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s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .

º 1 · s e t / d e z 0 6 issn 1649 ‑4990

Arquivos e Educação:
a Construção da Memória Educativa

Maria João Mogarro


Escola Superior de Educação de Portalegre
mariamogarro@mail.telepac.pt

Resumo:
Os arquivos escolares motivam profundas preocupações relativamente à salvaguarda e
preservação dos seus documentos, que constituem instrumentos fundamentais para a
história da escola e a construção da memória educativa. A sua importância tem vindo
a ser reconhecida, conduzindo a uma reflexão sobre a sua preservação, as condições de
instalação, a organização correcta dos documentos e o acesso às informações que nele
estão contidas. Os arquivos escolares constituem o repositório das fontes de informação
directamente relacionadas com o funcionamento das instituições educativas, o que lhes
confere uma importância acrescida nos novos caminhos da investigação em educação,
que colocam estas instituições numa posição de grande centralidade para a compreen‑
são dos fenómenos educativos e dos processos de socialização das gerações mais jovens.
Neste texto pretende­‑se reflectir sobre: o lugar dos arquivos escolares nas instituições
educativas; os documentos, a sua natureza e as potencialidades para a investigação em
educação; os arquivos escolares numa perspectiva interdisciplinar; os arquivos, a cultura
escolar e a construção da memória educativa.

Palavras­‑chave:
cultura escolar, arquivo, fontes históricas, memória.

Mogarro, Maria João (2006). Arquivo e Educação: A construção da memória educativa. Sísifo.
Revista de Ciências da Educação, 1, pp. 71­‑84.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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O lugar dos arquivos escolares cem (resta saber se, de facto, ainda permanecerão)
nas instituições educativas até que o investigador proceda a uma avaliação da
sua pertinência para o processo de investigação,
Os arquivos e os seus documentos têm adquirido em função dos problemas previamente formulados
uma importância crescente no campo da história (Mogarro, 2001a, p. 38). Se é verdade que o histo‑
da educação. Eles possuem informações que per‑ riador inventa as suas fontes, “construindo­‑as” em
mitem introduzir a uniformidade na análise reali‑ articulação com o objecto de estudo e inserindo­
zada sobre os vários discursos que são produzidos ‑as nas realidades históricas (e educativas, no caso
pelos actores educativos — professores, alunos, que aqui nos interessa) em que foram produzidas
funcionários, autoridades locais e nacionais têm e utilizadas, no caso dos arquivos escolares esta‑
representações diversas relativamente à escola e mos perante fontes de informação tradicionalmente
expressam­‑nas de formas diversificadas. O arquivo, consagradas (os documentos de arquivo), embora
constituindo o núcleo duro da informação sobre a também tradicionalmente consideradas menores
escola, corresponde a um conjunto homogéneo e no campo da história e, por isso, secundarizadas
ocupa um lugar central e de referência no universo (pela sua condição de serem escolares e, em conse‑
das fontes de informação que podem ser utilizadas quência, revelarem os processos educativos). Esta
para reconstruir o itinerário da instituição escolar. condição tem vindo a ser gradualmente modificada,
O cruzamento que se estabelece entre os dados com a atenção crescente que têm assumido os as‑
obtidos, através da análise dos documentos de um pectos da vida quotidiana e os “fazeres ordinários”
arquivo escolar, permitem realizar correlações es‑ da escola, dois dos novos objectos de um número
treitas entre as diversas informações (também ob‑ assinalável de investigações historiográficas.
tidas em fundos documentais externos à escola), As novas vertentes de análise e produção histó­
revelando um elevado índice de coerência e lógica rico‑educativa obrigam a uma renovação dos olha‑
internas do fundo arquivístico e o papel central dos res sobre os documentos de arquivos escolares e
seus documentos para a compreensão da organiza‑ uma abertura teórico­‑metodológica que incorpore
ção e funcionamento da instituição que os produziu as estimulantes informações que eles disponibili‑
(Mogarro, 2001a, pp. 43­‑44). zam. Os fundos destes arquivos são constituídos
Mas estas inteligibilidades só são estabelecidas por documentos, geralmente em suporte de papel,
pelos processos de investigação. No caso dos arqui‑ organizados em livros, dossiers e avulsos, produ‑
vos escolares, trabalhamos com documentos que zidos pelos actores educativos e pela própria insti‑
estão depositados, na maior parte das situações, tuição, no âmbito das suas actividades e a um ritmo
no silêncio desses mesmos arquivos e aí permane‑ que podemos considerar quase quotidiano.

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A importância do lugar do arquivo na instituição portantes documentos relativos à presença femini‑
escolar tem acompanhado a afirmação dessa mesma na na educação escolar paulista da segunda metade
instituição como um microcosmos com formas e de oitocentos, por Maria Lúcia Hilsdorf (1999), que
modos específicos de organização e funcionamento. efectuou o levantamento de fontes nos arquivos do
As escolas são estruturas complexas, universos es‑ estado e da universidade de S. Paulo. O conteúdo
pecíficos, onde se condensam muitas das caracterís‑ desta obra remete para a necessidade de perspec‑
ticas e contradições do sistema educativo. Simulta‑ tivar os arquivos escolares na sua articulação com
neamente, apresentam uma identidade própria, car‑ outros arquivos de âmbito mais geral (nacionais,
regada de historicidade, sendo possível construir, centrais, de ministérios, etc.), mas que também
sistematizar e reescrever o itinerário de vida de uma integram documentos com conteúdos educativos
instituição (e das pessoas a ela ligadas), na sua multi‑ e cuja importância tem de se articular com os pe‑
dimensionalidade, assumindo o seu arquivo um pa‑ ríodos históricos em que foram produzidos e com
pel fundamental na construção da memória escolar as especificidades que então apresentavam os siste‑
e da identidade histórica de uma escola. mas educativos.
No caso específico da situação portuguesa, a No caso português, a preocupação com a pre‑
generalidade das escolas têm os fundos dos seus servação e valorização do património histórico
arquivos dispersos por vários espaços, como os educativo é consensual, embora não encontre nos
sótãos, as caves, os vãos de escada e outros locais poderes instituídos a correspondência necessária
escondidos e desactivados, sem condições míni‑ para acções e decisões que se tornam urgentes. O
mas para albergarem os documentos de arquivo. levantamento efectuado em 1996, sob a coordena‑
Geralmente à guarda das respectivas secretarias e ção de António Nóvoa, demonstrou que o estado
serviços administrativos, misturam­‑se documentos de conservação da documentação de arquivo nas
de origens diversas e utilidade também diversifica‑ escolas secundárias portuguesas se pode conside‑
da: a) documentos activos — ainda utilizados com rar maioritariamente razoável, situando­‑se neste
regularidade, organizados (geralmente) e de acesso nível de apreciação 72,3 % das instituições consi‑
mais fácil; b) documentos semi­‑activos — cadastros deradas, seguindo­‑se 11,5 % com nível bom, 10,3 %
de professores e de alunos, de que ainda são pedi‑ apresentando um estado mau e 5,7 % situando­‑se
dos certificados a partir do original, estando iden‑ na categoria de “sem informação” (Nóvoa, 1997, p.
tificados pela instituição e sendo localizados com 71). Contudo,
relativa facilidade; c) documentos inactivos — nesta
fase do seu ciclo de vida, os documentos encontram­ “O razoável estado de conservação da documen‑
‑se normalmente depositados em locais que não tação poderá … ser posto em causa a curto prazo,
garantem as condições necessárias para a sua sal‑ já que a capacidade de acondicionamento por par‑
vaguarda e preservação material, amontoando­‑se te da maioria das escolas é cada vez menor … Esta
sem organização e misturando­‑se documentos de situação tenderá a agravar­‑se muito rapidamente,
origem e natureza muito diversa. uma vez que a capacidade de armazenamento de
A importância dos arquivos escolares tem ad‑ nova documentação é nula em cerca de metade das
quirido visibilidade em projectos desenvolvidos escolas e muito reduzida nas restantes … O facto
nos últimos anos e que estiveram na origem de configura, portanto, uma situação de saturação e de
publicações de referência, em Portugal (Nóvoa ruptura total no que toca à capacidade de conserva‑
& Santa­‑Clara, 2003; Ramos do Ó, 2003; Maga‑ ção de arquivos por parte da maioria das escolas.
lhães, 2001). Este processo tem similitudes com o A muito curto prazo poderão intensificar­‑se os dois
movimento que se tem consolidado no panorama fenómenos negativos usuais nestas circunstâncias:
da investigação brasileira, nesta área, constituindo a eliminação desregrada ou a manutenção desorga‑
exemplos significativos os trabalhos sobre institui‑ nizada ou pulverizada dos mesmos” (p. 74).
ções educativas e os seus arquivos, publicados por
Moraes e Alves (2002), Vidal e Zaia (2002) e Vidal Uma situação que não se alterou nos últimos
e Moraes (2004), assim como a publicação de im‑ anos, exceptuando­‑se os liceus em que houve uma

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intervenção sistemática de organização dos seus informação mais tradicionais e consagradas, assim
arquivos, no âmbito de projectos de investigação como aquelas que conquistaram recentemente o
(Nóvoa & Santa­‑Clara, 2003). Ao pensarmos nas seu lugar neste contexto; integra fontes produzidas
medidas a adoptar para o futuro, temos que ter em no interior das instituições, mas outras que lhes
conta que os arquivos escolares ocuparam, em mui‑ são exteriores; muitos dos seus documentos estão
tos casos, locais físicos diversos, porque passaram marcados pela materialidade dos seus suportes, ou‑
sucessivamente ao longo da história da instituição tros pela oralidade com que os actores educativos
escolar a que pertencem; também nessas transferên‑ expressaram os seus discursos. Ao localizar estes
cias poderá ter­‑se perdido a lógica organizativa que materiais, podemos estabelecer uma geografia do‑
lhe teria sido conferida no início. Hoje apresentam­ cumental sobre a escola:
‑se geralmente com a documentação disposta ao • Textos legais e documentos emanados do po‑
sabor do acaso e evidenciando a desorganização ar‑ der central;
quivística que terá sido provocada pelas mudanças • Estatísticas oficiais;
de localização ao longo do tempo (mas que também • Relatórios técnicos, elaborados por inspecto‑
poderá ser original, conforme os casos). res, reitores e directores de escolas;
Assim, torna­‑se necessário realizar o levanta‑ • Regulamentos, circulares, normas e outros
mento de toda a documentação existente, elaborar textos gerados pela instituição escolar e de circula‑
um inventário da mesma e organizar os arquivos ção interna, mas que também podem ser documen‑
segundo critérios técnicos e científicos. Neste sen‑ tos que asseguram o fluxo de comunicação entre o
tido, têm sido desenvolvidos esforços no âmbito de organismo político de tutela e a própria escola;
projectos relacionados com instituições educativas • Documentos administrativos e pedagógicos,
e em que a vertente arquivística e as preocupações que constituem grande parte do acervo arquivístico
técnicas com ela relacionadas assumem uma di‑ de cada instituição educativa;
mensão significativa (Vieira, 2003; Zaia, 2004), pois • Publicações exteriores à escola — livros, arti‑
constituem o trabalho prévio e indispensável para a gos de jornais e revistas, etc. São trabalhos cientí‑
realização de pesquisas científicas e actividades pe‑ ficos, pedagógicos e culturais, poesias, que muitas
dagógicas. Há um longo caminho a percorrer, para vezes surgem na imprensa regional e na imprensa
a preservação e salvaguarda de documentos que pedagógica, da autoria de professores da institui‑
contém informações valiosas para a história da es‑ ção, os quais também publicaram livros, expres‑
cola e para o estudo da cultura escolar, constituin‑ sando através destas diversas modalidades a sua
do um património fundamental na actualidade. cultura profissional;
• Equipamento, mobiliário escolar e objectos de
diversa natureza;
Os documentos e as suas potencialidades • Materiais didácticos, que se encontram na es‑
para a investigação em educação cola mas também, em muitos casos, integram acer‑
vos exteriores à instituição;
Os documentos de arquivo (manuscritos e dacti‑ • Trabalhos escolares de alunos que, geralmen‑
lografados, no caso dos mais recentes) reflectem a te, pertencem a espólios particulares e revelam o
vida da instituição que os produziu. No entanto, significado atribuído pelas pessoas à escola e aos
as informações fornecidas por estes documentos processos educativos, ao longo dos seus percursos
têm, necessariamente, de ser cruzadas com os da‑ de vida;
dos que se encontram em fontes de outra natureza, • Fotografias e outros documentos de natureza
apresentando­‑se em suportes variados e sob formas iconográfica;
diversificadas. Muitas destas fontes de informação • Testemunhos orais de professores, alunos,
encontram­‑se no exterior da escola a que respei‑ funcionários e outros elementos que exerceram
tam (e, consequentemente, do seu arquivo), sendo funções no sistema educativo, na escola e na comu‑
parte integrante de um universo que hoje é múlti‑ nidade.
plo e complexo. Este universo engloba as fontes de

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No seu conjunto, estas fontes de informação im‑ educação e para a história da escola, perspectiva‑
plicam o investigador numa atitude necessariamente mos de forma particular os documentos que inte‑
atenta aos contextos educativos e culturais em que fo‑ gram os arquivos escolares. O lugar que eles ocu‑
ram produzidas e à selecção a que sucessivamente fo‑ pam decorre da riqueza dos seus documentos e do
ram submetidas pelas gerações de actores sociais que leque de temas e problemas que é possível investi‑
as tutelaram, ocupando diferentes níveis de poder de‑ gar, numa aproximação significativa aos quotidia‑
cisório sobre elas e sobre a sua preservação ou elimina‑ nos escolares e às práticas pedagógicas. A análise
ção. Em consequência, estes documentos constituem dos fundos documentais de arquivos escolares de
produções múltiplas, que reflectem a própria multidi‑ instituições que asseguraram a formação em vários
mensionalidade e complexidade das realidades escola‑ níveis de ensino (Mogarro, 2001a, 2003a, 2005;
res e formativas, assim como a diversidade e pluralida‑ Mogarro e Crespo, 2001), permitiu estabelecer a re‑
de dos meios de intervenção dos agentes educativos. lação entre documentos de natureza diversificada e
Estabelecendo um recorte específico neste uni‑ as investigações que os mesmos permitiam, relação
verso das fontes de informação para a história da essa que se desenvolve no quadro seguinte.

Desenvolvimento de investigações a partir dos documentos de arquivo

Documentos Possíveis investigações

1. • Tensões entre professores: debates, conflitos, estratégias de coordenação,


Actas do Conselho Escolar reflexão interna sobre a instituição, tomadas de posição individuais
Actas diversas • Opções pedagógicas e curriculares
• Formas de abordagem dos problemas disciplinares dos alunos
• Orientações internas da vida da escola
• Actividades extra­‑curriculares, etc.

2. • Caracterização e evolução do corpo docente da instituição escolar: origem


Livros de Cadastro de Professores geográfica, formação académica e profissional, percurso e valorização
Processos de professores profissional, anos de ligação à instituição

3. • Definição do perfil dos alunos que, ao longo dos anos, frequentaram a


Livros de Cadastro e de Matrícula dos alunos escola: origem geográfica, articulação com a comunidade e a região, idade
Processos de alunos de entrada e saída da instituição, relação quantitativa de géneros, estudo
da formação das elites locais, sociais e económicas, etc.

4. • Avaliação dos resultados alcançados pelos alunos e estabelecimento das


Livros de Termos e Colecção de Pautas do taxas do seu sucesso/insucesso
Aproveitamento Escolar
Actas de Júris de Exame

5. • Apreensão da vida quotidiana escolar, dos valores, normas e regras, das


Regulamentos internos questões disciplinares, das actividades extra­‑curriculares
Ordens de serviço • Conhecimento do trabalho docente (através dos registos institucionais
Avisos e Convocatórias e pessoais que o permitem) e das relações (de cumplicidade e/ou de
Actas do Conselho Escolar conflito) entre professores

6. • Caracterização do trabalho de gestão e de organização pedagógica da


Listas de professores, alunos, turmas instituição escolar
Divisão de turmas e de turnos • Identificação de modalidades de governo interno dos agentes e sujeitos
Horários educativos, assim como da organização do tempo e do espaço escolares
Documentos sobre estágios, avaliação e outros • Análise da interpretação institucional relativamente aos planos de estudo,
elementos curriculares aos saberes disciplinares e às práticas escolares, na perspectiva de
apreensão dos sentidos que a escola atribuía à sua actividade formativa

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7. • Identificação de festas, espectáculos, exposições, manifestações e outras
Folhetos realizações muito diversificadas que marcaram o calendário escolar
Brochuras
Convites
Anúncios

8. • Caracterização das relações institucionais com os organismos da tutela e


Colecções de correspondência expedida e avaliação do grau de autonomia das instituições escolares face ao poder
recebida central
Circulares emanadas dos serviços centrais

9. • Compreensão da imagem que a escola construiu sobre a sua actividade e


Relatórios (geralmente anuais) funcionamento, na perspectiva da direcção da instituição
• Conhecimento e análise das categorias utilizadas nestes documentos

10. • Sistematização dos traços da história do currículo, das disciplinas


Livros de Sumários escolares e das relações pedagógicas, permitindo a
Materiais escolares (manuais, inventários, etc.) • Apreensão dos elementos do quotidiano na sala de aula e da natureza dos
Inventário e ficheiros da Biblioteca Escolar processos educativos que nela se desenvolve(ra)m
• Identificação do sentido que marcou a evolução dos saberes e dos
modelos culturais e pedagógicos presentes na escola

11. • Análise dos mecanismos em que assentam os processos de ensino­


Trabalhos de Alunos ‑aprendizagem e do significado dos rendimentos exigidos no âmbito das
diversas disciplinas aos escolares
• Compreensão, do ponto de vista dos alunos (uma perspectiva só muito
recentemente valorizada), das evoluções e as mudanças profundas que
ocorreram no campo da educação
• Valorização deste tipo de fontes de informação, que raramente têm
sido conservadas pelo arquivo da própria instituição escolar e que têm
despertado um interesse renovado nos novos caminhos da investigação em
educação

12. • Avaliação da gestão e dos critérios de aplicação do orçamento das escolas,


Documentos relativos à gestão financeira e remetendo para questões de economia da educação
contabilidade da Escola
Documentos relativos ao pessoal auxiliar

13. • Identificação das vozes (individuais e de grupo) de professores e alunos,


Jornais e revistas da instituição escolar a partir da análise destas publicações, em que os autores expressam a sua
Livros de Curso e Livros de Finalistas visão do mundo, da profissão e da escola
Outras publicações de professores e alunos • Levantamento destas obras, que também raramente são guardadas no
arquivo da instituição

14. • Observação e análise de um variado leque de documentos iconográficos


Fotografias e imagens da / sobre a escola, que permite apreender a riqueza dos espaços, dos
ambientes, dos objectos e das pessoas. Também esta documentação
raramente se mantém no arquivo da instituição escolar a que diz respeito.

A relação entre os documentos e as investiga‑ culo, registando as potencialidades de cada tipo


ções que, a partir deles, se podem desenvolver não de documento. No entanto, não se pode esquecer
é unívoca e exclusiva. O quadro acima apresenta‑ o necessário cruzamento das informações, que
do pretende sublinhar a importância e a riqueza um documento pode conter, com as de outros do‑
dos documentos de arquivo para os estudos sobre cumentos. Os seus contributos são fundamentais
a instituição educativa, a cultura escolar, o currí‑ para um universo vasto de temas e problemas — a

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flexibilidade e agilidade que o investigador impri‑ escolar garante, em cada instituição, a unidade, a
me ao processo de investigação baseia­‑se na com‑ coerência e a consistência que as memórias indivi‑
plementaridade da documentação em análise e na duais sobre a escola, ou os objectos isolados por ela
capacidade de usar a sua complexidade para trilhar produzidos e utilizados, não podem conferir, por si
novos caminhos nas suas pesquisas e na problema‑ sós, à memória e identidade que hoje se torna fun‑
tização das realidades educativas. O cruzamento damental construir.
de conteúdos é, neste sentido, uma operação fun‑ Mais uma vez, somos conduzidos a sublinhar
damental. Por isso, o quadro apresentado fornece a necessidade de articular e cruzar as informações
indicações importantes, mas não tem uma natureza de cada tipo de documento com as de outros docu‑
prescritiva ou rígida e não reduz um conjunto de mentos que se revelem pertinentes para o estudo a
temas e problemas a um único tipo de documentos. realizar. Estabelece­‑se assim o diálogo entre as di‑
Estes documentos permitem apreender a realidade versas fontes de informação, entre os vários docu‑
educativa em que foram produzidos, mas podem mentos, numa perspectiva de complementaridade
ser lidos em perspectivas diversas e expressam, na e articulação entre eles. Esta perspectiva, exercida
sua materialidade e no seu conteúdo, a riqueza dos sobre os documentos de um arquivo entre si e tam‑
contextos de produção — isolados, são fragmentos bém entre documentos de natureza diversa (com‑
do passado, cabendo ao historiador a tarefa de lhes parar os dados recolhidos no arquivo escolar com
conferir validade, coerência, lógica e unidade, no as estatísticas oficiais, relativamente ao número de
estabelecimento necessário de relações com outros professores ou de alunos de uma instituição, por
documentos e acervos. exemplo), é extensível aos próprios arquivos pois,
como já referimos anteriormente, outros fundos po‑
dem possuir documentação relativa aos temas edu‑
Os arquivos escolares numa perspectiva cativos a investigar e que complementem os dados
interdisciplinar recolhidos no arquivo escolar. Certamente que os
arquivos do ministério da educação possuem uma
No contexto da diversidade de fontes de informa‑ vastíssima documentação sobre as diferentes esco‑
ção, os arquivos escolares corporizam a referência las e estes documentos não se encontram, muito
fundamental, pois que os seus documentos consti‑ provavelmente, nos fundos guardados nas próprias
tuem, exactamente pela sua específica natureza, o instituições. O Arquivo Nacional da Torre do Tom‑
“núcleo duro” do processo de pesquisa e garantem bo tem também, nos seus fundos tão diversificados,
uma solidez acrescida e a validade das conclusões documentos fundamentais para a compreensão da
no fim de um percurso de investigação. educação em Portugal.
Os documentos de arquivo são os mais tradi‑ Numa dimensão mais local, também se podem
cionais como base da escrita da história, mas os encontrar documentos de conteúdo educativo nos
novos caminhos da investigação em educação não arquivos dos organismos e associações que se situ‑
deixam de lhes conferir esse lugar de centralidade, am na localidade onde funciona(ou) a escola. Nos
de matriz de referência, pela consistência das suas arquivos municipais estão depositados fundos so‑
informações e pela segurança que transmitem aos bre as instituições escolares e a evolução do sistema
investigadores. As novas fontes de informação ex‑ educativo, sendo possível, a partir da sua análise,
pressam a preocupação com as vozes dos actores reconstruir as dinâmicas de relacionamento entre
sociais e educativos (privilegiando os testemunhos as escolas e a comunidade envolvente e o papel que
orais e as lógicas narrativas de natureza pessoal) ou os professores desempenharam na sociedade local,
com a materialidade associada às práticas (como por exemplo. Outra vertente significativa e que
os objectos móveis que fazem parte dos espólios permite o cruzamento de dados é constituído pelos
museológicos das escolas), mas a configuração da periódicos (jornais e revistas) de dimensão local e
identidade histórica e institucional passa neces‑ regional que, de forma regular e ao longo dos sé‑
sariamente pelo arquivo, enquanto repositório do culos XIX e XX, publicaram notícias de natureza
processo de “escrituração” da escola. O arquivo educativa, expressando assim a importância que o

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modelo escolar assumia na sociedade contemporâ‑ vasto leque de instrumentos metodológicos para co‑
nea. Esta imprensa constitui uma importante fonte locar ao serviço das suas pesquisas e estudos.
de informação, cujos dados se podem correlacionar A crise dos paradigmas da ciência moderna e a
com a documentação dos arquivos escolares. relativização dos modelos teóricos anteriormente
No registo mais íntimo da vida privada, os ar‑ dominantes, libertou os processos investigativos
quivos particulares de antigos alunos e professores dos constrangimentos que limitavam a sua flexibi‑
guardam espólios constituídos por materiais mui‑ lidade face ao objecto estudado. Contudo, é neces‑
to variados, geralmente produzidos pelos próprios sário ressalvar que as teorias não perderam a sua
proprietários do arquivo. A conservação destes importância, apenas o império que detinham sobre
documentos ao longo de uma vida e a emoção com os processos de pesquisa e de investigação. A plu‑
que são revisitados pelos seus detentores/produ‑ ralidade e a diversidade das abordagens científicas,
tores evidencia a importância que as pessoas atri‑ com os seus quadros conceptuais, metodológicos e
buem aos processos escolares e formativos nas suas instrumentais, conduzem a aproximações e cruza‑
histórias de vida, assim como aos percurso profis‑ mentos interdisciplinares, motivados por essa posi‑
sionais, no caso dos professores. Estes espólios in‑ ção prévia de flexibilidade relativamente ao objecto
tegram materiais e trabalhos escolares, fotografias, de estudo e pela necessidade de compreender, pelas
publicações, produtos decorrentes da actividade formas e estratégias mais adequadas, os sentidos e as
docente, que são documentos que normalmente racionalidades internas dos fenómenos educativos.
não se encontram nos arquivos das instituições Duas correntes metodológicas têm­‑se afirmado
escolares. Por isso, complementam de uma forma como portadoras de significativas potencialidades
particularmente feliz os arquivos das escolas onde para os novos caminhos da história da educação: os
esses alunos e professores viveram ciclos da sua for‑ modelos etnometodológicas e os instrumentos da
mação e do exercício da profissão, tornando­‑se hoje nova história cultural. Os primeiros realçam o pa‑
insubstituíveis para construir uma imagem mais pel dos indivíduos na construção das relações so‑
rica, completa e objectiva da educação, particular‑ ciais, deslocando o primado das estruturas para a
mente no caso português. importância do conceito de rede, das comunidades
A atenção que os historiadores da educação cres‑ de pertença e das estratégias singulares. Em alian‑
centemente vêm atribuindo aos arquivos escolares ça com as perspectivas antropológica e sociológica,
radica numa atitude de diálogo plural, em que a possibilitam a apreensão dos actores educativos e
questão das fontes de informação emerge como uma das experiências de vida, valorizando o nível micro
prioridade no quadro teórico­‑metodológico da his‑ da análise histórica. Pode­‑se, assim, reconstruir
tória da educação e da história cultural. Torna­‑se os modos como os indivíduos produzem o mundo
urgente localizar, sistematizar, organizar e divulgar social, desenvolvendo estratégias de aliança e de
essas fontes, problematizando­‑as e validando­‑as, de confronto, redes de solidariedade ou atitudes de
forma que elas possam alimentar os novos temas e conflito. Neste sentido, a análise histórica procu‑
objectos de estudo incluídos no campo científico da ra a subjectividade inerente às relações sociais e os
história da educação: os alunos, nas suas especifici‑ sentidos e estratégias que são desenvolvidos pelas
dades (como a atenção renovada que tem sido dada comunidades, grupos e indivíduos (Chartier, 1994),
à infância), os professores e a profissão docente, a adequando­‑se de forma particularmente assertiva
formação de professores, as instituições escolares, a aos contextos educativos. Supera­‑se, deste modo,
educação não formal, as questões de género, os públi‑ um olhar exclusivamente macro, que privilegiou os
cos escolares minoritários, os quotidianos escolares, mecanismos de poder e de controlo.
os saberes pedagógicos, a circulação e a apropriação Entre estes dois níveis de análise (micro e ma‑
de modelos culturais e as formas que os veiculam. cro), um outro tem assumido relevância: as aborda‑
Estas temáticas pressupõem a utilização de aborda‑ gens meso, que incidem sobre as instituições edu‑
gens adequadas e o reforço das relações interdisci‑ cativas, o universo de produção dos documentos
plinares que os historiadores da educação têm vindo arquivísticos, como sublinhámos. A mesoaborda‑
a desenvolver. Hoje, estes têm à sua disposição um gem privilegia as relações com o nível macro das

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decisões políticas (de que os textos legais cons‑ Os textos, os documentos, são acontecimentos
tituem os dispositivos de suporte) e integra a di‑ e produtos históricos, relacionando­‑se de forma
mensão micro, englobando as perspectivas que os complexa com os seus vários contextos de pro‑
actores educativos, nomeadamente os professores, dução e de recepção, ao mesmo tempo que cons‑
apresentam sobre a sua instituição, a sua profissão e tituem elementos essenciais para a reconstrução
as práticas sociais. Os historiadores da educação só dos contextos em que foram elaborados, difundi‑
recentemente se têm vindo a ocupar da arqueologia dos, (re)apropriados e utilizados. A problemática
material da escola, dando atenção aos silêncios da das fontes de informação primárias e dos arquivos
história do ensino e superando o esquecimento da escolares coloca­‑se de forma premente, no centro
intrahistória da escola e da especificidade própria deste quadro teórico­‑metodológico.
das instituições educativas. Situamo­‑nos numa zona de fronteira, de cru‑
Por seu lado, a nova história cultural e intelectual zamento, das novas perspectivas da história da
tem assumido uma importância crescente no cam‑ educação, da história cultural, da história social e
po científico da história e também da história da também das ciências da educação. Assiste­‑se a uma
educação. Os seus instrumentos teóricos e metodo‑ renovação das problemáticas teóricas e de uma
lógicos permitem abordagens adequadas às novas reinvenção dos terrenos de pesquisa, das fontes de
problemáticas, contribuindo para a compreensão informação, das práticas de investigação e do ape‑
dos discursos produzidos pelos actores educativos trechamento metodológico, em que a perspectiva
no interior do espaço social que ocupam. A geração historiográfica se afirma face às antigas abordagens
do linguistic turn está na origem de uma viragem, de matriz essencialmente sociológica. A afirmação
que propõe um movimento de translação dos olha‑ de uma história que se reclama de um pensamento
res dos historiadores, no sentido da externalidade cultural crítico estabelece uma agenda de diálogo
dos processos educativos para a internalidade do entre as preocupações do presente e as realidades
trabalho escolar e da abordagem contextual para a do passado, num esforço de compreensão em que
análise textual das práticas discursivas. A lingua‑ se interrogam estas últimas para alcançar a inteligi‑
gem e os textos ocupam um lugar central nesta nova bilidade dos tempos presentes.
perspectiva historiográfica e os trabalhos de Michel
Foucault e de Roger Chartier, entre outros, deram
contributos decisivos para a sua afirmação. Os arquivos, a cultura escolar e a
Os textos e os discursos não são objectos que construção da memória educativa
revelam uma realidade que se encontra oculta sob
eles, mas constituem eles próprios, enquanto mo‑ No interior de estruturas complexas, como são as
dos de expressão da linguagem e das estruturas escolas, as pessoas estabelecem e relações de po‑
mentais, sistemas de construção dessa realidade, der e de comunicação, transmitem e apreendem
que prescrevem tanto como a descrevem, sendo uma cultura e são, por sua vez, produtoras de cul‑
produtos materiais da mediação entre as realidades turas. Constitui­‑se, assim, um universo específico,
pessoais e sociais. Neste sentido, a pesquisa histó‑ do qual nos foram deixados, ao longo do tempo,
rica não se centra apenas na materialidade dos fac‑ documentos e testemunhos que possibilitam o co‑
tos, mas também nas comunidades discursivas que nhecimento, a apreensão da vida das instituições.
os interpretam e os inscrevem num tempo e num Em consequência, dá­‑se uma atenção renovada ao
espaço determinados. A atenção dos cientistas in‑ trabalho interno de produção de uma cultura esco‑
cide na experiência e nas formas como esta se cons‑ lar, que tem especificidades próprias e não pode ser
titui em práticas discursivas dos actores educativos olhada como o mero prolongamento das culturas
(directores, professores, alunos), que interpretam e em conflito na sociedade, apesar de se relacionar
reinterpretam o seu mundo, conferindo sentido às com elas.
suas experiências escolares e profissionais e regis‑ Nesta perspectiva, o exercício do arquivo integra­
tando as suas ideias nos documentos que chegam ‑se no processo de conhecimento e compreensão da
até nós, guardados nos arquivos. cultura escolar. Os fundos arquivísticos são cons‑

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tituídos por documentos específicos, produzidos das que expressas, as quais são partilhadas pelos
quotidianamente no contexto das práticas admi‑ actores educativos no seio das instituições. Os tra‑
nistrativas e pedagógicas; são produtos da sistemá‑ ços característicos da cultura escolar (continuida‑
tica “escrituração” da escola e revelam as relações de, persistência, institucionalização e relativa auto‑
sociais que, no seu interior, foram sendo desenvol‑ nomia) permitem­‑lhe gerar produtos, que lhe dão
vidas pelos actores educativos. a configuração de uma cultura independente. Esta
A instituição escolar constitui o universo de cultura constitui um substrato formado, ao longo
uma cultura própria e sedimentada historicamente, do tempo, por camadas mais entrelaçadas que so‑
sendo também a produtora dos traços / documen‑ brepostas, que importa separar e analisar. O exer‑
tos dessa cultura. Estes documentos configuram, cício do arquivo tem um espaço importante neste
na sua diversidade e variedade, o património edu‑ processo historiográfico de investigação sobre a
cativo de cada instituição — o espaço físico (edifí‑ cultura escolar.
cio e zona envolvente) corporiza esse universo, os Constituído fundamentalmente por documen‑
espólios arquivístico, museológico e bibliográfico tos escritos, o arquivo ocupa um lugar central que
integram os documentos, portadores de informa‑ decorre da directa relação da escola com o universo
ções valiosas e que nos trazem, do passado até ao da cultura escrita. A escrita tem, ela própria, uma
presente, aspectos da vida da escola e que tornam posição de grande centralidade no quotidiano es‑
possível escrever o itinerário da instituição. No âm‑ colar (na gestão administrativa, nas relações pe‑
bito de processos de investigação, a análise destes dagógicas, na construção de saberes, nas relações
documentos e a comparação que se estabelece en‑ sociais), estando presente em toda a vida da insti‑
tre as informações que, no seu conjunto, fornecem, tuição. É esta íntima relação que o arquivo reflecte,
permite­‑nos conferir sentidos ao passado e com‑ na materialidade dos seus documentos e de forma
preender também a constituição / consolidação da mais consistente e lógica que os outros espólios,
cultura escolar, na teia das relações que esta estabe‑ compreendendo­‑se assim o lugar central que ocupa
lece com as outras culturas presentes na sociedade na vida e na história da escola.
(Chartier, 1988, 1994). Nos últimos anos do século XX assistiu­‑se, em
Conceito amplo e abrangente, a cultura escolar Portugal, como no Brasil, à emergência de um sig‑
apresenta uma natureza profunda e fundamental‑ nificativo interesse pela escola e pelo seu passado.
mente histórica. A perspectiva da escola como enti‑ Os novos olhares que foram dirigidos, pelos inves‑
dade produtora de uma cultura específica, original, tigadores da história da educação, sobre o patrimó‑
tem vindo a ocupar, nos últimos anos, a atenção de nio e a história da escola privilegiaram também as
historiadores da educação que têm sublinhado as memórias dos actores educativos e desenvolveram
virtualidades deste conceito, considerando­‑o um projectos de investigação e intervenção sobre essas
poderoso instrumento de análise das realidades temáticas. Por seu lado, um conjunto significativo
educativas, em várias das suas vertentes (Julia, 1995, de iniciativas, de natureza e objectivos muito diver‑
2000; Chervel, 1998; Viñao Frago, 1998, 2001; Ruiz sos, evidenciaram a dimensão mais vasta deste in‑
Berrio, 2000; Escolano Benito & Hernández Díaz, teresse, enraizando­‑o numa procura social de iden‑
2002). Não cabe neste artigo estabelecer as diferen‑ tidade e de recuperação da memória em torno da
ças que as suas perspectivas apresentam, mas tão só escola. A identificação deste movimento profundo
realçar a importância deste conceito e os aspectos contribuiu para a necessidade de valorizar e recu‑
convergentes das várias abordagens. perar os documentos que a escola foi produzindo
Constituída por um conjunto de teorias, saberes, sobre ela própria, quotidianamente, na actividade
ideias e princípios, normas, regras, rituais, rotinas, regular com que foi tecendo a sua própria história.
hábitos e práticas, a cultura escolar, na sua acepção As iniciativas indicadas têm sido protagoniza‑
mais lata, remete­‑nos também para as formas de fa‑ das por pessoas e instituições preocupadas com
zer e de pensar, para os comportamentos, sedimen‑ esta problemática e podemos traçar a evolução des‑
tados ao longo do tempo e que se apresentam como te movimento centrando a atenção num exemplo
tradições, regularidades e regras, mais subentendi‑ específico. Em Portalegre, a comunidade educativa

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deu visibilidade a este seu interesse com a realiza‑ cultura escolar, promovendo a relação da popula‑
ção, entre 1998 e 2001, de encontros, exposições ção com o seu passado escolar e criando um senti‑
e publicações sobre o património educativo e a mento de pertença a uma entidade colectiva.
cultura escolar (Mogarro, 2001b, 2001c), tendo­‑se O mesmo projecto pretende reforçar a relação
também efectuado a sua divulgação em congres‑ entre a escola e a comunidade, tomando como refe‑
sos e encontros internacionais, nacionais e locais rência esse elemento comum a (quase) todas as pes‑
(Mogarro, 2003a, 2002; Mogarro e Crespo, 2001). soas — a escola, a memória da escola e da infância,
Uma segunda fase inicia­‑se em 2002, com um pro‑ assim como os objectos materiais que convocam
cesso de reflexão sobre o trabalho realizado e que essa memória.
conduziu à elaboração e implementação de um Os públicos escolares (e os jovens em geral)
projecto de investigação e de intervenção designa‑ constituem também uma preocupação dos projec‑
do por “Rede de Museus Escolares de Portalegre tos desta natureza, visando­‑se promover uma for‑
(REMEP)” (Mogarro, 2003b). Este projecto não mação enraizada na evolução do sistema educativo,
se limita, contudo, aos objectos materiais que in‑ das suas instituições e dos processos de ensino­
tegram o património educativo de uma instituição ‑aprendizagem, numa perspectiva de continuidade
escolar; no seu âmbito, assume­‑se uma perspectiva que forneça referências às inovações da actualida‑
mais alargada, concebendo­‑se os vários espólios de. Os alunos já têm sido envolvidos em actividades
(arquivístico, museológico e bibliográfico) de for‑ desta natureza e as temáticas do património educa‑
ma articulada, embora salvaguardando sempre a tivo e da cultura escolar devem ser incorporadas
especificidade técnica que decorre da natureza dos nas práticas educativas, em conteúdos curriculares
documentos de cada um desses espólios e dos res‑ e em trabalhos desenvolvidos pelos alunos, nomea‑
pectivos suportes. damente ao nível da sala de aula ou de clubes sobre
A designação deste projecto compreende­‑se a história da escola (Vidal & Zaia, 2002). Nestas
também pelo reconhecimento da importância que actividades é fundamental utilizar os documentos
os objectos materiais têm e que se liga ao poder da da própria instituição, numa relação directa entre o
visibilidade que eles conferem aos acontecimentos tempo presente e o passado que lhe está subjacente.
do passado e aos fenómenos sociais. Com eles, o Mais uma vez, o lugar central do arquivo adquire
cidadão comum e as populações em geral evocam visibilidade e pertinência.
as recordações da sua infância e juventude, as his‑ O desenvolvimento sustentável destes projectos
tórias da sua vida, as recordações, o seu passado implica uma programação de actividades culturais,
que é trazido até ao presente. O sucesso que estas eventos diversos e publicações para recuperar a
iniciativas têm tido junto das comunidades consti‑ memória educativa, dinamizando a realidade cul‑
tui um factor determinante para a atenção e apoio tural e pedagógica actual. Neste contexto, ganha
que as entidades locais (como alguns municípios) novo sentido a realização de exposições e mostras
têm vindo a dar a mostras, exposições e criação de educativas e culturais, permanentes ou temporais,
museus escolares. Esse sucesso é também um indi‑ com fundos museológicos e arquivísticos das insti‑
cador importante a ter em conta na organização do tuições e outros fundos, obtidos por empréstimo.
trabalho científico sobre estas temáticas, no que se Mesmo sendo realizações locais, estes projectos
refere ao estabelecimento de parcerias, à adopção devem assumir a comunicação permanente com
de atitudes e procedimentos e à divulgação de rea‑ outros espaços. As suas finalidades visam também
lizações e objectivos. criar condições para a investigação no âmbito da
Com a formação de uma Rede de Museus Es‑ cultura e da educação, da história e das memórias
colares em Portalegre1 pretende­‑se contribuir para (constituição de centro de dados e recursos do‑
a construção e consolidação de uma memória edu‑ cumentais, elaboração de projectos relacionados,
cativa e, por este meio, de uma identidade. Neste realização de conferências e encontros, atrás refe‑
sentido, importa aprofundar a ligação das escolas ridos), de forma a fomentar o estudo e difusão de
aos seus itinerários históricos, numa perspectiva de novos conhecimentos, tanto localmente como à di‑
valorização dos percursos institucionais e da uma mensão nacional. Por outro lado, deve incentivar­‑se

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a integração desta temática em projectos nacionais Em Espanha, os livros que surgiram sobre esta temá‑
de investigação e em projectos de cooperação inter‑ tica (já indicados) inserem­‑se num movimento que
nacional, nomeadamente entre Portugal e o Brasil. também conduziu à criação do Mupega — Museo Pe­
No espaço europeu, o movimento de preservação dagoxico de Galicia, assim como a outras iniciativas
e valorização do património da educação tem vindo que surgiram no país, no domínio da museologia da
a ganhar uma relevância crescente nos campos cien‑ educação e da infância. Na Grã­‑Bretanha, os estudos
tíficos da educação e da história. Articulando linhas mais teóricos sobre a materialidade da escola (Lawn
de investigação, neste domínio, com iniciativas de & Grosvenor, 2005) tem a sua correspondência em
grande fôlego que conferem visibilidade à história da várias iniciativas do mesmo género.
escola e ao património da educação em vários países, Retomando a questão específica dos arquivos
surgiram, nos últimos anos, publicações cujos auto‑ escolares, não podemos deixar de sublinhar no‑
res pertencem às comunidades científicas da histó‑ vamente o lugar de referência, que eles ocupam no
ria da educação e estão, simultaneamente, ligados à conjunto dos espólios escolares. A tarefa de recu‑
criação, revitalização e direcção de museus de edu‑ perar, preservar, estudar e divulgar o património
cação de prestígio internacional. Em França, uma educativo, nomeadamente os arquivos escolares,
obra colectiva de referência sobre o património da adquire um novo sentido e urgência, que passa pela
educação nacional (Bidon; Compère & Gaulupeau, necessidade de definir orientações e dar consis‑
1999) articula­‑se com a acção desenvolvida pelo Mu­ tência ao movimento que hoje se faz sentir, tanto
sée National de l’Éducation (Rouen), que pertence ao a nível social como científico, sobre a escola, a sua
INRP — Institut National de Recherche Pédagogique. história e memória.

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Notas Chartier, R. (1988). A história cultural entre prá­
ticas e representações. Lisboa: Difel.
1. A “Rede de Museus Escolares de Portalegre” Chartier, R. (1994). L’ histoire aujourd’hui: dou­
instituiu­‑se com a assinatura de um protocolo entre tes, défis, propositions. València: Universitat de
as instituições fundadoras, estatuto que decorre da Valência e Asociación Vasca de Semiótica.
posição de cada uma no sistema educativo, a nível Chervel, A. (1998). La culture scolaire. Une appro­
local: as escolas são as detentoras dos respectivos che historique. Paris: Belin.
fundos históricos, outros organismos tutelam essas Escolano Benito, A. & Hernández Díaz, J. (2002).
mesmas escolas ou desenvolvem projectos de inves‑ La memoria y el deseo. Cultura de la escuela y edu­
tigação e intervenção, neste âmbito. O protocolo cación deseada. Valência: Tirant lo blanch.
foi assinado pela Câmara Municipal de Portale‑ Hilsdorf, M. L. S. (1999). Tempos de Escola: fontes
gre, a Direcção Regional de Educação do Alentejo para a presença feminina na educação — S. Pau­
(DREA), a Escola Secundária Mouzinho da Silvei‑ lo (Século XIX). S. Paulo: Editora Plêiade.
ra, a Escola Secundária de S. Lourenço, os Agru‑ Julia, D. (1995). La culture scolaire comme objet
pamentos de Escolas n.º 1 e n.º 2 de Portalegre, o historique. In A. Nóvoa; M. Depaepe & E.V.
Instituto Politécnico de Portalegre e a Escola Supe‑ Johanningmeier (eds.), The colonial experien­
rior de Educação. A constituição desta rede permi‑ ce in education: historical issues and perspecti­
te enraizar institucional e socialmente o projecto, ves. Gent: Paedagogica Historica. International
envolvendo o governo autárquico, as escolas e os Journal of the History of Education (Supple‑
decisores educativos, a nível local e regional. mentary Series, I), pp. 353­‑382.
A Rede de Museus Escolares de Portalegre é Julia, D. (2000). Construcción de las disciplinas
constituída por núcleos escolares, que funcionam escolares en Europa. In J.R. Berrio (ed.), La
de forma articulada entre si, segundo as actuais cultura escolar de Europa. Tendências históri­
concepções que defendem que o passado e os seus cas emergentes. Madrid: Biblioteca Nueva, pp.
testemunhos materiais pertencem às comunidades 45­‑78.
herdeiras dos produtores desses mesmos materiais. Lawn, M. & Grosvenor, I. (eds.) (2005). Mate­
Foram assim constituídos núcleos na Escola Secun‑ rialities of schooling. Design, technology, objects,
dária Mouzinho da Silveira (antigo Liceu), na Escola routlines. Oxford: Symposium Books.
Secundária de S. Lourenço (antiga escola técnica) e Magalhães, J. (2001). Roteiro de fontes para a his­
estuda­‑se a constituição do núcleo da escola primá‑ tória da educação. Lisboa: Instituto de Inovação
ria, a partir das equipas que desenvolvem trabalho Educacional.
nos dois Agrupamentos de Escolas da cidade de Por‑ Mogarro, M. J. & Crespo, M. E. (2001). O liceu
talegre; a viabilidade de outros núcleos também está de Portalegre — percurso entre a memória e o
a ser analisada, como o da antiga Escola do Magisté‑ arquivo. In História e Memória da Escola. Actas
rio Primário, já extinta e cujo arquivo se encontra à do III Encontro de História Regional e Local do
guarda do Instituto Politécnico local. Estes núcleos Distrito de Portalegre. Lisboa: APH – Associa‑
são constituídos por equipas de professores das pró‑ ção de Professores de História, pp. 73­‑77.
prias escolas, que se propõem fazer o levantamento e Mogarro, M. J. (2001a). A formação de professores
a organização dos respectivos espólios e desenvolver no Portugal contemporâneo — a Escola do Ma­
actividades com base nos seus documentos, nomea‑ gistério Primário de Portalegre. Tese de douto‑
damente envolvendo os alunos de cada instituição. ramento. Cáceres: Universidade da Extremadu‑
ra (texto policopiado).
Mogarro, M. J. et al. (2001b). Catálogo da Exposi‑
Referências bibliográficas ção História e Memória da Escola. In Actas do 3.º
Encontro de História Regional e Local do Distri­
Bidon, D. A.; Compère, M. M. & Gaulupeau, Y. to de Portalegre. História e Memória da Escola
(1999). Le patrimoine de l’éducation nationale. — 2.º vol. Lisboa: A.P.H. — Associação de Pro‑
Charenton­‑le­‑Pont: Flohic. fessores de História, pp. 75­‑103.

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