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Homem Cultura e Sociedade
Homem Cultura e Sociedade
UNOPAR
Homem, cultura
e sociedade
ISBN 978-85-8143-641-8
C M Y K CL ML LB LLB
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Homem,
cultura e
sociedade
A
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AvaliacaoAcaoDo
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Avaliação
Homem, e
ação docente
cultura e
sociedade
Sandra Regina dos Reis Rampazzo
Giane Albiazzetti
Marlizete Cristina
Márcia Bastos Bonafini Steinle
de Almeida
Edilaine Vagula
Okçana Battini
Albiazzetti, Giane
Homem, cultura e sociedade / Giane Albiazzetti, Márcia Bastos de
Almeida, Okçana Battini. — São Paulo : Pearson Education do Brasil,
2013.
Bibliografia
ISBN 978-85-8143-641-8
13-01074 CDD‑306.07
2013
Pearson Education do Brasil
Rua Nelson Francisco, 26
CEP: 02712‑100 — São Paulo — SP
Tel.: (11) 2178‑8686, Fax: (11) 2178‑8688
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Sumário
vi H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Referências.................................................................159
Sugestão de leitura......................................................163
Carta ao aluno
viii H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Apresentação
x H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Unidade 1
A transição do
mito ao logos
Introdução ao estudo
Nesta unidade, apresentaremos a origem da Filosofia e a Filosofia da Educação
em sua especificidade. A importância de iniciarmos nossa leitura e o nosso curso
com esse tema significa a importância que a instituição assegura ao curso de Peda‑
gogia por uma formação humanista e, principalmente, por um profissional reflexivo
e comprometido com a educação em sua forma científica e não técnica.
Todas as seções abordadas terão como foco a relação entre filosofia e educação
em todos os períodos marcantes da História do pensamento da humanidade: a anti‑
guidade clássica, o período medieval, os modernos e os contemporâneos. Para isso
iniciaremos uma breve apresentação da origem da filosofia, seus principais movi‑
mentos e filósofos em seus aspectos centrais.
Faremos esse movimento porque precisamos voltar ao passado e conhecer
as raízes no pensamento filosófico que inauguraram uma forma específica de
conhecer e dar respostas à realidade, ao mundo e a tudo o que nele existe. A
Filosofia, portanto, nasceu como teoria do conhecimento e se mantém até a atua
lidade desvelando o real com a intenção de explicá-lo e socializá-lo, e isto só é
possível por uma educação sistematizada. Assim, podemos dizer que a Filosofia
também nasceu com vocação pedagógica, porque com ela se inicia um período
de construção de conhecimento e um projeto pedagógico a ser executado: a Pai-
deia. Eis o motivo de estudarmos, no curso de Pedagogia, a disciplina filosófica:
teoria geral do conhecimento.
A filosofia da Educação é uma disciplina que com a História, a Psicologia e a
Sociologia se constituem como fundamentação da educação nos cursos de Pedago‑
gia. Nos anos 1970, com a abertura e a proliferação dos cursos de pós-graduação, a
disciplina conquistou um amplo espaço no debate educacional e se tornou uma das
mais importantes áreas de pesquisa e produção literária.
Contudo, consideramos por bem iniciarmos este trabalho explicitando a gênese
(início) do pensamento filosófico, sua vocação educacional e sua trajetória no espaço
acadêmico e, principalmente, no curso de Pedagogia.
Portanto, vamos iniciar nossa leitura, ou melhor, a nossa viagem ao mundo do
conhecimento.
4 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
marítimo e sua relação com as fases lunares, enfim, tudo isso e muito mais fazem
parte de um conjunto de fenômenos que na antiguidade eram desconhecidos. Esse
desconhecimento provocava a curiosidade, a admiração, a perplexidade, ou seja,
provocava espanto! Tudo o que nos é estranho, ou que não conseguimos compreen‑
der a partir de nossas experiências e conhecimentos, nos causam esses sentimentos.
Por isso, à medida que aos poucos a racionalidade filosófica passava a dar res‑
postas para esses “mistérios”, o espanto ia dando lugar a novas perguntas que eram
respondidas por esse novo modo de conhecer: a Filosofia. Por isso é que podemos
dizer que a Filosofia tem uma pergunta básica, ou seja, aquela pergunta que está
sempre (ou deveria estar) em nossos pensamentos: o que é a realidade? Ou ainda:
por que tudo o que está a nossa volta existe? Por que nós existimos? Qual o sentido
da vida se existe a morte? Por que precisamos fazer escolhas? Depois de respondidas
essas questões surgem outras, e outras, e outras... infinitamente. A Filosofia procura
respostas e, quando as encontra, muda as perguntas! Atenção! Não é verdade que a
Filosofia não encontra respostas. Encontra sim, mas suas respostas não têm o caráter
de conhecimento absoluto e, dessa forma, todos podemos concordar ou não com
as suas conclusões e é assim que o pensamento e o mundo vão se transformando.
Na contemporaneidade, isto é, nos tempos atuais, nossas curiosidades não são
tantas como no período antigo e para respondê-las todos nós recorremos à Internet.
Mas na antiguidade não existia Internet com todos os sites de busca que hoje nos
são disponibilizados. Por isso e muito mais, convido o leitor para um passeio até a
Grécia Antiga, mais especificamente entre os séculos V e VI a.C., e visitar as origens
do pensamento ocidental, o nosso pensamento. Isto mesmo, o nosso modo de pensar,
nossa cultura, nossos valores são marcados pela influência da Filosofia Grega.
Pois bem, vamos começar por entender o significado etimológico da palavra Fi‑
losofia, ou seja, vamos entender o que a palavra significa ao pé da letra. Essa palavra
é composta por outras duas palavras: Philo e Sophia, assim mesmo com PH. Philo
significa amigo/amizade e Sophia que significa saber/sabedoria. Portanto, juntando
o significado das duas palavras temos amigo do saber e daí pode-se entender que o
filósofo é aquele que é amigo da sabedoria ou aquele que busca sempre o conhe‑
cimento, o saber. A Profa. Marilena Chaui oferece a seguinte explicação: “Assim,
filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama a sabedoria, tem amizade
pelo saber, deseja saber” (CHAUI, 2002, p. 19).
Se você chegou até aqui, podemos dizer que a busca pelo conhecimento o está
motivando e, no sentido exposto acima, podemos dizer que você é um filósofo e,
portanto, podemos continuar estudando. Segundo registros na literatura, foi Pitágoras
de Samos (século V a.C.) o criador da palavra filosofia sem dar a ela o estatuto de área
de conhecimento, mas sim de uma postura diante do que se lhe apresenta diante dos
olhos. Vamos compreender melhor a ideia de Pitágoras:
Pitágoras teria afirmado que a sabedoria completa pertence aos
deuses, mas os homens podem desejá-la e amá-la, tornando-se
filósofos. Dizia ainda que três tipos de pessoas compareciam aos
jogos olímpicos (festa mais importante na Grécia): as que iam para
6 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
comerciar durante os jogos, ali estando apenas para servir aos pró‑
prios interesses e sem preocupação com as disputas e os torneios; as
que iam para competir, isto é, os atletas e artistas (durante os jogos
havia competições artísticas: dança, teatro, poesia, musica); e as
que iam contemplar os jogos e torneios, para avaliar o desempenho
e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de
pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo (CHAUI, 2002, p. 20).
Isso quer dizer que o comportamento natural de um filósofo não está ligado a
interesses pessoais, mas tão somente à busca de uma compreensão das coisas, à busca
da sabedoria e do conhecimento. Buscar o conhecimento, aprender e socializar esse
conhecimento e aprender faz parte do perfil do filósofo. Pensando assim, podemos
dizer que somos filósofos!
Os primeiros gregos considerados sábios ou sophos ficaram conhecidos como filó
sofos pré-socráticos. Isto porque Sócrates figura na história da Filosofia como “divisor
de águas” na discussão filosófica. É assim porque
os primeiros filósofos ou pré-socráticos queriam
compreender o mundo natural, a physis, e Sócrates
Para saber mais concentraram-se em compreender o agir humano
A palavra sophos é de origem inaugurando a Ética e, também, uma forma e um
grega e significa saber/sabedoria. método de encontrar a verdade.
A Filosofia Antiga está dividida conforme os
problemas, as discussões e os confrontos entre os
pensadores iam se definindo. Dessa forma, ela (a Filosofia) se dividiu nos seguintes
períodos:
1. Período naturalista ou pré-socrático: o problema dessa fase era a busca da
compreensão da physis, ou seja, o cosmo e tudo o que nele existe. Os gru‑
pos de pensadores que o representaram estão divididos entre os jônicos, os
pitagóricos, os eleatas e os pluralistas.
2. Período humanista: surgiu quando o período naturalista não atendia as “de‑
mandas” das discussões políticas, sociais e morais. Esse período é represen‑
tado no primeiro momento pelos sofistas e, na sequência, por Sócrates, que
inaugura a busca pela essência do homem.
3. Período das Sínteses Platônica e Aristotélica: esse período, muito rico no pensa‑
mento filosófico, traz à tona a ideia do suprassensível e a formulação orgânica
dos problemas filosóficos. Ou seja, explicam os problema de ordem ética e
política (para citar apenas dois), a partir de uma ideia de organismo vivo.
4. Período das escolas helenísticas: esse período foi marcado pelas escolas que
representavam os sistemas filosóficos: estoicismo, epicurismo e ceticismo.
5. Período religioso: representado pelo encontro entre a cultura helênica em
Alexandria e o cristianismo.
Vamos abordar aqui o primeiro período, conhecido também por movimento pré‑
-socrático. Sobre o movimento dos filósofos pré-socráticos chamaremos a sua aten‑
ção para três movimentos que consideramos fundamentais para o seu entendimento
posterior quando examinarmos a relação que pretendemos fazer com a educação e,
mais especificamente, com a Pedagogia. Primeiro vamos compreender os atomistas.
Esse nome, atomista, vem da palavra átomo (menor partícula indivisível) e o fundador
desse movimento foi Leucipo. No entanto, suas ideias principais foram desenvolvidas
por seu discípulo Demócrito que desenvolveu as ideias de Leucipo e as transformou
em uma das doutrinas filosóficas mais influentes de toda a Antiguidade. Isto quer
dizer que o modo como Leucipo e depois Demócrito compreendiam a realidade,
ou o modo como eles interpretavam o mundo, a natureza e tudo o que nela existe,
ficou marcado e influenciou muitos pensamentos, incluindo até o pensamento de
Karl Marx muitos séculos depois.
A doutrina atomista afirma que tudo que está a nossa volta (inclusive nós mesmos)
se constitui por matéria. Tudo é matéria, ou melhor, tudo está formado por átomos.
Eles foram os primeiros materialistas do mundo ocidental. Vamos entender melhor:
A doutrina atomista sustenta que a realidade consiste em átomos e
no vazio, os átomos se atraindo e se repelindo, e gerando com isso
os fenômenos naturais e o movimento. A atração e repulsão dos
átomos devem-se às suas formas geométricas, sendo que átomos
de formas semelhantes se atraem e os de forma diferente se repe‑
lem. Os átomos são imperceptíveis e existem em número infinito
(MARCONDES, 2000, p. 34-35).
Mas agora é preciso compreender o conceito de átomos dos antigos. Você deve
estar se perguntando: como eles viram os átomos se não existiam equipamentos, como
os microscópios, para vê-los? Então vamos à explicação! Os átomos a que eles se
referiam eram uma ideia. Qual era o conceito de ideia? Reale (1993, p. 155) ensina:
[...] ideia é o visível. Mas o átomo é invisível, pela sua pequenez,
afirmada como consequência da sua indivisibilidade, pois é difícil
declarar indivisível o que é perceptível aos sentidos e, portanto,
pode ser considerado suscetível de fragmentação em partes. E
então, em que sentido ideia, em que sentido visível? Visível, evi‑
dentemente, só à visão do intelecto: o intelecto abstrato, que parte
do visível corpóreo, indo sempre mais além até onde os sentidos
não podem chegar, encontra o seu termo final num mundo quin‑
tessenciado e despotenciado, que é a analogia do visível corpóreo.
Forma é, pois, o visível geométrico, o que é visível ao intelecto.
Assim, podemos compreender que para os antigos o átomo não estava visível dire‑
tamente ao concreto, ou, aos sentidos, mas à ideia das formas. Quando olhamos um
objeto em forma de círculo, por exemplo, não estamos vendo o círculo de fato, mas
a ideia de uma representação geométrica. Essa é a ideia de átomo para os filósofos
atomistas. Os átomos eram, portanto, considerados qualitativamente iguais e quan‑
titativa e geometricamente diferentes (círculo esfera, triângulo retângulo, quadrado
e outros de tamanhos diferentes).
A Filosofia moderna se apropria desse pensamento para fundamentar a base da
ciência experimental que permanece em nossos dias. No entanto, também esse mo‑
8 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Assim é a explicação da vida humana para os atomistas. A alma não tem nada de
sobrenatural, mas é um conjunto de átomos redondinhos, lisos e quentinhos (natureza
ígnea que é uma palavra para designar fogo) que se movimentam, entrando e saindo
do corpo. Quando esse movimento cessa é porque o corpo morreu.
Sobre o conhecimento, eles explicam que o movimento dos átomos que chegam
aos sentidos gera a sensação e o conhecimento, que, por sua vez, se dividem em
conhecimento obscuro e genuíno. O conhecimento obscuro advém das sensações,
dos sentidos (olfato, tato, visão, audição e paladar) enquanto o conhecimento verda‑
deiro é aquele que está no intelecto e, dessa forma, sem contato com o conhecimento
obscuro.
10 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Quanto à alma, Heráclito expressou alguns pensamentos que afirmaram que esta
(a alma) tinha propriedades muito diferentes do corpo. Sobre essa ideia encontrou‑
-se um fragmento que está registrado em Reale (1993, p. 70, grifo do autor): “Os
confins da alma não os encontrarias nunca, embora percorrendo os seus caminhos;
tão profundo é o seu logos”.
Por fim, encontramos no pensamento desse filósofo alguns pensamentos sobre
moral. Para ele, “[...] a felicidade não pode se constituir nos prazeres do corpo: se
assim fosse, felizes seriam os bis diante do feno [...] difícil é a luta contra o desejo,
pois o que este quer, compra-o a preço da alma” (REALE, 1993, p. 71).
Assim, para Heráclito e seus seguidores estava entendida que a realidade natural
de constitui pelo movimento (daí a palavra mobilismo) e nada permanece igual para
sempre e tudo vai se modificando no decorrer do tempo, ou seja, tudo é passageiro.
Você percebeu que essa é uma ideia presente em nosso cotidiano? Nós sempre di‑
zemos que tudo passa, mas foi o Heráclito quem percebeu isso na realidade natural.
Mas ele disse mais: tudo se constitui, também, pelos contrários. O mundo se compõe
de quente e frio, seco e úmido, fogo e água, amor e ódio e daí por diante.
Agora vamos entender um pouco do monismo que está representado por Parmê‑
nides. Esse movimento defende a ideia de uma realidade única, sem mudanças e
sem transformações. O movimento e as transformações que percebemos são apenas
aparentes e, de fato, não existe.
Para Parmênides os nossos sentidos não são capazes de conhecer a realidade como
de fato ela é. E como ela é? Parmênides responderá que temos a ilusão de movimento,
mas a verdadeira realidade não se movimenta, é única e imutável.
Parmênides também é considerado o filósofo que inaugurou a ideia de SER. Porque
para ele o Ser é idêntico a si mesmo e não se modifica. O real e a verdade consistem
naquilo que não muda, não se transforma nunca. O que muda, não pode ser verda‑
deiro. “[...] o ser é sempre idêntico a si mesmo, imutável, eterno, imperecível, invisí
vel aos nossos sentidos e visível apenas para pensamento” (CHAUI, 2002, p. 211).
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 11
Saiba mais
Os quatro filósofos apresentados — Leucipo, Demócrito, Heráclito e Parmênides — não foram
os únicos filósofos daquele período. Outros que não estão citados, como Tales de Mileto, são
muito importantes e também influenciaram o pensamento Ocidental. Só elegemos os primeiros
por considerá-los fundamentais para o nosso estudo. Se você quiser saber mais dos pré-socráticos
acesse os sites:
<www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/escola/socrates/presocraticos.htm>.
<paxprofundis.org/livros/presocraticos/filosofos.htm>.
<educacao.uol.com.br/filosofia/pre-socraticos-origens-da-filosofia-e-os-primeiros-filosofos-
-gregoshtm>.
12 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Vamos nos ater à questão da filosofia moral, que é a busca de um princípio das
normas que regem a vida. Esse princípio, que irá fundamentar a ideia de uma filo‑
sofia moral, está na busca de uma essência humana. Ou seja, está na condição da
determinação orgânica o princípio da moralidade.
Antes disso, no período pré-filosófico, as questões morais tinham como funda‑
mento as explicações mitológicas. Homero, em sua Odisseia, ofereceu um sentido ou
uma concepção ética um pouco mais geral, como explica Reale (1993, p. 181): “[...]
o homem reverente e obediente aos deuses tem sempre vantagem sobre os homens
prepotentes e maus, os quais não podem fugir à vingança divina”. Trata-se de uma
motivação externa. Além disso, os gregos impressionam-se pelos atos de seus heróis
(Ulisses, Aquiles, Heitor, Helena, Penélope e outros/outras). Esses atos são estimula‑
dores de um comportamento para um ordenamento moral e social.
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 13
Para Hesíodo, o ideal de uma vida virtuosa estava atrelada ao trabalho diário e
duro. Ensina, também, a seguir uma vida com moderação.
Outros filósofos também refletiram e apresentaram suas concepções de vida
moral no período que antecedeu à filosofia clássica. A historiografia registra que
Sócrates, Platão e Aristóteles foram profundamente influenciados pelos sete sábios
gregos que os antecederam. Não há um consenso sobre alguns nomes desses sábios.
Transcreveremos aqui os sete sábios elencados por Platão, conforme Reale (1993,
p. 182) “São eles: Tales, Pítaco, Bias, Sólon, Cleóbulo, Míson, Quíton”. Os filósofos
e historiadores se divergem entre um e outro nome. Apenas isso.
Por outro lado, os sofistas também fizeram história porque se dedicaram às ques‑
tões éticas e políticas, mas de uma forma diferente (aliás, bem diferente) de Sócrates.
Mas é preciso deixar registrado o importante momento político de Atenas naquele
período fazendo com que a Filosofia deixe de ter uma preocupação norteada pelos
fenômenos naturais e passe a se constituir culturalmente naquele contexto. Vejamos:
Esse surgimento corresponde ao começo da estabilização da socie‑
dade grega, com o desenvolvimento da atividade comercial, com
a consolidação das várias cidades-estados e com a organização da
sociedade ateniense, que finalmente assumirá a hegemonia através
da liderança da liga de Delos. Há um progressivo enriquecimento
proveniente do comércio e da expansão marítima, dando origem
a uma classe mercantil politicamente muito influente (477 a.C.)
(MARCONDES, 2000, p. 40).
Isto significa que a sociedade grega estava passando por profundas modificações
em todos os segmentos. A política estava passando por uma reforma de governo e
o comércio modificando os costumes locais com a influência de outros povos nos
locais de intenso comércio e, ainda, uma classe emergente que exigia participação
política. Foi nesse período que Sólon inicia uma reforma de governo instituindo a
democracia no lugar da aristocracia.
14 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 15
O período marcado pela sofística, além de mudar o eixo das discussões engendra‑
das pelos pré-socráticos ou filosofia naturalista, também adotou um novo método que
ficou indentificado como o método empírico-indutivo. Conforme Reale (1993, p. 194):
[...] a sofística tem seu ponto de partida na experiência e tenta
ganhar o maior número possível de conhecimentos em todos os
campos da vida, dos quais, depois, extrai algumas conclusões,
em parte de natureza teórica, como por exemplo sobre a possibi‑
lidade do saber, sobre as origens, o progresso e o fim da cultura
humana, sobre a origem e a constituição da língua, sobre a origem
e a essência da religião, sobre a diferença entre livres e escravos,
helenos e bárbaros; em parte, ao invés, de natureza prática, sobre
a configuração da vida do indivíduo e da sociedade. Ela procede,
portanto, segundo o modo empírico-indutivo.
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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 17
18 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Vamos entender um pouco mais. Platão divide o mundo em duas partes — ele foi
um dualista — ou em dois mundos: o mundo sensível, das sensações ou dos sentidos
(onde estamos), e o mundo inteligível, mundo das ideias. Aqui, onde estamos no
mundo sensível (das sensações), só existe a aparência, as sombras ou como ele dizia
as cópias. No mundo das ideias estão os verdadeiros conceitos, a forma verdadeira,
a ideia real. Com esse mito ele queria dizer que é preciso muito esforço e disposição
para romper com as amarras que estão representadas pelo preconceito, a preguiça e
a covardia que nos prendem às sombras e buscar o verdadeiro conhecimento. Uma
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 19
vez que alcançamos esse conhecimento é preciso dividi-lo com os outros para que
todos possam se libertar das amarras do mundo das aparências ou da ignorância.
Para entender melhor: a pessoa que se apropria do conhecimento verdadeiro precisa
voltar e socializar esse conhecimento com os outros. Podemos dizer que nesse caso
o filosofar ou o exercício filosófico é um ato pedagógico.
O método dialético do mito da caverna se constitui de uma ascensão (uma su‑
bida) que vai do conhecimento mitológico e passa para a doxa (opinião); depois de
algum tempo abandona a opinião e passa a se utilizar da razão e, só depois, por
último alcança-se o inteligível, o conceito (que é o verdadeiro conhecimento). Para
o nosso filósofo a opinião não é um conhecimento verdadeiro por ser relativo. Ele
estava dizendo que a opinião depende do momento, do espaço e da pessoa. Se cada
um tem uma forma diferente de interpretar o real, essa interpretação não pode ser
verdadeira porque a verdade está no conceito que se constitui pela essência que não
muda e é universal. Platão acreditava em uma verdade eterna.
Esse conhecimento verdadeiro, para Platão, reside apenas na essência do conceito.
Por isso, ele é considerado um IDEALISTA (porque o verdadeiro conhecimento está
no mundo das ideias) e ESSENCIALISTA (a verdade está na essência do conceito que
é imutável). Sua pedagogia é, assim, essencialista.
Para entender melhor a ideia de conceito, vamos recorrer à Chaui (2002, p. 213):
1) Um conceito ou uma ideia não é uma imagem, mas a descrição
e uma explicação da essência própria de um ser (que pode ser
qualquer coisa: uma pessoa, uma árvore, a água etc.);
2) Um conceito ou uma ideia não são substituídos para as coisas,
mas a compreensão intelectual delas (porque estão na ideia);
3) Um conceito ou uma ideia não são formas de participação ou
relação de nosso espírito em outra realidade, mas o resultado de
uma análise dos dados da realidade ou do próprio pensamento;
4) Um juízo e um raciocínio não permanecem no nível da expe
riência, mas, partindo dela (da experiência) sistematizam (organi‑
zam) em relações racionais que a tornam compreensível ao ponto
de vista lógico;
5) Um Juízo ou raciocínio buscam causas universais e necessárias
para explicar a realidade tal como ela é.
Esse modelo de pensamento filosófico nos deixou marcas profundas, por incrível
que pareça. Essas marcas estão em nossos preconceitos quando acreditamos que as
pessoas já nascem com qualidades ou defeitos e que a educação não é capaz de
transformar o que já está internalizado, pelo nascimento, na pessoa. Quando dize‑
mos “filho de peixe, peixinho é!” ou “pau que nasce torto, morre torto!” estamos
reproduzindo uma filosofia essencialista. Ou seja, a condição do sujeito é inata. Por
outro lado, quando dizemos que: “aqui, neste mundo, só teremos sofrimentos e no
céu haverá uma tranquilidade eterna!”, isso também é Platão. Esse modo de pensar foi
absorvido pela filosofia cristã. Na Idade Média, quem interpretou Platão foi o bispo
Santo Agostinho que, com Aquino, representaram a filosofia essencialista na Igreja.
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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 21
Isso pode até parecer muito estranho para nós, mas já percebemos que a linguagem
se modifica constantemente. Isto para falar do nosso vocabulário em nossos dias. Ima‑
gine você que a filosofia tem, pelo menos, 25 séculos de vida e a linguagem humana,
muito mais do que isso. Por isso quando ouvimos um professor de Filosofia dizer que
a pretensão de determinado filósofo é “conhecer a coisa em si” achamos que está
divagando ou está muito longe da nossa realidade. Mas é preciso lembrar que “a
coisa ou ente” é o nosso “objeto”. Mas por que não falar logo de uma vez a palavra
objeto? Porque nós estaríamos ferindo o vocabulário do Filósofo.
A Metafísica investiga a realidade em si de forma racional e não se baseia em da‑
dos conhecidos pela experiência sensível, mas nos
conceitos formulados pelo pensamento. Portanto,
é um conhecimento puramente abstrato. É um
conhecimento sistemático (organizado) porque
Saiba mais
os conceitos se relacionam de forma dependente. Aristóteles foi mestre de Alexan-
No entanto, depois que Aristóteles se desligou dre, o Grande.
de Platão, fundou uma escola para a pesquisa em‑ Assista ao filme com o mesmo
pírica e o ensino. As duas mantinham a interface nome. Nele há uma cena com o
porque para ele não existia conhecimento sem filósofo ensinando alguns meninos
passar pela experiência. da aristocracia. Aliás, Aristóteles
Vamos compreender um pouco mais dessa ficou decepcionadíssimo com o
palavra tão diferente em nosso vocabulário: META‑ comportamento violento com que
FÍSICA. A palavra meta significa depois ou acima Alexandre conduzia seu governo.
e é por isso que dizemos nos dias atuais muito em
“alcançar metas”. Isto quer dizer que tem alguma
coisa acima que precisamos ou devemos alcançar, ou, algum lugar onde devemos
chegar. Mas, verdade seja dita, a palavra metafísica não foi utilizada por Aristóteles
e sim por um organizador, ou uma espécie de “bibliotecário” das suas obras: An‑
drônico de Rodes, por volta de 50 a.C. Pois bem, esse homem, Andrônico, recolheu
e classificou todas as obras (de Aristóteles) que ficaram dispersas ou perdidas. Com
a palavra grega ta meta ta physika, o organizador indicava um conjunto de escritos
que, em sua classificação, localizavam-se após os tratados sobre a física ou natureza.
Já vimos o que significa a palavra meta (depois). A palavra ta aqueles; ta physika,
aqueles da física. Então ficou assim: aqueles (escritos) que estão (catalogados) após
os (escritos) da física. Portanto, METAFÍSICA.
Aristóteles se referia a esses escritos como a FILOSOFIA PRIMEIRA, porque o seu
tema era a o estudo do “ser enquanto ser”. Assim, o que Aristóteles designou como
Filosofia Primeira, passou a ser conhecida como Metafísica.
Vamos entender um pouco mais sobre a metafísica. Em seu primeiro momento
os filósofos metafísicos, mais especificamente Aristóteles, investigavam somente aquilo
que é, aquilo que existe. Olhando em torno de si mesmo, o filósofo se perguntava:
o que é isso tudo que vejo, que posso tocar, ouvir e sentir (veja bem: ele utiliza todos
os órgãos dos sentidos: visão, olfato, tato, audição e paladar). Mas aqui tem uma
22 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
diferença porque para compreender tudo o que existe é preciso ter o exercício ra‑
cional e apriorístico, ou seja, para conhecer o mundo existente de fato como ele é,
é necessário abandonar a ideia de que o conhecimento é aquele que se nos apresenta
pela experiência sensível ou sensorial (a partir dos órgãos dos sentidos).
O conhecimento metafísico é, principal‑
mente, sistemático. Isto é, existe um sistema de
Para saber mais organização, é organizado, tem uma lógica de
encadeamento: um conceito depende de outros
APRIORISMO: O que vem em pri- e se relaciona com outros. Percebeu? Não se trata
meiro lugar. de um conhecimento sem fundamentação, sem
CONHECIMENTO SENSÍVEL: Aquilo critério e sem rigor metodológico.
que apreendemos com os cinco A primeira metafísica faz uma distinção en‑
sentidos — tato, olfato, paladar, tre o que é e o que parece ser. Entre verdade e
visão e audição. mentira. Ou, melhor ainda: entre realidade e
aparências, entre o que é real e o que é falso.
Esse primeiro momento foi longo e permane‑
ceu de Aristóteles, na antiguidade clássica, aos medievais. Somente com o filósofo
David Hume (1711-1776), no século XVIII, é que aconteceu uma grande mudança
conceitual. Como demorou! Mas Hume demonstrou que os conceitos construídos
pela metafísica não correspondem, exatamente, à realidade externa. O que a meta‑
física fornece são apenas nomes gerais para as coisas ou ainda como explica Chaui
(2002, p. 207): “[...] nomes que nos vêm à mente pelo hábito mental ou psíquico de
associar em ideias as sensações, as percepções e as impressões dos sentidos, quando
são constantes, frequentes e regulares”.
Logo, podemos entender que o filósofo Hume colocou um ponto final no primeiro
período metafísico. Mas quem deu o “pontapé” inicial para o segundo período desse
modelo de conhecimento foi Immanuel Kant, que demonstra a impossibilidade da utili‑
zação dos conceitos construídos pela metafísica para se conhecer a realidade como esta
se apresenta. Por isso, ele propôs um conhecimento a partir da nossa própria capacidade
racional. Ou ainda, a partir de uma razão crítica. Para Kant, a metafísica agora toma
um caminho diferente daquele iniciado com Aristóteles e mantido pelos medievais. O
sentido do conceito é aquilo que existe para nós e organizado por nossa razão.
No século XVII (antes ainda de Hume, que era um inglês), outro filósofo (dessa
vez um alemão), Jacobus Thomasius, decidiu que a palavra correta para designar os
estudos da Filosofia Primeira ou Metafísica seria: ONTOLOGIA. Outra palavrinha
para complicar a nossa vida de estudantes. Essa palavra, ontologia, é composta por
duas palavras gregas: onto e logia. Onto vem de dois substantivos: ta onta (os bens
e as coisas possuídas por alguém) e ta onta (as coisas realmente existentes). Essas
duas palavras derivam do verbo ser. O ser é aquilo que realmente é e não aquilo
que aparenta ser. Assim, podemos entender que Metafísica e Ontologia têm o mesmo
significado, afinal estão dizendo que: para compreender o real é preciso buscar o
princípio (racional) de cada ”coisa” para conhecê-la (lembre-se de que nesse período
não havia a palavra objeto) de forma verdadeira e não de forma fantasiosa.
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 23
A educação está, nesse sentido, no campo da filosofia prática porque tem como
finalidade a formação de virtudes no homem e a virtude é o caráter formado pela
moral. No pensamento aristotélico é com o exercício da moral que se adquire a
virtude e com ela o bem supremo, que é a felicidade. A ideia de bem tem o sentido
de controle racional de todos os impulsos. E como se consegue isso? Pela prudência
que está no equilíbrio das ações (na mediania).
Pois bem: já vimos que o projeto educacional na filosofia de Aristóteles tem um
caráter ético e moral. Mas tem também um caráter político porque somente o homem
virtuoso poderia governar a pólis mantendo-a feliz. Para ele, o homem é naturalmente
um animal político por não conseguir viver sozinho e o Estado deve promover o bem‑
-estar de todos. Esse pensamento está registrado na obra A política.
O Estado deve legislar e garantir o cumprimento das leis e em vistas
de seu objetivo deve criar condições suficientes para propiciar aos
cidadãos a felicidade. E nessa tarefa, a educação tem o papel de
suma importância porque deve promover a virtude. De modo geral,
o uso da razão cultivado desde a infância é capaz de propiciar o
desenvolvimento da moralidade, solidificando hábitos adequados
e virtudes (NOGUEIRA JUNIOR, 2009, p. 46).
24 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A citação acima nos ensina que Aristóteles não acreditava em um conhecimento ante‑
rior ao ser, à pessoa. O conhecimento não nasce conosco, mas é preciso instruir. Tomaz de
Aquino interpretou Aristóteles e levou para a sua obra o pensamento desse filósofo antigo.
Logo, o projeto educacional visto com as lentes de Aquino tinha por objetivo
ensinar comportamentos e “[...] promover a construção de homens que pratiquem
hábitos virtuosos” (OLIVEIRA, 2009, p. 244). A educação pretendida aqui tem seu
pressuposto filosófico em Aristóteles, que também não aceitou o pensamento platô‑
nico de ideias inatas. Ou seja, o bom comportamento para se alcançar as virtudes e
com elas a felicidade poderia e deveria ser ensinado. As virtudes dependem de um
exercício constante empreendido pelo sujeito.
Tomaz de Aquino foi representante do movimento medieval conhecido como
escolástica, que podemos entender como filosofia da escola, o ensino cristão que
tinha por finalidade alcançar a verdade por meio da razão. Ou, de forma resumida,
a escolástica foi um movimento da Igreja para conciliar a fé e a razão. Além de
representar a escolástica, Aquino deixou o seu legado registrado na obra Suma teo-
lógica, onde ele constrói seu pensamento em busca da prova da existência de Deus
postulando cinco evidências ou provas:
1. Prova de movimento
2. Prova da causalidade eficiente
3. Prova da contingência
4. Prova dos graus de perfeição do ente
5. Prova da existência de Deus pelo governo do mundo
A ideia da existência de Deus é ponto fundamental no programa educacional
cristão da Idade Média, por ser a única forma de se alcançar o verdadeiro conhe‑
cimento. A ideia de movimento é de inspiração aristotélica — ato e potência. Uma
coisa se transformando em outra. Por exemplo: a semente tem a potência de uma
árvore, uma flor. Uma árvore tem a potência de uma cadeira, mesa etc.
Até aqui vimos que a Filosofia sempre esteve no âmbito da formação social, isto
é, a Filosofia, que nascida com os antigos manteve-se com vocação formadora do
sujeito e assim permaneceu até o final da Idade Média.
Como ficou, então, durante a Idade Moderna? Esse é um assunto para mais uma
subdivisão nesta unidade.
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 25
26 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
foi se modificando de forma positiva, por outro lado, essa fase, embora considerarem
natural e necessária, era vista como um período negativo na vida do sujeito. Porque
entendia-se que no período infantil as crianças não internalizaram as regras e por
isso deveriam ser conduzidas da heteronomia à autonomia por meio de regras pos‑
tas pelo adulto. A autonomia nasce de fora para dentro com a ajuda de um adulto
competente, ou seja, pelo professor.
Por isso compreendemos que a escola no início da modernidade não tinha um
caráter de ensino, mas de disciplina. A escola tinha que promover a saída do sujeito
de uma fase negativa — a infância — e conduzi-lo ao mundo dos adultos, da racio‑
nalidade, da individualidade, da autonomia.
Dentre os intelectuais que construíram essa ideia de infância, temos o filósofo Renè
Descartes, que acreditava ser a infância o pior período do ser humano. Segundo ele,
a criança precisa ser duramente disciplinada para alcançar rapidamente o status de
adulto na sociedade. Ser adulto significava para o filósofo, entre outras coisas, o uso
pleno de sua razão.
No século XVIII, considerado o século das luzes, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)
dedicou uma obra ao projeto educacional: Emílio. Rousseau foi considerado um român‑
tico por ter criticado de forma contundente o projeto racionalista iluminista. Para ele as
emoções deveriam ser consideradas na formação
humana e no projeto de conhecimento. No Emílio,
Para saber mais ele registra a ideia da infância como um período
positivo e a educação deve ser a mais natural e longa
Podemos perceber que essas con- possível para promover tudo o que sujeito traz de
cepções filosóficas aparecem na positivo em seu nascimento. Conforme Ghiraldelli, a
contemporaneidade nas teorias e infância é um período de pureza, de criatividade, e a
tendências educacionais porque a autonomia deve vir de dentro para fora. O professor
partir delas efetivaram-se concei- não é um disciplinador, como a concepção anterior,
tos de infância e de educação que mas um amigo.
passaram a se colocar como funda- Por isso e muito mais, Rousseau é considerado
mentos dos processos pedagógicos um marco na educação do período moderno por
ou da Pedagogia. mudar o eixo do projeto educacional, colocando
o aluno no centro do processo de aprendizagem e
valorizando a infância. Se antes a criança era con‑
siderada um homúnculo, um adulto em miniatura,
Saiba mais agora ela ganha o seu espaço e lugar.
Se na antiguidade a Filosofia surge com “sin‑
Jean-Jacques Rousseau deixou uma toma” de educação, podemos afirmar que no
grande obra sobre educação: Emí- período moderno, com os iluministas e o projeto
lio, que está disponível na biblio- de filosofia romântica de Rousseau, ela toma
teca digital no seguinte endereço: corpo como pedagogia. Além disso, o projeto car‑
<www.unopar.br/bibli01/catalo- tesiano — Renè Descartes — e o rousseniano —
gos.htm>. Rousseau — se constituíram em pedagogias que
se reconfiguraram como modelos educacionais
ao longo da história.
Isso quer dizer que o filósofo rompe com a ideia de universalidade porque para
ele a busca por uma verdade universal é perigosa porque soa inquestionável. Assim,
a educação não deve se nortear por um conceito de verdade universal e nem por
uma ideia de bem maior ou universal.
Por fim, compreendemos que o pensamento de Nietzsche é construído em uma
crítica ao modelo de racionalidade moderna, que para ele tem sua gênese (e tem
mesmo, já o mostramos nesta unidade) no pensamento antigo. Para ele, está em franca
decadência. Isso ele pensava em meados do século XIX.
28 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Aprofundando o conhecimento
O texto que você irá ler a seguir é um clássico da literatura filosófica: Teeteto
(PLATÃO, s.d.). Trata-se de um diálogo escrito por Platão em que ele discute,
através de Sócrates, o problema do conhecimento. Platão escrevia em diálogos
como uma forma didática para apresentar suas teorias.
Aproveite, aprenda e, ao mesmo tempo, divirta-se!
Teeteto
I
Euclides — Voltaste há pouco do campo, Terpsião, ou já faz tempo?
Terpsião — Faz bastante tempo; procurei-te na praça do mercado e estranhei não
encontrar-te.
Euclides — É que não me achava na cidade.
Terpsião — Por onde andavas?
Euclides — Havia baixado ao porto, quando encontrei Teeteto, que transportavam
do acampamento de Corinto para Atenas.
Terpsião — Morto ou vivo?
Euclides — Vivo, porém muito mal; ressente-se bastante dos ferimentos recebidos.
Porém o pior éter apanhado a doença que atacou as tropas.
Terpsião — Disenteria, talvez?
Euclides — Exato.
Terpsião — Pelo que dizes, estamos na iminência de perder um homem e tanto!
Euclides — De muito merecimento, Terpsião. Agora mesmo, ouvi fazerem-lhe os
maiores elogios, pelo modo por que se houve na batalha.
Terpsião — Não é de admirar. Estranho seria se ele fosse diferente. Mas, por que não
ficou aqui em Mégara conosco?
Euclides — Tinha pressa de chegar a casa. Insisti com ele e o aconselhei muito; porém
não se deixou convencer. Por isso, o acompanhei: e, ao retornar, lembrei-me, com admi-
ração, de como Sócrates foi bom profeta a respeito de muita coisa e também de Teeteto.
Se mal não me lembro, pouco antes de morrer ele encontrou Teeteto, que ainda era
adolescente. Ambos a se conhecerem, e logo a conversar, tendo ficado Sócrates encantado
com a natureza do rapaz. Quando estive em Atenas, Sócrates me falou pormenorizada-
mente na conversa que então mantiveram, muito digna de ouvir, tendo acrescentado que
se ele chegasse a ser homem, fatalmente se tornaria célebre.
Terpsião — Só falou a verdade, como parece. E a respeito de quê conversaram, po-
derias dizer-me?
Euclides — Não, por Zeus! Assim, de improviso, não me seria possível. Porém logo
que cheguei a casa, tomei alguns apontamentos sobre o que mais me impressionara,
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 29
II
Sócrates — Se eu me interessasse, Teodoro, particularmente pelas coisas de Cirene,
não deixaria de interrogar-te sobre seus homens e o que acontece por lá, como, por
exemplo, se entre os jovens há quem se dedique ao estudo da geometria ou a outros
ramos do saber. Porém como me preocupo menos com eles do que com os de casa tenho
muito mais curiosidade de saber quais dos nossos adolescentes revelam maior probabili-
dade de distinguir-se. É do que sempre procuro informar-me com o maior empenho, e
para isso interrogo as pessoas cuja companhia eles frequentam. Ora, és tu quem reúne
à tua volta o maior número de rapazes, e com razão, não só pelo merecimento próprio
como pela atração da geometria. Por isso, caso tenhas encontrado algum jovem digno
de menção, com muito prazer ouvirei o que disseres.
Teodoro — Efetivamente, Sócrates, vale tanto a pena eu falar como ouvires a respeito
de um adolescente que descobri entre vossos concidadãos. Se se tratasse de um belo
rapaz, teria medo de manifestar-me, para não pensarem que eu o fazia como apaixonado.
Porém a verdade — sem querer ofender-te — é que ele não é nada belo; parece-se
contigo em ter o nariz chato e os olhos saltados, aliás em grau menos acentuado. Por
isso, falo sem o menor constrangimento. Sabe, pois, que no meio de tantos jovens que
até agora conheci — e não têm conta os com que já tenho conversado — não encontrei
nenhum com tão maravilhosa natureza. A facilidade de aprender como apenas se en-
contraria em mais alguém, uma docilidade única, associada a singular valentia são
qualidades que nunca imaginei pudessem existir ou que ainda venhamos a encontrar. De
fato, os que são dotados de igual vivacidade, entendimento rápido, boa memória, de
regra são sujeitos a acessos de cólera e se deixam levar à matroca, como navio sem lastro,
sobre se revelarem mais impulsivos do que realmente corajosos. Os mais ponderados são
algum tanto preguiçosos e sumamente esquecidos. Este, pelo contrário, avança com
30 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 31
III
ócrates — Pois então, amigo Teeteto, chegou a hora de te exibires e eu de
examinar-te. Convém saberes que Teodoro já me fez o elogio de muita gente, assim
estrangeiros como Atenienses, porém nunca em termos tão calorosos como agora
mesmo a teu respeito.
Teeteto — É desvanecedor, Sócrates, se não se tratar de alguma brincadeira.
Sócrates — Não é do feitio de Teodoro. Porém não quebres teu compromisso, sob o
pretexto de que ele quis pilheriar, para não o obrigarmos a depor. Bem sabes que
ninguém o recusaria como testemunha. Reveste-te de confiança e não desfaças tua pro-
messa.
Teeteto — É como terei de proceder, se pensas desse modo.
Sócrates — Dize-me o seguinte: não é verdade que estudas geometria com Teodoro?
Teeteto — É.
Sócrates — E também astronomia e harmonia e cálculo?
Teeteto — Pelo menos, esforço-me nesse sentido.
Sócrates — Eu também, jovem; com ele e com quem mais eu considere competente
nesses assuntos. Não obstante, dado que eu apanhe regularmente bem semelhantes
questões, há um ponto insignificante que eu desejaria examinar contigo e estes aqui.
Dize-me o seguinte: aprender não significa tornar-se sábio a respeito do que se aprende?
Teeteto — Como não?
Sócrates — Logo, é pela sabedoria, segundo penso, que os sábios ficam sábios.
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — E isso difere em alguma coisa do conhecimento?
Teeteto — Isso, quê?
Sócrates — Sabedoria. Não se é sábio naquilo que se conhece?
Teeteto — Como não?
Sócrates — Então, é a mesma coisa conhecimento e sabedoria?
Teeteto — Sim.
Sócrates — Eis o que me suscita dúvidas, sem nunca eu chegar a uma conclusão
satisfatória: o que seja, propriamente, conhecimento. Será que poderíamos defini-lo?
Como vos parece? Qual de nós falará primeiro? Quem errar ou atrapalhar-se, como burro
irá assentar-se, à maneira do que dizem as crianças no jogo de bola; quem não cometer
nenhum erro, será rei e ficará com o direito de apresentar-nos as perguntas que entender.
Por que não respondeis? Espero, Teodoro, que o meu amor às discussões não me torne
importuno, pelo desejo de estabelecer entre nós um diálogo capaz de deixar-nos íntimos
e apertar mais os laços de amizade.
Teodoro — De nenhum jeito, Sócrates, chegarás a ser importuno. Porém pede a
um destes meninos que te responda, pois não estou habituado a esse tipo de conver-
sação e já passei da idade de aprender. Tudo isso fica bem para eles, que só terão a
lucrar; quando se é moço, tudo é fácil. Porém, uma vez que já começaste, não largues
Teeteto, interroga-o.
32 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Sócrates — Ouvistes, Teeteto, o que disse Teodoro? Creio que não pensas em deso-
bedecer-lhe, além de não ficar bem a um jovem, em assuntos dessa natureza, não acatar
as prescrições de um sábio. Cria coragem, pois, e responde à minha pergunta: No teu
modo de pensar, que é conhecimento?
Teeteto — Terei de obedecer, Sócrates, uma vez que o ordenais. De qualquer forma,
se eu cometer algum erro, vós ambos me corrigireis.
IV
Sócrates — Perfeitamente; no que for possível.
Teeteto — Então, a meu parecer, tudo o que se aprende com Teodoro é conhecimento,
geometria e as disciplinas que enumeraste há pouco, como também a arte dos sapateiros
e a dos demais artesãos: todas elas e cada uma em particular nada mais são do que co-
nhecimento.
Sócrates — És muito generoso, amigo, e extremamente liberal; pedem-te um, e dás
um bando; em vez de algo simples, tamanha variedade.
Teeteto — Que queres dizer com isso?
Sócrates — Talvez nada; porém vou explicar-te o que penso. Quando te referes à arte
do sapateiro, tens em mira apenas o conhecimento de confeccionar sapatos, não é ver-
dade?
Teeteto — Exato.
Sócrates — E a marcenaria, será outra coisa além do conhecimento da fabricação de
móveis de madeira?
Teeteto — Não.
Sócrates — E em ambos os casos, o que defines não é o objeto do conhecimento de
cada um?
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Mas o que te perguntei, Teeteto, não foi isso: do que é que há conheci-
mento, nem quantos conhecimentos particulares pode haver; minha pergunta não visava
a enumerá-los um por um; o que desejo saber é o que seja o conhecimento em si mesmo.
Será que não me exprimo bem?
Teeteto — Ao contrário; exprimes-te com muita precisão.
Sócrates — Considera também o seguinte: se alguém nos perguntasse a respeito de
alguma coisa vulgar e corriqueira, por exemplo: o que é lama, e lhe respondêssemos que
há a lama dos oleiros, a dos construtores de fornos e a dos tijoleiros, não nos tornaríamos
ridículos?
Teeteto — É provável.
Sócrates — Para começar, por imaginarmos que nosso interlocutor compreende o
que dizemos quando falamos em lama, muito embora acrescentemos que se trata da
lama de fabricantes de bonecas ou a de qualquer outro artesão. Ou achas que alguém
entenderá o nome de alguma coisa, se desconhece sua natureza?
Teeteto — De forma alguma.
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 33
V
Teeteto — Agora, Sócrates, ficou muito fácil a questão. Quer parecer-me que é
igualzinha à que nos ocorreu recentemente, numa discussão entre mim e este teu
homônimo.
Sócrates — Qual foi a questão, Teeteto?
Teeteto — A respeito de algumas potências, Teodoro, aqui presente, mostrou que a
de três pés e a de cinco, como comprimento não são comensuráveis com a de um pé. E
assim foi estudando uma após outra, até a de dezessete pés. Não sei por que parou aí.
Ocorreu-nos, então, já que é infinito o número dessas potências, tentar reuni-las numa
única, que serviria para designar todas.
Sócrates — E encontrastes o que procuráveis?
Teeteto — Acho que sim; examina tu mesmo.
Sócrates — Podes falar.
Teeteto — Dividimos os números em duas classes: os que podem ser formados pela
multiplicação de fatores iguais, representamo-los pela figura de um quadrado e os desig-
namos pelos nomes de quadrado e de equilátero
Sócrates — Muito bem.
Teeteto — Os que ficam entre esses, o três, por exemplo, e o cinco, e todos os que
não se formam pela multiplicação de fatores iguais, mas da multiplicação de um número
maior por um menor, ou o inverso: a de um menor por um maior, e que sempre são
contidos em uma figura com um lado maior do que o outro, representamo-los sob a figura
de um retângulo e os denominamos números retangulares.
Sócrates — Ótimo. E depois?
Teeteto — Todas as linhas que formam um quadrado de número plano equilátero
definimos como longitude, e as de quadrado de fatores desiguais, potências ou raízes,
por não serem comensuráveis com as outras pelo comprimento, mas apenas pelas super-
fícies que venham a formar. Com os sólidos procedemos do mesmo modo.
34 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Sócrates — Melhor não fora possível, meninos. Acho que Teodoro não pode ser
acoimado de falso testemunho.
Teeteto — No entanto, Sócrates, a questão por ti apresentada a respeito do conhe-
cimento, não saberei resolvê-la como fiz com a da raiz e do comprimento, conquanto
pense que seja mais ou menos isso o que procuras. Do que se colhe que, mais uma vez,
Teodoro não falou a verdade.
Sócrates — Como? Se ele te houvesse elogiado por correres bem, afirmando nunca
ter encontrado entre os moços quem te vencesse na carreira e, depois, nalguma compe-
tição fosses vencido por um homem feito e de pés velozes achas que seu juízo teria sido
menos verdadeiro?
Teeteto — Não, decerto.
Sócrates — E agora, parece-te que descobrir o conhecimento tal como o apresentei
há pouco, seja tarefa secundária e não um tema da mais alta responsabilidade?
Teeteto — Não, por Zeus; é dos mais difíceis.
Sócrates — Sendo assim, readquire a confiança em ti próprio e não desfaças no
testemunho de Teodoro, esforçando-te quanto puderes para encontrar a explicação das
coisas, principalmente do que venha a ser conhecimento.
Teeteto — Quanto a esforçar-me, Sócrates, podes ficar tranquilo.
VI
Sócrates — Então, vamos. E já que indicaste o caminho, toma como modelo o que
tu mesmo disseste a respeito das potências, e assim como reduziste a uma única forma
aquela multiplicidade, designa agora por um só termo todos esses conhecimentos.
Teeteto — Convém saberes, Sócrates, que já por várias vezes procurei resolver essa
questão, por ter ouvido falar no que costumas perguntar sobre isso. Porém não posso
convencer-me de que cheguei a uma conclusão satisfatória, como nunca ouvi de ninguém
uma explicação como desejas. Apesar de tudo, não consigo afastar da ideia essa questão.
Sócrates — São dores de parto, meu caro Teeteto. Não estás vazio; algo em tua alma
deseja vir à luz.
Teeteto — Isso não sei, Sócrates; só disse o que sinto.
Sócrates — E nunca ouviste falar, meu gracejador, que eu sou filho de uma parteira
famosa e imponente, Fanerete?
Teeteto — Sim, já ouvi.
Sócrates — Então, já te contaram também que eu exerço essa mesma arte?
Teeteto — Isso, nunca.
Sócrates — Pois fica sabendo que é verdade; porém não me traias; ninguém sabe
que eu conheço semelhante arte, e por não o saberem, em suas referências à minha
pessoa não aludem a esse ponto; dizem apenas que eu sou o homem mais esquisito, do
mundo e que lanço confusão no espírito dos outros. A esse respeito já ouviste dizerem
alguma coisa?
Teeteto — Ouvi.
Sócrates — Queres que te aponte a razão disso?
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 35
36 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
VII
Sócrates — A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a
diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os
corpos, em seu trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste
na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de
conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular,
sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de
verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apre-
sentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E
a razão é a seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de
conceber. Por isso mesmo, não sou sábio não havendo um só pensamento que eu possa
apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela dado à luz. Porém os que
tratam comigo, suposto que alguns, no começo pareçam de todo ignorantes, com a
continuação de nossa convivência, quantos a divindade favorece progridem admiravel-
mente, tanto no seu próprio julgamento como no de estranhos. O que é fora de dúvida
é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas belas
que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como parteira. E a prova é
o seguinte: Muitos desconhecedores desse fato e que tudo atribuem a si próprios, ou por
me desprezarem ou por injunções de terceiros, afastam-se de mim cedo demais. O resul-
tado é alguns expelirem antes do tempo, em virtude das más companhias, os germes por
mim semeados, e estragarem outros, por falta da alimentação adequada, os que eu
ajudara a pôr no mundo, por darem mais importância aos produtos falsos e enganosos
do que aos verdadeiros, com o que acabam por parecerem ignorantes aos seus próprios
olhos e aos de estranhos. Foi o que aconteceu com Aristides, filho de Lisímaco, e a outros
mais. Quando voltam a implorar instantemente minha companhia, com demonstrações
de arrependimento, nalguns casos meu demônio familiar me proíbe reatar relações;
noutros o permite, voltando estes, então, a progredir como antes. Neste ponto, os que
convivem comigo se parecem com as parturientes: sofrem dores lancinantes e andam dia
e noite desorientados, num trabalho muito mais penoso do que o delas. Essas dores é
que minha arte sabe despertar ou acalmar. É o que se dá com todos. Todavia, Teeteto, os
que não me parecem fecundos, quando eu chego à conclusão de que não necessitam de
mim, com a maior boa vontade assumo o papel de casamenteiro e, graças a Deus, sem-
pre os tenho aproximado de quem lhes possa ser de mais utilidade. Muitos desses já
encaminhei para Pródico, e outros mais para varões sábios e inspirados. Se te expus tudo
isso, meu caro Teeteto, com tantas minúcias, foi por suspeitar que algo em tua alma está
no ponto de vir à luz, como tu mesmo desconfias. Entrega-te, pois, a mim, como o filho
de uma parteira que também é parteiro, e quando eu te formular alguma questão, pro-
cura responder a ela do melhor modo possível. E se no exame de alguma coisa que dis-
seres, depois de eu verificar que não se trata de um produto legítimo mas de algum
fantasma sem consistência, que logo arrancarei e jogarei fora, não te aborreças como o
fazem as mulheres com seu primeiro filho. Alguns, meu caro, a tal extremo se zangaram
comigo, que chegaram a morder-me por os haver livrado de um que outro pensamento
extravagante. Não compreendiam que eu só fazia aquilo por bondade. Estão longe de
admitir que de jeito nenhum os deuses podem querer mal aos homens e que eu, do meu
A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s 37
lado, nada faço por malquerença pois não me é permitido em absoluto pactuar com a
mentira nem ocultar a verdade.
VIII
Volta, pois, para o começo, Teeteto, e procura explicar o que é conhecimento. Não
me digas que não podes; querendo Deus e dando-te coragem, poderás.
Teeteto — Realmente, Sócrates, exortando-me como o fazes, fora vergonhoso não
esforçar-me para dizer com franqueza o que penso. Parece-me, pois, que quem sabe
alguma coisa sente o que sabe. Assim, o que se me afigura neste momento é que conhe-
cimento não é mais do que sensação.
Sócrates — Bela e corajosa resposta, menino. É assim que devemos externar o pen-
samento. Porém examinemos juntos se se trata, realmente, de um feto viável ou de
simples aparência. Conhecimento, disseste, é sensação?
Teeteto — Sim.
Sócrates — Talvez tua definição de conhecimento tenha algum valor; é a definição
de Protágoras; por outras palavras ele dizia a mesma coisa. Afirmava que o homem é a
medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não
existem. Decerto já leste isso?
Teeteto — Sim, mais de uma vez.
Sócrates — Não quererá ele, então, dizer que as coisas são para mim conforme me
aparecem, como serão para ti segundo te aparecerem? Pois eu e tu somos homens.
Teeteto — É isso, precisamente, o que ele diz
Sócrates — Ora, é de presumir que um sábio não fale aereamente. Acompanhemo-
-lo, pois. Por vezes não acontece, sob a ação do mesmo vento, um de nós sentir frio e o
outro não? Um ao de leve, e o outro intensamente?
Teeteto — Exato.
Sócrates — Nesse caso, como diremos que seja o vento em si mesmo: frio ou não
frio? Ou teremos de admitir com Protágoras que ele é frio para o que sentiu arrepios e
não o é para o outro?
Teeteto — Parece que sim.
Sócrates — Não é dessa maneira que ele aparece a um e a outro?
Teeteto— É.
Sócrates — Ora, este aparecer não é o mesmo que ser percebido? [...]
38 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Resumo
Nesta unidade você aprendeu sobre a tradição do pensamento mitológico e o
início do pensamento filosófico na Grécia Antiga. Aprendeu um pouco sobre os
primeiros filósofos considerados naturalistas porque interpretavam os fenômenos
naturais. Conheceu o movimento sofista, tão importante para o desenvolvimento
do modelo político consolidado na Grécia. Por fim, conheceu a filosofia clássica
representada por Platão e Aristóteles. Eles não foram os únicos a figurarem no
pensamento clássico, mas são os principais representantes daquela época. Esta
unidade apresentou, também, o pensamento medieval que representa a nossa
formação ocidental cristã.
Na próxima unidade você irá aprender um pouco da Filosofia moderna e
o que ela representa em nossa sociedade ocidental e nossa formação cultural.
Atividades de aprendizagem
1. O que é o pensamento mitológico e quais são as suas características?
2. Faça uma lista de pensamentos mitológicos que ainda permeiam as explicações
da realidade.
3. Como aconteceu a passagem do mitos ao logos?
4. Como se deu e o que representou o movimento sofista?
5. Qual foi a importância de Sócrates na formação da cultura ocidental?
6. Como se caracterizou o pensamento medieval e quais foram os filósofos que o
representaram?
Unidade 2
O pensamento
moderno
Márcia Bastos de Almeida
Seção 2: O racionalismo
Nesta seção você vai conhecer o modelo de conhe-
cimento que fundamenta as teorias inatistas (aprio-
ristas) de educação. Esse modelo está presente em
algumas concepções da Psicologia.
Seção 3: O empirismo
Nesta seção você irá fazer uma análise das principais
características do modelo empírico de conhecimento
e compará-lo com as práticas docentes em várias
dimensões, por exemplo, o modelo de avaliação do
sistema educacional.
Seção 6: O positivismo
Nesta seção você poderá aprender como e por que
a Filosofia positivista influenciou o pensamento
brasileiro e, principalmente,no projeto educacional
da Primeira República.
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 41
Introdução ao estudo
Com esta unidade, compreenderemos o movimento epistemológico a partir da
Idade Moderna e suas implicações no modelo social. A importância de se estudar,
aprender, conhecer e compreender o processo de conhecimento de conhecimento
que foi se construindo na história da humanidade é porque tais modelos direcionam
todo nosso modo de viver. São esses modelos que vão dando dimensão e formato a
nossa visão de mundo, de homem e de sociedade. Cada modelo norteia nossa prática
profissional e nossas escolhas diárias. A postura que adotamos diante do mundo para
avaliar e escolher tem seu fundamento em uma concepção epistemológica. Por isso,
entendemos que há uma relação intrínseca entre conhecimento, valores e formação
humana.
Cada modelo epistemológico ou modelo de conhecimento é como se fossem
óculos coloridos que escolhemos: cada lente é um modelo de conhecimento e cada
uma com uma cor. De acordo com a cor escolhida será o tom da nossa visão de
mundo. Mas, geralmente, “esses óculos” não são escolhidos de forma espontânea,
eles são impostos por um modelo de conhecimento que fundamenta os interesses
de uma classe hegemônica (uma classe que tem mais poder sobre as outras classes).
O que ocorre é que não temos consciência disso. Apenas vamos fazendo, es‑
colhendo, julgando e aprendendo. Depois ensinamos da mesma forma, ou seja,
vamos reproduzindo uma forma de interpretar o mundo, da mesma forma que nos
foi ensinado.
Por isso, esta unidade complementa as outras. Nossa prática reflexiva e filosófica
tem uma fundamentação epistemológica. Isto quer dizer que o nosso fazer profissional
tem, antes de tudo, que responder à questão: Por quê e para quê estamos fazendo isso
e não aquilo? Escolhendo essa e não aquela ação. Quando fazemos essas perguntas
é porque estamos buscando significado às nossas ações, ou estamos buscando um
estatuto de conhecimento (estatuto epistemológico) para as nossas ações. Assim,
convidamos você para mais uma viagem no tempo. Vamos para a Idade Moderna no
século XVI.
42 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
natureza. Foi dessa forma que, aos poucos, o conhecimento científico foi se desvin‑
culando do conhecimento mitológico e passou a ser conhecido como filosófico. A
Filosofia, portanto, nasceu como uma episteme, ou, uma ciência. Portanto, a filosofia,
antes de ganhar o seu nome, era entendida como o modo científico de conhecer e
interpretar a realidade. Atualmente, quando nos referimos a algum “modelo científico”
estamos nos referindo à ciência moderna.
Assim, o modelo de conhecimento que temos na atualidade foi uma herança
deixada pelos filósofos da Idade Moderna. Antes disso, vamos repetir para você não
esquecer: conhecimento era episteme — epistemologia. Com a Idade Moderna a
episteme ganhou o nome de teoria do conhecimento e, com esse conceito, algumas
correntes filosóficas que postulavam a pergunta norteadora da nova ciência: como
podemos conhecer? Como é possível alcançar o verdadeiro conhecimento? Foram as
principais concepções de conhecimento, ou teoria do conhecimento que nos interes‑
sam na Pedagogia: o racionalismo; o empirismo; o criticismo kantiano; o positivismo
e as teorias consideradas emergentes.
A mudança de conceito episteme para teoria do conhecimento aconteceu porque,
entre a Antiguidade e a Idade Moderna, o mundo ocidental se tornou cristão. A nova
religião fecundou e se cristalizou durante a Idade Média. O cristianismo introduz con‑
ceitos e problemas que eram desconhecidos pelos filósofos da antiguidade clássica.
O cristianismo fez distinção entre fé e razão, verdades reveladas e
verdades racionais, matéria e espírito, corpo e alma; afirmou que
o erro e a ilusão são parte da natureza humana em decorrência
do caráter pervertido de nossa vontade, após o pecado original
(CHAUI, 2002, p. 113).
Para os gregos, que viveram muito tempo antes do advento cristão, o homem es‑
tava totalmente integrado à natureza e tinha com ela uma participação harmoniosa.
O homem estava integrado ao mundo em sua totalidade e, assim, não formulavam os
problemas que o cristianismo passou a formular. Ou seja, os antigos não fizeram as
mesmas perguntas que os gregos fizeram. Os problemas e as perguntas dos modernos
geraram outros problemas e outras perguntas com novas soluções.
Influenciados pelo modelo de pensamento cristão, os modernos continuaram no
projeto de separação. Gostamos de dizer que a “palavra de ordem” ou a palavra que
norteou todo o projeto de ciência moderna é: s-e-p-a-r-a-ç-ã-o. Eles começaram, de
saída, a separar fé e razão. Cada uma em seu devido espaço para o seu exercício. Se
a fé ficou separada da razão, surgiu daí outro problema: a alma-consciência. Vejamos
como ensina Chaui (2002, p.114): “[...] consideram que a alma-consciência, embora
diferente dos corpos, pode conhecê-los”.
Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os representa intelec‑
tualmente por meio das ideias e estas são imateriais como a própria alma (CHAUI,
2002). Isto quer dizer que os modernos atribuíram à alma a função de conhecer o
mundo concreto, em sua materialidade, e formular ideias abstratas (imaterial). Isso
Platão também já dizia lá no século VI a.C. Mas qual é a diferença entre o conceito
de alma em Platão e alma para os modernos? Platão não conheceu o cristianismo, é
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 43
bom reforçar essa ideia. Os modernos foram fortemente influenciados pela tradição
cristã, por isso a importância, para eles, da separação entre alma e corpo.
Saiba mais
Dicas de filmes:
O nome da rosa: Em 1327 William de Baskerville (Sean Connery), um monge franciscano, e
Adso von Melk (Christian Slater), um noviço que o acompanha, chegam a um remoto mosteiro
no norte da Itália. William de Baskerville pretende participar de um conclave para decidir se a
Igreja deve doar parte de suas riquezas, mas a atenção é desviada por vários assassinatos que
acontecem no mosteiro. William de Baskerville começa a investigar o caso, que se mostra bastante
intrincando, além dos mais religiosos acreditarem que é obra do Demônio.
Em nome de Deus: Os Lares Madalena, na Irlanda, eram de responsabilidade das Irmãs da
Misericórdia, em nome da Igreja Católica. Jovens mulheres eram mandadas para lá por suas
famílias ou pelos orfanatos e, uma vez lá, ficavam confinadas e obrigadas a trabalhar na lavagem
de roupa, onde poderiam expiar seus pecados.
44 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
depois dominar o homem. Rompendo com a razão metafísica dos medievais (razão
metafísica), que buscava os princípios em modelos fora do mundo sensível, a ciência
moderna passou a ditar novos modelos de compreensão do mundo.
Foram os filósofos Galileu Galilei, Renè Descartes, Francis Bacon que inicia‑
ram a Revolução Científica, como ficou conhecido o movimento de mudança de
conhecimento dos modernos. O primeiro confirmou o movimento dos planetas em
torno do Sol e retirou a Terra do centro do universo, figurou na história como mártir,
porque, preso pela Igreja (detentora do conhecimento), foi obrigado a retirar suas
conclusões sobre o posicionamento da Terra em favor da explicação aristotélica que
fundamentava a metafísica. O segundo, Descartes, foi o tematizador da ciência mo‑
derna, considerado o “pai” do racionalismo. Bacon, da mesma forma que Descartes,
criou um método, mas a partir da experiência sensível (do mundo corpóreo); mas o
filósofo que propôs uma teoria do conhecimento foi o inglês John Locke.
Foi a partir daí que a Teoria do Conhecimento passou a ser uma área, ou tema
filosófico. O tópico seguinte irá tratar do filósofo que, talvez, seja o mais repre‑
sentativo do período moderno e para a educação, porque seu projeto filosófico de
conhecimento inspirou muitas tendências pedagógicas.
Todo conhecimento, para esses filósofos, devia estar a serviço do homem, que a
partir da revolução passa a figurar como centro da razão e a sociedade passa a ser
antropológica. Isto quer dizer que é o homem que consegue alcançar o conhecimento
(na Idade Média, a verdade era revelada e o homem não tinha todo esse poder). De
acordo com Japiassu (2001, p. 67, grifo do autor), interpretando o pensamento de
Bacon, era assim o entendimento sobre a relação homem e natureza:
Todo o conhecimento deve estar a serviço da instauração do “reino
do homem”, visando a felicidade para todos. Se quisermos utilizar
tal projeto, precisamos reconhecer as causas das leis naturais,
forçar a natureza a submeter-se ao novo poder da Razão para que
se ponha a serviço do “reino do homem”. Porque, doravante, não
podemos abrir mão da nossa condição de senhores (mestres) do
mundo: precisamos exercer nosso poder sobre as coisas a fim de
transformá-las e pô-las a nosso serviço. De posse de uma nova
magia, da magia natural fundada na técnica, temos condições
de transformar o mundo, não mais com meios absurdos, mas, à
maneira de Alexandre e Julio César, obtendo vitórias reais e con‑
quistando concretamente a superfície da terra.
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 45
46 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Seção 2 O racionalismo
Renè Descartes dedicou seu tempo e sua obra na busca da real possibilidade de
se alcançar o verdadeiro conhecimento e, também, na fundamentação da ciência.
Todo projeto de conhecimento começa com uma pergunta que irá nortear todo o
trabalho do filósofo ou do cientista. Para Descartes a pergunta foi: como podemos
errar? Ele fez essa pergunta pois durante séculos todos acreditaram que a Terra era um
planeta fixo e o centro do Universo e, com os modernos, descobriu-se que não era
bem assim, como já dissemos. Portanto, Descarte começou por aí: por que erramos?
Ele considerava que a racionalidade é natural no sujeito. Sua obra mais conhe‑
cida é O discurso do método, onde ele registra essa ideia. Ou seja, para Descartes
o sujeito é dotado de uma racionalidade desde o seu nascimento. Daí a teoria das
ideias inatas. Mas logo ele concluiu que o sujeito erra porque faz uso da razão, da
racionalidade de forma errada. É preciso, “ensinar” a mente para que a razão possa
encontrar as ideias verdadeiras de forma clara. Claras e distintas, ou seja, de forma
separada para não serem confundidas.
Saiba mais
Você pode acessar a biblioteca digital e ler o livro citado: O discurso do método. Esse livro é
muito importante para saber por que o modelo educacional ficou durante muito tempo se
constituindo de forma fragmentada. Hoje falamos interdisciplinaridade porque durante muito
tempo ensinava-se como se o sujeito tivesse uma porção de gavetinhas onde os conhecimentos
eram introduzidos separadamente.
Acesse: <www.unopar.br/bibli01/catalogos.htm>.
o pensamento moderno 47
48 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Saiba mais
Os céticos representavam uma corrente filosófica que desconfiava da possibilidade plena do
conhecimento do todo. A palavra “ceticismo” está incorporada em nossa linguagem de maneira
reduzida. Dizer-se cético sobre algum tema significa não acreditar ou desconfiar da validade do
tema ou do conceito apresentado. No entanto, os céticos existem desde a antiguidade clássica
e há várias concepções de ceticismo.
Para saber mais sobre essa corrente, pode-se utilizar algum dicionário de Filosofia ou recorrer ao
site: <www.suapesquisa.com/filosofia/>.
o pensamento moderno 49
O primeiro diz respeito aos nossos sentidos que nos enganam. Além dos ob‑
jetos nos enganarem com relação a tamanho, peso etc., é preciso colocar em
dúvida nossa capacidade cognitiva para conhecê‑los;
O segundo diz respeito à nossa percepção do real enquanto estamos dormindo.
Nossos sonhos nos parecem muito reais e quando acordamos percebemos que
o real não passou de sonho. Como saber então se estou dormindo ou acordado?
Com o terceiro argumento, que deve consistir em dúvida, Descartes surpreende:
ele parte da ideia de um Deus criador que “[...] tudo pode e que me criou
como sou”. Poderia, então, acreditar na existência do céu, na Terra, e em todas
as coisas sem que isso, de fato, existisse. Portanto, ele teria sido criado na por
um Deus, mas por um gênio maligno. Nesse caso é preciso suspender todos os
juízos sobre tudo, suspeitar de tudo e preparar o espírito para as “artimanhas
de um deus enganador”.
Portanto, a dúvida é o motor do método cartesiano para se alcançar o verdadeiro
conhecimento. “A dúvida visa, portanto à certeza, sendo precisamente um critério
para se testar a validade dessa certeza” (MARCONDES, 2000, p. 167).
O pensamento de Descartes tem como contexto ou pano de fundo as grandes
transformações ocorridas na Modernidade. Várias coisas aconteceram e continuaram
a acontecer que mudaram profundamente a sociedade e a história da humanidade.
Nos séculos XVI e XVII as grandes navegações expandiram de forma considerá‑
vel o mundo. Dessa forma, o conhecimento prático dos navegadores foi reavaliado.
O sistema feudal entrou em decadência por várias razões: a peste matou número
considerável de homens que trabalhavam na terra; as guerras empreendidas pelas
Cruzadas também fizeram com que parte da população masculina fosse exterminada.
Muitos soldados e senhores feudais não retornaram suas terras porque morreram e,
dessa forma, muitos feudos ficaram abandonados.
Do caos que se constituíram todos esses elementos, outra classe começou a
emergir: a burguesia. O modo de produção começou a mudar. Era o capitalismo que
acenava com sua chegada e acabou ficando até os nossos dias.
Para um modo de produção se efetivar é preciso um novo modelo de teoria política
e um novo modelo de teoria econômica. Para isso, é preciso mudar o modo de conhe‑
cer. Nesse cenário, com todos esses fatores, os filósofos que estavam insatisfeitos com
o conhecimento, ou a racionalidade metafísica, passaram a propor um novo tipo de
conhecimento. Inaugurou‑se, portanto, no início da Idade Moderna, o conhecimento
científico. A racionalidade científica passou a determinar o conhecimento.
Descartes deixou esse legado na história da humanidade por fundamentar a pos‑
sibilidade do conhecimento científico garantido por uma verdade inquestionável. Por
isso ele adota o racionalismo como fonte segura para alcançar a verdade. A razão
natural é o ponto de partida do processo de conhecimento e criando um método
para “bem conduzir esta razão”.
50 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Seção 3 O empirismo
Outra teoria de conhecimento também propôs uma forma segura de se alcançar
verdadeiro conhecimento, desvinculado da racionalidade metafísica e diferente do
racionalismo. O modelo Empírico de conhecimento parte das propriedades quantifi‑
cáveis como fonte segura do conhecimento. “O empirismo valoriza a experiência hu‑
mana, a realidade concreta, a atividade do individuo” (MARCONDES, 2000, p. 176).
Os nomes que marcaram esse modelo de conhecimento que se constituiu entre
os filósofos ingleses foram: Francis Bacon (1561-1753), Thomas Hobbes (1588-1679),
John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685- 1753) e David Hume (1711-1776).
No entanto, o empirismo clássico — que é o que iremos tratar aqui — está repre‑
sentado por Bacon, Locke e Hume. Então, vamos conhecer o pensamento de Bacon,
que também elaborou um método para se alcançar o conhecimento. Junto com Des‑
cartes, Bacon é considerado um dos inauguradores da modernidade.
Assim como Descartes, Bacon se norteia pela ideia de encontrar o conhecimento
verdadeiro por um método que evite erros e ilusões. Vejamos o que nos ensina Mar‑
condes (2000, p. 178, grifo do autor):
Este é um dos sentidos primordiais do pensamento crítico, que
marcará fortemente a filosofia moderna, vendo a tarefa da filosofia
como a liberação do homem de preconceitos, ilusões e supersti‑
ções. É nesse contexto que encontramos sua teoria dos Ídolos. Os
ídolos são ilusões ou distorções que, segundo Bacon, “bloqueiam a
mente humana”, impedindo o verdadeiro conhecimento. Os ídolos
podem ser de quatro tipos: ídolos da tribo; ídolos da caverna; ídolos
de foro e ídolos do teatro.
Os ídolos da tribo resultam da natureza humana. Para Bacon, o homem está total‑
mente desvinculado com o universo, nada lhe é compatível. Isto significa, para ele,
que há limites do homem para o conhecimento do real. O homem, naturalmente, não
tem competência para acessar o mundo, o verdadeiro conhecimento, “[...] o intelecto
humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas
e, dessa forma, as distorce, e corrompe” (NOVUM ORGANUN apud MARCONDES,
2000, p. 178).
O ídolo da caverna é aquilo que constitui o homem em sua individualidade, suas
características físicas, as influências que recebe do meio que vão significando o seu
mundo. O sujeito é singular.
Os ídolos de foro são as relações de comunicação que o homem constitui durante
a vida. São as ideias divergentes, os discursos, as palavras que vão dando sentido à
sua vida particular.
Os ídolos do teatro são as doutrinas filosóficas e científicas que vão influenciando
o modo de agir e de pensar do homem que, para Bacon, figuram mundos fictícios e
teatrais. “Bacon examina os diferentes tipos de ídolos e desenvolvendo uma crítica
dos sistemas tradicionais filosóficos e de ciência, sobretudo o aristotélico” (MAR‑
CONDES, 2000, p. 179).
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 51
52 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
é a mesmo dos anos 1940, 1950 ou 1960: queremos silêncio, o que atualmente é
impossível, para poder ensinar bem. Porque para o professor ensinar bem é ter condi‑
ções para fazê-lo. A classe deve, portanto, se constituir em espaço propício para que
o professor fale e o aluno ouça, o professor pergunta e o aluno responde (de forma
ordenada), a sala deve ser organizada de forma linear, onde as carteiras devem ficar
organizadas possibilitando a visualização de toda classe pelo professor. O professor
é quem decide o que irá ensinar porque é ele o detentor do conhecimento. Apren‑
demos nesse modelo e deu certo! Sempre dizemos isso. Não queremos aqui levantar
disputas sobre modelos de ensino. Queremos mostrar que nesse modelo apresentado
há um pressuposto epistemológico embutido. Existe uma teoria de conhecimento
fundamentando essa prática de ensino, mesmo que o professor ou professora desco‑
nheça. Esse modelo é o empirismo. O professor considera o aluno como uma tábula
rasa, portanto o objeto, que terá que “preenchido” com o conhecimento que ele, o
“sujeito”, tem. Nada do que o aluno traz consigo é valorizado e reesignificado.
Saiba mais
Dica de filme:
Clube do imperador: O filme conta a história de um colégio interno onde um professor chamado
Hundert (Kevin Kline) forma “o Clube do Imperador” para estudar cultura greco-romana. No
clube, o mestre tenta moldar a personalidade dos alunos usando os bons exemplos dos perso-
nagens históricos.
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 53
54 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Essa ideia de que o universo é como uma máquina surgiu com Descartes e foi
consolidada por Newton, que postulou formação do universo por átomos e com mo‑
vimento idêntico a uma máquina, regular e previsível, fundamentada e expressa por
um racionalismo calculador e quantificador. A natureza, conforme Japiassu (2001,
p. 71, grifo do autor):
[...] passa a ser concebida como devendo obedecer a uma ordem
racional determinada por uma “filosofia experimental” impondo-se
contra todas as demais formas de saber. [...] O mundo apresenta-se
como uma espécie de sistema mecânico funcionando como uma
máquina. Aos poucos, o mecanicismo converte-se em programa
geral da ciência moderna.
No entanto, para o pensador, seria preciso superar o cristianismo, que seria o maior
obstáculo para a apropriação desse conhecimento.
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 55
56 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 57
Seção 6 O positivismo
O pensamento positivista fundamenta-se no modelo científico moderno, na orga‑
nização técnica e industrial da sociedade moderna considerando o método científico
o único caminho válido para o conhecimento. O positivismo postula a legitimidade
da ciência moderna para a organização da sociedade.
Inaugurada por Auguste Comte e, embora se constitua como uma corrente de
pensamento filosófico, foi apropriada pelos socialistas utópicos em 1830. Já no final
do século XIX, sua mentalidade, a positivista, constitui a terceira e definitiva men‑
talidade em relação às outras (teológica/mitológica e metafísica). Para Comte, a hu‑
manidade passou por duas formas de pensamentos ou duas mentalidades formadoras
da cultura ocidental: o período teológico/mitológico (Idade Clássica) e o metafísico
(Idade Média). No entanto, seria preciso, pela ciência fazer com que a humanidade
fosse guiada pelo positivismo.
O modelo positivista tem sua inspiração no empirismo inglês e no sucesso dos
avanços das ciências experimentais como a química e a biologia.
O surgimento dos primeiros argumentos evolucionistas e o de‑
senvolvimento das ciências sociais, baseadas na observação dos
fatos, conduziram à classificação de determinadas estruturas, que
antes eram consideradas naturais, como circunstâncias culturais.
Ou seja, passa-se a explicar todos os componentes da realidade
cultural a partir de um método próprio das ciências naturais. Temos
assim o domínio da chamada relação da causalidade (CHALITA,
2005, p. 338).
Essa ideia significa que o positivismo postula que tudo o que acontece tem uma
causa. Dessa forma, o cientista aplicando esse princípio espera a repetição do fenô‑
meno. O ositivismo se apropria dos princípios da ciência experimental, ou empírica,
para compreender e organizar a sociedade.
O estado positivo é o coroamento do modelo científico moderno, a consoli‑
dação da concepção mecanicista de universo e o reforço da teoria empirista de
conhecimento.
Links
Acesse:
<www.mundodosfilosofos.com.br/comte.htm#ixzz1fF6YZqzw>.
No site indicado, você terá mais informações sobre o tema tratado e indicações de outros textos
e links para aprender mais.
58 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 59
60 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
idade. Antes disso, o homem não está preparado em suas funções intelectuais para
a apreensão desse conjunto de conhecimentos científicos.
A educação positiva opera por ações das mães, pensando que no estado positivo
as mulheres se ocupam da educação física, moral e estética durante a formação in‑
fantil. É na infância e sob os cuidados da mãe — mulher com os conceitos positivos
introjetados — que devem ensinar a cuidar do corpo, os costumes e regras morais da
sociedade (positiva), a apreciação do belo e o desenvolvimento da criatividade que
acontecem durante o estágio latente e na primeira infância. Na adolescência, o ho‑
mem já pode dar início aos conhecimentos cientificistas e organizados positivamente.
Entre 14 e 21 anos de idade, o adolescente deveria receber uma educação siste‑
mática (organizada), não mais ministrada pela mãe no domicílio, mas por sacerdotes
positivistas em uma escola anexa ao templo, onde se estudaria o conjunto das sete
ciências: matemática, astronomia, física, química,
biologia, sociologia e moral. Essa organização
Para saber mais curricular obedece a uma ordem hierárquica, da
ciência mais importante a menos importente. Ao
O modelo de organização hierár- longo dessas etapas o aluno reproduziria os está‑
quica dos conhecimentos está re- gios de evolução intelectual da humanidade até
presentado por uma pirâmide. Na atingir o estágio positivo de maturidade intelec‑
base da pirâmide está a matemá- tual para uma interpretação racional da realidade
tica, seguida da astronomia, física, e organização social.
química, biologia e sociologia. Por- A educação é a base fundamental sob a qual
tanto, a área de conhecimento se assenta a formação do indivíduo que, em sua
mais importante é a matemática e marcha ascendente de desenvolvimento, é in‑
depois as outras. corporado à humanidade. Essas propostas são
as metas do positivismo para a reorganização da
humanidade.
O positivismo se apresenta, dessa forma, como uma doutrina fundamentada na
fixidez (fixo) de ideias na garantia de uma comunhão dos seus princípios por toda
a humanidade. Essa filosofia positivista possibilita a descoberta racional das leis do
espírito humano.
E assim podemos compreender que o pensamento positivista de Augusto Comte
tem uma vocação pedagógica porque é na educação que o homem se desenvolve
para alcançar uma consciência positiva que conduza a sociedade ao estado positivo.
A Filosofia positivista influenciou de forma significativa a educação brasileira,
principalmente durante a primeira República. Comte foi insperado na construção
de seu pensamento, por acreditar que a sociedade norteada pelos ideais sociais e
burgueses modernos seria marcada pelo anarquismo, resultado do fim da unidade
espiritual após a separação entre Estado e Igreja.
Essa separação seria um acelerador de degradações que somente uma educa‑
ção, nos moldes positivistas, seria capaz de promover uma aprimoramento social e
humano. Embora ele nunca tivesse escrito uma obra, especificamente pedagógica,
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 61
62 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
rio popular, significa inclusive alcançar uma ascenssão social sustentada por uma
aquisição financeira mais representativa. O modelo científico moderno introjetou na
sociedade essa ideias. Nesse sentido, o tempo está representado de forma relojoeira:
de forma contínua e com um acúmulo das fases que ao final promove um “aperfeiçoa
mento” em todos os seres vivos. Reinvidaremos o pensamento de Chaui (2002, p. 256):
Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente
em relação ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim,
os europeus civilizados seriam superiores aos africanos e aos índis,
a física galilaico-newtoniana seria superior à aristotélica, a física
quântica seria superior à de Galileu e de Newton.
Assim, o que ficou registrado em nosso imaginário foi a ideia de que evoluir é se
tornar “superior” e progredir é ir sempre em direção a uma finalidade superior. Assim,
nos empenhamos em buscar uma formação melhor e, de preferência, que tenha uma
representação social mais valorizada, queremos sempre um modelo de transporte
superior ao que utilizamos. Por exemplo: deixamos de caminhar quando compramos
uma bicicleta que abandonamos por uma motocicleta que é abandonada por um carro
que será abandonado por outro mais potente e assim por diante. Mas agora a ciência
nos alerta: caminhar faz bem à saúde! Os engenheiros de trânsito avisam: não há
espaço para tanto carro e é preciso retomar a velha bicicleta há muito encostada e,
mais, utilizar o velho mecanismo corporal mais conhecido como PERNAS para ir e vir.
A ideia de evolução e progresso está representada pelo modelo científico vigente,
de forma linear e mesmo na história estão refletidos o pensamento e método utilizados
nas ciências biológicas:
O germe, a semente ou a larva são entre que contêm neles mes‑
mos tudo o que lhes acontecerá, isto é, o futuro já está contido
no ponto inicial de um ser cuja história ou tempo nada mais é do
que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era
potencialmente (CHAUI, 2002, p. 256).
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 63
Nesse filme você poderá ver a ideia de um ideal de sujeito “melhorado” para uma
sociedade organizada dentro dos princípios de evolução e progresso.
No entanto, essa ideia de progresso e evolução a partir de um contínuo ascendente
caiu por terra quando a filosofia da ciência compreendeu que as ideias científicas
contemplam diferenças e descontínuos. Essa é a grande revolução das ciências a
partir do século passado, do século XX.
De acordo com Chaui (2002), ao comparar, por exemplo, os pressupostos da
geometria clássica — espaço plano — e a contemporânea — que opera com espaço
tridimensional, percebe-se que são duas geometrias com princípios, objetos, concei‑
tos e demonstrações diferentes e não partícipes de um processo de evolução sucessiva.
Dessa forma, compreendeu-se que há uma “descontinuidade” representada por
diferentes estágios de tempo entre as teorias científicas. O que está contida nessa
ideia é a refutação da ideia de evolução. Essas teo
rias são consequência de mudanças conceituais.
Por isso acontecem as rupturas epistemológicas
(expressão criada pelo filósofo Gaston Bachelar). Para saber mais
Aqui você deve estar se perguntando: por que É preciso retomar o conceito de
temos que estudar isso? E respondemos: porque a
epistemologia.
Pedagogia, que reivindica para si o estatuto cien‑
tífico, é a ciência que sistematiza o conhecimento Esta palavra é composta de dois
científico. Portanto, não há ensino desprovido de termos gregos: episteme, que sig-
um pressuposto epistemológico. Como vemos, o nifica ciência, e logia, vinda de lo-
nosso sujeito que aprende depende do modelo de gos, significa conhecimento.
conhecimento no qual estamos inseridos. Epistemologia é o conhecimento
Mas voltando à nossa “ruptura epistemoló‑ filosófico sobre as ciências.
gica”. Foi durante o século passado, portanto o
século XX, que ocorreu uma nova ruptura a partir
da percepção dessa descontinuidade do tempo e do espaço. Isso foi percebido pelo
cientista Einstein, entre outros. Os físicos deram o nome de física quântica para
expressar o modelo físico que postula a não linearidade dos fenômenos incluindo o
tempo e o espaço.
É nesse postulado que surgiram outras teorias que são conhecidas como emer‑
gentes, mas existem outros nomes: holística, sistêmica e complexa. Cada uma repre‑
sentada por um arcabouço teórico de diferentes teóricos. Quem criou a expressão
teoria emergente foi o filósofo Boaventura de Sousa Santos.
64 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Aprofundando o conhecimento
O texto escolhido para a próxima leitura é de um filósofo que representou
de forma significativa a ciência inaugurada na Idade Moderna: Thomas Hume.
Assim, apresentamos um pequeno trecho de uma de suas obras. O ensaio sobre
o entendimento humano (HUME, s.d.) é o desenvolvimento de uma teoria de
conhecimento que influenciou de forma fundamental o pensamento de Kant e
com este houve uma “virada” epistemológica. Ou seja, houve uma virada na
forma de compreensão do conhecimento. Na Idade Moderna, o grande dilema
foi a busca de compreensão sobre o conhecimento. A pergunta norteadora de
todo o pensamento ocidental foi: como conhecemos?
Aproveite a leitura e aprenda mais!
SEÇÃO II
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 65
passadas, nosso pensamento é um reflexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porém
as cores que emprega são fracas e embaçadas em comparação com aquelas que revestiam
nossas percepções originais. Não énecessário possuir discernimento sutil nem predisposição
metafísica para assinalar a diferença que há entre elas. Podemos, por conseguinte, dividir
todas as percepções do espírito em duas classes ou espécies, que se distinguem por seus
diferentes graus de força e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente
denominadas pensamentos ou ideias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma
e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosóficos era necessário
compreendê-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-nos, por tanto, usar um pouco
de liberdade e denominá-las impressões, empre gando esta palavra num sentido de algum
modo diferente do usual. Pelo termo impressão entendo, pois, todas as nossas percepções
mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou que remos.
E as impressões diferenciam-se das ideias, que são as percepções menos vivas, das quais
temos consciência, quando refletimos sobre quais quer das sensações ou dos movimentos
acima mencionados. A primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento
humano, que não apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas também
nem sempre é reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e
juntar formas e aparências incongruentes não causam à imaginação mais embaraço do que
conceber os objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num
só planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode
transportar-nos num instante às regiões mais distantes do Universo, ou mesmo, além do
Universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a Natureza se encontra em total
confusão. Pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que
esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradição. Entretanto,
embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, através
de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito
reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de
transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e
pela experiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas ideias
compatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos. Podemos conceber um cavalo
virtuoso, pois o sentimento que temos de nós mesmos nos permite conceber a virtude e
podemos uni-la à figura e forma de um cavalo, que é um animal bem conhecido. Em resumo,
todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas
a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para expres-
sar-me em linguagem filosófica: todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias
de nossas impressões ou percepções mais vivas. Para prová-lo, espero que serão suficientes
os dois argumentos seguintes. Primeiro, se analisamos nossos pensamentos ou ideias, por
mais compostos ou sublimes que sejam, sempre verificamos que se reduzem a ideias tão
simples como eram as cópias de sensações precedentes. Mesmo as ideias que, à primeira
vista, parecem mais dis tantes desta origem mostram-se, sob um escrutínio minucioso,
derivadas dela. A ideia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e bom,
nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos in-
definidamente as qualidades de bondade e de sabedoria. Podemos continuar esta investi-
gação até a extensão que quisermos, e acharemos sempre que cada ideia que examinamos
66 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
é cópia de uma impressão semelhante. Aqueles que dizem que esta afirmação não é uni-
versalmente verdadeira, nem sem exceção, têm apenas um método, e em verdade fácil,
para refutá-la: mostrar uma ideia que, em sua opinião, não deriva desta fonte. Incumbir-
-nos-ia então, se quiséssemos preservar nossa doutrina, de mostrar a impressão ou percep-
ção mais viva que lhe corresponde. Segundo, se ocorre que o defeito de um órgão prive
uma pessoa de uma classe de sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade para
formar ideias correspondentes. Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um
surdo dos sons. Restaurai a um deles um dos sentidos de que carecem: ao abrirdes as por-
tas às sensações, pos sibilitais também a entrada das ideias, e a pessoa não terá mais difi-
culdade para conceber aqueles objetos. O mesmo fenômeno ocorre quando o objeto
apropriado para estimular qualquer sensação nunca foi aplicado ao órgão do sentido. Um
lapão ou um negro, por exemplo, não têm nenhuma noção do sabor do vinho. Apesar de
haver poucos ou nenhum caso de semelhante deficiência no espírito, em que uma pessoa
nunca sentiu ou que é completamente incapaz de um sentimento ou paixão próprios de
sua espécie, constatamos, todavia, que a mesma observação ocorre em menor grau. Um
homem de modos brandos não pode formar uma ideia de vingança ou de crueldade obs-
tinada, nem um coração egoísta pode conceber facilmente os ápices da amizade e da ge-
nerosidade. Em verdade, admitimos que outros seres podem possuir muitos sentidos dos
quais não temos noção, porque as ideias destes sentidos nunca nos foram apresentadas
pela única maneira por que uma ideia pode ter acesso ao espírito, isto é, mediante o sen-
timento e a sensação reais. Há, no entanto, um fenômeno contraditório que pode provar
que não é absolutamente impossível que as ideias nasçam independentes de suas impres-
sões correspondentes. Acredito que se concordaria facilmente que as várias ideias de cores
diferentes que penetram pelos olhos, ou aquelas de sons conduzidas pelo ouvido, são
realmente diferentes umas das outras, embora, ao mesmo tempo, parecidas. Ora, se isto é
verdadeiro a respeito das diferentes cores, deve sê-lo igualmente para os diversos matizes
da mesma cor; e cada matiz produz uma ideia diversa, independente das outras. Pois, se
se negasse isto, seria possível, por contínua gradação dos matizes, passar insensivelmente
de uma cor a outra completamente distante de série; se vós não admitis a distinção entre
os intermediários, não podeis, sem absurdo, negar a identidade dos extremos. Suponde,
então, uma pessoa que gozou do uso de sua visão durante trinta anos e se tornou perfei-
tamente familiarizada com cores de todos os gêneros, exceto com um matiz particular do
azul, por exemplo, que nunca teve a sorte de ver. Colocai todos os diferentes matizes daquela
cor, exceto aquele único, defronte daquela pessoa, decrescendo gradualmente do mais
escuro ao mais claro. Certamente, ela perceberá um vazio onde falta este matiz, terá o
sentimento de que há uma grande distância naquele lugar, entre as cores contíguas, mais
do que em qualquer outro. Ora, pergunto se lhe seria possível, através de sua imaginação,
preencher este vazio e dar nascimento à ideia deste matiz particular que, todavia, seus
sentidos nunca lhe forneceram? Poucos leitores, creio eu, serão de opinião que ela não
pode; e isto pode servir de prova que as ideias simples nem sempre derivam das impres-
sões correspondentes, mas esse caso tão singular é apenas digno de observação e não
merece que, unicamente por ele, modifiquemos nossa máxima geral. Eis, portanto, uma
proposição que não apenas parece simples e inteligível em si mesma, mas que, se se fizer
dela o uso apropriado, pode tornar toda discussão igualmente inteligível e eliminar todo
O p e n s a m e n t o m o d e r n o 67
jargão, que há muito tempo se apossou dos raciocínios metafísicos e os desacreditou. Todas
as ideias, especialmente as abstratas, são naturalmente fracas e obscuras; o espírito tem
sobre elas um escasso controle; elas são apropriadas para serem confundidas com outras
ideias semelhantes, e somos levados a imaginar que uma ideia determinada está aí anexada
se, o que ocorre com frequência, empregamos qualquer termo sem lhe dar significado
exato. Pelo contrário, todas as impressões, isto é, todas as sensações, externas ou internas,
são fortes e vivas; seus limites são determinados com mais exatidão e não é tão fácil confundi-
-las e equivocar-nos. Portanto, quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo
empregado sem nenhum significado ou ideia — o que é muito frequente — devemos
apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta ideia? E, se for, impossível
designar uma, isto servirá para confirmar nossa suspeita. E razoável, portanto, esperar que,
ao trazer as ideias a uma luz tão clara, removeremos toda discussão que pode surgir sobre
sua natureza e realidade. [...]
Resumo
Nesta unidade você aprendeu sobre as teorias epistemológicas. Foram mui‑
tas que ainda são estudadas. Todas influenciaram nossa cultura, nossa visão de
mundo, de homem e de sociedade. Todas fazem parte, indiretamente, de nossas
práticas profissionais.
Assim, acreditamos que com esta unidade tenhamos contribuído de forma
significativa com a formação de todos que se dispuseram a ler este livro didático
que foi escrito para você.
68 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Atividades de aprendizagem
1. Qual foi a importância da Idade Moderna para o nosso mundo contemporâneo?
2. Qual é a teoria que fundamenta a sua prática profissional?
3. O que significou o criticismo kantiano?
4. O que significa o termo ruptura epistemológica?
5. O que é ciência e quais são as suas características?
6. Qual é a relação entre conhecimento e formação humana?
Unidade 3
Cultura e
ideologia
Giane Albiazzetti
Okçana Battini
70 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Introdução ao estudo
Pensar nas relações culturais existentes em nossa sociedade muitas vezes nos
deixa perplexos, visto que nos deparamos com um emaranhado de fenômenos que
nos colocam em xeque: Como é possível existir uma enormidade de padrões cultu‑
rais em uma mesma sociedade? Como sujeitos de grupos distintos podem viver em
sociedade, de forma coletiva? E se pensarmos em uma sala de aula: quantos alunos,
quantas histórias de vida, quantas experiências... Nesse momento realmente a única
certeza que existe é que somos diferentes culturalmente! E saber dessa diferença
muitas vezes assusta ou nos faz procurar saber mais sobre ela. E para traçar este
caminho, convido vocês a seguirem comigo pela fascinante estrada, produzida pelo
homem, que ao transformar a natureza a seu favor criou símbolos e signos que nos
auxiliam a viver hoje em dia.
C u l t u r a e i d e o l o g i a 71
Essa relação pode ser vista como uma relação pautada na divisão entre os sujeitos
sociais, oriundas de práticas históricas, sendo que Marx observou que a sociedade
nasce pela estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho, divi‑
são social do trabalho, divisão social das trocas, divisão social das riquezas, divisão
social do poder econômico, divisão social do poder militar, divisão social do poder
religioso e divisão social do poder político. Por que divisão: porque em todas as
instituições sociais (família, trabalho, comércio, guerra, religião, política) uma parte
detém poder, riqueza, bens, armas, ideias e saberes, terras, trabalhadores, poder po‑
lítico, enquanto outra parte não possui nada disso, estando subjugada à outra, rica,
poderosa e instruída (CHAUI, 1995).
Notamos que esses conjuntos de divisões têm se tornado cada vez mais amplos e
complexos, multiplicando-se em muitas outras divisões sob forma de instituições. Elas
desenvolvem o que conhecemos como nossas estruturas sociais, sendo essas estruturas
fundadas na divisão de classes sociais. Marx e Engels (2001) chamam essa divisão de
condições materiais de existência, uma vez que se referem às práticas sociais que os
homens realizam por meio do trabalho e esse trabalho é o que garante nossa existência.
Segundo Marx e Engels (2001), existem variações dessas condições materiais de
existência, oriundas do momento histórico em que os homens realizam as ações des‑
critas acima, produzindo os chamados modos de produção. Chaui (1995) utiliza-se
de Marx para discutir que é através da história que existem as mudanças, passagens
ou transformações de um modo de produção para outro.
Tal mudança não se realiza por acaso nem por vontade livre dos
homens, mas acontece de acordo com condições econômica, so‑
ciais e culturais já estabelecidas, que podem ser alteradas de uma
maneira também determinada, graças à práxis humana diante de
tais condições dadas (CHAUI, 1995, p. 172).
Nesse contexto Marx e Engels (2001) colocam que as mudanças de uma sociedade
estabelecem-se em condições determinadas em que os homens fazem a história, mas
o fazem em condições determinadas, isto é, que não foram escolhidas por eles. Assim
ele fundamenta: “[...] os homens fazem a História, mas não a sabem que a fazem”
(CHAUI, 1995, p. 172).
Podemos chamar isso de alienação social, sendo que essa questão
pauta-se no desconhecimento das condições histórico-sociais con‑
72 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
C u l t u r a e i d e o l o g i a 73
74 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Na França, por sua vez, as mudanças provocadas pela Revolução Francesa cen‑
tralizavam-se no âmbito político. A burguesia contou com a colaboração efetiva dos
filósofos iluministas, que criticavam duramente a nobreza feudal e o sistema (desigual)
C u l t u r a e i d e o l o g i a 75
de privilégios que até então a sustentara. Essas críticas foram muito importantes para
mobilizar os trabalhadores e dar sustentação à proposta burguesa de reorganização
da sociedade, efetivada com a Revolução Francesa.
A burguesia, ao tomar o poder em 1789, investiu decididamente contra os fun‑
damentos da sociedade feudal, procurando construir um Estado que assegurasse sua
autonomia em face da Igreja e que protegesse e incentivasse a empresa capitalista.
Para a destruição do antigo regime, foram mobilizadas as massas, especialmente os
trabalhadores pobres das cidades (MARTINS, 1987).
Pode-se perceber, portanto, que tanto a Revolução Industrial quanto a Francesa
trouxeram novas condições de sobrevivência — econômicas, políticas e sociais — para
o mundo europeu. Embora estes dois acontecimentos históricos tenham sido extrema‑
mente importantes para a organização da sociedade que temos hoje, suas consequências
sociais marcaram significativamente a população europeia. Na verdade, o principal
“mérito” dessas revoluções foi o de possibilitar a plena e absoluta consolidação do
modo de produção capitalista, inicialmente na Europa, e em seguida em todo o mundo.
A população, no entanto, sofreu muito com todas essas transformações. A adap‑
tação ao meio urbano e à disciplina imposta pelo trabalho fabril foi um processo
muito doloroso aos trabalhadores, principalmente porque eles estavam completamente
habituados à dinâmica da vida no meio rural.
As consequências da rápida industrialização e urbanização levadas
a cabo pelo sistema capitalista foram tão visíveis quanto trágicas:
aumento assustador da prostituição, do suicídio, do alcoolismo, do
infanticídio, da criminalidade, da violência, de surtos de epidemia
de tifo e cólera que dizimaram parte da população etc. (MARTINS,
1987, p. 13-14).
76 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
C u l t u r a e i d e o l o g i a 77
78 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
C u l t u r a e i d e o l o g i a 79
Aprofundando o conhecimento
O texto Considerações sobre a neutralidade da ciência, de Marcos Bar‑
bosa de Oliveira, ajuda a compreender o atual debate sobre a neutralidade
das ciências, levando-nos a refletir sobre a própria Antropologia, ciência que
historicamente surgiu com um forte apelo ideológico. O autor se baseia no
conteúdo dos Parâmetros Curriculares Nacionais, e analisa a tese da suposta
neutralidade científica a partir dos aspectos relativos à imparcialidade, neutra‑
lidade aplicada e neutralidade cognitiva (OLIVEIRA, 2003, p.166-168).
80 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
fato de a ciência às vezes se afastar doideal de imparcialidade não implica que o ideal
deva ser abandonado – da mesma forma, por exemplo, que o fato de o mandamento
“não matarás” nem sempre ser obedecido não implica que ele deva ser revogado. As
versões mais radicais da tese da não neutralidade são as que abrem mão inclusive do ideal
de imparcialidade, sustentando ser impossível excluir os valores não cognitivos do processo
de seleção de teorias no interior da ciência. Nesta linha de pensamento, a ciência não
apenas sempre foi e continua sendo parcial, mas o próprio ideal de imparcialidade deixa
de fazer sentido.
O grande problema com este radicalismo é o que já foi apontado, a saber, que ele
implica uma forma de relativismo. Se quisermos evitar o relativismo, devemos, portanto,
preservar a imparcialidade como um ideal, ou seja, como um valor. É apenas desta
maneira, inclusive, que se terá uma base para fazer uma crítica da ciência quando ela
deixa de ser imparcial. Com isso dou por encerrada a discussão da imparcialidade, e
passo à neutralidade no sentido estrito, que, como vimos, divide-se em neutralidade
aplicada e neutralidade cognitiva.
A neutralidade cognitiva constitui um tema bem mais complexo que, devido à limi-
tação de tempo, escapa dos limites desta apresentação, e será tratado numa outra opor-
tunidade. A neutralidade aplicada diz respeito às aplicações da ciência, ou seja, à
tecnologia. Os termos em que a discussão é posta nos dias de hoje derivam em grande
parte de uma versão particular da tese da neutralidade no sentido amplo, surgida num
momento histórico determinado.
Trata-se de uma versão em que a neutralidade da ciência é afirmada em contraste
com a tecnologia, cuja não neutralidade é admitida. O momento histórico é o do pós-
-segunda-guerra-mundial, e neste ponto vou recorrer a um livreto recentemente publicado,
Thomas Kuhn and the Science Wars, de Ziauddin Sardar. Sardar diz o seguinte:
C u l t u r a e i d e o l o g i a 81
Saiba mais
Existem muitos elementos que nos ajudam a analisar e compreender essa relação alienação x
sociedade x cultura, dentre eles documentários, livros, sites...
Um documentário interessante é Ilha das flores, do diretor Jorge Furtado, ano 1989, com du-
ração de 13 minutos, produzido no Brasil. Esse documentário aborda como as relações sociais
pautadas na questão do trabalho estão presentes em simples atos do nosso dia a dia.
82 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Resumo
Nesta unidade discutirmos o surgimento do modo de produção capitalista, por
ser ele o responsável por instituir um “novo” padrão social, pautado na divisão de
classes sociais, na desigualdade e na propriedade privada dos meios de produção.
Nesse sentido, analisamos o pensamento marxista que desvela o processo de
alienação imposto sobre os indivíduos, buscando romper com o processo hierar‑
quização social.
Saiba mais
Existem muitos livros que trabalham essa questão, e indicamos alguns para vocês, dentre eles:
O que é alienação, de Wanderley Codo, da série Primeiros Passos da Editora Brasiliense; Marx:
a teoria da alienação, de István Mészáros, e o próprio texto do Marx Ideologia alemã.
C u l t u r a e i d e o l o g i a 83
Atividades de aprendizagem
1. Por que precisamos discutir a questão do surgimento do modo de produção ca‑
pitalista para falarmos de alienação e cultura?
2. Explique, com suas palavras, dois pontos centrais do capitalismo: a importância
da propriedade privada e a existência de duas classes sociais.
3. Analise o impacto da divisão de classes sociais (burguesia e proletários) na for‑
mação da cultura e da sociedade.
4. O que podemos fazer para romper com a alienação imposta sobre nossa socie‑
dade?
5. Discuta como podemos relacionar conceitos como ideologia e cultura para a
interpretação da realidade social?
Unidade 4
Antropologia
e cultura Giane Albiazzetti
Okçana Battini
Isso nos ensina que as crises em nível de teorias são sanáveis: ou pela elimi-
nação de uma por outra; ou pela articulação das mesmas [...]; ou, ainda, pela
convivência pacífica de teorias contrárias, porém não contraditórias, das quais,
aliás, a antropologia está plena. [...] Apesar de muitas delas, ou todas, serem
passíveis de restrições e de críticas, particularmente quando constroem modelos
diferentes sobre uma mesma sociedade e/ou cultura, isso não significa que essas
teorias não convivam de algum modo, compulsoriamente, uma vez que uma
não dispõe de força suficiente — isto é, de argumentos — para eliminar a outra.
Roberto Cardoso de Oliveira
86 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Introdução ao estudo
Sabemos que o termo cultura é muito amplo e cheio de significados. Muitas vezes
ouvimos: “Nossa, esse sujeito é muito culto, ele tem muita cultura.” E por outro lado:
“Está vendo aquele indivíduo ali? Ele não tem cultura nenhuma, ou seja, não sabe se
comportar!” Quem já não se deparou com uma situação assim em nossa sociedade?
Será que falar em cultura é somente elencar as ações dos indivíduos conforme sua
formação? O que especificamente a cultura tem a ver com a nossa sociedade? Como
ela ajuda a explicar as relações existentes entre os homens?
Primeiro devemos refletir que o termo cultura traz muitos significados, dentre eles:
Originalmente, esta expressão [cultura] vem do latim — colere — e
significa cultivar. Com os romanos, na Antiguidade, a palavra cul‑
tura foi usada pela primeira vez no sentido de destacar a educação
aprimorada de uma pessoa, seu interesse pelas artes, pela ciência,
filosofia, enfim, tudo aquilo que o homem vem produzindo ao
longo de sua história (CALDAS, 1986, p. 11, grifo nosso).
Saiba mais
Podemos definir Antropologia como uma ciência que estuda o homem como ser biológico, social
e cultural, buscando investigar o desenvolvimento, as semelhanças das sociedades humanas
assim como suas diferenças. A palavra Antropologia, etmologicamente, vem de anthropos que
quer dizer homem, e logos, que significa “pensamento” ou “razão”. Para mais informações
acesse o site da Associação Brasileira de Antropologia (ABA): <www.abant.org.br>.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 87
88 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 89
90 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 91
É importante destacar que durante o feudalismo o poder era centralizado nas mãos
dos reis, os quais dividiam o governo de seu povo com a nobreza e o clero. Como
legítimos representantes dos reis, os senhores feudais detinham parte desse poder, à
medida que comandavam porções do território que lhes eram destinadas por seu rei.
O governo absolutista dos reis e a divisão social baseada em estamentos (reis, nobres,
clero, servos e escravos) eram amplamente aceitos pelas pessoas, pois a ordem social
era determinada pela tradição e pela crença de que os reis eram os legítimos repre‑
sentantes de Deus na Terra.
92 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 93
2.2 O
pensamento científico como base para o
surgimento da Antropologia
Em uma sociedade que baseava suas verdades fundamentalmente no pensamento
mítico e religioso, é possível imaginarmos a revolução intelectual e cultural que re‑
presentou a introdução de concepções científicas acerca do mundo e da realidade
social. O pensamento científico se distingue do teológico (religioso), do senso comum
e da filosofia, e pode ser entendido, em linhas gerais, como o conjunto de verdades
ou de respostas que se estabelecem a partir do estudo sistematizado das leis e regras
que explicam um determinado fenômeno, sendo necessário, para tanto, a utilização
de uma metodologia de observação, experimentação, comparação, análise e inter‑
pretação (MENDES et al., 2006). Se quisermos, por exemplo, compreender de fato
como uma determinada sociedade se originou e se desenvolveu, será necessário
estudarmos sua história e seus elementos concretos, que são passíveis de observação
e análise. Nesse sentido, nenhuma afirmação sobre tal sociedade que decorra de
ideias metafísicas ou sobrenaturais poderá ser reconhecida como científica. Daí a
refutação ou negação das verdades e dos dogmas difundidos pela fé e pelas crenças
religiosas, os quais não podem ser comprovados concretamente.
94 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 95
Diante disto, poderíamos perguntar: em que medida os indígenas podem ser con‑
siderados diferentes ou iguais aos demais habitantes de todo o planeta Terra? Para a
Antropologia esta é uma questão essencial, pois todas as sociedades se assemelham
no sentido de que possuem cultura (ainda que culturas diferentes), e seus integrantes
pertencem ao gênero humano (dotados de todas as capacidades humanas, como a
inteligência, a razão, as emoções e a criatividade). Mas as culturas não são idênticas,
porque têm especificidades, e é isso exatamente que faz com que as sociedades e os
grupos humanos mantenham diferenças entre si (RODRIGUES, 1989).
96 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Links
Para mais informações sobre a Antropologia acesse o link: <www.antropologia.com.br/>.
A Antropologia pensa o homem como um ser que age sobre a natureza, apro‑
priando-se dela e transformando-a de acordo com suas necessidades e interesses.
Este modo de ser e de agir no mundo é fruto do aprendizado cultural: aprende-se no
cotidiano, através das experiências vividas no dia a dia, e também pelos costumes e
tradições passados de geração em geração. Isto
quer dizer que todos os seres humanos aprendem,
de uma forma ou de outra, a seguir regras, desem‑
Saiba mais penhar papéis sociais, respeitar certos valores e
Proponho que conheçam o livro de manter o padrão de comportamentos cultural‑
François Laplantine, intitulado mente aceitos por seus pares, fazendo com que
Aprender antropologia. Consta haja semelhanças nos modos de ser, de pensar,
das referências e é leitura obriga- de sentir e de agir no mundo por parte dos indi‑
víduos que compartilham uma mesma cultura.
tória para os estudantes que estão
iniciando nesta ciência. A Antropologia é, portanto, a ciência que es‑
tuda a diversidade cultural e social existente na
humanidade, quer seja analisando os diferentes
povos e sociedades que existiram no passado (extintos), os povos e sociedades que
existem no presente (países do Ocidente e do Oriente, sociedades tribais e demais
comunidades étnicas espalhadas pelo globo), ou uma mesma sociedade, debruçando‑
-se sobre sua diversidade cultural e social interna (um país, por exemplo). Os grandes
ramos nos quais se divide são: “Antropologia Biológica ou Física”, por um lado, e a
“Antropologia Social, Cultural e a Etnologia”, por outro.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 97
98 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Outros autores, como Leach (1982), preferem distinguir uma da outra. Os antro‑
pólogos sociais podem ser pensados como aqueles pesquisadores mais voltados ao
estudo do funcionamento das instituições sociais, como a família, a religião, a polí‑
tica, a economia, as relações entre os diferentes grupos a atores sociais no interior
de uma sociedade etc.
Panoff e Perrin (1973, p. 21) entendem que o maior objetivo da Antropologia social
é “estabelecer leis gerais da vida em sociedade” que possam ser aplicadas na análise
de toda e qualquer sociedade. Além disso, os antropólogos sociais estariam menos
interessados na perspectiva diacrônica, isto é, na busca por elementos históricos da
população estudada. Com isso, os antropólogos sociais estariam mais empenhados
em análises sincrônicas, voltadas para os elementos do tempo presente. Os principais
nomes da Antropologia Social são: Bronislaw Malinowski, Radcliffe Brown, Evans‑
-Pritchard, Fortes, Raymond Firth, Max Glukman, Victor Turner e o próprio Edmond
Leach.
Ainda segundo Leach (1982) os antropólogos culturais, por outro lado, sempre
se debruçaram mais sobre os problemas relativos às questões de etnia e de compor‑
tamentos culturalmente aprendidos em cada sociedade pesquisada, principalmente
as chamadas “sociedades tribais” e as não ocidentais. Ao contrário dos antropólogos
sociais, os culturais reconhecem a necessidade de se analisar a história dos diversos
povos e etnias. Para Panoff e Perrin (1973) os antropólogos culturais sempre estive‑
ram mais preocupados com os “problemas de relativismo cultural”, defendendo a
necessidade de respeitar as especificidades culturais de cada sociedade. Entre os
representantes da Antropologia cultural estão: Franz-Boas, Margaret Mead e Ruth
Benedict, da escola culturalista norte-americana.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 99
2.2.2.1 P
rimeiros registros etnográficos feitos por viajantes
europeus (séculos XVI a XIX)
Durante o período que compreende os séculos XVI e XIX, na transição histórica
entre o mundo feudal e o capitalista, houve a produção e o acúmulo de um grande
volume de informações e descrições sobre as culturas não europeias, obtidas através
dos registros etnográficos realizados durante as viagens feitas pelos exploradores, co‑
lonizadores, missionários, comerciantes e militares europeus aos territórios situados
fora da Europa. Esses viajantes eram incumbidos de fornecer aos governos de seus
países (sobretudo Portugal, Espanha, Inglaterra e França), uma série de descrições
acerca dos recursos naturais disponíveis nesses territórios, bem como dos povos que,
segundo se acreditava na época, eram selvagens e atrasados, e, portanto deveriam
ser civilizados de acordo com os padrões impostos pela cultura europeia. Nesse
período havia muitos interesses econômicos e políticos em jogo, levando os países
exploradores a investir muito nessas viagens. Esses investimentos de caráter explo‑
ratório acabaram favorecendo a produção de conhecimentos sobre os povos nativos
que viviam nas áreas colonizadas (LAPLANTINE, 1988).
Segundo Pelto (1967, p. 27) outro fato importante foi o fortalecimento da Filo‑
sofia iluminista, que defendia “[...] ideias de progresso e evolução que passaram a
ser centrais para a teoria antropológica do século XIX”, e a publicação da obra de
Charles Darwin, A origem das espécies, em 1859, que revolucionou o pensamento
científico sobre a relação do homem com a natureza, levando muitos pesquisadores
100 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
2.2.3 Evolucionismo
Uma primeira forma de entender a diversidade cultural existente é conhecida
como evolucionismo, sendo essa ideia (evolução) um ponto importantíssimo para o
pensamento antropológico. Podemos pensar essa leitura baseada em uma pergunta:
“O ‘outro’ é diferente porque possui diferentes graus de evolução?”.
Segundo Rocha (1994), evolução, no seu sentido mais amplo, equivale a desen‑
volvimento. É a transformação progressiva no sentido da realização plena de algo
latente. É a manifestação plena do que estava oculto. Evolução em outras palavras é o
desenvolvimento obrigatório de uma determinada unidade que revela, pelo processo
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 101
102 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Esses itens estão presentes em todas as culturas, umas mais “civilizadas” do que
outras, uma vez que esses itens eram pensados como uma linha de evolução, a partir
do “polo primitivo”, e por via do progresso, chegando ao “polo da civilização”.
Morgan, antropólogo norte-americano, institui alguns pontos que “moldaram”
essa linha de evolução: “governo”, “meios de subsistência”, “arquitetura”, “religião”,
“família”... Dividindo o período da história em três grandes períodos básicos da so‑
ciedade: selvageria, barbárie e civilização.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 103
(1901), escrito em conjunto com Marcel Mauss, que também publicou Ensaio sobre
a Dádiva (1923). Nessas obras, esses teóricos procuraram analisar as manifestações
de solidariedade mecânica e orgânica, o totemismo, o fato social total, o sistema
de trocas e a reciprocidade, considerando-os como conceitos fundamentais para se
conhecer a ordem social em qualquer sociedade.
Também pensavam nas sociedades “primitivas” de modo similar aos evolucionis‑
tas, de tal forma que o processo de desenvolvimento da ordem social necessariamente
deveria passar pelos estágios da selvageria, barbárie e civilização, concentrando suas
análises na comparação com a sociedade industrializada e capitalista (MAIR, 1979).
Um aspecto fundamental desta escola é que se privilegiou o conhecimento
científico através do rigor metodológico, e para isso procuraram utilizar o método
comparativo da Sociologia positivista, o que serviu de base para os antropólogos
ingleses do início do século XX.
2.2.5 Difusionismo
A escola difusionista foi contemporânea à evolucionista e à sociológica francesa,
mas procurou focalizar sua atenção em outras dimensões da cultura. Teve maior ex‑
pressão nos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, e foi crítica do pensamento evolu‑
cionista. Os antropólogos difusionistas dedicaram-se ao estudo das origens e extensões
de todas as culturas, e estabeleceram alguns conceitos específicos para explicar as
semelhanças e diferenças entre uma sociedade e outra. Um conceito importante
desta escola antropológica é o de “empréstimo cultural”, através do qual procuravam
demonstrar que as diversas sociedades, interagindo entre si por meio de encontros
e de “áreas culturais” comuns, teriam desenvolvido uma mistura de características
e modos de ser, como resultado de uma tendência humana natural à imitação e à
absorção de elementos culturais, quer as tornaria muito semelhantes em alguns
aspectos (PANOFF; PERRIN, 1973). Os difusionistas defendiam que alguns traços
culturais estariam presentes em todos os povos, e estudando a história da humani‑
dade, chegaram à conclusão de que existiram “centros de difusão” em determinadas
regiões, especialmente no Egito, que foram responsáveis pela disseminação desses
traços culturais pelo mundo, embora cada sociedade os tivessem desenvolvido de
modo específico (MAIR, 1979).
Mas as ideias desses pensadores foram superadas pelas escolas seguintes, não
sendo mais aceitas na Antropologia contemporânea. Entre os autores mais conhecidos
104 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 105
106 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Segundo Boas (2005), uma das grandes tarefas da Antropologia, e que depende
do método diacrônico, é desvendar os processos históricos responsáveis pelo desen‑
volvimento de certos estágios culturais, afirmando que:
Os costumes e as crenças, em si mesmos, não constituem a fina‑
lidade última da pesquisa. Queremos saber as razões pelas quais
tais costumes e crenças existem — em outras palavras, desejamos
descobrir a história de seu desenvolvimento (BOAS, 2005, p. 33).
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 107
Saiba mais
Sugerimos que procurem conhecer também um dos livros mais importantes da obra de Franz
Boas, básico para os estudantes de Antropologia Cultural. O título é Antropologia cultural e
está mencionado nas Referências.
108 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Nesse sentido parece muito justo atribuir a Boas e a seus seguidores a introdução
do conceito de relativização cultural no pensamento antropológico, e a defesa de se
considerar todos os diferentes grupos sociais como igualmente pertencentes à hu‑
manidade. Boas (2005) chega a lançar uma importante questão, que nos faz pensar
em nossa própria forma de conceber a diversidade humana, ainda definida a partir
de critérios raciais, e essa construção social da desigualdade étnica: “Será melhor
para nós continuar como estamos, ou devemos tentar reconhecer as condições que
levam aos antagonismos fundamentais que nos atormentam?” (BOAS, 2005, p. 85).
2.3 Estruturalismo
É essa leitura que o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss vai trabalhar. Segundo
Strauss não são todas as sociedades que utilizam a forma de tempo como a nossa (cro‑
nológico, histórico, linear), sendo que para muitas sociedades o tempo e a sua passagem
não podem ser vistos como uma cadeia de acontecimentos. “Aqui a Antropologia se
coloca como uma ciência interpretativa, que busca apenas conhecer os significados
que os seres humanos, tanto da sociedade do “eu” quanto do “outro”, dão às formas
pelas quais escolheram viver suas vidas” (ROCHA, 1994, p. 87, grifo do autor).
O estruturalismo antropológico teve sua origem na França, em meados da década de
1940, com Claude Lévi-Strauss, conhecido por ser um teórico revolucionário pela forma
como buscou compreender as culturas humanas (SILVA, 2008). Contrapondo-se às esco‑
las anteriores, sobretudo o funcionalismo, e colocando-se no limite entre a antropologia
social e a antropologia cultural (LEACH, 1982) seu pensamento se baseia na Psicologia,
na Mitologia e na Linguística (teoria de Saussure), concebendo a noção de que todas
as sociedades possuem uma estrutura comum, cuja lógica se fundamenta na maneira
como o cérebro humano (a mente) processa as informações e os códigos da linguagem.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 109
110 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Claude Lévi-Strauss (1996) faz questão de afirmar que os povos antes chamados de
“primitivos” são, na verdade “povos sem escrita”, e suas formas de pensar a realidade
são diferentes das sociedades que utilizam a escrita e a ciência — os povos modernos,
mas não são menos desenvolvidas por conta disso, como afirmavam os antropólogos
das escolas anteriores. Neste sentido, Lévi-Strauss rompe com o paradigma evolu‑
cionista, e também com o funcionalismo, atribuindo às sociedades ágrafas atributos
que não as desqualificam se comparadas com as demais. O autor defende que o
pensamento “selvagem”, ou a mente “primitiva” revelam um profundo interesse em
explicar a realidade, isto é, esses povos “[...] são movidos por uma necessidade ou
um desejo de compreender o mundo que os envolve, a sua natureza e a sociedade
em que vivem” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 26), e para isso utilizam a razão, a intelec‑
tualidade, mas de um modo diferente do pensamento científico.
Enquanto a ciência moderna se ocupa da investigação de recortes, de “pedaços”
da realidade, para melhor compreendê-la e conseguir desenvolver mecanismos de
controle do homem sobre a natureza, os povos ágrafos se valem de explicações tota‑
lizantes fundamentadas em mitos, os quais não lhes possibilitam controlar os eventos
naturais, embora os expliquem a seu modo.
Nesse sentido pode-se perceber o caráter relativizador do estruturalismo de Lévi‑
-Strauss, na medida em que reconhece a diversidade das formas de pensar e de existir
sem, contudo, qualificá-las. O autor chega, inclusive, a duvidar que no futuro essa
diversidade deixará de existir, pois acredita que cada grupo se adapta às mudanças
sem perder sua identidade cultural.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 111
É claro que ele reconhece o pensamento científico como mais elaborado e eficaz
no sentido de permitir o domínio do homem sobre a realidade, mas isto não o torna
melhor ou mais evoluído do que o pensamento “selvagem”. Este pensar “primitivo”,
ou mítico, segundo Lévi-Strauss (1978, p. 28) “[...] dá ao homem a ilusão, extrema‑
mente importante, de que ele pode entender o universo”, pois para essas sociedades
é isto o que realmente importa: entender o mundo, ainda que não possam controlá‑
-lo. Além disso, o autor defende que, apesar de serem tão diferentes entre si, as
sociedades humanas podem conviver perfeitamente bem, ainda que se julguem por
vezes superiores e melhores que as demais: “Nada impede, com efeito, que culturas
diferentes coexistam e que prevaleçam entre elas relações relativamente tranquilas”
(LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 23).
Interessante como o autor destaca em seu livro “Mito e significado” que a mente
humana, independentemente da condição sociocultural, é extremamente competente
na observação e compreensão das coisas, e seletiva ao dirigir sua atenção para a
realidade, o que explica o fato de que muitos povos sem escrita (ágrafos) conseguem
“enxergar” e explicar eventos da natureza sem, contudo, utilizar instrumentos com‑
plexos e elaborados como fazem os cientistas. Frequentemente os chamados nativos
apenas observam e sentem o mundo à sua volta, reconhecendo suas propriedades
e sua dinâmica, o que lhes possibilita conviver com os eventos da natureza de uma
maneira harmônica e produtiva, e para isso se utilizam dos mitos (a linguagem
metafórica e mitológica que, do ponto de vista científico, não é verdadeira) e do
pensamento mágico para tentar resolver os problemas lógicos que não conseguem
abstrair de outra forma.
112 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 113
Saiba mais
Não deixem de conhecer alguns dos mais importantes livros de Lévi-Strauss, todos citados nas
Referências: Antropologia estrutural, onde apresenta seu método; Mito e significado, onde
discute a importância dos mitos nas diversas sociedades; e O pensamento selvagem, que trata
da especificidade do conhecimento dos povos tribais. Belíssimas obras!
114 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A cultura, para o autor, é pública e é produzida por seus próprios membros, e para
ser interpretada deve ser analisada em todas as suas dimensões — somente assim o
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 115
pesquisador poderá fazer uma “leitura” e compreender qual a sua importância para
os próprios indivíduos que dela fazem parte.
Tal visão de como a teoria funciona numa ciência interpretativa
sugere que a diferença [...] que surge nas ciências experimentais ou
observacionais entre “descrição” e “explicação” aqui aparece como
sendo [...] entre “inscrição” (“descrição densa”) e “especificação”
(“diagnose”) — entre anotar o significado que as ações sociais
particulares têm para os atores [...] e afirmar, tão explicitamente
quanto nos for possível, o que o conhecimento assim atingido
demonstra sobre a sociedade na qual é encontrado e, além disso,
sobre a vida social como tal. Nossa dupla tarefa é descobrir as
estruturas conceptuais que informam os atos dos nossos sujeitos,
o “dito” no discurso social, e construir um sistema de análise [...]
no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer so‑
bre ele mesmo — isto é, sobre o papel da cultura na vida humana
(GEERTZ, 1973, p. 37-38, grifo do autor).
Assim, Geertz (1973, p. 321) conclui: “[...] as sociedades, como as vidas, con‑
têm suas próprias interpretações. É preciso apenas descobrir o acesso a elas”. Desta
forma, compete ao antropólogo estudar profundamente as diversas culturas e suas
respectivas redes de símbolos e significados, os quais fazem todo o sentido para as
116 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
pessoas que participam dessas culturas (os intérpretes de primeira mão, como afirma
Geertz), mas que devem ser analisados e compreendidos também através da pers‑
pectiva antropológica (científica, portanto), por meio do trabalho do pesquisador (o
intérprete de segunda e de terceira mão).
Visto sob esse ângulo, o objetivo da antropologia é o alargamento
do universo do discurso humano. De fato, esse não é seu único
objetivo [...] e a antropologia não é a única disciplina a persegui‑
-los. No entanto, esse é um objetivo ao qual o conceito de cultura
semiótico se adapta especialmente bem. Como sistemas entrela‑
çados de signos interpretáveis (o que eu chamaria de símbolos,
ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder,
algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimen‑
tos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos;
ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos
de forma inteligível — isto é, descritos com densidade (GEERTZ,
1973, p. 24, do autor).
Neste caso, “eles” são os indivíduos que falam sobre sua própria sociedade e
sobre sua própria cultura, isto é, os “nativos”. Sendo assim, a tarefa do antropólogo
é, ao mesmo tempo, desvendar as concepções que os próprios “informantes” têm
acerca de sua realidade sociocultural, e “construir um sistema de análise” (GEERTZ,
1973, p. 38) que estabeleça uma correlação entre aquilo que é dito pelos informantes
locais e aquilo que é observado e interpretado pelo próprio pesquisador.
Resumindo, precisamos procurar relações sistemáticas entre fe‑
nômenos diversos, não identidades substantivas entre fenômenos
similares. E para consegui-lo com bom resultado precisamos
substituir a concepção “estratigráfica” das relações entre os vários
aspectos da existência humana por uma sintética, isto é, na qual os
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 117
Neste trecho o autor explicita sua compreensão de que a cultura, com sua
complexa rede de símbolos e significados, existem em todas as sociedades com a
finalidade de governar e controlar os comportamentos individuais, e assim assegurar
o convívio harmonioso entre os homens. Talvez seja esta a única conclusão genera‑
lizante a respeito do homem na obra de Clifford Geertz, a de que a cultura impõe a
todos os indivíduos determinados parâmetros por meio dos quais cada um pode se
auto-orientar ao longo de sua fiexistência. As obras mais conhecidas de Geertz são:
A interpretação das culturas — 1973 e Saber local — 1983.
Saiba mais
Não deixem de ter acesso também ao clássico de Clifford Geertz, o livro A interpretação das
culturas. Consta das Referências.
Saiba mais
Vejam os comentários do Professor Vagner Gonçalves da Silva sobre a ciência antropológica
acessando o link <www.fflch.usp.br/da/vagner/antropo.html>.
2.5
Diversidade cultural: etnocentrismo e
relativização
A partir da leitura da Declaração sobre a Diversidade Cultural da UNESCO e
de nossa discussão, de que o indivíduo vive em sociedade e que muitas vezes nos
deparamos com várias informações vindas de todos os cantos do mundo, e essas
informações nos ajudam a formar uma opinião sobre os diversos assuntos que cons‑
tituem a realidade social, torna-se imprescindível a compreensão da sociedade em
118 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
sua totalidade, ou seja, formar opiniões sobre os países, os povos, a maneira de viver
de outros grupos sociais etc.
Não é apenas as crenças culturais que diferem através das culturas. As diversidades
das práticas e do comportamento humano também fazem parte desse “jogo” cultural.
Existem várias formas de comportamento, que variam amplamente de cultura para
cultura e, com frequência, contrastam drasticamente com o que as pessoas que não
fazem parte desse grupo consideram “normal”.
Giddens (2001) dá um exemplo bem significativo para ilustrar essa questão: o
casamento. Em nossa sociedade o casamento é um momento em que duas pessoas
adultas resolvem se unir por amor, paixão e construir uma vida a dois “até que a morte
os separe!” Se observarmos em nossa sociedade ocidental moderna, consideramos essa
atitude vinculada a vida adulta, com responsabilidades... Mas em algumas culturas,
casamentos são arranjados para crianças de 12, 13 anos e deve ser considerado nor‑
mal. Se pensarmos na questão da alimentação, da vestimenta, da música, da dança,
das formas de trabalho... Iremos perceber que existem inúmeras representações que
são inerentes a determinado grupo cultural.
Mas, nesse contexto, é muito comum “julgarmos” o comportamento de outros
grupos diferentes do nosso, a partir da nossa realidade, dos nossos valores e hábitos.
Lembram da leitura do evolucionismo como padrão explicativo da cultura? Pois bem,
dessa leitura desenvolveu o que chamamos de
etnocentrismo. “Etnocentrismo é uma visão do
mundo de onde o nosso próprio grupo é tomado
Para saber mais como centro de tudo, e todos os “outros” são
Etimologicamente a palavra etno- pensados e sentidos através dos nossos valores,
centrismo que dizer: etno (etnia, nossos modelos, nossas definições do que é a
grupo, sendo unidos por um fator existência” (ROCHA, 1994, p. 7).
comum, tal como a nacionalidade, Para entendermos melhor a questão do etno‑
religião, língua, bem como demais centrismo precisamos entender a constituição do
afinidades históricas e culturais), e eurocentrismo. No final do século XIX e início do
século XX, em plena era da expansão colonia‑
centrismo (centro).
lista dos países industrializados, a conquista de
territórios teve como principal objetivo a busca
de matérias-primas e a ampliação de mercados para as mercadorias produzidas e os
excedentes de capital. Segundo Bruit (1994, p. 5):
Entre 1870 e 1914 a Europa e os Estados Unidos arquitetaram a
conquista política, econômica e cultural da África, Ásia, Oceania
e América Latina. Repartiram o mundo entre si e organizaram
poderosos impérios coloniais que só tinham em comum o desen‑
volvimento da acumulação capitalista.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 119
120 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 121
Quijano (2005) observa que a distribuição dos postos de trabalho, ao longo da co‑
lonização, esteve diretamente vinculada à origem racial, de tal forma que aos brancos
eram reservados os postos mais nobres, como a administração das colônias e outros pos‑
tos de poder, e o trabalho livre assalariado; por outro lado, aos “negros” e aos “índios”,
considerados inferiores, foram destinados os trabalhados braçais e escravos, necessários
à exploração dos recursos naturais e à produção colonial.
Essas formas de organização e controle do trabalho foram elaboradas em torno da
lógica de acumulação capitalista e do mercado mundial, representando, do ponto de
vista histórico, um novo padrão de organização e controle do trabalho com vistas a
fortalecer o poder dos países colonizadores. Esse padrão de dominação foi, portanto,
ao mesmo tempo político, econômico e cultural, fundamentado na equivocada ideia
de superioridade e inferioridade racial.
A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais
a um único mundo dominado pela Europa, significou para esse
mundo uma configuração cultural, intelectual, em suma intersub‑
jetiva, equivalente à articulação de todas as formas de controle
do trabalho em torno do capital, para estabelecer o capitalismo
mundial. Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e
produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem
cultural global em torno da hegemonia europeia ou ocidental. Em
outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a
Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas
as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial
do conhecimento, da produção do conhecimento (QUIJANO,
2005, p. 227-278).
122 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Aprofundando o conhecimento
Apresentamos a você, caro leitor, o documento intitulado Declaração Uni-
versal sobre a Diversidade Cultural, da UNESCO – Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, publicado em 2002, no qual os
povos são conclamados a reafirmarem o compromisso com a plena realização
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas na Declara‑
ção Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos universalmente
reconhecidos (UNESCO, 2002).
A Conferência Geral
Reafirmando seu compromisso com a plena realização dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais proclamadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e
em outros instrumentos universalmente reconhecidos, como os dois Pactos Internacionais
de 1966 relativos respectivamente, aos direitos civis e políticos e aos direitos econômicos,
sociais e culturais, Recordando que o Preâmbulo da Constituição da UNESCO afirma “[...]
que a ampla difusão da cultura e da educação da humanidade para a justiça, a liberdade
e a paz são indispensáveis para a dignidade do homem e constituem um dever sagrado
que todas as nações devem cumprir com um espírito de responsabilidade e de ajuda
mútua”,
Recordando também seu Artigo primeiro, que designa à UNESCO, entre outros ob-
jetivos, o de recomendar “os acordos internacionais que se façam necessários para faci-
litar a livre circulação das ideias por meio da palavra e da imagem”,
Referindo-se às disposições relativas à diversidade cultural e ao exercício dos direitos
culturais que figuram nos instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO,
Reafirmando que a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distin-
tivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou
um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as manei-
ras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças,
Constatando que a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre
a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber,
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 123
124 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 125
126 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
tar sua aplicação efetiva, cooperando, em particular, com vistas à realização dos
seguintes objetivos:
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 127
[1] Entre os quais figuram, em particular, o acordo de Florença de 1950 e seu Proto-
colo de Nairobi de 1976, a Convenção Universal sobre Direitos de Autor, de 1952, a
Declaração dos Princípios de Cooperação Cultural Internacional de 1966, a Convenção
sobre as Medidas que Devem Adotar-se para Proibir e Impedir a Importação, a Exportação
e a Transferência de Propriedade Ilícita de Bens Culturais, de 1970, a Convenção para a
Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural de 1972, a Declaração da UNESCO
128 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Como vimos, esse documento da UNESCO define parâmetros gerais para nortear
as leis dos países que compõem a Organização das Nações Unidas em relação ao
compromisso de respeito às diversidades humanas, em respeito ao que já estava
contemplado anteriormente na Declaração Universal dos Direitos do Homem.
A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a 129
Resumo
Nesta unidade do livro você pode conhecer os conceitos de alteridade e de
relativismo cultural, e teve a oportunidade de compreender por que a Antropo‑
logia adota positivamente o seu uso. Com o texto foi possível refletir a respeito
de como vêm se dando as relações sociais entre os mais diferentes povos, so‑
ciedades e grupos, e os desdobramentos das práticas etnocêntricas com as quais
ainda convivemos nos dias de hoje. Nossa ênfase foi ampliar o entendimento de
como a noção de alteridade e de relativismo cultural pode auxiliar no estudo
das diversidades humanas em nossos dias, e também em nossas práticas diárias
e profissionais.
Atividades de aprendizagem
1. Explique as principais propriedades da cultura (a cultura é simbólica, a cultura não
é inata, a cultura pressupõe uma linguagem, a cultura possui um caráter social,
a cultura é um instrumento de coesão social, a cultura é dinâmica).
2. Por que podemos falar que a Antropologia é uma ciência que se transformou com
o desenvolvimento da sociedade?
3. A corrente evolucionista de explicação sobre a diversidade cultural deixou algumas
sequelas negativas em nossa sociedade? Explique e exemplifique.
4. Discuta sobre a questão da diacronia e da sincronia na perspectiva da Antropo‑
logia.
5. Explique as definições de etnocentrismo e relativização, e discuta como esses
dois conceitos nos ajudam a compreender a diferença entre os indivíduos em
sociedade.
Unidade 5
Formação da
cultura brasileira
Giane Albiazzetti
Okçana Battini
132 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Introdução ao estudo
Pensar a cultura brasileira é pensar na sua dinamicidade em relação a outros
grupos sociais existentes, pois esta tem certas especificidades que se apresentam no
desenrolar da história brasileira. Assim, torna-se importante discutirmos como se deu
esse processo e quais atores abordam essa questão.
F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a 133
134 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Pedrão (1995) destaca que o governo português desejava fortalecer seu poder
por meio do mercantilismo, porém sem desintegrar sua estrutura feudal. Assim,
estabeleceu com as colônias uma relação meramente extrativista, que não agregou
os valores de produção industrial e de acumulação capitalista que já começavam a
fazer parte de outros países, como a Holanda e a Inglaterra. Para tanto, foi preciso
utilizar a forma de trabalho escravo, e este teve que ser comercializado da África.
Neste contexto, a Coroa passou a investir na formação de elites rurais — os se‑
nhores de engenho — responsáveis por assegurar a produção açucareira com fins de
exportação. Esses senhores de engenho tornaram-se os principais representantes da
monarquia portuguesa no Brasil, e sua participação na vida social caracterizava-se
pela lealdade à metrópole em troca de poder econômico e político, determinando
relações de dominação e de hierarquia social em um contexto escravocrata, racista
e predatório.
F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a 135
136 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a 137
138 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Saiba mais
Um site interessante que aborda toda a obra de Sergio Buarque de Holanda é <www.unicamp.
br/siarq/sbh/>.
Bastante interessante também é o filme: Raízes do Brasil — Uma cinebiografia de Sérgio
Buarque de Holanda
Informações Técnicas
Título original: Raízes do Brasil — Uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda
País de origem: Brasil
Gênero: Documentário
Tempo de duração: 148 minutos
Ano de lançamento: 2003
Estúdio/Distrib.: Estação Filmes
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Prado Júnior (1990), outro grande intérprete do Brasil, discutiu as relações sociais
no país sob um referencial histórico-crítico (marxista), afirmando que a sociedade
brasileira foi constituída, desde o período da colonização, a partir dos interesses da
economia capitalista, servindo os trabalhadores e os mais pobres às necessidades e
interesses da classe burguesa dominante.
Para este pensador, o passado de exploração e de dominação dificultou o desen‑
volvimento de um senso de nacionalismo entre os brasileiros. O autor concorda com
Sérgio Buarque de Holanda no sentido de que o país teria que se modernizar, mas
F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a 139
A obra de Darcy Ribeiro é uma das mais importantes referências teóricas aos que
se interessam em discutir o problema dos índios, pois foi um grande pesquisador e
defensor da causa indígena brasileira. Mindlin (1998) o define como um etnólogo
clássico, um cientista rigoroso, que busca na história as respostas para a compreensão
da sociedade brasileira.
Outro grande intérprete da cultura brasileira é o antropólogo Roberto DaMatta
(1979), que produziu estudos de caráter estruturalista sobre as características e cos‑
tumes típicos de nosso país. Em seus livros discute uma infinidade de elementos que,
em seu conjunto, formam nossa sociedade, como o universo simbólico do país e seus
inúmeros rituais (aniversário, casamento, velório, entre outros), o imaginário social,
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Pensar sobre essa questão nos ajuda a compreender como o processo de divisão
de culturas reflete na inserção dos sujeitos na sociedade vigente e, por consequência,
na escola. O racismo resultante da divisão de culturas e das relações étnico-raciais
impõe a necessidade das minorias se organizarem contra a perpetuação da hierarqui‑
zação da sociedade. Romper com ideologias presentes há anos em nossa sociedade é
um desafio, principalmente porque para muitos essa é uma das maneiras de justificar
o domínio de uns sobre os outros.
Mais que resgatar as dívidas que a sociedade brasileira tem com esses grupos
sociais e étnico-raciais, as ações afirmativas devem ser uma forma de democratização
da sociedade e do acesso a bens materiais e oportunidade de crescimento das pessoas.
Para Gomes (2005, p. 1), a discriminação é um componente:
[...] indissociável do relacionamento entre os seres humanos, reveste‑
-se inegavelmente de uma roupagem competitiva. Afinal, discriminar
nada mais é do que uma tentativa de se reduzirem as perspectivas
de uns em benefício de outros. Quanto mais intensa a discrimina‑
ção e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o seu
combate, mais ampla se mostra a clivagem entre discriminador e
discriminado. Daí resulta, inevitavelmente, que aos esforços de
uns em prol da concretização da igualdade se contraponham os
interesses de outros na manutenção do estatus quo. É curial, pois,
que as ações afirmativas, mecanismo jurídico concebido com vistas
a quebrar essa dinâmica perversa, sofram o influxo dessas forças
contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo da parte
daqueles que historicamente se beneficiaram da exclusão dos grupos
socialmente fragilizados.
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países. Porém, em comparação com os homens (os “majoritários” quer pela força
física, quer pelo preconceito existente socialmente), as mulheres tendem a ser des‑
favorecidas.
Giddens (2001) continua sua explicação alegando que o termo “minorias” para
referir-se coletivamente a grupos que tenham so‑
frido preconceito nas mãos da sociedade “majori‑
tária”. Este termo traz a atenção para a difusão da
Links discriminação. Podemos utilizar aqui, também, o
Um texto interessante sobre essa exemplo das crianças e adolescentes, dos idosos,
questão da democracia racial é o dos homossexuais, dos negros, índios... ou seja,
da Profa. Dulce Maria Pereira, cha- grupos minoritários dentro da sociedade.
mado A face negra do Brasil Na busca por igualdade cultural, os movi‑
multicultural. Disponível em: mentos sociais tornam-se instrumentos essen‑
ciais para a garantia dos direitos sociais. Hoje o
<www.dominiopublico.gov.br/
Movimento Negro tem forte participação na luta
download/texto/mre000073.pdf>.
contra o preconceito e o racismo existente em
nossa sociedade.
Como fruto dessa mobilização popular, não somente por parte do Movimento
Negro, mas pela atividade crescente dos Movimentos Sociais (MST, Movimento LGBT,
Movimento Indigenista, Movimento Feminista, Movimento a favor dos Direitos da
Criança e do Adolescente) são criadas políticas de ações afirmativas, no intuito de
assegurar às minorias o processo de inclusão social.
Nosso foco é discutir como as políticas afirmativas impactam no processo edu‑
cativo e na inclusão e diversidade. Para isso, temos que discutir o que se tem feito,
no âmbito legal, para garantir esses direitos.
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der o processo de construção das diferenças e das desigualdades, ainda que estas
sejam complexas e conflituosas (CANEN; MOREIRA, 2001).
A obrigatoriedade da inclusão da história e cultura afro-brasileira e africana nos
currículos da Educação Básica trata-se de uma lei, com repercussões na base pe‑
dagógica, inclusive no que tange a formação de
professores. Assim, para que uma história multi‑
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Links
Um texto superinteressante de uma pesquisa realizada sobre a leitura dos professores sobre a
diversidade cultural dos alunos está disponibilizado no site: <www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
-73302001000400010&script=sci_arttext&tlng=es>.
O texto intitula-se Universos culturais e representações docentes: subsídios para a formação
de professores para a diversidade cultural, de Ana Canen.
Saiba mais
Um documentário interessante sobre a cultural e a diversidade cultural brasileira é O povo brasi-
leiro (2000), baseado na obra de Darcy Ribeiro, pois discute a formação dos brasileiros, sua origem
mestiça e a singularidade do sincretismo cultural que dela resultou. O site <www.forumeja.org.br/
book/export/html/1236> disponibiliza uma boa parte do documentário. Vale a pena conferir.
Aprofundando o conhecimento
O texto a seguir traz uma excelente discussão acerca da questão racial no
Brasil (GUIMARÃES, 2004). Trata-se de um debate central na atualidade, que
ajuda a refletir criticamente sobre o chamado “mito da democracia racial”, que
tanto vem imperando no imaginário do povo brasileiro. Vale a pena conferir!
Ora, o que muda nos anos de 1970 é justamente a definição do que é o racismo. E
isso não muda apenas no Brasil. Nem é produto da geração brasileira negra que estava
exilada na Europa ou nos Estados Unidos, como Abdias de Nascimento, como se tal
transformação conceitual fosse um fenômeno de imitação e de colonialismo cultural. A
mudança é mais abrangente. Permito-me traçar, com brevidade, as grandes linhas.
São vários os núcleos com base nos quais se processa a eleição do racismo em conceito
analítico central da vida social moderna. Tomemos por exemplo a historiografia sobre a
escravidão negra nas Américas, a começar por Boxer que, em 1963, já interioriza o modelo
sociológico para o tratamento das sociedades coloniais em seu Relações raciais no impé-
rio ultramarino português. Nos anos de 1970, essa historiografia já fala abertamente em
“racismo”. Em 1971, Genovese, por exemplo, referindo-se às várias sociedades escravis-
tas das Américas, escreveu: “Uma vez implantado o sistema escravista, o etnocentrismo
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últimas); os ativistas, por seu turno, realçam a pouca força política dos grupos antirracis-
tas e a grande resistência das elites brancas como responsáveis pelas desigualdades.
Antes de contraditórias, é preciso tratar tais soluções e sugestões como os temas relevan-
tes de nossa agenda atual. Uma agenda que, para responder aos desafios políticos de
nosso tempo, tem de ultrapassar não apenas o encapsulamento da discussão acadêmica
por categorias nativas do presente, mas, também, por fórmulas que deram legitimidade
intelectual às categorias nativas do passado.
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Dentre outras coisas, devemos recuperar o papel ético e político dos pro‑
fissionais “educadores”, os quais devem promover a crítica transformadora dos
grupos sociais. Nesse sentido, compete contribuir para uma re-ordenação da
discussão sobre a história, a política, a economia e a cultura, com todas as suas
nuances e implicações, na formação do homem contemporâneo, possibilitando
o rompimento de uma ideologia cultural fundada na naturalização das desigual‑
dades existentes entre os grupos sociais presentes em nossa sociedade.
Mas essa é uma tarefa que não pode se resumir aos espaços formais da educa‑
ção, pois esse processo pedagógico se concretiza no cotidiano das relações sociais.
Sabemos que esse processo emancipador do homem por meio da ação pedagógica
e da mudança não é fácil, nem imediatista. Mas acreditamos no empoderamento
dos grupos sociais, nos mais diversos contextos, a fim de que o homem assuma,
cada vez mais, seu papel de sujeito construtor da realidade social.
Então para isso apresentamos alternativas: a busca, por meio da educação e
da crítica transformadora, do engajamento ético-político no campo profissional,
mediante a negação das imposições da sociedade capitalista e de sua cultura
naturalizante das desigualdades, voltada para o consumo exacerbado, para a acu‑
mulação de capitais e para a supervalorização da vida material. Os profissionais
que lidam com pessoas e grupos devem auxiliar as pessoas a agirem, elas mesmas,
na realidade social, a fim de se fortalecerem enquanto membros de uma coletivi‑
dade e de desenvolverem ações proativas rumo às suas necessidades e interesses.
Deve-se fazer com que a prática profissional contribua com a universalização
dos direitos e da cidadania, fazendo com que as pessoas não aceitem como nor‑
mais as determinações e as consequências da lógica da acumulação capitalista.
Para tanto é necessário que os profissionais promovam espaços educativos em
seu contexto de trabalho, seja ele qual for, abertos à participação de todos os
envolvidos, à crítica e à livre manifestação, sem forçá-los ou induzi-los a um
ou outro resultado. Assim, a ação profissional educativa e transformadora pro‑
move condições mais efetivas para a autonomia dos grupos sociais na direção
da reconstrução permanente da sua realidade e na conquista de sua cidadania.
Resumo
O pensamento sobre a formação do povo e da cultura brasileira aparece
muitas vezes esvaziado de suas representações históricas e sociais. No texto
pudemos o perceber a diversidade de explicações sobre a nossa cultura, sendo
importante reconhecermos que somos, sim, frutos da diversidade e miscigena‑
ção das raças. Essa questão deve ser levada em consideração ao analisarmos
as relações políticas, ideológicas, culturais e sociais existentes em todos os
segmentos sociais.
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Atividades de aprendizagem
1. Sintetize os diferentes períodos que marcaram a Antropologia brasileira, desde
seu surgimento na década de 1930 até os dias atuais.
2. Discuta a diferente posição sobre a formação cultural do povo brasileiro, funda‑
mentado na leitura de Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan
Fernandes.
3. Na leitura de Florestan Fernandes, como podemos superar o racismo instituído
em nossa sociedade?
4. Será que ainda podemos ser chamados de homem cordial, segundo Sergio Buarque
de Holanda? Por quê?
5. Analisando o conteúdo geral do livro, responda: por que o estudante de hoje deve
aprender sobre a formação da nossa cultura?
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162 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e
Sugestão de leitura
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