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“Do it Yourself”: Interação, Reconhecimento e Diversão na Cultura Digital Trash1

Andressa Kikuti Dancosky2


Universidade Estadual de Ponta Grossa

Resumo

O presente artigo é uma discussão prévia à elaboração do trabalho de conclusão


de curso intitulado ““Do it Yourself”: interação, reconhecimento e diversão na cultura
digital trash”. O objetivo é produzir uma reportagem em profundidade, ou grande
reportagem impressa sobre esta cultura como um fenômeno pós-moderno da sociedade,
bem como dar visibilidade a ela e a vários dos aspectos que a envolvem. O estudo se
divide em duas etapas: teórica e prática. A primeira delas consiste em uma pesquisa,
necessária à compreensão do tema. Ela se utiliza da metodologia de pesquisa
bibliográfica, e procura definir conceitos de jornalismo interpretativo, reportagem em
profundidade e cultura digital trash. A segunda parte é a construção da grande
reportagem em si, que será orientada pelo jornalismo interpretativo.

Palavras-chave

jornalismo interpretativo; reportagem em profundidade; digital trash.

Introdução

O trabalho de conclusão de curso apresentado resumidamente neste artigo


propõe a produção de uma grande reportagem interpretativa sobre o tema “cultura
digital trash”. A cultura digital trash é um fenômeno presente na cibercultura
contemporânea, e é marcada pela produção, reprodução, compartilhamento e consumo
de produções de áudio, vídeo e de imagens, com caráter principalmente de
entretenimento e questionáveis do ponto de vista estético. Entre estas produções podem-
se citar os memes, os spoofs (paródias), os mashups (mixes), os funks e a criação de
fakes – exemplos dados por Fontanella (2009) ao tentar exemplificar o fenômeno.
O propósito do trabalho é abordar a cultura digital trash utilizando para isto uma
“reportagem em profundidade” ou grande-reportagem, formato de texto jornalístico que
Kotscho (1986, p. 71) considera “o mais fascinante reduto do jornalismo”. Este tipo de
reportagem tem como principal característica o tratamento profundo do tema, cercando

1
Trabalho apresentado na Divisão Temática, da Intercom Júnior – Jornada de Iniciação Científica em Comunicação,
evento componente do XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Estudante de graduação do 4º ano do Curso de Comunicação Social/Jornalismo da UEPG. E-mail:
akd.kit@gmail.com

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todos os seus aspectos – sejam históricos, econômicos, culturais, legais, antropológicos


ou filosóficos. Tais características muito se assemelham às do Jornalismo Interpretativo,
sendo difícil desvinculá-la deste gênero jornalístico.
Segundo Fontanella (2009), a relevância do fenômeno “digital trash” se
evidencia na produção e na reprodução participativa de conteúdo – o que só é possível
nessa escala por causa da internet. Por isso, é importante identificar como o suporte
tecnológico contribui para ampliar as relações sociais na web por meio da produção,
circulação e consumo desses produtos culturais. Outro aspecto a ser considerado com
relação ao tema é que nem em todo usuário da internet tem ciência da complexidade dos
conceitos que envolvem a cultura digital trash, mesmo que participe ativamente dela.
Daí é que surge a proposta de produzir a reportagem: esclarecer estes quesitos,
abordando diferentes olhares sobre o tema: o de um sociólogo, teóricos de cibercultura,
um especialista em direito e consumidores e/ou produtores de conteúdo digital trash.
A opção por produzir uma reportagem impressa foi escolhida pensando em um
público leitor participante de diversos grupos culturais, inclusive familiarizado com as
novas mídias. Ou seja, um público que pode ser o mesmo que acessa o conteúdo trash
na internet. A produção impressa é também uma tentativa de retirar o tema do círculo da
web, trazendo-o para outras mídias. Além disso, como aponta Scalzo (2003, p.12): “o
que é impresso, historicamente, parece mais verdadeiro do que aquilo que não é”.

Metodologia e estratégia de ação empírica

Antes de produzir a reportagem em si, é necessário compreender alguns


conceitos como pós-modernidade, cibercultura, jornalismo interpretativo e reportagem
em profundidade, ou grande reportagem. A primeira parte do trabalho se refere
justamente à pesquisa bibliográfica sobre esses conceitos. A discussão sobre pós-
modernidade e cibercultura não será incluída neste artigo, já que são conceitos mais
gerais e seria difícil tratá-los de forma satisfatória neste espaço.
Em seguida parte-se para a escolha dos exemplos que ilustram o estudo, já que a
grande reportagem não envolve apenas texto, mas também infográficos, ilustrações e
fotos. O material selecionado tem a finalidade de “dar um rosto” ao fenômeno, não
sendo necessária a análise de cada um dos exemplos citados. A escolha foi feita através
da representatividade do exemplo e do gosto pessoal da autora – e não por outros
critérios de seleção – porque, uma vez que o conteúdo digital trash é normalmente

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difundido de forma viral, não faz sentido tentar hierarquizá-lo por número de acessos ou
por relevância, já que o próprio acesso é muito difícil de controlar.
O terceiro passo refere-se às entrevistas. Estas tem por objetivo reunir
informações suficientes para que, a partir delas, se possa então produzir a grande
reportagem. As entrevistas serão divididas em dois grupos: o primeiro deles será
composto por consumidores e/ou produtores de conteúdo trash (a definir), incluindo
aqueles que adquiriram reputação entre seus pares por meio da produção de “lixo
digital”. O segundo grupo será composto por especialistas da área de cibercultura,
direito e sociologia. Para ambos os grupos serão feitas perguntas abertas, baseadas em
um roteiro pré-estabelecido.
O quarto e último passo é o cumprimento de fato do objetivo do trabalho, que é a
produção da reportagem em si. Para isso, serão utilizados os procedimentos
metodológicos empregados na seleção e construção da reportagem. A estrutura do texto
será a de construção em blocos, matriz normalmente utilizada no gênero de jornalismo
interpretativo.

Jornalismo Interpretativo e Grande Reportagem

A reportagem se encaixa numa categoria que Lage (2006) chama de “informação


jornalística”. Ela se diferencia da notícia por não precisar, obrigatoriamente, advir de
um fato gerador de interesse (imediato; novo). Além disso, segundo o autor a
“informação jornalística” sempre decorre de uma intenção, de uma “visão jornalística”
dos acontecimentos, enquanto a notícia, extraordinária por natureza, não depende
necessariamente disso. Ao invés de contar um fato, a informação jornalística dá conta
de um estado da arte, ou seja, da situação momentânea em determinado campo de
conhecimento.
Para Marques de Melo (1994), a reportagem é o relato ampliado de um
acontecimento que já repercutiu no organismo social e produziu alterações que são
percebidas pela instituição jornalística. Em outras palavras, a reportagem precisa
contextualizar e aprofundar tal acontecimento, bem como apurar suas causas e
consequências. E este relato jornalístico, segundo Chaparro (2008), faz parte do
acontecimento, potencializando-lhe os efeitos transformadores, como processo capaz de
alterar o estado das coisas, agindo sobre elas.

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Chaparro (2008) define a reportagem como o relato jornalístico que vai além das
fronteiras da notícia por seu grau de extensão, aprofundamento e liberdade estilística.
Ela pressupõe desvendamentos, complementações, polêmicas ou elucidações que
tornam mais ampla e mais complexa a atribuição de significados a fatos que estão
ocorrendo ou a situações de grande relevância. Nas palavras do autor, “a reportagem
constrói e/ou propõe contextos para situações, falas, fatos, atos, saberes e serviços que
revelam, alteram, definem, explicam ou questionam a atualidade” (CHAPARRO, 2008,
p. 182).
Beltrão (1980), num esforço de tentar categorizar o texto jornalístico para além
dos gêneros informativo e opinativo, propõe uma classificação intermediária a ambos: o
texto interpretativo, tendo como principal formato a reportagem em profundidade. Para
ele, a reportagem interpretativa consistiria na “informação que, sem opinar, coloca
diante da massa o quadro completo da situação de atualidade” (BELTRÃO, 1980, p.
50).
Diante da definição do autor, é possível assegurar que uma das principais
características do jornalismo interpretativo é o aprofundamento do tema. Seu texto tem
caráter recuperativo, com enfoque centrado na análise dos fatos e das consequências.
Esta característica, aliada à narrativa composta (mescla de trechos descritivos e
dissertativos) e à estrutura do texto construída em blocos (união das informações em
conjuntos de dados), forma o modelo de texto interpretativo que temos na atualidade.
Marques de Melo (2005 apud CORDENONSSI, 2008) distingue quatro formatos
ao classificar o gênero interpretativo: o dossiê (trata-se da informação detalhada e
colocada em tópicos, a fim de complementar a narrativa principal de uma edição,
familiarizando o leitor com determinado fato), o perfil (relato biográfico que serve para
identificar os agentes noticiosos), a enquete (relato das narrativas ou pontos de vista de
alguns cidadãos, criando um debate de ideias) e a cronologia (exposição do
acontecimento em ordem temporal, que complementa a cobertura de fatos
extraordinários ou cuja dinâmica tem como alavanca o fator tempo). Estes formatos,
somados à classificação de Beltrão que inclui a reportagem em profundidade,
constituem a categorização do gênero interpretativo de jornalismo que perdura até hoje.
A reportagem em profundidade de Beltrão é o que se costumava chamar de
grande reportagem jornalística, um modelo mais extenso e muito mais trabalhoso do
que a reportagem “comum”, e que procura explorar um assunto cercando todos os seus
ângulos. Levando em conta todas as características atribuídas ao jornalismo

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interpretativo, é possível afirmar que a reportagem em profundidade é, essencialmente e


obrigatoriamente, interpretativa (o contrário não é verdadeiro, já que uma reportagem
interpretativa não precisa ser, necessariamente, uma reportagem em profundidade).
Para Kotscho (1986), as grandes reportagens tem esse nome não só porque são
grandes em tamanho, mas também porque significam um investimento muito grande,
por parte do repórter e da empresa que o contratou.
É justamente por demandar um grande investimento de tempo, dinheiro e fôlego,
que essas reportagens são cada vez mais raras nas páginas dos veículos impressos. Neste
sentido, produzir aquilo que Kotscho (1986, p. 71) chama “o mais fascinante reduto do
jornalismo, no qual sobrevive o espírito de aventura, de romantismo, de entrega, de
amor pelo ofício” parece ser um esforço válido.

Um olhar sobre o digital trash

O digital trash se configura como fenômeno cultural por identificar padrões


comportamentais, valores, conhecimentos comuns, crenças, arte e hábitos adquiridos
pelo homem como membro de uma sociedade (os internautas do século XXI), segundo a
definição antropológica de cultura de Tylor (1871). E como pós-moderno, não advém
do interesse pelo bizarro – ponto pacífico nos mais diversos grupos culturais – mas sim
do fato de que é o suporte técnico da web 2.0 e a banda larga que oferecem a
possibilidade de intervenção nos conteúdos e interação com demais usuários, o que é
bastante recente do ponto de vista da comunicação.
O termo digital trash foi adotado por usuários da internet como gíria para
designar esse tipo de construção e, por isso, ele não define uma categoria com limites
muito claros ou formas estáveis, embora os familiarizados com o ambiente criado pelas
novas tecnologias de comunicação compreendam facilmente a ideia geral que envolve o
termo (FONTANELLA, 2009). Definir “o que é trash”, portanto, não é tarefa fácil, pois
supõe impor limites a um conteúdo bastante heterogêneo espalhado por todos os cantos
da web, e que com frequência se prolifera e se modifica nas mãos de usuários comuns.
Entretanto, alguns autores se dispuseram a explorar o conceito3, encontrando nem

3
Esses são alguns dos olhares possíveis para abordar o tema, a maioria deles apresentado no Simpósio de Cultura
Digital Trash realizado em dezembro de 2006, no Rio de Janeiro. Como partem de uma mesma discussão, os textos
de maneira geral se referenciam e se complementam.

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sempre uma definição consensual, mas citando elementos que compartilham das
mesmas características essenciais.
Lemos (2006) define o trash na web como sendo todo o excesso criado pela
liberdade de produção, incluindo blogs pessoais, hacking, montagens, entre outros. O
autor se preocupa em delinear os traços que unem a cibercultura em suas expressões
atuais (blogs, podcasts, hacking, softwares livres, games, redes P2P, etc.) - berço do
digital trash - com a máxima do movimento punk dos anos 70 – o “do it yourself” ou
“faça você mesmo” – que significa que os usuários são livres para consumir, reutilizar,
modificar e distribuir informações em um espaço quase infinito, e sem que haja nenhum
tipo de regulação. Isto se diferencia completamente da lógica seguida pela mídia
tradicional, na qual os papéis no processo comunicacional estão bem distribuídos.

Se a cultura de massa relega para debaixo do tapete aquilo que não é


de interesse da massa, criando um lixo artificial e esteticamente
questionável, a cibercultura contemporânea, pela mão livre e coletiva
de seus usuários, levanta o tapete da história e atira no ventilador as
obras “menores”, dando visibilidade planetária ao que estaria para
sempre perdido pela imposição do hit (LEMOS, 2006, p.10).

É graças a essa visibilidade dada às obras menores e a facilidade e liberdade de


produção, que surge o excesso informacional: o “lixo digital”, a produção sobre a qual
não se tem controle ou padrão. Vale ressaltar que o autor considera o “lixo” o “luxo da
cibercultura”, pois é este que permite o “luxo da escolha, da garimpagem, o luxo do
excesso e da profusão de coisas para além do gosto médio” (LEMOS, 2006). Em outras
palavras, para Lemos é o lixo que faz a riqueza da internet.
O excesso também é abordado por Felinto (2008), que afirma que o digital trash
é consequência de um sobrecarregamento semiótico causado pelo universo de espaço e
possibilidades que a web disponibiliza, aliado ao fácil acesso a instrumentos
tecnológicos de produção e edição.
Para Primo (2007), o amadorismo das criações trash é ao mesmo tempo
inerente à identificação desse gênero e secundário do ponto de vista da produção,
sobressaindo o conteúdo. “Nele, importa menos a qualidade técnica dos produtos do que
as sensibilidades que agitam” (2007, p.9). Já Pereira e Hecksher (2008) comparam o
digital trash a alguns movimentos artísticos, dando a ele um selo de arte midiática – ou
antiarte, se partindo de uma perspectiva de apropriação do que já está pronto, que é uma
característica desse tipo de produção digital. O caráter non-sense, a ironia e a
improvisação aproximam, segundo os autores, os produtos da cultura digital trash do

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movimento Dada que, “crítico a uma estética padronizada, escandalizava e sacudia a


cultura mainstream do início do século XX”.

Assim como Duchamp e os dadaístas perturbavam crítica e público


com suas obras e idéias acerca da arte, os jovens que participam
ativamente da cultura digital trash provocam o mainstream ao ignorar
direitos autorais e ironizar instituições e bens culturais com seus
produtos/paródias (PEREIRA; HECKSHER, 2008, p.7).

A partir dessas definições de digital trash sob diferentes abordagens é possível


identificar um conjunto de características recorrentes nesse tipo de produção. Fontanella
(2009) procura sistematizar quatro destas características, de forma a facilitar a
compreensão do tema. São elas:

1. Os consumidores do digital trash tem uma postura ativa em sua relação com os
meios de comunicação. Eles interagem entre si, com as novas tecnologias e com
o contexto da produção dos conteúdos, até então quase que exclusivamente
controlada por conglomerados empresariais.
2. Os padrões de qualidade midiáticos e estéticos desses produtos culturais
divergem bastante do padrão de mídia tradicional. A narrativa e o formato do
digital trash são marcados pela crítica e pela ironia, como também pelo grotesco
e pela banalidade – características nem sempre bem vistas. A respeito disso,
avalia Alex Primo:

A crítica à suposta banalidade do digital trash traz embutido um


anseio sobre o potencial alienante desse gênero. Primeiramente, trata-
se de uma avaliação apressada, de um olhar com pré-concepções, que
julga mesmo antes de conhecer. [...] Por outro lado, os textos e
imagens trash que, em vez de uma narrativa estruturada e com
objetivos claros, preferem o nonsense, o humor despreocupado e até
mesmo abordagens grotescas revelam formas de ser e estar na pós-
modernidade. Desvencilhados do imperativo utilitarista, produzem,
consomem e discutem o digital trash sem maiores preocupações
futuras. Basta o prazer do aqui e agora com os pares, mesmo que este
encontro seja fugidio. (PRIMO, 2007, p.3).

3. Há uma lógica de apropriação de conteúdos da cultura comum, o que Genette


(1997 apud FONTANELLA, 2009) chama de transtextualidade. Essa
apropriação pode ser tanto da cultura de massa quanto da própria cibercultura, e
referencia o objeto ao mesmo tempo em que o modifica. A apropriação de

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conteúdo é condição essencial para dar sentido às produções características


trash.
4. O aspecto subcultural do digital trash faz com que redes sociais sejam
reforçadas através não só do resgate de repertórios, como também como
reafirmação de valores compartilhados. Há implícita uma identificação,
reconhecimento e fascínio na produção desses conteúdos, a qual Felinto (2008),
ao estudar os spoofs, consegue definir bem.

É fato que já não tenho com esse Outro que me fascina uma relação
de reverência e distância. Defino-me através dele, mas buscando
nessa relação algum elemento que possa me individualizar (minha
“paródia” de suas construções identitárias; meu humor como índice
de minha individualidade). Sinto-me conectado a ele, já que posso
responder ao que ele me apresenta, dialogar com sua “fala”. O
fascínio move minha imitação; o fascínio me aproxima do outro; o
fascínio me oferece instrumentos de identificação. (FELINTO, 2008,
p. 41)

A partir destas quatro características, Fontanella (2009) propõe um quinto


aspecto, de várias formas integrado aos anteriores, e para o qual se propõe a fazer uma
abordagem mais aprofundada: o caráter de entretenimento envolvido na cultura digital
trash. O entretenimento aqui requer uma atenção especial, já que, além de ser um dos
aspectos predominantes nestas produções, o prazer ocasionado por esse fenômeno é um
dos pontos centrais da reportagem a qual este trabalho se propõe a produzir.

O que é o trash do Digital Trash?

Fontanella (2009) exemplifica o trash como sendo os memes, os spoofs ou


paródias, os mashups, os funks e os fakes, deixando claro que estes elementos compõem
uma lista modesta daquilo que pode ser considerado trash, exposta somente com a
finalidade de conscientização da abrangência do tema.

Memes

O conceito de meme foi cunhado por Richard Dawkins em seu livro “O Gene
Egoísta”, publicado em 1976. Nele, o autor compara a evolução cultural com a evolução
genética, na qual o meme é o “gene” da cultura, que se perpetua através de seus
replicadores, as pessoas. Os memes podem ser uma ideia ou parte dela, uma linguagem,
desenho, valor estético, moral, ou qualquer outra coisa que possa ser facilmente

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compreendida e transmitida, enquanto unidade autônoma, de uma pessoa para outra. O


termo refere-se, portanto, a um amplo catálogo de informação cultural. É importante
lembrar que os memes não são transmitidos necessariamente como cópia, reprodução
fiel da ideia original. Neste sentido, Recuero (2006) ressalta que as mudanças e
transformações são inclusive frequentes e comparadas, em sua abordagem, às mutações
genéticas: essenciais para a sobrevivência do meme. As diferenças através das quais as
pessoas repetem as idéias são, por definição, parte do meme.
Vistas as condições propícias que a internet oferece para disseminação de
conteúdo cultural, o termo foi também por ela adotado. O meme digital é simplesmente
a propagação de um arquivo ou hiperlink de usuário para usuário frequentemente de
forma viral através de dispositivos online disponíveis, como e-mails, blogs, sites de
relacionamento e Messenger. O conteúdo pode ser bastante variado, mas comumente há
memes contendo piadas, bordões, imagens originais ou alteradas, videoclipes,
animações e demais objetos os quais, por meio de alterações de contexto, repetições e
outros elementos de edição, tornam-se cômicos aos usuários que o recebem, por vezes o
alteram e enviam a outras pessoas, esperando reação semelhante. Estes memes, mais
especificamente, são os que interessam a este trabalho.
Os memes engraçados na internet são inúmeros, sendo alguns dos mais famosos
os LOLcats4, o Fail5 e o Tenso6.

Spoofs

O spoof na internet é simplesmente uma paródia, que pode ser de um vídeo,


música ou site, e que tem como principal objetivo a satirização. A questão dos spoofs é
tratada mais especificamente por Felinto (2008), que citando Hutcheon (1991, p.37)
explica que “a paródia funciona para distanciar e, ao mesmo tempo envolver o artista e a
platéia numa atividade hermenêutica de participação”. Felinto (2008, p.37) mostra que
4
São fotos de gatos, sendo que a graça é a legenda – escrita propositalmente em um inglês errado, conhecido como
lolspeak - atribuída à expressão do bichano. Eles são muito populares, o que é facilmente verificável pela quantidade
de produção destes memes4. O "LOL" vem do inglês "laughing out loud". A maioria dos LOLcats se popularizaram
através dos sites 4chan.org, e icanhascheezburger.com. Fonte: www.knowyourmeme.com. Acesso em: março –
dezembro de 2010. LOLcats disponíveis em: http://knowyourmeme.com/memes/lolcats
5
Fotos ou vídeos de pessoas, animais ou objetos, nos quais sempre há algo de errado. Por este motivo, o material leva
a inserção da palavra “fail” (do inglês, falha), acrescida de legenda, que enfatiza a graça. Disponível em:
www.failblog.org
6
Este meme começou a ser espalhado por blogs e fóruns no Brasil em 2009, e consiste em uma imagem editada para
formar uma sequência de close-ups de uma foto. A última foto é a que sublinha a expressão ou a situação tensa. Às
vezes, o close-up revela algo que não é visto na imagem original, criando um efeito de surpresa. Disponível em:
http://knowyourmeme.com/memes/tenso

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esse caráter participativo da paródia pós-moderna é traço fundamental da cultura do


spoof:
Os spoofs são mais facilmente encontrados em sites como o YouTube, que
hospedam vídeos enviados pelos próprios usuários. Um dos exemplos mais assistidos
(quase oito milhões de visualizações em um ano)7 é a “Total Eclipse of the Heart –
Literal Video Version8”. O vídeo consiste no clipe original da música de Bonnie Tyler,
mas cantado e legendado como se narrasse literalmente o que acontece na sequência de
imagens do clipe. Inicialmente lançado pelo usuário do YouTube “dascottjr”, o vídeo
serviu de inspiração para mais 2130 exemplares de “Literal Video Version”9.
Outros spoofs famosos são os denominados “Misheard Lyrics”. Ao contrário dos
“literal version”, esses mantém a letra original da música em questão. O que muda são
as imagens, fiéis à legenda propositalmente trocada, como se a música fosse “ouvida
errada”. Um exemplo é a da música Even Flow, da banda estadunidense Pearl Jam.10

Mashups

Melo Junior (2007) encontra na Wikipédia uma definição que considera


adequada para o termo Mashup: “É um website ou aplicação que combina conteúdo de
mais de uma fonte em uma experiência integrada”. Os mashups são, portanto, mixes de
dois ou mais objetos formando um só, e normalmente espera-se que o público conheça
os elementos que o deram origem, para que o mashup tenha sentido como produto final.
Assim como os demais produtos trash, os mashups podem ser confeccionados por
usuários comuns da web sem a necessidade de um grande esforço, apenas com o uso de
programas simples.

Dentre os exemplos de mashups que podem ser considerados digital trash,


encontra-se o chamado “System of Vila - Chaves Suey”, que é uma mescla entre o
programa mexicano Chaves com a música Chop Suey, da banda estadunidense System
of a Down11.

7
Mais especificamente, 7.769.526 visualizações no YouTube desde o dia de sua postagem, 25 de maio de 2009, até o
dia 17 de maio de 2010 às 20h35.
8
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=lj-x9ygQEGA
9
Este número foi obtido digitando as palavras “literal video version” no mecanismo de busca do YouTube, em 17 de
maio de 2010 às 20h51.
10
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=ePjESN9pRdg
11
Disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=umv5YjYmJ30&feature=PlayList&p=45C91BDFE0E3705D&playnext_from=PL
&playnext=1&index=3

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Funks
O funk é um estilo musical de origem negra que nasceu nos EUA. O gênero se tornou
popular na década de 1960, com James Brown, e era marcado pela batida única, ritmo
dançante e letras sensuais. Como todo gênero musical popular, o funk foi ganhando
diferentes influências com o passar dos anos, e, no Brasil, foi fortemente influenciado
pelo “Miami bass” e suas gírias de gueto, a temática sexual e a batida eletrônica
nitidamente inspirada no funk dos anos 70.
Talvez por causa de sua popularidade e de suas letras pouco eruditas, o funk é
usado na web para atribuir ironia ou enfatizar a graça de um vídeo ou imagem que já
repercutiu entre os internautas. É o caso, por exemplo, dos funks do “Pedro, me dá meu
chip12”, ou do “Lasier Martins tomando choque13”. É interessante observar que, em
grande parte das vezes, quando um vídeo é “funkado”, este vídeo também deriva outros
produtos trash, como spoofs e mashups.

Fakes

Os fakes – identidades forjadas na internet – são outro exemplo que compõe o cenário
digital trash. Muitos artigos acadêmicos foram produzidos na tentativa de compreender
as causas que levam à formação deste fenômeno, entre eles, Mocellim (2007), que
classifica os fakes em quatro tipos: os obviamente falsos (que fazem questão de se
proclamarem fakes); aqueles que buscam copiar personagens ou alguma pessoa real
(como, por exemplo, famosos da TV); os espiões (criados no intuito de espionar a vida
de alguém sem ser descoberto); e por fim aqueles que querem parecer não-fakes (que se
preocupam mais em parecer com uma identidade fidedigna).
Aqui não interessam os perfis fakes dotados de “más intenções”, ou seja, aqueles
criados para espionagem da vida alheia ou para prejudicar alguém. Interessam aqueles
criados com a finalidade de entretenimento, nos quais o fim maior é divertir a
comunidade a qual pertence e divertir o próprio criador.
A maior concentração de fakes é encontrada atualmente em sites de
relacionamento como o Orkut e o Twitter, e como grandes exemplos podem-se citar os
perfis fake no Twitter de Silvio Santos14, Dercy Gonçalves15, e Xuxa Meneghel16.

12
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=-jEplyCeRf8&feature=related
13
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=eTJ-UV91vAU
14
http://twitter.com/silviosantos
15
http://twitter.com/DercyGoncalves_

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Possíveis Resultados

Definir o público da reportagem proposta neste trabalho por meio de características


pessoais dos indivíduos parece um tanto complicado. E é complicado, principalmente,
porque é difícil definir o público do próprio digital trash – o que se sabe é que ele atinge
muita gente, por causa de sua disseminação viral (pode-se falar em comunidade virtual
digital trash, mas este grupo de pessoas não é o único atingido por esse conteúdo.
Muitos o consomem, mas não tem com ele uma identidade cultural evidente).
Também não se pode afirmar que todos os bombardeados pelas produções trash
todos os dias de fato as consideram interessante, ou, ao menos, uma boa fonte de
entretenimento cibernético. Alguns simplesmente as ignoram, e isto leva a duas
hipóteses: ou ignoram porque não gostam, ou porque desconhecem. Neste caso,
somente o segundo desses grupos seria um público alvo para esta reportagem.
Assim, a grande reportagem que parte do trabalho resumidamente posto neste
artigo visa atingir um público que participa ativamente do universo da cibercultura e
que tem ou já teve contato com alguma produção digital trash, mas que nem sempre
compreende a complexidade dos conceitos que fizeram esse fenômeno tornar-se cultura,
e nem de todas as modificações sociais necessárias para que isso ocorresse. Em outras
palavras, o público que este produto jornalístico pretende atingir é leigo, mas não
totalmente alheio ao universo que cerca a cultura digital trash.
Visto que a grande reportagem impressa exige um espaço privilegiado dentro de
um veículo, justamente pelo seu tamanho e aprofundamento do tema, o suporte pensado
para ela é a revista não-especializada, de periodicidade mensal. O tamanho que se
avalia suficiente são dez páginas de revista – contendo texto e ilustrações.

Referências Bibliográficas

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FELINTO, Erick. Videotrash: o You Tube e a cultura do spoof na internet. In: Revista Galáxia,
São Paulo, dezembro, 2008.

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http://twitter.com/xuxameneghel_

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FONTANELLA, Fernando Israel. O que vem de baixo nos atinge: intertextualidade,


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