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MARIANA ARMOND DIAS PAES

ESCRAVOS E TERRAS ENTRE POSSES E TÍTULOS:


A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE NO
BRASIL (1835-1889)

Tese de Doutorado
Orientador: Prof. Dr. Samuel Rodrigues Barbosa

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE DIREITO
SÃO PAULO
2018
MARIANA ARMOND DIAS PAES

ESCRAVOS E TERRAS ENTRE POSSES E TÍTULOS:


A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO DIREITO DE PROPRIEDADE NO
BRASIL (1835-1889)

Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Pós-Graduação


em Direito, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Direito, na área
de concentração “Filosofia e Teoria Geral do Direito”, sob a orientação
do Prof. Samuel Rodrigues Barbosa.

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE DIREITO
SÃO PAULO
2018
Ao Jeferson, é claro.
AGRADECIMENTOS

Três anos e quatro meses. Esse foi o tempo que tive para fazer esta pesquisa e
escrever a tese. Como se já não fosse um prazo suficientemente curto, este trabalho
também viu um golpe de Estado e a prisão politicamente orientada de um ex-presidente.
Além disso, na reta final, tive problemas de saúde que me afastaram completamente da
pesquisa por seis semanas. Nesse período, não fui capaz de realizar as tarefas mais básicas,
como fazer minha própria comida. Para todas as atividades de cuidado e em todo meu
processo de melhora, tive a ajuda inestimável de Jeferson Mariano Silva, Evanir Armond
de Oliveira, Raquel Razente Sirotti, Luisa Stella Coutinho, Murat Burak Aydin, Cristian
Poczynok, Gaston Pintos Iacono, Marcela Saenz Castro, Karla Luzmer Escobar
Hernández, Otto Wilcken, Gilberto Guerra Pedrosa, Laila Scheuch, Johannes Dünnebeil,
Denise Garrett, Elisa Frühauf Garcia, Samuel Rodrigues Barbosa, Ricardo Campos, Pedro
Henrique Ribeiro, Pamela Cacciavillani, Rosa Congost, Fernanda Bretones, Max
Deardorff, Anna Clara Lehmann Martins e Alejandra Ramírez Santos. Os problemas
físicos ajudaram a aprofundar outro problema comum em pós-graduandos: crises de
ansiedade. Só consegui superá-las com a ajuda profissional de Carolina Lisboa. Sem cada
um de vocês, esta tese não seria possível. A todos, meu mais profundo e sincero
agradecimento.
Agradeço, também, a todos os funcionários do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro,
que, contra várias adversidades, fizeram o melhor possível para que eu tivesse acesso à
documentação e pudesse realizar a pesquisa. Em especial, agradeço a toda a ajuda de
Rosane Soares Coutinho e Rodrigo Mendes Queiroz. Agradeço, ainda, a ajuda de Maurício
Dutra, nas últimas semanas da consulta à documentação.
Esta tese não teria tomado os rumos que tomou se não tivesse sido feita no Max-
Planck-Institut für europäische Rechtsgeschichte. Para além da infraestrutura, dos debates
regulares e da possibilidade de conhecer pesquisadores do mundo inteiro, o maior
benefício para minha pesquisa foi, sem dúvida, a liberdade acadêmica. Por isso, agradeço a
Thomas Duve, que sempre demonstrou grande confiança no meu trabalho e não se cansa
de me abrir portas. Nesse mesmo sentido, agradeço a meu orientador, Samuel Rodrigues
Barbosa, que, desde o mestrado, foi sempre presente e respeitou minhas decisões de
pesquisa.
Também agradeço aos meus colegas no Instituto e, em especial, ao Grupo Latino:
Benedetta Albani, Alfonso Alibrandi, Christiane Birr, Manuela Bragagnolo, Pamela
Cacciavillani, Otto Danwerth, Max Deardorff, José Luis Egío Garcia, Karla Luzmer
Escobar Hernández, Anna Clara Lehmann Martins, Constanza López Lamerain, José
María Martín Humanes, Pilar Mejía Quiroga, Osvaldo Rodolfo Moutin, José Luis Paz
Nomey e Raquel Razende Sirotti. Tampouco haveria Max-Planck sem o trabalho daqueles
que constroem o cotidiano administrativo do Instituto. Por todos, agradeço, especialmente,
a Nicole Pasakarnis, Stefanie Rüther, Anna Heym e Tamara Wildmann.
Durante todo o período do doutorado, inúmeros visitantes estiveram no Max-
Planck. A convivência cotidiana com eles ajudou a tornar o trabalho de pesquisa menos
solitário. Agradeço, particularmente, a James Almeida, Silvina Alonso Grosso, Alfons
Aragoneses, Alexis Alvarez-Nakagawa, Nicolás Beraldi, Pedro Berardi, Ludovica
Gabriella Bosica, Álvaro Caso Bello, Natalie Cobo, Alessia Di Stefano, Gisela Ferrari,
Elisabetta Fiocchi, Elisa Frühauf Garcia, Enrique González González, Marcella Hayes,
Renzo Honores, Antonio Manuel Luque Reina, Massimo Meccarelli, Gilberto Guerra
Pedrosa, Gaston Pintos Iacono, Andrés Pletch, Carlos Ramos Núñez, Gustavo Siqueira,
Marcela Saenz-Castro, Julia Solla, Michele McArdle Stephens e Alexandra Tellez Mora.
Também foi minha estadia no Max-Planck que me permitiu conhecer excelentes
pesquisadoras, com as quais fiz amizades para além da vida acadêmica: Fernanda
Bretones, Sol Calandria, Luisa Stella Coutinho, Laura Mazzoni, Fernanda Molina, Laila
Scheuch e Leticia Vita. “Eu sozinha ando bem, mas com vocês ando melhor”.
Espalhados pelo mundo, agradeço às amigas e amigos de sempre, que me ajudaram
a não perder as raízes: Mateus Morais Araújo, Carolina Sapienza Bianchi, Gustavo César
Machado Cabral, Tatiana Castro, Davi Collares, Magnum Lamounier Ferreira, João Vitor
Loureiro, Maria Júlia Montero, Katarina Pitasse, Bruno Martins Soares e Gustavo Zatelli.
O trabalho acadêmico é tanto melhor quanto mais intensas são as trocas entre
pesquisadores. Por isso, agradeço aos amigos que compartilharam comigo suas fontes,
bibliografias e ideias: Magdalena Candioti, Adriana Chira, Cristina Dallanora, Soraia Sales
Dornelles, Camilla Freitas, Rodrigo Camargo de Godoi, Israel Ozanam, Clemente Penna,
Cristian Poczynok, Lucas Rebagliati, Waldomiro Lourenço da Silva Junior e Alain El
Youssef. Agradeço, também, a todos que dedicaram parte do seu tempo para comentar
resultados preliminares desta pesquisa: Pedro Cardim, Bartolomé Clavero, María Angélica
Corva, Rosa Congost, Monica Duarte Dantas, Wim Decock, Tamar Herzog, António
Manuel Hespanha, Fernando Martínez Pérez, Joseli Mendonça, Cristina Nogueira da Silva,
Andréa Slemian e Nomi Stolzenberg. Também agradeço, imensamente, a Ariela Gross,
que me recebeu de braços abertos na University of Southern California.
Pela oportunidade de levar a um público mais amplo meu trabalho, agradeço ao
convite para participar dos podcasts PODEntender e Salvo Melhor Juízo, este último,
coordenado pelo colega Thiago Hansen.
Ao Sidney Chalhoub, agradeço por todo o diálogo e incentivo dos últimos anos. Foi
ele quem primeiro levantou a possibilidade de incluir, em minhas pesquisas, o tema da
propriedade fundiária. Além disso, sempre se mostrou disponível, participando, inclusive,
de minha banca de mestrado, fazendo sugestões que tiveram forte influência na maneira
como esta pesquisa foi pensada.
Muitas das ideias que apresento nesta tese foram discutidas e rediscutidas com
Manuel Bastias Saavedra e Pedro Cantisano. Com ambos, desenvolvi uma cooperação
acadêmica intensa e muito proveitosa. Se sou a responsável pelos eventuais erros deste
trabalho, em relação aos acertos, eles compartilham comigo a responsabilidade.
Outra pesquisadora incrível é Raquel Razente Sirotti. Mais do que uma amiga, ela
foi uma apoiadora imprescindível nos últimos anos e, em especial, nos últimos meses, nos
críticos momentos finais da escrita da tese. Sem Raquel, não consigo nem imaginar a
possibilidade dessa tese ter saído da maneira como saiu.
Foram muitas as ajudas que recebi ao longo do caminho, tornando todo esse
percurso mais leve. Porém, como mulher e pesquisadora, ainda tenho que enfrentar
inúmero obstáculos que meus colegas homens, muitas vezes, ignoram a existência. Lutar,
cotidianamente, contra eles não é uma tarefa individual. Nessa empreitada, agradeço, por
todo o companheirismo, às integrantes do blog Cientistas Feministas. A história do direito,
no Brasil, ainda é um campo dominado, majoritariamente, por homens. Por isso, agradeço
também às colegas e companheiras que estão tentando reverter essa situação,
especialmente, Laila Maia Galvão, Vanessa Massuccheto, Thais Pinhata e Gabriela Barreto
de Sá.
Definitivamente, não teria encaminhado minha carreira do jeito que fiz sem ter
cruzado com outras mulheres fundamentais. Elas são fontes de inspiração que me animam
a superar os mais diversos obstáculos que nós, mulheres, enfrentamos na academia.
Rebecca Scott me acolheu, na University of Michigan, ainda durante o mestrado. A ideia
do projeto de doutorado e muitas das questões que levantei nesta tese surgiram dessa
experiência de pesquisa e dos debates que tive com ela. Beatriz Mamigonian, além de ser a
maior defensora cotidiana de nossa democracia que eu conheço, sempre foi uma
interlocutora presente, pronta a ajudar com o que fosse necessário, criticando, sugerindo,
confiando, incentivando e apostando em meu trabalho. Ao longo desta trajetória, também
tive constante apoio e incentivo de Laura Beck Varela, cuja amizade se imiscui com os
debates qualificados e divertidos que tivemos ao longo dos últimos anos. Já Mariana
Candido, ao me abrir as portas para minha pesquisa futura, acabou por moldar, também, os
contornos que a presente tomou. A todas elas, mais do que agradecer, espero, um dia,
poder fazer, por outras pesquisadoras, o que elas fizeram por mim.
Em 2018, completo dez anos de pesquisa. Também fazem dez anos que Jeferson
Mariano Silva e eu estamos juntos. Não é mera coincidência. A história da minha carreira
acadêmica e a história do nosso relacionamento estão intimamente conectadas. Não haveria
esta pesquisa sem o namoro e não haveria o namoro sem nossos interesses profissionais em
comum. Durante todos esses anos e, especialmente, nessa difícil e conturbada fase final,
Jeferson foi um companheiro no mais profundo sentido da palavra. Quando há
cumplicidade e convergência sincera de objetivos, a distância é apenas um detalhe
passageiro. Por tudo isso, não basta agradecê-lo, porque este trabalho, de certa forma,
também é dele.
Satisfeitos como estamos com a posse, parecemos com medo de olhar
para trás, para os meios através dos quais ela foi adquirida, como se
temêssemos algum dos elementos em nosso título; ou, na melhor das
hipóteses, descansamos satisfeitos com a decisão das leis a nosso favor,
sem examinar a razão ou autoridade sobre as quais tais leis foram
construídas.
(BLACKSTONE. Commentaries on the Laws of England, p. 1 – tradução
minha)
RESUMO

DIAS PAES, Mariana Armond. Escravos e terras entre posses e títulos: a construção
social do direito de propriedade no Brasil (1835-1889). São Paulo: Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo, 2018. 200 p. Tese de Doutorado em
Direito.

Esta tese tem como objetivo analisar a construção social das relações entre
pessoas e coisas, no Brasil, entre 1835 e 1889. Para tanto, analisei 74 processos que
tramitaram perante o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro e discutiram a posse e o
domínio sobre escravos e terras. No primeiro capítulo, analiso os contornos que a categoria
jurídica da posse adquiriu no Brasil oitocentista. Em seguida, passo à análise do papel do
reconhecimento social na configuração das situações possessórias. Por fim, descrevo como
as interpretações da teoria possessória deslegitimavam atos de uso da terra efetuados por
determinados grupos – indígenas e agregados – como aptos a serem considerados atos
possessórios. No segundo capítulo, analiso os debates a respeito dos títulos de domínio e o
processo de produção de documentos pelas partes, nos processos judiciais. Também
analiso o papel das demarcações judiciais nesse processo de produção e como os títulos das
mulheres casadas eram frequentemente deslegitimados. Ao final, discorro sobre as novas
configurações que os debates acerca da titulação adquiriram nas últimas décadas do século
XIX. No terceiro capítulo, analiso situações de aquisições ilegais e irregulares de escravos
e terras. Concluo que o processo de construção do direito de propriedade, no Brasil, ao
longo do século XIX, aproveitou-se da estrutura pré-existente do direito comum,
ressignificando-a.

Palavras-chave: escravidão; terras; propriedade; posse.


ABSTRACT

DIAS PAES, Mariana Armond. Escravos e terras entre posses e títulos: a construção
social do direito de propriedade no Brasil (1835-1889). São Paulo: Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo, 2018. 200 p. Tese de Doutorado em
Direito.

This thesis aims to analyze the social construction of relations between people
and things in Brazil between 1835 and 1889. For this purpose, I analyzed 74 legal
proceedings that were processed before the Court of Appeals of Rio de Janeiro and which
discussed dominion and possession over slaves and land. In the first chapter, I analyze the
contours that the legal category of possession acquired in nineteenth-century Brazil. Then I
analyze the role of social recognition in the configuration of possessory situations. Finally,
I describe how interpretations of possession theories delegitimized acts of land usage by
certain groups - indigenous and aggregates - as possessory acts. In the second chapter, I
analyze the debates over domain titles and the process of document production by parties
in legal proceedings. I also analyze the role of judicial demarcations in this production
process and how titles issued by married women were often delegitimized. In the end, I
discuss the new configurations that debates over titles acquired in the last decades of the
nineteenth century. In the third chapter, I analyze cases of illegal and irregular acquisitions
of slaves and lands. I conclude that the process of construction of private property in Brazil
during the nineteenth century built upon the pre-existing structure of ius commune by re-
signifying its cathegories.

Key words: Slavery; Land; Property; Possession.


RIASSUNTO

DIAS PAES, Mariana Armond. Escravos e terras entre posses e títulos: a construção
social do direito de propriedade no Brasil (1835-1889). São Paulo: Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo, 2018. 200 p. Tese de Doutorado em
Direito.

Questa tesi si propone di analizzare la costruzione sociale delle relazioni tra le


persone e le cose, in Brasile tra il 1835 e il 1889. In questo modo, io ho analizzato 74 casi
che sono stati elaborati presso la Corte di Appello di Rio de Janeiro e que hanno discusso il
possesso e il dominio su schiavi e terre. Nel primo capitolo, io analizzo i contorni che la
categoria giuridica del possesso ha acquisto nel Brasile del secolo XIX. Poi passo ad
analizzare il ruolo del riconoscimento sociale nella configurazione delle situazioni
possessorie. Infine, descrivo come le interpretazioni della teoria possessoria hanno
delegittimato il uso del suolo da parte di alcuni gruppi - indigeni e aggregati –
desconsiderando i loro atti come atti possessori. Nel secondo capitolo, io analizzo i dibattiti
sui titoli di dominio e il processo di produzione dei documenti da parte delle parti nei
processi giudiziari. Analizzo anche il ruolo delle demarcazioni giudiziarie in questo
processo di produzione di titoli e come i titoli delle donne sposate siano stati spesso
delegittimati. Alla fine, discuto le nuove configurazioni che i dibattiti sulla titolazione
hanno acquisito negli ultimi decenni del diciannovesimo secolo. Nel terzo capitolo,
analizzo situazioni di acquisizioni illegali e irregolari di schiavi e terre. Concludo che il
processo di costruzione del diritto di proprietà, in Brasile, durante il diciannovesimo
secolo, ha approfittato della struttura preesistente del diritto comune, risignificandola.

Parole Chiave: Schiavitù; Terre; Proprietà; Possesso.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Mapa da Província de S. Pedro (1868) 17.

Figura 2 – Mapa da Província de S. Paulo (1868) 48.

Figura 3 – Detalhe do Tractado juridico-practico da medição e demarcação das terras, de


Soares (1882) 105.

Figura 4 – Mapa da Província de Minas Gerais (1868) 132.

Figura 5 – Detalhe do Correio Mercantil, de 30 de março de 1857 163.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: SOBRE OCEANOS E COZINHAS 1.


O Atlântico… 1.
… e a cozinha 10.

PLANTAR MANGUEIRAS E MATAR ÍNDIOS: O COTIDIANO DA POSSE 16.


O caso da Fazenda São Joaquim da Boa Vista 16.
Posse, uma categoria jurídica 21.
A centralidade do reconhecimento social 29.
Jactum lapidis: atos de contestação da posse 38.
A posse e a arquitetura jurídica da exclusão 43.
O não reconhecimento dos atos possessórios indígenas e seu extermínio 44.
Os agregados, a posse e a ideologia senhorial 51.

OCEANO DE PAPÉIS: PRODUZINDO TÍTULOS, CRIANDO DIREITOS 71.


O caso de Felisminda 71.
Mas, afinal, o que era um título? 76.
Produzindo títulos 85.
Produzindo títulos por meio de demarcações judiciais 89.
Invalidando títulos: as mulheres casadas 96.
Títulos e domínio nas últimas décadas do século XIX 104.
As demarcações e as novas técnicas 104.
Matrículas e escrituras públicas 108.

TESSITURAS DA LEGALIDADE: AQUISIÇÕES IRREGULARES, TÍTULOS E


POSSE 116.
O caso de João, Joaquim e Manuel 116.
Ilegalidade e títulos 124.
Circulação e aquisições ilegais 124.
Produção e falsificação de documentos 138.
Ilegalidade e posse 142.
O artigo 179 do Código Criminal 142.
Ilegalidade e precariedade da liberdade 150.
E as aquisições irregulares e ilegais de terras? 154.

CONCLUSÃO 165.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 168.


Fontes primárias 168.
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro 168.
Coleções de jurisprudência 176.
Legislação 176.
Livros de referência 179.
Livros jurídicos 179.
Manuais de agricultores 182.
Periódicos 182.
Projetos de códigos e consolidações 182.
Outros documentos impressos 183.
Bibliografia 184.
INTRODUÇÃO:
SOBRE OCEANOS E COZINHAS

O Atlântico…

“Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!”.1

Assim se inicia um dos mais famosos poemas da língua portuguesa, escrito por
Fernando Pessoa, no começo do século XX. Nele, Pessoa parece ter se esquecido de que as
lágrimas que formaram o Atlântico não foram só portuguesas. Foram, também, americanas
e, sobretudo, africanas. Não é possível pensar a história da idade moderna e do início da
idade contemporânea sem pensar o Atlântico. E não é possível pensar o Atlântico sem
pensar o tráfico de escravos. Um dos pilares fundamentais da expansão marítima europeia,
estima-se que, entre os séculos XVI e XIX, o tráfico transatlântico de escravos transportou,
forçosamente e de maneiras legais e ilegais, 12 milhões e meio de pessoas da África para a
Europa2 e, sobretudo, para a América.3
Impulsionada pelo tráfico de escravos, a circulação no Atlântico não tinha uma
dimensão exclusivamente econômica. O comércio de escravos e bens, em especial, foi
consideravelmente volumoso; no entanto, o Atlântico também é marcado por uma
significativa integração social e cultural. De um lado a outro, o oceano era cruzado por
mulheres e homens, livres e escravos, que levavam consigo, nessas viagens, suas
experiências e modos de vida. A cada novo lugar que chegavam, valiam-se dessa bagagem
cultural prévia, reformulando-a e ressignificando-a a partir de suas novas condições de
vida. Nessa circulação de pessoas, concepções de mundo e práticas habituais, um Atlântico
foi sendo construído.4

1
PESSOA. Mensagem, p. 29.
2
Sobre a escravidão em território metropolitano português, ver GRINBERG; SILVA. “Soil Free from Slaves”;
LAHON. “O escravo africano na vida económica e social portuguesa do Antigo Regime”; MARQUES. The
Sounds of Silence; PINHEIRO. Em defesa da liberdade; REGINALDO. “África em Portugal”; SAUNDERS.
A social history of black slaves and freedmen in Portugal; SILVA. Constitucionalismo e império.
3
Dados disponíveis em Voyages – The Trans-Atlantic Slave Trade Database, consulta em 23 de abril de 2018.

1
Concepções acerca de normas, de categorias jurídicas e de justiça também
viajavam, nos navios que cruzavam o oceano, junto com as pessoas ou materializados em
escritos e documentos. No caso do Atlântico lusófono, havia uma intensa circulação de
pessoal burocrático entre os territórios metropolitano e coloniais. Os agentes da Coroa
portuguesa transitavam de maneira regular, em razão de um sistema baseado em
nomeações temporárias para a ocupação de cargos da administração colonial. Os juristas
letrados ocupavam parte importante desses cargos. Em um contexto de sobreposição de
ordens normativas e de jurisdições, como era o Atlântico lusófono, a atuação dos juristas
letrados portugueses consistiu em gerir essa complexa teia de normatividades, com base
em suas habilidades profissionais de criar e interpretar categorias jurídicas.5
Característica relevante dessa estrutura burocrática era o fato de que, ao contrário
da Coroa espanhola, que fundou universidades na América, Portugal concentrou a
formação dos juristas em território metropolitano, por meio da Universidade de Coimbra.
Assim, parte relevante do corpo administrativo e político português – e, após a
Independência, brasileiro – responsável por gerir a arquitetura institucional no Atlântico
lusófono possuía uma formação relativamente homogênea, que contribuía para a criação e
conservação de um ambiente jurídico compartilhado na região.6
No âmbito da administração secular portuguesa, metropolitana e colonial, a
estrutura normativa manejada pelos juristas era o chamado direito comum (ius commune).
O direito comum era uma estrutura normativa de caráter marcadamente doutrinário, que
esteve presente, em território europeu desde aproximadamente o final do século XI até os
séculos XVIII e XIX. Na Europa da idade moderna, o direito comum convivia com outras
ordens normativas, como, por exemplo, o direito canônico e o direito dos reinos.7

4
ALENCASTRO. O trato dos viventes; CANDIDO. An African Slaving Port and the Atlantic World;
CANDIDO. “South Atlantic Exchanges”; FERREIRA. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World;
HERZOG. Frontiers of Possession; HÉBRARD, SCOTT. Provas de liberdade, SLENES. “‘Malungu, ngoma
vem!’”.
5
CAMARINHAS. “Justice Administration in Early Modern Portugal”. Neste artigo, o autor também apresenta
mapas da circulação dos agentes burocráticos coloniais. Sobre a sobreposição de ordens normativas, ver
DUVE. “Was ist ‘Multinormativität’?”. Para uma discussão entre as diferentes jurisdições existentes em
Angola, durante os primeiros séculos do período colonial, ver MADEIRA-SANTOS. “Esclavage africain et
traite atlantique confrontés”. Para os séculos XIX, ver SILVA. A construção jurídica dos Territórios
Ultramarinos Portugueses no século XIX.
6
Sobre a formação dos juristas lusófonos, ver CARVALHO. A construção da ordem/Teatro de sombras, pp.
63-92 e ROBERTO. O direito civil nas Academias Jurídicas do Império.
7
DECOCK. Theologians and Contract Law, pp. 30-31, HESPANHA. “Direito comum e direito colonial”.

2
A lógica de construção e funcionamento do direito comum era bastante diferente da
do direito atual, de matriz liberal. A arquitetura do direito comum se construía por meio de
textos nos quais os juristas apresentavam suas soluções para problemas. Assim, em geral, a
construção de categorias jurídicas era feita por meio da proposta de possíveis soluções e
interpretações para conflitos concretos. Nesse sistema normativo, a lei escrita não era uma
fonte do direito hierarquicamente superior às outras, podendo ser contestada e reformulada
pela prática dos tribunais e pelas interpretações doutrinárias. Na decisão dos casos
concretos, as normas não tinham força absoluta, mas eram avaliadas pelos juízes –
“arbítrio do juiz” – que, analisando as particularidades do caso e recorrendo a diversas
fontes do direito, deveria decidir com vistas à equidade. Em sua estrutura, o direito comum
era aberto e flexível à interação com outras ordens normativas e com particularidades
locais. Essa flexibilidade do direito comum foi o que, em certa medida, permitiu sua
expansão relativamente eficaz para os territórios coloniais.8
Em termos estritamente legislativos, havia certa coincidência entre a legislação
aplicada na metrópole e nos territórios coloniais portugueses. Apesar de parte das normas
emanadas pela Coroa ter um caráter específico, dirigido apenas a uma região, é possível
encontrar cópias dessas normas específicas em outros territórios coloniais, o que denota
que, mesmo nesses casos, havia uma relativa circulação dos textos legislativos.
Considerando as normas de caráter geral, é muito importante ter em conta que elas não se
trasladavam por si sós. Havia diversos agentes envolvidos nessa difusão: juízes de fora,
juízes ordinários, governadores, capitães donatários, membros do clero, missionários, etc.
Por meio desses agentes, normas isoladas e compilações de legislação como, por exemplo,
as Ordenações Filipinas, tinham razoável disseminação tanto na América quanto em
outros territórios, como a África. Essas normas eram publicizadas por meio de sua leitura
em locais públicos, nas missas de domingo e em reuniões de confrarias e irmandades.9
Ainda que eminentemente letrado, o direito comum se disseminava por
compreensões e hábitos populares. Sua disseminação era garantida pela própria maneira a
partir da qual era estruturado. Muitos dos textos jurídicos eram compostos por uma grande
quantidade de brocardos, frases curtas que enunciavam uma norma. Isso facilitava sua
8
HESPANHA. “Direito comum e direito colonial”. Ver, também, CABRAL. Literatura jurídica na idade
moderna; GARRIGA. “Orden jurídico y poder político en el Antiguo Régimen”; GROSSI. El orden jurídico
medieval; TAU ANZOÁTEGUI. Casuismo y sistema; VALLEJO. Ruda equidad, ley consumada;
VALLEJO. “El cáliz de plata”.
9
BALTAZAR, CARDIM. “A difusão da legislação régia”.

3
comunicação oral e sua fixação. Também era expressado por fórmulas reproduzidas em
documentos oficiais por notários, outra característica que facilitava a permeabilidade desse
saber técnico nos discursos mais corriqueiros e tornava possível que ele fosse reapropriado,
mobilizado e ressignificado pelos mais diferentes sujeitos históricos, que iam construindo
entendimentos vernaculares das normas do direito comum.10
Vejamos, por exemplo, o caso do Alvará, de 16 de janeiro de 1773, analisado por
Luiz Geraldo Silva. Esse ato normativo estabeleceu, em linhas gerais, que todos os que
nascessem, em território metropolitano, depois de sua publicação, seriam livres.
Analisando a documentação referente à cidade de Paraíba de Senhora das Neves, na
América Portuguesa, o pesquisador encontrou uma carta do ouvidor da cidade endereçada
ao governador, dizendo:

…participo a Vossa Excelência que havendo-se espalhado na Cidade da


Paraíba, a Lei porque Sua Majestade foi servido Libertar os mulatos e pretos
de Portugal, tem sido tão mal entendida pelos mulatos, e negros daquela
Cidade, que tem chegado a fazer entre eles conciliábulos e conventículos, de
sorte que a interpretaram, e publicam a seu favor, tirando inúmeras cópias,
vendendo-as a preço de uma pataca, e faltando sobre a inteligência da mesma
Lei.11

Com medo de que os escravos da cidade, a partir da interpretação que estavam


fazendo da legislação metropolitana, começassem a reivindicar sua liberdade, as
autoridades locais iniciaram uma devassa para averiguar o caso. A análise feita por Silva
do processo elucida os diversos meios pelos quais as normas jurídicas circulavam entre a
população e como, a partir de sua leitura ou escuta, iam-se formando entendimentos
vernaculares das mesmas. As testemunhas deram muitas versões do fato. Uma delas disse
que um “mulato” vendia cópias da lei a uma “pataca”. Ressalvou, porém que essa “cópia”
tinha sido escrita na língua do “mulato” – que mesclava elementos de línguas africanas
com o português –, mas que o conteúdo não estava muito distante ao “espírito original” da
lei. Outra disse que o grande tema de debate era se a expressão “seus domínios” se
aplicaria ou não à América Portuguesa, o que, em caso positivo, significaria a libertação do

10
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 12-13. Como exemplo de permeabilidade dos discursos
letrados do direito comum, ver HERZOG. Frontiers of Possession.
11
Apud SILVA. “Esperança de liberdade”, p. 128.

4
ventre. Vários depoimentos confirmaram que a lei era lida por grupos de negros que se
encontravam na Praia do Tambaú. Também ficou evidente que, além dessas leituras
públicas, cópias da lei circulavam de mão em mão, com um conhecido passando para o
outro após terminar a leitura. Houve, ainda, quem afirmou que cópia do Alvará tinha
chegado, à cidade, por meio de uma carta enviada da Bahia. Como reação, o governador de
Pernambuco mandou publicar um Bando informando a população da “verdadeira
interpretação” do Alvará.12
Assim como os negros da Paraíba, em ambos os lados do Atlântico, as pessoas
construíam noções vernaculares das normas e as transportavam com elas quando se
locomoviam na região. Afinal, não eram só os burocratas que circulavam de um lado a
outro. Apesar de muitas vezes não serem “letrados”, essas mulheres e homens, livres,
libertos e escravos tinham concepções próprias de justiça e acessavam, em alguma medida,
as normas, reinterpretando-as, mobilizando-as em situações de conflito e pautando, por
elas, suas práticas cotidianas.13
Além do mais, as questões que envolviam escravidão e liberdade perpassavam a
vida todas as pessoas, não apenas na medida em que interessavam imediatamente a
escravos e senhores, mas estruturando todas as relações sociais. Na arquitetura
institucional do direito comum, os conflitos em torno da liberdade, ao chegarem aos
tribunais estabelecidos nas diferentes regiões do Atlântico, eram traduzidos na linguagem
jurídica pertinente à regulação das relações entre pessoas e coisas. Nesse sentido, no
Atlântico lusófono, a linguagem da liberdade era a linguagem da “propriedade”. Ou seja, a
estrutura do direito comum sobre a relação entre pessoas e coisas geria tanto o estatuto
jurídico das pessoas – liberdade, escravidão ou outras formas de dependência – quanto os
atos de aquisição e uso dos bens.
Como identificou Rosa Congost, há uma tendência, nos textos da área de história
agrária, de reproduzir, em certa medida, uma visão da propriedade muito conectada com o
discurso liberal sobre esse instituto.14 Em muitos trabalhos, é frequente que a noção de

12
SILVA. “Esperança de liberdade”.
13
Sobre circulação de escravos, libertos e outros grupos “não letrados”, no Atlântico, ver CANDIDO. “South
Atlantic Exchanges”; CARVALHO; GOMES; REIS. O Alufá Rufino; LINEBAUGH; REDIKER. The Many-
headed Hydra; MAMIGONIAN. “José Majojo e Francisco Moçambique, marinheiros das rotas atlânticas”;
SLENES. “‘Malungu, ngoma vem!’”. Sobre as concepções vernaculares, a respeito das normas jurídicas,
dessas pessoas, ver HÉBRARD; SCOTT. Provas de liberdade; HERZOG. Frontiers of Possession; PREMO.
The Enlightenment on Trial.
14
CONGOST. Tierras, leyes, historia, pp. 11-43.

5
propriedade individual norteie as análises, mesmo quando se trata de períodos em que não
era propriamente esse instituto o que regulava as relações entre pessoas e coisas. Como
venho argumentando, a estrutura do direito comum era completamente diferente da do
direito que foi sendo construído a partir de finais do século XVIII. A maneira como o
direito comum normatizava as relações entre pessoas e coisas partia de pressupostos
distintos daqueles em que se baseia o direito liberal. Naquela arquitetura normativa, não
havia nada próximo à ideia de propriedade individual como direito subjetivo
hierarquicamente superior aos demais direitos sobre os bens.
No direito comum, a noção jurídica de “coisa” era bastante ampla, englobando,
além do que hoje identificamos como tal, ações, direitos, pessoas e, até mesmo, alguns
fatos. Vale ressaltar, ainda, que o tratamento jurídico das pessoas como coisas extrapolava
o caso mais evidente da escravidão. Ações e obrigações de determinadas pessoas, como,
por exemplo, as obrigações de trabalhar, de obedecer, de se sujeitar ao mando de outrem,
dentre outras, poderiam ser consideradas como coisas integradas a um determinado
patrimônio e, portanto, estar sujeitas ao tratamento jurídico dispensado aos bens materiais.
Ou seja, não havia uma distinção clara entre pessoas – sujeitos de direitos – e coisas
objetos de direitos –, como há no direito liberal.15
Como os direitos e os estados das pessoas eram considerados coisas imateriais, eles
tinham um regime semelhante ao dos bens e poderiam ser protegidos por tipos similares de
ações.16 A liberdade estava compreendida entre esses estados sobre os quais incidiam
normas referentes às relações jurídicas entre pessoas e coisas.
O que estava subjacente a essas construções jurídicas era uma ideia de que havia
uma pluralidade de estatutos naturais, na ordem do mundo, que determinavam os direitos e
obrigações de cada ente, animado ou não. Nessa ordem “natural”, que estruturava as
relações entre as pessoas e as coisas, tudo tinha uma finalidade e, portanto, uma utilidade.
A essa ordem da utilidade, correspondia uma ordem da necessidade, segundo a qual os
usuários deveriam desfrutar das coisas de maneira legítima e de acordo com o direito.

15
GROSSI. Il dominio e le cose, pp. 57-122; HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 307-314.
Sobre a coisificação de pessoas, de seu trabalho e de suas obrigações, ver CONTE. Servi medievali; WIESE.
Leibeigene Bauern und Römisches Recht im 17. Jahrjundert.
16
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 307-314; TESTUZZA. “Ius corporis, quase ius de
corpore disponendi”.

6
Assim, “domínio” era “o poder ou a faculdade reconhecido a alguém de se apoderar das
coisas, pondo-as à sua disposição e uso lícito”.17
O domínio, como faculdade de uso, era uma categoria jurídica bastante ampla, que
abarcava diversos direitos de gozo sobre as coisas, como usufruto, hipoteca, servidão, etc.
Ele também poderia abranger direitos de gozo sobre pessoas como, por exemplo, o
exercício da jurisdição. Nesse sentido, o domínio não tinha como objeto a coisa em si, mas
uma de suas utilidades. Como as utilidades das coisas poderiam ser muitas, também o
domínio poderia ser múltiplo, abrangendo as diferentes faculdades de uso das coisas, não
havendo uma hierarquia entre os diferentes tipos de domínio. Tampouco havia hierarquia
entre os diferentes direitos que poderiam coexistir sobre a mesma coisa. O domínio,
portanto, não era um direito “hierarquicamente superior”, “que valia mais” do que os
demais que incidiam sobre as coisas. Além disso, o dono, o detentor do domínio, poderia
usar das coisas como bem lhe aprouvesse contanto que não existissem outros domínios ou
outros direitos incidindo sobre elas. Ou seja, o domínio não era um direito exclusivo e
ilimitado.18
Não havia, também, identificação entre as palavras “dominium” e “propietas”. O
domínio tinha um sentido amplo, abarcando tudo o que pudesse estar sujeito ao poder de
um “dominus”, ou seja, poderia abarcar o que estivesse sujeito ao poder desde um rei até
um pai de família. Assim, domínio dizia respeito a ter poder sobre coisas – que, como
vimos, poderiam abarcar, também pessoas e direitos –, enquanto “propietas” se referia à
atribuição de determinados objetos a pessoas. Essa concepção era, também, mais ampla do
que a noção contemporânea de propriedade, porque poderia abarcar, por exemplo, a
propriedade de cargos.19
Outra característica do domínio – e dos outros direitos que incidiam sobre as coisas
– era que ele não estava separado do uso efetivo da coisa. Assim, a arquitetura normativa
do direito comum procurava privilegiar, em situações de conflitos, as partes que estivessem
efetivamente usando a coisa, exercendo posse sobre ela. Uma vez que um dos objetivos
dessa ordem jurídica era a manutenção do status quo, nada mais coerente do que proteger

17
GROSSI. Il dominio e le cose, pp. 21-56, 123-190, 247-272; HESPANHA. Como os juristas viam o mundo,
p. 312.
18
GROSSI. Il dominio e le cose, pp. 21-56, 123-190, 247-272; HESPANHA. Como os juristas viam o mundo,
pp. 311-316.
19
WILLOWEIT. “Dominium und Proprietas”.

7
aquele que, no momento do conflito, era o detentor estável e contínuo da coisa, fosse ela
material ou imaterial.20
A ordem normativa do direito comum, no entanto, começou a ser questionada na
“Era das Revoluções”. Desde o chamado “iluminismo jurídico” até as reformas liberais
empreendidas pelos nascentes Estados Nacionais ao longo dos séculos XIX e XX, diversas
foram as propostas de reformulação dos sistemas jurídicos. Em linhas gerais, tais propostas
não mais fundavam o direito em uma ordem divina e natural que deveria ser preservada,
mas no pressuposto de que a sociedade era composta por indivíduos, a quem eram
atribuídos direitos subjetivos que deveriam ser garantidos pela ordem jurídica. Essa
maneira de enxergar o fundamento das ordens normativas teve um forte impacto no modo
como os juristas passaram a perceber as relações entre pessoas e coisas.21
Do ponto de vista da mera construção de categorias doutrinárias, foi no âmbito da
teologia moral que novas concepções a respeito das relações jurídicas entre pessoas e
coisas começaram a ser inventadas. O domínio, então considerado como inseparável do
uso efetivo da coisa, começou a ser entendido, também, como uma disposição subjetiva de
ser dono da coisa. Ou seja, o uso não precisava ser fático, material, mas poderia consistir
em uma “vontade apropriativa”. Assim, a partir da ideia de que o domínio era uma vontade
de uma pessoa a ser afirmada sobre uma coisa, começou a ser gestada uma separação entre
sujeitos e objetos de direitos.22
O homem23 passou, então, a ser considerado, por determinados juristas, como um
ser livre, autônomo, dotado de vontade. Para que essa vontade fosse satisfeita e a liberdade
e autonomia do homem fossem plenamente realizadas, era necessário que sua vontade se

20
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 352-360.
21
Esse processo de criação de um direito de propriedade de caráter subjetivista foi estudado por historiadores
das mais diferentes tradições. Há, portanto, uma pluralidade de enfoques e perspectivas para o tratamento
desse tema. Alguns exemplos são: BLAUFARB. The Great Demarcation; CLAVERO. “Les domaines de la
propriété”; CONGOST. Tierras, leyes, historia; GROSSI. Il dominio e le cose; HALPÉRIN. Histoire du
droit des biens; HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 307-319; LUNA. “Property, Dominium,
and the Hispanic enlightenment on both sides of the Atlantic in the second half of the eighteenth century”,
VARELA. Das sesmarias à propriedade moderna.
22
DECOCK. Theologians and Contract Law, pp. 21-104, 352-383; GROSSI. Il dominio e le cose, pp. 281-384;
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 315-317.
23
Ao longo deste trabalho, procuro sempre utilizar a palavra “pessoa”, para evitar a redução da espécie humana
à metonímia “homem”. Porém, nesse caso específico, o sujeito de direitos que estava sendo construído
possuía um forte viés de gênero e racial e era identificado com o gênero masculino de origem europeia. Por
isso, optei por utilizar a palavra “homem” e não “pessoa”. Sobre a construção do sujeito de direitos liberal,
ver HUNT. A invenção dos direitos humanos; WELKE. Law and the Borders of Belonging in the Long
Nineteenth Century United States.

8
projetasse sobre as coisas, apropriando-se delas. O domínio, então, passa a ser visto como
um ato de vontade que era, na realidade, a extensão do sujeito sobre o mundo material.
Sendo, agora, uma faculdade subjetiva e volitiva, o domínio perdeu, no nível da retórica
discursiva, qualquer relação com o uso efetivo das coisas, com sua utilidade e
funcionalidade.24
O passo seguinte dessa construção de categorias doutrinárias foi identificar o
domínio com o direito subjetivo de propriedade e considerar este último como a relação
por excelência entre pessoas e coisas. O sistema de direitos reais começou, então, a ser
estruturado tomando o direito de propriedade como hierarquicamente superior aos demais
direitos sobre as coisas. De acordo com António Manuel Hespanha, nessa nova construção
intelectual, o domínio identificado com direito de propriedade tinha três características
fundamentais: estava relacionado intimamente com a vontade, era tendencialmente
absoluto e era essencialmente privado. 25 O autor ressalta, ainda, que o direito de
propriedade “não se destinava a garantir a funcionalidade econômica das coisas, não visava
refletir, no campo do direito, as utilidades possíveis das coisas, antes possibilitando
exercícios afuncionais, como o não cultivo de uma terra ou a destruição de uma coisa”.26
Pois bem, essa é, em linhas gerais, a história da construção das categorias
doutrinárias relacionadas ao direito de propriedade. Nesta tese, pretendo contar essa
história de outra maneira. Olhando para o caso brasileiro do século XIX, é possível
perceber que as categorias jurídicas do direito comum que regiam as relações entre as
pessoas e as coisas adquiriram contornos específicos em território brasileiro. No Atlântico
lusófono, havia uma linguagem jurídica compartilhada, mas que ia adquirindo nuances de
acordo com o contexto local. No contexto brasileiro, o processo de construção do direito de
propriedade foi lento e indeterminado. Lento no sentido de que seu surgimento não
aconteceu como um estalo. Concepções sobre o direito de propriedade conviveram com
categorias do direito comum e foram, paulatinamente, dotando-as de novos significados. E
indeterminado, porque esse processo não tinha um rumo certo e evidente. Diversas opções
estavam em aberto e foram disputadas pelos mais diversos sujeitos históricos. Do modo
como esse processo foi tomando forma, uma organização social e jurídica baseada no
24
GROSSI. Il dominio e le cose, pp. 603-666; HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 316-317.
25
De acordo com Hespanha, é nesse caráter essencialmente privado que reside a construção da separação entre
iurisdictio e dominium, operada por certos autores da Escola de Salamanca. HESPANHA. Como os juristas
viam o mundo, p. 319.
26
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 316-318.

9
reconhecimento comunitário da titularidade dos bens foi se imiscuindo com formas de
organização que privilegiavam relações baseadas na abstração de documentos escritos
dotados de determinados requisitos formais. Por fim, argumento que a criação do direito de
propriedade liberal criou efeitos de esquecimento, a partir da ilusão de que a origem da
propriedade individual pode ser traçada por meio de uma cadeia documental. Esse mito
fundacional esconde dois aspectos fundamentais que mostro nesta tese. O primeiro é que,
na ordem do direito comum, a ideia de que a titularidade de um bem estaria legitimada por
uma cadeia documental é anacrônica. O segundo é que, muitas vezes, a origem da
titularidade dos bens era o engodo, a ficção e a violência.
Para descrever esse processo da maneira mais precisa possível, adotei algumas
opções terminológicas. “Direito de propriedade” será uma expressão usada para identificar
a regulação jurídica das relações entre pessoas e coisas a partir do ponto de vista do direito
liberal. Por isso, para evitar confusões, refiro-me às situações de apropriação, uso e
conservação de bens por meio da expressão “relações jurídicas entre pessoas e coisas”. A
palavra “propriedade” será usada, preferencialmente, para designar bens e, quando
expressamente indicado no trecho correspondente, para tratar das relações liberais entre
pessoas e bens. Como o período analisado é transicional, marcado pelo entranhamento de
diferentes concepções normativas, uso, nos casos em que essas duas concepções não se
distinguem claramente, a palavra “domínio”.
Antes de passar a esses argumento, no entanto, trato de alguns outros aspectos
teóricos desta empreitada.

… e a cozinha

Imagine a vitrine de uma confeitaria. Os doces estão lá: organizados, coloridos,


bonitos. Enchem os olhos. Ao olhar essa vitrine, frequentemente, não pensamos em todo o
processo que levou à sua confecção. Não nos lembramos que existe uma cozinha. E que é
nessa cozinha que aqueles doces tão bonitos são produzidos cotidianamente, a partir do
trabalho e da agência das pessoas que estão ali “escondidas”, que são invisíveis aos olhos
do cliente que se deslumbra com o produto final exposto através do vidro.
As categorias jurídicas nos são apresentadas assim: como doces em vitrines.
Organizadas, perfeitas, acabadas. Os textos jurídicos costumam ostentá-las solenemente

10
como um produto já finalizado, como partes de um sistema coerente e organizado de
normas. As categorias jurídicas, no entanto, não existem, no mundo, dessa forma. Houve,
na cozinha, um processo conturbado, conflituoso, contingente, de sua produção. Esta
pesquisa se propõe a olhar para a cozinha do direito, para o processo de construção
cotidiana das categorias jurídicas que estruturavam as relações entre pessoas e coisas, no
Brasil do século XIX.
Para realizar essa análise, parto de alguns pressupostos teóricos. O primeiro é o de
que direito e sociedade são mutuamente constitutivos. Em outras palavras, a divisão entre
direito e realidade social é artificial. É muito comum, entre pesquisadores, o pressuposto de
que “o jurídico” e “o social” são duas “esferas” distintas, apesar de relacionadas entre si.
As pesquisas que assumem essa separação entre direito e sociedade tendem a ver o direito
como uma construção erudita – empreendida em lugares solenes – que está em constante
tensão com uma prática social, com “costumes”, com o “real”. Também é comum que
pesquisadores que assumem esse pressuposto trabalhem com categorias – como, por
exemplo, “posse” – como se elas fossem completamente independentes do direito, sendo
exclusivamente fruto das relações sociais ou de uma suposta “prática costumeira”. No
entanto, se considerarmos a divisão entre direito e sociedade como artificial, perceberemos
que basicamente qualquer instituição social – propriedade, agregado, posse, mulher,
escravo, etc. – é constituída, em certa medida, por relações jurídicas. O direito atua,
portanto, constituindo os termos em que se darão as relações sociais. Essa perspectiva
permite enxergar o direito de uma maneira mais ampla, não restrita apenas a normas
escritas emanadas por instâncias solenes de produção.27
Como direito e sociedade são mutuamente constitutivos, o direito conforma as
relações sociais mas é, também, conformado por elas. O direito, suas categorias, suas
instituições e seus procedimentos são produtos de conflitos sociais. Os significados das
categorias e normas jurídicas são constantemente disputados, entre diferentes sujeitos
históricos, sejam eles as classes dominantes ou grupos subalternos. É nesse sentido que se
pode afirmar que o direito é uma arena de conflitos. Daí que ele é uma ordem de
construções normativas conflitivas e, frequentemente, incoerentes entre si; apesar de ser
constantemente apresentado como um sistema coerente. O caráter conflitivo do direito é o

27
GORDON. “Critical Legal Histories”.

11
que permite a disputa entre significados alternativos a serem dados a suas normas e
categorias.28
Apesar de serem produtos de conflitos, o direito e as categorias jurídicas que o
estruturam não necessariamente respondem a qualquer realinhamento das forças sociais.
Eles tendem a funcionar de maneira “relativamente autônoma”, inclusive, moldando os
termos dos interesses dos grupos sociais. Nesse sentido, não é possível analisar as relações
jurídicas apenas a partir de referenciais externos, sejam eles a política, a economia ou
algum outro fator. A análise deve levar em conta, além desses referenciais externos ao
direito, a lógica interna da arquitetura de ordens normativas e o modo como essa lógica foi
forjada a partir de relações sociais. A linguagem por meio da qual o direito opera é o que
garante o seu funcionamento como uma arena de lutas e não apenas como instrumento de
exploração produzido pelas classes dominantes. É por meio da manipulação das
possibilidades abertas por essa linguagem que grupos subalternos conseguem imprimir
significados às categorias jurídicas.29
É a partir dessas perspectivas que analisarei as relações jurídicas entre pessoas e
coisas no Brasil oitocentista. Como já mencionei, a “Era das Revoluções” também foi
marcada pela disputa de novas concepções de como essas relações deveriam ser
estruturadas, partindo de pressupostos diversos dos que estavam na base do direito comum.
Foi nesse período que um “direito de propriedade” foi sendo construído. Essa construção
foi conflitiva, contingente, diversas possibilidades estavam abertas, diferentes caminhos
poderiam ter sido adotados. As condições da vida social e, portanto, do direito, são
radicalmente indeterminadas. O mesmo corpo normativo pode levar a resultados
diferentes, quando aplicado a determinados contextos. Por exemplo, o corpo normativo do
direito comum, compartilhado na experiência jurídica do Atlântico lusófono, adquiria
significados específicos quando confrontado com situações concretas na Europa, na África
ou na América. Da mesma maneira, diversos projetos de construção de “direito de
propriedade” concorriam entre si no período analisado. Por isso, é necessário estar atento
às condições de realização das relações jurídicas entre as pessoas e as coisas.30

28
GORDON. “Critical Legal Histories”. THOMPSON. Whigs and Hunters, pp. 258-269.
29
GORDON. “Critical Legal Histories”. THOMPSON. Whigs and Hunters, pp. 258-269.
30
CONGOST. Tierras, leyes, historia, pp. 11-41; GORDON. “Critical Legal Histories”; BARBOSA.
“Indeterminação do constitucionalismo imperial luso-brasileiro e o processo de independência do Brasil”

12
Além de olhar o direito pela cozinha, de tomar direito e sociedade como
mutuamente constitutivos e de ressaltar suas origens conflitivas, esta pesquisa parte do
pressuposto de que as categorias jurídicas que estruturam as relações entre pessoas e coisas
não são, propriamente, “nacionais”.31 As complexidades de processos de grande escala
como esse são melhor apreendidas quando observadas em suas dinâmicas de pequena
escala. Há processos históricos que só se tornam “visíveis” quando olhados muito de perto,
quando analisada a dinâmica cotidiana e conflituosa das relações entre escravos, senhores,
mulheres, agregados, indígenas, libertos, juristas, agentes estatais, etc. Como argumentam
Jean Hébrard e Rebecca Scott, “não há nada de ‘micro’ no mundo atlântico do século XIX,
mas mesmo nesse quadro tão amplo, a análise mais profunda pode surgir da intensa
atenção ao particular”.32
Esta pesquisa conjuga, então, duas perspectivas. Por um lado, considero que uma
dimensão atlântica é importante para compreender o fenômeno histórico do direito comum.
É simplista considerar que o direito comum foi uma construção europeia transplantada para
os territórios coloniais e que sobreviveu, em certos aspectos, à emergência dos Estados
nacionais. Ao contrário, o Atlântico lusófono foi um ambiente jurídico construído por meio
da circulação cotidiana de pessoas, ideias e práticas jurídicas. Nele, o direito comum
atuava como uma arquitetura normativa compartilhada, cujas categorias adquiriam
significados específicos em contextos locais e em face de conflitos concretos. Nessa
dinâmica, o caminho não era de mão única, da Europa para a América e para a África, mas
circular. O direito ia e voltava nos navios que cruzavam o oceano e, nesse movimento,
significados adquiridos em contextos específicos acabavam influenciando a configuração
que essas categorias adquiriam em outras regiões. Essa dinâmica de construção de
categorias e atribuição de significados é mais visível adotando a segunda perspectiva desta
pesquisa: uma história social do direito que privilegia uma análise empírica de nível micro,
focando em conflitos localizados que, em seu conjunto, ajudam a elucidar processos de
escala mais ampla. Uma análise feita em uma escala menor também permite identificar os
mecanismos de construção de assimetrias envolvidos nesses processos.

31
DUVE. “European Legal History” e HERZOG. Frontiers of Possession, pp. 1-15.
32
FERREIRA. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World, pp. 1-19; GALEANO. Criminosos viajantes,
pp. 13-40; HÉBRARD; SCOTT. Provas de liberdade, pp. 15-19; HERZOG. Frontiers of Possession, pp. 1-
15; MAMIGONIAN. “José Majojo e Francisco Moçambique, marinheiros das rotas atlânticas”; PREMO.
The Enlightenment on Trial, pp. 1-25; PUTNAM. “To Study the Fragments/Whole”; SCOTT. “Small-Scale
Dynamics of Large-Scale Processes”; SCOTT. “Slavery and the Law in Atlantic Perspective”.

13
Por essas razões, analiso o caso brasileiro, aproximadamente, entre 1835 e 1889. Na
análise da documentação, optei por evidenciar conexões e experiências compartilhadas
entre os casos analisados e um contexto Atlântico mais amplo, que engloba, na medida do
possível, experiências latino-americanas e africanas. O tempo e o esforço que uma
pesquisa empírica em outras regiões demandaria estão além dos limites desta pesquisa. Por
isso, procurei, ao tratar do contexto brasileiro, evidenciar os trânsitos e movimentos dos
sujeitos históricos envolvidos nos processos analisados, além das similaridades e
diferenças que marcavam outros contextos nacionais do mundo atlântico.
Esta pesquisa está baseada, sobretudo, na análise de processos judiciais. Em razão
de todos os pressupostos teórico-metodológicos explicitados, considero que esse tipo de
fonte é bastante elucidativo da construção social cotidiana das categorias jurídicas que
estruturavam as relações entre pessoas e coisas. Os conflitos judiciais nos permitem
identificar quais opções normativas eram disputadas e mobilizadas pelos sujeitos
históricos. Por meio deles, é possível observar o processo de produção de normatividades e
de categorias jurídicas. Nos processos judiciais, o local e o atlântico se articulam de
maneira complexa. Além disso, processos judiciais deixam entrever como entendimentos
vernaculares das normatividades disponíveis interagem e tensionam com interpretações das
categorias jurídicas produzidas em lugares solenes.33 A narrativa dos processos não é
anedótica ou retórica. É uma opção analítica que tem como objetivo identificar as
estratégias e as particularidades dos diferentes discursos jurídicos mobilizados pelos
sujeitos históricos que se envolveram nesses conflitos judiciais. Nesse sentido, cada um
dos casos analisados não é mera ilustração do processo de construção do direito de
propriedade, mas elementos constitutivos desse processo.34
Para esta pesquisa, analisei um total de 74 processos ajuizados perante o Tribunal
da Relação do Rio de Janeiro (TRRJ), entre 1834 e 1887, disponíveis no Arquivo Nacional
do Rio de Janeiro. Os processos consultados foram selecionados de acordo com o seguinte
procedimento. Optei por analisar os documentos que integram a série “apelação cível”, do
fundo “Relação do Rio de Janeiro”. A partir das definições disponibilizadas pelo Arquivo
Nacional, na aba “vocabulário”, da Base de Dados Acervo Judiciário, selecionei as
33
FARGE. O sabor do arquivo; DUVE. “Was ist ‘Multinormativität’?”; HERZOG. Upholding Justice, pp. 1-
18; HERZOG. Frontiers of Possession, pp. 1-15; PREMO. Enlightenment on Trial, pp. 1-25; ZEMON
DAVIS. O retorno de Martin Guerre; e ZEMON DAVIS. “On the Lame”.
34
SCOTT. “Small-Scale Dynamics of Large-Scale Processes”; SCOTT. “Slavery and the Law in Atlantic
Perspective”.

14
seguintes palavras-chave: “alforria”, “demarcação”, “esbulho possessório”, “escravo”,
“interdito possessório”, “liberdade”, “manutenção de liberdade”, “manutenção de posse”,
“nunciação de obra nova”, “posse”, “prescrição”, “propriedade rural”, “reintegração de
posse”, “sesmaria”, “tráfico de escravo” e “usufruto”. Fiz, então, uma seleção aleatória de
dois processos sobre terras e dois sobre escravos por ano. Nas ações sobre escravos,
selecionei uma relativa à definição de estatuto jurídico e outra que discutisse a propriedade,
entre dois senhores, sobre um escravo. No entanto, em visita ao Arquivo Nacional,
diversas das ações selecionadas não estavam disponíveis para consulta. Os funcionários,
então, disponibilizaram outros processos, também escolhidos, por eles, de maneira
aleatória. Dentre as ações que pude consultar, poucas discutiam a propriedade sobre um
escravo, entre dois senhores. Então, o pesquisador Clemente Penna, gentilmente, cedeu-me
algumas das ações que, em suas pesquisa, ele havia recolhido sobre esse tema. Algumas
dessas ações não integram a série “apelação cível” nem o fundo “Relação do Rio de
Janeiro”. Ao fim, terminei por analisar uma série de processos judiciais discutindo a a
titularidade de terras e escravos selecionados aleatoriamente, tanto pelo procedimento de
seleção inicial quanto pela sua disponibilidade durante o período em que realizei a
pesquisa. A lista completa desses processos pode ser encontrada nas referências
bibliográficas deste trabalho.
Construí os argumentos deste trabalho pela análise conjunta de todos esses
processos. Contudo, para efeitos de exposição dos argumentos, elegi três casos, um a cada
capítulo, para um relato mais detido que me permitisse estruturar a linha de argumentação.
Os demais processos foram usados incidentalmente ao longo da exposição, para
desenvolver determinados argumentos e mostrar aspectos específicos das relações sociais e
jurídicas que se estabeleceram entre pessoas e coisas no Brasil oitocentista.

15
PLANTAR MANGUEIRAS E MATAR ÍNDIOS:
O COTIDIANO DA POSSE

O caso da Fazenda São Joaquim da Boa Vista

Na primeira metade do século XIX, a província de São Pedro do Rio Grande do Sul
era uma zona de fronteira intensamente integrada à região do rio da Prata. Durante o
período colonial, aí circulavam pessoas, bens e práticas culturais e jurídicas, mediando
parte das relações entre os impérios português e espanhol. Além de grandes estancieiros,
havia, na região, numerosos lavradores, pastores e criadores de pequenos rebanhos de
animais. Com uma presença significativa de mão de obra escrava, a economia da província
era marcada tanto pela pecuária quanto pela agricultura, em especial, da erva-mate. 35
Também nessa época, a região da comarca de Cruz Alta foi marcada pela expansão da
fronteira agrícola nas terras da Serra Geral. No mapa abaixo, a comarca de Cruz Alta é a
que está colorida de verde e que se encontra mais ao norte, fazendo fronteira com a
província de Santa Catarina e com a República Argentina.

35
CHRISTILLINO. Litígios ao sul do Império, pp. 15-54; HERZOG. Frontiers of possession; e OSÓRIO.
“Continuidades”.

16
Figura 1 – Mapa da Província de S. Pedro (1868)

Fonte: ALMEIDA, Atlas do Imperio do Brazil, imagem XX (detalhe).

Essa expansão da fronteira agrícola causou conflitos com o poder público, que dizia
serem aquelas terras devolutas36 e, portanto, sob seu domínio. Além disso, despertou
diversos litígios entre os ocupantes da região, que disputavam as áreas de melhor plantio.
Como, em razão de seu caráter fronteiriço, a província de São Pedro era bastante
militarizada, muitos de seus ocupantes tinham patentes militares como, por exemplo,
tenentes, capitães e coronéis. A concessão de terras a essa elite foi uma das políticas da
Coroa para manter a região integrada ao Império. Esse grupo – angariado, entre outras

36
Ao longo do século XIX, houve disputas a respeito dos significados do termo “devoluto”. Havia quem
utilizasse a expressão como sinônimo de “desocupado” e os que defendessem se tratar de uma palavra que
designaria as terras pertencentes ao Estado. SILVA. Terras devolutas e latifúndio, pp. 19-223.

17
razões, por essas concessões fundiárias – foi fundamental para a definição e consolidação
das fronteiras do Brasil meridional.37
Nesse contexto de mobilidade fronteiriça e expansão da fronteira agrícola, estourou
a Farroupilha no ano de 1835. Com uma duração de dez anos e de caráter separatista, a
Farroupilha foi a mais longa “revolta” do Império e marcou profundamente a região. Em
razão do conflito, houve deslocamentos populacionais dentro da província e para fora dela.
Na comarca da Cruz Alta, a família de Salvador Lopes de Vargas foi uma das que
emigraram. Eram quatro os membros da família: Vargas, sua esposa 38 e seus cunhados,
Tristão José de Oliveira e Dona Lucia. Assim como tantos outros, eles decidiram “subir a
serra” e acabaram por chegar às terras da Fazenda São Joaquim da Boa Vista, do tenente
coronel Joaquim Thomas da Silva Prado e sua esposa Dona Maria Thomasia da Silva
Prado.
Dentre os agraciados com terras pelo governo imperial, em sua política de fixação
da província de São Pedro, estava Eleutério da Silva Prado, pai de Joaquim Thomas da
Silva Prado. Assim como outros membros da elite local, os Silva Prado tinham patentes
militares: o pai, Eleutério, era capitão-mor de Jundiaí e o filho Joaquim era miliciano da
Guarda Nacional. A ocupação de terras na região de Cruz Alta pela família Silva Prado se
iniciou por volta de 1819. A Fazenda São Joaquim da Boa Vista era uma fazenda de criar
na região do arroio Palmeira, no norte da província. Essa região era marcada, sobretudo,
pela plantação da erva-mate, atividade a qual também se dedicavam os Silva Prado.39
O tenente coronel Joaquim Thomas da Silva Prado e sua esposa Dona Maria se
consideravam senhores e possuidores daquelas terras:

[…] quando os Autores [tenente coronel Joaquim Thomas da Silva Prado e


Dona Maria Thomasia da Silva Prado] se estabeleceram em ditos campos
eram eles devolutos, bravios, e infestados pelos selvagens; e nunca foram
incomodados ou perturbados por alguém na posse mansa e pacífica em que
estavam; ali fixaram sua residência habitual edificaram uma excelente
morada de casas coberta de telhas com mangueiras, arvoredos e mais
benfeitorias e diversos pastos em vários lugares; conseguindo a vista de

37
CHRISTILLINO. Litígios ao sul do Império, pp. 15-54 e ORTIZ. Costumes e conflitos, pp. 53-55.
38
Não consegui ter acesso ao nome da esposa de Salvador Lopes de Vargas.
39
CHRISTILLINO. Litígios ao sul do Império, pp. 28-77.

18
despesas e sacrifícios enormes montar o melhor estabelecimento de criar que
houvesse em cima da serra.40

Eles e seus filhos também haviam recebido diversas datas de terras, contíguas à
Fazenda São Joaquim da Boa Vista, que estavam sendo cultivadas: “sendo eles os
primeiros que neste Município fundaram uma fábrica de açúcar de cana, demonstrando
assim a possibilidade e vantagem do plantio e cultivo da cana, até então julgada impossível
aqui”.41
Ao chegar à fazenda, Vargas e sua família foram ter com Silva Prado para acertar
os termos em que se estabeleceriam naquelas terras. De acordo com a versão
posteriormente declarada por Silva Prado, ele concedeu a Vargas e a sua família a
possibilidade de viverem como agregados em um dos rincões da fazenda.
Os conflitos da Farroupilha, no entanto, perduraram por longos anos e se
espalharam pela província de São Pedro, chegando à região do arroio Palmeira, onde
estava localizada a Fazenda São Joaquim da Boa Vista. Silva Prado e Maria, então,
decidiram emigrar para a província de São Paulo, deixando a fazenda aos cuidados de um
administrador.
Enquanto Silva Prado e Maria estavam vivendo na província de São Paulo, Vargas
morreu. Sua esposa, então, decidiu retornar para sua antiga residência, mas os cunhados –
Tristão e Lucia – permaneceram. Também durante esse período em que Silva Prado e
Maria estiveram fora, a Fazenda São Joaquim da Boa Vista esteve sujeita a diversos
embargos judiciais. O primeiro, ocorrido em 1841 por ordem do Comandante Militar do
Município, abarcou, além da fazenda, escravos, animais e bens móveis. O segundo,
ocorrido em 1845, abarcou, inclusive, o rincão onde viviam Tristão e Lucia, que não
embargaram a penhora.42 Os embargos na fazenda tiveram como origem um processo de
endividamento de Silva Prado que foi descrito por Cristiano Christillino:

Joaquim Thomaz da Silva Prado deixou o Planalto rio-grandense durante a


Revolução Farroupilha, mudando-se para Santos. Foi, provavelmente, no seu
retorno à Província que o tem.-cel. Silva Prado tomou 18 contos de réis

40
Processo n. 1.385, p. 4.
41
Processo n. 1.385, p. 4v.
42
O segundo embargo foi consequência de uma execução movida contra os autores pelo Brigadeiro Rafael
Tobias de Aguiar, na província de São Paulo.

19
emprestados ao seu mais importante compadre, o deputado paulista,
Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar. A retomada das atividades pecuárias
exigiu recursos do estancieiro. No entanto, os rebanhos de Joaquim Thomaz
não apresentaram a lucratividade necessária para saldar o empréstimo
contraído. Durante o seu afastamento do Rio Grande do Sul, os ervais por ele
apropriados na região da Palmeira foram devastados com a exploração
predatória dos ervateiros, o que esgotou uma parte significativa dessa rica
fonte de lucros. Para evitar a perda das nove léguas de campo da fazenda São
Joaquim da Palma, hipotecada no empréstimo, Joaquim Thomaz deixou de
pagar outra dívida de mais de 14 contos de réis, tomada a José de Souza
Neto, em dezembro de 1844, sob uma taxa de juros de seis por cento anuais.
O patrimônio foi salvo, mas a situação financeira dos Silva Prado não se
alterou.43

Ao retornarem de São Paulo, em 1843, além dos diversos embargos sofridos pela
fazenda, Silva Prado e Maria encontraram uma situação que consideraram caracterizar
esbulho por parte de Tristão e Lucia: “ingratos aos favores recebidos”, estariam agindo
como se fossem senhores do rincão onde viviam e de outras partes da fazenda. Os conflitos
entre as duas famílias a respeito de quem eram os legítimos “senhores e possuidores”
daquelas terras começaram. Em 1853, Silva Prado e Maria resolveram ajuizar um processo
cível perante o juízo municipal da vila do Espírito Santo. 44 Os autores Silva Prado e Maria
alegaram:

[…] como se não fossem intrusos praticam atos de verdadeiro senhorio


fazendo casas, reconhecendo agregados, negando o direito dos Autores, e
vedando que animais, de seus filhos e arrendatários pastem nos campos que
ocupam, trabalhando nos matos e convidando a terceiros que neles façam
suas plantações, enfim, cometendo uma perfeita força ou esbulho.45

Também argumentaram que, ao permanecerem na fazenda após a morte de Vargas,


os réus teriam tomado tal decisão “sem que nesses tempos se inculcassem senhores do
terreno que ocupavam, pois ninguém ignorava que ali foram residir pelo indulto feito a seu

43
CHRISTILLINO. Litígios ao sul do Império, pp. 75-76.
44
A vila do Espírito Santo estava localizada na comarca de Cruz Alta, província de São Pedro do Rio Grande
do Sul.
45
Processo n. 1.385, pp. 7-7v.

20
finado cunhado Vargas”.46 Ademais, o comportamento de Tristão e Lucia nos momentos
em que a fazenda tinha sido embargada demonstrava que eles não se consideravam
senhores daquele pedaço de terra: a penhora não foi por eles embargada, “como lhes
cumpria fazer se reputassem-se senhores dele”.47 Tudo isso, argumentaram, estaria
causando diversos prejuízos aos autores, “porque seguramente a uma sesmaria se estende a
atual ocupação”.48
Após intimados, os réus Tristão e Lucia contestaram afirmando que, quando foram
habitar na região, em 1837, os campos por eles ocupados – ora denominados Capão
Grande – eram devolutos, não estavam ocupados, aproveitados ou beneficiados por pessoa
alguma. O lugar foi por eles ocupado de boa fé e em sua posse estavam de modo manso,
pacífico, continuado e sem contestação. Além disso, tinham construído no local uma boa
casa de vivenda, engenho de fazer farinha, escaroçador de fazer melado e rapadura; tinham
plantado mangueiras e arvoredos frutíferos; e tinham feito cercados e valas, lavouras de
plantação de mandioca e um capão fechado com uma porteira, dentro do qual plantavam
feijão, milho e trigo. Também criavam animais: gado vacum, cavalar e muar. Os animais
ocupavam toda a extensão do terreno que, segundo eles, era o equivalente a uma sesmaria
de uma légua de frente e três de fundo. Portanto, por estarem de posse pacífica daquelas
terras, desde 1837, tinham-nas legitimamente adquirido por prescrição, independentemente
de posse anterior dos autores. A respeito da área ocupada pelos autores, os réus também
argumentaram que sua concessão era irregular, pois se tratava de uma imensa extensão de
terras. Ademais, pela Lei de Terras49, esse tipo de concessão não poderia mais ser feita.
Nesses termos, portanto, a disputa judicial se estabeleceu. Neste capítulo, analiso os
pormenores desses argumentos jurídicos e discuto alguns aspectos essenciais que o
instituto jurídico da posse adquiriu no contexto brasileiro do século XIX.

Posse, uma categoria jurídica

O exercício da posse já foi, há muito, identificado pela historiografia brasileira


como um dos elementos principais para a aquisição de terras e para a caracterização da
46
Processo n. 1.385, p. 4v.
47
Processo n. 1.385, pp. 4v-5.
48
Processo n. 1.385, pp. 4v-5.
49
BRASIL. Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850.

21
condição de uma pessoa como livre ou escrava.50 Contudo, muitas vezes, não fica claro, em
alguns desses trabalhos, que a posse, mais do que uma prática social, do que uma
“ocupação de fato”, era também uma categoria jurídica.
Nem sempre presente na legislação de forma explícita, a posse foi construída como
categoria jurídica pelos textos jurídicos e pela prática judicial. O fato de não estar
explicitamente definida na legislação pode ter contribuído para que a historiografia a
identificasse mais como uma prática social – por vezes classificada como “costumeira” –
do que com uma categoria estruturante das relações jurídicas entre pessoas e coisas no
direito comum do Atlântico lusófono.
O direito se estrutura a partir de categorias jurídicas, que são, fundamentalmente,
modelos de organização da realidade. Tais categorias são, em muitos casos, definidas em
outros locais solenes, que não a legislação propriamente dita. Podem ser formuladas, por
exemplo, por textos jurídicos e serem dotadas de uma carga normativa similar à que teria
um instituto criado por lei. Uma vez criadas, elas conformam a atuação dos sujeitos e, por
sua vez, são ressignificadas e reformuladas na atuação cotidiana desses mesmos sujeitos.
Essa constituição mútua entre realidade social e categorias jurídicas faz com que estas se
constituam em uma das arenas de lutas entre diferentes sujeitos históricos. Conseguir
atribuir determinados sentidos a certas categorias jurídicas pode significar o sucesso ou a
derrota em um processo judicial ou mesmo a configuração de uma estrutura social mais ou
menos favorável a determinados grupos.51 A posse é uma dessas categorias das quais o
direito se vale para organizar a realidade. Foi a partir das discussões em torno dessa
categoria que se organizou o processo ajuizado por Silva Prado e Maria contra Tristão e
Lucia, assim como ocorreu com tantos outros entre os analisados. E, a partir da análise
dessa e de outras ações judiciais, é possível vislumbrar quais significados jurídicos
específicos o instituto da posse adquiriu no contexto brasileiro do século XIX.

50
Para o caso das terras, ver, por exemplo, MOTTA. Nas fronteiras do poder e SILVA. Terras devolutas e
latifúndio. Para uma análise do papel da posse nas transações envolvendo terras indígenas, no sul do Chile,
ver BASTIAS SAAVEDRA. “The Lived Space”. Sobre a Argentina, ver D’AGOSTINO. Expansión de la
frontera y ocupación del nuevo sur. Para o uso do argumento da posse em processos judiciais mexicanos, ver
OWENSBY. Empire of Law and Indian Justice in Colonial Mexico, pp. 90-129. Para o caso da condição de
livre ou escravo, ver, por exemplo, CAMPOS. “Prescrição da escravidão e a ‘liberdade oprimida’ no Brasil
do Oitocentos”; CHALHOUB. Visões da liberdade; e PINHEIRO. Em defesa da liberdade. Para o papel da
posse na aquisição da liberdade em Cuba, ver PERERA DÍAZ, MERIÑO FUENTES. Estrategias de libertad.
Para o caso da Louisiana, ver SCOTT. “Social Facts, Legal Fictions, and the Attribution of Slave Status”.
Para discussões mais gerais a respeito do papel da posse, ver ROSE. “Possession as the Origin of Property” e
STOLZENBERG. “Facts on the Ground”.
51
HESPANHA. Imbecillitas, pp. 13-45 e GORDON. “Critical Legal Histories”.

22
Como argumentei na introdução deste trabalho, a noção de utilidade era central na
arquitetura normativa do direito comum. Também era um dos objetivos dessa ordem
jurídica a manutenção da paz, identificada com a preservação do estado atual das coisas. A
posse, portanto, era uma categoria jurídica que cumpria uma função decisiva nessa
arquitetura normativa, uma vez que possibilitava a garantia dos direitos de quem estava
efetivamente usando a coisa, mantendo o status quo da situação de apropriação.52
Em Como os juristas viam o mundo, António Hespanha transcreve a definição de
posse presente em um dicionário jurídico do século XVII, escrito pelo jurista António
Cardoso do Amaral: “A posse é aquele direito pelo qual alguém tem um verdadeiro poder
sobre uma coisa corpórea, designando a detenção da coisa corpórea a partir da imposição
dos pés”.53 Para Amaral, portanto, a posse era caracteriza pela “imposição dos pés” na
coisa, ou seja, por um ato físico. Possuir algo era efetivamente usá-lo.
Durante o período colonial, havia, inclusive, cerimonias de tomada de posse. 54 Nas
fontes analisadas para este trabalho, não pude identificar se esse tipo de prática ainda
ocorria no século XIX. Porém, descrições desses atos podem ser encontradas em
documentos juntados às ações. Por exemplo, em uma pública forma de um termo de posse
judicial datado de 1798, estava descrita uma dessas cerimônias:

… a qual posse se lhe deu e ele a tomou mansa e pacificamente sem


constrangimento de pessoa alguma com todas as cerimônias que manda a Lei
cortando ramas e entregando-lhes na sua mão cavando terra e atirando com
ela pelos Ares gritando em Voz Alta e inteligível se havia pessoa que se
opusesse ou embaraçasse a dita Posse não [ilegível] e nem apareceu ninguém
que a ela tivesse Direito de em contrariar nem embaraçar e delas ficou
empossado.55

Amaral também caracterizava a posse como a apreensão de fato de uma coisa


material. Para ele, as coisas imateriais estariam sujeitas a outra espécie de posse, a “quase-

52
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, p. 355.
53
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, p. 352. O dicionário do qual essa definição foi tirada é Liber
utilissimus indicibus et advocatis, publicado em 1610.
54
Sobre cerimônias de tomada de posse, ver KELLER; LISSITZYN; MANN. Creation of Rights of
Sovereignty Through Symbolic Acts e SEED. Ceremonies of Possession in Europe’s Conquest of the New
World.
55
Processo n. 29, pp. 9-9v.

23
posse”. Havia, no direito comum, um extenso debate sobre se as coisas imateriais estavam
sujeitas à posse ou à quase-posse. No entanto, como na prática brasileira do século XIX
essa distinção não tinha consequências relevantes, vou me abster de entrar nessas árduas
tecnicalidades e remeto o leitor às referências bibliográficas. 56 Por isso, neste trabalho, me
referirei apenas à posse, seja de coisas materiais (terras) ou imateriais (estado de liberdade
ou escravidão). Ressalto apenas que as interpretações mais próximas do direito canônico
eram as que defendiam a extensão da posse às coisas imateriais de maneira mais
contundente.
O exercício da posse poderia gerar tanto a proteção judicial57 da situação
possessória quanto a aquisição do domínio por prescrição. Para gerar reconhecimento e
proteção judicial, era necessário que o possuidor demonstrasse que a posse era exercida de
maneira pública e pacífica, ou seja, sem contestação. No caso das coisas materiais, a prova
da posse se dava pela comprovação do exercício de direitos sobre a coisa. Já no caso das
coisas imateriais, como os estados de escravidão ou liberdade, a prova era de que a pessoa
cujo estatuto estava sob discussão judicial vivia como livre ou como escrava, ou seja, se a
pessoa realizava atos considerados como de pessoa livre ou de pessoa escrava. Para a
proteção judicial, não era necessário discutir os fundamentos da aquisição do bem, não
importando se eles fossem defeituosos ou não. A origem da posse só era debatida e
provada nos casos em que se procurasse adquirir o domínio por prescrição. Nesses casos,
além de provar a posse pública e pacífica, era necessário provar, também, que ela foi
adquirida com justo título, de boa-fé e exercida, por determinado período de tempo (prazo
prescricional, que variava de acordo com a coisa em questão).58
O justo título dizia respeito à origem do direito. Portanto, no quadro do direito
comum, não era sinônimo de documento escrito, de um pedaço de papel. O justo título era
aquele – escrito ou não – que o possuidor acreditava justificar sua posse e seu domínio.
Para os juristas do direito comum, o possuidor poderia, inclusive, estar enganado a respeito
da validade de seu título e, ainda assim, este ser justo e apto a gerar o reconhecimento

56
BIRR. Rechte im Strom der Zeite; CONTE. Servi medievali; CONTE; MANNINO; VECCHI. Uso, tempo,
possesso dei diritti; HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 352-355; TESTUZZA. “Ius corporis,
quasi ius de corpore disponendi”; e WIESE. Leibeigene Bauern und Römisches Recht im 17. Jahrhundert.
57
Sobre a proteção judicial da posse no direito comum, com foco primordial na prática e em autores espanhóis,
ver MARTÍNEZ PÉREZ. “‘Interim apud hispanos’”.
58
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 355-356.

24
jurídico da posse e do domínio.59 Estar de boa-fé, por sua vez, significava acreditar-se
possuidor ou senhor da coisa. No caso em que pessoas pleiteavam a condição de livres, a
boa-fé consistia em acreditar-se livre.
Voltando ao processo de Silva Prado e Maria contra Tristão e Lucia, os réus foram
defendidos, no TRRJ, por Augusto Teixeira de Freitas, que formulou seu argumento com
considerações justamente relacionadas à questão da boa-fé: “Da boa fé dos Apelantes nem
mesmo os espíritos mais céticos podem duvidar. Apossaram-se de um terreno devoluto, a
que consideravam tal, cultivaram-no sem oposição de ninguém. Que dúvidas podiam pois
sentir a respeito de seu direito?”.60
No Brasil oitocentista, em linhas gerais, posse era a detenção de alguma coisa como
sua.61 E tanto sua proteção judicial quanto a aquisição de domínio por seu exercício eram
garantidas, desde que respeitados os mesmos requisitos do direito comum: posse pública,
pacífica, de boa-fé, com justo título e por determinado lapso temporal. Mas, no contexto
brasileiro do século XIX, o que significava, efetivamente, deter alguma coisa como sua?
Em outras palavras: quais eram os atos possessórios juridicamente reconhecidos como
tais?
A análise dos processos judiciais nos ajuda a construir um mosaico dos tipos de
atos que eram considerados como juridicamente aptos a caracterizar uma situação de
posse. Assim, é possível vislumbrar como a categoria da posse adquiria materialidade e
significados próprios no cotidiano dos conflitos judiciais brasileiros.
No que diz respeito à posse de terras, o processo de Silva Prado e Maria contra
Tristão e Lucia evidencia que a construção de edificações era um importe ato possessório.
No entanto, não eram quaisquer construções que caracterizavam posse efetiva. Era preciso
que elas fossem consideradas “boas”, de qualidade, pelos supostos posseiros, senhores e
demais pessoas da comunidade. Em outras palavras, as construções e edificações deveriam
ser socialmente reconhecidas como “boas”, para serem hábeis a caracterizar a posse. As
testemunhas de Tristão e Lucia, por exemplo, afirmaram que, quando Vargas se

59
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, p. 370.
60
Processo n. 1.385, pp. 254v-255. Nos processos analisados, também era comum que as testemunhas jurassem
que as partes eram “de verdade, consciência e incapazes de faltar à verdade”. Ou seja, que estavam de boa-fé.
61
ARAUJO. Codificação civil, p. 192; FREITAS. Consolidação das leis civis, p. CLVI; FREITAS. Código
civil, tomo 1, p. 1.094; LOUREIRO. Instituições de direito civil brasileiro, 1851, tomo 1, p. 127;
LOUREIRO. Instituições de direito civil brasileiro, 1857, tomo 1, p. 184; LOUREIRO. Instituições de
direito civil brasileiro, 1861, tomo 1, p. 219; PEREIRA. Direito das cousas, p. 9-10; RIBAS. Da posse e das
acções possessorias, p. 2; e SANTOS. Projecto do codigo civil brazileiro, p. 61

25
estabeleceu nas terras do Capão Grande, este apenas fez um “ranchinho”. As casas que lá
existiam ao tempo da lide tinham sido construídas pelos réus Tristão e Lucia. Uma das
indicações da qualidade da casa era, por exemplo, a existência de cobertura de telhas. Essa
circunstância era, por vezes, explicitamente perguntada às testemunhas. O mesmo tipo de
concepção estava presente no pedido inicial dos autores Silva Prado e Maria, que
ressaltaram terem levantado estabelecimentos de qualidade e boa estrutura.62
Assim como a edificação de “boas” obras, a plantação de mangueiras foi alegada,
no caso da Fazenda São Joaquim da Boa Vista, como ato capaz de indicar o exercício de
posse. Constituindo benfeitorias e, talvez, por serem árvores frondosas, de fácil
reconhecimento e exóticas na vegetação brasileira, as mangueiras serviam como indícios
de outros atos possessórios e de uso efetivo da terra. Em outro processo, o café foi
mencionado no mesmo sentido, isto é, para indicar o exercício de atos possessórios, por
meio da adição de benfeitorias ao terreno.63
Nem sempre o ato possessório necessitava implicar trabalho em um sentido mais
estrito para que fosse considerado válido. Por exemplo, em um processo que analiso mais
detidamente no próximo capítulo, o juiz considerou, como ato possessório válido para
garantir o domínio, o fincamento de esteios no terreno. Como argumentou uma das partes,
nesse processo, o levantamento de esteio e cava era o que “bastava para que fosse a sua
posse respeitada”.64
Já no que diz respeito à posse do estado de livre ou de escravo, a comprovação do
exercício de atos possessórios estava muito relacionada ao modo como a pessoa vivia, já
que, nesses casos, exercer atos possessórios significava viver como livre ou viver como
escravo.
Muitas vezes, a escravidão é associada à existência de restrição absoluta da
liberdade de locomoção. Porém, não era esse o caso. Com o objetivo de extrair o máximo
possível de rendimentos de seus escravos, muitos senhores permitiam que eles
trabalhassem “a jornal”. Isso significava que os escravos poderiam trabalhar para outras
pessoas, com a condição de entregar a seus senhores uma quantia determinada ao final de
um dia, de uma semana ou, até mesmo, de um mês. Por vezes, esses escravos permaneciam
distantes de seus senhores por longos períodos e, em alguns casos, chegavam a viver em
62
Processo n. 1.385, pp. 28-42.
63
Processo n. 2.837.
64
Processo n. 6.588, p. 51.

26
locais diferentes de seus senhores, como, por exemplo, casas alugadas ou quartos de
cortiços.
Havia, ainda, os escravos que, mesmo não trabalhando a jornal, realizavam os mais
diversos serviços fora da casa de seus senhores, circulando pelas cidades ou, no caso do
meio rural, transitando entre diferentes fazendas. As atividades desempenhadas por esses
escravos que se locomoviam eram as mais diversas: quitandeiras, vendedores de comida,
carregadores, barqueiros, operários, carregadores de água, acendedores de lampião,
barbeiros, músicos, cocheiros, etc.65
Essa configuração econômica implicava que alguns desses escravos se
comportassem como pessoas livres, “vivendo sobre si” ou “vivendo como livre”, sendo
prática reconhecida, inclusive, em livros jurídicos brasileiros do século XIX, como, por
exemplo, o de Agostinho Marques Perdigão Malheiro: “Mesmo nas cidades e povoados
alguns [senhores] permitem que os seus escravos trabalhem como livres, dando-lhes porém
um certo jornal; o excesso é seu pecúlio: e que até viviam em casas que não as dos
senhores, com mais liberdade”.66
Ao chegar aos tribunais, esse “viver como livre” poderia ser interpretado como
exercício do estatuto de livre, como exercício da posse sobre a liberdade o que, como já
mencionei, poderia gerar o reconhecimento judicial do estatuto de livre ou liberto. Essa
possibilidade era amplamente aceita pelos juristas do direito comum e do Brasil
oitocentista.67
Por exemplo, em um caso que analiso mais detalhadamente no último capítulo
deste trabalho, Clelia Leopoldina d’Oliveira ajuizou uma ação contra Brasilia. Esta se
defendeu alegando que vivia, há algum tempo, em posse de sua liberdade: “nesta Corte foi
tida como livre, de regular comportamento, segundo atestarão os Inspetores de Quarteirão,
e pela sua conta pagou os alugueres das casas em que residia”. 68 Para provar essa alegação,

65
Sobre a locomoção dos escravos em cidades ver CHALHOUB. Visões da liberdade, pp. 175-248 e
KARASCH, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, pp. 259-291. Para alguns casos de escravos que se
locomoviam no meio rural, ver LARA. Campos da violência e SLENES, Na senzala, uma flor. Sobre os
escravos que trabalhavam a jornal, ver SOARES. “Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX”.
Esses escravos que gozavam de relativa mobilidade, apesar de não estarem sujeitos à vigilância constante de
seus senhores, eram objeto de diuturno controle da polícia. Ver, a esse respeito, ALGRANTI. O feitor
ausente e CHALHOUB. A força da escravidão.
66
MALHEIRO. A escravidão no Brasil, tomo 1, p. 90.
67
Para uma análise pormenorizada desses textos, ver DIAS PAES. Sujeitos da história, sujeitos de direitos, pp.
140-169 e DIAS PAES. “Sobre origens, continuidades e criações”.
68
Processo n. 14.318, p. 14.

27
Brasilia, inclusive, juntou ao processo recibos do pagamento desses aluguéis passados em
seu nome.
Além de ter “economia própria”, a análise dos processos mostra que outros fatos
que poderiam levar à comprovação da posse da liberdade, como o ter “sempre” vivido
afastado do suposto senhor, sem nunca ter sido reclamado. Contra esse último argumento,
era comum que os supostos senhores alegassem que o libertando estava vivendo em outro
local por sua “concessão”. Ou seja, sabiam que, apesar de não viverem na mesma casa de
seu senhor, eram ainda escravos, o que impedia a caracterização da boa fé e o
reconhecimento do direito à liberdade com base no argumento da posse. Nesse tipo de
disputa, também era frequente que os supostos senhores rebatessem o argumento da posse
da liberdade procurando provar que o libertando sempre havia vivido como escravo e era
por todos reconhecido como tal.69 Os atos que eram considerados “atos de escravo” serão
discutidos mais adiante.
Por vezes, o exercício de atos possessórios sobre a liberdade era interpretado como
abandono do escravo. O senhor havia sido negligente no exercício de seus direitos sobre o
escravo que passaria, então, a ser considerado res derelicta, bem do evento. Por exemplo,
em um dos casos analisados, o libertando alegou: “tudo concorda para demonstrar que na
realidade se não sabe quem seja o legítimo senhor do Autor Embargado, que assim existe
em completo abandono”.70 No entanto, à declaração de um escravo como bem do evento
nem sempre se seguia a consecução da liberdade. Em A força da escravidão, Sidney
Chalhoub mostra que houve vários casos, no Rio de Janeiro da primeira metade do século
XIX, que policiais apreenderam pessoas livres, sob suspeita de serem escravas fugidas.
Levadas à cadeia, não foram reclamadas por seus supostos “senhores”, por serem, de fato,
livres, e acabaram sendo leiloadas como bens do evento, sofrendo um processo de
reescravização.71

69
Para outros casos nesse mesmo sentido, ver DIAS PAES. Sujeitos da história, sujeitos de direitos, pp. 140-
169, DIAS PAES. “O procedimento de manutenção de liberdade no Brasil oitocentista”.
70
Processo n. 843, p. 26-27v.
71
CHALHOUB. A força da escravidão.

28
A centralidade do reconhecimento social

Todos esses atos possessórios eram majoritariamente provados por depoimentos de


testemunhas. Além disso, como já mostrei, a publicidade era uma das características que a
posse deveria ter para ser judicialmente reconhecida. Por isso, era muito importante que a
comunidade na qual a pessoa estava inserida a reconhecesse como possuidora, como
senhora, como escrava ou como livre e que os membros dessa comunidade atestassem
esses fatos no momento de prestarem seus depoimentos nos processos judiciais. Em outras
palavras, o reconhecimento social jogava um papel decisivo nas disputas judiciais que
envolviam a posse de terras, de escravos ou de liberdade.
No quadro normativo do direito comum, salvo exceções, a capacidade para
testemunhar era geral.72 Porém, os depoimentos poderiam ser valorados de maneira
diferente pelos juízes, a depender da convicção que eles tinham acerca da credibilidade e
do comportamento das testemunhas.73 Em uma sociedade escravista como a brasileira, na
qual o reconhecimento social era tão relevante para o reconhecimento jurídico de uma
relação sobre uma coisa, a “qualidade” de uma testemunha poderia ser determinante na
constituição da prova. Silva Prado e Maria, por exemplo, utilizaram uma estratégia de
deslegitimação contra as testemunhas dos réus Tristão e Lucia:

Os Réus foram mendigar testemunhas na classe proletária, escolhendo de


preferência pessoas inimizadas com os Autores. Entretanto que estes foram
buscar dentre as pessoas mais gradas do Município, por seus caráteres,
fortunas, e posições sociais. […] A primeira das 5, ultimamente inquirida,
Antonio José de Oliveira, confessa ser assalariado pelos Réus; […] A 3ª,
Alexandre Alves, pouco diz sobre os fatos principais e confessa ter vivido a
favor dos Réus. […] São testemunhas dos Autores: 1º O G Mór Francisco de
Paula e Silva, vereador da Câmara, e abastado proprietário deste Município,
que depois dos Autores, foi o primeiro a povoar os campos dos Dois Irmãos
(assignação que compreendia muitos campos), que posteriormente vendeu a
seu Irmão o Exmo Senhor Barão de Antonina. […] 2º Alexandre Luis da

72
Formalmente, eram incapazes para testemunhar: os “furiosos”, os “mentecaptos”, as crianças, os impúberes,
os escravos, os judeus e “mouros” que testemunhassem contra cristãos, os presos por crimes graves e os
“infames” (“sem fama”, banidos, “meretrizes”, ébrios, falidos de má-fé e jogadores). HESPANHA. Como os
juristas viam o mundo, pp. 589; 624.
73
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 589-590; 624. Para uma análise das categorizações de
testemunhas, em processos envolvendo escravos, ver MATTOS. Das cores do silêncio, pp. 94-103.

29
Silva, Juiz Municipal Suplente, Irmão do G. Mór Paula, e do Barão de
Antonina, […] 3º José Custódio do Prado – Um dos mais antigos moradores
deste Município […] 4ª Antonio Rodrigues Pereira – Antiquíssimo morador
deste Município […] Esta testemunha que sempre tem ocupado nesta Vila os
cargos de 1º Suplente do Juiz Municipal, Delegado e, algumas vezes, de
Direito interino está acima de toda e qualquer exceção […] Não é possível,
pois, haver paralelo entre estes cinco varões respeitáveis, e os proletários que
juraram pelos Réus, cujos depoimentos inçados de contradições, exagerações
e futilidades por certo serão in limine desprezados.74

Em alguns poucos casos, testemunhas escravas poderiam ser valiosas para atestar
que outras pessoas eram também escravas. Nesse tipo de depoimento, costumavam dizer
que conheciam a parte cujo estatuto estava sob discussão e atestavam ser ela um
“companheiro” escravo.75 Com esse tipo de depoimento, o autor de uma outra ação afirmou
que havia “provado exuberantemente que o Réu preto José Moçambique […] é seu
escravo”.76
Para além da escravidão, outras relações de assimetria social também tinham
importância na desconsideração de testemunhas. Muitas delas eram frequentemente
acusadas de serem “agregadas” de uma das partes e, portanto, por causa da suposta relação
de favor que mantinham com as partes, seus depoimentos não seriam isentos e deveriam
ser desconsiderados pelo juiz.77
Em alguns casos, além das provas testemunhais, as partes apresentavam cartas de
pessoas que atestavam seu pleiteado direito. Era comum que esses signatários fossem
comerciantes. Em um dos casos analisados, por exemplo, para pedir que a carta fosse feita,
a parte interessada enviou ao signatário a matrícula do suposto escravo, com o objetivo de
provar que seu pleito era legítimo e, portanto, tornar mais convincente o pedido para que o
signatário fizesse a carta-atestado.78 Convencidos pela apresentação da matrícula, os
comerciantes assinaram e remeteram a seguinte carta-atestado:

74
Processo n. 1.385, pp. 146-147.
75
Processo n. 1.669, pp. 45-47.
76
Processo n. 1.669, p. 48.
77
Processo n. 1.385, 30v, 32-32v, 44v-46.
78
Processo n. 1.669, pp. 19-19v.

30
Nós abaixo assinados Estabelecidos nesta Corte. Atestamos e juramos nos
Santos Evangelhos, [ilegível] do Senhor Francisco de Oliveira Martins,
súdito Brasileiro, e morador nesta mesma Cidade; o qual é o próprio Senhor e
legítimo possuidor de um escravo de nome Jozé de Nação Moçambique que
igualmente muito conhecemos, e embarcou como de propriedade daquele
Martins, a quatro anos mais ou menos, e há de constar da respectiva
Matrícula a bordo da Sumaca Conceição Protetora que daqui saiu para Santa
Catarina ou Montevideo sendo Mestre Antonio de Castro Queiros e sabemos
por ouvir dizer que aquele Escravo foi recrutado por [ilegível] do Governo de
Montevideo para a Tropa de Linha [ilegível].79

Por sua vez, as testemunhas, para legitimarem seus depoimentos, recorriam, em


casos de disputas de terra, ao seu pleno conhecimento da região. Nesses casos, era comum
o uso de expressões como “sabe pelo pleno conhecimento que tem daquela localidade” ou
“sabe pelo pleno conhecimento que tem do terreno”. 80 Já em processos de definição de
estatuto jurídico, as testemunhas afirmavam ter pleno conhecimento das pessoas
envolvidas no caso e de como elas agiam e eram percebidas no cotidiano da comunidade.

em razão do pleno conhecimento que tem de muitos anos da preta Rufina,


escrava do justificante João Pereira de Azevedo, e mesmo por ter sido a
madrinha do inocente Manoel filho da mesma escrava, sabe que ele é o
próprio e idêntico de que se trata, que havia sido por seu senhor dado à
matrícula com o nome de Antonio; engano este proveniente de ter sido o dito
inocente batizado na freguesia de Santa Rita da Corte, sem estar presente seu
dito senhor.81

Muitas dessas informações apresentadas pelas testemunhas, das quais elas diziam
ter pleno conhecimento, eram adquiridas por meio de conversas, de interações cotidianas
entre os membros da comunidade. Muitas testemunhas eram, por exemplo, de “ouvir
dizer”, não tinham presenciado os fatos em questão, mas tinham escutado outras pessoas
falarem sobre eles. Ao analisar as demandas judiciais por liberdade de mulheres
escravizadas, em Havana e no Rio de Janeiro, Camillia Cowling ressaltou o papel que as
fofocas e as redes de informações tinham no momento crucial de mobilizar depoimentos
79
Processo n. 1.669, p. 50.
80
Processo n. 1.385, pp. 123-126.
81
Processo n. 14.485, pp. 25-25v.

31
testemunhais. Mais do que a simples trocas de informações, essas redes de sociabilidade e
conversas moldavam os entendimentos vernaculares que as pessoas tinham das normas
jurídicas.82
Algumas vezes, essas redes de informação podiam mesmo motivar ações judiciais.
Alegando ter adquirido a liberdade, por ter ingressado no país após a Lei de 7 de novembro
1831, que proibiu a entrada de novos escravos no território brasileiro, José, em outro
processo judicial, afirmou que havia ingressado em juízo, depois de lhe chegar a
informação de que as pessoas na mesma situação que ele tinham direito à liberdade. A
sentença do juiz de primeira instância resume bem a história:

Há 3 ou 4 anos o autor foi ao Estado Oriental em serviço de conduzir uma


tropa de gado pertencente a seu pretendido senhor, que se destinava às
charqueadas de Paysandú. O réu não apresentou nenhuma prova para
sustentar sua contestação. Não é procedente a alegação de que não foi
provada a ordem e o consentimento do réu. Isto porque, durante os 6 ou 8
anos, se o réu considerava o autor como seu escravo não fecharia os olhos a
uma estada tão demorada nas Trezes Cruzes e nem o admitiria no Estado
Oriental. Sendo ao contrário muito mais certo que o réu, na ignorância em
que confessa ter até pouco tempo se achado de que os escravos que vão sem
consentimento de seu senhor no Estado Oriental ficam livres, conservando o
autor neste Estado, no serviço de sua estância, como o fez com outros
escravos seus como consta dos autos.83 (grifos meus)

Nesse sentido, ter uma boa rede de relações poderia ser crucial na comprovação ou
não da posse em um processo judicial. No entanto, nem sempre isso era suficiente. Por
exemplo, em um caso que será analisado no último capítulo deste trabalho, as testemunhas
apresentadas pelo Comendador Joaquim de Souza Breves, um dos mais poderosos
cafeicultores do Brasil imperial, depuseram todas contra ele, inclusive algumas que eram
suas agregadas.84
Ser socialmente reconhecido como possuidor, senhor, escravo ou livre também
envolvia estar imbuído de certa legitimidade social. A análise dos processos deixa entrever,
por exemplo, que extensões de terras muito grandes poderiam não ser consideradas
82
COWLING. Conceiving Freedom, pp. 145-148.
83
Processo n. 13.794, pp. 45-45v.
84
Processo n. 2.837.

32
legítimas pela comunidade local. Tristão e Lucia, por exemplo, procuraram argumentar
que, de tão extensas, as terras que Silva Prado e Maria diziam suas eram ilegítimas.

Os Apelados [Silva Prado e Maria], que desde 1825 aí estavam estabelecidos,


tinham se apossado de uma vasta superfície de 6 léguas de fundo, e de outras
tantas de frente. Parece pois que mesmo a vis adquirendi de um conquistador
devia estar satisfeita com tão vastos domínios. Pois bem, o desejo imoderado
dos Apelados não se deu por satisfeito com tão ampla superfície de ótimos
campos e matas de primeira sorte; a esses vastos domínios que não podem
visivelmente aproveitar, querem ainda juntar a pequena estância dos
Apelantes [Tristão e Lucia]. Hão de porventura os Tribunais do país consentir
que o pequeno patrimônio de uma família numerosa convenientemente
aproveitado e cultivado com interesse público e particular seja arrancado das
mãos de seus verdadeiros proprietários para ser incorporado às vastas
possessões dos Apelados, que jazem incultas, pois que é impossível a um só
estancieiro cultivar e aproveitar tão largas dimensões de terra?85

Acrescendo à ilegitimidade da posse e do domínio, estava o fato de terras tão


extensas não serem cultivadas. Terras não cultivadas, que não eram efetivamente
utilizadas, eram consideradas como subutilizadas pela comunidade e essa percepção
poderia chegar a um processo judicial, contribuindo para um possível fracasso no pedido
de reconhecimento judicial da posse.
Conseguir ter legitimidade e reconhecimento social costumava estar atrelado à
capacidade dos sujeitos históricos de performarem sua condição de possuidor, de senhor ou
de livre. Informava o direito de posse, portanto, o reconhecimento social e este variava
conforme à capacidade de que dispunham os sujeitos de, através do exercício de atos como
os que venho discutindo neste capítulo, convencer a sua comunidade que, de fato, eram
legítimos possuidores, legítimos senhores ou legitimamente livres.86
Na ação ajuizada por Silva Prado e Maria, um momento decisivo se baseou na
ausência de reconhecimento de que os réus fossem zelosos das terras em disputa. O juiz de
primeira instância reconheceu os autores como “legítimos senhores e possuidores”, pois,
afinal, se os réus assim se considerassem, teriam se oposto aos embargos.

85
Processo n. 1.385, pp. 251-251v.
86
Sobre o papel da performance em processos judiciais, nos Estados Unidos, ver GROSS. “Litigating
Whiteness” e GROSS. What Blood Won’t Tell, pp. 48-72.

33
Teixeira de Freitas não ignorou esse ponto da sentença de primeira instância:

Todos sabem que, quando a revolução invade um país, o medo, o susto, os


perigos possíveis, criam um estado de coisas anormal. O procedimento dos
homens então não pode ser explicado pelos motivos ordinários das ações.
[…] O fato de não ter o Embargante se oposto à penhora feita a requerimento
de Rafael Tobias de Aguiar, a qual compreendia a sua Estancia, nada
importa. Antes de tudo a certeza do resultado favorável da questão podia ter-
lhe aconselhado aquele procedimento; pois apesar da penhora até hoje tem
estado de posse da Estancia. E depois, não se pode dizer que ele
permaneceria sempre silencioso, porquanto à execução por parte de Tobias
não prosseguiu, e se ela prosseguisse, o Embargante teria ocasião de fazer
valer seu direito.87

Contestar o esbulho da posse era muito importante. Ainda no caso entre Silva
Prado, Maria, Tristão e Lucia, os autores procuraram demonstrar que, mesmo durante os
embargos, nunca haviam deixado de se considerarem donos da fazenda e de estarem
sempre ali por perto, mesmo quando nela não podiam residir. Para isso, juntaram, por
exemplo, um pedido endereçado ao Barão de Caxias, que então exercia aí o cargo de
Presidente da Província. Nessa petição, Silva Prado relatava a ocorrência do embargo e,
como não podia ser “esbulhado do direito de sua propriedade enquanto não se decida a
questão”, pedia para se estabelecer nas terras que pertenciam a sua filha. 88 Dessa maneira,
pretendia convencer o juiz que mesmo judicialmente afastado de sua propriedade, ainda se
considerava senhor e possuidor daquelas terras.
Como se vê, ser senhor, era ser percebido como zeloso de seu domínio. Essa noção
aparace, também, em outro caso:

[…] se a medição não ultrapassasse os limites do Embargante, não viria ele


de Minas com a notícia da usurpação, que se fazia de suas terras, não viria de
São João d’El Rei com quebra de seus interesses, com despesas, incômodos
de viagem; não viria sacrificar-se a novos dispêndios por [ilegível], e a todos
os inconvenientes, que deles resultam tão somente por conluio, e convite dos
outros confrontantes prejudicados, de quem não depende, de quem não podia
colher vantajosa recompensa a tantos incômodos, por serem os seus
87
Processo n. 1.385, pp. 274v-275v.
88
Processo n. 1.385, pp. 156-156v.

34
comprejudicados pessoas pobres, miseráveis, que pela sua pobreza, miséria, e
ignorância foram bigodeados pelo mais forte, e prepotente, sim pelo
Reverendo Embargado, que publicamente dizia levaria avante a medição por
qualquer modo que fosse feita, dizendo igualmente que daria dinheiro a esses
miseráveis, mesmo para impugnar-lhe a medição, impondo
superabundantemente generosidade, que lhe não é natural, pois que até agora
esperam por esse dinheiro.89

Do mesmo modo que era necessário parecer ser senhor de terras para pretender
garantir judicialmente o domínio sobre um terreno, era necessário parecer livre ou senhor
de escravos para pretender garantir judicialmente o domínio sobre uma pessoa. Nesse
sentido, para alguém que estava procurando defender a aquisição de sua liberdade por
posse, era essencial que as testemunhas atestassem que ela, de fato, vivia como livre.
Porém, nos processos analisados, era frequentemente mobilizada, pelos supostos senhores,
a estratégia de atacar pretensões à liberdade sob o argumento de que a pessoa cujo estatuto
jurídico estava sendo discutido havia sempre “vivido como escrava”. Ou seja, procurava-se
minar o pleito pela liberdade por meio do reconhecimento social da pessoa como escrava.
É possível observar essa estratégia no caso de João, Joaquim José e Manuel, que
analisarei com mais detalhe no último capítulo desta tese. Nele, argumentou-se que João,
soldado no exército de Montevidéu, era escravo, pois, se não o fosse, não teria aceitado
ajudar-lhe a carregar uma caixa: “Pois haverá exército algum que tenha soldados pretos,
em que os Chefes consintam que eles andem pela rua ao ganho como escravos?”.90
Do mesmo modo, o reconhecimento de determinadas atitudes como próprias de
escravos foi alegado no caso de Bento. Nele, os depoimentos das testemunhas procuraram
demonstrar que Bento sempre havia se comportado como escravo e que os membros da
família com a qual ele vivia agiam como seus senhores. Por exemplo, uma dessas
testemunhas afirmou:

[…] disse que indo algumas vezes à casa da Embargante para falar com o
filho desta, o referido José Moreira de Azevedo, aí viu o manutenido Bento
trabalhando no ofício de carpinteiro como escravo daquela, e em uma dessas
vezes o dito Moreira de Azevedo o chamou para trazer a ele testemunha um
copo com água, dizendo-lhe então, que era escravo de seu pai, e tinha sido
89
Processo n. 29, pp. 101-101v.
90
Processo n. 1.811, p. 105v.

35
comprado a uma senhora que morava na rua larga de São Joaquim, nada mais
disse deste. Reinquirido disse que a razão, pela qual ela testemunha entende
que o pardo Bento trabalhava nas obras a que acima se referia, como escravo,
é porque o viu vestido com roupa ordinária, e o viu descalço ao passo que as
outras pessoas que aí trabalhavam estavam calçadas com chinelos, e também
porque em uma das ocasiões em que ele testemunha foi a esse lugar, ou digo
lugar, ouviu o dito Moreira de Azevedo, ordenar ao pardo Bento que fosse
buscar um copo com água, por meio das seguintes expressões – Oh Bento,
vai buscar um copo com água, sendo o tom em que foram proferidas aquelas
expressões, um tom imperativo e [ilegível], como de um senhor, que manda a
um escravo, acrescendo que em seguida a este ato, e em resposta a uma
pergunta feita por ele testemunha, disselhe o dito Moreira de Azevedo em
presença do mesmo pardo sem reclamação alguma por parte deste, que sua
mãe o havia comprado.91

Algum tempo antes do ajuizamento do processo, Bento foi preso como escravo
fugido e Joaquina Maria Roza, que clamava ser sua senhora, foi buscá-lo na cadeia. Ao
chegar, Bento lhe pediu a benção. O curador, que também estava presente, então lhe disse
que se levantasse porque “você é um cidadão livre”. Posteriormente, no processo cível
analisado para este trabalho, esse fato foi trazido à tona por Joaquina, no intento de provar
sua performance de senhora sobre Bento. Ela, inclusive, alegou que, quando se inteirou da
fuga de Bento, colocou anúncios nos jornais, outro comportamento de uma senhora
“zelosa”.92
Outro comportamento associado à vida de escravo era, evidentemente, o
recebimento de castigos. Em outro processo judicial, fatos dessa natureza são alegados
como evidência da escravidão.

[…]sendo ele testemunha feitor na Fazendo do Réu [Francisco] haverão


cinco para seis anos aí havia um pardinho de nome Antonio que era filho da
Autora [Felisminda], […] e tanto o dito pardinho, como sua Mãe sempre
foram todos havidos por Escravos do Réu, tanto que ele testemunha indo de
feitor para a dita Fazenda lá encontrou a mulher do Réu que lhe detalhando o
serviço que devia fazer, assim como a Escravatura em que a havia de

91
Processo n. 12.098, pp. 74v-75v.
92
Processo n. 12.098, pp. 21-23 Para mais detalhes sobre esse caso e suas relações com a regulação jurídica da
escravidão no Brasil, ver DIAS PAES. Sujeitos da história, sujeitos de direitos, pp. 140-169.

36
empregar lhe dissera que todos eram cativos a exceção de uma Maria Rosa, e
Eva Maria, e que não obstante a Mãe do pardinho Antonio (que é a Autora)
estar no serviço da casa, contudo por ela podia mandar fazer o que fosse
preciso, e quando não o fizera a castigara pois que era tão cativa como eram
os outros, e tanto assim é que ele testemunha uma vez a castigou de vergalho,
e por outra a mandara fazer, por um preto escravo [ilegível].93

Ocorre que o Brasil do século XIX não era uma sociedade binária, dividida em
livres e escravos. Entre a escravidão e a liberdade, existia uma extensa gama de sujeitos,
com estatutos jurídicos específicos e, muitos deles, submetidos a outras formas de trabalho
compulsório que não a escravidão propriamente dita. 94 Eram alforriados condicionalmente,
escravos que possuíam parte de si mesmos, ingênuos, sexagenários, africanos livres, etc.
Para essas pessoas, o estatuto intermediário poderia, muitas vezes, auxiliar na
comprovação da liberdade, na medida em que poderiam ter mais autonomia do que um
escravo e, portanto, quiçá, dispusessem de mais meios para provar que “viviam como
livres”.
Por outro lado, os processos analisados também fazem referência a vários casos em
que essas pessoas, que viviam com um estatuto jurídico intermediário entre a escravidão e
a liberdade, por realizarem tarefas muito próximas às de um escravo, por ainda viverem de
formas que socialmente eram reconhecidas como “viver como escravo”, tinham o
reconhecimento de sua liberdade judicialmente negado. Como, em processos de definição
de estatuto jurídico, a comprovação da posse do estatuto costumava ser um ponto fulcral,
levar uma vida “intermediária” poderia facilmente ser percebido como levar vida de
escravo e, portanto, não dispor da posse da liberdade. Por exemplo, Beatriz Mamigonian
mostra como diversos africanos livres eram, na prática, tratados como escravos, realizando
tarefas similares às realizadas por pessoas submetidas à escravidão. Por isso, os africanos
livres corriam o sério risco de sofrer processos de escravização.95
Além dessas situações juridicamente intermediárias, determinados contextos sociais
e algumas configurações de trabalho tornavam mais complexa a identificação de uma
pessoa como livre ou como escrava.

93
Processo n. 866, pp. 72v-73.
94
Sobre experiências de trabalho compulsório, no Brasil do século XIX, ver MENDONÇA. “Sobre cadeias e
coerção”.
95
MAMIGONIAN. Africanos livres.

37
É o caso dos trabalhadores envolvidos em contratos de prestação de trabalho com
vistas a pagar dívidas contraídas para comprar suas liberdades. Explico: ao longo do século
XIX, foram promulgadas diversas leis para regulamentar os contratos de prestação de
serviços no Brasil Império: em 13 de setembro de 1830, em 11 de outubro de 1837 e em 15
de março de 1879.96 Esses contratos tinham como objeto declarado na legislação a
arregimentação de trabalhadores livres. Porém, a partir de pesquisa realizada em diversos
contratos de locação de serviços regidos por essa legislação, Marília Ariza identificou que
diversos “libertandos” eram signatários desses documentos. Esses eram escravos que
pediam adiantamentos de dinheiro a terceiros para comprar sua alforria, pagavam seus
senhores e, depois, engajavam-se em contratos de prestação de serviços para quitar a
dívida do adiantamento. De acordo com Ariza, esses arranjos de trabalho, geravam uma
situação de liberdade precária, na qual seguiam presentes determinados vínculos de
dominação escravista, como, por exemplo, restrição de mobilidade, a possibilidade de
transferência do contrato para outro locatário e a sujeição à penalidade de prisão. Nessas
situações, a garantia da liberdade comprada dependia da capacidade dos sujeitos de serem
reconhecidos como livres.97

Jactum lapidis: atos de contestação da posse

O outro lado da moeda do reconhecimento social da posse eram os atos de


contestação da mesma. De acordo com o posicionamento hegemônico entre os juristas
brasileiros oitocentistas e os do direito comum, os requisitos essenciais para que houvesse
proteção possessória e aquisição do domínio por posse eram que esta fosse: de boa-fé, com
justo título, contínua, ininterrupta, mansa, pacífica, inequívoca, pública e notória. Ou seja,
contestar a posse de alguém tinha efeitos jurídicos. Essa contestação poderia bloquear o
reconhecimento ou a proteção judicial conferidos à posse. Por isso, pela arquitetura
jurídica vigente, era muito importante que alguém que se sentisse esbulhado em sua posse
protestasse contra o esbulho. E, mais do que presente nas páginas dos livros jurídicos, essa
noção de que a contestação do esbulho era necessária havia sido socialmente incorporada

96
BRASIL. Lei de 13 de setembro de 1830, BRASIL. Lei n. 108 de 11 de outubro de 1837, BRASIL. Decreto
n. 2.827 de 15 de março de 1879. Para uma análise dessa legislação, ver ARIZA. O ofício da liberdade, pp.
103-110 e MENDONÇA. “Sobre cadeias e coerção”.
97
ARIZA. O ofício da liberdade.

38
e, por vezes, manifestava-se de maneira violenta.98 Não foi diferente no conflito travado
por Silva Prado e Maria contra Tristão e Lucia.
Em setembro de 1849, ou seja, quatro anos antes de se iniciar o processo civil
analisado neste capítulo, Silva Prado ajuizou uma queixa crime contra Tristão e outros
cinco réus, por danos a seu suposto terreno. Ele afirmou que procurava o juízo “na
esperança de ver punido semelhante atentado ofensivo ao sagrado direito de propriedade,
às leis e à boa ordem” e começou a relatar sua versão dos fatos. Estando a casa de sua
fazenda penhorada, ela tinha sido incendiada e suas telhas roubadas. A casa ficou destruída
por três meses, até que Silva Prado mandou invernar uma tropa nos campos do local e
ordenou que seu filho Rafael da Silva Prado construísse uma nova morada no mesmo lugar
da casa queimada. A determinação foi cumprida e Rafael fez uma nova casa sobre os
esteios da que havia sido queimada, com madeiras que tinham escapado ao incêndio.
Enquanto Rafael e outras três pessoas99 terminavam a cobertura da casa, Tristão, “vindo
oculto por uma canhada100 de surpresa”, acompanhado de mais cinco pessoas 101, ali
apareceu. Todos os seis estavam armados com espingarda, armas de fogo, espadas e facas.
Tristão, então, teria dito a Rafael que tinha vindo decidido a derrubar a casa e mandou que
seus companheiros cortassem os novos esteios a machadadas. Rafael, sem embargo,
reagiu:

Sabe Deus Ilustríssimo Senhor que mais atrocidades não cometeria o


querelado [Tristão] se não ficasse acovardado com o expediente tomado pelo
filho do queixoso de imediatamente mandar chamar todos os Peões 102 que
nesse momento estavam dispersados nos arredores da casa cuidando de seus
serviços.103

98
Sobre o enraizamento das doutrinas possessórias entre as populações ibéricas, na Europa e na América, ver
HERZOG. Frontiers of Possession.
99
No processo, não há esclarecimentos se essas outras pessoas que estavam ajudando na construção da casa
eram livres ou escravas.
100
Canhada é um terreno plano entre duas elevações.
101
De acordo com Silva Prado, essas cinco pessoas seriam: “Faustino Antonio Fernandes, sobrinho e comensal
de Tristão José de Oliveira; José Cubas, seu capataz; um Fulano Pereira, pai do seu comensal; o pardo velho
Joaquim Roberto morador nos [ilegível]; e um filho deste, cujo nome ignora-se”. Processo n. 1.385, p. 165v.
102
Para uma descrição do universo dos “peões”, no Brasil meridional, ver OSÓRIO. “‘Estancieiros’ e
‘lavradores’”.
103
Processo n. 1.385, p. 165.

39
De acordo com o depoimento de uma testemunha, ao ver que Rafael saía para
chamar outras pessoas, Tristão se retirou, com os outros cinco, “assegurando que no dia
seguinte com sua gente voltaria para botar fora a Tropa e destruir a casinha e
mangueira”.104
Por fim, Silva Prado arrematou a queixa dizendo que esse feito violento era
comentado em toda a vila e pediu a condenação de Tristão e seus cinco companheiros
pelos crimes de dano e de ameaças.
O incêndio da casa não foi o único momento de conflito violento entre Silva Prado,
Maria, Tristão e Lucia antes do ajuizamento do processo cível. Alguns dias antes de se
iniciar a ação cível, Silva Prado mandou avisar aos réus que retirassem seus animais das
terras em disputa. Os réus não retiraram e, no dia seguinte, Silva Prado foi – de acordo com
algumas versões, acompanhado de outros vinte homens armados, e, de acordo com outras,
na companhia do Inspetor de Quarteirão – até o estabelecimento dos réus, abriu um
cercado de animais e deixou que eles se dispersassem para o campo aberto. Diante desse
fato, os réus Tristão e Lucia se dirigiram ao juiz municipal:

[…] acham-se no direito incontestável de poderem-se desforçar contra os


forçadores por haverem estes verdadeiramente cometido uma violência,
arbitrariedade, e finalmente um esbulho; por isso requer a VS que se sirva
mandar passar Mandado a fim de que um dos oficiais de justiça deste juízo
acompanhe os suplicantes no ato de desforço, não só para fazer respeitar a
boa ordem desse ato como mesmo para certificar o que aí se passar.105

Com esse pedido, Tristão e Lucia queriam praticar “desforço”, ou seja, “emendar a
força feita a alguém. Desforçar-se quer dizer meter-se em posse daquilo de que fora
esbulhado”.106 O ato seria praticado por eles. A presença dos agentes estatais seria para
garantir a ordem e certificar o ato. Para justificar seu pedido, remeteram-se às Ordenações
Filipinas, livro 4º, título 58, que determinava: “[…] se um for forçado da posse de alguma
coisa, e a quiser logo por força recobrar, podê-lo-á fazer”.107 Ou seja, a própria legislação

104
Processo n. 1.385, p. 170v.
105
Processo n. 1.385, p. 187.
106
Verbete “desforçar”, em SOUSA. Esboço de hum diccionario juridico, theoretico, e practico, tomo 1, sem
página.
107
ALMEIDA. Codigo philippino, livro 4, p. 852.

40
autorizava atos de força para a contestação e recuperação da posse em nome próprio. Essa
norma foi reiterada na Consolidação das leis civis, de Freitas, advogado dos réus Tristão e
Lucia na apelação: “Concede-se mesmo, que o possuidor esbulhado possa desforçar-se, e
recuperar por autoridade própria sua posse, contanto que o faça logo”. O espaço de tempo
“logo” em que o desforço poderia ser executado dependeria de como o juiz avaliasse as
circunstâncias do esbulho, considerando, também, a distância da residência das
autoridades.108
Outro dispositivo normativo que autorizava atos de contestação da posse era o §4º,
título 78, livro 3º, das Ordenações Filipinas:

[…] quando algum edifica novamente alguma obra, que ao outro é


prejudicial, tolhendo-lhe a vista de suas casas, ou outra servidão, que lhe seja
devida, pode aquele, a que assim se tolhe a vista, ou servidão, por si
denunciar ao edificante, lançando certas pedras na obra, segundo Direito e o
uso da terra, que mais não faça naquela obra, pois a ele é prejudicial.109

Os juristas chamavam a possibilidade de denunciar um suposto esbulho por meio


do lançamento de pedras de jactum lapidis. Porém, na primeira edição da Consolidação
das leis civis, de Freitas, o autor, apesar de ter reiterado, no artigo 933,110 a possibilidade de
a parte, lançando pedras à obra, poder denunciar o edificante, ressalvou, em nota, que essa
norma não estava mais em uso. Antonio Pereira Rebouças criticou esse posicionamento de
Freitas. Para ele, estava em vigor o direito de se proceder a embargo “simbólico” por meio
do lançamento de pedras. Citou, inclusive, um exemplo: ao proceder-se às obras do novo
prédio da Alfândega do Rio de Janeiro, a proprietária de um trapiche vizinho se sentiu
prejudicada, lançou três pequenas pedras à obra, perante testemunhas, e protestou “em
nome da Lei aos obreiros, que toda a continuação seria atentatória”. De acordo com
Rebouças, os obreiros de fato pararam a obra, que ficou embargada. E acrescentou:
“Participou-se dessa ocorrência ao Inspetor da Alfândega, que então era um jurista notável
por sua ilustração; e, apresentando-se ele, uma vez informado do ocorrido, acedeu,
respeitando o fato pelo direito”. Por fim, Rebouças concluiu que o lançamento de pedras

108
FREITAS, Consolidação das leis civis, pp. 489-490.
109
ALMEIDA. Codigo philippino, livro 3, p. 688.
110
“Art. 933. A parte prejudicada, lançando pedras na obra, se for este o uso do lugar, pode por si denunciar ao
edificante, que na edificação não prossiga”. FREITAS, Consolidação das leis civis, p. 545.

41
era remédio “pronto, eficaz, e utilíssimo”, que evitaria a edificação de uma obra
clandestina antes que se pudesse recorrer a mandado judicial. Freitas foi convencido e
aceitou as críticas de Rebouças.
O ato de atirar pedras também foi praticado por Joanna Maria da Conceição contra
Anastacio, Simão e João. Considerando que Anastacio, Simão e João estavam esbulhando
sua situação de plantações com derrubada de matos, Joanna protestou lançando três pedras
contra “casinholas” que eles estavam construindo no local. Joanna ressaltou que, naquela
ocasião, havia apenas os esteios das casas. Ou seja, o embargo por lançamento de pedras
tinha ocorrido bem no início da construção, o que demonstraria que ela não havia
consentido, em nenhum momento, àquele ato que considerava como um esbulho.111
Desforçar-se e jogar pedras visando a proteger uma posse não eram apenas hábitos
culturais nem sequer atos sociais convencionais. Eram medidas que o direito reconhecia
como legítimas e aptas a constituir e preservar a posse e o domínio sobre um bem. Com o
avanço do século XIX, o nível de violência admitido nesses atos foi sendo controlado, seja
pela exigência de que estivessem presentes autoridades estatais quando de seu exercício,
seja por sua caracterização como atos simbólicos.
Essa transição é perceptível nos processos, mas, também, em outro tipo de fonte.
No Brasil do século XIX, havia diversas maneiras de se difundir normas jurídicas. Os
livros eram um dos suportes midiáticos dessa difusão. Os livros jurídicos publicados no
Brasil oitocentista não eram só manuais ou códigos comentados. Existia, também, um
grande número de livros “práticos”, que tinham como objetivo popularizar normatividades.
Esse tipo de literatura jurídica pragmática cumpriu a função de consolidar normas e
concepções jurídicas no discurso popular.112 Por exemplo, o Manual do edificante do
proprietario e do inquilino, “acomodado ao foro do Brasil” por Antonio Ribeiro de
Moura.113 No prefácio, o autor deixa claro que, apesar das críticas que está seguro de que
irá sofrer a respeito do caráter (não) científico do livro, seu objetivo principal é fazer
conhecer, aos proprietários, edificantes e vizinhos, seus direitos e obrigações:

111
Processo n. 11, pp. 38-39v.
112
Para uma análise do papel da literatura pragmática na difusão de normatividades, durante o período colonial,
ver DANWERTH. “La circulación de literatura normativa pragmática en Hispanoamérica”.
113
O livro não possui data de publicação. No entanto, foi citado por Freitas, na terceira edição da Consolidação
das Leis Civis, que é de 1876. FREITAS. Consolidação das leis civis, p. 545.

42
[…] não é um direito novo, é somente um livro novo, no qual se expõem e se
reduzem em linguagem, senão em estilo, com método e clareza todos os
direitos e obrigações do edificante, do seu vizinho, e de algum terceiro que
possa intervir nas questões da edificação, mostrando-se as leis e as
disposições do direito que estabelecem esses direitos e obrigações, assim
como os que assistem aos proprietários e aos inquilinos, e ultimamente as
ações, e remédios de direito, de que todos podem usar para fazer valer os seus
direitos e obrigações recíprocas. Enfim, a utilidade de um trabalho desta
ordem salta aos olhos, é de primeira intuição, para escusar a demonstração;
limito-me portanto a dizer somente, que toda a sociedade está dividida em
proprietários e inquilinos, e daí a necessidade absoluta de conhecerem todos
os seus direitos de edificação e de alugueres de casas.114

E continua afirmando que o objetivo do livro era que “a mais curta inteligência”,
conhecesse seus direitos e os remédios legais disponíveis para protegê-los sem que
precisassem “consultar a advogado”.115 Nessa linha, de divulgação do direito vigente,
Moura reafirmou a possibilidade de se contestar um ato considerado esbulhador com o
arremesso de pedras. No entanto, ele frisou que, logo após o ato de se arremessar as pedras,
o ofendido deveria buscar os meios judiciais, ajuizando ação de obra nova. Ou seja, Moura
reafirmava uma prática do período do direito comum – jactum lapidis –, mas também
ressaltou que ela por si só não bastaria: era necessária a intervenção do aparato estatal no
caso.116

A posse e a arquitetura jurídica da exclusão

A análise do processo ajuizado por Silva Prado e Maria contra Tristão e Lucia deixa
entrever que a regulamentação jurídica das relações entre pessoas e coisas, no Brasil do
século XIX, possuía um forte viés racial. Nem todas as pessoas eram hábeis a possuir nem
qualquer pessoa poderia adquirir domínio pelo exercício de atos possessórios. Esse regime
de exclusão se relacionava com a origem étnica de alguns grupos sociais. Em algumas
situações, o racismo na atribuição de direitos sobre as coisas era explícito, como no caso de
determinados grupos indígenas. Em outras, o racismo era velado, como no caso dos
114
MOURA. Manual do edificante do proprietario e do inquilino, pp. VI-VII.
115
MOURA. Manual do edificante do proprietario e do inquilino, pp. XVIII-IX.
116
MOURA. Manual do edificante do proprietario e do inquilino, pp. 329-330.

43
agregados. Nesta seção, abordo alguns aspectos do processo de osntrçuão desses regimes
de exclusão ao longo do século XIX.

O não reconhecimento dos atos possessórios indígenas e seu extermínio

Silva Prado e Maria afirmaram que eram os primeiros possuidores dos terrenos e
que, na época em que ali chegaram, as terras eram devolutas e estavam infestadas de
“selvagens”. Esse tipo de afirmação tinha dois efeitos. Em primeiro lugar, desconsiderava
que as populações indígenas que habitavam a região exerciam atos de ocupação, não
considerando tais atos como hábeis a constituírem atos possessórios juridicamente
reconhecíveis. Silva Prado e Maria teriam sido os primeiros “possuidores” das terras e os
índios que lá estavam, de acordo com esse raciocínio, não as possuíam. Em segundo lugar,
ao longo do processo, lutar contra os “bravios” foi apresentado pelos autores como um dos
atos possessórios que deveria conduzir ao reconhecimento judicial de sua pretensão sobre o
terreno da Fazenda São Joaquim da Boa Vista. Dentre os atos possessórios por eles
elencados para fundamentar seu pedido, não estava somente o “plantar mangueiras”, mas,
também, ter matado os índios que habitavam o local.
Esse tipo de argumentação – que desconsiderava os atos de ocupação de populações
indígenas e que indicava o extermínio delas como prova de posse – não só não foi
contestado por nenhuma das partes, como foi reiterado por outros sujeitos ao longo do
processo e mesmo antes dele. Por exemplo, quando pediu, ao Presidente da Província, a
concessão das datas de terra que ele e seus filhos ocupavam, Silva Prado argumentou:

[…] como o suplicante se julga com razão de merecer para seus filhos, essa
concessão, não só em razão da posse longa, não interrompida, que tem nessas
terras, como por ser o suplicante o primeiro Povoador daqueles lugares,
inacessíveis a todos, no tempo em que ali se estabeleceu o suplicante, pelas
contínuas invasões dos Bugres.117

Também as testemunhas, ao longo de seus depoimentos, atestaram que, quando os


autores se estabeleceram na região, os campos eram “devolutos e bravios” e “infestados

117
Processo n. 1.385, p. 64v. “Bugres”, palavra que, em geral, referia-se aos indígenas não-cristãos, também era
utilizada, no século XIX, para se referir aos Kaingang, grupo indígena que ocupava regiões das províncias de
São Paulo e de São Pedro do Rio Grande do Sul.

44
pelos selvagens”. Os autores, portanto, teriam sido os “primeiros” a ocuparem aqueles
terrenos, o que teriam feito às custas de muitos sacrifícios, considerando o “perigo do
lugar”.118
O juiz Fernando França também tratou com normalidade as referências feitas ao
extermínio dos indígenas e, em sua sentença, considerou provado que os autores tinham
sido os primeiros possuidores dos terrenos que, antes de sua chegada, eram “campos ermos
e devolutos, sujeito à incursão dos Selvagens”.119
Essas referências aos indígenas não foram uma excepcionalidade do processo
ajuizado por Silva Prado e Maria contra Tristão e Lucia. Em outros processos, o mesmo
tipo de referência aparece. Por exemplo, quando Magdalena Maria de Jesus se contrapôs a
um processo de demarcação que a prejudicaria, ela afirmou, como fundamento de sua
contestação:

Dizem Magdalena Maria de Jesus, e seus herdeiros emancipados, que eles


estão de posse haverá trinta e sete anos de certas porções de terras na
paragem chamada moquém Aleixo por posses que delas tomou o seu falecido
Pai Aleixo Gomes Vieira fazendo Estradas Públicas povoando-se por cuja
razão tão grandes Sertões de donde ainda se afugentaram muitos Índios que
havia, e que tanto dano causava vindo os outros ficar domésticos finalmente.
Estão os Suplicados nos seus estabelecimentos Empregados na Agricultura
com grande desvelo pagando os competentes dízimos a Sua Alteza Real.120

Magdalena, portanto, argumentava que seu pai havia tomado posse daquelas terras,
abrindo estradas,121 povoando o local e expulsando os índios, sendo que alguns deles
acabaram por serem “domesticados”. Seu pai Aleixo tinha sido o primeiro povoador do
local, não os índios que aí já se encontravam quando ele chegou.122
A bibliografia latino-americana que trata dos processos de expropriação das terras
indígenas é extensíssima. É comum que esse processo de expropriação seja apresentado
118
Processo n. 1.385, p. 118v-132.
119
Processo n. 1.385, p. 191v.
120
Processo n. 29, p. 72.
121
De acordo com Soraia Dornelles, nas áreas de expansão agrícola, a abertura de estradas foi uma estratégia
frequente na tentativa de fazer com que as populações indígenas recuassem para o interior. DORNELLES. A
questão indígena e o Império, p. 24.
122
As terras referidas se localizavam na cidade de Barra Mansa, comarca de Resende, Província do Rio de
Janeiro.

45
por meio da dicotomia propriedade comum (ou comunal) versus propriedade individual.
Nesses trabalhos, o conceito de propriedade individual é retratado como uma categoria
europeia “atemporal”, no sentido em que esses autores não costumam diferenciar as formas
de apropriação territorial presentes no direito comum daquelas construídas pelo direito
liberal.123 Assim, a forma primordial de relação jurídica entre as pessoas e as coisas que
teria chegado à América, junto com os europeus, teria sido a propriedade individual. Ora,
como argumentei na introdução deste trabalho, a noção de propriedade individual não
existia no sistema do direito comum. Essa forma de relação jurídica entre as pessoas e as
coisas foi sendo, paulatinamente, construída ao longo dos séculos, tomando forma,
principalmente, durante o século XIX. Por isso, é errôneo supor que o instituto jurídico da
propriedade individual cruzou o Atlântico, juntos com as caravelas, no século XVI.
Recentemente, alguns historiadores vêm criticando essa dicotomia. Karen Graubart
identificou esse problema em parte da historiografia e ressaltou que essa perspectiva
obscurece a existência de práticas heterogêneas de uso e apropriação de terras na América
colonial.124 Já Allan Greer, ao criticar a perspectiva de que o processo de apropriação da
terra durante a colonização da América foi caracterizado pela propriedade individual,
ressalta que “não havia nada parecido com controle pessoal e exclusivo sobre a terra em
nenhum lugar da Europa na época de Colombo, e esse continuou, fundamentalmente,
sendo o caso três séculos depois”.125 Também Manuel Bastias Saavedra, analisando o caso
do Chile, mostra que, no final do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX,
ainda era o arcabouço jurídico do direito comum que operava nas vendas de terras
envolvendo indígenas. Nesse contexto, as noções de propriedade individual e contratos
estavam ausentes.126
Numa tentativa de identificar os mecanismos jurídicos complexos que levaram à
exclusão de determinadas populações do acesso à terra, existem pesquisas sendo feitas
sobre a Austrália, que mostram como foi construída uma arquitetura jurídica sofisticada
para ensejar e justificar a expulsão de determinados grupos indígenas de suas terras. Aí,

123
Por exemplo, DE LA PUENTE LUNA. “Cuando el ‘punto de vista nativo’ no es el punto de vista de los
nativos”; ILLANES OLIVA. “La cuarta frontera”; MÍGUEZ NÚÑEZ. Terra di scontri; MOTA. “Sesmarias
e propriedade titulada da terra”; PARISE. Ownership Paradigms in American Civil Law Jurisdictions; e
TELL. Córdoba rural, pp. 329-333.
124
GRAUBART. “Shifting Landscapes”.
125
(tradução minha) GREER. Property and Dispossession, p. 18.
126
BASTIAS SAAVEDRA. “The Lived Space”.

46
durante o século XIX, a teoria jurídica da terra nullius foi ressignificada de maneira que a
ocupação dos aborígenes sobre as terras não fosse reconhecida. As autoridades coloniais e
os juristas ingleses consideraram que, como os aborígenes não possuíam técnicas de
agricultura similares às europeias, eles não ocupavam a terra de maneira efetiva. Sem
ocupação efetiva, não haveria propriedade e o território seria, portanto, terra nullius, terra
de ninguém. Assim, a doutrina jurídica criou a ficção de que os aborígenes eram os
habitantes, mas não os proprietários das terras. Os ingleses e não os aborígenes tinham sido
os que primeiro realizaram os atos que ensejariam a conversão da ocupação da terra em
propriedade sobre ela. Dessa maneira, a Coroa britânica adquiriu o domínio sobre as terras
australianas e, depois, o passou para os colonos. Em suma, a origem de todos os títulos de
propriedade sobre terras australianas se fundava na desconsideração da ocupação dos
aborígenes como posse válida. Mais tarde, com a implantação do Sistema Torrens, esses
títulos se consolidaram, tornando-se incontestáveis e apagando o passado de apropriação
dos aborígenes sobre as terras australianas.127
Nessa linha, por meio da análise dos processos desta pesquisa, é possível identificar
que determinadas populações indígenas foram excluídas do acesso à terra, no Brasil, por
meio da não identificação de sua ocupação como atos possessórios válidos e passíveis de
reconhecimento judicial. Ou seja, por vezes, não era a propriedade individual que estava
em contraposição com as relações que os grupos indígenas estabeleciam com a terra. Por
muito tempo, foi a interpretação dada a institutos do direito comum, no Brasil, que atuou
na exclusão dos indígenas. Ainda é necessário avançar as investigações sobre esse tema,
mas é provável que esse mecanismo de exclusão, pelo não reconhecimento jurídico da
posse, fosse seletivo, ou seja, fosse direcionado apenas a alguns grupos indígenas, tidos
como “selvagens”, “bravios”, como, por exemplo, os chamados “bugres”.
Ao longo do século XIX, existia, no Brasil, uma tensão a respeito da percepção que
as elites tinham dos indígenas. Havia aqueles que, na esteia do romantismo brasileiro,
consideravam-nos como “bons selvagens”. Mas, também, eram muito fortes concepções
segundo as quais os indígenas eram uma representação do atraso e um entrave à
civilização, devendo ser fisicamente exterminados caso se opusessem aos processos de

127
O Sistema Torrens se baseia em dois princípios: de um lado, todo registro de propriedade disponível
publicamente reflete, de maneira acurada, os interesses que existem sobre determinado terreno; e, de outro,
os interesses que não estão representados no registro não obrigam ou afetam terceiros e os subsequentes
titulares do terreno. Os títulos produzidos dentro do Sistema Torrens são incontestáveis. BANNER. “Why
Terra Nullius?” e KEENAN. “Smoke, Curtains and Mirrors”.

47
aldeamento e incorporação à “sociedade brasileira”. Esta última concepção foi construída e
reforçada no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), do qual
diversos juristas de elite eram sócios e participavam, ativamente, das discussões.128
A noção de que havia grupos indígenas “selvagens” e “bravios” ocupando
determinadas porções do território do Brasil Império era difundida entre vários juristas. Na
década de 1860, o jurista e político Cândido Mendes de Almeida publicou o Atlas do
Imperio do Brazil. No mapa referente à província de São Paulo, há uma região denominada
“terrenos ocupados pelos Indígenas ferozes”.

Figura 2 – Mapa da Província de S. Paulo (1868)

Fonte: ALMEIDA, Atlas do Imperio do Brazil, imagem XVII (detalhe).

De acordo com a contracapa do Atlas, ele era destinado à instrução pública, em


especial aos alunos do Colégio Pedro II, onde se formaram diversos juristas do Império e
do período republicano.
Assim, circulava, entre os juristas brasileiros, concepções segundo as quais havia
grupos indígenas que eram inferiores e que, caso não se incorporassem à “civilização”,
poderiam ser exterminados, uma vez que representavam um entrave ao desenvolvimento
da sociedade brasileira. Por terem essas características, os atos por eles realizados não
seriam hábeis a produzir efeitos jurídicos sobre as terras ocupadas. Afinal de contas, como
128
SCHWARCZ. O espetáculo das raças, pp. 129-184 e TREECE. Exiles, Allies, Rebels. Sobre a elaboração de
teorias raciais, nas faculdades de direito, no final do século XIX, ver SCHWARCZ. O espetáculo das raças,
pp. 185-245.

48
ressaltou o jurista e literato José de Alencar, 129 não era qualquer ato de apropriação que
geraria efeitos jurídicos, apenas aqueles que representassem trabalho, a forma legítima de
extensão da personalidade jurídica. Era o “trabalho” o que, afinal, distinguiria a ocupação
hábil a gerar efeitos jurídicos daquela empreendida, por exemplo, “do modo animal de
adquirir”.130
Os tipos de ocupação da terra dos índios tidos como “bravios” – em especial, os
Botocudos e os Kaingang – não eram considerados “trabalho”. A Lei de Terras, em seu
artigo 6º, havia determinado que não seria considerado como princípio de cultura “os
simples roçados, derribadas ou queimas de matos ou campos, levantamentos de ranchos e
outros atos de semelhante natureza, não sendo acompanhados da cultura efetiva e morada
habitual”.131 De acordo com Soraia Dorneles, a interpretação desse artigo foi feita no
sentido de considerar os modos indígenas de ocupação da terra como insuficientes para
gerar reconhecimento de “princípio de cultura”.132
Também o jurista Perdigão Malheiro tratou de forma explícita dos índios. Pouca
ênfase foi dada à questão fundiária. Porém, em um momento de seu livro, ele explicita o
processo pelo qual outros grupos de indígenas – os aldeados – foram perdendo o
reconhecimento de seu acesso à terra. Pouco antes de ressaltar que “os Índios bravos
continuam a incomodar com suas correrias, assaltando as fazendas, os viandantes, os
povoados”, ele ressaltou que:

Outras [aldeias] têm sido abandonadas pelos Índios que ou se confundem na


massa geral da população, e assim se tem já declarado oficialmente dando-se
por extintas as aldeias, ou fogem para o sertão, para os seus mocambos,
preferindo a vida selvagem, de inteira e primitiva liberdade, aos cômodos da
vida civilizada, que para eles são verdadeiros incômodos, vexames, e
constrangimento. As terras abandonadas, como da Nação, têm sido mandadas
incorporar nos bens nacionais, e reputar terras públicas devolutas para serem
aproveitadas na forma da Lei.133

129
Para uma análise da maneira como os indígenas foram retratados, na literatura de José de Alencar, ver
TREECE. Exiles, Allies, Rebels, pp. 147-212.
130
ALENCAR. A propriedade, pp. 121-132.
131
BRASIL. Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850.
132
DORNELLES. A questão indígena e o Império, pp. 50-51.
133
MALHEIRO. A escravidão no Brasil, tomo 2, pp. 147-148.

49
Esse processo de declaração das terras dos aldeamentos como pertencentes ao
patrimônio do Estado também foi descrito por Dornelles. No século XIX, as terras dos
aldeamentos indígenas foram declaradas devolutas. Como o objetivo dos aldeamentos não
era preservar o modo de vida dos índios, mas promover sua “integração” ao resto da
população, à medida que eles eram extintos, o Estado reincorporava esses terrenos e
poderia dispor deles como bem aprouvesse, por exemplo, vendendo-os a particulares. Os
indígenas aldeados se viram às voltas, também, com outro tipo de apropriação de suas
terras: posseiros que aí se instalavam, tinham sua posse reconhecida e vendiam as terras do
aldeamento gerando uma cadeia de documentos que dificultava um futuro reconhecimento
daqueles terrenos como pertencentes ao aldeamento.134
As construções jurídicas que restringiram o acesso dos grupos indígenas às terras
variaram ao longo dos séculos, dependendo das dinâmicas locais e econômicas, bem como
das tensões e negociações entre os diversos grupos, o resto da população e os agentes do
governo. Havia variação, também, de acordo com os grupos envolvidos. Grupos étnicos
diversos eram tratados de maneiras diferentes pelos sucessivos governos. 135 Nesta seção,
procurei ressaltar uma dessas construções: a interpretação da teoria possessória. Essa
interpretação tinha tanto o efeito de desconsiderar a apropriação indígena como posse,
quanto o de considerar o extermínio dessa população como evidência de posse. Essa
interpretação, sem embargo, não se aplicava irrestritamente a qualquer grupo indígena, mas
tinha um viés racial, na medida em que incidia sobre os grupos considerados “bravios”
que, no Brasil oitocentista, eram, basicamente, os Botocudos e os Kaingang.
Apesar de frequentemente não terem seus atos reconhecidos como “trabalho”, o
fato é que a mão de obra indígena foi utilizada de maneira intensa durante o Império. Ao
longo do século XIX, eles assumiram diversos serviços que possibilitaram a expansão da
ocupação territorial e da fronteira agrícola, como abertura de estradas, a retirada de matos
para a abertura de caminhos, serviços de navegação dos rios, corte de madeiras, edificação,
guias e serviços domésticos e trabalhos em fazendas. Neste último caso, havia indígenas

134
DORNELLES. A questão indígena e o Império. Sobre conflitos entre índios aldeados, posseiros e sesmeiros,
nas primeiras décadas do século XIX, ver MACHADO. Entre fronteiras, pp. 167-236. Para o apossamento
de terras do aldeamento de São Nicolau do Rio Pardo, na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, ver
MELO. A aldeia de São Nicolau do Rio Pardo, pp. 95-103.
135
Ver, por exemplo, CORRÊA. Paisagens sobrepostas, MACHADO. Entre fronteiras, MELO. A aldeia de
São Nicolau do Rio Pardo, pp. 95-103, PINTO. A hidra de sete bocas, pp. 129-199. Para uma análise das
diversas políticas indigenistas adotadas, pela Coroa portuguesa, durante o período colonial, ver GARCIA. As
diversas formas de ser índio, LANGFUR. The Forbidden Lands, MONTEIRO. Negros da terra.

50
trabalhando como agregados, uma outra categoria jurídica que gerava exclusão do acesso à
terra.136

Os agregados, a posse e a ideologia senhorial

“Uma fazenda grande é um pequeno reino”. Essa é uma das muitas frases
eloquentes do Manual do agricultor brazileiro, de Carlos Augusto Taunay.137 Os manuais
de fazendeiro foram um gênero literário bastante em voga no Brasil do século XIX. Dentre
diversos capítulos sobre conhecimentos botânicos e técnicas de agricultura, esses manuais
dedicavam inúmeras páginas ao governo dos escravos e dos demais trabalhadores e
dependentes das grandes propriedades rurais.138 Para ser um reino, a fazenda precisaria ter
uma população para além de seu dono – o rei – e seus familiares mais próximos. Na
sociedade brasileira, esse “reino” era composto pela família estendida dos proprietários,
pelos escravos, pelos libertos que permaneciam na região após a alforria, por trabalhadores
livres e por diversos outros dependentes. Muitos dependentes trabalhavam nas terras das
fazendas ou contíguas a elas e seu estabelecimento no local poderia ser feito por meio de
diversos arranjos, com maior ou menor proteção jurídica. Um desses arranjos eram os
agregados.
A questão dos “agregados” foi central nas discussões e no desfecho do processo
ajuizado por Silva Prado e Maria contra Tristão e Lucia, relativamente às terras da Fazenda
São Joaquim da Boa Vista. Silva Prado e Maria tentaram impedir que os atos praticados
por Tristão e Lucia fossem considerados como atos possessórios sob o argumento de que
estes teriam ido aí residir na condição de agregados de seu cunhado Salvador Lopes de
Vargas, que, por sua vez, ocupou o local graças “ao favor” concedido por Silva Prado.

[…] [os réus] nem eram chefes de casa quando foram habitar nos terrenos
denominados, e sim agregados e adidos à família de seu cunhado o finado
Salvador Lopes de Vargas, que no caráter de agregado dos Autores, e por seu
favor se estabeleceu e viveu no Capão Grande, continuando ali os Réus
depois de sua morte sem nenhuma pretensão de se apropriarem, e por

136
DORNELLES. A questão indígena e o Império, pp. 132-186.
137
TAUNAY. Manual do agricultor brazileiro, p. 118.
138
MARQUESE. “A administração do trabalho escravo nos manuais de fazendeiro do Brasil Império”.

51
contrário reconheciam direta e indiretamente, por obras e palavras o direito
possessório dos Autores.139

Tristão e Lucia, por sua vez, tentaram argumentar que não eram agregados e,
portanto, seus atos possessórios seriam válidos para que adquirissem o terreno ocupado por
prescrição.

[…] muito embora queiram os Autores [Silva Prado e Maria] dizer que os
Réus [Tristão e Lucia] vieram na companhia de Salvador Lopes de Vargas, e
que este pedira aos Autores para se arranchar no capão-grande, todavia os
Réus não eram fâmulos de Vargas, moravam em sua casa separada,
respondiam por si e não tinham Tutor para por eles responder, e demais
quando Vargas estivesse de favor (o que se nega) porque os Autores sendo
tão exigentes como são deixaram de munir-se de documentos para a todo
tempo provar que Vargas e os Réus eram seus agregados; ainda mais que
falecendo o dito Vargas e sua viúva retirando-se como de fato retirou-se, qual
a razão porque os Autores nunca procuraram fazer com que os Réus
reconhecessem o domínio que agora querem ter, tendo-se passado não menos
de dezessete anos?140

“Agregado” era um termo corrente na língua portuguesa. De acordo com o


dicionário de Moraes, um dos sentidos da palavra “agregar” era receber na família, estar
acostado à família. Já no dicionário de Bluteau, “agregar-se a alguém” era tomar por
amigo, seguir o seu partido.141 Apesar de não ter encontrado nenhuma pesquisa que aponte
a existência recorrente de agregados nas estruturas sociais estabelecidas nos territórios
europeus de Portugal, a figura do agregado era encontrada em Benguela, com o mesmo
sentido desses dicionários, de agregado a um grupo familiar. Ao analisar listas de
habitantes e mapas populacionais de Benguela, nos últimos anos do século XVIII, Roberto
Guedes identificou que sua elaboração seguia critérios de dependência e, neles, os
“agregados” apareciam como uma das categorias organizativas, ao lado dos “cabeça”,

139
Processo n. 1.385, pp. 93-93v.
140
Processo n. 1.385, p. 182.
141
BLUTEAU. Vocabulario portuguez, e latino, tomo 1, p. 168 e SILVA. Diccionario da lingua portugueza,
tomo 1, p. 41.

52
“cônjuge”, “filhos” e “escravos”. A documentação também indica que parte desses
agregados eram negros forros.142
Na América Latina, a figura do agregado estava intimamente ligada à ocupação e
ao uso da terra. Na Argentina, por exemplo, os arranjos entre os agregados e os donos das
propriedades rurais eram bastante heterogêneos e se baseavam, sobretudo, em tratos
verbais e relações informais. Em linhas gerais, era uma relação em que se trocava terra por
trabalho. Essa relação não envolvia nem o pagamento de salários ao agregado, nem o
pagamento de arrendamento ao dono. Era, sobretudo, uma forma de apropriação da terra
baseada na “troca” de favores: o dono se “compadecia” da situação de pobreza e
desassistência do agregado e lhe concedia um pedaço de terra para que pudesse trabalhar e
o agregado, “agradecido”, lhe retribuía com parcelas de trabalho. Em geral situados nas
fronteiras das propriedades, os agregados acabavam sendo peças indispensáveis na garantia
das suas divisas e para evitar a fuga de animais. Também eram uma importante reserva de
mão de obra sazonal. Os conflitos judiciais entre agregados e donos das fazendas eram
frequentes, resultando, muitas vezes, na expulsão dos agregados das terras.143
Por trás desse tipo de ocupação e uso do solo, estava uma concepção específica
sobre o governo e a administração de casas compostas por famílias extensas (esposas,
filhos, parentes, escravos, criados e agregados). Como ressalta Romina Zamora, a
exteriorização da autoridade do pai de família, do governante das famílias extensas, era a
quantidade de pessoas que estavam sob sua obediência. O tamanho da família extensa e a
incorporação de parentela e agregados também funcionava como um indicativo da
“liberalidade” e da “caridade” do pai de família. Isso fazia com que as ideias de proteção e
de disciplina se confundissem em relações de dependência como as dos agregados.144
No Brasil, as relações de favores e o estabelecimento de relações de dependência
estavam intimamente ligados à escravidão. Como aponta Chalhoub, na primeira metade do

142
GUEDES. “Casas e sanzalas”. Um tema bastante presente nos debates dos historiadores que se ocupam das
sociedades da África centro-ocidental diz respeito às relações entre a acumulação de dependentes nas
sociedades africanas e aquelas estabelecidas durante a presença portuguesa naqueles territórios. Nessas
sociedades, a acumulação de dependentes estava intimamente relacionada ao prestígio dos sobas e senhores.
Veja-se, por exemplo, ALEXANDRE; DIAS. O império africano, pp. 321-437; MILLER. Kings and
Kinsmen; e VANSINA. How Societies are Born.
143
AZCUY AMEGHINO. El latifundio y la gran propiedad colonial rioplatense, pp. 111-139; GELMAN.
Campesinos y estancieros, pp. 102-135; MAYO. Estancia y sociedad en La Pampa, pp. 73-86; e TELL.
Córdoba rural, pp. -221-259.
144
Para estratégias de resistência de agregados, na Argentina, ver GELMAN. Campesinos y estancieros, pp.
102-135, MAYO. Estancia y sociedad en La Pampa, pp. 73-86, TELL. Córdoba rural, pp. -221-259.

53
século XIX, a hegemonia cultural e política era fundada no pressuposto da inviolabilidade
da vontade senhorial e na produção de dependentes. 145 Nesse cenário, o momento de
concessão da alforria era um rito central no processo de produção de dependentes e
estabelecimento de relações de favor. Porém, como o autor também ressalta, subordinação
não é sinônimo de passividade146 e isso fica muito evidente nos diversos casos envolvendo
agregados e outros dependentes nos processos analisados nesta pesquisa.147
Deixemos de lado por um momento o caso da Fazenda São Joaquim da Boa Vista,
para nos familiarizarmos com o caso de Anastacio, Simão e João.
Em setembro de 1835, Joanna Maria da Conceição compareceu perante o juiz de
paz da freguesia de São Gonçalo, em Niterói, e propôs uma ação contra os “pretos forros”
Anastacio, Simão e João para “os despejar da terra, e sítio da propriedade da suplicante que
os suplicados com força, e esbulho lhe ocupam, e destroem”.148
Após intimados do auto de embargo, os réus Anastacio, Simão e João contestaram
alegando que estavam na posse mansa e pacífica das terras de seu finado senhor. Como
provava a “escritura” juntada aos autos, as terras que ora ocupavam e nas quais João
construíra sua barraca tinham sido compradas por seu finado senhor, para que eles ali
vivessem e trabalhassem.

Pois se vê da Escritura que apresentam, os Embargados [Anastacio, Simão e


João], é o que lhe dá Direito de estarem nas terras que seu finado senhor lhe
comprou, e deixando para nelas trabalhar, e viverem e nesta posse estão
pacificamente; como não [ilegível] trabalhar e terem os Barracões, para
estarem abrigados ao rigor dos tempos.149

O documento ao qual Anastacio, Simão e João se referiam como “escritura” era a


carta de alforria passada por Felix dos Santos, perante tabelião, na qual libertava os
escravos Basilio, Adão, Anastacio, João, Simão, Apolinaria e Lucianno pardo, sob
condição de que o servissem enquanto fosse vivo. E acrescentou:
145
CHALHOUB. Machado de Assis, historiador, pp. 9-63.
146
CHALHOUB. Machado de Assis, historiador, pp. 9-63.
147
Nesse sentido, discordo de Maria Sylvia de Carvalho Franco, para quem “agregado ou camarada, a anulação
de sua vontade se revela na simples incapacidade de tomar uma decisão autônoma”. FRANCO. Homens
livres na ordem escravocrata, pp. 103.
148
Processo n. 11, p. 3.
149
Processo n. 11, p. 10v.

54
[…] lhes deixa para sua subsistência e nele viverem o sítio em terras próprias
que foi da falecida D. Josefa, o qual não poderão os ditos Escravos venderem,
nem traspassarem a pessoa alguma, e no caso que os ditos seus Escravos, não
saibam administrar, e tratar dele, sua mulher e testamenteira tomará conta do
mesmo sítio terras.150

Joanna rebateu enfatizando o “manifesto abuso do sagrado direito de propriedade”


e alegou que, mesmo que a doação feita por seu finado marido fosse legal – o que não era
pelo modo e forma como havia sido feita –, Anastacio, Simão e João nunca poderiam ter
tomado posse do terreno e ali terem edificado “por sua própria autoridade”.151

Quanto mais, existindo além da ilegalidade de doação; a cláusula de poderem


ser os Embargantes [Anastacio, Simão e João] lançados fora pela Embargada
[Joanna] sua senhora, quando estes deixarem de preencher as fórmulas, e
respeito devido, tanto a Embargada sua senhora, como as mesmas cinzas de
seu senhor, que não se contentando com as suas liberdades, que aliás inda
lhes podem ser privadas, pela ingratidão, se avançam a querer uma situação
de terras próprias, com casas de vivenda, com valor do melhor de um conto
de réis; e demais, a mais destruindo os Matos, pondo-os em Lenhas, e
edificando casas.152

Anastacio, Simão e João rebateram dizendo que administravam bem as terras e


cumpriam as condições da “escritura”. Para fortalecer sua pretensão, juntaram ao processo
uma certidão de uma outra ação iniciada por Joanna. Essa havia sido proposta contra Adão,
que havia sido libertado por Felix na mesma ocasião em que Anastacio, Simão e João.
Nesse processo, Joanna utilizou o mesmo argumento para pedir o despejo de Adão das
terras: o liberto havia recebido de seu finado senhor um sítio com a condição de que, no

150
Processo n. 11, pp. 12v-13. Esse tipo de concessão que poderia ser revertida a favor dos outros herdeiros dos
cedentes também foi encontrada por Elione Guimarães: “Declaro mais que os ditos meus escravos por mim
libertos não poderão de modo algum nem por qualquer motivo que seja transferir a outro, que não seja o meu
herdeiro, o usufruto da parte de terras que a cada um tocar, e quando o façam será nenhuma essa
transferência e essa deixa ficará desde logo de nenhum efeito e a dita parte reverterá ao meu herdeiro e na sua
falta aos herdeiros do mesmo”. A autora identifica esse tipo de prática como algo típico da ideologia
senhorial paternalista, que julgava os libertos incapazes de se gerirem nas situações de liberdade.
GUIMARÃES. Terra de preto, pp. 82-83.
151
Processo n. 11, pp. 16-16v.
152
Processo n. 11, p. 16v.

55
caso dele não cuidar bem do mesmo, a autora poderia tomar conta das terras, dando-lhe
uma quantia para sustento “dos mais pequenos”. Adão contestou dizendo que sempre havia
tratado bem do sítio, inclusive, fazendo casa para morar. O juiz decidiu a favor da
permanência de Adão no sítio, pois Joanna não havia provado que ele não sabia
administrar e tratar das terras. Pelo contrário, os depoimentos das testemunhas
comprovavam que Adão trabalhava e havia feito casa no sítio. Além disso: “a Autora
[Joanna] consentira na edificação da casa, do que deixa ver que o Réu [Adão] estava de
posse com ciência e reconhecimento da Autora”.153
O juiz do processo iniciado contra Anastacio, Simão e João, diante desses
argumentos e da sentença do caso anterior, decidiu a favor dos réus. Joanna recorreu da
decisão, mas o TRRJ anulou todo o processo, por ter sido processado por juiz
incompetente.
Ao longo do processamento da ação, é importante notar que Anastacio, Simão e
João procuraram fortalecer seus argumentos alegando que estavam cumprindo exatamente
as determinações de última vontade de seu ex-senhor e que os atos que estavam praticando
no terreno em nada eram desrespeitosos a Joanna. Todas as obras que tinham feito estavam
“nos termos que seu ex-senhor lhe deixou para morarem”.

Essa mesma Sentença também se fundou, juridicamente, no documento de f


20 [transcrição da sentença prolatada no processo que Joanna ajuizou contra
Adão], e com ele comprovaram os Apelados [Anastacio, Simão e João] a
sinistra tenção da Apelante [Joanna] ambiciosa, que não pretende mais senão
a perseguição dos Réus [Anastacio, Simão e João]; não obstante que estes
ainda lhe tributam o respeito devido de patronato, pela causal da infeliz sorte
da escravidão em que viviam, sem embargo de que contra a vontade da
mesma Apelante estão hoje em sua plena liberdade, o que agradecem às
cinzas do Autor da Escritura de f 11 [Felix dos Santos]!154

Joanna, por sua vez, os acusou de “mal intencionados, e destemidos pretos” e


afirmou que estavam praticando “toda a qualidade de ingratidão”, apesar de ainda estarem
sujeitos a ela.155

153
Processo n. 11, pp. 21v-23.
154
Processo n. 11, pp. 63-63v.
155
Processo n. 11, p. 71.

56
Voltemos ao caso da Fazenda São Joaquim da Boa Vista. Nele, a “ingratidão”
também foi trazida como argumento. Para Silva Prado e Maria, ao se dizerem senhores das
terras do Capão Grande, Tristão e Lucia tinham se mostrado ingratos aos favores
concedidos a seu cunhado Vargas. Nesses argumentos, estavam presentes vários dos
elementos estruturantes da ideologia senhorial. Eles traziam à tona relações de favores que,
do ponto de vista senhorial, não poderiam ser rompidas pelos dependentes. Essa economia
dos favores foi contestada por Anastacio, Simão e João e por Tristão e Lucia, que
argumentaram na chave do reconhecimento de seus direitos aos pedaços de terra em
disputa. Esses casos retratam, portanto, a tensão existente entre duas visões de mundo: uma
baseada no estabelecimento de laços de dependência pela concessão de favores e outra
fundada no reconhecimento e na garantia de direitos adquiridos.
Casos como o de Anastacio, Simão e João, em que os senhores concediam alguma
espécie de uso da terra aos libertos no momento de sua alforria, eram relativamente
frequentes no Brasil do século XIX. Além da rede de favores que se formava ao redor da
concessão de terras a libertos, também existia a prática de se conceder terras a escravos
enquanto ainda estavam no cativeiro.156 Nessas terras, os escravos costumavam trabalhar
fora do horário em que estavam realizando serviços nas terras do senhor e produziam
gêneros alimentícios para sua subsistência e de sua família. Em alguns casos, eles
chegavam a trocar e comerciar esses bens.
Esse tipo de concessão era uma prática recomendada em diversos manuais de
fazendeiro. Em 1847, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o Barão do Paty do Alferes,
um dos grandes cafeicultores do Vale do Paraíba, publicou um livro que tinha como
objetivo explicar “os mais triviais usos e costumes de nossa agricultura”. O livro era
dedicado a seu filho, que tinha acabado de chegar da Europa, casado, fazendeiro, mas “sem
nenhum conhecimento da agricultura usada entre nós”.157
Dentre diversas recomendações, havia um capítulo dedicado ao governo dos
escravos. Aí, Werneck recomendava que o fazendeiro deveria reservar uma porção de
terras onde os escravos pudessem fazer suas roças. Para manter firme o controle dos
escravos, essa porção deveria ser o mais próximo possível da fazenda e a colheita deveria
156
Essa prática já foi longamente discutida pela historiografia nos debates a respeito da “brecha camponesa” ou
“economia autônoma dos escravos”. Para uma análise detalhada desses debates, ver GUIMARÃES. Terra de
preto, pp. 29-48.
157
WERNECK. Memoria sobre a fundação e costeio de uma fazenda na Provincia do Rio de Janeiro , pp. III-
IV.

57
ser vendida a seu senhor, por um preço razoável, evitando-se, assim, que os escravos
negociassem com terceiros.158

Estas suas roças, e o produto que delas tiram, fazem-lhes adquirir certo amor
ao país, distrair um pouco da escravidão, e entreter-se com esse seu pequeno
direito de propriedade. Sem dúvida o fazendeiro enche-se de certa satisfação
quando vê chegar o seu escravo da sua roça trazendo o seu cacho de bananas,
o cará, a cana, etc.159

A concessão do uso de determinada parcela de terra gerava expectativa de direitos


entre os escravos. Diversas pesquisas já encontraram reações – violentas ou não – de
escravos ao que eles entendiam como desrespeito ao seu direito de plantar e trabalhar no
pedaço de terra que consideravam como seu.160
Esses arranjos de uso e ocupação da terra perpassados por relações de favores eram
bastante heterogêneos. A prática do pecúlio também poderia permitir que escravos
adquirissem um pedaço de terra ou algum direito de uso. Além da concessão de usos da
terra no momento da alforria e aos escravos enquanto ainda estavam sujeitos ao cativeiro,
há diversos casos em que filhos ilegítimos de senhores com suas escravas recebiam
concessões de terras de seus pais e senhores. Isso também ocorria com filhos que não
tinham direito à herança, como os adulterinos, espúrios ou sacrílegos.161
O problema é que, como no caso de Anastacio, Simão e João, nem sempre estava
claro que tipo de direito à terra era concedido ou negociado entre esses dependentes e os
senhores. Poderia ou não ser um direito de domínio. Porém, em alguns casos, como no de
Anastacio, Simão e João, nem sequer estava muito claro quais institutos e categorias
jurídicas estavam regendo a relação. Isso tornava o uso e a aquisição da terra, por esses
dependentes, bastante precários e sujeitos às configurações das relações de poder e a suas
capacidades de negociação. Apesar disso, essas concessões geravam expectativas de
direitos nos dependentes que, como os casos analisados mostram, eram defendidas de
diversas maneiras, inclusive, judicialmente.
158
WERNECK. Memoria sobre a fundação e costeio de uma fazenda na Provincia do Rio de Janeiro, p. 40.
Também o tempo em que os escravos poderiam trabalhar na terra concedida variava de acordo com o
momento das atividades econômicas da fazenda. GUIMARÃES. Terra de preto, p. 136.
159
WERNECK. Memoria sobre a fundação e costeio de uma fazenda na Provincia do Rio de Janeiro, p. 41.
160
GUIMARÃES. Terra de preto, pp. 29-48, 142 e MACHADO. “Em torno da autonomia escrava”.
161
GUIMARÃES. Terra de preto. Sobre os filhos ilegítimos, ver pp. 57, 74-80.

58
Receber uma parcela de terra ou a concessão de alguma espécie de direito de uso
em testamento ou no momento da alforria – práticas que, frequentemente, eram feitas no
mesmo ato – não significava que o direito seria exercido sem contestação. Muitas vezes,
como no caso de Anastacio, Simão e João, esses direitos eram contestados por outros
herdeiros, ainda que a transmissão do domínio tivesse sido clara e legítima.162
O resultado dessas práticas foi o surgimento dos mais diversos tipos de relações de
dependência ligadas ao aproveitamento da terra. Tão variados tipos de relação também
poderiam ter desfechos diferentes. Elione Guimarães, por exemplo, afirma que os libertos
conseguiram se estabelecer com maior sucesso nas áreas economicamente menos
importantes. Ao passo que, em áreas de grande interesse econômico e com alto potencial
de valorização, eles encontraram mais dificuldades para permanecer nos terrenos que
ocupavam.163
Muitos desses dependentes que estavam trabalhando a terra – libertos ou não –
acabavam sendo identificados sob a categoria dos “agregados”. Guinter Tlaija Leipnitz
procurou identificar, a partir da análise de processos judiciais, quais eram os elementos que
caracterizavam a figura do agregado, no Brasil. Eram eles: moradia em terras alheias e
obrigação de prestar trabalho. Essa prestação de trabalho, no entanto, não significava a
realização de qualquer atividade, mas costumava ser negociada entre agregado e senhor.
Ademais, o vínculo de dependência poderia ultrapassar o âmbito das relações econômicas
e atuar no estabelecimento de compromisso de fidelidade política ou em prestações de
caráter militar. Havia casos em que os agregados eram membros da família dos donos.164
Leipnitz também ressalta que as relações entre agregados e donos dependiam de
consensos fundados no reconhecimento do vínculo de dependência pelo agregado e seus
familiares e na garantia do acesso aos recursos pelo senhor. Esses consensos, porém, eram
permeados por tensões que, por vezes, desencadeavam conflitos. É o caso da dinâmica de
abertura e fechamento da fronteira agrícola, que interferia, diretamente, nas possibilidades
de acesso à terra.165

162
GUIMARÃES. Terra de preto.
163
GUIMARÃES. Terra de preto, p. 54.
164
LEIPNITZ. Vida independente, ainda que modesta, pp. 102-166.
165
LEIPNITZ. Vida independente, ainda que modesta, p. 165.

59
Além de um “modo costumeiro de acesso à terra”, a figura do agregado era também
uma categoria jurídica.166 Nos processos analisados, a caracterização jurídica de uma
pessoa como agregado ou não dependia, fortemente, dos depoimentos das testemunhas.
Nessa caracterização, o elemento fundamental era o “favor”. O advogado de Silva Prado e
Maria, por exemplo, ao reinquirir as testemunhas apresentadas por Tristão e Lucia, sempre
as perguntou se os réus haviam se estabelecido nas terras do Capão Grande por favor ou
consentimento dos autores. A favor dos réus, as testemunhas responderam que não, que os
réus, de fato, haviam ali se estabelecido em companhia de seu cunhado Vargas, mas não
por favor dos autores e na qualidade de seus agregados e, sim, por consentimento de um
outro senhor de terras da região.167
A questão da dependência econômica, por vezes, fica evidente no depoimento das
testemunhas. Uma delas foi perguntada pelo advogado de Silva Prado e Maria:

Se tem sido Peão dos Réus [Tristão e Lucia], se por parte dos autores [Silva
Prado e Maria] alguma vez foi citado por se achar de intruso em suas
propriedades? Respondeu que é homem pobre, que precisa ganhar dinheiro, e
por isso por vezes se tem ajustado com os Réus, e que nunca foi citado a
requerimento dos autores.168

Já as testemunhas dos autores atestaram que Vargas tinha se estabelecido no local


“por favor que lhe fizeram” Silva Prado e Maria. Os réus Tristão e Lucia teriam vindo em
companhia de Vargas, que era quem “figurava em dito arrendamento como chefe”. Após a
morte de Vargas e a saída de sua viúva das terras, os réus teriam ali permanecido “não
constando que estes se inculcassem senhores do terreno que ocupavam pelo favor feito ao
seu cunhado, finado Vargas”.169
Um dos elementos necessários para que o possuidor adquirisse o domínio por meio
da prescrição era a boa-fé, ou seja, ele tinha que se crer legitimamente senhor da coisa.
Ora, se ele estava trabalhando em um pedaço de terra por favor, como agregado, não
estaria constituído esse elemento essencial de se acreditar senhor da coisa. Daí a

166
LEIPNITZ. Vida independente, ainda que modesta, p. 227.
167
Processo n. 1.385, pp. 112v-113.
168
Processo n. 1.385, p. 106v.
169
Processo n. 1.385, pp. 118v-119. No mesmo sentido, processo n. 1.385, p. 137v.

60
importância de, através de depoimentos, identificar em que termos a relação havia se
constituído.
A dificuldade estava no fato de que, como mostra a historiografia, esses tratos eram
verbais e assumiam as mais diversas configurações. Por exemplo, os depoimentos das
testemunhas no processo ajuizado por Silva Prado e Maria contra Tristão e Lucia indicam
que, ao se estabelecer nas terras da Fazenda São Joaquim da Boa Vista, Vargas tinha
esperança de um dia poder comprar o pedaço de terra que ocupava.

[…] sabe por ver e ser público esse tema que por causa da revolução da
Província Salvador Lopes de Vargas deixou seu arranchamento debaixo da
serra, e veio com sua mulher, e os Réus seus Cunhados que com ele viviam
como seus agregados pedir um arranchamento de favor aos Autores
pretendendo mesmo deles comprar um rincão de Campo, mas respondendo
lhes o Autor que só para o futuro talvez lhe vendesse, permitiu que Vargas se
arranchasse no Capão Grande, e com efeito ele ali fez sua habitação
continuando a morar com ele os Réus … depois da morte de Salvador de
Vargas, e da sua viúva voltar para baixo da Serra continuaram os Réus a
viver no arranchamento de Vargas onde existem até hoje, sendo geralmente
tidos como agregados dos Autores, e só agora de pouco é que os mesmos
Réus se apresentam como posseiros.170

Ou seja, independentemente de quais tenham sido os reais termos em que a


ocupação das terras por Vargas tenha se dado, o fato é que este tinha a expectativa de
comprar o terreno, de se tornar dono, senhor. Assim, mesmo que o elemento do favor fosse
demonstrado, isso não impediria o reconhecimento da existência de uma expectativa de
enfraquecimento da relação de dependência por meio da compra.
Nesse jogo de expectativas – de um lado, a expectativa da manutenção da
dependência estabelecida por meio do favor e, de outro, a expectativa de tornar-se senhor
–, novamente o reconhecimento social tinha um papel determinante. Provar a condição ou
não de agregado passava por ser ou não “tido e havido” como tal. Muitas vezes, o lapso de
tempo entre a ocupação de um território e a pretensão de tê-lo reconhecido como seu era
mobilizado como prova de que o agregado se considerava como tal e assim era por todos
reconhecido, o que teria barrado sua pretensão de domínio.171
170
Processo n. 1.385, pp. 124v-125. No mesmo sentido, processo n. 1.385, pp. 121-121v, 128-128v.
171
Processo n. 1.385, pp. 6v, 288v.

61
Por estarem em uma situação de ocupação precária e de dependência pessoal, os
agregados eram, em vários casos, contestados enquanto testemunhas válidas. Por exemplo,
no processo ajuizado por Silva Prado e Maria contra Tristão e Lucia, uma das testemunhas
dos autores, em seu depoimento, afirmou que não era agregado e dependente dos mesmos.
Porém, após essa declaração, em suas razões finais, o advogado dos autores argumentou
que esse depoimento era inexato, “visto como nega ser seu agregado, e sim senhor do lugar
que habita”.172 Essa inexatidão do depoimento teria se dado em razão de pressões dos Réus,
que juntaram ao processo um documento no qual essa testemunha se retratava de seu
depoimento. A retratação teria sido feita após petição apresentada, por Silva Prado e Maria,
ao juiz de paz:

Dizem Tenente Coronel Joaquim Thomás da Silva Prado e sua mulher, que
tendo no ano de 1837 admitido dentro das divisas e faixas de sua Fazenda
denominada São Joaquim da Boa Vista, situada no Distrito desta Vila, e com
parte dos campos no Distrito da Palmeira, a Manoel Antonio Nunes em
qualidade de seu agregado, entregando-lhe para habitar o pasto que tinham na
divisa da Porteira, com casas cobertas de Telha Mangueiras Potreiro
Invernada fechada de [ilegível] até a bem pouco tem este agregado
amplamente desfrutado aquele pasto e todas as suas dependências por favor
que lhe tem continuado a fazer os suplicantes visto como não só se conhecia
o seu senhorio como também se confessava grato ao favor que deles recebia;
acontece porém que em dias do corrente mês aquele agregado cego pela
ambição e levado por sugestões de pessoas desafetas aos suplicantes,
declaram em juízo não viver a seu favor e sim em sua propriedade; portanto
não mais podem os suplicantes tolerar que continuem a desfrutar sua
propriedade, que se mostra ingrato e desconhecido aos seus imensos favores
e por isso pretendem pelos meios competentes expulsar ao referido seu
agregado Manoel Antonio Nunes da morada que lhe emprestaram e bem
assim haver o pagamento de dez bois tambeiros que naquele ano lhe
emprestaram e nunca mais lhes foram restituídos, e indenizações da casa
mangueiras valos e cercas que existiam no pasto da porteira quando ali foi
habitar o suplicado que hoje não existem ou se acham em completa ruína
pelo [ilegível] do mesmo suplicado que só cuidou em desfrutar os cômodos
que lhe proporcionaram os suplicantes e nunca da sua conservação e
melhoramento.173
172
Processo n. 1.385, p. 146.
173
Processo n. 1.385, pp. 157-157v.

62
Ao final, pediram que a testemunha que os havia contrariado fosse chamada à
conciliação, já que isso era um passo necessário antes que ajuizassem outros tipos de
ações. Na audiência de conciliação, a testemunha afirmou que, quando foi habitar o lugar
onde morava como agregado de Silva Prado, tinha o intuito de lhe comprar. Também havia
documentos que atestavam que os terrenos estavam dentro dos limites de outro senhor
local e, por isso, ele desconhecia o “jus” de Silva Prado sobre os mesmos. E no caso de
tentarem chegar a algum acordo, exigia que fossem ouvidos os herdeiros desse outro
senhor de terras. E “no caso destes [os herdeiros] se convencionarem, de sua parte ele
também se convenciona, nunca perdendo seu trabalho”.174 No entanto, alguns dias depois,
em nova audiência, a mesma testemunha modificou seu discurso:

Disse Manoel Antonio Nunes, que tendo com efeito ido habitar por favor do
dito Tenente Coronel [Silva Prado], no lugar em que vive sempre se teve
como seu agregado, até que mal aconselhado foi induzido a desconhecer seu
favor, e chamar-se a posse e senhorio do mesmo terreno que ocupa; portanto
foi que em audiência de ontem não se conciliou com os proprietários, porém
que depois refletindo na injustiça de seu proceder, procurou o dito Tenente
Coronel Joaquim Thomas da Silva Prado, e com ele se conciliou, tratando
comprar-lhe por preço e quantia de um conto de réis, o terreno que ocupa
com divisas certas e determinadas que acordaram, e sobre as quais vão
levantar marcos afim de passar-se a competente Escritura Pública, obrigado
ele comprador a pagar a Siza.175

Ao longo das décadas, os juristas brasileiros foram criando, a partir de elementos da


teoria possessória do direito comum, uma arquitetura jurídica que impedia o
reconhecimento de agregados como possuidores ou como senhores das terras em que
trabalhavam.
Como já mencionei, um dos elementos para que houvesse reconhecimento e
proteção judicial da posse era a boa-fé. No caso dos agregados, criou-se um entendimento
de que eles não adquiriam a terra que ocupassem por prescrição, porque sua posse não
seria de boa-fé, já que, por serem agregados, não poderiam se considerar como legítimos

174
Processo n. 1.385, p. 159.
175
Processo n. 1.385, p. 160.

63
senhores e possuidores do bem. Esse argumento foi mobilizado contra Tristão e Lucia para
impedir que lhes fosse reconhecida a posse das terras do Capão Grande:

Para que a prescrição aproveite ao prescribiente é necessário a boa-fé. Na


hipótese vertente de prescrição aquisitiva é necessário que os Réus [Tristão e
Lucia] desde o começo dela e também durante todo o seu decurso estivessem
na persuasão de que a causa possuída lhes pertencia de propriedade …
Portanto desde que mostramos acima a fraude do procedimento dos Réus,
visto que tiveram ingresso na propriedade dos Autores [Silva Prado e Maria]
como seus agregados, e por muitos anos depois reconheceram o seu direito, e
sendo fama pública que o objeto demandado pertence aos Autores, desde que
foram apossados por eles a mais de trinta anos, estes fatos constituem outras
tantas provas da má-fé dos Réus, segundo ensinam os Doutrinadores. 176
(grifos meus)

Outra figura que compunha a arquitetura jurídica que possibilitava a limitação dos
direitos dos agregados sobre as terras que ocupavam era a “posse precária”.

Cumpre também que a posse prescriente seja pública, e não equivoca, e nem
viciosa. Portanto não pode prescrever o que possui por atos de violências, ou
clandestinamente, ou precariamente, isto é, sem licença e por mera tolerância
do antigo proprietário […] Ora achando-se provado que os Réus [Tristão e
Lucia] entraram para a propriedade dos Autores [Silva Prado e Maria] com
licença destes, e que por eles foram tolerados aproveitando-se
clandestinamente do interdito posto aos seus bens (pelo sequestro e penhora)
para se fundarem em benfeitorias, é claro, que ainda faltam os requisitos da
publicidade, clareza, regularidade da posse.177 (grifos meus)

No direito comum, o precário era um contrato gratuito em que se concedia o uso


gratuito de uma coisa, por período de tempo indeterminado. O precário poderia ser
revogado desde que esse ato não gerasse prejuízos ao precarista. Esta era sua maior
diferença em relação às doações, que só poderiam ser revogadas em casos excepcionais. 178

176
Processo n. 1.385, pp. 143-143v.
177
Processo n. 1.385, p. 144. Sobre a posse precária, ver também a sentença em processo n. 1.385, p. 192.
178
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 504-505. De acordo com o jurista português Antonio
Ribeiro de Liz Teixeira (1790-1847), o precário era um empréstimo que poderia ser revogado pela vontade
de quem o havia feito. Portanto, a posse precária era “efeito da tolerância do proprietário concedente”, não

64
Alguns juristas remetiam o precário às Ordenações Filipinas, livro 4º, título 54, que
regulava os contratos de empréstimo e, em especial, o comodato. 179 A remissão a essa
norma era feita em razão de ela se referir a coisas emprestadas “enquanto aprouvesse ao
senhor dela”,180 o que seria a característica do precário.
O precário era diferente do comodato na medida em que este era um empréstimo
por tempo certo e aquele poderia ser revogado quando aprouvesse ao senhor da coisa. 181
Ainda no processo ajuizado por Silva Prado e Maria contra Tristão e Lucia, já na apelação
interposta perante o TRRJ, o advogado de Silva Prado e Maria tentou caracterizar a relação
entre eles e Tristão e Lucia como um comodato. Para ele:

[Tristão e Lucia] são hoje considerados como verdadeiros espoliadores


d’aquilo que lhes foi concedido por favor para a gozarem enquanto conviesse
aos Apelados [Silva Prado e Maria] como se deve subentender pela natureza
do favor considerado como comodato pelas circunstâncias de que se acha
revestido.182

Apesar de procurar caracterizar a relação como um comodato, o advogado utilizou


como característica desse instituto o fato de que o “favor” seria concedido enquanto
conviesse aos comandantes. Ora, essa era justamente a característica do precário, uma vez
que o comodato era um contrato por tempo certo, que não poderia ser revogado antes do
cumprimento do prazo. Assim, o que vemos, nos processos, é uma tentativa de diversos
juristas irem acomodando, ao arcabouço jurídico do direito comum, uma relação jurídico-
social – agregados – da sociedade brasileira estruturada a partir da ótica do favor.
Uma característica central da categoria jurídica dos agregados era que a posse que
eles exerciam em determinado terreno gerava domínio não para si, mas para aquele que lhe
havia concedido o favor de trabalhar a terra. A arquitetura jurídica por trás dessa

dava nenhum direito ao possuidor e “não pode dar direito de propriedade”. TEIXEIRA. Curso de direito civil
portuguez, tomo 2, pp. 50-51. Também Manuel de Almeida e Sousa de Lobão considerava que quem recebia
a coisa por meio de contrato de precário não podia reivindicar domínio próprio sobre a coisa. LOBÃO.
Tratado encyclopedico, compendiario, pratico e systematico dos interdictos e remedios possessorios geraes
e especiaes, p. 97.
179
ALMEIDA. Codigo philippino, livro 4, p. 848.
180
FREIRE. Instituições de direito civil português, livro 4, p. 57 e FREITAS, Consolidação das leis civis, p.
339.
181
HESPANHA, Como os juristas viam o mundo, p. 498.
182
Processo n. 1.385, p. 257.

65
desconsideração dos atos exercidos pelos agregados serem capazes de gerar
reconhecimento do domínio é bastante clara no projeto de código civil apresentado por
José Thomáz Nabuco de Araújo.
Nesse projeto, datado de 1878, já é possível perceber que a posse se afasta do uso
físico efetivo sobre o bem, aproximando-se de uma concepção que a vê como extensão da
vontade do indivíduo em se apropriar da coisa. Logo no artigo em que define a posse,
Nabuco afirma que ela “por analogia do domínio, é o pleno poder na coisa”. Nesse sentido,
a posse era “adquirida” – veja-se que o verbo usado é adquirir, não exercer – se houvesse
“intenção dominical”, que era “o desígnio, o querer adquirir posse, de adquiri-la como
adquirindo domínio”. Por isso, não “adquiriam” posse aqueles que eram incapazes de
intenção dominical. Porém, ressalva que “quem não pode validamente adquirir posse por
si, poderá validamente adquiri-la por outros; como, representantes necessários,
mandatários, dependentes, e gestores oficiosos”. Assim, os dependentes eram incapazes de
intenção dominical, não podendo adquirir posse para si, mas, sim, o podendo fazer para
outros, para seus senhores.183
Ademais, como já mencionei, os agregados ocupavam as terras a título precário.
Para Nabuco, no caso em que esse tipo de detentor – ele não usa a palavra possuidor,
nesses casos, em razão da incapacidade de intenção dominical – não quisesse restituir a
coisa, configurar-se-ia uma das hipóteses de “posse ilegítima” que era a “posse por abuso
de confiança”.184
Essa arquitetura jurídica evidenciava a ficção subjacente à teoria possessória no
contexto de produção de dependentes. Os senhores não precisavam fisicamente utilizar as
terras por si, pois dispunham de braços – agregados e escravos – que poderiam, de fato,
trabalhar a terra e adquiri-la para ele.

Ao quinto artigo foi lhe perguntado, se quando conheceu a Fazenda dos


Autores [Silva Prado e Maria] eram ou não por eles cultivados e aproveitados
os campos destas três sesmarias, e se na terra já tinha cultivado. Respondeu
que todos os Campos eram por eles aproveitados, na Serra viu capoeiras na
costa do Arroio Palmeira, e tem sido eles agregados os que tem cultivado as
datas dos filhos dos autores.185 (grifos meus)
183
ARAUJO. Codificação civil, pp. 192-193.
184
ARAUJO. Codificação civil, p. 201.
185
Processo n. 1.385, p. 38v.

66
A questão da posse dos agregados era tão determinante que um dos principais
elementos invocados pelo juiz para considerar que os réus Tristão e Lucia não tinham
adquirido as terras por prescrição era a existência de agregados dos autores Silva Prado e
Maria no local. Tais agregados estariam ali criando animais e construindo casas, mesmo
durante o período em que os autores estavam na província de São Paulo. De acordo com a
versão dos autores, eles estariam ali mesmo antes da chegada de Vargas e sua família, em
1837.186 Ou seja, a ausência de Silva Prado e Maria, durante os anos em que estiveram em
São Paulo, não significou o fim de sua posse, uma vez que tinham outros braços
exercendo-a por eles no local.

[…] aos Autores [Silva Prado e Maria] pertence pelo direito de uma posse
antiguíssima adquirida por suas fadigas, e conservada por eles, e por seus
administradores, e posteriormente pelos depositários judiciais, e agregados, e
arrendatários, todos os campos daquém do arroio Palmeira, no qual os Réus
habitam, e hoje se chamam a posse.187

O mesmo raciocínio que se aplicava aos agregados também se aplicava aos


escravos. A posse de um terreno poderia ser indiretamente exercida por meio da força de
trabalho escrava, o que permitia a ausência de trabalho efetivo do senhor, sem que isso
descaracterizasse, no entanto, sua relação com o bem.188
Essa arquitetura jurídica adicionava, ainda, uma outra dimensão à relevância de se
angariar agregados, aumentando a família extensa: sua incorporação poderia significar
também, incorporação e garantia de parcelas de terrenos que não seriam diretamente
trabalhados pelos senhores das fazendas. Assim, era frequente nos processos analisados
que as partes procurassem provar que exerciam atos possessórios sobre o terreno
contestado convencendo o juiz de que havia agregados seus trabalhando no local.189
Angariar agregados também poderia ser considerado evidencia de “realizar atos de
senhor”. No processo ajuizado por Silva Prado e Maria contra Tristão e Lucia, por
exemplo, uma das testemunhas afirmou que “por ouvir dizer sabe que o Réu [Tristão] tem
186
Processo n. 1.385, pp. 190-193.
187
Processo n. 1.385, p. 147v.
188
Ver, por exemplo, processos n. 6.588 e n. 2.837.
189
Processo n. 1.385, pp. 67, 94v, 112v-113, 123v-133.

67
praticado atos de verdadeiro senhorio nesses Campos fazendo benfeitorias, neles
acolhendo agregados, e convidando a outros que trabalham na Serra”.190
Esse quadro poderia gerar disputas pelos agregados. Tristão e Lucia, por exemplo,
foram acusados por Silva Prado e Maria de tentar convencer seus agregados a se juntarem
a eles na contestação da posse.191 De acordo com o depoimento de uma das testemunhas:

[…] sabe ser verdade que nos Campos demandados existem vários agregados
dos autores [Silva Prado e Maria] a muitos anos com casas de vivenda
invernadas tapadas e criação de animais, que são Miguel Rodrigues Bolcas,
seu genro José Joaquim Ponchevirde, e como arrendatário Francisco Fiúza e
no lugar da Porteira os Autores puseram Manuel Antonio Nunes que contou a
ela testemunha ter sido convidado pelo Réu [Tristão] para se fundirem
aqueles campos contra os autores, mas que não tinha anuído a este convite
dizendo que embora fossem dos Autores eles lhe permitiram continuar a
desfrutá-los assim como até então lhe tinham concedido.192

Além de procurar convencer outros agregados a questionarem o domínio de Silva


Prado e Maria sobre terras da Fazenda São Joaquim da Boa Vista, Tristão e Lucia foram
acusados de obrigar agregados dos autores a lhe passarem papéis em que se reconheciam
como agregados dos réus e não dos autores. Uma das testemunhas do processo afirmou que
“[Tristão e Lucia] tem exigido arrendamento, ou papel de favor de vários rincões, assim
como de Joaquim Pedroza e do Castelhano Alexandre Aleno”. 193 Já outra testemunha,
disse:

…que quando foi habitar nos terrenos que os autores [Silva Prado e Maria] e
Réus [Tristão e Lucia] disputam, a cinco anos, passou papel de favor ao Réu
Tristão José de Oliveira, mas sendo o ano passado chamado pelo autor
quando este reuniu e pôs fora os animais dos Réus passou-lhe papel de
arrendamento do mesmo lugar que antes passara papel de favor ao Réus, e
assim se acha até hoje, e que os mesmos animais foram lançados do campo
da Tapera dos Autores.194

190
Processo n. 1.385, p. 129v.
191
Processo n. 1.385, p. 94v.
192
Processo n. 1.385, p. 127.
193
Processo n. 1.385, p. 122.
194
Processo n. 1.385, pp. 109v-110.

68
Em meio às acusações mútuas de constranger determinadas pessoas a passarem
papéis de arrendamento, o advogado de Silva Prado e Maria procurou defender seus
clientes dizendo:

Não vemos prova nenhuma da força que os Autores [Silva Prado e Maria]
fizessem a Joaquim Pedroso para lhes passar o papel de arrendamento; se
anteriormente ele passou aos Réus [Tristão e Lucia], foi porque com ameaças
lho extorquiram; aos Autores ele o fez muito espontânea e de livre vontade,
porque sendo vizinho, é uma das pessoas que melhor sabe do direito dos
Autores, e da iniquidade do proceder dos Réus.195

Angariar agregados, gente que pudesse exercer posse em seu nome, era uma
estratégia possível. Silva Prado e Maria alegaram que Tristão “começou por se inculcar
legítimo dono dele [do terreno contestado], e em seguida congregou a vários vagabundos
para se estabelecerem na mata limítrofe”.196 Tristão e Lucia também fizeram acusações
parecidas a Silva Prado e Maria. De acordo com eles, Silva Prado e Maria teriam obrigado
um dos arrendatários de Tristão e Lucia a lhes passar um papel no qual dizia que era
arrendatário de Silva Prado e Maria, não de Tristão e Lucia. Esse documento teria sido
obtido mediante ameaça de “lançá-lo fora do campo, de arrasar o seu estabelecimento e
dispersar a sua tropa”.197
Pela leitura dos processos, também se percebe que poderia haver certa confusão
sobre quem era agregado de quem, quem era agregado e quem era arrendatário, se
determinada pessoa era agregado, capataz ou outro tipo de trabalhador da fazenda, etc. 198
Mesmo Silva Prado e Maria, que no momento do processo eram reconhecidos por parte
das testemunhas como senhores e possuidores do terreno controvertido, já haviam sido
agregados de outra pessoa no passado.199 Havia uma dinâmica das relações sociais no
campo que se refletia também nos processos.200
195
Processo n. 1.385, pp. 145-145v.
196
Processo n. 1.385, p. 2.
197
Processo n. 1.385, p. 25v.
198
Processo n. 1.385, pp. 67, 38v-39, 120.
199
Ao que tudo indica, Silva Prado e Maria foram agregados de José Monteiro Bueno. Processo n. 1.385, pp.
120-120v.
200
Sobre o trânsito entre diversos grupos sociais, ver LEIPNITZ. Vida independente, ainda que modesta.

69
Ao final do processo entre Silva Prado, Maria, Tristão e Lucia, o juiz Fernando
Marquez França decidiu a favor dos autores. Para ele, os réus só haviam ocupado o Capão
Grande após a ruína do estabelecimento pré-existente dos autores. Além disso, Tristão e
Lucia teriam entrado no local em companhia de Vargas, que aí havia se estabelecido “de
precário”, por favor dos autores. Ou seja, por serem agregados, os atos possessórios dos
réus não eram suficientes para gerar reconhecimento judicial da aquisição das terras por
prescrição. Também foi importante, para a decisão que tomou o juiz, o fato de que, nos
terrenos controvertidos, havia agregados e arrendatários dos autores, “que ocupam os
campos em nome deste”.201
***
Em linhas gerais, esses eram os institutos que organizavam as relações possessórias
entre pessoas e coisas. Outros aspecto relevante dessas relações, no entanto, dizia respeito
aos documentos que, subsidiariamente ou alternativamente, também poderiam provar o
domínio sobre terras e escravos. No capítulo seguinte, trato desse segundo conjunto de
possíveis provas: os títulos.

201
Processo n. 1.385, pp. 190-193.

70
OCEANO DE PAPÉIS:
PRODUZINDO TÍTULOS, CRIANDO DIREITOS

O caso de Felisminda

O Oceano Atlântico era, diuturnamente, cortado por naus que levavam pessoas,
mercadorias, pessoas-mercadorias, e, também, uma grande quantidade de papéis. De um
lado a outro, viajavam juristas letrados, que assumiam cargos burocráticos nos territórios
coloniais americanos e africanos, levando consigo bibliotecas pessoais e papéis
administrativos, cartas e recomendações que os norteariam no desempenho de suas funções
burocráticas. Mas o manuseio desses papéis não era exclusividade dos letrados. Havia uma
extensa camada de “infraletrados”, “operários administrativos” que tratavam da lida
cotidiana de produção e processamento dessa documentação.202
Nas sociedades atlânticas, os escrivães, notários e párocos também foram peças
fundamentais na produção cotidiana de documentos e na criação de direitos e estatutos
jurídicos. Como ressaltam Orlando García Martínez e Michael Zeuske, os documentos
notariais eram, em tese, controlados pelos Estados, porém, as formas que eles adquiriam,
concretamente, eram controladas pelos próprios escrivães, notários e párocos, no
desempenho cotidiano de suas funções. Esses agentes, na medida em que eram os
responsáveis diretos pela produção de uma extensa gama de documentos, eram detentores
de poder: o poder de materializar transações e eventos em registros oficiais. Nesse sentido,
os escrivães, notários e párocos eram produtores de uma certa “verdade”.203
Porém, todos esses agentes burocráticos, ainda que imbuídos de um importante
poder – o de oficializar determinada “verdade” –, não tinham o monopólio da produção de
documentos. Escravos, mulheres, indígenas e outras categorias de dependentes também
eram conscientes da centralidade de documentos escritos para a criação e garantia de
direitos e cuidavam de sua produção e conservação. Mesmo quando não eram produzidos
por eles mesmos, mas por escrivães, notários ou párocos, essas pessoas procuravam ter
alguma influência na definição do conteúdo que os documentos materializariam. Eles

202
GAUDIN. El imperio de papel de Juan Díez de la Calle.
203
GARCÍA MARTÍNEZ, ZEUSKE. “Estado, notarios y esclavos en Cuba”.

71
sabiam que, na ausência de redes de solidariedade, os documentos poderiam ser a única
fonte de reconhecimento de direitos.204
Em um ambiente em que documentos poderiam ser úteis para a possível
comprovação de um direito, os jornais desempenhavam um papel central. Mais do que um
veículo pelo qual as pessoas poderiam se inteirar dos assuntos políticos prementes, dos
números da economia do Império, dos escravos fugidos, da movimentação do porto, dos
falecimentos, dos leilões, das “modas”, os jornais também eram uma importante via de
publicização de direitos e publicação de informações juridicamente relevantes. Resguardar-
se, por meio da produção de uma publicidade jornalística poderia ser uma estratégia
interessante para grupos dependentes como, por exemplo, as mulheres.
Talvez algum tipo de cálculo nesse sentido tenha sido feito por Antonia Maria de
Jesus, que fez publicar, no dia 6 de fevereiro de 1838, na seção “Notícias Particulares”, do
Diario do Rio de Janeiro, o seguinte anúncio: “Antonia Maria de Jesus faz saber, que
sendo casada com Francisco Machado, obteve sentença de desquite com separação de
bens, e como se não fizeram partilhas, quaisquer tratos que com ele se façam sobre os
mesmos ficam de nenhum efeito”.205 A produção desse pequeno aviso em papel era fruto
de intensos conflitos cotidianos entre um casal e seus escravos.
Quando Antonia e Francisco se casaram, em 1810, ela era viúva. Após a morte de
seu marido anterior, em 1809, Antonia tinha herdado, dentre os diversos bens do casal,
imóveis, terras, rendas e escravos. Assim como outros proprietários, Antonia possuía bens
tanto na cidade do Rio de Janeiro como na zona rural. Possivelmente, ela transitava entre
esses meios. Francisco, por outro lado, era feitor na fazenda de Antonia. Em alguns anos,
no entanto, a convivência entre o casal se deteriorou e eles assinaram uma escritura de
separação amigável, em 1831, e obtiveram divórcio eclesiástico em 1836. Francisco
alegava que Antonia era uma mulher “devassa” e de “costumes corrompidos”. Na
documentação analisada, não encontrei os motivos que levaram Antonia a se divorciar.206

204
GARCÍA MARTÍNEZ, ZEUSKE. “Estado, notarios y esclavos en Cuba”; PREMO. The Enlightenment on
Trial; e HÉBRARD; SCOTT. Provas de liberdade. Sobre a escrita, produção e circulação de documentos nas
sociedades africanas, durante o período colonial, e entre escravos, ver CARVALHO; GOMES; REIS. O
Alufá Rufino; SANTOS; TAVARES. Africae Monumenta; e HÉBRARD; SCOTT. Provas de liberdade, pp.
21-38.
205
Diario do Rio de Janeiro, ano 17, n. 4, p. 3.
206
Sobre ações de divórcio no Brasil do século XIX, ver AMARAL. Resistência feminina no Brasil oitocentista.

72
De acordo com um dos advogados que atuou no processo que analiso neste
capítulo, Antonia teria se casado com Francisco, um homem pobre, para fazê-lo “mais
feliz”.207 Ou seja, é provável que grande parte dos bens do novo casal Antonia e Francisco
fossem originalmente dela e não dele. No momento da separação amigável, porém,
Francisco ficou com uma quantidade considerável de bens: cem braças de terras na
Fazenda Provedor, com suas benfeitorias; um terreno na Lagoa da Sentinela; uma porção
de terras de, aproximadamente, quinhentas braças; e “alguns escravos, e bestas, e pequenos
utensílios de lavoura e fábrica”. Antonia, por sua vez, ficou com a quantia de um conto e
oitocentos e vinte e dois mil réis; o valor do conserto feito por Francisco em um sobrado na
rua da Prainha; os aluguéis referentes a esse sobrado; a escrava Maria Rosa, com seus
filhos; e seiscentos mil réis em bens móveis. Na escritura de separação, também ficou
estabelecido que Antonia não poderia dispor de nenhum desses bens e que teria que
instituir Francisco como seu herdeiro. O mesmo tipo de disposição não foi feita em relação
aos bens que ficaram com Francisco, daí, talvez, a preocupação de Antonia em resguardá-
los após o desquite, publicando uma nota no jornal.208
Os conflitos oriundos do casamento de Antonia e Francisco, no entanto, já existiam
antes da publicação da nota e antes da sentença de desquite. Eles também envolviam
muitas outras pessoas, além do casal. Em 1836, Felisminda, que havia sido escrava de
Antonia, procurou o juiz de direito da cidade do Rio de Janeiro e pediu a manutenção de
sua liberdade. Alguns dias antes, ela havia escapado da fazenda de Francisco, em razão dos
maus tratos que sofria, e, chegando ao Rio de Janeiro, aproveitando das possibilidades de
trânsito que a cidade lhe oferecia, foi viver com uma viúva na Rua do Valongo. Ao
descobrir o paradeiro de Felisminda, Francisco foi atrás dela e a levou para a prisão do
Castelo, afirmando que era sua escrava. Felisminda, então, conseguiu um curador e ajuizou
uma ação de manutenção de liberdade.
Felisminda alegava que havia sido libertada por sua senhora Antonia, em 1809,
com ônus de acompanhá-la enquanto fosse viva. Apesar de, desde então, ter sido sempre
“tida e havida por todos como livre”, 209 Francisco não respeitou essa alforria e a levou para
sua companhia, na Fazenda do Iguaçú, entregando-a ao “rigor de seus prepostos, como se a

207
Processo n. 866, p. 149v.
208
Processo n. 866, pp. 42-45v.
209
Processo n. 866, pp. 12-13.

73
Suplicante fora sua escrava”.210 Agora, presa, seguia “confundida com escrava”. Para
comprovar sua alegação, Felisminda juntou, ao processo, um registro perante escrivão da
carta de liberdade que lhe havia passado Antonia. A carta teria sido passada em 1809 e o
registro, feito em 1835, provavelmente, data próxima ao início dos conflitos acerca de sua
liberdade.
Francisco contestou o pedido de Felisminda argumentando que já havia dois ou três
anos que ele e Antonia viviam separados e, querendo a esposa o prejudicar, decidiu passar
carta de liberdade à escrava que, na época, nem vivia com ela na Corte, mas na fazenda
com ele. Felisminda “nunca passou por forra; antes sempre foi tida, e tratada, como
escrava”.211 Como era casada com Francisco, Antonia não podia passar essa carta sem sua
autorização. Para burlar essa regra, produziu um documento datado de 1809, época em que
ainda era viúva e poderia dispor de seus bens. Essa carta antedatada foi assinada por Dona
Thereza Maria de Jesus, que pensou ser a data verdadeira. Antonia teria pedido que a filha
de Thereza e comadre de Francisco, Geralda, também assinasse a carta. Ela, porém,
recusou-se e estranhou que sua mãe o tivesse feito.
O réu Francisco também afirmou que, antes do documento que se discutia no
processo, Antonia tinha feito um outro. Porém, ao chegar à fazenda, foi avisada pelo então
feitor que o documento não estava “bem feito”. O feitor – que, de acordo com Francisco,
era “amásio” de Felisminda – acompanhou Antonia até o Rio de Janeiro, onde teriam
produzido a carta de liberdade antedatada e que, agora, era judicialmente discutida. Esse
documento seria visivelmente falso, o que se perceberia “pelo disfarce, que se buscou na
cor da tinta, porém que bem se deixa ver ser nova, e descorada”.212
O documento que Francisco acusou de falso era a carta de alforria de Felisminda.
No início do processo, o curador tinha apresentado uma certidão do registro em cartório
dessa carta. O advogado de Francisco, então, requereu a apresentação do documento
original, não apenas da certidão. O curador atendeu à reivindicação de Francisco, de que
fosse apresentado o documento original, mas ressalvou que mesmo com o que já havia
apresentado era possível resguardar o direito à liberdade de Felisminda.

210
Processo n. 866, p. 3.
211
Processo n. 866, p. 40.
212
Processo n. 866, pp. 40v-41.

74
[…] mas não tínhamos então presentes documentos alguns, a exceção do de f
4 [certidão de registro da carta de liberdade].
Não pretendíamos sustentar a causa da iniquidade, e da desobediência de um
Escravo, e permita Deus, que nunca o façamos; e por isso, quando apareceu a
cota a p 17 [pedido de apresentação do original], bem que pudéssemos
sustentar a não obrigação de satisfazê-la; pois que tínhamos o documento de f
4 suficiente para com ele conseguir a Autora, o que pedia; todavia, tão
sinceras foram as informações, que nos deram acerca da existência do
original daquele documento, tanto era a convicção, em que estávamos de
podermos convencer ao Réu [Francisco] mais facilmente com a apresentação
desse original, cujo exame lhe seria prejudicial, que tomamos a deliberação
de o apresentar para satisfazer-lhe os desejos, para que no seu espírito não
ficasse dúvida alguma do bom direito da Autora [Felisminda]; para que
finalmente o exame, que pedia, manifestasse de que lado estaria a verdade, a
boa-fé. […] Não quis este [Francisco] mais o exame, de que falara […] que
era nulo, falso, esse papel, e que por isso, digo, e que concorria para provar
essa falsidade o disfarce, que se buscou na cor da tinta, que é nova, e
descorada; felizmente porém é descorada a do reconhecimento, a da verba do
revisto nas notas, e até a do conhecimento de estar pago o selo, e a da
distribuição, e isto é de sobra para afugentar suspeitas de falsidade, que não
pode existir. 213

Após ressaltar as dificuldades que Felisminda tinha em apresentar o original do


documento, em razão de sua situação de fragilidade, o curador continuou desenvolvendo a
linha argumentativa de que não era necessária a apresentação do documento original para a
comprovação da liberdade. Segundo ele, “as provas não se devem restringir, mas
ampliar”.214 Ou seja, vários tipos de documentos seriam válidos como prova, não apenas a
carta original de alforria.
O juiz considerou que Felisminda não foi capaz de provar seu direito. Ela não
conseguiu provar a data do documento apresentado e, ademais, suas testemunhas
depuseram de forma contraproducente e contraditória, afirmando que ela era tida e havida
por escrava.
O curador de Felisminda embargou dessa decisão, alegando que o documento
apresentado era, sim, válido, pois “todo o ato se presume feito segundo a sua forma, e todo

213
Processo n. 866, p. 74v-75v.
214
Processo n. 866, p. 77v.

75
o instrumento tem por si a presunção de verdadeiro”.215 Já o advogado de Francisco rebateu
que: “Enfim, tornamos a repetir, a lei nos defenda, de que se estabeleça o precedente, de
que os escravos, que demandam seus Senhores, não carecem de prova para obter sua
liberdade; ou de que qualquer papel constitui presunção de Direito”. 216 O curador replicou
dizendo que, sim, havia provas para a liberdade, pois, além da prova testemunhal, os
documentos apresentados eram hábeis a garantir o direito de Felisminda. E ressaltou: “Na
verdade, mal vai o Mundo se alguma Lei manda ter como não verdade o que se diz em
escritos particulares!”217 O juiz negou os embargos, mas o curador não desistiu e apelou ao
TRRJ. A esta altura, Felisminda tinha acabado de dar à luz a uma filha, que temia também
fosse escravizada por Francisco.
O processo que Felisminda ajuizou contra Francisco é uma janela para uma das
principais discussões a respeito das relações jurídicas entre pessoas e coisas: o debate sobre
a titulação. As ações judiciais analisadas são marcadas por fortes disputas a respeito da
validade e da força probatória dos mais diferentes documentos que as partes queriam ver
considerados como títulos e provas de seus direitos de domínio. Questões como: que tipo
de documentos seriam considerados títulos de domínio válidos? Qual a força probatória
desses títulos? Quem eram os sujeitos legítimos para produzi-los? Eram questões ainda
indeterminadas e em disputa nos tribunais do Brasil oitocentista.

Mas, afinal, o que era um título?

“Título” era uma categoria que fazia parte da arquitetura jurídica do direito comum.
Essa categoria tinha, então, um significado muito mais abrangente do que a que foi
adquirindo ao longo do século XIX. No direito comum, “título” tinha o sentido de origem
do direito, fosse essa origem um documento escrito ou não. Por exemplo, no caso da
escravidão, o nascimento de ventre escravo era um título de domínio. Outro título era, por
exemplo, a guerra justa. Nesse sentido, “título” era o que estava na origem, que era a
causa, o que fundamentava direitos sobre as coisas. Assim, “justo título” era o título que o
senhor e o possuidor acreditavam ter sobre a coisa. Ainda que o título de aquisição não

215
Processo n. 866, p. 97v.
216
Processo n. 866, p. 103.
217
Processo n. 866, p. 105.

76
fosse juridicamente válido, ele produzia efeitos jurídicos e era “justo” se o senhor ou
possuidor estivesse convicto de sua “justeza”.218
A partir de finais do século XVIII, aproximadamente, as relações jurídicas entre
pessoas e coisas passaram, paulatinamente, a ser estruturadas a partir da noção de
propriedade como um direito subjetivo, hierarquicamente superior aos outros direitos sobre
as coisas. Isso pressupunha a existência de indivíduos proprietários. Porém, como
identificar esses sujeitos de direitos? Uma alternativa aventada foi que a identificação fosse
feita a partir do registro e da titulação, no sentido estrito de identificar os proprietários a
partir de um documento escrito que lhes concedesse direitos sobre as coisas. 219 Porém, o
que a análise dos processos mostra é que, até, aproximadamente, a década de 1870, apesar
de já circularem propostas de consagrar os títulos, no sentido de documentos escritos,
como a forma de aquisição e de prova primordial de direitos sobre as coisas, havia debates
sobre quais documentos seriam hábeis a serem considerados títulos de domínio válidos.
No caso de Felisminda, chegando a apelação de Francisco ao TRRJ, o seu
advogado iniciou as contrarrazões da seguinte maneira: “Se a propriedade do Cidadão
estivesse dependente de título falso e antedatado, [ilegível] seria a garantia, que lhe dá [a]
Lei fundamental do Império; mas por felicidade a Lei e os Tribunais não admitem como
verdadeiro fato algum que não seja provado de alguma maneira legal”. 220 Ao que rebateu o
curador de Felisminda:

Se a propriedade mais digna de atenção em todos os Países, e favorecida por


todas as Legislações do Mundo, se a propriedade sagrada da Liberdade,
apoiada até no instituto do selvagem, e nos sentimentos dos homens
esclarecidos, se esse primeiro dos bens dependesse de títulos qualificados
legais pelo Apelado, efêmera seria a garantia, que lhe dá a Lei fundamental
do Império.221

E continuou questionando qual era a lei que determinava que os títulos deveriam
ser selados e reconhecidos na data em que eram feitos. Esses requisitos, segundo ele, não

218
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, pp. 356, 370.
219
RODRIGUES. As frações da classe senhorial e a lei hipotecária de 1864 e VARELA. Das sesmarias à
propriedade moderna.
220
Processo n. 866, p. 119.
221
Processo n. 866, p. 122.

77
seriam necessários para a validade do título de domínio. Ou seja, para o curador, a garantia
constitucional à propriedade somente seria possível se houvesse certa flexibilização na
determinação judicial do que eram ou não títulos válidos.
Ainda que não necessariamente percebidos como títulos de domínio, documentos
escritos eram percebidos como capazes de dar mais segurança à condição de “senhor e
possuidor” de um bem, mesmo por pessoas que exerciam atos possessórios. Durante o
período colonial e, mesmo no Brasil independente, era bastante comum, por exemplo, que
pessoas que já estavam de posse de terras por anos ou décadas requisitassem a sua
concessão como sesmarias para “segurança de seu direito”, 222 indicando a existência de um
entendimento compartilhado sobre a importância de portar documentos escritos.
Após alguns anos de haver se estabelecido nas terras da Fazenda São Joaquim da
Boa Vista, Silva Prado sentiu a necessidade de requisitar, dos agentes do governo, um
documento que atestasse sua posse sobre o terreno. No Brasil do século XIX,
especialmente em algumas regiões mais conturbadas, como a fronteira da província de São
Pedro, havia certa flexibilidade a respeito de quem seriam as autoridades aptas a conferir
títulos de concessão de terras. Em 1825, Silva Prado enviou, ao Comandante do Distrito de
Cruz Alta, o seguinte requerimento:

Diz o Capitão Joaquim Thomas da Silva Prado, que a seis para sete anos tem
conservado uma invernada no Distrito da Cruz Alta, com casas, gente,
mangueiras, e lavouras em rincão denominado Dois Irmãos, e tendo
procurado haver Carta de Sesmaria para o possuir legitimamente,
infelizmente se extraviaram os documentos informes, e finalmente um
Decreto de Sua Majestade Imperial para se não concederem mais; e porque o
suplicante deseje viver seguro na posse do terreno mencionado do dito
Rincão donde pretende estabelecer-se com sua família, para cujo fim
continua em levantar obras de maior consideração, roga a Vossa Senhoria
[…] o mande gozar da posse em que tem estado até obter o seu legítimo
título: cujo terreno confronta pelo Norte divide-se parte com a [ilegível] da
estrada real, parte com um banhado, que confina na entrada do erval, e parte
com um arroio que tem a vertente no capão do rodeio bonito, pelo sul parte
com a estrada geral unindo-se às vertentes que nascem do capão denominado
Porangos fazendo um lageado que vai a Serra, pelo Leste com a Serra Geral,

222
MOTTA. Direito à terra no Brasil e ALVEAL. Identidades senhoriais e conflitos.

78
e pelo Oeste com a estrada que segue para a Província de São Paulo: portanto
espera de Vossa Senhoria a graça que pede.223

À margem do requerimento, o Comandante do Distrito determinou que Silva Prado


“se conserve no terreno mencionado até que possa obter os seus legítimos títulos visto não
ter oposição de pessoa alguma e estar na posse do terreno e o ter beneficiado”. Também à
margem do requerimento, estava o seguinte despacho, de uma outra autoridade que não
pude identificar: “À vista da informação do Comandante do Distrito e respostas dos Éreos
confinantes conserve-se o suplicante na posse do terreno mencionado entre as divisas
referidas, obtendo o seu título legítimo do Excelentíssimo Governador desta Província”.
Assim, na falta de um título de domínio ou de uma concessão de sesmaria, Silva Prado
elaborou um requerimento e conseguiu o reconhecimento de sua posse, por duas
autoridades, à margem do mesmo. Esse documento foi apresentado, no processo que
ajuizou contra Tristão e Lucia, como prova de sua posse e de seu domínio sobre as terras
da Fazenda São Joaquim da Boa Vista.
Em 1830, Silva Prado recorreu, novamente, ao Comandante do Distrito, pedindo,
desta vez, que fossem concedias datas de terras a seus filhos. Isso porque “lhe consta que
há ordem de Sua Majestade Imperial para se conceder datas de Matos e Vossa Senhoria
está autorizado para o fazer”. À margem, o Comandante do Distrito despachou: “o
suplicante [Silva Prado] pode mandar cultivar as datas que requer, no entanto que recorre
ao Ilustríssimo Senhor Comandante Geral da Província que mandará o que for servido”.
Assim, o Comandante do Distrito, que havia permitido a permanência de Silva Prado na
posse de alguns terrenos, em 1825, novamente, permitiu que seus filhos cultivassem nos
terrenos mencionados, mas, desta vez, o encaminhou para que requeresse a concessão ao
Comandante Geral da Província.224
Em 1845, Silva Prado enviou um requerimento à Câmara Municipal de Cruz Alta
para nova concessão de terras. Algum tempo antes, a Câmara tinha mandado afixar, em
todos os distritos do município, editais mandando chamar os indivíduos que tivessem
documentos de terras agrícolas nas serras. Em razão desse chamamento, Silva Prado
aproveitou para, além de se apresentar, pedir que fossem concedidas, a seus filhos, as
sobras dos campos que já ocupavam. Como justificativa para a concessão, invocou o fato
223
Processo n. 1.385, pp. 55-55v.
224
Processo n. 1.385, pp. 62-62v.

79
de ter sido o primeiro ocupante do local, antes inabitável em razão do “perigo dos
Selvagens”. A Câmara, no entanto, considerou-se incompetente para realizar a concessão
requerida.225
Silva Prado se voltou, então, para o Presidente da Província. Justificou seu
requerimento pela posse longa e ininterrupta que tinha das terras, além de ter sido o
primeiro povoador, que ali se tinha estabelecido apesar das “contínuas invasões dos
Bugres”. Ao final, pedia que fosse confirmada a concessão anterior, realizada em 1830, e
requeria nova concessão de datas para seus filhos. À margem, o Presidente da Província
despachou: “Pode continuar na posse das Terras de que se requere título de Propriedade até
que aí regule a concessão delas”.226
Silva Prado e Maria requereram diversos tipos de documento a diferentes
autoridades, ao longo dos anos. As concessões e os despachos eram dados à margem das
petições. Com isso, o casal ia tentando construir uma cadeia de documentos que
legitimasse sua ocupação das terras, não dependendo apenas da posse que exerciam. Não
havia nenhuma garantia, entretanto, de que esses papéis seriam considerados fortes o
suficiente para resguardar seus direitos caso eles fossem judicialmente defrontados com
uma situação possessória. Como venho argumentado, a centralidade da posse no direito
comum e no direito brasileiro das primeiras décadas do século XIX era tamanha que a
apresentação de títulos de domínio – ou de documentos que as partes tentavam fazerem
passar como tais – costumava se submeter à prova da posse.
Esse foi, justamente, um dos argumentos levantados por Tristão e Lucia contra os
documentos juntados por Silva Prado e Maria.

Seguiu-se então a que os Autores [Silva Prado e Maria] fossem forçados a


apresentar documentos que comprovassem o domínio dos campos, e nada
mais fizeram que juntar uma infinidade de requerimentos, traslados,
certidões, mandados, ordens militares, e finalmente cartas particulares, que
tudo bem visto e examinado de nada servem para destruir a posse ativa e não
interrompida dos Réus [Tristão e Lucia] desde aquela época de 1837 em que
se vieram estabelecer no lugar controvertido.227

225
Processo n. 1.385, pp. 61-61v.
226
Processo n. 1.385, pp. 64-65.
227
Processo n. 1.385, pp. 181v-182.

80
Assim, ainda que a posse fosse a categoria jurídica mais fundamental na arquitetura
normativa das relações entre pessoas e coisas, havia um entendimento compartilhado de
que papéis, documentos escritos, poderiam dar maior segurança ao direito. Esse
entendimento era especialmente presente entre os escravos que, apesar de todas as
dificuldades que tinham para ter acesso a documentos sobre sua liberdade, adotavam
diversas estratégias para, uma vez obtidos, mantê-los a salvo. Em um caso que analisarei
com mais detalhes adiante, João Antunes deu a Maria uma autorização para que ela
angariasse esmolas para pagar por sua liberdade. Passado o prazo sem conseguir toda a
quantia, Maria disse que havia perdido o documento de autorização. Entretanto, ao iniciar
um processo pleiteando sua liberdade, Maria juntou a autorização. Ou seja, mentiu para
João Antunes para salvaguardar o documento que, sabia, seria importante no processo
judicial.228
Essa estratégia de proteção a documentos ligados à possibilidade de adquirir a
liberdade também aparece em outro processo. Nele, Jozé da Silva Marques passou cartas
de liberdade aos filhos que teve com sua escrava, chamada Romana. Depois da morte de
Marques, seus herdeiros legítimos venderam os filhos libertos de Romana que, em parte,
eram seus meio-irmãos. Ao ter notícia de que os supostos escravos que havia comprado
eram, na verdade, libertos, Jozé Joaquim da Silva interpelou Romana, para que lhe
entregasse as cartas de liberdade de seus filhos:

[…] logo depois do falecimento do Pai [Marques], e benfeitor dos Autores se


foi ter [o comprador] com a Mãe destes, pedindo, que lhe entregasse as ditas
Cartas sob o pretexto que de nada mais serviam; ao que todavia se não quis
prestar a referida Mãe dos Autores, dizendo, que já as havia queimado, e com
essa notícia se satisfez o Réu.229

Apesar de ter dito que as havia queimado, Romana não o fez e, inclusive, as juntou,
mais tarde, ao processo.
Já há algumas páginas venho argumentando sobre a importância do reconhecimento
social em processos judiciais que discutiam posse e domínio. Também no que dizia
respeito aos títulos ele era importante. Em vários processos, as testemunhas são inquiridas
228
Processo n. 6.039. As testemunhas atestaram que Maria havia dito ter perdido a autorização para pedir
esmolas por sua liberdade. Processo n. 6.039, pp. 84v-107.
229
Processo n. 3.122, pp. 15-16.

81
a respeito da validade dos títulos e atestavam se os tinham visto ou se tinham presenciado
sua confecção.230
Os documentos que Romana havia dito estarem queimados e que, posteriormente,
juntou ao processo foram apresentados às testemunhas para que elas dissessem se os
reconheciam como válidos:

Disse que reconhecia por verdadeira e da própria letra e punho do dito Jozé
da Silva Marques por seu conhecimento que da mesma letra tem em razão
dele testemunha ter aprendido a ler e escrever com o dito Marques, isto
também sem nenhuma oposição dos herdeiros naquela ocasião, vivendo os
mesmos Autores como pessoas livres posto que em companhia do dito
Marques que os tinha e tratava, e reconhecia por seus filhos.231

Durante grande parte do século XIX, a posse permeava as discussões sobre os


títulos de domínio e a validade destes dependia, frequentemente, do exercício de atos
possessórios que os confirmassem. Esse foi o caso, por exemplo, do conflito do casal
Francisco Xavier da Cunha e sua esposa – cujo nome não consta no processo – contra
Ignacio José Dias, todos eles moradores na comarca de Resende, província do Rio de
Janeiro.
Francisco e sua esposa alegavam que eram senhores e possuidores de uma “morada
de casas na Vila do Rosário”. Esse terreno lhes havia sido concedido pela Câmara
Municipal. Além do mais, o terreno tinha sido demarcado e alinhado pelo Fiscal e
Arreador, na presença do Secretário da Câmara, em 1834.232

[…] por se não achar nele outra alguma demarcação, os Autores [Francisco e
sua esposa] o demarcaram, e assinalaram com Esteios grandes de pau, cujo
ato assim fundamentalmente feito, foi praticado publicamente e não foi
impugnado por pessoa alguma, e menos pelo Réu [Ignacio] que nada disto
lhe foi estranho, e tem visto assim aquele terreno demarcado com Esteios dos
Autores e por eles possuído.233

230
Processo n. 866, pp. 62v-72.
231
Processo n. 3.122. Também no processo 284 aparecem depoimentos voltados a prestar reconhecimento social
a documentos.
232
Processo n. 6.588, pp. 3-4v.
233
Processo n. 6.588, pp. 3-3v.

82
Continuaram reafirmando que, desde a demarcação, sempre tinham possuído o
terreno “à vista e face” de Ignacio. Sem embargo, no dia 15 de janeiro de 1835 – duas
semanas antes do ajuizamento da ação –, Ignacio foi até o terreno e fez escavações para
fincar esteios e o demarcar para si. Chegou a fincar um dos esteios e a fazer um buraco
para fincar outro. Tudo isso, ignorando a posse dos autores e a demarcação já feita por
eles.234
Mesmo após o ajuizamento da ação, Ignacio teria continuado a colocar esteios nos
terrenos. Os autores pediram, então, que as obras fossem embargadas, o que foi feito pelo
juiz. Feito o embargo, Ignacio apresentou sua contestação afirmando que Francisco e sua
esposa não tinham “nenhum direito de propriedade, nem posse legítima” sobre aquele
terreno. Em 1832, ele tinha obtido concessão daquelas terras e delas tomou posse efetiva,
fincando dois esteios e fazendo “muitos serviços”. Ocorre que, em maio de 1834, teve que
se ausentar da vila, em razão de seus negócios, voltando em janeiro de 1835 e encontrando
os “atos atentatórios” praticados por Francisco e sua esposa. 235 Para provar o alegado,
juntou, ao processo, um pedido de concessão dos terrenos “devolutos”, que foi deferido, e
um auto de alinhamento.
Ignacio também juntou, ao processo, uma denúncia que havia feito, aos membros
da Câmara, acerca do mal proceder do Fiscal, que havia concedido a Francisco e sua
esposa o terreno que já lhe havia sido concedido. A essa denúncia, o Fiscal respondeu que
era verdade que, em 1832, Ignacio tinha recebido uma concessão do terreno e que o
mesmo tinha sido, inclusive, alinhado. Porém, “nunca nele fez demarcação alguma com
esteios ou estacas, e por isso nunca neles adquiriu posse, e mesmo direito algum”. Isso ia
contra o artigo 21 das Posturas da Câmara, que determinava a demarcação, com esteios e
estacas, dos terrenos concedidos e início de edificação nos mesmos, em um prazo de seis
meses. Quem não o fizesse, “nenhuma posse tem, e menos direito para chamar a si ou
reclamar”. No caso de Ignacio, não se haviam passado apenas seis meses, mas dois anos da
concessão, sem que ele praticasse atos possessórios, “meio este onde adquiria direito”. Por
isso, o terreno foi concedido a Francisco e sua mulher.236

234
Processo n. 6.588, pp. 3-12v.
235
Processo n. 6.588, pp. 13-14.
236
Processo n. 6.588, pp. 18-19.

83
Foram, então, ouvidas as testemunhas. As dos autores reafirmaram sua posse e
confirmaram que Ignacio a tinha esbulhado fazendo os esteios, sendo que, uma delas,
ressaltou que esses esteios tinham sido feitos durante a madrugada. Já as do réu,
confirmaram que ele havia feito serviços no local, antes da concessão feita aos autores.
Ignacio também chamou como testemunhas dois carpinteiros que tinham participado da
medição do terreno. O primeiro disse que, ao ir fincar os esteios na segunda medição,
Francisco e sua esposa não lhe haviam apresentado “título algum” e, por isso, não sabia se
eles tinham “direito de propriedade no lugar”. O outro carpinteiro alegou que, ao ser
chamado para alinhar o terreno, disse que não o faria em razão da primeira concessão já
feia a Ignacio, ao que o Fiscal respondeu que “fizesse o que ele mandava que o réu
[Ignacio] já tinha perdido o direito ao terreno”.237
O juiz determinou, então, uma vistoria no terreno, para determinar quem tinha feito
os primeiros atos possessórios. Pelo que é possível concluir da leitura dos laudos, essa
vistoria foi feita, sobretudo, com base em depoimentos de informantes sobre o exercício ou
não de atos possessórios por Ignacio e o casal Francisco e sua esposa. Ouvidas as
testemunhas e lidos os laudos, o juiz decidiu a favor de Ignacio. Ele considerou que o
fincamento de esteios por ele feito e comprovado pelos depoimentos era ato possessório
suficiente para que fosse confirmado o título de concessão. Por isso, o terreno não poderia
ter sido concedido, uma segunda vez, a Francisco e sua esposa. Insatisfeitos com a decisão,
Francisco e sua esposa apelaram, ao que Ignacio rebateu frisando que:

[…] por aquela legal concessão, e atos possessórios já praticados [Ignacio]


tinha adquirido um inauferível direito, de que não podia ser despojado sem
sua audiência e consentimento, e tal foi o dolo dos Apelantes [Francisco e sua
esposa] neste negócio, que esperaram que o Apelado estivesse ausente para
pedirem aquela concessão, talvez esperando que ele não regressasse mais.
É um princípio certo de Direito, que a posse dá preferência às concessões
posteriores, por consequência ainda quando o Apelado não se achasse
munido do Título Legal f 16 [concessão da Câmara] bastava a posse em que
se achava do terreno para ser preferido aos Apelantes, quanto mais que no
caso sujeito concorriam no Apelado o domínio útil adquirido por aquele
título, e a posse atestada pelas testemunhas da inquirição.238

237
Processo n. 6.588, pp. 22-33v.
238
Processo n. 6.588, pp. 68-68v.

84
Ao final, o TRRJ confirmou a sentença do juiz de primeira instância. Nesse caso,
pode-se ver que mesmo uma concessão de domínio sobre o terreno, emitida por um órgão
público, necessitava do exercício de atos possessórios para que fosse confirmada. Ela, por
si só, não era hábil a garantir o domínio. Ignacio teve seu domínio sobre o terreno
assegurado não porque detinha um documento de concessão, mas porque conseguiu provar
que havia exercido atos possessórios no local antes de Francisco e sua esposa.

Produzindo títulos

Nesse contexto de indeterminação do que eram títulos válidos e de inter-relação


entre posse e título como fundamentos de direitos, os sujeitos que se pretendiam “senhores
e possuidores” de um bem, fosse ele um pedaço de terra, um escravo ou a liberdade,
tinham uma margem de manobra relativamente ampla para produzir documentos que
poderiam, em casos de contestação dos direitos sobre um bem, ser considerados válidos.
Eles procuravam, então, produzir os documentos de acordo com um “senso comum”, um
conhecimento socialmente compartilhado, a respeito da forma e das formalidades que um
escrito deveria ter para que conferisse ou garantisse algum direito sobre um bem.
Voltando ao caso que abriu este capítulo, já mencionei que, antes de passar a carta
de liberdade que instruía o processo, Antonia já havia feito outro documento de alforria
para Felisminda. Ela foi, no entanto, avisada por seu feitor que esse documento não estava
“bem feito”. Foi então que Antonia produziu o documento juntado, seguindo padrões
considerados, por seu feitor e por ela, como mais hábeis a lhe conferir formalidade. Mesmo
assim, anos depois, um terceiro documento foi produzido para “ratificar” esse mais antigo.
O que aconteceu, então, foi que, enquanto a ação de manutenção proposta por Felisminda
tramitava, Antonia produziu outro título, com o objetivo de libertar a escrava. Em 1837,
Antonia fez um documento reiterando que havia concedido liberdade condicional a
Felisminda, em 1809, e, a partir daquele momento, concedia-lhe a “completa liberdade sem
mais obrigação alguma”.239 Contra esse novo documento, o advogado de Francisco adotou
a estratégia de deslegitimar o domínio da mulher casada ao mesmo tempo em que atacava
sua conduta. A carta de alforria de 1837 foi, por ele, caracterizada como o “novo parto dos

239
Processo n. 866, p. 136.

85
desatinos da mulher do Embargado; dessa infame mulher, ébria por hábito; e libidinosa por
natureza; desse monstro”.240 A partir daí, a discussão processual passou a ser sobre a
capacidade de Antonia para passar ou não as cartas de liberdade. Também nisso se focaram
os desembargadores do TRRJ ao decidir definitivamente que Felisminda continuaria
escrava.241
Era considerável a variedade de documentos forjados pelas pessoas no intuito de,
eventualmente, provar seu domínio sobre um bem. Muitas vezes, as partes apresentavam
os comprovantes de pagamento do imposto da sisa como prova do domínio ou como
complemento ao documento que pretendiam provasse seu direito. Pelo que se pode inferir
da leitura dos processos, havia uma noção de que o pagamento do imposto seria uma forma
de legitimar a propriedade, de mostrar ser um “senhor e possuidor” de boa-fé que agia
como tal.242
No caso da Fazenda São Joaquim da Boa Vista, uma das estratégias que Tristão e
Lucia utilizaram para demonstrar que eram suas as terras reclamadas por Silva Prado e
Maria foi juntar “um documento que prova que as terras em que temos posse foram por nós
compradas a seu legítimo posseiro”, com conhecimento e anuência de Silva Prado. O
primeiro documento juntado era uma transação de compra e venda entre Bastos e Sinado e
Tristão, em que aqueles vendiam “uma propriedade de campo que compramos do finado
Pollicino de Souza Bueno” e que fazia limites com a de Silva Prado. Esse documento foi
assinado por Floriano Antonio Nunes e data de 1847. Em seguida, estava um recibo de
pagamento da sisa referente à compra de um campo no Distrito da Palmeira feita por
Tristão José de Oliveira a Floriano Antonio Nunes e sua mulher Laurinda Nunes da Silva.
Por fim, juntaram também uma declaração, de 1835, feita por Joaquim Thomas da Silva
Prado – um dos autores do processo judicial – e endereçada a Floriano Antonio de
Carvalho,243 na qual dizia:

240
Processo n. 866, p. 138v.
241
Como muitas alforrias eram concedidas mediante testamento, esses documentos eram frequentemente
apresentados como títulos de liberdade. Também alguns senhores apresentavam testamentos como títulos de
domínio sobre escravos ou terras. Ver, por exemplo, processos n. 1.854, n. 4.649, n. 7.901, n. 1.295, n. 3.122,
n. 1.811, n. 1.190, n. 1.222, n. 14 e n. 843.
242
Por exemplo, processo n. 44, pp. 14-17, processo n. 866, p. 13-133v.
243
Processo n. 1.385, pp. 87-89.

86
Tendo vindo a esta o Senhor Policino de Souza para que eu lhe desse um
documento, que lhe pudesse garantir sua propriedade para poder fazer venda
dela o que cumpre-me dizer que sobre tal objeto nenhum embaraço ponho
regulando-se pelas divisas que marquei a Antonio Domingues.244

Com esses documentos, apesar das divergências a respeito dos nomes das pessoas
envolvidas nas transações, os réus procuravam estabelecer uma cadeia de transferências
que lhes garantiria a posse sobre as terras compradas – cadeia essa que incluía o
comprovante de pagamento do imposto da sisa. Especificamente a respeito do documento
datado de 1835, Floriano parecia não possuir nenhum comprovante de que as terras que
queria vender a Policino eram realmente suas e, para poder realizar a transação, requereu a
declaração por escrito de Silva Prado. Nesta declaração, a terra especificada era
identificada a partir dos limites de Antonio Domingues. Defrontadas com esses
documentos, as testemunhas do autor afirmaram que, como conheciam o terreno, tinham
segurança de que os documentos apresentados pelos réus não diziam respeito às terras em
disputa, mas a outras.
Outros documentos frequentemente apresentados como provas de transferência do
domínio, nesse caso, sobre a liberdade, eram as autorizações para “pedir esmolas”. Existia,
no Brasil do século XIX, a prática de autorizar os escravos a angariarem fundos para
comprar sua liberdade. Fracassada a busca pela quantia estabelecida pelo senhor, alguns
procuravam os tribunais e argumentavam que não poderiam ser vendidos a outras pessoas,
pois a permissão para arrecadar fundos demitia o domínio do senhor. Foi esse, por
exemplo, o caso de Maria, que será analisado com maiores detalhes adiante. Por ora,
vejamos a defesa do curador de Maria, que queria anular a venda feita pelo seu senhor,
argumentando que a permissão para pedir esmolas tinha demitido dele o domínio e,
portanto, ele não a podia ter vendido.

[…] a Embargante [Catharina, quem comprou Maria] posto que comprasse a


preta Maria de Nação Angola, a João Antunes Corrêa pela quantia de
duzentos mil réis, de cuja compra apresenta o respectivo Documento que
juntou em pública forma a f 13, nem por isso esse título pode constituir a
Embargante no direito e senhorio e posse da dita escrava, porque em vista do
documento de f [permissão para pedir esmolas] jamais podia ser considerada

244
Processo n. 1.385, p. 89.

87
como escrava visto que em data anterior tinha a promessa de sua liberdade
conferida por seu legítimo Senhor que então era o mesmo Corrêa.245

E continuou argumentando que, ao estabelecer um preço pela liberdade de Maria e


permitir que ela fosse arrecadar fundos para comprá-la, seu senhor “celebrou com ela o
contrato no mesmo Papel declarado, e este contrato assim feito e aceito produziu mútuos
direitos, e obrigações mútuas, que não podiam ser por nenhumas das partes arbitrariamente
transgredidas”. Assim, após a entrega da promessa, não tinha mais direito de vender
Maria.246
Também assentos de batismo eram documentos que as partes tentavam fazer passar
como provas de domínio sobre bens. Os párocos e outros membros da igreja católica eram
os responsáveis pelos registros de nascimento, casamento e óbito, no Brasil, desde o
período colonial. Os documentos produzidos por esses párocos possuíam validade oficial,
uma vez que o Estado brasileiro não contava com uma instância de registro civil que
realizasse a função de identificar os nascimentos ocorridos em território nacional.
Ademais, como observou Ariana Moreira Espíndola, as Ordenações Filipinas
determinavam que os escravos “de Guiné” deveriam ser batizados, no prazo de seis meses
contados de que chegasse ao poder do senhor, sob pena de “os perder para quem os
demandar”. Ou seja, nas próprias Ordenações Filipinas havia uma norma que dotava os
assentos de batismo de força probatória do domínio. 247 Por vezes, os assentos eram usados,
também, como provas de liberdade, um vez que, neles, era indicado se a pessoa batizada
era livre ou escrava.248
No entanto, mesmo os assentos de batismo, por vezes, eram contestados ou
relativizados como títulos de domínio:

[…] conquanto tenha força de escritura pública o assento de batismo, in fide


Parochi, é ele somente a certos respeitos, e isso mesmo dependente, em
certos atos, do concurso de testemunhas, como seja para certificar o
casamento, e naquele para provar o batismo, isto é, que foi batizada, nunca

245
Processo n. 6.039, p. 41. Ver, também, processo n. 13.205, que analisei, em detalhes, em DIAS PAES.
Sujeitos da história, sujeitos de direitos.
246
Processo n. 6.039, p. 71.
247
ESPÍNDOLA. Papéis de escravidão, pp. 132-136.
248
Para exemplos de casos nos quais foram apresentados assentos de batismo, ver processos n. 13.763, n. 14.485
e n. 284.

88
porém para a transmissão de direitos, como seja a conferência de liberdade ao
escravo, que exige requisitos e solenidades de direito, passado ou cedido por
pessoa competente, do direito seu, em caso algum do direito alheio.249

Todos esses documentos – cartas de alforria, testamentos, comprovantes de


pagamentos da sisa, papéis de compra e venda, assentos de batismo, entre outros –
constituíam o mosaico de possibilidades que se abria aos sujeitos históricos para
produzirem títulos, entendidos como documentos escritos, sobre os bens que pretendiam
seus. A indeterminação em que estava mergulhada a produção e o reconhecimento desses
títulos conferia, a esses sujeitos, certa liberdade para produzir seus documentos. No
capítulo seguinte, veremos que essa indeterminação dava margem a práticas astuciosas e
violentas de criação de títulos. Antes, porém, vejamos como a demarcação de terras se
relacionava com esse processo de produção de títulos de domínio.

Produzindo títulos por meio de demarcações judiciais

A Coroa portuguesa adotou diferentes estratégias de ocupação das terras nos


territórios coloniais, a depender das populações que encontraram, das características da
colonização e da produção econômica dos territórios. Do ponto de vista jurídico, as
sesmarias foram um instituto largamente empregado no circuito atlântico, enquanto as
enfiteuses e os prazos foram bastante comuns nas colônias do Oceano Índico.250
No que diz respeito às sesmarias, há certa tendência, em parte da historiografia
brasileira, de considerá-las como expressão ou como gérmen da propriedade individual.
Nesse sentido, títulos de concessão de sesmarias seriam análogos a títulos de
propriedade.251 Porém, como venho argumentando, não havia a ideia de propriedade
individual durante o período colonial e do direito comum. Apesar de não poderem ser
consideradas como títulos de propriedade individual, as concessões e confirmações de
sesmarias poderiam funcionar como títulos de domínio.

249
Processo n. 11.321, p. 117v.
250
DIREITO; MIRANDA; RODRIGUES; SERRÃO. Property Rights, Land and Territory in the European
Overseas Empires; MACHADO; MOTTA; SERRÃO. Em terras lusas; RODRIGUES; SERRÃO.
“Migration and Accommodation of Property Rights in the Portuguese Eastern Empires”.
251
ALVEAL. Identidades senhoriais e conflitos; MOTA. “Sesmarias e propriedade titulada da terra”; e
MOTTA. Direito à terra no Brasil.

89
Os processos de ocupação fundiária eram dinâmicos. Novas pessoas iam se
instalando nas terras das sesmarias, agregados eram incorporados, o sesmeiro exercia posse
sobre terras contíguas, etc. Periodicamente, os ocupantes sentiam a necessidade de colocar
as coisas em seus termos, o que poderia gerar conflitos ou soluções amigáveis. Essa
dinâmica fazia com que, mesmo dotados de títulos de concessão e confirmação, alguns
sesmeiros requeressem novas reafirmações de seus direitos, por exemplo, via demarcações
judiciais.
O processo de medição ajuizado pelo reverendo Francisco do Carmo Frois e por
Henrique da Silva Barboza é bastante elucidativo dessa dinâmica de produção periódica de
títulos. Em 1837, eles requereram a medição e demarcação de uma légua de testada e uma
de fundo de terras situadas na comarca de Barra Mansa, província do Rio de Janeiro. Eles
afirmaram que eram senhores e possuidores de uma sesmaria já confirmada que obtiveram
por compra aos herdeiros de João da Costa. E acrescentaram que, apesar de estarem de
posse da sesmaria há anos, queriam medi-la e demarcá-la à vista dos “títulos” que
apresentavam. Para fundamentar seu pedido, apresentaram os mais diversos tipos de
documentos – que chamavam de “títulos” –, com o objetivo de estabelecer uma cadeia de
domínio que legitimasse seu pedido de demarcação. Passo à análise de cada um desses
documentos.
O primeiro era uma pública forma da concessão e da confirmação de uma sesmaria
a Antonio Ferreira da Costa. A concessão da sesmaria foi feita em 1786. No pedido,
Antonio argumentou que ele “se achava arranchado” em terras devolutas e “como tinha
força para cultivar meia légua de terras de testada com uma de fundo queria possuí-la com
títulos seguros”. A medição da sesmaria deveria começar em um “córrego defronte à dita
Cachoeira correndo a testada Rio abaixo rumo direito até onde alabar e os fundos para o
sertão tudo conforme os ventos que correrem”. Ao final, pedia que as terras fossem
concedidas por sesmaria “para as poder possuir com títulos seguros”.252
Assim como no caso de Antonio, era muito comum que pessoas que já ocupavam e
exerciam atos possessórios em pedaços de terras os requeressem, após algum tempo, como
sesmarias.253

252
Processo n. 29, pp. 3-7.
253
Veja-se, por exemplo, a Plataforma Sesmarias do Império Luso-Brasileiro, disponível em:
www.silb.cchla.ufrn.br.

90
Analisado o pedido, as terras foram concedidas a Antonio em sesmaria “com
declaração de que as cultivará e mandará confirmar esta minha carta por sua Majestade
dentro de dois anos e não o fazendo se lhe denegará mais tempo e antes de tomar posse
delas as fará medir e demarcar judicialmente”. Além disso, Antonio não poderia cortar as
árvores Tapinhoãs e Perobas que houvesse no local, a não ser que fosse para construir naus
para a rainha de Portugal. Também deveria cuidar dessas árvores onde já estivessem
plantadas e construir estradas e pontes sobre rios caudalosos, reservando, em uma das
margens, meia légua de terras para a comunidade pública. Havia, ainda, a restrição de que
nenhuma pessoa eclesiástica poderia receber essas terras em sucessão. Por fim, a Coroa se
reservava o direito sobre as minas que, eventualmente, fossem encontradas na região, bem
como o direito de aí fundar vilas. Essa concessão foi confirmada em 1797, ou seja, onze
anos depois.254
O segundo documento era a pública forma do termo de posse judicial requerido por
Antonio, em 1798. O pedido de Antonio foi concedido e foi realizada a cerimônia de
tomada de posse judicial, já descrita no capítulo anterior. 255 Esses ritos de tomada de posse
tinham, como efeito, concretizar o ato de outorga do título. Era uma materialização da
concessão, um ato diferente daquele de ir a um escrivão e elaborar um documento, um
procedimento, em certo sentido, mais abstrato do que as cerimônias de posse. 256 Na mesma
pública forma, havia um termo de cessão de sesmaria, datado de 1799, no qual Antonio e
Maria Joaquina – possivelmente sua esposa – cediam as terras a seus pais. A cessão foi
feita nos seguintes termos:

[…] meus Pai se fizeram até ao ponto em que se acha a dita sesmaria na qual
se gastou mais de cem mil réis e também lhe pertenciam as ditas terras
porque compraram as primeiras posses de Salvador de Fristas e continuaram
a cultivarem tudo a custa deles antes de haver Títulos por cuja Causa
cedemos e trespassamos nas pessoas dos ditos nossos Pai todo o jus e
domínio que nelas e nas ditas terras podíamos ter e de hoje para sempre lhe
fica pertencendo por este pertence que valerá como Escritura Pública aliás
Escritura e poderá vender e dispor como quiserem.257
254
Processo n. 29, pp. 3-7.
255
Processo n. 29, pp. 9-9v.
256
Sobre as diferenças entre as concepções subjacentes às cerimônias de tomada de posse e as relativas a
transações contratuais, ver BASTIAS SAAVEDRA. “The Lived Space”.
257
Processo n. 29, pp. 9v-10.

91
O terceiro documento era um papel de venda, no qual o casal Manoel Lourenço do
Valle e Anna de Oliveira vendiam, a Henrique (um dos autores do processo analisado), a
“oitava parte da sesmaria da parte d’além do Rio Paraíba que nos coube por herança do
falecido meu sogro e pai João Ferreira da Costa”, em 1822.258
O quarto documento, datado de 1827, era uma escritura de venda de terras, na qual
figuravam, como vendedores, o casal Joaquim Borges de Faria e Angelica Roza da
Conceição e, como comprador, o reverendo Francisco (o outro autor do processo
analisado). O objeto da venda foi:

[…] [Joaquim e Angelica são] senhores e possuidores de uma parte de terras


na paragem denominada Boca da Cachoeira além do Paraíba que houveram
por compra feita a Antonio José da Silva Negrão de cento e setenta e cinco
braças que houve por dívida de Maria Moreira sogra do dito Negrão
desmembradas da sesmaria pertencente aos herdeiros do falecido João
Ferreira da Costa e bem assim um cultivado que houveram por compra de
José Alvares Oliveira contra posse no Ribeirão da palha por compra feita a
José Duarte em cujo lugar se acha um cafezal de dois mil pés de café pouco
mais ou menos e um bananal, casas cobertas de [ilegível] de Laranjeiras
quatro de Limoeiros e também nas terras desmembradas da sesmaria se
acham oito mil pés de café pouco mais ou menos casas cobertas de palha e
um paiol de dois [ilegível] nas terras que foram de José Oliveira se acham
três mil e quinhentos pés de cafés paiol coberto de [ilegível] cujas terras
assim relatadas e benfeitorias expressadas e todos os mais que nos ditos
terrenos se acharem sem exceção alguma […]259

O quinto documento também era um papel de venda. Nele, Bento Ferreira da Costa
vendia a Henrique “uma parte das terras que me tocou por parte do defunto meu Pai João
Ferreira da Costa”. O vendedor também se comprometeu a “passar-lhe [a Henrique]
escritura pública quando lhe seja preciso”. Essa transação foi realizada em 1825.260
O sexto documento, datado de 1836, era o papel da venda que o casal Luis
Francisco da Costa e Anna Maria de Jesus fez a Henrique, de “uma parte de terras que

258
Processo n. 29, pp. 3-7.
259
Processo n. 29, pp. 13-13v.
260
Processo n. 29, p. 16.

92
houvemos por herança”, transferindo ao comprador “todo o domínio e senhorio que nelas
tínhamos”. Também nesse caso, os vendedores se comprometeram a passar escritura
pública quando fosse pedida.261
Por fim, o sétimo documento era uma escritura de venda de duas partes de terras,
feita em 1828 e por meio da qual o casal Joaquim da Silva Tavares e Marianna Custodia
Jesus vendeu a Henrique duas partes de terras situadas na fazenda de João Ferreira, que
havia adquirido por herança de seus pais José Ferreira e Maria Custódia. Os vendedores
também ressalvaram que as terras ainda estavam em comum com os demais herdeiros.262
Para a maior parte das terras disputadas nos processos analisados, não era possível
estabelecer uma cadeia documental tão extensa quanto a que acabo de expor. Porém,
mesmo quando isso era possível, como no caso analisado, esses documentos não
estabeleciam uma cadeia de domínio clara das terras que os autores da ação judicial
queriam ver demarcadas. Diversos são os elementos que impedem o estabelecimento dessa
cadeia: não há menção de quem eram os “pais” que receberam a cessão das terras no
segundo documento; muitos dos compradores e vendedores não indicam a origem de seu
domínio nem são claramente herdeiros de outros donos; não está claro se há sobreposição
dos terrenos, já que a maneira como são descritos varia de um documento a outro; algumas
vendas foram feitas a Francisco, enquanto outras o foram a Henrique, sendo que os dois
pediram a demarcação conjunta das terras; etc. Ainda assim, os autores acreditavam que,
com esses documentos, seria possível comprovar o domínio que pretendam legítimo sobre
a porção de terras a ser demarcada, o que indica que havia um entendimento de que era
possível certa flexibilidade na constituição das cadeias dominiais.
Antes de iniciar o processo de medição, Henrique e o reverendo Francisco
chamaram os confrontantes para uma audiência de conciliação, na qual ressalvaram que,
apesar de já estarem de posse das terras, as queriam medir e demarcar. Também afirmaram
que apresentariam os títulos oportunamente. Os confrontantes compareceram à audiência,
mas ressalvaram que “não sabem se serão ou não prejudicados com a tal medição”.263
Iniciada a medição, foi “encontrado no rumo dos fundos alguns moradores”. Assim,
Henrique e o reverendo Francisco pediram ao juiz que os citassem, para apresentarem seus
títulos em audiência. Dentre os que compareceram, Manoel Antonio da Silva Porto
261
Processo n. 29, p. 17.
262
Processo n. 29, pp. 18-19.
263
Processo n. 29, pp. 20-24.

93
apresentou um título que o juiz considerou “mais moderno” que o dos autores e mandou
que se prosseguisse na medição. Seguindo na medição, encontraram também terras
cultivadas por Manoel que, novamente, havia declarado que sua propriedade estava sendo
prejudicada pelo procedimento de medição e demarcação.264
Finda a medição, vários confrontantes se insurgiram contra ela e apresentaram
petições ao juízo, argumentando que o procedimento os havia prejudicado e ofendido em
seus direitos. Essas contestações foram, no entanto, desconsideradas pelo juiz, que julgou a
demarcação “boa e valiosa”.265 O confrontante Jozé Hypolito da Silva, porém, não se
conformou com a decisão do juiz e opôs embargos à decisão que ratificou a medição e
demarcação. Uma de suas estratégias foi, justamente, indicar as falhas na cadeia dominial
produzida pelos autores. Seu advogado argumentou que os autores não poderiam exigir a
presente medição judicial, porque, além de não serem os sesmeiros originais, haviam
comprado de pessoas diferentes tanto terras, como cultivados e “uma posse”, tudo isso
“sem designação de braças certas”. A medição só poderia ter sido requerida se tivessem
apresentado “documentos autênticos”, que indicassem “uma quantidade certa de braças, de
que fossem senhores, e possuidores”. Como não apresentaram esses documentos, a
medição tinha abrangido terras que não lhes pertenciam.266
Para provar que era “legítimo senhor e possuidor” das terras que haviam sido
abrangidas na medição, Jozé da Silva apresentou dois documentos. O primeiro era um
papel de venda, datado de 1825, no qual o casal Venancio Alvarez de Oliveira e Jertrudes
Maria da Conceição lhe vendiam “umas Posses em o Lugar chamado Córrego dos Quatis”.
Esse documento indica que o que foi vendido foram “posses”. No entanto, a forma do
documento seguiu a dos papéis de venda em geral, inclusive, com a cláusula em que a
parte vendedora se obrigava a passar escritura pública, caso fosse necessário. 267 A escritura
foi, de fato, passada em 1834. Este foi o segundo documento que Jozé da Silva apresentou:
uma “escritura de venda, dívida e obrigação” cujo objeto de venda era uma “sorte de terras
no lugar denominado Córrego dos Quatis”.268 Ou seja, agora, o terreno já não mais figurava
como uma “posse”, mas como uma “sorte de terras”. Além disso, entre o papel de venda e

264
Processo n. 29, pp. 50-53v.
265
Processo n. 29, pp. 69-81.
266
Processo n. 29, pp. 89, 101v-102.
267
Processo n. 29, p. 103.
268
Processo n. 29, pp. 105-105v.

94
a escritura houve um lapso temporal de quase dez anos. Talvez, o que tenha gerado a
necessidade de elaborar a escritura tenha sido um possível início de conflitos com os
autores ou com outros confrontantes. Jozé da Silva, ao anexar a escritura, também frisou
que ela vinha acompanhada do recibo de pagamento da sisa referente à transação.
O juiz aceitou os documentos apresentados por Jozé da Silva como hábeis a
comprovar que ele era um dos confinantes do terreno demarcado. Como ele não havia sido
citado para a conciliação e para assistir à demarcação, o processo era nulo. 269 Os autores,
inconformados, apelaram dessa sentença e, contra os documentos apresentados por Jozé da
Silva, mobilizaram um já nosso conhecido argumento: a posse. Perante o TRRJ, o
Henrique e o reverendo Francisco defenderam que os documentos apresentados não
mostravam que Jozé da Silva era o atual possuidor do terreno. Quem, de fato, exercia posse
sobre aquelas terras era seu irmão e, portanto, era ele quem tinha legitimidade para
contestar a medição, não Jozé da Silva.270
Henrique e o reverendo Francisco também mobilizaram contra Jozé da Silva o fato
de ele se referir ao terreno como “Moquem” e o lugar estar denominado, nos documentos,
como “Córrego dos Quatis”. Contra isso, Jozé da Silva alegou que trocar a denominação
do terreno não era prova de que ele não era o dono. Ademais, os documentos apresentados
provavam plenamente seu domínio e posse. E arrematou: “Miserável direito de
propriedade que tênue fio pende a tua segurança!”.271 Ou seja, para Jozé da Silva, a
denominação que um terreno recebia não era um ponto relevante para sua definição. De
fato, o que se vê ao longo dos processos analisados é que havia uma grande variedade de
denominações utilizadas para se referir aos terrenos contestados. Mais uma vez, o
reconhecimento da comunidade e o conhecimento compartilhado a respeito das
denominações geográficas da região poderiam ser determinantes no resultado de um
processo judicial.
Nas ações de demarcação de terras, o reconhecimento social incidia de duas
maneiras. Em vários casos, os limites das terras eram definidos em relação aos terrenos de
outras pessoas. Ou seja, incidia aí um entendimento compartilhado de quem eram os
senhores e possuidores locais e sobre quais terrenos eles exerciam direitos. Nesses casos,
também as transações de transferência de domínio dependiam de reconhecimento social
269
Processo n. 29, pp. 108-109.
270
Processo n. 29, pp. 132v-133v.
271
Processo n. 29, pp. 136-141v.

95
para serem legitimadas. A segunda maneira pela qual incidia o reconhecimento social era
quando, em processo de demarcação, os pilotos e juízes inquiriam habitantes locais sobre
quais eram os limites do terreno que estava sendo demarcado.
A produção de títulos, no sentido amplo que essa palavra tinha no direito comum,
foi sendo filtrada, ao longo do século XIX, pelos processos de demarcação. Nessa
filtragem, uma série de documentos – imiscuídos com relações de posse, em um ambiente
de grande valorização do reconhecimento social da titularidade sobre bens – era substituída
por um documento capaz de figurar como título, já no sentido mais estrito de documento
escrito que individualizava um proprietário. No caso específico das sesmarias, os seus
títulos de concessão e confirmação não expressavam, no direito comum, um direito de
propriedade. Porém, ao longo do século XIX, esses títulos de domínio poderiam ser
filtrados, por meio dos processos de demarcação, e acabarem por serem “convertidos” em
títulos dessa natureza.

Invalidando títulos: as mulheres casadas

A história da posse, do domínio e da propriedade não é masculina. De ambos os


lados do Atlântico, as mulheres estavam envolvidas nas mais variadas atividades
econômicas, adquirindo e alienando terras e escravos ou procurando angariar dinheiro para
comprar sua liberdade e de seus familiares. De senhoras de escravos, fazendas e agregados
a escravas que trabalhavam no ganho, as mulheres também movimentavam a economia
atlântica. A vida econômica dessas mulheres tampouco era geograficamente estática.
Pesquisas recentes mostram que algumas “Donas” possuíam bens na América e na África,
viajando de um lado a outro do Atlântico para gerir seus negócios. Outras estavam
envolvidas no comércio negreiro transatlântico. Em relação às mulheres escravas e libertas,
algumas tinham a possibilidade de se locomover, cruzando fronteiras, na busca pela
liberdade ou por melhores condições de vida.272
Os processos analisados nesta pesquisa também evidenciam uma participação ativa
das mulheres na economia do Brasil Império. Apesar disso, como já apontei em outros

272
Por exemplo, ALEGRIO. Donas do café; ALMEIDA. Entre engenhos e canaviais; CANDIDO. “Women,
Family, and Landed Property in Nineteenth-Century Benguela”; CANDIDO; RODRIGUES. “African
Women’s Access and Rights to Property in the Portuguese Empire”; GONZÁLEZ UNDURRUAGA;
VELÁZQUEZ. Mujeres africanas y afrodescendientes, HÉBRARD; SCOTT. Provas de liberdade; VEIGA.
Vida após a morte; e VILLA. Produzindo alforrias no Rio de Janeiro do século XIX, pp. 32-36, 98-102.

96
momentos, por vezes, as mulheres estavam presentes nos processos, mas seus nomes não
eram explicitados, aparecendo, somente, os nomes dos maridos. O direito brasileiro
oitocentista tinha mecanismos que faziam com que as atividades econômicas das mulheres
fossem, por vezes, judicialmente apagadas e desconsideradas. Nesta seção, analiso um
desses mecanismos: a contestação judicial de documentos e títulos produzidos por
mulheres casadas. Comecemos com o caso da compra de Maria por Catharina.
Maria era uma escrava de “Nação Angola” e pertencia a João Antunes Correa.
Quando já tinha, aproximadamente, cinquenta anos, no dia 8 de junho de 1849, João
Antunes lhe deu permissão para recolher “esmolas” no valor de noventa mil réis, para
pagar por sua liberdade. A licença seria válida até 17 de junho de 1849. Ao final dos nove
dias, Maria ainda não tinha conseguido a quantia para comprar sua alforria. Ela foi, então,
conversar com uma comadre de João Antunes para lhe pedir que interviesse a seu favor,
conseguindo a prorrogação do prazo. Essa tentativa, porém, não foi bem sucedida e João
Antunes decidiu vender Maria a Catharina Luiza da Conceição. A venda foi formalizada
no dia 5 de outubro de 1849 e Catharina pagou duzentos mil réis por Maria.
Na ocasião da venda, Maria estava trabalhando como escrava alugada na casa de
Joaquim Luis Correa e não se conformou com a transação que barraria a possibilidade de
pagar por sua liberdade. Por isso, ao chegar à casa de Catharina, disse que necessitava
voltar à casa onde estava alugada para pegar umas roupas que tinha esquecido. Maria, no
entanto, usou essa oportunidade para fugir e, em 22 de outubro de 1849, compareceu
perante o juiz municipal de Rio Bonito. Aí, apresentou a licença dada por João Antunes
para que ela pedisse esmolas por sua liberdade e depositou os noventa mil réis. Catharina,
no entanto, ao saber do pleito, embargou-o, apresentado uma pública forma do papel de
venda que tinha Maria como objeto.
Um dos argumentos que o curador de Maria utilizou para defender sua liberdade foi
o de que o processo estava eivado de nulidades. Uma dessas nulidades era o fato de que
Catharina estava em juízo sem o consentimento de seu marido.
Catharina, em um primeiro momento, argumentou que esse consentimento estava
expresso na procuração passada a seu advogado. O texto da procuração era: “[…] perante
mim Tabelião, comparece como Outorgante Leandro Antonio de Souza; e sua mulher
Dona Catharina Luiza da Conceição autorizada por seu marido”. 273 Além disso, citou os

273
Processo n. 6.039, p. 18.

97
juristas portugueses Manuel Borges Carneiro e Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, para
quem as mulheres casadas poderiam figurar em juízo se autorizadas por seus maridos. 274 A
autorização necessária estaria suprida pela procuração.
O curador, então, ajustou o argumento da incapacidade de Catharina e argumentou
que seu marido não a havia autorizado a realizar a compra de Maria. Catharina não poderia
ter contratado a compra de Maria sem mostrar a autorização de seu marido, que era o
cabeça de casal e administrador dos bens enquanto fosse vivo.275
O juiz, ao tomar sua decisão, ateve-se à questão da incapacidade da autora.
Concordando com o curador, ele considerou que Catharina, por ser uma mulher casada,
não poderia ter realizado o contrato de compra de Maria sem o consentimento de seu
marido. Portanto, era insubsistente a venda e Catharina não era senhora de Maria, já que “a
comprou sem o poder fazer”.276 Dessa decisão, embargou Catharina, reafirmando a
validade da compra de Maria:

[…] enquanto por via de regra não possa a mulher casada realizar tais
contratos, sem licença de seu marido, todavia essa regra sofre uma limitação
a respeito da Embargante [Catharina], que sendo casada a cerca de 50 anos
está no costume de negociar por sua conta e risco, independente de seu
marido, comprando, vendendo, tendo em separado as suas roças, escravos e
negócios, e dando dinheiros a prêmio […] não tendo seu marido impugnado
jamais esse procedimento da Embargante, até nele tem bastante consentido
[…] tanto mais vivendo a Embargante em [ilegível] separada.277

Paralelamente ao processo ajuizado por Maria, em 1850, Catharina iniciou uma


justificação. Um dos itens que queria justificar em juízo era: “que sendo a suplicante
[Catharina] casada a quarenta e tantos anos, está no costume de negociar por sua conta,
independente de seu marido, que tacitamente lhe concedeu o comprar, e vender, ter as suas
roças separadas, escravos em negócio e até dar dinheiros a prêmio”. 278 Foram ouvidas seis
testemunhas. Todas elas confirmaram que conheciam Catharina e que seu marido,
274
CARNEIRO. Direito civil de Portugal, tomo 2, p. 97 e SOUSA. Primeiras linhas sobre o processo civil, pp.
30, 34.
275
Processo n. 6.039, pp. 79v-80.
276
Processo n. 6.039, pp. 69-69v.
277
Processo n. 6.039, pp. 83-83v.
278
Processo n. 6.039, pp. 93-93v.

98
Leandro, consentira tacitamente que ela realizasse todas essas atividades. Deram, ainda,
detalhes da atuação econômica de Catharina, o que evidencia, mais uma vez, a importância
do reconhecimento social, de ser reconhecido como um agente econômico ativo na
comunidade e, portanto, uma legítima senhora.

[…] sabe a quatorze para dezesseis anos, desde do tempo, que fora oficial de
justiça do juiz de órfãos de Itaborahy, que algumas vezes pousando e estando
em casa da justificante [Catharina] aí presenciou, que esta morava em
companhia de sua digo de seu marido Leandro Antonio de Souza, estando
sempre no costume de negociar por sua conta o que ele testemunha, sabe que
ainda hoje o faz independente de seu marido, que tacitamente lhe consente,
comprar, vender, ter suas roças separadas, escravos separados, tanto, que na
época que ela testemunha se referiu, que a justificante tinha um sítio com
escravos, os quais faziam todo o serviço da lavoura separado, do marido da
justificante e por conta desta, que dos mesmos mantimentos dispunha como
lhe parecia, e fazia conta deles sem nisso se meter o dito seu marido. 279

E outra testemunha afirmou:

[…] sabe por ser público e por ver em razão do pleno conhecimento que tem
da justificante [Catharina] pois desde pequeno ele testemunha a conhece, que
é casada, e está no costume de negociar por sua conta independente de seu
marido, que tacitamente lhe concedeu comprar, e vender, ter as suas roças
separadas escravos e negócio, e até dá dinheiros a prêmio, pois ele
testemunha haverá oito para nove anos vendeu um cavalo a justificante por
quarenta e oito mil réis, e haverá quatro para cinco anos, que José Ferreira
Coelho irmão dele testemunha lhe dissera, que tinha pedido cem mil réis
emprestado a justificante.280

E ainda:

[…] costumando ele testemunha alugar sua tropa de bestas à justificante para
botar mantimentos para o Porto das Caixas, e indo uma ocasião pedir a
Leandro Antonio de Souza marido da justificante o aluguel das bestas o
mesmo lhe dissera, que fosse exigir de sua mulher pois esse negócio não era
279
Processo n. 6.039, pp. 102v-103.
280
Processo n. 6.039, p. 107.

99
com ele sendo a justificante, quem lhe pagou bem como em outra ocasião
[ilegível] sua tropa com mantimentos da justificante no caminho do Porto das
Caixas se perderam dois sacos de feijão branco, e querendo ele testemunha
pagar ao dito Leandro Antonio este não quis receber dizendo, que fosse pagar
a sua mulher o que ele testemunha assim o fez dando ela o preço do feijão.281

O juiz da justificação considerou provado que Catharina, há vinte anos, vivia “em
economia separada do seu marido”.282 Com essa sentença em mãos, Catharina a juntou ao
processo iniciado por Maria, com o objetivo de reforçar sua legitimidade como senhora da
mesma. Para se resguardar, também frisou: “Demais o ato simples de uma compra não
constitui comércio, e independente dessa autorização a Embargante [Catharina], bem como
qualquer menor, qualquer escravo, pode comprar coisas de pequena importância”.283
A procuração e os depoimentos das testemunhas convenceram o juiz, que reformou
a sentença, considerando que Catharina havia sido autorizada por seu marido a negociar e,
portanto, havia comprado Maria de maneira válida, sendo sua legítima senhora.284
Assim como ocorreu com Catharina, as mulheres casadas proprietárias poderiam
viver por longos anos administrando seus bens e realizando transações comerciais e, ainda
assim, terem sua atuação contestada no momento de um processo judicial. Sua
incapacidade civil era um fantasma que pairava sobre elas e que poderia – e, de fato, o era
–, a qualquer momento, ser usada para invalidar seus contratos e os títulos de transmissão
de bens – e liberdade – por elas produzidos.
As mulheres casadas estavam sujeitas ao poder marital, que era um dos efeitos do
casamento civil. O marido era considerado o chefe da família, o cabeça de casal e,
portanto, detinha o poder de administrar os bens do casal e era o representante da esposa,
considerada como civilmente incapaz. O poder marital não estava previsto em lei escrita,
era uma construção, sobretudo, doutrinária e jurisprudencial. Já as viúvas e solteiras não
eram consideradas civilmente incapazes, apesar de estas últimas frequentemente estarem
sujeitas ao pátrio poder. Porém, sua autonomia jurídica relativa também era
constantemente atacada como, por exemplo, em uma nota da Consolidação das leis civis,

281
Processo n. 6.039, pp. 108-108v.
282
Processo n. 6.039, p. 110.
283
Processo n. 6.039, p. 114v.
284
Processo n. 6.039, p. 119.

100
em que Freitas brada: “Se o modelo é a mulher independente, solteira ou viúva, não tereis
casal, sem casal não tereis família, sem família não tereis sociedade civil”.285
Ser viúva, no entanto, dava alguma margem de manobra às mulheres. No caso de
Felisminda, por exemplo, o advogado de Antonia procurou argumentar que a carta de
alforria tinha sido feita em 1809, enquanto Antonia ainda não tinha se casado com
Francisco, podendo, portanto, “fazer as liberalidades, que quisesse; porque se achava
viúva, e senhora de seus bens”.286

Sabemos que para se conferir a liberdade a um escravo, se faz necessário ter-


se nele pleno domínio, assim como plena vontade, e livre consentimento. […]
A mulher do Embargado [Antonia] então viúva, senhora, e possuidora dos
bens, que ficaram por morte do seu marido, bem podia forrar seus escravos,
livrando-os de toda a escravidão; e por causas de ingratidão revogar a
liberdade, que desse a esses libertos, e reduzi-los à servidão […]287

Como ocorreu no caso de Felisminda, os documentos de liberdade produzidos por


mulheres casadas eram reiteradamente contestados judicialmente e, na maioria dos casos,
eram declarados inválidos pelos juízes, uma vez que se alegava que essas mulheres,
civilmente incapazes, não tinham tido autorização de seus maridos para conceder a
alforria.288
Fazia parte da estratégia judicial de deslegitimar os títulos produzidos por mulheres
casadas atacar seu comportamento. No caso de Felisminda, por exemplo, Francisco usou
como argumento, no processo, o fato de que Antonia, que “por desgraça do Réu é sua
mulher”, causava-lhe vergonha por ser “tão devassa, e de costumes tão corrompidos”.
Como se não bastasse seu comportamento, Antonia “depois de haver apunhalado a honra
do seu marido de maneira a mais infame, tratou de também o lesar em seus bens”,
alforriando condicionalmente Felisminda. Ela também foi acusada de embriaguez e de ter
tido vários casos.289

285
AMARAL. Resistência feminina no Brasil oitocentista, pp. 94-117; FREITAS. Consolidação das leis civis,
pp. 146-147; e PEREIRA. Direitos de família, pp. 77-78.
286
Processo n. 866, p. 76v.
287
Processo n. 866, pp. 148v-150.
288
Analiso esses casos detalhadamente, em DIAS PAES. Sujeitos da história, sujeitos de direitos, pp. 86-99.
289
Processo n. 866, pp. 39, 119-119v, 140-145v.

101
Por vezes, no entanto, era necessário fazer com que as mulheres assinassem os
títulos de transmissão de direitos sobre as coisas, uma vez que seu consentimento era
necessário nas alienações de bens imóveis.290 Isso também poderia gerar inúmeros conflitos
e atos de violência contra mulheres que se negassem a assinar os documentos. Vejamos,
por exemplo, o processo que discutiu a posse e o domínio sobre terras situadas em um
local denominado Floresta, no município de Paraíba do Sul, província do Rio de Janeiro.
Em 1877, Francisco Gomes da Silva e sua esposa – cujo nome não pude identificar
– compareceram perante o juízo municipal, alegando que as sortes de terras sobre as quais
exerciam posse mansa e pacífica lhe haviam sido vendidas por Firmino Gomes de Aguiar e
Dona Maria Luiza de Mattos. Porém, passado algum tempo, Firmino e Maria Luiza
venderam as mesmas terras a Joaquim Antonio de Macedo Tupinambá, que agora estava
colhendo nos cafezais plantados pelos autores. A venda feita a Tupinambá era “criminosa”,
segundo a alegação dos autores, e este deveria ser impedido de continuar esbulhando seus
cafezais. O juiz, então, intimou Tupinambá para prestar seu depoimento.
Na audiência, ele confirmou que Firmino e Maria Luiza tinham vendido terras a
Francisco e sua esposa. Porém, essa venda tinha sido realizada sem o consentimento de
Maria Luiza. Dizia saber, por ouvir à própria Maria Luiza e a muitas pessoas, que ela
estava presente no momento de confecção da escritura de venda, porém, não a quis assinar,
pois não consentia na transação. Tampouco havia pedido a um tal Villaverde que assinasse
por ela, a rogo, como se não soubesse ler nem escrever. Maria Luiza também teria dito a
Tupinambá que, com o intuito de obrigá-la a assinar a escritura, seu marido a havia
mantido reclusa por três dias. Ademais, Tupinambá atestou que Maria Luiza, de fato, sabia
ler e escrever, pois ela, há algum tempo, havia assinado uma escritura por meio da qual lhe
vendia umas benfeitorias. Chamada a depor, Maria Luiza deu mais detalhes sobre a
violência que havia sofrido:

Disse que não foi ela quem consentiu na Escritura de compra, e venda a
folhas 6 que lhe foi lida, sendo certo porém que o seu marido assinou a
mesma Escritura […] mas ela testemunha não assinou essa Escritura, e nem
pediu a José Marques Villaverde para fazê-lo a seu rogo, dando-se por essa
ocasião as circunstâncias que passa a expor: o seu marido Firmino Gomes de
Aguiar foi induzido pelo mesmo Villaverde […] a vender as terras de que se

290
AMARAL. Resistência feminina no Brasil oitocentista, pp. 98-100.

102
trata […] a que ela depoente sempre se opôs, e que seu marido procedesse
assim [ilegível] havia ela infalivelmente de assinar a escritura; tanto mais,
quanto se havia casado, e nada tinha trazido para a comunhão conjugal, e que
por isso não devia opor-se a que seu marido dispusesse de seus bens
[ilegível]. Achando-se por esse tempo a sua mãe em casa dela depoente, e
receando que seu marido lhe fizesse algum mal consultou a mesma sua Mãe,
e depois de ouvi-la assentiu em ir a Bemposta afim de passar esta Escritura;
mas declarou logo, em sua casa, ao já referido Villaverde, que não assinaria a
Escritura se não na presença de seu Pai natural, José Antonio de Souza
Mello. Chegando ela à Bemposta aí não achando seu dito Pai para consultá-
lo, como o esperava, porque o mesmo Villaverde lhe havia prometido mandar
chamá-lo, para assistir com ela passar-se a Escritura de venda das terras […]
quando [ilegível] ela depoente para ir a Benposta passar a Escritura estava
com um pau na mão, e lhe disse que se não o acompanhasse lhe daria uma
surra […] Se não fosse esta ameaça ela depoente não iria a Bemposta, nem
mesmo com a condição de se assinar a Escritura na presença de seu pai
natural, depois de ouvi-lo para o que Villaverde prometeu chamá-lo, e que
além não cumpriu. E se o dito seu pai estivesse presente certamente a
Escritura não se teria passado, porque quando ele soube desaprovou.291

Além desses casos de violência explícita, é possível considerar a hipótese de que


houvesse muitos casos de transmissão de bens sem autorização das mulheres por meio de
assinaturas “a rogo”. De acordo com o Recenseamento Geral de 1872, 3.549.992 das
mulheres que viviam no Brasil eram analfabetas, contra 550.981, que sabiam ler e
escrever. Isso significa que apenas 13% das mulheres sabiam ler e escrever. Essa alta taxa
de analfabetismo feminino tinha um grande impacto nas suas condições de “senhoras e
possuidoras”.292
Quando uma pessoa analfabeta precisava consentir em algum ato de transmissão de
direitos sobre as coisas ou se precisasse elaborar algum documento que tivesse força
jurídica, era necessário que alguém assinasse por ela. Nos documentos, essas assinaturas
costumam ser precedidas da expressão “a rogo de”. Porém, na maior parte dos
documentos, não é possível identificar se a mulher estava ou não presente no momento em
que alguém assinou por ela. Daí, pode-se imaginar que havia casos de fraude, em que

291
Processo n. 7.434, pp. 33-35.
292
BRASIL. Recenseamento Geral do Império de 1872.

103
maridos alienavam bens de suas esposas, pedindo que alguém assinasse por elas, quiçá,
inclusive, mentindo a respeito do fato de elas serem analfabetas.

Títulos e domínio nas últimas décadas do século XIX

As demarcações e as novas técnicas

Quebra-Quilos. Esse foi o nome dado à revolta que estourou, em quatro províncias
do Império – Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte –, no ano de 1874, e
que teve como estopim a implantação do sistema métrico-decimal no Brasil.
Já havia propostas para a implantação do sistema métrico-decimal, no Brasil, desde,
pelo menos a década de 1830. No entanto, defendidas, sobretudo, pelos “politécnicos”, tais
propostas não encontraram muito eco no debate político brasileiro da época. Somente após
a Exposição Universal ocorrida em Paris, em 1855, as discussões sobre a implantação do
“padrão do progresso” começaram a ganhar centralidade entre as autoridades brasileiras.
Adotado em 1862, o sistema métrico-decimal teria implementação progressiva e, no ano de
1874, o governo adotou medidas para sua real efetivação, inclusive, enviando os novos
padrões para os municípios.293
Naqueles anos, o comércio local de produtos e alimentos era feito, sobretudo, nas
feiras e mercados. A implantação do sistema métrico-decimal estava influenciando o preço
dos alimentos. Os comerciantes tinham que comprar os novos pesos e medidas nas
Câmaras Municipais e acabavam transferindo esse gasto ao valor final dos produtos. Além
disso, as camadas populares começaram a reclamar que, com as novas medidas, comprava-
se menos e pagava-se mais. Somava-se a essas insatisfações, o fato de que o governo
começou a cobrar o “imposto do chão”, um novo imposto cobrado dos feirantes que
expunham nas feiras e mercados. A revolta dos Quebra-Quilos eclodiu em um dos
momentos de cobrança desse imposto. Além de escorraçarem o arrecadador, os habitantes
de Fagundes, na província da Paraíba, quebraram os novos padrões, pesos e medidas.
Quebrados os novos instrumentos, os revoltosos forçavam a venda de alimentos pelas
medidas e pesos do “sistema antigo”. Essas práticas de contestação se espalharam por

293
SARMENTO. A medida do progresso. Sobre a participação do Brasil nas Exposições Universais e o
envolvimento de Dom Pedro II em discussões científicas, ver MACHADO; MARTINS. “A modernidade nas
teias da floresta” e SCHWARCZ. As barbas do imperador, pp. 385-407.

104
outras províncias, causando uma onda de medo entre as autoridades responsáveis pela
implantação do novo sistema e pela cobrança do imposto.294
Dentre as autoridades responsáveis pela repressão da revolta e por assegurar a
implementação do sistema, estavam os juízes de direito. De acordo com Luciano
Mendonça de Lima, os juízes de direito, imbuídos de maiores competências e poderes após
a Reforma Judiciária de 1871, formavam um grupo que se mostrou especialmente
apreensivo com a resistência das camadas populares e com o desenrolar dos
acontecimentos. A correspondência trocada entre eles e os presidentes das províncias sobre
o tema é bastante extensa.295 Comentários, trocas de informações e apreensões não ficaram
restritos aos juízes de direito das províncias onde eclodiu o Quebra-Quilos. É bastante
provável que também um outro juiz de direito, que em 1874 estava lotado na província do
Paraná, estivesse envolvido nos debates sobre a implantação do sistema métrico-decimal e
sobre as resistências a esse processo. Era ele Antonio Joaquim de Macedo Soares.
Preocupado com o impacto das novas técnicas nos processos de medição e
demarcação, Soares decidiu publicar um “tratado jurídico-prático” sobre o tema, cujo
público alvo eram “juízes, advogados, escrivães, pilotos e mais pessoal dos juízos
divisórios”. A segunda parte do livro apresentava “noções elementares de topografia
prática”, ensinando, aos juristas, pressupostos básicos de geometria, geodesia, aritmética e
topografia. Também eram descritos todos os instrumentos utilizados nos processos de
medição e demarcação, como, por exemplo:

Figura 3 – Detalhe do Tractado juridico-practico da medição e demarcação das terras, de Soares (1882)

Fonte: SOARES, Tractado juridico-practico da medição e demarcação das terras, p. 155 (detalhe).

294
LIMA. “Quebra-Quilos”.
295
LIMA. “Quebra-Quilos”, p. 475.

105
As últimas décadas do século XIX foram marcadas pela ascensão profissional dos
engenheiros e arquitetos “diplomados”, que tensionavam com os “práticos não
diplomados”.296 Soares tinha um lado claro nessa questão: defendia os diplomados, cada
vez mais presentes nos processos de medição e demarcação. Ao se referir aos pilotos, os
práticos que costumavam ser indicados pelas partes para acompanharem os processos de
medição e demarcação e que, em geral, eram não diplomados, Soares criticou:

[…] os pilotos, práticos de ordinário sem maiores estudos, e bom é quando


não de todo ignorantes dos princípios mais rudimentares de aritmética e
geometria, mal sabendo assinar o seu nome, incapazes de levantarem uma
planta ou passarem um atestado em forma, e cheios de impostura, o que ainda
mais agrava os seus erros cotidianos.297

Soares criticava os não diplomados a favor da participação dos diplomados nos


processos. Porém, ao mesmo tempo, procurava resguardar a função dos juristas nesse tipo
de ação. Em relação aos técnicos que atuavam nesses processos – pilotos, medidores,
agrimensores, engenheiros –, ressalvou que não cabia a eles apurar o direito das partes,
mas ao juiz da causa. Esses profissionais deveriam, apenas, executar os despachos dos
juízes. Soares, tanto em trechos do livro, quanto com a publicação do livro em si, estava
tentando salvaguardar, aos juristas, um papel de destaque nesses processos que, cada vez
mais, sofriam o influxo de novas técnicas. O livro de Soares foi, frequentemente, citado
nos processos de medição e demarcação iniciados após sua publicação. Houve advogado
que, inclusive, referiu-se a ele como “Macedinho”.298
A afluência do sistema métrico-decimal e das novas técnicas e aparelhos de
medição vai aparecendo, nos processos analisados, cada vez mais, à medida que avança o
século XIX. Nas primeiras décadas, os limites dos terrenos eram dados, principalmente,
por acidentes geográficos. Ao se referirem à extensão dos terrenos, as partes costumavam
utilizar expressões como “mais ou menos”, indicando imprecisão dos limites. As
testemunhas cumpriam um papel fundamental na identificação dos limites das porções de
terras, já que estes dependiam de um conhecimento compartilhado sobre a geografia do
local e sobre a posição relativa que um terreno ocupava em relação aos confrontantes.
296
PARETO JÚNIOR. Pândegos, rábulas, gamelas.
297
SOARES. Tractado juridico-practico da medição e demarcação das terras, pp. 142-143.
298
Processo n. 6.510, p. 177.

106
Os processos das últimas décadas do século XIX já apresentam outras formas de
medir e demarcar os terrenos, como se pode ver, por exemplo, no caso da Fazenda
Membeca. Nos anos que antecederam o processo de medição ajuizado por Dona Maria
Amelia França, em 1883, a Fazenda Membeca, situada em Resende, província do Rio de
Janeiro, foi inventariada três vezes. Nesses inventários, os inúmeros herdeiros receberam
quinhões da fazenda, sem que, contudo, fossem especificadas quais porções de terra,
exatamente, caberiam a eles. Paralelamente aos inventários, alguns herdeiros venderam
seus quinhões a pessoas que não eram parte nos inventários. Essa situação gerou diversos
conflitos entre os “consortes”, até que Maria Amelia decidiu requerer a medição e
demarcação de seu quinhão. Um dos “consortes”, Bernardo da Costa Rodrigues, opôs-se à
medição, pois se considerou prejudicado em seu quinhão. O que se pode ver, no processo,
é que as divergências entre as partes estavam relacionadas com quem ficariam os cafezais
plantados na Membeca.299
O procedimento de medição e demarcação do quinhão de Maria Amelia na Fazenda
Membeca já apresentava diversos elementos novos, em relação ao que era praticado nas
primeiras décadas do século. Dela, participaram engenheiros, por exemplo. As medições
também foram feitas usando o sistema métrico-decimal e cálculos de ângulos em graus.
Sem embargo, também persistiam alguns elementos dos procedimentos do início do
século. Por exemplo, antes de se iniciarem as medições, foi feito um pregão em voz alta,
por três vezes, para que o juiz se certificasse de alguma oposição ao fincamento dos
marcos. Além disso, mesclados com metragens e graus, os acidentes geográficos
persistiram na identificação de alguns pontos do terreno. Foram feitas referências, por
exemplo, a cafezais, árvores, grutas, cachoeiras, caminhos, porteiras, canaviais, etc.
Também foram ouvidas testemunhas “conhecedoras do lugar”, acerca de divergências a
respeito da divisa da Membeca com a Fazenda Pedregulho.300
As tentativas de implementação de novas técnicas de mensurar as terras, como a
introdução do sistema métrico-decimal, podem ser inseridas dentro de um processo mais
amplo de construção de “saberes estatais”, ao longo do século XIX. Em períodos
anteriores, já havia demandas, por parte dos órgãos governamentais, de medição e
demarcação das terras.301 No entanto, no século XIX, a demanda estatal por medição
299
Processo n. 6.510.
300
Processo n. 6.510.
301
MOTTA. Direito à terra no Brasil.

107
adquire novos significados, na medida em que faz parte do entrelaçamento de um projeto
de construção de um território nacional intrinsecamente relacionado a um processo de
construção de saberes estatais com vistas ao “progresso”, à “civilização” e ao
“desenvolvimento da nação”.302
O sistema métrico-decimal e as novas tecnologias que, convivendo com práticas
anteriores, iam redefinindo os processos de medição e demarcação e, consequentemente, a
produção de títulos de domínio, eram expressões das tentativas estatais de tornar seu
território e sua população mais legíveis. O sistema métrico-decimal, por exemplo,
traduziria, em uma linguagem uniforme e “científica”, as diferentes formas de perceber os
terrenos e seus limites. Paralelamente à introdução do sistema métrico-decimal e das novas
tecnologias de medição e demarcação, o Estado brasileiro também procurou promover
outros procedimentos de legibilidade e simplificação da realidade social. 303 Um desses
processos era o registro de escravos.

Matrículas e escrituras públicas

A matrícula obrigatória dos escravos de 1872 foi determinada no artigo 8º da Lei do


Ventre Livre.304 No entanto, antes da década de 1870, já tinham tido lugar outros
procedimentos de matrícula de escravos. A diferença é que eles foram parciais e tinham
objetivos, sobretudo, fiscais.305 Por exemplo, no auge do tráfico ilegal de africanos, um
decreto de 1842 regulamentou a arrecadação da meia sisa dos escravos. Ao determinar a
matrícula geral dos escravos residentes nas cidades e vilas do Império – não dos que
viviam nas fazendas –, o decreto ressalvou que: “No ato da primeira matrícula a ninguém
se exigirá o título por que possui o escravo; findo porém o tempo dela, nenhum escravo,

302
GARAVAGLIA; GAUTREAU. Mensurar la tierra, controlar el território. Ver, também, BEN PLOTKIN;
ZIMMERMANN. Los saberes del estado e SCOTT. Seeing Like a State.
303
Outros Estados, ao longo dos séculos XIX e XX, tentaram criar – com maior ou menor sucesso –
procedimentos de legibilidade e simplificação social e territorial, como, por exemplo, a introdução de
sobrenomes, a padronização de pesos e medidas, a construção de cadastros e registros populacionais, a
padronização linguística e a estruturação de sistemas de transporte e processos de codificação. SCOTT.
Seeing Like a State. Ver, também, BOTELHO. “Censos e construção nacional no Brasil Imperial;,
LOVEMAN. “Blinded Like a State”; e NOIRIEL. “The Identification of the Citizen”.
304
Artigo 8º: “O Governo mandará proceder à matrícula especial de todos os escravos existentes do Império,
com declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se for conhecida”.
BRASIL. Lei n. 2.040 de 28 de setembro de 1871.
305
MAMIGONIAN. “O Estado nacional e a instabilidade da propriedade escrava”. Para um histórico detalhado
dos procedimentos de matrícula, no Brasil oitocentista, ver ESPÍNDOLA. Papéis da escravidão, pp. 43-53.

108
além dos já matriculados, o será de novo sem que o dono apresente o título por que o
possui”. Além disso, determinou que não seriam admitidas em juízo causas acerca de
escravos sobre os quais incidissem a meia sisa e a taxa anual, sem que se apresentasse a
matrícula e o pagamento da meia sisa referentes ao escravo em questão.306
Nos processos analisados, era comum que senhores apresentassem certificados de
matrícula e comprovantes de pagamento da sisa como prova de que eram legítimos
“senhores e possuidores” dos escravos que pleiteavam judicialmente. Essa prática,
conjugada com a ressalva que o Decreto de 1842 fez à apresentação de títulos de domínio
no momento da matrícula, foi construindo um ambiente judicial propício a considerar
como válido esse tipo de prova – certidão de matrícula e comprovante do pagamento da
sisa – para o reconhecimento e proteção da posse e do domínio sobre escravos, mesmo nos
casos em que eles tivessem sido adquiridos ilegalmente.
A década de 1860 foi marcada por uma nova conjuntura política e social, com o
fortalecimento das propostas de emancipação gradual e das contestações da legitimidade e
da legalidade da propriedade escrava no Império. 307 Nesse contexto, o tema da matrícula
obrigatória dos escravos surgiu, novamente, no bojo dos debates que desencadearam a
promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871.
Em 1865, o Imperador Dom Pedro II pediu que o jurista José Antonio Pimenta
Bueno elaborasse projetos de lei para o encaminhamento da emancipação gradual dos
escravos. No ano seguinte, Pimenta Bueno apresentou, ao Conselho de Estado, cinco
projetos de lei, para a emancipação gradual: o primeiro tratava da emancipação dos filhos
futuros das escravas (ventre livre); o segundo instituía e regulava a junta central protetora
da emancipação; o terceiro tratava da matrícula dos escravos; o quarto regulava a liberdade
dos escravos da nação; e o quinto regulava a libertação dos escravos das ordens religiosas.
No terceiro projeto, estava determinado que: “Não haverá alienação ou transmissão válida
de propriedade de escravos, sem que no título dela se inclua a certidão da matrícula.
Nenhum senhor poderá também promover a ação de reivindicação, manutenção, ou posse
do escravo sem que produza essa certidão”. Ao contrário do Decreto de 1842, esse projeto
não fazia menção à apresentação ou não de títulos de domínio no momento da matrícula.

306
BRASIL. Decreto n. 151 de 11 de abril de 1842.
307
CHALHOUB. Machado de Assis, historiador. Sobre os debates travados no Instituto da Ordem dos
Advogado Brasileiros acerca da escravidão e da emancipação gradual, nesse período, ver PENA. Pajens da
casa imperial.

109
Nem mesmo os escravos deveriam ser apresentados no momento da matrícula. Bastava que
os senhores entregassem, nas coletorias, uma relação de seus escravos contento nome,
naturalidade, idade, cor, sexo, estado, ofício e sinais corporais.308
O projeto de Pimenta Bueno foi debatido no Conselho de Estado em 1867. No
mesmo ano, o Imperador formou, dentro do Conselho, uma comissão, composta por José
Thomaz Nabuco de Araújo, Francisco de Salles Torres Homem e Bernardo de Souza
Franco, encarregada de propor novo projeto de emancipação. Essa nova proposta
determinava que deveriam ser matriculados os escravos possuídos fora das cidades e vilas
e todos os demais que eram isentos da matrícula. O escravo que não fosse matriculado
seria presumido liberto, “ainda que haja provas em contrário”. Essa proposta também foi
silente a respeito da prova do domínio no momento da matrícula, além de não a ter
instituído como documento obrigatório em transações e processos judiciais envolvendo
escravos.309
Após receber os pareceres dos membros do Conselho de Estado, a comissão se
pronunciou sobre eles, ressaltando a importância da matrícula como a “estatística” que
habilitava os legisladores a encaminharem a emancipação gradual. A presunção de
liberdade do escravo não matriculado era algo muito grave, mas necessário para se evitar
fraudes e negligência dos senhores. Além disso, esse rigor era análogo a outras
experiências de registro obrigatório brasileiras, como a norma de que as hipotecas perdiam
efeitos contra terceiros caso não fossem inscritas.310
Os anos seguintes foram politicamente conturbados e as discussões iniciadas no
Conselho de Estado se arrefeceram. Em 1870, o tema da emancipação gradual foi
retomado e a Câmara dos Deputados nomeou uma comissão especial para tratar dele.
Também a comissão considerou que “uma perfeita estatística” era urgente para se
dimensionar as consequências do processo de emancipação gradual. Daí que “a comissão
não hesitou em aceitar a severa sanção de considerarem-se livres os escravos que, por
culpa ou omissão dos interessados, deixarem de ser incluídos na referida matrícula”.311
Ao final dos debates parlamentares, a matrícula especial obrigatória constou do
texto final da Lei do Ventre Livre. Seriam considerados libertos os escravos que, por culpa
308
BRASIL. Trabalho sobre a extincção da escravatura no Brasil, pp. 15-16.
309
BRASIL. Trabalho sobre a extincção da escravatura no Brasil, p. 115.
310
BRASIL. Trabalho sobre a extincção da escravatura no Brasil, p. 144.
311
BRASIL. Elemento servil, pp. 15-17.

110
ou omissão dos interessados, não fossem matriculados dentro do prazo de um ano após o
encerramento da matrícula.312 De acordo com Mamigonian, a matrícula obrigatória de 1872
significou um momento de imposição das normas estatais sobre os senhores de escravos,
mas, também, selou um compromisso entre governo e senhores a respeito da propriedade
escrava ilegalmente adquirida. Ao não exigir a prova de domínio no momento da
matrícula, o Estado atuou na legitimação da propriedade ilegal, produzindo um documento
que seria utilizado, em processos judiciais e transações comerciais, como título de
propriedade. Além disso, a matrícula especial teria sido um passo importante nas tentativas
estatais de identificação e conhecimento da população nacional. Ademais, ela cumpriu as
funções de: a) identificação dos indivíduos escravizados, b) prova da propriedade escrava,
c) fundamento para cobrança de taxas sobre a propriedade escrava, e d) fonte de
informação para o funcionamento do fundo de emancipação, uma política pública de
âmbito nacional.313
Tendo como justificativa imediata o conhecimento da população escravizada, com
vistas a se encaminhar o processo de emancipação gradual, o que vemos é que a matrícula
especial acabou atuando, também, como um momento de confecção de títulos de domínio.
O mesmo padrão de uso da matrícula como título de domínio em ações judiciais foi
observado por Ariana Espíndola. Analisando, principalmente, Revistas Cíveis ajuizadas
perante o Supremo Tribunal de Justiça do Império, a autora identificou que,
aproximadamente a partir da década de 1870, a prova testemunhal foi sendo, cada vez
mais, marginalizada e deslegitimada, dando lugar de centralidade às provas documentais.
Nesse contexto, a matrícula adquiriu contornos de título de domínio, apesar de,
frequentemente, ser apresentada como prova ao lado de outros documentos escritos, como
testamentos, partilhas, papéis de venda, etc.314
No entanto, esse papel de título de domínio que a matrícula foi adquirindo era,
frequentemente, contestado por escravos. Como a matrícula era feita com base na
declaração dos supostos senhores, havia muita margem para falsificações. Por isso, sua
força como constituidora e prova de domínio era atacada em processos judiciais.

312
O Decreto n. 4.835, que regulamentou a matrícula especial, determinou que, nos casos em que os escravos
fossem declarados libertos por ausência de matrícula, ficava resguardado, aos interessados, o direito de, por
meio de ação ordinária, provar o domínio sobre os libertos e que não houve culpa ou omissão na ausência de
matrícula dentro do prazo. BRASIL. Decreto n. 4.835 de 1º de dezembro de 1871.
313
MAMIGONIAN. “O Estado nacional e a instabilidade da propriedade escrava”.
314
ESPÍNDOLA. Papéis da escravidão.

111
Pelos mesmos documentos com que o Autor se apresenta em Juízo, e se
acham entranhados no presente procedimento, se manifesta o dolo, e malícia
com que o Autor pretende usurpar a liberdade de meu curado, não
apresentando de direito se não a certidão de Matrícula com que nada mais
prova se não que meu curado foi seu escravo (podia ser, e ter passado a 6, ou
8 senhores, e servir da mesma forma a Matrícula) […] Por consequência, o
direito do Réu meu curado deve ser garantido pelo Nobre Julgador, tendo em
vistas que o Autor com seu Libelo não apresentou documentos (porque os
não tem) que provasse seu direito, isto é, escritura primordial que justifique
por onde houve legalmente meu curado, os conhecimentos dos impostos que
devia ter pago anualmente, certidão, ou bilhete de sisa [ilegível] e finalmente
verdadeiros títulos que provassem a posse que tem, e o direito de reclamar. 315

Assim como a matrícula foi adquirindo um papel central nos processos que
discutiam o domínio sobre escravos, também as escrituras públicas foram ganhando cada
vez mais espaço nos processos que discutiam o domínio sobre terras.
O debate sobre o registro de terras esteve presente, com idas e vindas, ao longo de
todo o século XIX, e teve, em comum com a matrícula dos escravos, a questão da prova da
titularidade do domínio. Por exemplo, a Lei de Terras, de 1850, previa que o governo faria
um “registro das terras possuídas”, com base em declarações dos possuidores, ou seja, sem
necessidade de prova do domínio.316 Essa determinação foi regulada, em 1854, por meio de
um decreto que estabeleceu que os responsáveis por esse registro das terras possuídas
seriam os vigários das freguesias do Império. 317 De acordo com Pedro Parga Rodrigues, o
Registro Paroquial tinha um caráter apenas cadastral. Porém, grupos ligados aos interesses
dos grandes fazendeiros do Vale do Paraíba demandavam que esse registro tivesse caráter
de prova do domínio. A discussão chegou ao Conselho de Estado, onde Pedro de Araújo
Lima, o Marquês de Olinda, defendeu que o Registro Paroquial deveria ter força probatória
do domínio, mas que ele deveria continuar sendo feito apenas com base nas declarações,
sem um processo de investigação anterior que auferisse a legalidade e a regularidade da
aquisição.318

315
Processo n. 1.669, pp. 54v-55v.
316
BRASIL. Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850.
317
BRASIL. Decreto n. 1.318 de 30 de janeiro de 1854.
318
RODRIGUES. As frações da classe senhorial e a lei hipotecária de 1864, pp. 64-65.

112
Um ano antes do Decreto que regulamentou a Lei de Terras, Nabuco de Araújo
apresentou um projeto de reforma hipotecária à Câmara dos Deputados, que também
suscitou intensas discussões a respeito da força probatória dos registros. De acordo com o
projeto, a transmissão entre vivos de bens suscetíveis a hipoteca e a instituição de direitos
reais sobre eles não gerariam efeitos contra terceiros se não houvesse a transcrição, no
Registro Geral de Imóveis (RGI). Além disso, a transcrição no RGI não induziria prova de
domínio. Nesse ponto, as discordâncias parlamentares foram inúmeras. De acordo com
Rodrigues, parlamentares ligados aos grandes proprietários de terras defenderam a
transcrição como meio de provar o domínio. Ao final, esse posicionamento foi derrotado e
o texto final da Lei Hipotecária ressalvou que “a transcrição não induz a prova do domínio
que fica salvo a quem for”.319
Rodrigues, no entanto, ressalva que, apesar da Lei Hipotecária ter estabelecido que
a transcrição não constituía prova de domínio, diversos juristas, como, por exemplo,
Malheiro, defenderam uma interpretação extensiva do dispositivo, que admitia a utilização
do documento como prova de domínio, em determinados casos. Ademais, na prática,
diversos senhores continuaram apresentando esses documentos e as escrituras públicas de
compra e venda como prova de domínio em processos judiciais.320
Em 1868, quatro anos após a promulgação da Lei Hipotecária, o então Ministro da
Fazenda Joaquim José Rodrigues Torres, o Visconde de Itaboraí, determinou, em um
aviso, que a escritura pública era elemento essencial nas transações de compra e venda que
excedessem a quantia de 200 mil réis.321
Essas medidas do governo e os debates parlamentares mostram que as discussões
sobre escrituras públicas, registros e sua força para constituição e prova do domínio
permearam as discussões sobre as relações jurídicas entre pessoas e coisas, na segunda
metade do século XIX. As escrituras públicas já faziam parte da arquitetura do direito
comum. No entanto, não eram consideradas uma prova mais forte do que outras e nem o
meio, por excelência, de constituição do domínio. Por exemplo, nas Ordenações Filipinas,
livro 3º, título 20, com exceção de casos especiais, as escrituras seriam utilizadas, em juízo,
como meio de prova nos casos em que as testemunhas não fossem suficientes para provar a

319
BRASIL. Lei n. 1.237 de 24 de setembro de 1864. RODRIGUES. As frações da classe senhorial e a lei
hipotecária de 1864, pp. 75-129.
320
RODRIGUES. As frações da classe senhorial e a lei hipotecária de 1864, pp. 130-194.
321
BRASIL. Collecção das decisões do governo do Império do Brasil de 1868, p. 491.

113
intenção da parte.322 Mesmo nos casos em que a escritura pública era obrigatória, como,
por exemplo, algumas transações envolvendo bens imóveis,323 o que se percebe, nos
processos, é que essa exigência é bastante relativizada pelos juízes. Talvez isso se deva ao
fato de que, no Brasil das primeiras décadas do século XIX, o acesso a escrivães e notários
que pudessem produzir essas escrituras poderia ser bastante difícil. Por exemplo, no
contrato de sociedade firmado entre Silva Prado e Florencio Correia Pupe se afirmava:

[…] que ele sócio Silva Prado faz esta sociedade com o Sr. Capitão Florencio
Correia Pupe que terá todo o vigor como se uma escritura pública fora que
por não ter na ocasião tabelião que uma escritura faça digo que uma escritura
pública faça e se [ilegível] a que em qualquer lugar em que se acharem os
ditos sócios poderão fazer passar escritura pública debaixo das condições
aqui expressadas porém no enquanto damos a este papel particular toda a
força poder e valor como se uma escritura fora.324

Por meio da análise processual, nota-se que, nas últimas décadas do século XIX, as
escrituras públicas foram ganhando proeminência como títulos de domínio nas ações
judiciais. Outra característica dos processos desse período foi que, em alguns casos, as
partes procuravam provar a posse com base na escritura pública ou nos certificados de
matrícula e não com base em depoimentos testemunhais.

***

Os títulos eram secundários na arquitetura jurídica que, na maior parte do século


XIX, regulou as relações entre pessoas e coisas no Brasil. A posse era o elemento que,
acima deles, organizava tais relações. Além do mais, sua legitimidade frequentemente
advinha do reconhecimento de que haviam sido produzidos em conformidade com o que
parecia formalmente correto para determinada comunidade.
Estava aberta a questão de determinar quais eram eram os documentos válidos para
assegurar o domínio sobre um bem e por quais autoridades tais documentos deveriam ser
expedidos. Nesse contexto de indeterminação, institutos do direito comum eram
322
ALMEIDA. Codigo philippino, livro 3, pp. 586-598.
323
ALMEIDA. Codigo philippino, livro 3, pp. 651-658.
324
Processo n. 1.385, p. 149.

114
mobilizados e filtrados, por expedientes do aparelho estatal, para gerar títulos cujo
reconhecimento dependia, cada vez menos, de relações comunitárias e de saberes
vernaculares e, cada vez mais, da autoridade estatal e de saberes científicos.
Em todo esse processo de produção de títulos, os sujeitos históricos mobilizavam
seus entendimentos particulares e compartilhados sobre o que era e o que deveria ser um
documento formal, construindo um senso comum jurídico a respeito dos títulos e dos
métodos de produzi-los. Nessa construção, diversas possibilidades de fraudar relações de
domínio sobre os bens se apresentavam. É desse tipo de relação que trato no próximo
capítulo.

115
TESSITURAS DA LEGALIDADE
AQUISIÇÕES IRREGULARES, TÍTULOS E POSSE

O caso de João, Joaquim José e Manuel

Já há muitas páginas, venho contando a história de como a posse – ou, pelo menos,
a capacidade de comprová-la – era primordial para o reconhecimento jurídico de direitos
sobre a terra. Isso, porém, não se dava somente nas relações entre particulares. Também os
Estados nacionais se valiam da ocupação efetiva para assegurar seus territórios. 325 Em
razão dessa dinâmica, em meados do século XVIII, o governo português adotou um novo
plano de colonização e ocupação efetiva da Ilha de Santa Catarina, com o objetivo de
integrá-la ao circuito atlântico e barrar a apropriação espanhola do território.326
Central nesse projeto estratégico de ocupação foi o estabelecimento de caça às
baleias. Cinco armações baleeiras foram criadas na região para exploração da pesca e
produção do óleo extraído dos animais apresados. As armações baleeiras foram grandes
unidades escravistas da Província de Santa Catarina. Associados a elas, desenvolveram-se
também outros setores econômicos como, por exemplo, a produção de alimentos para
abastecimento. Como grandes unidades escravistas que eram, as armações baleeiras, em
associação com os comerciantes de “grosso trato” da praça do Rio de Janeiro,
impulsionaram a entrada de escravos africanos e a inserção da região em uma economia
atlântica.327
Integrada ao circuito atlântico, a Ilha de Santa Catarina recebeu o maior afluxo de
escravos entre as últimas décadas do século XVIII e as duas primeiras décadas do século
XIX. Nesse período, Santa Catarina abastecia outras regiões integradas à economia
escravista com produtos como farinha de mandioca. Os alimentos produzidos em Santa
Catarina abasteciam a praça do Rio de Janeiro que, por sua vez, articulava o tráfico de
escravos proveniente de Angola e que supria a demanda das regiões Centro-Sul do Brasil e
325
HERZOG. Frontiers of possession e LORENTE SARIÑENA. “Uti possidetis, ita domini eritis”.
326
MAMIGONIAN. “Tráfico de escravos e a presença africana na Ilha de Santa Catarina” e MAMIGONIAN.
“Africanos em Santa Catarina”.
327
MAMIGONIAN. “Tráfico de escravos e a presença africana na Ilha de Santa Catarina”; MAMIGONIAN.
“Africanos em Santa Catarina”; e ZIMMERMANN. “Armação baleeira da Lagoinha: uma grande unidade
escravista”.

116
a bacia do Rio da Prata.328 Também pelo Rio de Janeiro, o alimento produzido em Santa
Catarina era distribuído nas áreas de mineração e produção de açúcar do Sudeste do Brasil.
Nessa dinâmica, como ressaltou Beatriz Mamigonian, é plausível supor que a farinha de
mandioca produzida em Santa Catarina abastecesse os navios negreiros e que a aguardente,
também produzida na região, fosse usada como moeda de troca no comércio de escravos
em Angola.329
No século XIX, a região manteve seu dinamismo econômico e sua inserção no
circuito atlântico, em associação com o Rio de Janeiro. A população escrava também
continuou significativa mesmo após o fim da importação transatlântica na década de 1850.
Nesse contexto, Desterro – atualmente Florianópolis – era um importante porto de trânsito
de escravos que ligava o Rio de Janeiro aos portos da Bacia do Prata. Nas primeiras
décadas do século XIX, os grandes comerciantes de escravos da praça do Rio de Janeiro
abasteciam os mercados da Bacia do Prata, por meio de contrabando. Desterro era um
ponto de integração nessa rota.330
Como uma economia dinâmica, inserida no circuito atlântico e baseada no trabalho
escravo, Desterro, assim como outras regiões escravistas,331 foi palco de inúmeras práticas
de escravização e reescravização ilegais. Nesse contexto de grande circulação de

328
Sobre a integração comercial entre Luanda, Rio de Janeiro e a bacia do Rio da Prata, possibilitada pelo
tráfico negreiro, entre os séculos XVI e XVII, ver ALENCASTRO. O trato dos viventes, pp. 109-114.
329
MAMIGONIAN. “Tráfico de escravos e a presença africana na Ilha de Santa Catarina” e MAMIGONIAN.
“Africanos em Santa Catarina”.
330
MAMIGONIAN. “Tráfico de escravos e a presença africana na Ilha de Santa Catarina” e MAMIGONIAN.
“Africanos em Santa Catarina”.
331
Práticas de escravização e reescravização ilegais eram recorrentes em diversas jurisdições escravistas. Para
regiões de fronteira, ver CAÉ; GRINBERG. “Escravidão, fronteira e relações diplomáticas Brasil-Uruguai” e
GRINBERG (org.). As fronteiras da escravidão e da liberdade no sul da América; GRINBERG. “Illegal
Enslavement, International Relations, and International Law on the Southern Border of Brazil”. Para uma
análise de casos que tramitaram perante o TRRJ, ver GRINBERG. “Re-enslavement, Rights and Justice in
Nineteenth-Century Brazil”. Sobre escravização e a matrícula especial de escravos, ver ESPÍNDOLA.
Papéis da escravidão. Para uma análise de casos criminais, no Rio Grande do Sul, ver GRINBERG;
MAMIGONIAN. “Le crime de réduction à l’esclavage d’une personne libre”. Para o Rio de Janeiro, ver
CHALHOUB. A força da escravidão. Para Minas Gerais, ver FREITAS. “Slavery and Social Life”. Para
Mariana e Lisboa, ver PINHEIRO. Em defesa da liberdade. Para processos de escravização de africanos
livres, no Brasil, ver MAMIGONIAN. Africanos livres. Para Angola, ver CANDIDO. “African Freedom
Suits and Portuguese Vassal Status”, CANDIDO. “O limite tênue entre liberdade e escravidão em Benguela
durante a era do comércio transatlântico”. Para Estados Unidos e Cuba, ver PERERA DÍAZ, MERIÑO
FUENTES. Estrategias de libertad, SCOTT. “Paper Thin”, SCOTT. “Social Facts, Legal Fictions, and the
Attribution of Slave Status”. Para discussões a respeito das consequências sociais da disseminação de
práticas de escravização e reescravização ilegais, ver ALENCASTRO. “O pecado original da sociedade e da
ordem jurídica brasileira”; CHALHOUB. “The Precariousness of Freedom in a Slave Society”.

117
mercadorias e pessoas, de modos nem sempre regulares, o português Domingos Marinho,
um caixeiro de dezenove anos, viajou a Montevidéu com o objetivo de fazer “negócios”.
Quando chegou a Montevidéu, Domingos encontrou a cidade convulsionada. Além
de estar relacionada à posse da terra, no século XIX, a soberania territorial também estava
intrincada com a dinâmica da escravidão. A escravidão impôs uma dinâmica peculiar aos
conflitos relativos ao cruzamento de fronteiras entre o Brasil – um país escravista – e as
repúblicas latino-americanas, que estavam abolindo a escravidão gradualmente. Nesse
contexto, o caso do Uruguai era peculiar. Diferentemente de outros Estados latino-
americanos, o Uruguai não se tornou independente da Espanha, mas do Brasil. No
momento da independência do Uruguai, aproximadamente um terço das propriedades ao
norte do país pertenciam a brasileiros. Havia, portanto, uma intensa circulação de pessoas
na recém-formada fronteira.332
Na década de 1840, a instabilidade política marcou a região e intensificou o trânsito
na fronteira entre Brasil e Uruguai. Do lado brasileiro, a Farroupilha e, do lado uruguaio, a
Guerra Grande intensificaram as fugas de escravos e a movimentação de senhores que
procuravam deslocar seus escravos das zonas de conflito mais intenso.333
Preocupado em arregimentar mais braços para seu exército, que estava envolvido
na Guerra Grande, o governo uruguaio Colorado de Montevidéu aprovou, em 1842, uma
lei que proclamava a abolição da escravidão e promovia o alistamento militar imediato dos
escravos recém-libertados. Os proprietários brasileiros e os escravos foram logo avisados
da nova lei de abolição. Muitos foram os escravos brasileiros que fugiram para o Uruguai,
para se alistarem no exército e ganharem a liberdade. As questões de soberania que essas
fugas implicaram se estenderam ao longo do século XIX e, a elas, somaram-se os diversos
casos de brasileiros que cruzavam a fronteira para sequestrar negros livres e escravizá-los
no Brasil.334
Foi nesse contexto que, em 1844, Marinho encontrou João, Joaquim José e Manuel
em Montevidéu. Manuel Vas era um africano liberto – de “Nação Rebolo” – que servia na

332
GRINBERG. “Illegal Enslavement, International Relations, and International Law on the Southern Border of
Brazil”.
333
GRINBERG. “Illegal Enslavement, International Relations, and International Law on the Southern Border of
Brazil”.
334
GRINBERG. “Illegal Enslavement, International Relations, and International Law on the Southern Border of
Brazil”.

118
tropa de Montevidéu. Manuel conhecia bem o fundamento de sua liberdade: uma lei do
governo uruguaio.

[…] foi Escravo de Antonio Vianna, homem Português, e que por morte
deste foi deixado em testamento a uma comadre do dito Vianna por nome
Josefa Pires, e que quando principiou a Guerra em Montevidéu foi ele
respondente [Manuel] preso para sentar Praça, sendo ainda cativo, e que em
virtude de ordem do Governo foi Liberto.335

Manuel estava se referindo, portanto, à lei emanada pelo governo Colorado, em


1842. Andando pelas ruas de Montevidéu, Manuel se encontrou com Marinho e:

[…] este [Marinho] o chamou para lhe levar um baú a bordo de uma
embarcação, e ele respondente [Manuel] dissera que não podia ir, sem licença
do Sargento de sua companhia, vindo ele respondente pedindo licença ao seu
Sargento e ele lhe dando, voltou com dito Domingos o qual convidou a ele
respondente para ir trabalhar em Maldonado, em sua charqueada, e aceitando
ele respondente este partido, seguiu com dito Domingos e este o mandara pôr
a bordo de uma embarcação.336

Em outro depoimento, Manuel acrescentou que, ao dizer a Marinho que não podia
acompanhá-lo “por ser soldado”, este disse que, se mesmo assim ele quisesse ir a
Maldonado – uma cidade uruguaia –, ele lhe arranjaria uma “papeleta portuguesa”.337
Em suas andanças, Marinho também se encontrou com Joaquim José Lopes, negro
e liberto. Joaquim José dizia ter sido escravo de Antonio Queirós, mas, no momento de
encontro com Marinho, “estava gozando de sua liberdade em Montevidéu”. Ao se
encontrarem na rua, Marinho, assim como fez com Manuel, convidou-o para ir até
Maldonado trabalhar em uma charqueada. Para convencê-lo da viagem, Marinho lhe disse
que: “neste País [Uruguai] só se garantia a liberdade dos escravos que foram de Orientais,
e não de Estrangeiros, aos quais faziam recolher no Depósito para tornarem a ser entregues
a seus Senhores que eram, quando fossem Estrangeiros”. Considerando que seu ex-senhor,
Queirós, era espanhol, Joaquim José aceitou a proposta e acompanhou Marinho até uma
335
Processo n. 1.811, p. 31.
336
Processo n. 1.811, p. 8.
337
Processo n. 1.811, pp. 12-13.

119
embarcação. Ao passar pelo porto de Maldonado sem atracar, Joaquim José ficou
desconfiado e perguntou a Marinho porque passaram direto, ao que este respondeu que o
porto de Desterro “era melhor”.338
Por fim, Marinho também se encontrou com João Garcia, também africano – de
“Nação Moçambique” – e liberto, que servia “nas armas em Montevidéu”. Assim como
Manuel, tinha sido liberto “na ocasião em que foram todos os outros daí por ordem do
Governo”. Com João, a abordagem de Marinho foi diferente. Encontrando-o nas ruas da
cidade, pediu-lhe que carregasse uma caixa até um trapiche. Aí chegando, Marinho pediu
que João levasse uma caixa até uma embarcação. A princípio, ele se recusou, mas,
mediante um pagamento de dois pesos, aceitou. Ao chegar à embarcação, no entanto, “daí
o não deixaram mais sair”.339
A embarcação – o brigue Prudencia – zarpou de Montevidéu levando Marinho e os
três africanos. Ao chegar em Desterro, durante a noite, João, Joaquim José e Manuel foram
transportados do brigue Prudencia para a sumaca Attelante. Ao atracarem no porto, a visita
de bordo subiu para inspecionar o navio. Nesse momento, o capitão da sumaca, Manuel
Laviosa, mandou que os africanos se escondessem, para não serem vistos pelos inspetores.
Em seguida, o capitão e um espanhol chamado João Batista Sacarello foram se encontrar
com Antonio Luis Cabral, proprietário de uma padaria, para oferecê-lo João, Joaquim José
e Manuel como escravos. Interessado, Antonio foi até a sumaca para analisar os escravos
que compraria. Ao chegar, não lhe foram apresentados os títulos de domínio dos escravos,
apenas seus passaportes. Os vendedores justificaram esse fato alegando que, em razão da
guerra, não era possível obter tais títulos em Montevidéu, onde vivia o senhor dos
escravos.340
João, Joaquim José e Manuel, porém, procuraram se valer dessa situação de debate
para tentarem sair da situação de escravização na qual se encontravam e disseram a
Antonio que “não tinham Senhor que os comprasse ou vendesse por serem libertos em
Montevidéu”. Mais tarde, quando interrogado no processo analisado neste capítulo,
Antonio foi perguntado do porquê de não ter ido à polícia denunciar o caso, diante da

338
Processo n. 1.811, p. 31v; processo n. 1.669, p. 53v.
339
Processo n. 1.811, pp. 14-14v, 33-34.
340
Processo n. 1.811, pp. 6-6v.

120
declaração de João, Joaquim José e Manuel. Ele, então, respondeu que se persuadiu da
declaração dos vendedores, que a sustentaram mesmo diante da alegação de liberdade.341
Acertados os termos da transação no navio, Marinho e Antonio foram até o escrivão
para que ele lhes passasse o papel de venda dos escravos, mediante a apresentação do
comprovante de pagamento do imposto da sisa. João, Joaquim José e Manuel foram, então,
levados à casa de Antonio. Ao chegarem, desconfiados, “mostraram obstáculo a entrar”.
Ao final, entraram e a esposa de Antonio lhes perguntou se o homem que os acompanhava
era seu senhor. Joaquim José respondeu que não, porque eram livres. A esposa, então,
disse que eles haviam sido vendidos por Marinho e Joaquim José replicou que não ficaria
ali porque era livre. Diante dessas alegações, a esposa de Antonio disse que não os queria
ali, porque eram livres.342
João e Joaquim José foram, então, levados, da casa de Antonio, pelo espanhol
Sacarello. Manuel, no entanto, recusou-se a ir com Sacarello, “por não querer acompanhar
aquele Português por saber que o ia vender em outro lugar”, e permaneceu na casa de
Antonio.343 Alguns dias depois, Antonio levou Manuel ao Chefe de Polícia.
Enquanto isso, Marinho alugou João e Joaquim José em uma serraria e, após alguns
dias, tentou embarcá-los para o Rio de Janeiro. Porém, no momento do embarque, o
Inspetor da Alfândega pediu a Marinho que mostrasse os títulos de domínio sobre os
escravos. Marinho, então, apresentou o papel de venda passado diante do escrivão. O
Inspetor não aceitou o papel de venda como um título válido. Marinho, porém, não tinha
mais nenhum outro documento para apresentar. Desconfiado da situação, o Inspetor da
Alfândega reteve o papel de venda apresentado por Marinho e o remeteu ao Chefe de
Polícia de Desterro com a seguinte informação: “me consta terem vindo de Montevidéu
[…] sem passaporte; e como até, por um Decreto daquele Governo foram declarados livres
todos os Escravos; parece não poder ser admissível a venda de tais escravos nesta
Cidade”.344
O Chefe de Polícia considerou que Marinho, o capitão e o piloto da sumaca
Attelante eram suspeitos de “terem roubado estes indivíduos [João, Joaquim José e
Manuel] na qualidade de Escravos, ou de os terem querido reduzi-los à Escravidão visto
341
Processo n. 1.811, pp. 6-6v.
342
Processo n. 1.811, pp. 32-32v.
343
Processo n. 1.811, pp. 6-6v.
344
Processo n. 1.811, p. 4.

121
que eles declaram serem livres”. Ele considerava Marinho suspeito por não apresentar os
títulos que teria sobre João, Joaquim José e Manuel, por não tê-los reclamado do Depósito
e por ter se ocultado para, em seguida, fugir da cidade. Já o capitão estava sendo
considerado suspeito por ter conduzido, no brigue Prudencia, João, Joaquim José e Manuel
sem passaportes, por tê-los escondido quando foi feita a visita de bordo e por não os ter
relacionado na lista de passageiros como escravos de Marinho. Por fim, o piloto foi
considerado conivente com todos esses atos.
Deu-se início, então, a um processo criminal e Antonio foi nomeado como
depositário de João, Joaquim José e Manuel. Ele, no entanto, contestou esse encargo.
Procurou ressaltar que era um “contratante de boa-fé, não um introdutor de Escravos”. Ao
realizar a compra, Marinho lhe havia dito que os supostos escravos eram sua propriedade e
que, quando foram registrar o papel de venda, um dos supostos escravos afirmou ser
liberto.

Surpreendendo o Suplicante [Antonio] com isto, deu logo por dissolvido o


negócio, ficando com o seu dinheiro, e entregando os Escravos disse, que de
mais nada queria saber aquele respeito; porém como ele havia despendido
setenta e sete mil réis com os direitos, e o mais; ficava um em seu poder,
como em penhor, até ser embolsado dessa quantia: retirou-se o Suplicado
[Marinho] com os outros dois pretos; e tratando de os despachar na
Alfândega para o Rio de Janeiro; exigiram-lhe ali algum documento que
mostrasse serem propriedade; o que ele fez, dizendo que tanto o eram que já
os tivera vendidos ao Suplicante, se se não tivessem devolvidos, e apresentou
a escritura de venda.345 (grifos meus)

Antonio, então, mesmo supostamente convencido da liberdade de João, Joaquim


José e Manuel, reteve este último como garantia da dívida de Marinho. Para se referir à
situação, além da palavra “penhor”, Antonio também disse “preto com que ficara em
refém”.346 Ou seja, Antonio estava retendo, em sua casa, uma pessoa livre sob o pretexto de
garantir o pagamento de uma dívida que não havia sido contraída por Manuel, mas por
Marinho.

345
Processo n. 1.811, p. 10.
346
Processo n. 1.811, p. 10.

122
Marinho também foi interrogado. Para se defender procurou traçar uma cadeia
dominial que justificasse a legitimidade do domínio que dizia ter sobre João, Joaquim José
e Manuel. Alegou que havia comprado João e que Joaquim José e Manuel lhe haviam sido
entregues em razão de uma dívida da qual era credor. Ao ser inquirido do porquê os
supostos escravos haviam embarcado sem passaportes, já que eram sua propriedade,
respondeu que não poderia conseguir passaportes para eles em razão da guerra. Pela
ausência de passaportes e para evitar uma multa, também tinha sugerido ao capitão que
escondesse os supostos escravos no momento da fiscalização. O juiz procurou saber, ainda,
dos títulos que comprovariam o domínio de Marinho sobre João, Joaquim José e Manuel.

Sendo mais perguntado pelo juiz se quando comprou o preto João a Francisco
Garcia em Montevidéu não foi por Escritura de compra e venda? Respondeu
que não e só sim por um pequeno Documento que tem em seu poder. Sendo
mais perguntado se quando recebeu por pagamento de dívida os Escravos
José e Manoel não houve disso Escritura de trasposse? Respondeu que não,
que só tem em seu poder um recibo de Antonio José da Silva de lhe haver
pago a dívida que lhe devia o comandante Labandaina.347

No interrogatório, Marinho também foi questionado de por que havia fugido ao


saber que um processo seria instaurado contra ele. A essa pergunta, respondeu que lhe
haviam aconselhado a sair do país e ir buscar os documentos para resgatar seus escravos. A
linha argumentativa do interrogatório e das defesas apresentadas pelo advogado de
Marinho foi a de que ele era o senhor legítimo dos escravos e que, considerando o contexto
do país, não era razoável que os documentos por ele apresentados não fossem considerados
hábeis a provar o seu domínio.

Bem sabido é entre nós, Senhores, que estamos em perfeita quitação, que
muitos escravos se compram e vendem por tratos bocalmente concluídos,
sejam os motivos quais forem, e até de grande parte deles se não pagam os
respectivos direitos: isto entre nós que, como acabo de dizer, estamos no
gozo de uma tranquilidade, da qual nem há o menor indício de alteração:
como pois, em um país em completa oscilação [Uruguai], se pode ou poderá
sempre fixar por escritura pública a propriedade de um, ou de alguns
escravos comprados; e de cujo país não sabemos nós se o direito dele impõe

347
Processo n. 1.811, p. 51.

123
o dever de reduzir a um escrito público as compras e vendas desta natureza?
A propósito do que digo: não acabamos nós, a poucos anos, de proscrever de
nossa legislação o mal entendido direito de se passarem escrituras
particulares, de compras e vendas de escravos? Quantos de nós, que estamos
aqui reunidos, não teremos escravos, dos quais não possuímos um título que
mereça este nome? Eis o caso em que se acha o Réu para com os seus, por
que deles não possui mais do que esses ligeiros documentos que, como já fica
dito, se acham a f 76 e 77 do 1º apenso.348

“Quantos de nós, que estamos aqui reunidos, não teremos escravos, dos quais não
possuímos um título que mereça este nome?”. Para se livrar da condenação criminal, o
advogado de Marinho tentou mobilizar, a favor de seu cliente, a razoabilidade da conduta
de Marinho quando inserida no contexto brasileiro, no qual, como já vimos, havia intensos
debates a respeito da titulação do domínio e no qual a posse tinha um papel central na
determinação de direitos sobre as coisas.
Assim como Marinho, diversas outras pessoas aproveitaram as brechas existentes
nas normas jurídicas a respeito das relações entre pessoas e coisas, para adquirirem
escravos e terras de maneira irregular. Neste capítulo, trato dessas “técnicas de ilegalidade”
e dos procedimentos que eram adotados para tentar legitimar bens ilegalmente adquiridos.

Ilegalidade e títulos

Circulação e aquisições ilegais

Estima-se que, entre 1574 e 1856, durante o período do tráfico transatlântico, pelo
menos três milhões de escravos africanos desembarcaram nas costas do Brasil. Destes,
cerca de quinhentos mil desembarcaram entre 1832 e 1856, ou seja, depois da Lei de 1831,
que proibiu a entrada de novos escravos no território brasileiro. 349 Essa lei determinava que
“todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam

348
Processo n. 1.811, p. 106v.
349
Dados obtidos a partir da consulta à Voyages – The Trans-Atlantic Slave Trade Database, em 15 de abril de
2018. Para chegar a essas informações, busquei por “soma de escravos desembarcados”, em Brasil como
“grande região de desembarque”. Disponível em: http://www.slavevoyages.org/

124
livres”.350 Ou seja, entre 1832 e 1856, mais de meio milhão de pessoas – e sua
descendência – eram propriedade escrava ilegalmente adquirida no Império do Brasil.
A ilegalidade das escravizações que abasteciam o tráfico transatlântico, no entanto,
não se caracterizava apenas no momento da chegada ao Brasil. Do outro lado do Atlântico,
Luanda e Benguela eram os grandes portos exportadores de escravos para a América
portuguesa e, mais tarde, para o Brasil. Porém, os que aí embarcavam como escravos nem
sempre o eram de maneira legal ou regular. Fora as inúmeras práticas de contrabando,
diversos outros mecanismos eram mobilizados para escravizar ilegalmente. Mariana
Candido, por exemplo, ressalta que, apesar da proibição de se escravizarem vassalos
portugueses, muitos africanos que estavam nessa condição foram enviados ao Brasil como
escravos após serem sequestrados, terem sua prisão decretada por “sobas”, dentre outros
mecanismos. Mulheres e africanos que trabalhavam como sertanejos ou pumbeiros,
cruzando diversas fronteiras políticas no território africano, eram especialmente
vulneráveis. Nesses processos de escravização, o papel das autoridades coloniais
portuguesas era central, tanto em razão de seu envolvimento direto nessas práticas, quanto
quando eram coniventes ou omissas em relação a elas. Além disso, o tráfico transatlântico
foi abolido, nos territórios controlados por Portugal, pelo Decreto de 10 de dezembro de
1836. Sem embargo, inúmeros embarques ilegais foram feitos, dos portos da África
Central, para o Brasil.351 Assim, os escravos que desembarcaram nos portos brasileiros
após 1836 eram propriedade ilegal tanto pela lei brasileira quanto pela portuguesa. Não é
possível precisar o número, mas, muito antes dessas duas legislações, propriedade escrava
ilegal pode ter sido adquirida com “vício de origem” tanto de um lado do Atlântico quanto
de outro.
Os escravos ilegalmente adquiridos colocavam, perante os tribunais, diversas
questões a respeito dos documentos que eram produzidos para comprovar o domínio sobre
eles.
Em 1887, por exemplo, Marcelino compareceu perante o juiz municipal da cidade
de Serra alegando ser africano importado após a Lei de 1831 e requerendo a declaração
judicial de sua liberdade. Para provar o direito à liberdade, seu curador contestou a

350
BRASIL. Lei de 7 de novembro de 1831.
351
CANDIDO. “African Freedom Suits and Portuguese Vassal Status”, CANDIDO. Fronteras de esclavización,
pp. 155-203, CANDIDO. An African Slaving Port and the Atlantic World, pp. 191-236. Ver também
FERREIRA. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World, pp. 52-165.

125
produção das certidões de matrícula de Marcelino. Na matrícula realizada em 1871, ele foi
registrado com a idade de 42 anos e, na de 1885, de 57 anos. Ou seja, levando em
consideração essas idades, ele teria sido importado recém-nascido em 1829, pela matrícula
de 1871, e em 1828, pela matrícula de 1885. Para o curador, no entanto, a data declarada
nas matrículas era sempre presumível. Não era uma idade certa. O juiz não concordou com
a relativização dos dados da matrícula proposta pelo curador. Para ele, até prova em
contrário, a idade declarada na matrícula deveria prevalecer como idade real. E completou:
“o direito de que se arroga o autor [Marcelino], carece de provas que destruam o de
propriedade de seu senhor”.352
Como vimos no caso de Marinho, nem só do Atlântico vinha propriedade escrava
ilegal para o Brasil. E também os escravos ilegalmente importados a partir das fronteiras
com as repúblicas latino-americanas levantavam questões a respeito da titulação e dos
documentos que seriam hábeis a comprovar domínio sobre eles.
O que desencadeou a abertura de um processo criminal contra Marinho foi a
tentativa de, na Alfândega, apresentar o papel de compra e venda como se fosse título de
domínio sobre João, Joaquim José e Manuel. Em um ambiente no qual havia uma intensa
discussão sobre quais documentos seriam considerados ou não como títulos de domínio,
essa tentativa de Marinho não parece de todo descabida. Poderia ter funcionado. Como
vimos no capítulo anterior, papéis de venda eram, amiúde, aceitos como documentos aptos
a comprovar domínio sobre um bem.
No caso de João, Joaquim José e Manuel, o Promotor Público tampouco se mostrou
satisfeito com o papel de venda. Ele considerou que “não apresentou em toda esta lide o
Réu [Marinho] título, ou documento algum e nem tal consta deste processo pelo qual se
possa crer que o mesmo Réu tivesse a menor propriedade em tais pretos”.353
Novamente interrogado, Marinho reforçou que os títulos e documentos que tinha
para apresentar e provar o domínio sobre João, Joaquim José e Manuel, eram a já juntada
escritura do papel de venda e o recibo. Seu advogado ressaltou, ainda, que os documentos
apresentados eram os únicos que poderia oferecer, tendo em vista o estado em que se
encontrava Montevidéu. Ademais, “se não são reconhecidos pelo nosso Cônsul ali

352
Processo n. 249.
353
Processo n. 1.811, p. 86v.

126
residente, para maior fé poderem ter, é porque o Réu não adivinhava que um dia viria, em
que seria preciso usar deles para sua defesa em um processo criminal”.354
O contexto de disseminação de propriedade escrava não titulada foi expressamente
mobilizado pelo advogado de Marinho em sua defesa:

Ora Senhores, pegar em uma das milésimas pessoas que há no Brasil sem
títulos da propriedade de seus escravos, e muito principalmente se for pessoa
sem representação nem consideração como o Réu [Marinho], e direi-lhe que
um, dois ou três dos mesmos escravos assoalham, e publicam que são livres,
e que em consequência sendo denunciado a qualquer autoridade, vai entrar
em um processo criminal, e responder a vós mesmos Senhores o que fará
quem assim se vir envolvido em um tal enleio.355

Para o advogado de Marinho, era um atentado ao direito de propriedade exigir que


fossem apresentados os títulos, uma vez que “milésimas pessoas” tinham propriedade
escrava não titulada no país.
Além da questão do título de domínio “propriamente dito”, cruzar fronteiras
envolvia a produção de outros documentos que, eventualmente, poderiam funcionar como
comprovação de direitos sobre supostos escravos. Entre esses documentos, estavam os
passaportes de viagens, frequentemente analisados pelos juízes para determinar se uma
pessoa era livre ou escrava.
No caso de João, Joaquim José e Manuel, por exemplo, eles haviam embarcado sem
passaportes, o que parece ter reforçado a suspeitas do Chefe de Polícia e do Inspetor da
Alfândega de que se tratava de uma prática de escravização ilegal, já que, se os escravos
fossem propriedade legal, teriam embarcado com passaportes e teriam sido declarados
como tal na lista de passageiros. Quando interrogado, o capitão do brigue Prudência, Pietro
Petranera, um genovês, afirmou que havia acordado levar Marinho de Montevidéu até
Desterro, acompanhado de três escravos, e que, nesta ocasião, havia exigido os
passaportes, ao que Marinho respondeu que não podia obter em razão da “crise do País”.
Ao fim, Marinho embarcou sem os passaportes dos supostos escravos. Petranera procurou
também ressaltar sua suposta boa-fé no caso, afirmando que estava convencido de que se
tratavam de escravos, não de homens livres.
354
Processo n. 1.811, p. 99v.
355
Processo n. 1.811, p. 101v.

127
[…] que durante a viagem veio sempre persuadido que os pretos em questão
fossem Escravos do dito Português como ainda hoje está persuadido, por ele
dizer-lhe que tem Documentos; porém ao avistar o Alvorêdo desta Província
disse-lhe o Português Marinho que visto ter vindo os Escravos sem
passaporte seria necessário ocultá-los, e não publicá-los, porque se isso
soubesse teria ele respondente uma grande multa, pelo que ficou alguma
cousa atemorizado, e conveio que fossem ocultos os pretos com medo da
multa, e que foi por essa razão que os não apresentou no Ato de Visita e não
os mencionou na Relação dos Passageiros.356

Nesse caso, Marinho não registou João, Joaquim José e Manuel. Porém, é possível
aventar a hipótese de que houvesse casos em que passaportes eram falsificados e pessoas
livres eram declaradas como escravas. Se este tivesse sido o caso de Marinho, por
exemplo, talvez o Chefe de Polícia não tivesse desconfiado e não iniciasse o procedimento
criminal, aceitando os passaportes como evidência de uma suposta propriedade escrava. A
possibilidade de existência de passaportes falsificados é plausível, porque é possível que
houvesse esquemas de corrupção na confecção desses documentos. Em uma das vezes que
falou no processo, o advogado de Marinho chegou a afirmar:

[…] todos nós sabemos e nesta Cidade é público e notório, que a visita que
vai aos navios entrados é a da Alfândega, e que esta não tendo obrigação de
pesquisar os passaportes dos passageiros, e por isso nunca ou quase nunca
exigindo a presença deles, está sempre pela relação que lhe apresenta o
Capitão.357

Assim, não é apenas possível cogitar a possibilidade de passaportes falsos como,


também, a de vistas grossas de funcionários do governo para a ausência desses
documentos.
Os passaportes também eram utilizados em viagens dentro do território nacional.
Em 1871, por exemplo, Clelia Leopoldina d’Oliveira ajuizou, perante a 2ª vara cível do
Rio de Janeiro, um processo para chamar Brasilia a seu poder e domínio como escrava que
era. Brasilia contestou essa ação e, um de seus argumentos, foi o de que tinha viajado da

356
Processo n. 1.811, pp. 37v-38.
357
Processo n. 1.811, p. 103v.

128
Bahia ao Rio de Janeiro com passaporte de pessoa livre. Segundo Brasilia, ela era escrava
de Clelia na Bahia. Sua senhora, no entanto, decidiu se mudar para o Rio de Janeiro e, para
tanto, comprou passagens para que viajassem no paquete Biela. Ocorre, porém, que essa
embarcação era de bandeira inglesa e não permitia o embarque de escravos. Clelia, então,
registrou Brasilia como “criada”, pessoa livre, em seu passaporte e ambas viajaram para o
Rio de Janeiro. Assim, de acordo com os argumentos do curador de Brasilia, uma vez
embarcada com passaporte de pessoa livre, ela havia adquirido essa condição e deveria ser
judicialmente declarada como tal. Em outras palavras, para o curador de Brasilia, o
passaporte de pessoa livre funcionaria como um documento que conferisse a liberdade à
Brasilia, ou seja, um documento que transferisse o domínio que Clelia tinha para a escrava
ora liberta.358
Contra esse argumento, Clelia invocou o artigo 179 da Constituição do Império.
Nele, o direito de propriedade era garantido em toda sua plenitude. Por isso, não era
admissível que fosse revogado por acordo ou convenções com governos estrangeiros.
Clelia não poderia ter embarcado no paquete Biela levando Brasilia se não registrada como
criada. Assim, a sua identificação como “criada” teria ocorrido contra sua vontade e sem
seu conhecimento. Não foi ela quem foi tirar os passaportes, mas sim um parente seu.359
O juiz de primeira instância considerou que Brasilia era livre, dentre outros
motivos, porque a liberdade lhe havia sido conferida com a emissão de seu passaporte, para
que pudesse embarcar no paquete inglês.360 Clelia, inconformada, apelou ao TRRJ. Aí os
desembargadores reverteram a decisão de primeira instância:

[…] não remiu a Apelada [Brasilia] do cativeiro a circunstância, que alegou e


em que se fundou a sentença reformada, de ter ela viajado da Bahia para esta
Corte com passaporte e na figurada qualidade de pessoa livre em um paquete
inglês, visto não ter o valor de manumissão essa simples circunstância de
conveniência e comodidade da Apelante [Clelia] para transportar consigo a
Apelada.361

358
Processo n. 14.318.
359
Processo n. 14.318, pp. 45-46v, 85-87v.
360
Processo n. 14.318, pp. 58-59v.
361
Processo n. 14.318, pp. 95-95v.

129
Para os desembargadores do TRRJ, portanto, os passaportes não poderiam ser
considerados como títulos hábeis a conferir a manumissão, a transmitir domínio. Ao
afirmar que deveria ser resguardada a conveniência e a comodidade no transporte dos
escravos, também acabaram por chancelar declarações falsas em passaportes, que eram
documentos oficiais. Em nome do trânsito de senhores com seus escravos, era permitido
que aqueles os declarassem como “criados” nos passaportes e, depois, ignorassem essa
declaração, tratando-os como escravos.
Ao analisar a diáspora ocorrida após a Revolução Haitiana, Rebecca Scott
identificou que processos de escravização ilegal poderiam passar pela confecção de listas
de passageiros e passaportes. A escravidão foi abolida em Saint-Domingue em 1794. Em
razão da guerra que estava assolando a região, diversas pessoas embarcaram para Cuba, no
final do século XVIII e início do século XIX. Como a escravidão havia sido abolida em
Saint-Domingue, essas pessoas embarcaram para Cuba como livres. Cuba, no entanto, era
uma das sociedades americanas onde a escravidão era mais pujante, na qual estavam
presentes muitos receios a respeito das consequências dos processos políticos que estavam
acontecendo em Saint-Domingue. Ao chegarem a Cuba, as listas de passageiros continham
expressões ambíguas como “domestique” ou “criado”. Muitos dos refugiados classificados
nessas categorias ambíguas acabaram sendo considerados como “escravos”. Após alguns
anos, parte desses refugiados emigrou para Nova Orléans. Nesse momento, ocorreu,
novamente, um processo de escravização por meio de classificação em documentos de
viagem. As autoridades espanholas utilizaram, no momento da produção de listas de
passageiros e passaportes, as mesmas expressões ambíguas utilizadas quando do
desembarque em Cuba. Porém, ao chegarem à Louisiana, muitas das pessoas assim
classificadas foram consideradas pelas autoridades locais como “escravas”.362
Na lista de passageiros da sumaca Conceição Protetora, na qual João, Joaquim José
e Manuel foram levados para Desterro, também apareciam diversos “criados”. Pelos
depoimentos das testemunhas, é possível ver que, ao menos uma das criadas, era “preta” e
um dos criados era um “menor crioulo”. 363 Considerando que o Uruguai havia abolido a
escravidão e que, pela Lei de 1831, não seria permitido a entrada, em território brasileiro,
de pessoas com passaporte de “escravo”, fica a dúvida se essas pessoas, embarcadas como
“criadas”, não estavam prestes a serem escravizadas, como ocorreu com Brasilia.
362
SCOTT. “Paper Thin”, pp. 1065-1073.
363
Processo n. 1.811, p. 19.

130
A abolição do tráfico transatlântico de escravos e concomitante aumento na
produção de café estimularam o tráfico interprovincial de cativos em direção ao sudeste
cafeeiro.364 Judy Freitas argumenta que esse processo levou à intensificação das práticas de
escravização e reescravização ilegais. Analisando casos de Minas Gerais, a autora
constatou que agentes do Estado eram participantes ativos nesse tráfico ilegal, que
envolvia práticas como o sequestro de adultos e crianças negras e pardas. Freitas também
identificou casos, em que vítimas eram vendidas como escravas por seus parentes, e outros,
em que vítimas tinham seus nomes trocados no momento da venda. Os grupos mais
vulneráveis à escravização ilegal eram as mulheres e crianças negras e a maioria das
vítimas era direcionada para as regiões cafeeiras de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São
Paulo.365
Freitas também identificou que o comércio ilegal de pessoas livres ocorria,
prioritariamente, nas comarcas do norte da província de Minas Gerais: Rio São Francisco,
Paracatú e Rio Pardo. No mapa abaixo, a comarca do Rio São Francisco é a amarela mais
ao norte, fazendo fronteira com a província de Goiás; a comarca de Paracatú é a rosa, logo
ao sul da do Rio São Francisco, também fronteiriça a Goiás; e a comarca do Rio Pardo é a
rosa mais ao norte, que faz fronteira com a província da Bahia.

364
MARQUESE, TOMICH. “O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século
XIX”, OLIVEIRA. Forasteiros no Oeste Paulista, SLENES. The Demography and Economics of Brazilian
Slavery. Sobre a reação dos escravos à separação de suas comunidades, impulsionada pelo tráfico
interprovincial, ver CHALHOUB. Visões da liberdade, pp. 29-94.
365
FREITAS. “Slavery and Social Life”.

131
Figura 4 – Mapa da Província de Minas Gerais (1868)

Fonte: ALMEIDA, Atlas do Imperio do Brazil, imagem XXI (detalhe).

Essas eram regiões de criação de gado e, durante o século XVIII, abasteciam as


regiões mineradoras. No século XIX, a economia dessas comarcas era baseada na
agricultura de subsistência e na pecuária. A produção era, majoritariamente, consumida
localmente e o excedente, vendido nas províncias de Goiás e da Bahia. 366 Foi nesse
contexto que, em 1857, Serafim Gonsalves de Macedo recebeu a visita de Joaquim Gomes
Lagoeiro.
Serafim vivia em Mamede, na comarca do Rio São Francisco, e possuía três
escravos: uma mãe com dois filhos. Um dia, Lagoeiro foi ter com ele para lhe oferecer
comprar os três escravos. De acordo com Serafim, ele não estava disposto a vendê-los. No
entanto, Lagoeiro lhe disse que, em breve, seria aprovada uma lei que aboliria a escravidão
dos escravos pardos. Diante dessa notícia, Serafim teria ficado com medo do prejuízo e
decidiu vender os escravos. Poucos dias depois, no entanto, inteirou-se que havia feito um

366
FREITAS. “Slavery and Social Life”, pp. 598-599.

132
mal negócio e que tinha vendido os escravos por um preço muito baixo. Ele tentou, então,
desfazer o negócio, mas Lagoeiro não aceitou. Inconformado, Serafim procurou o juízo
municipal da Vila Januária para ver a transação anulada por “lesão enormíssima”.367
As discussões judiciais entre Serafim e Lagoeiro deixam entrever a dinâmica de
aquisições ilegais e irregulares que estavam acontecendo no norte da província de Minas
Gerais. Lagoeiro era um conhecido comerciante de escravos e, pelo que consta do
processo, também comprava escravos para revender na região do Rio Paraná, na província
de Goiás.368
A maneira como Lagoeiro adquiriu os escravos de Serafim, ainda que não
propriamente ilegal, demonstra que o negociante usava de artifícios para convencer os
vendedores. Uma lei que iria abolir a escravidão dos pardos jamais foi cogitada pelo
governo brasileiro. Para justificar o uso dessa estratégia, ele colocou a seguinte questão:
“Quem não sabe que segundo a marcha e os progressos da civilização é muito provável
que o espírito de abolicionismo vingue na América, como tem vingado na Europa?”.369
O procedimento adotado por Lagoeiro, na compra que fez a Serafim, apesar de
moralmente condenável, não era claramente fraudulento. Porém, em outros momentos do
processo, atuações ilícitas do negociante foram desveladas pelas testemunhas e pelos
advogados envolvidos no caso.
O advogado de Serafim, em diversos momentos, ressaltou que os poucos
escrúpulos de Lagoeiro eram conhecidos na região: “ocorre que o Réu [Lagoeiro] é homem
havido e reconhecido de pouco siso em negócios de compras, vendas, e trocas de Escravos,
pelo que tem sofrido e sofre demandas por tais negócios, e sem ter sido bem sucedido nas
decisões finais”.370 Esse tipo de acusação também foi confirmado por várias testemunhas.
Uma delas, por exemplo, afirmou que:

[…] sabe por ser público nesta Vila que o Réu [Lagoeiro] tem incomodado a
si mesmo [testemunha], e outras pessoas já de tempos passados por causa de
seu negócio de compra, vendas, e trocas de escravos em que se tem

367
Processo n. 7.901.
368
Sobre o comércio ilegal de escravos na fronteira entre as províncias de Goiás e Minas Gerais, ver FREITAS.
“Slavery and Social Life”.
369
Processo n. 7.901, p. 108.
370
Processo n. 7.901, p. 11. O advogado de Serafim também acusa o “pouco escrúpulo” que Lagoeiro tinha no
seu negócio de “tráfico de carne humana” em Processo n. 7.901, pp. 91-96v.

133
promovido diversas dúvidas, e demandas, e que nestas não tem sido bem
sucedido.371

Outra testemunha deu detalhes sobre uma transação em que Lagoeiro havia
comprado um escravo coartado.

[…] sabe que havendo um Escravo da herança de Manoel Pereira Lisboa


coartado pela quantia de cento e cinquenta mil réis e que tendo já servido a
dez anos a minha Senhora ao depois disto apareceu na casa dele testemunha
pedindo-lhe proteção de liberdade ele testemunha tendo prometido a sua
proteção, e dizendo ao Escravo que esperasse que o Juiz chegasse das
diligencias que andara a ter fora que neste [ilegível] o Escravo desapareceu e
que só depois teve notícia que Antonio Simões casado com a viúva do dito
Lisboa vendera o dito Escravo coartado chamado Pedro a um dos Lagoeiros,
e que ignora se foi o Réu ou outro dos seus Irmãos.372

Muito frequentes na América espanhola e, também, na região de Minas Gerais, os


coartados eram os escravos que haviam adquirido o direito de angariar dinheiro para
comprar sua liberdade. Ou seja, estavam em um dos estatutos intermediários entre a
escravidão e a liberdade. Ao contrário de Cuba, onde era recorrente a transferência do
domínio sobre os coartados, em Minas Gerais, havia inúmeras controvérsias sobre se
poderiam ou não serem vendidos como escravos. Assim, dado o “desaparecimento” de
Pedro e as circunstâncias de sua venda a Lagoeiro, é pouco provável que a condição de
coartado fosse respeitada em vendas sucessivas e Pedro, provavelmente, voltaria à
condição de escravidão.373
Lagoeiro também foi acusado, por outra testemunha, de comercializar escravos
furtados: “sabe que o Réu [Lagoeiro] comprara um Escravo furtado, pela quantia de
duzentos mil réis e o trocara com o Tenente Coronel Vicente Ferreira de Souza por uma
escrava e que sendo por isso demandado não foi bem sucedido na decisão final por ser o

371
Processo n. 7.901, p. 59. Ver também Processo n. 7.901, p. 61.
372
Processo n. 7.901, pp. 63-63v.
373
Sobre os coartados em Minas Gerais, ver DIÓRIO. As marcas da liberdade, PAIVA. Escravos e libertos nas
Minas Gerais do século XVIII, PINHEIRO. Em defesa da liberdade. Para os casos cubanos, ver DE LA
FUENTE. “Slaves and the Creation of Legal Rights in Cuba”, SILVA JÚNIOR. Entre a escrita e prática, pp.
227-239.

134
mesmo escravo furtado”.374 O advogado de Serafim juntou aos autos certidões de
depoimentos de testemunhas desse processo.
Uma das testemunhas atestou que, conversando com o Tenente Coronel, ele lhe
confessou que o escravo Gaspar tinha lhe dito que fora surpreendido por José da Fonseca e
Mello e conduzido a Januária, onde o havia vendido a Lagoeiro. Gaspar acrescentou,
ainda, que sua senhora legítima era Firmiana Antonia de Toledo, moradora em São Romão.
Ele também disse que, antes da venda ao Tenente Coronel, Lagoeiro o ensaiou para
esconder o furto, para que o Tenente Coronel não desfizesse o contrato. Caso não mentisse,
Lagoeiro o ameaçou de vender “para as matas do Rio a um cativeiro muito mais rigoroso”.
A testemunha também afirmou que o Tenente Coronel lhe disse que sabia que “o Escravo
em questão é propriedade da Autora [Firmiana] por verificação que fez ao dito Escravo
[…] mas que não podia entregar sem correr os turnos da Lei afim de poder haver do
mesmo Lagoeiro seus prejuízos perdas e danos”.375 E ainda:

[…] na mesma ocasião em que o mesmo Lagoeiro procurou a ele


Testemunha para consultar ou encarregar-se da sua causa manifestou-lhe
decididamente que não se havia passado o Título de compra e venda do dito
Escravo, dizendo-lhe não ser necessário como por ser ele Africano e que nem
em juízo se exigia tais títulos e aqui ele testemunha lhe dissera, que só
escravos da proibição [ilegível] boçais não se costumavam apresentar-se
Título por serem considerados contrabandos e que ele não podia se apresentar
em juízo sem o título do escravo e para isso procurasse o vendedor para lhe
passar o título respectivo, ao que respondera ele Lagoeiro que o vendedor já
era morto.376

Ao final, o Tenente Coronel foi condenado a entregar Gaspar a Firmiana. Essa não
foi a única certidão juntada pelo advogado de Serafim para comprovar os tratos ilícitos de
Lagoeiro. Em 1855, chegou ao conhecimento do juiz municipal de Januária que uma
menina chamada Joana, de doze anos, estava em poder de Francisco Gomes Lagoeiro –
irmão do Lagoeiro que comprou os escravos de Serafim – como escrava, sendo a mesma
liberta. O juiz, então, determinou ao escrivão que fosse até a casa de Francisco e o

374
Processo n. 7.901, p. 65v.
375
Processo n. 7.901, pp. 98-101v.
376
Processo n. 7.901, pp. 100-100v.

135
intimasse para “não abrir mão de Joana” antes de saber se ela era escrava ou liberta. Em
seguida, o juiz interrogou Joana. Ela declarou o nome de seus pais e seu domicílio, que era
em “Província estranha”. De lá, “fora furtivamente conduzida para lugares distantes e aí
vendida como escrava tendo nascido de ventre livre”. Para se defender, Francisco afirmou
que tinha títulos de Joana, mas nunca os apresentou no processo “como devera”.377
O juiz decidiu que Joana deveria ser manutenida na posse de sua liberdade até que
se provasse que era escrava. Ela ficou, portanto, depositada com um curador. Passado
algum tempo, o curador decidiu ir para a cidade de Formiga e entregou Joana a Francisco.
Este, então, foi a juízo pedir que lhe fosse concedida “posse e senhorio de sua escrava”.
Para tanto, apresentou um assento de batismo. No texto do assento, não constava ser Joana
livre ou escrava. À margem do documento, estava a seguinte anotação: “escrava de
Fortunato Ferreira Barboza”. O juiz julgou que essa nota, escrita à margem do assento,
“evidencia bem um estratagema” e declarou Joana liberta. Francisco foi condenado às
custas do processo e o juiz ressalvou a possibilidade de que ele viesse a ser processado
criminalmente, dizendo: “salvo o Direito criminal por parte da Justiça contra os
compreendidos na redução da escravidão a pessoas livres, e miseráveis”. Não consta
informação se o processo criminal contra Francisco foi, de fato, instaurado.378
Uma das estratégias de Lagoeiro contra todas essas acusações foi indicar
testemunhas, todas negociantes, que procuraram atestar que os valores pagos pelos
escravos de Serafim eram justos e que falaram em prol da lisura dos negócios do réu.
Sempre que mencionavam uma transação realizada por Lagoeiro, o advogado lhes
perguntava se a compra tinha sido “legal”, ao que respondiam que não sabiam. Por
exemplo, a uma das testemunhas, o advogado perguntou, em relação a uma compra de
escravos mencionada pelo depoente, se dessa transação havia títulos reconhecidos por fé
pública do tabelião e se tais títulos eram verdadeiros. A testemunha, então, respondeu que
“os títulos estão selados, e que não sabe se estão reconhecidos, e que acha que a compra é
legal, e que a razão porque acha ser legal, é porque viu os títulos selados”. 379 Ou seja, para
esse negociante, títulos selados eram prova de domínio legal. Portanto, se um bem
ilegalmente adquirido fosse capaz de passar pelo filtro do selo que indicava o pagamento
do imposto de transmissão – como aconteceu, por exemplo, no caso de João, Joaquim José
377
Processo n. 7.901, pp. 102-106.
378
Processo n. 7.901, pp. 102-106.
379
Processo n. 7.901, p. 88.

136
e Manuel –, o domínio sobre esse bem poderia ser, posteriormente, identificado pela
comunidade como legítimo, o que diminuiria consideravelmente a possibilidade de ele ser
contestado judicialmente de maneira exitosa.
Ao final, o juiz de primeira instância julgou contra Serafim, mas essa decisão foi
revertida no TRRJ e Lagoeiro foi condenado a devolver os escravos ou a pagar a diferença
de valor.
Os debates no processo que Serafim ajuizou contra Lagoeiro deixam entrever
diversas técnicas de aquisição e posterior legitimação de domínio ilegalmente adquirido.
Lagoeiro e seus irmãos eram negociantes de escravos que atuavam no tráfico interno.
Compravam escravos a preços baixos – valendo-se de meios lícitos e ilícitos – e, depois, os
vendiam por preços maiores, por vezes, nas províncias cafeeiras. Esses processos de
vendas sucessivas poderiam gerar uma cadeia de papéis de venda que, posteriormente,
poderiam funcionar como prova de domínio em um processo judicial. Uma prática
recorrente era que, na produção desses documentos, os nomes das vítimas fossem trocados,
dificultando, assim, a identificação da aquisição ilegal. 380 Ademais, era comum que esses
intermediários, negociantes e comissários recebessem procurações para negociar os
escravos em outras províncias. Esse procedimento também ia gerando uma cadeia de
papéis que tornava discutível a titularidade e a legalidade da propriedade escrava que
estava sendo negociada.
Rafael da Cunha Scheffer descreveu o passo a passo da transferência de escravos
nas regiões sul e sudeste. De acordo com ele, no Sul, os comerciantes anunciavam, em
jornais, sua intenção de comprar escravos para serem revendidos no Sudeste. Em geral,
esses escravos comprados eram pagos à vista. Alguns desses comerciantes contratavam
agentes que iam ao interior das províncias comprar escravos em seus nomes. Em muitos
casos, os comerciantes recebiam procurações dos senhores que lhes outorgavam poderes
para transferir sua propriedade. Adquiridos os escravos, era necessário guardá-los em
locais enquanto se esperavam navios para o transporte ou quando se passava pelos pontos
de saída das províncias. Eram constituídos, então, grupos de cativos “em trânsito”.381
Assim, a própria dinâmica das vendas de escravos no tráfico interprovincial e a
maneira como ela se organizava – primordialmente, por meio de intermediários – facilitava
a regularização futura de propriedade escrava ilegalmente adquirida.
380
Sobre a troca de nomes de escravos furtados, ver CHALHOUB. A força da escravidão, p. 167.
381
SCHEFFER. Comércio de escravos do sul para o sudeste, pp. 78-87, 253-262.

137
Produção e falsificação de documentos

Nos casos em que um bem era objeto de sucessivas transações, poderia ser crucial,
para o processo de regularização do domínio ilegalmente adquirido, conseguir um
documento passado por um escrivão e que atestasse a transferência desse domínio. Os
sujeitos históricos envolvidos nessas transações sabiam da importância que poderia ter esse
tipo de documento. Por exemplo, o primeiro procedimento que Marinho adotou ao chegar
em Desterro, antes mesmo de desembarcar João, Joaquim José e Manuel, foi vendê-los a
Antonio Luiz Cabral. Para isso, ele foi até o escrivão da cidade e pediu que o papel de
venda fosse passado. Para que o procedimento fosse realizado, Marinho também
apresentou o recibo de que o imposto da sisa havia sido pago. Para o escrivão, a quitação
do imposto bastou. Ele não requereu a apresentação de nenhum outro documento que
comprovasse a origem do domínio que Marinho alegava ter sobre os supostos escravos.
Como já mencionado, o comprovante de pagamento do imposto da sisa era um
importante documento quando se estava procurando demonstrar ser senhor ou possuidor de
um bem. Em uma sociedade na qual não era exigível que todas os bens fossem titulados e
tivessem a origem de seu domínio materializada em um documento escrito, era comum que
os escrivães realizassem transações de transferência do domínio sem requisitar
comprovantes de origem desses direitos. O problema era que, ao se tratar de domínio
ilegalmente adquirido, o escrivão poderia acabar gerando um documento que, mais tarde,
serviria para comprovar um domínio supostamente legítimo sobre o bem. Foi o que
Marinho tentou fazer: tentou apresentar o papel de venda como título de domínio ao
Inspetor da Alfândega.
No Brasil do século XIX, não só os escrivães produziam documentos de caráter
“oficial”. Também os párocos eram responsáveis pela produção de documentos registrais e
era recorrente que houvesse acusações de falsificação. Como visto, um dos casos que o
advogado de Serafim denunciou, para mostrar a recorrência do comportamento fraudulento
de Lagoeiro, envolvia a tentativa de provar a posse e o senhorio sobre Joana através da
apresentação de um assento de batismo. Os assentos de batismo eram, recorrentemente,
apresentados pelas partes como prova de escravidão ou liberdade. E, assim como no caso
de Lagoeiro, esses assentos eram, frequentemente, considerados fraudulentos.

138
No caso de Felisminda, que tratei no capítulo anterior, um argumento invocado
pelos advogados da libertanda foi a prática reiterada de Francisco de ilegalmente escravizar
pessoas. Em uma das petições iniciais do processo, o advogado, ao pedir a citação de
Francisco, o qualificou como “que quer cativar a Suplicante assim como tem feito a outros
[ilegível] nascidos de ventre livre batizados por cativos”.382 E também no libelo, afirmou
que “o Réu [Francisco] tem por costume reduzir pessoas livres à escravidão, fazendo-as
batizar como nascidas de ventre escravo, como o fez a Francisco filho de Eva, que era
liberta por Escritura Pública, e foi batizado por cativo”. 383 Para comprovar essa alegação, o
curador de Felisminda juntou aos autos uma certidão do assento de batismo do filho de
Eva, “crioula forra por Escritura de Liberdade”, batizado como escravo.384
Em sua defesa, o réu Francisco apresentou testemunhas que afirmavam terem o
bebê sido batizado como escravo legitimamente, uma vez que Antonia não poderia libertá-
lo sem a presença e o consentimento de seu marido. Esse argumento pressupunha que Eva,
a mãe, era escrava e que o objetivo de Antonia era libertar o filho de sua escrava na pia
batismal. Isso era diferente do que estava alegando o curador, que dizia ser Eva livre por
escritura pública – apresentando o documento – o que daria a seu filho liberdade pelo
princípio de que o parto seguia o ventre.385
Em casos de batismos fraudulentos, a questão do reconhecimento social, do
“parecer livres” ou “parecer escravo”, tinha um papel fundamental. No caso relatado pelo
curador de Felisminda, por exemplo, ele ressaltou que tinham sido padrinhos do bebê
escravizado pessoas livres parentes de Antonia, a (ex) senhora. Para ele, era incrível que
um parente fosse escolhido para padrinho de um escravo. Se o tinha sido, era porque o
batizando era livre.386
Já no caso de Angelica e seus descendentes, o tema do reconhecimento social foi
determinante na apreciação que o juiz fez dos assentos de batismo. Em 1865, Angelica
compareceu perante o juízo municipal de Antonina, na Província do Paraná, requerendo a
manutenção de sua liberdade, a de seus filhos e a de um neto. Angelica argumentava que
era filha de Escolástica, que era liberta. Como descendentes de Escolástica, Angelica, seus

382
Processo n. 866, p. 11.
383
Processo n. 866, pp. 12v-13.
384
Processo n. 866, pp. 14-14v.
385
Processo n. 866, pp. 68-72.
386
Processo n. 866, pp. 14-14v.

139
filhos e neto também seriam livres. Para provar seu direito, apresentou seu assento de
batismo, no qual Escolástica constava como liberta. Ela também juntou, ao processo, os
assentos de batismo de seus filhos e neto. Neles, todos estavam categorizados como
“escravos”, já que tinham sido fraudulentamente batizados como tais pelo réu João
Antonio de Mello. Contra João, Angelica frisou que seu assento de batismo, no qual
Escolástica constava como liberta, tinha força de escritura pública e, por isso, fazia prova
contra o réu. Na certidão juntada por Angelica ao processo, não só Escolástica, mas
também ela constava como liberta.387
João contestou a ação proposta por Angelica, pois iria “defender o seu sagrado
direito de propriedade iníqua e levianamente atacado”. Ele argumentou que Escolástica e,
consequentemente, Angelica tinham sido lançadas como livres, no assento de batismo de
Angelica, por erro do pároco. Escolástica era escrava do Capitão José Joaquim Pinto do
Valle. Ademais, os assentos de batismo não podiam ser equiparados a escrituras públicas e,
ainda que o fossem, de um equívoco não se podiam derivar direitos. Escolástica só havia
sido libertada por Valle em 1832, como mostrava a certidão da escritura de liberdade
juntada. Como o assento de batismo de Angelica datava de 1819, era evidente que
Escolástica era ainda escrava a essa época e o pároco havia cometido um erro. Ademais,
todos os irmãos de Angelica, nascidos em 1816, 1820 e 1822, tinham sido batizados como
escravos.388
Para provar suas alegações, João apresentou testemunhas que enfatizaram que
Angelica e seus descendentes haviam sempre vivido como escravos e que sempre haviam
estado na posse do réu. Além disso, afirmaram que o pároco costumava se embriagar, o
que corroborava a hipótese de equívoco na confecção do assento de batismo. O juiz, no
entanto, considerou que os depoimentos testemunhais não eram suficientes para fazer
prova plena da falsidade do assento de batismo que declarava Escolástica e Angélica
libertas. Assim, o réu não havia provado seu domínio. João embargou da sentença e
apresentou certidão de matrícula dos autores. A isso, o curador rebateu que, “visto como
estando meus curatelados no jugo do cativeiro do Réu, sem terem conhecimento de serem
livres, podia o Réu a seu bel prazer matriculá-los”. 389 O juiz julgou os embargos e decidiu
que os assentos de batismo não tinham força por si sós para transferir o domínio, ou seja,
387
Processo n. 11.321, pp. 5-35v.
388
Processo n. 11.321, pp. 38-40v.
389
Processo n. 11.321, p. 124v.

140
para conferir a liberdade a Angelica e seus descendentes. Além disso, os assentos nos quais
constava o estatuto de livre tinham sido “destruídos” pelos assentos posteriores ao de
Angelica, nos quais seus irmãos tinham sido batizados como escravos. Essa decisão foi
confirmada pelo TRRJ.
Na interpretação que os juízes deram aos assentos de batismo nesse caso, o
reconhecimento social de Angelica e seus descendentes como escravos foi fundamental. Os
assentos foram interpretados à luz do fato de que Angelica e seus descendentes nunca
haviam estado fora da posse e do domínio do réu. Ademais, se todos os outros tinham sido
batizados como escravos, porque Angelica não teria sido? Ou seja, o estatuto de Angelica
era comparado com o dos outros, relativizado. Essas considerações acabaram por
desacreditar sua denúncia de falsificação dos assentos de batismo de seus descendentes.
Em uma sociedade escravista e patriarcal como a brasileira do século XIX, a
influência dos senhores na determinação de como seriam feitos os assentos de batismo era
considerável. Assim, era relativamente fácil batizar uma criança como escrava quando ela
era, na realidade, livre. E disso sabiam as pessoas negras, que sofriam o perigo constante
da escravização ilegal.
No ano de 1851, o governo imperial promulgou dois decretos correlatos: um
determinava a obrigatoriedade dos registros de nascimentos e óbitos e, o outro, organizava
o censo geral do Império.390 A partir de 1852, os registros de nascimentos e óbitos
deveriam se realizar nos juízos de paz. Os párocos só poderiam batizar os recém-nascidos
mediante apresentação do registro de nascimento. A implementação dessas medidas, que
visavam ampliar o conhecimento do governo a respeito da população do Império, estava
prevista para janeiro de 1852. No entanto, houve levantes contra a entrada em vigor dos
decretos em diversas províncias: Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Ceará e Minas
Gerais. A reação da população foi tamanha que o governo suspendeu a execução das
normas em 29 de janeiro de 1852.391
Diversas medidas foram tomadas pela população “amotinada”. Uma delas, foi
impedir a leitura dos decretos nas missas de domingo, que era uma das maneiras de tornar
a lei pública. Também tomavam das autoridades as certidões de registro e as rasgavam.
Corria, entre os “amotinados”, a ideia de que o registro teria como objetivo escravizar as

390
BRASIL. Decreto n. 797 de 18 de junho de 1851, BRASIL. Decreto n. 798 de 18 de junho de 1851. Sobre o
censo de 1852, que não se realizou, ver BISSIGO. O censo e as nações, pp. 9-34.
391
CHALHOUB. A força da escravidão, pp. 13-31.

141
pessoas de cor, uma vez que tinha sido extinto o tráfico transatlântico, mas ainda existia
muita demanda de braços escravos. O Decreto chegou, até mesmo, a ser apelidado de “lei
do cativeiro”.392 Ou seja, havia uma percepção compartilhada entre a população de que
registros de nascimentos poderiam gerar escravização ilegal.
Para pessoas escravizadas, ainda que detentoras de papéis, era difícil satisfazer
algumas exigências formais dos documentos ou, mesmo, consegui-los. Como alegou
Felisminda, por exemplo, ao fugir da fazenda por maus-tratos, não pode levar consigo o
original de sua carta de alforria. Ela, no entanto, tinha tomado o cuidado de registrá-la
perante um tabelião, resguardando-se, assim, de uma contestação de sua liberdade como,
de fato, ocorreu. Também era bastante complicado, para pessoas escravizadas, provar uma
suposta falsificação, como no caso de Angelica e seus descendentes.
A rede de relações e dependências que se estabelecia entre senhores, párocos e
agentes do Estado poderia dificultar bastante a consecução de documentação favorável.
Uma boa rede de contatos, por outro lado, poderia ser decisiva no momento de se alegar a
falsidade ou não de um documento apresentado. No caso de Angelica, por exemplo, as
testemunhas apresentadas por João afirmaram que o pároco se embriagava com frequência,
o que contribuiu para convencer os juízes de que Escolástica e Angelica constavam como
libertas no assento de batismo por erro e não por falsificação.

Ilegalidade e posse

O artigo 179 do Código Criminal

Voltando ao caso que abriu este capítulo, Marinho foi condenado como incurso nas
penas do artigo 179 do Código Criminal de 1830 (doravante, artigo 179) e foi decretado
que ele continuasse na prisão em que se encontrava. O juiz considerou que as vítimas
estavam no “gozo de sua liberdade”, servindo no exército de Montevidéu. Marinho os
tinha “seduzido” com promessa de trabalho e os conduziu “enganadamente” a Desterro.
Além do mais, o réu não tinha “apresentado Documento algum pelo qual justifique a
propriedade que diz neles ter”. Os demais réus do processo foram declarados inocentes,
pois o juiz considerou que não tinham como saber que Marinho tinha obtido os supostos
392
CHALHOUB. A força da escravidão, pp. 13-31, LOVEMAN, “Blinded Like a State”, OLIVEIRA.
“Resistência popular contra o Decreto 798 ou a ‘lei do cativeiro’”.

142
escravos “por meios criminosos”. Ademais, para o juiz, os demais também não tinham
como saber que Marinho estava cometendo um crime, uma vez que, mesmo com a
abolição da escravidão pelo governo Colorado, os cidadãos de outras nações não estavam
sujeitos às leis daquele governo.393
O artigo 179 tipificava o crime de redução de pessoa livre à escravidão.

Art. 179. Reduzir à escravidão a pessoa livre, que se achar em posse da sua
liberdade.
Penas – de prisão por três a nove anos, e de multa correspondente à terça
parte do tempo; nunca porém o tempo de prisão será menor, que o do
cativeiro injusto, e mais uma terça parte.394

O Código Criminal do Império começou a ser debatido no ano de 1827, a partir de


dois projetos: um apresentado por José Clemente Pereira e o outro por Bernardo Pereira de
Vasconcelos.395 No projeto apresentado por Pereira, não havia nenhum artigo similar ao
artigo 179.396 Já no projeto de Vasconcelos, em seu artigo 152, estava previsto que:

O que reduzir à escravidão o homem livre que se achar em posse de sua


liberdade, será punido com as penas de galés por cinco a vinte anos. E se o
cativeiro injusto tiver sido da maior duração, a pena o excederá sempre à
terça parte mais multa correspondente.397

Ele fazia parte do capítulo 1 (Dos crimes contra as pessoas), do título III (Dos
crimes particulares) do projeto de código. Já na redação final do código criminal, o crime
de redução de pessoa livre à escravidão integrou o título I (Dos crimes contra a liberdade
individual), da parte terceira (dos crimes particulares), do código. Ou seja, o fundamento
da tipificação do crime do artigo 179 era a liberdade individual. Para o jurista e senador
Vicente Alves de Paula Pessoa, o fundamento do título no qual o artigo 179 estava inserido
era:

393
Processo n. 1.811, pp. 64-65.
394
BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830.
395
Para uma análise detalhada dos debates parlamentares que precederam a promulgação do Código Criminal de
1830, ver COSTA. Codificação e formação do Estado-nacional brasileiro.
396
PEREIRA. Projecto do codigo criminal do Império do Brasil.
397
VASCONCELLOS. Projecto do codigo criminal, p. 101.

143
De todos os tempos o homem há lutado contra a opressão; e é assim que, ao
lado do despotismo, nós vemos sempre o espírito da liberdade e a coragem
esclarecida; e hoje proclama-se a manutenção das liberdades individuais
como o fim e condição da ordem pública, como a regra da apreciação das leis
e das instituições.398

Envolto por essa retórica de proteção à liberdade individual, o artigo 179 encontrou
dificuldades para se efetivar. Por exemplo, Keila Grinberg e Beatriz Mamigonian
encontraram, no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, 68 processos criminais
com fundamento no artigo 179. Destes, somente três condenaram os réus pelo crime de
reduzir à escravidão pessoas livres. Nos demais, mesmo em casos em que a condição de
liberdade das vítimas foi reconhecida, não houve condenação criminal.399
Ao longo do século XIX, foram sendo construídas duas interpretações restritivas do
artigo 179. A primeira delas diz respeito à relação entre juízos cíveis e criminais. A
princípio, os crimes do artigo 179 seriam processados pelos juízes criminais. No entanto,
por ser um crime que se relacionava com discussões de direito civil sobre definição de
estatutos jurídicos, alguns juristas consideravam que, nesses casos, os dois tipos de juízo
seriam responsáveis pelo processamento.
Em 3 de maio de 1839, o regente Pedro de Araújo Lima apresentou sua Fala do
Trono, na abertura da Assembleia Geral daquele ano. Nela, discorreu sobre temas como a
saúde do Imperador e de suas irmãs, as relações do Império com outras nações e com a
Santa Sé, a Farroupilha e a necessidade de se reformar algumas leis do Império. 400 Ao
elaborar um discurso-resposta à Fala do Trono, os senadores se viram envolvidos em
diversas polêmicas. Em meio a acaloradas discussões sobre os atos do “Gabinete de
Setembro”,401 o senador e ex-regente, Diogo Antônio Feijó, com o objetivo de provar quão
ruim havia sido o governo do dito gabinete, trouxe à baila o seguinte acontecimento:

398
PESSOA. Codigo criminal do Imperio do Brazil, p. 321.
399
GRINBERG, MAMIGONIAN. “Le crime de réduction à l’esclavage d’une personne libre”.
400
BRASIL. Falas do Trono, pp. 299-300.
401
O “gabinete de setembro” foi formado em 19 de setembro de 1837, durante a regência de Araújo Lima. Ele
foi composto por Bernardo Pereira de Vasconcelos (Império e Justiça), Antonio Peregrino Maciel Monteiro
(Estrangeiros), Miguel Calmon du Pin e Almeida (Fazenda), Joaquim José Rodrigues Torres (Marinha) e
Sebastião do Rego Barros (Guerra). BRASIL. Organisações e programmas ministeriaes, pp. 67-68.

144
Também se sabe que um cidadão comprou nesta Corte, nos leilões alguns
escravos e os levou para Santos, com os despachos necessários. Que
aconteceu? O Juiz obrigou esse homem a que entregasse os escravos e
determinou ao Juiz de Paz que fizesse o interrogatório e o processo; o Juiz de
paz fez isso, chamou o homem, e conhecendo a sua justiça mandou entregar-
lhos; porém, o Juiz de Direito obstou, e não quis que lhe entregassem os
escravos; deu parte ao Presidente da Província, este consultou ao Exm. ex-
Ministro da Justiça; foi daqui uma portaria, ou ofício do Ministro, dizendo
que se devia aprovar muito o procedimento do Juiz de Direito, e que não se
entregassem a esse homem os escravos senão quando ele provasse que eram
seus por uma sentença no Juízo Civil. Eis o que se pratica; toma-se a um
cidadão a sua propriedade; e diz-se-lhe: Ela não vos será entregue senão
quando provardes que é vossa!402

Ou seja, para Feijó, um dos indicativos de que não reinava a ordem no Império –
como queria fazer crer a Fala do Trono – era que juízes e ministros haviam “confiscado”
escravos de um cidadão, exigindo que ele provasse seu domínio sobre eles. O ex-Ministro
da Justiça que estava sendo acusado era Bernardo Pereira de Vasconcelos que, no
momento da discussão, ocupava o cargo de Senador e tentou se defender das acusações de
Feijó. Em sua defesa, Vasconcelos alegou que apenas havia agido de acordo com a Lei de
1831, que havia proibido o tráfico transatlântico e fixado os procedimentos judiciais em
caso de apreensão de africanos ilegalmente importados.403 Promulgada pelo próprio Feijó,
essa lei determinava que os importadores de escravos ilegais incorreriam nas penas do
artigo 179.404
Feijó rebateu Vasconcelos argumentando que, quando o cidadão por ele citado
chegou a Santos com os escravos comprados, o juiz de direito determinou ao juiz de paz
que apurasse se os escravos eram africanos importados após a Lei de 1831. O juiz de paz
concluiu que não havia crime nenhum e o juiz de direito, não satisfeito, pediu que o caso
fosse analisado pelo promotor público e pelo júri. Ambos decidiram pela ausência de
crime. O juiz de direito, então, consultou o Ministro da Justiça, Vasconcelos, sobre o caso

402
BRASIL. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, 1839, livro 1, sessão de 27 de maio, pp. 222-223.
403
As discussões parlamentares que serão narradas nesta seção, estão em BRASIL. Annaes do Senado do
Imperio do Brazil, 1839, livro 1, sessões de 27, 29 e 31 de maio e 1º de junho, pp. 222-285.
404
BRASIL. Lei de 7 de novembro de 1831.

145
e recebeu a resposta de que “se deveriam entregar os escravos só quando o que se dizia
dono tivesse obtido sentença no Juízo do Civil a seu favor”. Feijó, então, esbravejou:

Ora, a vista de tal procedimento para com um homem que se apresenta em


dois juízos com documentos comprovativos de que os escravos eram seus, e
neles obtém sentença favorável, qual de nós se poderá considerar seguro em
sua propriedade? Quem não estará sujeito a apresentarem-se-lhe em casa dois
meirinhos mandados pelo Governo, e dizerem-lhe: “Nós viemos apreender os
teus escravos; e, se os quiseres, hás de primeiro obter uma sentença contra
eles”. Deste modo ninguém pode estar com a sua propriedade segura!
Senhores. O que vemos neste procedimento? Uma manifesta usurpação do
Poder Legislativo, criando-se uma lei nova contra a atual legislação, que
reconhece o direito do possuidor; atacou-se a independência judiciária,
porque, determinando a lei a entrega dos pretos em depósito, foi sustada esta
ordem, e foram removidos dele por mandato do Governo, e postos à
disposição do Juiz de Órfãos, para se fazer arrematar como africanos livres, o
que se fez, com manifesto ataque à propriedade, e direitos do senhor.405

Novamente procurando se defender, Vasconcelos alegou que o juiz de direito não


entregou os africanos a seu possuidor, porque considerou que o júri só era competente para
decidir sobre a criminalidade do ato, não para declarar se os africanos eram escravos ou
livres, uma questão cível. Após a Lei de 1831, a presunção se dava a favor dos africanos
“boçais” (aqueles que tinham chegado da África há pouco tempo): “todo o africano boçal é
livre; e para se mostrar que é escravo, exige-se que o seu possuidor o convença de não
estar em pleno gozo de sua liberdade”. Vasconcelos, então, em suas atribuições de
Ministro, tinha consultado a “prática do foro”, a legislação e pedido o parecer do
Procurador da Coroa sobre o caso. Depois desses procedimentos, concluiu que “não havia
outro meio para se verificar a verdade e admitir-se boa justiça, senão mandar-se declarar
que o possuidor dos africanos mostrasse no juízo competente, com audiência do Curador
nomeado para os africanos, que eles eram seus escravos, e como os houve”.
Foi então que o senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, grande fazendeiro
de São Paulo, entrou na discussão contra Vasconcelos. Ele ressaltou que o referido cidadão
tinha comprado os escravos “à face de todo o mundo” e tinha tomado o cuidado de
“demorar o tempo que era necessário” para ter “todos os documentos, cartas de venda, de
405
BRASIL. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, 1839, livro 1, sessão de 29 de maio, p. 247.

146
sisa, etc.”. Por isso, era absurda a determinação de que o possuidor comprovasse seu
domínio no juízo cível.

Será admissível em direito que o próprio senhor e possuidor dos escravos


intente esta ação? De certo que não; aquele que está de posse tem a presunção
a seu favor, mesmo pelo escrúpulo que ele tinha tido na compra desses
africanos, e pelos documentos que apresentava. Pois um homem que está na
pacífica posse de uns escravos, munido de títulos que a comprovam, só
porque se apresenta qualquer que diga que esses escravos são importados de
novo, é obrigado a intentar a ação? Se se admitir este princípio, ninguém se
pode julgar senhor do domínio de seus escravos. Portanto, eu declaro-me
contra semelhante inovação, inovação perigosíssima, capaz de produzir
desordens.406

Vasconcelos falou novamente em sua própria defesa. Desta vez, procurou deixar
bem claro que ele também era contrário às disposições da Lei de 1831, que, no seu
entender, causavam desordem e incerteza a respeito da propriedade escrava.

Um nobre Senador entendeu que o aviso do Governo, quando aprovou o


despacho do Juiz de Direito de Santos, que exigia, para a entrega dos
africanos apreendidos, a justificação do domínio, continha um princípio
perigoso, um princípio ofensivo da propriedade dos cidadãos. Eu sou da
opinião do nobre Senador […] A lei de 7 de Novembro de 1831 contém
disposições pouco acordes com os princípios de Direito; ela autoriza, até, a
qualquer do povo a apreender africanos, sem mandado. Daí tem resultado
milhares de abusos. […] Tal é, também, essa presunção que se deduz da lei
de que o africano boçal deve ser considerado livre, embora se alegue o
princípio da posse: esse princípio de posse era fundado na presunção de que
aquele que possui a coisa, em caso de dúvida, deve ser considerado dono
dela.
[…]
É geralmente admitido no Foro que todo o africano boçal é livre: entra
qualquer pessoa ou Oficial de Justiça na casa de um cidadão e diz-lhe: “Esses
vossos escravos são africanos livres. Vão logo para o depósito”. Esta é a
marcha; marcha que eu condeno como o nobre Senador, mas que é conforme

406
BRASIL. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, 1839, livro 1, sessão de 31 de maio, p. 275.

147
a lei; e o dono, muitas vezes, tem de disputar até anos sobre a sua
propriedade.407

Vergueiro rebateu Vasconcelos ressaltando os atos que o possuidor do caso havia


realizado e que serviriam como prova de seu consequente domínio regular sobre os
escravos: pagou o imposto da sisa e se apresentava com os africanos publicamente, sem
receio de que seu domínio fosse contestado ou sofresse turbação. Nesse sentido, a
presunção deveria estar “em favor de quem está de posse dos pretos, pois que apresenta
títulos legais”. Quem deveria ajuizar ação para discutir o tema no cível era quem duvidava
da posse, não o possuidor da coisa. Além disso: “se se admitir tal princípio, não se
respeitará mais a posse de cada um, todas as fortunas ficarão vacilantes, e ninguém poderá
considerar seguro o que possui”.408
A seu favor, Vasconcelos argumentou que a posse com título fazia presumir o
domínio. Porém, era necessário que esse título não estivesse eivado do vício da má-fé. No
caso em questão, o título apresentado não estava “limpo de toda a má-fé”, porque os
africanos tinham passaportes de distritos diversos dos que residiam, eles não conheciam a
língua portuguesa e porque se deveria presumir de má-fé quem compra “pretos boçais”. Ao
final, reafirmou que, contrariamente a suas convicções pessoais, tinha agido de acordo com
a lei e com a prática do foro.409
Nesse debate parlamentar, percebe-se que, quando se tratava do crime de redução à
escravidão, circulavam interpretações divergentes a respeito de qual seria o papel dos
juízos cíveis no processamento desses casos. Essa tensão entre juízos cíveis e criminais
também apareceu no caso de João, Joaquim José e Manuel. O advogado de Marinho tentou
defender que a condição de livres e a posse da liberdade dos africanos deveria ser provada,
primeiro, no juízo cível, para, só depois, caso fossem declarados livres, ser ajuizado um
processo criminal contra seu cliente.410
Assim, mobilizando-se a tensão existente entre juízos cíveis e criminais em casos
de escravização de pessoas livres e o argumento de que questões como posse, propriedade,
407
BRASIL. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, 1839, livro 1, sessões de 27, 29 e 31 de maio e 1º de
junho, pp. 222-285.
408
BRASIL. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, 1839, livro 1, sessões de 27, 29 e 31 de maio e 1º de
junho, pp. 222-285.
409
BRASIL. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, 1839, livro 1, sessões de 27, 29 e 31 de maio e 1º de
junho, pp. 222-285.
410
Processo n. 1.811, pp. 78v-79.

148
domínio e estatuto deveriam ser tratadas, primordialmente, nos juízos cíveis, era possível
tecer diferentes argumentos que impedissem ou retardassem o ajuizamento de um processo
criminal fundado no artigo 179.
A segunda interpretação restritiva desse artigo dizia respeito à caracterização das
vítimas. Como o crime do artigo 179 era de competência do Conselho de Jurados,
presidido pelo juiz de direito.411 Após a instrução processual, o juiz de direito formulava os
quesitos que deveriam ser respondidos pelo júri, no julgamento do caso. Nessa fase
processual, muitos juristas defendiam que o processo seria nulo se, ao formular os quesitos
ao júri, o juiz não mencionasse explicitamente as palavras “pessoa livre”. Alguns,
inclusive, já indicavam em seus livros um modelo de formulação dos quesitos, como, por
exemplo, Francisco Luiz: “1 – O réu F… no dia … e no lugar … reduziu F …, pessoa
livre, à escravidão? 2 – O mencionado F … se achava então no gozo de sua liberdade?”.
Os outros modelos encontrados eram estruturados de maneira muito similar a essa.412
Esses livros invocavam como base dessa interpretação dois acórdãos proferidos
pelo TRRJ: apelação n. 3446, julgada a 11 de setembro de 1860 e apelação n. 3514,
julgada em 12 de março de 1861. De acordo com essas decisões, as palavras “pessoa livre”
constituíam o crime, ou seja, eram imprescindíveis para que o tipo penal se configurasse.
Em suas Annotações theoricas e praticas ao Codigo Criminal, Thomaz Alves
Junior, por exemplo, procurou esclarecer a questão de se a vítima do crime do artigo 179
poderia ser pessoa que não estivesse na posse da liberdade. Para responder a essa questão,
ele fez remissão ao Código Penal português, de 1852, que, em seu artigo 328, 413 valia-se da
expressão “homem livre”, para caracterizar a vítima do crime de redução à escravidão; e ao
projeto de Vasconcelos, em cujo artigo 152 a vítima era caracterizada como o “homem
livre que se achar em posse de sua liberdade”. Diante disso, Alves Junior concluiu que:

411
De acordo com artigo 23 do Código do Processo Criminal, poderiam ser jurados todos aqueles que poderiam
ser eleitores. Também deveriam ter reconhecidos bom senso e probidade. Já o juiz de direito, presidente do
Conselho de Jurados, era nomeado pelo Imperador, gozava de cargo vitalício e deveria ser bacharel em
direito, tendo já atuado, pelo menos, durante um ano no foro. BRASIL. Lei de 29 de novembro de 1832.
412
ALVES JUNIOR. Annotações theoricas e praticas ao Codigo Criminal, tomo 3, p. 93; FILGUEIRAS
JUNIOR. Codigo criminal do Imperio do Brazil, p. 203; LUIZ. Codigo criminal do Imperio do Brazil, pp.
339-340; PEREIRA. Codigo criminal do Imperio do Brasil, p. 61; PESSOA. Codigo criminal do Imperio do
Brazil, p. 294; TINÔCO. Codigo criminal do Imperio do Brazil annotado, pp. 309-310.
413
Artigo 328: “Todos os que sujeitarem a cativeiro algum homem livre, serão condenados em prisão maior
temporária, e no máximo da multa”. PORTUGAL. Codigo penal, p. 99.

149
A questão que parece dar lugar a redação do artigo não tem razão de ser,
porque dizer – que se achar em posse de sua liberdade – não é dizer que se
admite o homem livre fora dessa posse.
Se está fora dessa posse legalmente – é escravo, e não pode dar lugar ao
crime: se está fora dessa posse ilegalmente, dá-se sempre o crime – porque a
privação da posse pelo arbítrio não tira a condição de livre.414

Alves Junior, então, apresentou como exemplos de possíveis vítimas desse crime os
ingênuos e os libertos. E continuou:

A condição de ser livre importa necessariamente a posse desta liberdade, e


por isso é que na ação de liberdade é sempre prejudicial a manumissão, e
portanto o legislador dizendo, que se ache na posse de sua liberdade, não
quer dizer que reconheça condição livre sem essa posse, é ainda
complemento da ideia, isto é, que o estado livre importa sempre a posse desta
liberdade.415

Assim, de acordo com determinado posicionamento doutrinário, só poderia ser


vítima do crime do artigo 179 a pessoa que estivesse na posse de sua liberdade e dela
tivesse sido privada ilegalmente. O problema que essa interpretação punha era que,
considerando o ambiente jurídico brasileiro, associava-se à “posse da liberdade”
determinados atos que fossem considerados de pessoa livre. Ademais, para essa
caracterização, era primordial que a pessoa fosse de fato reconhecida como livre pela
comunidade na qual estava inserida. Como elemento central para a configuração do tipo
criminal do artigo 179, a posse moldava as argumentações das partes. Marinho, por
exemplo, em sua defesa, tentou argumentar que João, Joaquim José e Manuel não estavam
na posse de suas liberdades. Por isso, essa interpretação do artigo 179 acabava dificultando
que pessoas que sempre viveram ilegalmente escravizadas fossem consideradas como
vítimas do crime de redução à escravidão.

Ilegalidade e precariedade da liberdade

414
ALVES JUNIOR. Annotações theoricas e praticas ao Codigo Criminal, tomo III, p. 87.
415
ALVES JUNIOR. Annotações theoricas e praticas ao Codigo Criminal, tomo III, p. 88.

150
“Porque como cativos comprou os pretos, e como cativos os vendia”. 416 Assim
procurou defender o advogado de Marinho a seu cliente, livrando-o de uma condenação
pelo crime do artigo 179. Por esse tipo de argumento, pode-se perceber que o
reconhecimento social, a percepção de uma pessoa como livre ou como escrava, tinha um
papel central também nos processos que discutiam o crime de redução à escravidão e nos
processos de escravização e reescravização ilegais.
Em tese, não era legalmente possível escravizar alguém pelo exercício de atos
possessórios. Essa ressalva já era feita pelos juristas do direito comum, como, por
exemplo, Melchior Phaebo e Bento Pereira. E foi reiterada por autores do século XIX
como, por exemplo, Agostinho Marques Perdigão Malheiro.417 Porém, o que a análise dos
processos mostra é que, na prática, o exercício de atos possessórios sobre uma pessoa, por
um período de tempo e com o reconhecimento da comunidade, poderia levar a uma futura
declaração judicial de escravidão.418
Aqueles que buscavam ser absolvidos do crime do artigo 179 deveriam convencer o
juiz de que exerciam atos de senhor. Produzir esse convencimento tinha dois efeitos nesse
tipo de processo. O primeiro era ressalvar o fato de que as vítimas eram escravas e como
tais eram por todos reconhecidas e, portanto, não se havia que falar em redução à
escravidão de pessoa livre em posse de sua liberdade. O segundo era demonstrar que o réu
estava de boa-fé, que se acreditava, de fato, senhor e possuidor legítimo das vítimas. Caso
o juiz fosse disso convencido, mesmo que fosse reconhecida a existência do crime, era
possível que o réu não fosse considerado culpado, por não ter agido de má-fé.
Por exemplo, como mencionei no início deste capítulo, no caso de João, Joaquim
José e Manuel, levantaram suspeitas os fatos de Marinho não ter apresentado os títulos de
domínio sobre os supostos escravos ao Chefe de Polícia e de não os ter reclamado do
Depósito em que estavam. Era de se esperar que um senhor estivesse insatisfeito em ter
seus escravos depositados.419 Daí o Chefe de Polícia achar estranho que um senhor não os
reclamasse. Se não os reclamou, algo de errado tinha de haver. Marinho não agia como se

416
Processo n. 1.811, p. 108v.
417
MALHEIRO. A escravidão no Brasil, tomo 1, p. 90, PEREIRA. Promptuarium juridicum, p. 293, PHAEBO.
Decisiones Senatus Regni Lusitaniae, p. 539.
418
Para uma discussão da posse na atribuição do estatuto jurídico de escravo, na Louisiana, ver SCOTT. “Social
Facts, Legal Fictions, and the Attribution of Slave Status”.
419
Sobre a insatisfação de senhores em terem seus escravos depositados, ver DIAS PAES. Sujeitos da história,
sujeitos de direitos, pp. 74-79.

151
fosse, de fato, senhor e possuidor legítimo de João, Joaquim José e Manuel. O advogado de
Marinho justificou essa atitude dizendo que seu cliente, por ser estrangeiro, não conhecia
as leis do país e estava convencido de que o melhor a se fazer, no caso, era não reclamar
seus escravos. Assim, ele havia agido por “excessivo receio”.420
No mesmo sentido, ser percebido como escravo poderia levar a situações de
escravização ou reescravização. Ainda no caso de João, Joaquim José e Manuel, Marinho
argumentou que, mesmo que, de fato, fossem eles livres, não tinha como sabê-lo, pois
“como escravos os comprou em Montevidéu”. Ademais, ressaltou que, como os havia
comprado como escravos, estava de boa-fé, o que tiraria sua culpa no crime do artigo
179.421
Como já argumentei, no Brasil do século XIX, a “qualidade” das testemunhas era
muito importante. Também nos casos de crimes de escravização, essa faceta da questão do
reconhecimento social jogava um papel. No caso de João, Joaquim José e Manuel, por
exemplo, o advogado de Marinho procurou desmerecer o testemunho das vítimas: “Será
um testemunho bastante, para ser acusado e punido qualquer indivíduo, por reduzir à
escravidão um homem livre, dizer um preto, no ato de ser vendido como cativo que é a seu
novo Senhor, que o não compre porque é liberto?”.422
Como discuti em outros momentos deste trabalho, a teoria possessória criava uma
arquitetura jurídica na qual o “viver como” era decisivo no reconhecimento judicial do
estatuto jurídico de livre ou de escravo. O problema era que alguns grupos tinham mais
dificuldade de “viverem como” livres do que outros, ainda que, legalmente, não fossem
escravos, como, por exemplo, alforriados condicionalmente e africanos livres. Além de
tudo, ter a liberdade declarada judicialmente não era garantia de que o estatuto jurídico de
livre não pudesse ser, novamente, contestado.
Voltando ao caso que deu início a este capítulo, ao final do processo criminal
iniciado contra Marinho, o júri o absolveu. Dentre os quesitos aos quais o júri teria que
responder estavam os seguintes: “2º Se o Réu provou com os documentos que existe neste
processo a propriedade que sobre eles tinha?” e “3º Se os pretos são livres ou escravos?”.
Apesar de ter respondido ao segundo quesito que “não”, ou seja, que Marinho não havia
apresentado documentos que comprovassem seu domínio, o júri respondeu ao terceiro que
420
Exemplos podem ser encontrados em Processo n. 1.811, p. 101v.
421
Exemplos podem ser encontrados em Processo n. 1.811, p. 99v.
422
Processo n. 1.811, p. 104.

152
João, Joaquim José e Manuel eram escravos.423 O Promotor apelou dessa decisão, frisando
a ausência de documentos que comprovassem o domínio. O TRRJ, no entanto, considerou
que o recurso tinha sido apresentado fora do prazo.
Porém, o processo criminal não foi o único gerado por esse conflito. Enquanto ele
ainda estava tramitando, em julho de 1845, Francisco de Oliveira Martins, residente na
cidade do Rio de Janeiro, enviou um procurador ao juízo municipal de Desterro e
protocolou um libelo para que fosse declarada a escravidão de Joaquim José Lopes, a quem
ele se referia como José Moçambique.
Martins argumentou que Joaquim José era seu escravo. Ambos viviam no Rio de
Janeiro, mas, em 1840, embarcou Joaquim José e um outro escravo – Augusto – na sumaca
Conceição Protetora, cujo mestre era Antonio de Castro Queirós – a quem Joaquim José
havia se referido como seu antigo senhor no processo criminal. Joaquim José trabalharia
como moço da equipagem e a sumaca seguiria viagem para Santa Catarina, Montevidéu e
Buenos Aires. Quando estava em Montevidéu, “na ocasião da revolução e desordem
daquela Cidade”, José e Augusto fugiram de Queirós. Augusto foi capturado e já estava,
novamente, no Rio de Janeiro, em poder de Martins. Apesar de Joaquim José dizer que
Queirós era seu antigo senhor, o próprio Queirós reconhecia que o domínio sobre o escravo
era de Martins. Assim, ao transportar o escravo para Desterro, Marinho tinha “tenção de
apoderar-se e locupletar-se do alheio”.424
Alguns dias antes da propositura dessa ação cível, Martins chamou Joaquim José ao
juízo conciliatório. Eles, porém, não transigiram, porque Joaquim José não se considerava
escravo:

[…] o Autor [Martins] foi seu primeiro Senhor, e depois que o vendeu a
Antonio Queirós, e este a Francisco Joaquim Canário residente em
Montevidéu no lugar denominado Villa das Pedras, e que além de Queirós
vender a ele respondente, vendeu também nessa mesma ocasião a mais dois
Escravos sendo um de nome Alexandre, de nação Angola, e outro de nome
Maria Benguela; e que achando-se ele respondente no cativeiro daquele
Francisco Joaquim, recebeu a liberdade pelo Decreto que a concedeu a todos
os Escravos naquele País.425

423
Processo n. 1.811, p. 110.
424
Processo n. 1.669, pp. 9-10.
425
Processo n. 1.669, pp. 14v-15.

153
Não é possível saber se Queirós, de fato, vendeu Joaquim José como se fosse seu
escravo ou se Joaquim José acreditava que Queirós era seu senhor. Essas diferentes
versões, porém, mostram que havia uma confusão grande a respeito da condição em que os
supostos escravos estavam trabalhando e sobre quem acreditavam ser seus senhores. Eles
mesmos, talvez, não tivessem muita certeza se estavam vendidos, alugados, etc. Joaquim
José dizia que Queirós o havia vendido a Francisco Joaquim. Martins, no entanto, dizia que
ele havia sido alugado, não vendido; por isso, ainda era, naquele momento, seu senhor
legítimo.
Ao final, não se sabe o que aconteceu com os africanos após o término do processo
criminal com o qual comecei este capítulo. Como Marinho foi absolvido, é possível que
tenha recobrado a posse sobre eles. No entanto, no que dizia respeito a Joaquim José, ele
foi vitorioso no processo cível ajuizado por Martins. Nessa ação, Joaquim José foi
declarado livre. Com duas sentenças diversas – uma criminal que o declarava escravo e
uma cível que o declarava livre – não sabemos o que aconteceu com Joaquim José. O que,
sim, essa situação nos mostra é a situação de precariedade que viviam os livres e libertos
no Brasil oitocentista.
Ao regular as relações entre pessoas e coisas a partir do direito comum e, portanto,
com centralidade do instituto da posse, a sociedade brasileira, dividida em diversos
estatutos intermediários entre a liberdade e a escravidão, tornava necessariamente precário
o estatuto de livre, ameaçando-o constantemente com atos de força, de fraude ou mesmo
com presunções baseadas no modo de vida da pessoa em questão e em sua origem étnica.
A ilegalidade se aliava às diferentes formas de dependência e ao reconhecimento social,
atuando como uma ameaça permanente a todos os negros que, de algum modo,
distanciavam-se da escravidão.

E as aquisições irregulares e ilegais de terras?

No norte da Província de Minas Gerais, onde o Rio Jequitinhonha encontra o Rio


Piauí, foi travada uma disputa em torno das terras da Fazenda da Maravilha, em 1871. O
norte de Minas é uma região relativamente seca na qual o acesso à água – que já é
importante em qualquer zona de agricultura – se torna fundamental. Nesse contexto, a

154
disputa entre o casal Clemente Ferreira Maciel e Dona Thereza Roiz Freire Murta e o casal
Francisco Floriano dos Santos e Dona Clementina Maria de Jesus tinha como foco
principal o acesso a terras com melhor irrigação e ocorreu em razão da venda, às duas
famílias, de partes coincidentes da Fazenda da Maravilha.426
O Capitão Innocencio José Pinheiro Canguçú – membro da conhecida e rica elite
baiana dos Canguçú – era senhor da Fazenda da Maravilha, situada próxima ao ponto de
encontro dos dois rios: Jequitinhonha e Piauí. Em um dado momento de sua vida, decidiu
se desfazer de partes da fazenda e, para tanto, passou uma procuração a Adrião Ferreira
Coelho, para que ele efetuasse as transações necessárias, desmembrando as terras da
Fazenda da Maravilha em diversos lotes.
De acordo com a versão de Clemente e Thereza, os autores do processo analisado,
em 1855, eles compraram, por escritura pública, ao casal Innocencio Canguçú e Dona
Constancia Canguçú Prates, partes da Fazenda da Maravilha. Nessa transação, os
vendedores Canguçú foram representados pelo procurador Adrião. Porém, em 1860,
estando já falecido Innocencio Canguçú, Adrião teria vendido parte coincidente desses
terrenos a Constantino Dias da Costa, sogro e pai, respectivamente, dos réus Francisco e
Clementina. Nessa transação, Adrião figurava como dono das terras, não como procurador
de Canguçú. Os autores Clemente e Thereza argumentavam que sua escritura era mais
antiga e, portanto, a segunda venda do mesmo pedaço de terras, efetuada por Adrião a
Constantino, era fraudulenta e não deveria prevalecer. Ademais, Adrião havia cometido o
crime de estelionato, previsto no artigo 264 do Código Criminal.
Somava-se a tudo isso, o fato de que Constantino reconhecia os autores como
senhores e possuidores legítimos daquelas terras, tanto que, querendo construir um
engenho de moer cana no local, pediu permissão aos autores. Constantino teria, inclusive,
dito que, caso no momento em que fossem demarcadas as terras a construção ficasse na
parte dos autores, ele lhes compraria o terreno ou retiraria de lá o engenho. Assim, os
autores eram reconhecidos como legítimos senhores e possuidores pelos réus que, só
algum tempo depois, mancomunaram-se com Adrião para produzir a escritura falsa. A
escritura “nula, e dolosa, feita com intenção criminosa de defraudar as terras dos Autores; é

426
Por exemplo: “… a parte de Constantino, hoje de seus herdeiros, é banhada por toda parte por acompanhar as
margens do Piauí, e Jequitinhonha, do passo que a dos Autores só tem água na frente do Rio”. Processo n.
4.593, p. 37v.

155
passada por pessoa incompetente por não ser senhor, e nem possuidor das terras, e ainda
mais por perceber paga por seu ato doloso”.427 A paga a que se referiam era uma mula.
Os réus Francisco e Clementina contestaram a demanda dos autores invocando,
entre outras coisas, o fato de estarem em posse das terras e, portanto, o máximo que
poderiam Clemente e Thereza fazer era pedir indenização a Adrião. Ademais, o seu sogro e
pai havia comprado as terras em disputa por título legítimo. Para provar seu direito, além
dos recibos da sisa, anexaram, ao processo, uma escritura pública na qual o casal Adrião e
Anna Thereza de Medeiros vendiam a Constantino uma “sorte de terras na Fazenda da
Maravilha”. A escritura apresentada datava de 1860 e, ao final, tinha a seguinte ressalva:
“nós já tínhamos dado Título particular deste negócio datado de 25 de Agosto de 1855, e
por não vigorar o dito Título passamos a presente Escritura pela qual transferimos ao
comprador dito toda a posse jus e domínio”. 428 Assim, a compra das terras pelos réus teria
ocorrido em 1855, por título particular ratificado em 1860. Em relação ao reconhecimento
da posse dos autores, alegaram que Constantino não lhes havia pedido licença para
construir o engenho, mas apenas lhe prevenido de que o faria, uma vez que ainda não havia
limites definidos no terreno. Como ocorrido nos diversos outros processos analisados neste
trabalho, para comprovar o argumento do reconhecimento da posse, os autores chamaram
testemunhas que depuseram nos seguintes termos:

[…] a muitos anos estando ele Testemunha com outras pessoas no lugar
desse engenho onde Constantino estava derrubando uma roça para cima do
Engenho Constantino em conversas com Clemente Maciel lhe dissera que
estava fazendo aquelas benfeitorias e roças apesar de não terem eles feito
suas demarcações de suas estremas mas que quando estas fossem feitas ou ele
pagaria a Maciel o valor do terreno se fosse dele ou este lhe compraria suas
propriedades ao que Maciel de pronto respondeu que se esse terreno lhe
ficasse pertencendo ele de bom grado o daria a Constantino sem que este
precisasse de o comprar. Constantino ainda replicou que não queria assim e
que havia de comprar o terreno, e nesse tom continuaram a conversar Maciel
sempre sustentando a sua oferta.429

427
Processo n. 4.593, p. 38.
428
Processo n. 4.593, pp. 20-23.
429
Processo n. 4.593, pp. 58v-59. Ver, também, Processo n. 4.593, pp. 60v, 62-62v, 63-63v.

156
Os autores Clemente e Thereza contestaram a escritura apresentada. De acordo com
eles, havia, antes da escritura, um título particular de venda, datado de 1855, que estava
desaparecido de propósito, por apresentar divisas diferentes das terras, essas sim não
coincidentes com a dos autores. A alteração das divisas originais, na escritura pública,
reforçava o dolo dos réus em se apossarem das terras dos autores sob o argumento de que
as haviam comprado. Ademais, Adrião era procurador de Canguçú e jamais poderia passar
escritura em nome próprio aos réus ou a seu sogro e pai Constantino. Como afirmou uma
das testemunhas dos autores:

[…] na ocasião em que se passava a escritura dita Constantino apresentou o


título particular, e disse assim como o réu [Francisco], que aquele título não
devia aparecer dizendo mais ambos Constantino e o réu [Francisco], que para
concertarem aquela estrema tinham dado a Adrião Ferreira uma mula.
Perguntado se Adrião vendia aquelas a Constantino como procurador de
Canguçú, ou se como proprietário da Fazenda Maravilha. Respondeu que a
primeira venda fez como procurador de Canguçú, e a segunda, do mesmo
terreno como Senhor e possuidor, sendo que assim não era.430

A testemunha ainda arrematou seu depoimento afirmando que tinha ouvido dizer
que, no momento em que Adrião e Constantino faziam a escritura pública, este disse que se
podia rasgar o papel particular de venda, porque “sendo o autor [Clemente] pobre a nada se
opunha”.431 Outra testemunha deu ainda mais detalhes a respeito da operação fraudulenta
de se substituir o título particular pela escritura pública que abarcava as terras dos autores:

[…] sabe que dois anos mais ou menos, Adrião passara escritura pública do
mesmo terreno a Constantino, sendo escrivão Pio Deziderio Moreira de
Mello, o qual repugnando passar essa escritura pública uma vez que não
mencionasse o conteúdo do título particular, visto como incorria, não só ele
se não o vendedor e comprador, ou Procurador em responsabilidade e crime
de estelionato, mas, insistindo o procurador Adrião ele passou a escritura,
ficando este com o título particular para queimar. O que sabe por lhe dizer o

430
Processo n. 4.593, pp. 94-94v.
431
Processo n. 4.593, p. 95v. Outra testemunha ressaltou que o escrivão lhe havia dito que existia uma diferença
entre o papel de venda particular e a escritura pública. Processo n. 4.593, p. 100.

157
dito escrivão Pio, e que tudo quanto fez foi constrangido por ser contra o
direito, o que sabe por lhe dizer o mesmo escrivão.432

Rebatendo esses argumentos, os réus procuraram justificar o duplo papel de Adrião


ora como procurador, ora como dono dos terrenos:

Levantam os Autores [Clemente e Thereza] grande calúnia por ser a escritura


dos Réus [Francisco e Clementina] passada por Adrião Ferreira e sua mulher,
ao passo que figura Adrião Ferreira na Escritura dos Autores como
Procurador de Canguçú! Só a ignorância dos fatos justifica tão
extraordinárias declarações! Já esqueceram os Autores que a Fazenda da
Maravilha, que é objeto desta contenda, foi entregue a Adrião Ferreira por
seu proprietário, Canguçú, afim de ser o seu produto aplicado ao pagamento
de que Canguçú devia a Adrião? Este recebeu a Fazenda para esse fim, e ia
dispondo dela como entendia, figurando, ora como proprietário, ora como
Procurador, mas sendo ele na realidade o verdadeiro proprietário, apesar de
não haver em tal mudança, grande regularidade de títulos: tal é a verdade. Em
1855, quando Constantino Dias e seu genro [o réu Francisco] compraram a
primeira metade da Fazenda figurava Adrião como dono dela depois, em
1856, quando os Autores compraram a outra metade, estava Adrião figurando
como Procurador, ou por seus intentos especiais e reservados, ou porque
assim o exigissem os Autores para maior segurança [destruído] figurar como
proprietário, apesar de ter já figurado como Procurador na Escritura de 1857.
Tal metamorfose, certamente, não é regular; mas, que direitos pretendem os
Autores tirar daqui? Não se explica o motivo do equívoco? E lá não se acham
os Réus de posse do terreno contestado, fundando eles sua posse num título
legal?433

Ou seja, figurar como procurador ou como proprietário, ao final, seria uma mera
formalidade: “tanto importava dizer-se Adrião dono das terras, como dizer-se procurador
do dono delas, visto que os efeitos eram os mesmos, não se pondo em dúvida esses
contratos por parte de Canguçú”.434 Em seu depoimento, Adrião também afirmou que
figurava como dono das terras, no segundo título, porque as tinha recebido de Canguçú, em
pagamento de uma dívida que este tinha com ele. Além disso, se no primeiro título
432
Processo n. 4.593, pp. 96v-97.
433
Processo n. 4.593, pp. 34v-35.
434
Processo n. 4.593, p. 152.

158
aparecia como procurador “bem podia ter isso assim acontecido pelo costume de haver
feito diversas vendas de partes da mesma fazenda em qualidade de procurador de
Canguçú”.435
Ao final, o juiz foi convencido de que a escritura apresentada pelos réus era
simulada: Adrião não poderia vender como dono terras que, antes, havia vendido como
procurador. Essa decisão sofreu diversos recursos, mas, ao final, foi confirmada pelo
TRRJ.
Parte da historiografia brasileira sobre terras ressalta que havia um problema de
ilegalidade difusa das terras adquiridas no Brasil do século XIX. Dentre outras práticas,
especial atenção é dada às sesmarias que caíram em comisso – isto é, terenos pertencentes
a sesmeiros que não cumpriram os requisitos estabelecidos no momento da concessão – e
aos chamados “apossamentos irregulares”.436 À luz do que venho argumentando até aqui, é
necessário refletir de maneira um pouco mais profunda sobre se essas práticas constituíam,
de fato, aquisições ilegais ou irregulares de terras.
Como vimos, a construção de um direito de propriedade liberal foi um processo
histórico e, como tal, marcado por fluxos e contra fluxos. Assim, a propriedade liberal não
foi instituída, no Brasil, com o artigo 179 da Constituição do Império ou com a Lei de
Terras. E isso tampouco significa o óbvio fracasso dessas normas. O direito é um
emaranhado normativo muito mais amplo do que a legislação escrita promulgada pelo
Estado. Interpretações “doutrinárias”, construções de categorias e práticas judiciais não são
simplesmente um reflexo da legislação escrita, mas são, também, construtores de
normatividade. Portanto, “implantar a propriedade liberal” no Brasil demandava muito
mais do que a promulgação de leis e decretos. Eram necessárias, também, mudanças em
outras esferas do direito.
Mesmo após a independência e durante boa parte do século XIX, o direito brasileiro
continuou a operar com estruturas normativas do direito comum. Ou seja, a posse era a
categoria jurídica estruturante das relações jurídicas entre pessoas e coisas ainda durante o
século XIX. Isso significa que a posse não era mero fato, mera ocupação, mero costume,
como a considera parte da historiografia. A posse era uma categoria jurídica e não era uma

435
Processo n. 4.593, pp. 125-125v.
436
Por exemplo, MOTTA. Direito à terra no Brasil; RODRIGUES. As frações da classe senhorial e a lei
hipotecária de 1864; e SILVA. Terras devolutas e latifúndio.

159
categoria jurídica qualquer: quando confrontada com outras formas de regulação das
relações com as coisas, ela tendia a prevalecer.
Nesse sentido, a situação das sesmarias em comisso deve ser relativizada. Ocorria
que as sesmarias eram uma entre as tantas formas de aquisição fundiária possíveis na
estrutura do direito comum. Não eram a forma de aquisição exclusiva. A aquisição ou
legitimação de um pedaço de terra era juridicamente possível mesmo em situações em que
o terreno excedesse o determinado por lei; em que o sesmeiro ou possuidor não tivesse
realizado a medição ou a confirmação da concessão; ou em que partes das sesmarias
tivessem sido vendidas sem autorização. Por isso, pedir a regularização de uma sesmaria
em comisso não era atuar em desrespeito às normas estabelecidas, mas valer-se da própria
estrutura do direito comum, que permitia esse tipo de situação.
Assim, a posse não estava “à margem do sistema sesmarial”. 437 Posses e sesmarias
eram ambas formas jurídicas de aquisição de terras no direito comum. A aquisição por
posse tampouco ocorria de forma a afrontar a autoridade colonial. A Coroa portuguesa
tinha uma relação muito mais ambígua com as aquisições por posse, uma vez que essa era
a maneira primordial de apropriação de território na América ibérica. 438 Por isso, identificar
a aquisição de um terreno por posse como uma aquisição irregular é impreciso,
considerando o papel da posse como categoria jurídica estruturante das relações entre
pessoas e coisas durante a maior parte do século XIX, no Brasil.
O direito comum era tão complexo nesse aspecto que, dadas determinadas
circunstâncias, mesmo em casos evidentemente “ilegais”, era “legal” – isto é, “jurídico” –,
que não se cumprisse a lei. 439 O direito comum era fundado na busca pela equidade e pela
manutenção do status quo por meio do reforço de situações efetivas. Daí que, contanto que
tais objetivos fossem alcançados, não tinha tanto peso – como tem hoje – o desrespeito a
uma norma escrita.
Nos processos analisados, portanto, a questão da ilegalidade é muito mais sutil nos
casos que discutem terras do que naqueles que discutem a posse e o domínio sobre
escravos. No caso dos escravos, havia uma proibição explícita de aquisição por posse.
Ainda que nem sempre respeitada, essa proibição existia e, pelo menos formalmente,
impedia uma revalidação posterior, evidenciando de maneira mais clara situações
437
Por exemplo, SILVA. Terras devolutas e latifúndio, pp. 60, 67.
438
HERZOG. Frontiers of Possession.
439
HESPANHA. Como os juristas viam o mundo, p. 4.

160
irregulares. Como, no caso das terras, a posse funcionava como um saneador juridicamente
reconhecido, a identificação de aquisições irregulares se torna uma tarefa mais sutil e que
demanda mais cuidado do historiador na análise dos casos.
Com esses argumentos, no entanto, não pretendo defender que não havia aquisições
irregulares de terras no Brasil do século XIX, apenas que é necessário olhar para os
processos a partir de uma perspectiva que não taxe como ilegais situações que, aos olhos
de hoje, obviamente o seriam, mas que não o eram em uma sociedade ainda muito ligada
aos pressupostos jurídicos do direito comum.
Havia situações obviamente ilegais como, por exemplo, um dos muitos processos
em que se envolveu Joaquim José de Souza Breves. Conhecido como o “Rei do Café”,
Joaquim José de Souza Breves, junto com seu irmão José de Souza Breves, foi o dono de
uma das maiores fortunas do Vale do Paraíba no Brasil do século XIX. Essa fortuna era
assentada, sobretudo, na produção de café, no tráfico de escravos e em uma política de
alianças matrimoniais.440
Mas o “Império dos Souza Breves” não cresceu sem contestação. Por exemplo, em
1857, terras próximas à Fazenda da Olaria foram disputadas com Antonio Rodrigues de
Souza e sua esposa, cujo nome não pude identificar. A Fazenda da Olaria era um dos
destaques dos domínios de Joaquim Breves. Bem ao gosto da época, no ano de 1865, foi
erguido aí um edifício inspirado no palácio de Potestá Bréscia, na Itália. 441 Segundo Thiago
Lourenço, há indícios de que a Olaria era a segunda residência de Breves. De acordo com o
inventário dos bens de Joaquim Breves, realizado em 1891, a Olaria era a mais valiosa das
29 fazendas inventariadas, sendo avaliada em 157:884$500 réis. Nessa época, a fazenda
media 1.320 alqueires, sendo também a maior fazenda, em termos de extensão, do
complexo de Joaquim Breves.442 Assim, Breves não ia aceitar, sem contestação, os atos de
Antonio, que ele considerava como turbativos.

440
LOURENÇO. O império dos Souza Breves nos oitocentos, LOURENÇO. A indiscrição como ofício. Para
análises da constituição das fortunas de outras famílias da elite imperial e cafeeira, ver COHN. A Fazenda
Santa Sofia, MUAZE. As memórias da viscondessa, PAIVA. “Da colonização do Vale à formação de uma
família”. Sobre o envolvimento dos Breves no tráfico de escravos ilegal, em especial, no caso da Marambaia,
ver MAMIGONIAN. Africanos livres, pp. 264-271.
441
Para uma análise da arquitetura dos “barões do café”, ver FERRARO. A arquitetura da escravidão nas
cidades do café.
442
LOURENÇO. O império dos Souza Breves nos oitocentos, pp. 44-47, LOURENÇO. A indiscrição como
ofício, pp. 74-75.

161
Ao se apresentarem perante o juízo municipal da Vila de São João Príncipe, o casal
Joaquim Breves e Maria Izabel de Moraes Breves argumentou que eram senhores e
possuidores de uma “porção de terras” denominada Derribada, da qual apresentariam a
escritura “em tempo”. A origem de seu direito sobre o local era a posse que haviam
tomado seus antecessores e da qual haviam desfrutado sem oposição ou embaraço de
pessoa alguma. No entanto, Antonio “arbitrariamente meteu nela trabalhadores”, que
estavam trabalhando nos terrenos e turbando a posse pacífica dos autores. Ao final,
pediram que o juiz passasse mandado para que quaisquer pessoas que aí tivessem
trabalhando não continuassem a “inovar”, sob pena de desobediência. No primeiro capítulo
deste trabalho, discuti o papel que os agregados tinham na manutenção da posse para
terceiros. Ao que parece, Antonio também estava se valendo de estratégia análoga para
conseguir terras, já que enviou trabalhadores para a Derribada.443
Em contestação, os réus alegaram que os autores nunca estiveram de posse das
terras da Derribada. Também Luciano Coutinho, de quem os Breves tinham comprado o
terreno, nunca havia estado de posse da região e acrescentaram: “nem o nome de tal
Luciano é conhecido no lugar”. Ao final, exigiram que os Breves apresentassem os títulos
pelos quais diziam ter adquirido aquelas terras.444
Três dias após a apresentação da contestação, Antonio publicou, no Correio
Mercantil, o seguinte anúncio:

443
Processo n. 2.837, pp. 2-2v.
444
Processo n. 2.837, pp. 17-17v.

162
Figura 5 – Detalhe do Correio Mercantil, de 30 de março de 1857

Fonte: Correio Mercantil, 30 de março de 1857, n. 87, p.2 (detalhe).

Já nesse anúncio, Antonio denuncia uma das que viriam a ser as características mais
marcantes desse processo: a corrupção de funcionários públicos no processo de aquisição
fundiária.
Os autores, então, apresentaram uma escritura de compra e venda, datada de 1855,
na qual adquiriam terras de Dona Joaquina Gonçalves Correia de Sá, viúva de Luciano
Coutinho. Porém, na escritura constava que o nome das terras era “Passa-vinte”, e não
“Derribada”. Os réus, então, alegaram que a escritura não se referia às terras em disputa e,
portanto, não era hábil a fundamentar o direito dos autores. Foram, então, ouvidas
testemunhas. Ocorre que, apesar do poderio dos Breves, todas as suas testemunhas –
inclusive uma que se declarou como seu agregado – depuseram de maneira prejudicial a
eles, afirmando que eram os réus quem estavam de posse das terras contestadas. Como
afirmou uma delas, “a primeira vez que o Comendador Joaquim Breves mandou trabalhar
nesse terreno por gente sua foi no tempo de plantar feijão no corrente ano cujo feijão foi
depois nascido arrancado por alguém”.445 Ou seja, a posse dos Breves era recente, ao
contrário da dos réus, que seria mais antiga.
Como vimos, com testemunhas que contestavam sua posse e diante de uma
escritura também contestável, já que a designação do terreno não era a mesma apresentada
na petição inicial, Breves tinha grandes chances de perder esse processo. Mas o “Rei do
445
Processo n. 2.837, p. 47.

163
café” decidiu não correr o risco e colocou em ação a máquina de favores e influências que
havia construído ao longo dos anos.
O juiz municipal que, até então, estava a cargo do processo foi afastado. Por isso,
era necessário que um suplente assumisse o cargo. Quem o assumiu foi o vereador José
Basilio Teixeira Pires. Ocorre que, naquele ano, Breves era o Presidente da Câmara de
Vereadores de São João do Príncipe. Ou seja, é bastante provável que a acusação de
Antonio seja verdadeira: os dois, se não eram amigos, mantinham relações próximas.
Inclusive, José Basilio tomou posse do cargo de juiz municipal na Fazenda da Olaria, posse
esta passada por Breves nas suas atribuições de Presidente da Câmara. Após tomar posse
do cargo, José Basilio recebeu os autos do processo e voltou a sua casa, no município de
Itaguaí, só voltando a São João do Príncipe no dia da audiência em que foi proferida a
sentença do caso.
A sentença foi favorável aos Breves. O juiz, inclusive, ressaltou quão favorável
teriam sido a eles os depoimentos das testemunhas. Como se não bastasse tamanha
artimanha de afastar o juiz do caso e dar posse a um vereador próximo, logo depois da
sentença, o vereador José Basilio foi afastado do cargo de juiz e assumiu o seu suplente. Os
demais processos que José Basilio recebeu ao assumir o cargo permaneceram sem
andamento. Ou seja, ele assumiu o cargo de juiz municipal para prolatar sentença favorável
no processo ajuizado pelos Breves e nada mais.
E para completar, após as denúncias de suspeição feitas pelo advogado dos réus,
Joaquim José Pereira da Silva Ramos, o vereador e juiz José Basilio pediu que fossem
remetidas certidões de partes do processo ao Promotor Público para que denunciasse o
advogado pelo crime de calúnia.
Ao final, os réus recorreram ao TRRJ e obtiveram a anulação da sentença. Apesar
dessa derrota momentânea dos Breves, esse processo mostra que a aquisição ilegal de bens
podia acontecer, também, nos casos relativos a terras. A rede de relações mobilizada por
Breves para garantir seu domínio não deixa dúvidas disso. Esse tipo de prática, porém, não
deve ser confundido e associado ao mero exercício da posse. Esta última hipótese não
constituía nenhum tipo de fraude, mas apenas uma forma, entre as mais comuns, de
aquisição e conservação de bens, na estrutura jurídica do direito comum.

164
CONCLUSÃO

“A posse é aquele direito pelo qual alguém tem um verdadeiro poder


sobre uma coisa corpórea, designando a detenção da coisa corpórea a
partir da imposição dos pés”.

Criada no âmbito do direito comum, a posse cruzou o oceano e se constituiu como a


principal categoria jurídica reguladora das relações entre pessoas e coisas no Atlântico
lusófono. Nessas viagens, a posse foi sendo ressignificada a partir de conflitos e
peculiaridades locais. Na América portuguesa, a posse desembarcou em uma sociedade
escravista e patriarcal. Os sentidos que ela, então, adquiriu, estavam intrinsecamente
vinculados às estruturas de uma sociedade regida pela lógica do favor e da produção de
dependentes.
A posse garantia que as comunidades tivessem um papel central nos processos de
construção e reconhecimento de direitos sobre as coisas. À publicidade, um de seus
elementos essenciais, correspondia o reconhecimento social. O reconhecimento social era
decisivo na maneira como as relações entre coisas e pessoas se organizavam. Nos
processos judiciais, ele impunha os conhecimentos convencionais da comunidade à
resolução de conflitos. As testemunhas apareciam como uma espécie de representantes da
comunidade local e forneciam, através de suas experiências, os meios de prova com maior
capacidade de decidir um litígio envolvendo os direitos sobre um bem.
Mesmo com os debates sobre a construção do direito de propriedade liberal que já
circulavam no Brasil oitocentista, a posse continuou mantendo um papel de destaque na
estruturação das relações entre pessoas e coisas até, aproximadamente, a década de 1870.
Por não ter rumo previamente definido, o processo de construção do direito de propriedade
abria possibilidades de disputa aos mais diversos sujeitos históricos. Assim, os processos
judiciais do período eram marcados por debates a respeito de quais seriam os títulos aptos
a constituir e comprovar domínio sobre os bens, quem eram os sujeitos legitimados a
produzi-los e como eles deveriam ser feitos.
Nesse contexto de indeterminação, os sujeitos tinham uma ampla margem de
atuação. E aproveitavam-na, produzindo documentos informados, muitas vezes, por

165
entendimentos compartilhados a respeito do que seria um título apto a comprovar o
domínio. Em muitos casos, era a própria posse ou o reconhecimento social que garantiam a
força desses documentos em disputas judiciais. Se, de um lado, alguns documentos foram
se firmando como capazes de provar direitos sobre bens; de outro, certos documentos eram
sistematicamente desconsiderados, não por suas características intrínsecas, mas em razão
das pessoas que os produziam. As mulheres casadas eram excluídas, pela violência, pela
fraude e pelo direito, da possibilidade de produzir documentos que lhes garantissem
direitos sobre bens.
É verdade que, assim como evidencia a definição de Amaral, a posse era,
majoritariamente, uma relação muito concreta, de pés no chão. As relações entre pessoas e
coisas estruturadas a partir da arquitetura jurídica do direito comum eram dotadas de uma
concretude maior do que a que foram adquirindo com o processo de construção do direito
de propriedade. Nesse processo, elevou-se o nível de abstração dessas relações, por meio
da marginalização do papel das comunidades, concentrando a via de legitimação dessas
relações, cada vez mais, em saberes especializados e burocráticos.
Mas não podemos nos iludir com um suposto caráter idílico da posse. A teoria
possessória também tinha muito de ficção. Como mostrei, ela permitia a reprodução de
estruturas de dependência, na medida em que foram sendo construídas interpretações que
legitimavam os atos possessórios de uns grupos e deslegitimavam os de outros, como os
dos índios e os dos agregados. Mais do que isso, no contexto brasileiro, o trabalho de
escravos e agregados garantia a expansão das terras dos “senhores” que não trabalhavam,
garantia, enfim, o contínuo aumento de seu domínio por meio do trabalho alheio, que era
desconsiderado como ato possessório.
Uma das consequências da regulação operada pelo direito comum era a
conservação do status quo, no que dizia respeito às relações entre pessoas e coisas. Esse
traço conservador, no entanto, poderia gerar o apagamento de aquisições de domínio
baseadas na força, no artifício e na ilegalidade. A posse era um meio jurídico legítimo para
“regularizar” essas aquisições que, à primeira vista, poderiam parecer irregulares, como
por exemplo, os casos das sesmarias em comisso. Processo similar acontecia nos casos de
escravização ilegal. Apesar de expressamente proibida a aquisição de alguém por posse, os
processos analisados deixam entrever que, na prática cotidiana, a posse, sim, atuava
legitimando situações de domínio ilegal adquirido sobre escravos.

166
O Estado brasileiro teve protagonismo nesses processos de legitimação de
aquisições ilegais. No momento em que o governo começou a querer impor determinados
padrões de confecção e prova de direitos de domínio – por meio, principalmente, de
escrituras públicas e matrículas de escravos –, houve negociações com as classes
senhoriais no sentido de não viesse a ser requerido, nos processos de registro, prova de
aquisição do domínio. Esse pacto entre Estado e senhores garantiu a regularização de
grande quantidade de propriedade escrava e fundiária adquirida ilegalmente. Isso sem
mencionar os casos de corrupção e omissão de agentes estatais na fiscalização da aquisição
ilegal de propriedade escrava.
O processo de construção do direito de propriedade, no Brasil oitocentista, foi lento
e marcado por idas e vindas. O direito de propriedade liberal não foi implementado no país
de uma vez por todas. Ele tampouco era incompatível com os institutos do direito comum.
Pelo contrário, parte de seu sucesso se deveu a sua capacidade de aproveitar esses
institutos, dotando-os de novos significados, como no caso, por exemplo, dos filtros
produtores de títulos que eram os processos de demarcação.
A análise de processos judiciais permite acessar o processo de construção do direito
de propriedade a partir de uma escala micro. Dessa perspectiva, observa-se que, na origem
do direito de propriedade, destacava-se, de uma parte, a atualização de sistemas de
exclusão anteriores e, de outra, a legitimação de fraudes e violências, muitas vezes, com a
participação ativa do Estado. Visto da vitrine, o direito de propriedade apresenta uma
versão de sua própria história, evocando, como seu fundamento originário, cadeias
documentais cuja extensão seria proporcional a sua legitimidade. Porém, se olharmos para
a cozinha, veremos seus rastros no direito comum, a legitimidade advinda de atos
possessórios e do reconhecimento social, os documentos produzidos pela violência e pelo
artifício, as fraudes, as ilegalidades.

167
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes primárias

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

Processo número 2, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.00136, apelada Francisca, apelante João do Carmo e Silva, ano
inicial 1867, ano final 1871, caixa 3.688, local Itajubá, microfilme AN_077_2006.
Processo número 7, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.00104, apelante Maria, apelante Isabel, ano inicial 1863, ano
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Processo número 11, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.00007, apelante Joana Maria da Conceição, apelado João, ano
inicial 1835, ano final 1838, caixa 3.696, local São Gonçalo, microfilme
AN_035_2006.
Processo número 29, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.08931, apelante Francisco do Carmo Fróes, apelante Henrique
José da Silva Barbosa, apelado Jose Hipolito da Silva, ano inicial 1837, ano final
1840, caixa 273, local Barra Mansa.
Processo número 36, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.00305, apelante José Florêncio de Melo, apelada Teodora,
falecido Manuel Antônio de Melo, ano inicial 1875, ano final 1877, maço 2.244,
local Vassouras.
Processo número 42, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.09655, apelante José Álvares, apelado Joaquim da Silva Ramos
Arouca, ano inicial 1869, ano final 1871, caixa 529, galeria C, local Rio de Janeiro.
Processo número 59, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.09683, apelante José da Silva Carvalho, apelado Domingos
José Marques Viana, ano inicial 1867, ano final 1868, caixa 530, galeria C, local
Rio de Janeiro.

168
Processo número 62, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.03159, apelante João Evangelista Teixeira Leite, apelada Rosa
Teixeira Pompeia, ano inicial 1885, ano final 1888, maço 129, galeria C, local Rio
de Janeiro.
Processo número 103, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.09468, apelante Francisco Alves Ferreira do Amaral, apelado
José Pires de Almeida, ano inicial 1837, ano final 1842, caixa 513, galeria C, local
São Paulo.
Processo número 159, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.00321, apelante o Juízo, apelado Manuel José da Cunha
Osório, apelante Maria, ano inicial 1882, ano final 1886, maço 10, galeria C, local
Rio de Janeiro.
Processo número 165, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.00926, apelante Manuel, apelado Manuel Paulo de Oliveira,
ano inicial 1877, ano final 1880, maço 10, galeria C, local Rio de Janeiro.
Processo número 208, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.00296, apelada Maria Esteves, apelante Mateus (escravo), ano
inicial 1883, ano final 1884, caixa 1.825, galeria A, local Vila da Barra de São
Matheus – Espírito Santo.
Processo número 223, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.09968, apelante João Pereira de Magalhães Bastos, apelado
Francisco José Correia, ano inicial 1855, ano final 1858, caixa 538, galeria C, local
Niterói.
Processo número 239, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.10010, apelante Antônio Ferreira Pinto, apelado Joaquim José
de Paiva, ano inicial 1877, ano final 1879, caixa 539, galeria C, local Campos.
Processo número 249, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
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apelante Marcelino, ano inicial 1887, ano final 1888, caixa 2.336, galeria A, local
Serra.
Processo número 284, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.00836, apelante José Pereira de Barcelos, apelado Benedito,

169
falecida Catarina Pereira de Jesus, ano inicial 1879, ano final 1884, maço 16,
galeria C, local Serra.
Processo número 465, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.05524, apelante Feliciano, apelado Manuel Gomes de Sousa,
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Herdeiros de João José de Campos, ano inicial 1855, ano final 1864, caixa 596,
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Processo número 1.353, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série recurso criminal,
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de referência 84.0.ACI.00661, apelado João Pedro de Andrade, apelante Rita e seus
filhos, falecida Matildes Ferreira Toledo, ano inicial 1880, ano final 1881, maço
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Processo número 1.811, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação criminal,
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Processo número 1.854, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00082, apelante Firmino, apelado Manuel Antônio Ferreira,
ano inicial 1859, ano final 1859, caixa 3.684, local Rio de Janeiro, AN_060_2006.
Processo número 2.603, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.03901, apelante Dionísia da França Dinheiro, apelado João
Antônio de Melo, ano inicial 1869, ano final 1872, maço 234, local Antonina.
Processo número 2.837, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.04006, apelante Joaquim José de Sousa Breves, apelado
Antônio Rodrigues de Sousa, falecido Luciano da Silva Coutinho, ano inicial 1857,
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171
Processo número 3.122, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00039, apelado Manuel, ano inicial 1847, ano final 1851,
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Processo número 3.130, fundo ZV Juízo Municipal da 2ª Vara do Rio de Janeiro, réu José
Alves Maciel e Cunha, autor Antônio Martins de Lima, ano inicial 1851, ano final
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Processo número 3.204, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.10329, apelante Mariana Rosa de Jesus, apelado Amaro
Pacheco Sabrosa, ano inicial 1861, ano final 1865, caixa 1.655, galeria A, local
Cabo Frio.
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Joaquim José Gonçalves Morais, agravado Joaquim José de Sousa Borges, Manuel
Ferreira do Prado, ano inicial 1879, ano final 1879, caixa 1.690, galeria A, local
São João do Príncipe.
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Clemente Francisco Maciel, ano inicial 1871, ano final 1875, caixa 221, galeria C,
local Minas Novas.
Processo número 4.649, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.08643, apelante Francisco de Sousa Vieira, apelado
Francisco Gomes Coelho, ano inicial 1873, ano final 1875, caixa 410, galeria C,
local Vassouras.
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Silva, suplicado José Antônio de Azevedo Castro, ano inicial 1849, ano final 1850,
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Processo número 4.916, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.06943, apelante Teotonio Ferreira de Carvalho, apelado
Casimiro José da Costa, ano inicial 1845, ano final 1854, caixa 241, galeria C.
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de referência 84.0.ACI.07231, apelante Pinto Júnior & Cia, apelada a Ilustríssima
Câmara Municipal da Corte, ano inicial 1881, ano final 1882, caixa 254, galeria C,
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172
Processo número 5.381, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
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Manuel Pereira Baia, ano inicial 1863, ano final 1870, maço 49, local São Manoel
do Pomba.
Processo número 5.634, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.02527, apelante José Dias, apelante José Soares, apelado
Manuel Pereira da Silva, ano inicial 1841, ano final 1844, maço 72, local São João
da Barra.
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Eduardo José Pedroso, ano inicial 1867, ano final 1873, caixa 295, galeria C, local
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microfilme AN_047_2006.
Processo número 6.487, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.07794, apelante Fernando José de Sampaio, apelado
Antônio Joaquim Mendes, ano inicial 1859, ano final 1864, caixa 336, galeria C,
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Maria Amélia França, ano inicial 1883, ano final 1885, maço 131, local Resende.
Processo número 6.539, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
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Francisco Teixeira da Silva, ano inicial 1838, ano final 1839, caixa 339, galeria C,
local Itaboraí.
Processo número 6.588, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.07816, apelante Francisco Xavier Cunha, apelado Inácio
José Dias, ano inicial 1835, ano final 1838, caixa 342, galeria C, local Resende.
Processo número 6.839, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.08077, apelante Ana Maria Pereira, apelada Francisca de

173
Oliveira Miranda, ano inicial 1847, ano final 1852, caixa 358, galeria C, local
Paranaguá.
Processo número 6.873, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.04593, apelante Manuel dos Santos Coutinho, apelado
Francisco Rodrigues de Amorim, ano inicial 1865, ano final 1865, maço 157, local
Espírito Santo.
Processo número 6.884, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível,
notificante Maria Madalena de Macedo, notificada Ana Maria da Conceição, ano
inicial 1863, ano final 1864, maço 157, local Rio de Janeiro.
Processo número 6.935, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, apelante
Miguel José Miler, apelado Rafael Joaquim de Andrade, ano inicial 1875, maço
160.
Processo número 7.434, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.10274, apelante Francisco Gomes da Silva Figueira, apelado
Felismino Gomes de Aguiar, ano inicial 1877, ano final 1881, caixa 400, galeria C,
local Paraíba do Sul.
Processo número 7.675, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.01619, apelante José Pereira de Almeida, apelado Ricardo
Lustosa, ano inicial 1843, ano final 1848, maço 11, local Curitiba.
Processo número 7.901, fundo Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código de
referência 84.0.ACI.10662, apelante Serafim Gonçalves de Macedo, apelado
Joaquim Gomes Lagoeiro, ano inicial 1857, ano final 1867, maço 6, local Vila
Januária.
Processo número 10.110, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00103, apelada Mariana, ano inicial 1863, ano final 1865,
caixa 3.695, local Lorena, microfilme AN_067_2006.
Processo número 11.020, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00091, apelante José Rufino dos Santos Meneses, apelada
Maria das Mercês, ano inicial 1861, ano final 1865, caixa 3.696, local São Gabriel,
microfilme AN_062_2006.
Processo número 11.051, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00124, apelante Adão, apelado Desidério Francisco de

174
Freitas, ano inicial 1865, ano final 1866, caixa 3.685, local Poços de Caldas,
microfilme AN_074_2006.
Processo número 11.117, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00203, apelante Leonardo Jorge de Campos, apelada Rita,
ano inicial 1863, ano final 1864, caixa 3.681, local Desterro, microfilme
AN_096_2006.
Processo número 11.232, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00093, apelante Ana, apelado José Delfino da Silva, ano
inicial 1861, ano final 1867, caixa 3.684, local Itabira, microfilme AN_063_2006.
Processo número 11.321, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00123, apelante Angélica, apelante Antônio de Melo, ano
inicial 1865, ano final 1871, caixa 3.690, local Antonina, microfilme
AN_074_2006.
Processo número 11.339, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00105, apelante Gabriela, apelado Arman Habiaga, ano
inicial 1863, ano final 1867, caixa 3.684, local Vila de Caçapava, microfilme
AN_067_2006.
Processo número 12.098, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00137, apelante Bento, apelado Joaquim Maria Rosa, ano
inicial 1868, ano final 1869, caixa 3.694, local Rio de Janeiro, microfilme
AN_077_2006.
Processo número 12.888, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00158, apelante Carolina, apelado Felicíssimo Antônio
Gomes, ano inicial 1869, ano final 1870, caixa 3.682, local Rio de Janeiro,
microfilme AN_084_2006.
Processo número 13.205, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00154, apelante Ricardo, apelado Manuel Alves dos Santos,
ano inicial 1869, ano final 1871, caixa 3.689, local Rio de Janeiro, microfilme
AN_083_2006.
Processo número 13.642, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00135, apelante Lúcia, apelado Mariano José Pires, ano

175
inicial 1867, ano final 1872, caixa 3.696, local Minas Gerais, microfilme
AN_077_2006.
Processo número 13.763, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00165, apelante Ana, apelante Isabel, apelante Vitória,
apelado Bernardo Gavião Ribeiro & Gavião, ano inicial 1861, ano final 1872, caixa
3.684, local Guaratinguetá, microfilme AN_086_2006.
Processo número 13.794, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00155, apelante João Xavier de Azambuja Vila Nova,
apelado Joaquim, ano inicial 1869, ano final 1874, caixa 3.690, local Uruguaiana,
microfilme AN_083_2006.
Processo número 14.318, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00178, apelante Brasília, apelada Clélia Leopoldina
Silveira, ano inicial 1871, ano final 1873, caixa 3.688, local Bahia, microfilme
AN_089_2006.
Processo número 14.322, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00173, apelante Francisco, apelado Afonso Levi, ano inicial
1871, ano final 1874, caixa 3.686, local São Paulo, microfilme AN_088_2006.
Processo número 14.485, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00195, apelante João Ferreira de Azevedo, ano inicial 1873,
ano final 1873, caixa 3.690, local Niterói, microfilme AN_095_2006.
Processo número 14.469, fundo 84 Relação do Rio de Janeiro, série apelação cível, código
de referência 84.0.ACI.00194, apelante Vitorino, apelado Manuel Joaquim Gomes
de Matos, ano inicial 1873, ano final 1874, caixa 3.684, local Rio de Janeiro,
microfilme AN_093_2006.

Coleções de jurisprudência

Collecção chronologica dos assentos das Casas da Suplicação e do Civel. Coimbra: Real
Imprensa da Universidade, 1791.

Legislação

176
ALMEIDA, Candido Mendes de. Codigo philippino ou ordenações e leis do Reino de
Portugal recopiladas por mandado d’El-Rey D. Philippe I. 4 livros. Rio de Janeiro:
Typographia do Instituto Philomathico, 1870.
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prestação de serviços feitos por Brazileiro ou estrangeiro dentro ou fóra do Imperio.
[acesso em 26 de abril de 2018]. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37984-13-setembro-
1830-565648-publicacaooriginal-89398-pl.html>.
. Lei de 16 de dezembro de 1830 [online]. Manda executar o Código Criminal.
[acesso em 4 de abril de 2018]. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>.
. Lei de 7 de novembro de 1831 [online]. Declara livres todos os escravos vindos de
fora do Império, e impõe penas aos importadores dos mesmos escravos. [acesso em
14 de abril de 2018]. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37659-7-novembro-
1831-564776-publicacaooriginal-88704-pl.html>.
. Lei de 29 de novembro de 1832 [online]. Promulga o Código do Processo
Criminal de primeira instância com disposição provisória acerca da administração
da Justiça Civil. [acesso em 14 de abril de 2018]. Disponível em:
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. Lei n. 108 de 11 de outubro de 1837 [online]. Dando varias providencias sobre os
Contractos de locação de serviços dos Colonos. [acesso em 26 de abril de 2018].
Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/legislacao/PublicacaoSigen.action?
id=541072&tipoDocumento=LEI-n&tipoTexto=PUB>.
. Decreto n. 151 de 11 de abril de 1842 [online]. Dando Regulamento para a
arrecadação da Taxa, e Meia Siza dos escravos. [acesso em 08 de maio de 2018].
Disponível em: <http://legis.senado.leg.br/legislacao/PublicacaoSigen.action?
id=386100&tipoDocumento=DEC-n&tipoTexto=PUB>.
. Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850 [online]. Dispõe sobre as terras devolutas do
Império. [acesso em 14 de janeiro de 2018]. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm>.

177
. Decreto n. 797 de 18 de junho de 1851 [online]. Manda executar o Regulamento
para a organização do Censo geral do Império. [acesso em 18 de abril de 2018].
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-
797-18-junho-1851-559435-publicacaooriginal-81652-pe.html>.
. Decreto n. 798 de 18 de junho de 1851 [online]. Manda executar o Regulamento
do registro dos nascimentos e óbitos. [acesso em 18 de abril de 2018]. Disponível
em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-798-18-junho-
1851-559436-publicacaooriginal-81654-pe.html>.
. Decreto n. 1.318 de 30 de janeiro de 1854 [online]. Manda executar a Lei n. 601
de 18 de Setembro de 1850. [acesso em 10 de maio de 2018]. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d1318.htm>.
. Lei n. 1.237 de 24 de setembro de 1864 [online]. Reforma a Legislação
Hypothecaria, e estabelece as bases das sociedades de credito real. [acesso em 10
de maio de 2018]. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM1237impressao.htm>.
. Collecção das decisões do governo do Imperio do Brasil de 1868. Tomo XXXI.
Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1868.
. Lei n. 2.040 de 28 de setembro de 1871 [online]. Declara de condição livre os
filhos de mulher escrava que nascerem desde a data desta lei, libertos os escravos
da Nação e outros, e providencia sobre a criação e tratamento daquelles filhos
menores e sobre a libertação annual de escravos. [acesso em 07 de maio de 2018].
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM2040.htm>.
. Decreto n. 4.835 de 1º de dezembro de 1871 [online]. Approva o Regulamento
para a matricula especial dos escravos e dos filhos livres de mulher escrava. [acesso
em 09 de maio de 2018]. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-4835-1-dezembro-
1871-552265-publicacaooriginal-69374-pe.html>.
. Decreto n. 2.827 de 15 de março de 1879 [online]. Dispondo o modo como deve
ser feito o contrato de locação de serviços. [acesso em 26 de abril de 2018].
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-
2827-15-marco-1879-547285-publicacaooriginal-62001-pl.html>.

178
PORTUGAL. Codigo penal approvado por decreto de 10 de dezembro de 1852. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1855.

Livros de referência

ALMEIDA, Candido Mendes de. Atlas do Imperio do Brazil: compreendendo as


respectivas divisões administrativas, ecclesiasticas, eleitoraes e judiciarias,
dedicado a Sua Magestade o Imperador Senhor D. Pedro II, destinado à
Instrucção Publica no Imperio com especialidade à dos Alumnos do Imperial
Collegio de Pedro II. Rio de Janeiro: Lithographia do Instituto Philomathico, 1868.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez, e latino: aulico, anatomico, architectonico,
bellico, botanico, brasilico, comico, critico, chimico, dogmatico, dialectico,
dendrologico, ecclesiastico, etymologico, economico, florifero, forense, fructifero,
geographico, geometrico, gnomonico, hydrographico, homonymico, hierologico,
ichtyologico, indico, isagogico, laconico, liturgico, lithologico, medico, musico,
meteorologico, nautico, numerico, neoterico, ortographico, optico, ornithologico,
poetico, philologico, pharmaceutico, quidditativo, qualitativo, quantitativo,
rethorico, rustico, romano, symbolico, synonimico, syllabico, theologico,
terapteutico, technologico, uranologico, xenophonico, zoologico, autorizado com
exemplos dos melhores escritores portugueses, e latinos; e offerecido a El Rey de
Portugal, D. João V. 8 tomos. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de
JESU, 1712.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza. 2 tomos. Lisboa: Officina
de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.

Livros jurídicos

ALENCAR, José. A propriedade. Brasília: Senado Federal, 2004. [Edição fac-similar].


ALVES JUNIOR, Thomaz. Annotações theoricas e praticas ao Codigo Criminal. 3 tomos.
Rio de Janeiro: Francisco Luiz Pinto & C., 1864.
BLACKSTONE, William. Commentaries on the Laws of England. Book II: Of the Rights
of Things. Oxford: Oxford University Press, 2016.

179
CARNEIRO, Manuel Borges. Direito civil de Portugal, contendo três livros: I. Das
pessoas, II. Das cousas, III. Das obrigações e acções. 2 tomos. Lisboa:
Typographia de Antonio José da Rocha, 1851.
FILGUEIRAS JUNIOR, Araujo. Codigo criminal do Imperio do Brazil anotado com os
actos dos poderes legislativo, executivo e judiciário que têm alterado e
interpretado suas disposições desde que foi publicado, e com o calculo das penas
em todas as suas applicações. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert,
1876.
FREIRE, Pascoal José de Melo. Instituições de direito civil português tanto público como
particular [online]. Tradução disponível na Biblioteca Digital da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa. 4 livros. Coimbra: Typis Academicis, 1815.
[acesso 12 de fevereiro de 2018]. Disponível em:
<http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1563.pdf>.
LUIZ, Francisco. Codigo criminal do Imperio do Brazil theorica e praticamente annotado.
Maceió: Typographia de T. de Menezes, 1885.
LOBÃO, Manuel de Almeida e Sousa de. Tratado encyclopedico, compendiario, pratico e
systematico dos interdictos e remedios possessorios geraes e especiaes conforme o
direito romano, patrio e uso das nações. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867.
LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro: extrahidas das
Instituições de Direito Civil Lusitano do eximio jurisconsulto portuguez Paschoal
José de Mello Freire, na parte compativel com as instituições da nossa cidade, e
augmentadas nos lugares competentes com a substancia das leis brasileiras.
Pernambuco: Typographia da Viuva Roma & Filhos, 1851.
. Instituições de direito civil brasileiro: segunda edição mais correcta e
augmentada, e offerecida, dedicada e consagrada a Sua Magestade Imperial o
Senhor Dom Pedro II. 2 tomos. Recife: Typographia Universal, 1857.
. Instituições de direito civil brasileiro: terceira edição mais correcta, e
augmentada, e offerecida, dedicada, e consagrada à Sua Magestade Imperial o
Senhor Dom Pedro II. 2 tomos. Recife: Typographia Universal, 1861.
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio historico-
juridico-social. 3 tomos. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1866.

180
MOURA, Antonio Ribeiro de. Manual do edificante do proprietario e do inquilino ou
novo tratado dos direitos e obrigações sobre a edificação de casas e ácerca do
arrendamento ou aluguer das mesmas conforme o direito romano, patrio e o uso
das nações, seguido da exposição das acções judiciaes que competem ao
edificante, ao proprietario e ao inquilino accommodado ao foro do Brazil. Rio de
Janeiro: Laemmert & C, sem data.
PEREIRA, Bento. Promptuarium juridicum. Évora: Tipografia Acadêmcia, 1690.
PEREIRA, João Baptista. Codigo criminal do Imperio do Brasil annotado com os actos do
Poder Legislativo e avisos do governo que hão alterado e explicado algumas de
suas disposições e com as decisões do Supremo Tribunal de Justiça e da Relação
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editor E. A. de Oliveira, 1869.
PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de família. Rio de Janeiro: B. L. Garnier
Livreiro-Editor, 1869.
. Direito das cousas. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1877.
PESSOA, Vicente Alves de Paula. Codigo criminal do Imperio do Brazil anotado com
leis, decretos, jurisprudencia dos tribunaes do paiz e avisos do governo até o fim
de 1876 contém além disso muita materia de doutrina, com esclarecimentos e um
índice alfabético. Rio de Janeiro: Livraria Popular, 1877.
PHAEBO, Melchior. Decisiones Senatus Regni Lusitaniae. Lisboa: Tipografia Ferreiriana,
1737. Tomo 2.
RIBAS, Antonio Joaquim. Da posse e das acções possessorias: segundo o direito patrio
comparado com o direito romano e canonico. Rio de Janeiro: H. Laemmert & C.
Livreiros-Editores, 1883.
SOARES, Antonio Joaquim de Macedo. Tractado juridico-practico da medição e
demarcação das terras tanto particulares, como publicas, para uso dos juizes,
advogados, escrivães, pilotos e mais pessoal dos juizos divisorios. Rio de Janeiro:
Typographia Polytechnica, 1882.
SOUSA, Joaquim José Caetano Pereira e. Esboço de hum diccionario juridico, theoretico,
e practico, remissivo às leis compiladas, e extravagantes. 2 tomos. Lisboa:
Typographia Rollandiana, 1825.
. Primeiras linhas sobre o processo civil. 3 tomos. Coimbra: Imprensa Litteraria,
1872.

181
TEIXEIRA, Antonio Ribeiro de Liz. Curso de direito civil portuguez para o anno lectivo
de 1843-1844; ou commentario às Instituições do Sr. Paschoal José de Mello
Freire sobre o mesmo direito. 2 tomos. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1845.
TINÔCO, Antonio Luiz Ferreira. Codigo criminal do Imperio do Brazil anotado. Rio de
Janeiro: Imprensa Industrial, 1886.

Manuais de agricultores

TAUNAY, Carlos Augusto. Manual do agricultor brasileiro, obra indispensavel a todo o


Senhor de Engenho, Fazendeiro e Lavrador, por apresentar uma idéa geral e
philosophica da Agricultura applicada ao Brazil, e ao seu especial modo de
producção, bem como noções exactas sobre todos os generos de cultura em uso, ou
cuja adopção fôr proficua, e tambem hum resumo de horticultura, seguido de hum
epitome dos principios de botanica, e hum tratado das principaes doenças que
atacão os pretos; ornado com varias estampas; segunda edição dedicada ao Exmo
Sr. Senador Bernardo Pereira de Vasconcellos, Ministro da Justiça e
interinamente do Imperio. Rio de Janeiro: Typographia Imperial, e Constitucional
de J. Villeneuve e Comp., 1839.
WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memoria sobre a fundação e costeio de uma
fazenda na Provincia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique
Laemmert, 1863.

Periódicos

Correio Mercantil, ano 14, n. 87, 30 de março de 1857, Rio de Janeiro, proprietário J. F.
Alves Branco Muniz Barreto.
Diario do Rio de Janeiro, ano 17, n. 4, 6 de fevereiro de 1838, Rio de Janeiro,
Typographia do Diario, proprietário N. L. Vianna.

Projetos de códigos e consolidações

182
ARAUJO, José Thomáz Nabuco de. Codificação civil: projecto. Rio de Janeiro:
Typographia Perseverança, 1878.
FREITAS, Augusto Teixeira de. Consolidação das leis civis. Rio de Janeiro: B. L. Garnier,
1876.
. Código civil: esboço. 4 tomos. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios
Interiores, 1952.
PEREIRA, José Clemente. Projecto do codigo criminal do Império do Brasil. Rio de
Janeiro: Tipografia Imperial e Nacional, 1827.
SANTOS, Joaquim Felicio dos. Projecto do codigo civil brazileiro. Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1882.
VASCONCELLOS, Bernardo Pereira de. Projecto do codigo criminal: apresentado em
sessão de 4 de Maio de 1827. [online]. [acesso 14 de abril de 2018]. Disponível em:
<http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp?
selCodColecaoCsv=A&Datain=3/9/1829#/>

Outros documentos impressos

BRASIL. Falas do Trono: desde o ano de 1823 até o ano de 1889. Rio de Janeiro:
Imprensa Oficial, 1839.
. Trabalho sobre a extincção da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1868.
. Elemento servil: parecer e projecto de lei apresentados à Camara dos Srs.
Deputados na sessão de 16 de agosto de 1870 pela commissão especial nomeada
pela mesma Camara em 24 de maio de 1870. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1870.
. DIRETORIA GERAL DE ESTATÍSTICA. Recenseamento Geral do Império de
1872, quadros gerais, recenseamento da população do Imperio do Brazil a que se
procedeu no dia 1º de agosto de 1872. Rio de Janeiro: Typographia de G.
Leuzinger e Filhos, 1876.
. Organisações e programmas ministeriaes desde 1822 a 1889. Notas explicativas
sobre moções de confiança, com alguns dos mais importantes Decretos e Leis,
resumo historico sobre a discussão do Acto Addicional, Lei de Interpretação,

183
Codigo Criminal, do Processo e Commercial, lei de terras, etc., etc., com varios
esclarecimentos e quadros estatísticos. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889.
. Annaes do Senado do Imperio do Brazil, segunda sessão da primeira legislatura
de 4 de Maio a 17 de Junho de 1839. Rio de Janeiro, 1912. Tomo I.

Bibliografia

ALEGRIO, Leila Vilela. Donas do café: mulheres fazendeiras no Vale do Paraíba (Rio de
Janeiro, século XIX). Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011.
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico
Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
. “O pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira”, Novos estudos:
Cebrap, vol. 87, 2010, pp. 5-11.
ALEXANDRE, Valentim; DIAS, Jill. O império africano (1825-1890). Lisboa: Editorial
Estampa, 1998.
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de
Janeiro (1808-1822). Petrópolis: Vozes, 1988.
ALMEIDA, Joseph Cesar Ferreira de. Entre engenhos e canaviais: senhoras do açúcar em
Itu (1780-1830). Dissertação de mestrado. São Paulo: Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008.
ALVEAL, Carmen Margarida Oliveira. Identidades senhoriais e conflitos: convertendo
terra em propriedade no mundo atlântico português (séculos XVI-XVIII). Tese de
doutorado. Boston: John Hopkins University, 2011.
AMARAL, Isabela Guimarães Rabelo do. Resistência feminina no Brasil oitocentista: as
ações de divórcio e nulidade de matrimônio no bispado de Mariana. Dissertação de
mestrado. Belo Horizonte: Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas
Gerais, 2012.
ARIZA, Marília Bueno de Araújo. O ofício da liberdade: trabalhadores libertandos em
São Paulo e Campinas (1830-1888). São Paulo: Alameda, 2014.

184
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