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Herberto Helder
Publicado em Portugal por
Assírio & Alvim
www.assirio.pr
© Sistema Solar e Herberto Helder, 2013
© Porto Editora, 2013
Na capa: xilogravura de Ilda David’
Edição única em Maio de 2013
Assírio & Alvim é uma chancela da
Porto Editora, Lda.
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2 3 . x i . 2 0 1 0 : 80 ANOS
do tamanho da mão faço-lhes o poema da minha vida,
agudo e espesso,
pois aproveitou do que seria menstruo,
e crepita agora,
o poema das mães conjuntas quando, ainda analfabetos,
procuramos as putas futuras,
e estremecemos às vezes de sacra folia,
trançados entre as coxas,
debaixo das bocas habilíssimas,
límpidos, loucos,
e são linhas sem tropeço, de osso, nervo, sangue, sopro
¿¿e qual a matéria, e a razão, e a coesão, a força interna
do capítulo do assombro?
dans l'ivresse,
e então penso: isto é assim:
da exacerbada cantiga das mães a gente tem
o movimento que imita a terra com seus elementos,
seus ministérios do tempo, a aguarrás,
o sal grosso, a tinta das rosas
— e é tudo quanto se pode aprender até que a noite
venha e desfaça,
a noite amarga
as manhãs começam logo com a morte das mães,
ainda oito dias antes lavavam os cabelos em alfazema
cozida,
ainda oito anos depois os cabelos irrepetíveis,
todas as luzes da terra abertas em cima delas,
e então a gente enche a banheira com água fria até ao
pescoço,
e tudo brilha na mesma,
brilha cegamente
l ’amour la mort
versão errática:
mão tão feliz de ter tocado
teu corpo atento ao meu desejo
fosses tu um grande espaço e eu tacteasse
com todo o meu corpo sôfrego e cego
d ’après Issa
IOI
já não tenho engenho para reaver aquela rosa esquerda
que um dia me roubaram,
já não apanho o ritmo,
eu que me interessei pelas origens trágicas da erudição,
com os pés sobre a terra sentia a água de cima até ao fundo,
sentia-lhe o leve e frio
movimento, tecia nos redutos do sono
os fios da seda, e agora mal adormeço o mel mortal vibra
nos alvéolos,
sempre sempre sempre,
nunca sonhei com o sangue que se escrevia a si mesmo
como um poema trémulo,
porque só à primeira metade do poema assistia o mistério
da respiração,
e o júbilo, esse mistério insoluto
¿oh porque me arrebatou tudo isso,
e me não sopra agora no escuro dos quartos,
quando já não há ninguém,
de uma só vez, nas pálpebras, nos ouvidos, na boca,
quando sou mudo e cego e surdo,
e porque não sinto estremecer-me a garganta,
e se não torna límpida nunca a erudição,
nas trevas nas trevas,
porque Alexandria não será jamais a minha pátria,
se já tudo se depurou enfim nos confins da leitura?
substantivos ar e fogo, agarrei-os
num arrebatamento,
unhas sangrando entre os buracos do papel salgado,
e uma palavra apenas, neologismo, arcaísmo há muito
muito fora de uso,
nunca me abandonou em nenhuma cidade do mundo,
porque todos os poemas são trémulos,
oh nos curtumes dos dedos,
e por uma irónica razão nos curtumes crus da alma
Bibliografia dispensável:
Les origines tragiques de l'érudition. Une histoire de la note
en bas de page. Anthony Grafton (trad. Antoine Fabre).
cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,
e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o
autoclismo,
requiescat in pace,
e eu nao descanso em paz nas retretes eternas,
a água puxaram-na talvez para inspirar o epitáfio,
como quem diz:
aqui vai mais um poeta antigo, já defunto, é certo, mas em
vernáculo e tudo,
que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,
o receba como ambrosia sutilíssima nas profundas dos
esgotos,
merda perpétua,
e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:
vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,
passarão a quem aos poucos foi falhando o sopro
até a noite desfazer o canto,
errático canto e errado no coração da garganta,
canto que o traspassava pela metade das músicas
— e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda
enquanto as turvas águas últimas
se misturavam com as águas primeiras
daqui a uns tempos acho que vou arvoar
através dos temas ar e fogo,
a mim já me foram contando umas histórias que me deixaram
meio louco furioso:
um bando de bêbados entrou num velório e pôs-se à
bofetada no morto,
e riram-se todos muitíssimo,
que lavre então a loucura, disse eu, e toda a gente se ria,
até a família,
tudo tão contra a criatura ali parada em tudo,
equânime, nenhuma,
contudo, bem, talvez, quem sabe?
talvez se lhe devesse a honra de uma pergunta imóvel, uma
nova inclinação de cabeça
— à bofetada! —
fiquei passado mas,
pensando durante duas insónias seguidas,
pedi:
metam-me, mal comece a arvoar,
directo, roupas e tudo, no fogo,
e quem sabe?
talvez assim as mãos violentas se não atrevam por causa
da abrasadura,
porém enquanto vim por aqui linhas abaixo:
ora, estou-me nas tintas:
pior que apanhar bofetadas depois de morto é apanhá-las
vivo ainda,
e se me entram portas adentro!
¿Eli, Eli?
um tipo de oitentas está fodido,
morto ou vivo,
e os truques: não batam mais no velhinho,
olhem que eu chamo a polícia, etc. — já não faíscam nas
abóbadas do mundo:
vou comprar uma pistola,
ou mato-os a eles ou mato-me a mim mesmo,
para resgatar uns poemas que tenho ali na gaveta,
nunca pensei viver tanto, e sempre e tanto
no meio de medos e pesadelos e poemas inacabados,
e sem ter lido todos os livros que, de intuição, teria lido
e relido, e treslido num alumbramento,
e é pior que bofetadas, vivo ou morto,
pior que o mundo,
e o pior de tudo é mesmo não ter escrito o poema soberbo
acerca do fim da inocência,
da aguda urgência do mal:
em todos os sítios de todos os dias pela idade fora como
uma ferida,
arvoar para o nada de nada se faz favor, e muito, e o mais
depressa impossível,
e com menos anos, mais nu, mais lavado de biografia e de
estudos
da puta que os pariu
os capítulos maiores da minha vida, suas músicas e palavras,
esqueci-os todos:
octagenário apenas, e a morte só de pensá-la calo,
é claro que a olhei de frente no capítulo vigésimo,
mas nao nunca nem jamais agora:
agora sou olhado, e estremeço
do incrível natural de ser olhado assim por ela
vida aguda atenta a tudo
e contudo para acabar mais depressa no escuro
escrevo rescrevo
e enfim reluzo e desmorro
(finjo pensá-lo)
um pouco um pouco
2010.12
[É o tema das visões e das vozes, um pouco ameaçador...] 9
[dos trabalhos do mundo corrompida]............................. 19
[saio hoje ao mundo,]......................................................... 20
[do tamanho da mão faço-lhes o poema da minha vida,...] 21
[as manhãs começam logo com a morte das mães,].......... 23
[petite pute deitada toda nua sobre a cama à espera,] ..... 24
[mão tão feliz de ter tocado].............................................. 25
[fosses tu um grande espaço e eu tacteasse]...................... 26
[no mais carnal das nádegas].............................................. 27
[e eu que sopro e envolvo teu corpo tremulamente...] .... 28
[funda manhã onde fundei o prodígio da minha.. . ] ........ 30
[não, obrigado, estou bem, nada de novo,]...................... 32
[já nao tenho tempo para ganhar o amor, a glória...] .... 35
[de dentro para fora, dedos inteiros,] ............................... 37
[e eis súbito ouço num transporte público:]..................... 39
[as luzes todas acesas e ninguém dentro da casa].............. 40
[a noite que no corpo eu tanto tempo trouxe,.. . ] ............ 41
[que floresce uma só vez na vida, agaué! dez metros,...] ... 43
[até cada objecto se encher de luz e ser apanhado]............ 45
[como se atira o dardo com o corpo todo,]...................... 46
[a linha de sangue irrompendo neste poema...] .............. 47
[rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,]..... 48
[não me amputaram as pernas nem condenaram...] ....... 49
[disseram: mande um poema para a revista onde...] ....... 50
[pedras quadradas, árvores vermelhas, atmosfera,]............ 51
[¿mas que sentido faz isto:]............................................... 52
[quem fabrica um peixe fabrica duas ondas, uma...]....... 53
[— oh coração escarpado,]................................................ 54
[¿e a música, a música, quando, como, em que termos...] 55
[nunca mais quero escrever numa língua voraz,].............. 56
[um dia destes tenho o dia inteiro para morrer,].............. 58
como distinguir o mau ladrão do bom ladrão ?...] ...... 59
[que um punhado de ouro fulgure no escuso...].............. 60
[nada pode ser mais complexo que um poema,]............... 62
[nenhuma linha é menos do que outrora]......................... 63
[hoje, que eu estava conforme ao dia fundo,] .................. 64
[agora se tivesses alma tinhas de salvá-la, agora] .............. 65
[a força da faca ou é um jogo,]........................................... 66
[nem em mim próprio que ardo, cérebro,.. . ] ................... 67
[os cães gerais ladram às luas que lavram.. . ] .................... .....68
[só quanto ladra na garganta, sofreado, curto, cortado,].... 69
[ele que tinha ouvido absoluto para as músicas...] ................70
[cada lenço de seda que se ata ¡oh desastres das artes! a] ... 71
[um quarto dos poemas é imitação literária,] .................. .....72
[já não tenho mão com que escreva nem lâmpada,]..............73
[escrevi um curto poema trémulo e severo,] .................... .....74
[profano, prático, público, político, presto,...] ............... .....75
[uma espuma de sal bateu-me alto na cabeça,] ................ .....77
[welwítschia mirabilis no deserto entre as fornalhas:] ..... .....79
[releio e não reamo nada,]................................................. .....80
[não quero mais mundo senão a memória trémula,]....... .....82
[estavam nus e cantavam,]................................................. .....83
[esquivar-se à sintaxe e abusar do mundo,]...................... .....85
[e ali em baixo com terra na boca e mãos atadas...] ..............86
[olhos ávidos,] ................................................................... .....87
[colinas amarelas, árvores vermelhas,]............................... .....88
[oh não, por favor não impeçam o cadáver,].................... .....89
[irmãos humanos que depois de mim vivereis,].....................90
[cada vez que adormece é para que a noite...].................. .....92
[alto dia que me é dedicado,]............................................. .....94
[presumir nao das grandes partes da noite...].................. .....95
[traças devoram as linhas linha a linha dos livros,]........... 96
[pensam: é melhor ter o inferno a não ter...]................... 97
[já me custa no chão do inferno,]..................................... 101
[cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,].... 104
[daqui a uns tempos acho que vou arvoar] ....................... 106
[os capítulos maiores da minha vida,...] .......................... 109
[vida aguda atenta a tudo] ................................................ 110
[levanto à vista o que foi a terra magnífica]...................... 111
[ao vento deste outono] .................................................... 113
[a água desceu as escadas,].................................................. 114
[logo pela manhã é um corrupio funerário... ] .................. 115
[e eu que não sei através de que verbo.. . ] ......................... 116
[talvez certa noite uma grande mão anónima.. . ] .............. 117
OBRAS DE H E R B E R T O H E L D E R
NA A S S Í R I O & A L V I M