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L~RAS

412
G9ô3s
2002
'; I yright © do autor
J' rdenação editorial: Ernesto Guimarães
I lr1om.mação e capa: Eckel Wayne
N visão: Equipe de revisores da Pontes Editores 1I

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Guimarães, Eduardo
SUMÁRIO
Semântica do acontecimento: um estudo
enunciativo da designação / Eduardo Guimarães.
-- Campinas, SP: Pontes, 2002. APRESENTAÇÃO '" 5

Bibliografia.
INTRODUÇÃO 7
ISBN 85-7113-161-9

1. Lingüística 2. Nomes de rua 3. Nomes CAPÍTULO I


geográficos 4. Nomes Pessoais 5. Português - ENUNCIAÇÃO E ACONTECIMENTO 11
Semântica 6. Semântica I. Título.

CAPÍTULO II
02-0075 CDD-469.2 O NOME PRÓPRIO DE PESSOA 33
Índices para catálogo sistemático:
./
1. Designação: Estudo enunciativo : Semântica: CAPÍTULO III
Português: Lingüística 469.2 NOMES DE RUA 43
2. Nomes: Sentido: Semântica: Português:
Lingüística 469.2
CAPÍTULO IV
NOMES DE RUA E O MAPA COMO TEXTO 59

(I NTES EDITORES CAPÍTULO V


HUll Maria Monteiro, 1635 NOMES DA CIDADE 69
I 102 -152 Campinas SP
I 011 (19) 3252.6011
JlIX (19) 3253.0769 CAPiTULO VI
I IIIUi!: p nteseditor@lexxa.com.br A CIDADE E OS NOMES DE ESPAÇO 77

CONCLUSÃO 91

www.ponteseditores.com.br BIBLIOGRAFIA 95

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3
APRESENTAÇÃO

Como para todo semanticista, a questão da relação das paluv: I:


com o mundo sempre rondou meus interesses. Esta questão se p puru
mim pela via dos estudos argumentativos. Para esta posição o senti 10 das
expressões lingüísticas não é referencial, ou seja, não pode se apresentar
a partir do conceito de verdade. Neste sentido, as expressões lingüísticas
significam no enunciado pela relação que têm com o acontecimento em
que funcionam.
Coloco-me deste modo, numa posição materialista, junto com aque-
les que não tomam a linguagem como transparente, considerando que sua
relacão com o real é histórica.
A partir do início dos anos 90 do século XX, ou seja, há pelo menos
dez anos, dediquei-me ao estudo das questões relativas ao domínio da de-
signação e referência na linguagem. Inicialmente meu interesse se deveu ao
estudo da questão da cidadania nas constituições brasileiras. O que me (
levou a analisar a designação de palavras como cidadão e república nos
(
diversos textos constitucionais da história do Brasil, motivo de vários tex-
(,
tos publicados nestes últimos 10 anos. Neste momento desenvolvi uma
primeira abordagem da questão dos nomes próprios e de sua relação com
os nomes comuns. Estes estudos eu os apresentei, no início dos anos 90, I
cursos na Pós-graduação de Lingüística do Instituto de Estudos da Lin uu-
gem da Unicamp. Isto produziu, desde então, o envolvimento de uuus I 's-
soas nesta via de reflexão enunciativa para os problemas da d si lia' o.
Neste período meus contatos com outros países da Arn ~ri ' I I Ii
na e com a Unemat, em Cáceres, me levou a refi tir mnix to, 111 , 11 I1 I
mente sobre as relações do Brasil com a Améri fi r IIli" I. ( ,11111 I
relações das línguas do Brasil (reflexão que v nho fuí', 'IIdl 11'1111111 1111 III
bro do Projeto História das Idéias Lingüí ti n. 11 ) li, I I 1'1 I I1 1'111
tica de Línguas). Isto foi decisivo para a 111 '(bOI '" ,li I 1'1 I 11 11111 1111
ceito de espaço de enunciação.
Envolvido nos projetos do Laboratório de Estudos Urbanos da
Unicamp, levei este meu interesse para os estudos das pala vras da cida-
de: cidade, município, comarca, rua, nomes de ruas, etc. E aqui a questão
dos nomes próprios acabou por assumir um lugar muito significativo.
Neste livro estarão presentes muitos aspectos deste percurso, pelo
qual espero poder contribuir para uma reflexão sobre os nomes e seus
sentidos configurada no interior de uma concepção enunciativa e históri-
ca da linguagem.

INTRODUÇÃO

Colocar-se na posição do semanticista é inscrever-se num domínio


de saber que inclui no seu objeto a consideração de que a linguagem fala
de algo. Pour outro lado, não há como pensar uma semântica lingüística
sem levar em conta que o que se diz é incontornavelmente construído na
linguagem.
É no espaço conformado por estas duas necessidades que procura-
rei configurar o que é para mim uma semântica do acontecimento. Ou
seja, uma semântica que considera que a análise do sentido da linguagem
deve localizar-se no estudo da enunciação, do acontecimento do dizer.
Por outro lado, considerando a própria operação de análise, tomar
o ponto de vista de uma semântica lingüística é tomar como lugar de
observação do sentido o enunciado. Deste modo, saber o que significa
uma forma é dizer como seu funcionamento é palie da constituição do
sentido do enunciado. Mas para mim, considerar o processo no qual uma
forma constitui o sentido de um enunciado é considerar em que medida
esta forma funciona num enunciado, enquanto enunciado de um texto.
Ou seja, não há como considerar que uma forma funciona em um enunci-
ado, sem considerar que ela funciona num texto, e em que medida ela é
constitutiva do sentido do texto.
Deste modo, procuro utilizar aqui o que Benveniste (1966)1 consi-
derou como o movimento intregrativo de uma unidade lingüística. Para
ele esta relação (integrativa) dá o sentido da unidade. Ou seja, o sentido
de um elemento lingüística tem a ver com o modo como este elemento faz
parte de uma unidade maior ou mais ampla. Vê-se que ao fazer e t L1S
da relação integrativa, a despeito de Benveniste ter dito que ela nã p r-
mitia passar do limite do enunciado, estou dizendo que há uma pas a m
do enunciado para o texto, para o acontecimento, que nã mental. E
esta é a relação de sentido.
I. Em "Os Níveis da Análise Lingüística".

6 7
Tratar a enunciação, coloca de saída a questão do sujeito que enun- Por outro lado vou me ocupar do estudo de um conjunto de nomes
cia, e assim a questão do sujeito na linguagem. E para os meus propósi- comuns, que procurarei, de alguma forma, ligar à problemática dos no-
tos isto deve levar a uma recolocação do lugar dos estudos da enunciação mes próprios aqui estudados. Vou estudar a designação de nomes como
num espaço distinto do que eles tiveram ou têm ainda em certas de suas cidade, municipio, comarca, rua, ruela, morro.
formulações. Para mim o tratamento da enunciação deve se dar num es- O centro de meu interesse é o estudo do funcionamento dos nomes, e
paço em que seja possível considerar a constituição histórica do sentido, especificamente da designação. Para configurar o que considero designação
de modo que a semântica se formule, claramente, como uma disciplina do vou distinguir esta palavra num conjunto de palavras muitas vezes usadas
campo das ciências humanas , fora de suas relações com a lógica ou a umas pelas outras, ou distinguidas de modos diferentes dependendo do autor
gramática pensadas ou como o matematizável ou como uma estrutura ou da posição de cada um. Nomeação, designação, referência, denotação,
biologicamente determinada. por exemplo, e palavras correlatas, são muitas vezes usadas como sinônimas
. Este trabalho mantém assim um diálogo com domínios como a filo- e às vezes como diferentes. Basta ver como denotação pode ser usada como
sofia da linguagem, notadamente a teoria dos atos de fala, a pragmática, sinônima ou não de elesignação e referência. Vou aqui usar designação como
a semântica argumentatíva'. Por outro lado mantém também um diálogo distinta de nomeação e de referência (denotação).
decisivo com a Análise de Discurso tal como praticada no Brasil' e que A nomeação é o funcionamento semântico pelo qual algo recebe um
se organiza e desenvolve a partir dos trabalhos de Pêcheux. nome (não vou aqui discutir este processo). A designação é o que se
Mais especificamente, tomo a enunciação como um acontecimento poderia chamar de significação de um nome, mas não enquanto algo abs-
no qual se dá a relação do sujeito com a língua. A questão é como descre- trato. Seria a significação enquanto algo próprio das relações de lingua-
ver e analisar esta relação. gem, mas enquanto uma relação lingüística (simbólica) remetida ao real,
Ao lado de tratar o sentido tal como acima exponho, vou considerar exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história. É
a questão do político na linguagem, tomando como lugar de reflexão o neste sentido que não vou tornar o ntfme como um palavra que classifica
domínio da semântica, mais especificamente o domínio dos estudos da objetos, incluindo-os em certos conjuntos. Vou considerar, tal como con-
enunciação. Isto quer dizer que para mim enunciar é uma prática política sidera Ranciêre (1992), que os nomes identificam objetos. Hipótese qu
em um sentido muito preciso, que procurarei apresentar a seguir, no pri- me interessa fortemente tanto para os nomes comuns, como para os n -
meiro capítulo. Tanto a noção de político, que vou fazer operar aqui, mes próprios, como se verá. A referência será vista como a particulari-
quanto minha concepção de sentido são pensadas historicamente e não zação de algo na e pela enunciação.
como uma ação particular numa situação particular. Se, do ponto de vista da filosofia e da lógica, a consideração da
Como objeto específico de reflexão vou estudar a designação, linguagem diz respeito a que é preciso saber como uma expressão Iin
constitutiva do sentido dos nomes. De um lado tratarei de nomes pró- güística se relaciona inequivocamente com aquilo que ela significa (r r,
\ prios, ou seja, nomes que se apresentam como nomes de objetos úni- re), para a lingüística, e especificamente para a semântica Iingüísti a, n
cos. Para isso vou deter-me no estudo dos nomes próprios de pessoa e questão não é necessariamente essa.
dos nomes de ruas. Quero, ao tomar estes objetos de análise, enfren- Para a semântica lingüística o que interessa é saber, no qu diz I' ':-;
tar diretamente, em análises específicas, nomes que poderiam levar, peito à relação da linguagem com as coisas, como ao dizer alg Inln fll'
com alguma facilidade, a uma concepção segundo à qual estes nomes das coisas. Ou seja, a questão não é ontológica mas simbólica. Nli I od '
funcionam meramente por suas relações com os objetos únicos que mos esquecer de lembrar aqui que no nascimento da lingüí ti n 111 d "'1l1
nomeiam. Saussure separou de modo absoluto estas duas questões (:1 lin >lI 1'1 i '1\ ' 1
da relação com as coisas).
De certo modo pode-se ver, no que diz respcit I I' -Ia I 11 I 1\
2. Nesta linha de filiação lembro Bréal (1897), Bally (1932), Benveniste (1966, 1974), Ducrot
guagem com o mundo, um debate diretamente af 'lu I IH'I I I( f' 1 1 I
(1972, 1973, 1984); Austin (1962), Grice (1957,1967), Searle (1969); entre outros.
3. Tal como aparece na obra de E. Orlandi (ver, por exemplo, Orlandi (1983,1990,1992, os problemas são considerados segundo tragam d iri .ul Ild, JlI up' ,
1996, 1999)). para as hipóteses de unicidade e existência viu Il. dl','11 li 111'1 111,

8 I)
Diante, por exemplo, de nomes como Super-homem, unicôrnio em
frases como o unicôrnio não existe, ou se admite que estes nomes têm
sentido, e assim se é levado a considerar como não tendo valor de
verdade uma frase claramente verdadeira, ou admite-se que estas ex-
pressões não têm nelas nenhum sentido, e tudo que uma expressão
referencial faz é, numa dada frase, denotar um objeto. Ou seja, toda a
significação é reduzida à referência".
No entanto nada impede que tenhamos, como lingüistas, que res- CAPÍTULO!
ponder como se pode falar de alguém, que não é um jogador de tênis,
dizendo ojogador de tênis. Assim como é perfeitamente possível falar de
uma mesma coisa usando expressões como meu carro e aquele carro da
ENUNCIAÇÃO E ACONTECIlVIENTO
esquerda, ao mesmo tempo em que a segunda expressão pode ser usada
para falar de um carro que não é meu e a primeira, em princípio, não. A enunciação, enquanto acontecimento de linguagem, se faz pelo
Um outro aspecto importante aqui. O que significa dizer que o nome funcionamento da língua. Inscrevo minha posição numa linha de filiações
próprio não tem sentido (tal como diz Russell)? Esta é uma solução que próximas que passa por Benveniste (1970), em "O Aparelho Formal da
está ligada ao referencialismo e empirismo de sua posição e assim leva a Enunciação", para quem a enunciação é a língua posta em funcionamen-
pensar que à linguagem cabe só indicar (de modo transparente) as coisas to pelo locutor, e por Ducrot (1984), em "Esboço de uma Teoria Polifônica
existentes. Esta solução não considera que as coisas existentes são referi- da Enunciação", para quem a enunciação é o evento do aparecimento de
das enquanto significadas, e não simplesmente enquanto existentes. E é um enunciado. Para mim' a questão é como tratar a enunciação como
isso que tomar a questão pela lingüística permite considerar. E, assim, a funcionamento da língua sem remeter isto a um locutor, a uma centralidade
partir do fato semântico de que as coisas são referidas enquanto do sujeito.
significadas e não enquanto si~lesmente existentes, podemos conside- Dois elementos são decisivos para a conceituação deste aconteci-
rar que é possível referir porque as coisas são significadas e não simples- mento de linguagem: a língua e o sujeito que se constitui pelo funciona-
mente existentes. Podemos referir algo com a palavra pedra porque a mento da língua na qual enuncia-se algo. Por outro lado, um terceiro
linguagem significa o mundo de tal modo que identifica os seres em vir- elemento decisivo, de meu ponto de vista, na constituição do aconteci-
tude de significá-Ios. E é isso que torna possível a referência a um ser mento, é sua temporalidade. Um quarto elemento ainda é o real a que o
particular entre os seres assim identificados. É este tipo de questão que dizer se expõe ao falar dele. Não se trata aqui do contexto, da situação,
queremos discutir ao estudar aqui a designação. tal como pensada na pragmática, por exemplo. Trata-se de uma
materialidade histórica do real. Ou seja, não se enuncia enquanto ser
físico, nem meramente no mundo físico. Enuncia-se enquanto ser afetado
pelo simbólico e num mundo vivido através do simbólico.

1. ACONTECIMENTO E TEMPORALIDADE

Considero que algo é acontecimento enquanto diferença na sua pró-


pria ordem. E o que caracteriza a diferença é que o acontecimento não é
um fato no tempo. Ou seja, não é um fato novo enquanto distinto de
qualquer outro ocorrido antes no tempo. O que o caracteriza como dife-
rença é que o acontecimento temporaliza. Ele não está num presente de
4. ;sla discussão se dá entre, por exemplo, as posições de Frege e Russell. 5. Ver Guimarães (1989 e 1995).

10 1 1
um antes e de um depois no tempo. O acontecimento instala sua própria Municípios Prefeitos deixaram as cidades depenadas ..42
ternporalidade: essa a sua diferença. Fôrum Os anticapitalistas se reúnem no Sul.: 44
Antes de falar de como se dá a temporal idade do acontecimento, gos- Minas Gerais A tenente diz que não está mais com ltamar:'. .45
taria de recusar aqui a posição benvenistiana", segundo à qual o tempo da Igreja Boato sobre romance afastapadre de paróquia chique 46
enunciação se constitui pelo locutor ao enunciar. Ou seja, o presente do Acre O plano para matar o governador Jorge Viana .47
acontecimento não é, para mim, como quer Benveniste, o tempo no qual o CPI Perguntas hilárias dos deputados sobre futebol. .47
locutor diz eu e enuncia, a partir do qual se organizam um passado (um Receita Decreto escancara o sigilo bancário .48
antes) e um futuro (um depois), constituindo-se assim, a partir do Eu, uma Privatiração Um negócio da China .49
linha de sucessividade. O que quero dizer é que não é o sujeito que
temporaliza, é o acontecimento. O sujeito não é assim a origem do tempo Uma análise tradicional deste Índice procuraria observar seu aspec-
da linguagem. O sujeito é tomado na temporalidade do acontecimento. to meramente informativo. Ou seja, o índice diz ao leitor quais são as
E o que é esta temporalidade? De um lado ela se configura por um matérias da revista e em que páginas elas estão.
presente que abre em si uma latência de futuro (uma futuridade), sem a Do meu ponto de vista há aí bem mais do que isso. De um lado as
qual não há acontecimento de linguagem, sem a qual nada é significa- matérias aparecem como sendo de uma seção específica, "Brasil", entre
do, pois sem ela (a latência de futuro) nada há aí de projeção, de outras Ç'Interuacional, Geral, Economia e Negócios, Guia, Artes e Espetá-
interpretável. O acontecimento tem como seu um depois incontornável, culos"). Sem utilizar aqui categorias de análise específicas, podemos dizer
e próprio do dizer. Todo acontecimento de linguagem significa porque que o que se diz na primeira coluna do índice pode ser considerado como o
projeta em si mesmo um futuro. dizer de um locutor que categoriza os espaços da revista, ao passo que a
Por outro lado este presente e futuro próprios do acontecimento fun- segunda coluna é um dizer de um 10culPr que toma os títulos de matéria (já
cionam por um passado que os faz significar. Ou seja, esta latência de enunciados por outros locutores) e indica suas páginas iniciais. Deste modo
futuro, que, no acontecimento, projeta sentido, significa porque o aconte- o presente do acontecimento deste índice é o tempo em que o locutor da
cimento recorta um passado como memorável. formulação do índice atribui uma matéria a uma certa categoria, categoria
A temporalidade do acontecimento constitui o seu presente e um que aí está como um passado neste acontecimento, que se apresenta com
depois que abre o lugar dos sentidos, e um passado que não é lembran- um rememorado, que faz significar de um certo macio, e não de outro,
ça ou recordação pessoal de fatos anteriores. O passado é, no aconteci- título da matéria e a matéria. E tudo isso projeta sentidos futuros, sentid s
mento, rememoração de enunciações, ou seja, se dá como parte de uma \ capazes de movimentar, inclusive, outras enunciações. Por exemplo:
nova temporalização, tal como a latência de futuro. É nesta medida que
o acontecimento é diferença na sua própria ordjm: o acontecimento é Municípios Prefeitos deixaram as cidades depenadas.
sempre uma nova temporalização, um novo espaço de conviviabilidade
de tempos, sem a qual não há sentido, não há acontecimento de lingua- O que aqui se rememora como categoria para a matéria (Municípi
gem, não há enunciação. os) faz o título projetar como sentidos (futuridade do acontecirnentn •
Tomemos para ilustrar nosso ponto de vista o índice de uma revista. entre outros, a) as cidades como sinônimo de municípios; b) 1\
Vou utilizar aqui uma parte do Índice da Revista Veja de 17 de janeiro de irresponsabilidade das administrações das cidades como própria d(lI:
2001, especificamente sua Seção Brasil: municípios brasileiros; e c) um sentido de general izaçl di
irresponsabilidade neste nível de governo: o município como lugar ti I
São Paulo A doença marca as aparições públicas de Covas 36 irresponsabilidade (o que sem dúvida localiza a atenção cI I it r d . 11111
Justiça Caso do Lalau abre a discussão sobre a prisão especial...39 modo muito particular).
Congresso Sucessão na presidência da Câmara e do Senado .40 Constitui-se no índice o que é o presente para
Não há nada nele que relacione necessariamente li n 1I1tll
6. Benveniste (1974a), "A Linguagem e a Experiência Humana". ção com qualquer outra da semana anterior. O pr '.' 'ntl II

12 1\
pois da semana anterior, nem o passado é um antes da semána em ques- O ac.ante_cimento em qu~ se fala é, do meu ponto de vista, espaço de
tão, nem o futuro é aqui a semana posterior àquela em qhe se está. temporahzaçao. Nesta medida o passado no acontecimento é uma
Neste sentido diria que a significação do índice é uma instrução? de rememoração de enunciações por ele recortada, fragmentos do passado
como saber de que trata a revista, onde isto está, e das conseqüências dos por ele representados como o seu passado".
sentid,os aí tratados. O índice não é uma mera indicação de onde algo A questão para mim é poder descrever como se dá este aconteci-
está. E uma indicação que passa pelo sentido que o acontecimento cons- mento de linguagem, como ele se constitui. É o que faremos mais à frente
truiu. Deste modo o índice é uma instrução de como interpretar tanto um ao falar de cena enunciativa e espaço de enunciação. Antes vou caracte-
modo de chegar à matéria, como a própria construção de algo como notí- rizar o que é para mim o político.
cia, que para ser notícia é constituído por uma temporalidade específica.
Esta caracterização da temporalidade do acontecimento não coincide, 2. O POLÍTICO: DISTRIBUIÇÃO DE DESIGUALDADES EA
portanto, com o tempo do ego que diz eu, que chamo aqui locutor". A confi- AFIRMAÇÃO DE PERTENCIMENTO
guração do Locutor no acontecimento é a de que ele é a origem do dizer e
assim da temporalidade. Diria que Benveniste limitou-se a tratar desta repre-
sentação. Deste modo a temporalidade do acontecimento da enunciação traz
sempre esta disparidade temporal entre o tempo do acontecimento e a repre-
sentação da temporalidade pelo Locutor. Esta disparidade significa direta-
Colocando-me no domínio das posições materialistas vou considerar~
o político como algo que é próprio da divisão que afeta materialmente a
linguagem e, para o que ~e interessa aqui, o acontecimento da enunciação'",
Começo por considerar o modo como Ranciêre (1995) caracteriza
as abordagens do político na filosofia. Para ele estas abordagens tratam
~v
.

mente a inacessibilidade do Locutor àquiIo que enuncia. O locutor não está


onde a enunciação significa sua unidade (tempo do Locutor). do que ele chamou a arqui-politica, a para-política e a meta-política. A
Assim o Locutor está dividido no acontecimento. E está dividio por- primeira (a arqui-politicai tem sua configuração no pensamento platôni-
que falar, enunciar, pelo funcionamento da língua no acontecimento, é co e, segundo Ranciêre, transforma a política em organização. Isto se
falar enquanto sujeito. Para c~cterizar este aspecto recorro, neste pon- enuncia em Platão em afirmações direti vas como "é necessário fazer seu
to, à posição da análise de discurso para a qual o sujeito que enuncia é próprio trabalho" que aparecia já como um artifício retórico que formu-
sujeito porque fala de uma região do interdiscurso, entendendo este como lava a submissão do povo à distribuição ordenada dos papéis sociais. A
uma memória de sentidos. Memória que se estrutura pelo esquecimento política é neste caso mentira. Cabia à arqui-politica anular a "falsa polí-
de que já significa (Orlandi, 1999). Ser sujeito de seu dizer, ser sujeito, é tica", a democracia, pela constituição da República.
falar de uma posição de sujeito. . A para-política, que aparece na formulação de Aristóteles que não
Esta tomada de posição teórica dá um sentido bem específico e forte aceita a descaracterização da política feita por Platão, integra e neutraliza o
à consideração de que o acontecimento de linguagem não se dá no tempo, conflito entre pobres e ricos, entre interesses opostos. A política é neste caso
nem no tempo do locutor, mas é um acontecimento que temporaliza: uma aparência e ela encontra seu fim na pacificação social. Se, por exemplo, o
temporalidade em que o passado não é um antes mas um memorável govemante está diante da possibilidade de um levante popular, então ele
recortado pelo próprio acontecimento que tem também o futuro como deve fazer como se governasse para o povo, neutralizando assim o conflito.
uma latência de futuro. O sujeito não fala no presente, no tempo, embora
9. É preciso não confundir a memória de sentidos (memória discursiva: interdiscurso) do
o locutor o represente assim, pois só é sujeito enquanto afetado pelo
passado no acontecimento (memorável de enunciações recortado pela temporalização do
interdiscuro, memória de sentidos, estruturada pelo esquecimento, que acontecimento). O que procuro é desenhar a articulação, no quadro que aqui proponho,
faz a língua funcionar. Falar é estar nesta memória, portanto não é estar entre o interdiscurso e o acontecimento.
no tempo (dimensão empírica). 10. Lembro aqui duas posições a respeito do político e da política que se desenvolveram no
domínio do materialismo e com as quais minha posição guarda relações evidentes. De um
7. Uso aqui a noção de instrução a partir do sentido que lhe dá O. Ducrot (1984), embora não lado a consideração do político como conflito, tal como Orlandi (1990) apresenta em
de maneira absolutamente igual. Terra à Vista, e de outro a consideração da política como dissemo tal como apresenta
Raciêre (1995) em La mésentente. Evidentemente que estas duas posições não são iguais.
8. Mais à frente vou tratar de modo mais específico das figuras da enunciação (locutor,
nunciador, etc), ao falar da cena enunciativa. Valho-me aqui de um debate que se instala de pronto entre elas para formular o que segue.

UFMG - Faculdade de Letras


15
A meta-política denuncia o excesso das inj ustiças e das desigualda- que regem a assiduidade dos funcionários. Aqui já poderíamos refletir
des relativamente ao que a política enuncia. Ou seja a meta-política de- sobre esta divisão do real feito pelas designações que, no caso, ora
nuncia as mentiras da política, de modo que para ela a política é a mani- categorizam alguém como aluno, ora como funcionário.
festação da falsidade. Isto leva a meta-política a atacar direitos formula- b) Um outro aluno, que defende o aluno/funcionário demitido, con-
dos por instituições sustentadas no conceito de soberania, já que para tra-argumenta, incessantemente, durante algo como duas boras ou mais,
esta posição tudo o que vem do político é falso. que a questão não é se o aluno seu colega (aluno estagiário) deveria ser
Assim estes três modos de conceber o político o tomam como a práti- demitido de seu posto enquanto funcionário, mas que ele o foi sem que
ca do falso ou do aparente e assim procuram organizá-Ia, ou integrá-lo ou lhe fosse assegurado um direito mínimo, consignado na declaração uni-
denunciá-lo. Como então considerar o político? Ele não é nem o falso nem 11 versal dos direitos do homem, o de apresentar sua defesa.
o verdadeiro. Procuro assim, a seguir, caracterizá-lo fora destas concep'- . O que temos aqui? De um lado a afirmação de uma distribuição de
ções negativas, para que possamos tratar do político como fundamento das papéis, desigualmente, onde alguns podem fazer coisas e outros devem obe-
-relações SOCIaIS,no que tem Importância central a linguagem. Deste modo decê-Ias, distribuição feita pela adminsitração, e de outro a afirmação de
importa, antes de ir à frente, uma observação: o político não é o que se fala pertencimento do aluno à categoria do humano na qual todos têm o direito
sobre a igualdade, sobre os direitos, etc. Colocar-se neste lugar é também e igual de se defender de qualquer acusação. Categoria da qual, no sentido que
ainda conceber o político negativamente, por tratá-lo como o lugar do en- ele lhe dá, o aluno estagiário está sendo retirado. Esta afirmação de
godo, da, na melhor das hipóteses, doce mentira. pertencimento, por precisar se repetir como eco por um longo período de
O político, ou a política, é para mim caracterizado pela contradição discussão, significa a sua falta de sentido no acontecimento. Ou seja, afirmar
de uma normatividade que estabelece (desigualmente) um divisão do real o direito é neste acontecimento sem sentido, para aqueles que falam do lugar
e a afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos. Deste modo da normatividade, por mais sentido que a afirmação do aluno tenha para ele
o político é um conf1.ito entre uma divisão normativa e desigual do real e e o demitido (a Declaração Universal tfc)sDireitos do Homem não é aqui
uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento. Mais (I memorável). Está-se diante, neste caso, do funcionamento da contradição
importante ainda para mim é que-deste ponto de xista.n.políticn.é, própria do político, e de tal modo, neste acontecimento, que o esforço
lncortomável porque o homem fala. O homem está sempre a assumir a enunciativo do aluno defensor do colega é tomado sem sentido, e sua
palavra, gor mais que esta lhe sep negada. enunciação por mais que afirme o pertencimento do aluno à categoria do
r Esta concepção nos leva a algumas considerações aparentemente humano, não consegue aí significá-Ia, pela sopreposição "gloriosa" d
contraditórias em princípio. O Político está assim sempre dividido pela adminstrativo, e do homogêneo: O Político é para mi m não o dizer norrnati-
desmontagem da contradição que o constitui. De tal modo que o estabele- zado da adminstração, nem simplesmente a afirmação de pertencimento d
cimento da desigualdade se apresenta como necessária à vida social e a aluno. É a contradição que instala este conflito no centro do dizer. Ele .
afirmação de pertencimento, e de igualdade, é significada como abuso, constitui pela contradição entre a normatividade das instituições sociais que
impropriedade. Esta desmontagem é o esforço do poder em silenciar" a organizam desigualmente o real e a afirmação de pertencimento dos não
contradição, na busca de um político como ação hornogeneizadora que incluídos. O político é a afirmação da igualdade, do pertencimento cio p v
ora se esgota no administrativo, ora naquilo que Raciêre chamou de po- ao povo, em conflito com a divisão desigual do real, para redividi-lo, para
lícia, e que ele opõe à política. refazê-Ia incessantemente em nome do pertencimento de todos no todos.
Tomemos aqui um exemplo. Em uma reunião de um colegiado uni- Com esta concepção de político voltamos à consideração dos asp -
versitário em que se discute a demissão de um aluno de seu posto de tos enunciativos. Com ela pretendemos uma melhor configuração d t -
estagiário há um embate que sintetizo: lítico na linguagem.
a) A adminstração, em nome da decisão do funcionário que demitiu -º- acontecimento de linguagem por se dar nos espaços d 111111 iu '110
o aluno, diz que aquele estava autorizado a fazê-Ia baseado nas regras t.um acontecimento políticoX2• Ou seja, a constituição da t mp ,'rlilu\(
11. No sentido que este conceito tem para Orlandi (1992). 12. Tratei desta questão em Guimarães (2000a).

16 II
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do acontecimento se faz pelo funcionamento da língua enquanto numa ais. O espaço de enunciação é um espaço político, no sentido em que
relação com línguas e falantes regulada por uma deontologia global do considerei há pouco o político.
dizer em uma certa língua. Tomemos um exemplo. O que é falar Português na América Latina
hoje?!" Primeiro aspecto: é falar uma língua oficial de um Estado, que
3. ESPAÇO DE ENUNCIAÇÃO nesta medida está numa relação de convivência e de disputa na América
Latina com o Espanhol, também língua oficial de vários Estados vizi-
onsi erar a configuração do acontecimento, tal como fizemos em 1., nhos do Brasil".
coloca uma relação por todos os aspectos decisiva: a relação entre a língua e Segundo aspecto. Consideremos, por exemplo, um fato como a de-
o falante, pois só há línguas porque há falantes e só há falantes porque há rivação que em Português forma palavras como acessar. Esta palavra,
línguas. E esta relação não pode ser tomada como uma relação empírica do tal como deletar e tantas outras, entra no Português do Brasil por uma
tipo: em uma certa situação as pessoas falam na língua x, em outra, na língua relação com o Inglês.
y. Por exemplo, no Brasil se fala Português, na França, Francês, etc. Ou Se tomamos acessar, podemos vê-Ia como um derivado de acesso,
ainda, no Paraguai se fala o Espanhol e o Guarani. Esta relação entre falan- o que seria perfeitamente possível em virtude dos procedimentos de deri-
tes e línguas interessa enquanto um espaço regulado e de disputas pela pala- vação da Língua Portuguesa. Mas é preciso ver aí também, mesmo neste
vra e pelas línguas, enquanto espaço político, portanto. A língua é dividida caso (o caso de deletar envolve o fato de que não há delet em Português),
no sentido de que ela é necessariamente atravessada pelo político: ela é que acessar é um derivado em Português de to acess do Inglês. Estamos
normativamente dividida e é também a condição para se afirmar o diante de uma divisão tal que o espaço de enunciação do Português do
pertencimento dos não incluídos, a igualdade dos desigualmente divididos. \\ pJ
Os falantes não são os indivíduos, as pessoas que falam esta ou aquela ,}1/ , rasil inc ui uma relação com o Inglês. Em outras palavras, o espaço de
enunciaçãcuio ..]~.QJ::tug.lles_
t ' m ocupa pela m ua mesa.
língua. Os falantes são estas pessoas enquanto determinadas pelas línguaslOv ~~'-' Bl Tomemos um outro exemplo interessante. Houve, durante um pe-
que falam. Neste sentido falantes não são as pessoas na atividade físico- rI 'Y
.0S ríodo recente, em Campinas, um estabelecimento comercial cujo nome
r •

fisiólogica, ou psíquica, de falar. São sujeitos da língua enquanto constituí- li r era Center Frutas Broto. Estamos aqui diante de um procedimento de
dos por este espaço elel~nguas e1'alantes que chamo espaço de e~unci~ção. ~.JP' nomeação há já algum tempo em funcionamento no Brasil.
Deste modo considero que o falante, tal como o conceituo, e uma \-~ O que temos nesta nomeação? Ela se constrói por uma relação dire-
categoria lingüística e enunciativa. Neste ponto diferencio minha posição ta entre falante e as línguas portuguesa e inglesa. Não simplesmente por-
da de Ducrot. Mas num sentido muito preciso. Primeiro devo dizer que que há empréstimo de uma palavra, center, ou porque se construiu um
concordo que o falante, tal como Ducrot o conceitua (como figura físico- nome com uma frase inglesa, o que seria também um simples emprésti-
fisiológica e psíquica), não é um personagem da enunciação. Minha dife- mo. Estamos diante de um embate em que o falante está di vido por sua
rença está em que considero que ~ falante não é esta figura empírica, relação com duas línguas: veja como a presença do center não define a
mas uma figura política constituída pelos espaços de enunciação. E nesta sintaxe nem como inglesa nem como portuguesa: no primeiro caso seria
medida ela deve ser incluída entre as figuras da enuncia~ão. Broto Frutas Center e no segundo Center de Frutas Broto. Há algo em
Os espaços de enunciação são espaços de funcionamento de lín-
guas, que se dividem, redividem, se misturam, desfazem, transformam
por uma disputa incessante. São espaços "habitados" por falantes, ou
seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de
;/
A7 ~/
j frutas (Português) que imped~ a primeira ~onstrução, ~ há algo em center
(é uma palavra "emprestada com sua sintaxe) que Impede a segunda
construção. Ou seja, esta nomeação se dá num espaço de enunciação em
que o Inglês fornece modelos ao Português. Mas este modelo não se cum-
dizer. São espaços constituídos pela equivocidaele própria do aconteci-
14. Vou retomar e ampliar, segundo a especificidade desta pergunta, uma análise que fiz em
mento: da deontologia" que organiza e distribui papéis, e do conflito, "Política de Línguas na Arnéria Latina" (Guimarães, (997) sobre o espaço de enunciação
indissociado desta deontologia, que redivide o sensível, os papéis soei- latino-americano.
15. Para não me ater muito na questão da disputa, podemos lembrar, por exemplo, a prática de
. Tomo aqui esta noção a partir da formulação que lhe deu Ducrot (1972) em Dire et ne incompreensão dos falantes de Espanhol relativamente ao Português, oposta à prática de
pas Dire, brasileiros com o espanhol.

IH 19
pre completamente porque ele é refeito pelo embate das línguas na rela- Brasil. Ou seja, é elemento de identificação de sujvilll "'1lll1lh
ção com o falante no espaço de enunciação. dãos do Estado. Mas falar Português no Brasil é falul 111111 1,"111 I
Um outro caso deste tipo, com uma configuração diversa, é o nome são várias. Assim a relação dos falantes com a língua cstu n 1'1111111 1 I I
de um outro estabelecimento do mesmo gênero, em um outro bairro de uma relação com a língua do Estado, enquanto uma língua, .1 1111 '111
Campinas: Cambui Fruit Center. Neste caso o falante está tomado, no (una) do Estado: gramatizada'", normatizada. Está por outro lati li 1'11
espaço de enunciação, pela língua que não é a sua. lada pelo fato de que há regiões em que se fala, por exemplo, ll1111110\
Nesta medida não se pode deixar de levar em conta que línguas (como em Cuiabá), e outras em que se fala [muito]. Regiões em que s
como Português e Espanhol não são, no espaço de enunciação latino- fala [mar] (como em Piracicaba, São Paulo) e regiões em que se fala
americano, legítimas tal com a língua inglesa, que tem, neste espaço com [mar]. Consideremos, para os efeitos desta argumentação, que estes
o Português e o Espanhol, uma legitimidade especial, notadamente para poucos fatos sejam todas as diferenças existentes que temos neste espa-
relações internacionais de um certo tipo: comércio, ciência", etc. ço enunciativo. Não há igual direito a dizer [rnut'o] ou [muito], ou [mai]
Não estou aqui levando em conta um conjunto de tantos outros e [mar]. O direito à palavra é distribuído de tal modo que ele é um para
problemas extremamente relevantes, como, por exemplo, no Brasil se os que dizem [muito] e [mar] e outro para os que dizem [mut'o] e para
falam ainda em torno de 150 línguas indígenas, várias línguas européi- os que dizem [mar]. Assim ..fuI ar .português é estar afetado por estas
as e orientais, aí incluindo o Espanhol, notadamente em regiões de fron- divisões que caracterizam o espaço de enunciação da Língua Portugue-
teira. Há no Brasil, inclusive, índios que falam Espanhol preferencial- ~il. Não estamos aqui considerando todo um conjunto mais
mente. complexo de questões como o fato, já referido antes, de que se falam no
Dada a descrição acima, com a devida ressalva, podemos dizer Brasil inúmeras línguas indígenas e diversas línguas européias e orien-
que o espaço de enunciação latino-americano caracteriza-se por uma tais. ~
disputa pela palavra regulada por uma distribuição de papéis que colo- .-/'Ísto me leva a dizer que, do ponto de vista que aqui assumo, uma
ca brasileiros e latino-american~ dos demais países como falantes que Iíngua não é variável, no sentido em que esta noção é tomada pela
excluem a língua do outro e incluem o Inglês como "língua franca", sociolingüística quantitativa.
mesmo que uma pessoa em particular não a fale. A questão aqui não é Para mim uma línga é dividida, de tal modo que ela é uma e é dife-
individual. rente disso. E esta divisão diz respeito exatamente à relação dos falantes
Neste espaço, trabalhar o ensino do Português do Brasil nos países com a língua, de tal modo que os falantes se identificam exatametne por
vizinhos e do espanhol no Brasil é um modo de redividir o espaço para essa divisão. No caso do nosso pequeno exemplo, há os falantes que se
torná-Ia cada vez mais sul-americano e cada vez menos norte-americano identificam pela divisão da língua que os faz dizer [mut'o] de um lado ou
aLI europeu, ao lado de trabalhar a resistência ao avanço do Inglês, [muito] de outro.
notadamente o americano, como língua de todos. É uma resistência a um E esta divisão é marcada por uma hierarquia de identidades. u
certo tipo de monolingüismo. Não se trata aqui de LImaatitude quixotesca seja, esta divisão distribui desigualmente os falantes segundo os vai I'(.:S
e sem conseqüências como aquela que busca proibir o uso de palavras próprios desta hierarquia. E aqui pode-se ver como a Escola, entre outras
estrangeiras no Português. A questão política é noutro lugar, inclusive instituições e instrumentos, é fundamental na configuração do ,pn',
porque os espaços de enunciação são espaços, divididos desigualmente, enunciativo de Uma língua nacional, no nosso caso o Português. 11: "li,
de disputa pela palavra. a Escola é fundamental no modo de dividir os falantes e sua rcla -1'1111111
Podemos tomar a questão do espaço de enunciação através de uma a língua.
outra pergunta: o que é falar Português no Brasil? Sem dúvida que o E estar identificado ela divisão da ' gua.é estar J -1.111111111. l!lll
primeiro aspecto que devemos considerar é que o Português é a língua uma deontolo . global da lfn.g~·~8r I'tm: (11i I 111111 11
ficial do Estado Brasileiro, e é, nesta medida, a língua nacional do tras, a poder falar de certos lugares de locut r • 11 it 11 11111111
celtos interlocutores e - utros.;
16. Tratei deste aspecto específico de uma política de línguas em "Produção e Circulação do
onhccimento sobre Literatura e Linguagem" (Guimarães, 1999a). 7. No sentido que tem gramatização para Auroux (I ( ( * ,

o
I 01' exemplo, aquele que é identificado por falar [mut'o] ou [maf] rem a enunciação a partir da conceituação que Ducrot (1972) faz dos
I od falar cotidianamente para seus familiares, amigos, colegas, habi- atos ilocucionais. A diferença é que para mim este agenciamento é políti-
I IIII 'S de sua cidade, mas não pode falar como locutor-jornalista, na tele- co. Ou seja, não é que ele é coletivo, como um "acordo" de um grupo. Ele
vi .para os telespectadores. Mesmo que estejamos considerando a te- é, para mim, afetado politicamente por se dar segundo os espaços de
I v,i'I na região de Cuiabá e Cáceres, no Estado de Mato Grosso, de um enunciação.
II I , li de Piracicaba e Itu, no Estado de São Paulo, de outro. Ele só À
poderá fazê-lo se aparecer como um personagem e não como um apre- 4. A CENA ENUNCIATIVA
'llIad r. Ou seja, ele pode ser na mídia só o locutor-cuiabano, o locutor-
pll'll icabano. Aparecer como personagem é aparecer como locutor cita- Diante da concepção de político acima exposta é decisivo tratar de
li lllU fala do locutor-jornalista que ele não pode ser. Este tipo de guestão como se dá a assunção da palavra. Diremos que ela se dá em cenas
I xtrernamente importante para dar um sentido lli it Ol e ao modo enunciativas. Uma cena enun.ciativa se caracteriza or constituir modos
x rnoestamos considerando a divisão do Locutor que, ao desconhecer específicos de acesso à palavra dadas as relações entre as figuras da
lU fala de um lugar social, desconhece que seus lugares de fala foram enunciação e as fOrnJas lingüísticas. .,.
dividos e i . ec e conhecimento é o Este conceito aparece definido pela primeira vez em Texto e Argu-
pr prio do político no acontecimento de linguagem. mentação (Guimarães, 1987), quando estudei as mudanças que levaram
o em.bora de expressão adverbial a conjunção . .fenas são especificações
Antes de terminar estas considerações sobre o político quero reto- lOCaISnos espaços de enunciação.
mar as distinções entre arqui-politica, para-política e meta-política. Diria, A Cena enunciativa é assim um espaço particularizado por uma
Il retomá-Ia, que uma abordagem sociolingüística quantitativa, enquan- deontologia específica de distribuição dos lugares de enunciação no acon-
tal, opera com o conceito de para-política, já que suas descrições tecimento. Os lugares enunciativos são configurações específicas' do
di tribuern para cada um o quesé seu, neutralizando o conflito por um agenciarriento enunciativo para "aquele que fala" e "aquele para quem se
pl c dimento descritivo do que é de cada um. Ao lado disso ela pode fala". Na cena enunciativa "aquele que fala" ou "a uele ara uem se
t I orar por acréscimo, não exatamente por seu dizer científico, como meta- fala" não são pessoas mas uma confi Ufa ão do agenciamento enunciativo.
I oltuca, como forma de denunciar a distribuição do que é de cada um Sao. ligares constituídos pelos dizeres e não pessoas donas cle...se·zer.
I lira cada um. Ou seja, ou ela integra o conflito ou pode falar sobre ele. Assim estudá-Ia é necessariamente considerar o ró rio modo onsrí,
O Espaço de enunciação é assim decisivo para se tomar a enunciaxão tmçao estes lugares pelo funcionamento da língua.
!TI uma rática política e não individual ou subjetiva, nem como uma Esta distribuição de lugares se faz pela temporalização própria do
Iistribuição estratificada de características. Falar é assumir a palavra nes- acontecimento. Neste sentido a temporalidade específica do acontecimento
I :pa o 'v'd de lín uas e falantes. E sempre, aSSIm, uma obediênei é fundamento da cena enunciativa.
-/ li uma dis uta. Se é Que se pode falar em simples Q.bed·êucia. - Na continuidade do que vimos colocando desde Texto e Argumenta-
Enunciar é estar na língua em funcinamento. E a lín ua nã ção, podemos considerar que assumir a palavra é por-se no lugar que
II( t 'mpo.,..1llâspe as re açoes semiológicas que tem. A língua funciona no enuncia, o lugar do Locutor que vou chamar de Locutor (com maiúscu-
11' nt cimento, pelo acontecimento, e não pela assunção de urn indivíduo., la), ou simplesmente L". L é então o lugar que se representa no próprio
N ste sentido, diríamos, a enuncia ão se dá 120ragenciamentos es- dizer como fonte deste dizer. E desta maneira representa o tempo do dizer
J t' '(ri s a língua. No.aconteeimento o-que se-dá-é-um ag amento
I (lI Ii da enunciação. este.embate.entr lí!1g-IJas-e-fa1ant~<l2ró12rio 18. Como se verá no que segue, retomo aqui o que Ducrot chamou de polifonia da enunciação,
d, •. I aços de enunciação, os falantes são tomados ar agenciamentos aprofundando a diferença que eu já apresentava em Texto e Argumentação, pela conside-
ração do locutor enquanto pessoa como socialmente constituído. Isto me levou a, inclusi-
1'111111 'inliv 5, confi uradõSpo ·tiCjl ~- - - --
ve, usar de maneira diferente os termos locutor e enunciador que Ducrot distingue e que
Anã de agenciamento da enunciação está aqui a partir do que também distingo, mas já num outro quadro de categorias, onde procuro caracterisar não a
I kl"IIZ -, uattari (1980) colocam em Mille Plateaux, ao caracteriza- multiplicação das figuras da enunciação, mas sua divisão.

,, 23
c mo contemporâneo deste mesmo L, e assim representa o dizer como o de ciência para cientistas brasileiros, mas não é a língua puru u Il'j'l I1 li 1
que está no presente constituído por este L. brasileira, não é a língua de um ato de decretar, por exernpl .
< Mas esta representação de origem do dizer, na sua própria represen- Passemos para um outro aspecto da questão. Tomemos um CI1UI\ • ,I
tação de unidade e de parâmetro do tempo se divide porque para se estar do do cotidiano como "eu prometo que vou a sua casa". Aqui parece s .
no Iugar de L é necessário estar afetado Qelos lugares sociais autorizados poder dizer que a promessa é do eu dado como origem da promessa, distin-
a falar, e de que modo, e em que língua (enquanto falantes). Ou seja, para to do eu de vou, aquele que deverá cumprir a promessa. Ao contrário disso
o Locutor se re resentar como origem do ~enuncia, é Rreciso ~e' diria que neste caso a expressão da primeira pessoa em prometo é só a
~e não seja ele ró rio, mas um lugar social de locutor. Tomemos um marca da representação da origem, marca que representa seu presente como
exemplo inicial. Se o Presidente da República, ou um Governador de o tempo do dizer. Ou seja, este eu é a representação de que não há lugar
Estado Decreta X, ele o faz não porque alguém se dá a si ser a origem do social no dizer. É, de um lado, a marca do desconhecimento do Locutor a
que Decreta, mas porque enquanto Presidente (falante de Português) ele propósito do lugar do qual fala: de amigo, de pai, de filho, de vendedor, etc.
pode se dar como origem daquilo que Decreta, ou melhor, do próprio ato Ou seja, de que lugar pode prometer algo a alguém? Em outras palavras, o
de decretar. O que significa dizer que assumir a palavra para decretar só eu do Locutor é o eu que não sabe que fala em uma cena enunciativaÉ
é possível na medida em que o Locutor, que se dá como origem do decre- assim um eu que desconhece que fala de algum lugar. A tal ponto que se
to, só o é enquanto constituído como um lugar social de locutor, ou seja, toma como a pessoa, meramente enquanto tal, que deverá cumprir sua
o locutor-presidente que fala em Língua Portuguesa, Em outras palavras, própria promessa. Aqui o lugar de Locutor se representa como lugar de
o Locutor só ode fala 1 nto 12red' ar lJmlng c'. A este dizer simplesmente. E neste caso um Lugarde dizer que se representa como
ugar social do locutor chamaremos de locutor-x, onde o locutor (com individual". Vou chamar este lugar de dizer de enunciador. Considerare-
minúscula) sempre vem predicado por um lugar social que a variável x mos, no caso em análise, que se trata ele um enunciador-individual. Ou
representa (presidente, governador, etc). Assim é preciso distinguiLo seja, estamos diante de uma enunciação que se dá como independente da
Locutor do lugar social do locutor, e é só enq uanto ele se dá como lugar história pela representação desta individualidade a partir da qual se pode
sociar( oci que--e:te tlá-cô'ffilj ocutor. Ou se' a, o Locutor é dís}2ar falar, O enunciador-individual, enquanto um lugar de dizer, traz um aspec-
a si. Sem esta isparidade não há enuncia ~ - to específico para isto que estamos chamando lugares de enunciação. É a
Deste modo, no aconte.cimento de emmcjação há uma dis aridade representação de um lugar como aquele que está acima de todos, como
constitutiva do Locutor e do 10 l:e o presente aquele que retira o dizer de sua circunstancialidade. E ao fazer isso repr -
do ocutor e a temporalidade do acontecimento. 19 senta a linguagem como independente da história.
Esta distinção pode ser diretamente mostrada, no caso do ato de Um outro lu i a resenta como o apagament d
decretar, pelo próprio modo de dizer o decreto, que se dá em formas do lugar social, é o enunciador-genéric. Pensemos aqui em ditos pop (-
tipo "O Presidente da República, no uso de suas atribuições, decreta ...". lares como "Quem . c e tempestade". Neste caso o L u-
Neste caso o Locutor está diretamente separado do locutor-x que decreta. tor também simula ser a origem do que aqui se diz. Mas o que aí e d iz ~
O Locutor é sempre locutor-presidente, locutor-índio, locutor-consumi- dito, não de um lugar individual, independente de qualquer cont xt , 1l1H.
dor, locutor-jornalista, etc. No caso do decreto, o locutor-presidente é é dito do lugar de um acordo sobre o sentido de repetir o dito [ pulnr,
falante da Língua Portuguesa. Ou seja, não há decreto do presidente a que se diz é dito como aquilo que todos dizem. Um todos qu . S • :\P" "I 111 I
não ser em Língua Portuguesa. Esta configuração do espaço de enunciação, como diluído numa indefinição de fronteiras para o conjunt d .. ,1 1111" 1
pela exclusão de qualquer outra língua, está diretamente regulada pela O enunciador se mostra como dizendo com todos o, 11(1'( li: I lllll 111
definição da Língua Portuguesa corno língua do Estado Brasileiro. Neste como um indivíduo que escolhe falar tal como utr H j\lcllVhllll1 111II1

lu ar de inseparabilidade da língua e do Estado está o ponto da máxima outra forma de se apresentar como independent . d i h .1111 I
['.' ist"ncia a outras línguas, o Inglês por exemplo, que pode até ser língua 20. Isto significa dizer que as teorias dos atos de fala I IlIllpl 1111111 111111 11111 lt
lI), L mbro aqui Ranciêre (1992), que numa análise enunciativa do discurso da história, diz fundamental, o de que um ato de linguagem 1H 11111 \ li, 11111111 1111 I1 I

'111 sujeito falante é anacrônico. um sentido, por um agenciamento enunciativo 111'1 til 11
Ainda um outro caso. Quando se faz uma afirmação sem qualquer o modo de nomear, o agenciamento enunciativo específico da nomeação é
nuxluliza ão como "Todas as pessoas morrem", o enunciador, ao se apre- elemento constituti vo da designação de um nome. Da mesma maneira
I nuir mo o lugar do dizer, apresenta-se como quem diz algo verdadei- que as referências feitas com um nome, ou as referências feitas por ou-
1'( .m virtude da relação do que diz com os fatos. O que esta representa-
tros nomes, como substitutivos do nome, em um texto, são também ele-
'I ignifica? Significa a identificação do lugar do enunciador com o mentos constitutivos da designação ..
lugar do universal. Ou seja, um lugar de dizer que se apresenta como não No caso da relação entre designação e nomeação, o que se deve
, ndo social, como estandojorc da história, ou melhor, acima dela, Este observar é uma relação entre enunciações, entre acontecimentos de lin-
lugar representa um lugar de enunciação como sendo o lugar do qual se guagem. Num acontecimento em que um certo nome funciona a nomea-
diz sobre o mundo. O enunciador-universal é um lugar que significa o ção é recortada como memorável por temporal idades específicas. Para o
L cutor como submetido ao regime do verdadeiro e do falso. Este lugar é estudo dos nomes próprios vamos tormar este aspecto como fundamento
próprio do discurso científico, embora não seja exclusivo dele. A afirma- de nossa análise.
ção acima, por exemplo, não é exclusiva do discurso científico. No caso da relação entre designação e referência, o que se deve buscar
Consideramos, então, que a cena enunciativa coloca em jogo, de é como um nome aparece referindo no texto em que ocorre. Assim é funda-
um lado, lugares sociais do locutor, papéis enunciativos como locutor- mental observar como o nome está relacionado pela textualidade com outros
brasileiro, locutor-presidente, locutor-jornalista, locutor-professor, lo- nomes ali funcionando sob a aparência da substituibilidade. Neste caso os
cutor-índio, locutor-consumidor, etc. O Locutor não se apresenta senão conjuntos de modos de referir organizados em tomo de um nome são um
enquanto predicado por um Iugar social distribuído por uma deontologia modo de determiná-Ia, de predicá-lo. E neste sentido é que constituem a de-
do dizer. De que lugares sociais é possível dizer o que se diz e deste signação do nome em questão. Chamo a atenção aqui para o fato de que,
modo? deste ponto de vista, a relação de predicação a que me refiro aqui se dá por
Por outro lado, a cena enunciativa coloca emjogo, também, lugares sobre a segmentalidade, ou seja, por sobre as fronteiras dos enunciados.
de dizer que estamos aqui chamando de enunciadores. E estes se apresen- Para enfrentar este último tipo de análise, apresento a seguir o que
tam sempre como a representggão da inexistência dos lugares sociais de venho considerando como um processo de reescritura" próprio, para
locutor. E embora sempre se apresentem como independentes da história mim, das relações de textualidade. Com este tipo de análise vou estudar
ou fora da história, são lugares próprios de uma história. Temos então um conjunto de designações de nomes comuns.
enunciadores como: enunciador-individual, quando a enunciação repre- Para caracterizar aqui o proceclimento da reescrituração retomo a aná-
senta o Locutor como independente da história; enuociaclor-genérico, lise que fiz do os no texto da Constituição do Império do Brasil na seqüência
quando a enunciação representa o Locutor como difuso num todos em "São cidadãos Brasileiros .
que o indivíduo fala como e com outros indivíduos; enunciador-univer- r Os que no Brasil tiverem nascido ..."
sal, quando a enunciação representa o Locutor como fora da história Esta análise (Guimarães, 1991a) mostra pelo menos duas possibili-
submetido ao regime do verdadeiro e do falso. dades de interpetação do os: uma anafórica e outra dêitica. Ela mostra
como, ao estabelecer um ponto de interpretação no texto (os) relativa-
X 5. ENUNCIAÇÃO, REESCRITURA, TEXTUALIDADE mente a outro (o antecedente do os), o que se tem é uma falta de relação
unívoca entre estes dois pontos.
Como dissemos anteriormente, para nós o sentido de uma expressão De acordo com esta análise, considero que procedimentos como
pode ser analisado como seu modo de integração num enunciado, en- anáfora, catáfora, repetição, substituição, elipse/etc, são procedimen-
quanto elemento de um texto. Deste modo, a relação integrativa é vista tos de deriva" do sentido próprios da textualidade. O que significa di-
aqui como uma relação não segmental. A seguir procuro constituir um zer que é este processo que constitui o sentido destas expressões, bem
modo de operar esta relação. 21. cr. Guimarães (1999b).
Vamos, para nosso estudo da designação, observar a relação entre 22. A palavra deriva deve ser tomada no sentido que lhe deu Pêcheux (1983) em Discurso.
Estrutura 011 Acontecimento. .
designar e nomear, de um lado, e de designar e referir, de outro. Ou seja,

26 27
como que não há texto sem o processo de deriva de sentidos, sem 6. CENA ENUNCIATIVA E DIVISÃ R
reescrituração. Esta deri va enunciativa incessante é que constitui, a um
só tempo, os sentidos e o texto. O interessante desta deriva é que ela se Voltemos ao enunciado "O Presidente a R 'I 11111 k I, 1111111 III suas
dá exatamente nos pontos de estabelecimentos de identificação de se- atribuições, Decreta ...". Se caracterizamos que () I,(u 111111 I, l'IICI"IIIlI(
melhanças, de correspondências, de igualdade, de retificações. Quando lugar social, é o locutor-presidente, que figura de 111111 IlrlllI 1i I lia'
uma forma se dá como igual/correspondente a outra (a anaforiza, a Não parece ser um enunciador individual. Podem ,'dizll 11'11 I 1111111111
substitui, etc), o sentido está se fazendo como diferença e constitui um enunciador-universal. Ou seja, a enunciação do n 111 11111 III 11111 I
textualidade. O procedimento de reescrituração no texto faz com que um dizer que se apresenta como válido para todos e cada uni '11111 1111111
algo do texto seja interpretado como diferente de si. E analisar a desig- as situações descritas no Decreta ... O que aí se enuncia nu . ( 1111111 11
nação de uma palavra é ver como sua presença no texto constitui como independente da história, mas como fora da história, c 111 v IIldl1
predicações por sobre a segmentalidade do texto, e que produzem o para qualquer fato como aquilo que vai dirigir os fatos. Podem s dl/,( I
sentido da designação. que o Locutor está aqui dividido por ser a um tempo o locutor-pr id '111\'
O que pretendo dizer é que as questões tomadas como procedi- e o enunciador-universal.
mentos de textualidade são procedimentos de reescritura. Ou seja, são O que isto coloca de saída é que o sentido da enunciação é produ-
procedimentos pelos quais a enunciação de um texto rediz insistente- zido por esta divisão, por esta disparidade do Locutor a si. A questão
mente o que já foi dito. Assim a textual idade e o sentido das expressões está em como explicar esta divisão própria do Decreta, que seria dife-
se constitui pelo texto por esta reescrituração infinita da linguagem que rente, por exemplo, de um caso em que o Presidente da República dis-
se dá como finita pelo acontecimento (e sua temporalidade) em que se sesse "Quem semeia vento colhe tempestade" (suponhamos que ele o
enuncia. tenha dito como comentário a uma ação política da oposição). Como
A reescrituração é uma operação que significa, na temporalidade do poderíamos descrever esta enunciação? Diríamos que há aí um locutor-
acontecimento, o seu presente. A reescrituração é a pontuação constante presidente que fala do lugar de enunciador-genérico (não se trata, en-
de uma duração temporal daquifo que ocorre. E ao reescriturar, ao fazer tão, de enunciador universal, como no caso anterior), Esta divisão se
interpretar algo como diferente de si, este procedimento atribui (predica) faz num acontecimento cuja temporalidade recorta uma memória de
algo ao reescriturado. E o que ele atribui? Aquilo que a própria dizeres populares estereotipados. Uma enunciação como essa, ao pro-
reescrituração recorta como passado, como memorável. No caso do exem- duzir esta nova divisão do Locutor, produz sentidos como "o Presiden-
plo acima, na medida que o os reescritura cidadãos, nos dá, pela inter- te ameaçou a oposição, acusou a oposição de semear vento, discórdia,
pretação anafórica, a preexistência do sentido de cidadão, que ao mesmo etc", a partir de um dizer que não é só seu, mas é de todos. O locutor-
tempo é predicado pela sobreposição da interpretação dêitica, que coloca presidente toma o enunciador-genérico como argumento para si. A sua
em circulação a preexistência do sentido de pessoa, de indivíduo. E esse voz é como a voz de todos, por isso ele fala com razão. E este enunciador-
movimento de predicação na duração do presente pelo memorável signi- genérico produz aí o efeito de que ele não fala como presidente mas
fica porque projeta um futuro, o tempo da interpretação no depois do como um do todos, do povo.
acontecimento no qual o reescriturado é refeito pelo reescriturante. Como dissemos antes, esta distribuição de lugares se constitui pelo
Deste modo minha posição é radicalmente anticomposicional. Ou acontecimento por sua própria temporalização. Ou seja, no caso do De-
seja, ó sentido de uma expressão não é construído e .d e suas ereta-X a temporalidade do acontecimento enunciativo é o presente que
partes. O sentido é constituído elo modo de relação de uma expressão ele (acontecimento) constitui e é uma memória, um passado de dizeres,
com outras expressões do texto, tal como exemp lfiquei acima a proposi- que autoriza o Presidente decretar e decretar-x. Por exemplo, é preciso
to de ci adão. Só assim se torna possível deixar intervir na descrição o que x não tenha sido decretado, que x não diga o contrário de algo cons-
sentido os rememorados que os diversos pontos de um texto recortam. titucional, etc. O decreta x tem como seu passado esta memória d I i •
II eja, a descrição do sentido não pode se limitar ao estudo do funcio- que aí está com o presente do acontecimento. Por outr lad • . III me
liam nto do enunciado. Este é parte da questão e não seu lugar. mória faz sentido no acontecimento porque para um d 'I ( l.' lI! 1\ 1,'(1

H I)
prio. Ou seja, se o presente não inclui nele mesmo uma projeção de um
administrativo, o enunciador-universal pode ser o lugar de dizer que apa-
depois não há Decreta X, não há "lei" senão para projetar um futuro de
ga o locutor-presidente. Mas este mesmo enunciador-universal pode ser
sentidos (de obrigações).
o lugar que fala a partir da posição do discurso científico. O que pode
tanto deslocar, por exemplo, Femando Herinque Cardoso (que hoje ocu-
7. LUGARES DE ENUNCIAÇÃO E POSIÇÃO DE SUJEITO
pa a Presidência da República no Brasil) do lugar de locutor-presidente
para o de locutor-sociólogo, como não. Nada impede que da posição de
Este funcionamento do Locutor dividido pelo próprio jogo de se
sujeito científico o lugar do dizer seja o enunciador-uni versal e o lugar
representar como idêntico a si, quando se lhe é díspare, é o processo pelo
social seja o de locutor-presidente. Tantas vezes o atual presidente mobi-
qual a enunciação apaga seu caráter social e histórico. Podería~os per-
lizou argumentações próprias da economia, da sociologia, etc, enuncian-
guntar: por que o Locutor é significado no acontecimento como mdepen-
do do lugar de presidente. Mas não deixa de ser interessante ver como
dente ou fora da história? Por que este colocar-se à margem da história se
falar do lugar do presidente a partir de uma posição do discurso científi-
produz por este modo de representação dos lugares de dizer (enunciado~)
co é diferente de falar do lugar do presidente a partir de uma posição do
como apagamento do lugar social do locutor (locutores-x)? O que expli-
discurso jurídico, como no caso do Decreta, ou de uma posição no dis-
ca estas divisões do Locutor que funcionam produzindo o apagamento do
curso político, como no caso do dito popular "Quem semeia vento, colhe
social e da história?
tempestade". E observe-se que o passado (memorável) do acontecimento
Como colocamos antes, para nosso ponto de vista, falar e fazer-se su- é em cada caso outro.
jeito é estar numa região do. ~te~discurso, dÇi uma memória ~e sentjdQ~
(Orlandi, 1999). Assim ser sujeito e estar afetado por este esquecunento que
se significa nesta posição. Deste modo a representação do Locutor se consti-
tui neste esquecimento e é isto que divide o Locutor e apaga o locutor-x.
Voltemos ao caso do Decreta de um lado e ao caso do dito popular
de outro. No primeiro cas? ? ~ar social de p~~siden.te é apresentado
como voz universal e o sujeito fala de uma regiao do interdiscurso (da
posição de sujeito jurídico-liberal). Falar desta posição de sujeito e nesta
cena enunciativa dá sentido ao apagamento das configurações sociais e
assim às disputas, dissimetrias do dizer (os conflitos próprios do lugar
social do locutor-x), pela representação do Locutor enquanto enunciador-
universal. Já no caso do dito popular, o sujeito fala de uma outra região
do interdiscurso (posição de sujeito), a do senso comum. Posição que dá
ao todos a sabedoria irrefletida pela qual o Presidente não se diz Presi-
dente mas um dos que lhe são historicamente dissimétricos.
As duas caracterizações acima poderiam levar a pensar que a figura
do enunciador não é nada mais do que uma repetição da questão da posi-
ção do sujeito. Mas não é o caso. O enunciador-universal, por exemplo,
pode ser o lugar do dizer de enunciações para as quais a posição do
sujeito no interdiscurso é a do discurso jurídico-liberal, como no caso do
Decreta X. Poderia ser, por outro lado, o lugar de dizer de enunciações
em que o sujeito estivesse na posição de sujeito administrativo, ou cientí-
fico. E estas diferenças levam a relações di versas entre o lugar de dizer e
o lugar social do dizer. Da posição do discurso jurídico e do discurso

30
CAPÍTULO II

o lVOME PRÓPRIO DE PESSOA23

Tomemos agora o objeto de que nos ocuparemos de modo específi-


co, o funcionamento da designação. Inicio pelo estudo da designação dos
nomes próprios de pessoa.
.Pensar o nome próprio de pessoa nos coloca diante da relação nome/
coisa, na qual se considera que se está diante dos casos em que se tem um
nome único para um objeto único. Por outro lado se coloca a questão de
que há uma relação particular: o nome único é nome de uma pessoa úni-
ca. Ou seja, estamos na situação em que o nome está em relação com
aqueles que falam, que são sujeito no dizer. Isto por si só resignifica a
questão da relação nome/coisa, na medida em que a relação é nome/pes-
soa, nome/falante, nome/sujeito.
Um outro aspecto importante a considerar é que a relação nome
único/objeto único pode levar a uma hipótese de unicidade do nome.
Vamos, neste capítulo, procurar discutir as questões acima a partir
de uma posição enunciati va tal como acabamos de configurar. Como se
verá, o estudo do nome próprio de pessoa leva a recolocar fortemente as
questões relativas ao domínio que pensa a relação da linguagem com o
mundo e com o sujeito.
Observaremos, inicialmente, os aspectos morfossintáticos (um modo
de construção) do funcionamento do nome próprio de pessoa e em segui-
da seus aspectos sernântico-enunciativos.

1. FUNCIONAMENTO MORFOSSINT ÁTICO

Se tomamos nomes próprios tal como os exist nll •.' 1111111 I 111 I
dade, encontramos nomes como: Getúlio Dom llcs f/l1l//I, /",Ii'/
23, Esta seção retoma parte do que disse em "Designnçl ,'p,,', 11\ 111 11111110
mimeo. Faz também parte, com algumas dif I' 1\1,' I ,di /I 111111h I I !
dos sobre designação em Guimarães (1 In, 1'11)Ili I '1'1 I1
Marques Goulart, Antônio Cândido de Meio e Souza, Joaquim Mattoso Hermes Rodrigues da Fonseca. Nestes casos vê-se a ligação entre o nome
Câmara Júnior; João Café Filho. e.o sobrenome ~eita por uma preposição e um determin~nte (artigo) as-
Nestes nomes, como em outros, vamos encontrar nomeações que se SIm com? uma hga~ão entre os sobrenomes, da mesma forma. A presen-
formam a partir da combinação de dois tipos de nome: Os nomes e os ça do artigo traz mais um aspecto das determinações que se podem dar na
sobrenomes. Ou seja, temos uma classe de nomes como Getúlio, João, constituição do nome próprio
Belchiot; Antônio, Cândido, Joaquim, e outra de nomes como Vargas, Esta observação inicial já nos leva a considerar que o nome próprio
Marques, Goulart, Meio, Souza, Mattoso, Câmara, Café. ~e pessoa é, na nossa sociedade, urna construção em que relações semân-
Além disso temos nomes de uma terceira classe como Júnior e tlca~ de determinação constituem o nome, o que já nos afasta de posições
Filho. e.stnt~me~te refer~ncias ou cognitivas no estudo do nome próprio. Isto
O que se observa é que o nome próprio de pessoa, que é apresentado ficará mais claro ainda pelas análises que se seguem.
como um nome único para uma pessoa única, é na verdade uma construção
tal que um sobrenome determina um nome": Por exemplo, Marques e 2. O FUNCIONAMENTO SEMÂNTICO-ENUNCIATIVO
Goulart determinam João Belchior. Há que se considerar aqui que nome e
sobrenome podem ter uma relação de determinação interna através de um . Antes de analisar aspectos específicos deste funcionamento, é pre-
procedimento de aposição de um nome ou sobrenome ao outro. Voltemos à CISO observar que a nomeação de pessoas se dá no espaço de enunciação
determinação do nome pelo sobrenome. Ela diz que este João Belchior é da Língua Oficial do Estado, a Língua Nacional, como homogênea. Ob-
um Marques Goulart. É da Família Marques Goulart. Ou seja, o funcio- serve, por exemplo, os nomes acima apresentados, e considere a incum-
namento do nome próprio de pessoa é construído por uma determinação. bência da autoridade responsável pelo registro de crianças em não aceitar
Se observarmos, ainda, o funcionamento de nomes da terceira clas- nomes "for~ de propósito". É pensando neste espaço de enunciação que
se (Júnior, Filho), vamos ver que estas palavras têm também um funcio- vamos aqUI observar como a nomeação constitui a designação de um
namento determinativo que se caracteriza por estabelecer uma distinção nome próprio de pessoa. Consideraremos, nos textos nos quais se apre-
entre nomes iguais. Joaquinyõâattoso Câmara Júnior é o Joaquim dos senta, as relações do funcionamento designativo do nome prórpio com as
Mattoso Câmara que é filho de um outro Joaquim dos Mattoso Câmara. enunciações de nomeação (nas quais um nome é atribuído a uma pessoa).
Ou seja, há Uma constituição morfossintática do nome próprio de Tomaremos para isso quatro aspectos.
pessoa e ela se dá como relações de determinação que especificam algo A) O ato de dar nome a uma pessoa, na nossa sociedade, pelos pais;
sobre o que se nomeia. E estas relações são restrições que determinam o B) Relativamente ao item A, o que nos diria o fato de que em cada
modo de nomear alguém. ~poca há nomes predominantes, que são mais usados? (Reportagem de
Um outro aspecto interessante a observar é que a relação entre o Jo~al de cerca de quatro ou cinco anos dava conta de que o nome predo-
sobrenome e o nome se dá tanto por uma justaposição, como em Getúlio rrunante naquele momento era Bruno, para os meninos);
Dornelles Vargas quanto através de preposição, como é o caso de Antô- C) Por que alguém que foi nomeado
.nio Cândido de Melo e Souza, em que o de liga Melo e Souza a Antônio a) Antônio Cândido de Meio e Souza é no uso corrente Antônio
Cândido. Aqui se observa também que os sobrenomes, quando mais de Cândido?
um, podem vir justapostos como em Mattoso Câmara, ou articulados b) Maximino de Araújo Maciel é Maximino MacieZ?
por uma conjunção, como em Meio e Souza". D) No serviço militar alguém que se chama João Roberto Rodrigues da
As ligações entre o nome e o sobrenome podem se dar ainda com Silva pode ser João ou Roberto ou Rodrigues ou Silva, e mesmo da Silva?
algumas variações como as que estão em Epitácio da Silva Pessoa, A análise destes aspectos põe de início a questão sobre o funciona-
.mento do nome próprio que se constitui como a busca de uma unicidade.
24. Voltaremos depois sobre esta questão da determinação, que do ponto de vista semântico- Ou seja, um nome para uma única pessoa. Unicidade que o funcionamen-
enunciativo é mais complexa e contém também a determinação do nome sobre o sobrenome.
to morfossintático mostra que é, em verdade, uma construção de relações
5. Não deixa de ter interesse observar como a ortografia, Souza ou Sousa, por exemplo, faz
parte destes mecanismos deterrninativos e identificadores. lingüísticas e não uma relação direta.entre palavra e objeto. Como vimos,

35
um nome de pessoa é uma construção com determinações de um certo moráveisos nomesdisponív is c 111\11'11111111""111 ,1'1I.priosdesua
tipo. A questão interessante é procurar saber o que significa esta constru- época. Assim se este enunciador aplll', 1 11I" \I I, I t t I '11111 in no
ção de unicidade do nome próprio. mesmo tempo, como moderno.
MinhJlhipó e e u! é ue esta unicidade é um efe'to d unciona- O processo enunciativo da nomeação I ( di', 1111, 1\
mento do nome próprio como rocesso de identifica ão social do Que~e de dizer diferentes, o que diz respeito ao fato de (111\11111I
nomeia. Isto aIl_a cQntQ.I!lQs~sp ciais e muito articulares no caso dos..•
n;;-mes próprios de pessoa porgue.Jles~caso o funcionamento do nome SI(
nomeia pode estar citando enunciações diversas. N I I t"
alguns anos, a enunciação do pai cita a enunciaçã di \1\ I
çÍá..n.cLpmcessosocial cLe-.s.ubjetivação.Ou seja, passa a ser.nma.questãc tidos como modernos, engajados no seu presente. Lernbr '1.111
do sujeito. .como muitas crianças chamaram-se Donizete, no Brasil, nUI" 1111111
Vamos, então, para refletir sobre esta questão fundamental, tomar mento, por causa de um padre cujo sobrenome era Donizete. As 1l1l111I
OS quatro aspectos há pouco colocados. ções dos pais citam as enunciações que nomearam tal padre Doniz 'l .
2.1. Tomemos o caso A. Dar nome a uma criança é uma "obriga- Isto se dá por um acontecimento que recorta uma outra memorialidade ele
ção" dos pais que a devem registrar. E é uma "obrigação" estabelecida nomes no espaço da contemporaneidade, o das celebridades. Em oposi-
pela lei (um conjunto de textos específicos), que obriga os pais a registra- ção a isso se pode ter, e se tem, casos de pais que adotam nomes que
rem um recém-nascido. Os pais devem solicitar ao cartório a emissão de parecem não estar disponíveis num certo momento. Neste caso são ou-
uma certidão, um texto sustentado pela lei, que nomeia e inclui o nomea- tras as enunciações citadas.
do no Estado, com as obrigações e direitos advindos desta inclusão. Dar Esta questão mostra, ao mesmo tempo, que nas nomeações podem-
nome a uma pessoa se faz, então, do lugar da paternidade (locutor-pai) se cruzar regiões diferentes do interdiscurso (posições de sujeito diferen-
que se configura como um lugar social bem caracterizado. Não é a pater- tes). No Caso do nome Bruno a posição de sujeito é a jurídico-liberal, no
nidade biológica que interessa no processo, embora o direito coloque a caso de Donizete cruzam-se duas posições de sujeito, de um lado ajurídi-
relação biológica como elemento do lugar da paternidade. Mas os pais co-liberal (aquela da qual se nomeia por obrigação do Estado) e de outro
nomeiam como aqueles que esçelhem, segundo querem, um nome. Te- a posição de sujeito religioso. O agenciamento enunciativo específico é
mos, então, um enunciador-individual. A representação deste enunciador afetado pela memória do dizer, pelo interdiscurso.
apaga a constituição do Locutor pela rede jurídica que o instala como A análise acima nos leva a dizer que o nome determina, na constru-
pai, no espaço enunciativo da Língua Portuguesa, com certas obrigações ção do nome de pessoa, o sobrenome. Se alguém é nomeado Donizete da
de dizer (dar nomes aos filhos, por exemplo). Silva, o é por urna memorialidade de nomes célebres enunciada de uma
Dar nome é, assim, identificar um indi víduo biológico enquanto in- posição de sujeito religioso. Assim Donizete determina da Silva, na me-
divíduo para o Estado e para a sociedade, é tomá-Io como sujeito. Deste dida em que particulariza um da Silva a partir desta posição religiosa.
ponto de vista ganha interesse o funcionamento deterrninativo da cons- Do mesmo modo que o da Silva, como qualquer sobrenome, ver o que
trução do nome próprio de pessoa. No caso de Antônio Cândido de Melo disse em 2.1, particulariza um Donizete, que não é só este. São muitos os
e Souza, por exemplo, nomeá-lo é colocá-lo na relação social como o que naquele momento se chamaram Donizete, como em outro caso Bru-
Antônio Cândido dos Meio e Souza. É colocá-lo na sociedade com uma no. Estar num lugar enunciativo e nomear uma criança é particularizar
identificação. um dos Silva, Meio, etc. É interessante observar aqui a articulação da
2.2. Vejamos o aspecto B. Ele mostra, claramente, que a "escolha" temporalidacle do acontecimento, um memorável contemporâneo de c I'·
d nome não é uma escolha. Sua "origem" não é nem o locutor-pai (lugar bridades, e a posição de sujeito religioso no interdiscurso
social) nem o enunciador-individual (lugar de dizer). O Locutor se repre- Mais uma vez a construção do nome opera enunciativam '111\:1111
cota, na escolha do nome Bruno, como um enunciador-contemporâneo, processo de identificação social do indivíduo. Um Donizete da Sil1'll I
qu e caracteriza por enunciar tal como se "escolhe" enunciar num certo um Donizete que configura os da Silva, mesmo qu d" dll,l I
1111':11'
111 mente. Ou seja, a "escolha" do nome se dá segundo um agenciamento (enunciador-individual) apresente a nomeação como a .sc lha li' 1111111111111
'nUI1 iativo específico. Este acontecimento de nomear recorta como me- para particularizar um ser biológico específico.

\/
2.3. Agora o aspecto C. Primeiro há que se registrar que ao lado da dois Rodrigues eles "não são homônimos" porque a enunciação de um
nomeação dos pais, há um processo de designação que se dá para alguém, como Rodrigues se dá a partir de um acontecimento enunciativo que o
a partir da enunciação dos pais, mas num processo de certa forma distinto. nomeou João Rodrigues distinto daquele que nomeou João Rodrigues ao
Deste modo o nome que é dado do lugar do pai é alterado no proces- outro. Da mesma forma, se se encontram dois Antônio Cândido, um é
so da vida social em que o indivíduo está e acaba por se reduzir, modifi- aquele nomeado antes Antônio Cândido de MeZo e Souza e o outro é o
car. Por exemplo, Antônio Cândido de Meio e Souza toma-se Antônio nomeado antes Antônio Cândido X.
Cândido por um trabalho enunciativo sobre a enunciação inicial que re- Este percurso social do nome, e ele não é homogêno para todas as
gistrouum nome para a pessoa. A mesma coisa se dá para Maximino de pessoas (que inclui a reformulação por um enunciador-coletivo ou gené-
Araújo MacieZ que se toma Maximino Maciel. São outros lugares de rico de uma enunciação de um locutor-pai), é o que faz com que o nome
enunciação que renomeiam o que se nomeou do lugar do pai. Este jogo de funcione como se fosse uma unidade não construída que tem uma relação
enunciar a partir de outras enunciações refaz a temporalidade do primei- unívoca com algum objeto, a pessoa que o nome nomeia. Na medida em
ro acontecimento, exatamente por tomá-lo diretamente como o remem orado que o acontecimento em que fala um enunciador-coleti vo ou genérico tem
que o presente do segundo acontecimento modifica. como passado a enunciação de um locutor-pai, a unicidade se representa
Diríamos que há duas direções diferentes operando: em uma opera como efeito da temporalidade do acontecimento. Esta memória coloca
uma "individualização", em outra opera a relação de família. Aqui se uma relação um pai/um filho/um nome. Ou seja, a unicidade ~ um resul-
poderia ver porque alguém cujo nome fosse João Rodrigues passa a ser tado da não unicidade de um nome para a mesma pessoa. E porque a
João ou então Rodrigues. nomeação de uma pessoa não é unívoca, ou seja, uma pessoa não tem no
No primeiro caso, tem-se uma enunciação que inclui a nomeação processo de sua vida social um único nome, que o nome pró~rio de pes-
inicial (feita do lugar da paternidade, por um enunciador-individual) pela soa acaba por mostrar-se como funcionando univocamente. E o trabalho
desmontagem da determinação do sobrenome sobre o nome. Isto se dá de uma enunciação segunda sobre a enunciação da paternidade pelo Es-
por um locutor-x que enuncia como um enunciador-coletivo. tado que desfaz a relação de determinação entre o nome e o sobrenome.
O enunciador-coletivo é este lugar de dizer que se caracteriza por 2.4. Por fim o caso D. O lugar do qual se nomeia neste caso é, de
ser a voz de todos como uma-tlnica voz. uma maneira direta, o que toma explicitamente a necessidade do único
No segundo caso tem-se o mesmo processo de uma enunciação que como característica do nome próprio, como característica da designação:
toma outra enunciação, agora pela desmontagem da determinação do nome como a dizer que se a sociedade não respeita esta unicidade, a corporação
sobre o sobrenome. E isto se dá por um locutor-x que enuncia como um deve repô-Ia. Ou seja, se há dois João Rodrigues, um deve ser João e
enunciador-genérico. Esta diferença está, para mim, ligada à diferença outro Rodrigues. Aqui está emjogo o que Pêcheux (1983) chamou de o
entre nome e sobrenome na Língua Portuguesa. No espaço de enunciação logicamente estabilizado. Este procedi mento se dá como uma enunciação
do Português no Brasil há uma distribuição da língua tal que renomear que toma as enunciações primeiras para, de algum modo, "censurá-Ias",
pelo nome inclui no lugar de renomeação o próprio renomeado. É como por uma escolha no seu interior. Isto se faz por um locutor-chefe (lugar
um nós, do qual o renomeado faz parte. Por outro lado renomear pelo social) e um enunciador-corporativo: um nome é dito único para uma
sobrenome é falar do lugar de um acordo genérico no qual se diluem o pessoa na relação com todas as pessoas, apagando-se seu caráter
lugar que diz e a pessoa renomeada. corporativo e específico
Neste percurso cotidiano do funcionamento dos nomes o processo Quanto à posição do sujeito diria que se trata da posição do discur-
de indentificação estabelece uma relação muito particular entre o nome a so administrativo que só distribui nomes como se não houvesse aí nenhu-
que se chega e a pessoa. Assim o nome acaba por funcionar, a partir de ma memória, embora o acontecimento em que se dá tenha uma
uma história de enunciações, como um nome para a uma pessoa, cujo temporalidade em que o passado são as enunciações primeiras que nome-
processo de construção é esquecido. É como se não houvesse outra pes- aram todos que ali estão.
soa com o mesmo nome, como se a homonímia se desfizesse pela própria Funciona neste caso uma hipótese sobre uma necessidade para o
história enunciativa que levou a este nome "definitivo". Se encontramos funcionamento da linguagem. A designação deve, em um universo dado,

38 39
produzir a unicidade, a inequivocidade da referência. Ou seja, este proce- vel da genealogia, enquanto que para o segundo sim. Por outro lado, para
dimento, mesmo censurando a não univocidade, não consegue funcionar alguém que é João Roberto Rodrigues da Silva, significa diferentemente
senão a partir de lima hipótese fraca para a univocidade. quando for ou João, ou Roberto, etc. no serviço militar. A posição de
É importante ressaltar que no interior de todo grupo há uma neces- unicidade própria deste funcionamento recorta como memorável no acon-
sidade de se instalar o único relativamente ao nome próprio. Numa famí- tecimento um dizer anterior que nomeou a pessoa como se essa primeira
lia não se dá o mesmo nome duas vezes, etc. Aqui se poderia inclusive nomeação fosse indiferente, relativamente à necessidade da não
lembrar que quando se dá o nome de alguém ao seu próprio filho, acres- ambiguidade do nome próprio. Estamos aqui diante de um claro conflito
centa-se, ao final, Filho ou Júnior, do funcionamento corrente que nomeia e do funcionamento da corporação
Isto leva a considerar o fato de que o funcionamento do nome pró- que aí intervém diretamente em nome da unicidade.
prio de pessoa, na nossa sociedade, inclui uma hipótese de unicidade que Isto significa dizer que as pessoas têm nelas algo que lhes é dado
não tem, no entanto, procedimentos de diferenciação suficientes a não ser pelo processo da designação. Faz parte deste processo o fato de que o
no interior de cada família, ou seja, o nome próprio funciona como se sujeito destas enunciações é sujeito enquanto fala de uma posição ideolo-
fosse único, embora não o seja. E a não unicidade se dá pelo cruzamento gicamente configurada pelo interdiscurso: posição de sujeito jurírido-li-
de lugares enunciativos diferentes que levam à nomeação: o da corporação, beral, ou religioso, ou administrati vo, etc. As pessoas não são pessoas
o coletivo, o da atualidade, etc., relacionados com uma história de em si. O sentido do nome próprio lhes constitui, em certa medida. O
enunciações que vai afetando o nome. sentido constitui o mundo que povoamos. E o constitui enquanto produz
Um outro aspecto é observar como este procedimento de uma identificações sociais que são o fundamento do funcionamento do indiví-
corporação militar, que se pode encontrar em outras instituições, é uma duo enq uanto sujeito. E aqui é preciso lembrar que este processo de iden-
intervenção de uma posição que funciona no centro do imaginário de que tificação se faz no espaço de enunciação da Língua do Estado, e assim
há um Locutor que por si nomeia, que diz que um nome (este) é para uma identifica o indivíduo como cidadão.
pessoa (esta). Ou seja, de q~o Locutor é uno e não é afetado pela divi- Poderia dizer que o funcionamento referencial destes nomes (de par-
são sócio-histórica do dizer. ticularizar alguém) é produzido pelo processo enunciati vo que se dá como
Mas mais uma vez podemos ver aí, funcionando, o papel do nome procedimento do processo de identificação social. A unicidade, ou seja, o
no processo de identificação social. Ou seja, como a unicidade que se efeito de que não há nenhuma distância que separe o nome de uma pessoa
busca para o nome é efeito da identificação: você é você e não é nenhum dessa mesma pessoa, portanto seu funcionamento eminentemente
outro. Assim é possível referi-Io, interpelá-lo, responsabilizá-Io, etc, "sem referencial, é um efeito do funcionamento do nome próprio neste proces-
possibilidade de erro, de equívoco". É possível tomá-Io em cenas so social de identificação do indivíduo, de sua subjetivação. Ou seja,
enunciativas específicas, segundo a distribuição dos papéis de locutor-x nomear um pessoa é uma enunciação que funciona por um processo de
e alocutário (correlato deste). determinação semântico-enunciativa em virtude de se dar no interior do
processo social de identificação, mas que, ao apagar, pela representação
;x 3. O NOlVIE PRÓPRIO: DESIGNAÇÃO E SUBJETIVAÇÃO do enunciador, o lugar social de locutor, se mostra como meramente
referencial. Este apagamento do locutor-x (lugar social da enunciação)
O processo enunciativo da designação significa, então, na medida se dá porque o Locutor não sabe que fala de uma posição ideológica de
em que se dá como um confronto de lugares enunciativos pela própria sujeito. A referencialidade do nome próprio é produzida por este apaga-
temporal idade do acontecimento. Este confronto recorta e assim constitui mento em virtude deste esquecimento.
um campo de "objetos". Se se mudam os lugares enunciativos em con-
fronto recorta-se um outro memorável, um outro campo de "objetos" 4. NOMEAÇÃO, DESIGNAÇÃO, REFERÊNCIA
relativos a um dizer.
Assim há uma diferença de sentido em Antônio Cândido relativa- Dar um nome próprio é falar segundo a deontologia do espaço
mente a Maximino Maciel. Para o primeiro caso não funciona o memorá- enunciativo de uma língua. Para o nosso caso, só o locutor-pai pode

40 41
nomear, sendo-lhe negado o direito de não nomear, de não dizer (instalar)
o nome do filho. E esta nomeação se dá segundo as regularidades dos
procedimentos de determina~ã~ dos nomes ,de pessoa. É nes~a configura- \ ~
ção própria do espaço enuncrativo de uma Iíngua, o Portugues por exem- ~
plo, que o nome próprio de pessoa tem sua história, pela qual ele ao se óP
construir e reconstruir enunciativam~nt~ trabalha a ide~tificação do indi- ~\ '"
víduo que se nomeia, sem que ele propno tenha escolhido seu nome. ~
A capacidade referencial não é assim o fundamento do funciona- ~ ~ CAPÍTULO Il!
mentodo nomeprÓprio.~referênciare~ultado sentidodo no=;~:~ r- iY'~
tuído por seu funcIOnamento no acontecImento enunclat _ ~~
nome próprio funcion e gJUoPÍvel qm~~q..lla o assado
NOMES DE RUA
ropno a tem oral idade do aco tecimento relaciona um nome a um
pessoa. ão é um sujeito que nomeia, ou refere, nem a expressão, mas o Os nomes de ruas e de lougradouros públicos em geral se nos apre-
acontecimento, exatamente porque ele constitui seu próprio passado. sentam principalmente por seu aspecto cotidiano. Ou seja, são nomes que
Assim a unicidade do nome próprio de pessoa é uma construção da usamos no nosso dia a dia por razões práticas como encontrar a casa de
disparidade que acompanha seu funcionamento. O que ele refere hoje é o alguém, uma loja, mandar uma carta, etc. Estes nomes estão presentes
que uma nomeação passada (de um locutor-pai) nomeou. O que ele signi- para nós por uma estabilidade cotidiana do endereço.
fica numa dada enunciação (com sua temporalidade) é toda sua história Dados os objetivos deste trabalho vou tomar os nomes de ruas
de nomeações, renomeações e referências realizadas (com suas como mais um modo de questionar as posições informacionais no modo
temporalidades próprias). como tratam a relação da linguagem com as coisas, com o mundo. Ques-
tão, como já disse antes, incontornável para quem estuda a linguagem.
Para analisar esta questão vou tomar um caso específico: os nomes
de ruas da cidade de Cosmópolis. Esta cidade, com uma população entre
40.000 e 50.000 habitantes, nos permite tomar todos seus nomes de rua
para encontrar neles, de forma objetivada, um conjunto de questões que
envolvem o funcionamento deste tipo de nome próprio.

i.. 1. OS NOMES NO MAPA: PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

Vou analisar os nomes de ruas de Cosmópolis enquanto nomes no


mapa da cidade. Neste sentido, o corpus não é simplesmente o rol dos
nomes das ruas, mas o mapa da cidade enquanto um texto. Desta maneira
coloco o modo específico como vou considerar a relação integrativa do
nome, ou seja, o que é o seu sentido. Tomar o mapa como corpus permite
tomar, também, a questão da relação dos nomes no seu conjunto e sua
distribuição no espaço urbano. Pode-se, então, refletir, como algo próprio
do corpus em análise, sobre a questão da nomeação dos espaços da cidad ,
bem como o modo de distribuição dos nomes pelos espaços historicam 'nl '
constituídos. Ou seja, não consideramos o espaço físico, qu t m um pn-
lavra na língua para referi-I o, e depois os episódios hist ric LI IIli ')1

4 ·11
,.'rum. Para nossa posição, o espaço do homem só é espaço enquanto his- Independentemente de uma diferença de construção, são to-
t ricamente determinado, e a linguagem o designa neste processo histórico. dos tomados como tendo o mesmo funcionamento semântico-
Ao tomar a análise destes nomes enquanto nomes num mapa, enunciati vo.
p demos considerar que estamos diante de uma cena enunciativa em Por outro lado, podemos fazer atenção à diferença de construção do
que a configuração de unidade tex.tual do Locutor está aí dividida em nome próprio de rua. Para pensar estas diferenças vou analisar: '
um locutor-oficial (da administração pública da cidade), enquanto lugar
social que enuncia, e um enunciador-universal, que coloca a enunciação a) sua estrutura morfossintática;
d s nomes no mapa como nomes para todos e para sempre. Ao mesmo b) seu funcionamento semântico-enunciativo;
tempo estou considerando que vou analisar o funcionamento dos nomes c) a configuração da temporalidade do acontecimento.
num acontecimento afetado pela posição de sujeito jurídico-adminis-
trativo, enquanto posição do interdiscurso que afeta a língua neste 2. AS ESTRUTURAS MORFOSSINTÁTICAS
acontecimento.
Evidentemente que um estudo como esse não inviabiliza a conside- Os nomes das ruas de Cosmópolis podem ser:
ração das questões postas por acontecimentos enunciativos do cotidiano,
nos quais os nomes funcionam de modo semelhante, mas, seguramente, a)Nomes próprios de pessoas: R. Antonio Carlos Nogueira; R. Artur
com diferenças importantes. Nogueira; Av Ester; R. Juscelino Kubitschek de Oliveira.
Vamos analisar, pelo estudo do mapa, a existência de um nome en-
quanto nome de uma rua. Isto quer dizer, para nós, que vamos analisar de b) Nomes próprios topográficos: R. Monte Castelo.
um lado o processo enunciativo que produziu cada nomeação (que no-
meou tal rua com tal nome), e de outro, como estes nomes se relacionam c) Nomes próprios de Cidades ou País: R. Brasilia; R. Campinas;
neste texto que é um mapa enquanto mapa de uma cidade. E a considera- R. Paulinea; R. São Paulo; R. Portugal (no COl-pUsem questão é o único
ção do mapa como texto para néle estudar estas nomeações coloca a nome de País enunciado como nome de rua).
questão de saber como se dá a relação de cada nome com aquilo que
nomeia fora do texto, na cidade. d) Nomes próprios de pessoas determinados por uma titulação: R.
Nesta medida os nomes de rua são enunciados de seu texto, o mapa. Baroneza Geraldo de Resende; R. Coronel Silva Teles; R. Pastor Paulo
E nesta medida são nomes cujo funcionamento é diverso de outros nomes Leiva Macadão; R. Evangelista Luiz Semensato Primo; R. Cabo Cruz; .
próprios, como os nomes de pessoa, por exemplo. Por outro lado, estes Presidente Getúlio Vargas; R. Dr: Rui Barbosa.
enunciados têm uma outra caracaterística importante: não têm estrutura
de frase. E as relações que organizam estes enunciados no tex.to são de uma e) Sintagmas preposicionados: R. dos Expedicionários; R. dos Pro-
natureza muito diversa daquelas que uma lingüística textual desenvolve. fessores; Av. dos Trabalhadores; R. do Vereador; Av. da Saudade; R. das
Se tomamos um conjunto de nomes de ruas (e aqui os tomo tal como Laranjeiras; R. dos Sorocabanos.
aparecem no mapa de Cosmópolis) podemos pensar no funcionamento
do nome enquanto uma unidade. Por exemplo: f) Nomes seguidos ou precedidos de uma determinação: Av. Cente-
nário do Dr: Paulo de Almeida Nogueira; R. Santa Cruz.
Av. Centenário do Dr. Paulo de Almeida Nogueira,
R. Anchieta g) Numeral Seguido de um Sintagma preprosicionado (datas): R. 7
de Abril; R. 22 de Abril; R. 25 de Dezembro; R. 15 de Novembro; R. 7 de
e Setembro.

R. 7 de Abril. h) Números: Rua 1,' R. 2; R. 3.

45
Estas estruturas já mostram uma diferença do funcionamento dos Podemos observar que os nomes próprios de ruas funci num d • UIl1
nomes de ruas relativamente a outros nomes próprios como os nomes modo muito mais "fixo" que os nomes de quadros, mas de um m d rn n ~
próprios de pessoa e os nomes de quadros de pintura, por exemplo. fixo que os nomes de pessoa. Veja, por exemplo, que no corpus de C sm p li'
No caso dos nomes próprios de pessoa, como mostramos anteriormen- não se encontra corno nome próprio de rua descrições como "Duas Lavadei-
te, eles se constituem de nomes e sobrenomes e podem ter uma preposição (e ras Lavando Roupa", ou "Moça de Branco num Bosque". Não há também
mesmo artigo) antes de algum sobrenome. Eventualmente um segundo so- nos nomes próprios de rua grupos nominais múltiplos como em "Prima vem;
brenome é precedido de LImaconjunção e. Por exemplo: Paulo Rodrigues; Argenteuil", ou "Caramujo, Mulher, Flor, Estrela". Por outro lado, há no
Antonio Candido de Meio e Souza; Manuel Deodoro da Fonseca. corpus de Cosmópolis nomes que são sintagmas preposicionados como "Sem
No caso dos nomes próprios de quadros de pintura podemos reto- título" ou "No Bosque": veja o caso de Rua do Vereador; das Laranjeiras,
mar a análise feita por B. Bosredon (1999). Segundo ele os nomes de etc. Há também neste corpus nomes com determinações (expansões) tal como
quadros têm formas diversas, mas na maioria dos casos faz parte da nos nomes de quadros como "Paisagem com vacas". É o caso de "Rua Cen-
categoria nominal. Os nomes de quadro podem ser constituídos por: "no- tenário do Dr. Paulo de Almeida Nogueira".
mes próprios: nome de pessoa, como Célestine (Picasso); nome de lugar, Na medida em que se vêem diferenças entre tipos de nomes próprios
como Sacré-Coeur (id.). Encontramos também nomes comuns sem ex- (de pessoas, de quadros, de ruas), no que diz respeito à sua estrutura
pansão, como Montagne [Montanha] (Kandinsky), Les repasseuses [As morfossintática, faz-se necessário perguntar sobre o que elas significam.
Passadeiras] (Degas), ou com expansão como Paysage avec vaches [Pai- Não se pode pensar que uma estrutura corresponde a um modo de signi-
sagem com Vacas] (Rousseau), leunefille en blanc dans un bois [Moça ficar, como se verá depois. Mas por outro lado há impedimentos para que
de Branco num Bosque] (Van Gogh), Deux blanchisseuses portant du certas estruturas funcionem para certos tipos de nomes. O que este impe-
tinge [Duas Lavadeiras levando Roupa] (Degas). O Grupo Nominal é às dimento significa? Em verdade deve-se perguntar: o que produzem estes
vezes duplo: Printemps; Argenteuil [Primavera; Argenteuil] (Monet). Uma diferentes impedimentos?
lista pode inclusive constituir um título: Escargot, femme, fleur; étoile Uma outra pergunta: Qual a razão desta diferença de estrutura intema
I I
[Caramujo, Mulher, Flor, E~la] (Miró), Notamos igualmente estrutu- dos nomes próprios de ma? O que ela significa? Estas diferenças dizernres-
ras nominais dotadas de uma função sintática implícita sob a forma de peito aos diferentes agenciamentos enunciativos dos espaços de enunciação
sintagmas preposicionais: Sans titre [Sem Título] (Kandinsky); Dans le nos quais as nomeações se constituem e as designações funcionam.
k ois [No Bosque] (Van Gogh); Che: Ia mo diste [Na modista] (Degas).
As vezes, a caracterização do núcleo nominal passa por outros meios de 3. O FUNCIONAMENTO SEMÂNTICO-ENUNCIATIVO
expressão que não formas estritamente linguísticas, como T. 1973-E.3.
ll1X180 em. de Hartung, que parecem as designações de uma lingua- Neste caso, tal como para os nomes próprios de pessoa, há que
gem técnica documentária. Alguns títulos, finalmente, constituem jogos se levar em conta que as cenas enunciativas da nomeação das ruas se
de linguagem que os afastam ainda mais das estruturas morfossintáticas dão no espaço enunciativo da Língua Oficial do Estado, da língua
padrão, como este estranho Galacidalacidisoxyribonucléidacide de Sal- Nacional.
vador Dalí. Todos esses títulos, à exceção das estruturas Preposiçãc-N e Um aspecto importante deste funcionamento é o modo como a
os últimos exemplos, entram na categoria nominal, entendida num senti- enunciação que nomeia uma rua se relaciona com outras enunciações: as
do amplo. que nomeiam pessoas ou datas, por exemplo.
A outra família muito mais reduzida está composta de proposições A nossa hipótese, como resposta à última pergunta da seção anteri-
e de frases: lls sont de retour [Eles Estão de Volta] (Artistas Franceses); or, é a de que a unidade do nome de rua não é construída pela enunciação
C'est encore un Cubas Glaser! Refusé [É Ainda um Cubas Glaser! Re- que nomeia a rua, mas por outra enunciação que está contida na enunciação
cusado] (Artistas Franceses); Bonjour; Monsieur Courbet! [ Bom dia, que nomeia a rua.
Senhor Courbet!] (Courbet); Bonjour Monsieur Gauguin! [Bom dia, A enunciação dos nomes de ruas é sempre uma enunciação a partir
Senhor Gauguin!] (Gauguin)" (Bosredon, 1999, 19-20) de outra enunciaçãQ.

46 47
\ .

a) No caso de ruas com nomes próprios de pessoa, a enunciação que Mas se observa que, mesmo sem conhecer a história, que este
n meia a rua toma e inclui a enunciação que nomeou a pessoa. Conside- tipo de nomeação não é uma descrição, mas funciona como se fosse.
remos alguns casos. Cabe aqui perguntar sobre como se deu esta passagem que apaga o
A R. Juscelino Kubitschek de Oliveira tem este nome por uma aspecto descritivo da nomeação desfazendo seu caráter de descrição
nunciação que a nomeia a partir da enunciação que nomeou alguém com definida.
esse nome. Este tipo de funcionamento enunciativo se dá também em outros Neste caso o sintagma preposicionado funciona como uma deter-
casos como: R. Antonio Carlos Nogueira, R. Artur Nogueira, Av. Ester. minação para Rua, Avenida, etc. E aponta para que os nomes das ruas
Este mesmo processo se dá com a nomeação de ruas a partir de são determinações de Rua, Avenida, em construções em que Rua e
nomes de cidades: R. Brasilia, R. Campinas, R. Paulinea, R. São Paulo. Avenida fazem uma referência e a determinação predica a referência e
Ou ele nomes de acidentes geográficos: R. Monte Castelo. assim nomeia.
b) Há um caso assemelhado, mas que já envolve duas enunciações. É d) Há enunciações que se formulam como enunciações de nomes
o caso dos nomes próprios de pessoa determinados por uma titulação. Nes- (nomeação) como enunciações primeiras. Mas é preciso observar me-
te caso a enunciação que retoma o nome retoma a enunciação que nomeou lhor estes casos. Tomemos alguns para refletir: R. Centenário do Dr.
alguém e a enunciação que lhe deu um título. Assim, Presidente Getúlio Paulo de A. Nogueira, R. Santa Cruz, R. 7 de Setembro, R. 15 de
Vargas, como nome de ma, traz a enunciação que nomeou alguém como novembro, R. 1, R. 2.
Getúlio Vargas e a enunciação que o predicou como Presidente". - No caso de R. Centenário do Dr. Paulo de Almeida Nogueira, a
Um caso especial aqui é o de Baroneza Geraldo de Resende como nomeação da rua incorpora a nomeação de alguém como "Paulo de
nome de rua. Esta nomeação traz a enunciação de alguém como "Baroneza Almeida Nogueira", a qualificação desta pessoa como Doutor. O que há
Geraldo de Resende", mas isto é o apagamento da nomeação específica de particular é a qualificação do Centenário (por Dr. Paulo de Almeira
de uma mulher para assumir uma titulação que lhe vem pelo nome do Nogueira) como móvel desta enunciação.
marido. Assim a enunciação da R. Baroneza Geraldo de Resende inclui -No caso de R. Santa Cruz, há que se levar em conta que este é um
a enunciação do nome de registro ~e batismo) da mulher que se casou nome disponível no Brasil desde a chegada elos portugueses. Um dos
com Geraldo de Resende; a enunciação que nomeou alguém como Geral- primeiros nomes do Brasil foi Terra de Santa Cruz. Nomear algum lugar
do de Resende; a enunciação que conferiu o título de Barão a Geraldo de como Santa cruz é sempre reportar à enunciação do Brasil como Terra de
Resende e assim à Baroneza. E por estas últimas traz o silenciamento da Santa Cruz. Além disso, em Campinas, cidade a que Cosmópolis perten-
nomeação da mulher que se casou com Geraldo de Resende. Se Baroneza ceu antes de ser município, há uma praça que se chama Largo de Santa
é aqui uma "segunda" enunciação, ela se dá como silenciamento da Cruz e uma Rua Santa Cruz.
enunciação da nomeação primeira da baroneza. - As datas que se tornam nomes de rua são datas enunciadas como
c) Os nomes caracterizados como sintagmas preposicionados, fun- memoráveis para a história do País, do Estado, da Cidade. É o caso de R.
cionam como nomes que se enunciam a partir de enunciações de descri- 7 de setembro e R. 15 de novembro (datas da independência do .arasil e
ções definidas. Assim Rua dos Sorocabanos se dá como um nome de rua da Proclamação da República).
que busca, na enunciação descritiva de que há uma rua com sorocabanos, - Os números como nomes ele rua talvez sejam o único caso em que
o fundamento para a enunciação do nome. O mesmo se dá com R. das a nomeação da rua é uma enunciação primeira. No caso específico de
Laranjeiras, R. dos Trabalhadores, R. dos Professores, R. dos Expedi- Cosmópolis é interessante ver que estas ruas estão em uma das fronteiras
cionários, etc. do que o mapa especifica como espaço urbano. Assim o nome da rua
como número é o índice da fronteira entre o urbano e o não urbano. O
26. Seria interessante observar que nesta relação de enunciações a segunda pode modificar a urbano é a perspectiva de que a rua passe a ter um nome e não só um
primeira. No caso da Av. Presidente Getúlio Vargas, a nomeação da rua modifica a nome- número que a localize. Esta enunciação indica para uma enunciação fu-
ação da pessoa que fora nomeada Getúlio Dornelles Vargas. Talvez aqui fosse necessário
observar que a enunciação que nomeia a rua se dá incluindo uma história de enunciações
tura que substituirá o número. O que em verdade é ainda uma relaçã
que já reduzira Getúlio Dornelles Vargas para Getúlio Vargas. entre duas enunciações.

48 49
Em torno desta questão da inclusão de uma enunciação em outra há
um conjunto de observações também importantes:
o que significa este espaço aberto à nomeação (e seus sentidos)?
um espaço em que o discurso jurídico-administrativo formula sua neces-
sidade de produzir endereços para localizar o cidadão.
a) Um aspecto interessante do funcionamento semântico-enunciativo é
Diria que este espaço aberto à nomeação significa o não-sentido, no uni-
que na cena enunciativa da nomeação das ruas um locutor-oficial está toma-
verso das ruas. E deste modo coloca visível o funcionamento de instrumento de
do por um memorável (enunciaçã.? de nomes de pessoas, datas, etc.) que se
controle do urbano sobre o cidadão. Coloca visível esta futuridade instalada no
repete em enunciações distintas. E como se houvesse um rol de nomes que
nome de rua enquanto lugar que identifica para depois e sempre os espaços e os
são reiterados em enunciaçães diversas, para cidades diversas. No caso do
que o habitam. Tem-se aí um sentido de controle que faz parte do processo
Corpus de Cosmópolis podemos dar como exemplos: R. Dom Pedro 1, R.
de identidade social das pessoas, enquanto identificação com um endereço.
Duque de Coxias, R. Presidente Getúlio Vargas, R. Dr. Rui Barbosa, R.
Neste texto, o mapa de Cosmópolis, os nomes números são o índice
Anchieta, R. 7 de setembro, R. 15 de Novembro. Estes são nomes que apa-
do limite do urbano. Urbanizar é recortar um passado e assim nomear a
recem como nomes de ruas de muitas e muitas cidades brasileiras.
partir de pessoas, datas, etc, memoráveis.
Por outro lado pode-se observar que esta questão pode ser vista num
Por outro lado o número como nome é a indicação do urbano como o
limite regional. Ruas como Coronel Silva Teles, Baronesa Geraldo de
lugar do controle, do endereço: para estar na cidade, ser da cidade, é preciso
Resende, têm nomes que também aparecem, por exemplo, na cidade de Cam-
ter um endereço, mesmo que não se esteja na história (memorável) da cidade.
pinas, município ao qual pertencia Cosmópolis antes de se tomar cidade.
O urbano é assim o lugar da captura. É como se o urbano fosse o oposto da
cidadania (cidade). E isto indica como o recorte de um memorável, na nome-
b) Há também nomes de ruas que são relativos a questões específi-
ação dos espaços da cidade que aqui analisamos, é um modo de o urbano
cas de uma história local. No Caso de Cosmópolis, ruas como Av. Ester,
encobrir o papel de controle do urbano sobre a cidade (cidadania)"
Centenário do Dr. Paulo de AZmeida Nogueira, R. Artur Nogueira.
Reportando-nos mais uma vez ao trabalho de Bosredon sobre os nomes
Esta história local pode se relacionar com a história de outras cida-
de quadros, é interessante ver como os nomes de rua não apresentam o funci-
des da região. Há inclusive u~ cidade com o nome Artur Nogueira.
onamento da legenda, como no caso dos nomes de quadros. Alguns casos
podem parecer próximos deste funcionamento como R. Centenário do Dr.
c) Uma questão importante é que no nome próprio de pessoa, o
Paulo de Almeida Nogueira ou R. das Laranjeiras, etc. E o que falta para
nome é uma especificação, particularização, sobre o sobrenome (o nome
que isto seja uma legenda? O objeto nomeado não é tomado como um
de família). Por exemplo em R. Antonio Carlos Nogueira, Antonio Carlos
objeto descritível. Estes nomes podem ser uma notícia, não uma legenda.
especifica alguém dos Nogueira.
Tanto que mesmo que um nome se dê a partir de uma descrição, ao se tornar
Mas quando Antonio Carlos Nogueira passa a ser o nome de uma • • - .. 28
nome da rua é tomado como mdependente da descnçao que o ongmou .
rua, em Cosmápolis, Antonio Carlos não .é mais uma especif~cação de
um Nogueira. E uma nomeação de uma VIa urbana por Antonio Carlos 27. Em "No Limiar da Cidade" E. Orlandi analisa as diferenças e modos de relação entre o
Nogueira como uma unidade a partir da unicidade do "Antonio Carlos" urbano e a cidade, mostrando como o urbano ao sobredeterminar a cidade sobrcdeterrnina
dos "Nogueira". Antonio Carlos deixa de especificar um Nogueira para o social fazendo o social significar pela urbanidade, pelo sentido diretivo de organização
urbana. Deixa-se assim de "levar em conta modos sociais de produção de sentidos próprios
que Antonio Carlos Nogueira nomeie uma rua. . da cidade" (Orlandi (2000), Rua, número especial).
Ou seja, a enunciação que nomeia uma rua toma como unidade algo 28. Aqui se torna interessante, inclusive, fazer um estudo do_seve.nt~s que levaram ao nome
rua e dos acontecimentos futuros que alteraram ou nao tais tatos. Outro aspecto serra
=
que uma enunciação anterior construiu por certas relações específicas de
determinação. . saber como as nomeações se deram em épocas diferentes, para ver se em algum momento
a nomeação se deu como uma descrição cioespaço, a partir de categorias sociais,.o~ não.
E que clepois passou-se para um outro processo de nomeação que esvazia as descrições de
d) Neste conjunto de relações de nomes, os nomes das Ruas, 1, 2, seu funcionamento descritivo. E a tal ponto que a enunciação que nomeia a rua pocle tomar
3, ...,13 funcionam como a nomeação que não dá um nome. Que dá, so- uma expressão de descrição para simplesmente referir, hon:enagea;, ~ma categor!a de
pessoas. Outro aspecto aincla seria ver como se relacionam o discurso jurídico-administra-
mente, uma localização, um endereço.
tivo com o cliscurso ciocoticliano que pode nomear as ruas de modo um pouco diferente.

50 51
E a questão dos impedimentos? Por que um nome de rua não funci- a) Passado e Nacionalidade
ona como legenda, por exemplo? Talvez o melhor a dizer não é que há No COl-pUSem questão encontramos um conjunto de nomes (enun-
impedimentos, mas construções específicas próprias de cada caso. Há ciados) que enunciam o estar (ser) no Brasil. É o caso de R. Anchieta,
uma relação particular entre a nomeação e o objeto nomeado que se apre- R. Duque de Caxias, R, Tiradentes, R. Dom Pedro I, R. 7 de Setembro,
senta por uma materialidade histórica e não física. Por isso é rriarcada R. 15 de Novembro.
pela diferença da materialidade destes objetos: arte, no caso dos quadros; Neste caso o memorável (passado) do acontecimento é o do ser bra-
espaço político-administrativo, no caso dos logradouros públicos; sileiro. Isto não se configura porque são nomes de personagens ou datas
subjetivação social dos indivíduos, no caso dos nomes de pessoas. Isso da história do Brasil. Isto se configura não enquanto referência a fatos da
leva a um aspecto importante no caso dos nomes de rua: o funcionamento história, mas como enunciados que se dão em outros textos, em outras
de localizador que tem. Funcionamento que os nomes como número reve- cidades. Ou seja, estes e outros nomes como eles são nomes de ruas que
lam. Ou seja, é um funcionamento que não se mostra como tal mas que nomeiam ruas por todo o Brasil. Ou seja, a enunciacão da nomeação de
podemos apreender pela falha do sistema de nomeação no momento em ruas inclui, tal como vimos, ao falar do funcion~mento semâ'ntico-
que ele ainda não nomeou. Isto nos obriga a perguntar sobre como a enunciativo, a enunciação de personagens e datas da história brasileira.
enunciação que nomeia a rua acoberta este funcionamento localizador do Inclui enunciações da nacionalidade que se caracaterizam por enuncia-
endereço quando a posição de sujeito é a jurídico-administrativa. dos como estes.
Para responder a esta questão vou analisar mais em detalhe a Este memorável da nacionalidade inclui de um lado "os persona-
temporalidade do acontecimento destas enunciações. Mais especificamen- gens que fazem a história do Brasil" e de outro "as datas memoráveis
te, analisarei a multiplicidade do memorável do processo enunciativo dos desta história", Por exemplo: R. Dom Pedra I é um enunciado de um
nomes de ruas, como esta multiplicidade caracteriza as enunciações que personagem de nossa história enquanto que R. 7 de Setembro é um enun-
nomeiam ruas. E é nesta medida que, enquanto nome, desfaz-se, por exem- ciado de uma data memorável. Neste caso, como em outros, os dois enun-
plo, uma descrição definida que esteja contida como enunciação na ciados, dispersos no Mapa, porque não têm contigüidade, são o relato da
enunciação que nomeia a ruase o discurso jurídico-administrativo, que Independência do Brasil.
localiza os lugares no urbano, desliza para a eficiência do não aparente. Não é porque algo aconteceu em 7 de setembro que 7 de setembro
pode ser nome de rua. Esta data toma-se nome de ma porque as enunciações
4. O MEMORÁVEL NO ACONTECIMENTO DOS NOMES DE RUA de uma história enunciaram esta data como data da independência.
De modo semelhante R. Tiradentes é outro personagem da luta pela
Vamos agora analisar um aspecto fundamental na configuração da independência, e assim é outro enunciado que, junto com R. Dom Pedro
temporal idade do acontecimento. I e R. 7 de setembro, significa a independência, e que, por outro lado,
Como já pudemos indicar, as enunciaçõcs que nomeiam ruas são com a R. 15 de Novembro, significa a República contra o Império e o
determinadas por uma história de nomes que se repetem para cidades Rei. Ou seja, R. Tiradentes é um enunciado afetado por dois recortes do
diversas, e esta história determina a constituição das designações das memorável no conjunto de nomes do COl'pUS.Veja que se o corpus não
ruas em Cosmópolis, como de resto, em geral, no Brasil". A questão, no tivesse a R. 15 de Novembro, por exemplo, R. Tiradentes estaria signifi-
caso, é especificar o que o acontecimento recorta como memorável. cando só a Independência, e na medida em que o corpus tem a R. 15 de
Novembro, está significando também a República.
29. Um caso diferente e prototípico é o da cidade eleBrasflia, que merece um estudo especi- Ou seja, os nomes das ruas são a enunciação cifrada de narrativas
al. Diria que Brasília se dá como memorável por sua diferença e enquanto capital do
memoráveis, que se completam, que se contradizem. Ou melhor, este mapa
País. Há também que se considerar como a rua não entra na constituição elo endereço e
como o caráter indexador dos lugares procura uma visibilidade imediata. Isto significa a é uma dispersão de narrativas cifradas.
organização dos mecanismos de localização do Estado sobre o espaço e as pessoas e Enunciar estas expressões para nomear é tomar-se na ternporalidad .
instituições que o ocupam. Podendo significar, ao mesmo tempo, a facilidade de locali- da nacionalidade. É enunciar que a cidade tem nacionalidad brasil irn,
zação dos endereços por qualquer pessoa, minimamente iniciada na sistemática ele no-
pertence a esta nação, pela duração do presente do acontecim nt , - p -1:\
meação-indexação de lugares em Brasília,

52
1IIIIIIidlltlt,dol' ntccimcnt que a rc assiru espaç de novas cnunciações nomes de três dos participantes da reunião de acionistas que fundou a Usina
(!lI 111 sm utr S n rnes le rua). Ester. Esta usina tem importância capital na vida da cidade.
É interessante notar que a Av. Centenário do Dr. Paulo de Almeida
I) A rigemcomoMemorável Nogueira é a avenida que leva à Usina Ester, ao passo que a Av. Ester é a
[ r utro lado podemos observar um outro tipo de enunciados avenida central da cidade. Este tecido disperso de enunciados (nomes) enun-
di lIil'nntiv (nomes de ruas). São nomes que recortam, como memorá- cia, assim, no centro da cidade, e na relação dela com a usina, os persona-
VI I, narrativas locais. . gens que criam a indústria, até hoje propriedade da família Nogueira.
T m mos para começar os seguintes nomes de ruas: R. 30 de No- Interessante para configurar o sentido destes nomes é ver que nos
\1('11I"'" R. Dr. Moacir Amaral. 30 de novembro enuncia a data de nomes de rua de Cosmópolis não há nenhum que recorte como memorá-
I 111111 ipação político-administrativa de Cosmópolis em 1944 e Dr. Moa- vel a história da luta política dos trabalhadores e do Sindicato dos Traba-
. /' Amara! enuncia o primeiro Prefeito da cidade. Há também a R. de r lhadores na Indústria Açucareira da cidade. É o que poderíamos caracte-
Jun 'ira, data da posse do primeiro prefeito, bem como, depois, do pri- rizar como o silenciamento (política do silêncio'") da história do conflito
III 'ir prefeito eleito e primeira câmara de vereadores. entre trabalhadores e indústria açucareira.
Assim os nomes destas ruas cifram a narrativa da constituição Este sindicato foi fundado a partir de um movimento de greve dos
(I ' mópolis como cidade, ou seja, como independente da cidade de trabalhadores da Usina Ester na década de 40 do século xx. O funciona-
( 'umpinas. mento do sindicato foi autorizado por Getúlio Vargas em 1941. Foi líder
interessante observar neste caso que esta enunciação da indepen- da greve Egydio Rafacho, e Luiz Tenório Lima, sindicalista de São Pau-
11 ncia local continua a produzir sentidos. Há ruas com nomes de outros lo, esteve em Cosmópolis e ajudou na fundação do sindicato.
pref itos da cidade como R. Célio Rodrigues Alves (terceiro prefeito) e R. Há que se ressaltar que este sindicato não foi só o primeiro sindicato
José Calvo (quarto prefeito). Mas muitos prefeitos não tiveram seus nomes da cidade, mas também sua primeira entidade de classe.
ipr priados em cenas enunciativas que constituíram nomes de ruas. No entanto, mesmo com a força de se estar diante de enunciados de
Isto mostra que não se trata ~plesrn:ente de ter tal ou tal função. uma fundação, eles não se tornam nomes de ruas. Eles não entram nesta
'lrnra-se de ser personagem memorável. Que alguma enunciação, como a dispersão de narrativas que o mapa de Cosmópolis nos conta. Toda a
que dá nome a uma rua, recorte, como memorável, um personagem da história das enunciações de nomes de rua e do mapa em análise é a histó-
hi t ria (local) de sua origem. ria, também, desta exclusão.
Nesta mesma linha tem-se, por exemplo: R. Ewald Sillas Epprecht, Um aspecto a se ressaltar neste silêncio é que em Cosmópolis há a
R. Emilio Epprecht, R. Gustavo Epprecht, R. Ângelo Capraro. Os no- R. dos Trabalhadores, cuja enunciação produz a ilusão da objetividade
111 'S apropriados pelas enunciações que designaram tais ruas fazem parte da história que se representa como incluindo os excluídos (os trabalhado-
I, um passado da fundação da cidade, ou seja, do povoado fundado no res e seus conflitos) embora haja uma narrativa, a de Rafacho e da funda-
r inul do século XIX. Epprecht e Capraro são nomes de famílias suíças ção do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Açucareira, não
[uc emigraram para o Brasil para um núcleo de colonização que mais enunciável neste mapa.
I irde tomou-se Cosmópolis.
d) O Herofsmo e o Memorável
c) O Poder e o Memorável A narrativa da origem da cidade conta que seus primeiros persona-
Uma outra história recortada como memorável no aconteciernnto gens são imigrantes europeus, suíços, depois alemães, italianos. O mapa
'1" ' nomeia ruas é a que está ligada às atividades econômicas. Este é o da cidade inclui como nomes de rua: R. João Antonio da Silva, R. Expe-
us de Av. Ester, R. Artur Nogueira, Av. Centenário do Dr. Paulo de dicionário Angelo Salmistrano, R. Paulo Azevedo Filho, R. Lui; Mengue,
/\lm ida Nogueira, R. Coronel Silva Teles. R. Reinaldo Baloni e R. dos Expedicionários.
Estes são nomes ligados à criação da Usina Ester. Av. Ester tem o nome 30. Ver a este respeito Orlandi (1992). Neste texto a autora desenvolve a teoria que considera
1111 sina e os outros três nomes se enunciam contendo neles a enunciação dos que o silêncio é fundador do sentido.

11· 55
•.. I lc:t:1 .Llilll\jl " •• ~.
Ou seja, quase todos os expedicionários da FEB de Cosmópolis Deste modo pode-se ver como os nomes no mapa significam
tiveram seus nomes apropriados como nomes de ruas. Além de uma das temporal idades distintas (da nacionalidade, da origem, do heroísmo, do
ruas ser R. dos Expedicionários. poder) mesmo que, do ponto de vista do presente do acontecimento da
Os acontecimentos de nomeação e o mapa em estudo recortam enunciação do mapa, estejam numa convivência temporal.
uma história (um passado) do heroísmo dos Cosmopolenses contra o A regulação desta temporalidade múltipla pelo presente do Locutor
nazismo e fascismo (alemães, italianos). História que opera fortemente produz o efeito de homogeneidade reguladora do administrativo. E este
na determinação dos enunciados de nomes de ruas. Este conjunto de se combina diretamente com o espaço de enunciação em que os aconteci-
nomes não só cifram a narrativa da participação na guerra, mas mentos enunciativos constituem a designação, o espaço de enunciação
abrasileira alemães, italianos e demais europeus que constituíram a da Língua Nacional.
origem da cidade. Lembre-se que Cosmópolis é o nome da cidade como E as designações destes nomes são construídas por todas estas rela-
referência a esta diversidade de povos que a constituíram. (falarei ções enunciativas como relações que as predicam. Ou seja, como rela-
disso depois, ao analisar a constituição enunciativa do próprio nome ções que constituem permanentemente as designações.
da cidade.)
Como se viu, os acontecimentos que constituem estes enunciados,
as enunciações destes enunciados, formulam a nacionalidade brasileira
da cidade. Formulam a cidadania brasileira de Cosmópolis.
Por outro lado estes acontecimentos formulam a especificidade da
cidade por sua origem, pelas posições de poder e pelo heroísmo local.
É interessante ressaltar, quanto à questão das relações de poder, o
fato de que o nome da rua que leva à Usina Ester é Centenário do Dr.
Paulo de Almeida Nogueira. Não se trata simplesmente de ser o nome de
um Nogueira. O nome da rua é~a homenagem especial em relação às
outras nomeações. Este nome contém ao mesmo tempo um personagem e
uma data memorável: o seu nascimento. Assim esta rua é uma homena-
gem à Usina Ester. Homenagem com a qual a cidade entra na usina.
Entra, procura entrar, nos diversos sentidos de entrar. E que, em
contrapartida, a usina procura entrar na cidade.

5. MÚLTIPLAS TEMPORALIDADES

O que se pode ver é que a designação dos nomes de rua se constitui


pelo processo de suas nomeações, em que opera a relação de enunciações
contidas em outras enunciações. Por outro lado a consideração da rela-
ção integrativa, o nome num texto de que faz parte (o mapa da cidade),
mostra como as designações dos nomes das ruas está constituído, tam-
bém, pela relação destes nomes no mapa. O que se pode ver pela análise
do memorável recortado pela temporalidade do acontecimento em que se
enuncia o mapa. Ou seja, a análise da temporalidade do acontecimento
para descrever o memorável que o constitui traz tantas outras enunciações
que estarão significando no acontecimento.

57
CAPÍTUWTV

NOMES DE RUA E O MAPA COMO TEXTO

Para melhor qualificar a análise feita no capítulo anterior que con-


siderou os nomes de rua num texto (o mapa), assim como para avançar
na reflexão sobre a relação da designação com o mapa como texto, va-
mos nos ocupar aqui de uma análise mais específica da textual idade do
mapa". O que nos permitirá agregar elementos que mostrem outros as-
pectos da constituição da designação.
Tomar um mapa como texto é considerá-Ia como linguagem, senti-
do. Para fazermos esta caracterização somos movidos por uma afirma-
ção de Deleuze e Guattari em Mille Plateaux: "A linguagem é um mapa e
não um decalque" (1980, p. 14). Esta afirmação, dados os nossos objeti-
vos, nos traz as perguntas que seguem. O que nos dizem estes dois auto-
res sobre o que é um mapa ao usá-lo para definir a linguagem? O que são
os nomes (linguagem) enquanto mapa (metáfora da linguagem)? O que
são os mapas enquanto linguagem?

1. O MAPA COMO TEXTO

Para darmos andamento a estas perguntas vamos, tal como suge-


rido no final do capítulo anterior, considerar aqui um mapa como texto
em um acontecimento de linguagem. Tal como dissemos no primeiro
capítulo, algo é acontecimento enquanto diferença na sua própria or-
dem. E o que caracteriza a diferença é que o acontecimento não é um
fato no tempo. Ou seja, não é um fato novo enquanto distinto de qual-
quer outro ocorrido antes no tempo. O que o caracteriza como diferen-
ça é que o acontecimento temporaliza. Ou seja, ele não está num pre-

31. Este capítulo é uma versão modificada, em alguns pontos, de "Um Mapa e suas Ruas",
apresentado no Encontro "Cidade Atravessada", Labeurb, Unicamp, 1999, e publicado
em Guimarães (200 I).

59
sente de um antes e de um depois no tempo. Ele instala uma 2. UMA INTENÇÃO ETIMOLÓGICA
temporal idade: essa a sua diferença. De um lado o acontecimento cons-
titui um presente e abre uma latência de futuro, sem a qual ele não é um Antes de olharmos mais de perto o mapa, voltem s 11 l,'SII 1\11 11 i I1
acontecimento de linguagem, sem a qual ele não significa, pois sem ela para o nome da cidade cujo mapa analisamos: Cosmóp lis. Â (111 ílllil d,1
nada há aí de projeção de sentido. O acontecimento tem como seu um nomeação da cidade colocará em relação dois aspectos da c 11'11lI ' II d.1
depois incontornável e próprio do dizer. Por outro lado este presente e designação do nome Cosmópolis: a nomeação da cidade por 'st, Ilfllltt I
futuro próprios do acontecimento funcionam por um memorá vel que os a predicação que o conjunto dos nomes de rua da cidade f'1I1. .111 1I
faz significar "Cosmópolis" (o que se verá pela análise da textualidadc d I1lUp I ,
Voltemos à questão do mapa. Diria que um mapa, por mais que ele Se pensamos aqui a enunciação que nomeou a cidad " r dl'I1H I1
se dê como descrição de um espaço, é antes uma indicação de acessos ao ser levados a pensá-Ia como a ação pela qual uma intençã <;li 11) )10 ' II I
mundo do que uma descrição. procurou qualificar, ou descrever, a cidade ao nomeá-Ia. '. 11111 I ti '
Um mapa, tomado como acontecimento, contém, então, uma latência crição, podemos dizer que o nome procura representar S 1I II!-q '( 111
de futuro. Ou seja, o mapa não pode ser mapa, caminho para uma relação ecumênico, fraternal, universal. Estamos diante de uma tran fornt 1\'1 II
com o mundo, sem esta futuridade, de uma etimologia em predicação do objeto nomeado. Ou seja, '.'('111111
Tomemos, para melhor expressar isso, o mapa da Cidade de diante de uma enunciação do étimo como expressão de uma int 11\ li,
Cosmópolis no Estado de São Paulo, cidade vizinha de Campinas, com Mas, considerando a disparidade entre o presente do L '111(11 I 11
o nome de suas ruas". Pensemos em um mapa atualmente utilizado temporalidade do acontecimento, se esta enunciação é a enuncia; dI 11111
pela prefeitura da cidade. Se ele se dá como mapa, como indicação de étimo, ela é, fundamentalmente, uma enunciação já sobre um esqu \ i1111'11111
caminhos para o mundo, é na medida em que apresenta, como díspares doétimo. Ela enuncia oétimo a partir da lista dos radicais grego c:I II()/ I I'
do presente do sujeito da enunciação do mapa, regimes de tempos gramáticas e de nossos dicionários, onde cosm( o) [do grego ·OSIIlO.\", lil/ I
enunciativos que se conjugam no acontecimento. Há, de um lado, o significa "mundo", "universo" e poli [do grego polis, eos] signifi ti" 'id.I
presente do acontecimento da enunciação do mapa e nele um futuro, um de". E isto coloca desde já que aquilo que se enuncia como lima illt 'n' I I
sempre depois para o qt;;l o mapa é indicação de caminhos para o não é tanto esta intenção mas uma constituição de sentido que ao t 'I [) )1'111il' \I
mundo. Ou seja, é uma indicação de como saber onde estão tais e tais o dizer (constituir sua temporalidade) produz não só este esquc il1l1lll!l
ruas, por exemplo. Em outras palavras, o sentido do mapa não se dá etimológico como ainda outros. E que outros esquecimentos h na nOI 1H ,I
como descrição de uma cidade, nem como narração de sua história, ele ção desta cidade? Ou seja, em que medida este nome não é lima d 's '/i 1I
se dá, diríamos, no sempre depois de seu presente, como instrução se- da cidade, mas efetivamente uma enunciação de sentidos que t '1)1 111111
mântica". Portanto como algo que não indica diretamente o mundo, e temporal idade própria que não é a do Locutor que enuncia? E não ~ I 1111
precisa ser compreendido em si mesmo para que possa funcionar. Se bém o tempo cronológico no qual o dizer transcorreria?
não se coloca a questão da compreensão do mapa, não há como torná-Io Se nos ativéssemos à descrição intencional etimológica (a pr', t'lIl1'
como mapa. E ele deixa de ser o que é: ele não será sequer descrição. do Locutor), teríamos que buscar a descrição da situação parti 11111 11 I
Como descrição de uma cidade um mapa seria uma imitação gros- qual se deu a nomeação. Alguns elementos dessa situação seriam: I) li
seira. Como narração, contaria lima história de épocas diferentes como presente do eu que enuncia (nomeia); b) o passado da criação da iel ttll o
sucessões que se projetaram em contigüidades progressivas. E só. Como c) a cidade (este o objeto a ser designado) criada a partir de uma I 11111
instrução, não sendo nenhuma coisa nem outra, ele é sentido que pode constituída pela Usina Ester (no então município de Campinas) parn 11111
nos dizer mais, tanto do retrato como da história da cidade, do que se gar imigrantes que vieram para trabalhar as lavouras de cana; d I' ÍlIII
fosse diretamente descrição e narração. grantes que vieram inicialmente e que participaram da fundaçã 1:1 rid I
32. No capítulo III analisamos como e o que designam este nomes.
de (os suíços, depois alemães e italianos).
33. Util izo a noção de instrução semântica, já o disse antes, na perspectiva em que é conside- Se estes são elementos da situação na qual a nomeaçã i deu, tlll I I
rada por Ducrot (1984). o nome cujo sentido seria "a cidade universo", enquant uma I 'ri ' 1\

60
[unlificadora elo objeto, é, com efeito, só uma universalização de uma isto é de tal modo que falta no mapa uma projeção que permita pensar o
I arte elos povos do mundo. Por outro lado não é possível deixar de obser- crescimento da cidade no lado esquerdo da rodovia. E neste espaço, no-
var que esta universalização contida na intenção do ato de nomear, ao mear uma rua é também significá-Ia, muito especificamente, como cida-
11 mear como forma de incluir todos os povos, ou de homenageá-Ias, é no de. A cidade de Cosmópolis é em princípio o que está de um lado da
I áxirno lima homenagem à parte que veio para o povoado que se trans- rodovia. E deste modo ela é aquilo que não é a Usina Ester. E este é um
formou em cidade. sentido que a história da relação entre uma e outra construiu.
O nome como intenção de nomear aparece, deste modo, como uma
f rrna de significar os imigrantes como povos do mundo, e não como 4. OS NOMES DE RUA E O MAPA COMO TEXTO
lonas, ou ainda, como trabalhadores da Usina Ester. Reduzir esta no-
I cação à sua intenção etimológica (ao presente do Locutor) não deixa Tomar o mapa enquanto uma unidade é tomar um texto cujos enun-
c mpreender a relação econômica dos habitantes da cidade com os pro:- ciados são os nomes de rua. E o que significa este texto? Tomemos,
prietários rurais e donos da indústria. A intenção etimológica não deixa para buscar uma resposta, os nomes das ruas do Centro da cidade.
também compreender a sobredeterminação do rural sobre a cidade (o Vamos encontrar: Rua Max Hergest (que está no limite do centro com
urbano?) que está aí significando. um bairro), R. dos Expedicionários, R. Santa Gertrudes, R. Antonio
O nome interpretado nos limites da deontologia performativa da Carlos Nogueira, R. 7 de Setembro, R. Campinas, R. Duque de Caxias,
nomeação é, enquanto descrição, uma história edificante. O nome para R. 7 de Abril, R. Otto Hebst, R. Francisco Cesário de Azevedo (que
sempre, interpretado segundo a temporalidade que se instala com a no- está no limite com outro bairro), R. Presidente Getúlio Vargas, R.
meação que abre todas as enunciações de nomes de rua, conta uma histó- Baroneza Geraldo de Rezende, Av. Ester (Avenida Central), R. Dr.
ria bem mais complexa, e não necessariamente edificante. Campos Sales, R. Ramos de Azevedo, Av. 9 de Julho (que está no limite
Mas esta história quero contá-Ia por uma análise global do mapa de com outro bairro).
Cosmópolis e, no seu interior, uma análise mais específica sobre a Rua Podemos tomar também um bairro que apresenta nomes de rua com
dos Trabalhadores, já referida no capítulo anterior. número. Teremos as Ruas 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13. No Caso
./
deste Bairro (Zona Industrial I - Andorinhas) podemos obsel:,var q~le a
3. OS NOMES DE RUAS COMO ENUNCIADOS DE ESPAÇO Rua 4 é continuação direta da Rua dos Sorocabanos, a Rua h contmu-
ação da Jacinto Hackel Fren Aun, a Rua 12 continu~ação da~rofa. !~cyra
Observando o mapa e Cosmópolis enquanto um todo, vemos que a de o. Valente Matiolli . As ruas com os nomes sao do Bairro vizinho,
cidade está, praticamente inteira, limitada pela rodovia "General Milton Parque Residencial das Andorinhas. .
Tavares - SP 322". A cidade fica à direita da rodovia se a direção é Cam- O posto acima nos mostra um aspecto especial deste texto. De mo~o
pinas/Limeira, por exemplo. Pode-se observar que o mapa inclui, neste zeral as designações não são reescrituradas, por outros nomes, pela pro-
espaço, espaços vazios que são tratados como cidade: a linha do mapa que ;ria configuração de que um nome próprio é único relati~amer:te ao "ob-
estabelece o perímetro urbano inclui estes espaços vazios. Ao lado esquer- jeto" que designa. Mas este caso nos mostra que a reescnturaçao po~e se
do da Rodovia fica a Usina Ester (ver Figura I no final deste capítulo). dar. Um enunciado (nome de rua) é reescrituado por outro enunciado
Mas a leitura do mapa nos leva a uma pequena parte da cidade à (outro nome de rua). Isto, no caso do mapa, J?os~ra de modo muito im-
esquerda da Rodovia. E neste caso só se considera o espaço à esquerda portante, sustentando nossa hipótese sob~e o funcH~namento dos nomes,
da rodovia como incluído no limite urbano se está organizado em ruas. que o nome não é um selo para um objeto, ~as e, de algum_modo, a
Neste caso é cidade só o que é rua. construção de um objeto pelo que o nome designa. A constru~ao de um
Os espaços vazios do lado direito da rodovia são considerados cida- objeto deve ser aqui entendida como uma d~visão .do re~l pela hnguagem
,já que estão no perímetro urbano. E quando a cidade cresce e vai para que a ele está exposta e que assim o indendifica simbolicamente.
utro lado da rodovia é a cidade se estendendo sobre o fora dela. Tanto E o que faz texto com estes enunciados (~omes de r~a)? Não. são
qu o que está à esquerda da rodovia só é cidade enquanto já arruado. E relações coesivas, nem de coerência. O que aqm faz texto sao narrativas

63
que só podem ser compreendidas se entendemos aquilo que significam as enunciações que nomeiam as ruas como se fossem enunciações sem
nomeações que se retomam em cada designação de rua. Analisando estas memória, em verdade, por sua temporalização própria, rememoram algo
nomeações veremos que este texto se constitui de enunciações dispersas. específico do discurso administrativo. O memorável aí presente é o da
O Locutor que nomeia uma rua com um número ou com o nome de uma necessidade de uma identificação de lugares no espaço como endereço,
data nacional como 7 de setembro não é o mesmo. E é um outro Locutor ou seja, como lugares em que pessoas determinadas habitam, ou traba-
que nomeia uma rua como Rua Presidente Getúlio Vargas, ou outro ain- lham, etc. Está-se diante de uma temporalidade específica, a do
da que nomeia a avenida Central da Cidade como Av. Ester. adminstrativo, que se mostra sempre como um dizer sem passado,
Pelo que vimos no Cap IH, as enunciações no mapa de Rua 7 de intemporal, o que é fundamento de seu sentido diretivo.
Setembro, Rua DUC]J1.e de Caxias, Rua Presidente Getúlio Vargas, Rua O que faz textutalidade no mapa são relações de enunciados, nomes
Dr. Campos Sales, ao significarem como instrução semântica, ou seja, de rua, que se dão por regiões do memorável que a temporalidade própria
como indicação para acesso ao mundo, o fazem pela constituição de me- do acontecimento faz funcionar.
moráveis diferentes a) da nomeação destas ruas, b) da nomeação das O mapa enquanto texto significa, então, e a continuidade desta
pessoas cujos nomes lhes são dados, c) da enunciação de datas históricas, análise levará a aspectos muito interessantes sobre a cidade em ques-
e d) também da nomeação de outras ruas em outras cidades com estes tão, uma dispersão de lugares de locutor que nomeiam as ruas no de-
nomes. O futuro que, nestas enunciações, habita o acontecimento (estes correr do tempo e vão, a cada nova nomeação, mudando o sentido deste
nomes só se fazem nomes pela latência de futuro que trazem), só se apre- texto. E exatamente porque o que faz o sentido do texto não é que ele
senta como possibilidades de dizer e de sentido por aquilo que no aconte- está no tempo, mas que ele é temporalizado pelo acontecimento, põe o
cimento se rememora, pelas próprias possibilidades que por isso se abrem acontecimento na história.
e que fazem textualidade. Assim estas enunciações de um locutor-oficial Utilizando aqui o conceito de interdiscurso, da Análise de Discurso,
enunciam (no caso dos dois primeiros nomes acima), pela inclusão da tal como proposto anteriormente, o acontecimento, e nele o seu passado
enunciação de um locutor-cidadão, a nacionalidade, e (no caso dos dois (o memorável) é determinado por posições de sujeito no interdiscuro'".
últimos nomes acima), pela inclusão da enunciação de um locutor- Podemos dizer que estes lugares de enunciação (locutor-cidadão, locu-
brasieliro, o pertencimento à ff[stória brasileira. Sentidos que são parte tor-brasileiro, lccutor-cosmopolense, locutor-administrador - poderíamos
da designação destes nomes no mapa, que os apresenta como enunciados também falar de um locutor-paulista, como no caso de Av. 9 de julho)
de um texto. falam da posição de sujeito do poder econômico e do nacionalismo, cru-
Por outro lado as ruas Baroneza Geraldo de Rezende, Santa zamento que inclui (nomes dos proprietários da Usina Ester, por exem-
Gertrudes, Antonio Carlos Nogueira, e a Av. Ester, também enunciadas plo) e exclui (nomes de trabalhadores da Usina) nomeações para as ruas.
no mapa, incluem enunciações de outro lugar social. Todas as nomeações E o que veremos a seguir dá contornos mais claros a isso.
de pessoas tomadas como memoráveis (pela rememoração no aconteci-
mento de nomear) estão ligadas às famílias que criaram a Usina Ester 4. O MEMORÁVEL E O EXCLUÍDO
(decisiva na vida do município do ponto de vista econômico) e propritárias
de fazendas das quais se separou uma gleba para um núcleo habitacional Este texto (o mapa) significava algo antes de se nomear uma rua
no final do século XIX, e que resultou na criação da cidade. O lugar- como Rua dos Trabalhadores e algo distinto depois de incluir esta
oficial que nomeou estas ruas inclui a enunciação de um locutor- enunciação. No momento em que este nome é enunciado ele toma os
cosmopolense, então significado nas designações destes nomes. trabalhadores, enquanto conjunto, como memoráveis. Podemos dizer que
Outro lugar nomeia as Ruas como 1,2,3,4, ... ,13. Neste caso, di- o locutor-oficial (locutor-administrador), ao nomear os trabalhadores como
ria, está-se no lugar de nomeação estritamente adminsitrativo. A nome- conjunto, constitui uma temporal idade tal que nela não se rememoram
ação se dá como se fosse a temporalização de um presente e um futuro trabalhadores específicos que tenham tido participação na história do
sem memória. Ou seja, como se enunciar pudesse serum acontecimen- movimento dos trabalhadores. Ou seja, o acontecimento, ao constituir
to sem história. Mas se estes enunciados no mapa trazem estas 34. No sentido que este termo tem para a análise de discurso. Ver Orlandi (1992 e 1999).

4 65
como lugar social do dizer o locutor-administrador e não o locutor- Este texto significa, então, por temporalidades (e assim
cosmopolense, retira do memorável a história dos trabalhadores de rernernorações) diferentes que nomeiam as ruas na cidade. E se aqui há
Cosmópolis. Não há, em Cosmópolis, por exemplo, uma Rua Egydio alguma sintaxe, é a combinatória de enunciações memoráveis que se dá
Rafacho, líder da greve dos trabalhadores da Usina Ester na década de como forma de dizer quem faz a história da cidade. Não há no mapa
40, e que resultou na criação do Sindicato dos Trabalhadores da Indús- senão a combinatória do descontínuo e do disperso. Ou seja, este é um
tria Açucareira, primeiro sindicado e primeira entidade de Classe da Ci- texto que não tem um presente em que é enunciado, senão inúmeros pre-
dade. Assim ao homenagear os trabalhadores como classe e sentes das enunciações que nomearam e que se mantêm (as enunciações e
intemporalmente, excluem-se os trabalhadores da história da cidade. Eles seus presentes), que se repetem a cada mapa, a cada vez que se endereça
não se identificam como tal aí. Ou seja, enunciar a Rua dos Trabalhado- uma carta, etc.
res significa o silenciamento" da história dos trabalhadores das lavouras Este texto significa também, assim, a relação entre cada um dos pre-
de cana de açúcar e da usina Ester, bem como sobre a história das lutas sentes, e sua necessária futuridade, em que se nomearam as ruas pela cons-
pela constituição do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Açucareira tituição de um memorável que este acontecimento recorta enunciativamente.
a que já nos referimos antes. Podemos aqui dizer que a temporal idade E ao fazer isso o presente se dá como tempo para sempre, para o futuro. É
desta enunciação é parte daquela que nomeou a Cidade como Cosmópolis. assim um presente que se dá para o futuro enquanto presente.
A nomeação da Cidade, no que ela tem de intenção etimológica, recortou
uma memória na qual os imigrantes não estão aí como trabalhadores, Os nomes no Mapa, mesmo que apareçam aí como meras etiquetas
mas como povos diferentes. A Rua dos Trabalhadores não significa os de espaços urbanos, são, enquanto nomes, o mapa (linguagem) que rela-
trabalhadores, mas uma classe vazia de história e portanto de corpos .. ciona esta cidade com sua história, sem a qual ela não é uma cidade. E
estes nomes, inclusive o nome da cidade, são, enquanto sentido (designa-
5. DISPERSÃO TEXTUAL DO lvIEMORÁVEU6 ção), o que produz incessantemente uma identificação dos espaços da
cidade e da cidade consigo mesma. E assim constitui estes espaços como
Um outro aspecto deste texto é a descontinuidade na organização do espaços de identificação de sujeitos. Um Cosmopolense não é uma pes-
memorável. Não se está diantede uma organização temporal geológica, em soa que faz parte da classe das pessoas nascidas, ou moradoras, em
que cada camada remete a um tempo. Observe-se que, por exemplo, no Cosmópolis. Cosmopolense é o que é identificado por todo um processo
centro da cidade há a Rua dos Expedicionários, cuja nomeação se dá como histórico, de que faz parte esta prática enunciativa de nomear lugares e,
enunciação do heroísmo pelo próprio modo como o passado é aqui memo- lembremos, de nomear pessoas.
rável. Este memorável também vai se apresentar pelo nome da Rua Monte , lN o rc E I) E 1l A I n nos
Castelo e pelos das Ruas João Antonio da Silva, Expedicionário Angelo o I - Ccnlro 2 I - Jd • M u r g a r i da 41 - VI. d o Morro Castanho
Salmistrano, Paulo Azevedo Filho, Lui; Mengue e Reinaldo Baloni. A 02· E s r . Exp. de Sc ri ci c un ur a 22·Jd.<loSol 42 - Sn n t n n u
03 - Santo Antonio 23 - Ntícl~() Vila No v u
Rua Monte Castelo percorre dois Bairros, Vila José Calil Aun e Vila Nova, 04 . São Jo c
4J·P'I.\(""1
õ
24 - Jd. Nova E!'Ipcrullça 44 - Pq. Su n Gf o v nn !
começando logo depois do centro. A Rua Expedicionário Angelo 05 - Bela v i st u IV 25 - Jd. Cum pus Su l lc s 45-Kalmtlnn

Salmistrano está no Bairro Santana, que é um dos dois únicos bairros que 06· Jd. Boi" Vista III 26 - Jd. P uu l is t u 46· 03nil.:I RosscIti
07 • Jd . Hul a Vista 27· Jd. Planalto 47· Ch<Ícara Sr o . Antonio
estão do lado esquerdo da Rodovia, e é a última rua da cidade neste lugar, 08· Jd. B~la Vista Continuação 28 - Jd. UOS Sc u r s onis 4R • Pq. tias Lu r nn j ci ras
ou seja, é a fronteira do urbano com o rural. A Rua Paulo Azevedo Filho 09· Chácara Hurizonte 29 - Ld . S,:1. Rosa 49· Pq. das Lu r a n jc i ra s 1I
10 - Vila Fo n t a n u
está no Bairro Recando Nova Cosmópolis, bem distante do centro e do 30 - Cuhab Vil" Cosm os 50· Pq. 0011:1 ESlher
1 I - Vila José K a l il A UII 31 - Jt..I, Coslllopulilano 5 I . Ld . Ch ic o Mendes
lado oposto ao bairro Santana. As outras ruas, com nomes de expedicioná- 12-Bosquc 32 - Real CCIl(cr 52· Pq. ln dc p cn d ê n ciu
rios, acima citadas, aparecem em lugares diversos da cidade. 13-Damiano :\3 - Pq. Ru s u m õ íia 53 - f d . du s Painciras
J 4 • Vila José K alil IX u n 34 - Recanto das Laranjeiras 54 - Pq. dos T r n b alh u do r c s
35. Sobre a noção de silenciamento, ou política do silêncio, ver Orlandi (1992). 15-VilaNova 35 - Recanto Novo COSm6pl)Jis 55· An d o rln h us
36. Sobre a questão da dispersão do sujeito e do sentido no texto, ver, por exemplo, Orlandi e 16 - Vila v a k ul a 3 6 - R cc a 11 t o do seu Ii b r is 56 - Jd. He t o Sp a n a
17 . Vila Gui lb c r m i n u 37 - P q. das l ar a n jciru s
Guimarães (1988). 57 - Ld . Ef dc ru d c
18 - Vila São Pedro 38 - PC]. das Andorinh.\s 58 . Pq. Rosam é li a II
19 . Jd. de Fé v e r i 39· lei. Alvorada 59 . Re s. M uu t BIJllc

ó 20 - Re s . VI. Cosmupolitil 40 - Cohub 30 de Novem bro 60· Vila Gcrm uno

0::1
LIMEIRA

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CAPÍTULO V

NOMES DA CIDADE

Neste capítulo, diferentemente dos capítulos anteriores, faremos a


análise do sentido de designações de nomes comuns. Ou seja, de pala-
vras cuja designação não é de objetos únicos. Para isso tomaremos
palavras relativas à cidade. Vamos nos ocupar do funcinamento semân-
tico de palavras como cidade, município, comarca. O estudo destes
funcionamentos de sentido levará, como se verá, a outras palavras que
designam espaços da cidade.
Para estes percursos de análise, vamos tomar as palavras funcio-
nando em enunciações constituídas em textos da imprensa escrita de
grande circulação (revistas semanais brasileiras, do final de setembro
de 1997).
O que nos interessa é a análise do que estas palavras designam en-
quanto unidades que funcionam em enunciados no acontecimento
enunciativo. Analisar a enunciação não é, de meu ponto de vista, tratar o
funcionamento semântico de uma expressão em um texto no momento e
lugar que este se deu. É analisar as cenas enunciativas nas quais inte-
gram-se estas expressões, que constituíram o sentido da expressão pelo
texto que aí se constrói.
Neste caso interessa-nos, de modo particular, observar como as re-
ferências constituídas no decorrer do texto constituem a designação de
uma palavra específica. Ou seja, mais uma vez, e agora pela análise da
relação designação e referência, a relação da linguagem com o mundo é
vista como construída pejo acontecimento.
A reescrituração referencial funciona no acontecimento como um
modo de predicar o nome, ou os nomes reescriturados. Ou seja, como
dissemos no primeiro capítulo, a reescrituração, ao mostrar-se como di-
zendo o mesmo, diz outra coisa, e esta outra coisa passa a fazer palie da
designação do nome reescriturado.

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I. M ESPAÇO ENQUANTO CIDADE secção é designar o que aí se diz como algo que é cidade. Ao mesmo
tempo, a constituição desta temporalidade do acontecimento orienta a
Vou localizar minha atenção na designação da palavra cidade. disposição e busca das matérias no interior da revista e estabelece uma
Deste modo vou observar as reescriturações, no sentido definido no instrução, um caminho de interpretação.
capítulo I, item 5, envolvendo cidade. Observarei como, num texto es- E se a matéria é uma reescrituração de cidades, de algum modo ela
pecífico, a palavra cidade funciona para referir algo, e como a predica cidades. "Terra Dasaforada", enquanto matéria de um número
reescrituração de cidade faz funcionar outras palavras para a mesma específico da revista, tem um locutor-jornalista como lugar social de sua
referência, de tal modo que estas outras palavras, por referirem algo enunciação. A matéria trata da questão do julgamento de José Rainha por
como o mesmo, constituem uma predicação de cidade e assim constitu- acusação de ser o responsável pelas mortes de duas pessoas "provocadas
em o que cidade designa. Ou seja, vou observar de modo não-segmental pela invasão de uma fazenda em I989"(p. 96,lc). Deste modo invasão
o que tratei inicialmente como a relação integrativa pela qual se observa de uma fazenda é parte do que reescritura cidades.Assim o que se signi-
o sentido das expressões lingüísticas. fica, enquanto presente do acontecimento, pela secção nomeada Cidades,
Vou analisar o que cidade designa no texto "Terra Desaforada" pu- pelo locutor-editor, traz o sentido de algo que a cidade, enunciada numa
blicado na secção Cidades da revista Veja de primeiro de outubro de 1997. outra cena pelo locutor-jornalista, inclui como um externo que dela faz
Tal como para as análises anteriores, procurarei ver o sentido de parte, o rural ("invasão de uma fazenda").
cidade pela análise do acontecimento enunciativo e sua temporalidade, Para avançar na análise tomemos a seqüência abaixo:
observando no texto: a) sua inclusão na secção Cidades da revista; b) o
jogo designativo parafrástico entre cidade, município, comarca (trata-se [1] "O júri de José Rainha Júnior condenou Pedro Canário. Na
de ver, no texto, a substituição de uma palavra por outra e analisar a semana passada, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo tomou a
construção de uma temporalidade própria que assim se constitui); c) as decisão que pendia sobre a cidade desde junho ..."(p. 96, Ia. col.,
reescriturações de enunciados por outros no decorrer do texto, que movi- grifo meu).

.,
mentam a construção das designações.
Temos aqui a referência a uma cidade por seu nome próprio Pedro
1.1. O Campo nas Cidades Canário, ou pelo sintagma a cidade, que o reescreve. Em [1], pelo pro-
A palavra cidade (no plural) aparece no início da matéria, aqui cesso de reescrituração, funciona uma relação anafórica de substituição
utilizada como COl-pUS,como título de uma seção (cidades), em que a que faz Pedro Canário e a cidade se darem como paráfrases um do outro
reportagem está. Todo o texto da matéria é assim um modo de reescriturar (ou seja, tudo que se atribui no texto a Pedro Canário predica cidade e
o que Cidades diz. E nesta medida a matéria é tomada por uma tipologia vice-versa).
da revista, pré-existente, e que dirige o processo de produzir as matérias. Vejamos, então, como se reescriturou no texto um predicado de Pedro
Podemos dizer que, deste ponto de vista, há aqui um locutor-editor que Canário:
nomeia a seção e inclui nela a matéria. Nesta cena enunciativa, o texto
em questão se dá num acontecimento que recorta um memorável especí- [2]"Pedro Canário progrediu.
fico: o de que a revista tem um espaço dedicado à cidade, ou mais especi- Na beira da estrada, o comércio vende até papel para impressora
ficamente, às cidades. Ou seja, o que este acontecimento toma como seu a laser e aluga em vídeo os últimos lançamentes do cinema (2a). A
passado é que a revista fala sobre cidades, não que ela reflete sobre a economia ainda é agrícola. Há um boi e meio por habitante (2b). Mas
questão da cidade. Este acontecimento toma como seu passado um dizer nem 10% dos canarenses vivem no campo (2c)" (p. 97, 2c).
da revista que categoriza seus espaços, sendo que um deles é Cidades.
Deste modo, pode-se dizer que este memorável do acontecimento signifi- Em [2] "na beira da estrada, o comércio vende até papel para im-
ca a matéria "Terra Desaforada" pela atribuição de um pertencimento: o pressora a laser e aluga em vídeo os últimos lançamentos do cinema"
que nela é dito, é dito a propósito de cidades. Enunciar este texto nesta (2a) e "a economia ainda é agrícola. Há um boi e meio por habitante"

70 71
I I" '1ÍIlII' 1111 "P xlr um ri (I' r diu", 'a irn specificarn o pro- que considerando que o sentido de cidade são as determinações que o
i'l' ,s< ,1 iz m ual f i seu progresso (um crescimento comercial que se texto enquanto interioridade lhe confere. Considerando a questão da pa-
st 11 lc P lu estrada numa economia agrícola). Por outro lado, "Mas nem lavra cidades como nome da secção da revista em que está a matéria,
tO 1'0 d s canarenses vivem no campo", reescritura "Pedro Canário pro- temos que considerar que ela aí significa, também, e decisivamente, pelo
l' diu" para limitar o progresso, para negá-Ia (operação feita pelo mas- memorável desta cena enunciativa do locutor-editor que categoriza os
lembro aqui análise que fiz em Guimarães (1987». Ou seja, "mas nem espaços da revista e que faz funcioanr tanto esta (cidade) quanto outras
10% dos canarenses vivem no campo" (2c) reescritura, em verdade, uma designações. Note-se que a cena enunciativa do locutor-jornalista que
argumentação para argumentar no sentido oposto de (2a) e (2b). E assim enuncia a reportagem cita a enunciação do locutor-editor (que categoriza
reescreve a argumentação que sustenta o progresso, para negá-lo. os espaços da revista). Não como algo num tempo anterior, algo
Enquanto reescritura do progresso de Pedro Canário, o comércio empiricamente feito antes, mas como algo que se dá como um passado no
na estrada é o percurso pelo campo como metonímia de cidade: a acontecimento, junto com seu presente. Para avançar na reflexão procu-
informática, a tecnologia, a mídia. O campo, o agrícola, é a criação de raremos observar outros enunciados no texto e a constituição enunciati va
gado ("há um boi e meio por habitante" reescritura "a economia ainda é da designação.
agrícola"), que é parâmetro para medir a produção econômica em rela- A matéria da revista coloca no seu início, como sub-título:
ção à população. Aqui a operação enunciativa do mas opõe campo e
Pedro Canário (cidade), ao mesmo tempo em que sustenta Pedra Caná- [3]"Pedro Canário, famosa por condenar Rainha, perde a chance
rio como cidade que, enquanto tal, inclui tudo que está no campo, no qual de julgá-lo pela segunda vez" (p. 96)
cidade também está pelo que a estrada significa. E na medida em que a
argumentação de mas nem 10% dos canarenses vivem no campo opõe E Jogo no início do corpo do texto diz, tal como colocado há pouco,
campo e cidade, o campo significa a limitação do progresso da cidade.
Por outro lado, esta descrição sobre o rural (o campo) é parte da cidade [4] "Na semana passada, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo
enquanto parte de Pedra Canário (nome próprio da cidade). tomou a decisão que pendia sobre a cidade desde junho, quando
No presente do aconteciatento enunciativo que estamos analisando naquela comarca o militante do movimento dos Sem- Terra, MST,
o que é do campo (agrícola), que está na estrada, é parte do que constitui foi sentenciado a 26 anos e meio de prisão" (p. 96, lc)
os sentidos de cidade. Esta pertença se constitui tanto pela inclusão do
texto na secção Cidades da revista (na cena do locutor-editor) quanto Estamos aqui na cena enunciativa do locutor-jomalista, que cita a
pelas determinações que o texto (na cena do locutor-jornalista) constitui cena do locutor-editor. Não se pode deixar de ver que, na medida em que
para cidade e campo. cita, o locutor-jornalista se apresenta como "sabendo" o que está fazen-
do. Mas se consideramos que o Locutor é afetado por uma posição de
1.2, A Cidade e o Município sujeito, que neste caso é político-administrativa, vemos como o que o
Esta inclusão do campo na designação de cidade tem um processo Locutor mostra como uma citação é o contrário: o locutor-jornalista fala
um pouco mais complexo de constituição. Para observá-Ia vou tomar no interior da cena do locutor-editor.
agora uma outra relação. A que se dá, pelo texto, entre cidade, municí- A interpretação do enunciado [4], emque cidade reescreve Pedro
pio, comarca. As reescriturações de cidade por município e comarca, Canário, predica de Pedra Canário, pela retomada anafórica
no processo de referência à cidade de Pedro Canário sobre a qual é a (reescrituração), como já vimos antes, que ela é uma cidade. Um pouco
reportagem, constróem outros aspectos da designação de cidade, e deste mais à frente no texto Pedra Canário é referida de outro modo:
modo constróem também a designação de município e comarca.
Embora se mostre como uma construção do presente do Locutor, a [5] "Encaixado na divisa com a Bahia, o município tem 22.000
designação de cidade é, de fato, uma configuração construída pelo acon- habitantes".
tecimento. Para o que acabamos de dizer na seção anterior estamos como

72 73
Enunciado cuja interpretação predica de Pedro Canário, por outra Aqui a cidade anaforiza/substitui Pedro Canário, tal como em ou-
reescrituração, que ele é um município. tra legenda à p. 100:
Assim, pelo mecanismo de reescritura da formulação, Pedro Caná-
rio é a cidade famosa e o município encaixado na divisa com a Bahia. [7] "Nunes: em trinta anos, a cidade saiu do mato e entrou em
Como se pode parafrasear Pedro Canário é cidade por Pedra Canário é decadência. "
município? Pelo funcionamento da língua no acontecimento. A formula-
ção enunciativa torna cidade sinônimo de município porque a É interessante ver que em nenhum dos destaq ues produzidos pejas
reescrituração de cidade por município, na medida em que ambas legendas aparece a palavra município. Pode-se, então, dizer que a cidade
reescrituram Pedra Canário, se dá porque o presente do acontecimento refere também a mesma extensão que o município refere, na medida em
constrói esta equivalência, ao lado de memoráveis diferentes que a que o que se refere nos dois casos é também referido por Pedro Canário.
enunciação de cidade e município recortam como passado. Assim o E por isso mesmo é preciso atentar para a diferença entre cidade e muni-
rememorado que faz cidade significar "cidade" e município, "municí- cípio que, como vimos, predica diferentemente (pela reescrituração) Pedro
pio" é trabalhado, no acontecimento, por um presente que, pela Canário. Mas vejamos uma outra sequência:
reescrituração, indistingue, em certa medida, cidade e município. Neste
ponto podemos compreender que há aqui uma indistinção contituída por [8] "No inquérito, os lavradores entoam uma ladainha: haviam
uma posição de sujeito no interdiscurso que estabelece uma dominância caído na conversa de que 3 alqueires esperavam por cada sem-terra
do discurso do cotidiano sobre o discurso jurídico. em Pedro Canário, numa fazenda previamente desapropriada pelo
Servindo-me aqui de colocações de Eni Orlandi (1976), posso dizer Incra." (p. 98, 3c)
que se há uma identidade na paráfrase, há, também, uma diferença: tanto a
cidade quanto o município referem o que Pedra Canário refere. Mas se . Aqui Numa fazenda retoma e especifica Pedra Canário. Ou seja,
esta afirmação se sustenta, ela se sustenta porque a diferença existe. Ou Pedra Canário incluifazenda, inclui terras que estão remetidas ao Incra.
seja, aquilo a que a cidade e o munidfio referem é o mesmo na medida em É a polissemia de Pedro Canário operando. Aqui Pedra Canário é o
que referem a Pedro Canário. Mas, nesta mesma medida Pedro Canário município ou a cidade? De um certo modo as duas coisas: é a cidade que
não refere a mesma coisa caso seja predicado (pela reescrituração) por inclui o campo e é o município. É a cidade enquanto município.
cidade ou por município. Neste sentido, todo conjunto das referências é O município e a cidade referem "o mesmo" que Pedra Canário em
produzido pelo funcionamento enunciativo (o funcionamento da língua no virtude da interpretação anafórica que se faz deste acontecimento
acontecimento) e não por uma relação palavra(com seu sentidoj/coisa". enunciativo, Interpretação que se dá não porque haja uma remissão me-
Está em funcionamento, ao mesmo tempo, uma tripla polissemia: de cânica/inquestionável interna de um termo a outro no fio do texto, mas
cidade de município e de Pedra Canário, o que leva também a afirmar, porque há um presente do acontecimento constituído pela dupla
mais uma vez e por outra via, a não univocidade do nome próprio. reescrituração de Pedra Canário (por a cidade e por o município).
Além das seqüências já consideradas, observemos as legendas que Não há, como uma abordagem estruturalista diria, hiperonímia en-
aparecem sob duas fotos de duas pessoas (Pedro Canário e José Rai- tre cidade e município, uma relação na língua. Há relações de sentido
nha), na p. 97: constituídas pela relação integrativa das palavras no texto. Há sentidos
de palavras constituídos no acontecimento, por uma temporal idade que
[6] "Notoriedade incômoda: fundada por Pedro Canário (acima à não é a do Locutor. Podemos também observar como o dizer do locutor-
esq.), há cinquenta anos, a cidade tomou-se internacionalmente co- jornalista está dito no interior do dizer do locutor-editor, mas isto se dá
nhecida por causa do processo contra o líder dos sem-terra." como homogêneo, como o dizer de um Locutor que enuncia da perspecti-
va de um enunciador-individual. O desconhecimento desta divisão do
7. Esta posição se distancia, assim, daquelas que se dão na linha das formulações de Frege Locutor no acontecimento (que é ora o editor ora o jornalista, que enun-
( 1892). cia como Se fosse ele mesmo, Locutor) é o desconhecimento de que este

74 UH.,1G - Facuklada do Letras


75
l xto se constitui pelo cruzamento das posições de sujeito dos discursos
jurfdico e administrativo do Estado.
Para mostrar a consistência desta análise, retomemos uma seqüên-
ia já utilizada acima, acrescida de um enunciado:

[9] "Encaixado na divisa com a Bahia, o município tem 22.000


habitantes. O MST prometia invadi-lo com 15.000 manifestantes
no dia do julgamento" (p. 96 2ac) CAPÍTULO VI

Neste caso "invadir o município" (o pronome o reescreve município


A CIDADE E OS NOMES DE ESPAÇO
em "invadi-Ia") é paráfrase de "invadir a cidade". Mas contraditoriamente
a cidade não referiria a mesma extensão que município: só enquanto inva-
são da cidade, como parte do município, a invasão seria uma invasão para Nos acontecimentos enunciativos do nosso cotidiano, sabemos como
ojulgamento, embora esta invasão seja uma invasão do município enquan- expressões do tipo
to invasão de suas terras, referência ao MST. Invasão de terras que é,
enquanto tal, invasão da cidade para o julgamento. E neste sentido é tam- a) Gosta da rua! Foi posto na rua
bém invasão da comarca, que marca aqui o jurídico no discurso jomalístico.
Do ponto de vista do que nos propusemos, a análise feita mostra significam o fora, na medida em que expressões do tipo
que, embora não se possa estabelecer uma relação de oposição bem defi-
nida entre o funcionamento designativo destas palavras (cidade, municí- . b) Ele é caseiro
pio, e mesmo comarca), pode-se ver como a designação de cidade é algo
a
instável configurado pela relayo com instabilidade designativa de mu- significam o dentro. Assim poderíamos aqui tomar a cidade como um
nicípio e comarca. Por outro lado, como vimos no início, a instabilidade espaço em que a casa designa o dentro, e a rua designa o fora, que são
da designação de cidade está em relação com a instabilidade designativa tantos e outros espaços. E é sobre estas designações que procuraremos
de campo (rural). Assim cidade designa algo que é "urbano", mas que é falar agora. Para isso vou tomar textos de revistas semanais brasilei-
também o "urbano expandindo-se sobre o campo". E não há dúvida de ras, tal como no capítculo anterior, publicadas também por volta do
que esta expansão tem tudo a ver com a instabilidade designativa que final de setembro de 1997.
relaciona cidade, município e comarca. Podemos tomar o aspecto da significação colocado acima pelo funcio-
As referências vão construindo a designação, que é assim instável. E namento de palavras como ma e casa nas seqüências textuais que seguem.
o caráter desta construção da designação, pela reescrituração referencial, Numa matéria sobre a adesão dos paulistanos às caminhadas en-
mostra um aspecto predicativo nos nomes comuns. O nome comum refere contramos, como título e subtítulo de uma reportagem
a partir de seu aspecto predicativo funcionando em expressões que deter-
minam aquilo que se predica. Ou seja, aquilo que se identifica como objeto [1] "A CIDADE ANDA A PASSOS LARGOS
pela construção de sentido no acontecimento. E deste modo o próprio obje- Espalhados por ruas, parques e praças, mais e mais paulistanos
to referido a cada reescrituração, embora se dê como o mesmo, é sempre descobrem os prazeres e os benefícios ela caminhada" (Veja São
um pouco outro. A relação de designação e referência não é uma relação Paulo, n° 39, p. 14, de 30 de setembro de 1997)
entre uma palavra e um objeto ou conjunto de objetos de uma classe
estabelecida. É uma relação que produz identificações por um processo Em [1] a cidade é reescriturada por mais e mais paulistanos, e
infindável de redizer, próprio do texto. Mais uma vez afirma-se a impossi- nesta medida é significada por seus habitantes e assim pelas atividades
bilidade de uma análise cornposicional do sentido e da referência. destes habitantes: "espalhados por ruas, parques e praças ...descobrem

76 77
os prazeres e benefícios da caminhada". A expressão destas ati vidades é [4] "Monte Líbano
reescriturada como segue, no corpo do texto: F-229-4413, Rua Cavalheiro Basíli Jafet, 38, 10. andar, centro
(50 lugares). 11h/15h30 (fecha sáb. e dom.). T: todos"(idem)
[2] "Pode ser em parques, praças, ciclovias, ruas, academias
de ginástica ou mesmo dentro de casa".(idem) [5] "Churrasco's
F-531-4141, Avenida Roque Petrella, 265, Brooklin Paulista (250
Por esta última reescrituração predica-se cidade, através do que predica lugares). 12h10h (sex. e sáb. até 1h). Cc: V. Estac. c/manobr.(p. 15)
mais e mais paulistanos, por mas, parques, praças ..., casa, onde se dis-
tingue a casa ("pelo menos dentro de casa"), como o dentro, e tudo o mais Nestas três seqüências encontramos três nomes que produzem uma
como o fora: mas, parques, praças, ciclovias, academia de ginástica. divisão da cidade: alameda, rua, avenida. Ou seja, o espaço da cidade,
Toda esta rede de reescriturações constitui o espaço da cidade como ao lado de ser um espaço que se deve dividir é um espaço que ao se
dividido entre a casa (o dentro) e a rua (o fora). Neste ponto é interes- dividir é significado de modos diferentes (a enumeração que reescreve
sante observar que a reescrituração de cidade por ruas, parque ... ou cidade em [1] e [2] também nos mostra isso). Neste sentido a Rua, en-
mesmo dentro de casa, articula os elementos da seqüência como uma quanto designando o fora, o é enquanto designação do espaço público
enumeração que apresenta uma não homogeneidade dos elementos da divido e assim determinado por essas diferentes designações.
I enumeração. Isto é marcado por ou mesmo. Este operador apresenta . Se parássemos nos textos e em uma concepção referenciallógica ou

I~
l'
~
"ou mesmo dentro de casa" não só como um elemento da enumeração
mas toma a enumeração toda como argumento para algo como "toda a
cidade (seus habitantes) beneficia-se das caminhadas". E nesta argu-
pragmática da linguagem diríamos simplesmente que os espaços da cida-
de são categorizados diferentemente e têm nomes segundo estas categori-
. as. Deste modo os nomes classificariam os objetos, colocando-os em seu
I

mentação, na medida em que o dentro da casa é o argumento decisi vo conjunto. Uma concepção deste tipo diria que as palavras alameda, rua
para este envol vimento marcado por ou mesmo, o dentro da casa é mos- avenida, e as sequências [3] a [5] são "referenciais". O que elas fazem é
trado como o último lugar p. ra tais atividades. Podemos dizer que o indicar onde algo está, e rua, alameda, avenida são nomes de espaços
dentro (a casa) e o fora (a rua) significam assim o pessoal (o íntimo) e empiricamente diferentes na cidade. Estas seqüências seriam assim só
o público, respectivamente. endereços na cidade. Elas diriam unicamente que algo está emtal rua, em
tal alameda, em tal avenida.
1. RUAS E CASAS No entanto não é difícil encontrar nas cidades espaços nomeados
rua e alameda, por exemplo, que não tenham, do ponto de vista físico,
. Para pensar um pouco mais sobre a designação de nomes do espaço especial diferença. Em verdade o que difere uma "rua" de uma "alame-
da cidade enquanto fora da casa, tomo nomes como alameda, rua, aveni- da" é que estes dois espaços são diferentes porque designados diferente-
da presentes em três enunciados tirados da revista Veja São Paulo de 24 mente. Designação construída por uma história enunciativa que podemos
de setembro de 1997. Neles o texto que se segue ao nome (próprio) de um entrever pela própria presença de alameda para nomear um espaço num
estabelecimento comercial (um restaurante) é uma reescrituração desse bairro referido como Jardim Paulista, enquanto rua nomeia, nos exem-
nome, predicando-o (mais à frente isto será melhor explicitado). Assim plos acima, um espaço num bairro referido como centro. Uma observa-
rua, alameda, avenida ao referirem algo constituem o que designam por ção do mapa de São Paulo nos dá conta, por outro lado, que estes espaços
aquilo que predicam sobre os restaurantes. nomeados jardins, nos quais as vias públicas são nomeadas alamedas,
estão ligados a uma história de distinção social, a favor dos jardins. Um
[3] "Miski texto como os acima em que há alameda Joaquim Eugênio de Lima,
F-884-3193/7006, Alameda Joaquim Eugênio de Lima, 1690, recOlia um memorável específico, o da distinção social.
Jardim Paulista (78 lugares). llhl20h (sáb. até 18h; dom. até 17h; E se analisamos as três seqüências em questão vemos em [3]
fecha seg.). Cc: todos. T.: C, T, Tr e V. Estac. c/manobr." (p. 09) especificações como "(Sáb. até 18h; Dom. até 17h; fecha Seg.)"," c.

78 79
'(' dos" e "V.Estac. c/manobr." reescrituram "Alameda Joaquim Eugê- [7] "As pernocas são fruto de muito desce-morro e sobe-rnor-
nio de Lima", na medida em que tanto o nome da rua quando as ro( ...) Hoje, os ônibus chegam no topo do morro e as mulatas não
especificações acima, ao reescriturarem Miski, o predicam. Ou seja carregam mais latas na cabeça, corno eu fazia no morro da Água
"(Sáb. até 18h; Dom. até 17h; fecha Seg.)" e "Cc. Todos, Y.Estac. c/ Santa, na zona norte.
rnanobr." são especificações de "Alameda Joaquim Eugênio de Lima"
enquanto uma caracterização de Mi ski, E nesta medida esta É inevitável que se considere aqui a polissernia da palavra morro,
reescrituração de Alameda, pelas especificações acima, predica Ala- na história de sua constituição. Ou seja, a palavra morro de designação
mula, assim constituindo o que ela designa diferentemente de "Rua de acidente geográfico (desce-morro e sobe-morro) passa a designar re-
Ca valheiro Baríli Jafet". Esta última é reescriturada, enquanto reescritura gião da cidade, espaço da cidade do Rio de Janeiro (opõe-se a bairro,
"Monte Libano", por "Fecha Sáb e Dom.)", "T: todos". Não havendo vila, jardim?). Deslize de sentido que se dá na medida em que urna dife-
nenhuma referência a estacionamento e muito menos a manobrista. Além rença social se correlaciona com uma diferença de espaço, e este espaço
do mais esta reescrituração estabelece uma oposição flagrante entre T passa a significar uma parte da cidade enquanto determinada pela diferen-
(Ticket restaurante) e Cc (Cartão de crédito), que aqui rememoram sen- ça social. Assim, se morro descreve, no caso, a geografia em que este
tidos opostos da divisão social. espaço se configura, significa um recorte social ligado à própria descrição
Deste modo palavras como rua, alameda, avenida, não desig- da entrevistada que dá conta de que os habitantes do morro levavam água
nam simplesmente um certo tipo de espaço da cidade, pelas diferen- na cabeça para casa e que hoje o ônibus já chega no topo do morro, ou seja,
ças físicas que tais palavras descreveriam. O que elas designam é, o morro já conseguiu receber um benefício próprio da vida urbana que ele
assim, algo contruído enunciativamente que em verdade constrói con- não tinha. Configura-se assim, pela metáfora e metonímia desta nomea-
tinuamente o objeto designado sob a aparência de ser urna palavra ção, a necessidade de incluir na reflexão sobre estas designações, como
para um objeto desde sempre. Assim estas nomeações constituem uma de resto em geral, a consideração da história enunciativa que constitui
identificação dos espaços designados. Ou seja, se os espaços de uma tais designações, que não são meras indicações ou descrições de espaços.
cidade são chamados rua, so~nte, ou se são chamados rua (um certo A se considerar ainda que mulatas é um nome, enquanto
número) e alameda (outro), tal como em [3] e [4], temos duas cidades reescrituração, para eu de "como eu fazia ...;' na sequência [7]. Deste
identificadas diferentemente. Ou seja, os nomes desses espaços não modo esta enunciação recorta corno memorável os sentidos de mulatas
são uma classificação objetiva dos espaços da cidade. Nomear de rua, (personagens da pobreza, sensualidade, etc, etc) como determinação de
alameda, avenida, etc é constituir a identificação dos espaços com a morro (o espaço desses personagens).
cidade e vice-versa. Vemos, então, como, ao lado de ma, alameda, avenida, nomes como
Para continuar, tomemos uma outra seqüência, em que um novo ruela e morro, constituem por suas designações outras identificações
nome de espaço da cidade aparece. Tomemos uma sequência de uma (sociais) de espaços da cidade e assim da própria cidade. E assim consti-
entrevista na Revista Isto É de 24 de setembro de 1997. tuem a própria designação de cidade, ou a designação de um nome de
urna cidade específica. Estes nomes têm entre si relações que se organi-
[6] "O Táxi amarelo estaciona numa ruela de Botafogo, na zona zam enunciativamente pelas diferentes reescriturações que os afetam, cada
sul do Rio de Janeiro. um a seu modo.
Em um caso temos rua e casa como designações genéricas do
Ao referir um espaço por uma ruela, pode-se ver que o processo de público e do privado, em outro temos uma distinção entre rua e alame-
designação do espaço da cidade em [6] inclui um certo tipo de determina- da em que rua é o comum e alameda é o distinto, em um terceiro caso,
ção (produzida pelo sufixo), ou seja, a designação não é mera indicação. temos ruela e morro desginando espaços dos pobres. E a designação
Poder-se-ia dizer, então, que se trata de uma descrição do espaço. Mas destas palavras, nos três casos considerados, não é comparável, direta-
esta questão deve ser melhor analisada. Tomemos, da mesma entrevista, mente, pois são construções de textualidades diferentes. Pensar a rela-
a seqüência ção destes sentidos envol ve considerar que são todos textos de grandes

80 81
r vi tas de circulação nacional publicados numa mesma época. E nesta estas descrições dizem que X é igual a p+q+r ... E ao dizerem esta identi-
rn dida podemos ver como a construção das designações está afetada dade desdobram um conjunto de predicados. Ou seja, esta descrição é
p r divisões diferentes do real, sob a aparência neutra da descrição. Ou uma qualificação do nome próprio, é uma colocação em movimento do
ja, designar e referir envolve um aspecto político do sentido tal como sentido do nome próprio, por uma reescrituração, Cada um destes restau-
apresentamos no capítulo r. rantes são predicados por um certo grau de refinamento, de "distinção".
Mais uma vez estamos diante da instabilidade da designação. Insta- Por exemplo: têm estacionamento e manobrista e aceitam cartões de cré-
bilidade que funciona sob o modo do estável, do permanente. Rua funci- dito e não Tickets, aceitam ambos, ou aceitam só Tickets e fecham aos
ona num enunciado para um texto como se esti vesse marcada por uma sábados e domingos (fechar aos sábados e domingos rememora o sentido
tabilidade própria de sua referencialidade. Mas, como vimos, o que do restaurante que atende pessoas durante ajomada de trabalho). Lem-
rua designa é a cada momento algo diferente. O objeto designado é assim bre-se que esta análise, mais uma vez, confirma o que dissemos sobre o
uma construção da textualidade sobre a palavra. A instabilidade da de- que alameda designa relativamente a rua e avenida.
ignação de rua é aqui constituída na relação com a instabilidade de O modo de significar os espaços da cidade mostra que eles são
outras palavras que de algum modo reescrituram rua: alameda, avenida, espaços políticos. O espaço que se dá como objetivo, por uma descri-
ciclovia, academias de ginástica de um lado e ruela, morro de outro. ção (referência), atende a objetividade estabilizada do discurso admi-
Como dissemos as palavras da língua significam ao funcionarem no acon- nistrativo, que nomeia oficialmente os espaços da cidade. E o discurso
tecimento. E este funcionamento recorta politicamente o real. da mídia do lazer repercute esta estabilidade da divisão desigual do
Como se vê, todos estes nomes, rua, alameda, avenida, praça, par- social. Por outro lado, o discurso administrativo não se dá senão como
ques, ruela, morro, academia de ginástica, restaurante, casa não desig- efeito da memória discursiva que designou no decorrer da história estes
nam um objeto único, mas objetos que mantêm com o nome uma relação espaços, enquanto divididos.
de constante instabilidade Os sentidos dos espaços da cidade são sentidos de uma divisão e
redivisão constante do social. Redivisão que se expande e se resignifica.
2. OS NOMES DE LUGAR E isto é significado tanto pelos nomes comuns quanto pelos nomes pró-
prios, como pudemos ver neste capítulo. A significação desta redivisão
Retomemos agora à questão dos nomes próprios que já nos ocupou constante do social se faz pelo funcionamento da língua nos aconteci-
quando tratamos dos nomes próprios de pessoa e dos nomes de ruas. mentos de enunciação.
Observemos agora os nomes próprios de estabelecimentos comerciais
(restaurantes) na cidade. 3. ESTRADAS E RUAS
Para isso retomamos às sequências [3], [4] e [5]. Estas três seqüên-
cias apresentam um nome próprio e uma descrição que se mostra como Vou agora percorrer esta redivisão do real pelos sentidos, vindo de ou-
uma descrição do que o nome próprio refere. Tomando a questão do sen- tro lugar. Tomo aqui o texto de uma outra reportagem "Polêmica na Serra",
tido constituído pela relação integrati va no texto podemos ver aí outros sobre a estrada velha São Paulo-Santos (Veja São Paulo, N' 39, p. 10).
aspectos da constituição do sentido. Cada uma destas seqüências tem um
nome próprio que é reescriturado numa descrição que, em verdade, fun- [11] "É um passeio fantástico", diz o publicitário Marcos Ta-
ciona metonimicamente. É pela contigüidade que a descrição é descrição deu Aziz, que, apesar da proibição oficial, costuma percorrer a
do nome. E sendo descrição do nome faz este nome significar, significan- rodovia de bicicleta. Para isso, precisa driblar a fiscalização: sai
do assim o que é sua referência. Vejamos como se constituem estas des- de sua residência no bairro da Casa Verde às 5 da manhã de
crições. Elas incluem um endereço; a indicação de telefones; a indicação sábado e ... "(p.lO).
de espaçoinúmero de mesas, lugares); tempo de atendimento; aceitação
ou não de cartões de crédito; a aceitação ou não de Tickets restaurante; Aqui residência no bairro da Casa Verde rememora um espaç da
xistência de estacionamento, ou não, com manobrista, ou não. Assim cidade, significa assim no acontecimento a cidade. Tendo isto em c Ilsi-

2
deração, tomemos de saída uma metáfora de Estrada Velha constituída metáfora da cidade por município. O campo é assim cidade. E é en-
pela retomada (reescrituração) "estrada-parque", na seqüência abaixo, quanto tal que o campo, os sem-terra, invade a cidade. A inclusão do
que é dada como transcrição de um dizer do presidente do movimento em campo como cidade significa uma coisa em "Terra Desaforada" e outra
Defesa da Vida na matéria sobre a Estrada da Serra. E a diferença mostra diferentes
identificações (políticas) do que cidade designa, num caso e noutro.
[12] " "ela precisa de restauração, mas só para receber um nú-
mero limitado de carros e ser visitada como uma estrada-parque", 4. GRILEIROS E POSSEIROS
sugere".(p. 10)
Tomemos ainda outro texto, com uma outra constituição de senti-
Esta reescrituração metafórica da estrada enquanto estrada-par- dos: "Pelo Confronto", incluído na seção "Reforma Agrária" da Veja de
que é, no presente acontecimento, uma metonímia da cidade: significa a 24 de setembro de 1997 (p. 39). Esta matéria tem como sub-título "Mi-
cidade pela afirmação de um parque como espaço de lazer da cidade. nistro prega aliança da polícia com fazendeiros". Vamos considerar ago-
Esta metonímia se propaga por todo o texto. Retomemos à sequência ra a construção de di versas designações e ver como elas constituem seus
[11] já colocada acima sentidos e assim o do texto.Tomemos duas seqüências textuais:

[11] ""É um passeio fantástico", diz o publicitário Marcos Tadeu [13] "Na terça-feira passada, ao receber os secretários de segu-
Aziz, que, apesar da proibição oficial, costuma percorrer a rodovia rança pública no Palácio do Planalto, o presidente Fernando Henrique
de bicicleta. Para isso, precisa driblar a fiscalização: sai de sua resi- Cardoso fez um discurso contra a violência no campo no qual não
dência no bairro da Casa Verde às 5 da manhã de sábado e ..."(p.lO). poupou os fazendeiros. O presidente alertou para o risco de propri-
etários rurais estarem se armando. "O Estado não existe para dar
Aqui é um passeio fantástico predica estrada-porque, que assim se segurança só para um lado", afirmou Fernando Henriq ue, querendo
distingue de residência. Deste .Pil0doa "estrada-parque" é a extensão dos dizer que a polícia deve fazer respeitar a lei, seja quem for que a
sentidos da cidade (a residência) pelo campo (a rodovia que reescritura e viole, fazendeiros ou sem-terra" (p. 39 2c)
é reescriturado por estrada-parque) como o lazer da cidade.
Se comparamos esta análise com a feita no capítulo anterior sobre a [14] "No mesmo dia, horas antes, o ministro da Justiça, Iris
designação de cidade na matéria "Terra Desaforada" vamos observar Rezende, responsável pela política de segurança do govemo federal,
que naquele caso a estrada é a cidade no campo pela metonímia de "o encontrou-se com os mesmos secretários para dar outra visão do pro-
comércio ...impressora a laser ...vídeo ...cinema". Ou seja, a estrada é a blema. "Polícia e fazendeiros têm de andar de mãos dadas para cum-
metáfora da cidade no campo enquanto comércio. O campo é a extensão prir mandados judiciais", afirmou o ministro, referindo-se às opera-
econômica da cidade (ele dá até parâmetro para medir a população: nú- ções policiais para retirar os sem-terra de fazendas ocupadas".
mero de pessoas por cabeça de gado).
Os sentidos da cidade expandem-se, então, por caminhos diferen- A primeira coisa a observar é que nestas seqüências não temos a
tes. No caso da matéria sobre a estrada da serra os sentidos de cidade construção do sentido de cidade. Temos o sentido de campo (significado
estão em expansão enquanto lazer, enquanto distinção/"qualificação". pelo título da seção "Reforma Agrária"), que vou considerar a partir da
No caso da matéria "Terra Desaforada", os sentidos de cidade expan- designação éefarendeiros.
dem-se enquanto economia, e a invasão dos sem-terra (do campo) na Em [13] temos um movimento em que "os fazendeiros", da fala
cidade se dá como conflito quanto ao modo de produção e propriedade. do locutor-presidente, é reescriturado por "proprietários rurais", da
Mas se aqui o campo invade a cidade, esta expansão não é a "urbaniza- fala do locutor-jornalista, e assim faz significar o fazendeiro enquanto
ção" porque, nos sentidos que aí se constituem, a cidade já significa o proprietário. E ao construir a designação de fazendeiro como proprie-
campo enquanto cidade pela metonímia do comércio na estrada e pela tário, a enunciação faz o confronto se significar como um confronto

84
contra a propriedade, confronto que, ao ser configurado aparece como [20] Em Salvador, 3.000 quilômetros quadrados de terras perten-
uma questão jurídico-policial, interpretada pela enunciação da revista centes ao Governo municipal foram ocupados para construção de
que reescritura "O Estado não existe para dar segurança só para um mansões, garagens de ônibus e estacionamentos de Shopping centers".
lado" (do presidente) por "querendo dizer que a polícia deve fazer res-
peitar a lei". Onde segurança é reescriturado por polícia (ou seja, a É interessante observar que, na chamada da matéria, no índice da
designação de segurança é predicada por aquilo que polícia refere) revista, o avanço da classe rica sobre terras públicas aparece como
Além disso a revista, ao colocar a fala do Ministro da Justiça, dá grilagem que é aí qualificada por de rico. Já no título da matéria (em
andamento a esta paráfrase jurídico-policial, tanto pela fala do ministro [15]), na página 76, grilageni é qualificada por chique. O deslizamento
que transcreve quanto pela reescritura de "cumprir mandados judiciais" de de rico (do índice) reescriturado por chique ( no título) e depois por
(do locutor-ministro) por "operações policiais" do locutor-jornalista. Vip em [17] inicia um processo de indiferenciação de responsabilidade
Assim o campo é significado como o espaço desses conflitos. Pode- no que grilagem designa.
ríamos assim dizer que cidade, se aqui fosse designada, significaria, en- Continuando este processo, a grilagem do título será, na formula-
tão diferentemente de cidade em "Terra Desaforada", por exemplo, in- ção textual, reescriturada por ocupar (em 16 e 18), por invasão (em 17 e
clusive pela separação estanque que aqui há entre campo e cidade (que 18) e por donos e posseiros (em 19).
sequer foi significada diretamente). Um aspecto que não se pode deixar de registrar é que a reescrituração
Tomemos, ainda, um outro texto e nele o conj unto de substituições de grilagem por donos e posseiros, em 19, é feita pela mediação de um
'que tem a palavra grilagem, de [15] abaixo, do título da matéria da secção locutor-procurador (ministério público). E nesta ordem: primeiro o pro-
cidades, da revista Veja 40, p.76, de 1997. Esta matéria é publicada uma motor nomeia o grileiro de dono e depois reescritura grileiro legalmente
semana depois de "Terra Desaforada", sobre o julgamento de José Rai- como posseiro. Nesta passagem do texto, grilagem é, logo antes, para-
nha e seus efeitos sobre Pedro Canário, que analisamos antes. fraseado por abriga e em seguida, pela voz dajustiça, por donos e pos-
seiros. E não há, por parte da enunciação do locutor-jornalista, uma
reescrituração de posseiros por grileiros, na continuação do texto.
[15] Grilagem Chique
,- Assim o conceito de posseiro, que reescreve grilagem, e assim
[16] Mansões e condomínios ocupam terras públicas resignifica sua designação, abre o lugar para a inclusão da posição de
órgãos governamentais que acabam por absorver a invasão pela retração
[17] Em boa parte das capitais brasileiras, as autoridades gover- das áreas de preservação ambiental, como se vê em
namentais estão às voltas com um tipo de invasão que nada tem a
ver com os sem-terra. São os invasores vip - um bando de com-terra [21] Diante do evidente ataque ao meio ambiente, a Coordenação de
que ocupa parques e outras áreas públicas com o objetivo de ampli- Desenvolviernnto da Região Metropolitana de Salvador, Conder, não
ar suas posses, ..." pensou em botar os invasores na Justiça. Preferiu simplesmente recuar
os limites do parque. "Se quiséssemos tirar as pessoas de lá, o Estado
[18] Os invasores têm preferência por áreas tranqüilas e arborizadas. teria de indenizá-las pelas benfeitorias - piscinas, quadras, churrasquei-
Em Salvador, o Parque de Pituaçu, que tinha 660 hectares de Mata ras -, e isso ficaria muito caro", diz SôniaFontes presidente da Conder.
Atlântica e lagoas, perdeu um terço de sua área para as ocupações.
Interessa aqui ver como a imprensa, no caso de "Pelo Confronto", pa-
[19] Em Porto Alegre, outra reserva de Mata Atlântica, o Par- rafraseia "o Estado não existe para dar segurança só para um lado" e "Polí-
que Estadual Delta do Jacuí, abriga noventa mansões, 80% delas cia e fazendeiros têm de andar de mãos dadas para cumprir mandados j udici-
sem escritura. "Perante a justiça, os donos dessas casas são possei- ais" do presidente e do minsitro por "operações policiais". Ao contrário,
ros", esclarece o promotor de justiça Ivan Milgaré, do Ministério
Público gaúcho. 38. Grifos meus

86 87
aqui, a imprensa diz grilagem e depois reescritura por ocupar, invasão, e no 5. A CIDADE E A RESIGNIFICAÇÃO DOS ESPAÇOS
limite oposto, por posseiros e donos. Reescrituração esta legitimada por ser
a enunciação da posição de sujeito do discurso jurídico, pela voz que sus- Vê-se assim como aquilo que cidade designa é uma construção per-
tenta a palavra da lei (um locutor-procurador). Assim vemos como a cons- manente dos acontecimentos de linguagem. A instabilidade do que cida-
tituição da designação de fazendeiro como proprietário, na matéria "Pelo de designa afeta as outras designações envolvidas e é por estas afetada. E
Confronto", em [13] e [14], faz um movimento diverso daquele que aqui se isto diz respeito tanto aos nomes comuns quanto aos nomes próprios
faz ao reescriturar grilagem por posseiro e dono. É assim que o problema analisados no capítulo anterior e neste.
se formula como uma agressão ao meio ambiente e não à "propriedade" do A análise feita nos dá alguns aspectos importantes. De um lado há a
Estado, diferentemente do que se observou para [13] e [14]. expansão do sentido de cidade como espaço do jurídico-político. A desig-
nação da cidade, e seus sentidos, se sobrepõe, pela reescrituração
Veja-se, ainda, como a presente matéria é concluída: enunciativa, à do município e da comarca. Por outro lado os sentidos da
cidade passam a significar o campo, tanto pela metonímia do comércio,
[22] Outro empresário, Luiz Eduardo Dutra Abichequer, dono quanto pela metáfora do lazer. A cidade "invade" o campo como ativida-
da fábrica de calçados Datelli, está sendo processado pelo Minsitério de econômica fundamental (o comércio, a mídia, a informática) ou como
Público por construir no parque uma marina para sessenta barcos, lazer para os que se "distinguem", podendo agregar espaços públicos
que exigiu um aterro que afetou o leito do Rio Jacuí, o que pode como se fossem privados. Assim os sentidos do campo se organizam
piorar os problemas de enchentes na região. como cidade, e a designação de campo é predicada pelo urbano. Tanto
que quando o campo significa o que lhe é próprio ele é significado como
o que está em [16] e [20] afirmando a ocupação de terras públicas, negação do progresso da cidade.
se reescreve insistentemente (em [17, 18, 19,20,21,22]) como agressão O que se vê é como os movimentos designativos resignificam cons-
ao meio ambiente, diluindo o gesto de privatização do espaço público por tantemente o real, que não está aí como o empírico, mas como o identifi-
uma grilagem de ricos. , , cado pelo simbólico, que inclui necessariamente o político.
Esta matéria, tal como "Terra Desaforada", do número anterior da
revista, reescritura cidades, nome da secção da revista em que são
publicadas. E ao fazer esta reescrituração constitui designações diferen-
tes para cidade.
Em "Terra Desaforada", uma expansão dos sentidos de cidade in-
vade o campo que se organiza pelos sentidos da cidade, Em "Grilagem
Chique" há uma expansão dos espaços privados de uma classe sobre os
espaços públicos, que neste caso são terras públicas, incluídas no urbano
pela destinação de preservar as condições ambientais. "Grilagern Chi-
que" resignifica e assim redivide os espaços da cidade pelo reconheci-
mento da "distinção" social. Podemos assim compreender que este pro-
cesso específico de designação está produzido a partir da posição de su-
jeito liberal, no interdiscurso.
A designação de cidade desta matéria significa a expansão do pri-
vado sobre o público, e em alguma medida corresponde ao sentido da
rganização urbana sobre o campo enquanto parque, na medida em
que, no último texto analisado, a grilagem é diluída pela reescrituração
textual.

89

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a
CONCLUSÃO

Feito este percurso podemos retomar certos aspectos gerais da re-


flexão que têm um impacto específico sobre o modo de pensar a relação
da linguagem com o mundo. Se não se pode pensar a linguagem sem
considerar que ela fala de algo fora dela, não se pode também considerar
que as palavras significam aquilo que referem, e nem mesmo que a signi-
ficação, o sentido seja um modo de apresentação do objeto.
O que um nome designa é construído simbolicamente. Esta constru-
ção se dá porque a linguagem funciona por estar exposta ao real enquan-
to constituído materialmente pela história. O que uma expressão designa
não é assim nem um modo de apresentação do objeto, nem uma significa-
ção reduzida a um valor no interior de um sistema simbólico. Designar é
constituir significação como uma apreensão do real, que significa na lin-
guagem na medida em que o dizer identifica este real para sujeitos.
Se tomamos os nomes próprios este processo de identificação da
designação é também um processo de subjetivação. Receber um nome é
um modo de fazer o indivíduo se ver como alguém identificado consigo
mesmo na medida em que tem um nome. E neste caso é interessante ver
como aquilo que é designado é constituído pelo funcionamento da nome-
ação (pela qual se dá nome a uma pessoa) e da referência (pela qual se
particulariza algo numa enunciação específica). Deste modo aquele que
nomeia é parte do que identifica um sujeito. Identificação decisiva para
que o funcionamento do nome na enunciação refira alguém. O nome se
refere exatamente porque sua designação identifica a pessoa enquanto
sujeito na sociedade. Ou seja, a referência, a particularização de alguém
que se faz por seu nome é possível porque o nome, no processo enunciativo,
identifica alguém, por este nome.
Neste caso é interessante notar como as relações entre nom ar
designar de um lado e designar e referir de outro, mostram c m [l
deontologia enunciativa não é caracterizada por um conjunto d at s <,tu'

c I
se diferenciam pelas diferentes ações que realizam, mas por um conjunto nomes de outras linguas, mas isto é regulado, no nosso caso, pela Língua
de relações entre estes compromissos que o dizer constitui. É impossível Portuguesa enquanto Língua Oficial das relações no Estado Brasileiro. E
pensar o que faz um nome próprio de pessoa sem pensar o processo pelo isto é parte da designação destes nomes e assim do processo de subjetivação
qual se dá um nome a alguém. Ou seja, tanto o que um nome designa, das pessoas nomeadas. Nesta medida a subjetivação é significada como
quanto o que ele refere e como, está ligado a como um nome é dado a produzida pela relação com o Estado e o indivíduo é subjetivado enquan-
alguém. Isto é tal que a capacidade referencial do nome está ligada a que to cidadão. Na mesma medida, ao ser nomeado, o cidadão é nomeado
a homonímia dos nomes próprios é desfeita pela história enunciativa que enquanto falante da Língua Nacional que o nomeia. Nomear é assim inserir
deu um nome a uma pessoa. Lembremos o que dissemos sobre, por exem- alguém, como falante, num espaço de enunciação específico.
plo, o fato de que Antonio Candido designa ou refere alguém enquanto Algo assemelhado se dá com os nomes de rua, que também funcio-
nome único, na medida em que designará uma pessoa ou outra, conside- nam neste mesmo espaço de enunciação. Isto, ao lado de significar as
rando-se que uma ou outra foi nomeada por locutores diferentes. Uma é cidades como brasileiras, como falantes da Língua Nacional, reforça a
o Antonio Candido nomeado inicialmente Antonio Candido de Mello e relação entre nomear os espaços urbanos como parte do processo de iden-
Souza e outra é um Antonio Candido nomeado inicialmente Antonio tificação e localização dos lugares do cidadão na cidade. Deste modo o
Candido X, por exemplo. A relação não é um nome/uma pessoa, é um memorável que em cada caso funciona numa nomeação de rua, como as
pai/um nome/uma pessoa, onde um pai está aqui para significar uma que aqui analisamos, articula-se com este espaço de enunciação. E aLín-
nomeação feita do lugar social da paternidade. gua do Estado funciona como o impedimento de nomeações "indesejadas"
Embora não seja idêntico o processo, ele é fundamentalmente seme- ao poder do Estado. Isto não significa que o processo de nomeação não
lhante para o caso dos nomes de ruas. Estes nomes designam e referem reielenfique este espaço, embora isto seja difícil, a partir de rememorações
ruas, na medida em que as identificam num certo processo social e histó- não adequadas à constituição do espaço enunciativo da Língua do Esta-
rico. E aqui o processo envolve uma relação de sentido entre a identifica- do. No corpus analisado não nos deparamos com algo deste tipo, ao con-
ção dos espaços pelos nomes e sua localização, enquanto efeito trário. Lembremos aqui a ausência de nomes como o eleEgídio Rafacho,
institucional e administrativo. 9nome de rua trabalha assim a identifica- líder sindical, como nome de rua na cidade de Cosmópolis.
ção do espaço para pessoas e a localização destas pelo Estado. Se passamos aos nomes comuns, observamos que, segundo nosso
Uma pergunta caberia aqui: o que constitui a identificação? A no- ponto elepartida e nossa análise, a divisão do real pelo simbólico consti-
meação ou a designação? A designação, na medida em que é a designa- tui o movimento próprio da designação. Ou seja, estamos também diante
ção da palavra que divide e redivide o real. Mas, no caso dos nomes de um processo de identificação do real pela linguagem, processo pelo
próprios, como vimos, a nomeação é parte do que constitui a designação qual a linguagem se toma capaz de referir objetos particulares, por um
do nome e nesta medida participa desta identificação. Identificação que, processo enunciativo muito específico que articula uma designação e um
por outro lado, inclui as referências que se fazem com o nome e suas acontecimento. Funcionamento muito próprio do que se chama, na tradi-
"reescriturações". Ao mesmo tempo a particularização pela referência é ção dos estudos da referência, de descrições definidas. Neste caso é crucial
resultado deste processo de identificação da designação. Ou seja, é por- ver como as reescriturações de um nome por outros vai, ao referir como
que identifica que o nome refere um ser único. E na medida em que refere o mesmo", refazendo insistentemente a designação do nome reescriturado.
em enunciações diversas, e é também reescriturado por outras referênci- Aqui, de um modo muito específico, a designação trabalha incessante-
as, este nome, o tempo todo, se resignifica. É isto que constitui o proces- mente a divisão e redivisão do real que o processo de reescrituração mo-
so fundamental da instabilidade da designação. vimenta. Esta instabilidade é própria do político que afeta radicalmente a
Se consideramos agora, no caso dos nomes próprios, a relação destas língua. Lembremos aqui como, na matéria "Terra Desaforada" cidade
análises com o espaço de enunciação em que se dão os acontecimentos tem sua designação reconstituída na medida em que vai sendo reescriturada
estudados, temos a considerar que quanto aos nomes de pessoa, o espaço por município e comarca, e na medida em que reescreve Pedra Canário.
de enunciação é o que define o falante enquanto falante da Língua Nacio- 39. O que mostra uma certa inadequação do nome descrições definidas para expressões
nal, da Língua do Estado. O locutor-pai pode até "batizar" seu filho com referenciais como a casa da esquina

92 93
Ou ainda como grilagem tem a designação refeita no desenrolar do texto
"Reforma Agrária". Neste caso, por um processo de reescritura, no qual
grilagem é retomada por referências que vão de invasão a posseiros,
passando por dono, a designação de grilagem é a cada momento outra.
Por outro lado, podemos ver como cidade tem uma designação dife-
rente em cada uma das três matérias analisadas: "Terra Desaforada",
"Cidade Anda a Passos Largos" e "Grilagern Chique".
Em "Terra Desaforada", a designação de cidade se constrói na me-
dida em que é reescriturada por municípios e comarca e reescritura Pedra BIBLIOGRAFIA
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