniformidade na tradução desses termos regionalistas.
A tradutora russa ora traduzia “capangas” e “jagunços” por bandíty, isto é, “bandidos”,
ora por telokhraníteli, isto é, “guarda-costas”. Algumas páginas adiante, no entanto,
“capangas” já aparece traduzido por golovoriézy (“cortadores de cabeças”). Já “bate-paus” são
tratados por naiómniki, isto é, “mercenários”. Para o termo “rapariga”, a tradutora americana
usou do eufemismo the girl, como se tratasse de português lusitano – talvez por uma questão
de manter a elegância. A tradutora russa segue o mesmo procedimento, usando para tanto os
termos diévotchka (“garotinha”) e devítsa (“moça, garota”), respectivamente.
O termo “capiau” foi traduzido por backwoodsman no decorrer da versão de língua
inglesa, enquanto na versão russa observou-se o fenômeno, um tanto inusitado, através do
empréstimo de “sertanejo”. Este termo ora aparece sozinho, ora como um composto híbrido
pareniók-sertanejo (“o rapazinho-sertanejo”). Isto se deve ao fato de, no prefácio a Rasskázy
(1980) – um conjunto de vários contos de João Guimarães Rosa, assinado por Inna Terterián –
a autora tentar familiarizar o leitor de língua russa com o termo “sertão”, adaptado para sertán,
com o plural sertány (“os sertões”), assim como com o termo “sertanejo”. Logo depois,
Terterián fala das “fazendas-latifúndios”, da figura do “vaqueiro” – o tangedor de gado;
descreve a vegetação do sertão. Menciona as secas e as enchentes, assim como as privações do
povo do sertão e a lei do “mais forte”. Com esta descrição, o leitor russo, com fama de leitor
assíduo, estava preparado para aceitar, sem dificuldade, os empréstimos, sertán e “sertanejo”.
Da mesma forma, o termo “caatinga” também pôde ser tomado de empréstimo, na
versão russa, enquanto a tradutora americana arranja uma tradução que não descrevem muito
bem o que este termo quer dizer, como em: “E dormiam nas brenhas, ou sob as árvores de
sombra das caatingas”, que foi traduzido por And they slept in the thickets or under the sparse
shade of the trees of the undergrowth – o que tira, também, a cor local do contexto.
Para traduzir alguns termos regionalistas, no entanto, as tradutoras tiveram que lançar
mão de uma paráfrase ou de um conjunto de palavras, com um sentido aproximado. É o que
6

acontece com a tradução de “mocorongo” na fala de Joãzinho Bem-Bem, ao descrever os


integrantes do seu bando: “[...] É tudo gente limpa [...] Mocorongo eu não aceito. (Segundo
LGR, é “assassino por dinheiro”). Na versão de língua inglesa lê-se: They are all decent people
[...] I have no room for backwoods trash. A explicação, no entanto, já vem no próprio texto de
JGR: “Homem que atira de trás do toco não me serve [...]” – o que facilitou o trabalho da
tradutora americana. A tradutora russa imita a tradutora americana ao utilizar a palavra
derevénschina, isto é, “povo das aldeias”.
Embora a tradutora americana tenha se esmerado em encontrar uma tradução para os
diversos termos regionalistas, em geral, usou de “domesticação” para uma bebida nacional
típica – a cachaça – traduzindo-a por rum, já que este era bem conhecido do leitor norte-
americano. Na versão russa houve um empréstimo do termo, sem explicação, pois podia ser,
facilmente, inferido do contexto.
Sobre traduções “estrangeirizadas”, assim como, as “domesticadas”, escreveu
Lawrence Venuti (1995): “A tática de “domesticação” é uma tradição nos EUA, pois o leitor
americano quer ler um texto num inglês padronizado e claro (clear English).
É preciso mencionar o fato de que Harriet de Onís teve a oportunidade de se
corresponder com o escritor João Guimarães Rosa, na década de 1960, tirando dúvidas sobre o
léxico, ou sobre expressões ou provérbios, algo que a tradutora russa não pôde fazer, por ter
traduzido o conto, apenas em 1980, após a morte do escritor. Nota-se, no entanto, certa
imitação de trechos da versão americana, encontrados na versão russa posterior àquela.
Quanto à linguagem inovadora de João Guimarães Rosa, não foram usados neologismo,
por nenhuma das duas tradutoras (Onís ou Koss), nem linguagem propriamente dita “popular”
– com algumas exceções para a tradutora russa.
Uma dessas “inovações”, como o termo “homência”, é citada por Luiz Carlos Rocha
como pertencente ao “léxico interdito”, já que o sufixo “-ncia” só deve ser usado na derivação
a partir de formas verbais, enquanto “homência” é formado a partir do nome “homem”, o que
transgride a RFP (Regra de Formação das Palavras). A tradução desta criação lingüística, no
entanto, não apresenta qualquer inovação lingüística. Em ambas as versões: na versão inglesa,
lê-se devoid of manliness (‘desprovido de masculinidade”), e na versão russa, nitchevó
mujskóvo (“sem nada de másculo”).
Além de neologismos e linguagem popular e regional, Guimarães Rosa faz uso de
termos arcaicos, livrescos, para, justamente, fugir de vocábulos “desgastados pelo uso”, como
ele próprio reconhecera na entrevista a Guenter Lorenz. Os habitantes do sertão de Minas,
trancados entre as serras teriam conservado muitos desses termos arcaicos – remanescentes
7

ainda do português dos séculos XVI-XVII – que o escritor faz questão de reviver em seus
escritos. Um desses arcaísmos é “pancrácio”, com referência ao genitor de Nhô Augusto.
Embora tenha sido dicionarizado por Houaiss como “tolo”, encontra-se na versão inglesa como
fond (father). A versão russa, no entanto, lê-se pustogolóvy (“cabeça-oca”). Outro termo deste
tipo é “estúrdio”, que foi dicionarizado em Houaiss como “incomum, esquisito”, figurando na
versão inglesa figura como irresponsible – o que, igualmente, serve ao contexto.
Como exemplo de diversificação do léxico é o uso da denominação de “ulanos” para os
vaqueiros do alto sertão, que embora pertencesse, na verdade, à cultura européia e a outra
época. O termo exista em russo, mas não foi utilizado. Em vez disto aparece, para tanto,
kavalierísty (“cavaleiros”).
A tradutora americana usou sempre do inglês padrão, com muita formalidade no
tratamento, como se pode ver no exemplo do emprego de Mr (mister) para traduzir “seu” (em
“seu Nhô Augusto”) – algo que destoa do tom de oralidade na narrativa do autor.
O escritor Guimarães Rosa, além de usar formas lexicais que não pertencem à NURC, e
sim, à linguagem popular, como “sombração” em lugar de “assombração”, “desdeixo” em
lugar de “desleixo”, fez aparecer, no TLP, o uso de regência verbal que divergia da norma
culta, – como, por exemplo, “devia de (saber)”, em vez de “devia saber”. No entanto, a
tradutora americana não usou de formas lexicais da linguagem popular – de espécie alguma,
como poderia se esperar – nem do Black English – do tipo ain’t ou a dupla negação, ou o uso
de pessoas gramaticais como he don’t ou I does – como se pode constatar em lyrics de música
pop – Harriet de Onís sempre opta pela linguagem padrão. A tradutora russa, embora não tenha
feito grandes alterações, usou, em alguns casos, termos da linguagem coloquial, para dar maior
colorido à narrativa.
Muitas vezes, o que estava em sentido denotativo no TLP passa a ser transmitido em
sentido conotativo, e vice-versa, mas outras vezes as tradutoras usam de artifícios. Por
exemplo, quando os quatro guarda-costas de Nhô Augusto querem impedir Sariema de deixar o
leilão e gritam: “Tem areia, tem areia! Não vai, não!” – a tradutora americana escreveu Don’t
you dare! Don’t you dare! She is not going, no!. Nesse trecho, a tradutora russa, igualmente,
usou de criatividade ao traduzir este trecho por Viérno èto tak! Viérno èto tak! Nikudá nie
poidióch! (“É isto mesmo! É isto mesmo Você não para canto nenhum!”) – remetendo ao que
foi dito antes: “– Não vai, não!”.
Muitas vezes, algo que está apenas implícito no TLP torna-se “explícito” no TLC. A
tradutora russa talvez tenha receado que, sendo demasiado concisa, não fosse bem entendida
pelo seu leitor. Na versão de língua inglesa, por exemplo, quando Nhô Augusto quer despachar
8

a Sariema, após o leilão, desfazendo-se dela, diz no TLP: “Capim para mim, com uma
sombração dessas!”, mas a tradutora americana escreveu: I’d deserve to eat grass if I took a
spook like this [...] – explicitando o que estava, apenas, implícito. Observe-se, também, que
nesse caso houve perda dos efeitos da melopéia, presentes na expressão do TLP.
Além da prosa, na verdade, poética, de Guimarães Rosa neste conto, ambas as
tradutoras não deixaram de traduzir as “cantigas” – que, como diz Franklin de Oliveira, no
prefácio à edição americana, são verdadeiras “epígrafes”, desta vez, “internas” – que
entremeiam o texto, quando muda o cenário e algo de novo está para acontecer. Estas
“cantigas” mostram a ligação de João Guimarães Rosa à tradição popular, o vínculo da sua
prosa com a oralidade. São todas rimadas, sendo que esta rima nem sempre é reproduzida nas
duas versões, as quais, muitas vezes, são obrigadas a privilegiar o conteúdo em detrimento da
forma poética.
Comparando as duas versões, pode-se constatar maior criatividade por parte da
tradutora russa que, praticamente, “desconstruiu” o TLP, em muitas passagens, recriando-o,
além de lançar mão de muitos ditados e expressões populares. Apesar do mérito de ambas as
tradutoras, podem-se constatar erros – ou, melhor – “lapsos”, como foi observado pela autora
do presente trabalho.
Na versão americana, ocorre tal lapso, quando seu Joãozinho Bem-Bem, por exemplo,
afirma que não podia deixar de sacrificar um dos filhos do “velhote” e o máximo que poderia
fazer era “livrar da sebaça”, que a tradutora americana traduz por let off after looting, (“ livrar
depois da sebaça”) – uma interpretação errônea do TLP. Já na versão russa, pode-se
mencionar outro episódio: Quando Nhô Augusto pede que seja chamado um padre para fazer
sua extrema-unção, e recomenda que este já venha abençoando-o durante a viagem, pois
poderia não encontrá-lo com vida. Porém, isto foi entendido pela tradutora russa de outra
forma, pois escreve que a benção tinha que ser dada pelo padre a Nhô Augusto logo, para que
este pudesse viajar, sem correr o risco de “não achar o caminho” (para os céus?), caso morresse
antes da chegada desse padre. Portanto, lapsos, desse tipo podem ocorrer em uma tradução – o
que não chega a desmerecer o trabalho de as ambas tradutoras.
Assim, acredita-se ter, de certa forma, contribuído com este trabalho sobre o
entendimento de uma tradução, dentro das perspectivas desconstrutivistas e descritivistas, que
não esperam “fidelidade” ou uma “equivalência perfeita”, entre o TLP e o TLC. Espera-se,
também, que este trabalho possa auxiliar pesquisadores, estudiosos e admiradores da obra de
Guimarães Rosa, bem como os que se interessam pelas questões ligadas à tradução em geral e,
especificamente, pela tradução literária.
9

Referências

ARROJO, Rosemeyre. Oficina de tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática, 1986.
BELOV, Olga Moreira. Problemas de traduzilidade em Jorge Amado. 2000. Dissertação.
(Mestrado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, 2000.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1991.
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello.
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, [200?].
JAKOBSON, Roman. On linguistic aspects of translation. In: BROWER, Reuben A. (ed.). On
translation. Cambridge: Harvard University Press, 1959.
LEFEVRE, André. Translation rewriting and the manipulation of literary fame. New York:
Routledge, 1992.
MOUNIN, Georges. Problemas teóricos da tradução. São Paulo: Cultrix, 1975.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Hemus, 1976.
OTTONI, Paulo (org.). Tradução, a prática da diferença. Campinas: Editora UNICAMP,
1998.
______.Tradução manifesta. São Paulo: EDUSP, 2005.
ROSA, Guimarães João. Sagarana. Rio de Janeiro: São Paulo: Record, 1984.
______. Sagarana: a cycle of stories. Tradução Harriet de Onís. New York: Alfred A. Knopf,
1966.
______. Rasskazy. Moscou: Khudójestvennaia Literatúra, 1980.
VENUTI, Lawrence. Translator’s invisibility: a history of translation. New York: Routledge,
1995.

Você também pode gostar