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Turquia: democracia (constitucional)?

Catarina Santos Botelho

17/4/2017, 7:27287

Resta-nos esperar que não se confirme o pior dos cenários: que esta revisão
constitucional seja uma encenação, uma máscara diáfana que visa a
perpetuação no poder de uma ideologia político-partidária.

O separatismo curdo, a crise dos refugiados sírios, a ameaça terrorista, a


desvalorização da moeda, a instabilidade económico-financeira são apenas
alguns dos problemas que o Estado turco tem enfrentado.

O sistema de governo turco é de cariz parlamentar, o que, em traços


brevíssimos, significa que existe uma relação de confiança (fiducia) entre o
poder legislativo e o poder executivo. O Governo necessita de uma investidura
parlamentar para entrar em funções e está sob vigilância constante do
Parlamento. No limite e se não concordar com a condução política do Governo,
o Parlamento aprovará uma moção de censura ao Governo, que poderá
(dependendo da maioria exigida) ter como consequência a sua demissão.

Num olhar de história constitucional turca, há três décadas que se debate a


pertinência de um sistema parlamentar. Muitas vozes advogam que um sistema
presidencial impediria bloqueios políticos, obstaria a alianças partidárias frágeis
e voláteis, e tornaria o governo do país mais facilitado, consequentemente
fomentando o desenvolvimento económico. Em 2007, foi dado o primeiro passo
para cumprir este desiderato, tendo sido a Constituição revista para possibilitar
a eleição por sufrágio direto e universal do Chefe de Estado. Sete anos mais
tarde, Erdoğan foi eleito Presidente da Turquia.

Em meados de julho de 2016, o golpe de Estado falhado fundamentou a


declaração presidencial do estado de emergência. Aproveitando o ambiente
político de insegurança e incerteza, reintroduziu-se a questão da transição para
um sistema de governo presidencial. Pouco depois, a lei de revisão
constitucional, aprovada pelo Parlamento em janeiro deste ano, consagrou um
aumento exponencial dos poderes presidenciais e a transição para um sistema
de governo presidencial. Por exigência constitucional, as leis de revisão
carecem de referendo. No dia 16 deste mês e após consulta popular, foi
notificado um resultado positivo.

Os 18 artigos que integram a revisão constitucional (e que, por sua vez,


alterarão/revogarão cerca de 76 artigos da Constituição turca) contemplam
várias alterações, das quais destacamos: (a) o desaparecimento da figura do
Primeiro-Ministro; (b) o Presidente designará o seu executivo, não existindo um
Governo como órgão dotado de autonomia executiva; (c) o Presidente poderá
cumular o exercício do seu cargo com funções políticas no seu partido,
inclusivamente a liderança partidária (podendo, minha perspetiva, influenciar
assim as eleições legislativas); (d) as eleições legislativas e do chefe de Estado
ocorrerão ao mesmo tempo, o que a meu ver acaba por retirar protagonismo às
eleições legislativas, funcionalizando-as às eleições presidenciais; (e) o
Presidente escolhe, direta ou indiretamente, a maioria dos juízes do Tribunal
Constitucional e do Conselho Supremo de juízes e de procuradores, o que trará
consigo sérios riscos de politização do poder judicial; (f) o Presidente poderá
participar no procedimento legislativo parlamentar, sendo que esta interferência
presidencial se agudiza na hipótese de a cor política do Presidente ser a
mesma da maioria política parlamentar; (g) apesar de estar consagrada a
possibilidade de impeachment, as restrições são tão gravosas que acabam por
esvaziar o sentido útil desta figura.

O que dizer de tudo isto? Em primeiro lugar, o instituto da revisão constitucional


não me causa nenhumas reservas. Nenhum texto constitucional é sacrossanto.
A Constituição brasileira de 1988 foi já emendada 92 vezes. Em 2008, no ano
em que se comemorava o seu quinquagésimo aniversário, a Constituição
francesa foi revista em cerca de um terço. A atual Constituição portuguesa
sofreu algumas revisões, tendo as revisões de 1982 e de 1989 sido
absolutamente cruciais para a depuração ideológica do texto constitucional.

A figura da revisão constitucional visa impedir que o “constitutional design” de


uma geração (os pais fundadores) se imponha, de uma vez para sempre, às
gerações presentes e vindouras. Nesta medida e dentro dos limites materiais
do poder constituinte, cada geração terá direito à sua Constituição. Se a
comunidade política não se revê na Constituição, então esta será uma
constituição nominal, uma “folha de papel” (Lassale), um mero exercício frívolo
de erudição. Se o texto constitucional pretende permanecer em vigor, terá de
acompanhar o devir dos tempos. Esta abertura constitucional é vital para a
subsistência e atualização do texto constitucional.

Em segundo lugar, é preocupante o tempo em que decorreu a revisão


constitucional turca. Não nos podemos esquecer que a Turquia está ainda em
estado de emergência (foi prorrogado até ao dia 19 deste mês). Em Portugal,
seria impossível rever a constituição, pois a própria Constituição portuguesa
impede, no seu artigo 289.º, revisões constitucionais durante o estado de sítio
ou de emergência. O intuito desta proibição é impedir que o processo de
revisão constitucional se desenrole sem a vontade livre e esclarecida do
legislador de revisão. É preciso não esquecer que, durante o estado de
emergência, podem ser suspensos, em maior ou menor medida, vários direitos
dos cidadãos. Na Turquia e desde a vigência do estado de exceção, foram
suspensos de funções centenas de juízes e procuradores, tendo-se registado
inclusivamente várias prisões de magistrados, justificadas com o argumento de
“afiliações terroristas”. Por outro lado, um número preocupante de professores
foi objeto de perseguição política, o que metamorfoseia a liberdade de ensino
numa vã miragem. A este propósito, aconselho a leitura de um texto
perturbador, escrito por Kelmar Gözler, um professor de Direito Constitucional
reformado, que tenta explicar as razões que subjazem ao silêncio tumular dos
constitucionalistas turcos. Segundo o professor, “o medo sufoca a vida
académica e intelectual do país”.

Em terceiro lugar, tenho dúvidas em classificar o novo desenho constitucional


turco como meramente “presidencial”. Os traços de forte presidencialismo
executivo, a existência diminuída do poder judicial, o intermitente perigo da
violação da separação de poderes, a restrição dos freios e contrapesos
(checks and balances) democráticos, não auguram boas notícias.
Concomitantemente, num cenário de grande polarização mundividencial e
política, o risco de populismo é exacerbado.

Resta-nos esperar que não se confirme o pior dos cenários: que esta revisão
constitucional seja uma encenação, uma máscara diáfana que visa a
perpetuação no poder de uma ideologia político-partidária. Sem a espada de
Dâmocles da separação dos poderes, a democracia nada mais é do que a
negação do direito.

Professora de Direito Constitucional na Universidade Católica Portuguesa

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