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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA


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CURSO
“EDUCAÇÃO LITERÁRIA”
COM PROFESSOR CLÍSTENES FERNANDES

AULA 03 - SINOPSE

O fato de a Grécia ser o berço da filosofia e de muitas instituições políti-

cas nas quais ainda hoje nos referenciamos não foi uma questão de aca-

so e esse lento processo de desenvolvimento civilizacional está intrinse-

camente vinculado à literatura. Nesta aula, desvendamos essa relação e

entendemos como as grandes obras da literatura podem nos auxiliar na

melhora da sociedade atual.

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Ao final desta aula, espera-se que você saiba: o que precisamos saber

para ler as obras antigas; como devemos considerar os padrões morais

das obras; qual a relação entre o desenvolvimento da literatura e o

desenvolvimento da filosofia e das instituições políticas na Grécia; como

as narrativas das palavras podem nos ajudar; o que define um bom

escritor; por que não podemos usar a História para as reflexões; qual

a relação entre imortalidade e memória; o que é a xenia; como são os

personagens na literatura antiga;

BONS ESTUDOS!
INTRODUÇÃO

Sejam mais um vez bem-vindos às nossas aulas de formação literária.

Em nosso primeiro encontro, entendemos como devemos ler e quais são os

níveis de leitura possíveis. No segundo, falamos acerca de Camões. Nesta

aula, trataremos de Homero.

2. LIMITAÇÕES

Antes de prosseguir, quero explicar por que não segui uma ordem

cronológica das obras, indo da mais antiga à mais contemporânea.

2.1. A IMPORTÂNCIA DAS REFERÊNCIAS

Não fiz isso justamente porque “Os Lusíadas” é a obra que pertence

à tradição literária que é mais acessível a nós, por ter sido escrita em portu-

guês. Assim, os nomes dos personagens são fáceis de pronunciar e não nos

causam estranheza. Na obra, constam sobrenomes como Almeida, Afonso

e o próprio Vasco. E o próprio contexto de navegação também já faz muito

mais parte do nosso imaginário do que o presente em obras mais antigas.

Além disso, Camões é uma grande régua pela qual podemos moldar a

nossa cultura inteira.

Existem edições fantásticas de “O Lusíadas”.

Existe uma, por exemplo, em que Lencastre

comenta palavra por palavra. No Brasil, há pouco

tempo, foi impressa uma edição em dois volumes

pela editora Concreta. Nela, tudo é comentado e

muito bem explicado.

Luís de Camões, Poeta (1524 - 1580)


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2.1. LIMITAÇÕES GRECO-LATINAS

Para além disso, conforme crescemos em cultura, em reflexão, através

de nossos estudos em geral, conseguimos ler as obras sem ter que parar

muito. Há problemas de vocabulário e de referências, mas isso é normal.

Por exemplo, Camões escreve

“Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro

E Orlando, inda que fora verdadeiro.”

Quem é Rodamonte? Quem é Rugeiro? Esses são personagens da lit-

eratura medieval. Orlando, o furioso, ou, em italiano, Orlando, innamorato, é

um personagem de La Chanson de Roland, obra mestra da literatura fran-

cesa e o início mesmo desta. Se preciso parar para pensar quem são esses

personagens, quem são Netuno e Marte, a leitura torna-se menos fluída.

Aqueles que assistiram a muitos desenhos da Disney podem ter

maior facilidade de conhecer os personagens. No entanto, há muitas outras

referências mais difíceis. Para localizar a obra no tempo, para dizer em

que época do ano tais acontecimentos se passaram, usam-se referências

astrológicas, no sentido de descrever a forma como amanheceu e o estado

do céu. Saber isso depende de uma vida inteira olhando para o céu e con-

hecendo as constelações, conhecendo o céu como realmente é e como é a

mecânica toda.

Os nossos conhecimentos em geografia também são limitadores.

Nós precisamos saber onde fica o sul da África. Precisamos enxergar o mapa

mentalmente e ver ali do que se trata. Se Camões fala sobre Moçambique,

temos de saber onde está localizada. Camões não dá referências exatas,

porque um poema não faz isso. Um poema exige uma cultura maior. De

qualquer forma, creio que o principal aspecto é a necessidade de conhecer

a cultura que chamamos de clássica, ou seja, a cultura greco-latina.

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Essa cultura dos romanos e dos gregos sempre é um espelho para o qual

olhamos. Se queremos compreender as instituições políticas, por exemplo,

precisamos nos voltar para Grécia ou Roma. Essas duas culturas sempre são

uma referência.

2.2. A QUESTÃO DA ANTIGUIDADE

Evidentemente, as culturas da Mesopotâmia e do Egito existiram,

mas estas, que são muito mais antigas do que as culturas grega e romana,

chegaram até nós através destas últimas, para quem Egito e Mesopo-

tâmia já eram antigos. Quando Heródoto estuda o Egito, está recolhendo

elementos culturais que naquela época já tinham 1500 anos. Realmente

estamos falando em Antiguidade.

Nós temos um certo problema com antiguidade quando, na nossa

sociedade, olhamos para uma canção dos anos 1980 e a classificamos como

velha. Nós não conseguimos ir além dos anos 1950. O ápice da cultura é a

pessoa que consegue traçar na sua própria mente o que aconteceu com a

música brasileira dos anos 1950 até aqui, como se antes disso não existisse

nada. Conseguimos rastrear a partir da invenção da fonografia, em que

se tornou possível gravar. O que veio antes, é muito antigo. Também não

somos acostumados com o nosso ouvido.

Com a literatura, acontece o mesmo. A literatura é uma espécie de

culinária. Há aquelas pessoas que cresceram consumindo uma grande var-

iedade de comidas, até mesmo estrangeiras. Então, seu paladar está acos-

tumado e consegue apreciar o que essas opções têm de bom. Por outro

lado, há aqueles que crescem com uma dieta restrita em termos de diver-

sificação. Assim, apresentam uma resistência para diferentes paladares.

Com a leitura, também acontece isso. Há aqueles que estão acostumados

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e gostam de ler, mas se restringem a um estilo ou gênero específico. Isso é

um problema, principalmente quando se trata de uma restrição temporal,

como só conseguir ler o que foi escrito de trinta anos para cá. Para essa

pessoa, Machado de Assis já é muito difícil.

Entretanto, se comparamos Machado de Assis com Homero, o pri-

meiro é moderníssimo. Homero escreveu em 800 a.C.. Machado, por sua

vez, é do século XIX. Ele escreve nomes de ruas do Rio de Janeiro que ainda

existem, algumas delas, inclusive, provavelmente com o mesmo calça-

mento. A Rua do Ouvidor ainda está lá, com o mesmo calçamento, e existem

edificações que permanecem as mesmas também.

Imagine agora Homero falando de Troia, uma cidade que foi desc-

oberta no século XIX. Aliás, descobriu-se a existência de várias Troias, pois

foram cidades construídas umas por cima das outras ao longo de séculos,

talvez, milênios. Até hoje, não temos certeza absoluta se Troia estava local-

izada onde Heinrich Schliemann, o arqueólogo que a descobriu, disse que

estava.

Esse é um primeiro aspecto: existe esse preconceito. Precisamos

estar conscientes de que é um texto diferente. Camões, que escreveu na

nossa própria língua, já é diferente, imaginem o resto. Imaginem encar-

armos um texto escrito em uma língua antiquíssima, morta há muito

tempo, morta até pelas pessoas que realmente escreveram.

Digo isso porque tanto “Ilíada” quanto “Odisseia” foram textos pas-

sados por tradição oral e que foram postos no papel cerca de 800 a.C., até

um pouco depois disso. Foi na época de Péricles, por volta de 500 ou 600

a.C., que se começou a fazer cópias de ambas e divulgá-las, tornando-as

o texto fundamental da educação na Grécia. Através dessas obras, apren-

dia-se a língua e a moral, até hoje, os principais elementos da educação.

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Há um debate se a moral deve ser ensinada às crianças por seus pais

ou pela escola, mas ninguém duvida que moral e língua são imprescindíveis.

Inclusive, estão presentes no currículo brasileiro. Se o ensino é eficaz ou não,

é outra questão, mas a maior parte da carga horária é dedicada à língua

portuguesa. Não há dúvidas de que o mais importante é aprender a língua

e um bom manejo desta.

No mundo antigo grego, o texto de Homero era lido, memorizado e

citado para decidir questões no tribunal. Embora não seja um texto sacro,

como o é “As Sagradas Escrituras” para o mundo judaico e cristão, apre-

senta uma certa sacralidade e uma consciência de que é preciso voltar

para esse texto para saber quem somos nós e para ter uma medida. Mesmo

nessa época, já era uma língua morta. Para vocês terem uma noção, era

mais difícil para um grego de 500 a.C. entender Homero do que é para nós

entender Camões. É a mesma língua, mas o texto é cheio de arcaísmos e de

certos aspectos que se modificaram, como acontece com qualquer língua

viva.

3. ASPECTOS TÉCNICOS DA COMPOSIÇÃO

Do que se trata? Há uma guerra. Leremos a excelente tradução de

Carlos Alberto Nunes, um paraense genial, que conseguiu dar a forma

sonora mais aproximada do texto grego e do texto antigo. “Os Lusíadas”

apresentam verso decassílabos, ou seja, são versos de dez sílabas, como por

exemplo “As Armas e os Barões Assinalados”. Isto, juntamente com a rima,

é o que confere musicalidade.

É preciso acentuar certas sílabas e há regras para fazer isso. Não se

pode colocar a sílaba tônica em determinadas sílabas. Se a sílaba tônica

estiver na quinta sílaba, por exemplo, o verso fica meio torto. Deve-se acen-

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tuar ou a segunda ou a terceira. A quinta nunca deve ser acentuada. A sexta,

quase sempre.

Existem discussões sobre qual é o verso mais sonoro, mais musical.

Tudo isso é arte poética, é tratado de versificação. Essas coisas vão mudando

ao longo do tempo. Há também as elisões, que é quando se junta uma vogal

com outra para formar uma sílaba só. Há versos esdrúxulos.

Hoje, “esdrúxulo” significa outra coisa, mas, no passado, era um verso

que terminava com uma proparoxítona, em que as duas sílabas finais do

verso são átonas. Isso pode ou não pode? Camões usava, mas não sempre.

Ele evitava ao máximo fazer isso. Enfim, são questões técnicas da poesia. E

o Carlos Alberto Nunes tem muita técnica, tanto que conseguiu transpor

para o português um tipo de verso que fosse igualmente sonoro e majes-

toso, usando elementos da nossa própria língua.

Nas línguas antigas, tanto o grego quanto o latim, e também em

algumas línguas modernas, como o italiano e o alemão, a quantidade das

sílabas é importante. No português, temos somente a força, se uma sílaba

é tônica ou se é átona. Quando digo a palavra “invocação”, “-ção” é a sílaba

tônica e as demais são átonas. Portanto, “invocação” é uma palavra oxítona.

Em grego e em latim, por outro lado, há sílabas longas e breves. Uma coisa

é dizer malum (prolonga o som de “a”) e outra é dizer malum (pronuncia

como se lê). A primeira significa maçã. A segunda, mal.

Aluno: achei engraçado maçã e mal serem tão próximos.

Para os romanos, essa similaridade não era engraçada. O engraçado

é quando essas palavras são latinizadas e a cultura cristã afirma que existe

a árvore do bem e do mal. Quando se começa a escrever sobre o “Antigo

Testamento” em latim, há a árvore do bem e do mal. Ninguém diria a árvore

do bem e da maçã.

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Pelo contexto, sabemos se a sílaba é longa e qual das palavras está

ali, porque não há como confundir as palavras “mal” e “maçã”. E é por isso

que, principalmente na arte renascentista, pinta-se a árvore do Paraíso e

Eva comendo uma maçã. Na Antiguidade, e principalmente por toda a

Idade Média, havia uma etimologia poética. Esta não trata da origem

das palavras, mas daquilo que o som da palavra evoca.

Por exemplo, a palavra “pão”. Hugo de São Vítor afirma que pão se

chama assim porque em grego pan significa tudo, por isso palavras como

“panamericano”. Porque o pão está presente em todas as refeições, cha-

mou-se assim. Em latim, era panis. Na verdade, não tem qualquer relação. A

origem da palavra latina panis e da palavra grega pan não tem ligação, mas

é bem mais bonito contar essa história. Faz todo sentido e há uma questão

mnemotécnica também, depois da sacralidade do pão.

O cristianismo transforma o pão em Deus. Pão e vinho é Deus. Entre-

tanto, nunca ninguém deixou de comer maçã porque essa é a árvore do

mal. Pelo contrário, a maçã sempre foi um dos frutos mais divulgados e

muito consumido. A aparência da maçã, sua cor, tudo tem relação com o

relato de Gênesis, que diz que o fruto era bom, belo e verdadeiro. Tratava-se

de um fruto bom para comer, tinha um aspecto agradável e dava o con-

hecimento, a verdade, para quem o comesse. Há essa questão entre mal e

maçã, mas é por acaso, porque os romanos não conheciam o Gênesis, não

tinham contato cultural. Nós também falaremos do Gênesis.

3.1. A TÉCNICA DE TRADUÇÃO

Como Carlos Alberto Nunes traduz esse texto? Em português, em vez

de utilizar versos datílicos, tal como o texto original, usa versos hexâmetros.

O que são versos datílicos, dátilo ou espondeus? Em grego, dátilo significa

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dedo. Portanto, um verso datílico é composto por uma sílaba longa e duas

sílabas curtas ou por duas longas. É mais ou menos a medida do dedo indi-

cador. Carlos Alberto Nunes faz uma sílaba tônica, duas átonas, uma tônica,

duas átonas. Esse é o verso, que é dividido em seis pés.

Pés é o momento em que bato o pé. Quando estou cantando ou

ouvindo uma música, eu bato pé no compasso. Se é uma música 3x4, faço:

um, dois, três; um, dois, três; e vou batendo o pé. Se é dois, tipo uma marcha,

é tã-tã; tã-tã; forte-fraco; forte-fraco. Ou uma valsa, que é dividida em dois

- um, dois; um, dois - e dentro de cada um desses dois, eu tenho três: Um,

dois, três, um, dois, três. Sempre três, mas dividido em dois. Isso acontece na

música e acontece na poesia. E nós ouvimos isso.

4. ILÍADA

Canta-me a Cólera — ó deusa! — funesta de Aquiles Pelida,

causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta

e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos

e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados

e como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio


desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos,

o de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino.

Qual, dentre os deuses eternos, foi causa de que eles brigassem?

O que de Zeus e de Leto nasceu, que, com o rei agastado,

peste lançou destruidora no exército. O povo morria,

por ter o Atrida Agamémnone a Crises, primeiro, ultrajado,

o sacerdote. Este viera, até as céleres naus dos Aquivos,

súplice, a filha reaver. Infinito resgate trazia,

tendo nas mãos as insígnias de Apolo, frecheiro infalível,

no cetro de ouro enroladas.

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Implora aos Aquivos presentes,

sem exceção, mas mormente aos Atridas, que povos conduzem:

“Filhos de Atreu, e vós outros, Aquivos de grevas bem-feitas,

deem-vos os deuses do Olimpo poderdes destruir as muralhas

da alta cidade de Príamo, e, após, retornardes a casa.

A minha filha cedei-me, aceitando resgate condigno,

e a Febo Apolo, nascido de Zeus, reverentes mostrai-vos.”

Os heróis todos Aquivos, então, logo ali concordaram

em que se o velho acatasse, aceitando os presentes magníficos.

Somente ao peito do Atrida Agamémnone o alvitre desprouve,

que o repeliu com dureza, assacando-lhe insultos pesados:

“Velho, que nunca te venha a encontrar junto às céleres naves,

quer te detenhas agora, quer voltes aqui novamente,

pois as insígnias do deus e esse cetro de nada te valem.

Não na liberto, está dito. Que em Argos, mui longe da terra

do nascimento, há de velha ficar em o nosso palácio,

a compartir do meu leito e a tecer-me trabalhos de preço.

Não me provoques, retira-te, caso desejes salvar-te.”

Acima, temos o início da “Ilíada”. Ilíada não narra a Guerra de Troia

inteira. Camões, assim como Virgílio, e Virgílio, assim como Homero,

começam a história no meio, no que se chamou de in medias res na poética

antiga. Depois, na “Odisseia”, conta-se todo o desenrolar da Guerra de Troia,

do seu início até o final.

Em “Os Lusíadas”, Vasco da Gama, ao chegar na Índia, conta para o

rei de Melinde não só a sua viagem, mas a história inteira de Portugal. Vasco

da Gama começa fazendo uma narração da Europa, como se o mapa desta

fosse uma mulher, em que a Itália é um braço. Por fim, chega em Portugal,

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que é a cabeça da Europa. Vasco da Gama faz essa narração e conta, desde

os períodos mais remotos, a história de Portugal, a qual culmina consigo

mesmo chegando na Índia, culmina com esse grande feito.

No excerto acima de “Ilíada”, trata-se do final da Guerra de Troia. É

o episódio em que esse velho sacerdote de Apolo vem pedir sua filha de

volta. Como esses homens faziam para se manterem em guerra? Não havia

quem ficasse trabalhando e enviando dinheiro, armas. Não havia trabalho

na retaguarda. Era preciso saquear os povos ao redor e no meio do caminho

para juntar comida e itens para poder sobreviver. Esses homens não sabiam

quanto tempo a guerra iria durar e esta não consistia somente em atacar o

inimigo, mas também em saquear aldeias e proprietários menores para ter

como se manter nela. E não era só os rebanhos, as mulheres também. E as

mais belas mulheres, é claro, ficavam com os chefes.

A comitiva grega era formada de vários senhores, pequenos reis,

digamos assim, que estavam todos sob o governo de Agamemnon1 ou

Agamémnone, dependendo da tradução. Tudo era muito bem hier-

arquizado. Agamemnon tinha uma bela escrava, que fora saqueada, a qual
lhe servia de concubina nesse tempo de guerra. Em casa, Agamemnon é

casado, mas na guerra era outra coisa.

4.1. COMO INTERPRETAR A MORAL

Sobre a questão da leitura. Não podemos ter esse juízo moral

muito específico. É preciso saber encontrar os padrões morais dos perso-

nagens de acordo com a sua época. Isso já é dado pelo próprio texto. No

judaísmo mais moderno, as famílias são monogâmicas, mas, no princípio,

Abraão tinha mais de uma mulher. Jacó, também. Isso são aspectos que vão

1  Personagem da Mitologia Grega.

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sendo desenvolvidos aos poucos. Nós chegamos numa conclusão moral a

respeito disso, fazemos uma leitura moral de que, independente do formato

de constituição familiar nesse texto, que não é um texto histórico, podemos

tirar elementos que ilustrem a história. Contudo, há sempre uma constitu-

ição que tem que ser respeitada. Pode ser um homem e uma mulher, ou

um homem e duas mulheres, ou cinco homens para um mulher, como na

Tailândia. Enfim, sempre há uma constituição a ser respeitada. Nunca se

viveu na balbúrdia com relação à família.

Eu só digo isso para dar um exemplo. Não estamos em uma aula

de antropologia ou de sociologia da família. Nada disso. Mas é o quanto a

literatura nos ajuda a enxergar essas coisas na cultura, ter um espelho

da nossa própria cultura e conseguir fazer uma reflexão sobre a nossa

própria cultura. Não digo uma reflexão boba como “eu preferia viver nessa

época”. Muita gente diz que queria viver na Idade Média, que queria viver

nos anos 1960 e ir no show dos Beatles. Não, ninguém queria isso. Não é

bom viver no passado. Se nós estamos aqui e fazemos uma reflexão bem

séria, vemos que essa é a época em que temos mesmo que viver. E a litera-

tura nos ajuda muito com essas coisas.

4.2. A HISTÓRIA DE CRISES

Voltando à história. Agamemnon está com essa escrava e o pai dela

vem pedi-la de volta. Em troca da filha, dentre outras coisas, oferece ouro.

Esse sacerdote vai sozinho no campo de guerreiros, de uma forma muito

heroica, pois, no décimo ano de guerra, no final da guerra, os homens já

estavam com sangue nos olhos. Os guerreiros o olharam e pensaram: “Que

corajoso!”.

Precisamos olhar para todos os personagens. Vejamos a posição

desse sacerdote. Todo mundo concordou que ele merecia receber a filha

de volta porque, além de trazer presentes, tinha sido corajoso de ir até lá

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sozinho. Os guerreiros esperavam que Agamemnon fosse devolvê-la. No

entanto, este expulsou o sacerdote, dizendo que permaneceria com ela e

que a levaria consigo para casa a fim de que lhe servisse para sempre. O

velho sacerdote, de nome Crises, vai embora e faz uma oração a Apolo.

“Ouve-me, ó deus do arco argênteo, que Crisa, cuidoso, proteges,

e a santa Cila, e que tens o comando supremo de Tênedo!

Ajudador! Já te tenho construído magníficos templos,

bem como coxas queimado de pingues ovelhas e touros.

Ouve-me, agora, e realiza este voto ardoroso, que faço:

possas vingar dos Aqueus, com teus dardos, o pranto que verto.”

Isso disse ele na súplica; ouvido por Febo foi logo.

Outro aspecto digno de menção é que não existe rima na litera-

tura antiga. A rima é uma invenção da Idade Média, bem característica

da poesia cristã. O que realmente importa no verso antigo é o ritmo, o

que hoje chamamos de verso branco. Todos os versos são brancos. Carlos

Alberto Nunes, quando põe na boca de Crises essa oração, consegue fazer

esse verso bem marcado.

Crises pede a Apolo que o vingue, pois já havia feito tudo que estava

ao seu alcance. Primeiro, apesar de ser sacerdote, não havia orado para

Apolo fazer nada por ele. Antes, cumpriu com todos os protocolos. Naquela

época, não era considerado um insulto moral saquear uma cidade por

causa da guerra. Todos entendiam que, se estivessem em situação de

guerra, teriam cometido o saqueamento também. Todos entendiam que

isso era inerente à guerra. De toda forma, por amor à sua filha, Crises tentou

resolver a questão. Antes, não estava tirando a razão deles. Agora, entende

a conduta como injustificada e, como sacerdote, reza para o deus de quem

é sacerdote.

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Crises diz a Apolo que faz muitas oferendas, que construe templos

e que agora precisa da ajuda dele, pois já fez tudo que era humanamente

possível. Como resultado, Apolo lança uma peste no acampamento dos

gregos. Apolo também é o frecheiro infalível. Por nove dias, Apolo lança

suas flechas sobre o acampamento dos gregos, que adoecem.

Assim, a história começa a ganhar corpo. Nós sabemos que a Guerra

de Troia não acabou com uma peste. Então, o que acontece agora? Os

gregos convocam um adivinho, intérprete das coisas divinas, e o ques-

tionam sobre o que está acontecendo. Ele diz a Aquiles, o mais forte de

todos os guerreiros, que somente revelará o que está acontecendo se este

lhe oferecer proteção, pois o que tem a revelar envolve pessoas poderosas.

Ele explica que Agamemnon quererá matá-lo, porque é o culpado de tudo.

Até esse momento, os gregos não sabiam que Apolo estava cum-

prindo um pedido de Crises. Os soldados só começaram a morrer repentina-

mente, doentes. O adivinho explica que todo problema começou porque

Agamemnon não quis devolver Criseida para o pai dela. Ele informa que a

peste dizimará a todos, a menos que Crises faça uma outra oração pedindo

a Apolo que a cesse.

Aquiles entende que o problema está resolvido, basta que Agam-

emnon devolva Criseida para o pai dela. Todos os gregos se voltam para

Agamemnon, o chefe, dizendo que não haviam concordado com a con-

duta dele, mas que, até aquele momento, os efeitos da decisão era restritos

somente à vida dele. No entanto, a situação estava diferente. Ele era o

responsável direto pela peste que abatia o acampamento grego. Não adi-

antaria matar o sacerdote, não adiantaria fazer nada. Na verdade, precis-

ariam do sacerdote para fazer uma nova oração para Apolo, a fim parar com

a peste.

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Ao perceber que precisaria devolvê-la, Agamemnon sente-se ultra-

jado. Afinal, teria que abrir mão de sua escrava enquanto eles, subalternos,

continuariam tendo as suas. Como Aquiles havia ido questionar o adivinho,

resolveu ficar com a concubina deste, Briseida. Agamemnon pede que

chamem o sacerdote para devolver a filha dele. Aquiles fica indignado,

porque não tinha nada a ver com a história e agora ficaria sem escrava.

Assim, decide parar de lutar e ir embora. Só que Aquiles é o mais forte de

todos os gregos. Após deixar o campo de batalha, a guerra continua e os

gregos começam a apanhar.

4.3. PÁRIS

Nisso, somos conduzidos ao Olimpo. Os deuses estão divididos. Lá

está Tétis2, a mãe de Aquiles, que no futuro se casará com Vasco da Gama.

Aliás, foi no casamento desta com Peleu3 que surgiu a discórdia. Nessas

histórias, sempre há uma vaticínio ou algo similar, do tipo “isso não pode

ser feito pois terá um fim terrível”. Neste caso, havia uma profecia de que,

quem se casasse com Tétis, essa ninfa do mar, seria superado pelo próprio

filho. Por isso, nenhum dos deuses quis casar com ela. Como nenhum deus
queria ser superado por seu próprio filho, Tétis ficou solteira. Porque vai

viver para sempre, um imortal não quer ser superado pelo próprio filho. Por

outro lado, para um homem, isso não tem problema nenhum. Ao contrário,

é até motivo de orgulho. Os homens são diferentes dos deuses.

Pensem em um empresário. Ele começa do nada, monta uma

empresa e trabalha avidamente. Este homem sonha que seu filho continue

aquilo que começou, que não acabe com tudo, como geralmente acontece.

Pode ser um mercadinho, o filho normalmente consegue falir com tudo.

Peleu é um rei. O Olimpo lhe oferece a mão de Tétis e ele a aceita.

No casamento, estão reunidos os deuses e toda nobreza da região. É neste


2  Musa do mar.
3  Personagem da mitologia grega.

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casamento que Éris4, a discórdia, que não foi convidada, joga uma maçã

para a mais bela no meio da festa, e três deusas ficam muito indignadas:

Afrodite ou Vênus (Deusa do Amor), Atenas ou Minerva (Deusa da Sabe-

doria) e Hera ou Juno (Deusa do Matrimônio e da Fertilidade). As três vão

até Júpiter para que decida quem é a mais bela. Hera é a esposa oficial de

Júpiter e Afrodite e Atenas são filhas dele, mas não de Hera. Júpiter diz

que não resolverá essa questão, a qual será respondida pelo mais belo dos

mortais, Páris, um homem que vive como pastor no monte Ida, na Ásia, e

que, quando chegar o tempo correto, será o juiz dessa discórdia.

Bom, quem é Páris? Páris é filho de Príamo, rei de Troia. Quando

nasceu, uma profecia foi feita a respeito dele. De acordo com esta, ele seria

a causa da ruína de Troia. Indicam matá-lo, mas seus pais se apiedam e

preferem deixá-lo no monte, onde é acolhido por um pastor. Na verdade,

seus pais o haviam batizado Alexandre. É o pastor que lhe dá o nome de

Páris. Páris cresce como pastor, enquanto Troia continua com sua beleza.

Na “Ilíada”, todo mundo fala grego, mas é para ser um povo de cul-

tura diferente. Enquanto os gregos são formados por vários reinos, Troia é

separada. Troia é a cidade mais forte e poderosa da época. Não seria possível

para nenhum rei enfrentar Troia sozinho. Seria ridículo. Todos os gregos

tiveram que se reunir.

4.4. HELENA

Corta e voltamos para Grécia. Um dia, Zeus viu, entre os gregos, uma

rainha tomando banho. A rainha em questão se chama Leda e é casada.

Zeus se apaixonou por ela. Isso acontece com frequência na literatura

antiga. Zeus se apaixona muito facilmente. Não bastasse isso, ele se trans-

formou em cisne para seduzi-la. Seu ardil funciona e Leda engravida dele,

4  Deusa da Discórdia.

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de gêmeos, Helena e Castor. Ela volta para casa e engravida do marido

também, também de gêmeos, Clitemnestra e Pollux. Hoje, a genética diz

que isso não é possível, mas a literatura não é um tratado de genética.

Os filhos nascem e Helena, por ser filha de uma bela mulher e do

mais poderoso dos deuses, Zeus, é a mais bela das mulheres. Sua irmã,

Clitemnestra, que nasceu primeiro, também é muito bela. Por hora, deix-

aremos os dois irmãos de lado. Não vamos precisar deles hoje.

Helena, portanto, é a mais bela das mulheres. Quando cresce, precisa

encontrar um pretendente para se casar. Antes, no entanto, é preciso casar

Clitemnestra, que é a mais velha. Clitemnestra se casa com Agamemnon, o

mais poderoso dos reis. E Helena? Todos os demais reis da Grécia se oferecem

como seus pretendentes. Como não sabem o que fazer, decidem sortear a

mão dela. Mas, para que ninguém tente roubá-la ou algo do gênero, Ulisses

sugere que façam um pacto para defendê-la de qualquer invasor, porque,

afinal, é a mais bela de todas as mulheres e isso é um perigo. Eles também

estipulam que todos aceitarão o resultado do sorteio. Todos os reis aceitam

e formam uma aliança em torno desse pacto.

Ulisses é do reinado de Ítaca, uma pequena ilha. Ele não é muito

poderoso, mas é o mais astuto. Ulisses acaba se casando com Penélope,

uma mulher muito bela também que, em algumas versões da história, é

irmã de Helena. Por ter feito a sugestão do pacto, Ulisses conseguiu se dar

bem.

Quem ganha o sorteio por Helena é Menelau, o irmão mais novo de

Agamemnon. Menelau e Helena se casam e tudo corre como o esperado.

Ninguém briga e está tudo bem na Grécia. Agamemnon com Clitemnestra.

Ulisses com Penélope. Está tudo indo muito bem.

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
4.5. UMA PROMESSA

Enquanto isso, Páris está lá, cuidando das ovelhas. Ele, que era para

ser um príncipe, cresce e se torna o mais belo dos homens. Um dia, três

deusas, Afrodite, Atenas e Hera, aparecem para ele, explicam a história da

maçã e que Zeus, o mais poderoso dos deuses, incumbiu-o de julgar à quem

a fruta pertence. Páris fica aparvoado e não consegue julgar.

Assim como o demônio tentou nosso Senhor no deserto, Páris será

tentado pelas deusas. Sobre o primeiro, uma breve explicação. Jesus estava

jejuando quando o demônio apareceu para lhe tentar. Ele diz a Jesus “Está

com fome? Por que não faz pão daquelas pedras?”. Jesus lhe responde que

está jejuando e que irá cumprir seu propósito. O demônio, então, leva Jesus

para cima de um monte e diz: “Se tu me adorares e me servires, dar-te-ei

tudo isso aqui. Todos os reinos do mundo serão teus”. Jesus mais uma vez

recusa sua oferta. O demônio vai além, leva-o para cima de um templo e

diz: “Agora, te atira, porque está escrito que os Anjos te agarrarão e não

deixarão com que tu caias”. Jesus lhe diz que “Não tentarás o Senhor teu

Deus”. Assim, Jesus vence as tentações.

Para ser escolhida por Páris, cada deusa resolve tentá-lo com uma

promessa. Juno, mulher de Zeus, promete-lhe poder sobre todos os reinos

da Terra, promete o poder de fazer tudo e de torná-lo o mais poderoso de

todos os reis. Enquanto Páris está pensando em escolher Junho, chega

Atenas e promete que vai lhe dar a maior sabedoria, a maior inteligência.

Esta promessa é parecida com a tentação de Jesus de se atirar do alto do

templo para que os Anjos lhe agarrem, pois está relacionada com esse

poder espiritual. Afrodite lhe oferece o amor da mais bela das mulheres de

todo mundo.

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Qual Páris escolhe? Qual qualquer pessoa escolheria? Páris não

escolhe poder político, nem inteligência, nem sabedoria. Ele escolhe ter o

amor da mulher mais bela de todo o mundo. Afrodite diz que lhe dará um

aviso quando chegar a hora de ele ter a mais bela de todas as mulheres. E

Páris continua como pastor, com as ovelhas, feliz.

Um dia, ao voltar para casa, descobre que estão acontecendo uma

série de jogos em Troia e decide se inscrever. Os esportes que temos hoje

nas Olimpíadas, como luta, arremesso e corrida, surgiram na Grécia. Quando

chega em Troia, sua verdadeira casa, Páris é reconhecido por seus pais, que

ficam com pena dele e colocam-no para dentro do palácio. Os pais veem

que é irresistivelmente belo, pedem perdão e o levam para casa.

Páris está no palácio e Afrodite aparece. Ela conta que ele irá fazer

uma viagem para visitar os aliados gregos e que, nessa viagem, recon-

hecerá quem é a mulher mais bela. Neste momento, basta trazê-la para

casa. Assim, quando chega no palácio de Menelau, rei de Esparta, Páris

conhece Helena e a sequestra.

5. O PODER DA LITERATURA

Neste ponto, há uma questão que moveu toda literatura: Helena foi

de boa vontade ou foi sequestrada? Ela quis ir voluntariamente, foi forçada

ou foi enfeitiçada por Afrodite? O que acontece?

5.1. A LITERATURA E O DESENVOLVIMENTO CIVILIZACIONAL

A moralidade de Helena é uma grande questão a ser debatida.

Essas discussões ensejam diferentes aspectos de toda a ciência do dis-

curso que farão com que surja a própria filosofia na Grécia. Evidente-

mente, não só por causa dessa história, mas por causa de todas essas

histórias de que estamos falando.

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Em breve, continuaremos a história. No entanto, quero fazer uma

pausa nesta para tratar do principal aspecto da nossa aula que é o seguinte:

a existência dessas histórias e dessa variedade de personagens possi-

bilita uma série de discussão e fornece material para que as pessoas

possam refletir sobre qualquer coisa. Sem isso, não é possível existir

ciência, porque não é possível existir filosofia. Antes disso, há a literatura.

Depois, a retórica. O treinamento da retórica é, primeiro, ler muita literatura.

Em vez de acusar o Fulano ou Beltrano no parlamento, eu treino com essas

histórias, acusando ou defendendo Helena. Eu construo um argumento a

partir do qual justifico por que Helena é culpada.

Eu posso dizer, por exemplo, que Helena é culpada porque foi de

bom grado. Digo que, provavelmente, ela se vestiu de um jeito provocante

no dia em que Páris estava lá. Assim, eximo a culpa de Páris.

É só a partir daí que tenho material para fazer essa digestão de

ideias. Muito tempo depois disso, quando surge a democracia na Grécia, as

pessoas estão bem treinadas para chegar no parlamento e tomar decisões,

para convencer os demais do seu ponto de vista, para que suas ideias sejam

acatadas e por aí afora. Se existe genialidade no povo grego e adoramos

ressaltar que inventaram a democracia, a filosofia, uma sociedade livre,

isso começa com um povo altamente literário e que está acostumado a

pensar nesses casos arquetípicos. Arquétipo significa um tipo antigo. A

partir daí, consigo ter algo com que fazer essa digestão de ideias.

É diferente de se defrontar repentinamente com uma situação de

tomada de decisão, como ocorre no Brasil. Há muitos vereadores que nunca

passaram perto de nenhuma experiência do tipo. Assim, qualquer dema-

gogo de meia tigela chega no parlamento, diz algo e convence. Pior que

isso, pode ser que este vereador só esteja lá porque antes um deputado o

visitou no interior do país, de terno e gravata, e lhe convidou para ser candi-

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
datar. O sujeito vê aquela imagem e pensa “esse cara deve ser bom mesmo,

está falando sério e está me convidando para eu me candidatar a vereador”.

Como podemos evitar isso? Lendo Homero, Camões, os contos de

fada, Esopo e tantas outras obras. A Grécia só foi o que foi, e o Ocidente só é o

que é, não porque teve democracia, comércio ou porque inventou o sistema

bancário na Renascença. Não, está muito antes disso. Houve um homem

que contou a seguinte história: “Crises queria ter sua filha de volta. Para isso,

ofereceu um resgate, mas o sequestrador não o aceitou. Com isso, houve

uma punição vinda dos céus”. Nesta situação, Agamemnon está certo ou

não? Aí, a pessoa para, pensa e percebe que, por um lado, Agamemnon está

certo e que, por outro, está errado. Qual a conclusão à que chego? Qualquer

uma. Na verdade, o importante é que eu faça esse processo e que esteja

acostumado a, inclusive, chegar a uma conclusão em um dia e à outra, em

outro, porque isso é educação.

Não lemos Homero para citá-lo. Eu posso até citá-lo, mas eu leio

Homero para aprender a usar a própria linguagem, sem a qual não é pos-

sível que Newton descubra a lei da gravidade ou Einstein elabore a fórmula

da relatividade. Eu preciso de gerações e mais gerações de pessoas usando

a linguagem e que isso seja continuado em uma tradição. Se toda vez nós

precisarmos de um novo Homero, de uma nova literatura, estaremos sempre

começando do zero. A tecnologia vai acontecendo ao lado. As coisas vão

passando, mas a cultura não é assim, a cultura é tradicional.

Podemos criar a seguinte objeção: “Para que vou ler Homero se

tenho um Iphone e eu consigo pedir comida no Ifood? Olha só que barbada

e essas pessoas querendo que eu leia Homero. Esses homens tinham que

buscar água na fonte. Não tinham nem água encanada e acham que eles

vão me dizer alguma coisa?”

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Sim, eles vão. Essa pessoa não sabe de nada. Água encanada não te

ajuda em nada. O fato de ter água encanada não faz com que a pessoa

consiga, em um parlamento, explicar suas ideias e convencer os demais

de que estas são as melhores. Sem essa tradição literária, não há debate,

não há nada disso.

Quando surgiram as reformas democráticas na Grécia, já havia

séculos que estavam meditando sobre a obra de Homero, falando e pen-

sando, em casa e na praça pública, sobre a virtude ou vício da Helena. A

partir dessa discussão sobre a moralidade de Helena, pôde surgir valores

que hoje são tidos como perpétuos, como a democracia.

5.2. A IMPORTÂNCIA DAS NARRATIVAS

Ao mesmo tempo, quem disse que esses valores são perpétuos?

Como aceitamos isso assim? Nós aceitamos que a democracia é sagrada.

Basta que um partido coloque a palavra “democrático” em seu nome para

que tenhamos uma boa impressão a respeito dele. Poderia ser diferente.

Nós pegamos as palavras em si sós e começamos a dar valor a elas.

Por exemplo: “Eu sou trabalhista”. Isso é totalmente vazio de sentido,

porque não sabemos o que é trabalhista. No máximo, podemos pegar um

dicionário de política e ver a definição que nele consta, mas isso não basta.

É preciso ter uma narrativa inteira por trás, assim como, para o amor, pre-

cisa ter a história dos cupidos jogando flechas. Se o trabalhismo não tiver

uma narrativa inteira, não sabemos o que é. Se a democracia não tiver uma

narrativa inteira, uma história inteira, não conseguimos saber.

E assim é com tudo, porque, quando o primeiro demagogo se levanta

e diz que é democrático, que é trabalhista, que é cristão, você questiona

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
“como assim cristão? Como assim trabalhista?”. Se alguém dissesse “Eu sou

pró-Agamemnon e é por isso que eu acho que nós devemos devolver Cri-

seida”, você pode dizer “Mas o Agamemnon não queria devolver Criseida.

E ele inclusive a devolveu porque ficou com a escrava do outro. Então, se

você é pró-Agamemnon, na verdade, está dizendo que vai pegar alguma

coisa em troca desse esforço que você está fazendo”. Por quê? Porque todo

mundo conhece a narrativa.

Agora, quando o sujeito vem dizer qualquer outra coisa, como, por

exemplo, que é democrata, nós aceitamos. Nós não temos uma narrativa

do que é a democracia. Nós não sabemos debater sobre essas coisas.

Nós estamos muito aquém disso. Nós não temos noção real do que as

palavras significam. Na Grécia, essa noção real só existiu justamente

porque estavam dentro de uma tradição literária muito antiga, que já

estava arraigada nas pessoas. Praticamente todo mundo era analfabeto,

mas todos conheciam as histórias. As pessoas declamavam, cantavam.

Depois, mais tarde, surgiu o teatro. Na Grécia, junto com a democracia,

surgiu o drama, o qual tinha a mesma função: fazer as pessoas olharem

para aquelas histórias.

5.3. O BOM ESCRITOR

E o bom escritor é aquele que deixa quicando. Homero não conta

toda essa parte do casamento de Peleu e Tétis. Isso não estava em Homero.

Foram outras fontes que surgiram. Depois, em peças de teatros e poemas

líricos. Em roma, posteriormente, também há várias outras fontes. A história

que estou contando para vocês, na verdade, é a minha versão. Eu acho que

faz mais sentido e é a mais interessante. Por que isso acontece? Porque

Homero só deixa quicando. Ele fala de um episódio x, mas não conta como

foi. Com isso, um outro sujeito cria uma peça de teatro só sobre aquele verso

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
que Homero deixou quicando, mas não explicou como era.

E na Grécia não há vontade nenhuma. Não existe um Tolkien, que cria

todos os personagens do nada. Todo texto tem os mesmos personagens:

Ulisses, Agamemnon, Édipo. Édipo é uma história muito mais antiga do que

essas e se passa num tempo mais remoto do que esse. Os deuses também

são sempre os mesmos e estão sempre interagindo. Depois, em Roma, os

nomes mudam, mas os romanos têm todos os equivalentes.

5.4. PLATÃO E HOMERO

Por cerca de 1500 anos, a literatura falava sempre das mesmas coisas,

com os mesmos personagens, mas sempre sob um ponto de vista diferente.

Há um diálogo de Platão com um sujeito chamado Hípias. Neste, Platão

questiona se Ulisses era um homem virtuoso, porque, na verdade, era um

mentiroso. Embora tenha alcançado seus objetivos e grandes feitos, fez isso

sempre contando uma mentira. É possível fazer isso? Os fins justificam os

meios? Platão, o grande filósofo, um homem que não estava só contando

a história da carochinha, quer tratar disso: Os fins justificam os meios?

Como vamos debater isso? Quando tentamos ilustrar com um

exemplo, é sempre muito vago, não temos nada em concreto sobre o

que tratar. Hoje em dia, na administração, fazem aquelas análises de

caso. Eu até acho interessante, pois se cria uma empresa com nome, orça-

mento e certas dificuldades e demandas. Os futuros administradores têm

que resolver aquele problema através de diferentes soluções. É mais ou

menos isso. De qualquer forma, é uma atividade muito feia e sem graça.

É algo muito hipotético. Não é algo bem escrito e com forma. Pergunte a

qualquer administrador três casos de que tratou na faculdade dos quais

ainda se lembra bem da história e que realmente o ajudaram no dia a dia, a

ponto de pensar “Eu vou fazer como era lá na faculdade”. Você não faz isso,

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
você esquece. Esses exercícios são bons porque a pessoa internaliza todo o

mecanismo.

Platão, por outro lado, quer resolver essa questão da moralidade,

se os fins justificam os meios, a partir da obra de Homero. De novo, você

pode objetar que essa história de Ulisses é mentira, não aconteceu. Mas e

daí? Essas casualísticas da administração também não e funcionam.

Platão pensa que Ulisses criou o cavalo de Troia. Isso é uma grande

trapaça, mas fez com que os gregos realmente vencessem a guerra. Por

outro lado, eles disseram que era um presente para Minerva e que o tinham

construído muito grande para que os troianos não conseguissem levá-lo

para dentro de suas muralhas, pois queriam deixá-lo na praia. Os gregos

mentiram que aquele presente era para Atenas, ou Minerva, para que

abençoasse a sua volta para casa. Os troianos, por sua vez, pensaram: “Então

foi isso, os gregos não querem que levemos a homenagem para dentro de

Troia? Não tem problema, vamos quebrar o muro, alargar a entrada e levá-la

assim mesmo, para verem que nós realmente somos os vencedores dessa

guerra. Vamos retirar daí a oferenda que deram à Minerva e pegá-la para

nós, como troféu da nossa vitória”. Essa história de oferenda é uma mentira,

mas podemos pensar que há situações e situações. Disso surge toda uma

análise da moralidade.

Para aplicar isso a um exemplo mais contemporâneo. E se tivéssemos

matado o Hitler no início da guerra, não seria melhor? No entanto, ele ainda

não tinha perpetrado todas aquelas barbaridades. Podemos ir além: não

seria melhor matar o Hitler quando ainda era criança, porque assim nada

disso teria acontecido? Mas é preciso ponderar que, embora isso pudesse

ter salvado a vida de muitas pessoas, não tinha como saber.

E todos esses dramas, verdadeiros dramas de consciência, são

formados pela literatura, não há outro jeito. Podemos pegar uma história

bem contada e usá-la como exemplo. Se pegarmos uma biografia do Adolf

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Hitler para tratar da questão se os fins justificam os meios, ou seja lá qual

drama de consciência, todo mundo precisa ler a história. Só isso já dá um

trabalhão. Quando a sociedade inteira conhece a narrativa e não tem

dúvida sobre ela, fica muito mais fácil.

5.5. POR QUE NÃO USAR A HISTÓRIA?

A História, enquanto ciência, nunca tem ponto final, de “foi exat-

amente isso que aconteceu”. Os historiadores apresentam diferentes

versões e enfoques, e é normal que seja assim, mas, por isso, a História

não serve para formação e educação individual de cada um. Quando

estamos tratando de História, pode-se argumentar que o outro está

seguindo a linha de um historiador específico, mas deveria ler também a

de outro que a ele se opõe. Quando conhecemos as obras de Homero, não

há dúvidas, é Homero, e todos nós lemos, todos nós concordamos com ele.

E agora vamos debater. A história está lá, escrita. A pessoa pode dizer

“Ah, mas eu acho que Helena se vestiu de forma provocante” e eu posso

argumentar que, na obra, “Não está dizendo que Helena estava vestida

de um jeito específico”. Um outro vem e acrescenta que “Helena estava

mal-vestida quando Páris chegou lá e por isso ficou seduzindo-o”. De novo,

objetamos que: “Isso aí não está escrito. De onde advém essa dedução?

Esse argumento não é válido”.

Neste processo, nós nos acostumamos a focar no que realmente

interessa. No caso da História, não podemos debater assim, pois há

sempre essa questão de a historiografia não estar pronta. Temos que

começar a debater com literatura. A teologia se desenvolveu porque, nas

escolas cristãs, primeiro debatia-se literatura pagão, para não ter risco de

fazer nenhuma heresia. Como no mundo cristão a teologia é algo muito

sério, não dá para brincar.

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
6. ILÍADA

Voltando para história. Páris realmente vai até a casa de Menelau.

Neste momento, é importante saber que existem dois valores principais

nesse mundo homérico. Um está bem presente em “Ilíada” e o outro, em

“Odisseia”.

6.1. A GLÓRIA E A IMORTALIDADE

Em “Ilíada”, temos o sentido da glória. Todos eles estão lá não

somente porque tinham feito o pacto. Aquiles, por exemplo, não estava

dentro do pacto. Aquiles buscava a glória, a imortalidade. Já que era mortal,

precisava fazer algo com sua vida. Aquiles era invulnerável, mas era mortal.

A mãe deles, Tétis, mergulhou-o no rio sagrado e o tornou invulnerável. Para

fazê-lo, segurou-o pelos calcanhares. Por isso, nenhuma flecha, espada ou

lança o atingia, a não ser no calcanhar.

Esse paradoxo é bem curioso. Aquiles toma uma flechada no calca-

nhar e morre, mas ninguém morre de flechada no calcanhar. Se ainda fosse

no coração ou como na mitologia nórdica. Na mitologia nórdica, existe um

personagem chamado Siegfried, o qual se torna invulnerável ao tomar

banho no sangue de dragão. Acontece que, enquanto faz isso, uma folha

cai em suas coisas e ele fica vulnerável. Siegfried é morto com uma lança

nas costas. Isso faz mais sentido, mas no calcanhar?

Quanto mais sem noção, melhor a literatura, mais gravamos

a história. É muito mais fácil de memorizar, porque não faz sentido

nenhum. Até hoje, falamos em “calcanhar de Aquiles”, que é o ponto fraco

de alguém. Além disso, também usamos “odisseia” para nos referirmos

àquelas questões muito difíceis de resolver, que são demoradas e cheias

de percalços. E assim nós vamos. Também usamos “homéricas”, para nos

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
referirmos a algo grande. Estamos o tempo todo fazendo isso, essa é a nossa

cultura. Um chinês e um japonês não usam essas palavras. Eles não falam

e não leem isso. Ao menos não liam há vinte anos, quando começaram a se

interessar mais por cultura ocidental. Mas a nossa cultura é assim. A gente

recebeu a língua de Camões e ali é cheio dessas coisas.

Como eu estava contando, Aquiles está interessado em glória. Ele

sequer fazia parte do pacto, mas pensou que a guerra era uma oportuni-

dade para realizar feitos memoráveis que o tornassem imortal. E o jeito que

Aqueles tinha de conseguir a imortalidade era ficando na memória das

pessoas, pois assim alguma coisa ainda existiria.

Na cosmovisão grega, a alma é muito evanescente. Nas histórias,

acontecem muitas viagens às terras dos mortos e estes dizem que não

gostam de viver lá porque são invisíveis, estão desaparecendo. E é capaz

de desaparecem mesmo. Eles só vivem, como um todo, na memória das

pessoas. Os gregos tinham consciência de que a alma era imortal, pois não

há como uma coisa perecer junto com a carne. Eles sabiam que existia

um aspecto deles que não tinha relação com a carne. Então, tem que ser

imortal. É uma conclusão bem simples.

Os animais não têm isso. Os animais não têm nem memória, nem

nada. Portanto, a memória e a imortalidade estão muito relacionadas.

Enquanto houver pessoas pensando sobre mim, falando de mim, e coisas

assim, em princípio, estou vivo. E eu ainda vou continuar tendo consciência

da minha própria existência, porque estou vivo em outros corpos, em outras

pessoas, na boca, na linguagem. Por isso, eu preciso de glória. Essa é a forma

que os homens têm de adquirir a imortalidade. Timé, em grego, que nós

podemos traduzir como glória, é justamente isso.

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
6.2. OS PAIS FUNDADORES

E há um outro aspecto, que está muito presente na “Odisseia”, que

é a xenia, de xénos. Em português, nós temos a palavra “xenofobia”. Xenos

é um estrangeiro, no sentido de hóspede. Em latim, a palavra foi traduzida

por hospedes. Este é tanto aquele que recebe quanto o que é recebido. Os

dois são xenos um do outro.

Nesse mundo arcaico da Grécia, esse é o valor máximo, é a maior

virtude. Viajar era algo que ninguém fazia, porque era muito perigoso. Não

havia qualquer forma de comunicação. Então, quando estava em uma

viagem, o sujeito procurava a casa de alguém da mesma classe social que

a sua e pedia abrigo. Se era um soldado, procurava um soldado. Se era um

rei, procurava o rei do local.

A história de “Odisseia” é a tentativa de Ulisses de voltar para casa. Ao

longo do percurso, ele bate em várias portas tentando ser recebido. Por uns,

sob certos aspectos, é bem recebido, por outros, não. “Eneida” é a mesma

coisa. Depois que Troia cai, Eneias consegue fugir para continuar com a

cultura. Ele leva consigo tudo aquilo para fundar uma outra cidade e Troia

nunca morrer. O espírito de Troia, que é essa cidade, vai ser Roma. Isso não

está em Homero. Os gregos não sabiam nada de Roma. Essa é a história

que os romanos contam para ligá-los à Guerra de Troia, que é o mito fun-

dacional da civilização inteira. Eneias também passa em vários lugares em

que é bem e mal recebido.

Páris causa toda a Guerra de Troia não por ter roubado Helena, a

beleza, um valor supremo para os gregos. Podemos ver a arte de qualquer

povo antigo e mesmo moderno. Qual é a arte mais bela? Quais são as mel-

hores esculturas? São as gregas. Quando vemos alguém bonito, dizemos

uma ninfa, uma deusa, uma musa ou um deus grego. Estão vendo quantos

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
exemplos? Ficamos o tempo todo falando de Homero no nosso dia a dia.

Estamos impregnados de homerismo na nossa cultura. Homero é o pai

da cultura.

Às vezes, eu me escandalizo um pouco quando as pessoas me ques-

tionam sobre quem é, para mim, o pai fundador do Brasil. A história pode

nos dar diferentes personagens, mas, para mim, o pai fundador é Homero.

Homero é o homem sem o qual não tem, não só Brasil, mas não tem

Ocidente, não tem nada. Do lado de Homero, está Moisés, que escreveu

Gênesis, Êxodo, os primeiros livros da Bíblia. Eles não tiveram nenhum

contato entre si, mas influenciaram, porque, quando não são homéricas,

as nossas referências de beleza e do próprio vocabulário são bíblicas. Nós

dizemos coisas como “o fruto proibido” e Caim e Abel são frequentemente

utilizados como exemplos. Usamos muitos exemplos bíblicos, mesmo quem

não é cristão. Precisamos ter esses exemplos do Gênesis, principalmente a

travessia do mar vermelho. Isso é muito presente para nós, é uma imagem

presente para todos nós. Essa é uma história que todo mundo ouviu e que faz

parte da nossa cultura. Ninguém pode se dizer minimamente culto se não

sabe o que é a travessia do mar vermelho. Não é preciso saber em detalhes

e como tudo aconteceu exatamente, mas você sabe que um homem abriu

o mar vermelho para fugir da escravidão e que essa libertação se chama

páscoa. Vejam que, no nosso vocabulário, sempre estamos muito ligados

ou a Homero ou à Bíblia, querendo ou não querendo.

6.3. A XENIA

O grande problema que fez Páris começar a guerra foi a quebra da

xenia, da lei da hospitalidade. Páris não roubou Helena enquanto estava

passando pela cidade. Ele foi recebido por Menelau na casa deste e não

roubou qualquer coisa valiosa, roubou a própria esposa do sujeito. E isso

merece dez anos de guerra, isso é justificável.

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Quando Menelau descobre que sua esposa havia sido levada, vai até

a casa de seu irmão, Agamemnon, e convoca os demais reis que haviam

participado do pacto do sorteio, para que marchem para Troia. Eles con-

vocam todo mundo. Nessa época, o filho de Ulisses a recém tinha nascido.

Então, ele mais uma vez usa sua inteligência e se finge de louco para não

ser forçado a lutar. Ele começa a semear sal no campo porque não queria

ir. Conhecendo-o, os demais colocam seu filho na frente do arado. Naquele

momento, ele trava e admite que não está louco, que só estava tentando

escapar da guerra. Ulisses sempre tem uma ideia para fazer o que quer, não

o que os outros querem. E o pior é que tudo acaba sendo do jeito dele. No

entanto, torna-se muito orgulhoso e Poseidon puni-o por causa disso.

Com isso, vemos que a xenia, que está muito presente em “Odisseia”,

é a causa mesmo da Guerra de Troia. Então, a guerra não aconteceu por

causa de mulher. A xenia é a própria causa da guerra. Páris descumpriu com

a mais alta lei existente, uma lei natural, da qual todos se viam necessitados.

A xenia nada mais é do que o próprio princípio da sociedade. Quando eu

preciso de algo, eu peço para o outro e este me ajuda porque, provavel-

mente, vai precisar também em algum momento. Esse é o princípio de

toda sociedade. O homem que viola isso não quer viver em sociedade, pois

está descumprindo uma lei máxima, a constituição maior. A constituição é

assim: se um homem bater à sua porta pedindo pouso, você lhe concede.

Essa é a constituição. O resto tudo vem a partir disso. Quem precisa de

ajuda, tem que ser ajudado.

Aliás, em relação à questão da crise dos refugiados na Europa, houve

algumas (pouquíssimas) pessoas que evocaram Homero e Virgílio. Em

italiano, a palavra para refugiado é profugo. No terceiro verso de “Eneida”,

Eneias é caracterizado como um profogus. Neste caso, a própria fundação

da Europa Ocidental, Roma, foi feita por um refugiado. Evocou-se isso.

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
Somente duas ou três pessoas leram a obra. Como os demais não leram,

viram nisso um argumento de autoridade e decidiram não debater. Tem

essas questões que acabam por acontecer.

7. ODISSEIA

Vamos para o Ulisses. Ulisses faz o cavalo, eles vencem a guerra e

ele volta para casa. Nessa época, Aquiles já havia sido morto por Páris. O

restante da história, vou deixar que vocês leiam. Odisseu está em sua jor-

nada de volta para casa e, para chegar, precisa passar por aquelas ilhas do

Mar Egeu. Troia ficava na Ásia, no que hoje é a Turquia. Entre esta e a Grécia,

existem muitas ilhas. Odisseu precisa ir de uma para outra até chegar em

casa, Ítaca, localizada do outro lado da península grega. Odisseu precisa

costear tudo aquilo e ir parando nas ilhas. “Odisseia” narra justamente essas

aventuras de Odisseu de ilha em ilha, de volta para casa.

7.1. A TRAJETÓRIA DE VOLTA

Na primeira ilha em que para, os habitantes são viciados em drogas,


em lótus. Ninguém fazia nada. Era uma espécie de cracolândia. Os habi-

tantes só viviam comendo folha de lótus, não trabalhavam nem nada. Essa

era a vida. Ali, Odisseu já perdeu alguns companheiros, que logo se vici-

aram também. Ele decide ir embora rapidamente, antes que todos acabem

viciados.

O segundo lugar em que param é a Ilha dos Ciclopes. Os ciclopes

são pastores que não tem arte, não tem literatura e que não adoram os

deuses, por mais que sejam filhos de Poseidon. Poseidon é o deus Netuno.

Os ciclopes só apresentam essa relação com Poseidon, mas não constroem

templos, não fazem nada. Eles vivem em buracos no chão, são homens prim-

itivos. Vejam que, mesmo na Grécia, já havia essa ideia de que os homens

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E-BOOK BP EDUCAÇÃO LITERÁRIA
primitivos vivem em cavernas. Os ciclopes vivem nessas cavernas com suas

ovelhas, pastor e rebanho misturados. Além disso, são gigantes de um olho

só.

Odisseu e seus homens chegam e entram na primeira caverna. Eles

comem queijo e outros derivados do leite que encontram. Nisto, voltando

do trabalho, chega Polifemo com seu rebanho. Ele rola uma pedra enorme

e fecha a porta da caverna, todo brutamonte. Ao ver Odisseu e seus com-

panheiros ali, pega dois deles e os devora. É uma cena aterradora.

A partir deste momento, eu quero que vocês pensem nessa cena e

no que você pensa sobre um monstro desses. Fiquem com isso.

Muito bem, Polifemo devora aqueles homens e, ao ver que todos serão

mortos, Ulisses tem uma ideia. Depois de comer aqueles homens, Polifemo

pergunta: “Quem são vocês?”. Ulisses explica que eles estão voltando da

Guerra de Troia para casa e que só foram ali pedir abrigo. Ele pede que Poli-

femo respeite a lei da xenia. No entanto, o ciclope é um homem bruto, não

civilizado. Ele não tem arte, não tem inteligência, não tem nem linguagem

direito. O negócio dele é violência. Polifemo diz que não vai respeitar nada.

Ulisses diz que, mesmo assim, trouxe-lhe um presente, porque quem visita

alguém precisa entregar um presente. Ele dá a Polifemo um barril de vinho.

Polifemo não conhecia aquilo. Ele toma e gosta. Vira-se para Ulisses e diz:

“Eu gostei de ti. Você será o último que vou devorar, o último a morrer. Qual

é o seu nome?”

De acordo com a lei da xenia, essa também é uma pergunta que não

se faz, porque se deve fazer o bem sem olhar a quem. Essa é a lei da xenia

antiga.

Odisseu respondeu: “Meu nome é ninguém”, utis, em grego. O

ciclope lhe devolve: “Prazer ninguém, eu gostei de ti, você será o último a

morrer. Esse é o meu presente para ti, como meu hóspede”.

Enquanto estamos lendo isso, pensamos “Que monstro! Tomara que

eles acabem com a vida dele”.

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Polifemo bebe todo o barril de vinho e, bêbado, dorme. Ulisses e seus

homens querem ir embora, mas sabem que, sozinhos, não são capazes de

mover a pedra que está trancando a saída. Ulisses, sempre muito inteli-

gente, faz uma lança enorme, aquece-a na brasa para ficar com a ponta

bem dura e, com a ajuda dos demais, crava-a no olho do ciclope.

A lança em brasa, fervendo, faz com que saía sangue dos olhos de

Polifemo e ele começa a gritar “Meu olho, meu olho, irmãos, ajudem-me

irmãos, ajudem-me irmãos, eu estou cego. Meu olho, irmãos, socorro, por

favor me ajudem, eu estou cego”. Os outros ciclopes se aproximam da cav-

erna e perguntam o que está acontecendo. Polifemo explica que está cego

e eles o questionam: “Mas quem te feriu?”. Qual a resposta de Polifemo?

“Ninguém me feriu, ninguém me feriu”. Os ciclopes não entendem e Poli-

femo fala mais uma vez: “Ninguém me feriu. Estou cego e ninguém me

feriu”. Diante disso, os ciclopes resolvem não ajudá-lo porque, para eles, se

Polifemo está cego e ninguém o feriu, com certeza foram os deuses. Eles

resolvem que não vão ajudá-lo porque estariam indo contra a ideia dos

deuses. Lembra, os ciclopes são burros, não têm cultura.

Quando isso acontecia com os homens, por outro lado, eles regiam

assim: “Ah, os deuses fizeram isso? Então agora vão ver, vamos fazer outra

coisa aqui” ou “Ah, o deus fez isso? Então vou fazer oferenda para o outro”.

Essa é a cosmovisão antiga.

Os ciclopes vão embora e Odisseu e os demais homens se escondem

na caverna. Polifemo, cego, sabe que há pessoas na caverna e que foi ferido

por ninguém. No outro dia, ele precisa abrir a porta para que as ovelhas

possam pastar. Os gregos se agarram no pelo delas. Assim, conseguem sair

e retornar para o navio.

Polifemo está cego, cuidando das suas ovelhas. São e salvo, Ulisses

grita-lhe do barco: “Polifemo, não foi ninguém que te feriu, sou eu, Ulisses,

rei de Ítaca”. Ulisses lhe dá nome, cpf, cep, todas informações, afinal, pre-

cisava da timé, precisava da glória de ter ferido o ciclope monstruoso. Então,

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Polifemo se volta para Poseidon: “Pai, Poseidon, acabe com ele. Não deixe

que volte para casa ou, se conseguir voltar, que todos os seus dias sejam tão

terríveis quanto os meus serão a partir de agora que estou cego”. E é isso

que Poseidon vai fazer. Poseidon vai infernizar a vida de Ulisses. Ulisses vai

demorar dez anos para chegar em casa.

7.2. A CHEGADA EM CASA

Quando chega em Ítaca, há vários pretendentes a novo rei querendo

a mão de sua esposa. Todos diziam a ela que Ulisses já havia morrido, que

estava demorando muito para voltar e que todos os outros heróis de Troia já

haviam chegado. Quem eram esses pretendentes que estavam ali depau-

perando todo o reino? Eram aquelas pessoas criadas sem pai, pois todos os

homens haviam ido para guerra. Estes ficaram velhos e as crianças. Depois

de vinte anos, já estavam adultas. Esses jovens chegavam na casa do rei,

estupravam as escravas e ordenavam que estas o servissem. Eles estavam

bebendo e destruindo tudo, enquanto a rainha, sozinha, estava pedindo

calma. Ela lhes dizia: “Eu vou escolher um de vocês, assim que terminar de

tecer essa tapeçaria com o barco de Odisseu para os funerais em honra dele,

enquanto estou vivendo o luto”. Ela acreditava que Odisseu ainda estava

vivo e ficou esperando vinte anos por ele.

Quando Odisseu chega e mata todos os pretendentes que estavam

ali saqueando e destruindo o reino, não conseguimos ter pena deles, os

quais tinham sido criados sem exemplos masculinos. Odisseu volta soz-

inho. Os pais daqueles jovens foram perdidos ao longo da viagem. Odisseu

chega lá pobre, sem nada. Odisseu mata um por um. Apesar de todos esses

aspectos, não conseguimos ter pena deles.

Agora, do ciclope é que devemos nos perguntar. Inicialmente, está-

vamos com raiva do ciclope. Se Odisseu o tivesse matado, teríamos sim-

plesmente comemorado porque conseguiu se livrar. Mas não é isso que

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acontece. Até a metade da história, estamos com raiva do Ciclope e torcendo

por Odisseu. Depois, sentimos pena do Ciclope.

7.3. OS PERSONAGENS NA LITERATURA ANTIGA

Na literatura antiga, não há isso de personagem do bem e person-

agem do mal, como vemos nos filmes de Batman. Às vezes, damos razão

para Agamemnon. Depois, tiramos. Ficamos fazendo isso ao longo de toda

a obra. Na tragédia “Édipo Rei”, o personagem Édipo mata o próprio pai e

casa com a própria mãe. Ficamos chocados, mas, ao mesmo tempo, argu-

mentamos que ele não estava ciente de várias coisas. Ficamos nessas.

Neste caso do ciclope é a mesma coisa. Vemos Polifemo gritando

“Estou cego, irmãos, me ajudem, estou cego, ninguém me feriu” e os irmãos,

burros do jeito que são, sem ajudá-lo. E o próprio Polifemo, burro também,

não explica que está falando de um sujeito chamado ninguém. Nós ficamos

com pena dele por ter essa inteligência inferior, assim como temos pena de

um animal que está sofrendo. Nós não queremos ver os bichos sofrerem.

Por mais que seja a natureza e que os seres vivos morram e sofram antes da

morte, agonizem, decidimos sacrificá-los em muitas circunstâncias. Sacrifi-

camos um cavalo, um cão, para que não sofram.

É o que sentimos quando vemos o ciclope, por mais que tenha certa

racionalidade. Não existe meio termo, não existe elo perdido entre o homem

e o macaco. Existe o homem e existe o macaco. No meio deles, não há nada.

Ou a criatura é racional ou não é. Mas o ciclope é essa figura mitológica que

está ali no meio.

Existe uma hierarquia na mitologia. Desde um deus até o mais vil

dos animais, existe uma hierarquia absolutamente certa. Não há elo per-

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dido como há no darwinismo. Ficamos com pena do ciclope nessa situação.

Quando está falando com Poseidon, que estava quieto em casa e aqueles

homens vieram importuná-lo, você chega a pensar que ele comeu vivos os

companheiros de Odisseu. Ao mesmo tempo, não temos como julgá-lo.

E é isso que a literatura faz conosco quando é bem escrita. Não é o

bem e o mal. Não é o filme do Batman ou do Super-Homem, em que um

personagem tem todas as virtudes e só faz o bem e o outro é absolu-

tamente mau. Por mais que o personagem do bem faça algo que não dê

certo, ele sempre tem a reta intenção. Nenhum personagem da grande lit-

eratura, principalmente da antiga, é assim. Nem os deuses, nem o divino.

Zeus fica com a mulher dos outros, faz horrores. Os deuses são vingativos,

são bem humanizados. Não existe um deus bom e um deus ruim. Todos os

deuses têm os seus adoradores, porque é assim.

Às vezes, você está do lado de um deus, faz uma oferenda para ele,

mas, como não te atende no seu pedido, não te escuta, você resolve fazer

para outro. E assim vai. A religião animista é muito assim. E não existe um

Deus Todo-Poderoso, onisciente, onipresente. Zeus não sabe de tudo. E

Zeus não é onipotente, não pode fazer tudo. Em muitas ocasiões, Zeus diz

que algo está escrito no destino e que, o que está escrito, não pode mais

mudar. Não tem essa ideia teológica.

E esse é outro ponto. Um conselho: nunca façamos teologia com

obra literária. Podemos discutir, interpretar. Por um aspecto, posso tentar

entender melhor a religião antiga através da leitura de literatura, mas não

posso fazer teologia. “Olha só, aqui não é racional”. Claro que não, isso é

poesia, não é teologia, não é ciência teológica.

No cristianismo, se faz isso racionalmente. Zeus é onipotente. Então,

pode fazer um triângulo quadrado? Não, porque um triângulo quadrado não

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é algo, é nada, só é duas palavras ditas juntas, mas elas não têm nenhuma

referência na realidade. “Ele pode fazer uma pedra que ele mesmo não possa

carregar?” Não. “Então ele não é onipotente”. Ele não pode fazer isso porque

isso não é uma coisa, é impossível a existência de uma pedra que Deus não

possa carregar. Isso é razão. Isso é nós raciocinarmos em termos científicos,

lógicos, bastante precisos. Mas, na mitologia, não fazemos isso. A mitologia

não tem esse fim e essa capacidade. Agora, tem essa força enorme de nos

mover. Na mesma história, estarmos torcendo para que matem Polifemo

e, depois, pensaremos “Po, daí não, para que furar o olho? O olho não”. Fica

nessa coisa assim.

PERGUNTAS

1) Não sei se isso é datado, de quando houve essa mudança de

começar a se constituir personagens mais puros, mais arquetípicos, de

bem e mal?

Não sei, eu não sou grande conhecedor da literatura mais moderna,

mas não conseguimos ver isso nos clássicos, mesmo nos mais modernos. Se

pegamos obras que foram imortalizadas, como “Madame Bovary” de Flau-

bert, não conseguimos dizer: “Meu deus, que mulherzinha tinhosa”. Não,

nós temos esse mesmo sentimento de que eu falava. Em um momento,

pensamos “Meu Deus, imagina ter que conviver com alguém assim”. Em

outro, “Mas também, ela tem os seus motivos. Olha só, isso que ela fez foi

legal. Na situação dela, eu não faria. Eu que me acho tão bom e ela, a quem

eu acho tão má, fez uma coisa dessas”. No Dostoiévski, vemos aqueles rev-

olucionários todos, gente que teoricamente é má, e vemos a complexidade

que apresentam. Não podem ser completamente maus e nem completa-

mente bons, porque as pessoas também não são assim.

A personificação do demônio no século XX é o Adolf Hitler. Gosto

de usar esse exemplo porque todo mundo conhece, é algo que já está no

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imaginário de todo mundo. No filme “A Queda”, tem uma cena em que

ele se abaixa e vai fazer carinho em um cachorro. Teve muita gente que

disse: “Eu duvido que ele fosse querido com os animais”. Não quer dizer que

Hitler era bom por causa disso. Temos que generalizar. Só que não existe

a pura maldade e a pura bondade como vemos num desenho animado,

que quando um cara é mau, ele é mau em tudo. Mesmo os seus aliados,

ele trata mal, com desprezo. Eu não ainda não assiste ao último filme do

Coringa, mas dizem que foi bem feito porque o personagem é violento ao

extremo, mas, ao mesmo tempo, você tem pena dele. E a literatura tem

essa força mesmo.

Aluna: fiquei pensando nas fábulas infantis. Acho que a consti-

tuição de personagens 100% ruins e 100% bons é muito útil como uma

forma de orientação. Como devo agir. Vou agir como o herói. Como não

devo agir? Não devo agir como a personalidade ruim na história agiu.

Isso não está presente nas fábulas, de repente?

Em parte, sim, porque as fábulas são uma literatura menor, embora

tenham igual importância. As histórias dos Irmãos Grimm, por exemplo,

como Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho e tal, normalmente tem

essa característica. A bruxa de Branca de Neve é realmente psicopata. A

Branca de Neve não está ali, não está incomodando-a, ninguém sabe da

existência dela, mas a bruxa quer matá-la porque é mais bela. Esse é um

problema muito sério. Nesses casos, não conseguimos ver nada de bom no

personagem, porque o autor não aborda mais da vida da bruxa, ele desfoca

e, sempre que se referir à madrasta, será falando mal. Ali realmente há isso.

No entanto, isso faz com que essa literatura seja mais simples e não seja a

grande literatura. Há ali um arquétipo do mal, mas é tudo muito fechado.

É o que o Tolkien criticava no C.S. Lewis, nos “As Crônicas de Nárnia”,

porque ali o que acontece é justamente isso. Todos os arquétipos estão pre-

sentes. O leão é Jesus. A bruxa do inverno é o demônio tentador. É tudo

muito dual e muito específico, sendo que, o tema do “Senhor dos Anéis” é

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o mesmo que dos “As Crônicas de Nárnia”. “Senhor dos Anéis” também fala

da história da salvação, das tentações e da luta do homem, do pecado, da

graça. A graça divina. Ele está falando a mesma coisa, mas quem é Deus

no “Senhor dos Anéis”? Nem tem Deus no “Senhor dos Anéis”, ao mesmo

tempo em que a obra só fala de Deus.

O que são aqueles diversos personagens? Há o mal, mas o mal é uma

privação do bem, é decadência, não é algo “aqui é mal e sempre foi mal”. O

amigo do sábio Gandalf, Saruman, não foi mal desde sempre. Saruman foi

se corrompendo. E o anel também corrompe. O mal acontece dessa forma.

Ele não surge do nada. “As Crônicas de Nárnia” é uma obra muito boa, mas

é uma literatura inferior, porque nós temos que ficar com pena dos orcs.

Assim como no Harry Potter ficamos com pena daquela cena em que Harry

e Rony vencem um trasgo. É um gigante também, um brutamontes e nós

ficamos torcendo para que consigam derrubá-lo para salvar a Hermione.

Mas quando o porrete dele cai na sua própria cabeça e ele desmaia e fica

impotente, ficamos com pena. Não é o sentimento predominante, não é o

afeto mais movido, mas ele existe. Se tu não tiveres, se tu pensas “Tem que

se ferrar mesmo, sofre do jeito que for”, aí tem um problema.

Tem uma hierarquia nos afetos, nos valores, na justiça. Ali até que fui

justo, mas não chega a dar uma pena. Imagina se ela tivesse escrito “eles

fizeram um feitiço e furaram os dois olhos dele e foram arrancando as unhas

aos poucos para que aprendesse a não fazer mais isso de assustar as pes-

soas”. Não, pera um pouco. A tortura é uma coisa que nos choca justamente

por isso. Certos métodos. É sempre nessa hierarquia de valores morais e dos

afetos que, quando lemos aquela história, acabamos por mover.

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