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HOMEM - O - MÚSICO Victor Zuckerkandl
HOMEM - O - MÚSICO Victor Zuckerkandl
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
Introdução
A história é muito antiga e muito bem conhecida para não ser tomada
seriamente. Embora isto seja dito auto depreciativamente, seu sentido é perfeitamente
claro. Como as últimas palavras de Sócrates, “Nós devemos um galo a Esculápio”,
refere-se ao pagamento de uma dívida. O filósofo está sendo escrupuloso ao final.
Sua vida inteira foi devotada ao serviço de uma única força, aquela da palavra falada.
Agora, antes de ser tarde demais, ele deve fazer uma reparação por não ter servido à
única força que modela a essência espiritual humana. Ele fará um último gesto de
reverência e gratidão ao poder da música: ele elevará sua voz numa canção ao menos
uma vez antes de morrer.
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HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
Os dois conceitos não são mutuamente exclusivos; não se pode dizer que um é
verdadeiro e o outro falso. Mas um deles é original e irrestritamente válido, enquanto
o outro é derivado e relativo. O conceito com o qual estamos familiarizados é o
derivado e relativo, e ao considerá-lo como universalmente válido desviamos nosso
pensamento do caminho e distorcemos nossa visão.
Para começar, é importante perceber por que o conceito que nos é familiar
pode ser chamado de relativo e derivado.
– como distinta da primeira somente em grau, não em espécie; ela é um caso especial
extremo. Pois, afinal de contas, o compositor também é no fundo um ouvinte; ele
deve atingir sua obra por escutá-la com sua audição interna, e neste sentido ele
também se confronta com ela. Onde há uma obra, deve haver uma confrontação.
uma audiência. Música é algo em grande parte produzido por uma pequena minoria
para um grande público. Este divisão de funções determina a atitude na qual nós
experimentamos música hoje: sentamos-nos em frente a algo – um palco, um pódio,
um toca discos, um rádio – e esperamos que a música venha até nós. Música sempre
vem para nós desde o outro lado, do outro lado da fronteira; ela vem a nós e nós a
recebemos.
significa é completamente claro. Não pode ter sido que um deus entoou uma canção
para as pessoas cantarem depois dele. Os deuses não a deram por este caminho, desde
o exterior. O dom divino veio do lado interno; ele abriu o coração do homem e
desselou seus lábios. Outra lenda é igualmente clara sobre este ponto: os homens
primeiro levantaram suas vozes numa canção, quando testemunharam a morte do
herói jovem divinamente belo. No começo, a música veio do homem, não para ele –
ou, melhor, também para ele mas como repercussão. O cantor ou executante não pode
ajudar a audiência para a qual ele canta ou executa: o círculo precisa ser fechado.
Aqui a noção de confrontação entre ouvinte e obra não faz sentido. Música é tanto a
doação quanto o doador, o músico é tanto o doador quanto o recebedor.
sentido pleno e apropriado por que ela contém todos os elementos que compõem a
natureza da música. O ato decisivo que traz a música à existência a precede, ou ainda
melhor, é uno com ela: a descoberta das notas musicais e do sistema de notas.
Aqueles que fazem a assim chamada música folclórica não são “povo” ou
“gentes”, mas “homens”. Não para algumas pessoas nem todas e certamente não
indivíduos específicos, mas para o homem enquanto tal, um daqueles atributos
inigualavelmente humanos é ser musical. Agora, faz sentido falar de “musicalidade”
não como a característica distinta deste ou daquele indivíduo mas como um atributo
humano por excelência: o homem como homem é musical. Não que primeiro ele era
um homem, o qual no curso do tempo adquiriu a música para tornar sua vida mais
atraente por aliviar a tensão do trabalho ou preencher seu tempo de lazer; mais
precisamente, homem e música estão tão fundamentalmente entrelaçados desde os
primórdios que um não existe sem o outro.
Estas afirmações são suficientes para indicar como o estilo deste pensamento
sobre música e a atitude que ela reflete diferem da nossa. As palavras associadas com
música não são “arte”, “artista” ou “obra de arte”, mas verão e inverno, separação e
união, amor e justiça, dissolução e estagnação. Onde nosso pensamento tende a
analisar e isolar, o sábio chinês contempla um todo ordenando. Ele não compara uma
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coisa com outra ou procura por traços que possam ter em comum ou progredir do
particular para o geral. Antes, ele se esforça por entender como a música, tal como
ela é, pode necessariamente encaixar-se no todo. (O todo não é o mesmo que o geral:
criações particulares separadas do geral são acidentais, enquanto a parte de um todo é
necessária. O geral permanece o mesmo quando um particular é removido, mas
quando uma parte é suprimida o todo não é mais o todo.) Aqui música é algo em si
mesma mas não para si mesma. Ela é uma metade de um par, um de dois pólos, o
outro pólo sendo os ritos. Outra vez, música e ritos não são tidos como existindo por
si mesmos, mas como mediadores, como mediadores terrestres entre dois poderes
supraterrestres cuja tensão polar mantém o universo em permanente equilíbrio.
Somente se os mediadores estão em equilíbrio e em um estado sadio está a sanidade
do todo garantida. A oposição entre os pólos é em realidade uma dependência mútua.
O perigo não está na ameaça da existência ou na força do outro pólo mas na sua não
existência e debilidade. Cada pólo deve querer a existência e a força do outro, e teme
sua não existência e debilidade. Se um pólo estava desaparecendo, a dissolução ou
estagnação do todo começava imediatamente a se manifestar. É óbvio que na
estrutura de tal pensamento, a idéia de um mundo sem música não encontra lugar.
O que está errado com este argumento é que ele usa o termo “experiência” em
um sentido muito grosseiro e estreito. Para ser claro, a confrontação com uma obra-
prima musical aparentemente divide as pessoas mais do que as une: somente uma
pequena faixa está sendo unida, agrupando-se em torno da obra, separados daqueles
que podem ter uma atenção ocasional e partir insensíveis e de todo o resto que está
muito distante para estar realmente ciente da música. Mas somente uma visão muito
superficial poderia concluir que a música não interessa a todos aqueles outros
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também, que ela não existe para eles de qualquer modo. Beethoven escreveu as
seguintes palavras “Do meu coração – possa ela atingir outros corações” antes dos
acordes de abertura de sua Missa Solemnis. Estava ele pensando somente nos
musicalmente dotados? Ele dentre todas as pessoas não teria sido consciente que
somente muitos poucos seriam capazes de seguir a alta complexidade e o pensamento
musical completamente abstrato desta Missa? E contudo o trabalho não é endereçado
a estes poucos ou a outros grupos maiores; ele é endereçado a todos, à totalidade da
humanidade, ao coração humano. Se houve alguma vez um só indivíduo capaz de
entender esta obra, ele seria o representante de toda a humanidade; em seu proveito
ele quereria alargar a compreensão do coração humano; em sua consciência quereria
estender seu alcance e através dele uma nova realidade poderia ter ingressado em seu
conhecimento. Pois o que tenha ocorrido é compartilhado por todos os homens,
realmente como muitos podem compartilhar uma nova iluminação sem verem a fonte
da luz. Neste sentido a grande obra de arte – e na verdade particularmente as grandes
– são, se não endereçadas para todos, criadas por todos. A evidência oferecida pela
confrontação na sala de concerto é superficial. Por detrás da superfície evidente nós
sentimos, embora não possamos obrigá-la a confessar, a realidade de um todo-
conjunto no qual todos – compositor, executante e ouvinte – permanecem juntos e
olham fixamente, por assim dizer, com os olhos da obra na mesma direção, a grande
situação que encontramos na fase dos primórdios. Nem são as paredes da sala de
concerto um limite cerceador: o todo-conjunto se estende além delas. O fato da obra
existir e ser entendida por uns poucos significa simplesmente que daí em diante
muitos outros quererão ser diferentes em sua poesia, em suas emoções, seu
pensamento, talvez equilibrando seus movimentos e sua respiração.
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
A primeira questão com a qual temos que lidar, então, concerne nem às causas
nem ao significado, mas ao objetivo imediato da música, especialmente da música
mais primordial avaliável por nós em alguma medida – a música folclórica. Quanto
mais para trás nós vamos, mais parece como se a música, longe de ser um fim em si
mesma (como ela tem eventualmente se tornando na “música artística” do Ocidente),
estivesse sempre subordinada a finalidades fora dela mesma – religiosa, social,
prática. Nem teria a música de hoje cessado de emprestar seu auxílio a tais esforços
extramusicais. Crianças até agora estão cantando para dormir, soldados ainda cantam
para dar coragem a si mesmos, e trabalhadores tornam mais leve seu trabalho com
canções. Os ritos religiosos do Ocidente não dispensam sua música, e ritos civis
parecem monótonos sem ela. E embora possa-se não prestar muita atenção a ela, uma
certa quantidade de música é ingrediente indispensável para muitos filmes.
Aí existe um tipo de música elaborada para este nível a qual não serve – ou, em
todo caso, não tão obviamente como outros tipos – como um meio para um fim. Onde
quer que a música folclórica ainda esteja viva, as pessoas se juntarão para cantar.
Para ser claro, muitas canções, como as melodias de dança, cantigas de ninar, árias
marciais, cantos religiosos e hinos têm um propósito específico e imediato; mas há
também outras que são cantadas por si mesmas, realmente pelo amor de cantar. O que
é o significado destas práticas?
Pareceria, então, que igualmente nestas canções folclóricas onde a melodia não
é realmente o sentido de sua finalidade, sua função é claramente secundária. Poderia
mesmo ser sustentado que nas canções folclóricas a contribuição da melodia é menos
essencial do que em outras formas do fazer musical antigo. Nas danças e celebrações
sem acompanhamento musical falta algo essencial, ao passo que em um poema há um
todo independente, nada faltando.
Isto é sem dúvida verdade para o poema não vocalizado, o poema que eu penso
a respeito ou leio silenciosamente, talvez recitado para mim mesmo ou para alguém
para quem ele não é familiar; isto não é verdade para o poema que é na realidade
intencionado para ser vocalizado, para representar a voz de uma comunidade. Pode
alguém imaginar que pessoas se juntem para falar canções? Alguém pode, mas
somente como uma possibilidade lógica; na vida real isto seria absurdo. Isto tornaria
algo natural em algo expressamente artificial. Visto por este lado, o que as notas
musicais contribuem para a canção folclórica é essencial: somente quando ela é
cantada a canção folclórica realmente existe. Jogue a melodia fora, e o que resta é
algo inteiramente diferente.
metro são apesar disso cantadas pelos coros. Na música folclórica do lado de fora das
fronteiras do Ocidente, grupos cantando e grupos tocando sem metro não são de
modo algum estranhos. Nós podemos nos maravilhar com a realização, mas ela é
considerada como uma concessão. Por outro lado, não há razão por que um poema,
um modo de falar em linguagem rítmica, não possa ser meramente falado
metricamente sob certas circunstâncias. Em todo caso, a razão por que é artificial
recitar canções folclóricas ao invés de cantá-las pode ser buscado noutra parte, não
realmente no fato de que as notas tenham se tornado inseparáveis do texto.
Se é este o caso, por que as pessoas não cantam simplesmente canções sem
palavras? Por que as palavras nas canções cedem lugar às notas somente em curtos
momentos, na maioria das vezes? Por que não há canções folclóricas que não sejam
poemas cantados?
mais deve estar envolvido na forma de expressão onde palavras são necessariamente
unidas a notas. O cantor que usa palavras quer mais do que somente estar com o
grupo; ele também quer estar com coisas, aquelas coisas às quais as palavras do
poema se referem. Uma pessoa usando somente palavras nunca está com as coisas
neste sentido: ela permanece à distância delas; ela permanece como “o outro” em
relação a elas, aquela que não é, “do lado de fora” delas. Em contraste, se suas
palavras não são meramente ditas mas cantadas, ele constrói uma ponte viva que a
liga com as coisas referidas pelas palavras, que transmuta distinção e separação em
unicidade. Pelo sentido das notas, aquele que fala sai em direção às coisas, traz as
coisas de fora para dentro de si mesmo, então ele não é mais “o outro”, algo alheio ao
que ele é, mas o outro e si próprio em um. Assim uma forma de falar que é não é
endereçada a alguém e nada comunica se torna inteligível. Tão logo as palavras do
poema restem silenciosas dentro de mim mesmo, o que elas pretendem dizer não são
“algo outro”, uma coisa “do lado de fora” de mim mesmo; eu posso pronunciá-las,
projetá-las para fora de mim, a fim de transformar o que elas dizem em uma “coisa”
outra do que eu mesmo, encontrada do lado de fora. Somente então podem as notas
satisfazer sua proposta: remover a barreira entre pessoa e coisa, e limpar o caminho
que pode ser chamado de a participação interior do cantor na qual ele canta – para
uma participação ativa, uma experiência de um tipo especial, uma experiência
espiritual. Esta experiência não é um sonhar-se-fora-de-si-mesmo, não é um sonhar-
a-si-em-outra-coisa, como se alguém fosse diferente do que esse alguém é. O cantor
permanece o que ele é, mas seu ser é dilatado, seu alcance vital é estendido: ser o que
ele pode ser agora, sem perder sua identidade, ser com o que ele não é; e o outro,
sendo o que ele é, pode, sem perder sua identidade, ser ele. Este tipo de experiência
não deve ser confundida com simpatia. Simpatia é dirigida a uma ação imediata,
como a compaixão, que leva a diminuir ou aliviar o sofrimento alheio, ao passo que a
participação ativa do sofrimento – por exemplo, expressa em uma canção que conta
uma história de sofrimento – consiste exatamente nisto, que o sofrimento é
plenamente re-experienciado na mente do cantor. Aqui a emoção é secundária, é o
efeito não a causa da participação, e junto com a última é espiritualizada, “colocada
em parênteses”. (Por isso é que a maldade à qual o poeta se refere é realmente tão
boa, realmente tão adorável, quanto o bem.)
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
Pode o canto desta canção ser interpretado como a expressão dos sentimentos
que suas palavras permitem ao cantor?
Primeiro de tudo, o sentido como o qual o termo “expressão” é usado aqui deve
ser definido claramente. Palavras são ditas para “expressar” o que elas denotam;
gestos e gritos, para “expressar” a emoção que dá nascimento a eles; escritos, para
“expressar” a personalidade do escritor. Notas são ditas para “expressar” emoções
num sentido intermediário entre o primeiro e o segundo destes três sentidos, um tanto
mais próximo ao segundo. Aqueles que vêem a música como uma linguagem dos
sentimentos dizer que as notas expressam emoções de um modo similar (mas não
mais que similar) àquele no qual as palavras expressam as coisas que elas denotam,
isto é, que as notas servem como um meio de comunicar emoções. Pode ser mantido
pela mente, contudo, que a correlação de palavras e coisas é superficial e acidental.
Não há necessidade intrínseca de que um dado vocábulo denote qualquer uma coisa
mais que outra; vocábulos idênticos podem denotar coisas diferentes, e diferentes
vocábulos uma e a mesma coisa. Por contraste, toda emoção exterioriza sua própria
expressão característica, como uma flor o seu aroma; a correlação entre os dois é
direta, inerente, não deixa lugar para ambigüidade. Toda expressão emocional ela
própria – sob qualquer condição – desce a nuanças sutis em sua própria maneira
característica. Deste modo, ao passo que deve ser dito que as palavras da linguagem
significam a fim de entendê-las, não somente as pessoas mas ainda os animais
diretamente compreendem o significado de uma fúria ou de um gesto conciliatório,
nunca confundindo o choro de temor com o choro de alegria.
Claramente, esta afirmação não nos leva muito longe, não contribui
significativamente para nosso entendimento da canção e o meio particular pelo qual
ela nos afeta. Há incontáveis humores sérios, incontáveis melodias sérias. A resposta
à nossa pergunta deve ser mais específica. Podemos dizer, por exemplo, que a
melodia expressa as emoções do cantor quando a transição – não realmente as coisas
sem valor, mas precisamente as coisas naturais e inocentes do mundo – nos é
colocada a par tão vigorosamente quanto ele é pelas palavras de nosso poeta.
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Igualmente esta formulação é ainda muito vaga, muito geral: ela ainda não
abarca o conteúdo desta canção em particular. Claro, ninguém estará isento de ser
afetado por sua vigorosa evocação da transitoriedade de todas as coisas mundanas,
claro, a cor da emoção que ela desperta é consoante com o tenor de nossa melodia.
Mas esta emoção, tomada em seu sentido geral, não é mais que um fundo
monocromático para as diversas imagens sugeridas pelas palavras, visto que a
melodia é muito mais que um mero fundo musical para as palavras. O que ouvimos
não é meramente alguma música suave acompanhando o recital do poema, mas mais
propriamente uma íntima e indissolúvel união de notas e palavras; a melodia, por
assim dizer, funde-se com as palavras, move-se em completo acordo com elas, sílaba
por sílaba, nuança a nuança. É esta concordância que determina a alta qualidade da
canção, e é esta concordância que está em questão aqui e que nós estamos tentando
entender. Aqui a teoria da música como uma linguagem das emoções falha em passar
no teste da experiência. Ao invés de clarear a experiência, esta teoria a torna
ininteligível.
indiretamente são expressas pelas notas. Mas isto seria uma hipótese ad hoc: anota
enquanto percebida por um ouvinte atento pode ser adequadamente descrita sem
referência a emoções. Que emoções estão presentes certamente não poderá ser
contestado, e elas parecem ser produzidas pelas notas, não por outro meio. (Isto é por
que deve ser totalmente errado cantar esta canção “com sentimento” – por exemplo, a
primeira estrofe “cruelmente”, a segunda e a terceira “pesarosamente”, e a quarta
“desafiadoramente”.)
A segunda estrofe mostra que o problema pode ser estabelecido sem ir adentro
daquelas sutilezas.
– para realizar pela primeira vez que o efeito do final permanece precisamente
sobre a repetição da frase, precisamente no fato de que a melodia de “Acautele-se”
inesperadamente manifesta o aspecto de “Regozije-se”1. Falar de um milagre, por
outro lado, seriam só e obviamente sugerir uma tentativa de cobrir a falha da teoria. O
milagre não é o incompreensível. A verdadeira teoria prova seu valor não ignorar o
miraculoso mas por torná-lo compreensível. Uma teoria que rejeita fatos observáveis
como incompreensíveis prova somente sua própria inadequação.
Reduzidos à fórmula mais curta, os fatos com os quais esta canção nos
confronta, e os quais nos concernem aqui, podem ser colocados como segue: (1) as
notas se ajustam às palavras, e (2) uma e mesma nota pode se adequar igualmente
bem a palavras que dizem coisas diferentes e ainda diametralmente opostas. Segue
que seu “ajustamento” não pode apoiar-se sobre um acordo tal como entre emoção e
expressão. Tornamo-nos íntimos dos fatos, entendendo-os melhor, se assumimos não
que as notas são mensagens enviadas para dentre de nós desde o mundo exterior (o
que elas seriam se elas fossem a expressão de emoções), mas que nas notas nossa
própria interioridade vai para fora e encontra a si mesma do lado de fora – que as
notas servem não para comunicar nossas emoções mas para ajudar-nos a compartilhar
ativamente no que elas dizem.
1
Mudar as notas para adaptá-las ao valor emocional das palavras individuais é (como um fator secundário)
característico da arte da canção. Quando Hugo Wolf, na canção “In der Frühe” eleva as notas Mi – Si, Mi – Si, “Fear no
longer, torment thyself no more, my soul”, para as notas Sol – Ré, Rejoice”, da linha seguinte, a mudança é
precisamente correta.
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“Há um Ceifador, homens, chamado Morte... O qual está ainda verde e fresco
hoje... O colorido-azul-celeste não-me-esqueço... atreva-se, Morte, venhá cá” – o que
a “partilha ativa” se refere neste contexto? O que ela não se refere é claro. As
palavras não evocam algo fora do cantor, digo, imagens mentais do Ceifador afiando
sua ferramenta, uma campina verde, uma flor azul, e uma Morte cavaleira combatente
e o Demônio. Aqui não pode haver dúvida de qualquer coisa como esta, nenhuma
dúvida da identificação do cantor em total empatia com o que tais imagens evocam,
com a Morte e seus feitos, com as flores e seu sofrimento, com o desafio e seu
triunfo. A imaginação enquanto a faculdade de conjurar imagens mentais não está por
conseguinte envolvida; nem é ilusão, o colocar a si mesmo no lugar do imaginado, a
substituição de outro ser pelo próprio ser. Mas é igualmente claro que o cantor não
leva realmente as palavras e notas para fora de si mesmo, permanecendo atrás como
mero observador. Ele partilha ativamente com aquilo que ele diz, ele o “vive”.
Como? Em que sentido?
Palavras que não servem para evocar vívidas representações de coisas, eventos
e sentimentos não são nada que não signos vazios – signos eu entendo sem
completamente explorar seus sentidos. “Morte”, “flor”, “desafio” – eu posso entender
estas palavras sem visualizar as coisas que elas denotam. Posso entendê-las como
“meras palavras”, “palavras vazias”, as quais provêm comunicação superficial, nada
mais. As palavras que são cantadas, no entanto, não são vazias, ainda se elas não
apontam a uma visualização concreta. Para o cantor, as palavras adquirem uma
plenitude muito especial e uma profundidade de significado. Algo que permanece
silente nas palavras meramente faladas começa a fluir, a vibrar; as palavras abrem e o
cantor abre-se a elas. É como se as notas infundissem nas palavras a força que revela
um novo estrato de significado nelas, que soprasse vida dentro delas de uma maneira
especial: não por fazer da palavra uma coisa tangível, como aparece quando vista do
lado de fora, e certamente não no sentido de submergi-las em uma vida universal na
qual toda particularidade, todas as distinções são abolidas, mas exatamente em seu
conteúdo determinado quando visto de dentro, desde um ponto onde o mundo é, por
assim dizer, um “Eu”.
Para o cantor, estas palavras não sugerem algo como uma infinita queda de
formas esplendorosas e frágeis. De fato, ele não vê nada de todo, não imagina nada;
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nem ele “empatiza” com todas aquelas coisas, incluindo a si mesmo, que deverá cair
ao chão. Ele simplesmente é esta queda e a queda é ele. Ele não observa a queda; ele
a “vive” e a queda “vive” nele. No estrato de significado tornado acessível pelas
notas, coisas que estão separadas se unem; aquele que fala e a palavra falada,
“pessoa” e “coisa” entram em contato direto. É como se uma porta tivesse aberta
através da qual o ser vivo daquele que fala vai para aquilo que ele está dizendo, e
aquilo que ele está dizendo entre dentro dele como algo que tem uma vida em si
própria, como um “Eu”. Embora nenhum dos dois absorva o outro, a antítese “eu” e
“ele” é transcendida: o cantor pode dizer “Eu” para aquilo que ele canta, e dizer “ele”
para si mesmo. A integral realidade da pessoa e a integral realidade das coisas são
agora fundidas em uma realidade assentada.
Expressar tudo isto em palavras pode ser algo complicado, mas o que
realmente acontece é simples. O processo é quase automático, comparável ao acender
de uma luz. O que temos aqui não é – longe disso – o resultado de um esforço
emocional: toma lugar abaixo da camada da afetividade (é por isso que o cantar “com
sentimento” inibe mais propriamente do que promove o processo). Mas se
exatamente as mesmas notas que se ajustam então singularmente a palavras
específicas de modo a levar à luz seus significados mais íntimos pode realmente se
ajustar singularmente a diferentes palavras, produzir o mesmo efeito – se a mesma
frase musical pode atingir diferentes escopos com a mesma acuidade – é claro que as
palavras, as quais enfatizam o que distingue uma coisa da outra, não pode tomar parte
decisiva neste processo. (“Coisa” localiza aqui tudo o que não é um “Eu”, quer seja
material ou espiritual, um objeto ou estado de mente, um sentimento ou evento.) O
afiar a lâmina, a queda das flores, a transitoriedade de todas as coisas mundanas, o
êxtase ascencional ao jardim celestial – cada um desses é cantado nas mesmas notas,
cada um é tornado igualmente vivo pela mesma melodia. Podemos concluir que no
estrato e realidade de onde vêm as notas e para a qual elas levam, não somente a
antítese do “Eu” e “ele” mas também as distinções entre as coisas são transcendidas.
Lá pode ser um estrato no qual todas as coisas têm suas raízes; então as notas podem,
por assim dizer, ativar esta camada e desse modo levar-nos próximos às raízes das
coisas. Místicos falam de um lugar “onde todas as coisas são unas”, implicando não
em uma mistura indiferenciada de todas as coisas, mas a fonte comum que nutre cada
coisa particular. Esta fonte é também o domínio das notas. A experiência
característica de cantar palavra, a qual conota ambos, a individualidade concreta das
coisas a que se refere e sua submersão num todo maior, torna-se então inteligível.
Uma e mesma melodia não poderia expressar “Cautela” e “Regozijo” com igual
verdade se tal domínio não existisse, se ele não fosse a fonte onde medo e alegria,
perdição e salvação, embora certamente diferentes, estão ligados em um significado
comum. A verdadeira existência das notas é a evidência de um estrato da realidade no
qual a unidade brilha através da diversidade.
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Som e Símbolo: Segundo Volume
O que tem sido dito sobre “o outro nível da existência”, “o outro nível da
realidade”, deve agora ser trazido a um foco aguçado.
O termo “nível” não é preciso o suficiente. “Outro nível” pode ser entendido:
1) Como “plano de fundo” para as notas, em um sentido de perspectiva – pois as
notas nos trazem para trás das palavras e do que as palavras dizem; 2) Como o
complemento “polar” das palavras – pois a realidade expressa na canção está
completa somente na união das palavras e das notas; e 3) Como uma síntese dialética
– pois as notas resolvem as antinomias presentes nos primeiros níveis. Estritamente
falando, nenhuma destas interpretações atinge o alvo. 1) Um “plano de fundo”
implica em um “primeiro plano” e um observador: do ponto de vista do observador
esse é o nível mais distante, ao passo que as notas, apesar delas realmente levarem-
nos atrás das palavras, manifestam um nível mais perto do observador, não ainda
mais longe. 2) As notas realmente complementam as palavras, mas as duas não são
opostas como um pólo e seu contrapólo, como o interior e o exterior, ou como o
espiritual e o físico. Enquanto pólo e contrapólo estão sempre no mesmo plano, a
união de palavras e notas resolve a antinomia de um plano pelo recurso de outro. 3) A
resolução não pode apropriadamente ser chamada de síntese dialética. Semelhante
síntese transcende ambas, tese e antítese, pela demonstração de que nenhuma é válida
e assim abole ambas, ao passo que as notas abolem a oposição verbal sem negar a
validade da palavra cantada. Ao contrário, elas intensificam e aprofundam o sentido
de toda palavra em sua particularidade maior, e pelo mesmo meio produzem a união.
A unidade expressa pelas notas consiste no fato de que a particularidade de cada
palavra é preservada como tal. Pense nos números, em como cada número existe
exatamente como uma pluralidade de distintas unidades: 1 + 1 se torna uno com 2; a
unidade 2 é 1 + 1. Estamos nos lembrando do velho ditado que fazer música é
definitivamente uma contagem inconsciente: deveríamos outorgar sua verdade neste
sentido?
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“Outro nível” não denota nem plano de fundo nem contrapólo nem síntese:
denota uma nova dimensão, no sentido geométrico do termo. O que é distinto, o que é
múltiplo no primeiro nível dimensional se torne uno passando para o segundo. Dois
pontos tornam-se uma linha, três linhas tornam-se a unidade triângulo, quatro
triângulos a unidade pirâmide. Em cada caso, um novo significado é revelado pela
passagem para a dimensão mais alta, onde elementos antes distintos e separados
formam um todo unificado sem perder suas identidades como elementos da ordem
inferior. Na verdade, sua clareza é reafirmada. Uma linha reta não faz somente juntar
dois pontos; ela também os mantém separados para sempre. A unidade triângulo não
pode existir a menos que o número de linhas retas seja três. Somente em uma
dimensão entendida como mais elevada podem elementos de uma dimensão inferior
ser unificados; sua unificação pressupõe a realidade ou possibilidade da dimensão
mais elevada. Outra vez a unificação tendo sido efetuada, a dimensão mais elevada é
criada, o potencial tornou-se atualizado.
(Para evitar possíveis mal entendidos, convém notar que aqui e em todo lugar
neste livro, “palavra falada” denota palavra como elemento da fala usada em sua
função social mais importante, isto é, para comunicar fatos, idéias, emoções, ordens.
Estas incluem a palavra escrita mas não a poesia, não palavras usadas com
proposição mágica ou ritual. As últimas são provavelmente sempre canções, e como
tais abrem para dimensões profundas. Após a poesia separar-se da música e tornar-se
uma arte puramente verbal, ela conservou a dimensão adicional; mais precisamente,
em sua arte as palavras faladas perfazem a função de notas. Poetas têm aprendido a
usar as palavras de tal modo que suas formas “planas” evoquem profundidade,
exatamente como pinturas estudadas para sugerir profundidade espacial pelo uso
apropriado de formas bidimensionais. Por conseguinte, os poetas se colocam na
30
mesma relação para a canção como, por assim dizer, a pintura em perspectiva para a
arquitetura.)
Uma imagem que talvez mais vividamente que qualquer outra transmite a
unidade apropriadamente, entre tantas muitas, é aquela da esfera, em particular se ela
é tomada em ambos os sentidos, o dinâmico e o geométrico. O centro da esfera é a
fonte de energia: do centro, linhas de força irradiam-se para fora em todas as
direções, preenchendo o espaço sem deixar nenhuma fresta. Na superfície da esfera
figuras são visíveis em qualquer forma ou número desejado. De todos os pontos de
todas as figuras, uma circunferência, um raio de energia, corre para dentro da esfera,
para o seu centro. As figuras permanecem como sendo muitas: como formas
bidimensionais elas são uma mera pluralidade, nada mais que muitas. Mas como elas
saem por um momento da superfície – carregadas por seus raios, por assim dizer –
elas convergem em direção ao centro, onde todas elas se tornam uma. Lá todas estão
perfeita e puramente juntas; elas são uma, embora não tenham sido absorvidas, não
tenham se tornado indistinguíveis uma da outra, pois em um ponto central cada figura
está presente tal o que ela é, cada uma definida por um feixe particular de raios. Cada
figura individual sobre a superfície encontra um padrão interno guiando para as
outras figuras através do centro comum a todas. A esfera de energia difundida torna
isto possível (Num trabalho de muito tempo atrás, Kepler disse que a esfera simboliza
a divina trindade Cristã: “A imagem do Deus trino e uno está na superfície esférica, o
2
Rilke, Briefe, p. 871 (itálicos de Rilke).
31
que vale dizer, o Pai no centro, o Filho na superfície externa e o Espírito Santo na
igualdade da relação entre o ponto e a circunferência’. O movimento ou emanação
passando do centro para a superfície externa é para ele o símbolo da criação.”)3
Tais imagens, é desnecessário dizer, parafraseiam mais do que definem a
natureza específica das relações do mundo das notas musicais. Contudo, elas nos
fazem ver mais claramente como este relacionamento não deve ser interpretado. A
unidade expressa pela palavra cantada enquanto oposição à pluralidade expressa pela
palavra falada não é aquela da Gestalt; nem é ela algo transcendente.
à parte da superfície; mas o fato que as linhas como tais permanecem juntas é
diferente em tipo pelo fato que elas estão unificadas pela graça da superfície. A
unidade da Gestalt repousa no fato precedente: a última caracteriza uma unificação
que não pode ser provocada com uma passagem para uma dimensão mais alta. A
unidade criada pela palavra cantada é deste último tipo.
Além disso – e isto é crucial – a passagem para outra dimensão não é uma
passagem para um “além”. A “nova dimensão” não é outro mundo, não é algo
misterioso como em oposição ao que é auto-evidente, não é algo sobrenatural. Para
ser claro, um ser bidimensional não pode conceber a profundidade espacial; para tal
ser, a terceira dimensão é um mistério impenetrável, ele emerge como um milagre
além do entendimento. Porém, profundidade espacial é ainda espaço, uma forma de
prolongamento exatamente como a superfície é – uma nova e rica forma de
prolongamento, não algo além do prolongamento, outra realidade do mundo, não a
realidade de outro mundo. Música não é (como Robert Musil colocou) “uma pequena
porta terrestre levando de volta para o sobrenatural”. O homem cantando não vai para
lugar algum, não abandona nada atrás dele, não diz adeus ao homem que fala.
Completamente ao contrário, é o homem que fala que alcança o fundo de si mesmo, e
ele faz isto não por voltar as costas para o mundo, não por olhar para dentro de si
mesmo em busca do mundo “interior” “melhor”; ele não vai para “dentro de si
mesmo”, ele vai para fora de si mesmo; ele não se fecha em si mesmo, ele se abre. A
mudança da palavra falada para a cantada não é uma volta de 180 graus, não envolve
uma mudança de direção. As pessoas que cantam alcançam de volta profundamente
dentro de si mesmas, estendem suas mãos mais adiante, e então também vão mais
longe, penetram profundamente nas coisas, do que as pessoas que falam. A palavra
falada e a palavra cantada não se referem a coisas diferentes; as coisas são as mesmas
e todavia não são as mesmas, certamente como as coisas que eu vejo com meus olhos
são as mesmas e todavia não são as mesmas, como quando eu às cegas as toco com
minhas mãos: eu as vejo sob uma nova luz, minha relação com elas é diferente, e as
coisas iluminadas pelas notas estão em uma nova em relação a mim. A nota que o
cantor acrescenta à palavra não cancela reciprocamente o mundo, mas antes dá a ele
uma margem delineada, faz ele vibrar com a mais alta freqüência, tanto que ele
penetra coisas a uma grande profundidade, desce a níveis onde sua separatividade
mergulha dentro da unicidade. O homem cantando alcança uma nova profundidade
do mundo, e pelo mesmo motivo alcança um nível profundo de si mesmo.
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
V. Música e Interioridade
E ainda Beethoven escreveu estas palavras como um lema para sua Missa
Solene, não uma sinfonia ou uma sonata. Além disso, a interpretação do
relacionamento palavra-nota necessariamente implicado ou pressuposto por Hegel
não é muito consistente com relação ao fenômeno da música da fase culminante; em
vista do que sabemos sobre as primeiras fases da música, esta interpretação é
extremamente absurda. Enquanto evidência musical, que do começo é não menos
importante do que da culminação, e é absurdo supor que a música tenha de qualquer
modo sido envolta em auto-contradição no curso de sua história. As palavras
nomeiam as coisas, referem-se a objetos, tornando-os exteriores; as notas expressam
a vida da alma integralmente destituída de objetos, referindo-se ao puramente
subjetivo, tornada interior: temos que concluir que as palavras e as notas puxam em
direções opostas. Se é este o caso, os significados das notas seriam estranhos aos
significados das palavras; cada um entraria em conflito com o outro e o
enfraqueceria. Que este não é o caso é atestado por todas as canções folclóricas. A
nota que o cantor adiciona à palavra não é estranha à palavra, não puxa na direção
oposta, para longe do que as palavras dizem; antes, as notas acompanham as palavras
em seu caminho para as coisas, para o objeto. Somente, ao contrário da mera palavra,
que ela não pára no objeto: ela transpõe a dimensão da existência objetiva, deste
modo tornando impossível que as palavras denotem ser nada senão objeto,
permanecendo congelada em sua existência como objeto. As notas não ofuscam o
significado das palavras mas antes o aprofundam. Incontestavelmente, a canção
“Cuidado” carrega mais advertência, e a canção “Alegre-se” mais alegria, do que o
que as mesmas palavras meramente dizem. Seria totalmente enganoso imaginar que
as notas levam o cantor longe das palavras; ao contrário, graças às notas, as palavras
não estão mais confinadas a meramente denotar objetos. Algumas vezes,
normalmente ao final de uma linha ou uma estrofe, as notas destacam-se das palavras
e o movimento melódico continua livremente por si próprio, mas as notas sem
palavras nunca voltam suas costas para as palavras que as precederam; ao contrário,
37
elas servem para explorar e saborear mais profundamente seus significados. A última
palavra da estrofe adere à melodia, a qual, por assim dizer, retém seu colorido. Para
ser claro, as notas são “não-objetivas”: em si mesmas não dizem nem “Cuidado” nem
“Alegre-se”, não dizem nada deste tipo; se o fizessem, não o diriam tão bem quanto
quando combinadas com as palavras. Mas a não-objetividade das notas não é aquela
do “outro lado”, da interioridade destituída de um objeto, de pura subjetividade; é
uma não-objetividade atrás dos objetos. “A intimidade da alma da vida é
compreendida pela música”: quando a canção ressoa, quando nós ouvimos as
palavras “Cuidado” e “Alegre-se”, e as palavras falando de resignação e desafio, de
colheita e decadência, qual vida interior é compreendida aqui? É o cantor ou o
compositor quem está advertindo, alegrando-se, resignando-se ao seu destino,
rebelando-se, colhendo, decaindo? Não, é a vida interior da advertência ou regozijo,
de resignação e desafio, a vida interior das flores e da lâmina. A dimensão revelada
pelas notas pode certamente ser chamada de “vida interior”, mas não é a vida interior
do sujeito como oposição à do objeto, a algo externo; não é a vida interior do ser mas
do mundo, a vida interior das coisas. Isto é precisamente por que o cantor
experimenta a vida interior como algo que ele partilha com o mundo, não como algo
que o coloca separado deste. Enquanto ele canta (e escuta a si próprio cantando) ele
descobre que as coisas do mundo falam a linguagem de sua própria interioridade, e
que ele próprio fala a linguagem interior das coisas. As notas expressam sua
harmonia. A antítese entre “interior” e “exterior” não é deste modo abolida, mas é,
por assim dizer, transformada em sua face: o vertical torna-se o horizontal. A parede
separando o ser e o mundo agora corre reta sobre todas as coisas, torna-se uma ponte
unindo os dois.
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
Eu não sustento que a fala existiu antes que a música. É impossível apurar a
exata seqüência de fatos sepultados há tanto tempo atrás. O que eu digo é que o
homem começou com a palavra. A palavra marca o avanço crucial que estabeleceu o
homem à parte dos outros seres vivos. Com a força da fala ele transpôs o círculo
fechado de ação e reação que mantêm os outros organismos vivos escravos de seu
ambiente imediato. Ao contrário do animal, depois que o homem adquiriu o poder da
fala, ele não somente existe na natureza e começa a conceber a “natureza” como algo
distinto dele mesmo. A palavra não divorcia completamente o homem da natureza, à
qual ele permanece confinado, mas ela desata seus laços, coloca-o à parte, cria as
coisas. A natureza se torna o mundo. A palavra é o signo por meio do qual o
ser/estar-no-mundo do homem é distinto do ser/estar-na-natureza do animal. A
40
Desde que o homem buscou entender a si mesmo, ele teve que entender-se
principalmente como um ser que possui o poder de falar. Isto não poderia ser de outro
modo. A idéia que o homem forma de sua própria essência pode concentrar-se em
atividades práticas, em ferramentas e tecnologias, ou em atividades teóricas, arte,
pensamento, ciência: o que essencialmente caracteriza tudo isto é que a linguagem do
homem nasce como atitude para com o mundo enquanto algo distinto de si mesmo.
Animais, também, trabalham, adaptam-se, pensam em seu próprio caminho, mas
somente o homem faz tudo isso como um “Eu” confrontado ao mundo. Somente o
homem tem um mundo, e ele o tem somente porque ele tem a palavra. Eu tenho dito
5
Cf. Ernst Cassirer, An Essay on Man, parte I, capítulo 3.
41
que as notas tornam acessível uma nova dimensão: o mesmo pode ser dito mais
apropriadamente das palavras. Para o cantor, o sentido de ser uno com o mundo, tem
um tipo de precedente no estágio pré-humano, no relacionamento do animal com o
ambiente natural, ao passo que a palavra marca a emergência de algo totalmente
novo, algo que nunca havia existido antes. A passagem para uma nova dimensão aqui
envolve uma quebra radical, um passo para fora da natureza: o homem que fala faceia
o mundo, vê-o “de fora”, fala para ele; em falando para ele, ele o vê como distinto de
si próprio, e vê a si mesmo como distinto dele; o que a palavra nomeia torna-se coisa,
objeto. Filólogos e psicólogos concordam que na evolução da raça bem como do
indivíduo, os objetos fazem seu aparecimento simultaneamente ao avanço dos sons e
signos expressivos para as palavras. A dimensão tornada acessível pela palavra é
chamada “realidade objetiva”. Isto não é algo que existe antes da fala, que a fala
meramente descobre; é primeiro e antes que tudo uma criação da fala. A linguística
comparativa está gradualmente destruindo nossa noção inocente da realidade objetiva
como algo absoluto, isto é, absolutamente autônomo, uma realidade inteiramente
auto-determinada para a qual nossas palavras e nossos pensamentos lentamente
encontram seu caminho, guiadas pela linguagem. “É preciso lembrar, desconcertando
o pensamento que o fato pode ser, que ao invés da gramática – a estrutura de um
sistema simbólico – ser um reflexo da estrutura do mundo, é mais provável que a
suposta estrutura do mundo seja um reflexo da gramática utilizada.” 6 Por esta razão o
termo “objeto” e termos designando o relacionamento objeto-sujeito têm diferentes
conotações em linguagens diferentemente estruturadas: cada linguagem “descobre”
sua própria realidade objetiva. Não há realidade “por detrás” destas todas realidades
objetivas diferentes; a noção de uma realidade objetiva “por detrás” da linguagem é
sem sentido. Tudo isto não diminui a importância da idéia de objetividade; somente
ajuda-nos a entender em que sentido a palavra pode ser dita como tendo criado o
homem e seu mundo. Agora, isto torna clara também a proposição de Ludwig
Wittgenstein em seu Tractatus Logico-Philosophicus, “os limites de minha
linguagem são os limites de meu mundo”, que não deve ser tomado num sentido
restritivo, mas é válido sem reservas.
Neste ponto pode parecer que nossas reflexões tenham se tornado auto-
contraditórias, incompatíveis com nossas primeiras assertivas resultantes de um longo
encadeamento de raciocínios, que a auto-imagem do homem que fala e seu mundo
precisa ser ampliada e suplementada. Realmente, a incompatibilidade é somente
aparente. Pois embora os limites de minha linguagem sejam os limites de meu
mundo, a música vive dentro destes limites: depois de tudo, nós a nomeamos,
dizemos “música”; a palavra a coloca diante de nós, torna-a uma coisa humana no
mundo humano. A música não é estranha a nós. Podemos nos apropriar dela porque
temos a palavra, porque a nomeamos, porque podemos fazer perguntas a respeito dela
– questões concernentes à música não somente enquanto uma “coisa” ou “objeto”
mas também enquanto uma realidade não cerceada pelas palavras “coisa” e “objeto”,
questões concernentes à natureza intrínseca da música, sua essência. Verdade, muitos
6
Ogden and Richards, The Meaning of Meaning, p. 96.
42
escritores rejeitam que tais questões relativas à essência da música tenham qualquer
significado racional. De acordo com eles, é possível falar racionalmente a respeito
somente do “objeto” música, uma atividade humana específica vista historicamente,
psicologicamente, sociologicamente – a periferia, a concha da música, não o seu
âmago; este último, estamos dizemos, esquiva-se à expressão verbal. Tomando este
ponto de vista, conclui-se que a música é por natureza inacessível à palavra, à
linguagem, está excluída do mundo da linguagem, isto é, o mundo humano. Mas
considerar que qualquer discurso sobre a essência da música é infrutífero pela razão
de que o núcleo essencial da música esquiva-se à expressão verbal é interpretar mal o
significado tanto das notas quanto das palavras. Se o discurso racional fosse possível
somente onde a essência da coisa não se esquivasse à expressão verbal, o que
restaria? Quem, salvo um matemático, poderia dizer algo racional a respeito das
cores, por exemplo? (tremenda loucura de Goethe!) Não se poderia falar sobre si
mesmo, muito menos sobre Deus. O homem como um ser racional estaria proibido de
fazer as muitas perguntas que mais do que qualquer outra coisa mais revelam-no
enquanto um ser racional, as questões a respeito de si mesmo e do significado de sua
existência.
palavras podem tomar o lugar das coisas, como se as palavras pensadas fossem coisas
tudo outra vez, em outra forma. As palavras não duplicam as coisas, nem elas
representam o “espírito” das coisas, nem meramente apontam para as coisas já dadas.
As palavras são fronteiras. Mas uma fronteira (limite) não é a mesma coisa a qual
está cercando (limitando). Neste sentido, o que é criado pela palavra continuamente
se estende além da palavra, estende-se “para dentro”. Algumas vezes sua parte
interior está “vazia” – quando uma coisa é inteiramente definida por suas fronteiras,
quando palavra e coisa coincidem, quando a coisa é idêntica à sua definição, como no
caso de muitos conceitos científicos e abstratos, especialmente os símbolos do
cálculo lógico. Normalmente, no entanto, o “lado interior” das coisas não é “vazio”; a
coisa não é idêntica à sua definição, é mais do que aquilo que a limita. Mas isto não
significa que as palavras devam agora ficar para trás: o que se estende além da
palavra não é por esta razão inacessível a ela. O mundo nomeado será seguido por
outras palavras, dirigidas para o interior, além da fronteira – as palavras que se
estendem para dentro daquilo que está circunscrito, palavras que traçam linhas
fronteiriças sempre mais próximas em torno das coisas, como se as persuadisse. As
coisas respondem de várias maneiras: dependendo de sua natureza ou estrutura, elas
se submetem prontamente ou resistem. Colocando isto de modo diferente, sobre
algumas coisas é fácil falar; muito pode ser dito a respeito delas, mais do que a
respeito de outras. Uma coisa visível, por exemplo, pode ser se delimitar, se
acomodar mais prontamente aos requisitos da fala do que um humor ou uma emoção,
o estático mais prontamente que o dinâmico, as “palavras” mais prontamente que as
“notas”. De modo geral, as palavras, por sua natureza, tendem a enfatizar limites,
puxando a atenção para eles; contraria esta tendência sempre exige um esforço
especial. Quando as palavras estão dando alcance demasiado, quando nosso
pensamento vivem exclusivamente nas palavras, na linguagem, pode ajudar que as
coisas, dando caminho para as palavras, aparentemente se retraindo mais e mais
adentro de suas fronteiras, tornando-se idênticas com suas definições: o mundo se
torna irreal. Neste sentido, dissemos acima que a mera palavra “sujeito” transforma o
sujeito em um objeto. Se o mesmo é admitido acontecer à palavra “nota”, nosso
discurso sobre as notas muito breve estará confinado a freqüências e curvas sinoidais,
a figuras e números, isto é, à física; se isto acontece à palavra “música”, nós logo
confinaremos nosso discurso à história da cultura ou a regras da teoria musical. Mas a
linguagem nunca é impotente. As palavras podem dizer “não”, podem repetidas fezes
desfazer o que as palavras fizeram podem perturbar a fixação das coisas em sua
existência enquanto objeto, forçar abrir o que elas haviam fechado dentro de suas
fronteiras, traçar novas fronteiras e forçá-las a se abrirem novamente – palavras
atuam contra palavras, linguagem contra linguagem, ainda assim não cessando de ser
palavras, linguagem.
Outra vez a metáfora da esfera vem à mente. O estágio pré-lingüístico pode ser
representado pela esfera indiferenciada. Com o emergir da fala uma diferenciação se
manifesta, a esfera articulando dentro de um centro e uma superfície esférica vista de
dentro – como nós vemos o horizonte, por exemplo, ou o céu estrelado. O centro
44
“Os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo”: somente agora
o significado da proposição de Wittgenstein pode se tornar inteiramente claro. “Os
limites da linguagem” não implica a existência de um domínio inacessível à
linguagem. Não existe tal domínio. Nada de fato ou potencialmente relevante para a
existência humana está além da compreensão da linguagem; o domínio da palavra é
ilimitado. O limite além do qual as palavras não podem atingir é sua própria atividade
delimitadora. O limite da linguagem é ser ela mesma ser-um-limite (está em ser um
limite). Por mais largos ou estreitos os limites que a linguagem trace, há sempre
alguma coisa que nunca é alcançada: aquilo que está delimitado. Isto é o indizível –
Wittgenstein chama-o de “místico”. Não o místico no sentido de ser infinitamente
remoto, totalmente encoberto; é o que está próximo de nós, em sua presença mais
manifesta, presente em tudo que não seja uma ficção intelectual ou lingüística. Isto é
o que Aristóteles quis dizer quando ele disse que o individual é o inefável. Isto é o
que Rilke tinha em mente quando disse: Wagt zu sagen, was ihr Apfel nennt!” –
“Ouse soletrar o que você chama de maçã!”. Ele próprio ousou exatamente aquilo,
em um de seus poemas da seqüência de “Orfeu”. Wittgenstein estava errado ao
45
escrever, “o que nós não podemos falar de nós devemos despachar para o silêncio”.
Mas não de todo: o que não podemos falar de nós, podemos cantar a respeito.
Realmente o que queremos dizer aqui deveria estar claro. O homem cantante
não se eleva acima do homem falante; o homem musical não suplanta o homem
racional. A diversidade das notas não é de outro mundo. Elas não derivam de algum
além transcendental ou de algum pensamento, emoção ou ser “puramente interior”. É
a atitude do homem cantante diferente para com o seu mundo. Aquilo do que o
homem falante o coloca à parte e o que ele considera diante de si mesmo, o homem
cantante traz tão perto de si próprio quanto ele possa, tornando-se um com ele. Os
dois atos são como inspirar e expirar, dentro de um processo, ou a
complementaridade do sábio chinês do amor e do respeito.
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
– jogam um papel crucial, não somente na música primitiva mas também no estágio
culminante da arte musical. Quão surpreendentemente uma extensão ainda hoje de
músicos praticam magia no sentido literal (não metafórico), o trabalho volumoso de
Jules Combarieu, La musique et la magie, demonstra com uma grande quantidade de
exemplos documentados. A afinidade entre música e magia não vem realmente de
similaridades superficiais; ela está enraizada em sua verdadeira natureza. Os mesmos
termos servem para caracterizar a essência da musicalidade e a mentalidade mágica;
em ambos, o sentido humano de ser uno com o mundo pesa mais do que o sentido de
ser distinto dele: o que liga o homem ao homem, o homem às coisas, e coisa com
coisa pesa mais do que aquilo que as separa. Se é verdade que as notas constróem
uma ponte sobre as fronteiras que as palavras apartam entre subjetividade e
objetividade, a correspondência entre música e magia parece completa. Talvez seja
natural reconhecer em música a forma na qual a magia sobrevive até os nossos dias.
Em seu livro Usprung und Gegenwart, Jean Gebser não se contentou em notar
a correspondência íntima, bem como as afinidades, entre música e magia: de acordo
com ele, a música de fato determina a verdadeira estrutura da magia. “Se os laços
entre música e magia revelam que elas são intimamente ligadas”, ele escreve, “e deste
modo sendo a música eminentemente mágica, não será surpresa se acreditássemos
estar justificados em separar a audição como o órgão interno que joga o papel
predominante no estágio mágico. O mundo mágico, e com ele uma parte essencial do
que constitui nosso próprio mundo, originado no som mágico, operando por meio da
audição, dando ascensão ao mundo audível.” Na extensa perspectiva deste livro,
expondo a totalidade do desenvolvimento da humanidade em termos de uns poucos
passos evolucionários decisivos, o estágio mítico suplanta o estágio mágico ao
mesmo tempo em que as palavras suplantam as notas em sua irrevogável função
final. Música e fala significariam dois estágios de desenvolvimento. O estágio
mágico: o mundo experimentado como uno; a existência como eterna, ilimitada,
desprovida de ego; a oposição entre homem e mundo não está ainda presente para a
consciência desperta mas como ainda um sonho, enterrada sob a consciência de que o
homem e a natureza são originalmente unos; o individual dissolvido no grupo, não
ainda oposto a ele. O estágio mítico: a consciência do espírito individual, oposição
entre o homem e o mundo sentida como uma polaridade; a consciência do ser como
existindo no tempo; o indivíduo em processo de imersão desde o grupo. No estágio
mágico o órgão crucial é o ouvido, o sentido crucial é o sentido da audição. No
estágio mítico é a boca, o órgão da fala. Não há boca nas representações antigas das
figuras humanas; somente mais tarde é a boca completamente delineada.
É fácil ver como esta conclusão pode ser reconciliada com o fato inegável de
que a música é intimamente relacionada com a música. Podemos somente manter
claramente na mente que a mesma palavra, “nota”, denota algo diferente em cada um
dos dois estágios em questão. A nota da alma ainda aprisionada do sonho,
inconsciente do ser e do tempo, é como um fenômeno biológico, um som expressivo
ou signo (aviso, chamado, apontamento) ou ambos: um elemento em uma cadeia de
elementos reais. A nota para uma consciência desperta, a nota musical propriamente,
é um fenômeno semântico: parte de um sistema de relações audíveis, um elemento
estrutural, um membro de um todo simbólico. O significado especial das notas
musicais repousa sobre isto, a realização crucial do estágio mítico, a descoberta do
símbolo, torna-se fértil no próprio mundo audível, isto é, no elemento em que está o
essencial do estágio mágico suplantado, o elemento que incorpora aquela
interpenetração entre homem e mundo. O conteúdo da música é mágico, sua forma é
51
mítica. A música assume o comando e põe em ordem o velho dentro do novo; não
imagina o passado, não olha para trás, não é uma reconstrução mas, antes e mais que
tudo, uma construção: o passado se torna símbolo e desta forma continua a ser uma
força viva no presente e naquilo que está por vir. A música realiza a apropriação do
mágico pelo espiritual: o núcleo essencial da existência mágica é integrado à ordem
espiritual. Inferir da afinidade entre música e magia que a música se origina no
mundo da mágica é falacioso. A música não se origina na mágica; ela originou-se
precisamente devido à perda do mundo da magia, seguindo a lei de que todo
desenvolvimento vivo em que cada estágio sucedente deve incorporar os modos de
existência do estágio precedente. Fala e música não são antagonistas, representam
dois estágios de desenvolvimento, um dos quais supera o outro. Nossa discussão
sobre o relacionamento palavra-nota na canção demonstrou que os dois trabalham
juntos, não um contra o outro; que eles não se contradizem, mas realçam um ao outro;
As palavras dividem, as notas unem. A unidade da existência que a palavra
constantemente quebra, separando coisa de coisa, sujeito de objeto, é constantemente
restaurada nas notas. A música impede o mundo de ser transformado inteiramente em
linguagem, de tornar-se nada que não objeto, e impede o homem de tornar-se nada
que não sujeito. Em nada pode a palavra ajudar a isto; a objetivação da palavra
necessita da nota, exige-a: fortalecer as notas, liberta as palavras para efetuar sua
tarefa de objetivação. Certamente não é um acidente que o mais alto desenvolvimento
da força das notas na música instrumental moderna e o mais alto desenvolvimento do
poder de objetivação das palavras na ciência moderna coincidem historicamente com
a divisão radical já delineada entre subjetividade e objetividade. Não porque as notas
expressam o sujeito tão adequadamente quanto a palavra expressa o objeto, não
porque as notas nutrem o elemento irracional enquanto a palavra alimenta o elemento
racional. Uma e outra são falsas e superficiais. O que a nota expressa não é o sujeito
mas a interpenetração do sujeito e do objeto. A música não floresce às expensas da
racionalidade. A música se origina, se desenvolve e alcança sua culminação dentro da
racionalidade humana, junto com ela, e não fora ou contra ela.
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HOMEM O MÚSICO
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Som e Símbolo: Segundo Volume
um lugar onde ele nunca havia estado antes. Em resumo, o que tentamos entender é
por quais caminhos o mundo e o homem são modificados pela música.
HOMEM O MÚSICO
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Som e Símbolo: Segundo Volume
Rodeados pelos ruídos da era tecnológica, ensurdecidos por seu barulho incessante,
nós estamos alienados do mundo audível em uma extensão da qual não estamos
conscientes ainda. Quanto à visão, estamos em melhor situação: os olhos ainda
encontram um pedaço de céu por sobre a feiúra da esquina mais sombria da
metrópole. A parede de máquinas gera pseudo-sons que nos envolvem sem deixar
vazios; sons naturais apenas esparsamente a penetram. Os ruídos da rua abafam até
mesmo o troar do trovão. Um silêncio ocasional chega a nós como sendo artificial;
ele nos deixa constrangidos e nos precipita a ligar algum ruído artificial para nos
livrarmos dele. Nossa imagem do mundo audível torna-se distorcida, uma caricatura.
Não há nada aí salvo o barulho das máquinas e, então, Deus sabe onde ou de onde,
desconectado de todo o resto, um corpo estranho – a música.
conteúdo audível. Seu método de nomear as percepções sonoras é associar sons com
suas fontes físicas. No espelho da linguagem, aquilo que é ouvido aparece como um
atributo daquilo que é sentido ou tocado.
Este não é o lugar para decidir a questão de, em quais casos, a linguagem
reflete a história natural da percepção ou impõe sua própria ordem nova sobre esta
última. O que é certo é que a linguagem e a sensação correm em paralelo uma com a
outra: quando ouvimos um som, percebemos geralmente, em adição ao som, a coisa
ou evento que produz o som. Ouvimos o mar ou a tempestade, não ouvimos
meramente um roncar; ouvimos sinos, não um tilintar; uma maçã, não um baque.
Nossa audição não pára, por assim dizer, na sensação mas se estende através dela até
a fonte sonora. Algumas vezes se estende a dentro do vazio. Quando ouvimos um
som cuja fonte permanece indeterminada – um roçar, por exemplo, mas não o algo
que roça – então a sensação é insatisfatória, inquietante; ela nos impele a ouvir, a
tentar descobrir a fonte material do som, e não descansaremos antes de termos sido
bem sucedidos em associar o que nós ouvimos com algo visível-tangível. Deste modo
percebemos o mundo audível todo, enquanto um acessório ao mundo das coisas
visíveis e tangíveis, como se envolto em torno dele. As coisas visíveis-tangíveis
regalam-se com a luxúria de serem audíveis – pois uma mudança, pois o amor ao
colorido, o enriquecimento da pintura, nos agrada, nos inquieta, nos adverte – olho e
mão agem como legisladores, o ouvido como um órgão auxiliar: isto é como alguém
poderia descrever o mundo aberto aos nossos sentidos.
O fenômeno é único. Que dentro do domínio sensorial uma sensação por outro
lado liga as coisas como uma de suas “qualidades” deveria emancipar-se e construir
um mundo autônomo de seu próprio, livre de qualquer referência objetiva, não ocorre
em outra parte. O fenômeno análogo no mundo visível, a arte das formas e cores
puras, não oferece nada comparável, pois as cores e as formas são ambas as mesmas
como encontradas nos objetos ou derivadas dos objetos, enquanto o homem não
encontra notas no mundo audível: ele precisa provê-lo delas. É o homem quem cria o
puramente audível, no qual o mundo audível se revela em uma forma que é
inteiramente própria. Sem música, a audição poderia ser considerada como se fosse
ver com os ouvidos. Somente na música, a audição assume a posse de si própria.
Nossas “camadas” não devem ser confundidas com estágios sucessivos, como
se ouvíssemos primeiro um, depois o outro, e assim por diante. Quando ouvimos
música todos eles se apresentam de uma vez. Necessariamente, analisar uma
experiência unitária é quebrá-la em suas partes.
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HOMEM O MÚSICO
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X. A Audição de Notas
61
O que é uma nota, o que constitui a diferença entre uma nota e outra, não pode,
estritamente falado, ser definido. A única resposta adequada à questão “O que é uma
nota?” é cantar ou tocar uma nota. Não importa quão muitas palavras usemos, não
importa quão corretas e aptas elas possam ser, elas não darão a uma pessoa surda
ainda a mais vaga idéia de uma nota. Tal pessoa pode saber ou entender todas as
palavras que tenham sido ditas a respeito das notas: o cerne essencial da realidade
referida pelas palavras permanece um espaço vazio.
É ainda possível encontrar pessoas que imaginam que elas têm a verdadeira
resposta para a questão do que é uma nota ou o que é uma altura. A resposta é: uma
nota é a vibração do ar ou outro meio de propagação.; altura é o número de vibrações,
a freqüência. A palavra “é” aqui significa “é realmente” ou “é verdadeiramente”. É
62
Aqui uma qualificação é necessária. Todos sabem que uma e a mesma melodia,
pode ser cantada por um soprano ou um baixo, tocada em um violino ou violoncelo.
Apesar das alturas completamente diferentes, a melodia permanece idêntica. O que
permanece imutável é a relação da altura de cada nota com suas notas vizinhas. O que
torna uma melodia não é, falando apropriadamente, as notas mas as relações entre as
notas. Um melodia tomada como um todo pode ser mudada para trás e adiante no
espaço tonal, pode ser transposta para outro tom sem ser modificada, de fato como
uma figura geométrica permanece não modificada se a imaginamos de um plano para
outro no espaço (mais precisamente, no espaço euclideano). Esta afirmação trivial
encobre problemas musicais e geométricos de igual peso. O mesmo é verdade para
uma duração: encurtando ou aumentando o todo dos valores de duração na mesma
proporção não afetaremos a melodia. Em outras palavras, uma melodia permanece a
mesma quando tocada em um andamento rápido ou lento (dentro de limites
razoáveis). O que não pode ser mudado sem mudar a própria melodia é a relação
entre a duração das notas, a proporção da duração de cada nota com relação à duração
de suas notas vizinhas.
Ouvir uma melodia é, desse modo, primeiro de tudo ouvir uma seqüência de
notas que permanecem em uma relação específica uma com a outra no que diz
respeito à altura e à duração. Quando ouço uma melodia, não ouço primeiro uma
nota, então outra, então uma terceira, e assim por diante; ao mesmo tempo a cada
nota, eu ouço a relação na qual ela se coloca em relação às outras notas, precedentes e
63
não mais que um revestimento externo, uma vestimenta prazerosa; a essência real da
música não é audível, não é percebida pelos sentidos, mas percebida por outras
funções não-sensoriais. O som, eles afirmam, é meramente um mediador, um
mensageiro; não há diferença essencial entre a audição de música e a audição de uma
leitura: o som das palavras alcança o ouvido, mas o que importa é obviamente o
significado das palavras, não o som, e compreender o significado não é uma função
sensorial, mas uma intelectual. Similarmente, eles concluem, quando percebemos o
significado musical, a função envolvida não pode ser a audição; falando estritamente,
a experiência musical não é uma experiência auditiva. Paul Hindemith – para citar
um testemunho proeminente – distingue “som, a qualidade externa” do “imaterial, o
aspecto espíritual” da música. Podemos, ele diz, “superar o mero registro das
sensações, a superficial dependência emocional dos sons” – não no sentido de
desenvolver uma atitude mais adequada em relação ao som, mas para emanciparmo-
nos do som como tal, realizando a pura compreensão dos aspectos espirituais da
música, purgados de todos os elementos sensoriais.
geral, mas sem a mínima sobre a audição. Suas convicções são convicções de ciência
popular, envolvendo tais noções antiquadas como o “fato” de que tudo o que os
órgãos dos sentidos fazem é reagir a estímulos exteriores, e por via dos nervos, levar
sua mensagem a algum centro no cérebro, o qual então produz alguma sensação
correspondente na mente. Deste ponto de vista, a função do órgão dos sentidos é
informar o organismo sobre eventos externos a ele. Toda sensação corresponde
exatamente ao evento que a produziu: não há nada na sensação que não tenha sua
contraparte no evento externo. Contudo, as sensações não dão tal informação – pelo
menos, não inteira ou explicitamente; elas meramente servem como sinais. E como
tais elas tem ainda que ser interpretadas por outras funções intelectuais a fim de
serem reconhecidas como apontando para objetos ou eventos específicos. O que pode
ser dito sobre ruídos – ouvimos um som, e sabemos que ele vem de um sino – é
verdadeiro para todas as percepções dos sentidos. A sensação em si mesma não é
mais do que um pedaço de material bruto – um som, uma mancha de cor, uma
qualidade tátil – tão sem sentido como uma letra individual em uma caixa de tipos;
ela adquire significado somente após ser incorporada dentro de um contexto
relevante, sendo o mais importante aquele que associa a sensação com a coisa ou
evento no mundo exterior que a produziu.
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
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e a seu próprio modo. Elas tendem a se mover para longe de si mesmas em direção a
ela; elas carecem de equilíbrio e esforçam-se por obtê-lo. Elas carecerem de
equilíbrio é completamente óbvio para quatro notas – a segunda, a quarta, a sexta e a
sétima notas do sistema: estas notas são claramente instáveis. As duas notas
remanescentes, a terça e a quinta, apresentam um estágio intermediário: ainda que
mais estáveis que as outras, elas estão claramente dirigidas para a nota perfeitamente
equilibrada; em outras palavras, elas estão em um estado de tensão interna.
ouvimos neste instante, mas as relações das direções e tensões das notas. Ainda
tomando por certo que quando o fenômeno acústico está em questão, podemos estar
justificados em duvidar se podemos ouvir as relações das notas (realmente, é
impossível ouvir que um evento acústico se relaciona com outro não ainda ou não
mais presente, isto é, audível) – ainda tomando isto por certo, é precipitado concluir
que as relações das notas não podem nunca ser percebidas pelo ouvido mas somente
por funções não-sensoriais. Quando as qualidades das notas se manifestam na música,
as relações das notas tornam-se audíveis. Ouvir as qualidades dinâmicas das notas é,
acima de tudo, nada mais que ouvir uma nota se relacionando com outras notas,
basicamente com a nota central: a situação dinâmica predomina em vários lugares no
campo dinâmico tornado ele próprio audível nas notas. Nós nos tornamos consciente
destas relação unicamente por meio de ouvi-las; nenhuma outra função não-sensorial
está envolvida. O que toma lugar não é que a nota ouvida é relacionada a uma nota
lembrada ou esperada. Quando ouço a nota tensão _____ em nossa melodia coral, não
tenho um quadro mental – recordação ou antecipação – da nota perfeitamente
equilibrada _____ ; a tensão, a direção o apontar além estão todos dentro da própria
nota, são todos completamente audíveis; eles preenchem minha consciência a
transbordar, não deixando lugar para qualquer outra coisa. Ouvir uma melodia é
essencialmente um ato da audição – o que vale dizer, uma imediata percepção das
relações das notas.
O que é peculiar à qualidade dinâmica da nota é que nada no evento físico que
produz a sensação corresponde a ela. A qualidade da nota que torna a música possível
não tem contraparte no mundo material. Quando uma nota ressoa, uma curva
luminosa aparece na tela do osciloscópio; um observador experiente pode ler desta
curva todas as características acústicas da nota; a única coisa que ele não pode ler
dela é a qualidade dinâmica da nota. A menor mudança nas propriedades acústicas da
nota será imediatamente registrada por uma mudança correspondente na curva; mas
nenhuma mudança, por mais radical, na qualidade dinâmica será alguma vez
mostrada na tela. Os eventos físicos e musicais pertencem a diferentes ordens da
existência.
Deste modo, o que toma lugar aqui é uma real ruptura no campo da percepção.
Todas as sensações audíveis (incluindo as sensações de uma nota como um evento
acústico) são ou as reações da audição a estímulos externos ou a alucinações. A
audição das qualidades dinâmicas das notas não é nenhum dos dois. É a percepção
direta de eventos não materiais. As qualidades dinâmicas das notas dão à audição o
acesso direto a tais eventos. A condição única das notas – se comparada aos ruídos e
outros sons – sua auto-suficiência audível, tem sido por enquanto caracterizada só
negativamente, pelo fato de que as notas não se referem a coisas visíveis e tangíveis.
Podemos agora caracterizá-la positivamente: a nota transcende a sensação auditiva
dentro do audível, uma transcendência interior. Diferente dos sons não musicais, os
quais, indo além do audível, estendem-se até os objetos, a nota vai para um além
audível. Ela penetra neste último no ponto onde o fenômeno acústico se converte em
70
musical. Neste ponto, o próprio escopo da audição se alarga: a audição não é mais
confinada a reações a estímulos externos. “Mais do que nota” é ainda nota; “mais do
que ouvir” é ainda ouvir. Deste modo, a divisão usual da experiência musical em
qualidades externas do som e aspectos espirituais, reações ao estímulo sonoro e
funções não-sensoriais – emoção, imaginação, pensamento ou tudo o que dissermos –
desconsidera a verdadeira essência do fenômeno. O que existe além do domínio da
qualidade externa do som (isto é, do acústico) não é o domínio dos aspectos
espirituais da música – eles não são alcançados senão muito mais adiante – mas
primeiro de tudo, e por longa extensão, as qualidades musicais características das
notas. Onde termina a audição não musical (a percepção das qualidades acústicas
somente), o que começa não é emoção, pensamento, imaginação, mas a verdadeira
audição musical. O mundo da música em sua plena amplitude e riqueza se estende
entre o domínio da audição acústica e as funções não-sensoriais. Sua realidade,
aquela de um processo não-material, é a audibilidade: ela é inteiramente percebida
pela audição.
Fosse este o caso, dificilmente seria correto sustentar que a audição musical,
enquanto distinta das outras espécies de audição, marca uma “quebra de fronteiras”.
Se a percepção é sempre uma percepção Gestalt, diferentes tipos de audição
poderiam diferir somente em grau. De fato, poderíamos perguntar se a nossa primeira
assertiva envolvendo o problema essencial da realidade musical – que nada no
contexto físico do mundo exterior corresponde à qualidade dinâmica das notas – pode
ser sustentada em face das descobertas da psicologia da Gestalt. Logo que
abandonamos a noção de que a nota individual é um dado sensorial primário, estamos
justificados para considerar o evento físico, a onda sonora individual que produz a
sensação da nota, como a contraparte da nota musical. Se a nota musical não é nunca
ouvida como uma nota individual, ainda que ao momento que a ouvimos não existam
outras notas, mas sempre como parte de um todo, relacionado a outras notas e ao todo
da Gestalt das notas em processo de atualização; se, sendo uma parte, ela é
determinada pelo todo e é ouvida enquanto, ou melhor está, o mesmo ou outro,
dependendo do contexto ao qual ela pertence; se, em outras palavras, nós sempre
percebemos um todo quando percebemos uma nota individual, a contraparte física do
evento musical pode ser procurada na totalidade dos processos que correm paralelos à
audição do todo. Verdadeiramente, uma onda sonora não mostrará mudanças na
qualidade dinâmica de uma nota, ou, certamente, que a nota tenha qualquer qualidade
dinâmica de qualquer modo. A extensão da freqüência da nota isolada Ré não difere
nem de pouco daquela da mesma nota na frase ______; nada no desenho do último
72
Ré mostrará que 5 se torna 1; nem deveria o quadro mudar nem de pouco se a nota
Dó# na melodia fosse substituída pelo Dó então aquele Ré seria ainda 5. Mas depois
de tudo, a nota Ré é 5, torna-se 1, ou permanece 5 não em si mesma, como uma nota
individual, mas somente no contexto com outras notas, como parte de um todo dado.
Conseqüentemente poderíamos ver que para a contraparte da qualidade dinâmica da
nota não há representação de uma onda sonora individual mas no espectro de todas as
ondas correspondentes a um todo tonal dado. E deste este último desenho será
certamente possível ler a diferença entre Ré – Do – Ré e Ré – Dó# – Ré.
Parece, então resultar da teoria da Gestalt que (1) as qualidades dinâmicas das
notas são determinadas pela totalidade da Gestalt das notas, permanecendo a mesma
ou mudando quando a Gestalt permanece a mesma ou muda, e (2) cada Gestalt é
caracterizada por um espectro de dinâmicas de onda que permanece a mesma ou
muda simultaneamente à Gestalt. As qualidades dinâmicas das notas e os eventos
físicos são então correlacionados pela Gestalt. A possibilidade de transpor melodias,
em particular, mostra que a identidade e a diferença de Gestalt depende não das
alturas individuais mas da proporção das alturas; o que é relevante no evento físico
correlato não são as freqüências mas as proporções de freqüência. É, então, nestas
proporções que deveríamos reconhecer a contraparte física do evento psicológico da
audição musical em geral, e da audição das qualidades dinâmicas em particular.
A psicologia da Gestalt tem até agora falhado (1) em distinguir com acuidade
suficiente entre visão e audição (e entre ouvir padrões das notas enquanto acústico e
musical), e (2) em reconhecer que a temporalidade dos padrões das notas é
radicalmente diferente da espacialidade dos padrões visuais. Estes dois pecados de
omissão – se eles podem assim ser chamados – têm uma longa história. Uma década
antes da publicação do trabalho pioneiro de Christian von Ehrenfels, “Über
Gestalqualitäten”, Ernst Mach em seu Analyse der Empfindungen: “De acordo com
pontos de vista iniciais” – este se refere à teoria tradicional da audição desenvolvida
com base na teoria de Helmholtz – “um fato importante, a ser discutido adiante,
permanece incompreensível, e contudo nenhuma teoria pode ser completa sem
considerá-lo. Se duas seqüências de notas começam com duas notas diferentes, e as
proporções entre as freqüências não variam enquanto uma nota segue a outra, e as
proporções entre as freqüências não variam enquanto uma nota segue a outra,
ouvimos a mesma melodia em ambas tão precisamente quanto vemos duas figuras
geométricas similares e posicionadas similarmente como sendo a mesma forma.
Melodias idênticas em diferentes posições podem ser chamadas ... estruturas de notas
de um mesmo padrão tonal.” O problema, o programa e o método da psicologia da
Gestalt está aqui formulado por antecipação. Seu problema é o fenômeno Gestalt, a
imediatez da percepção Gestalt; seu programa pede por alargar o primeiro ponto de
vista ou recolocá-lo por outro que seja capaz de responder pelo fenômeno Gestalt; e
seu método é antecipado por que o problema é formulado em termos geométricos e
não musicais: a Gestalt audível e temporal está sendo estudada com base na Gestalt
74
Próxima objeção: uma figura deve ter duas dimensões para ser percebida pelo
olho; a ordem das notas conforme a altura tem somente uma dimensão. Se as
melodias estão sendo representadas como figuras, a dimensão tempo – a duração da
nota – pode ser adicionada. Linhas horizontais podem indicar o tempo, as verticais a
subida ou descida das notas. Conseqüentemente, o primeiro passo no motivo citado
acima _________ , seria visto no papel aproximadamente como isto: . Os traços
horizontais representam a nota, com o comprimento dos traços indicando a duração
da nota e sua posição indicando a altura; a linha vertical indica a diferença de altura.
O mesmo par transposto para outro tom ________ - mesma Gestalt das notas, a
mesma proporção numérica, mas número de freqüências diferentes – poderia então
ser apresentada por uma figura similar: a mesma Gestalt, a mesma proporção
numérica, mas com diferentes comprimentos. O que é a linha vertical considerada
indicando agora – a razão 3 : 2 obtida de ambos Sib – Mib e Sol – Do ou a redução em
freqüência na proporção 6 : 5 que resulta de sua transposição? No primeiro caso, a
figura seria a mesma, não similar, e o quadro não mostraria que o motivo tinha sido
transposto; no último caso, a figura não seria mais similar porque a linha vertical
seria mais curta, enquanto as horizontais representando a duração da nota
permaneceriam as mesmas de antes.
Uma representação geométrica pura das relações das notas pode ser realizada
somente se, ao invés das figuras, usamos linhas verticais para indicar freqüências e a
proporção entre elas. O intervalo sib – mib poderia então ser representado por ,o
intervalo transposto Sol – Dó por . A diferença em altura estão aqui representadas
por diferenças de comprimento, a proporção igual de seus comprimentos expressando
o fato que os dois padrões de notas são idênticos. Mas é ainda verdade que aqui,
tambémsem usar figuras ou ângulos, apreendemos diretamente a identidade de dois
padrões, ou igualmente apreendemo-la tão diretamente quanto ouvimos a identidade
das melodias? No diagrama colocado abaixo, podemos ver imediatamente qual dos
três pares à direita exibem a mesma proporção de comprimento que a do par à
esquerda?
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Podemos ver tão imediata e inconfundivelmente quanto ouvimos que Sib – Mib
(par a) é corretamente transposto em Sol – Dó (par c) mas não em Sol – Ré (par b) ou
Sol – Si (par d)? A fundamentação na qual a comparabilidade da audição e da visão é
suposta repousar provas sobre a investigação ser qualquer coisa mais sólida.
Última e decisiva objeção: é por não significar o caso que a Gestalt tonal
permanece inalterada na transposição por que as proporções das alturas permanece a
mesma. Esta última é certamente uma condição necessária mas não suficiente. É
suficiente ouvir a escala maior como a uma melodia. Dó – Ré – Mi – Fá – Sol – Lá –
Si – Dó certamente diz algo mais do que a mesma coisa duas vezes em diferentes
posições. E ainda as proporções das alturas em Dó – Ré – Mi – Fá é a mesma que
aquela em Sol – Lá – Si – Dó. Para a Gestalt das notas permanecer inalterada na
transposição, não é suficiente manter inalteradas as proporções das alturas das notas:
devemos também olhar para aquilo que a qualidade dinâmica das notas não muda,
isto é, que o centro dinâmico é modificado com as outras notas. Nem poderia ser de
outro modo, pois uma nota se torna parte de um todo musical em virtude de sua
qualidade dinâmica, não em virtude de sua altura, e a qualidade dinâmica de cada
nota é determinada pela sua relação ao centro dinâmico, não por sua posição ou sua
freqüência em relação às notas vizinhas.
O que foi discutido no trecho anterior não foi a melodia propriamente dita, uma
seqüência prolongada de notas, mas os passos de nota a nota: os intervalos. É uma
matéria de debate se o material construtor da música atual consiste de notas
individuais ou de intervalos. Seja como for, a menor unidade musical (a qual não é
77
o que ouço é sem dúvida o mesmo tema de antes deslocado para uma posição abaixo;
mas eu o ouço como o mesmo não por que as proporções das alturas são as mesmas,
mas por que meu ouvido foi reorientado no processo e o centro dinâmico foi
deslocado com Réb – Mib – Fá – Sib (abaixo), para que as notas preservem suas
qualidades dinâmicas não obstante suas novas posições, e os intervalos digam a
mesma coisa que antes. Se faço uma leve mudança tocando Ré – Mi b – Fá – Sib
(abaixo) ao invés de Réb – Mib – Fá – Sib (abaixo), meu ouvido não será reorientado:
a quarta transposta Sib – Mib dirá 5 – 8 – isto é, quase o oposto do antecedente 1 – 4 –
e tanto o resultado da idéia então será alterado quanto demandará uma continuação
inteiramente diferente. Se o ouvido apreende Si b – Fá sem ter sido preparado para ele
por meio do prelúdio, o intervalo será, por razões a serem colocadas abaixo,
claramente ouvido como 1 – 5. Neste caso, o ouvido foi corretamente orientado desde
o início, e o tema é verdadeiramente ouvido em uma posição abaixo – um exemplo de
perfeita transposição. Claramente, o intervalo musical é qualquer coisa menos
insensível a mudanças no espaço tonal. Ao contrário, ele é altamente sensível a toda
mudança de posição. Por saber expressar coisas muito diferentes com o mesmo
intervalo, a linguagem musical desde Bach tem descoberto um de seus principais
meios de expressão. Pegando um exemplo ao acaso, um homem que ouça a melodia
de Beethoven
meramente como três passos iguais, três quartas gradualmente ascendentes, e falha
em ouvir como o mesmo intervalo acústico toma um novo significado enquanto
ascende de 1 – 4 através de 2 – 5 para 3 – 6 – a conclusão Fá – Mib – Réb – Dó
recapitula a quarta 6 – 5 – 4 – 3, escrita de trás para diante – tal homem não ouve
música. (O significado da primeira quarta, 1 – 4, é definido pelo contexto.) A
diferença entre a Gestalt acústica e a musical é ainda mais aparente quando não
somente a proporção das alturas mas também as próprias alturas permanecem as
mesmas, embora as qualidades dinâmicas sejam alteradas. Para tornar esta uma
transformação notável, é mais freqüentemente necessário adicionar novas vezes ou
acordes à melodia. No exemplo seguinte
79
Mas é realmente a Gestalt – pois, apesar de tudo, esta questão precisa ser
perguntada – que dá ao intervalo um sentido ou outro, que determina seu significado
musical? É a Gestalt do Prelúdio em Mib menor que responde pelo fato de que
diz 1 – 5 no começo da fuga, enquanto que diria 5 – 2? Realmente
qualquer prelúdio leva ao mesmo resultado desde que ele conclua na mesma
tonalidade. De fato, uma vez o centro tenha se tornado evidente, por quaisquer meios,
os intervalos serão ouvidos expressando realmente o que eles expressam a um dado
ponto. A estrutura de cujo contexto um ou outro significado do intervalo é derivado,
por essa razão, não é uma Gestalt mas um sistema. O que um intervalo diz – isto é, o
que ele é enquanto um evento musical – é determinado não por sua posição na
Gestalt das notas ou no espaço tonal, mas só e exclusivamente por sua posição no
campo dinâmico. Todos os intervalos de todas as Gestalten diatônicas das notas
derivam dos significados das afirmações das sete qualidades dinâmicas das notas no
sistema diatônico, o qual é sempre o mesmo. Para ser claro, as qualidades dinâmicas
80
são ouvidas somente em notas dentro de um contexto musical enquanto Gestalten das
notas; embora elas se originem não na Gestalt mas nas próprias notas, na medida em
que elas pertencem a um sistema, e as notas, como os números (não custa repetir
isto), existem somente “dentro de um sistema”. A qualidade dinâmica da nota – a
incompletação da nota, seu apontar além de si mesma – não é dirigida para outras
notas dentro de uma dada Gestalt, mas para outras notas do sistema ao qual
pertencem. Sons sem qualidade dinâmica audível, sons enquanto fenômeno
puramente acústico, também formam Gestalten audíveis. Sinos repicantes, o canto
dos pássaros, o soar de sirenes – eles, também, são estruturas dinâmicas, pois uma
Gestalt vem a existir sempre que uma “força” recebe a sustentação da “matéria”. Na
Gestalt musical, no entanto, a própria “matéria” é a “força”: a Gestalt musical é uma
estrutura dinâmica de alta ordem. As forças das notas não são as forças da Gestalt.
Realmente, o dinamismo da Gestalt musical pressupõe dinamismo tonal; e na teorida
da audição que pode adequadamente responder pela audição da Gestalt ainda tem um
longo caminho a percorrer antes que possa explicar adequadamente como as
Gestalten musicais e as qualidades dinâmicas podem ser ouvidas.
que apreende Gestalten, como faz qualquer outro órgão dos sentidos, mas como um
órgão da compreensão. Ao ouvir e distinguir as qualidades dinâmicas das notas, o
próprio órgão ascende ao nível espiritual de compreensão sem a ajuda de outras e
“elevadas” funções. A máxima de Kant de que a intuição sem conceitos é cega, não
se aplica às intuições da audição musical. Aqui, o intuído é significativo como tal;
intuição é apreensão de significado. Aqui, o fato “despido”, tão amado pelos teóricos
– despido de significado, despido de sentido – é simplesmente não-existente.
A Gestal Pseudo-temporal
Tais analogia entre espaço e tempo são tão naturais, tão sedutoras, que elas
facilmente obscurecem a impossibilidade – até mesmo, o absurdo – da concepção na
qual estão baseadas. Para clarear a situação, vamos voltar para o processo elementar
do intervalo.
Até agora temos discutido somente intervalos entre notas que soam
sucessivamente, não simultaneamente como um acorde. A psicologia da Gestalt está
meramente sendo coerente quando falha em distinguir precisamente entre os dois
(isto é verdadeiro, de algum modo, para todas as outras teorias psicológicas da
música). Ela é também coerente em exibir uma certa predileção pelo acorde: de fato,
duas notas de diferentes alturas soando simultaneamente provê uma ilustração ainda
mais notável da característica quase-espacial do padrão tonal do que duas notas
soando em sucessão. Por esta razão, os Gestaltistas tratam a seqüência como o
acorde quebrado em duas notas sucessivas. Eles usam os termos “horizontal” e
“vertical” (derivado do modo como os símbolos são arranjados em nossa notação)
para designar a diferença entre o passo e o acorde, porque em seu ponto de vista esta
diferenciação não é essencial como aquela entre duas figuras no espaço geométrico.
Uma simples rotação de 90° é suficiente para tornar uma horizontal uma vertical – a
própria linha permanece a mesma de antes. De acordo com eles, toda a diferença
entre e vem disto: no acorde, a unidade da Gestalt é baseada na ligação
entre duas notas de fato presentes ao ouvido, enquanto no passo ela é baseada na
ligação entre uma nota de fato presente e outra presente somente como um eco tardio
ou uma recordação. Agora, isto pode ser verdadeiro para o intervalo visto como um
evento puramente acústico, mas a situação é muito diferente em um evento musical.
Aqui a diferença entre , uma seqüência de duas notas, e , um acorde, não
pode ser superestimada. O passo horizontal 1 – 5 é tudo menos uma dobradura para
fora no tempo do intervalo vertical 1/5. Na seqüência , a nota Ré é relacionada
audivelmente para trás à nota Sol, uma nota, no entanto, que está ausente. A tensão de
5, seu apontar em direção a 1, é aqui percebido como uma tendência, um anseio, isto
é, uma privação; a qualidade dinâmica da nota expressa uma ausência, a não presença
de 1. Mas de acordo com os gestaltistas, o momento 1 está presente ao ouvido, quer
de fato ou somente na forma de um eco ou uma recordação, nós ouvimos o posto:
realização ao invés de privação, completação ao invés de ânsia. Similarmente, a
primeira nota da seqüência, 1, é primeiro ouvida como uma demanda urgente, um
esforço para a e na expectativa de realização, enquanto o som proclama ambos,
demanda e realização. Fosse uma versão temporal de , deveria ser
a mesma coisa em reverso, a imagem especular de , e seria uma
configuração estritamente simétrica. Para o ouvido musical, no entanto, não
é realmente um movimento de vai e vem, mas é primeiro e mais que tudo uma
progressão, uma história; a nota conclusiva, embora seja a mesma da abertura, é tão
diferente dela como uma expectativa realizada de uma expectativa ainda não
84
realizada. Para o olho, pode ser simétrico; para o ouvido isto é quando
muito simétrico somente como o são pergunta e resposta. Mas uma resposta nunca é a
pergunta ao reverso. Sucessão no tempo não pode ser interpretada em termos de
simetria espacial ou quase-espacial.
Como para a tríade, deve ser primeiro repetido que em música não há tal coisa
como a tríade, não mais do que a nota ou a quinta. A música reconhece a tríade
somente como graus harmônicos, como tríades do I, II, III, etc. graus – como acordes
definidos cada um pela posição de sua fundamental no campo dinâmico, a qual o
relaciona ao campo dinâmico supra-ordinário. Em harmonia, o evento elementar não
é o acorde mas o passo acordal, como o passo da nota é para a melodia. Aqui,
também, é totalmente enganoso distinguir entre melodia como sendo a dimensão
horizontal e harmonia como sendo a vertical da música. A música conhece somente a
horizontal. Somente que a melodia é uma progressão tonal, um movimento tonal,
enquanto a harmonia é progressão acordal, movimento acordal. Ainda quando o
acorde individual tem um grande valor auditivo, por assim dizer, mais que a nota
individual, aqui, também, a peculiar audição musical é caracterizada pela direta
percepção de relações. Precisamos somente pensar nas tríades de I e V grau para
realizar como muita da diferença entre estados dinâmicos superam a identidade dos
estados acústicos, tanto quanto a audição é concernida.
Não somente com respeito ao “não ainda” mas também com respeito ao “não
há muito” é possível detectar uma diferença entre os dois tipos de melodia. Em um e
outro caso ouvimos uma melodia, notas como veículos de forças, cada nota
incompleta em si mesma, apontando para além de si mesma, ansiando ser completa.
Em ambos os casos, a audição é antecipatória, dirigida para a nota ainda não ouvida.
Agora, na melodia acordal, esta audição antecipatória é guiada pelo padrão tonal
prefigurado no acorde: o ouvido é em certo sentido dirigido pelo último, sua
antecipação como algo razoavelmente previsto. Cada nova nota serve meramente
para confirmar o que o ouvido havia antecipado: o centro de interesse e suspense
sobre como o padrão dado de antemão será satisfeito passo a passo, não sobre o quê
irá satisfazê-lo. Se ainda este interesse está ausente, o previsto torna-se certeza; os
sons não têm nada a confirmar. O que ouvimos é meramente “acompanhamento” ou
má melodia. Em contraste, em uma melodia não-acordal, isto é, em uma melodia pura
e simples, esta audição antecipatória penetra um vazio. Aqui nada é dado em
antecipação: aqui não há padrão, nenhum todo que possa guiar o ouvido. Neste caso,
a audição não é guiada; ela tem que encontrar seu caminho. Ela não está prevista nem
em seu como nem em seu o quê, somente quanto ao seu para quê. Cada nova nota é
tanto esperada quanto inesperada, cada uma é um evento, uma descoberta, uma
surpresa. Isto é verdade igualmente para a nota concludente: muitas coisas podem
ainda acontecer antes do fim; freqüentemente, de fato, surpresas ocorrem antes da
nota final ser alcançada, surpresas não somente para o ouvinte mas igualmente para o
compositor (um exemplo bem conhecido: as duas versões do Prelúdio n° 1 do Cravo
Bem Temperado). O padrão das notas é de fato construído passo a passo, tirado à
força do vazio; ele se descobre e encobre para o ouvido nota a nota. Estritamente
falando, não podemos ouvir tal padrão como uma totalidade, como fazemos com um
acorde desdobrado no tempo; podemos somente após tê-lo ouvido.
Pode-se notar, contudo, que somente em relação a um padrão ouvido deste tipo
penetra no vazio, não há nada dado para sua previsão; por outro lado, algo muito
importante – um sistema tonal completo – é dado a ele: em termos mecânicos, o
teclado com suas teclas brancas e pretas, e em termos musicais, um campo dinâmico,
uma ordem, uma lei. Mas a diferença entre os dois tipos de melodia não é meramente
qualitativo, entre as três ou quatro notas do acorde e as sete ou doze notas do sistema.
A diferença permanece fundamental. Na melodia acordal, o que é dado de antemão é
já um padrão; na outra, o caso mais geral, este não é um padrão, é um sistema, uma
lei: a possibilidade de um padrão, a matriz de todos os padrões possíveis. Tudo o
quanto é dado deste modo não dirigirá o ouvido para qualquer padrão específico. A
presciência do ouvido da lei que governa as energias tonais – seu conhecimento sobre
88
o que, manifestado por sua habilidade para identificar as qualidades dinâmicas das
notas é intimamente ligado como não-conhecimento, um mero conhecimento sobre o
para quê tanto quanto os padrões são afetados, e consequentemente com uma
urgência descobrirá o padrão. Limitada audivelmente ao sistema, sujeita
audivelmente à lei, a nota é ao mesmo tempo inteireza audível livre para um infinito
de padrões tonais possíveis.
Peças musicais têm sido compostas expressamente para prover exatamente essa
“sensação de um começo” que Valéry evoca. As improvisações de Beethoven pode
ser vistas como um exemplo característico. O mais fino exemplo, talvez, seja a
abertura Freischütz de Weber. A primeira nota soa, inconsciente de onde ela vem e
para onde ela está indo, mas ela tem um tipo de esforço em si, e em uma poderosa
arremetida para adiante encontra sua oitava. Encorajada por isto, ela se arrisca um
passo para trás, então um passo para adiante, então novamente apalpa cautelosamente
para trás e experimenta começar tudo outra vez – até o ponto em que o contrapólo é
descoberto. Este, também, tem sua oitava, com suas novas vizinhas ao lado dela;
novamente há um tatear para trás, uma parada, e então soa a mais pura tríade, a partir
da qual a mais pura melodia é desenvolvida. A música começa a nascer dentro de
outro mundo. Aqui a música escrita é autobiográfica: a nota, diferente e sempre não
mais que um elemento de um padrão, volta para dentro de si mesma, inquire sobre
sua própria natureza, buscando e encontrando sua própria resposta.
E agora a fisiologia. A discussão que se segue não lida com o estado presente
de nosso conhecimento a respeito dos processos orgânicos envolvidos na sensação
auditiva – processos de incrível complexidade. Ela somente se propõe a mostrar que
eles são hoje vistos de um novo ângulo, e que a mudança de perspectiva tem algo a
cerca da questão de como apreendemos as qualidades dinâmicas das notas.
“Eu ouço uma nota”. A maioria das pessoas interpreta esta afirmação como ela
a interpretava a cem anos atrás. A membrana do tímpano no ouvido é colocada a
vibrar por uma onda sonora, a vibração se propaga para o ouvido interno, e, depois
que é comunicada via nervos auditivos para o cérebro, produz uma sensação de som.
Nem a primeira ligação nem a última no encadeamento estão em questão aqui,
somente a intermediária. O que acontece entre a membrana do tímpano e o centro
cerebral? Em virtude da complexidade inacreditável do ouvido – em comparação com
o olho é como uma bicicleta para um automóvel – a questão envolve dificuldades
esmagadoras.
90
A resposta clássica foi dada por Helmholtz no seu On the Sensations of Tone
[Sobre as sensações das notas] e, fora de um estreito círculo de especialistas, ela se
mantém válida até os nossos dias. O ponto principal desta teoria é o seguinte: no mais
interno recesso do ouvido, dentro de uma passagem em forma de caracol, o labirinto
membranoso, uma membrana delicada esticadamente estendida está embebida em um
fluído. A membrana é composta por mais de dez mil fibras variando de 0,04 a 0,5
milímetros de comprimento. Ela se comunica com o mundo externo através de uma
janela minúscula, cuja placa elástica vibra em união com a membrana do tímpano.
Somente as fibras de um comprimento específico e de um grau específico de tensão
respondem a uma vibração específica propagada pelo canal auditivo: as fibras atuam
como as cordas de uma harpa ou piano com o pedal acionado. Cada fibra está
conectada com o cérebro por um nervo que, estimulado pela vibração em sua
terminação, produz um estado de excitação para o outro. Para cada nota de uma dada
altura (isto é, freqüência) assim corresponde uma fibra vibrante no ouvido interno,
um nervo atuando como condutor e um ponto específico no cérebro, e a excitação
deste ponto parece ser a “causa” da sensação auditiva. Os harmônicos que
normalmente acompanham toda nota similarmente tocam os processos orgânicos e
nervosos correspondentes às suas freqüências; mas os harmônicos são normalmente
muito fracos para produzir sensações auditivas por si próprios. Eles, contudo,
“colorem” a nota fundamental de várias maneiras (a nota de uma flauta, de um
trompete, e assim por diante). Quando muitas notas ressoam simultaneamente, as
fibras, nervos e células cerebrais correspondentes são ativadas simultaneamente, mas
cada uma independentemente das outras; é por isto que um ouvido treinado pode
facilmente analisar um acorde em seus componentes.
propagarão para áreas cujo tamanho e localização irão variar dependendo da altura da
nota. Se o processo é interpretado deste modo, a teoria original é logo incompatível
com os resultados da pesquisa experimental. De acordo com Helmholtz, as sensações
do som estão localizadas em áreas definidas do cérebro; assim, se é verdade que a
sensação produzida por uma nota de altura definida corresponde à excitação de uma
área definida do cérebro, uma lesão nesta área tornaria impossível ouvir notas
daquela altura. Tem sido demonstrado que não é este o caso. A destruição de partes
limitadas do centro auditivo cerebral não produz, como regra geral, as lacunas que se
esperaria com base nesta teoria. Em contraste, se admitirmos que a vibração de uma
freqüência específica se propaga para áreas relativamente grandes do centro auditivo
cerebral e envolve complexos inteiros de filamentos nervosos, esta objeção particular
a esta teoria é eliminada.
Esta teoria também entra em conflito com os fatos. Experimentos provam que
os nervos auditivos podem receber e transmitir não mais que 1.000 ou 2.000 impulsos
por segundo, não os 5.000 ou 10.000 ou 15.000 impulsos correspondentes ao número
de freqüência das notas agudas. Tentativas têm sido feitas para rodear esta
dificuldade, por admitir que os impulsos elétricos são propagados por meio de
complicadas ligações, sobre feixes de filamentos nervosos, e também pela
combinação da teoria do “telefone” com a teoria da ressonância, a primeira
respondendo pela percepção das notas graves, a segunda pelas notas altas. A
discussão está ainda em curso.
92
cerebral, o qual não é subdividido além disso. As duas funções superiores estão
localizadas nos centros secundários do córtex. Os sons “são transmitidos através da
circulação auditiva [do centro primário]” para os centros secundários, onde eles são
transformados em padrões verbais ou musicais. O que é peculiar à performance do
centro onde os padrões musicais são formados é esta, que nele os padrões são
apreendidos dentro de sua própria esfera; aqui, apreensão não é nada mais que
audição, enquanto a apreensão dos padrões verbais envolvem outras funções que vão
além da percepção do dado puramente sensorial. (Apreender um ruído, ouvindo o que
ele é, envolve também outras funções.) A tarefa essencial e crucial das funções
cerebrais é distinguir entre alturas: de acordo com Börstein, os padrões musicais se
originam diretamente das diferenças de alturas, e os animais não percebem esta
última; onde eles parecem reagir a notas de diferentes alturas, eles estão reagindo
realmente a sons diferentes em definição, sonoridade, vocalização e timbre. Assim,
de acordo com ele, a linha que separa o acústico do fenômeno especificamente
musical é traçada entre as três qualidades acima mencionadas e a altura. Tendo
reconhecido que os padrões tonais se originam não na altura mas nas qualidades
dinâmicas das notas, devemos deslocar a linha por um passo, assim então a altura cai
no domínio do acústico, e podemos seguramente admitir que os animais não podem
perceber diferenças de altura. Por outro lado, nada muda no quadro dado por
Börstein: o centro onde os padrões musicais são formados é agora o foco no cérebro
onde as qualidades dinâmicas são transformadas em sensações auditivas.
Esta resposta pode ser suficiente no que concerne ao padrão visual; ela não
alcança o problema dos padrões das notas musicais. Voltado ao exemplo citado
e . Em um padrão esta
nota tem a qualidade dinâmica 4, na outra a qualidade dinâmica 7. É esta diferença
entre as duas qualidades dinâmicas, o fato de que 7 aponta em direção a 8, e 4 em
direção a 3, o que considera a aparente diferença de altura. Ver as linhas
mensuravelmente iguais como iguais em um caso e desiguais em outro, é igualado
por ouvir notas de igual freqüência como diferindo em altura. E ainda não é verdade
que a nota é para o ouvido o que a linha é para o olho, por que na qualidade dinâmica
nós podemos ouvir para o que a nota se esforça. A fim de compreender
completamente esta diferença, imagine que podemos ver a linha aparentemente mais
curta tentando tornar-se maior, e a outra linha tentando tornar-se menor. Somente se
pudéssemos ver isto, poderia ser exata a analogia com a qualidade dinâmica das
notas. Nossa surpresa diante de tal fenômeno no mundo visível expressa o que
permanece incompreensível no fenômeno musical ainda após o caráter dinâmico do
padrão ter sido reconhecido e inteligivelmente relacionado ao processo dinâmico
nervoso. Se a qualidade dinâmica das notas fosse enraizada no padrão tonal, seria
possível representar nossas três linhas no seguinte diagrama:
HOMEM O MÚSICO
Victor Zuckerkandl
Som e Símbolo: Segundo Volume
8
Som e Símbolo: Música e o Mundo Exterior, capítulos 7 – 10.
98
denotar ambos, alguém poderia pensar que ele denota uma única função apreendida
em dois eventos diferentes. Mas isto seria tomar a linguagem muito literalmente.
Nem poderíamos argumentar que o mesmo órgão está envolvido em ambos os casos.
Em vista da esmagadora complexidade do ouvido e sua rede de conexões nervosas,
“o mesmo órgão” pode denotar coisas muito diferentes. Somente em um sentido
crassamente superficial pode a função de apreender o movimento de um tipo familiar,
o deslocamento de um corpo, ser “o mesmo” que aquele de apreender um tipo
radicalmente diferente de movimento, um movimento sui generis no qual nada está se
movendo, nada está ainda em um dado lugar a um dado tempo. Em um caso, a
audição, como outras percepções dos sentidos, se refere a um comportamento do
organismo em seu ambiente, e assim serve à sua auto-preservação no sentido mais
amplo; no outro caso, a audição não serve de modo algum a qualquer propósito
biológico. Ela é, como tem sido dito muitas vezes, uma função luxuriosa; a
informação que ela conduz – concernente à relação entre notas – não tem nada a ver
com a auto-preservação do organismo. Por outro lado, se consideramos os esforços
tremendos que a natureza tem feito a fim de desenvolver a habilidade auditiva para
distinguir afinações puras (sem a qual nenhuma música seria ouvida) – sua “harpa”
com dez mil cordas comportando pequenas células eletricamente carregadas, e uma
rede nervosa altamente complexa a qual (se a hipótese acima mencionada provar-se
correta) conecta-a com um centro cerebral especializado em ouvir música – se
consideramos tudo isto, hesitaremos em chamar esta função uma luxúria, a menos
que usemos o termo no mesmo sentido como quando dizermos que o homem é um
produto “luxurioso” do mundo animal, ou a mente um produto “luxurioso” da
natureza.
revertida, as notas cedem à atração das forças ativas, e a tentativa que falha da
primeira vez obtém sucesso da segunda vez: passo a passo, 1, o centro dinâmico, é
alcançado e seu equilíbrio é restaurado. Devido ao prolongamento da penúltima nota,
Mi, sugere-se por um momento a possibilidade de que a meta pudesse não ser
alcançada também não desta vez, a restauração final do equilíbrio é muito mais
relaxante. (A linha poderia também ser lida ____ , mas o efeito seria bem mais fraco.)
O que acontece nesta melodia pode ser representado pelo seguinte diagrama:
ignora: ao contrário, ela baseia sua própria ação sobre elas, chega a um acordo com
elas, ora submetendo-se a elas, ora resistindo, como se jogasse um jogo. Se o pássaro
se submete ao vento ou à gravidade, deixa-se ser guiado ou deixa-se cair, isto não é
exatamente o que acontece; acontece com o consentimento do pássaro, o qual ele
pode retirar a qualquer momento. Quando ele é retirado, quando o movimento é
revertido, quando o pássaro voa contra o vento ou ascende verticalmente ou em
espirais e círculos – o que quer que resulte de uma decisão que poderia ter sido
diferente, e por esta boa razão os movimentos do pássaro não são nunca
descontrolados, acidentais ou arbitrários, mas, antes, internamente consistentes,
determinados e guiados através de seu impulso interior. Em comparação, o
movimento de uma folha – o qual é inteiramente determinado, necessário, o qual não
pode nunca ser outro que não aquele – ocorre-nos como sendo ao acaso, arbitrário e
acidental.
os hábitos intelectuais, a lógica, a própria linguagem – parecem falar contra isto. Nós
nos apegamos teimosamente à noção de que a vida deve ser a vida de “alguém”; se
não é, não é vida em qualquer sentido.
Para colocar ordem na confusão que prevalece sobre este tema, examinaremos
em mais detalhe um dos argumentos que Eduard Hanslick coloca em evidência no
seu bem conhecido tratado Do Belo Musical, o clássico ataque contra a teoria
emotiva da música. Ele rejeita o conceito da música Omo “a expressão de
sentimentos” em favor de seu próprio conceito de “padrões sonoros dinâmicos”, o
qual, ele declara enfaticamente, são totalmente não relacionados aos movimentos
psíquicos, isto é, as emoções. “Movimentos psíquicos em si, sem qualquer conteúdo”,
ele escreve, “não são um objeto da encarnação artística”. Dentre os inúmeros
testemunhos que ele cita para refutar a teoria emotiva está a famosa ária “J’ai perdu
mon Eurídice, rien n’égale mon malheur”, do Orfeu de Gluck, sobre a qual um dos
próprios contemporâneos do compositor observou que poderia igualmente ser cantada
com as palavras “J’ai trouvé mon Eurídice, rien n’égale mon bonheur”. A observação
é bastante justificada; realmente, um ouvinte que não conheça o texto provavelmente
escolheria a segunda interpretação. Ser como for, este argumento é decisivo: uma
linguagem cujas palavras podem significar o oposto daquilo que o orador pretende
expressar seria uma linguagem realmente estranha. Desafortunadamente, Hanslick
toma por garantido que este argumento contra a teoria emotiva prova sua própria
teoria, isto é, que a música não tem nada a ver com emoções. Ao invés de fiar-se em
tal pseudo-lógica, ele deveria antes permitir-se ser guiado pela própria melodia.
Quanto ele tiver admirado o gênio de Gluck, sua profunda percepção sobre a natureza
da verdade dramática, agradecimentos ao que Orfeu expressa si próprio precisamente
nesta melodia melhor do que em uma melodia que qualquer um poderia reconhecer
105
como “triste”. Ele teria percebido que embora se ajuste as palavras “j’ai perdu” tão
bem quanto as palavras “j’ai trouvé”, ela não se ajusta as mesmas palavras se “mon
Eurídice” fosse trocado por “mon parapluie”, a menos que se pretendesse uma
paródia óbvia. Ele teria realizado que algo está errado com a afirmação de que a
música é “neutra” em relação aos sentimentos. Afinal de contas, as próprias notas nos
dizem onde elas são e onde elas não são neutras. Elas são neutras onde as distinções
entre emoções, tal como o desgosto por uma perda e a alegria por um encontro, dizem
respeito; mas elas nos falam claramente o que o desgosto pela perda e o reencontro
com a pessoa amada têm em comum, e o que as distingue de emoções provocadas
pela perda ou redescoberta de um objeto, a saber, sua profundidade e intensidade, e o
modo de auto-consciência que as acompanha. O tema real da melodia de Gluck não é
nem “bonheur” nem “malheur” mas “rien n’égale”. Se você imagina que a melodia é
cantada para palavras expressando alegria, você descobrirá que, sob a influência das
notas, a emoção toma uma qualidade distintiva similar à qualidade do desgosto de
Orfeu. As notas não expressam ou representam emoções específicas. Padrões tonais
comunicam suas emoções às emoções do ouvinte, e como um resultado a última toma
o caráter dos padrões. A melodia estampa seu caráter na emoção, não o contrário.
Susanne Langer
106
Nossa proposta neste capítulo tem sido compreender como o movimento tonal
é percebido. Foi necessário, primeiro, formar a idéia mais clara possível do que é
percebido como movimento na experiência musical. Para compreender o ato de
percepção, alguém deve primeiro conhecer o objeto percebido.
quando estamos parados, e vice-versa, e o mesmo é verdade para outros corpos que
não o nosso próprio. Mais freqüentemente circunstâncias favoráveis excluem a
possibilidade de dúvida: as posições relativas da maçã e da árvore mudam porque a
maçã cai, não porque a árvore se eleva. Mas as circunstâncias não são sempre
favoráveis e, em princípio, a questão permanece aberta. Vemos realmente o
movimento? Sabemos mais sobre movimento do que um homem cego se esquentando
ao sol sabe a respeito da luz?
ouvir, mas não há palavras que denotem o ato de perceber o movimento animado:
devemos nos contentar com o termo vago e ambíguo “sentir” do qual nos valemos
sempre que precisamos de um termo para preencher, pelo menos provisoriamente,
uma lacuna em nosso entendimento. De qualquer modo, se “sentir” é tomado no
sentido de “emoção”, isto é, auto-movimento, pareceria que este ato, também, cai sob
a categoria de movimento.
Existe, no entanto, uma coisa tal como a música, movimento tonal, movimento
vivente audível. Na música, experimento um movimento animado que não é nem
meu próprio nem de ninguém mais, e o qual eu percebo diretamente, mais
precisamente do que através do intermediário de um corpo cujo movimento quereria
ser – puro auto-movimento, não limitado por nenhum corpo, por nenhum “ser”. O ato
de perceber este movimento deveria ser ele mesmo um movimento. O que o olho não
pode alcançar – a saber, a percepção direta do movimento animado – pode ser
alcançado pelo ouvido. No ato da audição, realidades viventes vêm em contato direto;
ouvindo notas, eu me movo com elas; eu experimento seu movimento como meu
próprio movimento. Ouvir notas em movimento é mover-se junto com elas.
Assim, não somente as notas que eu ouço estão “em movimento”; ouvi-las,
também, está “em movimento” [“in motion”]. Não somente o movimento que ouço,
mas também o próprio ouvir é “emoção” [“emotion”]. O que está errado com a
questão usual sobre o compartilhar respectivo de sentimento e intelecto na
experiência musical deveria agora estar muito claro. O intelecto – a faculdade de
abstração e conceitualização – não compartilha o que quer que seja na estrutura da
experiência musical; o intelecto não entra no quadro senão posteriormente, como uma
reflexão sobre a música. Similarmente, o “sentimento” no sentido com que o termo é
usado neste contexto, como o singular de “sentimentos”, entra no quadro somente
mais tarde. A música é experimentada somente por ser ouvida. O ato de ouvir é ele
próprio um ato de sentir e compreender – sentir no sentido de ser um movimento
animado, “em emover-se” [“in emotion”], porque somente deste modo pode o
movimento das notas ser percebido, e compreendido no sentido de perceber s
qualidades dinâmicas que determinam o movimento das notas. A idéia de
“contemplação interessada” que ainda assombra a estética está, em parte alguma, tão
distante da realidade quanto no caso da experiência musical. Uma espécie de audição
que não fosse movimento animado, que fosse completamente divorciada dos
processos vivos, que estivesse meramente a serviço de um espelho das notas e as
tratasse com “sublime indiferença”, seria surda a toda a essência da música. Uma
espécie imóvel de audição não poderia nunca tornar-se próxima do movimento tonal,
igualmente como um cão não pode nunca tornar-se próximo de um pássaro, quando
muito ladrar atrás dele. O ouvido não é um refletor mas um ressonador da música.
Quanto mais profundamente eu compartilho do movimento vivente das notas, mais
genuína, mais válida, mais esclarecida minha experiência será.
110
O ouvido tem muito mais em comum com a pele do que com o olho: isto por
que, em pessoas surdas, a pele assume o comando da função do ouvido enquanto
órgão da sensação “musical”, não o olho. Nenhuma representação gráfica dos sons na
forma de linhas e curvas na tela do osciloscópio pode ser vir como substituta para as
sensações sonoras. Em contraste, quando uma área da pele sensível a vibrações sutis
é exposta a ondas sonoras, tem-se sensações que, embora indefinidas, correspondem
às sensações sonoras. Exatamente como a pele está exposta ao ar circundante, assim
também o ouvido está exposto ao som. Exatamente como o calor interno e o calor
externo, e o frio interno e externo, encontram-se na pele, assim o movimento vivente
interno e externo encontra-se no ouvido. As cores não nos colorem do mesmo modo
como o calor nos aquece, mas as notas nos “notam” e a tensão tonal nos “tensiona”.
As ondas sonoras sendo transformadas em sensações sonoras: é assim que ouvimos
os ruídos. Ouvir música é algo mais. Tal como uma mão infinitamente sensível sobre
uma membrana tensamente estirada, o ouvido se situa sobre a tensionada superfície
das notas – desta vez sensível somente à tensão não-física, não a vibrações físicas. O
ouvido como uma mão que a vida interior oferece à vida exterior, com a expectativa
de fazer contato com ela e sabendo-se estar espiritualmente viva no contato – uma
mão espiritual, a mão de minha interioridade. Esta mão não transforma: ela acena,
recebe, recepciona, reconhece. A espécie de audição que se move com as notas
arrasta-me em seu movimento; por serem ouvidos, processos não-materiais viventes
caracterizados por estados de tensão tornam-se algo percebido, algo conhecido.
Agora, o que em “mim” ouve música? Com respeito a que este “eu” difere do
“eu” na sentença “eu ouço uma afirmação falada” ou “eu vejo uma luz”? Quando eu
ouço música, meu ouvido não é um órgão do qual eu faço uso para uma proposta
específica, mais apropriadamente ao contrário – o órgão faz uso de mim. O ouvido
que percebe a música faz uma demanda sobre me, toma uma ocupação de mim, pode
funcionar somente se é ele próprio um “eu”, por assim dizer, capaz de movimento
vivente. A situação é adequadamente expressa pela frase “Eu sou todo ouvidos”.
Usamos a mesma frase para indicar que estamos ouvindo, ou dispostos a ouvir,
atentamente, uma afirmação falada; mas fazemos isto porque pretendemos reagir ou
explicitamente, por lhe responder a ela, ou implicitamente, por armazená-la em nossa
memória. O ouvinte de música não tem tão intenção; sua atitude não é aquela do
jogador de bola esperando pela bola a fim de arremessá-la de volta ou ainda
meramente apanhá-la, mas aquela de um nadador que se permite ser carregado pela
corrente ou pelas ondas enquanto ele nada. Podemos dizer também, “Eu sou todo
olhos”, e então nossa atitude é aquela do jogador de bola, expectando, observando,
contragolpeando. A frase pode significar também que contemplamos o que vemos do
mesmo modo como ouvimos música, isto é, quando contemplamos uma obra de arte
e nos identificamos com o que vemos. Podemos ouvir afirmações faladas do mesmo
modo, como quando ouvimos o som da voz do orador mais do que o que ele diz – não
criticamente, com a intenção de fazer inferências com respeito ao seu caráter, mas
sem qualquer intenção, puramente fora da simpatia ou do amor. Ao invés, é possível
ouvir música da maneira que ouvimos afirmações faladas, ouvindo, expectando,
112
Umas poucas palavras não seriam inoportunas neste ponto enquanto para por
que, em um capítulo dedicado ao movimento tonal, não foi feita menção ao ritmo,
normalmente o primeiro tópico discutido com relação a isto. A resposta é simples:
aqui estivemos interessados com as espécies de movimento perceptíveis somente ao
ouvido. O ritmo, notoriamente, apela aos sentidos do tato e da visão também; e, até a
audição ser interessada, muitos outros maios que as notas em uma estrutura musical
podem ser usados para estimular as sensações rítmicas tão efetivamente quanto, ou
ainda mais efetivamente do que, as notas musicais em uma estrutura musical: meros
10
Efeitos marcantes são alcançados quando um sinal musical torna-se música pura (vide Fidelio de Beethoven) ou
quando sinais são fundidos com sons musicais, como no terceiro ato de Tristão e Isolda.
113
ruídos – fenômenos não-musicais – ou notas usadas tanto como sons acústicos quanto
como sinais. Além disso, a experiência do ritmo é intimamente limítrofe às sensações
motoras dentro do corpo do ouvinte que estimula movimentos correspondentes, se de
fato ou meramente intencionados, por disparar respostas musculares as quais são
freqüentemente consideradas o verdadeiro cerne da experiência rítmica. Separar o
que é especificamente musical dos processos motores associados com nossa
experiência do ritmo requereria detalhes de análise, tanto quanto estabelecer o que
realmente ela é: a experiência do movimento do tempo. Fizemos isso no Volume 1
deste trabalho. Aqui estamos interessados em salientar o fato de que o movimento na
música pode ser considerado com base unicamente nas relações audíveis entre notas
sucessivas, uma espécie de movimento peculiar da música e percebido somente pela
audição.
Poderia ser feita a objeção de que estamos dedicando muito espaço para o que,
afinal de contas, é um processo um tanto simples, facilmente compreensível. Mas
116
estamos face a face com a forma mais simples de um processo que em seu
enriquecimento final resulta nas maiores obras primas da música.
Claramente, este também deve ser interpretado como uma espécie de volteio,
como a expansão de uma progressão ainda mais direta, como um primeiro avanço
para a liberdade, que vai além da lei elementar expressa por _______, 1 – 5 – 4 – 3 –
2 –1. Uma terceira camada estrutural vem à vista: descobrimos que há um plano
intermediário, o qual serve como ponte entre o plano de fundo e o primeiro plano.
Este último parece agora ser dominado, determinado e dependente do plano de fundo
via a mediação do plano intermediário. De acordo com isto, o quadro completo
podemos ver como segue:
117
Como pode ser visto, este quadro prove a chave para a compreensão da frase
final da melodia. A pequena frase resume direta e concisamente o significado total da
melodia representada pelo plano de fundo. É característica desta espécie que nos
capacite a reconhecer a genuinidade de uma melodia, o fato dela ser algo crescido,
não fabricado.
Diagramas deste tipo – duas camadas, distância mínima entre primeiro plano e
plano de fundo – são característicos da música popular. A música em estado natural
exibe a estrutura mais simples em profundidade. A melodia de “Morte, a Ceifadora”
com três camadas, é algo excepcional. Mas mesmo esta fina canção popular está
muito perto da complexidade da música artística, como logo se tornará evidente.
Estas reflexões vêm seguindo um padrão desde há muito tempo, o qual foi
primeiro descoberto e explorado por Heinrich Schenker, um grande e verdadeiro
visionário e pensador brilhante. Seu trabalho tem desfrutado de um reconhecimento
firmemente crescente, mas seu significado sensacional para a teoria da música e da
arte em geral, ainda não foi suficientemente apreciado. Mesmo uma exposição
aproximadamente completa de sua teoria requereria minuciosa familiaridade com
todas as ramificações da teoria musical tradicional, e estaria fora do escopo deste
livro. É uma construção que em sua ousadia e complexidade iguala as teorias da alta
matemática. Tentaremos não mais do que extrair seu cerne, na medida em que serve
como a fundação e guia para as presentes reflexões.
“Aqui apresento uma nova teoria, inerente às obras dos grandes mestres, que é
o segredo de seu nascimento e desenvolvimento, a teoria da estrutura orgânica”.
Schenker certamente estava interessado na prática, também; sua teoria foi pretendida
para intérpretes tão quanto para compositores. Mas sua concepção de prática está
firmemente enraizada na teoria, teoria no verdadeiro sentido: um esforço para
compreender a música artística em sua essência, para responder a questão central
sobre o que torna uma obra-prima o que ela é. Por esta razão não é o material das
notas mas as obras acabadas que servem como ponto de partida para sua teoria, a qual
não nos ensina como construir estruturas menores ou maiores com um dado material
de acordo com as regras, mas inquire sobre as forças e leis que tornam possível o
119
trabalho acabado como ele é de realmente ouvido. Não se deve assumir, é claro, que
os compositores devem estar familiarizados com a teoria para serem capazes de criar
obras musicais: a teoria decorre da experiência das obras; as obras não decorrem da
teoria.
Uma estrutura fundamental deste tipo não deve ser confundida para uma peça
musical primitiva, por exemplo, ou um “átomo” de música. Enquanto uma verdade,
ela não parece dar a perceber como a música é, ou seja, é ouvida: ela apresenta para o
olho da mente. É a “idéia”, no mesmo sentido do Urphänomen de Goethe, a forma
primordial, a lei fundamental governando a organização das coisas vivas, a qual lhes
dá significado mas não tem nenhuma existência tangível sua própria. Todas as coisas
vivas existem pela graça de sua forma primordial, mas nenhuma coisa em particular
é esta forma em si. Como uma realidade audível, como uma peça de música, uma
estrutura fundamental é nada, um pedaço de trivialidade. Existe somente como uma
potencialidade, como um núcleo dinâmico, a encarnação de incontáveis padrões
possíveis.
Toda obra musical, todo padrão tonal acabado, desenvolve-se desde uma
semente que vive escondida e contudo se revela no padrão, que constantemente
deixa-se ficar por detrás e ao mesmo tempo carrega-a para a frente. Embora a
“semente” – a forma primordial – esteja inteiramente dissolvida no padrão, ela é a lei
fundamental que governa a organização do padrão. Uma e mesma lei determina a
forma e o lugar de cada uma de suas partes e o modo como elas se entretecem juntas
dentro de um todo. O processo pelo qual o padrão acabado é produzido gradualmente
desde a semente é chamado “transformação”.
120
Para evitar possíveis erros de interpretação os quais podem ser sugeridos pelo
diagrama, é preciso dizer enfaticamente que o primeiro plano, o plano intermediário e
o plano de fundo não formam uma sucessão no tempo. As camadas estruturais
individuais não representam assim muitos estágios no processo de criação de uma
melodia. Esta melodia nunca existiu como plano de fundo ou plano intermediário,
nem assim qualquer música. A música existe somente de um modo, como primeiro
plano. Assim como a forma primordial, o Urphänomen, é “idéia”, assim são as
formas transicionais do plano intermediário; unicamente o padrão do primeiro plano é
“realidade”. Isto é verdade não somente para o trabalho enquanto o ouvimos ou
lemos por meio de sua partitura, mas também para a idéia musical na mente do
compositor, não importa se esta surja num instante a ele como forma acabada ou se
ela a desenvolve passo a passo. Precisamente onde os esboços de um compositor são
o testemunho do modo de seu trabalho ser desenvolvido gradualmente, encontramos
que o processo não tem nada a ver com a estrutura em profundidade da obra. Não
deveríamos imaginar que o compositor trabalha seu caminho passo a passo desde o
plano de fundo, via o plano intermediário, até o primeiro plano: o que ele registra no
papel é sempre o primeiro plano; os estágios preliminares não são planos
intermediários, mas infinitos primeiros planos. Assim, o padrão tonal é derivado da
forma primordial idealmente no plano de fundo, não em fato real; quando falamos do
trabalho como ele é ouvido, nos referimos somente ao primeiro plano; tudo mais se
refere ao significado expresso na obra; as camadas estruturais devem ser entendidas
como uma seqüência lógica e significativa, não como uma seqüência temporal e
genética. Um exame mais esmiuçado do diagrama demonstrará imediatamente que
um aparecimento real do primeiro plano desde as camadas primordiais não está
representado. Os signos gráficos usados mostram que o plano de fundo e o plano
intermediário, por um lado, e o primeiro plano, por outro lado, pertencem a diferentes
campos da existência. A música existe como padrão temporal, e pode existir somente
na dimensão do tempo. Somente os símbolos notacionais do primeiro plano
representam valores de tempo; os signos usados nas outras camadas carecem de
qualquer significado temporal, indicando assim que eles pertencem ao campo das
idéias. Imagine que você soluciona o seguinte problema: dados os padrões do plano
de fundo e do plano intermediário da “Ode à alegria”, encontre o tema. Você
perceberá imediatamente que mesmo o último padrão do plano intermediário está tão
afastado do tema a ser encontrado que não oferece qualquer indício que seja. É como
se déssemos um diagrama bioquímico engenhoso e certas substâncias químicas, e
disséssemos para produzir na realidade um organismo vivo funcionando.
123
Pensamento Musical
Introdução
A terceira parte deste livro pretende demonstrar que esta afirmativa se ajusta
aos fatos da experiência musical. E se tivermos êxito, seremos obrigados pela
evidência musical a revisar um grande número de idéias a respeito da natureza do
pensar e do pensamento, do mesmo modo como antes fomos obrigados a revisar
noções correntes a respeito da natureza da audição e do ouvinte.
126
11
Ver Sound and Symbol: Music and the External World.
127
Desde que o caminho que propomos seguirá sendo algo laborioso e alguns
assuntos terão que ser tratados em detalhe, bem pode ser adequado indicar as
128
A música é a única das artes que é oficialmente, por assim dizer, baseada sobre
uma teoria. Ao contrário do pintor ou poeta aspirante, o compositor deve começar por
se familiarizar completamente com a teoria de sua arte. É claro, o que é chamado
teoria musical na realidade equivale à prática em manipular os materiais da música,
ainda assim é significativo que esta prática seja chamada de “teoria”: teoria, afinal de
contas, tem algo a ver com o pensamento. Embora o estudante da teoria está
primeiramente aprendendo uma suposta habilidade, ele não terá adquirido a
habilidade antes de ter adquirido uma considerável soma de conhecimento. Isto é o
inverso da real prática de qualquer outra arte: lá o conhecimento segue a habilidade.
Nem é dado ao estudante de música praticar sobre seus trabalhos – pelo menos, isto é,
na medida em que diga respeito às duas disciplinas tradicionais, o contraponto e a
harmonia, as quais ainda hoje são bastante freqüentemente o cerne do ensinamento.
Ao estudante é dado, mais apropriadamente, exemplos altamente artificiais da teoria
musical. Os problemas que são colocados para ele resolver são uma espécie de
música abstrata. É bem conhecido que nenhum talento musical especial é requerido
para adquirir considerável proficiência nestas disciplinas; realmente, com treino
adequado um surdo-mudo poderia resolver a maioria dos problemas. O fato que ele
está operando com notas é de modo algum essencial; ele poderia operar tão bem com
pontos colocados em conjuntos de intervalos: estritamente falando, ele discursa sobre
problemas topológicos, não musicais. Isto é por que, como tem sido descoberto
recentemente, computadores eletrônicos não se saem tão mal quando lhe são dados
testes de teoria musical. Não vai aqui qualquer crítica à teoria musical em nenhum
sentido, meramente descrevemos a situação que o compositor faceia quando ele
começa; estamos, mais precisamente, apontando a extensão considerável na qual a
habilidade musical é baseada em conhecimento, na espécie de habilidade que os
gregos antigos chamavam techné – como na expressão technén epistasthai, “ter
completo conhecimento de uma habilidade”.
130
Um bom argumento contra este ponto de vista poderia ser citar alguma obra
especialmente sublime, aparentemente pura inspiração e nada mais, dentro da qual
nem um conhecimento ensinável ou aprendível nem uma habilidade musical parece
ter entrado. Tomemos, por exemplo, o Andante da Sonata em Lá menor para violino
solo de Bach:
a qual é nada que não uma única melodia continuamente renovada, a qual
quase nada se refere ao que foi antes. A melodia descreve uma curva sempre ampla,
igualmente inspirada em passagens ascendentes e descendentes (nunca caindo) sem
qualquer sentido de desenvolvimento “necessário”. A qualquer ponto da melodia
poderia ter tomar um rumo diferente; ela parece flutuar desde uma fonte pura e
inexaurível, soando imediatamente tão livre, tão correta, tão convincente, como ela é
imprevisível. Aprisione a melodia em qualquer ponto e pergunte-se, utilizando todo o
seu conhecimento, habilidade e experiência musical, como calcular como ela deveria
continuar: você não chegará muito longe. A música é totalmente única, tanto uma-de-
uma-espécie que nenhuma regra geral, nenhuma experiência de outra música, será da
mais leve ajuda para você na dificuldade de encontrar o próximo passo. Claro,
nenhuma ignorância concederia alguma vez tal inspiração. Ela pressupõe maestria da
131
mais alta ordem. Cada passo é impregnado por um conhecimento e uma habilidade
tão profundamente assimilados que eles pode ser esquecidos para deixar a outra fonte
fluir desimpedida. Um homem menor teria que se render após os primeiros passos.
Há, então, uma coisa tal na música em que tudo seja tema e nada mais. O
oposto também é verdadeiro? Há uma coisa tal na música que seja nada que não
“elaboração”, música sem um tema? Uma pessoa inclinação é dizer sim. O que
haveria para ser elaborado onde não existe tema em primeiro lugar? E exatamente
onde entra a inspiração? Música sem um tema, poderia alguém presumir, seria
música puramente planejada, alguma espécie de exercício quando muito, não arte.
Contudo, somente aqueles cuja experiência musical é confinada àquela dos séculos
dezoito e dezenove poderiam plausivelmente ter esta atitude. O que nos referimos
como sendo o tema – isto é, um padrão tonal expressivo, auto-contido capaz de portar
um significado, sem referência a qualquer coisa mais – é um feito muito recente (e
não necessariamente muito permanente) na música ocidental. Este não faz seu
aparecimento antes do século dezessete, em conexão com o desenvolvimento da
música instrumental pura, e na música de nosso próprio século ele parece estar
desaparecendo. O todo da época da grande polifonia, do século quatorze ao dezessete,
é, neste sentido, música sem um tema; nossa distinção familiar entre tema e
elaboração é um tanto sem sentido onde diz respeito a esta música. Ouçamos alguma
obra realmente longa daquele período como o Great Service de William Byrd, o qual
tem a duração aproximada de uma hora: é um fluir poderoso, irresistível e uniforme
da canção, em cujo curso inteiro não emerge em momento algum um detalhe
agudamente definido, nada que poderíamos chamar de um tema. Ou tomemos o
moteto em quatro vozes Super flumina Babilonis de Palestrina. Esta é música tão
comovente e bela como é possível encontrar, mas o que ela contém a modo de
material temático? Uma curta frase melódica domina cada uma das cinco partes nas
quais a obra está dividida, como o salmo no qual ele é baseado.
Não há tal coisa como um contorno nítido, uma distinção branco no preto a ser
delineada, para nos dizer em todo caso se estamos lidando com um tema ou não. Não
há muitas formas de transição. Na maioria dos casos, contudo, um tema é
instantaneamente reconhecido como tal, a saber, como um padrão tonal expressivo,
significativo em si próprio, como parte de um todo mesmo ele próprio com todas os
traços característicos de um todo – um todo orgânico, algo mais do que realmente um
pedaço de matéria prima. Pensemos nas fugas de Bach. Afinal de contas, por
definição uma fuga é um modo específico de tratar um tema, e o tema está sempre
presente perfeitamente claro ao começo em uma única voz. Os prelúdios às fugas de
Bach são outra coisa novamente. A grande liberdade de tratamento que nos prepara
para a “coisa real”, para a fuga que se segue, nos deixa incertos quanto ao que os
prelúdios de fato se referem – na verdade, se eles se referem a qualquer coisa de todo.
Alguns poucos prelúdios do Cravo Bem Temperado ilustrarão a transição desde a
presença até a ausência de um tema.
Não importa o quão atentamente ouvimos, não podemos descobrir nada nestes
compassos que pudesse apropriadamente ser chamado de um tema, ou atribuído à
“inspiração”. Seriam estes compassos, talvez, meramente introdutórios, uma espécie
de prelúdio ao prelúdio, o verdadeiro sujeito aparecendo somente depois? Não, tudo o
que está para vir está prefigurado nestas notas de abertura. É impossível discernir
uma melodia escondida, do mesmo modo como foi possível no Prelúdio em Dó
maior. Aqui Bach não esperou pela inspiração, não perturbou qualquer força superior
por um “tema” elaboração do qual ajudou-o a completar a peça. Além disso, ela não
oferece praticamente oportunidade para demonstrar qualquer conhecimento especial
de composição. Então devemos concluir que é impossível responder pela produção de
135
O que está em questão aqui não é das circunstâncias reais da produção da obra,
mas uma tentativa de reconstruir o processo essencial de sua composição (a qual,
enfaticamente, não é o caminho pela qual foi composta), para visualizar o que poderia
ter sido “idealmente”. Vamos imaginar nosso Bach “ideal” sentado ao teclado
(sentado realmente ou somente na imaginação). Seus dedos tocam uma nova grave:
_____ . Ele pára um momento e então toca a mesma nota, Fá, três oitavas acima. Esta
é, por assim dizer, um eco da primeira nota: através da distância as duas reconhecem-
se e saúdam uma a outra, como se tentando se reunir. A nota mais alta vira um longo
caminho para se encontrar com a mais baixa, se somente fora de cortesia, afinal de
contas, é mais fácil descer do que subir:
Estivesse qualquer um sentado ao teclado, isto poderia ter sido tudo. Depois
que o impulso dado pelo pequeno gesto tivesse sido recomeçado em seu reverso, tudo
pareceria cuidar de si mesmo; mesmo o elemento acordal introduzido pelas notas
sustentadas é tratado de acordo com as regras: tudo acontece como teria sido predito,
quase calculado adiantadamente. Mas o homem ao teclado é Bach, uma mente uma
vez viva, que não se contenta com um primeiro impulso ou com deixar as coisas
simplesmente acontecerem, que nunca cessa de criar novos eventos, e assim algo
novo ocorre, isto:
Para tornar claro o que acontece aqui, tanto o estágio inicial quanto o final são
mostrados aqui:
Embora possa ser tentador e instrutivo continuar nossa análise passo a passo
deste magnífico prelúdio, estaria além do escopo de nossas reflexões. Aqueles que
desejarem estudar o padrão de movimento em detalhe e sua relação com estruturas
tonais mais amplas podem fazê-lo com o auxílio da tabela abaixo. Uma representação
esquemática é possível neste exemplo porque o prelúdio inteiro praticamente é
138
“feito” de nada que não repetições (mais do que duzentas) da fórmula de quatro notas
em uma ou outra de suas quatro versões, _____ e ___ ocorrendo mais
freqüentemente, e ____ e _____ usada somente em poucos casos. Duas vezes no
stretto de um clímax, a parte do baixo sendo levada longe para ____; e diretamente
antes de alguns poucos pontos intermediários de pausa (existem três deles) a regra é
inteiramente descuidada; mas isto marca o limite máximo da liberdade concedida
para as notas. Na tabela da próxima página os símbolos são auto-explicativos (os
suportes acima indicam os padrões recorrentes).
O elemento “dado” – auto-dado –, o tema com o qual Bach trabalha aqui, o que
é? ________ : um nada, uma bagatela. Dificilmente ocorreria a alguém chamar algo
como isto de uma inspiração. E tudo é senão trabalho! O que torna esta peça tão
especial, até mesmo única, não é um “tema”, um lampejo de inspiração, mas o
trabalho que foi aplicado a ela. O termo “trabalho” contudo, não deve ser tomado
aqui no sentido usual, de uma atividade guiada por conhecimento e habilidade. Pois
conhecimento e habilidade não podem por si mesmos produzir algo único, algo que
nunca existiu antes; à luz das idéias tradicionais, uma peça como esta só pode ser o
resultado da inspiração. Diríamos então que a totalidade da peça é “inspirada”?
Afirmações deste tipo são feitas freqüentemente; ainda os artistas muitas vezes nos
asseguram que um trabalho esteve inteiramente presente em sua mente em um
lampejo de inspiração, e que tudo o que eles fizeram foi reproduzir o todo intuído
como uma sucessão de suas partes. Tal interpretação seria fiel ao esquema conceitual
de inspiração mais intelecto, ou inspiração mais trabalho, mas não acrescentaria
muito à nossa compreensão. O que nos ajuda dizer que Bach teve um quadro mental
de seu prelúdio inteiro em um lampejo de inspiração? O que, em tal caso, seria o todo
aparte dos detalhes no qual fora do qual, ele vive em primeiro lugar? O que pode ser
que não um vago antegozo de um certo intercalar de forças e do movimento
resultante dele até o próprio trabalho ser cristalizado fora de sua névoa, passo a
passo? Afinal de contas, os passos individuais nos quais a vida do trabalho se revela,
que são idênticos à sua vida, os quais são a obra, não podem – nem ainda como meras
indicações – estar todos presentes na mente do compositor simultaneamente, em um
único lampejo; cada um pode emergir somente no lugar certo e ao momento certo,
como ele cai diretamente no curso da composição. Como, por exemplo, poderia a
mudança melódica Sol – Lá – Si – Dó nos compassos 14-15 ou o padrão _______ do
compasso 16 estar presente na mente do compositor antes que a música tenha
efetivamente alcançado este ponto? Como poderia ter sido produzido sem as
referências a tudo o que veio antes dele? Criação é um processo contínuo; decisões
são tomadas a todo momento, não em um único momento. É uma série de tais
lampejos; trabalho e inspiração são inseparáveis. A hipótese de duas fontes criativas
diferentes desmorona, e se alguém deseja insistir que sem inspiração nenhuma obra
genuína pode ser produzida, então o labor do compositor deveria ser considerado
como inspiração. Esta, no entanto, implicaria em um novo conceito de “labor”, um
conceito que não está essencialmente vinculado a conhecimento e habilidade, e um
conceito que, em última análise, deveria estar associado com “pensamento” – ou um
novo conceito de pensamento.
139
Mais apropriadamente, nota flui sobre nota; nenhuma forma definida é delineada e
preservada; todas permanecem em um estado de fluxo, por assim dizer. Todos temos
é uma linha única que se eleva e cai como ela gradualmente ventasse em seu caminho
para baixo:
Se, então, nada é “dado” aqui, nenhuma forma, mesmo que rudimentar, à qual
o movimento subseqüente pudesse ser relacionado, se o que temos é uma sucessão de
notas e intervalos, por que ouvimos o prelúdio como um todo uno e coerente mais do
que uma reunião aleatória de notas? Porque o que ouvimos não é meramente a
unidade total dada pela tonalidade (a qual seria audível em uma mera escala), não é
conjunto da progressão de acordes embutida nas notas sucessivas (presente em
qualquer arpejo), mas sua linha melódica particular, seu todo inigualável e
firmemente tecido.
Agora voltemo-nos brevemente para duas formas musicais nas quais o tema
pode ser claramente distinguido da elaboração técnica: aqui não há dúvida de que
143
surpresa, na verdade empolgante, quando agora com as palavras “Pela virtude de tua
angústia e dor” as harmonias familiares subitamente produzem sons inauditos, como
se ascendendo desde um abismo de incerteza. O mundo habitual se desvanece, uma
profundidade sem fundo se abre, e a melodia simples de repente passa a servir para
expressar o incompreensível. Se nos perguntassem se é possível expressar o
inexprimível, apontaríamos somente esta passagem. Tentar colocá-la em palavras
implicaria em uma contradição. Sem dúvida, aqui também, é a voz do fundo que,
tecnicamente falando, determina os acordes:
Mas uma linha do baixo como esta, junto com os sons que a faz possível não
deriva de qualquer tipo de conhecimento ou experiência; ela deriva de alguma
“segunda audição” (em analogia a “segunda visão”) que detecta coisas não sonhadas
além das notas da melodia. Se algo alguma vez mereceu se chamar, esta é a
descoberta de gênio, um lampejo de inspiração, uma idéia brilhante, absolutamente
original, única – não a descoberta inspirada de um tema, mas a inspiração “sobre” um
tema; isto é pensamento, pensamento nota, um pensamento em notas a respeito de
notas.
Pode ser mencionado brevemente aqui que nos dois domínios que a música do
século vinte explorou mais extensamente, a composição dodecafônica e o jazz, o
desaparecimento do tema como o elemento inspirado e a força vitalizadora de uma
obra musical foi completada, pelo menos até o momento. A série de notas é sobre o
que toda composição dodecafônica é baseada, e não um tema no próprio sentido, não
um padrão tonal audível, mas material em série pré-arranjada de um modo específico
pronto para ser lidado com ele; não é “inspirado”, mas escolhido deliberadamente de
acordo com a idéia do compositor de como este pedaço específico de material pode
ser elaborado. A inspiração pode se manifestar, se de todo, somente no seu
tratamento. Muito do mesmo pode ser dito a respeito do jazz, o qual é na verdade
uma arte da improvisação – não improvisação livre, é verdade, pois ele é basicamente
limitado por um tema dado. O que o jazz improvisa não é o tema, mas o que ocorre
ao compositor de jazz dizer a respeito dele: isto é o que determina a qualidade
artística de sua produção.
O Desenvolvimento Clássico
A distinção entre inspiração (responsável pelo tema) e técnica (responsável
pela elaboração) certamente não foi sugerida pelas obras do tipo discutido acima, mas
mais propriamente pelas grandes obras instrumentais do período clássico, cuja forma
mais claramente distingue entre tema e tratamento, o “dado” e o que é feito dele, o
que acontece com ele. Seus temas são reconhecidos como inspirações autênticas por
todo ouvinte, e o tratamento dos temas é governado por regras fáceis de ensinar e
aprender. Quando olhamos mais de perto, no entanto, descobrimos que aqui, também,
a situação não é tão simples quanto pode parecer à primeira vista. Em muitas
passagens do “tratamento”, onde supostamente está envolvido somente o
conhecimento sobre composição, que repetidamente encontra-se, de modo
inesperado, acontecimentos musicais que em sua singularidade e imprevisibilidade
não pode ter sido derivado do conhecimento ou da experiência, e sobrepuja de muito
qualquer coisa meramente planejada (no sentido da técnica). Muitas vezes uma
passagem de pura elaboração, examinada de perto, confunde inteiramente nossa
expectativa treinada: é, acima de tudo, muito claro que em tais casos a assim
chamada elaboração se eleva ao nível da arte criativa. Aqui, como em qualquer parte,
pode estar envolvida a inspiração de uma ordem elevada – quase se poderia dizer,
mais alta do que aquela para o qual o tema deve sua própria existência. É mais fácil
criar algo a partir do nada do que a partir de algo dado, é mais fácil começar bem do
que continuar bem; em virtude disto, diz-se que não é preciso alguém ser bom músico
para ter uma boa idéia, mas alguém precisa ser um bom músico para fazer algo bom a
146
partir de uma boa idéia. Em outras palavras, o gênio não precisa de uma melodia
inspirada; uma melodia inspirada precisa de um gênio. Aqueles que concederam
inspiração puramente à tarefa de inventar o tema, e o conhecimento mais a técnica
para a tarefa de tratá-lo, podem ser tidos mais apropriadamente como obtusos. Talvez
eles pudessem conceber obscuramente que uma idéia poderia ocorrer a um
compositor inesperadamente; que a elaboração pode ser algo inteiramente diferente
da mera aplicação de regras provavelmente estava além do alcance de sua
imaginação. Veja o que os livros texto têm a dizer a respeito das sessões de
desenvolvimento na música clássica: você encontrará a implicação de que realmente
também poderia ter sido composta por um estudante avançado ou um bom técnico.
O que pode ser considerado como preparação é, por assim dizer, parte do
próprio tema, a saber, o início repetido três vezes: Mi b – Ré – Ré. (Algo como isso
pode somente ser o resultado de uma inspiração; ninguém se arriscaria a planejá-lo.)
O começo, no entanto, não conduz, como se poderia supor, a um grande gesto
enfático, isto é, ____________ . O gesto de fato ocorre, mas (este é o ponto) não
12
Uma das convenções da forma é que a exposição é executada duas vezes; que nenhum novo elemento formal é
introduzido pela repetição é aparente desde o fato de que o intérprete é livre para seguir a convenção ou ignorá-la.
147
onde ele é devido; ele é retardado e como resultado ele cai no tempo fraco do
compasso, _______, deste modo negando a si mesmo, por assim dizer, diminuindo o
esforço envolvido, como se sugerindo que não deve ser tomado tão seriamente quanto
tudo aquilo, que o que é de fato pretendido não é a altura Si que foi alcançada, mas
talvez o aparentemente preparatório Ré, 5 (em virtude disto ter sido repetido três
vezes). Em todo caso, o movimento imediatamente desce no mesmo ritmo _______
do começo, e conduz, através da nota de abertura, à próxima nota abaixo, 4:
________. Os mesmos passos são repetidos enquanto o movimento procede de 4 para
3: _________________. O esquema do conjunto, junto com a harmonia óbvia: I – II
– V – I, é:
A melodia não termina neste ponto, mas, no que segue, somente esta parte dela
é usada como o elemento “dado” a ser elaborado.
13
A harmonia neste ponto torna possível ouvir Lá como 3 em Fá# maior.
148
É claro, o desvio é imediatamente corrigido da mesma maneira que antes, mas isto
significa que o resultado, também é o mesmo: a nota “corrigida”, Lá ao invés de Lá #,
tem a qualidade dinâmica 4, não 3. Ao invés de ter alcançado o final do tema e um
estado de relaxamento, nos encontramos outra vez no meio das coisas, em um novo
estado de tensão, com uma segunda metade de relaxamento ainda adiante de nós. Ao
mesmo tempo, no entanto, o centro mudou: desde Lá é agora 4, não 3, e tornou-se 1
ao invés de Fá#. A partir deste ponto o tema segue normalmente, ___________ ,
conforme o novo centro. As notas aceleram-se em direção a ele: ser dar ao tema uma
chance de alcançar seu final propriamente, as violas e os contrabaixos começam-no
novamente em Mi menor:
Nossa suposição tácita de que o caso discutido acima não é excepcional pode
ser plenamente justificada apenas por um estudo compreensivo das seções clássicas
de desenvolvimento. A análise seguinte da seção de desenvolvimento do último
movimento da mesma sinfonia pelo menos servirá como uma justificativa parcial.
Primeiro que tudo, o tema. Aqui está a partitura (melodia, baixo, com a
indicação de um acorde):
fundamental deste som é um Lá, que a princípio não é de fato executado). As rajadas
de ventos que a seguem diretamente, ____________, com o passo da nota-guia
[leading tone] Dó# - Ré, contribuindo com sua quota para afirmar a reivindicação de
Ré. Tudo isto pode ser esquematicamente representado como
Aqui vemos a mudança de Sol para Ré via o estágio intermediário Lá, desde
Ré de volta a Sol após tocar Dó. Em termos de graus harmônicos, temos: primeira
metade, IV’ – V – I, meta Ré; segunda metade, IV – V – I, meta Sol.
sem nenhuma exalação. Além disso, desde que os sons do primeiro grau devem
permanecer em silencia por causa da redução, somente as notas de tensão apontam
para elas, as dominantes (V), são audivelmente representadas nos sons.
outro desde o Sib via as notas mais altas de ambas as pirâmides, Lá e Sol #, para Sol –
como isto: ________ .
Pensamento Musical
Música e Matemática
As reflexões precedentes lançaram uma nova luz sobre a relação entre música e
matemática.
Temos por garantido que as notas estão correlacionadas com os números, e que
as relações entre as notas correspondem a proporções numéricas. Aprendemos na
escola que toda altura corresponde a uma certa freqüência de vibrações, e que os
intervalos do sistema diatônico, que é a base de nossa música, são expressos em
termos das proporções mais simples. O intervalo da oitava corresponde à proporção 1
: 2, o da quinta à 2 : 3, o da quarta à 3 : 4 (em virtude disto a diferença entre quarta e
quinta, um tom inteiro, é 8 : 9, isto é, a diferença entre 2 : 3 ou 8 : 12 e 3 : 4 ou 9 :
12), o intervalo da terça maior a 4 : 5 (em virtude da diferença entre a quarta e a terça
maior, um semi-tom, corresponde a 15 : 16), e que a terça menor a 5 : 6. A série 1 :
2 : 3 : 4 : 5 : 6 é suficiente para suprir a base para o sistema inteiro. Por este fato se
156
Se, no entanto, olhamos para esta questão com olhos sem preconceitos, um
quadro diferente é revelado. O sistema diatônico não é um produto natural. Apolo não
o concedeu aos gregos, o Deus da Bíblia não o revelou aos hebreus, nem qualquer
sábio da Antigüidade construiu-o de acordo com uma ordem matemática rigorosa e
decretou que o povo seria por ele guiado em seu cantar e tocar música. O sistema foi
desenvolvido gradualmente. A princípio as pessoas realmente cantaram e construíram
instrumentos sobre os quais eles poderiam tocar suas notas. Eventualmente
começaram a refletir sobre sua atividade peculiar, e perceberam que os mesmos
intervalos pareciam recorrentes em suas melodias. Somente então eles descobriram a
ordem que os governava. “Primeiro vieram as melodias, então vieram as escalas”. Foi
descoberto (talvez por um construtor de instrumentos) que a fim de produzir as notas
que ocorrem nas melodias uma corda vibrando ou coluna de ar precisariam ser
divididas em metades, terças, quartas partes e assim por diante. Tudo isto sugere que
a correlação entre música e matemática é tudo menos natural ou auto-evidente. Afinal
de contas, inventores de melodias não escolheram deliberadamente notas de modo
que seus intervalos pudessem ser expressos em termos de proporções simples!
Quando fazendo música nada está mais longe de nossa mente do que matemática,
mensuração ou números. A matemática opera secretamente, por assim dizer, atrás das
costas dos músicos.
Para uma real compreensão do que se passa na música, é preciso esperar por
considerações que começam com a nota individual ou intervalo e desenvolvem-se
para a matemática. Não acrescento nada à minha compreensão da experiência
auditiva de 1 – 5 quando aprendo que a proporção das freqüências correspondente a
este intervalo é 2 : 3. Este fato não dá nenhum suporte para o padrão tonal sem o qual
não haveria música; ele não tem nada a ver com a realidade da música. O que nos
interessa nisto não é a correlação entre música e números, mas a menos óbvia
similaridade entre os músicos e os matemáticos com respeito à natureza de suas
atividades. Nada pode estar mais distante da mente de um músico trabalhando do que
uma contagem, nada pode estar mais distante da mente de um matemático
trabalhando do que cantar, e mesmo assim há algo em comum entre ambos. Em
matemática, assim como na música (e em parte alguma mais), o fazer é inseparável
do pensar; mais do que isto, em ambos o fazer é idêntico com o pensar. O que é
verdade para as notas é também verdade para os números: pensá-los é criá-los. Os
teólogos dizem que os pensamentos de Deus são as Suas criações, que o pensamento
de Deus possui existência; o que Deus pensa, existe. No que diz respeito à criação
humana, a música e a matemática aproximam-se muito do modelo divino: todavia
muito afastadas de Deus elas possam ser diferentes, aqui é o lugar onde elas se
encontram.
157
“círculo” ser formado, não teriam sido dados círculos. É claro, depois que eles
tenham sido definidos, números e figuras geométricas pode se referir ao dado, mas
seus referentes devem sua existência aos conceitos, não vice-versa. Tudo isto não é
pretendido como uma contribuição aos debates perenes a respeito do ser e do
pensamento, mas somente salientar o caráter distinto dos conceitos matemáticos, os
quais um matemático, Andréas Speiser formulou na afirmação. “O conceito de
número tem a força para postular existência”.
não somente ambos criam obras; eles criam também os materiais dos quais suas obras
são feitas. Como os números, os sons musicais devem sua existência inteiramente ao
intelecto humano. Não é verdade que a natureza provê o músico com seus materiais,
embora pensadores irrefletidos tenham muitas vezes alegado isto. “O som puro”
escreve Paul Valéry, referindo-se ao som musical, “é uma espécie de criação. A
natureza conhece apenas ruídos.” Ninguém negaria que os ruídos da natureza têm sua
própria beleza, pureza e individualidade; realmente, o som na natureza é
provavelmente elaborado de maneira muito mais rica do que a cor. No entanto, são
tão remotos em relação à música quanto a constelação de Cassiopéia é do número
cinco. É o som da natureza mais próximo da música, aquele que melhor ilustra a
diferença: o som dos pássaros. Somente as pessoas que nada conhecem a respeito de
música supõem que o cantar dos pássaros marca um estágio inicial no
desenvolvimento musical ou podem pensar a música como sendo uma “imitação” do
canto dos pássaros. Géza Révész observa que os pássaros sempre cantam na mesma
tonalidade. Eles não podem transpor, porque para fazer isto é necessário ter uma
consciência audível da relação entre notas, de suas qualidades dinâmicas. Isto só é
possível dentro de um sistema tonal, isto e, uma construção da mente. Os sons que os
pássaros produzem não formam um sistema. Quando um pássaro cessa sua canção
usual, talvez exatamente antes da última nota, somos nos que sentimos algo como
uma “tensão irresolvida”. Quando uma melodia cessa antes da última nota, então é a
própria nota que demanda continuação e resolução. A tensão é aquela da nota, não
nossa. Nem poderíamos ter ouvido esta peça em particular antes de termos esta
sensação. Para ser música, os sons têm que ser organizados em um sistema. A
afinidade entre notas e números, devido a serem criações puramente intelectuais, é
melhor demonstrado pelo fato de que nem os números nem as notas existem
independentemente de construí-los e colocá-los juntos em um sistema. Nenhum
número sozinho e nenhuma nota sozinha é o que é sem as outras. Este estranho modo
de existência – enquanto relação, proporção, logos – é uma característica essencial da
música tanto quanto da matemática. Como os matemáticos, os musicistas lidam com
relação, proporção, logos. Como, então, poderia a atividade do musicista ser outra
coisa que não lógica e racional, como poderia ser algo outro que não uma atividade
intelectual, apesar disso ele não pensa conceitualmente?
O Problema de Chopin
realmente isso? Richard Wagner atribui a primeira nota dissonante da trompa no final
da seção de desenvolvimento no primeiro movimento da Heróica a um deslize da
escrita de Beethoven e “corrigiu-o”. Um primeiro editor do Cravo Bem Temperado
assumiu que uma progressão harmônica não-convencional no Prelúdio nº 1 deveu-se
a um descuido por parte de Bach, e adicionou um compasso inteiro de sua própria
invenção para corrigi-lo: este texto “corrigido” aparece em muitas edições
subseqüentes. Em tais exemplos comparativamente óbvios a questão pode
eventualmente ser decidida. Mas não em outros exemplos, menos óbvios. Beethoven
esqueceu-se de prover os acidentes em uma certa passagem da sonata Hammerklavier
(primeiro movimento, compassos 237 e 239)? A primeira nota do violoncelo no
compasso 24 do primeiro movimento do Quarteto em Dó # menor é um Ré ou um
Ré#? Estas questões permanecem em aberto, embora a interpretação das passagens
envolvidas dependa grandemente de como elas são respondidas. De modo diferente
da lógica, à música parece faltar um critério confiável para decidir tais questões.
Falamos, não sem razão, de “lógica musical” ou “sintaxe musical”, isto é, uma
estrutura que provê um critério de contorno nítido. Estes termos designam um
conjunto de regras resultantes dos relacionamentos dinâmicos das notas, as
qualidades de tensão e resolução dos sons, o relacionamento entre consonância e
dissonância, dos padrões de ritmo básico e o desejo elementar de simetria, e por fim
das particularidades de um dado estilo. Tais regras, no entanto, não são de ajuda para
resolver as espécies de problemas com os quais lidamos aqui. Tome uma partitura
composta em um estilo familiar, esconda umas poucas barras, e solicite a um certo
número de estudantes de composição para prover a música que falta. Isto é
simplesmente uma questão de estudar as passagens precedentes e continuá-las no
estilo indicado. Qualquer estudante de composição deve ser capaz de surgir com a
solução “correta”, ou ao menos com a solução não obviamente “falsa”. Um certo
número de diferentes soluções do problema serão apresentadas, todas elas “corretas”
mesmo que muito improvavelmente algumas delas serão idênticas ao original.
Mesmo quando somente umas poucas notas tenham sido providas – algo tão óbvio
musicalmente quanto a palavra ausente na sentença “Parece . . . chovido ontem” –
mesmo então, quando pareceria que ninguém possivelmente poderia surgir com algo
novo, realmente então podemos nos preparar para uma grande surpresa.
Tudo isto mostra quão enganoso é falar de “lógica” com referência à coerência
peculiar da música. Pois a característica decisiva da coerência lógica, implicação –
isto é, o fato de que todo passo está implícito no precedente e em virtude disso pode
dele ser deduzido – está ausente. Na música nenhum passo necessariamente segue
desde o precedente no sentido de ser dedutível por meio de uma audição perspicaz.
Isto é verdade não somente para o “ouvir” no sentido acústico usual mas também no
interpretativo, compreendendo “escutar”. Todo passo em música pode realizar aquilo
que a nenhum passo em lógica é dado fazer: ele pode ir além do dado e dizer algo que
não está surgindo dele por qualquer regra conhecida. Mesmo quando o uso do signo
de implicação, ______, parece ser justificado, quando um novo passo de fato é
determinado pelo precedente e precisa somente ser dado – mesmo então, como temos
visto, o campo permanece aberto amplo, e a situação é melhor expressa por ____ do
que por __ . É claro, isto não dizer que a música é de fato uma sucessão de surpresas.
Isto seria insustentável; e, ao invés disso, como todos sabem, o que acontece em
música é amplamente determinado pela convenção. Muitas vezes, o que acontece é
164
Em seu diálogo Eupalinos ou o Arquiteto, Paul Valéry, faz seu arquiteto dizer:
“O que é importante acima de tudo mais é obter desde aquilo que está vindo a ser,
que isto poderia com todo o vigor da novidade satisfazer os pedidos razoáveis daquilo
que foi”. O que Eupalinos diz da arquitetura, a arte espacial por excelência, é também
verdade para a música, a arte temporal por excelência. A característica essencial da
coerência musical, que a distingue tanto da coerência lógica quanto das sucessões
aleatórias, não pode ser expresso mais clara e adequadamente. Se omitimos as
palavras “com todo o vigor da novidade”, a afirmação de Valéry define a lei que
governa a coerência lógica; se mantemos estas palavras e omitimos o resto, isto
define a sucessão aleatória. O que está em questão aqui, no entanto não é nenhuma
destas alternativas, mas um tipo de coerência que não é lógica e também não é
irracional. É mais propriamente uma coerência que tem uma lógica sua própria, na
qual a racionalidade é compatível com a novidade. “Aquilo que foi”, isto é, o que é
dado, faz uma demanda razoável, isto é, uma demanda contida e reconhecível no que
é dado, capaz de ser satisfeita, e endereçada para “aquilo que está vindo a ser”. A
última, a fim de satisfazer a demanda, deve suprir mais do que o que pode ser
165
conhecido ou ouvido no que é dado e inferido dele, deve manifestar “todo o vigor da
novidade”. Ao passo que na lógica somente a consistência importa, e cada passo pode
ser somente certo ou errado, na música onde o novo é tecido dentro do contexto dado,
tais decisões firmes ou ligeiras são impossíveis. A diferença entre certo e errado
permanece, mas admite graduações, como temos visto em nossos exemplos de Bach e
Chopin. Os dois elementos de consistência e novidade pode nunca ser separados,
mesmo em um exemplo concreto individual. Nem eles são um composto –
consistência mais uma parte de novidade ou novidade mais uma parte de
consistência. A dupla requisição é satisfeita por um passo; um único ato produz
ambos, consistência e novidade. Cada passo revela dois aspectos: uma vez ele tenha
sido dado, é consistente, pois de outro modo ele não poderia encontrar um
requerimento razoável; antes de ser dado, ele é imprevisível, pois de outro modo não
teria o pleno vigor da novidade. O ouvinte de uma obra acabada, que sabe somente os
passos que tenham sido dados, desfruta da consistência do novo; o compositor dentro
de sua compositor, que tenha dado todos os passos, sente que ele não pode predizer o
que será consistente. O que cada passo sucessivo deve ser a fim de reunir o duplo
requerimento, isto o compositor também não pode saber antes que ele tenha de fato
dado o passo. Antes então, isto é um segredo que as notas não denunciam a ninguém
exceto àquele a quem elas devem sua própria existência, e mesmo para ele elas não se
revelam realmente; elas meramente apontam o caminho. Elas incitam-no a imaginar,
elas facilitam, ainda mesmo urgem, mas elas não compelem. A tentativa vã de
Chopin para aperfeiçoar a passagem localiza com precisão o processo em seu estágio
crítico. A tentativa torna-se necessária pelo requerimento de consistência falhar se
unir ao requerimento da novidade. Nada mais caracteriza mais completamente a
coerência musical e o ato que a produz do que a falha de Chopin em resolver este
problema.
problema, seu pensamento só aparentemente é dirigido para o “dado” que ele tem
diante dele: a passagem que ele quer aperfeiçoar. De fato ele não tem nada diante
dele; seu pensamento não está dirigido para, ou focado sobre, o dado; ele começa do
dado, mas é dirigido para algo além do dado, para um vazio. O dado está atrás dele
mais propriamente do que à frente dele; ele busca não dentro dele mas junto com ele,
junto com o dado ele procura algo que não está no dado. Nem poderia ele esperar
descobrir algo no vazio. Aqui somente uma coisa interessa: encontrar algo que não
existe, isto é, inventá-lo. Nem poderia ele aproveitar-se de um critério para avaliar
sua invenção, tal como ela é avaliável em outros casos. Mesmo a palavra para ser
encontrada pode ser testada contra a experiência interna que ela é suposta expressar, a
fim de apurar se ela serve ou não a seu propósito. Um compositor não tem tal critério,
nada que possa ajudá-lo em sua condição, nada de objetos, regras, conceitos ou
sentimentos; ele tem somente as próprias notas musicais. Seu momento sem dúvida
pode carregá-lo para um certo ponto, mas então eles o deixam, abandonam-no,
lançam-no dentro do vazio, onde ele pode ganhar um ponto de apoio sem sua ajuda. E
somente um sentido interior elusivo fala a ele – e a ele somente – se ele encontra a
solução que ele estava buscando. Ainda na consciência de sua falha ele está sozinho:
ninguém mais pode dizer que ele não encontrou; o compositor não pode. Pois ele
poderia dizer isto somente das notas que ele não foi capaz de inventar.
tempo, e embora seja possível em alguns casos outro homem continuar o trabalho, é
impossível continuar o seu “tempo”.
Nossa discussão do caso de Chopin nos ensinou uma coisa ou duas a respeito
do pensamento musical. Podemos aprender mais a partir do caso de um compositor
que, diferentemente de Chopin, teve êxito em aperfeiçoar uma de suas melodias.
O que vemos aqui são duas graciosas curvas melódicas, uma para cada estrofe,
cada uma delas subdivida em meias-estrofes.
natural ____), então por uma descida cortante _________ executada como se em
resposta à advertência “Assim longe e não mais longe!” – como se a nota Mi fosse
uma espécie de teto que não pode ser transpassado, de maneira que o que acontece
deve permanecer debaixo dela. Contribuindo para o mesmo efeito estão talvez as
duas oitavas ________ e ________ nos compassos 5 e 6, os quais jogam uma contra
a outra a tônica e a quinta. O desfecho de tudo isto é algo como uma rigidez e tensão
forçadas, como se algo estivesse sendo contido, que está inquieto sob a superfície.
Isto é responsável por uma tendência à explosão, a primeira das quais ocorre para o
final da primeira curva melódica, nos compassos 11 e 12. Aqui, no ponto onde
termina a primeira estrofe do poema, um período de oito compassos pode ser
completado com uma subida seguida por uma descida, com esta aparência: _______ .
Ao invés disso, temos uma subida correndo através de toda a extensão demarcada por
aquelas duas oitavas, _____ e _____ , a saber, __________. Mesmo assim, o período
poderia ser concluído com a nota Mi alcançada no começo do compasso 12, não para
o acorde ______ o qual, parando neste ponto, altera neste momento o valor dinâmico
8 do Mi para 5, evitando assim a conclusão e forçando a extensão do período por dois
compassos e a repetição da última linha da estrofe. Além disso, ele empurra a
melodia além de sua meta aparente, Mi, para ____ . então isto foi o que a longa
descida precedente significou: um esforço para transpassar o teto! Somente agora
pode o movimento ser revertido, a ascensão equilibrada por uma descida, e o final
buscado e encontrado (compassos 13 e 14).
completamente sem saber do final que para nós parece ser o único possível; o que ele
escreveu foi
O que Schubert falhou a ver a princípio, o que poderia ter clareado para ele
após ele pensar a respeito dela, foi que a meta de sua melodia tenta completar com a
oitava ______ . Não que isto seja uma idéia racional – foi somente um impulso
pensar outro pensamento musical. Afinal de contas (Schubert pode ter refletido), a
171
história toda da melodia gira em torno destas duas notas: onde a melodia (e onde
estou eu) em casa – no Mi mais baixo, no mais alto, em ambos, ou alternadamente
nos dois? Ambos aparecem no curto prelúdio do piano; quão significantes eles são a
pessoa só realiza mais tarde: __________ . Aqui o Mi mais alto não é mais do que
uma imagem em espelho do mais baixo, é somente sugerido; o movimento enraizado
na mais grave e imediatamente se reafirma. Mas quando a voz começa com ______ ,
temos algo diferente. Embora o Mi mais alto caia sobre o tempo fraco, não cai sobre
um tempo, sobre “dois”, não como realmente fora antes, na última unidade de tempo
de uma batida. Além disso, foi vir a permanecer para uma batida e um meio ao invés
de ser deixado imediatamente; a nota foi agora afirmada em sua independência. Ela
tem uma vida sua própria, embora seja ainda fraca demais para sustentar a melodia, a
qual desde logo recorre à oitava mais baixa. Dois compassos depois, a mesma coisa é
repetida, mas então algo decisivo acontece. Como se o Mi mais alto fosse levado a
tentar puxar a melodia para si mesmo, para capturá-la, e como se a melodia estivesse
disposta a se submeter, temos agora uma longa ascensão passando através das notas
intermediárias da oitava de Mi a Mi; a melodia alcança Mi mais agudo no tempo
forte, e continua além dela: ________ . Por um momento ela escapa do puxão da
oitava mais baixa. Então esta última consegue apanhá-la novamente e, submissa, a
melodia desce suavemente, relutantemente, à última nota da frase, Mi. Por este
tempo, no entanto, o Mi mais alto tornou-se gradualmente mais forte do que o mais
baixo; ao final da primeira curva parcial o resultado se suspende em equilíbrio. Ela
permanece para a segunda curva parcial para dar o último passo, encontrar a demanda
do que precedeu, para acomodar a emissão. O primeiro final de Schubert falha em
fazer isto:
do fato classifica as razões para algo acontecendo como foi. Mas onde nada “deve”
acontecer como ele faz, onde tudo pode acontecer diferentemente, uma tal explicação
seria sem sentido. Explicar um evento antes dele ocorrer é possível somente se a
situação na qual ele ocorre pode realmente ocorrer outra vez ou ser artificialmente
repetida, como um experimento científico. Somente a recorrência do evento prova se
a explicação é correta, isto é, se o evento pode realmente ocorrer na dada situação.
Onde o evento é único, onde a recorrência é impossível em princípio, tal explicação
obviamente não serviria a propósito algum. A situação na qual Schubert encontrou
seu novo final não poderia ter ocorrido antes que ele o tivesse encontrado, nem
poderia ela ocorrer no futuro. Não poderia ocorrer antes porque a própria melodia não
existe, e quando ela existia com o primeiro final, não era a mesma melodia; a situação
não pode ocorrer no futuro porque o novo final retroativamente modificaria a
situação na qual ele foi encontrado. Afinal de contas, o novo final não teria existido
oculto em algum lugar nas notas antes de ser encontrado. A melodia como a
conhecemos hoje não existiu antes do novo final ser encontrado, e se Schubert não o
tivesse encontrado, ele não existiria, não mais do que as melodias que ele teria
composto caso tivesse vivido mais tempo. Foi o novo final que retroativamente
produziu a melodia; a demanda que o novo final satisfez, no novo significado da
melodia, a própria melodia – tudo isto foi criado retroativamente. Como poderia uma
explicação antes do evento ser considerada para tal processo? A fim de explicar e
entender tal caso, alguém deveria olhar não para as causas mas para o significado: a
questão que nos confronta aqui não é “Por quê?” mas “Qual é o significado de...”
Qual é o significado da mudança desde a versão antiga para a nova? Qual é o
significado do novo final? Qual significado ele criou? Onde nossa proposta é
interpretar o significado, a explicação após o fato não é sem sentido; ao invés disso,
em nenhum outro modo poderia fazer justiça a um ato do pensamento criativo.
algo diferente do e mais alto do que o pensamento, mais apropriadamente do que uma
espécie de pensamento não-lógico. Se vamos sustentar que o ato criativo dos
musicistas é sempre e essencialmente um ato do pensamento, devemos mostrar que o
tema, também o originalmente “dado”, tem sua existência no mundo do pensamento,
não em um súbito lampejo de inspiração.
Vamos agora nos confrontar com a questão crucial de como o tema inspirado
vem à existência. A questão parece ser auto-contraditória: se o tema é devido à
inspiração, ele não “vem à existência”, ele existe. É sempre um começando, e a
questão do que vem antes do começar é sem sentido. E ainda, como veremos, esta
questão, embora possa soar paradoxal, não é auto-contraditória ou sem sentido. O
lampejo de inspiração, como tudo mais, teve antecedentes – não realmente
psicológicos (isto não nos concerne aqui) mas também morfológicos. O lampejo de
inspiração é, também, uma criatura do tempo, não do momento.
A imensa quantidade destes esboços – e o que ele viram a ser para nós é
somente uma fração do que Beethoven escreveu – pode ser considerado pois somente
se admitimos que para ele compor era inseparável de escrever. É sabido que em suas
longas caminhadas ele sempre carregava papel de música com ele na forma de
pequenos cadernos de nota, cuja condição mostra que ele os estava usando na rua.
Outrora, pensava-se que ele escrevia somente porque ele desconfiava de sua
memória, porque seu fluxo de idéias era tão abundante que ele temia que algo
pudesse escapar, mas um exame em detalhe destes esboços mostra que esta hipótese é
infundada. Outros compositores registram idéias, um padrão tonal acabado que pode
ainda ser deficiente em algumas partes, ou delinear uma peça acabada omitindo
175
Vamos agora ver como tudo isto sucedeu. Na página 35 de um dos Cadernos
de Esboços, dentre outras coisas, repentinamente encontramos isto: ______ . Um
nada, fora de qualquer lugar; uma escala gradualmente ascendente, seguida por uma
descendente, um ritmo balançante. Quem teria suspeitado de suas potencialidades?
Claro, quem sabe o que Beethoven fez dele facilmente reconhece a semente do futuro
padrão. O primeiro compasso revela seu futuro perfil; o segundo é ainda amorfo.
Somente a primeira e a terceira últimas notas, as notas que irão reaparecer no padrão
definitivo, são claramente legíveis; as outras são apenas decifráveis.
Isto parece nada conter de um elemento poderoso para dar forma. Ele se
acomoda e começa imediatamente a se desenvolver, a se desdobrar. Ainda na mesma
página, encontramos isto:
A forma começou a respirar: ela encontrou sua própria sua própria respiração
pela extensão de quatro compassos. O segundo compasso não é mais amorfo; foi
inteirado um estágio mais alto ( mesmo a sincopação _________ no padrão definitivo
177
está já presente). No entanto, podemos quase tão somente sentir o padrão futuro nos
compassos 3 e 4. Mas _______ ao final, similar a ________ na melodia acabada,
mostra que as forças desenvolventes estão trabalhando.
Seguem vários experimentos com detalhes, mas então, duas páginas adiante,
vem uma surpresa. Vemos algo assim:
A frase repentinamente mostra uma outra face. Está numa tonalidade diferente,
Dó maior ao invés de Láb maior. Em Beethoven tal mudança indica um passo em
direção a uma maior simplicidade e clareza. A alternância rítmica entre notas longas
e curtas e de estados de tensão suave e resolução dão caminho a uma seqüência de
oitavas uniformes e relaxadas. Para nós, que sabemos que Beethoven a esse tempo
ainda não sabia, a saber, para o que este processo de crescimento estava levando, esta
mudança pode parecer como um desvio do caminho direto. Mas os caminhos do
desenvolvimento orgânico cuja meta está latente não são os caminhos do
planejamento intelectual que estabelece ele mesmo sua meta em avanço. O menos
pesado Dó maior, a mais relaxada seqüência de oitavas: quem poderá dizer – talvez a
tarefa requeira neste ponto que algum lastro seja arremessado fora do barco. O que
nos parece um desvio do caminho direto pode parecer ter sido um atalho em termos
de desenvolvimento orgânico.
Não se deve esquecer, no entanto, que tais percepções são devidas a uma visão
posterior, após o fato. Neste ponto Beethoven não sabia, não poderia ter sabido, que
meta ele queria atingir – ele sabia, ele poderia ter tido a melodia inteira; ele mesmo
pensou aqui que ele deveria, além disso, diminuir o peso e a tensão. E então ele
substitui as oitavas por sextas: ________; a melodia torna-se alegre. Um último
experimento no mesmo espírito resulta em um delineamento um tanto enevoado:
______. E enquanto Beethoven adicionada a palavra “V.cello” na última nota
oitavada do esboço – isto é, planejado para um quarteto de cordas – Schindler ( o
assistente e executor testamenteiro de Beethoven) escreveu na margem da décima-
sexta nota dos esboços que ele intencionava ser usado em uma sonata para piano a
quatro mãos. Aparentemente Beethoven neste ponto brincava com a idéia de um
trabalho inteiramente diferente, mas ele logo o abandonou. Por um tempo ele
perseguiu experimentos em contraponto com o material das dezesseis notas, mas o
próximo esboço marca um retorno à idéia original:
com a qual o esboço chega ao padrão final, é nada que não a repetição dos compassos
3 – 4 da primeira metade, exceto por começar em Fá ao invés de Dó, assim lendo Dó
ao invés de Sol. Previamente mal empregado, aqui está absolutamente correto;
encaixa-se perfeitamente. Os caminhos de desenvolvimento são peculiares: era
realmente necessário que a frase aparecesse primeiro no lugar errado e então pela
repetição se colocasse no lugar certo? É também valioso notar que neste ponto
Beethoven já reconheceu que após a metade fechada na dominante a segunda metade
da melodia deveria começar diretamente, sem transição, na tonalidade da tônica. No
entanto, a segunda metade começa com 1 – esta é sua fraqueza – não com a tensão da
nota 2, como no padrão definitivo. Como um resultado, o começo da segunda metade
soa como um começo inteiramente novo; a pausa conjunta em duas partes separadas.
E existe outra fraqueza: a frase conclusiva foi antecipada no compasso final da
primeira metade (ainda duas vezes). Conseqüentemente, seu efeito maravilhosamente
liberador na versão definitiva, está ausente aqui. A tensão que informa o arco do final
da melodia não está ainda à vista.
15
A primeira metade do segundo compasso é ilegível.
180
À primeira vista isto parece ser com um passo para trás. O padrão final
previamente atingido (é claro, Beethoven não sabia que ele era o final) da primeira
frase de quatro compassos é sacrificado; as primeiras frases de dois compassos estão
de volta. Mas isto está fora de questão aqui; Beethoven está agora interessado em
alcançar o meio com o centro modificado, se possível em uma limpeza que o
carregará na correta continuação e na ligação apropriada das duas metades da
melodia. Por sua vez, nada melhor é avaliável para ele para enchimento do todo
estendido desde o começo para o meio do que as duas frases de dois compassos com
repetição. Mas a tentativa revela-se frutífera. O que aparece agora na fenda no meio é
nada mais que não a anacruse do começo, repetida aqui, mas agora levando para 2 ao
invés de 1. Em outras palavras, ao invés do prévio ______, agora temos ______ no
meio, uma ligação tão simples quanto sólida, que une as duas metades em um todo
único.
Por algum tempo o desenvolvimento não é levado adiante. Nas próximas duas
páginas encontramos sugestões de variações. Beethoven ainda brinca por uma última
vez com Dó maior e notas em oitava. Ele experimenta com prelúdios e poslúdios
possíveis; ele presta atenção aos contra-cantos. Então, lentamente, o último estágio de
desenvolvimento começa, e ao mesmo tempo toda espécie de outras idéias ocorre a
ele. Com o próximo esboço ele experimenta descartar os períodos de dois compassos
na primeira metade; o esboço começa com a primeira frase de quatro compassos
correta, mas falha em encontrar a continuação, que é suposta levar à dominante
quatro compassos mais tarde. Ele escreve, risca, escreve novamente e risca
novamente; as notas não têm direção. O resultado do esforço infrutífero é uma nova
tentativa, a última, com a forma de dois compassos, quase idêntica à da última citada,
somente enriquecida por um póslúdio. Então ele volta para trás para a frase de quatro
compassos do começo, assim:
A princípio, é com dificuldade que percebemos que o passo decisivo foi dado,
pois aqui Beethoven reconhece que a primeira frase de quatro compassos deve ser
repetida. Justo como a segunda metade da melodia, então a primeira metade requer
repetição de uma frase de quatro compassos. Este é um reconhecimento sem reservas;
a frase é repetida literalmente. Como resultado desta repetição, a mudança de centro e
a conclusão sobre a dominante no compasso 8 estão eliminadas, mas somente um
observador superficial concluiria que isto é outra tentativa para alcançar o impossível.
Na verdade, tudo o que é necessário agora para chegar na versão definitiva é uma
pequena mudança, uma tão desprezível que ela dificilmente tem importância
enquanto registrando em mais um esboço. Esta mudança aparece somente na melodia
definitiva, no manuscrito: _________ nos compassos 3 – 4 torna-se ________ nos
182
Vamos dizer mais uma vez: nossa apresentação da seqüência dos esboços
musicais como um processo significativo, uma revelação, um crescimento cuja meta
pré-determinada é alcançada, embora a abordagem possa ser peculiar, com uma
espécie de certeza sonambulística – tal apresentação foi possível somente porque
sabemos o desfecho. Para aqueles que não conhecem o final, que não podem ver o
que vem após cada estágio sucessivo, longas distâncias do processo podem parecer
como uma flutuação sem plano entre possibilidades igualmente pouco promissoras.
Os tormentos criativos de um artista são devidos ao fato de que ele está na mesma
situação: ele não sabe a meta do processo; em virtude disso, antes de alcançar sua
meta ele não sabe se ela existe. Ele toma uma grande quantidade de força, coragem e
fé para perseverar em tal situação. Até o último passo, o artista não pode dizer, Isto é
isto, isto é o que eu havia buscado sem saber o que era, sem mesmo saber que eu
estava buscando isto. Somente após ter a melodia definitiva diante dele pode
Beethoven entender que todo o longo processo foi a respeito dela, que espécie de
problema ele tinha a resolver (estipulado que ele está interessado, o que é duvidoso).
Estamos nos lembrando do dito de Valéry de que uma linha ditosa em um poema é a
solução de um problema que se levanta somente após ter sido resolvido. Paul Klee
diz também: “Um artista conhece uma grande oportunidade, mas somente em
retrospecto”.
“A perfeição não é algo suposto de ser algo crescente”. Sob este título
Nietzsche escreve em Human, All Too Human: “Na presença da perfeição, raramente
perguntamos como ela acontece. Ficamos contentes em usufruí-la como uma dádiva,
como se fosse conjurada por mágica. Isto é assim provavelmente porque estamos
ainda por uma atitude primitiva, mitológica. . . . O artista sabe que seu trabalho é
mais altamente louvado se ele dá a impressão de ter sido produzido pelo milagre de
uma súbita iluminação, e então ele encoraja acreditar que na criação de uma obra de
arte a única força ativa é a inspiração cega. . . . Sua intenção é iludir o espectador ou
ouvinte, fazê-lo prontamente aceitar a idéia de que a perfeição implica em nenhum
trabalho. . . . É a arte imposta pela história . . . para dissipar esta ilusão e expor as
falácias e maus hábitos que guiam o intelecto dentro da espraiada rede pelo artista.”
sua dignidade. Perfeição não se supõe ser algo que cresça. Este ponto de vista é ainda
tão comumente sustentado quanto era no tempo de Nietzsche. Teriam os cientistas do
século dezenove e seus partidários nos tornado incapazes de experimentar a
maravilha e o assombro do milagre do crescimento? Ouvimos ainda suas explicações
fáceis e compartilhamos de sua adulação ao intelecto? Não ouvimos nunca o coro
crescente das mais recentes vozes? Seja lá o que for, certamente não existe melhor
caminho para reaver a capacidade de se maravilhar e assombrar do que estudar os
Cadernos de Esboços de Beethoven.
performance, não é mais matéria de debate. A única coisa que ainda permanece em
questão é a natureza desta outra espécie de pensamento e seu modo de operação.
de tempo sem sentido não fosse sua proposta ser mover-se com as notas, descobrir
um novo movimento por se mover com o antigo. O que ele busca ao escrever ______
e encontra quando escreve __________ é um gesto tonal, movimentos tonais. Cada
movimento comunica seu impulso para o próximo; o último imagina-o e equilibra-o,
mas invariavelmente excede sua meta, de modo que novamente um novo movimento
poderá ser buscado, poderá ser inventado. O novo movimento é novo no pleno
sentido da palavra: aqui o pensamento não acontece sob as leis da lógica como no
buscar e encontrar algo que já está lá; é inventar algo que não está lá, não ainda lá,
não implícito no dado, mas demandado por ele. O pensamento lógico é dedutivo, leva
somente à luz; sua meta é descobrir o escondido; é como revelar uma chapa
fotográfica exposta. O pensamento musical articula, dá forma a um impulso amorfo;
sua meta é preenchê-lo; é como o desenvolvimento de um ser vivo, auto-
desenvolvimento. O primeiro é tornado visível, o segundo é tornado real. Por esta
razão, o que é verdade na lógica, a saber, que cada passo pode em princípio ser dado
por qualquer pessoa a qualquer tempo, não é verdade para a música. O pensamento
lógico é uma função impessoal: pode em princípio ser executado, embora com
eficiência variável, por qualquer indivíduo: o pensador aqui é a matéria lógica pura.
Onde a música é concernida, o pensador é um indivíduo vivo, pois ele compartilha
um movimento vivo que envolve o homem como um todo.
Agora, quando a função e o que sustenta a função não podem ser diferenciados;
quando o ser humano não tem uma função, mas é uma função, função inteiramente
que projeta agora um, não outro aspecto; quando a função não é dirigida para um
objeto em separado ou separável dentre muitos; quando, gramaticalmente falando,
sujeito, predicado e objeto estão em constante movimento de influência mútua: então
a divisão em três partes gramaticais de fala torna-se enganosa. A mesma unicidade,
intimidade, interação que caracteriza a relação entre o cantor e sua canção no estágio
primal caracteriza aquela entre Beethoven e seus padrões melódicos. A matéria
pensante é também a matéria ouvinte: ele se deixa ser guiado por sua criação. O
último está invariavelmente em crescimento e em invenção, nunca um ou outro.
Nossa distinção costumeira entre sujeito e objeto simplesmente não se aplica onde a
experiência musical é concernida. Esta experiência não é mística. Embora ela seja
189
Como usado comumente, ele denota uma afirmação geral que cobre um vasto
número de instâncias individuais. Leis da natureza são afirmações a respeito de
processos naturais; elas se referem a certas uniformidades observadas e que podem
ser reduzidas a uma fórmula. “Isto sempre foi assim e sempre será assim”. As leis do
pensamento ou da lógica são redutíveis à fórmula “Isto é então”. Leis morais
expressam um “deve ser”. O que é comum a todas estas leis é sua universalidade.
Cada instância individual agrupada dentro de uma lei universal difere de todas as
outras, mas desde o ponto de vista da lei, a diferença é secundária, mera questão de
oportunidade ou circunstância. Uma falsa inferência não invalida as leis da lógica,
190
mas mais precisamente confirma-as por suas conseqüências. O vento que sopra as
folhas para cima não é uma “exceção” à lei da gravidade. Matar em auto-defesa é
contrário à lei moral, mesmo ficando a ação impune. Qualquer fenômeno que reúne o
requerimento geral de uma lei pode ser dito ser “governado” por essa lei: sua
universalidade não é afetada pela particularidade da instância individual. A
formulação da lei (e a lei não é anunciada ou descoberta até ter sido formulada) é
sobre outro nível que o fenômeno ele governa. Um mandamento, “Tu deves” ou “Tu
não deves”, não é a mesma coisa que uma ação, nem é uma equação matemática de
processo natural. Uma regra em lógica não é um juízo: não é nem verdadeira nem
falsa em si mesma, a proposição da regra é determinar quando um juízo é verdadeiro
ou falso.
Que leis ou regras deste tipo operam na composição de Beethoven não será
contestado por qualquer um que tenha acompanhado nossa análise dos esboços
discutidos acima. Tais leis ou regras derivam sua validade do sistema métrico e tonal
específico com o qual o compositor conta. Que Beethoven usou papel de música
comum e a notação costumeira mostra que ele aceitava as condições do sistema
diatônica e métrica da época maior-menor. A série inteira dos esboços é governada
pelas leis deste sistema, isto é, pelo fato do centro tonal ser mudado para a dominante
e no fato das frases de quatro compassos estão sendo equilibradas uma contra a outra.
Como as leis da natureza, as regras da lógica e as leis morais, aquelas do sistema
diatônico têm uma certa universalidade: elas estão em vigor se a música se expressa
na linguagem da tonalidade maior-menos e sua métrica. Sua validade, no entanto, é
de uma espécie diferente – diferente do “Isto será sempre assim” das leis na natureza
(as quais não deixam chance alguma para o que vai acontecer), do “deve ser” da lei
moral (que implica na possibilidade de obedecer ou desobedecer a lei), e diferente,
também, não ao menos de tudo, do categórico “Isto tem que ser então” das leis da
lógica, assim tão certas com respeito ao que é verdadeiro e o que é falso. As leis em
questão aqui pode mais precisamente ser formuladas como: “Se isto . . . então
aquilo”, portanto tanto expressa uma combinação de liberdade e conformidade à lei
quanto uma certa variabilidade ou flexibilidade na própria lei. A este respeito estas
leis assemelham-se a convenções lingüísticas cujo objetivo é a exata correlação entre
forma e conteúdo, o “como” e o “o que”. Sou livre para dizer o que eu quero dizer, e
posso dizê-lo de qualquer modo que eu escolha (embora o “como” sempre afetará o
“o que”), mas se eu quero que minha afirmação seja entendida, devo expressar-me
em uma forma convencionalmente prescrita para minha espécie de afirmação. (Por
exemplo, se pretendo fazer uma pergunta, minhas palavras não devem ser lançadas
em uma das formas convencionalmente usadas para responder questões, ou serei
muito provavelmente incompreendido.) Não é impossível fazer afirmações partindo
do uso convencional, nem são tais afirmações necessariamente falsas; elas são
simplesmente sem sentido. (Isto é por que alguém pode também falar de leis do
significado.) É claro, posso querer dizer algo para o qual não exista nenhuma
expressão convencional e então ser necessário cunhar uma nova palavra, deste modo
partindo do uso corrente. Quando faço isso, no entanto, eu não estou quebrando
191
qualquer regra, estou meramente alterando-a. (O termo “estilo” tem sido evitado
deliberadamente neste parágrafo: ele é por demais vago; maneja-se melhor sem ele.)
Em todo caso, é certo que os esboços musicais de Beethoven não devem seu
fascínio à aplicação destas leis, isto é, as convenções de tonalidade, tempo do
compasso, esquema métrico, rítmico, mudança de tonalidade nas passagens centrais e
assim por diante: tudo isto as feições da música de Beethoven compartilha com
muitos outros compositores, como ensina a teoria musical. O que nos fascina, e foi
valioso inquirir a respeito, foi mais propriamente como Beethoven tomou um grupo
de notas inicialmente amorfo e o transformou em uma única estrutura musical.
Podemos confidenciar que ele estava completamente familiarizado com as leis ou
regras do sistema tonal e métrico que ele herdou, que ele assimilou todas as lições da
teoria musical, mas este conhecimento não o ajudou quando, por exemplo, ele
trabalhava no terceiro compasso da melodia. Esta não poderia ajudá-lo, porque
nenhuma regra geral pode possivelmente ser formulada para a necessidade de saltar
uma oitava neste ponto particular da melodia. O único problema para o qual esta é a
solução foi o problema particular que confrontou Beethoven neste ponto particular
desta composição particular. E podemos dizer o mesmo de todos estágios em sua
pesquisa da melodia. Houvesse leis gerais governando seu desenvolvimento, cada
etapa sucessiva teria sido deduzida da precedente, e Beethoven teria sabido
exatamente quais notas ele teria que escrever a cada ponto dado. Mas, como temos
visto, isto é precisamente o que ele não sabia (ou, diríamos, ele ainda não sabia): a lei
governaria sua melodia. Ele não saberia possivelmente porque esta lei não existe (ou,
diríamos, ela ainda não existe). Que o caminho no qual trabalhou era todo ele
governado por leis, que este foi um processo de crescimento inconfundível enquanto
tal por sua consistência interna, desenvolvimento fora de uma lógica de seu próprio,
ninguém pode negar. Mas então a lei governante pode estar escondida dentro do
próprio processo composicional. Beethoven encontrou-o para si mesmo: ele não pré-
existia; ele foi demandado para ele. Alguém poderia quase dizer aqui de um processo
em busca da lei que o governa. Somente a reconhecemos como lei após o fato, uma
vez que o processo composicional foi terminado e a obra musical foi criada. A lei em
questão aqui não é mais ou menos do que determinada obra em toda a sua
singularidade e particularidade. “ Tu pesquisarás e encontrará tua lei” – este poderia
ser como colocar em palavras a lei que governa o processo da composição musical.
Isto implica, no entanto, em que o processo é governado pela lei somente na medida
em que de fato este encontra sua lei. Se o manuscrito do Quarteto op. 127 não tivesse
chegado até nós, se tivéssemos somente os esboços preliminares, não teríamos idéia
do que Beethoven de fato estivesse tentando. Ao invés de um processo de
crescimento bem ordenando, teríamos somente um número de tentativas
aparentemente ao acaso levando a lugar nenhum. Não ocorreria a ninguém chamá-lo
de um processo governado por leis.
O que tudo isto aponta é que no domínio das formas musicais existem muitas
tantas leis quanto existem padrões musicais individuais, e que cada lei é válida
somente para uma dada instância. Podemos, então, nesta relação, falar de lei
192
“individual”? O termo não é desconhecido em outras relações, mas que sentido teria
aqui? Como estaremos a interpretando? Uma lei que é aplicada somente uma vez, a
validade da qual se desvanece tão logo ela tenha sido reconhecida e realizada
claramente, isto é o oposto de lei. Uma situação na qual existem tantas leis quanto
instâncias individuais, cada lei sustentando o balançar sobre somente um caso – o que
é isto se não anarquia? Poderia ser argumentado que a lei governando uma estrutura
musical é universal no mesmo sentido em que cada passo no processo de composição
é um caso particular submetido a ele. Mas mesmo outorgando isto, como poderíamos
falar de uma lei quando ela está oculta, quando ela não pode ser destacada do
processo que ela supostamente governa, quando ela não pode ser formulada
independentemente do processo que ela governa, a formulação da qual é, mais
precisamente, simultânea com a perda de sua efetividade e validade? Podem haver
tais leis? Devem haver leis deste tipo: caso contrário, a arte seria um domínio não da
ordem mas da anarquia. E a arte é um domínio da ordem – não somente e não
essencialmente porque é também governado por leis gerais relativas aos materiais,
organização formal, épocas históricas, gerações, estilos, mas em um sentido muito
mais profundo. A afinidade entre uma paisagem feita por um pintor Sung e uma por
Dürer é uma afinidade mais próxima do que entre uma pintura de Dürer e uma
pintura feita por um de seus pupilos. Para considerar tais fatos, precisamos
obviamente revisar nossas noções habituais de lei e de conformidade à lei.
Em seu Crítica do Julgamento, Kant reconhece que a arte não tem espaço para
leis universalmente unitivas, e que ao mesmo tempo as obras de arte inegavelmente
manifestam uma ordem que não pode ser puramente subjetiva, uma mera questão de
gosto pessoal. Ele tentou dominar a dificuldade envolvida aqui apresentando uma
noção de “conformidade à lei” em uma situação “onde nenhuma lei se aplica”. Por
sua própria experiência de arte ser limitada, ele deixou este por aquele, contentando-
se com uma formulação negativa. Nosso interesse, no entanto, é progredir em direção
a uma percepção positiva dentro da natureza do que temos chamado “a lei oculta”,
oculta por definição, por assim dizer, pois ela cessa de operar tão logo descoberta e
nenhuma aplicação ou validade além de um simples instante a governa. Ela não opera
via causalidade (como as leis da natureza), via motivação (como as leis morais) ou
via regras formais (como as leis da lógica). Admitir que ela opera via propósitos – o
padrão final como o propósito secreto guiando o processo criativo – seria ainda
inadequado. SE, com Kant, definimos propósito como “o conceito de um objeto, na
medida em que ele contém o solo da atual existência do objeto”, certamente não
podemos falar aqui de um “propósito guia”. Nossa análise de um exemplo dos
Cadernos de Esboços mostra inconfundivelmente que na criação de sua melodia
Beethoven nunca atuou por um “propósito guia”. Nem tal conceito existia em sua
mente, pois tivesse ele sempre existido, não teria tido nenhuma necessidade de
procurar algo mais. Dizer que ele existia em outra parte – em Deus, na coisa-em-si-
mesma, no campo das idéias platônicas, ou em qualquer outro lugar inacessível –
poderia ser aceitável para aqueles que acreditam que “perfeição não é suposta como
sendo algo que cresce”, mas não contribui em nada para nosso entendimento. Se a
melodia de Beethoven tivesse vindo a ele toda de uma vez, faria sentido dizer que ela
193
Como mencionado antes, esta espécie de “emergir” não se parece com o erguer
de um véu, como quando algo até agora invisível repentinamente se torna visível. O
que acontece, mais propriamente, é que algo atravessa o limiar da existência: algo
que nunca existiu, salvo potencialmente, agora é feito atual. Estamos recordando a
distinção aristotélica entre existência _______ (como força, como tendência) e
existência _________ (como atualidade). Porque a lei oculta não é dada de antemão
mas é para ser construída, e porque ela não se revela até ter sido encontrada, a espécie
de processo que ela governa combina a conformidade da lei com a novidade, a
consistência interna com a imprevisibilidade. Sob leis universais tal combinação seria
auto-contraditória, pois nos processos governados por tais leis cada passo é pré-
determinado, pré-figurado, predizível, e conseqüentemente nenhuma realmente
“nova”. A estética tem desprendido uma grande quantidade de trabalho infrutífero
tentando eliminar a aparente contradição, o pseudo-problema de como a
conformidade da lei pode ser conciliada com a liberdade na criação artística, como se
a liberdade envolvida fosse uma coisa à parte da conformidade da lei! Desde que a
estética, tomando sua deixa de outras disciplinas, almejou descobrir leis universais,
ela não pode livrar-se desta contradição, e então se desviou de sua tarefa real. Pois
diferente da ciência natural, cujas leis universais acrescentaram ao nosso
conhecimento e compreensão, a estética deveria buscar a chave da compreensão não
nas leis universais, mas na que é única e não-repetível, a única de sua espécie.
Sob esta luz, ainda uma outra noção corrente da estética parece insustentável, a
noção (a qual é mais ou menos tomada por garantida) de que criar obras de arte e
experienciá-las são dois processos diferentes, o primeiro dirigido para terminar a
obra, o último começando a partir deste término. O processo de criação é mais
freqüentemente estudado do ponto de vista psicológico, ao passo que o problema da
estética é localizado na experiência recebedora da obra acabada. O fato de que nos
primeiros estágios da música – na música folclórica, por exemplo – é impossível
desenhar uma linha dividindo criadores dos ouvintes ou intérpretes, ou para falar de
“obras” musicais, seria suficiente mostrar, pelo menos até onde concerne a música,
quão superficiais são todas estas distinções. No outro pólo, onde compositor e
ouvinte estão tão afastados quanto possível, nosso exemplo dos Cadernos de Esboços
de Beethoven provam além de qualquer dúvida que o processo criativo na música é
primeiro e antes que tudo musical, que o problema principal envolvido – o problema
de como uma estrutura musical vem a existir – não é psicológico mas morfológico.
194
Alguém levantará a objeção de que tudo isto não tem nada a ver com qualquer
lei do pensamento musical, somente com a lei que governa os padrões tonais e as
composições musicais? Tal objeção seria infundada, pois não há duas espécies
diferentes de leis. Assim como as leis do pensamento lógico são as mesmas daquelas
que governam o pensamento que as produzem – um trabalho de matemática, digo –
assim é com o pensamento musical e suas produções. E agora isto deve ser dito:
mesmo se a música é a criação do pensamento musical, e somente daquele, a música
não está de qualquer modo separada do resto do mundo. Outras coisas ao lado da
música são musicais: a lei que governa o pensamento musical tem aplicações além da
música, onde outros processos musicais estão envolvidos. Não é somente uma
metáfora poética dizer da “musicalidade” do mundo.
lógico. Isto sem dizer que não podemos tentar fazer então, ao final das reflexões já
tão longes. Podemos, contudo, ainda chamar a atenção a poucos pontos essenciais.
O tempo entra em todos os tipos de processo, não importa sob que leis, mas
processos governados por leis universais (os quais implicam em um caráter “lógico”)
não são afetados pelo fluxo do tempo. Eles, é claro, ocorrem no tempo, mas o tempo
como tal não acrescenta nada a ele, serve meramente como uma zona condutora
carreando partes em nossa direção. Não há diferenciação entre passado, presente e
futuro; tudo se funde em uma indiferença cinza. O passado pode sempre ser
redescoberto, e o futuro está já presente em todos os aspectos essencial. Tudo o que
falta é a “mera formalidade” da tangível emergência no aqui e agora. Esta
formalidade, também, será cuidada de quando o comprimento pré-determinado do
tempo transcorrer. Fosse ele senão, previsibilidade nunca teria sido feita a pedra de
toque da lei universal. Na medida em que o processo corre seu curso em
conformidade com a lei, o tempo não toma parte nele. A temporalidade não é inerente
nele, mas um elemento estranho adicionado pelo observador ou pensador que
necessidade é nascer e deve morrer. Os processos não-humanos estudados pelas
ciências naturais, em especial, exemplificam esta eternidade peculiar.
completo somente uma vez um padrão final tenha sido alcançado, e não “repetível”,
estritamente falando. Tal qual os padrões da música (os quais podem ser re-jogados
qualquer número de vezes), aqueles das coisas vivas são reproduzidos não
produzidos, re-criados e não criados. É de fato tão impossível inferir a forma de um
organismo maduro desde uma célula do embrião de uma espécie desconhecida quanto
inferir o padrão final de uma melodia desde sua “semente”, ao passo que o curso do
crescimento biológico em um indivíduo de uma espécie conhecida é tão previsível
quanto o curso de uma melodia familiar. Como temos visto, previsibilidade é o
último caso (reprodução, não produção, de um padrão tonal) não é incompatível com
a efetividade contínua da “lei oculta” e a imprevisibilidade do processo a governa:
previsibilidade e imprevisibilidade aplicam-se a diferentes aspectos do processo. Em
outras palavras, um e o mesmo processo pode ser governado por ambos os tipos de
lei. Podemos levar nossa comparação um passo mais longe. Suponhamos que o
fonógrafo cresça como as plantas e emita padrões sonoros do mesmo modo que as
flores emitem aroma: então “físicos e químicos” poderiam estar ansiosos por
investigar como os fenômenos musicais são governados por leis universais, mas isso
não os colocaria uma polegada mais perto do coração e do cerne do processo musical,
a saber, o padrão tonal. Quando procuramos pelas leis universais do crescimento
orgânico – embora importante, significativo e difícil por si mesmo – não estamos
como aqueles físicos e químicos estudando o mecanismo de reprodução de padrões
tonais únicos?
espécie humana como um todo, o indivíduo histórico por excelência. Disputas sobre
as “leis” da história são todas viciadas porque somente a interpretação admitida de
“lei” é aquela universalizante das ciências lógicas e matemáticas. Mesmo os
processos históricos são governados obviamente, pelo menos em parte, por outro tio
de lei inteiramente diferente. A história é essencialmente previsível e imprevisível,
embora algumas situações podem se repetir no sentido da reprodução. O significado
de um evento é revelado somente após o fato. Todas as pessoas estão em busca de sua
própria lei oculta, sua história é sua verdadeira busca. O padrão é plenamente
revelado somente ao final. Todas estas feições são características dos processos
musicais, e então o significado da história é mais prontamente compreendido pelo
pensamento “musical” do que pelo pensamento “lógico”. A noção de leis universais
governando todos os eventos históricos mais certamente vem de não mais do que um
desejo de realização inspirado pelas ciências naturais. Há boas razões para acreditar
que existem tantas leis históricas quantas coletividades históricas existem. Assim
portanto, a única verdadeira lei histórica seria aquela que mostrasse governar toda a
espécie humana. Mas a busca por tal lei não é o negócio dos historiadores. A espécie
humana como um todo é buscada por eles, é sobre este caminho para realizá-lo. Hoje
em dia, pensadores ousados, treinados na rigorosa escola da ciência natural, estão
aplicando o conceito de história ao universo como um todo – o universo sobre seu
caminho desde os estados sub-atômicos iniciais em direção ao estado final quando ele
será consumado e sua lei oculta será revelada; o universo como um todo em busca de
sua lei oculta: uma concepção verdadeiramente musical. Encontrando suporte neste
quadrante para a idéia de musicalidade do mundo ajudaria a libertá-la da mancha de
ser fantástica. Além disso, foi um estudante de mitologia, não um musicista, quem
escreveu: “A música repousa sobre uma qualidade inerente da existência, a
musicalidade”. A música não poderia nos mover tão profundamente se não a
sentíssemos na operação de uma lei que abarca tanto nós quanto o mundo e uma
intimação do pulso do coração que anima todo o universo.
O mundo, o mundo do homem, nos mostra duas faces: a face da lógica e a face
da música. Não podemos fazer sem um ou outro deles. Ambas as leis são criadas pelo
homem antes ele encontrá-los o mundo, e de ambos ele descobre posteriormente que
eles são também a ordem do mundo. Espantar-se com a ordem lógica inconcebível do
mundo foi o começo da filosofia; a tremenda realização intelectual de Kant foi tornar
o inconcebível concebível a princípio sem tirar do maravilhoso ou reflexão
reduzindo. A maravilha análoga e a reflexão a respeito da musicalidade do mundo
não havia ainda surgido, embora ambos os aspectos, mesmo que ainda
indiferenciados, podem ter estado presentes nos ensinamentos de Pitágoras. Nenhum
esforço intelectual na escala kantiana, contudo, é requerido para apreender a
musicalidade do mundo: na música, afinal de contas, o homem não está radicalmente
separado do mundo como um sujeito de um objeto, mas cada um é dirigido em
direção ao outro como na unicidade de um encontro. A verdade da música, como
199
aquela da matemática, consiste em que, o que ela nos serve como uma chave para o
entendimento do mundo no qual vivemos.
Que mais do que o pensamento musical está envolvido na música deveria ser
claro desde a existência da teoria da música, enquanto parte indispensável da
educação de todo compositor. Podemos compará-lo com o papel da física e da
química na vida orgânica. Schenker estava correto ao chamar a atenção a um aspecto
essencial da música que envolve o pensamento conceitual mais propriamente do que
o musical. Que o desenvolvimento gradual da estrutura fundamental do plano de
fundo pode ser compreendida como uma reconstrução puramente “ideal”, não deve
ser confundido com o processo real de crescimento em tempo real, como
mencionamos anteriormente. É verdade que os diagramas de Schenker podem ser
interpretados em termos dinâmicos, todavia é claro que seu padrão de “primeiro
plano” está contido no plano de fundo de um modo que torna fechado a implicação –
não de todo no modo da melodia acabada de Beethoven está contida na semente de
seu primeiro esboço. Isto é, na realidade, por que Schenker expôs sua teoria modo
geométrico, dedutivamente, começando com formas primárias hipotéticas no plano
de fundo, inferindo padrões de plano intermediário, gradualmente tornando-os mais
explícitos. O método analítico da lógica conceitual, no entanto, não nos leva mais
longe do que as estruturas do plano intermediário: o salto para o primeiro plano está
além dos poderes da lógica.
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Nota do Editor