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Resumo
O presente artigo apresenta, de forma sucinta, as questões de (in) traduzibilidade no conto “A Hora e Vez de
Augusto Matraga”, contido em Sagarana, de João Guimarães Rosa. Primeiramente discursou-se sobre a teoria
concernente aos “Estudos de Tradução”, uma matéria interdisciplinar que veio a surgir como matéria autônoma,
apenas na segunda metade do século XX, apesar de a espécie humana sempre tentar transpor suas idéias, suas
palavras, de um idioma para o outro, isto é, “traduzir”. O caminho percorrido até o surgimento da disciplina foi
longo, tendo sido influenciada, ultimamente, pelo Desconstrutivismo, de Jacques Derrida e seus seguidores,
trazendo uma nova visão sobre os conceitos de signo lingüístico, criado por Saussure. Discursa-se, também,
sobre o estilo peculiar de Guimarães Rosa, adepto da inovação do léxico e da sintaxe. Finalmente, citam-se
alguns exemplos do “Cotejo de Tradução” com exemplos da versão em língua inglesa e de língua russa.
Abstract
The article brings a brief presentation of questions related to (non)translatability in the short story “A hora e a vez
de Augusto Matraga” in Sagarana, by João Guimarães Rosa. Firstly, it addresses the theory concerning
Translation Studies, an interdisciplinary subject which came up as an autonomous subject only in the second half
of the 20th century, despite the fact the human beings have always tried to transpose ideas and words from one
language to the other, that is, to translate. The path followed until the rise of the subject was long, and it has been
influenced lately by the deconstructivist Jacques Derrida and his followers, shedding a new light on the concepts
of linguistic sign created by Saussure. The article also discusses the particular style of Guimarães Rosa, an
innovator of the lexical forms and of the syntax. It finally mentions some examples of comparative analysis drawn
from English and Russian translations.
O que se escreve, em um determinado texto, não teria nem começo, nem fim, e seria
semelhante a um “palimpsesto”, como escreveu Rosemeyre Arrojo (1986). Sobre o tal
palimpsesto já se escreveu inúmeras vezes, de forma que ele deixava entrever as escrituras
passadas. Estes preceitos foram constatados no curso do cotejo, ao se verificar a falta de
“correspondência” total entre o TLP e ambos TLCs. Ao se fazer a retroversão da versão russa,
de volta para o português, por exemplo, via-se que muitas coisas tinham sido alteradas, tanto
no léxico, como na morfossintaxe.
Foram frisadas não apenas as diferenças lingüísticas e estilísticas entre as línguas, mas
também as culturais. A cultura – como é mostrado no cotejo – interfere bastante no processo
tradutório. Tanto Georges Mounin quanto Mary Snell-Hornby encaram a tradução como um
ato que envolve conhecimento de cultura (a tradução seria um ato ”transcultural”, como diz
Mounin (1975), que acreditava que o tradutor, antes de ser bilíngüe, precisaria ser, também,
“bicultural”.
Mas, mesmo que o tradutor tenha bom conhecimento da “Cultura de Chegada”, os
problemas persistem. Por exemplo, pergunta-se: Como é possível traduzir algo que “inexiste”
na “Cultura de Chegada”? A tradutora russa, por exemplo, precisou traduzir “presépio” (de
Natal) por “estábulo” – já que nos templos da religião Cristã-Ortodoxa, – não se admitiam
“figuras”, e sim, apenas os “ícones” (pinturas planas, só com duas dimensões, desprovidas de
“perspectiva”), não podendo, desta forma, ser armado um “presépio”.
O narrador do conto comenta que o ananás selvagem traz a lembrança de “presépio” a
Nhô Augusto enquanto vagueia pelo mato. Ora, este dado cultural constitui uma informação
que poderia, apenas, ser “inferida” do próprio contexto pelo leitor do TLC-1 (versão
americana) ou do TLC-2 (versão russa). Afinal, ele inexiste nessas duas culturas de chegada.
Não apenas a cultura interfere na tradução, como a ideologia. Tendo sido imposto o
“ateísmo” após a vitória da revolução de 1917 – quando a religião ortodoxa foi substituída pela
filosofia marxista-leninista – exigia-se da população em geral, e da mídia, em particular, a
aceitação das idéias ateístas, o que se refletia até na grafia. Tanto Deus como outros termos de
cunho religioso deveriam ser grafados com inicial minúscula. Com todos os meios de
comunicação nas mãos do Estado, a censura jamais permitiria que fosse ao contrário. A versão
russa de “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (1980, portanto, antes da perestroika) não
poderia fugir à regra.
A tradutora russa muitas vezes lançou mão de notas de rodapé para traduzir termos
regionalistas. Estes eram tomados de empréstimo, transcritos em alfabeto cirílico, mas
explicados nessas notas. Isto ocorreu, por exemplo, com Kariama (termo para designar
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“Sariema”). Na versão de língua inglesa não houve esse recurso, vendo-se a tradutora obrigada
a procurar uma tradução, pelo menos, aceitável. É interessante observar a tradução inglesa de
termos recorrentes, como “capangas” e “jagunços”. As denominações, em ambas as traduções,
são um tanto aleatórias, sem se observar uma “constante”. Por exemplo, tanto, “guarda-costas”,
como “cacundeiros”, ou “capangas”, e até mesmo “bate-paus” eram, frequentemente,
traduzidos em inglês pelo hiperônimo de bodyguards (com o que se perdeu a cor-local). Em
outras ocasiões, “capangas” figuravam como outlaws, enquanto “jagunços” aparecia como
gunmen ou, simplesmente, como his men. Pode-se observar que não houve, portanto,
uniformidade na tradução desses termos regionalistas.
A tradutora russa ora traduzia “capangas” e “jagunços” por bandíty, isto é, “bandidos”,
ora por telokhraníteli, isto é, “guarda-costas”. Algumas páginas adiante, no entanto,
“capangas” já aparece traduzido por golovoriézy (“cortadores de cabeças”). Já “bate-paus” são
tratados por naiómniki, isto é, “mercenários”. Para o termo “rapariga”, a tradutora americana
usou do eufemismo the girl, como se tratasse de português lusitano – talvez por uma questão
de manter a elegância. A tradutora russa segue o mesmo procedimento, usando para tanto os
termos diévotchka (“garotinha”) e devítsa (“moça, garota”), respectivamente.
O termo “capiau” foi traduzido por backwoodsman no decorrer da versão de língua
inglesa, enquanto na versão russa observou-se o fenômeno, um tanto inusitado, através do
empréstimo de “sertanejo”. Este termo ora aparece sozinho, ora como um composto híbrido
pareniók-sertanejo (“o rapazinho-sertanejo”). Isto se deve ao fato de, no prefácio a Rasskázy
(1980) – um conjunto de vários contos de João Guimarães Rosa, assinado por Inna Terterián –
a autora tentar familiarizar o leitor de língua russa com o termo “sertão”, adaptado para sertán,
com o plural sertány (“os sertões”), assim como com o termo “sertanejo”. Logo depois,
Terterián fala das “fazendas-latifúndios”, da figura do “vaqueiro” – o tangedor de gado;
descreve a vegetação do sertão. Menciona as secas e as enchentes, assim como as privações do
povo do sertão e a lei do “mais forte”. Com esta descrição, o leitor russo, com fama de leitor
assíduo, estava preparado para aceitar, sem dificuldade, os empréstimos, sertán e “sertanejo”.
Da mesma forma, o termo “caatinga” também pôde ser tomado de empréstimo, na
versão russa, enquanto a tradutora americana arranja uma tradução que não descrevem muito
bem o que este termo quer dizer, como em: “E dormiam nas brenhas, ou sob as árvores de
sombra das caatingas”, que foi traduzido por And they slept in the thickets or under the sparse
shade of the trees of the undergrowth – o que tira, também, a cor local do contexto.
Para traduzir alguns termos regionalistas, no entanto, as tradutoras tiveram que lançar
mão de uma paráfrase ou de um conjunto de palavras, com um sentido aproximado. É o que
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ainda do português dos séculos XVI-XVII – que o escritor faz questão de reviver em seus
escritos. Um desses arcaísmos é “pancrácio”, com referência ao genitor de Nhô Augusto.
Embora tenha sido dicionarizado por Houaiss como “tolo”, encontra-se na versão inglesa como
fond (father). A versão russa, no entanto, lê-se pustogolóvy (“cabeça-oca”). Outro termo deste
tipo é “estúrdio”, que foi dicionarizado em Houaiss como “incomum, esquisito”, figurando na
versão inglesa figura como irresponsible – o que, igualmente, serve ao contexto.
Como exemplo de diversificação do léxico é o uso da denominação de “ulanos” para os
vaqueiros do alto sertão, que embora pertencesse, na verdade, à cultura européia e a outra
época. O termo exista em russo, mas não foi utilizado. Em vez disto aparece, para tanto,
kavalierísty (“cavaleiros”).
A tradutora americana usou sempre do inglês padrão, com muita formalidade no
tratamento, como se pode ver no exemplo do emprego de Mr (mister) para traduzir “seu” (em
“seu Nhô Augusto”) – algo que destoa do tom de oralidade na narrativa do autor.
O escritor Guimarães Rosa, além de usar formas lexicais que não pertencem à NURC, e
sim, à linguagem popular, como “sombração” em lugar de “assombração”, “desdeixo” em
lugar de “desleixo”, fez aparecer, no TLP, o uso de regência verbal que divergia da norma
culta, – como, por exemplo, “devia de (saber)”, em vez de “devia saber”. No entanto, a
tradutora americana não usou de formas lexicais da linguagem popular – de espécie alguma,
como poderia se esperar – nem do Black English – do tipo ain’t ou a dupla negação, ou o uso
de pessoas gramaticais como he don’t ou I does – como se pode constatar em lyrics de música
pop – Harriet de Onís sempre opta pela linguagem padrão. A tradutora russa, embora não tenha
feito grandes alterações, usou, em alguns casos, termos da linguagem coloquial, para dar maior
colorido à narrativa.
Muitas vezes, o que estava em sentido denotativo no TLP passa a ser transmitido em
sentido conotativo, e vice-versa, mas outras vezes as tradutoras usam de artifícios. Por
exemplo, quando os quatro guarda-costas de Nhô Augusto querem impedir Sariema de deixar o
leilão e gritam: “Tem areia, tem areia! Não vai, não!” – a tradutora americana escreveu Don’t
you dare! Don’t you dare! She is not going, no!. Nesse trecho, a tradutora russa, igualmente,
usou de criatividade ao traduzir este trecho por Viérno èto tak! Viérno èto tak! Nikudá nie
poidióch! (“É isto mesmo! É isto mesmo Você não para canto nenhum!”) – remetendo ao que
foi dito antes: “– Não vai, não!”.
Muitas vezes, algo que está apenas implícito no TLP torna-se “explícito” no TLC. A
tradutora russa talvez tenha receado que, sendo demasiado concisa, não fosse bem entendida
pelo seu leitor. Na versão de língua inglesa, por exemplo, quando Nhô Augusto quer despachar
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a Sariema, após o leilão, desfazendo-se dela, diz no TLP: “Capim para mim, com uma
sombração dessas!”, mas a tradutora americana escreveu: I’d deserve to eat grass if I took a
spook like this [...] – explicitando o que estava, apenas, implícito. Observe-se, também, que
nesse caso houve perda dos efeitos da melopéia, presentes na expressão do TLP.
Além da prosa, na verdade, poética, de Guimarães Rosa neste conto, ambas as
tradutoras não deixaram de traduzir as “cantigas” – que, como diz Franklin de Oliveira, no
prefácio à edição americana, são verdadeiras “epígrafes”, desta vez, “internas” – que
entremeiam o texto, quando muda o cenário e algo de novo está para acontecer. Estas
“cantigas” mostram a ligação de João Guimarães Rosa à tradição popular, o vínculo da sua
prosa com a oralidade. São todas rimadas, sendo que esta rima nem sempre é reproduzida nas
duas versões, as quais, muitas vezes, são obrigadas a privilegiar o conteúdo em detrimento da
forma poética.
Comparando as duas versões, pode-se constatar maior criatividade por parte da
tradutora russa que, praticamente, “desconstruiu” o TLP, em muitas passagens, recriando-o,
além de lançar mão de muitos ditados e expressões populares. Apesar do mérito de ambas as
tradutoras, podem-se constatar erros – ou, melhor – “lapsos”, como foi observado pela autora
do presente trabalho.
Na versão americana, ocorre tal lapso, quando seu Joãozinho Bem-Bem, por exemplo,
afirma que não podia deixar de sacrificar um dos filhos do “velhote” e o máximo que poderia
fazer era “livrar da sebaça”, que a tradutora americana traduz por let off after looting, (“ livrar
depois da sebaça”) – uma interpretação errônea do TLP. Já na versão russa, pode-se
mencionar outro episódio: Quando Nhô Augusto pede que seja chamado um padre para fazer
sua extrema-unção, e recomenda que este já venha abençoando-o durante a viagem, pois
poderia não encontrá-lo com vida. Porém, isto foi entendido pela tradutora russa de outra
forma, pois escreve que a benção tinha que ser dada pelo padre a Nhô Augusto logo, para que
este pudesse viajar, sem correr o risco de “não achar o caminho” (para os céus?), caso morresse
antes da chegada desse padre. Portanto, lapsos, desse tipo podem ocorrer em uma tradução – o
que não chega a desmerecer o trabalho de as ambas tradutoras.
Assim, acredita-se ter, de certa forma, contribuído com este trabalho sobre o
entendimento de uma tradução, dentro das perspectivas desconstrutivistas e descritivistas, que
não esperam “fidelidade” ou uma “equivalência perfeita”, entre o TLP e o TLC. Espera-se,
também, que este trabalho possa auxiliar pesquisadores, estudiosos e admiradores da obra de
Guimarães Rosa, bem como os que se interessam pelas questões ligadas à tradução em geral e,
especificamente, pela tradução literária.
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Referências
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