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Sentidos da voz:

usos na oratória, na filosofia,


na psicanálise e na mídia
Thiago Barbosa Soares
Sentidos da voz: usos na oratória,

na filosofia, na psicanálise e na mídia

Thiago Barbosa Soares


Thiago Barbosa Soares

Sentidos da voz: usos na oratória,

na filosofia, na psicanálise e na mídia

1ª Edição

Quipá Editora

2021
© 2021 por Thiago Barbosa Soares. Todos os direitos reservados.

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Revisor: Damião Francisco Boucher


Foto da capa: Thomas
Canva Wolter, disponível gratuitamente em pixabay.com
Foto da capa: Thomas Wolter, disponível gratuitamente em pixabay.com

Conselho Editorial:
Me. Adriano Monteiro de Oliveira, Quipá Editora, Editor-chefe.

Dra. Aida Figueiredo, Docente no Departamento de Educação e Psicologia na Universidade


de Aveiro (UA, Portugal).

Dra. Francione Charapa Alves. Docente na Universidade Federal do Cariri, UFCA.

Dra. Keyle Sâmara Ferreira de Souza, Docente na Secretaria de Educação do Ceará, SEDUC.

Dra. Mônica Maria Siqueira Damasceno, Docente no Instituto Federal do Ceará, IFCE,
Campus Juazeiro do Norte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


___________________________________________________________________________
Soares, Thiago Barbosa
S676s Sentidos da voz : usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia /
Thiago Barbosa Soares. ― Iguatu, CE : Quipá Editora, 2021.

72 p.

ISBN 978-65-89091-44-8
doi.org/10.36599/qped-ed1.028
DOI http://doi.org/10.36599/qped-ed1.028

1. Voz - Sentidos. 2. Oratória. 3. Psicanálise. I. Título.

___________________________________________________________________________
CDD 612.78
Elaborada por Rosana de Vasconcelos Sousa ― CRB-3/1409

Esta obra foi publicada pela Quipá Editora em março de 2021.


PREFÁCIO

A voz

A voz é quase como uma marca pessoal de cada indivíduo. Podemos ter vozes
parecidas, mas ao analisarmos de perto com equipamentos e softwares de análise acústica, por
exemplo, veremos que são diferentes. Há, ainda, as variações intraindividuais, pois o próprio
indivíduo varia no uso da sua voz, mudando o tom em diferentes situações comunicativas,
normalmente associadas a estados emocionais distintos. Algumas vozes são tidas como
únicas, excepcionais, como a de alguns cantores, outras podem até ser irritantes. Mas o certo é
de que ela acompanha cada indivíduo desde o nascimento e compõe um dos primeiros
contatos do bebê com o mundo, no momento do choro. Aprimoramos o uso dela à medida que
temos contato com o mundo e todo o input linguístico, aprendendo a falar. Mas afinal, como
produzimos voz? A resposta para essa pergunta, a princípio, parece simples, no entanto, a voz
não é nada banal.

O fenômeno que resulta na produção da voz é a fonação: uma função neurofisiológica,


que transforma a energia da corrente de ar em som audível ao passar pelas pregas vocais. É
importante distinguir voz de fala: a fala é o resultado da articulação da voz e envolve, além do
nível fisiológico, o nível cognitivo na elaboração do que pretendemos dizer. Os sons da
maioria das línguas naturais, como o português brasileiro, iniciam com o momento em que o
ar sai dos pulmões. A emissão do fluxo de ar faz vibrar as pregas vocais. Esse fluxo, ao passar
pelas pregas vocais, excita o trato vocal que funciona como caixa ressoadora e amplifica as
frequências naturais desse tudo (o trato vocal), gerando diferentes sons, a depender da
configuração que os órgãos envolvidos na produção da fala assumem, como a posição da
língua ou o tipo de obstrução.

Os resultados desses eventos são as ondas sonoras. É assim que os nossos ouvidos
reconhecem os sons da fala. Analisar os sons da fala no nível físico/acústico tem trazido
descobertas interessantes a respeito da voz. Ela não é apenas a matéria prima a partir da qual
articulamos os sons da fala que organizamos no nível cognitivo para produzir significados.
Ela mesma, a voz, carrega significações. Em campos de estudos específicos da Fonética,
como a Prosódia e a Entoação, já se demonstrou o papel de diferentes parâmetros acústicos na
fala. Como diferenciamos uma sentença afirmativa de uma interrogativa no português
brasileiro quando não há nenhum elemento lexical, como um pronome interrogativo? São as
curvas de pitch (sensação auditiva da altura do som, se grave ou agudo) que nos permitem
diferenciar uma da outra. Outras áreas, como, por exemplo, a Sociofonética, exploram
nuances na voz para demonstrar que variações no nível subsegmental, como pitch, duração,
frequência fundamental (aquela que resulta da vibração das pregas vocais e, basicamente,
define a altura de cada voz), revelam significações sociais, ou, em última instância,
evidenciam que variações na voz estariam indexadas a uma ou outra categoria social. Isso
significaria dizer que aprendemos essa variação e ela poderia ser cognitivamente armazenada.

Os eventos de fala fazem parte da nossa vida e são tão corriqueiros que não nos damos
conta da complexidade dos mecanismos envolvidos. Somos capazes de produzir e perceber
uma vasta gama de sons, tons, ritmos e outras sutilezas na voz que carregam diversos
significados, desde aqueles voltados para distinções dentro do próprio sistema linguístico,
quanto extralinguísticos, relacionados a fatores sociais, como mencionado acima. Então, a voz
não é a emissão aleatória de um som resultante da fonação, e tão pouco coadjuvante na cadeia
na fala. Ela desempenha importantes funções, que aprendemos a produzir e perceber desde o
processo de aquisição da fala.

Profª Drª Carine Haupt

Curso de Letras, Porto Nacional


Universidade Federal do Tocantins
SUMÁRIO

Prefácio – A voz, por Carine Haupt


Introdução ………………………………………………………………………….. 07
A voz na oratória: uma análise das unidades de discurso presentes no campo da
oratória ……………………………………………………………………………... 12 11
A voz na filosofia: um trajeto da voz como unidade no discurso filosófico ……… 25
26
A voz na psicanálise: um trajeto da voz como unidade no discurso psicanalítico... 42
43
A voz na mídia: o sucesso nos dizeres sobre a unidade do discurso vocal ………. 56
57
Considerações Finais ………………………………………………………………. 67
68
Sobre o autor ……………………………………………………………………….. 70
71
Índice remissivo ……………………………………………………………………. 71
72
INTRODUÇÃO

Da voz muito foi dito e continuará a ser, contudo os dizeres sobre a voz ainda podem e
devem ser refletidos para deles se extrair conhecimentos acerca do sujeito em sociedade, dos
sentidos que pesam sobre a voz e, sobretudo de como o que se diz de um determinado
elemento tem a capacidade de modificar a percepção que dele se faz. É nessa perspectiva que
compreendemos a voz como não isolada dos muitos discursos que a tomaram e ainda tomam
ora como um objeto do qual se pode detalhar o uso, ora como um mero operador de sentidos
vocalizados, ou mesmo sem tais pretensões existem discursos capazes de vender sentidos e
significados para vozes mais conhecidas.

A voz como capital simbólico, e até mesmo como aspecto cultural a partir de seus
usos, pode ser meio de comunicação, forma de acesso ao mundo, aparato subjetivo de
operações internas, porém, para além de tantas propriedades características da voz humana, a
voz, como não podia deixar de ser, é também expressão metafórica e conceitual para alguns
campos do conhecimento. A Teoria Literária e também as teorias enunciativas, entre outras,
tomam a voz em uma acepção metaenunciativa para observar as “vozes” presente nos mais
variados textos de seus estudos. Assim, a voz ganha mais significado por usos particularizados
por determinados campos, entretanto é importante salientarmos o fato de que, quando se diz
algo sobre a voz parece haver algo de existencial aí implicado, a voz invariavelmente volta-se
para o estágio das relações.

A locução “lugar de fala”, comumente usada para designar o espaço social


determinado por relações de poder consolidadas historicamente, cujo objetivo parece ser o de
tentar equalizar as forças desiguais existentes no circuito social também traz à baila uma
necessidade de certas vozes adquirem mais densidade e, por conseguinte, mais respeito ou
mesmo mais recepção e, com isso, viabilizar uma espécie de mudança nas estruturas mais
danosas aos sujeitos despossuídos de “lugar de fala”. Ora, estamos tratando da voz em uma
concepção sociológica segundo a qual certas opiniões recebem validade ou simplesmente
ficam ecoando pelos subterrâneos da história. O eco das vozes, em sua metaforização, lembra
aquilo que na Psicanálise chama-se de o “retorno do recalcado”.

Mais dia, menos dia, as vozes fantasmagóricas deixarão os porões das galerias,
deixarão os sombrios escuros cômodos do abuso e deixaram o histórico isolamento para
serem gritos de liberdade, entretanto, o caminho da voz passa por vários meandros que nem

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

sempre são evidentes. Os discursos que carregam sentidos e significados à voz compõem um
largo espectro de textos, que em sua extensão é ilimitado, demasiado vasto se considerarmos
tanto o que se produz de material específico quanto tudo que toma a voz em outras acepções
menos rigorosas. Portanto, analisar e compreender os sentidos da voz em dizeres de um
determinado campo, como é nosso objetivo com este livro, é por si só uma tarefa
absolutamente significativa, porquanto enseja mais pesquisas e, por conseguinte, mais
esclarecimentos acerca dos sentidos que pesam sobre a voz.

Ao levantarmos alguns pontos relacionados ao que se diz da voz ou como ela ganha
significado nas produções discursivas, compreendemos que aproximamos a voz de uma das
propriedades da linguagem, a representatividade, de modo a trazermos a própria ambivalência
dos traços discursivos do uso e emprego da voz para um patamar semiótico que lhe valida a
condição de ícone-índice-símbolo. Nesse sentido, a voz reúne, para tornar-se posteriormente
objeto do dizer, percepção, experiência e representação tanto àquele responsável por lhe
colocar a seu serviço quanto àquele que lhe ouve e interpreta sentidos através de seus
elementos constituintes.

Conforme a apropriação conceitual utilizada para investigar a voz, é possível dizer que
ela é uma composição semiótica quase fechada e independente de outras semioses, contudo a
voz não é a língua, tampouco é apenas um veículo de emissão de mensagens a um ou mais
receptores, já que sua capacidade representacional ultrapassa o mero instrumento do canal de
envio de significados e passa, então, a ser simultaneamente ícone-índice-símbolo do
complexo ato comunicativo. Portanto, a voz e o que se diz dela trazem em si um potencial de
compreensão de uma multiplicidade de sentidos circulantes no espaço social e, além disso,
apontam para determinados funcionamentos discursivos ainda não tão bem conhecidos,
porque ainda não tão bem investigados.

Diante da necessidade de mais bem examinar os sentidos atribuídos à voz no interior


de alguns campos com certo poder de circulação no circuito social, trazemos a lume esta obra
composta constituída por quatro capítulos intitulados respectivamente “A voz na oratória: uma
análise das unidades de discurso presentes no campo da oratória”, “A voz na filosofia: um
trajeto da voz como unidade no discurso filosófico”, “A voz na psicanálise: um trajeto da voz
como unidade no discurso psicanalítico” e “A voz na mídia: o sucesso nos dizeres sobre a
unidade do discurso vocal”. Cada um desses capítulos, como seus títulos sugerem, traz uma

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

triagem sobre dizeres acerca da voz e para extrair sentidos as produções discursivas emprega
a noção de unidades de discurso advinda da Arqueologia do saber, de Michel Foucault.

Com base no caráter relativamente inovador envolvido na aplicação das unidades de


discurso em análises de produções como as que nos colocamos a investigar, e na possibilidade
de cada capítulo ser lido separadamente dos demais, isentamo-nos das repetições que rodeiam
a construção internas dos capítulos, porquanto empregamos, em alguma medida, a didática da
repetição sob o diferente e menos usual e o método da formulação das análises segundo o qual
não se pode passar sem apresentar, ainda que brevemente, os objetivos e o ferramental teórico
antes de executar o planejamento pretendido.

É por essa via que “A voz na oratória: uma análise das unidades de discurso presentes
no campo da oratória” visa compreender os sentidos da voz e como esses são construídos e
disseminados no campo da oratória. Entre o que se diz da voz nessa área do saber e em outras
searas pode existir diferenças, mas os (efeitos de) sentidos da voz criados a partir da
mobilização da instância do discurso sempre se remetem ao sujeito da/para voz. Portanto,
investigar os mecanismos de produção dos sentidos da voz enseja uma via de acesso analítico
para a não transparência da materialidade da voz e para sua virtualidade não evidente. Com o
objetivo de traçar esse caminho, analisaremos como e o que se diz da voz no campo da
oratória. Para tanto, empregaremos o aparato teórico metodológico da Análise do Discurso
francesa, norteado pela noção de unidades de discurso de Michel Foucault, em variadas
produções textuais sobre os usos recomendativos da voz, desde tratados canônicos até obras
da literatura de autoajuda que versem sobre oratória.

De maneira análoga, “A voz na filosofia: um trajeto da voz como unidade no discurso


filosófico” tem por objetivo entender os sentidos da voz e como esses são construídos e
difundidos no campo da Filosofia. Pois, sobre o que se diz da voz nessa área do saber e em
outras searas pode existir disparidades, mas os (efeitos de) sentidos da voz engendrados a
partir da mobilização da instância do discurso sempre se remetem ao sujeito da/para voz. Por
esse ângulo, a compreensão dos mecanismos de produção dos sentidos da voz enseja uma via
de acesso analítico para a não transparência da materialidade da voz e para sua virtualidade
não evidente. Visando o traçado desse caminho, analisaremos o como e o que se diz da voz na
Filosofia através de uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo. Para tanto,
empregaremos o mesmo aparato teórico-metodológico já mencionado.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Em “A voz na psicanálise: um trajeto da voz como unidade no discurso psicanalítico”


há o objetivo de compreender os sentidos da voz e como esses são construídos e disseminados
no campo da Psicanálise. Entre o que se diz da voz nessa área do saber e em outras searas
pode existir diferenças, mas os (efeitos de) sentidos da voz criados a partir da mobilização da
instância do discurso sempre se remetem ao sujeito da/para voz. Visando o traçado desse
caminho, analisaremos o como e o que se diz da voz na Psicanálise através de uma pesquisa
bibliográfica de cunho qualitativo. Para isso, empregaremos o aporte teórico-metodológico da
Análise do Discurso, norteado pela noção de unidades de discurso oriunda da arqueologia
foucaultiana, como realizado nos capítulos anteriores e como também será feito no próximo e
último.

Assim, “A voz na mídia: o sucesso nos dizeres sobre a unidade do discurso vocal”
carrega o objetivo de compreender os sentidos da voz e como esses são construídos e
disseminados no campo da mídia. Entre o que se diz da voz nesse veículo informativo e em
outros campos pode existir diferenças, e interessa-nos saber quais sempre se remetem ao
sujeito da/para voz ao investigar os mecanismos de produção dos sentidos da voz numa via de
acesso analítico para a não transparência da materialidade da voz e para sua virtualidade não
evidente. Com essa perspectiva delineada, analisaremos o como e o que se diz da voz na
mídia através de uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo. Para tanto, empregaremos o
aparato teórico-metodológico da Análise do Discurso, norteado pela noção de unidades de
discurso oriunda da arqueologia foucaultiana, em três matérias midiáticas, Adeus voz
(Estadão, 2012), Voz da Alma (RollingStone, 2012) e A voz de Cássia (Folha de S. Paulo,
2015), que apontam para a voz.

Portanto, trata-se, como se verifica na breve exposição dos capítulos desta obra, de
uma investigação dos sentidos acerca da voz em diferentes campos do saber humano
viabilizada pela Análise do Discurso, prioritariamente pela noção-conceito de unidades de
discurso, pois em todos os capítulos o fio conduzido pelo exame dos sentidos e significados
adquiridos por voz é tecido pelas unidades de discurso que aqui tomam a voz como um núcleo
discursivo. Diante dessa possibilidade de interpretar os múltiplos sentidos de voz nos diversos
espaços de saber, como Oratória, Filosofia, Psicanálise e mídia, arcamos com o ônus de
entregar ao leitor um conjunto organizado de projetos de pesquisa ainda em andamento e, com
isso, deixamos o bônus das melhores extrações de sentidos para os empregos da voz ou
mesmo continuidade desses projetos que carecem de mais verticalidade. Em vista disso, cabe
ao leitor fazer o melhor uso possível do bônus que lhe é ofertado.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

A VOZ NA ORATÓRIA: UMA ANÁLISE DAS UNIDADES DE


DISCURSO PRESENTES NO CAMPO DA ORATÓRIA1

Considerações iniciais

A voz, desde muito tempo, frequenta os campos do conhecimento humano. Antes de se


tornar parte instrumental do atual sucesso midiático na atualidade (SOARES, 2018), a voz já
tinha sido observada, estudada e examinada para servir de ancoradouro a explicações sobre o
desempenho da língua, da razão e do inconsciente, entre outros. Portanto, verificar como a
vocalização de sons é tratada em certas áreas consiste em uma tarefa da qual é possível extrair
considerações significativas à análise do fenômeno da voz no interior do discurso circulante
em sociedade. Assim, tracejar os percursos dos dizeres a respeito da voz no domínio da
oratória equivale a calcular os sentidos adquiridos pela voz e lhes pesar em suas
reformulações quando do emprego de outros discursos subsidiados por esse campo ou mesmo
pelo peso social que a voz acabou por adquirir como representação do sujeito.

Aqui não nos imporemos uma busca minuciosa nessa esfera de saber que se concentra
nos efetivos dizeres acerca da voz. Não obstante, as inferências, as implicações e as
pressuposições podem também ser mobilizadas para colhermos informações menos explícitas
sobre a voz, porquanto no não-dito reside muitas vezes o já-lá das relações de sentido. Em
vista disso, antecipamo-nos a uma fundamental reflexão com relação à voz: “Voz é metáfora
da expressão. Quer ser aqui um pensamento que adquira sua expressão (não concordância,
nem mero acordo), pela sensibilização das palavras pela voz” (TIBURI, 2016, p. 47- 48). Por
ser algo concebido e não dado, a voz, é produzida e se constitui como expressão no campo
político devido à interrelação que ela permite estabelecer entre sujeitos.

A voz como metáfora viva, apontada acima, é um dos contundentes indícios de que o
dizer sobre a voz pode ultrapassar fronteiras estabelecidas, permanecendo ou sendo refutado,
seja em áreas legitimadas do saber, seja no discurso sobre as vozes de celebridades midiáticas
(SOARES, 2018). Em decorrência disso, ter sentidos vinculados à voz, em certa medida,
manifestos na oratória não redunda no fato de serem explicitamente os mesmos fora dessa
esfera. Resta-nos, portanto, descrever, compreender e interpretar quais são os virtuais efeitos
de sentido de voz presentes como regularidades e ausentes como diferenças, ou mesmo
1Este capítulo resulta de uma série de modificações no artigo “Sentidos da voz: uma análise das unidades de
discurso presentes no campo da oratória” publicado na Revista Humanidades e Inovação v.6, n.8, 2019.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

ausentes como regularidades e presentes como diferenças no interior do campo discursivo da


oratória. Para tanto, empregaremos, além do instrumental investigativo da Análise do
Discurso francesa derivada dos trabalhos de Michel Pêcheux, como um dos recursos teóricos
e metodológicos a observação das unidades do discurso implicadas em dizeres acerca da voz
nesse domínio.

A respeito dessas unidades e do discurso, Foucault (2012, p. 30-31) ressalta que “é


preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a infinita continuidade do
discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida”. Isto é, antes de
se ocupar com qualquer outro tipo de material, deve-se considerar a população de
acontecimentos no espaço do discurso em geral para ser considerada também a descrição dos
acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se formam
(FOUCAULT, 2012, p. 32).

Diante do exposto, deparamo-nos com a voz, ou melhor, com os dizeres acerca da voz
em um campo, agora nosso objeto de estudo, segundo o qual é passível de compor unidades
do discurso. Ora, isso se refere, entre outras coisas, aos nossos objetivos de verificar a
existência de conservação e/ou de apagamento de unidades do discurso nos enunciados a
respeito da voz na oratória, porquanto pouco se investigou acerca do modo como o sujeito é
visto/projetado pela voz e como os dizeres dessa podem instaurar um projeto mais ou menos
flexível na relação de forças sociais. Por serem concebidas como não lineares e sim dispersas,
não dadas a priori em conformidade com rótulos institucionais ou campos disciplinares do
saber, as unidades do discurso têm plasticidade o suficiente para serem investigadas de acordo
com critérios não apenas de semelhanças e de afinidades.

Oratória: um itinerário recomendativo à voz

A voz revela o estado de nossos pensamentos e sentimentos muito mais do que as


palavras podem fazê-lo. Em vista disso e do estabelecimento de uma maior compreensão
acerca de nosso objeto, apresentamos um percurso da oratória a partir de trechos, de
comentários e de exames acerca do que se diz em livros encontrados na literatura clássica e na
literatura de autoajuda, na especialidade “falar bem”, cuja voz é contemplada como ponto
principal. Desse modo, recorremos inicialmente a algumas perspectivas segundo as quais a
oratória recebe uma dada concepção, pois é ilustrativo saber qual é o propósito dessa área do
conhecimento humano, porquanto dela muitos e variados sentidos da voz podem advir.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Pombo (2016, p. 25-27), diante dos múltiplos segmentos do mercado atual para o qual
se vende a arte da eloquência, apresenta a oratória como subdividida em gêneros: “a sacra, a
política, a jurídica, a militar, a acadêmica, a empresarial, a panegírica, a artística, a esportiva,
a jornalística, a comercial, a didática, a parlamentar e a festiva”. No entanto, quando recuamos
no tempo e no espaço, observamos a oratória como um conjunto de técnicas vocais
empregadas na persuasão e no convencimento do público por parte do orador. Para Isócrates,
a oratória “é a arte da persuasão” (QUINTILIANO, 2015, p. 325) e para Areu “consiste em
emitir o discurso com a excelência da expressão” (QUINTILIANO, 2015, p. 341). Quer dizer,
então, que a persuasão não está distante de outros métodos a partir dos quais é possível
convencer. Deste ponto de vista, é necessário perceber a articulação possível da oratória com
outras áreas. Já a excelência de expressão pode ser tomada em diversas acepções como, por
exemplo, a clareza da pronúncia de unidades lexicais, bem como pode ser tomada como a
exteriorização de um raciocínio límpido cujos objetivos sejam também trazer o interlocutor
para próximo de determinadas ideias. Por esse motivo, Piovezani (2015, p. 290) ressalta o
valor da vocalização do sujeito retratada nos mitos espalhados ao longo do espaço e do tempo,
reafirmando a fala como criadora da existência e da finitude; geradora da própria humanidade
do homem.

Eis a oratória apresentada como tendo sempre sido usada pelo homem e tendo, com
isso, justificado seu caráter atemporal. Sua suposta frequentação pelos oradores remonta aos
tempos helênicos nos quais os debates, as tribunas e as exposições eram realizadas em praças
públicas. Seu dito aprimoramento como um método e seu alastramento através dos tempos
reforça sua eficácia no imaginário coletivo, o que abre, no interdiscurso, margens para
interpretações. O desenvolvimento de noções de uso da voz na persuasão fundamenta os
processos oratórios sobre os quais parece pesar a distinção entre voz e fala, já que “Por voz
entende-se os sons que produzimos através da laringe. Por fala compreende-se a articulação, a
emissão dos fonemas” (SOARES; PICCOLOTTO, 1986, p. 7) que faz uso daquela como
único e exclusivo meio de expressão. É fundamental observarmos como certos traços vocais
são julgados pela oratória como essenciais para a criação de efeitos (de sentido) no
interlocutor.
− físicos: o tamanho e a forma da caixa torácica, o comprimento, grossura e textura
dos ressonadores, comprimento, grossura e densidade das cordas vocais [...].
− psicoemocionais: a voz reflete o dinamismo emocional e intelectual de um
indivíduo. Estados de tensão, medo, ansiedade, insegurança, excitação são muitas
vezes traduzidos pela voz. [...].

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

− culturais: a voz ainda reflete as normas culturais e um grupo social, assim como
sua vestimenta ou conduta. [...] (SOARES; PICCOLOTTO, 1986p. 46; aspas das
autoras).

Das características descritas acima, chama-nos atenção os traços psicoemocionais e


culturais, dada a amplitude com a qual estão representadas no espectro comunicativo.
Culturalmente a voz sofre alterações funcionais de acordo com as quais se adapta para
desenvolver uma espécie de vinculação identitária. Entretanto, a grande mídia, entre outros
meios, influencia o modo de produção das vozes, apagando-lhes as particularidades e, por
conseguinte, gerando um consenso “descriminativo” das vozes conforme uma estética
preestabelecida. Daí, os contornos psicoemocionais adquirirem a valoração objetiva no
interior do quadro da Análise do Discurso de assujeitamento (PÊCHEUX, 2009). “Seres
emocionais que somos, valorizamos muito a carga afetiva da mensagem veiculada pela voz.
Por isso, somos tão afetados pela emoção que a fala carrega” (MAGALHÃES, 2017, p. 130).
Ora, a manipulação da voz, ou melhor, de seus aspectos psicoemocionais parece constituir um
ponto de encontro da composição dos estudos de oratória, já que “a emoção transmitida pela
voz é fator fundamental no processo persuasivo” (MAGALHÃES, 2017, p. 130).

Ao tomarmos o aspecto psicoafetivo, descrito acima, subjacente às produções vocais,


temos a exposição da dialética do funcionamento do abuso, a partir do qual o discurso da
oratória se faz crer em sua própria eficácia. Explicita-se o emprego dos abusos como, por
exemplo, dos abusos afetivos para se alcançar a persuasão, porque de acordo com o que vimos
acerca desse tipo de conhecimento de causa é fundamental afetar os interlocutores de tal
modo que sejam convencidos, a despeito de suas próprias opiniões. Assim, aquilo que se pode
chamar, em um nível argumentativo-discursivo, de persuasão através do traço psicoafetivo da
voz é, entre outras coisas, um uso da voz para o “abuso” em outra chave interpretativa do
discurso produzido pela oratória. Portanto, uma das unidades de discurso possível de ser
depreendida aqui é a do abuso travestido de “persuasão psicoafetiva”.

“Na produção do discurso, a voz, ajustada ao conteúdo proferido, às expressões faciais


e gestuais, é um elemento poderoso. É através dela que levamos à plateia a nossa mensagem
na busca de empatia e da persuasão” (MAGALHÃES, 2017, p. 130). Para tanto, o discurso da
oratória emprega um conjunto de técnicas desenvolvidas para visar um melhor
aproveitamento dos recursos físicos da voz. Eis alguns procedimentos indicados para uma boa
emissão vocal: aquecimento vocal; evitar ambientes poluídos; manter o corpo hidratado, entre
outros.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Tais recomendações não representam mais do que certas “verdades” de que a todos
devam/deveriam saber. Todavia, é importante destacar o fato de que independentemente das
características oratórias do sujeito o lugar de sua fala é fundamentalmente relevante para sua
recepção; o posicionamento discursivo e a formação discursiva na qual o sujeito se encontra
são determinantes para que os efeitos de sentidos produzidos a partir destes lugares sejam
compreendidos sob uma dada perspectiva discursiva. Em vista disso, as novidades
recomendativas que, em última instância, nada dizem são como estratégias de preenchimento
(PÉCORA, 1999), isto é, mecanismos de complementaridade de texto vazio. Na materialidade
do texto incide, como sabemos, a virtualidade do discurso; nesse caso os procedimentos para
uma boa emissão vocal ancoram-se no discurso social no qual habita a argumentação
aprovado pelo interlocutor. “O discurso social, nas coletivas coerência e unidade de sua
hegemonia, abarca um princípio de comunhão e de convivialidade. Ele representa a sociedade
como um conjunto inteligível e como um convivium dóxico” (ANGENOT, 2015, p. 57).

Uma das consequências principais que decorrem disso é a centralidade em todo


discurso com visada persuasiva, da doxa ou opinião comum. [...] (AMOSSY, 2018, p. 54). “A
voz é a ligação entre suas ideias e os ouvintes” afirma Pombo (2010, p. 40) para expor a
necessidade de outras estratégias de aperfeiçoamento vocal e, consequentemente para criar o
efeito de um aprimoramento do tecido discursivo da retórica. Coloque as duas mãos sobre a
cintura e inspire lentamente. A inspiração deve ser feita sempre pelo nariz, cuidando para
manter as narinas bem abertas (POMBO, 2010, p. 40).

É possível percebermos o efeito de importância criado para os mecanismos de esmero


do trato vocal, porquanto a voz, de acordo com correntes da oratória em vigor, é uma
instância mediadora das ideias aos seus ouvintes. Ora, quanto mais bem cuidada e mais bem
manutenida é uma ferramenta, maior é sua duração e melhor pode ser seu emprego, daí
decorre o preciso cuidado com a matéria fônica, dispensado pela antiga e tradicional
instituição discursiva da oratória. Por isso que se diz: “Treinar a voz é lograr, entre outras mil
coisas, o sincronismo entre o ar que se inspira e a sonorização” (BLOCH, 1986, p. 68). As
diversas formas de modulação da voz parecem impactar diretamente a fala e, em alguns casos,
podem, como se quer dar a entender, comprometer a compreensão, em outros, podem afetar
no direcionamento dos efeitos de sentidos pretendidos. Portanto, pode-se afirmar, até aqui,
que o discurso da oratória faz da voz, para além de sua dita persuasão, uma das forças
heurísticas dos sujeitos, permitindo-lhes amplificar e ecoar a interioridade. Assim, a unidade

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

de discurso da expressão − do pensamento, do sujeito e consequentemente, da subjetividade −


capitula o sentido de voz.

Cabe-nos ressalvar que a voz na fala não está desvinculada da escrita. O que
pretendemos explicitar, neste ponto, é que o discurso sobre a escrita, por mais que possa ser
deixado de lado quando se trabalha a voz, jamais deixa de repercutir seus efeitos no discurso
da oratória, ou seja, treina-se aquilo que é inato, a voz na fala, e por conta de tal naturalidade é
possível concebê-la como de caráter universal. A escrita, por sua vez, é adquirida e depende
do processo de alfabetização e de certo grau de letramento para poder gerar alguma eficácia
persuasiva em um dado público; comparada à escrita, a oratória não só é muito mais potente
do que ela mesma diz sobre si, como também traz em seu interdiscurso o preconceito acerca
do registro escrito da língua e, em alguma medida, o reforça − “escrever é difícil, falar é
fácil”; “sei falar, mas não sei escrever”; “falar é fácil, difícil é escrever”.

Estamos diante do senso comum gerador de consensos assentados no discurso social.


Porém, dele podemos remontar, através do interdiscurso, há tempos mais antigos.

A respeito disso, Piovezani (2016, p. 85) ratifica que “a oralidade precede a escrita e se
inscreve no espaço da natureza, ao passo que a escrita sucede a oralidade e se localiza
exclusivamente no plano da cultura. À sobreposição da cultura diante da natureza, soma-se
uma sucessão que é ascendência”. Isso implica dizer que provavelmente haja, nessas
considerações, uma cisão ainda mais profunda no seio da democracia grega e da república
romana: “uma aristocracia ilustrada e uma plebe analfabeta” (PIOVEZANI, 2016, p. 85).

A oratória, então, não seria apenas uma “boa” mediadora de espíritos, mas, ainda, uma
mediadora de desigualdades historicamente construídas. E por seu intermédio, para conseguir
alguma adesão do outro, é possível partir da doxa, mesmo que ela seja ponto de chegada: “O
homem é o animal que modula sua voz, modula o sentimento. As vozes mais moduladas, com
maior plasticidade, revelam muito de quem as emite. Vivemos numa época em que no caso da
voz, não podemos dissociar a arte da ciência” (PIOVEZANI, 2016, p. 80, negrito do autor).
Aparentemente sentimento e voz se cruzam, não sem motivo, já que a voz também se depara
com a razão e, até onde se pode observar, com tudo; a performatividade oral da emoção, tal
como a da razão, é realizada pela voz, como se fosse possível ser de outro modo. Chamar a
empiria para demonstrar aquilo que tanto busca exprimir a oratória nada mais seria do que
confirmar asserções que todos fazem ao longo da vida: na voz se encontra tanto o pathos
quanto o logos. Ainda que na oratória houvesse separações estritas dos empregos da razão e

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

da emoção segundo critérios específicos, o auditório é o real delimitador considerado em suas


aplicações.

É fundamental compreendermos o discurso materializado e, ao mesmo tempo,


entendermos que não se pode fugir dos preconceitos que lhe são constituintes, porquanto o
“discurso oratório” trouxe dos seus tempos de fundação alguns vícios. Mario Ferreira dos
Santos (1961, p. 43), ao afirmar que “Ante um auditório, em que predominam mulheres, deve
o orador cuidar de sua apresentação e de sua voz. [...] se a voz não se encher de simpatia,
pode desagradar ao auditório”, deixa ver nessas descrições de práticas oratórias a
“fragilidade” feminina como um viés a partir do qual se deve o orador se preparar para o
momento em que seu público for, em sua maioria, feminino. Nesse caso, sentimentalizar a
performance oral como um recurso de “ressonância desejada” equivale a dizer que a
identificação do auditório se dá pelo seu próprio eco. É ao conjunto de interlocutores que se
volta toda e qualquer produção oral, portanto o cuidado que lhe deve ser conferido, visando o
engendramento de efeitos, assemelha-se à formação imaginária (PÊCHEUX, 2010). Como se
pode observar, a unidade discursiva da fragilidade de sentimentos femininos infunda os
(efeitos de) sentidos de voz.

Assim como a retórica, a oratória se preocupa com os efeitos gerados ou, nas palavras
de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996), visa “aproximar os espíritos” ou “negociar as
diferenças”. Talvez produzir um consenso, talvez fortalecer as motivações, porém, há a
certeza de que a estratégia do convencimento é posta em funcionamento tanto na retórica
quanto na oratória. A oratória, como uma prática sofística, é democratizada por meio dos
inúmeros manuais que trazem para os leitores os meios com os quais é possível atingir a
persuasão. Não sem razão, as designações características de cada espécie oratória se voltarem
para um melhor enquadramento do orador e de seus traços vocais peculiares. Segundo Santos
(1961), os tipos de oratória são:

A conductivista, que cabe aos possuidores de voz arrebatadora e forte, e que são
aptos a se tornarem líderes, condutores políticos.[...].
A romântica exige voz meiga, quase declamada. Uma capacidade de expressar com
beleza e recursos vocais afetivo se quentes. [...].
A ardente é a oratória apaixonada, cheia de calor e vibração, que é uma síntese das
duas primeiras, sem os exageros que aquelas podem ter. [...] Esta, quando pode
alcançar, sem exageros, as duas primeiras, é apanágio dos grandes oradores. [...].
A especulativa é a oratória dos que investigam teoricamente, no sentido filosófico
do termo, a dos que se dedicam à análise mais fria dos factos e das idéias. É a
oratória do conferencista, daquele que confere, daquele que examina
especulativamente alguma coisa. [...].
A poética é a oratória do declamador. É das mais difíceis, embora tão comum, pois
recitar versos ou declamá-los exige grandes dotes e muito trabalho e esforço. [...]

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Também o discurso fúnebre tem um grau de sublimidade e de poesia (p. 46-47 grifos
do autor).

Em consequência dos tipos de oratória temos, então, seus respectivos tipos de


oradores. Esses, por sua vez, parecem encontrar no manejo da voz, quanto ao assunto, quanto
ao problema e quanto ao efeito pretendido no auditório, espelho no lugar onde se desenrola o
processo de elocução comunicativa. Em função disso, a acústica do ambiente no qual se fala é
de fundamental importância, porquanto a voz, ao ter suas ondas propagadas no ar, pode
encontrar dificuldades para ter seus recursos empregados a depender das circunstâncias.
“Uma das providências mais importantes que deve tomar o orador é a de considerar bem o
local de onde vai falar” (SANTOS, 1961, p. 49). Quer dizer que performatividade oral em
uma igreja não é a mesma em uma praça pública; os espaços abertos requerem recursos não
usados em espaços fechados. “Um local pode ser fechado ou ao ar livre. No primeiro, o
espaço é constituído pelas paredes; no segundo, pela extensão do público” (SANTOS, 1961,
p. 49).

Somada ao conhecimento do lugar como significativo para o orador está a


compreensão dos ditos defeitos de produção oral. “As imperfeições da voz devem ser
evitadas. Todos sabem (e disso têm conhecimento por experiência própria) que a boa voz se
impõe. Quem sabe conversar bem, e é dotado de uma boa voz, é favorecido em sua vida de
relação” (SANTOS, 1962, p. 73). Percebe-se a existência de um padrão mais ou menos
idealizado segundo o qual a oratória tenta traçar seu conjunto de orientações. Nesse diapasão,
convém observarmos a materialidade textual das sugestões com relação aos “defeitos”.

Sobre essas “imperfeições linguísticas”, Santos (SANTOS, 1962, p. 72) assevera que
“um dos cuidados que se deve ter, inicialmente, na linguagem, é o de não ferir a concordância
do gênero e do número. É frequente na linguagem comum empregarem-se frases como esta:
“me dá dois café” ou: “a casa foi destruído pelo fogo”.

Os manuais de oratória mais recentes parecem utilizar em menor medida a questão da


concordância, diferentemente de como o faz Mario Ferreira dos Santos em sua obra. Isso se
deve ao fato de que tal problemática parece soar como preconceito linguístico e, sobretudo,
por desconsiderar a densidade histórica e social da formação dos menos privilegiados. É
comum, assim, um tangenciamento desse inconveniente através de uma estratégia: exercícios
de leitura de textos formais nos quais as correções se dão sub-repticiamente (POMBO, 2010,
2016; POLITO; POLITO, 2015). Magalhães (2017, p. 22), ao encontro com o senso

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

disseminado no discurso da oratória, afirma: “É fundamental diferenciar oralidade de oratória.


A primeira diz respeito a qualquer ato de comunicação oral; a segunda designa o conjunto de
regras do bem dizer, ou seja, a retórica, a arte da eloquência”. E continua: “A oralidade insere-
se no uso cotidiano da palavra para cumprirmos nossas necessidades comunicativas. É o lado
pragmático da comunicação. A oratória, por sua vez, faz parte do universo estético, sendo,
portanto, um ato artístico”.

Todavia, cabe-nos ressaltar que, de uma visada discursiva, ainda é considerado um


defeito a prática de concordância simplificada e, por conseguinte, um divisor social de falas.
Mesmo que a oratória esteja vinculada a um “ato artístico”, seu caráter persuasivo também é
condicionado pelas forças discursivas que desencadeia. Desse modo, a imagem que o orador
consegue “fazer” dele próprio quando emprega sua voz é fundamental para convencer seu
auditório lhe gerando o efeito de agradável naturalidade. Portanto, a oratória, como uma
prática de burilamento dos empregos da voz, traz em seu bojo uma formação discursiva
conservadora, ou pelo menos lhe considera para utilizar como uma técnica de
“aperfeiçoamento”.

Há, ainda, conforme o discurso da oratória, outros desvios a partir dos quais os
oradores devem se policiar para não cometer: “O acento tônico deve ser cuidado e bem
empregado. Ex.: Caráter e caracteres têm o acento na penúltima sílaba. Alguns pronunciam
carácteres. Imaginem um orador que empregue uma tônica errada. Que efeito desagradável
pode causar!” (SANTOS, 1962, p. 72, negrito do autor). Diante disso, desenha-se o efeito que
se deve querer evitar nos interlocutores, qual seja, a imagem estereotipada do orador.

Ora, instar o orador a suprimir qualquer traço de subjetividade e mesmo os advindos


de certos dialetos, visando o que a oratória considera como sendo o “grau zero” da pronúncia,
é, entre outras coisas, uma das variações do que Pêcheux (2009), na esteira materialista de
Althusser, chamou de assujeitamento. Logo, entre as consequências dessa recomendação do
discurso da oratória estão o apagamento de traços vocais da subjetividade e da regionalidade,
a “entrada” a uma formação discursiva conservadora a partir de seu assujeitamento e,
principalmente, a manutenção de preconceitos linguísticos.

Em vista disso, Piovezani (2016, p. 86) ressalta o funcionamento das idealizações


como construção e conservação dos preconceitos acerca da voz, expondo também a existência
da superestimação e da subestimação no uso próprio e alheios da voz e da língua. Isto é, “Há
forte tendência de superestimação entre os que julgam dominar a chamada norma culta e de

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

subestimação entre os que julgam não a dominar”. (PIOVEZANI, 2016, p. 86). Disso
compreende-se porque o preconceito linguístico frequentemente escapa aos leitores e ao
público da grande mídia, que tenta encontrar um dialeto sem marcas cujas características
possam denunciar uma determinada região do país. Grosso modo, os dialetos usualmente
empregados pela mídia são o paulistano e o fluminense, ainda que lhes sejam dados um ar de
neutralidade regional. Através do “discurso da oratória”, a historicidade constitutiva desses
falares é apagada de sua espessura no imaginário coletivo, produzindo, com isso, o efeito de
uma pronúncia perfeita sem qualquer valoração negativa socialmente. Portanto, reconhecemos
a gravidade dada à voz como um bem simbólico cuja oratória é capaz de transformar quando
o objetivo é submeter e assujeitar. Corrigir é, então, necessário para se adequar. Porém, isso
ressoa unidades de discurso cujos núcleos são o estereótipo e, sua contrapartida, o
preconceito.

Nessa perspectiva, ao analisar as descrições de Santos (1962, p. 73) que afirma: "A
voz fanhosa, a voz arrastada, a voz metálica, a raspante, vozes finas, graves demais, são
sempre desagradáveis”, é possível verificarmos o índice discursivo sobre o qual repousa o
mérito (fajuto). Em outros termos, quando se assevera que, a despeito das diversas desordens
que a voz pode sofrer, sendo fanhosa, arrastada, metálica ou raspante, é possível por meio do
trabalho chegar a bons resultados em nível oratório, em última instância, trata-se dos efeitos
do discurso meritocrático servindo de ancoragem textual-argumentativa sobre a qual o
discurso da oratória emerge. A pré-construção do discurso meritocrático está instalada na
afirmação “Tais defeitos são corrigíveis pela boa vontade do leitor e pelo exercício”
(SANTOS, 1962, p. 73), a partir da qual podemos apontar para aquilo que é, portanto, uma
unidade do discurso que será alvo de exame quando das análises dos objetos midiáticos no
capítulo seguinte.

Somado a isso, encontra-se o discurso da oratória em uma posição bastante favorável a


sua disseminação, já que existe em seu interior uma convergência discursiva inclinada ao
conservadorismo “meritocrático”. “Ninguém pode vencer em sua profissão se tiver uma voz
que impeça agradar os outros” (SANTOS, 1962, p. 74). As paráfrases podem elucidar alguns
mecanismos de construção discursiva do enunciado, pois “A paráfrase é uma relação de
equivalência entre dois enunciados, um deles podendo ser ou não a reformulação do outro. A
equivalência se exprime em termos de co-referência, e mesmo de anáfora”
(MAINGUENEAU; CHARAUDEAU, 2008, p. 366). Visto isso, podemos observar: ninguém
pode vencer em sua profissão se tiver uma voz que impeça agradar os outros, ninguém pode

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

chegar ao sucesso se tiver uma voz que desagrade, boas vozes têm maior chance de alcançar
o sucesso.

A questão, então, que se levanta, em âmbito discursivo, remonta ao que pretendemos


demonstrar ao cabo deste estudo: que se diz da voz, sobretudo na oratória, para, através dela,
reproduzir desigualdades e sustentar diversos efeitos de sentidos da voz em produções
discursivas circulantes na sociedade. Assim, o silenciamento de vozes estigmatizadas no
interior do universo midiático é uma constelação simbólica no imaginário coletivo sobre as
quais pesa a reprodução dos grandes meios de comunicação a partir de suas produções
musicais, em específico, através da voz de cantores e, em geral, de seus atores, apresentadores
e demais artistas.

Diante disso, em conjunção ao que o discurso da oratória manifestou até então, falar
aos outros de maneira a atrair e convencer requer uma série de procedimentos, como os já
vistos, entre outros; também demanda do orador um cuidado com o ritmo de elocução das
palavras. “Em todo discurso, há um certo número de palavras que têm maior valor que outras.
Essas palavras, palavras-chaves, assinalam a ideia principal ou o sentimento, pontos de
referência em torno dos quais giram os outros termos que pretendem traduzir as ideias”
(SANTOS,1962, p. 76).

Segundo o “discurso da oratória”, existem, então, vocábulos que na enunciação oral


recebem da voz maior ou menor ênfase, conforme a atenção ou emoção que se deseja
provocar no público.

[...] Quem dissesse, em tom professoral: “No verão os dias são quentes”, provocaria
riso. Dito, porém, em tom normal, não o provocaria. [...] (SANTOS,1962, p. 76).
A cadência é importante. [...].Um discurso sempre no mesmo tom é um discurso
monótono, portanto cansativo. [...] (SANTOS,1962, p. 76-77).
Segundo o assunto, deve cuidar-se da cadência. Quem descreve uma cena rápida,
tem de aumentar o ritmo da voz, e a cadência é ascendente. Quem descreve uma
cena normal, usa a cadência direta (SANTOS,1962, p. 77).

Em concordância ao “discurso da oratória”, ritmo, tom e cadência compõem grande


parte da estrutura vocal responsável por produzir os principais impactos no auditório. Os
múltiplos recursos de que parece dispor à oratória e suas várias combinações criam pelo
menos dois efeitos de sentido: de consolidação de seu campo e, consequentemente, de
eficácia. Oratória, irmã da retórica, nos dias de hoje manifesta sua atualidade no gênero de
autoajuda, o mesmo disseminador de uma das faces do discurso do sucesso (SOARES, 2017).
Diante disso, julgamos importante o fato de que a voz figura como um lugar sobre o qual

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

agem as forças de segregação social. Ora, por mais democrática que possa se apresentar, a
instituição oratória não é alcançada por todos, talvez nem pela maioria, tornando-se, assim,
um instrumento de amplificação de poder e de ascensão social.

Considerações preliminares

Os dizeres sobre a voz no campo da oratória representam a voz como um fenômeno


corporal, social, político e antropológico a partir dos quais o discurso pode-se ancorar na
criação de efeitos de sentido novos ou na retomada de efeitos de sentido conservados no
interdiscurso. Queremos dizer que existem regularidades referentes às unidades de discurso
que atravessaram diversas áreas tocadas pela oratória. As unidades de discurso, tais como
descritas por Foucault (2012), permitiram-nos observar, refletir, e analisar, então, o que
podem constituir possíveis continuidades e descontinuidades acerca dos dizeres sobre a voz,
especialmente na oratória. Portanto, depreendemos os dizeres sobre a voz e suas unidades de
discurso provenientes desse campo, com vistas a identificar sua conservação, suas
modificações ou suas refutações.

Cabe-nos, então, a sistematização do que encontramos na oratória. Constante no


discurso da oratória, o efeito de importância para o que se diz da voz é criado pela exposição
do conjunto de mecanismos recomendativos de correção, de aprimoramento e de esmero
vocal, como práticas de burilamento dos empregos da voz, trazendo, em seu interdiscurso,
uma formação discursiva conservadora como ancoragem argumentativa para o
“aperfeiçoamento”. Diante disso, dentre as unidades de discurso mais candentes percebidas se
encontram o abuso travestido de “persuasão psicoafetiva”, o estereótipo e, sua contrapartida, o
preconceito em uma posição favorável de difusão, já que existe no interior do campo da
oratória uma convergência, como vimos, ao discursivo conservador “meritocrático”. Esse é
um dos principais responsáveis pelo apagamento de traços vocais, de subjetividade e de
regionalidade, visando a “entrada” do sujeito em uma formação discursiva conservadora, a
partir de seu assujeitamento e, principalmente, da manutenção de preconceitos linguísticos
enraizados historicamente na sociedade brasileira.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Referências

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

A VOZ NA FILOSOFIA: UM TRAJETO DA VOZ COMO


UNIDADE NO DISCURSO FILOSÓFICO

Considerações iniciais

A oratória desde sua origem antiga dá recomendações para um melhor emprego da


voz, a Filosofia, por sua vez, dispôs-se a refletir acerca da voz tardiamente. Jugando as
propriedades encontradas nas unidades de discurso no interior do discurso da oratória
(SOARES, 2019), podemos empreender um percurso semelhante, guardadas as devidas
proporções, no tocante ao discurso filosófico. Portanto, com o objetivo de compreender os
sentidos da voz e como esses são construídos e disseminados no campo da Filosofia,
observaremos, a partir de como a voz foi tratada, usada e representada por filósofos em suas
obras, um trajeto acerca da voz, seguindo uma cronologia mais ou menos canônica na história
da Filosofia. Para tanto, faremos uso do aparato teórico-metodológico da Análise do Discurso,
principalmente da noção de unidades de discurso de Michel Foucault.

Essas unidades estão vinculadas ao domínio de memória constitutivo das formações


discursivas nas quais os enunciados são produzidos, de maneira que sempre trazem elementos
de seus componentes anteriores. O domínio no qual os textos são construídos diz tanto de seu
funcionamento interno quanto da relação desses com núcleos temáticos que podem relacionar-
se no interior da cadeia de unidades de discurso. Não se trata de uma concepção cujo papel é a
elementarização dos domínios associados a um assunto, mas, sim, de uma propriedade do
discurso que se dissemina e desdobra-se nas capilaridades dos acontecimentos sociais. Assim,
o emprego das unidades do discurso viabiliza uma análise que abre espaço para um trajeto
temático de um objeto preciso no interior de uma determinada formação engendrada por um
certo domínio associado.

Trata-se de um domínio imenso, mas que se pode definir: é constituído pelo


conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos), em
sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um. Antes de se
ocupar, com toda certeza, de uma ciência, ou de romances, ou de discursos políticos,
ou da obra de um autor, ou mesmo de um livro, o material que temos a tratar, em sua
neutralidade inicial, é uma população de acontecimentos no espaço do discurso em
geral. Aparece, assim, o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos
como horizonte para a busca das unidades que aí se formam (FOUCAULT, 2012, p.
32, grifo nosso).

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Dada à complexidade com que funcionam, tais unidades só podem ser percebidas no
discurso que também é uma noção que tomamos de empréstimo de Foucault. Ele, na mesma
obra, define o discurso, a formação discursiva e as unidades de discurso, como entrelaçados
na cadeia de acontecimentos históricos. Para Foucault, o discurso é, antes de tudo, uma
prática fundada no sentido em que lhe é orientanda uma direção em conformidade ou em
desconformidade com práticas paradigmáticas em um dado período. Em vista disso, o
discurso é “um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação
discursiva” (FOUCAULT, 2012, p. 131); logo, o discurso e suas unidades encontram-se
vinculadas à organização que lhes é disposta pela formação discursiva. Para compreendermos
como as formações discursivas regulam os sentidos e colocam-nos em perspectiva dentro de
um domínio, lemos o seguinte:

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,


semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade
(uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por
convenção, que se trata de uma formação discursiva (…) (FOUCAULT, 2012, p. 43,
grifos do autor).

Nesses termos, a formação discursiva concerne ao traçado composicional que delineia


sentidos produzidos pelos enunciados que, por sua vez, marcam posicionamentos a partir
tanto das escolhas dos objetos quanto de como esses são alvo dos sistemas de difusão no
circuito social. Desse modo, é a formação discursiva dirigente dos sentidos por ela veiculados
no interior de um discurso. Posto isso, podemos, conforme a disposição teórica do discurso e
da formação discursiva, pinçar do discurso filosófico, dentro de determinadas formações
discursivas, a voz como unidade de discurso capaz de responder às determinações históricas
operadas pela densidade e convencionalidade do aparato filosófico. Portanto, é nas unidades
de discurso que podemos encontrar dizeres sobre a voz em um campo como a Filosofia; é
através da formação discursiva que podemos distinguir quais sentidos definem a voz no
discurso filosófico.

Como objetivamos compreender os sentidos da voz e como esses são construídos e


disseminados no domínio da Filosofia, além de visar contribuir para a história das ideias
linguísticas no que tange aos discursos sobre a voz, investigamos em várias obras e autores
canônicos o que se diz sobre a voz através de uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo
em cuja metodologia extraída da Análise do Discurso consiste em rastrear e interpretar as
unidades de discurso. Para a realização desse procedimento, este artigo organiza-se de forma

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

básica, porquanto contém apenas a próxima seção na qual investigamos a existência e o


funcionamento das unidades de sentido acerca da voz em obras filosóficas e destacamo-la por
meio de negrito para, em seguida, nas considerações finais apreciarmos, avaliarmos e
pesarmos a trajetória aqui percorrida.

Unidades de discurso da voz na filosofia

No discurso filosófico, é possível identificar uma série de contribuições significativas


referente aos mais variados tipos de indagações no interior do pensamento humano. Seu início
remonta a tempos antigos, como é sabido. Ele passou por diversas modificações até chegar ao
seu complexo estágio atual. Não obstante, desenvolveu-se a partir da crítica contundente aos
mitos que eram antes de seu início uma série de explicações criadas a partir de boas doses de
ludicidade, de inventividade humana e desvinculada das experiências concretas das pessoas.
Não é à toa que temos um conjunto de pensadores iniciais, cada qual com a sua
especificidade, tentando demonstrar, com base em argumentos, que o mundo e tudo que nele
há pode ser explicado não somente por figuras abstratas, por heróis e por deuses, mas também
por argumentos que se voltam à descrição da realidade observada.

Para combater os efeitos “deletérios” da sofística, ou erística como é conhecida a arte


de argumentar sem a preocupação com a verdade, o discurso filosófico deixou marcado em
seu trajeto inicial os objetos segundo os quais orbitavam as constrições de suas primeiras
formações discursivas e, portanto, acabou por legar relativamente pouco material acerca da
voz. Posto isso, verificamos em uma das passagens de “Fédon”, de Platão (427-347 a. C.), no
que tange ao verdadeiro mundo de onde emanam as ideias para o nosso mundo “das
sombras”, o seguinte:

Lá também existem lugares sagrados e templos, nos quais os deuses efetivamente


residem; e vozes, e profecias, mediante as quais os deuses se tornam sensíveis a eles;
desse modo, entram em contato com as divindades, face a face. E o sol, a lua e os
demais astros são contemplados por esses homens, tais como verdadeiramente são
em si mesmos. A esses privilégios se junta uma felicidade que lhes é
acompanhamento natural (PLATÃO, 1991, p. 193, grifo nosso).

A passagem acima, se não fosse a certeza de que pertence à própria lavra do filósofo
grego, poderia ser relacionada ao paraíso bíblico. Nela a voz atravessa o campo da física para
ser um meio de comunicação metafísico com os deuses; portanto, a efetiva noção de voz é
contemplada no mundo ideal. Em outros termos, a voz de onde habitamos não possui sua real

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

propriedade: a comunicabilidade divina. Homens ouvem-se onde permanecem envoltos em


ilusões, mas os deuses não podem ouvi-los. A interação com os deuses também ocorre através
da voz, no entanto, ela se dá no local em que residem, no mundo original. Diante da
opacidade com a qual a voz é tratada por Platão nesse excerto de “Fédon”, ainda sim é
possível depreender o sentido de comunicação injetado na unidade discursiva voz. Isso se dá
justamente pela instauração de uma formação discursiva na qual “Para Platão, a Filosofia é o
esforço do pensamento para abandonar o sensível e passar ao inteligível” (CHAUÍ, 2009, p.
43).

Ainda em “Fédon”, ao rastrearmos a voz como unidade discursiva, encontramos: “Em


muitas ações, com efeito, e em muitas circunstâncias, quando nos sentimos encantados pela
velocidade, pela força, pela vivacidade do pensamento, do corpo ou da voz, nossa admiração
encontra apenas uma palavra para se exprimir: energia” (PLATÃO, 1991, p. 443, grifo nosso).
A voz, neste caso, é capaz de gerar em seu ouvinte um fascínio a partir do qual é expresso um
determinado comportamento, chamado pelo filósofo de energia. Desse modo, a voz pode ser
tomada como um dos gatilhos de ativação das emoções; a voz, sob esse ponto de vista,
remeteria às memórias da subjetividade de quem lhe sente as tonalidades de vibração. No
limite, a voz é causativa de energia, porém, sem deixar de também o ser, isto é, a voz é uma
liberação de energia que ganha seu eco, em maior ou em menor grau, naquele que a ouve.

Segundo a formação discursiva na qual os dizeres de Platão sobre a voz estão inseridos, o
sentido de voz é o de veículo tanto metafísico, de comunicação com as deidades, quanto sútil,
de disseminação de energia ou sentimentos. Próximo a essa concepção de voz promovedora
de sentidos em seus interlocutores, mas ao contrário de uma voz metafísica apta ao convívio
com os deuses, temos a compreensão do discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a. C.) em a
“Política”:

Agora é evidente que o homem, muito mais que a abelha ou outro animal gregário, é
um animal social. Como costumamos dizer, a natureza nada faz sem um propósito, e
o homem é o único entre os animais que tem o dom da fala. Na verdade, a simples
voz pode indicar a dor e o prazer, e os outros animais a possuem (sua natureza foi
desenvolvida até o ponto de ter sensações do que é doloroso ou agradável e
externalizá-las entre si), mas a fala tem finalidade de indicar o conveniente e o
nocivo, e portanto também o justo e o injusto; a característica específica do homem
em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e
do mal, do justo e do injustos e das outras qualidades morais e é a comunidade de
seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade (ARISTÓTELES, 1985,
p. 15, grifo nosso).

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

O estagirita, para dizer da voz, centra-se no âmago da separação ontológica do homem


dos outros animais. Como ele assevera, tanto aquele quanto esses têm na voz um meio de
manifestação de si, entretanto, apenas o gênero humano emprega a voz na realização da fala.
Aristóteles, em sua comparação dos usuários da voz, leva-nos a crer que é a fala a real
distinção entre o animal social dos outros animais. Porém, de acordo com o estagirita, é a fala
que, ao produzir elementos vocais engendrados de sentido em uma cadeia significante, faz
emergir a subjetividade de quem a põe em marcha. Em outras palavras, de acordo com a
formação discursiva na qual o excerto acima se encontra, a possibilidade de estabelecer o
lastro social reside no uso da voz para comunicar, para transmitir e para performatizar o
interno do homem em seu externo. Decorrente desse raciocínio, a voz ao mesmo tempo
permite aos sujeitos a capacidade de serem falantes e gesta a viabilidade da constituição do
espaço social de trocas simbólicas.

Aristóteles, em ampliação ao que se diz em a “Política”, no que se refere ao objeto de


nosso exame, na obra “Retórica” avança o discurso filosófico e afiança que o homem “ocupa-
se da voz, das diferentes maneiras de a empregar para expressar cada paixão: ora forte, ora
fraca, ora média; investiga igualmente os diferentes tons que a voz pode assumir,
alternadamente aguda ou grave ou média, em cada circunstância” (s/d, p. 173). Ainda no
estudo acerca da voz, em uma espécie de exemplificação, o filósofo grego assevera: “A voz de
Teodoro mostrava superioridade manifesta sobre a dos outros comediantes; tinha-se a
sensação de estar ouvindo a própria personagem, ao passo que a voz dos outros parecia
afetada” (s/d, p. 176). Ao fazer referência à voz como uma forma de destaque com a qual se
pode diferenciar aqueles capazes de sobreporem-se aos outros, manifestando, desse modo,
superioridade no desempenho de atividades para as quais o uso da voz é fundamental, o
filósofo atesta o poder “sedutor” da voz. Trata-se aqui, no interior desta formação discursiva,
então, de uma propriedade atribuída à voz, o pathos.

O pathos é precisamente a voz da contingência, da qualidade que se vai atribuir ao


sujeito, mas que ele não possui por natureza, por essência. No início o pathos é,
então, uma simples qualidade, o sinal da assimetria que prevalece na proposição e a
define. Lugar de uma diferença a superar na identidade e pela identidade do sujeito,
o pathos é tudo o que não é sujeito e, ao mesmo tempo, tudo o que ele é (MEYER,
2010, p. 32).

Diante da retórica das paixões ser, em boa medida, justamente a transformação da


oratória do pathos, a voz ganha um papel efetivo na comunicação. Com isso, atuação,
persuasão e sucesso constituiriam, nessa formação discursiva, sentidos diferentes da sedução
pela voz. No entanto, parece que a eficácia do emprego da voz está, entre outras coisas, na

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

articulação das diversas modulações que essa pode adquirir segundo dadas circunstâncias.
“Eis o que quero dizer: se, por exemplo, as palavras empregadas são duras, não se deve
comunicar a mesma dureza à voz, ao rosto e às demais coisas que podem harmonizar-se”
(ARISTÓTELES, s/d, p. 187). Com isso, Aristóteles permite-nos compreender que se fala do
papel da voz como orientação para que o sujeito seja bem-sucedido em diferentes campos de
sua atuação: na expressão de emoções, no convencimento, na sedução (SOARES, 2019). Mais
explicitamente, o mundo político, jurídico, teatral, e as artes jornalísticas e religiosas, entre
outros, necessitaram e necessitam estar atentos aos usos da voz para alcançarem sucesso, pois
no interior desses universos ela tem natureza fundamentalmente performante.

Em vista disso, a voz, unidade discursiva, de acordo com a formação discursiva


aristotélica, tanto é uma capacidade eivada do potencial humano de socialização, como
também é um recurso comunicacional a serviço da força dos argumentos, sobretudo
direcionados para o convencimento. Essa formação discursiva marca o discurso filosófico dos
tempos antigos estendendo-se até as técnicas de si no discurso da atualidade, bem como
organiza e sistematiza o discurso da oratória (SOARES, 2019). Diante dessa conformação da
voz como uma unidade do discurso no domínio filosófico, encontramos ainda na Antiguidade,
os dizeres sobre a voz transitando pelo campo teológico e metafísico com Agostinho (354-
430) produzindo uma reflexão, a qual Doueihi expõe da seguinte maneira:

Com a questão da voz, também se coloca a da transmissão de pessoa para pessoa,


ativando a sedução de um ser humano por outro em vez da obediência à palavra de
Deus, introduzindo pela primeira vez, uma obediência secundária, a do afeto entre
seres humanos (DOUEIHI, 2011, p. 29).

No limite, a formação do vínculo social assenta-se, propaga-se, desprendendo-se da


ordem divina per se no reconhecimento de uma semelhança e reciprocidade dos sujeitos por
meio do emprego da voz. Nela reside a possibilidade de transmissão da palavra de Deus e, ao
mesmo tempo, de fortalecimento do laço entre as pessoas, as quais, com isso, comungam do
divino. Sob o prisma dessa formação discursiva religiosa, a voz é posta como a ponte entre os
sujeitos, de maneira que não só é necessária à socialização, mas também à comunicação dos
desígnios de Deus. Portanto, em Agostinho, a partir da reflexão de Doueihi (2011), fala-se da
voz como dependência entre os homens, já que o uso da voz ecoa, em alguma medida, a
vontade de Deus. Em suas “Confissões”, Agostinho diz:

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Com efeito, aquela voz ecoou e sumiu-se. Começou e findou. Ressoaram as sílabas e
passaram, a segunda após a primeira, a terceira após a segunda, e todas pela mesma
ordem, até à última, e, depois da última, o silêncio... Donde claramente ressalta que
uma criatura as pronunciou, mediante uma vibração temporal, a serviço da vossa
eterna vontade. Essas palavras transitórias anunciou-as ela, por intermédio dos
ouvidos externos, à inteligência que as compreende e cujos órgãos interiores da
audição estão dispostos para escutarem o vosso Verbo Eterno (AGOSTINHO, 1980,
p. 29, grifo nosso).

Uma questão teológica atravessa a compreensão a respeito da voz no âmbito da


formação patrística-religiosa na qual se encontra Agostinho, porquanto uma voz primeira foi
responsável pela criação, conforme está descrita no livro de Gêneses. Cabe, aqui, ressaltar que
“As preocupações de Agostinho são principalmente teológicas. Mesmo quando se ocupa de
questões filosóficas, o seu objetivo é, em primeiro lugar, reconciliar o ensinamento da Bíblia
com a herança filosófica da escola platônica” (RUSSELL, 2013, p. 201). Portanto, a voz
primeira, que se originou do silêncio primordial, é a voz da verdade, ou seja, é a voz da qual
todas as demais vozes provêm. As vozes derivadas da voz de Deus, de acordo com essa
formação discursiva religiosa, têm tempo de duração marcado por um conjunto de
mecanismos inerentes à linguagem humana, porém, a Daquele não carece em absoluto dos
mesmos recursos da fala, pois é perfeita em si. Todavia, a compreensão falha não alcança a
completude da sublimidade ideal. Quanto a isso, em “A Cidade de Deus”, encontramos sobre
a voz: “É claramente acerca desta questão que a voz divina se faz ouvir pela voz da Sabedoria
de Deus” (AGOSTINHO, 1996, p. 530, grifo nosso).

Portanto, aqui a formação discursiva na qual a voz está engendrada contrai-se na


concepção teológica segundo a qual “Agostinho aceita a doutrina da Queda do homem de um
estado original ideal e a doutrina do pecado original, e também as associa à noção de vontade
livre” (SWEETMAN, 2013, p. 100). A formação discursiva racionalista de Platão pode ser
percebida como uma forte influência no teólogo, pois a visão de uma forma perfeita da qual
todos são derivados mantém-se e arregimenta, consequentemente, a voz. Desse modo, a
unidade discursiva da voz concerne à replicação que toda voz faz de uma voz outra, podendo
essa ser tanto de Deus quanto de um sujeito.

Assim, uma voz universal implica vozes particulares. Em outros termos, a voz pode
ser entendida como “Nossa pessoa é nossa consciência, que é nossa alma dotada de vontade,
imaginação, memória e inteligência” (CHAUÍ, 2009, p. 143). No interior da formação
discursiva religiosa correligionária em grande medida do pensamento antigo, então, já se
pode, em germe, identificar o início do estatuto do indivíduo, acarretando à voz um

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

entendimento singular de seu funcionamento. Em conformidade com as condições históricas,


cujos efeitos podem ser percebidos na constituição da voz como unidade discursiva, por
conseguinte, a produção do discurso filosófico sofre mutações. Diante das metamorfoses do
mundo, no alvorecer da modernidade, René Descartes (1596-1650) tece considerações sobre a
percepção da existência de Deus e do próprio indivíduo como um gerador relativamente
autônomo de sua realidade. Com vistas a demonstrar as propriedades materiais da consciência
humana, o filósofo francês passa ligeiramente pela voz em “As paixões da alma”:

E é útil aqui lembrar que, como já foi dito mais acima, embora cada movimento da
glândula pareça ter sido unido pela natureza a cada um de nossos pensamentos desde
o começo de nossa vida, é possível todavia juntá-los a outros por hábito, assim como
a experiência mostra nas palavras que excitam movimentos na glândula, os quais,
segundo a instituição da natureza, representam à alma apenas os seus sons, quando
proferidas pela voz (DESCARTES, 1973, p. 247, grifo nosso).

A glândula a qual se refere o criador da dúvida metódica é a pineal que, entre outras
coisas, é, conforme a formação discursiva na qual Descartes está inscrito, responsável por
auxiliar na decodificação das experiências, como um tipo de captação da consciência. A partir
de uma estrutura simplificada da fisiologia humana, Descartes acredita ter encontrado o centro
segundo o qual a mente é instituída. Desse modo, a voz, por fazer vibrar tal glândula, exerce
poder sobre a convergência de pensamentos e seus respectivos padrões de significação. Em
outros termos, a voz, de acordo com cada situação e cada parâmetro modulatório, estabelece
as condições para a produção de sentidos. Portanto, a voz, como unidade discursiva no
interior da formação discursiva racionalista, é presumida como um veículo transmissor cuja
ação é materialmente “encontrada” na glândula pineal, centro das atividades mentais; no
entanto, Descartes, quando apresenta uma reflexão acerca do riso, demonstra a voz como
essência de uma expressão do espírito, qual seja: rir.

O riso consiste em que o sangue que procede da cavidade direita do coração pela
veia arteriosa, inflando de súbito e repetidas vezes os pulmões, faz com que o ar
neles contido seja obrigado a sair daí com impetuosidade pelo gasnete, onde forma
uma voz inarticulada e estrepitosa; e tanto os pulmões, ao se inflarem, quanto este
ar, ao sair, impelem todos os músculos do diafragma, do peito e da garganta,
mediante o que movem os do rosto que têm com eles qualquer conexão; e não é
mais que essa ação do rosto, com essa voz inarticulada e estrepitosa, que chamamos
riso (DESCARTES, 1973, p. 271, grifo nosso).

Ao descrever o riso, Descartes da à voz uma denotação para além de transmissora,


porquanto sem ela o riso não se realiza, não se concretiza e não se verifica. A voz, tirante seu

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

papel articulador de fonemas na formação discursiva da ciência linguística, é fundadora da


subjetividade inerente ao gênero humano como o percebera Aristóteles (1985), de maneira a
ser o riso uma especificidade de sua essência. Em consonância com o filósofo francês, a voz é
manifestação que, em sua autonomia, reflete os mais variados estados de humor possíveis de
serem alcançados pela consciência. A voz vivifica e traz à externalidade o que é interno sem a
fundação de uma dicotomia. Então, se por um lado a voz evidencia o riso, por outro, a voz
não articulada e estrepitosa é o próprio riso. Todavia, mesmo Descarte descrevendo a
concepção de riso e tocando a voz, quase de um ponto de vista fenomenológico, o sentido de
voz continua envolto a uma formação discursiva de compreensão fisicalista à semelhança de
seu contemporâneo, Francis Bacon (1561-1626), quem ao escrever “O progresso do
conhecimento”, diz:

Nada há mais variado que as vozes e, contudo, também é possível distingui-las de


uma pessoa a outra; e mais, um bufão ou ator imita todas as que quiser. Nada há
mais variado que os diferentes sons das palavras e, contudo, se encontrou a maneira
de reduzi-las a umas quantas letras simples (BACON, 2007, p. 171, grifo nosso).

O excerto extraído da obra do filósofo inglês discursiviza um reconhecimento da


particularidade da voz ao afiançar seu valor de variação. Nele ainda encontramos uma parcela
significativa de uma formação discursiva segundo a qual cada indivíduo tem uma voz que,
exatamente por isso, pode ser diferenciada das demais. Em decorrência desse fato observado
por Bacon, é possível notar que a voz, como uma unidade de discurso, já se inclui na insígnia
social da distinção dos indivíduos. A voz, então, é percebida com a extensão performativa de
quem a porta; aos especialistas e brincalhões cabe o papel de adaptar sua própria matéria
vocal àquela que têm por alvo. A partir do método indutivo, no interior da formação
discursiva empirista, o filósofo parte da multiplicidade das vozes para chegar aos sons das
palavras. Como o número de tipos de vozes é incontável, passa-se ao que se é matematizável,
os sons das palavras. Esses, no quadro do empirismo inglês, ainda têm uma variedade extensa,
mesmo se pensados em uma só língua, porquanto são oriundos das combinações mais ou
menos complexas de fonemas.

A produção discursiva de Bacon ruma da voz à letra evidenciando um processo no


qual a voz sofre uma simplificação de sua “potência”. Neste caso, a voz precisa ser recortada
de seu espectro de variedade imensurável, no entanto, não deixa de ser uma das fontes de
distinção das individualidades, de acordo com tal formação discursiva. Desse ponto de vista, o
filósofo inglês confere à voz um estatuto de anterioridade à fala, porém, não faz maiores

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

avanços nesse direcionamento. “Como o título do livro sugere, Bacon se preocupa em ampliar
a abrangência do conhecimento e da capacidade do homem de dominar o ambiente que o
cerca” (RUSSELL, 2013, p. 293) e, com isso, a voz como unidade discursiva é recoberta
pelos sentidos de variedade, em suas possibilidades de produção, e de individualidade,
correspondente à distinção que sua singularidade faz quando do uso pelo indivíduo.

Bacon e Descartes, entre outros, legaram às futuras gerações de pensadores uma


produção discursiva frutífera e, por conseguinte, as condições favoráveis para tantos
descreverem e interpretarem, à luz de uma nova epistemologia, os fenômenos naturais.
Sobretudo nesse período conhecido como Iluminismo no qual “há grande interesse pelas
ciências que se relacionam com a idéia de evolução” (CHAUÍ, 2009, p. 58). Desse modo, a
formação discursiva do cientificismo subordina o pensamento norteando-o às descobertas de
causa e efeito como motrizes do mundo conhecido. A voz, ainda que não fosse um objeto
sobre o qual recaíssem as indagações filosóficas, auxiliava, de maneira subsidiária, na busca
de respostas concretas a partir de sua natureza dinâmica, tal como exemplifica David Hume
(1711-I776), em “Investigações sobre o entendimento humano”, ao dizer: “Por que a audição
de uma voz articulada e de um discurso com sentido na escuridão nos assegura da presença de
alguma pessoa? Porque esses são os efeitos da constituição e do feitio do ser humano, e estão
intimamente conectados a ele” (HUME, 2004, p. 55, grifo nosso).

No trecho acima, é possível perceber o funcionamento da formação discursiva


empirista na qual o filósofo escocês está inscrito, pois nela aquilo que parece “óbvio” por
sinalizar parte de conhecimento, isto é, a percepção, não vai além de uma relação causal e a
voz serve ao propósito de demonstrar que os sentidos humanos recebem as impressões do
mundo externo. É, assim, que se tem, nessa formação discursiva empirista, a “matéria bruta”
(experiência concreta) servindo para engendrar as ideias (conceitos) em franca oposição à
formação discursiva platônica na qual o trajeto da produção de conhecimento é relativamente
distinto. Portanto, na produção discursiva de Hume, a substância vocal é empregada para
exprimir uma das vias das quais se cria um encadeamento de fatos mentais cuja base é
empírica.

Ouço neste instante, por exemplo, a voz de uma pessoa que me é conhecida, e o som
vem como se fosse do cômodo vizinho. Essa impressão de meus sentidos conduz de
imediato meu pensamento para essa pessoa, bem como para todos os objetos que a
circundam, e eu os represento para mim como existindo neste momento com as
mesmas qualidades e relações que eu sabia possuírem anteriormente (HUME, 2004,
p. 83, grifo nosso).

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Aqui a voz serve para fabricar o cenário no qual o senso comum está totalmente à
vontade com a apreensão dos fenômenos por parte dos sentidos para constituição do sistema
cognitivo. Entretanto, Hume quer dizer com sua argumentação que “como todo conhecimento
real e certo supõe concatenação interna entre causa e efeito, segue-se que não pode existir
conhecimento dessa natureza” (ROHDEN, 2008, p. 97). Em outras palavras, “Todo nosso
saber é essencialmente indutivo, e não dedutivo, porque começa invariavelmente com fatos
individuais e concretos, e termina também com fatos dessa natureza” (ROHDEN, 2008, p. 97,
grifos do autor). Portanto, na formação discursiva empirista, o entendimento que depende das
conexões subjetivas de um indivíduo é, mesmo que aparentemente lógico, via de regra,
individual e, portanto, sujeito às vicissitudes da percepção e da consciência dessa
individualidade. Assim, a voz como unidade discursiva encontra-se, nessa formação
discursiva, voltada para sua capacidade demonstrativa dos fenômenos a ela associados,
recebendo o sentido de materialidade empírica de experiência passível de ser vivenciada por
qualquer um. Diante disso, a voz não apenas desempenha papel argumentativo de validação
de raciocínio como também enseja reflexões que lhe conduzem a outros caminhos, como, por
exemplo, ao da comunicação no estilo rousseauniano.

Rousseau (1712-1778), na obra “Ensaio sobre a origem das línguas”, compreende a


voz como um dos caminhos pelos quais chegamos à alteridade, pois “os meios gerais através
dos quais podemos agir sobre os sentidos alheios se limitam a dois, a saber, o movimento e a
voz” (ROUSSEAU, 2008, p. 98). No melhor espírito do tempo e, portanto, no interior de uma
dada formação discursiva, Rousseau descreve os gestos enquanto movimentos universais não
carecendo tanto do aspecto sociocultural para dar-lhes sentido, ao passo que a voz sob a égide
da língua necessariamente é a articulação das menores unidades de sons, fonemas, sendo
esses, muitas vezes, ligados àquele aspecto sonoro. Ao comentar tal raciocínio do filósofo
suíço, Bento Prado Junior afirma: “o olho treinado do Gramático ou do Lógico deve
subordinar-se a um ouvido atento à melodia que dá vida aos signos: estar surdo à modulação
da voz significa estar cego às modalidades do sentido” (2008, p. 31; grifo nosso). Em outras
palavras, a evidência da visão não está em contraponto com a evanescência da voz, mas, ao
contrário, estão ambas em comunhão na produção e veiculação de sentidos.

Assim, de acordo com a formação discursiva contratualista na qual o filósofo suíço


está inscrito, a voz está entre os artifícios humanos essenciais para interação dos sujeitos,
posto ser por seu intermédio que a fala constitui-se. Rousseau, a partir de seu essencialismo,
toca a voz em seu sentido comunicacional; a voz é, de acordo com essa concepção, uma

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

realidade própria da interação humana na qual é possível um sujeito agir sobre o outro.
Todavia, ao afiançar que a voz não estando articulada pode operar quaisquer tipos de relação
ou mesmo algum efeito em seu ouvinte, extrapola-se sua potencialidade. Ainda que a voz seja
acompanhada de gestos, não há a certeza de que o processo comunicativo efetive-se, então,
entra em cena a necessidade da língua como uma instituição social (SAUSSURE, 1972).
Portanto, há na produção discursiva de Rousseau o germe dos estudos semióticos da
linguagem, nos quais a voz é considerada uma portadora de significados, porém, ao mesmo
tempo, a voz carece de outros meios para a produção de mensagens mais significativas entre
interlocutores, como, por exemplo, a gestualidade e, implicitamente, a fala.

Portanto, o sentido adquirido pela voz como unidade de discurso, na formação


discursiva contratualista, é o de auxiliar no processo comunicativo, posto haver uma contínua
demanda por acessar a alteridade e essa é sanada tanto pelo movimento mímico quanto pelo
uso da voz. Em oposição à essencialidade material da voz, encontra-se o filósofo alemão
Arthur Schopenhauer (1788-1860) para quem, na obra “O mundo como Vontade e
Representação”, a voz possui um estatuto de ponto de observação da representação material
da metafísica do mundo.

Desse modo, assim como do tom é inseparável um certo grau de altura, da matéria é
inseparável um certo grau de exteriorização da Vontade. O baixo contínuo é,
portanto, na harmonia, o que no mundo é a natureza inorgânica, a massa mais bruta,
sobre a qual tudo se assenta e a partir da qual tudo se eleva e desenvolve. Ademais,
no conjunto das vozes intermediárias que produzem a harmonia e se situam entre o
baixo contínuo e a voz condutora que canta a melodia, reconheço a sequência
integral das Idéias nas quais a Vontade se objetiva. As vozes mais próximas do baixo
correspondem aos graus mais baixos, ou seja, os corpos ainda inorgânicos, porém já
se exteriorizando de diversas formas. Já as vozes mais elevadas representam os
reinos vegetal e animal (SCHOPENHAUER, 2005, 339-340, grifo nosso).

Ao observarmos o que o filósofo alemão diz acerca da voz, é importante ter no


horizonte que “diferente de Kant, Schopenhauer identifica a coisa em si com a vontade”
(RUSSELL, 2013, p. 399). “Ora, como o querer é a essência do sujeito, é também a íntima
natureza do objeto. O homem é um feixe de vontades − e o mundo é uma imensa síntese de
querer. O mundo é um ininterrupto querer objetivado” (ROHDEN, 2008, p. 97). A partir dessa
perspectiva historicizada na formação discursiva em que o filósofo alemão encontra-se
inscrito, a voz é uma representação da vontade que, a depender do grau, da tonalidade, da
elevação e demais características acústicas, permite equivalências com outras vontades.
Assim, conforme o tipo vocal, grosso modo, existe a correspondência de vontades. É
admissível, então, a extração da relação da voz com a formação discursiva metafísica em

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Schopenhauer uma determinação da natureza biológica do sujeito em conexão com sua


vontade, porquanto a voz, via de regra, depende do aparelho fonatório orgânico (de uma
constituição genética passada aos seres da espécie humana) para ser emitida.

Não é sem razão que a voz ganha uma posição inusitada na produção discursiva de
Schopenhauer, pois para ele a vontade consegue abarcar a voz de tal maneira que fica nela
implícita a ideia de essência transcendental, isto é, a vontade que se manifesta na voz de cada
um é, entre outras coisas, a vontade cósmica exteriorizando-se. Portanto, a questão da “coisa
em si”, para o autor de “O mundo como Vontade e Representação”, está resolvida, porque diz
respeito fundamentalmente à vontade da qual derivam todos os fenômenos.
Consequentemente, a voz como uma unidade de discurso é revestida do sentido de vontade –
“A Vontade (com inicial maiúscula) é despropositada ou, como ele costuma dizer
“cega”’(WARBURTON, 2012, p. 15, aspas do autor) – que se relaciona com uma força
desejante por manter-se existindo e cujos contrastes podem ser percebidos como sendo a
origem da própria estética.

Um tanto diferente da abordagem de Schopenhauer sobre a voz, outro filósofo trata-a


sob uma formação discursiva fenomenológica. Jacques Derrida (1930-2004) em “A voz e o
fenômeno” descreve a voz como uma presença que está obliterada por um dado projeto
fenomenológico. É fundamentalmente significativo retomarmos o núcleo do trajeto temático
da fenomenologia, pois tal constrição discursiva tem repercussão direta no que Derrida
disserta acerca da voz. “Toda consciência, diz Husserl, é sempre “consciência de” ou
consciência de alguma coisa, isto é, toda consciência é um ato pelo qual visamos um objeto,
um fato, uma ideia. A consciência representa os objetos, os fatos, as pessoas” (CHAUÍ, 2009,
p. 79, aspas da autora). Para Derrida,

É essa universalidade que faz com que, estruturalmente e de direito, nenhuma


consciência seja possível sem a voz. A voz é o ser junto de si, na forma da
universalidade, como con-sciência. A voz é a consciência. No colóquio, a
propagação dos significantes parece não encontrar nenhum obstáculo, já que
relaciona duas origens fenomenológicas da auto-afeição pura. Falar a alguém é,
certamente, ouvir-se falar, ser ouvido por si, mas também, e, por isso mesmo, se se é
ouvido pelo outro, fazer com que ele repita imediatamente em si o ouvir-se-falar na
mesma forma em que eu o produzi. Repeti-lo imediatamente, isto é, reproduzir a
auto-afeição pura sem o auxílio de nenhuma exterioridade (DERRIDA, 1994, p. 90-
91, grifo nosso).

No excerto acima, a voz não se perde nos objetos nomeados por ela, tampouco nos
seus recortes, os fonemas e, ao mesmo tempo, guarda o sujeito como presença de si para si e
de si para o outro. A voz é a consciência que, de acordo a esta formação discursiva

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

fenomenológica determinadora do olhar para o objeto em questão, desvela o fenômeno da


linguagem na língua. Portanto, o filósofo francês retoma sob o prisma da fenomenologia a
linguisticidade da consciência como presença do elemento fundamental do signo no emprego
da língua para a descrição/intervenção do/no mundo. Assim, a importância do conceito de
signo não está na sua relação de comunicação indicativa de referências extralinguísticas, mas
na sua capacidade de assegurar a autopresença da consciência no momento da fala. Como
lembra Derrida: “Os signos fônicos (as ‘imagens acústicas’ de Saussure, a voz
fenomenológica) são ‘extensões’ do sujeito que as profere na proximidade absoluta de sua
presença” (DERRIDA, 1994, p. 86, aspas do autor).

A produção discursiva de Derrida, sobretudo a que trouxemos a partir de “A voz e o


fenômeno”, reveste a unidade discursiva da voz com o sentido de consciência. A formação
discursiva na qual se encontra o filósofo francês é responsável por deslocar a construção da
subjetividade ontológica da “consciência de” para a fundamentação da voz como responsável
por instituir uma consciência de si. Desse ponto de vista, a voz é tratada como indício da
consciência que se espraia na composição da subjetividade, entretanto, parece ser apenas
posterior à entrada da alteridade no processo de estruturação da subjetividade na relação entre
“o eu com o tu”. Portanto, ao avançarmos na interpretação da voz como unidade discursiva no
interior da concepção de Derrida acerca desse fenômeno, encontramos a voz participando de
um tipo de consciência primeira que, por sua vez, tem uma série de implicações para as
ciências da linguagem. Porém, interessa-nos justamente a condição para a qual a voz é
elevada e os sentidos que advém desse alçamento que, neste caso, voltam-se à consciência ou,
dito de outro modo, para a voz como consciência.

Portanto, é possível afirmar que a voz na formação discursiva fenomenológica de


Derrida recebe o estatuto de consciência. Assim, a voz, entre as muitas unidades discursivas
rastreadas, é a própria consciência que se objetiva pelo objeto da língua falada. Portanto, no
tracejar das produções filosóficas e dos encontros e desencontros de formações discursivas, a
voz como unidade discursiva alcança com Derrida seu patamar mais elevado dentro das
reflexões tecidas no campo da Filosofia. Diante dessa última unidade discursiva que
extraímos do discurso filosófico, encerramos este percurso que demonstra, entre outras coisas,
a produção filosófica, no transcorrer de sua história, integrante de palavras que vivificam
quem as expressa, como um candeeiro iluminando a escuridão quando da busca de algo
significativo.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Considerações preliminares

Por termos no horizonte os limites do empreendimento aqui realizado, obtivemos os


necessários contrastes de cuja consecução nosso objetivo tinha fundamentalmente como alça
de mira. Pois, um trajeto da voz como unidade no discurso filosófico foi percorrido com o
objetivo de compreender os sentidos da voz e como esses foram construídos e disseminados
no campo da Filosofia, por meio dele vimos de acordo com as formações discursivas
específicas como a voz foi tratada, usada e representada por filósofos em suas obras, seguindo
uma cronologia mais ou menos canônica na história desse domínio. Portanto, logramos
depreender a multiplicidade de sentidos por meio da qual a voz como unidade discursiva foi
descrita, manifestada e exposta ao longo de variadas produções filosóficas.

Tracejamos nosso itinerário alicerçado nas noções de formação discursiva e unidades


de discurso oriundas de uma compreensão arqueológica dos discursos. As formações
discursivas possibilitaram-nos entrever, nos enunciados nos quais o elemento voz estava
presente, “os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas”
(FOUCAULT, 2012, p. 43) direcionadas por sistemas de constituição e constrição de sentidos
vinculados a matrizes epistemológicas relativamente distintas. As unidades de discurso, tais
como descritas por Foucault (2012), permitiram-nos observar, refletir, e analisar o que podem
constituir possíveis continuidades e descontinuidades quanto aos dizeres sobre a voz,
especialmente no discurso filosófico. Portanto, foi precisamente no emprego colaborativo
entre essas duas noções que conseguimos extrair do discurso filosófico múltiplos sentidos
existentes para voz, percebendo tanto continuidades quanto descontinuidades em suas
aplicações.
A análise das descontinuidades, ao contrário, procura antes fazer surgir a coerência
interna dos sistemas significantes, a especificidade dos conjuntos de regras e o
caráter de decisão que elas assumem em relação ao que deve ser regulado, a
emergência da norma acima das oscilações funcionais (FOUCAULT, 1999, p. 495-
496, grifo nosso).

Diante dessa observação e de suas ressonâncias em nosso percurso acerca da voz,


compreendemos que as formações discursivas eram responsáveis pela relação de
continuidades e descontinuidades nos sentidos dispensados à voz, formatando-a como uma
unidade discursiva com seu significado relativamente particular. Entretanto, também foi
possível depreender regularidades até mesmo nas descontinuidades no tratamento dado à voz,
pois, mesmo que as formações discursivas fossem antagônicas, pareceu haver algo de próprio
dela a ser quase sempre levado em consideração quando ela era trazida para algum tipo de

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

reflexão. Desse modo, a unidade discursiva voz recebeu em praticamente todas as obras
recenseadas o sentido de veículo de comunicação.

Além disso, ao rastrearmos, no interior do discurso filosófico, a voz como unidade


discursiva, encontramos variados sentidos para constituir seus limites, como veículo físico e
metafísico de comunicação, como expressão dos sentimentos e pensamentos, como
capacidade de socialização, entre outros. Todavia, ficou patente ao longo de nossa
investigação que a voz não fora considerada objeto de alcance filosófico, posto somente haver
em Derrida, “A voz e o fenômeno”, uma verticalização das reflexões acerca da voz e suas
repercussões no homem. Dessa constatação, é possível extrairmos uma série de inferências
que não mudam o fato de que a voz apenas recentemente passou a receber a atenção
necessária para compreendemo-la como um fenômeno digno de ser objeto de reflexão e
pesquisa por parte das ciências humanas. Sobretudo à história das ideias linguísticas para a
qual acreditamos ter deixado alguma contribuição com o empreendimento aqui levado a
termo.

Referências

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

A VOZ NA PSICANÁLISE: UM TRAJETO DA VOZ COMO UNIDADE


NO DISCURSO PSICANALÍTICO

Considerações iniciais

A escrita foi, em sua origem, a voz de uma pessoa ausente,


e a casa para moradia constituiu um substituto do útero
materno, o primeiro alojamento, pelo qual, com toda
probabilidade, o homem ainda anseia, e no qual se achava
seguro e se sentia à vontade. (FREUD, O mal-estar na
civilização)

A voz das sereias foi alvo do interesse de Ulisses, porque nela havia algo de
enlouquecedor. A voz é um dos caminhos através do quais se chega ao outro e nele se faz
engendrar sentidos; a voz carrega grande parte da potencialidade comunicativa da espécie
humana por externar estados de espírito, sentimentos e sentidos; a voz, como Ulisses
possivelmente a percebera a ponto de querer ouvir as sereias, encontra um eco ao ser ouvida,
podendo ser esse interiorizado como uma imagem de seu produtor. Portanto, com a segurança
de estar amarrado ao mastro do navio, justifica-se a pretensão do herói da Odisseia em ouvir a
voz de seres cujo efeito pode levar à sandice. Assim, ao observamos a razão do
comportamento de Ulisses, encontramos, entre outras coisas, um desejo por compreender a
repercussão da voz e como essa pode exercer tamanho poder sobre os sujeitos.

As propriedades da voz e seu funcionamento, para além do discurso mítico, exercem


fascínio em praticamente todos que lhe pesaram a força comunicativa. Em vista disso e
jugando os atributos encontrados nas unidades de discurso no interior do discurso da oratória
(SOARES, 2019), empreendemos um percurso congênere, guardadas as devidas proporções,
no tocante ao discurso psicanalítico. Desse modo, com o objetivo de compreender os sentidos
da voz e como esses são produzidos e disseminados no campo da Psicanálise, verificaremos, a
partir de como a voz é tratada, usada e representada por psicanalistas em suas obras, um
trajeto acerca da voz, seguindo um desenvolvimento não linear na Psicanálise. Para tanto,
faremos uso do aparato teórico-metodológico da Análise do Discurso, sobretudo da noção de
unidades de discurso oriunda da arqueologia foucaultiana.

Por serem concebidas como não lineares e sim dispersas, não dadas a priori em
conformidade com rótulos institucionais ou campos disciplinares do saber, as
unidades do discurso têm plasticidade o suficiente para serem investigadas de

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

acordo com critérios não apenas de semelhanças e de afinidades (SOARES, 2019, p.


270).

“Aparece, assim, o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos como


horizonte para a busca das unidades que aí se formam” (FOUCAULT, 2012, p. 32, grifo
nosso). Com essas exposições, percebemos que as unidades do discurso encontram-se no
interior de uma matriz epistemológica segundo a qual o discurso funciona de acordo com o
próprio funcionamento social, situando-se na esfera da qual se emana o poder em todo o
circuito constitutivo da sociedade e, “(...) coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não
simplesmente em suas "aplicações práticas"), a questão do poder; um bem que é, por natureza,
o objeto de uma luta, e de uma luta política” (FOUCAULT, 2012, p. 148, aspas do autor). Em
vista disso, o discurso é “um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma
formação discursiva” (FOUCAULT, 2012, p. 131). Diante da materialização do poder nas
formas de uso, emprego e manifestação do discurso, as próprias unidades do discurso estão
sujeitas as mesmas forças a partir das quais o discurso veicula-se e se expressa, de maneira
que as unidades do discurso, então, viabilizam uma análise para um trajeto temático de um
objeto preciso no interior de uma determinada formação engendrada por um certo domínio
associado.

No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,


semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade
(uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por
convenção, que se trata de uma formação discursiva (…) (FOUCAULT, 2012, p. 43,
grifos do autor).

Segundo essa descrição, a formação discursiva concerne ao itinerário composicional


que delineia sentidos produzidos pelos/nos enunciados que, por sua vez, marcam
posicionamentos a partir tanto das escolhas dos objetos quanto de como esses são alvo dos
sistemas de disseminação de sentidos no circuito social. Portanto, é a formação discursiva
coordenadora dos sentidos por ela veiculados no interior de um discurso. Consequentemente,
podemos, conforme tal compreensão do discurso e da formação discursiva, pinçar do discurso
psicanalítico, dentro de determinadas formações discursivas, a voz como unidade de discurso
capaz de responder às determinações históricas operadas pela densidade e articulação interna
do aparato psicanalítico. Portanto, é nas unidades de discurso que podemos encontrar dizeres
sobre a voz em um campo como a Psicanálise; é através da formação discursiva que podemos
distinguir quais sentidos definem a voz no interior do discurso psicanalítico.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Como objetivamos compreender os sentidos da voz e como esses são construídos e


disseminados no domínio da Psicanálise, além de visar contribuir para a história das ideias
linguísticas no que concerne aos discursos sobre a voz, investigamos em várias obras o que se
diz sobre a voz através de uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo em cuja
metodologia extraída da Análise do Discurso consiste em rastrear e interpretar as unidades de
discurso, tal como a realizado por Soares (2019). Para a execução desse procedimento, este
artigo organiza-se de forma elementar, pois contém unicamente a próxima seção na qual
investigamos a existência e o funcionamento das unidades de sentido acerca da voz em obras
de cunho psicanalítico e destacamo-la por meio de negrito para, em seguida, nas
considerações finais apreciarmos, avaliarmos e pesarmos a trajetória aqui percorrida.

Unidades de discurso da voz na psicanálise

O inconsciente tem variadas formas de manifestação de acordo com a Psicanálise.


Sigmund Freud (1856-1939) descobriu-o em sua prática médica quando lidava com certas
paralisias cujas causas não remetiam a desordens fisiológicas. Diante desse quadro no qual o
teor perceptível da origem de inúmeras enfermidades está intimamente conectado ao
funcionamento aparente do corpo, qualquer sintoma sem uma explicação tradicionalmente
organicista era tomado como histeria. “Às paralisias dos membros deve-se acrescentar a afasia
histérica, ou, mais corretamente, a mudez, que consiste numa incapacidade de produzir
qualquer som articulado ou [mesmo] de executar movimentos da fala sem voz” (FREUD,
1996, Vol. I, p. 83). Tais problemas sem claras razões motivadoras foram investigados por
Freud sob a ótica do inconsciente, fundando, assim, a Psicanálise. Nessa ocasião, a voz
começa a receber atenção por tratar-se de um objeto segundo o qual recaem alguns sintomas.

Portanto, um dos principais arregimentadores da formação discursiva psicanalítica e,


consequentemente, do discurso psicanalítico é o conceito de inconsciente, pois dele emana o
aparato tanto teórico quanto prático da Psicanálise. Independentemente do autor/analista, se
sua filiação é psicanalítica, o inconsciente faz parte integrante de sua formação discursiva, de
tal modo que se torna possível asseverar que essa noção é fundante do discurso psicanalítico.
“O inconsciente freudiano é, em primeiro lugar, indissoluvelmente uma noção tópica e
dinâmica que brotou da experiência do tratamento” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983, p.
307, grifo dos autores). Dessa forma, para nosso objetivo de compreender os sentidos da voz e
como esses são produzidos e disseminados no campo da Psicanálise, analisamos como a voz é

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

trazida à tona quando certos fenômenos de origem inconsciente são descritos, assim, faz-se o
caminho mais viável para a realização de nosso intento.

Diante desse quadro, encontramos a exposição acerca da ocorrência paranoica de


alucinações auditivas sobre as quais uma espécie de afeto reprimido manifesta-se sob a forma
da audição de vozes. Freud a esse respeito declara:

As partes das lembranças que retornam sofrem uma distorção ao serem substituídas
por imagens análogas, extraídas do momento presente - isto é, são simplesmente
distorcidas por uma substituição cronológica, e não pela formação de um substituto.
As vozes, igualmente, lembram a autocensura, como sintoma de compromisso, e o
fazem, em primeiro lugar, distorcidas em seu enunciado a ponto de se tornarem
indefinidas e de se transformarem em ameaças; e, em segundo lugar, relacionadas
não com a experiência primária, mas justamente com a desconfiança - isto é, com o
sintoma primário (FREUD, 1996, Vol. I, p. 274, grifo nosso).

Segundo esse excerto integrante do discurso psicanalítico, a voz nesse estado de


alucinação é percebida como uma internalização severa do afeto conservado e projetada na
consciência do sujeito que, ouvindo o recalcado, busca defender-se a partir da autocensura
que sofre dessas vozes. “Daí decorrem os aspectos característicos comuns da neurose: a
importância das vozes como meio pelo qual as outras pessoas nos afetam, e também dos
gestos, que nos revelam a vida mental das outras pessoas” (FREUD, 1996, Vol. I, p. 275).
Portanto, é possível, nesse cenário, conceber a voz tanto como uma via de relação com o outro
quanto um recurso através do qual o inconsciente expressa-se na consciência do sujeito. Nesse
caso, a voz é uma unidade de discurso que se traduz como condutora externa e interna, pois
transmite algo a alguém e também comunica conteúdos inconscientes à consciência.

Assim, as vozes deviam sua origem ao recalcamento de representações que, em


última análise, eram de fato auto-acusações por experiências que eram análogas a
seu trauma infantil. Por conseguinte, as vozes eram sintomas do retorno do
recalcado. Ao mesmo tempo, porém, eram consequência de uma formação de
compromisso entre a resistência do ego e o poder do retorno do recalcado (FREUD,
1996, Vol. III, p. 181, grifo nosso).

Vemos, desse modo, que mesmo antes da implementação da matriz edipiana na


consolidação da tríade, id, ego e superego, a voz já consta como objeto a partir do qual o
sintoma poderia manifestar-se. Dito isso, a inquietante narrativa a respeito de Édipo para
Freud tem enorme potencial heurístico no tocante à descrição do drama constitutivo dos
sujeitos. “E há realmente um fator dessa natureza envolvido na história do Rei Édipo. Seu
destino comove-nos apenas porque poderia ter sido o nosso - porque o oráculo lançou sobre
nós, antes de nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele” (FREUD, 1996, Vol. IV, p.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

289). O complexo de Édipo trata-se, então, de uma composição polifônica inerente às


estruturas inconscientes. Em outros termos, uma só voz consubstancializa, a um só tempo,
três vozes, isto é, a voz da mãe e a voz do pai na voz do sujeito.

Ao estarmos frente a essa observação oriunda do discurso psicanalítico, é necessário


voltarmos a atenção à gênese da elaboração simbólica da tríade edipiana e percebermos que o
recém-nascido entra em contato primeiramente com a voz materna. “La voz materna es, pues,
la primera voz que el niño escucha. Lo primordial para él es la voz materna y la sonorización
musical de su alienta, a la que queda adherido a partir de su llegada al mundo” 2
(ABÉCASSIS, 2005, p. 97). Portanto, é possível afirmar que a voz materna, que não
necessariamente é a voz da mãe biológica, introduz o recém-nascido na sonoridade do mundo,
diferenciando-se dos demais sons pela sua anterioridade e, consequentemente, continuidade.
Em concordância com essa produção discursiva, a voz da mãe é uma voz que embala, uma
voz que acolhe e também uma voz que imprime “coragem”; é a voz maternal com a qual se
pode contar para receber os primeiros cuidados. Consequentemente, é legítimo afirmar que a
voz como unidade de discurso aqui é tomada como cuidado (inicial).

Contrariamente a essa voz aconchegante encontra-se o grito cuja expressão de sentido


é a primeira forma assumida pela voz infantil. No grito, há a demanda por cuidado, há uma
manifestação mais ou menos primitiva de sentimento e há uma tomada de consciência dos
limites da própria voz. Entretanto, em nosso rastreamento da voz como unidade de discurso
no interior do discurso psicanalítico, conseguimos perceber o grito abordado nesse campo
somente mais adiante. Portanto, essa constatação abre margens para compreensão do
fenômeno do uso da voz presente no grito como algo já dado no início das produções
psicanalíticas. Diversamente do que acontece com a voz do pai por ganhar destaque nas
produções discursivas na área psicanalítica, sobretudo como metáfora explicativa. É desse
modo que a voz paterna configura a tríade segundo a qual cada um, criança, mãe e pai,
desempenha um papel simbólico cujos efeitos parecem organizar as instâncias inconscientes.

(...) o pai entra em jogo, isso é certo, como portador da lei, como proibidor do objeto
que é a mãe. Isso, como sabemos, é fundamental, mas está totalmente fora da
questão, tal como esta é efetivamente introduzida para a criança. Sabemos que a
função do pai, o Nome-do-Pai, está ligada à proibição do incesto, mas ninguém
jamais pensou em colocar no primeiro plano do complexo de castração o fato de o
pai promulgar efetivamente a lei da proibição do incesto (LACAN, 1999, p. 193-
194).

2Em tradução livre: “A voz da mãe é, então, a primeira voz que a criança ouve. O principal para ele é a voz da
mãe e a sonorização musical de seu encorajamento, a que permanece ligado a partir de sua chegada ao mundo”.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Em consonância com o enunciado de Lacan, a voz do pai é um tipo de metáfora


empregada para explicar um projeto de lei segundo o qual o inconsciente precisa modelar-se,
de maneira que a voz passa a ser concebida como um tipo de eco de uma organização tanto
social quanto psicológica. A partir dessa perspectiva, a voz paterna, então, representa a
separação do sujeito de sua mãe e, ao mesmo tempo, instaurada da lei de proibição do
primeiro objeto de desejo, a própria mãe. Consequentemente, para o discurso psicanalítico a
entrada do pai na relação simbiótica do filho com a mãe estabelece uma contradição essencial
a partir da qual a descontinuidade será um lugar de realização do desejo.

Ainsi la voix est ce qui fait obstacle à la réalisation de l'image étouffante de la mère
dans le corps; c'est la voix en tant qu'elle est quelque part porteuse de la loi et agent
du nom du père. Por elle, se crée l'espace symbolique de la parole où vient se
précipiter le désir du sujet (VASSE, 2010, p. 69)3.

Como é possível depreender do trecho acima, a voz da mãe distingue-se da voz do pai
por ser um tipo de continuidade na qual a fala e seus elementos significantes não têm espaço
de produção contrastiva. Assim, reconhecemos que a voz como unidade de discurso no
interior da produção da Psicanálise recebe contornos diferentes conforme a formação
discursiva a qual está vinculada, porém sempre ancorada no núcleo discurso traduzido pelo
inconsciente. Tal manifestação da voz como unidade discursiva encontra-se em: “De la voz de
la madre, el niño sólo aprende a ser con, a unirse, a fusionarse e a significar la continuidad
natural. De la voz del padre, aprende a ser él mismo, a respetar la distancia e la diferencia”
(ABÉCASSIS, 2005, p. 106).4 Com isso, a unidade discursiva da voz recebe um traço
semântico peculiar, porquanto diz respeito ao seu funcionamento contrastivo na discrição dos
limites do sujeito com o mundo.

De acordo com o funcionamento do contraste da voz como unidade do discurso no


interior da Psicanálise, tanto a voz materna quanto a voz paterna são fundamentais na
constituição simbólica do inconsciente exercendo cada qual seu papel: continuidade na voz
materna, descontinuidade na voz paterna. Portanto, tal configuração dada à voz parece
compor a própria dialética inerente à fala, que, por sua vez, é voz articulada através de
fonemas, de morfemas e de sintagmas em eixos que se cruzam, sintagmático e paradigmático,
3Em tradução livre: "Assim, a voz faz obstáculo à realização da imagem sufocante da mãe no corpo; a voz em si
é uma portadora da lei e agente do nome do pai. Por ela se cria o espaço simbólico da fala onde vem se precipitar
o desejo do sujeito".
4Em tradução livre: "Da voz da mãe, a criança só aprende a ser com, a unir-se, a fusionar-se e a significar a
continuidade natural. Da voz do pai, aprende a ser ele mesmo, a respeitar a distância e a diferença".

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

em um constante diálogo entre continuidade e descontinuidade. Assim, a concepção


contrastiva da voz como unidade de discurso vai ao encontro do discurso da linguística
moderna (SOARES, 2020) segundo o qual a voz é a base para que a língua realize-se como
veículo de sentidos.

A partir dessa constatação da voz como unidade de discurso significando contraste, é


possível perceber a voz no interior do discurso psicanalítico como carregada da dialética do
que se pode chamar de pulsões que interagem na diferenciação do sujeito de seus pais, de
maneira a imprimir-lhe os contornos das instâncias: id, ego e superego. Nesse diapasão, como
podemos depreender do discurso psicanalítico, a voz materna instala-se na primeira região, id,
na qual se vincula ao desejo de cuidado não apenas biológico como também afetivo. Da voz
paterna, em especial, surge a fundação do superego por se tornar a lei a partir da qual o
controle pulsional se dá, porquanto nela funciona o efeito da proibição. “La voz, la del
Superyó, es decir, la del padre y de todos quienes cumplieran esa función en la história del
niño, está vinculada, pues, por sí misma, con la pulsión y con lo prohibido” (ABÉCASSIS,
2005, p. 117)5. Assim, para a Psicanálise, é dessa imbricada relação plurivocal que emerge a
voz do ego integrando a voz materna e a voz paterna em um movimento inconsciente de
diálogos e duelos.

Em decorrência da unidade de discurso voz ser metaforizada como um índice de


funcionamento dicotômico do inconsciente, tem-se outra vez a voz como contrastiva, não
mais da cadeia de significantes, ao encontro do discurso da linguística moderna, mas das
pulsões psíquicas existentes no sujeito. Diante da repercussão das vozes, materna e paterna,
na formação do sujeito, a produção psicanalítica de Lacan aprofunda a compreensão acerca da
voz e designa-lhe como parte do objeto a. “São os objetos a: os seios, as fezes, o olhar, a voz.
É nesse termo novo que vige o ponto que introduz a dialética do sujeito enquanto sujeito do
inconsciente” (LACAN, 1998, p. 228-229). Conforme o discurso psicanalítico no qual se
insere a compreensão do objeto a, o gesto interpretativo presente na formulação de Lacan
determina o objeto a como representante do exame dos objetos pulsionais, isto é, ao observar-
se o “vazio” expresso por cada integrante do objeto a, verifica-se a falta neles responsável
pela causa do desejo.
O seio é objeto a na medida em que “especificado na função do desmame, que
prefigura a castração”; e o excremento, na medida em que, diz Lacan, trata-se do
objeto que o sujeito “perde por natureza”. O olhar e a voz, igualmente, presentificam
tal perda, posto que representam “suportes que [o sujeito] encontra para o desejo do

5Em tradução livre: "A voz, a do Superego, isto é, a do pai e de todos aqueles que cumpriram essa função na
história da criança, está ligada, então, por si mesma, com a pulsão e com a proibição".

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Outro”. E a pulsão é concebida como um percurso que se ocupa em rodear esses


objetos para “neles resgatar, para restaurar em si sua perda original” (JORGE, 2008,
p. 52, aspas do autor).

Como se verifica do exposto, no inconsciente existe um funcionamento segundo o


qual a falta produz, entre outras coisas, o desejo. Nesse sentido, pode-se afirmar que a falta
inerente ao objeto a é estruturante do regime pulsional que, por sua vez, organiza a linguagem
do inconsciente em torno de sua própria hiância (um tipo de falta constitutiva que produz
efeitos constantes no funcionamento psíquico do sujeito). Aqui, deparamo-nos com o dizer no
discurso psicanalítico de incontornável acerca do objeto a, sua conexão simultânea com o
real, o simbólico e o imaginário6, o RSI para uma determinada formação discursiva derivada
dos trabalhos de Lacan. Desse ponto de vista, a voz como unidade de discurso está vinculada
a um aparato conceitual sendo dele efetivamente um objeto teórico segundo o qual se localiza
parte do desejo pulsional do sujeito, porquanto a voz é algo que falta e, precisamente por isso,
é desejada.

O real, o simbólico e o imaginário, o RSI, no interior de uma formação discursiva


psicanalítica, ao demonstrar a complexidade com a qual estão interligados esses elementos,
denomina como nó borromeano, que constitui o sujeito do inconsciente. Portanto, a voz nessa
configuração (o real, o simbólico e o imaginário) deriva da articulação dos três registros
essenciais da realidade humana (LACAN, 2005): real, simbólico e imaginário, cada qual um
anel da tríplice aliança cujo ponto de intersecção é justamente o objeto a. Para tal formação
discursiva, somente o objeto a participa integralmente do RSI e, por conseguinte, a voz é
integrante, ao mesmo tempo, do real, do simbólico e do imaginário. A forma segundo a qual o
imaginário parece estabelecer-se orienta o desenvolvimento do ego em seu caráter
nuclearmente narcísico. Nesse ponto da constituição do discurso psicanalítico, é trazida à tona
a noção de “estádio do espelho” para dar conta das mais primitivas identificações do sujeito.

Nisso consiste a identificação da criança com a imagem do espelho, que chega a não
poder distinguir-se dela até que seu eu consiga se desprender; nessa circunstância, a
imagem reforça a experiência da intrusão, acrescentando-lhe uma tendência estranha
que Lacan chama de a "intrusão narcísica": "a unidade que ela introduz nas
tendências contribuirá no entanto para a formação do eu. Mas, antes de afirmar sua
identidade, o eu se confunde com essa imagem que o forma, mas o aliena
primordialmente (KAUFMANN, 1996, p. 158, grifos do autor).

6É interessante tocarmos no ponto em que o registro imaginário dialoga com um dos conceitos muito criticados
em Análise do Discurso, formações imaginárias (cf. "Análise automática do discurso" de Michel Pêcheux). Diz-
se acerca dele que existe um psicologismo interpretacionista na projeção dos sujeitos no discurso, porém, ignora-
se que o psicologismo está justamente em sua descrição conceitual, não em sua aplicação metodológica, pois as
formações imaginárias estão subordinadas, em última instância, às formações discursivas, isto é, ao complexo
com dominante.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Diante da consideração de uma fase segundo a qual existe a configuração da unidade


do “eu”, o estádio do espelho é o núcleo narcísico onde se observa a voz como invocante, não
com reflexo condicionado à imagem de si, porquanto “A voz não é especular, ela não tem
representação e ela está disjunta de sua representação sonora” (PORGE, 2014, p. 102). A voz,
de acordo com essa perspectiva, invoca e, com isso, ganha seu espelhamento na medida em
que se torna objeto transicional do ego com o outro. Em face desse cenário no qual o
imaginário permite a instauração do reconhecimento da voz do outro como objeto de desejo.
Cumpre, então, aprofundar a estrutura através da qual a voz do inconsciente institui-se. Com
isso, a metáfora da voz paterna é o conceito, segundo o discurso psicanalítico, que aborda o
complexo de Édipo e, consequentemente, a castração. “No âmbito de sua teoria do
significante e de sua tópica (imaginário, real e simbólico), definiu-se o complexo de Édipo
como uma função simbólica: o pai intervém sob a forma da lei, para privar a criança da fusão
com a mãe” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 168).

Com base na constituição do sistema do inconsciente no interior do arcabouço


discursivo da Psicanálise, parece surgir do real a causa do desejo, do sujeito e do gozo e,
então, também a gênese do sofrimento. Nesse sentido, o real por si não se encontra acessível
ao sujeito cognoscente, portanto, manifesta-se no jogo em que intervêm o simbólico e o
imaginário. De acordo com esse viés psicanalítico, a voz, no âmbito do real, é cercada pelo
significante da fala, isto é, ordena-se conforme uma determinada lei, conceituada por Lacan
de Nome-do-Pai. “O pai é de fato o genitor. Mas, antes que o saibamos de fonte segura, o
nome do pai cria a função do pai” (LACAN, 2005, p. 47). “La voz paterna és la que lleva el
significante de la ley mediante la cual el padre incita al niño a conquistar su estatus de sujeito”
(ABÉCASSIS, 2005, p. 135)7. Em vista dessa verticalização da metáfora conceitual do
“Nome-do-Pai”, é possível reconhecer na voz a articulação de sentidos cujo funcionamento
estruturante volta-se para a composição do “Nome-do-Pai”.

E no lugar onde se manifesta a castração no Outro, onde é o desejo do Outro que é


marcado pela barra significante, aqui, é essencialmente por intermédio disso que,
tanto no homem quanto na mulher, introduz-se esse algo específico que funciona
como complexo de castração (LACAN, 1999, p. 361).

No rastro dessa descrição do funcionamento do “Nome-do-Pai”, a voz, que no lastro


discursivo da Psicanálise é uma expressão real, simbólica e imaginária do sujeito, externaliza
com suas propriedades a clivagem própria da constituição do inconsciente no qual o complexo

7Em tradução livre: "A voz do pai é aquela que carrega o significante da lei mediante a qual o pai incita a
criança a conquistar seu status como sujeito".

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

de castração efetua-se em “Nome-do-Pai”. Ora, segundo essa perspectiva de constituição


inconsciente do sujeito, a voz põe em marcha um conjunto de forças das quais recebe
conteúdos diversos, como, por exemplo, de objeto transicional e de invocante, entretanto, é na
hiância gerada pela castração que se realiza a voz. No interior do discurso psicanalítico a voz
como unidade de discurso é uma espécie de realização da falta.

Podemos partir da abordagem fenomenológica para situar a relação com a voz do


Outro como objeto caído do Outro, mas não podemos esgotar sua função estrutural a
não ser dirigindo a interrogação para o que é o Outro como sujeito. Com efeito, se a
voz é o produto, o objeto caído do órgão da fala, o Outro é o lugar onde isso fala
(LACAN, 2005, p. 71, grifo do autor).

Na fala, portanto, parece ocorrer uma sequência ordenada de atos implicados à voz; a
sua direcionalidade é o “Outro”, índice de falta; ao ser lançada no espaço enunciativo, como
uma extensão do sujeito, sinaliza uma perda; a despeito das marcas de falta e de perda,
originárias da castração, a voz realiza uma verdadeira prática heroica, seu próprio sacrifício.
“On peut donc véritablement parler, en l'occurrence, de sacrifice: le sacrifice de la voix qu'il
convient d'accomplir pour prendre la parole” (POIZAT, 2001, p. 132)8. Diante dessa
conjuntura engendrada pelo discurso psicanalítico, é difícil negar que haja o sacrifício da voz,
pois ela está sob empenho a todo o momento e simultaneamente submete-se aos registros do
real, do simbólico e do imaginário como objeto a.

Dadas às características do inconsciente presentes na voz segundo o discurso


psicanalítico, cremos ser fundamental, sobretudo para a investigação aqui em curso, nos
voltarmos para o seu principal alvo, a audição, porquanto é nela que se efetiva a voz. Ou seja,
o que se diz do ouvir no discurso psicanalítico que implica necessariamente dizer da voz e,
com isso, viabiliza uma possível fundação de significado da voz como unidade de discurso.
“Os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar.
Enquanto se fazer ver se indica por uma flecha que verdadeiramente retorna para o sujeito, o
se fazer ouvir vai para o outro” (LACAN, 1998, p. 184, grifos do autor).

Portanto, segundo uma determinada formação discursiva psicanalítica, a voz tem em si


a capacidade penetrativa que, conforme as forças e os conteúdos que arregimenta, pode
instalar-se na continuidade da sedução materna ou na limitação do excesso de gozo no sentido
que o discurso da Psicanálise predica-o. Desse modo, a voz como afetação do outro no qual o
sujeito do inconsciente é mobilizado retoma, ainda que parcialmente, a estrutura dialética das

8Em tradução livre: "Podemos, portanto, realmente falar na ocorrência de sacrifício, o sacrifício de voz que deve
ser feito para tomar a fala".

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

vozes materna e paterna. Sendo a partir dessa plurivocalidade que se constitui tanto o sujeito
quanto o “Outro”, a sua conservação, em maior ou menor grau, mantém-se na própria
disposição da interpretação das vozes cujo eco faz sentir no funcionamento da estrutura do
inconsciente. Por conseguinte, a voz como unidade de discurso no interior do discurso
psicanalítico significa não apenas falta, mas também um elo a partir do qual os sujeitos
conseguem produzir ecos nos outros.

"La voz es invocación, es decir, se dirige a otro, se direge a outro: implica una
alteridade, un sujeto o un individuo llamado a serlo al responder a ese llamado"
(ABÉCASSIS, 2005, p. 162)9. Com base nesta visão, a voz, participando dos três registros
psíquicos, invoca, chama e assombra o sujeito em seu funcionamento inconsciente. Para a
Psicanálise, no imaginário, a voz é o elemento da sedução e do encantamento, é o que provoca
o gozo. É a voz em suas idiossincrasias representadas no imaginário que cria traços de
identificação de mulher, de homem ou de criança. Um tanto diferente do aspecto simbólico no
qual age a interdição da voz do pai para a produção da cadeia significante; observa-se aí a
dialética segundo a qual o imaginário e o simbólico constituem a voz, de tal maneira que haja
uma indissociabilidade entre ambos para o sujeito do inconsciente.

E, no real, a voz está desprendida dos significantes, é o puro som, é o grito. Algo que
conduz a um sem sentido, uma vez que não se veicula significantes, nem mesmo
signos, é um puro som, um grito que desconcerta, sem sentido. A voz, articulada
com o real, não é o especular e imaginário campo da identificação vocal, nem
mesmo o significante campo simbólico em que a voz se empresta à fala para
veicular significantes. A voz, no real, é o que está fora da cadeia, é o grito, que
coloca a dimensão do impossível, do puro som, do canto estridente da soprano que
foge da transmissão da palavra e da fala. É o gozo do objeto pulsional que engendra
a pulsão invocante, da qual a voz é o seu objeto. A voz real é também aquela do
delírio psicótico, em que, uma vez não simbolizada, retorna no real alucinatório da
voz do pai (MALISKA, 2008, p. 163).

Em vista da tríade na qual a voz encontra-se disposta no interior do discurso


psicanalítico, é inviável acreditarmos que seja possível ou necessário decompô-la, pois ao
sujeito do inconsciente o RSI funciona simultaneamente, conseguindo interpretar cada voz em
suas respectivas funções conforme seus registros. Todavia, como bem lembra Maliska, a voz
real não é apenas pura voz, é também a voz do delírio psicótico, isto é, "A alquimia do
estranho, que transforma o simbólico em real e o pai em voz, subverte a estrutura do sujeito"
(RABINOVITCH, 2001, p. 96). Diante da forma com a qual a voz torna-se uma unidade de
discurso tanto explicativa do funcionamento do inconsciente quanto acesso ao outro,
9Em tradução livre: "A voz é invocação, quer dizer, dirige-se a outro: implica uma alteridade, um sujeito ou um
indivíduo chamado a sê-lo ao responder a esse chamado".

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

lembramo-nos da Odisseia quando Ulisses faz um enorme esforço para ouvir a voz das
sereias.

Vozes que, de acordo com a concepção lacaniana de real, eram do delírio ou


responsáveis, através de seu eco no inconsciente, por desorganizar o real, o simbólico e o
imaginário. O herói da Odisseia, ao que conta a narrativa, não sofreu perturbações advindas
do episódio no qual ouvira o canto das sereias. O rei de Ítaca "superou" a doce voz das sereias
porque as ouviu cantar quando se encontrava amarrado ao mastro do navio. Esse fato por si só
demonstra o potencial encantador e ao mesmo tempo enganador da voz das sereias.
Atualmente existe um considerável contingente de vozes capazes de subordinar o sujeito, no
entanto para o discurso psicanalítico, a voz do inconsciente continua predominante. Portanto,
a voz como unidade de discurso no interior do discurso psicanalítico atravessa uma série de
concepções para significar algo de conteúdo inconsciente, já que esse é o núcleo estruturante
da arquitetura discursiva da própria Psicanálise.

Considerações preliminares

Tomamos o objetivo de compreender os sentidos da voz e como esses são produzidos


e disseminados no campo da Psicanálise, verificamos, a partir de como a voz é tratada, usada
e representada por psicanalistas em suas obras, um trajeto acerca da voz, seguindo um
desenvolvimento não linear na Psicanálise, porquanto não nos fixamos em nem um autor, nem
em nenhuma obra, mas no discurso psicanalítico em sua mobilidade significativa. Assim, é
possível afirmar que uma parcela do discurso psicanalítico trata a voz ora como um veículo a
partir do qual os sujeitos comunicam-se, ora como uma metáfora explicativa baseada em
instâncias estruturantes do funcionamento do inconsciente. Com efeito, a voz como unidade
de discurso não é um fenômeno cujo sentido seja invariável, como pudemos perceber.

Por meio das noções de discurso, formação discursiva e unidade de discurso, oriundas
da arqueologia foucaultiana, conseguimos aferir alguns dos sentidos que a voz como unidade
do discurso psicanalítico adquiriu em sua constituição significativa. A voz como uma unidade
de discurso foi percebida como condutora externa e interna, pois é responsável por transmitir
algo a alguém e também comunicar conteúdos inconscientes à consciência. A voz como
unidade de discurso também foi tomada como cuidado (inicial) advindo da relação da mãe
para com seu filho ou filha. A voz foi empregada como um tipo de metáfora para explicar um

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

projeto de lei segundo o qual o inconsciente precisa modelar-se, de maneira que a voz passe a
ser um tipo de eco de uma organização tanto social quanto psicológica do sujeito.

Dentre as demais significações da voz como unidade de discurso, encontramos a


configuração dada à voz referente à fala, que, por sua vez, é voz articulada através de
fonemas, de morfemas e de sintagmas em eixos que se cruzam, sintagmático e paradigmático,
em um constante diálogo entre continuidade e descontinuidade. Assim, a voz como unidade
de discurso significando contraste volta-se para o discurso da linguística moderna, como
observamos na averiguação. O contraste da voz também abarca a constituição diferencial
entre pai e mãe, de maneira a fazer com que algo da constituição biológica emerja na voz e
em sua percepção por parte do sujeito. Portanto, a unidade de discurso vocal perpassa a teia
do discurso psicanalítico sendo inserida nos vãos por onde o conceito de inconsciente atua.

Tanto é verdade que a composição lacaniana de objeto a contempla a voz em seu


sentido inconsciente de falta inerente ao regime pulsional estruturante do sujeito que, por sua
vez, organiza a linguagem do inconsciente em torno de sua própria hiância. Dessa
perspectiva, a voz como unidade de discurso traduzida pela falta concerne não apenas ao
funcionamento do inconsciente, mas também a sua característica efêmera, vinculada uma
concepção de produto que após ser produzido desaparece. Em tal unidade de discurso na qual
há a metaforização de elementos para interpretar a estrutura do inconsciente, a voz recebe os
contornos mais próprios de seu contraste e de como esse afeta a própria estrutura inconsciente
do sujeito, de modo a refletir-lhe boa parte de sua própria carga existencial.

Depois de compreender, a partir da noção de unidades de discurso, os sentidos da voz


e como esses são construídos e disseminados no campo da Psicanálise, podemos melhor
compreender as razões que levaram Ulisses a querer ouvir o canto das sereias, porque “Se
alguém, por ignorância, se avizinha e escuta a voz das Sereias, adeus regresso” (HOMERO,
2010, p. 192), porém não parece ter sido o caso do herói da Odisseia. Ulisses parece ter
aventurado-se por conhecer os riscos e por ter pesado os benefícios de poder ouvir vozes
capazes de levar à loucura, assim, não foi a ignorância sua motivadora, mas foi o conhecer seu
principal estímulo. O conhecimento de vozes que representam perigo configurou parte de um
capítulo da jornada de Ulisses, ao passo que conhecer como as vozes são representadas em
campos como a Psicanálise representa uma possibilidade de conhecer um pouco mais de um
dos principais veículos de acesso ao outro e a si.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Referências

ABÉCASSIS, Janine. La voz del padre. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 2005.
FREUD, Sigmund. Histeria. In: FREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud: Edição
Standart brasileira (Vol. I). Trad. José Octávio de A. Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Observações adicionais sobre neuropsicoses de defesa. In: FREUD, S.
Obras Completas de Sigmund Freud: Edição Standart brasileira (Vol. III). Trad. José
Octávio de A. Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. (β) Sonho sobre a morte de pessoas queridas. In: FREUD, S. Obras
Completas de Sigmund Freud: Edição Standart brasileira (Vol. IV). Trad. José Octávio de A.
Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 8 ed. Rio de
Janeiro: Forense universitária, 2012.
JORGE, Marco Antonio Coutinho. Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan (Vol. I).
5ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan.
Trad. Vera Ribeiro e Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
MALISKA, Maurício Eugênio. A voz e o ritmo nas suas relações com o inconsciente. (Tese
Doutorado), de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis-SC, Fevereiro de 2008.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.


Trad. MD Magno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Trad. Vera Ribeiro.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
LACAN, Jacques. Nomes-do-Pai. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
LAPLANCHE, Jean.; PONTALIS, Jean-Bertrand Lefebvre. Vocabulário da psicanálise.
Trad. Pedro Tamen. 7 Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
PORGE, Erick. Voz do eco. Trad. Viviane Veras. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2014.
RABINOVITCH, Solal. A foraclusão: presos do lado de fora. Trad. Lucy Magalhães. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
ROUDINESCO, Elisabeth.; PLON, Michel,. Dicionário de psicanálise. Trad. Vera Ribeiro,
Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1998.
SOARES, Thiago Barbosa. Sentido da voz: uma análise das unidades do discurso presentes
no campo da oratória. Revista Humanidades e Inovação. v.6, n.8 - 2019. p. 269-280.
SOARES, Thiago Barbosa. Concisa apresentação da linguística: um panorama da gramática
comparada à pragmática. São Paulo: Pimenta Cultural, 2020.
VASSE, Denis. L'arbre de la voix. France: Bayard, 2010.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

A VOZ NA MÍDIA: O SUCESSO NOS DIZERES


SOBRE A UNIDADE DO DISCURSO VOCAL

Considerações iniciais

A voz excita o ouvido e traz o auditório para próximo de quem fala ou canta. Era
assim nos tempos da Grécia Antiga na qual a ágora era usada para tratar dos assuntos públicos
ou mesmo para a encenação de peças teatrais. É assim nos tempos hodiernos quando a voz é
empregada para dizer a um número expressivo de pessoas ou mesmo para entreter a quem
deseja esse tipo de passatempo. Nesse contexto atual, a mídia é um amplificador não apenas
do entretenimento, como também dos viabilizadores de muitos discursos que tanto trazem a
voz para lhe dar algum destaque quanto para ratificar os sentidos do discurso do sucesso
midiático. “Em vista disso, temos, então, um discurso do sucesso midiático e um discurso do
sucesso de autoajuda, ambos regulados por seus respectivos mercados, por formações
discursivas e pela formação social e ideológica as quais estão vinculados” (SOARES, 2018, p.
169).

Como nosso objetivo é compreender os sentidos da voz e como esses são produzidos e
disseminados no campo da mídia, verificaremos, a partir de como a voz é tratada, usada e
representada em três matérias midiáticas, Adeus voz (Estadão, 2012), Voz da Alma
(RollingStone, 2012) e A voz de Cássia (Folha de S. Paulo, 2015), que apontam para a voz,
tracejando, assim, um possível caminho acerca da voz como unidade de discurso. Para
alcançarmos nosso objetivo, faremos o emprego do aparato teórico-metodológico da Análise
do Discurso, sobretudo da noção de unidades de discurso oriunda da arqueologia foucaultiana.

Ao trazermos à tona um item do arcabouço foucaultino da arqueologia, necessitamos


atrelá-lo ao lastro que lhe concerne as propriedades de ferramental analítico, de maneira a
indicar como esse elemento já foi admitido na realização de empreendimento de tal natureza,
bem como talhar os próprios moldes que lhe tornam possível o emprego do ponto de vista de
uma análise de discurso. Assim, pesando tanto as propriedades encontradas nas unidades de
discurso no interior do discurso da oratória quanto à metodologia utilizada no rastreamento
dos sentidos da voz como unidade do discurso da oratória (SOARES, 2019), podemos
empreender, guardadas as devidas proporções, um percurso relativamente próximo daquele no
tocante ao discurso midiático.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Desse modo, a compreensão acerca do funcionamento das unidades de discurso é de


crucial importância para a consecução de nosso intento, porquanto nela existe o germe do
próprio discurso, isto é, nela atua “um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem
na mesma formação discursiva” (FOUCAULT, 2012, p. 131). Nessa conformação do
discurso, percebemos que as unidades do discurso encontram-se no interior de uma matriz
epistemológica segundo a qual o discurso funciona de acordo com o próprio funcionamento
social, situando-se na esfera da qual se emana o poder em todo o circuito constitutivo da
sociedade e, “(...) coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas
"aplicações práticas"), a questão do poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta,
e de uma luta política” (FOUCAULT, 2012, p. 148, aspas do autor).

Trata-se de um domínio imenso, mas que se pode definir: é constituído pelo


conjunto de todos os enunciados efetivos (quer tenham sido falados ou escritos), em
sua dispersão de acontecimentos e na instância própria de cada um. Antes de se
ocupar, com toda certeza, de uma ciência, ou de romances, ou de discursos políticos,
ou da obra de um autor, ou mesmo de um livro, o material que temos a tratar, em sua
neutralidade inicial, é uma população de acontecimentos no espaço do discurso em
geral. Aparece, assim, o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos
como horizonte para a busca das unidades que aí se formam (FOUCAULT, 2012, p.
32, grifo nosso).

A partir dessa ótica segundo a qual o funcionamento do discurso dá-se por uma
dispersão no interior dos meios de produção de sentidos no circuito social, então, as unidades
de discurso consistem em núcleos arregimentadores de significados localizados em
determinadas formações discursivas. Assim, para investigação dessas unidades discursivas é
necessária a não linearização dos enunciados e, consequentemente, a extração de sua
dispersão em conformidade a uma estrutura ou campos disciplinares do saber, “as unidades do
discurso têm plasticidade o suficiente para serem investigadas de acordo com critérios não
apenas de semelhanças e de afinidades” (SOARES, 2019, p. 270). Portanto, o uso
interpretativo das unidades de discurso alinha-se ao escopo presente no trajeto investigativo
deste artigo.

É, então, dentro do enfoque dado pela produtiva relação qualitativa entre discurso,
formação discursiva e unidade de discurso que procedemos ao rastreamento da voz como
unidade do discurso midiático. Em outros termos, empregamos tanto a compreensão de
discurso, como uma prática engendrada de seu sentido pelas relações dos enunciados
veiculados no circuito social, quanto a de formação discursiva, a consolidação de
regularidades em meio a dispersão dos discursos, bem como a de unidade de discurso,

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

particular nuclear carregada de sentido e sintagmatizada no discurso, para, em textos


circulantes do/no espaço midiático, extrair possíveis significados para voz e, assim,
compreender os possíveis regimes de forças cuja atuação faz-se presente em seu uso.

Como objetivamos compreender os sentidos da voz e como esses são construídos e


disseminados no domínio da mídia, além de visar contribuir para a história das ideias
linguísticas no que tange aos discursos sobre a voz, investigamos em como a voz é tratada,
usada e representada em três matérias midiáticas, Adeus voz (Estadão, 2012), Voz da Alma
(RollingStone, 2012) e A voz de Cássia (Folha de S. Paulo, 2015), através de uma pesquisa
bibliográfica de cunho qualitativo em cuja metodologia extraída da Análise do Discurso
consiste em rastrear e interpretar as unidades de discurso. Para a realização desse
procedimento, este artigo organiza-se de forma a possuir a próxima seção na qual
investigamos a existência e o funcionamento das unidades de sentido acerca da voz nos textos
midiáticos em questão e destacamo-la por meio de negrito para, em seguida, nas
considerações finais apreciarmos, avaliarmos e pesarmos a trajetória aqui percorrida.

Unidades de discurso da voz na mídia

O discurso midiático congrega diversas forças refletindo, em boa medida, o


funcionamento do próprio circuito social e para observar e analisar algum objeto que nele
figure como importante ou com estatuto de relevante é necessário compreender que “A
sociedade do espetáculo foi capilarizada pelo discurso midiático do sucesso, legando um
entretenimento dependente de personalidades descritas pelos próprios meios de difusão de
informação e de entretenimento como a encarnação do sucesso” (SOARES, 2020, p. 63). Em
vista disso, compreender os sentidos da voz e como esses são produzidos e disseminados no
campo da mídia, a partir de como a voz é tratada em matérias circulantes na mídia, requer um
tipo de cesura no tecido conjuntivo do discurso do sucesso midiático, porquanto é nele que a
voz de celebridades passa a receber algum destaque. Isso é possível de ser percebido na
primeira matéria coletada, bem como nas demais, para depreender a voz como unidade de
discurso.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Adeus voz
Whitney Houston, a mulher que mudou o canto na música pop, morre aos 48 anos

Whitney Houston, uma das grandes vozes de sua geração, protagonista de um


declínio pessoal que envolveu cocaína e um casamento conturbado, morreu neste
sábado à tarde, aos 48 anos. (...)
Whitney Houston tinha tanto talento quanto pedigree. Sua mãe, Cissy Houston, fora
backing vocal de Aretha Franklin, que por sua vez era madrinha de Whitney. Dionne
Warwick era sua prima, e foi essencial para o desenvolvimento da cantora. Ela
lapidou sua voz desde cedo, cantando em corais da igreja e ocasionalmente subindo
ao palco com sua mãe.
(...) O vozeirão impecável foi descoberto por Clive Davis, manager de Aretha
Franklin e outras divas, no início dos anos 80, enquanto a cantora se apresentava em
uma boate. (...)

O recorte acima descreve a voz como uma forma de acesso aos outros e,
consequentemente, uma forma de entretenimento, pois a voz cujo alvo midiático tem em sua
mira é uma personalidade construída pela própria indústria de entretenimento musical,
Whitney Houston. Apontar para esse fato não é desconsiderar as qualidades vocais da cantora
ou mesmo obliterar seu talento, antes, é descrever um processo por meio do qual as
celebridades são produzidas no interior do discurso midiático para serem vendidas como
objetos. Pois, nesse sentido, “O sucesso midiático recobre a voz de sua aura, enaltecendo-a e,
ao mesmo tempo, elevando-a a uma altura superior em relação às vozes comuns” (SOARES,
2020, p. 61). Ao trazermos essa constituição do discurso midiático no qual a voz recebe suas
“características”, como em “vozes de sua geração”, “backing vocal de Aretha Franklin” e “O
vozeirão impecável”, é possível asseverar que a voz como unidade de sentido é traduzida por
uma distinção das demais vozes. Cabe também ressaltar, mesmo que de forma superficial, que
essas estruturas enunciativas, difundidas pelo discurso midiático produz “marcas de sentidos
as quais estabelecem também o padrão estético da escuta”. (SOARES; BOUCHER, 2020, p.
105).

No discurso do sucesso midiático, a voz ganha contornos advindos da formação


discursiva meritocrática, impingindo-lhe uma significação de distinção. “O sucesso é
meritocrático, a voz é democrática na medida em que todos a tenham, portanto, afirmar que a
voz é um meio de ascender socialmente é válido se o sucesso é feito através da voz”
(SOARES, 2020, p. 59). Todavia, aí parece entrar em cena a reprodutibilidade do dizer sobre
a voz cujo efeito no circuito social é justamente o de ratificar um tipo de “escuta” da voz de
sucesso. Nessa perspectiva, a voz como unidade de discurso midiático concorre para
efetivação do próprio sucesso no qual ela se encara, engendrando, com isso, o efeito de

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

retroalimentação do discurso do sucesso midiático e, por conseguinte, a formação discursiva


meritocrática.

É necessário colocar em perspectiva as atribuições vocais da cantora, pois, desse


modo, é possível extrair as significações da voz no texto e suas representações discursivas
conforme os próprios dizeres nos quais a voz está inserida. “Grande voz” e “vozeirão
impecável” são as características delineadas na matéria e justificam o próprio título, “Adeus
voz”, porque valorizam a voz de Whitney Houston a ponto de merecerem um apelo emotivo
indicializado pelo “adeus”. Tanto “grande voz” e “vozeirão impecável” expande o sentido
comum da voz e permite a significação de distinção da cantora e, consequentemente, exprime
o sucesso de sua voz. Então, a voz como unidade de discurso é uma ferramenta de trabalho
que é medida de acordo com suas “qualidades”. Essa unidade do discurso do sucesso tem sua
ancoragem na formação discursiva meritocrática.

No seguinte trecho “Ela lapidou sua voz desde cedo, cantando em corais da igreja e
ocasionalmente subindo ao palco com sua mãe”, a prova do mérito das características da
ferramenta de trabalho é apresentada. A voz como unidade de discurso do sucesso recebe da
formação discursiva meritocrática a fundamentação para que siga, persista e dissemine-se o
sucesso da voz de Whitney Houston. Portanto, as forças que compõem a voz como unidade do
discurso do sucesso, sobretudo na matéria focalizada ensejam o apagamento das vozes sem
sucesso midiático. “Por ser tomada pela mídia, como um objeto sutil, sobretudo no âmbito
musical, não é possível ver-lhe tal dimensão” (SOARES, 2020, p. 57). A voz da qual se fala
na mídia é a voz de sucesso e sua antípoda é a voz de não-sucesso, ou seja, a voz da maioria.
Como se verifica também na matéria a seguir.

Voz da Alma
Art Garfunkel tem um dos melhores instrumentos do rock – a voz. O que ele faria se
a perdesse?

Art Garfunkel inclina a cabeça levemente para trás e inspira rapidamente. Então,
canta o refrão de sua gravação mais famosa e bem-sucedida, o single número 1 da
dupla Simon and Garfunkel, “Bridge Over Troubled Water”. A voz é inconfundível:
quente e elegante em sua fluidez lenta, etérea, assim como as pequenas e notáveis
imperfeições – bordas ásperas, um tom momentaneamente oscilante –, enquanto
Garfunkel pronuncia a palavra “bridge” e rola pela queda suave de “troubled water”.
“Ouviu esses estalos?”, ele pergunta, sentado no minúsculo escritório na cobertura
de seu apartamento no Upper East Side, Nova York. “A extensão média perdeu a
finesse, e não consigo segurar meus tons de forma tão verdadeira e habilidosa.” Os
altos e baixos do alcance vocal de Garfunkel – um contratenor, agudo e brilhante,
com um alcance de barítono anormalmente rico – não importam, ele acrescenta, e
promete: “Com muito aquecimento, posso ter essa finesse de volta, mas não é fácil”.
(...)

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

“Nunca tive problema algum”, Garfunkel conta. “Minha voz é confiável. Sabe as
inseguranças que você tem quando entra em uma sala cheia de desconhecidos?
Nesse momento, eu canto.” No entanto, com a paresia, pela primeira vez na vida ele
foi forçado a confrontar “aquela praga de ideia – ‘será que ela desapareceu para
sempre?’”
Cinco dias depois desta entrevista, Garfunkel faria seu primeiro show completo em
dois anos e meio em Williamstown, Massachusetts – o prelúdio para uma nova turnê
solo. Em agosto, lançou The Singer, uma antologia com dois CDs que combina
alguns momentos de sua história com Simon and Garfunkel e seu melhor material
solo das últimas quatro décadas. The Singer também inclui as primeiras gravações
de Garfunkel em estúdio desde seu diagnóstico – as baladas românticas “Lena” e
“Long Way Home”, gravadas este ano em Los Angeles. “Ele claramente tinha um ar
de gratidão, de que sua voz realmente estava voltando”, conta a cantora e
compositora Maia Sharp, que produziu as novas faixas. “Sua extensão média
definitivamente é a parte mais lenta a voltar. Se a melodia ficasse nessa região, ele
precisava de mais tentativas.” Maia observa que Garfunkel ficou “agradavelmente
surpreso” enquanto ouvia seu desempenho em uma das músicas, “porque se
lembrava de como a experiência tinha sido difícil”.

A “Voz da Alma” é a matéria de toda a nossa investigação cuja voz é mais citada: onze
vezes o sintagma voz é mencionado no texto integral. Razão pela qual se encontra com
poucos recortes os parágrafos do artigo acima. Portanto, aqui não enveredemos em uma
análise exaustiva de cada trecho no qual aparece a voz, mas, antes, analisamos os dizeres
acerca da voz que constituem a unidade de discurso da voz e como certas formações
discursivas integram tal unidade e, sobretudo, levando em consideração a produção de
tamanha referência textual à voz de um sujeito do sucesso midiático. Uma questão se impõe
às onzes menções da voz: quais as circunstâncias responsáveis pelo avivamento da questão
vocal no interior do discurso do sucesso? Tal indagação tem sua resposta na “Voz da Alma”, a
qual, por sua vez, vai ao encontro da hipótese de Piovezani (2011; 2014) segundo a qual os
discursos sobre a e em defesa da voz surgem mais frequente e intensamente quando ela se
encontra real ou imaginariamente ameaçada.

O núcleo temático enunciado pelo subtítulo é justamente a perda da voz de Art


Garfunkel ao lado da comparação de sua voz a “um dos melhores instrumentos do rock”. Em
relação à voz do cantor, diz-se que “é inconfundível: quente e elegante em sua fluidez lenta,
etérea, assim como as pequenas e notáveis imperfeições”.

Pela voz, sabemos ou intuímos a idade, o sexo, o estrato social, a pertença regional,
o investimento volitivo, a caracterização do enunciador e certa orientação
argumentativa em seu enunciado. Ora a ordem do discurso, que controla o dito e as
formas do dizer, certamente há de controlar as modulações vocais mediante as quais
esse dito/dizer ganha corpo e faz sentido (PIOVEZANI, 2011, p. 172).

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Pela voz também ouvimos as formas estáveis e as instáveis de organização social;


através da voz os discursos ganham corpo e retomam sentidos, mobilizando um conjunto de
dizeres presentes no discurso. Entretanto, quanto ao dizer acerca da voz, trata-se de formações
discursivas segundo as quais o desempenho vocal é levado em consideração, conforme sua
produtividade. Mais uma vez, a voz como unidade do discurso do sucesso midiático é
configurada sob a égide do consumo. Só podemos chegar a tal interpretação, porque não
existe transparência nos usos da língua para descrever o mundo, mesmo no tocante a um
objeto tão sutil quanto à voz. Por isso, os dizeres a respeito da voz de Art Garfunkel, dizem,
de maneira direta e indireta, de seu sucesso. O uso de expressões qualificativas:
“inconfundível”, “quente e elegante” “em sua fluidez lenta”, “etérea, assim como as pequenas
e notáveis imperfeições”, entre outras, traz a voz para seu patamar mais “encantador”, já que
“a voz parece ser amiúde silenciada no dizer sobre o dizer, caso não se encontre de algum
modo em perigo e não concentre em si algum poder, que sejam mais ou menos
extraordinários” (PIOVEZANI, 2014, p. 316).

A voz (da alma) de Art Garfunkel tem em suas aparições apreciativas a retomada do
fio do discurso conservador e meritocrático (SOARES; BOUCHER, 2020), da forja
discursiva do sucesso midiático e, sobretudo, do discurso sobre os perigos da voz “mais ou
menos extraordinária”. O filtro da voz do cantor é impresso no discurso para seus ouvintes a
captarem tal como na descrição; o congelamento das estruturas de poder incidentes nesses
dizeres arregimenta seu caráter “mais ou menos extraordinário”, isto é, a fama, o prestígio e o
sucesso de que a voz goza no espaço midiático. Em a “voz da alma”, a voz como unidade do
discurso midiático do sucesso recebe as condições favoráveis para a materialização do
discurso sobre a voz de sucesso, de modo a (auto)promover-lhe, ancorado nos riscos da perda
da voz. Portanto, assim como os sentidos e os sujeitos são erigidos simultaneamente
(ORLANDI, 2012), a voz de Art Garfunkel é discursivizada, dados seus atributos “quase”
corrompidos, como “a voz do sucesso”.

Se a voz midiatizada é considerada um bem social, além de muitos aspirarem tê-la,


muitos outros irão querer sê-la. Então, sua escassez é motivo de sua carestia. A voz,
signo da subjetividade, passa a ser comprada e a ser vendida no mercado do sucesso.
O encantamento que gera é o termômetro das transações econômicas (SOARES,
2020, p. 58).

Disso é possível depreender que a voz como unidade de discurso sofre o impacto das
forças presentes na sociedade, de maneira a não estar isenta tanto de ser objeto de consumo

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

quanto de ser índice de distinção. Assim, a voz como unidade do discurso do sucesso
midiático engendra significados que ratificam o sucesso veiculado pelos mais variados meios
de comunicação e, ao mesmo tempo, constroem-se sob a formação discursiva meritocrática.
“Em outros termos, faz-se dos sujeitos do sucesso representantes legítimos das inclinações do
povo, ao mesmo tempo em que esse é manipulado direta e indiretamente pela influência
daqueles” (SOARES, 2020, p. 58). Entretanto, a voz como unidade de sentido pode adquirir
mais densidade, como é possível verificar adiante.

A voz de Cássia
Gravação simples é retrato de grande artista quando jovem

Se as duas músicas liberadas de “O Espírito do Som – Vol. 1” liberadas para audição


da Folha representarem bem a proposta do disco, este será mais do que um item de
colecionador.
“For No One”, dos Beatles, e “Segredo”, de Luiz Melodia, aparecem em versões
despojadas, apenas voz e dedilhado no violão. Ela tinha 20 anos quando as gravou.
Numa época em que programas de computador no estúdio transformam qualquer
desafinado em ótimo intérprete, ouvir a jovem Cássia cantando sem produção
alguma emociona, dá saudade.
Ela já mostrava seu estilo personalíssimo, a voz grave que avança pela letra em
frases um tanto “socadas”, berradas, pontuadas por silêncios que são ganchos
inescapáveis para o verso seguinte.
A cantora nunca foi delicada, ela ganhava o ouvinte numa intimidação sonora.
Sob uma chuvinha fina e insistente, cercado de cheiro de mato, o músico e produtor
Rodrigo Maia, 46, amigo de Cássia Eller (1962-2001), abre a porta da velha cabana
de madeira. (...)
Enquanto fala, Rodrigo aperta o play e uma voz jovem ecoa. São gravações de
banquinho e violão, com a cantora entoando clássicos como “For No One”, dos
Beatles, “Good Morning Heartache”, consagrada na voz de Billie Holiday (...)

A matéria acima já tanto em seu título quanto em seu subtítulo possui o


direcionamento da leitura de todo o texto. “A voz de Cássia” recobre o discurso do sucesso de
uma determinada cantora cujo aparato vocal “ganhava o ouvinte numa intimidação sonora”,
não por uma beleza ou por outras qualidades, como vimos em “Adeus voz” ou mesmo em
“Voz da Alma”. Dentro dessa perspectiva, a voz como unidade de discurso está voltada mais
para o que não se diz, porquanto é marcada em certos trechos, como em “a voz grave que
avança pela letra em frases um tanto “socadas”, berradas, pontuadas por silêncios que são
ganchos inescapáveis para o verso seguinte”, por um tom crítico em relação à voz em questão.
A cantora retratada por sua voz de sucesso não recebe elogios por sua voz nem essa parece se
adequar às vozes de sucesso, pois, como aponta o texto, “Ela já mostrava seu estilo
personalíssimo” refere-se ao fato da cantora distinguir-se de seus próprios pares.

63
Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Portanto, em “A voz de Cássia”, a voz como unidade do discurso do sucesso midiático


não parece ser acarretada por uma formação discursiva meritocrática, embora seu significado
ainda se mantenha vinculado ao destaque social e, por conseguinte, receba a visibilidade da
mídia. Nesse sentido, a voz, tal como apresentada na matéria, parece representar uma voz que
destoa dos padrões impostos pela indústria cultural da música. Dessa maneira, lemos no texto
elementos que se voltam para o delineamento da voz da cantora como uma voz não “tão boa”:
“Numa época em que programas de computador no estúdio transformam qualquer desafinado
em ótimo intérprete”. Assim, encontramos algo próprio do discurso do sucesso. “É
imprescindível, portanto, reconhecermos, para além do que possa parecer obviedade, o
processo de exclusão de vozes, pois nele reside a continuação do conflito de forças
antagônicas em nossa sociedade” (SOARES, 2020, p. 59-60).

Para além das aparências apresentadas, ao observarmos o funcionamento da voz como


unidade do discurso midiático, conseguimos depreender o maior contraste em “A voz de
Cássia”, já que nessa matéria a manifestação textual traz do discurso o não dito sobre a voz da
cantora, ou pelo menos algo que se deixa de lado ao tratar da já falecida celebridade. A partir
disso, percebemos que “O discurso manifesto não passaria, afinal de contas, da presença
repressiva do que ele diz; e esse não-dito seria um vazio minando, do interior, tudo que se
diz” (FOUCAULT, 2012, p. 30), porém no caso de “A voz de Cássia” a repressão do dizer
sobre a voz da cantora é parte integrante do discurso do sucesso que visa, entre outras coisas,
reproduzir sentidos que possam ganhar maior circulação e maior adesão no espaço social.

Considerações preliminares

Ao objetivarmos compreender os sentidos da voz e como esses são construídos e


disseminados no domínio da mídia através, principalmente, da voz como unidade do discurso
midiático, percebemos como certos empregos da voz traduzem significados circulantes não
apenas nos textos mas também no circuito social. Logo, a voz como unidade do discurso
midiático presente em Adeus voz (Estadão, 2012), Voz da Alma (RollingStone, 2012) e A
voz de Cássia (Folha de S. Paulo, 2015), como vimos, representa uma espécie de emblema do
sucesso de cada um dos cantores tratados nas matérias, tal como faz de cada um representante
oficial do sucesso midiático. Desse modo, é possível afirmar que a voz como unidade do
discurso midiático carrega em seu emprego boa parcela da formação discursiva meritocrática.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

Em razão disso, foi possível depreender tanto de Adeus voz (Estadão, 2012) quanto de
Voz da Alma (RollingStone, 2012) a produção de predicados ratificadores do sucesso
adquirido pelos cantores, de maneira a expressar uma configuração discursiva segundo a qual
o discurso do sucesso midiático tem de, para além de expor seus sujeitos, chancelar seus
fazeres e, com isso, legitimar o sucesso alcançado. Nessa perspectiva discursiva, a voz como
unidade do discurso midiático de sucesso é empregada como uma ferramenta de trabalho a
partir da qual se pode atingir um grau máximo de produtividade quando se chega ao maior
destaque social, isto é, quando os holofotes e os microfones, para não dizer das matérias de
jornais e revistas, são um meio de visibilidade constante e contínua.

Então, a capitalização das vozes pela mídia do sucesso segue as flutuações da


sociedade. Quando um grupo ou segmento obtém maior visibilidade, possivelmente
os aparelhos midiáticos elenquem uma personalidade que lhe represente. Entretanto,
o discurso do sucesso não lhe favorecerá tal como o faz com os agentes da estática
(estética) social, ao contrário, expressarão quando necessário uma insatisfação de
um público criado para isso (SOARES, 2020, p. 53).

Com base nessa observação e na análise de A voz de Cássia (Folha de S. Paulo,


2015), pudemos constatar que certas vozes não recebem qualificativos por não os terem por
parte da indústria cultural da música, contudo ainda figuram entre as personalidades de
sucesso. Ora, “Cada voz rege uma posição social midiatizada com suas nuances, suas tensões
e suas tonalidades, engendrando dizeres que apagam outros, ou seja, sentidos são suprimidos
para que outros possam emergir em seu lugar” (SOARES, 2020, p. 57). Em outros termos,
existem vozes que precisam estar em lugar de evidência midiática para que o aparelho
midiático na sua disseminação de discursos possa continuar funcionando com o menor
número de críticas possível. Ressaltamos que isso é uma possibilidade a ser mais bem tratada
em outras pesquisas, porquanto nesta nos limitamos a compreender a densidade discursiva
dada à voz no interior do discurso midiático.

Referências

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 8 edição, Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
FRICKE, David. Voz da Alma. Rolling Stone, [S. l.], 12 Nov. 2012. Disponível
em: https://rollingstone.uol.com.br/edicao/edicao-74/voz-da-alma/.Acesso em: 07 Fev. 2021.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

MONTEIRO, Karla. A voz de Cássia. Folha de São Paulo, E1. Ilustrada, domingo, 18 jan.
2015. Disponível em: http://feeds.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/204463-a-voz-de-
cassia.shtml. Acesso em: 07 Fev. 2021.
NASCIMENTO, Roberto. Adeus Voz. Estadão, Caderno 2 pág. 34, 13 Fev. 2012. Disponível
em: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20120213-43217-nac-34-cd2-d1-not. Acesso em:
07 Fev. 2021.
ORLANDI, Eni. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. 4 ed. Campinas, SP:
Pontes Editores, 2012.
PIOVEZANI, Carlos. Usos e sentidos da voz no discurso político eleitoral brasileiro. Alfa.
2011; 55(1):163-176. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/4172.
Acesso em: 07 Fev. 2021.
PIOVEZANI, Carlos. Discursos da imprensa brasileira sobre a voz de Lula. In: Filologia e
Linguística Portuguesa, Brasil, v. 16, n. 2, p. 311-329, dec. 2014. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/flp/article/view/80830 Acesso em: 07 Fev. 2021.
SOARES, Thiago Barbosa. Sucesso: discursos contemporâneos de capitalização dos sujeitos.
In: SOARES, Thiago Barbosa. (org.). Múltiplas perspectivas em Análise do Discurso:
objetos variados. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2018.
SOARES, Thiago Barbosa. Sentido da voz: uma análise das unidades do discurso presentes
no campo da oratória. Revista Humanidades e Inovação. v.6, n.8 - 2019. p. 269-280.
Disponível em: https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/929.
Acesso em: 07 Fev. 2021.
SOARES, Thiago Barbosa; BOUCHER, Damião Francisco. A estética do sucesso vocal:
discursos engendrados na construção de vozes de sucesso midiático. Anuário de Literatura,
Florianópolis, v. 25, n. 2, p. 101-118, 2020. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/view/2175-7917.2020v25n2p101. Acesso
em: 07 Fev. 2021.
SOARES, Thiago Barbosa. Composição discursiva do sucesso: efeitos materiais no uso da
língua. Brasília: EDUFT, 2020.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atravessamos quatro searas relativamente distintas com o objetivo de compreender os


sentidos que pesam sobre a voz e quais unidades de discurso são empregadas para significar-
lhe no interior das formações discursivas presentes nesses campos. A trajetória desse percurso
levou em consideração, entre outras coisas, o fato de que a voz sempre circulou na Oratória,
na Filosofia, na Psicanálise e na mídia, de uma maneira geral, porém a ela praticamente nunca
fora dado um lugar a partir do qual fosse possível compreender seus usos, tampouco seus
apagamentos e, consequentemente, sua densidade tanto semântica quanto representacional.
Desse modo, respondemos a uma necessidade de entendimento vigente no âmbito
investigativo dessas áreas responsáveis por produção e disseminação de saber.

Nesse sentido, mesmo que perfunctoriamente, tocamos na aspereza constitutiva tanto


da rede conceitual da Filosofia quanto do aparato narrativo-analítico da Psicanálise e
verificamos alguns usos para voz que lhe conferiram unidades de discurso recrudescidas por
certas formações discursivas. Ao investigarmos a voz na Oratória, esbarramos nas
contradições aparentes que são inerentes ao traçado de constituição histórica desse segmento
de aconselhamentos de usos da voz. De acordo com o avanço do percurso traçado em cada
capítulo, pudemos observar não apenas a não transparência da língua, bem como também
entramos em contato com formações discursivas distintas e capazes de modelar a voz
conforme seus núcleos enunciativos engendrados pelo discurso do qual eram representantes.

A voz na Oratória, na Filosofia e na Psicanálise, segundo o resultado da investigação


proposta pelos capítulos “A voz na oratória: uma análise das unidades de discurso presentes
no campo da oratória”, “A voz na filosofia: um trajeto da voz como unidade no discurso
filosófico” e “A voz na psicanálise: um trajeto da voz como unidade no discurso
psicanalítico”, recebeu de cada campo uma parte de sua densidade discursiva e, com isso,
deixou ver em cada segmento desses seus caminhos de aplicação da voz, ora como um
fenômeno puramente vocal e individual, ora como um meio de comunicação e social.
Também foi possível entender o fascínio que a voz exerce tanto na Oratória quanto na
Psicanálise, já que para ambas a voz representa mais do que um mero veículo de acesso ao
outro.

Para a Psicanálise, como vimos, a voz é ancoragem de uma rede conceitual


amplamente extensa e na qual a metaforização da voz dá-lhe uma densidade discursiva capaz

67
Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

de formatar significados e unidades de discurso voltadas tanto para o funcionamento do


ferramental analítico quanto para a representação dos hiatos integrantes dos sujeitos. Desse
modo, a Psicanálise fica apartada da Oratória e da Filosofia, porquanto não dialoga com suas
observações acerca da voz, ao passo que essa última, sim, faz alguns aportes reflexivos no
campo de compreensão do inconsciente. Portanto, o caráter ontológico da voz como um grão
do discurso encontrado nessas searas foi absolutamente mantido, pois, depois de embrenhada
nas malhas discursivas de cada segmento, não deixou de estar encharcada dos múltiplos
sentidos de cada um deles, assim as unidades de discurso da voz refletiram e refrataram a
própria densidade do ser vocal.

Os preconceitos na Oratória, o apagamento na Filosofia e expressão do inconsciente


na Psicanálise emprestaram à voz uma carga representacional que ultrapassa uma mera
caracterização semântica de um item lexical, ensejando a outras tantas pesquisas que possam
perseguir os sentidos de voz contidos em unidades de discurso presentes em campos que a
empreguem. A partir dessa perspectiva, acreditamos contribuir para a abertura, senão pelo
menos engrossamos as fileiras das poucas pesquisas, dos sentidos da voz. Muito fora deixado
ainda para ser mais bem investigado, sobretudo, por fazermos a utilização de uma noção
pouco usual no interior dos estudos discursivos e, com isso, esperamos as mais variadas
críticas. No entanto, tocamos nessas considerações finais, que de finais possuem apenas o
título, até agora os capítulos que trataram da Oratória, Filosofia e Psicanálise e faltam ainda
alguns comentários acerca da mídia e sua relação com a voz.

A mídia e a voz possuem uma conexão relativamente antiga, se levarmos em


consideração o rádio como um meio através do qual se produz conteúdos veiculados a uma
imensa quantidade de sujeitos, sobretudo com a ajuda da voz. No capítulo “A voz na mídia: o
sucesso nos dizeres sobre a unidade do discurso vocal”, a mídia é tomada de maneira genérica
e abrangente para designar um veículo de transmissão de informações e de entretenimento,
não recebendo maiores detalhamentos teóricos acerca de seu funcionamento e de sua
implicação social. Dessa perspectiva, surge a compreensão de que a mídia também é uma das
principais responsáveis por criar gostos, desejos e ídolos para deles se servir.

O artigo “Uma análise dos dizeres sobre a voz de sucesso midiático” (SOARES,
2020)10, que recomendamos fortemente a quem se interessa por questões de mídia e discurso,

10SOARES, T. B. Uma análise dos dizeres sobre a voz de sucesso midiático. Cadernos de Estudos
Linguísticos, Campinas, SP, v. 62, n. 00, p. e020016, 2020. DOI: 10.20396/cel.v62i0.8654477. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cel/article/view/8654477. Acesso em: 15 fev. 2021.

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Sentidos da voz: usos na oratória, na filosofia, na psicanálise e na mídia

trata diretamente da ligação entre a voz e seu sucesso nos meios de comunicação midiáticos
contemporâneos. Nele se verifica que “a voz, a música e o sujeito do sucesso constituem as
bases de mecanismos de propagação do comércio de artefatos culturais, as vozes do sucesso”.
Isso quer dizer, entre outras coisas, que os usos e empregos da voz na mídia são ainda mais
amplos e possuem muito mais significados do que pudemos extrair com nossa investigação, e
que os estudos sobre os dizeres sobre as vozes circulantes na mídia continuam em andamento,
de modo a termos com isso mais fontes para cruzarmos nossos resultados aqui obtidos.

Em vista do que foi dito anteriormente e do que não conseguiremos ainda dizer,
tentamos costurar os múltiplos tecidos que atravessam os textos que abordam a voz na
Oratória, na Filosofia, na Psicanálise e na mídia por meio da noção de unidades de discurso
voltada para o rastreamento dos sentidos e significados dos usos da voz nesses campos de
conhecimento de forma um tanto quanto inicial. Tanto por isso quanto pelo método do qual
fizemos emprego, acreditamos que existam algumas imperfeições para serem sanadas em
outros estudos mais profundos e mais rigorosos. Portanto, não nos cabe pedidos de desculpa
pelas irregularidades do percurso aqui trilhado, antes, ajusta-se à oportunidade do momento os
mais sinceros agradecimentos aos que contribuíram para a realização deste empreendimento
e, sobretudo, à generosidade do leitor que chega ao término desta obra com condições de
sobrepujá-la em seus meandros de pesquisa: Oratória, Filosofia, Psicanálise e mídia.

69
SOBRE O AUTOR

Thiago Barbosa Soares é professor adjunto do curso de Letras e do Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade Federal do Tocantins (UFT) no campus de Porto
Nacional. Possui graduação em Letras, português/inglês, pela Universidade do Vale do
Sapucaí (2009), em Psicologia pela Universidade Paulista (2014) e em Filosofia pela
Universidade de Franca (2014), especialização em Estudos Literários pela Faculdade
Comunitária de Campinas (2013), mestrado em Linguística pela Universidade Federal de São
Carlos (2015) e doutorado em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (2018). É
membro pesquisador do Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR-UFSCar) e do Grupo
de Estudos em Análise do discurso e História das ideias linguísticas (VOX-UFSCar). É ainda
editor-chefe da revista Porto das Letras (ISSN - 2448-0819) vinculada ao programa de pós-
graduação em Letras da UFT. É autor de “Discurso do Sucesso: a produção de sujeitos e
sentidos do sucesso no Brasil contemporâneo” (Pedro & João Editores, 2017), “Percurso
linguístico: conceitos, críticas e apontamentos” (Pontes, 2018), “Concisa apresentação da
linguística” (Pimenta Cultural, 2020) e “Composição discursiva do sucesso: efeitos materiais
no uso da língua” (EDUFT, 2020) além de ser organizador das seguintes obras: “Múltiplas
perspectivas em Análise do Discurso: objetos variados” (Pedro & João Editores, 2018), “No
campo discursivo: teoria e análise” (Pontes, 2020) e “Mídia, Linguagem e Sociedade:
espaços, corpos e vozes na atualização da resistência” (Pontes, 2020).
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8919327601287308.
E-mail: thiago.soares@mail.uft.edu.br.

70
ÍNDICE REMISSIVO

comunicação........................................................7, 20, 22, 24, 25, 28, 29, 30, 31, 36, 39, 41, 64, 68, 70

Discurso...6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 30, 31, 33, 34,
35, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62,
63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71

discursos..........................................................7, 8, 12, 24, 25, 26, 27, 40, 45, 57, 58, 59, 62, 63, 66, 67

Filosofia...............................................1, 2, 6, 8, 9, 10, 25, 26, 27, 28, 29, 39, 40, 41, 42, 68, 69, 70, 71

FOUCAULT.............................................9, 10, 13, 23, 24, 26, 27, 40, 42, 43, 44, 54, 56, 57, 58, 65, 66

ícone-índice-símbolo..............................................................................................................................8

Mídia........................................................1, 2, 6, 8, 10, 15, 21, 24, 25, 57, 59, 61, 65, 66, 68, 69, 70, 71

narrativa..........................................................................................................................................46, 54

oralidade.........................................................................................................................................17, 20

Oratória 1, 2, 6, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 26, 30, 31, 42, 43, 56, 57, 67,
68, 69, 70

Psicanálise......................................1, 2, 6, 7, 8, 10, 43, 44, 45, 48, 49, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 68, 69, 70

sentidos 1, 2, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 16, 18, 22, 25, 26, 27, 29, 30, 33, 35, 36, 39, 40, 41, 43, 44, 45, 49, 51,
54, 55, 57, 58, 59, 60, 63, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71

social 5, 7, 8, 12, 15, 16, 17, 19, 20, 21, 23, 24, 27, 29, 30, 31, 34, 37, 41, 44, 48, 55, 57, 58, 59, 60, 62,
63, 65, 66, 68, 69

Teoria Literária.......................................................................................................................................7

voz..1, 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31,
32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58,
59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71

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