Você está na página 1de 33

ENTREVISTA COM A PROFESSORA

DRA SONIA CASTELLAR:


da formação de professores ao livro didático -
uma conversa

Rosemberg Ferracini 1
rosemberggeo@yahoo.com.br

A professora Sonia Castellar é Livre Docente em Metodologia do Ensino de


Geografia da  Faculdade  de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Possui
graduação em Geografia pela USP (1984), mestrado em Didática (1990) e doutorado em
Geografia (Geografia Física) pela USP (1996). Lidera o grupo de Pesquisa GEPED - Grupo
de Estudo e Pesquisa em Didática da Geografia e Práticas Interdisciplinares, credenciado
no CNPq. Possui pesquisa nas áreas de Formação de Professores, Educação Geográfica,
Cartografia Escolar, Didática da Geografia, Educação em espaços formais e não-formais
de aprendizagem. Bolsista Produtividade do CNPq na área de Geografia Humana.
Participa do Grupo de Pesquisa de Investigadores Latino Americanos em Didática da
Geografia - REDLADGEO - e editora da revista ANEKUMENE do grupo REDLADGEO.
Coordena estudos comparados, com financiamento da CAPES/Colciências em parceria
com a Universidade da Antioquia/Medellin e FAPESP - melhoria do ensino público -,
sobre estudo da cidade, urbano, uso do solo e lugar. Além de ser autora de vários artigos
sobre formação de professor, metodologia do ensino e livros didáticos em geografia para
o ensino fundamental II.

1 Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Professor universitário de
Metodologia e Prática de Ensino em Geografia e Pedagogia. Membro do GEPED – Grupo de Estudo e
Pesquisa em Didática da Geografia e Práticas Interdisciplinares. Endereço: Rua Guiará nº 81, apt 36 Pompéia.
CEP 05025-020. São Paulo/SP.

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-274, jul./dez., 2014


Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

A organização textual foi elaborada pelo professor Rosemberg Ferracini entre


agosto e outubro de 2014. Com a versão final pronta e impressa a entrevistada sugeriu
novas informações que viesse no intuito de enriquecer o debate no campo do ensino da
Didática da geografia escolar. A entrevista se deu forma informal em momentos distintos,
ora na casa da professora Sonia, ora no laboratório de Ensino e Pesquisa na Faculdade de
Educação na Universidade de São Paulo, ora nas reuniões trabalho Grupo de Estudo e
Pesquisa em Didática da Geografia e Práticas Interdisciplinares e no café Pinheiros.
Nesse conjunto de encontros houve diversos momentos de silêncio, olhares, cabeças
baixas, reordenação de palavras, expressões, correções e café e muito sorvete. O objetivo
do entrevistador era trazer um pouco da trajetória da professora Sonia Castellar, seus
caminhos no campo do Ensino e Pesquisa, a formação na USP, seus relatos como
professora e pesquisadora, as orientações, o tema do livro didático e a suas perspectivas
enquanto formadora no ensino de Geografia.

Rosemberg: Olá Professora Sonia, bom dia. Primeiramente gostaria de agradecer sua
generosidade em nos atender, em segundo lugar por acreditar no ensino da geografia.
Professora nossa conversa fará parte do Dossiê “Ora Compêndios, ora Livros Escolares,
ora Livros Didáticos...sempre necessários na Geografia Escolar”. Um dos meus objetivos
em trazer sua fala para o debate é o ensino, a formação do professor, a aprendizagem e o
livro escolar nesse contexto. Mas fique livre para iniciar nossa conversa.

Sonia: Olá Rosemberg é um prazer estar com você em minha casa. Vou tentar apresentar
aos poucos minha formação, interrompa-me e pergunte quando quiser.

Rosemberg: Sim professora, vamos tentar fazer dessa conversa uma aprendizagem não-
formal, uma entrevista solta e direcionada aos professores. Talvez se começasse contando
um pouco da sua trajetória na geografia.

Sonia: Vamos lá...”silêncio”.....Minha trajetória começa em 1979, ano em que entrei na


Universidade de São Paulo (USP), no curso de Geografia, desenrolando-se por 30 anos de
uma história muito intensa nessa universidade As lembranças reconstituirão meu
percurso e as razões pelas quais segui o trajeto de ser professora e perseguir a carreira
acadêmica.
Uma rede de caminhos entrelaça-se ao longo dessa trajetória, revelando
pontos, identificando os lugares pelos quais passei. Na palavra “lugar” Ruy Moreira
compreende duas significações, e é assim também que a vejo: o lugar como ponto da

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 242


Ferracini, R.

rede formado pela conjuminação de linhas horizontais e verticais que organiza as ações
no território, mas também o espaço vivido e clarificado pela relação de pertencimento.
Um traçado, uma trama ou rede que revela, a cada nodosidade dos percursos, as
relações existentes nos territórios aos quais pertenço e que me identificam.
Nesta conversa vou tentar construir uma rede a partir de cada nodosidade
construirei uma linha do tempo organizada por referenciais acadêmicos e profissionais.
Nessa linha, a permanência se revela na opção acertada e ao longo dos anos consolidada
de me tornar professora. Mas ela também revela ações que podem às vezes passar a
sensação de dispersão – no entanto nunca perdi de vista as direções apontadas pelos
ideais e inquietações de professora, formadora de professores, pesquisadora de práticas
pedagógicas, autora de materiais didáticos, comprometida sempre com a educação.
Percebo falando com você que esses percursos, foram organizados em função do
acadêmico e do profissional, e foram marcados de sentidos que representam meu
compromisso político com a educação e a universidade.

Rosemberg: Interessante e importante, sua formação política? Conte-nos.

Sonia: O ingresso no curso de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências


Humanas (FFLCH) da USP, em 1979, põe-se como marco de minhas memórias, pois foi
nesse momento que minha vida mudou, depois de viver muitas angústias e oscilações na
escolha profissional (medicina, jornalismo, geologia... dúvidas cruéis... fiquei com a
geografia). E com certeza é foi uma decisão correta, entrar no Departamento de
Geografia me despertou para uma área do conhecimento que aos poucos foi fazendo
sentido. Um dos primeiros trabalhos que me vinculei foi um estudo sobre as
características das pequenas propriedades rurais no Estado de São Paulo, com a Profa.
Maria Elena Simielli. Pesquisa que durou pouco tempo em função da minha participação
política no movimento estudantil da USP.

Rosemberg: E as aulas? a escola?

Sonia: Comecei a dar aulas, ser professora foi um desafio, principalmente no primeiro dia
em que entrei em uma sala de aula. Pensei que me tornaria uma pesquisadora na área de
cartografia. Mas o caminho foi ser professora e a cartografia continuou sendo uma
referência importante, agora no ensino.

www.revistaedugeo.com.br 2
 43
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

Ser professora, ter responsabilidade em ensinar, com o compromisso de fazer


com que os alunos aprendam, sempre foram princípios que me orientaram, logo que
comecei a trabalhar, no segundo semestre de 1979, em um curso supletivo. Esses
princípios nortearam minha vida profissional, que sempre esteve centrada nas perguntas
“como ensinar?”, “para que ensinar?”, “por que ensinar?” e “como os alunos
aprendem?”.
Permanece ainda hoje o compromisso e a paixão em trabalhar como
professora e contribuir com uma educação de qualidade e, principalmente, com o ensino
público. Essa é uma opção que me desafia cotidianamente, e os questionamentos
aumentam à medida que me deparo com os alunos, suscitando a inquietação que não
permite que as perguntas sejam postas de lado.
Concluí a graduação em 1983, e a licenciatura em 1984, ano em que meu
filho nasceu, ano das “Diretas já”. Ano, também, em que não havia professores no
Departamento de Geografia que pudessem me orientar na área de ensino de geografia, e
assim prestei prova para o mestrado na Faculdade de Educação. Em 1985 iniciei as
disciplinas do mestrado, e trilhei o caminho da educação como aluna do mestrado e
professora da rede pública e privada.
Esses são marcos que orientam a recuperação das lembranças e a revelação
da trama da rede que fui construindo ao longo do tempo, marcos que me identificam por
meio da educação e da geografia.
A partir desses princípios, minha vida aconteceu em quatro partes: a primeira
foi à participação política na universidade e na Associação dos Geógrafos Brasileiros
(AGB), permitindo analisar a formação de minhas concepções sobre a universidade e a
geografia, construídas a partir das práticas políticas do movimento estudantil e do
movimento que se organizava na AGB, em função das rupturas teórico-metodológicas na
ciência geográfica; a segunda remete à formação acadêmica no mestrado e doutorado, a
partir das bases teóricas que permitiram uma análise mais crítica sobre minha prática
docente na educação básica; a terceira diz respeito à atuação docente no ensino,
extensão e pesquisa na universidade; por fim, a quarta parte traz as considerações sobre
como me situo atualmente na universidade.

Rosemberg: fale mais da sua graduação, como foi o seu processo de formação
intelectual?

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 244


Ferracini, R.

Sonia: Terminei o ensino médio com 17 anos, mas somente três anos depois ingressei na
FFLCH – por teimosia, fiquei dois anos prestando vestibular para outras áreas, período
em que participei do grupo de teatro e do jornal da escola. Encenamos uma peça com o
provocativo título Errare humanun est, sucesso de bilheteria na cidade; essa experiência
fez-me pensar no caminho que começava a traçar, e como errar é humano, demorei a
encontrar a geografia.
Entrar no curso de Geografia em 1979 inaugurou um momento importante de
minha formação acadêmica e também política, na medida em que estar na universidade
ajudou-me a elaborar a indignação suscitada pela observação da realidade social –
marcada pela desigualdade social, pela falta de qualidade de vida e de liberdades
democráticas –, influenciando a visão de mundo que construí e que defendo até hoje. As
discussões políticas no Centro Acadêmico de Geografia (CEGE) e em outras instâncias do
movimento estudantil ajudaram a compor minha atuação na educação.
Com o início do curso, a rede traçada com dois percursos que percorri
concomitantemente um relacionado a atuação acadêmica e o outro com a prática da
política estudantil. A prática política inicia-se como delegada do curso de Geografia para
ir ao Congresso de Reconstrução da União Nacional dos Estudantes, em Salvador (BA) no
ano de 1979. No ano seguinte acabei sendo indicada pelo grupo político do qual fazia
parte para ser diretora da União Estadual dos Estudantes de São Paulo (UEE-SP), no
período 1980-1981 e como diretora participei da organização do primeiro Congresso da
UNE em Piracicaba (SP), em 1980. Esse foi um período de muita discussão e retomada de
lutas, ainda reprimidas pela ditadura militar. Além das reivindicações estudantis da UEE-
SP – como mais vagas nas universidades públicas –, envolvemo-nos na luta pelos direitos
das mulheres, movimento que contribuiu para que eu entendesse as dificuldades sociais
e econômicas das mulheres pobres para cuidar de seus filhos e educá-los. A luta por
creche no local de trabalho e moradia foi assumida pelo movimento estudantil, passando
a ser pauta de reivindicação na USP.

Rosemberg: Em um período de greve na Universidade de São Paulo, vamos tocar um


pouco nesse assunto. Como foi sua participação no movimento estudantil desse período?

Sonia: O movimento estudantil na USP era intenso, em 1980, aconteceu no dia 17 de


abril com o debate “Ensino público-Ensino pago”, depois uma grande manifestação da
comunidade, uma greve em 1979 contra o governo Maluf, na luta por mais verba para a
Educação, melhores salários e condições de trabalho para professores e funcionários.

www.revistaedugeo.com.br 2
 45
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

O I Congresso da Universidade de São Paulo, “Para onde vai a USP”, em


1980, em conjunto com a Associação dos Docentes (ADUSP) e da Associação dos
Funcionários (ASUSP). Nesse congresso tive a oportunidade de conhecer os professores
Alfredo Bosi, Marilena Chauí, Maria Adélia de Souza, Amélia Hamburger, Walter Colli e
Braz de Araújo. Entre outros temas que se discutiu durante o Congresso um analisamos
até hoje a função social da universidade e a formação de professores, criando na época
um grupo de trabalho sobre estágio e a formação permanente de professores. Parece que
essa discussão, ainda, continua.
Em 1982, fiz parte da diretoria do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da
USP, outra experiência que me deu oportunidade de conhecer a universidade por dentro,
em sua dimensão política, de compreender a relação entre ensino, pesquisa e extensão,
além do papel de estudantes e professores no processo de democratização do país e da
universidade.
Nessa época, a vida política estudantil era intensa: as assembléias contavam
mais de 3.500 estudantes, e as pautas das reuniões do Conselho de Centros Acadêmicos
(CCA) variavam desde políticas internacionais até o preço das refeições no Restaurante
Universitário (RU), todas com a mesma importância. As reivindicações e discussões entre
os grupos políticos que disputavam os centros acadêmicos e o DCE proporcionaram,
então, a melhoria do RU, da moradia estudantil e da qualidade de ensino na
universidade e a luta pelo ensino publico. Foi na gestão 1981-1982 do DCE, da qual
participei como diretora, que os estudantes voltaram a fazer parte do Conselho
Universitário (CO) e de outros Conselhos Centrais da USP.

Rosemberg: Com foi relacionar o ensino com as atividades políticas? Como você
amarrava essas atividades?

Sonia: A participação nas atividades do movimento estudantil não significou um


afastamento das atividades do curso: eu assistia às aulas no Departamento de Geografia,
estudava e discutia os temas relativos à geografia, conseguindo terminar o bacharelado
em 1983 e a licenciatura em 1984. O grupo político do qual fazia parte, entendia a
importância estratégica dos estudantes que militavam no curso de Geografia de assistir às
aulas, para não perdermos os vínculos acadêmicos com colegas, professores e com o
departamento.
Essas experiências e tantos outros fatos não mencionados foram importantes
para que eu pudesse compreender o funcionamento da estrutura administrativa e política

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 246


Ferracini, R.

da universidade, bem como seu papel na sociedade. Daí a emergência do sentido de


autonomia e democracia universitária, que para mim deveria ser atrelado à produção
científica e a formação de professores para contribuir na melhoraria da qualidade de vida
e do ensino público da população brasileira.
Durante minha formação na graduação, pude vivenciar e participar
intensamente das discussões que mudariam os enfoques teórico-metodológicos da
ciência geográfica. Superando as abordagens quantitativas, firmava-se entre os geógrafos
brasileiros – ou pelo menos entre parte deles – a geografia crítica, sob a influência de
pensadores como o francês Yves Lacoste e, na USP, o professor Milton Santos.
Minha militância política nunca significou um afastamento das questões
acadêmico-científicas, uma concessão quanto ao âmbito teórico, pelo contrário: a
participação no movimento estudantil de Geografia, principalmente na AGB, contribuiu
para minha formação específica. A riqueza dos debates sobre as linhas de pensamento da
geografia contribuiu para que eu pudesse compreender as tendências que existiam no
campo da epistemologia e da ontologia. Eram discussões que se davam nos Encontros
Nacionais de Geógrafos (ENGs), promovidos pela AGB, a partir de 1980, depois das
mudanças políticas ocorridas no interior da associação.
Até o final da década de 1970, a AGB tinha como associados, com direito a
voto, professores titulares. Mas a estrutura da entidade, o estatuto dos associados e a
própria geografia que faziam os geógrafos estava sendo posta em questão, tendo o ENG
de Fortaleza, em 1978, como marco. Portanto, quando entrei na universidade, em 1979,
o debate já havia começado, e a participação dos estudantes passou a ser discutida entre
os sócios da AGB. O debate ganhou apoio de professores que queriam uma associação
mais democrática, o que demandava uma alteração dos estatutos da entidade. Depois de
muitas discussões e mudanças, os estudantes começaram a fazer parte da estrutura da
associação, participando das discussões acadêmicas e, principalmente, trazendo para o
interior da entidade uma das mais importantes discussões daquele momento: as novas
concepções teórico-metodológicas que ganhavam espaço nas universidades, em função
do debate a respeito da geografia crítica ou geografia radical que ocorria na Europa e
Estados Unidos.
As entidades ligadas à geografia (União Paulista dos Estudantes de Geografia
– UPEGE –, AGB, CEGE), incluindo a participação estudantil, proporcionaram uma rica
discussão sobre os fundamentos teóricos e metodológicos da prática gráfica.
Discutíamos, por exemplo, a superação do enfoque teórico com base em dados
quantitativos (geografia teorética), sem análise sobre o significado real dos indicadores

www.revistaedugeo.com.br 2
 47
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

econômicos ou populacionais obtidos por meio de pesquisas do Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatística (IBGE). Questionávamos a falta do compromisso geográfico com
as práticas dos movimentos sociais e a luta por justiça social.
Todas essas experiências iriam me ajudar futuramente, já que essas
discussões contribuíram para que inquietações teóricas e metodológicas reconfigurassem
minha atuação como estudante e como professora da educação básica.
Além de viver esse momento marcante da geografia brasileira, minha
participação na AGB estendeu-se à organização de vários encontros nacionais e à
composição da Diretoria Nacional, no cargo de tesoureira, na gestão 1990-1992. Anos
depois, fiz parte da Comissão de Ensino, quando ajudei a organizar o Encontro Nacional
de Ensino de Geografia – Fala Professor, em Curitiba.
Minha participação continuou e continua nos encontros e congressos
nacionais. Em 2004-2006, fui Diretora da AGB Seção Local São Paulo; na gestão
2006-2008, participei como Coordenador de Publicações. Durante esses quatro anos de
participação na gestão da Seção São Paulo, um dos principais projetos da diretoria, junto
com os estudantes, foi dar visibilidade e melhorar o índice Qualis do Boletim Paulista de
Geografia (BPG), que passou a ser A Nacional.
O projeto gráfico do BPG foi refeito e, em conjunto com alguns estudantes,
principalmente Paulo Favero, aluno do mestrado e militante da AGB São Paulo,
começamos a editar a revista com uma proposta nova. Inicialmente, encaminhamos a
proposta de recuperar alguns clássicos da geografia para que os leitores mais jovens
(estudantes e professores da educação básica) pudessem ter acesso a eles, ampliando ao
mesmo tempo a temática da revista, no âmbito da educação, das discussões urbanas e
agrárias, desse modo contribuindo para a formação dos associados. Assim, publicamos
um número especial com os clássicos franceses e brasileiros concernentes aos estudos
sobre a cidade de São Paulo. Com essa estratégia, em dois anos o BPG alcançou a
classificação A Nacional do Qualis.

Rosemberg: Os tempos passarão, a escola pública é outra, a USP mudou, você se formou
e virou professora dessa universidade. Tentando fazer um link com o passado, como você
relaciona suas atividades políticas hoje, nos últimos anos com as do período da sua
formação?

Sonia: Ao passar alguns dias pensando e revisitando a história que vivi no início de
minha graduação, fui relembrando pessoas, debates, embates, e, claro, conseqüências

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 248


Ferracini, R.

desse movimento geográfico. Quando François Dosse, na obra História do


estruturalismo, intitula o capítulo dedicado à geografia de “A geografia desperta para a
epistemologia” e propõe o subtítulo “O longo sono de uma disciplina sem objeto”, faz vir
à lembrança textos e geógrafos que discutiam se a geografia estava ou não em crise.
A riqueza das discussões, os embates sobre o objeto da disciplina, sobre a
relação natureza e sociedade ou cultura, ou ainda sobre a validade do esquema
natureza, homem, economia (N-H-E), realmente conseguiu acordar a geografia, grande
desafio que já se colocava no final dos anos 1960.

Rosemberg: Quais eram as atividades estudantis?

Sonia: Nesses movimentos, uma estratégia era unificar o CEGE, a AGB-SP e a UPEGE em
torno de atividades de extensão. Esse foi um momento em que tive a oportunidade de
conhecer geógrafos que influenciaram o pensamento de uma geração ou mais da
geografia brasileira, como Ariovaldo Umbelino de Oliveira, Milton Santos (que voltava do
exílio), Carlos Walter, Ruy Moreira, Armem Mamigonian, Armando Correia da Silva, entre
outros não menos importantes.
Quando pudemos fazer parte da diretoria da UPEGE, atuamos no sentido de
formar academicamente os estudantes, organizando cursos de férias, debates e estudos
sobre a geografia e sua renovação, além dos temas relativos à conjuntura brasileira. Com
a preocupação de divulgar as concepções presentes no pensamento geográfico brasileiro,
criamos revistas como a Território Livre, da UPEGE, com artigos de professores que
estavam no centro do debate e a Terra Livre, da AGB nacional, que foi lançada no ENG
de Campo Grande (MS), com um primeiro número sobre geografia agrária. Essa revista
existe até hoje, recebendo a classificação Qualis A Nacional, e tendo sempre contribuído
com a formação dos estudantes de geografia. No bojo de todos esses debates queríamos
ao mesmo tempo atuar politicamente e construir um discurso com rigor teórico, com
fundamentação ontológica e epistemológica.
A militância no movimento estudantil universitário e geográfico esteve na
base de minha formação acadêmica, propiciando que eu desenvolvesse uma visão de
mundo mais crítica. Alguns professores foram muito importantes nesse trajeto, pois
ensinaram-me a fazer pesquisa, apresentaram-me clássicos da geografia (como Tricard,
Sorre, Libout, Bertran, De Martonne), e se destacaram na minha formação no
departamento de geografia pois se preocupavam com a necessidade de termos o método
de análise e pesquisa como referência para interpretação dos fenômenos que

www.revistaedugeo.com.br 2
 49
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

estudávamos – Carlos Augusto Figueiredo Monteiro, Manuel Seabra, Maria Elena Ramos
Simielli e José Bueno Conti, além do prof. Ariovaldo Umbelino de Oliveira professor na
UNESP de Rio Claro.
As discussões sobre as correntes internas da geografia crítica são intensas,
mas meu entendimento é o de que a falta de diálogos entre essas correntes não contribui
para um aprofundamento do pensamento geográfico brasileiro, principalmente quando
os debates envolvem as categorias, como natureza, paisagem, sociedade, região,
território, lugar, entre outras, que são importantes para a geografia. Não conseguimos,
ainda, ter uma discussão que possibilite reconhecer a cartografia temática como
relevante no ensino e para a compreensão dessas categorias, quando tratada como
linguagem ou como metodologia de ensino de geografia.
O relato dessas experiências serve para fundamentar minha atuação e
trajetória, mostrando minhas filiações teóricas e políticas. As questões acadêmicas com
que me envolvi foram sendo construídas ao longo desse percurso, que foi cada vez mais
evidenciando meu interesse pelo ensino e a aprendizagem. No debate sobre o ensino da
geografia, o que mais me intrigava era de que modo as pessoas construíam conhecimento
científico, e esse foi o caminho que procurei seguir em minhas pesquisas. Foi desse
debate que de fato assumi que queria ser professora, entendendo que poderia contribuir
para o ensino da geografia. A vivência em sala de aula que já havia iniciado, os
questionamentos dos alunos e o debate acadêmico me faz cada vez mais perceber que
tanto a escolha pela geografia quanto pela educação havia sido a mais correta.
A trajetória na política da universidade e no âmbito da geografia garantiram-
me uma visão crítica e uma compreensão não centrada apenas na dimensão científica,
mas também na dimensão social e política. Isso me torna uma professora preocupada
com a realidade, colocando em relevo a importância da educação – na medida em que
defendo uma qualidade de vida melhor para a população, penso que isso passa pelo
acesso a uma educação de qualidade.

Rosemberg: Estamos ouvindo uma professora ativa, cheia de atividades, experiências e


comprometimentos. Gostaríamos de conhecer mais da Sonia Professora, formadora de
professores. Por favor, nos conte um pouco mais da sua trajetória no ensino.

Sonia: Comecei a atuar como formadora de professores em 1991, quando recebi um


convite do professor Ariovaldo Umbelino de Oliveira para participar de um curso de
formação de professores na região leste da capital paulista. Nessa altura da minha

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 250


Ferracini, R.

escolha profissional já havia defendido o mestrado e comecei um curso de


especialização em psicopedagogia, iniciado em 1990, que me abriu outras possibilidades
de compreender o processo de ensino e aprendizagem. Neste curso os fundamentos
tinham como referência a Fenomenologia e o foco era as séries iniciais, mais um desafio,
me colocou diante de outros autores que não conhecia, como Heidegger e a
aprendizagem significativa. O debate que ocorria no curso me fez estruturar um curso de
formação continuada para os professores que tinha a preocupação com a aprendizagem
e o como ensinar. Essa experiência me estimulou a fazer uma pesquisa com as séries
iniciais e a compreensão espacial a partir dos estudos piagetianos.
Essa foi minha primeira experiência em um curso de formação continuada.
Um desafio que me proporcionou uma experiência muito importante: conhecer outras
realidades na cidade de São Paulo. Na perspectiva de trabalhar com o ensino de
geografia e discutir com os professores como poderíamos melhorar as práticas em sala de
aula, ficou claro que a concepção construtivista configurava-se como uma das principais
referências teóricas de meu trabalho, consolidando as discussões que já havia começado
a fazer sobre a cartografia escolar.
A partir desse projeto, fui convidada para trabalhar em outros cursos, e meu
envolvimento com a questão da educação e da formação de professores foi aumentando,
materializando-se em cursos de formação e assessorias às secretarias de estado. Em
seguida, fui convidada para atuar em cursos de formação pela Fundação para o
Desenvolvimento da Educação (FDE), vinculada à Secretaria de Estado da Educação de
São Paulo (SEE-SP), na época responsável por alguns cursos de capacitação. Assim, viajei
pelo interior do estado e trabalhei com professores de creches e séries iniciais do ensino
fundamental.
Assumir uma visão construtivista era coerente com as discussões travadas no
âmbito da geografia, e pensar o ensino e como ensinar foi a maneira que encontrei para
contribuir com a educação básica, com o intuito de melhorá-la.

Rosemberg: Além dos fatos já elencado quais foram às leituras e atividades que levaram
você a atuar no ensino, na formação de professores?

Sonia: Para aprofundar os estudos e compreender melhor minha atuação como professora
e formadora de professores, fui buscar, nos fundamentos do construtivismo e no processo
de alfabetização cartográfica, elementos para melhorar a qualidade do ensino de
geografia e dar mais significado a ele. Fiquei mais confiante com os estudos sobre o

www.revistaedugeo.com.br 2
 51
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

construtivismo, à medida que ia tendo clareza – a partir dos estudos piagetianos – de que
o conhecimento é resultante da interação dialética entre o sujeito e os objetos de
conhecimento. Na construção do conhecimento, os sujeitos relacionam-se com o mundo
em que vivem, através de processos psicológicos, construindo modelos da realidade e
passando a compreendê-la de forma mais significativa.
Com esse entendimento, participei de fóruns e cursos de formação de
professores em vários estados do Brasil, tendo com isso o privilégio de conhecer a
realidade das escolas e professores, o que me possibilitou ter uma visão mais ampla da
educação brasileira, e não fechada em uma sala de estudos. Essas realidades mostraram-
me que o caminho que estava traçando para minha vida acadêmica estava correto:
buscar compreender como se dá a construção do conhecimento científico, o contexto
escolar e a formação docente – esses eram os objetos que me instigavam a pesquisar e
estudar.

Rosemberg: Nesse conjunto da sua formação, aulas, leituras, atividades diversas, em que
momento o tema do livro escolar vêem a tona?

Sonia: Outras experiências positivas das quais pude participar foram a análise dos livros
didáticos, na primeira versão do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), em 1996;
e a avaliação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de geografia,
analisando a formação do professor e dos bacharéis, e ainda participei da elaboração dos
itens para a avaliação do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE) nas
três últimas versões (2005, 2007 e 2009). Esses são temas que discuti e debati em vários
encontros, em nível nacional, nas universidades estaduais e federais e nas secretarias
estaduais de educação.
Com o interesse de aprofundar discussões teóricas e obter dados para
pesquisa sobre formação docente e ensino de geografia, passei a fazer parte de vários
projetos interdisciplinares e, com o compromisso de contribuir para melhorar a educação
pública, envolvi-me com a proposta de Capacitação Docente em Serviço da SEE/SP, em
1997. Nesse projeto, coordenei 15 colegas das universidades públicas e privadas que
atuaram em vários pólos na zona Leste do município de São Paulo.
Entendo que meu compromisso com essas discussões articulava-se com a
visão de mundo que fui construindo ao longo da graduação. Embora nesse momento eu
já tivesse finalizado o doutorado, não tinha abandonado a ideia de ser professora e de
contribuir para melhorar a geografia escolar.

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 252


Ferracini, R.

Ainda do ponto de vista das políticas públicas, participei, em 2001, da


elaboração da matriz curricular para o Exame Nacional para a Certificação de
Competência de Jovens e Adultos (ENCCEJA), com o objetivo de elaborar uma referência
didática e os itens de avaliação. Além disso, trabalhei na comissão que elaborava itens
para a prova de geografia do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), no ano de 2000
e 2001. Em 2003 participei do grupo que reelaborou os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), com os colegas Eliseu Espósito (Universidade
Estadual Paulista – UNESP), Lana Cavalcanti (Universidade Federal de Goiás – UFG) e
Helena Callai (Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
UNIJUÍ).
Em 2006, participei da equipe que elaborou as Orientações Curriculares para
o município de São Paulo. Nesse momento, pudemos retomar questões relativas à
interdisciplinaridade do currículo escolar. Na proposta de geografia para o ensino
fundamental II, trabalhei em conjunto com a professora Sueli A. Furlam (USP).
A partir desse percurso como professora pude compreender com mais
cuidado e detalhe a situação da gestão escolar e do contexto escolar, portanto a
necessidade de um aprofundamento das políticas de currículo, no sentido de trazer
outros referenciais que não apenas os disciplinares, constituindo-se um currículo mais
integrado, e a necessidade fundamental de investir-se em um novo modelo de formação
de professores.
Cabe ainda destacar que contribuí organizando e planejando, com colegas
de outras áreas, várias ações para fortalecer e estimular a prática docente, em projetos
específicos, como Recuperação nas Férias, propostas interdisciplinares para o PNLD
ficcional e não-ficcional, Letramento, entre outros desenvolvido junto à SEE/SP.
Todas essas experiências possibilitaram que eu não me fechasse em verdades
absolutas, que eu não perdesse a perspectiva crítica e a vontade de descobrir por que os
alunos não aprendem e como superar o senso comum, tomando o cuidado de
permanecer sempre em estado de mobilização, assumindo um conhecimento aberto e
dinâmico – nos dizeres de Bachelard (1996): “oferecer à razão razões para evoluir”. A
razão para evoluir está nas discussões teóricas que eu enfrentei ao longo desses
trabalhos, entre eles o fato de desenvolver atividades interdisciplinares que me
estimularam conhecer outras bibliografias sobre educação, ensino e aprendizagem das
disciplinas escolares para que pudéssemos elaborar atividades e ou sequências didáticas
nos cursos de formação. Evoluir no sentido de compreender a realidade das escolas

www.revistaedugeo.com.br 2
 53
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

públicas para pensar em propostas pedagógicas que considerasse minimamente o


contexto escolar.

Rosemberg: Nesse conjunto de atividades temos o livro escolar como parte do currículo,
um instrumento de educação e formação. As vezes único, ora castigado, mal interpretado
e alguns momentos de grande importância na sala de aula e na vida dos alunos. Como
você analisa o papel do livro no ensino?

Sonia: Eu entendo que a função do livro didático é muito mais ampla do que aquela que
estamos acostumados a observar nas salas de aula: a leitura ou/e a cópia sem
questionamentos e discussões das temáticas propostas nele. Entendemos que o uso do
livro didático deveria ser um ponto de apoio da aula para que o professor pudesse a
partir dele, ampliar os conteúdos, acrescentando outros textos e atividades e, dessa
forma, não transformando-o no objetivo principal da aula.
Nessa perspectiva, podemos analisar as várias concepções metodológicas e
de aprendizagem que aparecem nos livros didáticos e quais são as funções que podemos
atribuir a elas, principalmente no que se refere a compreensão que do professor tem
sobre elas. Muitas das críticas que se faz em relação ao uso do livro em sala de aula está
fundamentada na maneira como as atividades estão sendo desenvolvidas, nesse caso
podemos avaliar a concepção existente na proposta do livro didático e a do professor,
por exemplo se há coerência ou não entre elas.
As etapas metodológicas estão relacionadas com a concepção que o autor
tem tanto do processo de aprendizagem quanto da abordagem do conteúdo, o livro pode
revelar-se, por exemplo, tradicional ou sócio-construtivista, ou outra base teórica, essa é
uma característica que nos permitem fazer as escolhas adequadas a nossa realidade, ou
seja, se o professor tem clareza da linha teórica que segue com certeza saberá escolher e
utilizar a obra escolhida.
Assim sendo, o professor deve perceber se há no corpo do livro didático
coerência entre a concepção da obra e a maneira como o conteúdo é tratado: escolha e
seqüênciatemática, organização das atividades e a linguagem, sendo esses alguns
exemplos que retratam a concepção teórico-metodológica do livro didático.
Além disso, para que se utilize um livro didático com eficácia é importante
que o docente considere os objetivos apresentados nas unidades ou nos capítulos para se
apropriar da proposta pedagógica presente nele, tornando os conteúdos mais
significativos e menos descritivos. As considerações que estamos fazendo sobre a função

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 254


Ferracini, R.

do livro didático no processo de aprendizagem podem parecer óbvias, de senso comum,


como diriam alguns educadores, no entanto, entendemos que essas colocações são
necessárias para chamarmos a atenção sobre a diferença que há entre o discurso didático
da sala de aula, muitas vezes retórico, e a metodologia presente no livro didático.
Infelizmente, ainda, observamos a partir das pesquisas que fazemos em
escolas e dos estágios realizados por alunos do curso de licenciatura que o uso que se faz
do livro didático em sala de aula reflete, na maioria das vezes, uma falta de compreensão
da interação que pode haver entre os fundamentos metodológicos e as práticas docentes,
não garantindo a aprendizagem e nem atingindo os objetivos definidos pelos autores.
A possibilidade de trabalhar o livro didático relacionando-o com a vida
cotidiana é essencial. Um dos problemas recorrentes nas aulas é a ineficácia da
utilização do livro, na medida em que apenas se memoriza o que está escrito e não se
analisa os dados e as informações presentes nos textos didáticos, e também, não criando
outras possibilidades de ampliar o conhecimento escolar.

Rosemberg: No decorrer da minha tese de doutoramento, aprendi que o livro escolar não
é o único instrumento presente no processo de ensino-aprendizagem, já que este transita
de diferentes maneiras. Pensar isso envolve um debate geográfico de caráter conceitual a
ser feito, ou seria um acontecimento a ser desconstruído? Seria possível aprofundar esse
tema para que possamos entender melhor o livro didático?

Sonia: Em sua tese Rosemberg podemos perceber que essa afirmação corrobora com que
estamos analisando, porque apesar das críticas que podemos fazer a presença do livro
didático na sala de aula, temos que tomar consciência que a sua função é muito maior
do que a simplificação que fazemos dele, ao utilizá-lo como um fim e não como um
meio, como já afirmamos, no processo de ensino e de aprendizagem.
Tentar alcançar objetivos de integração dos saberes adquiridos deveria ser
uma das principais preocupações do professor, pois utilizaria a sua autonomia e
criatividade para ampliar as informações existentes nos livros. Quaisquer que sejam as
concepções que os docentes tenham do processo de aprendizagem deveriam levar em
conta atividades que motivem o raciocínio e as capacidades cognitivas, relacionando os
conteúdos propostos no livro com o cotidiano do aluno.
Nessa perspectiva as bases teóricas em que se fundamenta a aprendizagem
serão definidos os objetivos, as atividades e as atitudes possíveis de serem exercidas nas
aulas. Isso pode significar inclusive que, a partir de um mesmo conteúdo poderemos ter
diferentes níveis ou tipos de complexidade das atividades, ou seja, desenvolver junto ao

www.revistaedugeo.com.br 2
 55
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

aluno situações de aprendizagem mais simples e ir passo a passo, ampliando o nível de


complexidade delas. As ações docentes deveriam, mesmo com base nos livros didáticos,
ser desafiadoras e criativas contribuindo para que o aluno não viva passivamente frente
ao conhecimento escolar.
Além da possibilidade que o livro didático oferece em relação às concepções
de aprendizagem, há outra que é uma função tradicionalmente mais conhecida dos livros
didáticos e a que motiva mais críticas – a que oferece datas, fórmulas, fatos, ou seja,
informações mais exatas. Nessa abordagem podemos encontrar contradições, para alguns
professores essas informações são desnecessárias, já que compreendem a organização
dos conteúdos de maneira mais contextualizados e integrados; para outros a utilização
dessas informações garantem as explicações, mesmo sendo descritivas e sem significado
para o aluno. Porém, o que está em jogo não é só o tipo de informação, mas a maneira
como são desenvolvidas em sala de aula. Consideramos que essas informações soltas
não têm valor pedagógico nenhum, no entanto, quando inseridas em um contexto
poderão contribuir para ampliar os interesses dos alunos.

Rosemberg: E a professora Sonia nesse contexto? A sua formação como professora?

Sonia: Voltemos então, vamos amarrar, durante a graduação comecei a me dedicar a ser
professora; a cada dia em que eu passava por uma sala de aula, procurava observar e
responder às perguntas que me inquietavam, procurando as respostas que poderiam me
ajudar a buscar razões para evoluir.
Entrar no mestrado, em 1985, foi uma grande conquista, que reafirmou
minha vontade de entender como os alunos aprendem e por que muitos deles diziam
não gostar de geografia. No início do mestrado, eu ministrava aulas na rede pública e
particular, no ensino fundamental e médio, mas o questionamento encontrado na obra de
Yves Lacoste, a respeito da geografia dos professores, continuava presente: por que os
alunos achavam a geografia uma disciplina sem importância. Eu procurava, então, inovar
do ponto de vista metodológico e, ao mesmo tempo, buscar em outras disciplinas
fundamentos para aprofundar discussões teóricas no campo da didática, para estabelecer
alguns nexos com a geografia e tentar dar mais significado a ela.
A discussão que se dava nos encontros e congressos nacionais e
internacionais sobre cartografia para escolares reforçou a necessidade de pensar o
processo de ensino e aprendizagem à luz das concepções da didática e da psicologia e,
também sob a influência das pesquisadoras em cartografia escolar Lívia de Oliveira,

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 256


Ferracini, R.

Maria Elena Simielli, Rosangela Almeida, Janine Le Sann, Tomoko Paganelli, entre outras
da área, contribuíram para fortalecer essa linha de pesquisa com o tema cartografia para
escolares. Além disso, tornaram mais significativo o campo da pesquisa em ensino nos
cursos de pós-graduação, principalmente a partir dos anos 1985.
Assim, passei a convergir meus interesses na área de educação, analisando o
processo de aprendizagem e refletindo sobre o processo de construção dos conceitos que
estruturavam a geografia. Na geografia escolar, a cartografia começou a fazer mais
sentido: era uma possibilidade teórica de fazer com que o aluno desenvolvesse o
raciocínio espacial. No início do desenvolvimento do projeto de mestrado, o segmento
que me estimulava era o ensino supletivo, para jovens e adultos; a partir das discussões
sobre alfabetização nos cursos da FEUSP e sobre fracasso escolar no Instituto de
Psicologia comecei a entender melhor como se davam as relações de ensino e
aprendizagem, agora não apenas na geografia. Claro que tinha presente, uma pergunta,
“como os alunos constroem a noção de espaço?”, mas me envolvi com o
desenvolvimento cognitivo das crianças e acabei mudando o foco da minha pesquisa
para o ensino fundamental.
Cursando as disciplinas do mestrado e doutorado, pude estabelecer nexos
entre a aprendizagem dos conceitos geográficos e a capacidade leitora do aluno, ou seja,
comecei a relacionar a dificuldade de o aluno compreender os significados das palavras
à falta de entendimento de conceitos como escala, legenda, orientação. A partir desses
conceitos comecei a relacionar a cartografia escolar com a matemática, aprofundei os
estudos em algumas obras do Piaget, como a “Formação Simbólica da Criança”, “A
representação do Espaço na Criança” e a “Representação do Mundo na Criança”, com a
orientação do prof. Lino de Macedo que me ajudou a compreender a necessidade de se
desenvolver o raciocínio lógico para pensar as linguagens e ler geograficamente os
lugares.
As disciplinas cursadas durante a pós-graduação proporcionaram-me, além
do aprendizado dos conteúdos, o entendimento sobre como podemos ampliar o
repertório do aluno, e o que deve compor esse repertório. Por não haver disciplinas de
pós-graduação no campo de ensino e aprendizagem no Departamento de Geografia,
acabei cursando disciplinas em outros programas, como o de Psicologia e o de
Educação, que me auxiliaram a pensar o processo de aprendizagem na geografia.

www.revistaedugeo.com.br 2
 57
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

Rosemberg: Esse conjunto de experiências aconteceram nos parece que num processo
longo de formação. Seria possível falar, lembrar dos passos da sua formação no processo
de ensino e aprendizagem?

Sonia: Durante o doutorado, período de 1991 a 1996, tive a oportunidade de conhecer


outros autores como Vygotsky e Luria, que me possibilitaram leituras com abordagens
socioculturais. Mas de qualquer modo continuei pesquisando na área de cartografia
escolar com base na epistemologia genética, buscando respostas para a pergunta sobre a
construção cognitiva da noção de espaço em crianças das séries iniciais e também com a
principal pergunta feita por Piaget – como as crianças saem de um estágio menor de
conhecimento e chegam a um estágio maior do conhecimento.
Procurando entender a geografia que se ensina e a que se aprende, comecei
a construir uma trajetória cujos fundamentos passavam por compreender o significado da
epistemologia genética e o processo de construção do conhecimento.
Construí, dessa forma, um caminho de interface entre a geografia, o ensino e
a psicologia da aprendizagem, sempre procurando dialogar com outras áreas do
conhecimento, como língua portuguesa – já que a leitura de uma legenda necessita de
um mesmo processo de generalização que a leitura das palavras, uma generalização que
é cognitiva.
Centrei a análise e a pesquisa, tanto de mestrado como de doutorado, nas
crianças do ensino fundamental. Tomei como referência a categoria geográfica de lugar,
as noções cartográficas como linguagem, e a corrente teórica da psicologia genética ou
construtivismo epistemológico (HERNANDEZ, 1998), para buscar as respostas às
perguntas sobre o processo de aprendizagem e relacioná-las ao processo de
alfabetização geográfica.
Nessa corrente o conhecimento não é visto como mera cópia do mundo
exterior, mas como processo de compreensão da realidade, a partir das representações
que as pessoas têm dos objetos e fenômenos (significados), em consonância com seus
próprios conhecimentos e experiências (ações). Portanto a aprendizagem, nessa
perspectiva, consiste em a pessoa conjugar, confrontar ou negociar o conhecimento entre
o que vem do exterior e o que há em seu interior.
A posição que assumo em relação à educação e ao ensino de geografia não é
diferente da visão de mundo que desenvolvi e dos compromissos sociais que sempre
assumi. A concepção da geografia como forma de pensar os problemas da realidade,

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 258


Ferracini, R.

como os socioambientais, e as ações humanas no presente fazem parte de uma maneira


de entender a educação e a construção do conhecimento.
Estudando os clássicos, como Piaget, Vygostsky e Ausubel, encontrei neles a
referência para analisar o processo de ensino e aprendizagem. No entanto, mesmo com a
leitura das principais obras de Vygostsky, o questionamento dos procedimentos de sala de
aula referentes ao ensino da cartografia escolar levou-me a optar pelos estudos de Piaget
e Ausubel (aprendizagem significativa) como instrumento para analisar o raciocínio
espacial dos alunos.
Conforme estudava e estabelecia relações entre a prática em sala de aula e a
pesquisa de mestrado e doutorado, notei que havia, por parte de vários educadores, uma
leitura aligeirada sobre o construtivismo e a epistemologia genética. Havia confusão não
apenas nas leituras, mas também em compreender o significado do método para a
análise da realidade. O interessante é que na geografia escolar havia o mesmo problema:
não se entendia a geografia crítica como uma concepção teórico-metodológica, assim
como o construtivismo reduzia-se, para muitos educadores, a modelos procedimentais
associados a etapas operatórias. O que sem dúvida dificultou em muito uma
aprendizagem significativa de geografia. Além disso, não se consideravam as influências
socioculturais ou ambientais da criança nem sua capacidade de desenvolvimento do
raciocínio cognitivo no processo de aprendizagem.
A partir das preocupações com a aprendizagem, a construção conceitual e as
possíveis mudanças ou evolução conceitual por parte dos estudantes, buscando avançar
nas respostas às perguntas que me inquietavam, fui pesquisar de que modo conceitos da
cartografia estimulam o raciocínio espacial e a capacidade leitora e escritora dos alunos.
A concepção construtivista no processo de aprendizagem está sendo
utilizada para designar uma posição para a qual convergem diversas teorias psicológicas
e educativas, as quais compartilham a ideia de que o conhecimento e a aprendizagem
não constituem uma cópia da realidade, mas uma construção ativa do sujeito em
interação com o entorno sociocultural.
Uma aprendizagem com base na construção do conhecimento sustenta que
o aluno é um sujeito mentalmente ativo na aquisição dos saberes, estabelecendo-se
como objetivo prioritário a potencialização de suas capacidades de pensamento. Assim,
a aquisição do conhecimento surge como um processo de autoconstrução contínua,
sendo a sua gênese explicada pela função adaptativa dos sujeitos em sua interação com
o meio.

www.revistaedugeo.com.br 2
 59
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

Rosemberg: Houve pesquisas? Poderia citar, lembrar, contar um pouco desse processo de
construção e dedicação ao ensino?

Sonia: Sim, em pesquisas que realizei sobre a aprendizagem, tanto em crianças quanto
em adultos (professores nos cursos de formação), noto que fatos, ações e procedimentos
práticos dependem também do nível cognitivo dos sujeitos envolvidos. De certa forma,
coloca-se em xeque a capacidade de abstração e generalização que as pessoas têm dos
conceitos em questão.
As pesquisas realizadas no mestrado e doutorado mostraram que a leitura e a
escrita que a criança faz da paisagem estão carregadas de fatores culturais, psicológicos e
ideológicos. Em função dessas observações, e entendendo que ler e escrever sobre o
lugar de vivência é mais que uma técnica de leitura, assumi e passei a discutir o termo
“letramento”, por achá-lo mais amplo que “alfabetização”, já que ele não aponta apenas
a dimensão de decodificar palavras, mas inclui sua aplicação, pela criança, a outras
situações vivenciadas. Dessa maneira, compreende a função social de uma
representação cartográfica. Isso permite afirmar que o uso da linguagem cartográfica é
mais que uma técnica, já que implica ações do cotidiano.
Tanto em pesquisas que realizei como naquelas que orientei em programas
de pós-graduação, percebi como é importante considerar o desenvolvimento cognitivo
das crianças, sem perder de vista a dimensão cultural e socioeconômica no processo de
aprendizagem.
Ao mesmo tempo em que acontecia essa experiência escrevi o material de
Geografia para o ensino fundamental II, primeiro para um grupo de escola e depois para
a editora, o que me remeteu a pensar novamente sobre o currículo da geografia escolar e
os métodos de análise dos conceitos e fenômenos. Além disso, me permitiu pensar em
situações didáticas que relacionassem outras áreas do conhecimento, como ciências e
matemática. Pude então elaborar jogos, situações problemas, uso de mapas e croquis,
diferentes gêneros lingüísticos que me fizeram pensar sobre a metodologia inovadora. Foi
um livro diferente do ponto de vista das atividades e que também me possibilitou
contatos com professores, mostrando resultados positivos em relação às propostas. Um
trabalho que me possibilitou articular a geografia física e humana tendo a cartografia
como a linguagem preferencial para se estudar os temas propostos no currículo.

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 260


Ferracini, R.

Rosemberg: Falemos do aluno no processo de ensino e aprendizagem.

Sonia: O aluno deveria ser motivado a partir das atividades de aprendizagem para ser
capaz, não apenas de repetir os conteúdos, mas também de organizar, comparar,
relacionar, analisar as informações. Essa prática tornaria o uso do livro mais eficaz,
contribuindo para o desenvolvimento de um saber escolar que permita ao aluno
estabelecer relações com o seu conhecimento não formal adquirido em sua vivência –
social, cultural, religiosa e política.
Os livros didáticos desempenham outras funções e, entre elas, há numerosas
tentativas que visam não limitar esta transmissão de conhecimentos a um processo de
aprendizagem predeterminado e inserir problematizações, projetos e os temas
transversais (PCNs) que estão presentes em várias abordagens dos atuais livros didáticos,
com enfoque social e cultural, respeitando a diversidade cultural, os saberes ligados ao
comportamento, ás relações com o outro, à vida na sociedade em geral.
Um livro didático com uma proposta coerente não permite apenas assimilar
uma série de informações, mas visa igualmente a aprendizagem de métodos e atitudes
ou, até mesmo, de hábitos de trabalho e de vida. Sem dúvida essa minha fala só se
tornará verdadeira dependendo da concepção teórico-metodológica que o autor tem e
do uso que o professor faz dele em sala de aula, da maneira em que aluno assimila esse
conteúdo, desenvolve em outras atividades pedagógicas ou mesmo faz dele um
instrumento de novos processos de ensino e aprendizagem. Um tema que merece
aprofundamento e novas reflexões.

Rosemberg: Para avaliar os livros didáticos existentes no Brasil, o governo implementou


em 1996 um sistema específico. Entre as justificativas estava o fato dele ser o maior
comprador e, por isso, precisava estabelecer critérios de avaliação necessários para
melhorar a qualidade dos livros utilizados nas escolas. Como você analisa essa ação?

Sonia: Além disso, havia o fato do governo ter percebido a gama enorme de erros
conceituais e inadequações de conteúdos e linguagem: imagens que eram colocadas de
forma solta no texto, sem nenhuma articulação com o conteúdo, afirmações que mais
pareciam partidarismos da corrente que o escritor se filiava, conhecimento científico
sendo apresentado com víeis de senso comum, entre outros exemplos.
Sem dúvida foi um projeto ousado, porém necessário. Dessa forma, o
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) ganhou visibilidade e as escolas brasileiras

www.revistaedugeo.com.br 2
 61
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

puderam ter livros com qualidade técnica e pedagógica melhor, na medida em que a
avaliação interferiu na qualidade científica e gráfica. Além disso, pode garantir que os
alunos não estudassem em livros que continham termos ou ilustrações com algum tipo
de preconceito, principalmente racial, ao mesmo tempo em que foi garantido textos e
imagens de diferentes características sociolingüísticas e o uso de diferentes linguagens no
material.
Esse conjunto de critérios contribuiu em muito para a melhoria da qualidade
dos livros didáticos e conseqüentemente os professores ficaram mais atentos aos
conteúdos e conceitos que estão presentes no livro e são desenvolvidos em sala de aula.
O sistema de avaliação do livro didático proporcionou outra postura dos
autores e das editoras em relação ao compromisso que se pode ter com a melhoria do
ensino na escola pública, pois em áreas carentes o livro didático poderá ser o único que
o aluno terá acesso.
Uma outra questão que podemos falar está relacionada com as etapas de
elaboração do livro didático. Sem dúvida podemos abordar essa questão apenas em
linhas gerais, na medida em que a diversidade é grande e não existem regras exatas e
universais para a elaboração de uma obra. No entanto, trata-se de conjunto de ações que
leva anos para chegar no produto final.
Para se fazer uma coleção (com 4 volumes) ou um volume didático é preciso
encará-lo em um processo circular, pois os autores e editores enfrentarão freqüentes
avanços e recuos entre as várias etapas. O processo se inicia com a elaboração de um
projeto, no qual deve constar os principais objetivos da obra, o prazo de realização e a
concepção da área e de aprendizagem, portanto essas necessidades permitem estudar o
desvio entre o real e o desejável.
Ao se fazer à explicitação da concepção de aprendizagem e da delimitação
dos conteúdos é relevante que se tenha o conhecimento global e as tendências teóricas
da área. Durante o processo de realização haverá um certo número de modificações, por
isso é circular, a primeira pode ser a delimitação do conteúdo. A escolha do conteúdo ou
do tema, em alguns momentos, pode não dar conta de todas informações que se quer
colocar no livro, havendo necessidade de atualizações e, também, de recortes temáticos.
Em função desses recortes nos deparamos com críticas como: “porque não
tem um determinado conteúdo e tem outro?”. É importante que se saiba que a escolha de
conteúdo é um dos complicadores na organização de uma obra, em face da opção que
se está fazendo, principalmente quando a abordagem não é conteúdista. Outro aspecto

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 262


Ferracini, R.

da elaboração está relacionado com a adequação da linguagem que deve levar em conta
a faixa etária para a qual está se escrevendo.
Para que se tenha certeza do caminho em construção há necessidade de
aplicar os capítulos em sala de aula, testando a linguagem, as atividades e os textos
complementares. Dessa forma, pode-se avaliar a coerência interna, a adequação das
atividades e, ainda, passa por várias correções das provas até chegar na impressão do
livro.
No processo de elaboração do livro didático o trabalho em equipe acontece
ao longo da construção do projeto nas escolhas adequadas das ilustrações, das
fotografias, da composição e paginação, enfim a escolha do projeto gráfico. Em todo o
caminho de elaboração da obra didática autores e editora/editoria devem estar em
sintonia para que o produto final saia o melhor possível. Todas as etapas descritas
parecem simples, mas tudo é muito minuciosamente cuidado.
Muitas das críticas que são realizadas desconsideram o envolvimento da
equipe com os autores e o trabalho que esses têm que realizar para garantir a qualidade
do livro. Portanto, trata-se de um percurso muito complexo quenecessita de passar por
diversas etapas, integrando elementos que resultam das escolhas do indivíduo e das
limitações existentes.

Rosemberg: Conte-nos da sua entrada na USP e um pouco dos projetos de ensino.

Sonia: Com a minha aprovação no concurso para docente da Faculdade de Educação,


passei a ministrar as disciplinas de Metodologia do Ensino da Geografia I e II para a
licenciatura e, desde 2002 a disciplina de Metodologia de História e Geografia para o
curso de Pedagogia.
Começava, portanto, uma nova etapa na minha vida. Chegar a esse ponto
trouxe-me muitas possibilidades, mas principalmente abriu caminhos para pensar outras
possibilidades epistemológicas, agora em contato com outros grupos e áreas de
conhecimento.
A busca constante por novas maneiras de organizar as relações entre
professor e alunos, a construção de conhecimento e o processo de aprendizagem, e a
recusa em repetir o que eu sempre criticara – aulas que desestimulassem os alunos a
serem professores –, coloquei-me o desafio de pensar aulas e estágios que estimulassem
os alunos da licenciatura.

www.revistaedugeo.com.br 2
 63
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

Rosemberg: Como relatado anteriormente, seu percurso é de nunca ter abandonado a


escola, a área da educação. Percebemos uma paixão em sua fala, conflitos e angústias
quando expõe seus percursos e o desejo de mudança política. Conte-nos um pouco a
respeito das e as aulas de geografia?

Sonia: As aulas aconteceriam no laboratório, para que fosse possível desenvolver


atividades práticas e experimentos, e os alunos pudessem perceber o que era
aprendizagem significativa. O resultado foi interessante: vários desses alunos trabalharam
comigo em cursos de formação de professores, outros eu orientei em pesquisas de
mestrado e outros ainda co-orientei em seus projetos de conclusão de curso.
Interessada nas discussões sobre aprendizagem, credenciei-me no Programa
de Pós- Graduação da Faculdade de Educação, na área de Ciências e Matemática, pois
isso me estimulava a dialogar com outras perspectivas teóricas. Uma das conseqüências
desse caminho foi recomeçar a pensar a interdisciplinaridade no currículo escolar,
adquirindo referenciais que me abriram novos horizontes epistemológicos. Também me
credenciei no Programa de Pós-Graduação do Departamento de Geografia, para não
perder minha “primeira” identidade e, claro, contribuir para a linha de pesquisa em
ensino de geografia.
Paralelamente a essas atividades, estruturei um projeto de pesquisa sobre
construção de conceitos geográficos e saberes dos professores da rede pública, sem
financiamento, intitulado Formação de professores e metodologia do ensino de geografia
no ensino fundamental, cujo resultado foi apresentado no relatório de estágio probatório
para a Comissão Especial de Regime de Trabalho (CERT).
No desenvolvimento desse projeto, investiguei o modo como os professores
aplicavam a linguagem cartográfica no trabalho com seus alunos; como utilizavam os
recursos didáticos na compreensão dos conceitos; e que estratégias eram utilizadas para
os alunos construírem os conceitos cartográficos. Esse projeto dava continuidade às
preocupações teóricas que me acompanhavam desde o mestrado, considerando a
compreensão e a construção dos conceitos científicos na área geografia por professores e
alunos.
A discussão desse projeto derivou outros olhares que já estavam presentes em
minhas observações e análises, permitindo acrescentar as perguntas: “O que os alunos
devem aprender?”; “O que eles já sabem?”; “Como articular o conhecimento espontâneo
com o científico?”. Esses questionamentos suscitam uma proposta que incorpora outras
dimensões nos fundamentos teóricos do currículo integrado, cultura e contexto escolar.

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 264


Ferracini, R.

Ao adotar essas dimensões, assumo a influência interacionista, entendendo


que a função docente deve gerar atividades que mobilizem e motivem o aluno para a
aprendizagem e, ainda, ser um mediador do processo de construção do conhecimento
científico. Esse foi um momento difícil em minha carreira, na medida em que eu passava
a entender que fazia sentido pensar as atividades como mediação para a aprendizagem,
mas era ao mesmo tempo fundamental considerar, ao tratar dos conceitos cartográficos,
do ponto de vista do raciocínio espacial, a teoria piagetiana; considerando que essas
abordagens não se contrapunham, assumi a concepção construtivista interacionista.
O desenvolvimento do projeto me mostrou que a sala de aula pode ser vista
como microcultura, onde ocorrem os processo de evolução conceitual por meio dos
conteúdos trabalhados. Nesse sentido, faz parte da aprendizagem significativa um
currículo focado na interdisciplinaridade. As novas possibilidades da aprendizagem
passariam por projetos educativos integrados, tendo em consideração o cotidiano do
aluno.

Rosemberg: Sonia você é uma professora-pesquisadora com forte visibilidade nas


atividades tanto de pesquisa quanto de ensino. Percebe-se na comunidade geográfica
suas publicações, apresentações de trabalho em eventos científicos e acadêmicos. Como
observamos tais informações em seu currículo. Conte-nos um pouco de suas pesquisas a
respeito do ensino de geografia

Sonia: Entre 2007-2009, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do


Estado de São Paulo (FAPESP), observei a mesma tendência em relação ao raciocínio dos
alunos, corroborando as pesquisas anteriores, inclusive quando investigamos a visão
conceitual dos professores. Observamos uma dificuldade em estabelecer relações e
comparar; perceber relações espaciais projetivas, como coordenação perspectiva, e
euclidianas, quando se tratava de coordenadas métricas, conservação de distância e
superfície. Essas operações espaciais são fundamentais para a aprendizagem da
geografia, pois auxiliam na construção do raciocínio espacial. Considerar tais raciocínios
significa superar obstáculos de aprendizagem que aparecem na compreensão da
orientação e representação espacial.
Entendo que os contextos escolares são diferentes no que se refere à
dimensão étnica e cultural, mas as preocupações com os saberes escolares são comuns.
Nesse sentido, dois desafios são-nos colocados na escola: auxiliar os alunos a conhecer o
mundo em que vivemos e ensinar os conteúdos mais pertinentes ligados aos
conhecimentos geográficos.

www.revistaedugeo.com.br 2
 65
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

A dimensão pedagógica em que acredito, para realizar um trabalho escolar


significativo, visa a uma prática educativa fundamentada teoricamente em uma condição
de inovação da metodologia do ensino e do currículo escolar. Mas permanece a questão
sobre como o sujeito que aprende constrói seu conhecimento.
A trajetória teórica descrita em relação ao ensino e à aprendizagem permite
resgatar meu compromisso com a educação e a sociedade. Compromisso que foi sendo
construído desde minha entrada na universidade. Foi a partir dessa concepção que
busquei outros autores para me ajudar a entender as mudanças na sociedade, portanto na
escola.
Nesse sentido, assumo que a educação, na concepção moderna, está
fundamentada em parâmetros para formar cidadãos. Então considero que a educação
cria capital social, amplia a possibilidade dos sujeitos participarem democraticamente da
vida do país. Para formar cidadão que tenham consciência de seus direitos e deveres, é
preciso que a escola estimule um processo de aprendizagem significativo e capacite os
estudantes a desenvolver o raciocínio e a argumentação.
As idas e vindas das escolas e cursos de formação de professor fornecem-me
dados empíricos para considerar que a formação dos alunos passa pelo desenvolvimento
cognitivo e das habilidades sociais, da formação ética e moral, da compreensão dos
problemas e temas emergentes da sociedade como, por exemplo, os socioambientais e os
direitos humanos.
Considero, portanto, necessário pensar, para além da aprendizagem
significativa, o contexto escolar e a pertinência dos conteúdos nos currículos escolares.
Escola, cidadania, cidadão e território, como concepção e categorias de estudo que,
integrados, alimentam o processo de educação democrática. Essa interdependência das
categorias estabelece uma estratégia pedagógica que alimenta os processos de formação
dos estudantes, para que tenham condição de compreender as ações transformadoras de
sua realidade sócio-territorial, em busca de uma sociedade mais democrática, com
educação de qualidade.
Para a construção de um cenário escolar com uma proposta de ensino e
aprendizagem que garanta uma educação cidadã, já nos anos 1930 Bachelard, em A
formação do espírito científico (1996) declarava seu espanto quanto aos professores não
compreenderem por que os alunos não aprendem, e provocava afirmando que uma
cabeça bem feita é uma cabeça fechada, fruto da escola. Esse argumento corrobora o
que temos vivenciado em relação ao ensino de geografia nas escolas, principalmente no
ensino fundamental. A leitura de Bachelard trouxe, então, mais uma categoria para nossa

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 266


Ferracini, R.

análise do ensino de geografia, a da noção de obstáculo epistemológico. Noção que


incorporei nas minhas discussões sobre o contexto escolar e o processo de ensino e de
aprendizagem, ao tratar da educação geográfica.
Essa conversa me faz analisar o meu percurso de desenvolvimento teórico
traz uma base teórica e epistemológica que revela a maneira como penso a construção
do conhecimento científico, que é realizada na escola e em diferentes espaços não-
formais, com criatividade, emoção e influências socioculturais.
Ao incorporar outras categorias do debate sobre educação, como cidade,
cidadania e cultura, além de compreender que o processo de aprendizagem está sempre
em construção, amplio os fundamentos da epistemologia genética que me possibilitam
uma análise mais crítica sobre as discussões que vinha fazendo em relação ao ensino de
geografia. Além de ter me permitido rever e ampliar as minhas bases teórico-
metodológicas agregando autores que analisam o processo de ensino e aprendizagem a
partir do estudo da (na) cidade, da educação não-formal, portanto, da utilização de
outros espaços para estimular o ensino e a aprendizagem.
Dessa maneira, assumo, a partir dos questionamentos em relação à geografia
crítica e à falta de coerência na prática escolar, a necessidade de inovar nas práticas
escolares e na formação dos professores. No campo da geografia, isso significa ampliar a
dimensão da prática de ensino para educação geográfica e resgatar as pesquisas e
estudos sobre a didática da geografia. Assim, teremos a possibilidade de relacionar as
discussões sobre o método às propostas de inovação, para o que se faz necessário trazer
os conceitos da didática geral, que contribuem para um panorama do processo de
aprendizagem. Essas propostas permitem que os professores melhorem sua atividade
docente, tornando a geografia escolar uma disciplina relevante para a formação cidadã.

Rosemberg: Em momentos anteriores você falou da importância do Estágio


Supervisionado relacionado ao processo de ensino e aprendizagem, relacionando o
currículo, o livro didático e a escola. Nas suas aulas, como a professora Sonia busca
direcionar os alunos de Geografia e Pedagogia nesse processo? Nesse conjunto como
você trabalha com a vivência dos alunos nos Estágios?

Sonia: O projeto de estágio que sugiro prevê que os alunos desenvolvam um plano de
aula e o apliquem nas escolas. O objetivo é que, aplicando uma proposta inovadora em
sala de aula, eles tenham condição de analisar a maneira como os conteúdos,
habilidades e conceitos são compreendidos pelos alunos em função das atividades de
aprendizagem aplicadas nas escolas.

www.revistaedugeo.com.br 2
 67
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

Os resultados obtidos por meio dessa dinâmica têm oportunizado um maior


envolvimento dos alunos estagiários com os professores e alunos das escolas, ao mesmo
tempo em que se desmistifica a visão das possibilidades da educação e da escola pública
que carregam quando chegam ao curso de licenciatura. Tenho percebido que no final do
ano, depois de um ano de aulas de Metodologia do Ensino, o aluno já tem outro olhar
sobre a educação, e isso fica claro quando pedem ajuda na elaboração de um projeto de
Trabalho de Graduação Individual (TGI) voltado para o ensino de geografia.
A nossa conversa aqui, ontem foi relatada de forma não linear com as
discussões dos projetos de pesquisas, dos meus resultados, da minha atuação em cursos
de formação de professores, a sala de aula de graduação – enfim, em caminhos que se
entrecruzam e são importantes referenciais teóricos e práticos para mim.
Ampliando a discussão sobre aprendizagem, posso dizer que a partir do
estudo da cidade como projeto educativo e, conseqüentemente, estudando sobre espaços
não-formais de aprendizagem e interdisciplinaridade, comecei a pensar outros caminhos
para o curso de Pedagogia.
Desde o momento em que assumi a disciplina de Metodologia de Ensino de
História e Geografia para o curso de Pedagogia, em 2002, tenho realizado trabalho de
campo com outras disciplinas, com o objetivo de tentar viabilizar a integração entre as
disciplinas de metodologia do ensino e modificar a concepção dos alunos sobre a
disciplina de geografia nas séries iniciais. Em 2006, as professoras Silvia Trivellato e
Martha Marandino e eu apresentamos uma disciplina optativa para o curso de pedagogia
intitulada Natureza, Educação e Cultura Científica, concentrada em dez dias e com
trabalho de campo fora de São Paulo; a disciplina realizou-se pela primeira vez em 2008.
Essa disciplina acabou por me despertar para o estudo sobre a Educação em espaço
formal e não-formal. Provocou em mim a vontade de trazer essa temática para o ensino
de geografia e acabei incorporando-a no projeto de pesquisa que estava elaborando para
a FAPESP, o que provou ser caminho possível para uma aprendizagem significativa, pois
agrega a escola o processo de construção do conhecimento científico.
Toda essa agradável conversa revela a busca por articular estudos no campo
da aprendizagem que possam contribuir para aprofundar as bases teórico-metodológicas
do ensino e da aprendizagem em geografia. Por fim, será desse conjunto teórico,
aparentemente desconexo, que retomo a concepção da educação geográfica e a didática
da geografia para qualificar o ensino da geografia.

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 268


Ferracini, R.

Rosemberg: Como você relaciona o trabalho docente em sala de aula com os grupos de
pesquisas? Qual o diálogo possível?

Sonia: O percurso relatado e as reflexões epistemológicas que fundamentam minha vida


profissional relacionam-se à produção científica e acadêmica sobretudo do período em
que fui contratada pela USP no Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa
(RDIDP), por isso cabe relatar com destaque esse período, priorizando a produção em
pesquisa, docência e extensão, bem como a experiência nas atividades administrativo-
acadêmica na universidade, pois creio que são atividades que complementam o que
pode ser compreendido como a responsabilidade de todo professor comprometido com a
universidade pública.
Do ponto de vista acadêmico, passei a fazer parte do grupo de pesquisa
sobre a Teoria da Atividade, momento que considerei oportuno para buscar outros
caminhos e perspectivas no campo da educação; acolhida pelo professor Oriosvaldo
Moura, participei das discussões que tinham referências teóricas nos psicólogos russos
Leontiev e Luria. Esse contato provocou-me a lançar olhares para além da teoria
piagetiana. Sem negá-la, valorizando ainda sua concepção epistemológica, construtivista
e interacionista, passei a incorporar leituras sobre as pesquisas das áreas de matemática e
física. A questão colocada em relação à aprendizagem era não apenas de forma, mas
também de conteúdo, e, além disso, passava a fazer sentido para mim o contexto e a
cultura escolar.
Nos últimos anos, principalmente após o Encontro de Geógrafos da América
Latina (EGAL) ocorrido em Mérida, no México, em 2003, comecei a discutir com as já
citadas pesquisadoras Lana Cavalcanti (UFG) e Helena Callai (UNIJUÍ) uma pesquisa
conjunta sobre os saberes docentes relacionados aos conceitos geográficos de lugar,
cidade e cultura urbana. Essa pesquisa é coordenada por Lana Cavalcanti (UFG), com a
participação minha e de Helena Callai (UNIJUÍ), realizando a análise comparativa do
conhecimento docente sobre o ensino de cidade, destacando as temáticas do lugar, da
cidade e do urbano. Ela foi divulgada na Terra Livre (n. 28/2007) e em encontros da área,
como o EGAL 2005, em São Paulo; o EGAL 2007, na Colômbia; e no Encontro Nacional
de Didática e Prática de Ensino (Endipe) 2007, em Porto Alegre. Atualmente, o projeto é
financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).

www.revistaedugeo.com.br 2
 69
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

A partir dessa pesquisa, tenho trabalhado para a consolidação do grupo de


pesquisa2 Educação Geográfica: estudo da cidade e práticas interdisciplinares –
credenciado no CNPq, certificado pela USP e liderado por mim –, que conta com
professores de outras universidades e alunos de mestrado e doutorado, os quais vêm
promovendo pesquisas que articulam novos enfoques teóricos e metodológicos no
processo de ensino e aprendizagem, consolidando a área de Didática da Geografia,
metodologias inovadoras e ativas e do ensino em espaço não-formal.
Ao me preocupar com as novas perspectivas educacionais incorporadas pelas
escolas, considero necessário ampliar os debates teórico-metodológicos das principais
concepções no campo da epistemologia da geografia escolar e da aprendizagem (no
campo pedagógico).

Rosemberg: Por exemplo? Quais tem sido suas linhas de pesquisa, trabalho, ensino, em
que você tem se dedicado?

Sonia: Elenco alguns:


- cidade e cultura urbana como projetos educativos;
- didática e educação geográfica;
- currículo, formação e saberes docentes;
- ensino e aprendizagem nas séries iniciais;
- experiências de aprendizagem conceitual em espaços formais e não-formais.
Esses temas são pertinentes aos grupos de pesquisa que estão trabalhando em
conjunto, bem como a outras experiências que visam a modificar o modo de pensar e
aprender nesta área do conhecimento, caracterizando novas produções no campo
educacional. Uma dessas experiências está relacionada ao conceito de cidade e urbano,
tema extremamente importante não só no ambiente acadêmico, mas também no escolar.
Várias pesquisas têm apontado a necessidade de estabelecer relações entre o
conceito e seus subtemas, de forma a criar processos de aprendizagem para que os
alunos compreendam, dentro de seus contextos, o significado do estudo do urbano para
sua formação como cidadão; bem como para que os professores compreendam o papel
que devem desempenhar para trazer o debate sobre a cidade ao universo escolar.
Cavalcanti (2008) aponta vários elementos importantes na relação do estudo sobre o
tema escolar.

2 Grupo de Estudo e Pesquisa em Didática da Geografia e Práticas Interdisciplinares.

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 270


Ferracini, R.

Para tanto, as pesquisas realizadas principalmente pelas pesquisadoras


vinculadas à UNIJUÍ, à Faculdade de Educação da USP, ao Departamento de Geografia
da FFLCH/USP e ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Estratégias de Comunicação
(NEPEC) da UFG trazem informações relevantes sobre as concepções de urbano dos
professores de São Paulo, Porto Alegre e Goiânia, ampliando a formação docente e
trazendo material didático e teórico para se pensar o ensino da cidade.
Em nossas pesquisas sobre ‘Cidade’ refere-se à análise da pesquisa sobre o
ensino da cidade, destacando as temáticas do lugar, da cidade e do urbano, divulgada no
conjunto de produções acadêmicas no Brasil, e suas contribuições à prática docente,
tendo em vista a possibilidade de sua incorporação como saberes docentes orientadores
dessa prática, um estudo comparativo que terá continuidade até 2011.
Paralelamente, entre 2007 e 2009, em parceria com a escola pública e com
financiamento da FAPESP na linha de Ensino Público, desenvolvi um projeto de pesquisa
intitulado Escola do possível: mudanças na prática docente e na gestão do currículo
escolar. Essa pesquisa objetivou a reorganização pedagógica curricular, as ações
docentes do ponto de vista da didática e da metodologia do ensino, o uso qualificado
dos espaços de aprendizagem formais e não-formais e, conseqüentemente, uma nova
dimensão para o projeto político pedagógico da escola.
Esse projeto de pesquisa buscou estudar formas de ampliação do espaço
educativo que rompam os limites físicos dos muros escolares, assumindo que esse pode
ser um bom caminho para uma educação que visa à cidadania, incorporando às práticas
docentes metodologias ativas e inovadoras que mudem a cultura escolar em relação ao
processo de ensino e de aprendizagem. Além disso, ressalto que o resultado dessa
pesquisa foi apresentado no Enseñanza de las Ciências, VIII Encontro de Didática em
Ensino de Ciência, em Barcelona, em setembro de 2009, no eixo sobre metodologias e
enfoques interdisciplinares.

Rosemberg: Foram tantas as conversas, palavras, minutos, horas e dias. Gostaríamos de


voltar e fechar nosso bate-papo com suas palavras a respeito de suas experiências no
campo da formação de professores. Conte-nos um pouco mais da sua atuação na
pesquisa, e o que você gostaria de dizer que não elencado por nós?

Sonia: No campo da pesquisa, tenho-me dedicado também à formação de novos


pesquisadores. Muito embora se intensifiquem as investigações no campo da
metodologia do ensino e da didática da geografia na educação básica, ainda são pouco

www.revistaedugeo.com.br 2
 71
Entrevista com a Profa. Dra. Sonia Castellar...

presentes nos programas de pós-graduação linhas de pesquisas voltadas para a temática


de ensino e didática da geografia.
As teses e dissertações sob minha orientação vinculam-se aos programas de
pós-graduação em Geografia Humana (FFLCH-USP) e de Ensino de Ciências e
Matemática (Faculdade de Educação-USP), na área de ensino de geografia. Orientei nos
dois programas 21 dissertações de mestrado concluídas e 4 em andamento e 5 teses de
doutorados concluídas e 5 em andamento que refletem o percurso que venho
construindo academicamente, ora mais focado na formação docente e currículo da
geografia escolar, ora em metodologias ativas e inovadoras, ora na construção de
conceitos geográficos e cartográficos, buscando avançar no campo da didática e da
educação geográfica. No entanto, cabe aqui uma observação, um dos aspectos mais
interessante nas orientações é a possibilidade que tenho nesses momentos em discutir e
ler autores que às vezes são trazidos pelos orientandos. A troca que existe em relação à
fundamentação teórica é importante para abrir outros caminhos, como, por exemplo, a
discussão recente que fiz sobre aprendizagem por resolução de problemas e
alfabetização científica. Ao discutir as pesquisas com os orientandos acabo tendo uma
percepção mais cuidadosa das escolas que estão sendo pesquisadas, assim como dos
professores ou alunos.
Nossa conversa me fez rememorar meu percurso, percebo uma permanência,
a de nunca ter abandonado a área da educação, em todas as etapas de minha vida
profissional. Mas é importante compreender a complexidade de atuar em uma área que
apaixona e, simultaneamente, gera conflitos e até angústias. Porém, como desafia e
inquieta, volta o desejo da permanência.
Iniciei essa conversa ressignificando alguns percursos que foram importantes
para a construção de minha identidade. Apresentei a vocês minha formação acadêmica
por meio do movimento (político) da geografia, que me deu parâmetros para atuar como
professora de geografia e me ensinou que na educação e na ciência não há neutralidade.

Rosemberg: Professora Sonia, gostaria de agradecer a gentileza e a generosa conversa.

Sonia: Obrigado Rosemberg, espero ter ajudado.

Rosemberg: Sim ajudou, poderíamos ficar horas aqui, caso queira registrar algo fique
livre.

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 4, n. 8, p. 241-273, jul./dez., 2014 272


Ferracini, R.

Sonia: Creio que estas palavras são coerentes com tais idéias. Com a formação de
professores, ao tema do livro didático, aos temas transversais, com a formação política
dos alunos, a educação formal e não-formal e a vida como um todo. Ao compromisso
com a universidade e a escola pública. Espero que ao revisitar minha vida e minhas
memórias, conversando com você percebi a convicção de que aquilo que sou hoje não
poderia ser previsto a partir de minhas primeiras experiências pessoais, educacionais e
profissionais, mas o percurso não deixa de ser consistente, e seu resultado, coerente. Fica
a imagem, à medida que os caminhos foram se cruzando, da formação de uma rede com
uma trama que localiza as opções e decisões que fui assumindo em minha vida
profissional. Está ótimo, obrigada, um beijo e sucesso para você, um beijo e obrigada.

Rosemberg: Abraços e muito obrigado.

Referências Bibliográficas
BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do
conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1938/2008.
FERRACINI, Rosemberg. A África e suas representações no(s) livro(s) escolares de Geografia no
Brasil: de 1890 a 2003. Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas,
U S P, 2 0 1 2 . D i s p o n í ve l e m : h t t p : / / w w w. t e s e s . u s p . b r / t e s e s / d i s p o n ive i s / 8 / 8 1 3 6 /
tde-30102012-111718/es.php
HERNANDEZ, Pedro. Construindo o construtivismo: critérios para sua fundamentação e sua
aplicação instrucional. In: Domínios do conhecimento, prática educativa e formação de
professores. São Paulo: Ática, 1998. p.127-160.

Recebido em 05 de novembro de 2014.

Aceito para publicação em 18 de dezembro de 2014.

www.revistaedugeo.com.br 2
 73

Você também pode gostar