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REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Idade Moderna (Vol. II).

Trad. José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2017, p. 661-678.

José de Sá Araújo Neto

Nascido em Genebra aos 28 de junho de 1712, Jean-Jacques Rousseau, inicialmente, teve


uma educação desordenada, mas logo conseguiu se aprofundar nas obras clássicas. Em Paris,
conheceu Diderot e os enciclopedistas, com os quais, depois de alguns anos, rompeu relações
devido a discordâncias quanto à situação da sociedade e a considerações acerca da história
humana. Após perder o título de cidadão genebrino e de suas obras receberem condenações
advindas tanto de Paris quanto de Genebra, refugiou-se junto a Hume na Inglaterra, e mesmo
assim, por pouco tempo. Morreu no castelo do Marquês de Girardin, em Paris, aos 2 de julho
de 1778. Sua vida foi repleta de altos e baixos, conquistas e decepções; seu espírito irrequieto
muito foi atormentado por uma mania de perseguição, dada a grande decepção que teve ao ser
condenado pelas autoridades civis e eclesiásticas das duas cidades acima citadas.

Crítico radical da vida civil de seu tempo, provavelmente impulsionado psicologicamente


pela sensação de que era um estrangeiro em sua terra-natal, defendeu o modelo de relações
sociais baseado na recuperação dos sentimentos profundos do espírito humano. Por isso,
acreditava que homem de natureza (em seu estado natural) era caracterizado pela integridade,
saúde biológica, retidão moral, bondade e pacificidade. Ter-se tornado mau é fruto de um
desequilíbrio de ordem social. O espírito de Rousseau era amante dos homens, pelo que eles
eram em profundidade, mas, paradoxalmente, os odiava, pelo que haviam se tornado. Isso
porque são constituintes da natureza humana a justiça e o amor, mas a opressão e a rede de
relações alienantes decorrem da superestrutura social. Porém, que fique claro que o estado de
natureza, mais que um dado histórico, é o terreno (ou categoria teórica) sobre o qual
Rousseau, em um movimento de autoconhecimento, trabalhará suas ideias de homem, moral e
sociedade, analisando quanto da natureza humana foi corrompida ao longo dos processos
históricos.

Para dá sequência à análise do estado de natureza do homem, faz-se necessária a distinção


entre os elementos originários da natureza humana e os de caráter artificial. Tal empreitada é
de difícil realização, pois pleiteia conhecer o estado que não mais existe, ou mesmo, que
nunca tenha existido, ou possivelmente não existirá. Contudo, se quisermos conhecer bem o
nosso presente, argumenta Rousseau, é imprescindível investigarmos o estado de natureza.
Isso equivale a dizer que o estado de natureza, nesse pensador, assume um caráter normativo
visando a compreender quais aspectos corrompidos se manifestam, presentemente, em nossa
natureza.

Recordemos que, desde o século XVI, com as Grandes Navegações, deu-se início a um
movimento de idealização dos povos “primitivos”, formando-se o mito do “bom selvagem”.
A orientação do pensamento de Rousseau, o qual via na natureza primitiva o modelo de
bondade, vai em direção a um esforço por explicar a corrupção dos costumes da sociedade do
século XVIII. O pensador genebrino se debruça sobre essa avalanche de imagens
contrastantes entre os costumes dos povos não participantes da “civilização europeia” e os
vícios e perversões desta. Indo contra o pensamento enciclopedista da época, o nosso filósofo
defende incisivamente que a natureza primitiva do homem é sentimento e paixão - e não a
razão - pois, deixada a seu livre movimento, ela leva ao triunfo dos sentimentos.

Dito isso, podemos entender o que Rousseau quer dizer quando afirma, no Ensaio sobre a
origem das línguas, que foram as paixões e as necessidades morais que fizeram surgir as
primeiras formas de comunicação (gestos e vozes). As línguas se originaram do amor, do
ódio, da piedade, da cólera, ou seja, das paixões, que aproximam os homens. No decorrer do
processo histórico é que a linguagem antiga dos primeiros homens, que Rousseau situa entre
as línguas orientais, foi sendo transformada no que ele chama de “línguas de geômetras”, isto
é, de poéticas, apaixonadas e cantáveis passaram a ser simples e melódicas, medidas e
calcadas.

A visão de Rousseau acerca do homem selvagem pode até conter algo de nostálgico, mas
não faz apologia à barbárie. O filósofo quer explicar a corrupção e a maldade dos homens de
sua época, apesar de tanta ciência. O homem em seu estado de natureza, por outro lado, era
bastante limitado, pois, possuindo poucas paixões e bastando a si mesmo, somente detinha os
sentimentos primitivos e conhecia as necessidades mais originárias e verdadeiras; sua
inteligência não progredia além do que sua visão e experiência alcançavam, não
compartilhava as suas descobertas, não reconhecia nem os próprios filhos. Enfim, para o
nosso filósofo, o homem primitivo não progredia, continuando a ser sempre como uma
criança. Destarte, o mito do “bom selvagem” é, sobretudo, uma categoria filosófica de origem
utilizada por Rousseau para criticar ferrenhamente a repressão que o arcabouço passional
humano sofreu no decorrer da construção social, por exemplo, a submissão da espontaneidade
dos mais profundos sentimentos humanos aos ditames do cultivo da razão, como se fosse a
pedra de toque da natureza humana.
O rompimento das relações entre Rousseau e os enciclopedistas se deu graças à concepção
daquele de que a cultura, nos moldes apresentados pela história, corrompeu e desfigurou a
natureza do homem primitivo. Segundo o filósofo, a imagem que muitos têm do homem
primitivo é a de um selvagem, um feroz animal que precisa ser civilizado, incluído na cultura
europeia. Entretanto, essa visão decorre da aplicação das ideias apreendidas da sociedade ao
estado de natureza, ou melhor, falando do homem no estado natural, descrevem o homem
civil. O espírito competitivo e belicoso é derivado da história, e não originário. A cultura e a
redução do homem à esfera racional é alvo de críticas incisivas do filósofo, pois, segundo ele,
não fizeram progredir a humanidade, mas regredir. Dessa maneira, uma certa ignorância deve
ser salvaguardada: a que consiste na indiferença a tudo o que não é próprio do homem. No
Século das Luzes, a declaração de que havia sido as ciências as responsáveis pela corrupção
do homem explodiu como um escândalo. As ciências, as artes e as letras são o fruto dos vícios
e da soberba, não fazendo progredir a felicidade, mas consolidando os vícios de que partiram.
Contra o progresso das ciências, afirma Rousseau que quanto mais nos preenchemos de novos
conhecimento, mais nos fica difícil conquistar o mais importante deles.

Segundo a visão pessimista de nosso pensador, em seu Discurso sobre a desigualdade, a


sociedade civil se instituiu com a fundação da propriedade privada, e é justamente essa
fundação que é a origem das desigualdades entre os homens. O que Rousseau está afirmando
em seu Discurso é que, no estado de natureza, tudo era de todos. Contudo, a invenção da
metalurgia e da agricultura levaram os homens à divisão das terras e à criação de leis para o
respeito aos limites de cada propriedade. O proprietário, ao sentir que precisava da ajuda de
outros para cultivar a terra e ao perceber que ter provisões em abundância era favorável à
sobrevivência e ao seu bem-estar, instituiu servos e um salário para o trabalho, assim, a
igualdade desapareceu e as propriedades se tornaram a causa da hostilidade entre os homens.
Vemos um radical distanciamento das ideias enciclopedistas: aquilo que estes atribuíam à
religião e à superstição, nosso pensador imputava ao saber cultural construído no decorrer da
história e ao progresso que, para ele, era, deveras, uma regressão. Em outras palavras, o
estado de natureza não é o estado de violência que imaginara Hobbes, mas de igualdade e
pacificidade. A antítese está erguida, a saber, natureza/cultura, estado de natureza/sociedade
civil.

Em Rousseau, deparamo-nos com um paradoxo: opõe-se aos iluministas e jusnaturalistas


de sua época, mas ele próprio é um iluminista e jusnaturalista, só que sui generis. É iluminista
porque considera a razão como a faculdade pela qual podemos vencer os males, os quais
foram introduzidos por séculos de produção cultural errônea; é jusnaturalista porque defende
o retorno ao estado de natureza como a via para salvar os homens dos males da sociedade
civil. Para o cumprimento desse último propósito, faz-se necessário uma radical e dolorosa
mudança nas instituições: o mal não está na racionalidade, mas na sua exteriorização, à qual
as ciência levaram a tal ponto de o homem não mais ouvir a voz da sua consciência; nesse
caso, o remédio a aplicar consiste em uma sua interiorização. Ora, essa ligação entre o
exterior e o interior requer o resgate da importância da virtude para a verdadeira filosofia, ou
seja, os princípios daquela estão gravados no mais íntimo de todos os homens, os quais devem
“voltar” do exterior para si mesmos (para a sua consciência) a fim de encontrá-los. Somente
assim, a filosofia será considerada verdadeira. Vale ressaltar, no entanto, que, já corrompido
pela sociedade, o homem interiormente está em desequilíbrio e, por isso, a conversão deve
partir do interior, repensando todo o saber cultural a fim de, exteriormente, recriar as
instituições sociais.

Em sua obra, Contrato Social¸ o filósofo genebrino delineia um novo contrato cujo fim
não é o retorno ao primitivo, mas à construção de uma sociedade fundada, nem sobre os
instintos e impulsos nem sobre a razão tão somente, mas sobre a voz da consciência coletiva
do homem, sobre as determinações do dever que emergem de uma consciência aberta à
comunidade. A transformação radical que propõe Rousseau só será possível se o único motor
do corpo social for a vontade geral, a qual tende para o bem comum. Segundo o pensador, a
sociedade civil foi instituída para legislar sobre os interesses privados contrastantes quando os
mesmos entraram em acordo mútuo, ligação social somente possível graças ao que havia em
comum entre os diferentes interesses. Nesse dado comum, encontrado entre os contrastes dos
interesses privados, é que se baseia a vontade geral, a qual tende para o bem comum, que deve
ser o fim último do Estado. Essa vontade geral decorre de um pacto de união entre iguais –
que permanecem iguais –, e não de um pacto de submissão a uma instância superior e
absoluta (como em Hobbes). Em outras palavras, quando todos igualmente renunciam aos
próprios interesses em favor de uma coletividade, emerge uma realidade a que chamamos
vontade geral.

Esse novo contrato de Rousseau visa à radical socialização do homem, ou seja, que este só
possa pensar em si mesmo levando em consideração os outros cidadãos, os quais deverão ser
tratados como um fim em si mesmo, e não como meios. Nesse quadro social, todos devem
obedecer às leis, sagradas para todos haja vista emanar da vontade geral e, por isso, ser justa
para cada um dos indivíduos, além de serem permanentes e duráveis. Realizados esses
esforços, os interesses privados não virão a se manifestar para serem afirmados. Ao implantar
tão radicalmente as leis sociais no coração dos homens, eles se tornarão civis por natureza e
cidadãos por inclinação, consequentemente, justos, bons e felizes. A felicidade de cada
homem, que não prescinde da felicidade do outro, formará também a da república, pois não se
compreenderão realizados fora da sociedade civil.

Necessariamente, nesse modelo social: nada deve ser privado, mas tudo deve ser público;
o homem, tornado um ser essencialmente político; as ciências, as artes e as letras devem estar
a serviço da manutenção desse quadro, mas sempre sob a guia de um filósofo platônico. Por
tudo isso, o homem unicamente deverá obedecer à consciência pública, isto é, ao Estado, fora
do qual só há consciências privadas, onde estão os males, e que devem ser condenadas. Logo,
todos os que se recusarem a obedecer à vontade geral devem ser a isso obrigados pelo corpo
social. Isso, para o filósofo em estudo, equivale a afirmar: todos os cidadãos são obrigados a
ser livres. Ora, com a moral fundada sobre a política e o indivíduo dissolvido no corpo social,
dá-se início, por um lado, ao Estado Democrático, no sentido de um poder emanado da
comunidade; por outro, consagra-se o despotismo da maioria, pois esta se reveste de
totalidade. Consequentemente, a pessoa humana e sua singularidade são dispersas na vontade
de uma maioria que se arroga o poder de totalidade e cuja lei é sagrada e medida da justiça,
perdendo o indivíduo a sua liberdade e submetendo sua consciência a uma vontade dita geral.
O Estado pensado por Rousseau é, assim, caracterizado como totalitário.

Para cumprir tal contrato, deve-se começar pela educação de tal forma que o homem se
ponha à escuta da voz superior da razão. Há uma lógica a que os homens devem obedecer se
querem formar uma nova sociedade, a saber, a lógica da harmonia racional, a que sustenta a
vontade geral, e não aquela pré-racional, voltada para os instintos e paixões. Percebemos que
Rousseau não é contrário ao cultivo da razão, mas que se opõe a um cultivo unilateral e
exteriorizado da faculdade racional. O nosso filósofo defende que a educação deve centrar-se
em fazer com que os homens obedeçam aos deveres que emergem da consciência pública, isto
é, da consciência de cidadãos, que, sem a sociedade, nada são; que a sua felicidade é
inseparável da harmonia e do bem-estar do corpo social. A isso, Rousseau chama “liberdade
bem guiada”, pois cabe, por exemplo, ao preceptor esforçar-se por desenvolver,
ordenadamente, todas as potencialidades humanas de uma criança. Ora, como o bem comum é
ampliado à máxima importância, então, o amor deve converter-se em amor da comunidade; as
paixões, que são como os meios de autoconservação, devem tornar-se estratégias para a
defesa da comunidade; os instintos devem ser amadurecidos a ponto de oferecer consistência
à razão, pois é a esta que cabe a vida da comunidade.

Um grande avanço na tratativa do itinerário educacional é que o preceptor não deve


considerar a criança como um pequeno adulto, ou seja, as etapas de desenvolvimento devem
ser respeitadas. Mais ainda, o processo educacional deve ser permanente, acompanhando, é
claro, as características de cada etapa da vida. Do nascimento aos doze anos, ressalta o
filósofo genebrino, faz-se necessário exercitar com inteligência os sentidos. Eles são as
primeiras faculdades a despontarem em nós e, por isso mesmo, devem ser os primeiros a
receber uma atenção especial: exercitá-los significa aprender a julgar bem por meio deles.
Deve-se educar a criança a livremente desenvolver, pela necessidade, o movimento, o brincar,
o caminhar etc.

Dos doze aos quinze anos, os jovens devem ser introduzidos em um cultivo intelectual,
voltando-se para as diversas ciências, entretanto, o primado da abordagem não deve ser
teórico, mas prático; ou melhor, o contato com o mundo científico deve ser diretamente com
os objetos de cada ciência para que, deveras, seja ensinado a eles a criar a ciência, e não
meramente apreender os dados já descobertos. Nesse período, é que as paixões e os instintos
se chocam contra a dura realidade da vida, e eis aqui um bom lugar de prova da educação.

Dos quinze aos vinte e dois anos, a dimensão moral entra em destaque e os educandos
devem ser conduzidos a um amor pelo próximo, a um forte senso de pertença à comunidade,
ou seja, eles devem ser introduzidos no mundo dos deveres sociais. Complementarmente, a
educação ao matrimônio deve ocupar o centro das preocupações. A relação matrimonial não
deve fundar-se sobre um amor passional, ou aos ventos das puras emoções, mas sobre a
transformação do passional na alegria espiritual, a qual decorre da subordinação da própria
vida aos deveres da comunidade.

A proposta para um itinerário pedagógico, em Rousseau, abarca um problema que é,


simultaneamente, político e moral. Uma criança, ao nascer, não contém em seu coração
nenhuma perversão originária, pois é a ação da sociedade que introduz no coração humano os
males e perversões. Dessa forma, a educação deve preparar, desde cedo, os indivíduos à vida
social, ensinando-lhes a afastar-se de toda postura corrompida, egoísta e conflitiva. A
educação, então, precisa ser integral, sentimentos e razão, levando cada homem a submeter-se
livremente à vontade geral e ao bem comum. O contrato para uma revolução nas instituições
sociais, isto é, para a construção de uma sociedade capaz de recuperar as instâncias originárias
da natureza humana, mas voltadas às exigências da razão, requer todo esse monumental
esforço.

No que diz respeito à religião, Rousseau quis que ela pudesse traduzir e fortificar a
convergência entre a natureza humana, a voz da consciência e a razão social. Destarte, ela
estaria estreitamente unida à vida política e se distanciaria de tudo o que fosse contrário ao
que há de próprio no humano, por exemplo, toda crença sobrenatural deveria ser desfeita. Para
o nosso filósofo, uma coisa era a religião dos homens, cuja verdades fundamentais são duas: a
existência de Deus e a imortalidade da alma. Quanto ao cristianismo, com a separação entre
teologia e política, homem e cidadão, interioridade e exterioridade, a sua doutrina é vista
como uma das causas da corrupção da vida social. A Igreja Cristã é a responsável por formar
o conceito de comunidade universal, mas unicamente no plano espiritual, o que, para o
pensador genebrino, é totalmente contrário ao espírito social. Bem outra coisa é a religião do
cidadão, a qual consiste numa profissão de fé civil, ou seja, em artigos que expressam os
sentimentos de socialização. Tais artigos de fé são iguais aos da religião do homem, mas com
acréscimos: o artigo referente à santidade do contrato social e às leis, e um outro concernente
à obrigatoriedade da tolerância com todas as religiões que também toleram as outras e que não
ensinam nada que seja contrário aos deveres dos cidadãos. É perceptível a radical mudança: o
meio de salvação individual e coletiva passa a ser o Estado, pois somente nele as
potencialidades humanas são integralmente desenvolvidas.

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