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CORPO, IDENTIDADE E BOM-MOCISMO

COTIDIANO DE UMA ADOLESCÊNCIA BEM-COMPORTADA


Alex Branco Fraga

CORPO, IDENTIDADE E BOM-MOCISMO


COTIDIANO DE UMA ADOLESCÊNCIA BEM-COMPORTADA

Belo Horizonte
2000
Copyright © 2000 by Alex Branco Fraga

Capa
Jairo Alvarenga Fonseca
(sobre imagem, s/título, de Flávio Gonçalves)

Editoração eletrônica
Waldênia Alvarenga Santos Ataide

Revisão
Cilene De Santis

F811c Fraga, Alex Branco


Corpo, identidade e bom-mocismo — cotidiano de
uma adolescência bem-comportada / Alex Branco Fraga.
— Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
168p. (Coleção Trajetória, 3)
ISBN 85-86583-69-3

1. Educação. 2. Pedagogia. I. Título. II Série.

CDU 37
37.013

2000

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desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos,
eletrônicos, seja via cópia xerográfica sem a autorização prévia da editora.

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www.autenticaeditora.com.br
Apesar de parecer um trabalho solitário o processo de
construção desse livro contou com o apoio de pessoas
especiais que gostaria de agradecer. Profissionais e estu-
dantes da escola Maria Fausta, em particular a professo-
ra Andrea; Parceiras do GEERGE, especialmente Dagmar
e Jane pela dedicação na leitura das versões prelimina-
res; Luís Henrique companheiro de estudo em diferentes
momentos; Flávio amigo de sempre pela produção da ima-
gem que compõe a capa; Guacira pela forma atenta, crítica
e afetiva com que tratou cada escrito que lhe entregava,
idéia que lhe trazia, dúvida que me assaltava; Estelita pela
paciência em escutar cada trecho que não fluía; Gicelda
pela compreensão e carinho partilhados em quase uma
década de convívio e Hector que há pouco mais de um
ano vem reinventando nossa vida.
S UMÁRIO

APRESENTAÇÃO 09

INTRODUÇÃO 15

DOCUMENTOS DE PERCURSO 19
A materialidade do documento 21

SUJEITOS E LUGARES 25
Construção de um sentimento de cidade 27
Anatomias urbanas 32
Escola Maria Fausta 39
A turma de 8ª série 42
As aulas de educação física 48

O TEMPO “TATUADO” NO CORPO 53


“Demonização” da adolescência: é na rua que
mora o perigo 61
Adolescência “endeusada”: o bom filho
(e a boa filha) à casa torna 69
Bom-mocismo: configuração de um
modo de ser adolescente 80
A constituição do “bom-moço” e da “boa-moça” 89
CORPO EM DISCURSO 97
Moralidade (re)marcada no corpo 103
Educação física: um instrumento de escarificação 114
Imprimindo um ritmo ao corpo 117
Futebol “normal” 124

VOZES DA SEXUALIDADE 131


“Brinquei de médico... deu no que deu!” 137
Estabilizando sentidos: as releituras 144
Falando de sexo: enunciados de um
cotidiano adolescente 149

PODE NÃO SER TÃO BOM QUANTO PARECE 157

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 159


APRESENTAÇÃO

Um jovem professor retorna à comunidade onde come-


çou sua atividade docente e, com olhos de pesquisador, preten-
de estranhar o que lhe era comum, percorrer de um modo novo
as mesmas ruas e bairros, questionar o que sempre fora “natu-
ral”. Vai ao encontro de garotos e garotas adolescentes, estu-
dantes de uma escola pública como tantas outras do Brasil. A
paisagem pode nos parecer, à primeira vista, banal: afinal, a
televisão, o cinema, as revistas e os livros estão a dizer, constan-
temente, como vivem esses garotos, o que eles e elas pensam,
fazem, vestem, do que gostam, como falam, etc. Alex Branco
Fraga não desconhece essas informações. Por certo, ele também
teve acesso ao que psicólogos, estudiosos e comentaristas afir-
mam sobre essa “fase da vida”. Mas, talvez por desconfiar das
verdades incontestes, ele se dispõe a esquecer, momentaneamen-
te, todas as certezas já assentadas sobre a juventude e encontrar
garotos e garotas de um modo mais “desarmado”. Além disso,
Alex está intrigado com uma “inquietante harmonia” que esse
grupo de adolescentes transmite. O que há com esses meninos e
meninas? Onde estão os jovens turbulentos e inquietos que a

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C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

mídia apresenta? Para onde foi dirigida a “explosão” de hor-


mônios que todos garantem marcar essa fase? É preciso chegar
mais perto desses garotos e garotas, tentar ouvir o que têm para
dizer, prescindindo, se for possível, da voz autorizada daque-
les que usualmente falam por eles e por elas. É isso que Alex se
dispõe a fazer. Este livro relata o processo do encontro e de
algumas descobertas do autor e registra, com vivacidade e res-
peito, as falas e as práticas dos adolescentes que ele conheceu.
Entendo que as pessoas desconfiem de livros que relatam
estudos acadêmicos. Ainda hoje, apesar de se notar alguma oxi-
genação nas pesquisas, quem se prepara para a atividade de
investigação costuma munir-se de um “arsenal” teórico (deno-
minado assim mesmo, militarmente!) para se aproximar do “ob-
jeto” a ser investigado. Essa estratégia preparatória, certamente
necessária e não desprezível, deve, em princípio, garantir as fer-
ramentas e os instrumentos analíticos indispensáveis para o es-
tudo; no entanto, algumas vezes, acompanha esse “arsenal” uma
rigidez que engessa os movimentos daquele que se lança ao tra-
balho. O resultado é, então, empobrecido: a pesquisa parece des-
tinada a aplicar a teoria ou, dito de outra forma, o objetivo do
estudo resume-se a comprovar a teorização escolhida.
O livro de Alex também resulta de uma pesquisa acadêmi-
ca. Seu texto, contudo, está muito longe da aplicação estrita de
um receituário teórico. Ao contrário, Alex se deixa sugerir por
poetas, artistas e escritores de muitas origens. Não perde o rigor
da análise, pois assume rigor não como imobilidade ou sisudez,
mas como exatidão conceitual, seriedade nos procedimentos,
transparência nos relatos circunstanciados. Desliza da citação
de um autor consagrado para aquela que reproduz a fala de um
garoto num passeio, recheada por sua gíria e pontuada pelos
gestos e expressões de seu corpo. Permite-se contar de si mesmo,
da perplexidade que teve diante de uma determinada situação
ou do modo como reagiu quando uma garota lhe disse que fula-
na era “endeusada”. Enfim, oferece-nos um texto ágil e inquieto.
Caminhamos com ele pelos “cantos” da cidade e depois
pelos da escola. A descrição das diferentes regiões que compõem

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Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

o território urbano é guiada — como ele próprio foi — pelos


estudantes. Eles e elas vão contando os lugares por onde é bom
andar, por onde se pode passar “só de dia”, por onde nunca se
passará. A cidade, na representação dos seus habitantes, é divi-
dida: estabelece-se, à semelhança dos antigos, uma “topografia
da moralidade”. Nessa geografia, a escola é uma referência im-
portante. Meninos e meninas ocupam-na espacialmente e atri-
buem significados aos seus “cantos”; vivem no pátio uma
singular visibilidade, marcada ainda pela exigüidade do espa-
ço e pelos corredores apertados. Uma arquitetura e um traçado
que, muito provavelmente, têm efeitos na movimentação conti-
da dos corpos ou na harmonia dos recreios bem-comportados.
Desembaraçados e soltos quando circulam nos territórios co-
nhecidos, demonstram seu desconforto e ansiedade quando,
circunstancialmente, transitam pelas zonas “estrangeiras”. A
cidade e a escola não apenas constroem fronteiras mas inscre-
vem suas marcas nos corpos desses garotos e garotas.
Segundo Alex, distintos campos discursivos construíram
a adolescência como um “tempo” que é, de algum modo, “ta
tuado no corpo”, uma etapa especial na vida dos indivíduos. A
adolescência biologizada ou psicologizada é percebida como
uma fase de turbulência e transgressão, de agitação, de mudan-
ças desordenadas. A adolescência retratada pela mídia é, mui-
tas vezes, “demonizada”. No tempo adolescente não apenas se
toleram pequenas transgressões, mas essas são quase impositi-
vas, isto é, constituem a “normalidade”. Como compreender,
então, adolescentes não-transgressivos? De onde vem o ar de
“bom-mocismo” que esses garotos e garotas aparentam? Eles
estão imunes às representações usuais da juventude? Como
essas representações operam sobre seus corpos?
Alex deixa de lado a análise fácil que poderia recorrer ao
contraponto (isto é, a uma outra representação de juventude: dis-
ciplinada, ordeira, regrada). Abandona os binarismos e busca
lidar com os complexos jogos sociais: descreve e analisa práticas
diferentes e divergentes que se estabelecem e se entrecruzam, si-
multaneamente, no interior do grupo; indica pontos de tensão,

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C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

de choque ou de convergência. Não há aqui um território isento


da representação transgressiva da adolescência, nem esses jo-
vens estão imunes à sua sedução e risco; mas talvez essa repre-
sentação opere, para eles, mais como demarcadora do território
do “outro”, daquele que eles e elas não devem ou não podem
ser. Como “outro”, a juventude transgressiva também lhes fas-
cina e repugna, provoca atração e repulsa. Fazendo uma analo-
gia às afirmações de Judith Butler, eu diria que essa juventude
“demonizada” fornece o “exterior” e também o apoio para a
produção dos corpos disciplinados. De alguma forma, ela tam-
bém é constitutiva da adolescência regrada.
Alex afirma que “sobre os corpos demonizados se marca
a ferro todo o tipo de desvio: prostituição, embriaguez, uso de
drogas, diferentes perfurações, rugas precoces...” Em contra-
partida, aos ajustados e bem-comportados estaria aparentemente
destinado o “lugar da normalidade corporal”. Nessa dicoto-
mia, assume-se a obviedade da norma. Essa, por ser a referên-
cia, o centro e o critério não se percebe marcada, a norma sempre
se toma como “natural”. Não obstante, contrariando o olhar
apressado, os corpos obedientes são também marcados. Os cor-
pos disciplinados dos bons moços e das boas moças, produzi-
dos socialmente, são igualmente golpeados, todos os dias, pela
ordem e pela regra. Conforme demonstra Alex, um “processo de
polidez” incide sobre esses corpos: “um processo que vai aper-
tando, extraindo, desgastando, produzindo incisões na super-
fície corporal em busca de uma pureza escondida”.
Não se espera deste livro, contudo, a decifração das origens
do discurso normalizador ou a identificação de quem o produz.
Alex não consegue nem pretende responder a essas questões. É
bem verdade que aqui aparecem grupos religiosos capazes de
atrair e mobilizar os jovens, de falar a sua linguagem; uma escola
preocupada em aconselhar e premiar o bom-mocismo; uma co-
munidade que se representa como trabalhadora e ordeira. Mas
nenhuma dessas instâncias é erigida pelo autor como causa jus-
tificadora ou como a explicação de um “fenômeno”. O livro pro-
cura, sim, apontar algumas das formas como são interpelados

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Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

esses adolescentes e como esses discursos atuam sobre os sujeitos.


Fica evidente, também, que essa interpelação não se exerce do
mesmo modo e com o mesmo efeito sobre todos. A par de várias
distinções sociais, Alex dá especial atenção para as diferentes
formas como meninas e meninos vivem a experiência de ser
jovem naquela comunidade. A constituição do “bom-moço” e
da “boa-moça” certamente tem distintas referências e impõe
preceitos desiguais. Essa dessemelhança pode ser evidenciada
em inúmeras dimensões e, de modo particular, no exercício da
sexualidade. Sobre essas distinções e referências falam os garo-
tos e as garotas e “fala” também o silêncio da escola.
São ainda relativamente escassos os livros brasileiros que
tratam do cotidiano escolar bem como da cultura infantil e juve-
nil que ali circula. Dependemos, fortemente, nesse campo, das
produções internacionais, importantes e interessantes, mas que
deixam, obviamente, de contemplar algumas especificidades
próprias de nossa cultura. Investigações como a empreendida
por Alex são poucas. Muito mais raros são os trabalhos realiza-
dos com a sensibilidade e a consistência teórica com que este foi
desenvolvido. Com apoio de estudiosos culturais, bem como de
teóricas e teóricos feministas e pós-estruturalistas, Alex Branco
Fraga revela-se como um autor original, atento a novas pistas e
capaz de estranhar o familiar.
Guacira Lopes Louro

13
I NTRODUÇÃO

Escreve-se sempre para dar vida, para libertar a vida


onde ela estiver presa, para traçar linhas de fuga. Para
isso é necessário que a linguagem não seja um siste-
ma homogêneo, mas um desequilíbrio, heterogênea
sempre: o estilo vai desbravar nela diferenças de po-
tencial, entre as quais qualquer coisa pode passar,
qualquer coisa pode passar-se, pode um relâmpago
surgir da própria linguagem e fazer-nos ver e pensar
aquilo que estava na sombra das palavras, entidades
cuja a existência mal suspeitávamos (DELEUZE, 1996).

Inovações tecnológicas, avanços científicos, diversidade


de comportamentos, novas velocidades, jovens cada vez mais
fora de controle, autoridade de pais, mães e professores cada
vez mais desafiados por adolescentes endiabrados que povoam
nossas ruas e escolas. Em meio a tudo isso pode parecer estranha
a idéia de analisar como se constitui um jeito bem-comportado
e obediente de ser jovem, que cultiva valores familiares e alguns
preceitos religiosos, e que se efetiva nas práticas escolares a
partir de um complexo e eficiente aprisionamento discursivo

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C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

assentado nos corpos adolescentes, “tatuando” sobre suas peles


o que denominei de “bom-mocismo”.
É disso que procurei tratar na pesquisa1 que realizei em
1997 na escola municipal Maria Fausta, localizada em Cachoei-
rinha, região metropolitana de Porto Alegre/RS. A partir das
aulas de educação física de uma turma de 8a série, analisei a
forma como alunos e alunas daquela instituição foram tornando
visíveis em si mesmos normas consideradas verdadeiras, que
apontavam um modo de vida voltado para os bons costumes.
Procurei enfatizar o quanto essa sujeição ao lado “bom” da vida
conformava profundamente, e de forma desigual, os corpos des-
ses “bons-moços” e “boas-moças”.
Da maneira como se apresentavam (e eram apresenta-
dos) dava a impressão de que era muito bom ser obediente. No
entanto, não se tratava simplesmente de uma obediência à au-
toridade instituída na escola (professores, diretora, etc.), ou na
família (pai/mãe) mas sim a um princípio de obediência que os
próprios adolescentes faziam funcionar sobre si mesmos, to-
mando-o como natural.
Naquela comunidade específica, parecia existir algu-
mas condições que indicavam uma maior aceitação por parte
dos adolescentes às regras, à disciplina, aos princípios da boa
conduta, enfim, às premissas fundamentais norteadoras do
comportamento valorizado e almejado por qualquer escola des-
de há muito tempo. Com o passar das observações fui compre-
endendo que esse sujeito obediente era construído (e se
construía) em uma densa trama na qual estavam articulados,
de forma muito forte no interior do espaço escolar, o discurso da
família (patriarcal) e o discurso da Igreja (católica).

1
Essa pesquisa resultou na dissertação de mestrado “Do corpo que se distin-
gue: a constituição do bom-moço e da boa-moça nas práticas escolares”
(1998), desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul, orientada por Guacira Lopes Lou-
ro. O presente texto é integralmente baseado nessa dissertação.

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Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Para dar conta dessas questões, sistematizei o texto em


seis capítulos.
Em “Documentos de percurso”, exponho brevemente a
estratégia metodológica empregada na pesquisa, a forma como
foram sendo alinhavados os dados empíricos, o campo teórico
e as análises, enfim, aquilo que se pode chamar de materialida-
de do texto.
No capítulo “Sujeitos e lugares”, analiso como os(as)
alunos(as) em suas falas, gestos e atitudes foram tornando fami-
liares ou estranhos diferentes lugares: a cidade, a escola, a turma
e as aulas de educação física. Procuro enfatizar de que forma as
“práticas de espaço”2 vão enunciando e tornando visíveis deter-
minados cantos e trajetos a partir de relatos produzidos basica-
mente no interior da escola. Aqui o foco principal é a maneira
como os sujeitos se reconheciam (e eram reconhecidos) dentro
desses lugares, quando falavam ou se deslocavam sobre eles.
Em “O tempo “tatuado” no corpo”, analiso como os dife-
rentes discursos vão constituindo um vocabulário específico e,
ao mesmo tempo, variado sobre a adolescência. Apresento como
vai se configurando uma identidade adolescente demonizada,
contraponto de uma adolescência que emerge paradoxalmente
equilibrada, responsável, obediente e, dentro disso, a forma como
adolescentes daquela localidade específica se mostravam “endeu-
sados(as)”. Nesse processo, foi se configurando nas práticas esco-
lares um modo de ser adolescente que “voltava para a casa”,
reinventava em suas relações escolares preceitos familiares e reli-
giosos dando forma ao bom-mocismo, um discurso que capturava
“endeusados(as) e não-endeusados(as)” em uma relação de obe-
diência aos valores mais tradicionais do bem-viver coletivo.
No capítulo “Corpo em discurso”, procuro apontar de que
forma o corpo foi se tornando um lugar privilegiado de investi-
mento sobre a vida; lugar de convergência de um poder controla-
dor que individualiza o seu desempenho, ao mesmo tempo em

2
Conforme Michel de Certeau, 1996.

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C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

que o regula em favor da espécie humana (FOUCAULT, 1997). Nes-


sa teia discursiva, analiso como o bom-moço e a boa-moça vão
polindo e ajustando em si mesmos as normas do bom-compor-
tamento, por meio de uma série de instrumentos que confor-
mam diferentemente seus corpos. Ao descrever as aulas de
educação física, analiso como esses alunos e alunas vão dando
forma ao que chamei de “procedimentos de separação”: reafir-
mar em cada atividade o que consideram pertinente ao universo
feminino ou masculino.
Em “Vozes da sexualidade”, enfatizo como as questões
relativas à sexualidade se manifestavam no cotidiano desses
alunos e alunas. A partir de algumas narrativas corriqueiras e
dos comentários e releituras de uma peça teatral, vou apontando
como alguns integrantes da turma se preocupavam em demons-
trar um conhecimento meramente “abstrato” sobre sexo; pru-
dentemente distante de um saber “prático”. Aponto como
estruturavam conceitos como: momento certo, hora certa, pes-
soa certa e fala certa quando o momento não era o certo. Pontos
que dimensionavam um modo “correto” de conduzir a sexuali-
dade nas práticas escolares.
Em “Pode não ser tão bom quanto parece”, finalizo pro-
curando mostrar que essa sujeição disciplinada ao lado bom da
vida não se dá sem padecimento, sem a inscrição detalhada de
uma série de exigências e renúncias que tornam viáveis a cons-
tituição do bom-moço e da boa-moça.
Neste trabalho não procuro apontar procedimentos es-
colares mais ou menos adequados no trato com adolescentes
ajustados ou desajustados, mas sim levantar algumas questões
a respeito da configuração cultural dessas identidades, privile-
giando acontecimentos submersos e pouco visíveis da prática
cotidiana, que de alguma maneira tornam viáveis representa-
ções sociais aparentemente contraditórias que convivem conosco
no limiar do século XXI.

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Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

DOCUMENTOS DE PERCURSO

Geralmente os documentos de um determinado percurso


são apresentados como testemunho irrefutável da veracidade da
descrição do autor, tanto pela sua presença no lugar de aconteci-
mento quanto pela sua estratégica ausência no texto escrito. Uma
presença ambígua: mostrar-se para atestar a experiência pessoal
e ao mesmo tempo esconder-se para garantir a objetividade cien-
tífica (CALDEIRA, 1988). Trata-se de uma relação arbitrária entre o
“estar lá”, como uma experiência de cartão postal, e o “escrever
aqui”, no computador, dentro das universidades, com apoio em
textos, seminários, etc., que faz com que certas descrições assu-
mam um lugar de verdade pelo fato de o autor “ter penetrado (ou
ter sido penetrado)” nos (ou pelos) modos de vida que se pôs a
analisar (GEERTZ, 1989).
Analisar os dados obtidos na pesquisa de campo faz par-
te de uma elaboração intrincada que se processa em outra cir-
cunstância e se baseia em uma série de anotações, fotos, vídeos,
que “reinventam” o lugar e o momento vividos. A descrição que
se obtém daí,

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C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

transforma o acontecimento passado, que existe ape-


nas em seu próprio momento de ocorrência, em um
relato, que existe em sua inscrição e que pode ser
consultado novamente (...) o que inscrevemos (ou
tentamos fazê-lo) não é o discurso social bruto do
qual não somos atores, não temos acesso direto a
não ser marginalmente, ou muito especialmente, mas
apenas àquela pequena parte dele que os nossos in-
formantes nos podem levar a compreender (GEERTZ,
1978, p. 29-30).

Trata-se de uma construção muito peculiar do observa-


dor sobre um recorte no tempo e no espaço dos sujeitos e dos
lugares observados. Por isso torna-se importante colocar no texto
a voz de quem descreve misturada às vozes daqueles que são
descritos, para que a narração perca o ar de transcendência e
neutralidade que um certo tipo de realismo investigativo tenta
lhe conferir. É preciso estar presente aqui da mesma forma como
se esteve presente lá, sem, no entanto, deixar de ser o autor da
narrativa para tornar-se um “igual”, uma “cópia” dos sujeitos
descritos (GEERTZ, 1978). Assim, a tarefa de análise toma uma
outra dimensão, menos pretensiosa; perde o caráter de tradu-
ção autêntica a respeito dos acontecimentos cotidianos porque
o ato da narração (re)constitui, em outro lugar, aquilo que é
narrado e, ao mesmo tempo, o próprio narrador, ou seja, de
certa forma é também uma autonarração.
Nessa perspectiva, fui estabelecendo os contornos do ato
de pesquisar. Aos poucos, integrava-me e comunicava-me com
os(as) alunos(as), a professora da disciplina e demais sujeitos da
escola, sem uma pauta prévia ou um roteiro de perguntas. Na
maioria das vezes, os assuntos e os questionamentos se encade-
avam a partir das situações apresentadas ou relatadas em aula.
Nesse processo de pesquisa, o diário de campo1 acabou
sendo um dos instrumentos mais significativos. Nele procurei

1
As citações das falas dos(as) alunos(as) que estão ao longo do texto
foram extraídas desse documento.

20
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

tecer detalhadamente a seqüência dos acontecimentos de aula


em cada sessão, dentro daquilo que me foi possível captar. Um
exercício cotidiano de escrita que foi transformando os fatos
vividos em dados empíricos: a forma como via os jogos, as brin-
cadeiras, as escolhas, as recusas, os sorrisos, os silêncios etc.
constituiu este documento de característica irregular, que re-
presenta um recorte na complexa discursividade local.

A materialidade do documento
O documento não é uma “matéria inerte”, no qual se ten-
ta reconstituir o que se disse ou o que se fez em um outro mo-
mento; ele tem sua própria dinâmica, capaz de operar sucessivas
reformulações no projeto teórico-metodológico que se tinha de-
senhado. Portanto para se evitar cristalizações dentro do cam-
po de análise, é preciso trabalhar sobre a materialidade do
documento, não para distinguir os acontecimentos pela sua
maior ou menor importância, valor ou coerência, mas sim para
tentar articular as diversas coisas ditas e não-ditas em relação a
um determinado campo discursivo.
Procurei estruturar o texto em uma dinâmica que pudesse
costurar em cada trecho as referências teóricas às análises do
documento; acentuando-as aqui e ali — mas sem colocá-las em
um lugar soberano —, para que pudessem partir ou para onde
pudessem convergir todos os fatos. Tampouco se tratava do con-
trário, usar uma prática como lugar de nascimento de uma futu-
ra construção teórica (FISCHER, 1996). Era, então, necessário
construir um texto que procurasse alinhavar essa complexidade.
Para me movimentar dentro dessa lógica, tomei como
referência teórica autores e autoras relacionadas com pesqui-
sas na área dos Estudos Culturais, mais especificamente em
sua articulação com o aporte teórico dos Estudos Feministas,
de Gênero, Corpo, Sexualidade e Educação, bem como autores
e autoras que se relacionam com algumas das teorizações de

21
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Michel Foucault, principalmente no que se refere aos concei-


tos de discurso e sujeito.2
Caracterizar um modo específico de fazer pesquisa na
perspectiva dos Estudos Culturais não é uma tarefa simples. A
pluralidade dos campos interligados e a conseqüente ausência
de prescrições metodológicas, de limites conceituais e de estru-
turas disciplinares precisas fazem dessa área um campo de
múltiplas possibilidades. Não há nenhuma forma preestabeleci-
da de narrativa ou de análise que defina uma posição dominante
nos Estudos Culturais. “Sua metodologia, ambígua desde o início,
pode ser mais bem entendida como uma bricolage” (NELSON,
TREICHLER, GROSSBERG, 1995, p. 9). Mas apesar de parecer algo dis-
perso, é possível identificar alguns elementos recorrentes nos Es-
tudos Culturais. As pesquisas nessa perspectiva, desde suas
primeiras formulações, partilham do compromisso de investigar
as práticas culturais no interior das relações de poder como
também os lugares que os sujeitos ocupam (ou ocuparam) den-
tro dessas mesmas relações. Além disso, permitem a utilização
de documentos que tradicionalmente não desfrutam de prestí-
gio acadêmico para analisar práticas culturais específicas, po-
sicionando-as em relação a outras práticas e às estruturas sociais
e históricas. Nessa lógica, a edificação de uma pesquisa nos

2
Aqui a noção de discurso não se encontra alicerçada somente sob o ponto
de vista lingüístico, mas sim como uma força constituinte do sujeito, na
qual a preocupação não é tanto com o que as palavras querem dizer ou
com o que elas escondem, mas sim perceber como o conjunto das coisas
ditas/não-ditas e as práticas relacionadas funcionam e se fazem funcio-
nar no sujeito. Esse, por sua vez, não é entendido como “uma consciência
que fala, o autor da formulação, mas uma posição que pode ser ocupada,
sob certas condições, por indivíduos indiferentes” (FOUCAULT, 1995a, p.
133). Nessa perspectiva, um indivíduo só se torna sujeito quando se en-
contra identificado em algum discurso, isto é, quando se sujeita a ele
(PINTO, 1989). Conforme Jorge Larrosa, “o discurso não admite nenhuma
soberania exterior a si mesmo, nem a de um mundo de coisas da qual seria
uma representação secundária, nem a de um sujeito que seria sua fonte ou
sua origem (...) É inserindo-se no discurso, aprendendo as regras de sua
gramática, de seu vocabulário e de sua sintaxe, participando dessas prá-
ticas de descrição e redescrição de si mesma, que a pessoa se constitui e
transforma sua subjetividade (1995, p. 66-68).

22
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Estudos Culturais vai depender das questões e estratégias acio-


nadas na delimitação do tema, da escolha dos autores e auto-
ras, bem como da posição que o sujeito venha a ocupar no interior
de seu próprio trabalho.
A partir dessas questões, procurei “desenredar” alguns
problemas teórico-metodológicos que inicialmente me pareciam
intransponíveis. Por exemplo, como empreender uma análise de
algumas práticas escolares dentro da perspectiva levantada, sem
escorregar para discussões de ordem psicológica, visto que os
sujeitos descritos no documento são de “carne e osso” e convi-
vem conosco?
Era preciso, então, elaborar uma análise na qual pudesse
relacionar as condições de emergência do bom-mocismo e a ma-
neira como os sujeitos daquela comunidade pesquisada se cons-
truíam dentro dele. Para isso passava a ser importante estar
atento àquilo que era regular, ao que era dissonante, aparente-
mente contraditório, confuso, estranho, natural, para poder de-
senredar as linhas de sedimentação e fissura desses dispositivos
(DELEUZE, 1996).
Optei em não identificar os sujeitos pelos seus nomes pró-
prios, não só para responder a uma tradição metodológica que
procura salvaguardar identidades, mas para evitar que a análise
pudesse cair em questões como caráter, personalidade etc. — algo
que não seria pertinente à análise proposta, pois não se tratava
aqui de definir os indivíduos ou o espaço geográfico da pesquisa
em si, mas estruturar uma análise que pudesse apontar os modos
de existência de sujeitos específicos (estudantes adolescentes de
8a série), dentro de lugares determinados (uma escola municipal
de Cachoeirinha/RS).

23
SUJEITOS E LUGARES

Município de Depressão Central do Rio Grande do


Sul, com uma área de 36 Km², limita-se ao norte com
Sapucaia do Sul, a oeste com Canoas, a Leste com
Gravataí e ao sul com Porto Alegre. Suas coordenadas
geográficas são: 29°55’30” de latitude sul e 50°58’29”
de longitude oeste. A altitude média do município é
de 7 metros. Cachoeirinha está dentro de um anel
viário formado pela BR-290, RS-18 e RS-20. Essas ro-
dovias permitem acesso rápido a qualquer cidade do
interior de nosso estado e norte do país (MOMBACH,
1991, p. 95).

Essas coordenadas definem tecnicamente os limites ter-


ritoriais do município de Cachoeirinha, produzindo um recorte
cartográfico que dimensiona a cidade no estado, no país e no
mundo. No interior deste conjunto, a cidade também produz
suas distinções pela valorização de determinados traçados, fi-
xados como referência dentro de uma organização funcional e
centralizada, que formam saliências urbanas. Essas saliências
assumem limites visíveis em seu aspecto panorâmico, dando
uma idéia de imobilidade das casas, das praças, das avenidas,

25
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

das pontes. Nesse tipo de descrição os traçados se encontram


graficamente racionalizados, configurando uma visão estabi-
lizada de cidade que procura impor um modo de circulação
aos sujeitos.
Entretanto, é provável que as diferentes pessoas que vie-
ram (vêm) dos mais diferentes lugares e que hoje “fazem” essa
cidade estabeleceram (estabelecem) as suas próprias referências
para localizá-la. Para dizer: “Bem... estou em Cachoeirinha!”, é
necessária toda uma rede de significações complexas que não
se encontram representadas, exclusivamente, nas coordenadas
geográficas. É preciso levar em conta a multiplicidade de luga-
res que compõe esse espaço urbano e as diferentes posições de
onde os sujeitos o visualizam (e nele se visualizam), para tentar
entender como se constrói um sentimento de cidade.
Para Michel de Certeau (1996), esse sentimento se constitui
a partir de uma organização racionalizada que transforma o fato
urbano em conceito de cidade por meio de uma tríplice operação:
produzir um espaço próprio, estabelecer um sistema sincroniza-
do, atemporal e racional de deslocamento e, por fim, criar um sujei-
to universal e anônimo que dê sentido ao aglomerado urbano.
A descrição aqui esboçada, toma a instituição educativa
como referência física e discursiva dessa cidade, onde procurei
analisar o modo como os(as) alunos(as) da 8a série da escola
municipal Maria Fausta edificavam um lugar próprio dentro
desse espaço genérico, por meio de suas conversas, andanças,
preferências, etc. Nesse sentido importava saber como os(as)
alunos(as) incorporavam um traçado particular em uma prática
urbana que “descentrava” essa unidade chamada Cachoeirinha.
Para isso, conforme o poeta gaúcho Mário Quintana, era preciso
olhar para o mapa da cidade como quem estivesse examinando
a anatomia de um corpo.
Essas relações espaciais, mediadas pela totalidade abs-
trata da cidade, estruturam os diferentes cantos do tecido urba-
no, geralmente excluídos de um planejamento racional, mas
instaurados pelos “praticantes ordinários da cidade” — sujeitos

26
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

“cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um ‘texto’ urbano que


escrevem sem poder lê-lo” (CERTEAU, 1996, p. 171).
Assim, o “mapa” de Cachoeirinha que me interessou foi
aquele desenhado pelos(as) alunos(as) daquela escola, não so-
mente por onde se movimentavam, nem pela especificidade dos
lugares que freqüentavam, mas também pela forma com que a
movimentação por esses lugares produzia sentidos que eram
narrados e incorporados ao espaço escolar. Um espaço institu-
cional onde também construí, em momentos e posições diferen-
tes, um sentimento de cidade que se intercruzava com aquele
apontado pelos(as) alunos(as). De certa forma, a produção dis-
cursiva de um espaço próprio (minha/nossa casa, escola, rua,
vila etc.) corresponde a destaques temporais e espaciais nos
traçados da cidade, onde os comportamentos cotidianos são
também vistos como práticas de espaço, pois têm assento sobre
um traçado urbano. Aquilo que o poeta Mário Quintana cha-
mou de “cidade de meu andar”, lugares sobre os quais nos
deslocamos ou distanciamos regularmente e que adquirem sig-
nificados particulares. Nesse conjunto, onde “há tanta esquina
esquisita, tanta nuança de paredes”,1 existem locais onde de-
terminados grupos se permitem circular durante o dia, mas que
à noite não ousariam, lugares onde todos já passaram ao menos
uma vez ou onde nunca se passa. Movimentos contraditórios
da vida urbana que se fracionam e se reintegram ao projeto
racional de cidade, tornando legível, nesse cruzamento de cor-
pos, os trajetos excluídos (CERTEAU, 1996).

Construção de um sentimento de cidade

As cidades revelam os corpos de seus moradores. Mais


do que isso, elas afetam os corpos que as constroem e
guardam, em seu modo de ser e de aparecer, os traços
desta afecção. Há um trânsito ininterrupto entre os cor-
pos e o espaço urbano, há um prolongamento infinito,

1
Extraído do poema “O mapa” de Mário Quintana.

27
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

e em via dupla, entre o gesto humano e a marca “em


concreto” de suas ambições e de seus receios. (SANT’ANNA,
1995a, p. 17)

O sentimento de cidade se assemelha muito ao sentimento


em relação a um estado ou uma nação. Para Stuart Hall, uma
cultura nacional é um modo de construir sentidos com os quais
podemos nos identificar. “Esses sentidos estão contidos nas es-
tórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam
seu presente com seu passado e imagens que dela são construí-
das” (1997, p. 55). Trata-se de um sentimento de comunhão que
interliga um conjunto de sujeitos que se conhecem a uma quanti-
dade significativa de pessoas que nunca se viram, olharam-se ou
sequer ouviram falar umas das outras, mas que se identificam em
uma mesma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 1993).
O “pedaço de chão” que hoje é Cachoeirinha, muito antes
de ser cidade, foi designado por outros nomes que estruturaram
um sentido para cada época, trazido nas falas dos habitantes con-
temporâneos. No livro Memória de Cachoeirinha, Isabel Mombach
procura remontar os acontecimentos passados a partir de indica-
tivos de uma suposta origem constituinte. Nessa narrativa a auto-
ra vai estabelecendo um roteiro extraído da memória coletiva local,
na qual uma ordem linear dos acontecimentos históricos tem, como
fundamento básico, o olhar de diferentes moradores.
Em uma das passagens do livro, Mombach coloca o se-
guinte:

A contribuição dos cachoeirinhenses entrevistados foi


para este livro de grande valia. Foi através deles que
revivemos o passado de nossa cidade, pois não há regis-
tros que descrevam o modo de vida das populações.
Para tanto são necessárias as chamadas “testemunhas
oculares da história”, que resgatam o passado, revivendo-
o em toda a sua riqueza e colorido, trazendo-o para a
vida presente (1991, p. 135).

Dentro dessa lógica, entendo como significativo o fato de os


habitantes de Cachoeirinha se apresentarem por meio de relatos
que se confundem com a própria história da cidade. Ao descrever

28
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

comportamentos, salientam lugares, valorizam certas atitudes,


estão enunciando um modo de existência que se deu (e que se
dá) a partir de determinadas condições imaginadas no limite
urbano. Dentro disso, a análise da cidade no tempo presente
vai estar situada em relação a alguns de seus acontecimentos
recém-passados, que perpassam o estilo de vida dos(as) alu-
nos(as) pesquisados da escola Maria Fausta.
No final do século passado, o que era um imenso hiato de
terra entre a cidade de Gravataí e a capital Porto Alegre, tendo o
rio como divisa, ganhou sua primeira ponte,2 que viria a encurtar
a distância entre ambas. Nessa localidade, com a instalação de
algumas casas comerciais, uma igreja e uma escola, surgiu um
pequeno povoado chamado Ponte da Cachoeira, nome que cons-
tava nos registros das pessoas que nasciam nessas imediações
do rio Gravataí (MOMBACH, 1991).
Mais tarde, com o loteamento de uma fazenda adjacente ao
povoado, começa a surgir a Vila Cachoeirinha, formada por quatro
ruas, além da estrada principal, que se uniam (e se unem) em torno
de uma outra igreja. Nessa configuração, a relação dos sujeitos
com o espaço possuía características singulares. O lazer dos jo-
vens era jogar futebol, ir aos bailes particulares e às festas da igreja.
“Os moradores de Cachoeirinha eram muito religiosos e no início
iam a pé até a Capela Nossa Senhora da Boa Viagem [próxima à
ponte], eram devotos do Divino e percorriam longas distâncias
levando a bandeira a todas as casas.” (MOMBACH, 1991, p. 57).
Com a construção de uma avenida sobre o antigo trajeto
Gravataí/Porto Alegre e mais tarde sua ampliação, a Vila Cacho-
eirinha começa a receber um contigente expressivo de migrantes
vindos especialmente do litoral norte do estado e do sul de Santa
Catarina,3 atraídos pelo desenvolvimento industrial da capital e
arredores. Mesmo na condição de distrito de Gravataí, a relação

2
Depois de algumas modificações, tanto de posição quanto de estrutura,
essa ponte passou a se chamar “Travessia Francisco Medeiros”.
3
Segundo Mombach (1991), nesse período, devido ao grande contingente
de migrantes provenientes do estado vizinho ao Rio Grande do Sul,
Cachoeirinha passa a ser considerada a “capital de Santa Catarina”.

29
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

casa-trabalho estabelecida com Porto Alegre vai lhe conferir o


título de “cidade-dormitório”, que perdurou até a instalação
das primeiras indústrias no município.
A campanha de mobilização pela emancipação político-
administrativa de Gravataí começou com a formação de uma pe-
quena comissão de moradores para estudar as possibilidades de
tal iniciativa junto à comunidade. Mas logo na primeira tentativa
não obtiveram o necessário apoio da população ao projeto. Mais
tarde um segundo movimento também fracassou, mesmo contan-
do com o apoio de alguns deputados estaduais e de políticos liga-
dos a Gravataí. Segundo Mombach, os sucessivos fracassos se
deviam à posição contrária da igreja estampada na intransigência
de um de seus padres, algo que influenciava decisivamente na
formação da opinião pública local. Na terceira tentativa, a comis-
são resolveu procurar o padre “intransigente” para obter seu apoio,
pois “era o líder maior do [futuro] município e, se aceitasse, estava
ganha a ‘parada’” (p. 83). Para surpresa da comissão ele não só
aceitou a idéia como também passou a utilizar os sermões da mis-
sa em favor da campanha, além de mobilizar alguns movimentos
ligados à igreja na coleta de assinaturas para a realização do ple-
biscito. Um ano depois Cachoeirinha já era uma cidade.4
Nessa passagem da descrição da autora, começa a se evi-
denciar a força discursiva da Igreja católica na regulação dos
modos de vida da população local. O próprio processo de eman-
cipação só foi viável naquele momento em função da mudança
de posição e do posterior empenho junto à população de um de
seus padres. Vai se percebendo, ao longo do texto, que o discur-
so da igreja exerceu (e vem exercendo como se verá adiante) um
poder bastante peculiar nessa comunidade. Não é por outro
motivo que Mombach dedica quatro seções relativas à igreja ou
a padres influentes no município. Em relação especificamente
ao padre acima referido, diz o seguinte:

4
“Estiveram engajados no movimento a Associação dos Vicentinos, apostolado
da oração e muitos outros moradores que se encarregaram do abaixo-
assinado para a realização do plebiscito. Assim, em quinze dias realizaram
o pleito e montaram o processo, que foi enviado e aprovado pela Assem-
bléia Estadual em 9 de novembro de 1965” (MOMBACH, 1991, p. 83).

30
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Cachoeirinha era formada por imigrantes da zona


rural, logo uma população de grande religiosidade, a
figura do padre era de grande importância. Ele sabia
disto e a todos conduzia, embora seus métodos nem
sempre fossem muito democráticos. É a ele que se deve
boa parte da formação religiosa, moral e ética do Município
(...) Numa época em que os meios de comunicação
não eram tão difundidos, era ele o responsável por
manter o povo informado dos acontecimentos mun-
diais. (MOMBACH, 1991, p. 65, grifos meus)

Independentemente da personalidade deste ou daquele


padre, é interessante analisar que Isabel Mombach vai descre-
vendo, por intermédio de informações fragmentadas da memó-
ria oral, um forte sentimento religioso que perpassa as práticas
sociais da cidade. Em várias passagens do livro, articula as
precárias condições econômicas da população local a um espí-
rito moralmente bom, considerado inerente em cada trabalha-
dor honesto que se deixa conduzir pelos desígnios da fé. Essa
configuração discursiva marca os comportamentos de determi-
nados grupos e conforma um modo de ser “tolerante”, que res-
ponde prontamente a qualquer apelo paroquial. Na narração do
livro, é bastante significativa a presença da igreja como referên-
cia moral nas questões coletivas. As demais instituições, como a
escola, vão se aglutinando em torno dela, evidenciando a força
de seu poder discursivo não só na formação urbana como tam-
bém nas questões educativas.5 Aqui cabe salientar que essa força
discursiva exercida pela igreja na cidade não configura um texto

5
A forte tutela da igreja no processo de construção das escolas em Cachoeirinha,
de alguma forma se relaciona com o surgimento da escola pública há pouco
mais de um século. Historicamente, a escola para a classe popular surgiu
como uma necessidade, primeiramente católica, de formar o sujeito cristão
ancorando-se na perspectiva moral da reclusão, tal como nos conventos.
Depois, ao ser absorvida pelo estado, vai se pôr a corrigir a classe trabalha-
dora nos seus desvios de conduta, considerados extremamente prejudiciais
para si mesma e para os desígnios da espécie. A escola, então, vai aos
poucos burilando esse sujeito, tornando-o progressivamente um bom traba-
lhador — herdeiro legítimo de um saber racional e de uma lógica religiosa;
isto é, de um bom aprendiz e de um bom cristão (JONES, WILLIAMSOM, 1979;
VARELA, ÁLVAREZ-URÍA, 1992; BOOM, NARODOWISKI, 1996).

31
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

religioso compacto que atravessa os séculos, mas sim implica


um modo particular de compreensão daqueles sujeitos em rela-
ção a esse tipo de discurso.
Conforme Michel Foucault (1995a), as coisas não mantêm
o mesmo modo de existência, sistemas de relações e esquemas de
uso depois de terem sido pronunciadas, isto é, nada permanece
intacto no campo da memória. Só se conservam em função de um
certo número de suportes, procedimentos e certos tipos de insti-
tuições que implementam uma outra configuração.
Nesse sentido, tamanha religiosidade não é uma cons-
trução discursiva presa ao passado nem uma reorganização
exclusiva do município como um todo. Apenas situa-se como
uma entre tantas referências parcialmente selecionadas de um
lugar de poder na vida urbana atual, que compõe essa “história
fundadora”. A relação que se estabelece aqui com os enuncia-
dos pronunciados em tempos distintos passa por um entendi-
mento diferente da lógica de armazenamento utilizada como
metáfora da noção de memória e de recordação (LARROSA, 1995).
Trata-se, isso sim, da reinvenção e incorporação de uma tradi-
ção secular nas práticas contemporâneas desses sujeitos.
Além disso, os elementos antecedentes não foram (e não
são) ativados da mesma forma nas diferentes partes do territó-
rio. É importante dizer que esse sentimento de cidade é enun-
ciado a partir de certas posições no traçado urbano atual. Em
lugares específicos, essa apresentação de Cachoeirinha como
cidade edificada sobre a dignidade de seu povo trabalhador,
honesto e religioso encontra correspondência no comportamento
dos sujeitos. No entanto, a relação topográfica vai estabelecer
uma região discursiva distinta no próprio texto urbano.

Anatomias urbanas

Certamente, os processos do caminhar podem re-


portar-se em mapas urbanos de maneira a transcre-
ver-lhes os traços (aqui densos, ali mais leves) e as

32
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

trajetórias (passando por aqui e não por lá). Mas es-


sas curvas em cheios ou em vazios remetem somen-
te, como palavras, à ausência daquilo que passou. Os
destaques de percursos perdem o que foi (...) Essas
fixações constituem procedimentos de esquecimen-
to. (CERTEAU, 1996, p. 176).

Assim como há diferentes condições temporais na emer-


gência de um discurso, há também diferentes localizações espa-
ciais. Tomando como referência a avenida principal de
Cachoeirinha (Flores da Cunha), é possível visualizar, nos diver-
sos momentos de sua formação, marcos de referência simbólicos
bastante fortes. O traçado atual da avenida, que possui um gran-
de fluxo de veículos, impõe-se na relação entre os sujeitos que a
habitam ou que nela se deslocam. A área considerada central na
cidade se localiza sobre um dos percursos dessa avenida que, de
forma não muito precisa, compreende desde a ponte que faz divi-
sa com Porto Alegre até a Sociedade Esportiva Cachoeirinha (SEC)
— das paradas 46 a 54.6
Cabe-me aqui tomar esse percurso destacado da avenida
não como ponto central, mas como uma entre tantas referências
que se relacionam em um planejamento racional de cidade com
aqueles lugares geralmente esquecidos. Cachoeirinha está en-
cravada na região metropolitana de Porto Alegre, que conta com
um dos maiores índices de violência e criminalidade do Rio Gran-
de do Sul. Aparentemente, tal dado estabelece uma contradição
em relação à forma como a população se vê e se autocaracteriza.
Mas Mombach nos dá alguns indícios a respeito dessa situação,
quando descreve a intensa vibração e alegria com que na época
os moradores envolvidos comemoraram a emancipação política:

Toda esta luta tinha por trás uma revolta, pois senti-
am-se discriminados não só administrativamente,

6
As paradas do transporte coletivo intermunicipal foram e são referências
fundamentais dentro dessa longa avenida. Essas paradas incorporadas
na geografia urbana atual, conservam um sentimento de cidade-passa-
gem que tem seus pontos de fixação entre aqueles/as que estão lá “pa-
rados” por mais tempo.

33
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

mas socialmente, pois constituíam uma periferia de


operários e pequenos comerciantes. Lamentavelmen-
te, na medida em que se organizavam, expulsavam de
seu convívio os mais humildes; aqueles que não obti-
veram o mesmo sucesso. A cidade foi inchando e pro-
liferando novas periferias, e seus moradores sentiam-
se tão marginalizados quanto aqueles (1991, p. 58).

Com o crescimento industrial, uma nova leva de migran-


tes do interior do estado foi atraída para Cachoeirinha. Porém em
número muito maior do que a capacidade de absorção da mão-
de-obra, o que acabou afastando cada vez mais da avenida aque-
les que chegavam para tentar a sorte. Mas esse afastamento não
foi só geográfico, pois essa nova organização produziu também
uma outra forma de relação dos sujeitos com os lugares.
De certa maneira, o que se tornou cidade foi uma topografia
específica. Uma “velha periferia” marcada pela discriminação que
passou a se distinguir moralmente das “novas periferias”, cons-
tituindo sobre o traçado urbano o lugar do “outro”, desse sujeito
trabalhador, honesto e religioso. “Essa prática universal de de-
signar na própria mente um espaço familiar que é ‘nosso’ e um
espaço desconhecido além do ‘nosso’ como o ‘deles’ é um modo de
fazer distinções geográficas que pode ser inteiramente arbitrário”
(SAID, 1996, p. 64).
Segundo Jones e Williamson (1979), vincula-se uma rela-
tiva suscetibilidade para o crime e para doença a certas regiões
da cidade, operando uma distribuição topográfica da mora-
lidade.7 Assim, espera-se esta ou aquela conduta moral confor-
me o local em que se vive, estruturando um olhar e um jeito de
ser para cada um de seus moradores.

7
A formulação desse conceito se deu no âmbito da organização policial e
médica imposta às cidades entre os séculos XVIII e XIX. Definia-se dentro
do traçado urbano os lugares de maior probabilidade de ocorrência de
crimes ou doenças. Relacionava-se diretamente as características físicas do
lugar, tais como ruas estreitas e mal ventiladas, ausência de escolas, esgoto
a céu aberto, etc., às características morais dos habitantes. Dessa forma,
acreditava-se que as doenças contagiosas e a criminalidade, se desenvolviam
em função da predisposição topográfica de determinados locais que influen-
ciavam os hábitos e as atitudes da população. (JONES e WILLIAMSON 1979).

34
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Em Cachoeirinha, há uma série de significações para os


que moram de um lado ou de outro da “faixa”,8 ou para os que
moram mais próximos ou distantes dela. Quanto mais próximo à
avenida, melhor situado se está. Por conseguinte, quanto mais
afastado mais marginalizado. A relação com a avenida configu-
ra posições sociais diferenciadas, fragmenta o sentimento de ci-
dade e organiza os relacionamentos urbanos. Quando alguns
moradores de vilas relativamente distantes dessa avenida se des-
locam de suas casas em direção à região central, dizem que estão
indo “na Cachoeirinha”, como se nela não morassem. Os habi-
tantes dessas localidades sabem que as vilas pertencem ao muni-
cípio, mas sua relação periférica com a avenida, sua posição
distanciada do centro, somente os autorizam dizer “bem... estou
em Cachoeirinha” quando chegam àquele percurso destacado.
As referências de localização se encontram atreladas à
avenida configurando identidades específicas. Nesse texto urba-
no, os grupos (como os de jovens que se rivalizam), reconhecem-
se basicamente pelo território demarcado em cada lado da faixa.
Há o grupo do “Vera”, ligado aos que moram próximo ao clube
esportivo Veranópolis, situado ao lado direito da avenida no sen-
tido Porto Alegre/Cachoeirinha, e há um grupo considerado ri-
val (Cohab), moradores de um conjunto residencial situado ao
lado oposto do “Vera”. Segundo os(as) alunos(as) da escola Ma-
ria Fausta, geralmente um grupo não freqüenta os mesmos luga-
res, as mesmas festas, os mesmos “lados” do outro. Esses(as)
mesmos(as) alunos(as) me informaram que preferem não manter
maiores contatos nem com um nem com outro grupo, para não se
envolverem neste conflito “territorial”. Procuravam assumir uma
posição relativamente neutra que a maior proximidade da aveni-
da lhes conferia, evitando, assim, confusão para o seu lado. Nor-
malmente, o lugar freqüentado pelos(as) poucos(as) alunos(as)
que diziam sair à noite com a devida permissão dos pais era a
Sociedade Esportiva Cachoeirinha (SEC), local prestigiado pela

8
Na região metropolitana de Porto Alegre esse termo popular tem o mes-
mo significado que avenida.

35
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

população por sua condição de clube mais tradicional da cida-


de. Segundo a definição de uma das meninas da escola, esse era
o lugar onde se podia encontrar um pessoal mais “legal”, pois
recebia gente de várias localidades, inclusive de Porto Alegre.
Dessa forma, as diferentes topografias eram demarcadas e posi-
cionadas em relação à avenida, constituindo uma “Cachoeiri-
nha” para cada grupo.
Certa vez, em uma das aulas de educação física, a profes-
sora, por sugestão e insistência de um aluno que conhecia e
freqüentava o local, resolveu utilizar um espaço melhor equipa-
do para o tipo de aula que pretendia ministrar. Esse espaço, um
complexo esportivo e cultural do Serviço Social da Indústria
(SESI) fica na Vila da Paz, antiga área verde situada nos arredo-
res do distrito industrial. Os moradores da Vila da Paz, como
tantos outros em Cachoeirinha, migraram de diferentes lugares
em busca de melhores empregos e de moradia, mas como não
tiveram sucesso na empreitada acabaram tendo que ocupar de
forma irregular os lugares mais afastados da faixa. Nesse local,
mesmo regularizado pela prefeitura municipal, não havia trans-
porte público coletivo, as vias de acesso eram estreitas, o esgoto
corria a céu aberto e, quanto mais se avançava em direção ao
interior da vila, piores eram as condições de habitação.
Logo no início de nossa caminhada em direção ao SESI,
alguns(as) alunos(as) iam apontando onde moravam e os luga-
res onde costumavam brincar ou se reunir. Na medida em que
avançávamos em direção à Vila da Paz, as diferenças geográfi-
cas iam tomando “corpo” nas referências e comentários sobre
as ruas, as pessoas e as casas avistadas ao longo do caminho.
Tal procedimento reafirmava algumas fronteiras simbólicas em
relação à região onde se situava a escola. A caminhada durou
aproximadamente 15 minutos. A maioria dos(as) alunos(as) da
escola se mostrava incomodada com o lugar, mesmo sabendo
que lá moravam alguns colegas da escola. Salientavam em vários
momentos, em cada olhar e em cada fala, sua estranheza, como
se estivessem pisando em um território estrangeiro.

36
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

O ato de caminhar está para o sistema urbano como a


enunciação (o spech act) está para a língua ou para os
enunciados proferidos. Vendo as coisas no nível mais
elementar, ele tem como efeito uma tríplice função
“enunciativa”: é um processo de apropriação do sistema
topográfico pelo pedestre (assim como o locutor se
apropria e assume a língua); é uma realização espacial
do lugar (assim como o ato de palavra é uma realiza-
ção sonora da língua); enfim, implica relações entre po-
sições diferenciadas, ou seja “contratos” pragmáticos
sob forma de movimentos. (CERTEAU, 1996, p. 177)

Na própria turma havia um ex-morador da Vila da Paz,


que se colocou como uma espécie de “guia turístico”. Apontava
referências, destacava trajetos mais curtos ou mais longos e falava
a respeito de algumas curiosidades do local. Mostrava-nos a todo
o momento sua vinculação com o lugar por meio dos relatos de
algumas histórias vividas ali.
Depois de passarmos por toda a vila, avistamos o SESI. De
certa forma, a imponência do local causou surpresa a todos que
nunca haviam estado ali. Esse complexo arquitetônico contrasta
de maneira muito forte com a localidade a sua volta, com vários
prédios distribuídos simetricamente em um amplo terreno cerca-
do, campos de futebol com grama ou areia de praia, várias qua-
dras poliesportivas, salão de festas, salas de jogos e de atividades
múltiplas, além de uma pequena escola mantida em convênio
com a prefeitura. Ao entrarmos nas dependências do SESI perce-
bemos que a quadra onde ocorreria a aula estava ocupada.
O menino-guia foi logo tentando negociar a saída dos
rapazes para que a turma pudesse jogar. Enquanto aguardava
o desenlace das negociações, a maioria dos(as) alunos(as) se
mostrava um pouco tensa e insegura por estar ali. Nosso meni-
no-guia retornou e nos disse que os rapazes não se importariam
em sair da quadra desde que pudessem usar uma de areia de
praia ao lado. A professora, então, foi tentar a liberação dessa
quadra para os rapazes. No entanto, não era tão simples assim,
pois, normalmente, as dependências consideradas mais nobres
não eram liberadas sem a prévia autorização de uma pessoa

37
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

que não estava no local. Não sendo possível, a professora prefe-


riu solicitar a um outro funcionário do SESI um espaço qual-
quer para a realização da aula. Nesse meio tempo, devido à
indefinição, a tensão entre os(as) alunos(as) aumentava. Algu-
mas meninas chegaram a pedir à professora que não insistisse
muito na liberação do local, por receio de algum tipo de represá-
lia quando voltassem para a escola. Não tendo alternativa, o
funcionário se dirigiu até onde estavam os rapazes e pediu para
que saíssem, algo que foi prontamente atendido sem maiores
reclamações. Ele alegou que aquela quadra é emprestada para a
comunidade dentro da política de “boa vizinhança” que pro-
curam preservar, mas que, a princípio, eles só poderiam usar
quando estivessem envolvidos com alguma atividade promovi-
da pela instituição. Assim, o espaço estava “livre”.
Antes da turma ocupar a quadra, a professora foi expli-
car aos rapazes que o grupo não ficaria ali por muito tempo, só
até o término do horário destinado à aula. Um deles respondeu:
“não tem problema não... nem precisa explicar nada”. Embora
as negociações tivessem se desenrolado dentro de um caráter
amistoso, os(as) alunos(as) ainda continuavam apreensivos,
pois todos os rapazes que estavam jogando permaneceram nos
arredores da quadra assistindo à aula, que naquele dia teve a
duração de apenas 15 minutos.
Essa demonstração de insegurança por parte dos(as)
alunos(as) da escola, a regulação implementada pelo SESI e o pró-
prio deslocamento da turma até lá desenharam os contornos de
uma “terra estrangeira” dentro de Cachoeirinha, que se fazia ver
naqueles meninos de “carne e osso” que jogavam futebol. Esse
conjunto de relações, ao mesmo tempo que garantiu o acesso da
turma à quadra já ocupada, legitimou uma topografia moral que
reafirma um sentimento de estranheza em relação à Vila da Paz e ao
seus moradores — esse “outro” do qual se deve manter distância.

No quadro da enunciação, o caminhante constitui a


sua posição, um próximo e um distante, um cá e um
lá. Pelo fato de os advérbios cá e lá serem precisamen-
te, na comunicação verbal, os indicadores da instância

38
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

locutora [...] deve-se acrescentar que essa localização


(cá-lá) necessariamente implicada pelo ato de andar e
indicativa de uma apropriação presente do espaço por
um “eu”, tem igualmente por função implantar o ou-
tro relativo a este “eu”. (CERTEAU, 1996, p. 178).

Nessa perspectiva topográfica é possível dizer que o dis-


curso daquela população trabalhadora, honesta e religiosa, apre-
sentado no livro Memória de Cachoeirinha, edifica-se sobre vários
traçados e na relação entre os diversos cantos desse texto urbano.
Aqui as diferentes posições dos sujeitos e dos lugares não esta-
vam definidas somente pelas ruas pavimentadas ou com esgoto
à céu aberto, mas principalmente na sutileza de cada olhar, ges-
to, ruído e silêncio de seus habitantes.

Escola Maria Fausta

A escola delimita espaços. Servindo-se de símbolos e


códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode)
fazer, ela separa e institui (...) o prédio escolar infor-
ma a todos(as) sua razão de existir. Suas marcas, seus
símbolos e arranjos arquitetônicos ‘fazem sentido’,
instituem múltiplos sentidos, constituem distintos
sujeitos (LOURO, 1997, p. 58).

A escola Maria Fausta se situa na margem esquerda da


avenida,9 em um lugar chamado Vila Márcia. Bem ao lado fica a
Vila Regina, onde está localizado o atual prédio da Prefeitura
Municipal. Segundo moradores(as), ambas praticamente se con-
fundem, ao mesmo tempo em que se diferenciam da Vila da Paz.10

9
Neste trabalho, as referências espaciais em relação à avenida Flores da
Cunha serão tomadas sempre no sentido Porto Alegre/Cachoeirinha.
10
Na região metropolitana de Porto Alegre, geralmente o termo “vila” é usado
em um sentido depreciativo. O sujeito “vileiro” é aquele que representa
algum tipo de risco ao bom cidadão. No entanto em Cachoeirinha pratica-
mente todas as localidades da cidade, independentemente da posição so-
cial, são reconhecidas por esse termo. Dentro dessa lógica, a Vila Márcia e
a Vila Regina são tidas como localidades bem situadas pela proximidade
com a faixa. Mas nessa complexa distribuição geográfica, a “nobreza” da
cidade ocupa o lado direito da avenida, onde se destaca a Vila Eunice.

39
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Maria Fausta é uma das escolas municipais mais próxi-


mas da ponte e da avenida Flores da Cunha. O espaço físico da
escola é muito acanhado, são apenas três pavilhões, sendo um
deles com dois pisos. Nos dois pavilhões de um piso, existem
seis salas de aula e uma cozinha/refeitório. No pavilhão de
dois pisos, encontram-se na parte inferior a sala dos professo-
res e a sala da direção e na parte superior a secretaria, a sala do
Serviço de Orientação Educacional (SOE) e do Serviço de Super-
visão Escolar (SSE) e a biblioteca, que reserva um de seus cantos
para o aparelho de TV e do videocassete. Esses pavilhões foram
construídos nas extremidades do terreno (nas laterais os pavi-
lhões das salas de aula e no fundo o pavilhão administrativo) e
têm suas frentes voltadas para o pátio que se forma na área livre
central. Essa distribuição permite que tudo o que se passa no
pátio seja observado de qualquer ponto da escola. É lá onde
sempre se realizava o recreio e algumas vezes as aulas de edu-
cação física.
Estar na escola Maria Fausta é, de alguma forma, estar
no seu pátio, pois de algum ponto sempre se está olhando as
poucas andanças ou escutando o ruído dos movimentos. Esse
espaço reduzido se enchia e se esvaziava disciplinadamente
durante o recreio; todos(as) os(as) alunos(as) se dirigiam para
lá, não havia outro lugar, pois não era permitido sair da escola,
a não ser com expressa autorização da direção.
O horário do recreio, momento em que os(as) alunos(as)
ficavam mais soltos(as) se destacava por uma movimentação mais
contida, comprimida no vão livre entre os três pavilhões. O que
mais agitava esse horário era a atividade de pular/trilhar corda,
que mobilizava boa parte das turmas. Segundo a diretora, essa
opção pela corda se devia à proibição imposta à prática do fute-
bol durante o recreio, temia-se a possibilidade de algum dano
material ou pessoal causado por uma “bolada”. Assim, ao soar
o sinal para o início do recreio, alunos de diferentes turmas
corriam em direção à fila organizada por eles próprios. Logo
nas primeiras observações pude constatar que o envolvimento

40
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

com essa atividade era significativo e que funcionava sem a


necessidade de um controle externo. As posições eram defini-
das entre si e não se notava qualquer distúrbio no transcorrer
da brincadeira, pois todos, pela própria participação, controla-
vam a si mesmos. Os(as) alunos(as) que preferiam não partici-
par ficavam em pé ou sentados conversando tranqüilamente nos
cantos da escola. Nessa distribuição, pouquíssimos se faziam
notar por atitudes que pudessem chamar a atenção de um modo
mais significativo. A produção do barulho, sempre um proble-
ma para o templo do silêncio que é a escola, decorria da movi-
mentação relativamente contida dos corpos pelo pátio. As
andanças pela escola na hora do recreio deixavam a impressão,
sob um “olhar panorâmico”, de uma inquietante harmonia.
Devido às condições físicas da escola, na maior parte
das vezes, as aulas de educação física se realizavam em uma
pequena praça localizada aproximadamente a uma quadra e
meia da escola. Essa praça é um local muito acanhado e mal
conservado. Possui apenas uma quadra precariamente equipa-
da, que de um lado é cercada por poucas árvores e de outro
pelos muros das casas vizinhas. Trata-se de um espaço um pou-
co maior que o pátio da escola. É possível dizer que essa praça
se incorpora à estrutura física da escola Maria Fausta, pois é lá
que os corpos em movimento, que tanto atrapalham as outras
aulas, têm seu refúgio. A própria comunidade legitima a praça
como o lugar das aulas de educação física dessa escola, até
mesmo porque boa parte dos meninos e meninas que a usam já
foram ou são alunos da escola. Para esses é “natural” desocu-
par imediatamente a praça quando a professora acompanhada
da turma chega lá, sem que haja a necessidade de qualquer
negociação. A professora e a turma também não faziam nenhu-
ma cerimônia para entrar na praça quando estava ocupada,
simplesmente entravam — algo muito diferente do que aconte-
ceu nas dependências do SESI na Vila da Paz.
Essa distinção de lugares e comportamentos não se referia
somente à posição da instituição Maria Fausta no texto urbano,
mas também à posição dos sujeitos no interior do espaço escolar.

41
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

A turma de 8a série

Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se


possa isolá-los e localizá-los; mas também articular
essa distribuição sobre um aparelho de produção que
tem suas exigências próprias (FOUCAULT, 1996a, p. 132).

A escola Maria Fausta possuía no turno da tarde seis


turmas. Duas de 5a, duas de 6a, uma de 7a e uma de 8a série. Foi
a partir dessa última que realizei preferencialmente as observa-
ções contidas neste trabalho.
A turma era composta por 23 estudantes — 16 meninas e
7 meninos. Ao final das atividades de pesquisa, uma menina
saiu e um menino entrou. Essa relação desproporcional entre
meninos e meninas não era uma novidade para a escola. Segun-
do a informação de duas meninas, no ano anterior a turma de 8a
série chegou a contar com apenas um menino.
O processo de formação dessa turma de 8a série foi bas-
tante interessante. Praticamente a metade da turma estudou junta
desde a 3ª série, alguns chegaram a estudar juntos desde o jar-
dim-de-infância. No ano em que foram promovidos da 5a para a
6a série, a escola resolveu proceder a junção das duas turmas de
5a série em uma só (provavelmente por problemas de vagas em
outras séries), algo que não foi bem aceito pelos alunos. Antes
dessa junção, a 8ª série aqui tratada era na época basicamente a
turma 51 e a correspondente 7ª série era a turma 52. Pelo que
parecia, a 51 desfrutava do prestígio de melhor turma da escola,
a mais comportada e estudiosa; já a 52 era considerada uma
turma no geral mais agitada. Mesmo no ano em que estavam
acomodados na mesma turma, sentiam-se como duas. Tanto
que no ano seguinte, conforme o que me relatou uma das alu-
nas, ocorreu uma “seleção natural”: apenas dois meninos da
ex-52 foram aprovados e cursaram no ano seguinte a 7ª série
junto com aqueles alunos e alunas da ex-51, o que praticamente
reinstaurou a configuração anterior das turmas.

42
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Aqui cabe destacar o fato de que um dos grupos, o que já


ocupava o lugar do conturbado na fala da escola, parece só ter
conseguido marcar uma posição contrária a essa decisão, pondo
em jogo um ano letivo de suas vidas. Houve um lento processo de
desligamento consumado na própria reprovação e reafirmado nas
diferentes atitudes e comportamentos das turmas. A 7a série pas-
sou a ser a maior turma da escola enquanto a 8a contava com
apenas 23 alunos. Além disso, as identidades das duas se torna-
ram mais ajustadas ao que delas se dizia: A 7a mais infantil e
turbulenta; e a 8a mais equilibrada e madura.
Essa distinção foi incorporada pelas turmas e se apre-
sentava em diferentes situações na escola, como por exemplo
no conselho de classe participativo.11
O conselho de classe que presenciei marcou o encerra-
mento do segundo bimestre letivo. As atividades começaram com
a leitura do “pré-conselho” — um parecer geral a respeito do
andamento das aulas elaborado pela turma em conjunto com o
professor regente.12 Essa leitura foi feita por uma das meninas
que apontou diversas questões pertinentes ao desenvolvimento
dos conteúdos, bem como algumas considerações sobre o desem-
penho dos professores nas respectivas disciplinas. Tudo dentro
de uma respeitosa, ponderada e na maioria das vezes elogiosa
avaliação, correspondendo a decantada “maturidade” atribuí-
da à 8a série. Os professores unanimemente disseram que se tra-
tava de uma turma muito alegre e muito unida, que eram uns
“amores”, além de muito responsáveis. Entretanto, segundo a
maioria, a turma ainda precisava “melhorar a conversa”, pois

11
O conselho de classe participativo é um ritual escolar realizado sempre
ao final de cada bimestre, no qual todos os alunos são defrontados com
todo o corpo docente para uma avaliação e projeção de seus desempe-
nhos escolares. A escola dedica um dia de aula exclusivamente para
esta atividade. Aos alunos é dado o direito de “falarem tudo” o que
estiverem achando de errado em relação à escola ou aos professores.
12
A figura do regente corresponde a uma espécie de “professor-confessor”
escolhido pela própria turma para ouvir as queixas e dificuldades
trazidas pelos alunos dentro da escola, ou até mesmo fora, dependendo
do relacionamento entre o regente e a turma.

43
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

essa conduta gerava uma agitação prejudicial para a aula e


para os(as) próprios(as) alunos(as). Ou seja, não significava
apenas parar de conversar, mas sim apurar a palavra para que
ficasse o mais afinada possível com a da escola.
Ressaltou-se, ainda de forma geral, a importância de se
pensar no futuro, na vida lá fora, na boa preparação para a acir-
rada disputa por vaga nas escolas públicas de 2° grau em Cacho-
eirinha. Portanto, a turma precisava se compenetrar nos afazeres
escolares e deixar as brincadeiras de lado, ser ainda mais disci-
plinada para conquistar a estabilidade futura.
Um dos professores distinguiu a turma em três grupos
bem definidos: “1. aqueles a quem a gente pede as coisas e eles
fazem além do que foi pedido. 2. aqueles a quem a gente pede,
eles demoram um pouquinho, mas acabam indo... enrolam um
pouco mas fazem. 3. e tem aqueles que precisam de um empurrão
para que possam tomar jeito e irem juntos...”. Classificação com a
qual, demais professores e alunos(as) pareciam estar de acordo.
Além de apresentarem um jeito de ser aluno(a), essas dis-
tinções posicionavam a turma em um espaço próprio dentro da
escola. É bastante interessante analisar que, de certa forma, es-
ses diferentes grupos vão para algum lugar idealizado e não
muito bem definido que coincide tanto com a expectativa do-
cente quanto discente.
Nenhum aluno ou aluna se manifestou quando lhe foi
dada a palavra durante o conselho de classe, nem a favor e muito
menos contra o que estava sendo colocado, parecia que não ha-
via nada para acrescentar e que aquilo que os professores esta-
vam dizendo correspondia ao que deveria ser dito.
Logo após a parte geral, aconteceu a entrega dos concei-
tos bimestrais dentro de uma sistemática que me pareceu inco-
mum. Todos os(as) alunos(as) saíram da sala e ficaram no pátio
aguardando que os professores se dirigissem para uma sala em
frente àquela, já previamente preparada para o segundo mo-
mento. Ali havia classes organizadas em círculo e em número
igual ao de professores da turma. Cada um ocupava o espaço
correspondente ao nome da disciplina que ministrava. Os(as)

44
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

alunos(as), por sua vez, passavam alternadamente de mesa em


mesa com o boletim na mão e recebiam por escrito de cada pro-
fessor os conceitos juntamente com uma pequena frase de in-
centivo ou de alerta. A frase mais escrita era “converse menos”,
além de algumas frases do tipo: “você é um(a) aluno(a) exem-
plar não mude nunca” ou “parabéns, continue assim”.
Tais frases, aparentemente banais, acabam repercutindo
na constituição do sujeito obediente. Naquela localidade, mais
especificamente nessa turma de 8a série, essas recomendações
pareciam penetrar profundamente em alguns meninos e meni-
nas, tornando-se uma espécie de mandamento de todo(a)
bom(boa) aluno(a). Cada um do seu jeito buscava corresponder
às premissas básicas do bom comportamento marcada em cada
boletim escolar. No entanto, não se movimentavam em obediên-
cia à autoridade circunstacial deste ou daquele professor, mas
sim para responder a mais uma norma: inscrever sobre seus
próprios corpos cada frase formulada.
Aqui cabe lembrar que alguns alunos da escola Maria
Fausta são filhos e netos daqueles bons trabalhadores e boas
donas-de-casa de Cachoeirinha, que lavraram seu testemunho
de fé no texto de Mombach (1991). É dentro dessa configuração
que o disciplinamento implementado pela escola vai funcionar
de maneira especial naquela comunidade, de certa forma en-
contrando correspondência nos comportamentos e atitudes de
boa índole apresentados pelos(as) alunos(as).
Mesmo dentro desse quadro, a instituição educativa ne-
cessita visceralmente de todo tipo de distinção para poder justi-
ficar a permanência dos sujeitos em um lugar de passagem
obrigatória. Para tanto, vai sempre projetar para esses alguma
coisa a ser conquistada ali adiante, alcançar algo no horizonte
que nunca chega, a partir de um lugar onde nada do que se faz
é suficiente. Dessa forma se tece

uma configuração específica, um topos, uma


espacialidade própria e um tempo com ritmos e in-
tervalos particulares. Uma regulação sui generis da

45
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

atividade educativa que traça certas formas de compor-


tamento, que assinala rituais determinados e
esteriotipados, que incita uma ordem particular na
atuação dos indivíduos e em sua hierarquização social
(BOOM, NARODOWISKI, 1996, p. 9).13

Dentro dessa estratégia, os procedimentos pedagógicos


vão estar cada vez mais voltados para os detalhes, mesmo para
aqueles sujeitos que geralmente respondem de forma positiva às
normatizações estabelecidas na escola. Assim, vai se estabelecer
não só o lugar das turmas no conjunto da escola como também o
lugar de cada sujeito no interior da turma. Nessa distribuição de
espaços individuais a escola se utiliza de um mecanismo de
controle e regulação dos corpos bastante eficiente: o espelho de
classe. Esse mecanismo tem por função planejar previamente a
ocupação dos lugares na sala de aula, atar o sujeito à cadeira na
qual senta. Trata-se de um mapeamento que indica precisamente
onde os(as) alunos(as) devem sentar, os lugares vazios e prin-
cipalmente quem não deve ficar ao seu lado ou a sua volta. Tal
qual uma planta baixa, vai esquadrinhando os corpos escola-
res pelo comportamento apresentado durante as aulas. Dessa
forma os(as) alunos(as) passam a ser reconhecidos(as) também
pelo lugar que ocupam ou devem ocupar dentro da sala.
Essa estratégia é posta em funcionamento com a intenção
de “melhorar a conversa” entre os(as) alunos(as), propiciando o
almejado silêncio e fazendo com que todos(as) se concentrem
naquilo que deveriam estar concentrados desde o começo. Esse
“espelho” é desenhado sobre um cartaz que reflete a posição de
cada um no conjunto da turma. Todos estão representados na
sua quadrícula particular exposta na parede da sala para que
se vejam e ao mesmo tempo sejam vistos; para efetivar o controle
e a disciplina sobre todos a partir do lugar definido para cada
um. Nessa sistemática,

13
Tradução minha a partir do original em espanhol (BOOM, NARODOWISKI,
1996, p. 9).

46
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

importa estabelecer as presenças e ausências, saber


onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as
comunicações úteis, interromper as outras, poder a
cada instante vigiar o comportamento de cada um,
apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os
méritos [...] uma pressão constante, para que se sub-
metam todos ao mesmo modelo, para que sejam obri-
gados todos juntos “à subordinação, à docilidade, à
atenção nos estudos e nos exercícios, e à exata prática
dos deveres e de todas as partes da disciplina”.
(FOUCAULT, 1996a, p. 131-163).

A escola, tal como a cidade, estrutura-se sob uma organi-


zação racionalizada e central, onde os destaques do que deve-
ria ser ensinado estão associados a todo um conjunto do que
não deveria ser feito ou aprendido.
Porém a estratégia não funcionou conforme se pretendia.
Os professores passaram a reclamar que as conversas não ti-
nham melhorado, tinham até mesmo piorado. Uma aluna me
disse que achava a idéia interessante, pois com a implantação
do espelho de classe, provavelmente, desmanchariam as “pa-
nelas”.14 Mas nem todos partilhavam da mesma opinião, consi-
deravam essa estratégia desproporcional à reputação de
equilíbrio e maturidade alcançada pela turma. Contudo, as pou-
cas manifestações contrárias se restringiram ao aumento das
conversas paralelas e às sutis mudanças de lugar naquelas dis-
ciplinas em que os professores não eram tão exigentes.
Essas normas se referiam à posição ocupada na sala de
aula repleta de mesas e cadeiras. No entanto, não foi prioritari-
amente a partir dessa configuração de turma que as observa-
ções e análises se desenrolaram, mas sim na praça, no pátio, na
sala de aula sem a mobília e nos diferentes lugares percorridos
pela turma nas aulas de educação física.

14
Este é um termo bastante popular entre escolares. Identifica um grupo
de pessoas pela relação de estreita afinidade entre si. As panelas não se
limitam apenas à própria turma, existem alunos(as) que pertencem a
panelas ligadas a uma ou outra turma em função dos laços de amizade
construídos em outras instâncias fora da escola.

47
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

As aulas de educação física

Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no es-


paço escolar e incorporados por meninos e meninas, tor-
nam-se parte de seus corpos. Ali se aprende a olhar e a
se olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende
a preferir (LOURO, 1997, p. 61).

Até o ano de 1996, as turmas de educação física na escola


Maria Fausta eram divididas da seguinte forma: meninos de
uma mesma série tinham aulas com um professor de um lado;
meninas, com uma professora de outro.
Essa estrutura foi modificada no ano de 1997 por alguns
motivos específicos. O professor e a professora da área expuse-
ram que suas respectivas participações nos conselhos de classe
ficavam prejudicadas, pois se limitavam a uma parcela da tur-
ma. Os(as) alunos(as), por sua vez, argumentavam que sendo
as demais aulas mistas, a educação física também deveria ser.
As argumentações surtiram efeito e foram aceitas pela or-
ganização da escola. Assim as aulas passaram a ser mistas, o
que estabelecia para a turma de 8a série uma estrutura diferente.
Essa configuração propiciava, além da nova convivência entre
alunos e alunas, uma série de relações diferenciadas para a dis-
ciplina de educação física naquela escola. Para a professora, se-
ria a primeira vez que trabalharia com os “desconhecidos”
meninos, pois desde a 5a série só havia trabalhado com as meni-
nas. E aqueles, que até então sempre haviam tido um professor,
passariam a ter uma professora.
Minhas observações na escola Maria Fausta se deram
nesse novo cenário. Um cenário de iminente mudança, onde
inicialmente procurei saber de que maneira os(as) estudantes
estavam percebendo essa disposição de aula. Em uma sonda-
gem mais geral, a maioria se mostrou muito receptiva à experi-
ência. Uma das meninas respondeu dizendo que achava essa
alteração muito boa, principalmente pela possibilidade de po-
der trabalhar o futebol de forma mista. Para ela, os meninos
funcionariam como “instrutores” de um esporte no qual não se

48
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

viam como “verdadeiras” praticantes, apesar de já terem joga-


do em anos anteriores. Interpunha-se nessa fala uma “natural”
hierarquia das habilidades com a bola.
Outra menina comentou a respeito de seu estranhamen-
to inicial nessa nova convivência. Sentia que suas colegas fica-
vam um pouco encabuladas com a presença dos meninos nas
atividades corporais com música. Prontamente, um dos meni-
nos respondeu: “se vocês ficam envergonhadas imagina nós
então...” Para eles, seria a primeira vez que participariam de
uma aula desse tipo, pois estavam habituados a uma relação
corporal mediada por alguma modalidade esportiva.
Comecei meu trabalho de pesquisa no final do primeiro
bimestre e o concluí no final do terceiro. As aulas de educação
física contavam com três períodos de 45 minutos por semana,
distribuídos em dois dias (quintas-feiras dois períodos e sex-
tas-feiras um). Para cada bimestre estava prevista uma modali-
dade esportiva coletiva. No primeiro, foi desenvolvido o voleibol;
no segundo, o “futsal”15 e no terceiro o basquete. O planejamen-
to geral era definido a partir desses esportes, entretanto, duran-
te todos os três bimestres, foram desenvolvidas algumas
atividades gimno-rítmicas,16 que se realizavam às quintas-fei-
ras, dia da semana em que a turma tinha dois períodos segui-
dos. Nessas aulas a participação de todos ao mesmo tempo e
durante toda a atividade era imprescindível, tal como no aque-
cimento e nos educativos,17 onde os exercícios eram feitos de

15
Essa é a atual denominação oficial para “futebol de salão”.
16
Esse é um termo usado para definir um campo de atuação na educação
física que compreende diferentes manifestações ginásticas. No entanto,
uso esse termo para designar um conjunto de atividades realizadas
naquela escola com seqüência de movimentos ritmados, acompanhados
por música e não enquadrados em nenhuma referência padronizada ou
regra oficial.
17
Educativos são exercícios decompostos de atividades físicas mais ge-
rais, que têm por objetivo o aprimoramento de certas habilidades.
Procura-se, por meio dessa técnica, fazer com que determinado movi-
mento requerido por uma atividade esportiva possa ser aprimorado
fora do contexto do jogo.

49
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

forma coletiva. Aqui não havia relação direta com as regras


oficiais, até porque essa atividade não foi configurada como
uma modalidade esportiva a ser aprendida, mas sim como uma
maneira diferente de pôr o corpo em movimento. A sua inserção
entre as atividades objetivava uma movimentação mais des-
contraída da turma. As aulas com atividades rítmicas eram re-
alizadas eventualmente no pátio e, na maioria das vezes, dentro
da sala de aula. O espaço interno das salas, assim como as
demais dependências da escola, era reduzido, mas como essa
turma não era muito grande, era possível adaptá-la para o tipo
de atividade pretendida. Para isso, tornava-se necessário retirar
todas as mesas e cadeiras da sala e colocá-las no corredor para
liberar o espaço. Para esta empreitada todos se dispunham a
colaborar sem restrições. Aliás, a colaboração não se restringia
apenas ao trabalho de remoção da mobília da sala, também aju-
davam trazendo de casa alguns materiais que não havia na esco-
la. Uma das meninas, sempre que solicitada pela professora,
trazia seu próprio aparelho de som portátil. Outros(as) traziam
CD ou fitas cassetes18 para que a professora selecionasse as mú-
sicas em função dos movimentos a serem executados.
As aulas tinham basicamente a mesma estrutura. Nas
modalidades esportivas os grupos de trabalho eram formados
de maneira aproximada ao número de integrantes estipulados
nas regras oficiais de cada esporte. Assim no período do volei-
bol, os grupos contavam com seis integrantes; no futsal e no
basquete, cinco. O critério de formação variou ao longo de cada
modalidade esportiva praticada, mas em todos os processos a
regra básica acordada entre todos(as) era a de manter a distri-
buição proporcional de meninos e meninas. Aqui também a
professora contava com a colaboração dos(as) alunos(as) quan-
to ao material. A escola não dispunha de uma quantidade razo-
ável de bolas e, quando algumas atividades demandavam um
número maior, era preciso trazer de casa.

18
As preferências musicais recaíam sobre Daniela Mercuri, Lulu Santos,
Skank, Legião Urbana, Shakira e alguns grupos de dance music.

50
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Nos períodos destinados às modalidades esportivas, tan-


to no pátio quanto na praça, as aulas começavam com um rápi-
do aquecimento geral. Logo em seguida, a turma se dividia nos
grupos estabelecidos para realizarem jogos entre si. Esses jogos
eram disputados tendo como referência as regras oficiais da
modalidade em questão. Havia cinco grupos de trabalho que
usavam a quadra em sistema de rodízio na hora dos jogos, que
duravam no máximo dez minutos, havendo na seqüência a in-
versão das equipes. Para tanto, fazia-se necessário o sorteio dos
primeiros times a se enfrentarem e dos que jogariam em seguida.
Algumas vezes, antes desses jogos, eram realizados exercícios
onde todos participavam concomitantemente. Por serem cinco
grupos, três grupos aguardavam a sua vez de jogar. Enquanto
esperavam, faziam de tudo um pouco, distraíam-se brincando
com uma bola, assistiam aos jogos ou ficavam sentados conver-
sando em volta da quadra da praça ou nos exíguos espaços vazi-
os do pátio da escola, mas sempre muito bem-comportados e
aparentemente integrados a essa estrutura de aula.
A partir deste canto, região suspensa da aula de educa-
ção física, muitas coisas eram ditas na forma de sentar, na for-
ma de se distrair, na forma de conversar e na forma de preferir.
Foi principalmente aí, durante esse tempo de espera, que as
observações e análises desta pesquisa se deram, junto àqueles
que se revezavam nesse espaço e que dali davam visibilidade
às questões aqui desenvolvidas.
Estes alunos e alunas da turma de 8a série da escola Ma-
ria Fausta, que com sua movimentação na cidade, na escola e
na aula destacaram percursos e localizaram espaços, também
traziam “tatuado” em seus corpos um recorte de ordem tempo-
ral impreciso: a adolescência.

51
O TEMPO “TATUADO” NO CORPO

É muito difícil encontrar alguém que não descreva a


adolescência como uma fase de vida em que os sujeitos possuem
comportamentos conturbados e atitudes inconseqüentes, me-
recendo, por isso, uma atenção toda especial para que não
fiquem entregues a seus próprios impulsos juvenis. Sobretudo nes-
sa passagem de século, quando os holofotes da mídia1 estabele-
cem de forma mais intensa os contornos de sua visibilidade no
cenário social. Enunciados do tipo: “esta criança é tão queri-
da... pena que um anjo destes vá se tornar um adolescente”
dão indicativos de como o mundo adulto organiza discursi-
vamente esse período. Nada mais corriqueiro do que utilizar o
termo adolescência para designar jovens entre os 12 e 16 anos
— idade dos alunos e alunas da 8a série da escola Maria Faus-
ta —, que já não são mais crianças, mas que ainda não são
adultos. No entanto, ao contrário do que possa parecer, isso
nem sempre foi tão evidente.

1
Rosa Maria Bueno Fischer trabalha detalhadamente esse tema em sua
tese de doutorado intitulada Adolescência em discurso: mídia e produção de
subjetividade (1996).

53
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Na idade média, as passagens significativas da vida eram


assinaladas de forma bem diferente da atual; não havia a preci-
são de anos, meses, dias, que nos é tão familiar. Termos como
infância ou juventude marcavam etapas da vida tal como uma
ampulheta marcava as horas do dia. Os períodos eram mais dila-
tados e imprecisos, tudo passava mais lentamente, pois o sentido
de deslocamento funcionava a partir de uma outra lógica.
A expectativa em relação às idades se forma a partir de
entendimentos específicos em cada época. Os sujeitos entre 12 e
16 anos, nem sempre foram adolescentes, como alguns discursos
contemporâneos fazem crer. A noção de adolescência começa a
se constituir no início do século XX com o surgimento de um
discurso que vai amarrar a idade cronológica a um modo de ser
adolescente. Philippe Ariès (1986) coloca que a localização etá-
ria funcionava (e funciona) como uma identidade “fatiada” por
uma série de discursos que produziam (e produzem) diferentes
sentidos. Apoiando-se na noção de unidade fundamental da na-
tureza, distribuía-se sobre cada idade significados ou funções
derivados de uma causalidade universal. Assim uma série de
estratificações foram construídas, umas com base nas estações
do ano — já se passaram vinte primaveras... —, outras corres-
pondentes ao número dos planetas conhecidos, além de outras
com base nos meses do ano ou nos signos do zodíaco. As ocupa-
ções também designavam mudanças: distinguia-se a idade dos
estudos, que no século XIV era ocupação dos velhos; o momento
de servir ao exército ou quando o sujeito passava a dar conta de
seu próprio provimento.
Assim apesar de ser mencionada em alguns textos cientí-
ficos antes do século XVI, a adolescência na sociedade medieval
era confundida com infância. Aos 15 anos o sujeito era considera-
do criança grande e mais “arisca”, que não se comportava confor-
me a expectativa que se tinha em relação às mais novas. A noção
de infância era bastante abrangente, em alguns casos podia se
estender até os 24 anos. Tamanha extensão se justificava pela pou-
ca importância atribuída aos processos biológicos na definição

54
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

dos períodos de vida, algo que se tornou extremamente “natu-


ral” hoje em dia. Assim fundamentalmente um sujeito deixava
de ser criança quando deixasse de ser dependente, isto é, quando
já pudesse “se virar sozinho” e não quando chegasse à puberda-
de. Naquela época, “só se saía da infância ao se sair da depen-
dência ou, ao menos, dos graus mais baixos de dependência”
(ARIÈS, 1986, p. 42).
Aos poucos a adolescência vai se configurando como
uma fase destacada na vida dos sujeitos. De praticamente au-
sente na Idade Média, transforma-se na idade favorita do sécu-
lo XX. Tal prestígio social tomou impulso no período do entre
guerras, quando se acreditava que a capacidade de contestação
e de transformação atribuída à adolescência emergente seria
uma alternativa diante do sentimento de descrença que assola-
va as perspectivas futuras. “Daí em diante, a adolescência se
expandiria, empurrando a infância para trás e a maturidade
para a frente” (ARIÈS, 1986, p. 47).
Contudo esse alargamento não corresponde a uma maior
precisão em relação à adolescência. Pelo contrário, surge a partir
de alguns campos específicos um vocabulário bastante variado e
também impreciso quanto à fixação dessa faixa etária. Teenager,
rapaziada, galera, ninfeta, geração coca-cola, geração shopping
center, entre tantas outras palavras e expressões são expostas na
mídia e passam a ser usadas sem qualquer critério quanto à ida-
de, embora obviamente haja uma grande diferença entre uma
menina de 12 anos e uma de 23 (FISCHER, 1996).
Porém, na medida em que a adolescência é cada vez mais
reverenciada como uma fase de vida esplendorosa, é também
colocada como um tempo-problema, no qual os sonhos da in-
fância não fazem mais sentido e o mundo adulto é ainda uma
promessa. Aos adolescentes é atribuída uma incapacidade “na-
tural”: o despreparo para o enfrentamento das agruras da vida
social moderna. O alargamento dessa fase coincide também com
a ampliação dos anos de vida em que se passava na escola,
tornando seus limites imprecisos e estabelecendo um processo

55
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

de transição indeterminado. Com isso, o(a) jovem que ainda


não consegue se virar sozinho vai ser alvo de uma série de dis-
cursos muito bem encadeados que estruturam as dores e os pra-
zeres juvenis. Assim impõe-se como tarefa social construir a partir
do corpo adolescente uma estabilidade mínima em um período
marcado pela turbulência. Para tanto, áreas importantes passam
a tematizar e atribuir sentido ao ser adolescente, estabelecendo
as bases de uma “pedagogia cultural”2 contemporânea.
A partir de uma perspectiva sociológica, Helena Abramo
(1994) reconhece uma diferença entre “crise da adolescência” e
“crise juvenil”. Ela atribui à primeira uma perturbação momentâ-
nea de ordem psicológica e à segunda uma manifestação coletiva
provocada pela falha na integração dos(as) jovens à vida social.
Ambas produzem e autorizam a necessidade de transgressão3
como pertinente a essa faixa etária, que tanto pode se tornar foco de
transformação social como também de delinqüência, característi-
ca que reforça a idéia de uma fase de difícil manejo.
Em meio a tantas (in)definições culturais, o campo do
direito vai buscar uma distinção jurídica mais precisa para o
termo adolescência. No Brasil, a promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente em 1990 (Lei nº 8.069) vai inaugurar
uma outra relação legal que, até então, se baseava em dois gran-
des períodos: a “maioridade” e a “menoridade”, separados pela
fronteira dos 21 anos de idade. Com o advento do Estatuto, o
sujeito “menor de idade” passa a ser distinguido também legal-
mente pelas categorias criança e adolescente.

2
“O termo ‘pedagogia cultural’ refere-se à idéia de que a educação ocorre
numa variedade de locais sociais incluindo a escola, mas não se limitan-
do a ela. Locais pedagógicos são aqueles onde o poder se organiza e se
exercita, tais como bibliotecas, TV, filmes, jornais, revistas, brinquedos,
anúncios, videogames, livros, esportes, etc...” (STEINBERG, 1997, p.101-2).
3
Dentro dessa lógica transgressora, a juventude dos anos 60 e 70 tornou-se
fonte de contestação política e social, impulsionando grandes movimentos
contra os tradicionais padrões de comportamento, principalmente o sexu-
al. Algo que nos anos 80 toma outros rumos com o surgimento de “tribos
urbanas” e dos “modos espetaculares de aparecimento” (ABRAMO, 1994 e
FISCHER, 1996).

56
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Art. 2º — Considera-se criança, para efeitos desta Lei,


a pessoa até doze anos de idade incompletos, e ado-
lescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
Parágrafo único — Nos casos expressos em lei, aplica-
se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre
dezoito e vinte e um anos de idade. (Brasil, 1990, p. 7).

Essa lei também proporcionou a instalação e o fun-


cionamento dos Conselhos Tutelares, órgãos responsáveis pela
fiscalização e pelo cumprimento do espírito do Estatuto: prote-
ger a criança e o adolescente contra a discriminação, negligên-
cia, exploração, crueldade, opressão e violência prejudiciais ao
pleno desenvolvimento físico e psicológico. Aqui é importante
ressaltar algo que não é tão visível na ordem da lei, mas que
opera de forma sutil. Essas medidas preventivas procuram ba-
nir não somente o perigo e a maldade imposta por algum agente
externo, mas também o mal que venha a se “encarnar” em cada
criança e adolescente. Encarnação no sentido atribuído por
Michel de Certeau (1996), uma lei que se faz carne, um texto que
atravessa, marca e se constitui como corpo, uma ordem pensa-
da que conforma e põe em movimento os corpos vivos.
Esse processo aponta para uma concepção jurídica dife-
rente da lei: o julgar-se. “Supõe que a pessoa possa converter-se
em um caso para si própria, isto é, que se apresente para si
própria delimitada, na medida em que cai sob a lei ou se confor-
ma à norma” (LARROSA, 1995, 75). Enquanto a lei atua em uma
lógica negativa derivada de distinções básicas entre o que se
permite e o que se proíbe, a norma atua positivamente estabele-
cendo pela regularidade, pelo uso, pelo hábito um conjunto de
práticas normativas. “Assim, da divisão simples e binária da
inclusão-exclusão, do lícito e do ilícito, se passa às complexas
formas de categorização do normal e do patológico, do anormal
e do desviado, do normal ou do que excede ou não chega à
norma” (LARROSA, 1995, p. 76).
Nessa relação os saberes médico e psicológico vão ad-
quirir maior legitimidade no disciplinamento e na regulação
dos corpos adolescentes, pois seus discursos, ao mesmo tempo

57
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

em que se articulam na edificação de uma adolescência contur-


bada, colocam-se como vozes que avalizam o que é seguro ou
perigoso na condução do próprio corpo. Essa articulação se
torna mais estreita principalmente porque procura organizar e
dar sentido àquilo que Foucault coloca como grande “segredo”
do século XX: o sexo. Medicina e psicologia, então, assumem o
lugar de “árbitros do desejo”.4 Essa assertiva é enunciada de
forma bastante insistente pela mídia, que se apóia nas recomen-
dações “verdadeiras” dessas áreas para tecer um modo ajusta-
do de ser adolescente (FISCHER, 1996).
Apesar de profundamente imbricados, esses saberes ope-
ram em faixa própria e cada um se põe diferentemente a desven-
dar os segredos do corpo. Nessa relação entre árbitros do desejo
há, neste século, uma sensível ascendência da palavra psicoló-
gica no domínio e na “relação consigo”.5 No terreno pantanoso
das inquietações e incertezas atribuídas à juventude, a psicolo-
gia ocupa um lugar de autoridade ao pôr sua fala em ato: pers-
cruta, diz e faz dizer algo sobre o comportamento. Sedimenta
uma identidade adolescente a partir de uma regularidade apre-
sentada e da extorsão de uma verdade.
Lapida-se nessas estratégias um vocabulário autorizado
que retorna ao sujeito adolescente como a essência do que ele
verdadeiramente é, um saber que se oculta e se revela no vão da
própria fala, um poder que promete decifrar os enigmas da sub-
jetividade pela prática “psi”, ao mesmo tempo em que institui
uma “política de verdade”.
É na educação que as assertivas psicológicas vão encon-
trar um dos seus pontos de maior saliência. É por meio das
práticas pedagógicas que “os discursos baseados na disciplina

4
“Árbitros del deseo” são os “cientistas do sexo”, os guardiões das defi-
nições acerca da normalidade/anormalidade do comportamento huma-
no do século XX (WEEKS, 1993. Tradução minha).
5
Trata-se de um relação de poder e saber que o sujeito estabelece sobre si,
“um intenso voltar-se para si mesmo e em si encontrar a verdade, em
nome de uma estilização da vida” (FISCHER, 1996, p. 81).

58
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

da psicologia e vinculados a noções particulares de ciência têm


sido mais prontamente aceitos que outros tipos de discursos”
(GORE, 1994, p. 10). É mais precisamente em um desses discursos
que a educação se respaldou para avaliar e nomear o adolescente:
a psicologia evolutiva. Nessa perspectiva, o(a) adolescente só se
faz sujeito de uma “adolescência normal”, quando consegue pro-
duzir em si o texto da fase de desenvolvimento que o(a) identifica.
Nesse campo específico, a adolescência passou por um
detalhado processo de codificação de um vocabulário autoriza-
do. Aberastury e Knobel (1981), por exemplo, afirmam que esse
é um período de padecimento, no qual adolescentes e adultos
compartilham, sob formas variadas, seus complexos efeitos como
desequilíbrios e instabilidades extremas por que passam nessa
fase. A autora e o autor colocam que os problemas começam a
surgir com as mudanças corporais, isto é, a perda do corpo
infantil e a desconfiança diante de um mundo adulto que se
avizinha. Essa caracterização, atravessada no corpo, acaba es-
tabelecendo um sentido de normalidade ao comportamento
hostil provocado pelo estranhamento vivido em si mesmo. “Pen-
so que a estabilização da personalidade não se consegue sem
passar por um certo grau de conduta patológica que, conforme o
meu critério, devemos considerar inerente à evolução normal des-
ta etapa de vida” (ABERASTURY e KNOBEL, 1981, p. 27, grifos meus).
Aqui apresenta-se a turbulência interior vivida pelo(a) ado-
lescente como parte de um processo mais complexo, que regulari-
za a entrada na normalidade do mundo adulto, na maturidade.
Nesse sentido, seria tão “patológico” encontrarmos um compor-
tamento desajustado em pessoas adultas, como um comporta-
mento equilibrado em adolescentes. Portanto, essa turbulência
nada mais é do que uma “síndrome normal da adolescência”.6

6
Aberastury e Knobel relacionam a adolescência a certos distúrbios psico-
lógicos. A angústia gerada pela dificuldade de renunciar a algo, a altera-
ção freqüente de conduta diante de uma mesma situação, as crises de
personalidade, entre outros, dependendo do momento de vida em que
apareçam, são catalogadas como atitudes normais ou anormais (1981).

59
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Em determinados lugares, mais especificamente entre


professores, essa relação conflitante se enuncia como um tempo
de espera que necessita de paciência. Termos como “aborres-
cente” ou “adoescente”, enunciados na perspectiva adulta,
apresentam a adolescência como o tempo do aborrecimento ine-
vitável, devido ao comportamento um tanto “doentio”.
Para Erik Erikson, citado por Outeiral (1994), passa a ser
muito complicado estabelecer uma fronteira precisa entre o nor-
mal e o patológico na adolescência, pois é nessa fase, e não mais
tarde, que se espera que os sujeitos passem por uma crise nor-
mativa, importante para a estruturação da identidade adulta
do indivíduo. Assim reações inesperadas e eivadas de agressi-
vidade, comportamento vacilante e atitudes que vão de um ex-
tremo ao outro atestam uma passagem “realmente” turbulenta.
De um modo geral, as descrições evolutivas estruturam a
subjetividade em fases bem definidas, articulando um padrão
comportamental a uma natureza biológica, um desenvolvimen-
to da personalidade madura à maturação orgânica.
Por outro lado, José Outeiral coloca que a adolescência
contemporânea já não se encontra mais atrelada de maneira rígi-
da ao processo de maturação biológica do corpo, pois para ele o
comportamento destes(as) “(im)pacientes” há muito já rompeu
as fronteiras etárias. “Vemos gente de oito, nove anos com postu-
ra adolescente. Elas não têm o corpo transformado, não menstru-
am, mas se preocupam com as festas, com namorados, dançam e
se beijam” (OUTEIRAL apud LOPES, 1997, p. 9). Esse autor procura
deixar claro que o adolescente se comunica prioritariamente pela
conduta. Aqui mesmo procurando atualizar o texto de uma ado-
lescência “psicologizada”, desamarrando-o dos processos bio-
lógicos, pode-se dizer que permanece uma premissa básica que
configura a normalidade adolescente a partir de comportamen-
tos tidos como característicos. Há algo de essencial nessa condu-
ta mais ou menos desajustada que pode ser encontrado aquém
ou além do período de transformação orgânica mais evidente.
Essa prática se estrutura em procedimentos que implicam
o sujeito no exercício dessa conduta que comunica. Estratégias

60
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

discursivas que se multiplicam e instituem uma regra tomada


como verdadeira. Isso porque “a capacidade de um discurso de
exercer poder está definitivamente associada à sua capacidade
de responder a demandas, de se inserir no conjunto de significa-
dos de uma dada sociedade, reconstruindo posições e sujeitos”
(PINTO, 1989, p. 36).

“Demonização” da adolescência:
é na rua que mora o perigo

Gostaria que não existisse idade alguma entre os 16 e


23 anos, ou que os jovens dormissem todo este tem-
po; pois nada existe nesse meio tempo senão promis-
cuidade com crianças, ultrajes com os anciões, roubos
e brigas. (SHAKESPEARE apud OUTEIRAL, 1994, p. 26)

Uma pluralidade de discursos desenha a adolescência con-


temporânea como um fenômeno complexo e contraditório e afirma
nessa fase, e não mais tarde, uma premissa que concede o direito às
eventuais transgressões de ordem juvenil. Porém, não é qualquer
transgressão que desfruta dessa tolerância social. Apesar dos limi-
tes serem tênues há uma clara distinção que separa o tolerável do
alarmante. Nessa relação existe sempre o risco em potência das fron-
teiras serem ultrapassadas e, dependendo para o lado que se vá, é
possível que de lá não se volte. Esse temor repousa sobre a idéia de
que uma suportável, e até mesmo desejada, transgressão “aborres-
cente” se transforme em uma transgressão “fora-de-controle”. Para
evitar tal risco, é preciso aumentar a vigilância e fazer com que as
fronteiras se inscrevam e se exponham nos corpos jovens.
Há algum tempo tem recrudescido um sentimento genera-
lizado de “pânico moral”7 sobre o comportamento adolescente,

7
Termo utilizado por Helena Abramo (1994) para se referir a um sentimento
emergente sobre o adolescente na década de 50 na Europa; e também por
Green e Bigum (1995) que apontam “uma onda crescente de pânico moral,
cujo foco é o suposto desvio da juventude contemporânea — não apenas
sua diversidade ou sua diferença, mas mais radicalmente, sua alteridade,
e a ameaça que isso apresenta para o observador” (p. 212).

61
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

não só no seu sentido psicológico, mas principalmente na forma


descontrolada de violência sem direção que se verifica nas ruas
de qualquer cidade média ou grande — algo muito diferente da-
quela turbulência social marcada pela celebração nos grandes
movimentos de contestação política das décadas de 60 e 70 (ABRA-
MO, 1994 e FISCHER, 1996).

A juventude, destacada como símbolo de esperança no


futuro, passa também a ser vista e tratada como uma ameaça
pública a todas as gerações; principalmente como uma ameaça
a si mesma. As ações juvenis descontroladas são estrategica-
mente evidenciadas no contexto social e apresentadas como
produto do desmoronamento de valores tradicionais como a
família — lugar prioritário da educação e dos bons costumes.
Essa incapacidade social em lidar com um(a) jovem cada
vez mais conturbado se manifesta de forma mais dramática quan-
do o corpo adolescente se mostra estranho não apenas para si
mesmo, envolvido em conflitos psicológicos, mas quando essa
estranheza passa a ser um desvio da conduta social esperada.
Essa identificação oposta ao bem-viver idealizado pelo mundo
adulto desde os primeiros passos da modernidade tem como
referência básica o corpo que se evidencia no sexo promíscuo,
no uso das drogas e na violência física desmedida. É nessa
moldura que um quadro assombroso de impotência e indiferen-
ça em relação ao presente e ao futuro ganha forma no imaginá-
rio adulto. No entanto, a constituição dessa adolescência
“fora-de-controle” implica considerar, fundamentalmente, que
“os sujeitos sociais não são causas, não são origem do discurso,
mas são efeitos discursivos” (PINTO, 1989, p. 25).
Ao se isolar a adolescência e reconhecê-la como incon-
trolável por natureza da idade, estabelece-se uma teia discursi-
va que estrutura não somente o adolescente, mas todos aqueles
que se encontram a sua volta. À geração adulta se atribui uma
“passividade quase patológica”8 diante do controle que lhe é
devido, mas que geralmente lhe escapa.

8
Conforme Roszak apud Abramo, 1994, p. 40.

62
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Torna-se interessante citar o resultado de uma pesquisa


de opinião realizada pelo grupo de estudos americano Public
Agenda. Os resultados divulgados apontaram que para a maio-
ria dos adultos daquele país os jovens são mal-educados e in-
controláveis por culpa dos pais. “Os americanos têm medo real
de nossos filhos e jogam a responsabilidade dos problemas que
observam nos pais”.9
Esse medo se “realiza” no corpo juvenil. Multiplica seus
efeitos articulando a existência de uma fase marcada pela con-
turbação a um mundo adulto fragilizado em sua intenção edu-
cativa, incapaz de exercer controle dentro dos pressupostos
tradicionais de família e de educação.
Assim como a família, a instituição educacional também
vai ser responsabilizada pelo fracasso de seu projeto educativo,
no que tange ao disciplinamento e à regulação de condutas.
O processo de escolarização foi se impondo como uma
necessidade já no início do século XIX, juntamente com a maior
evidência social da juventude como problema. Mas essa neces-
sidade não surgiu associada unicamente ao propósito de soci-
alização dos conhecimentos e sim ao modo de assegurar a
moralidade pública e prevenir o crime juvenil. Era preciso es-
tender os ensinamentos morais e religiosos a uma maior parte
da população para estancar o problema de deterioração do ca-
ráter para garantir, dessa forma, sujeitos de boa índole e com
hábitos úteis — características indispensáveis a todo o bom-
cristão (JONES e WILLIAMSON, 1979).
A escola e a família seriam as instituições destinadas a
encerrar os corpos jovens em uma atmosfera de bons princípios,
longe da “poluição moral” das ruas. Funcionariam como uma
câmara de descompressão que, suportando por um certo tempo a
turbulência, transformaria o então conturbado em bom-cidadão.
Seria somente uma questão de tempo e de calibragem. Entretanto
a juventude contemporânea há muito já pulou o muro dessa “casa

9
Pesquisa publicada pelo jornal Correio do Povo, 1997, p. 8, grifos meus.

63
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

de máquinas” e vive em uma série de lugares além da escola e da


família, de uma certa forma muito mais fora do que dentro de
casa ou da escola.
Para Green e Bigum (1995), boa parte dos educadores, pais
e mães, produz em suas instâncias essa preocupação com os
jovens “além-muro”. São vistos como seres estranhos e inade-
quados aos pressupostos fundamentais da tradicional maqui-
naria escolar,10 anunciando o aparecimento de uma juventude
“alienígena” — uma nova estirpe de demônios que tem tomado
conta das casas, das escolas e, principalmente, das ruas.

A juventude era, antes, vista como algo do qual, ao


final, a pessoa acabava se livrando, como um estágio
temporário em direção à normalidade a ser superado
na totalidade, na completude da fase adulta. Essa pas-
sagem ordeira tornou-se agora carregada de incerteza
arbitrária. Cada vez mais alienados(as), no sentido clás-
sico do termo, os(as) jovens são também cada vez mais
alienígenas, cada vez mais vistos como diferentemen-
te motivados(as), desenhados(as) e construídos(as). E,
dessa forma, se põe a horrível e insistente possibilida-
de: eles(as) não estão apenas nos visitando, indo em-
bora, em seguida. Eles(as) estão aqui para ficar e estão
assumindo o comando (GREEN E BIGUM, 1995, p. 212).

Na mídia, dentro de um jogo de inclusão e exclusão, essa


adolescência “fora-de-controle” vai ocupar lugares muito espe-
cíficos, onde seus corpos são mostrados como estandartes do
desvio — como um reverso da normalidade.
Nesse particular, cenas do vazio existencial e moral da ju-
ventude vão ganhar espaço em reportagens estrategicamente colo-
cadas para reforçar uma tese alarmista. No Brasil, episódios
emblemáticos de violência são colocados como pertinentes à insa-
nidade juvenil que tomou conta da sociedade atual. Casos como o
do índio pataxó incendiado vivo por adolescentes de classe média
de Brasília em abril de 1997; ou do aposentado assaltado e depois

10
Conforme Varela, Alvarez-Uría, 1992.

64
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

também incendiado vivo por um rapaz de Bagé, Rio Grande do


Sul, em janeiro de 1998, além de outros tantos casos que se segui-
ram a esses no ano de 1999 em diferentes cidades do Brasil atestam
uma realidade juvenil caótica que atravessa lugares e sujeitos
“a olhos vistos”.11
Nesses casos, prontamente aparecem as vozes avaliza-
das da psicologia e da medicina, geralmente acompanhada da
voz jurídico-punitiva para esclarecer as causas “psicossomáti-
cas” que levam a tal comportamento e para impor as sanções
previstas na lei. As explicações apontam para um desequilíbrio
na ordem moral familiar, que em síntese seria a motivação bási-
ca de inúmeros desajustes sociais, um desvio na constituição
da personalidade atribuído à falha dos pais e da escola na edu-
cação dos(as) filhos(as) e dos(as) alunos(as). O poder de susten-
tação desse discurso está muito bem articulado com os
dispositivos postos em circulação. Neles ergue-se um regime de
verdade que permite multiplicar as posições dos sujeitos, de
onde se apresentam e são apresentados pela narração dessa
adolescência desajustada.
Essas assertivas trabalham na lógica do desdobramento
de um “sempre-foi-assim” para um “tá-cada-vez-pior”, em uma
política que Henry Giroux (1996) chamou de demonização da
juventude. Esse autor toma como ponto de partida de sua análise
elementos da pedagogia cultural, mais especificamente alguns
filmes, produzidos nos Estados Unidos, que implementam uma
política representacional do sujeito adolescente “alimentada por

11
Na esteira desses casos, tantos outros passaram a ser notados no cenário
escolar: alunos(as) de 8ª série de uma escola municipal puseram fogo
no cabelo de uma professora. Em uma outra os(as) alunos(as) se diver-
tiam colocando fogo em latas de lixo ou em trabalhos expostos nas
paredes. Em uma escola particular um aluno, ciente do risco iminente
de explosão, resolveu abrir o gás utilizado no laboratório de ciências,
repleto de alunos(as) que realizavam experimentos com materiais infla-
máveis. Com isso, é possível apontar um desdobramento “incendiário”
dessa identidade adolescente “fora-de-controle”, que escandaliza e põe
à prova os valores mais estimados do bem-viver coletivo.

65
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

degradantes descrições visuais dos jovens, apresentados como


criminosos, sexualmente decadentes, enlouquecidos por dro-
gas e analfabetos” (p. 125). Ele analisa a forma como alguns
filmes vão configurando a banalidade e a brutalidade adoles-
cente no nosso cotidiano.

A construção contemporânea dos(as) jovens parece


estar limitada a uma política de demonização, através
da qual a sexualidade é definida ou como uma merca-
doria ou como um problema [...] Nessa perspectiva, o
que alimenta seu limitado senso de agência, bem
como a brutalidade e violência que são produzidas, é
uma libido adolescente fora de controle (GIROUX, 1996,
p. 126, grifos meus)

Entre os diversos filmes de índole demonizante como


River’s Edge (Juventude Assassina) e Natural Born Killers (Assassi-
nos por natureza), Giroux vai se referir com maior intensidade
àquele que empresta o nome ao título de seu artigo: Kids,12 con-
siderado um dos filmes mais polêmicos da década de 90.
Giroux aponta para uma representação predatória, cons-
tituída em torno da sexualidade desregrada, da violência fora de
controle e do culto às drogas que um neoconservadorismo vem
salientar. A alienação e a incapacidade para crítica, assentadas
no realismo factual de Kids, encontram sustentação na instabili-
dade psicológica que normaliza a conduta desregrada: “A pato-
logia e a ignorância formam as bases que definem a identidade e
a agência dos(as) jovens urbanos no mundo de violência casual,
niilismo irrestrito e incorrigível depravação de Clark” (GIROUX,
1996, p. 129-30). O impacto se produz de forma bastante intensa
em cada cena, remetendo o espectador a uma sensação de impo-
tência e de desmoronamento. Entretanto esse filme, antes de ser

12
Filme norte-americano produzido em 1995 a partir do roteiro de um adoles-
cente de 19 anos de idade. Foi dirigido por Larry Clark, reconhecido pelo
trabalho fotográfico que desenvolve junto a adolescentes desde 1960. No
filme todos os atores e atrizes são jovens amadores, praticantes de skate e
amigos do roteirista, que empresta ao filme um caráter de documentário,
reforçando a idéia de “realidade” do mundo jovem (FISCHER, 1996).

66
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

um manifesto à liberdade sexual sem limites e à pregação de uma


mudança social mais ampla, vai se articular às vozes conserva-
doras que põem a culpa na família e na escola, procurando mos-
trar que essa é uma atitude condizente com um mundo que os
jovens não produziram, apenas herdaram. Assim “quanto mais
os adultos se culpam pela miséria existencial dos kids, mais pare-
cem exigir sua felicidade, baseada numa segurança e numa tran-
qüilidade que os próprios pais e a sociedade não lhes pode sequer
oferecer” (FISCHER, 1996, p. 52).
Logo na introdução de sua tese de doutorado, Rosa Fis-
cher descreve a experiência de uma mãe e suas duas filhas adoles-
centes em relação ao filme Kids:

O filme vai descrevendo histórias de não-afeto, de


medo e inércia diante da morte, das drogas e violên-
cia, e chega à última cena tal como começou: comuni-
cando o imenso vazio de existências jovens neste fi-
nal de século. A mãe, do alto (ou do “baixo”) de seus
46 anos, demora um pouco a recompor-se daquela
sucessão de golpes contra a sensibilidade, a afetividade
e o sonho – e, surpresa, ouve as duas filhas dizerem
sobre o final: “Normal.” (FISCHER, 1996a, p. 10-1)

A grande força enunciativa desse filme está na sua ca-


pacidade de desenhar um quadro da “aborrescência” perdida
dos anos 90 e, ao mesmo tempo, instaurar uma identidade
demonizante para o comportamento juvenil. Esse significado
circula entre os mais variados sujeitos, capturados ou não por
esse discurso. No caso descrito por Fischer, apesar das duas
meninas não se reconhecerem naquela relação demonizada,
apontam-na como “normal” na representação de jovens con-
temporâneos.
Essa representação toma assento em sujeitos e lugares dis-
tintos. O comportamento demonizado encontra seu lugar de rea-
lização em uma topografia moral específica, porém imprecisa,
das ruas. Na região analisada em Cachoeirinha, este modo de ser
adolescente é tratado por aqueles(as) alunos(as) da escola Maria

67
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Fausta como uma identidade clandestina13 que perigosamente


espreita, à distância, o lar que os(as) protege. Tal como um grupo
de pessoas que vive em seu pedaço de chão e acaba estabelecen-
do fronteiras entre sua terra, as adjacências imediatas e o territó-
rio além, que chama de “terra dos bárbaros” (SAID, 1996).
Assim a demonização da adolescência vai servir de
contraponto ou de uma palavra de alerta a uma adolescência
que concomitante e paradoxalmente emerge mais responsável e
mais equilibrada. Vai ser o outro, o alienígena, o estranho que
vive às margens dos valores do bem-viver coletivo, constante-
mente requisitados como parâmetros de uma adolescência ajus-
tada e cada vez mais prestigiada na sociedade; mas que, contudo,
ainda requer uma proteção moral que reforce a “imunidade” do
próprio corpo. Essas estratégias que atuam sob a forma de con-
traste são principalmente pedagógicas — são saliências que se
solidarizam com o modo cada vez mais emergente de ser um
adolescente “normal”.
Para Rosa Fischer a mídia assume de forma eficiente essa
função pedagógica empreendendo uma distribuição equacio-
nada desses corpos em uma correlação de forças que faz com
que os sujeitos apareçam diferentemente. Impõe a uns a delícia
e a outros a dor de ser adolescente, encravando nos corpos as
fronteiras requeridas.

O sofrimento de ser escrito pela lei do grupo vem


estranhamente acompanhado por um prazer, o de ser
reconhecido (mas não se sabe por quem), de se tornar
uma palavra identificável e legível numa língua so-
cial, de ser mudado em fragmento de um texto anôni-
mo, de ser inscrito numa simbólica sem dono e sem
autor (CERTEAU, 1996, p. 232).

A escola vai ainda reivindicar o seu lugar pedagógico


nessa correlação de forças, não mais de forma soberana como
antes dos avanços tecnológicos da comunicação de massa,

13
Conforme conceito de Edward Said, 1996.

68
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

mas ainda com alguma capacidade de interpelação. Vai reatu-


alizar sua função nesse jogo de inclusão e exclusão social, rea-
firmando o corpo demonizado como pertinente à adolescência.
Com isso, ao mesmo tempo em que demoniza ela se justifica, e
até certo ponto se legitima, como instrumento de “exorcismo”,
expurgando o mal que habita (ou que venha a habitar) os cor-
pos adolescentes através da prática secular de confinamento.
Esse dispositivo não funciona de forma unilateral, mas sim em
uma mútua relação que faz com que o adolescente volte para
dentro de si e chegue o mais rápido possível à maturidade, cum-
prindo com a “tarefa imensa de maquinar os corpos para que
soletrem uma ordem” (CERTEAU, 1996, p. 240-1).
Conforme Stuart Hall (1997), dentro dessa complexa tra-
ma de identidades, existem também movimentos de reconstru-
ção de identidades purificadas, que procuram restaurar a coesão,
o fechamento de fronteiras e a tradição diante do hibridismo (fu-
são entre diferentes tradições culturais) e a diversidade. O poder
desse discurso se torna mais eficiente quando os(as) adolescen-
tes se transformam em exorcistas de si mesmos, vigilantes de
suas próprias atitudes e da dos outros, fazendo com que a escola
passe a funcionar como instrumento de “polimento” desses cor-
pos bem-comportados. É nesse jogo de relações de força que a
autoridade escolar vem se mantendo, já há algum tempo, em
regiões discursivas específicas.
Por isso é importante frisar que os(as) jovens alienígenas
não estão de visita, nem vieram para assumir o controle como
colocam Green e Bigum (1995), mas sim convivem e compõem
conosco este tecido social complexo, contraditório e cambiante.

Adolescência “endeusada”:
o bom filho (e a boa filha) à casa torna

— Eu até acho legal sair para fazer festa, mas não


sinto necessidade disso.
— Ah! pára guria! Tu tens que sair mais, viver mais a
vida, “soltar mais a franga”, ser mais endiabrada!

69
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

— Eu não sou endiabrada; eu sou endeusada.


(Diálogo entre duas alunas da escola Maria Fausta).

Nessa multiplicidade de identidades culturais, na qual


as certezas são cada vez mais provisórias e as mudanças mais
vertiginosas, foi possível visualizar no comportamento apre-
sentado pelos alunos e alunas da escola Maria Fausta um jeito
próprio de ser adolescente que, de certa forma, coincide com a
emergência de uma juventude que alguns indicam como equi-
librada, responsável e mais ajustada à mecânica social.14
A condução dessa transição estabilizada para um mun-
do adulto se inscreve no corpo juvenil como uma identidade
também pertinente a essa fase da vida. Está posicionada social-
mente em contraponto às identidades desconcertantes encar-
nadas naqueles que vêm “infernizando” as ruas. Trata-se de
uma juventude que aspira cada vez mais cedo à estabilidade e à
segurança na terra prometida que se avizinha ali em frente.
Uma adolescência que, para ver realizados os seus desejos, “vol-
ta para casa”, isto é, volta para dentro de si, conduzida pelos
valores tradicionais assentados nos “velhos” discursos da fa-
mília, da igreja e da escola que lhe oferecem uma passagem
harmônica em direção à maturidade.
Os(as) jovens da escola Maria Fausta implementam uma
relação muito afinada com essa nova ordem adolescente, só que
vão salientar nessa normalidade conservadora uma moralida-
de cristã de orientação católica, algo muito presente naquela
região de Cachoeirinha. Boa parte dos(as) adolescentes de lá
incorpora como sua própria verdade os valores e princípios

14
Rosa Fischer (1996) cita em seu trabalho uma pesquisa feita por uma
agência de publicidade americana e publicada no Brasil pela revista
Veja, em que foram entrevistados mais de seis mil jovens entre 15 e 18
anos de idade de 26 países diferentes. Alguns dados são interessantes,
como por exemplo o fato de que a maioria dos(as) jovens anseia por
emprego e uma vida estável; sonha com o consumo de bens que propor-
cionem maior conforto e informação; não confia na classe política e tem
preocupações com o dinheiro e a saúde, a própria e a dos pais, em quem
confiam plenamente.

70
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

operados nessa estreita articulação família — igreja — escola.


Isto é, narram a partir de si uma adolescência “endeusada” —
que tem Deus dentro de si.
Esse sentimento não se apresentava isoladamente, nem
da mesma maneira e muito menos de forma homogênea, desdo-
brava-se em uma infinidade de situações aparentemente ba-
nais nas mais diferentes atividades escolares. Em uma das
primeiras aulas de educação física que presenciei, enquanto
observava dois grupos jogando futebol, notei que três meninas,
entre aquelas que aguardavam pacientemente a sua vez de jo-
gar, distraíam-se cantando e fazendo movimentos combinados
sobre alguma coisa que não conseguia entender. Eu me aproxi-
mei e perguntei onde tinham aprendido aquela canção, respon-
deram-me que se tratava de uma música composta por integrantes
de movimentos da igreja à qual pertencem: o Curso de Liderança
Juvenil (CLJ) e o Objetivo Novo de Apostolado (Onda),15 entida-
des ligadas à Igreja católica. Segundo a descrição de ambas, o
primeiro é um grupo de encontro de jovens de caráter mais perma-
nente, constituído por pessoas com mais de 14 anos. Já o Onda
funciona como um ritual de iniciação à vida católica para quem
tem entre 9 e 14 anos e já fez a primeira comunhão, geralmente
conta com a participação do pessoal do CLJ na organização.

15
O Onda é um retiro espiritual no qual dezenas de jovens passam um fim-
de-semana juntos em um lugar afastado do centro da cidade sob os cuida-
dos da igreja. O grupo é dividido em equipes que cumprem funções previ-
amente estabelecidas. Os “marujos da sala de máquinas” ficam responsá-
veis pela organização em “terra firme”; os “surfistas” são participantes
mais velhos vinculados ao CLJ que “deslizam” sobre o “Onda” e se envol-
vem com os menores; os “marujos de apoio” cuidam da programação
cultural do retiro; os “marujos de cozinha” são responsáveis pela alimenta-
ção e os “marujos maré-mansa” fazem a ligação entre “terra” (família) e o
“mar” (o retiro). Os adultos que participam também têm suas funções: O
“timoneiro” é o coordenador-geral; o “intermediário” é o vice-coordenador;
o “clandestino” faz a ligação entre as equipes; o “casal âncora” é que o
representa os pais, atua como conselheiro e confessor; e o “casal bóia”
substitui eventualmente o “casal âncora”. Todas as atividades são cuida-
dosamente montadas como um quebra-cabeça, no qual o objetivo princi-
pal é descobrir quem é afinal o “capitão” que os conduz habilmente na
travessia deste mar turbulento. No último dia a grande verdade se revela:
o capitão é Jesus Cristo.

71
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

A atitude dessas meninas, que parecia apenas um mero detalhe


perdido em um dos cantos da aula, me permitiu que começasse
a desenredar algumas linhas desse eficiente dispositivo e me
instalasse sobre suas próprias linhas de sedimentação e fissura
(DELEUZE, 1996). A pergunta funcionou como uma senha que
marcaria o início da descrição daquilo que se constituía em um
importante discurso para os(as) adolescentes daquela região de
Cachoeirinha. As duas meninas em questão já haviam feito o
Onda há algum tempo e estavam em um “pós-curso” que durava
aproximadamente três dias e habilitava para o exercício de al-
gumas funções mais específicas dentro da Igreja, como partici-
par da organização de encontros. Na turma, assim como em
boa parte da escola, os meninos e as meninas estavam ou estive-
ram envolvidos de alguma forma em atividades paroquiais. Algo
que se pôde constatar quando uma das meninas trouxe uma
foto alusiva a sua primeira participação, e de outra colega de
aula, na organização do Onda. Tal como um troféu a foto de
integrantes do CLJ, ao lado do padre no altar da igreja, circulou
na turma com certa curiosidade. A maioria procurava primeira-
mente localizar as duas meninas naquele grupo, para depois
fazer alguns comentários sobre sua participação passada ou
futura nesse evento.
Essa ligação com a Igreja repercutia fortemente na relação
entre eles dentro da escola e em suas respectivas famílias, mesmo
entre aqueles que não integravam os movimentos de Igreja. Os
laços de amizade na turma também eram mediados pelas posi-
ções que assumiam nos grupos de orientação religiosa. No caso
específico daquelas três meninas, uma delas foi escolhida “ma-
drinha” das outras duas, sendo sua função manter as “afilhadas”
o maior tempo possível em contato com a própria fé. Uma das
estratégias consistia em ir até a casa delas — com o consentimento
e total apoio dos pais —, quando estivessem ausentes e colar nas
paredes e no teto do quarto pequenas mensagens de estímulo à
virtude, à bondade e à compreensão para com todos os seres hu-
manos. O efeito surpresa se concretizaria quando a afilhada retor-
nasse para casa e, ao entrar no seu quarto, se deparasse com aquela

72
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

demonstração de dedicação e zelo da amiga-colega-madrinha. A


idéia básica era fazer com que por algum tempo, sempre ao voltar
para casa, depois de enfrentar todo tipo de acontecimento que o
dia-a-dia na rua oferece, pudesse expurgar de si todo o pensa-
mento ruim que por acaso a tenha habitado. O exercício consistia
em ler as mensagens sempre que estivesse deitada na cama, na
paz e no conforto do lar, para que assim pudesse dormir, sonhar
com os anjos e reafirmar a presença de Deus em si mesma.
Aqui as meninas materializavam aquilo que Michel Fou-
cault define como “tecnologias do eu”; técnicas que

permitem aos indivíduos efetuar, por conta própria


ou com a ajuda dos outros, certo número de opera-
ções sobre seu corpo e sua alma, pensamentos, con-
duta, ou qualquer forma de ser, obtendo assim uma
transformação de si mesmos com o fim de alcançar
certo estado de felicidade, pureza, sabedoria ou imor-
talidade (1991, p. 48).16

No dia em que a aula educação física foi no SESI, durante


a longa caminhada de retorno à escola, vários assuntos surgi-
ram. Quando já estávamos quase chegando a professora co-
mentou para mim, separadamente, um fato que ela ainda não
tinha percebido. Na aula anterior àquela, em um dia chuvoso, a
professora preferiu realizar uma atividade teórica mais curta
dentro da sala e utilizar a maior parte do tempo para conversar
sobre assuntos gerais com a turma. Ela ficou de certo modo
espantada com o fato de a maioria optar por falar sobre a parti-
cipação nos movimentos de Igreja e da ansiedade gerada pela
perspectiva de confissão diante do padre no final de semana.
Naquele momento ela havia percebido o quanto aquelas práti-
cas religiosas eram importantes para boa parte da turma.
Esse processo de reencantamento da adolescência por dis-
cursos de longa tradição indica não só que esses meninos e meni-
nas estão sendo capturados nessas práticas conservadoras, como

16
Tradução minha a partir do original em espanhol (FOUCAULt, 1991, p. 48).

73
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

também indica um processo de “rejuvenescimento” do poder de


interpelação desses discursos. Uma mútua captura, pois sujeitos
e discursos não se correspondem pela relação de causa e efeito.

Quando um discurso busca adeptos — interpela no-


vos sujeitos — se depara com uma pluralidade de su-
jeitos de outros discursos. Os novos significados não
se constroem sobre uma folha de papel em branco e
sim devem disputar espaços na pluralidade de signi-
ficações. Este confronto tem duas características a se-
rem observadas: a primeira é da capacidade de o dis-
curso criar novos sujeitos; a segunda refere-se à trans-
formação do próprio discurso pela criação de novos
sujeitos. (PINTO, 1989, p. 41)

A Igreja passa a adotar estratégias mais eficientes e a usar


uma linguagem menos “careta”17 para que sua palavra seja ou-
vida, legitimada e principalmente seguida como uma verdade
universal. Para tanto “é importante que o jovem evangelize o
jovem, para que assim Jesus saia daquela Igreja fria para uma
vida ativa na sociedade (...) que o cristão não seja só o de sacris-
tia, mas o sal da terra, a luz do mundo, mostrando que Cristo é a
boa nova de hoje e não só do passado”.18

17
Com a visita do Papa João Paulo II ao Brasil, em outubro de 1997, várias
reportagens vêm expondo um jeito de ser jovem bastante diferente da-
queles “demonizados” que normalmente ocupam esse recanto da mídia.
Como por exemplo um jovem padre carioca, surfista e líder de um
grupo de jovens denominado “Deus é 10”; o padre Marcelo Rossi, com
sua “aeróbica de Cristo”, que ganhou notoriedade a partir de 1998,
além da exposição de várias cenas referentes ao estilo de vida de outros
tantos jovens que partilham dessa nova “onda”: curtir as delícias da
adolescência, mas com a benção de Deus.
18
Essa foi a opinião de um padre convidado a debater a relação entre o
jovem e a igreja no mundo de hoje no programa “Falando abertamente”
da TVCOM de Porto Alegre (1997). Nesse programa participaram do
debate quatro jovens envolvidos com a organização de uma grande pas-
seata pela paz promovida pela Igreja naquele ano e realizada em Porto
Alegre. Segundo os dados fornecidos pelo padre, o CLJ é um movimento
muito forte que está presente em 47 paróquias da capital, o que para ele
significa um movimento constante de revitalização da Igreja católica,
pois “o CLJ é jovem, inteligente e alegre”.

74
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Assim da mesma forma que o discurso da Igreja se lança às


ruas em uma nova cruzada moral, os(as) jovens endeusados(as) vêem
no retorno à casa, à paróquia e à escola uma possibilidade de
defesa contra o mundo hostil. A estratégia se torna mais eficiente
na medida em que o bom filho e a boa filha se voltam para esses
lugares por conta própria, reinventam sem alarde em suas práti-
cas contemporâneas as seculares virtudes da obediência, tempe-
rança e bons costumes para que assim obtenham a tão sonhada
paz interior e enfrentem melhor as “horas de aperto”.
A escola, por sua vez, vai se rearticular e se reforçar nes-
sas novas “práticas de recristianização”19 como o meio apro-
priado para o disciplinamento, regulação e aperfeiçoamento da
boa conduta e dos bons-princípios diante da vida. Nessa arti-
culação com a casa e a paróquia ela cumpre um importante
papel também na produção e preservação desses “novos-ve-
lhos” valores e acaba justificando o processo intramuros no
qual se fundou. Esse lugar de passagem obrigatória passa a ter
sua função facilitada entre os(as) jovens endeusados(as), pois a
maquinaria escolar passa a se preocupar mais com o processo
de polimento desses corpos ansiosos por estabilidade do que
com a prática do “exorcismo” nos corpos demonizados.
Certa vez ao chegar à escola no horário do recreio como de
costume, dirigi-me à sala dos professores. Lá, enquanto conver-
sava com a professora de educação física, percebi dois pandeiros
coloridos em cima de um dos armários. Achei aquilo um pouco
estranho, pois não conseguia imaginar em que situação os ins-
trumentos foram ou poderiam ter sido usados. Então perguntei

19
Conforme Varela; Alvares-Uria (1992), as práticas de recristianização se
constituíram no processo de recuperação implementado pela igreja para
reinstaurar uma doutrina cristã que se via afetada no período renascentista.
Em função de uma necessidade de afirmação em um mundo em mudan-
ça, a Igreja católica passa a apostar na própria reestruturação, investindo
seu arcabouço moral na educação de crianças e jovens, na crença de que
pela sua fraqueza física e moral se abriria a possibilidade, desde cedo, de
se inculcar hábitos, atitudes e comportamentos voltados para a retidão
do caráter e a educação da vontade.

75
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

como eles foram parar em cima do armário. Ela me respondeu


que tinham sido recolhidos de uma turma que havia literalmen-
te invadido a escola no dia anterior cantando músicas e fazen-
do coreografias alusivas a Jesus Cristo, com letras do tipo: Jesus
é uma festa, mergulhe nessa onda. Esse grupo havia feito o seu
Onda20 no final de semana anterior e resolveu preparar uma
entrada triunfal na escola como forma de chamar a atenção dos
demais para o movimento. Apesar da algazarra eles entraram
absolutamente organizados e receberam por parte da escola um
“salvo-conduto” para fazerem aquilo. O que era inicialmente
apenas uma manifestação juvenil, tornou-se um ato partilhado
por diferentes gerações, pois professores e as outras turmas aca-
baram se envolvendo nesse “dia de ação de graças”. Uma das
professoras comentou que achava muito interessante e até mes-
mo normal esse tipo de manifestação dentro da escola porque
aquele tipo de conduta era uma coisa positiva e sem maldade.
Ela lembrou do tempo em que também participava desses movi-
mentos de Igreja e do quanto eles haviam marcado a sua vida —
com o que algumas colegas também concordaram. Apesar de
estarem em horário normal de aula, a escola deixou que a mani-
festação fluísse sem uma intervenção mais direta. Quando a
atividade já havia se estendido por um certo tempo, decidiu-se
interceder e acabar com a “festa” pois, apesar de ser uma ativi-
dade vista com bons olhos e até mesmo incentivada, era preciso
deixar claro quem detinha o controle das ações escolares. A
manifestação encerrou quando os pandeiros foram retirados e
colocados em cima do armário dos professores para serem de-
volvidos em um outro dia qualquer.
Não é muito difícil imaginar o que aconteceria se alunos(as)
vinculados(as) a grupos carnavalescos invadissem a escola “ba-
tucando” e “sambando” no horário de aula. A esse respeito, Ál-
varez-Uría (1996) coloca que nas escolas se estabelece um jogo de

20
Essa atividade foi elaborada basicamente pelas turmas da 6ª série. Este
grupo fez o Onda sob a coordenação de duas meninas da turma de 8ª
série que pertenciam ao CLJ.

76
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

permissão e proibição para reforçar os saberes oficiais, negan-


do os outros saberes pelo caráter dissolvente que possam re-
presentar. “Ao se purificarem desse modo através da ordem
estabelecida, convertem-se em instituições incapazes de assu-
mir as diferenças, em locais refratários às minorias étnicas e
culturais...” (p. 35).
O processo de burilamento a partir de outros discursos,
especificamente aqui o da Igreja católica, vai se tornar mais sa-
liente na medida em que os(as) próprios(as) adolescentes o
anunciam no interior da escola. O fato de jovens estudantes alte-
rarem a rotina escolar cantando músicas de igreja permite tam-
bém analisar em que momento a constante solicitação aos(às)
alunos(as) do silêncio, considerado fundamental para o bom an-
damento das aulas, pode ser eventualmente suspensa. De certa
forma, só foi possível aos(às) alunos(as) terem vez e voz naquela
manifestação na medida em que ela também se articulava ao
texto escolar. Ali, por meio do corpo discente, a instituição edu-
cativa concretizaria uma difícil operação discursiva: ouvir os ecos
de sua própria voz corporificada nas ações daquele grupo. Essa
forma de se apresentar (e ser apresentado) na escola remete a
uma minuciosa e complexa forma de relação consigo, na qual os
sujeitos não são posicionados “em relação a uma verdade sobre si
mesmos que lhes é imposta de fora, mas em relação a uma verdade
sobre si mesmos que eles mesmos devem contribuir ativamente
para produzir” (LARROSA, 1995, p. 54-5). Assim nada estava “fora-
de-controle”, pelo contrário, plenamente ajustado às expectativas
discursivas, pois conforme Tomaz Tadeu da Silva,

o controle externo da conduta — aquilo que Foucault


chama de “tecnologias de dominação” — combina-se
com o autocontrole — aquilo que Foucault chama de
“tecnologias do eu” — para produzir o sujeito auto-
governável das sociedades modernas. A produção des-
se sujeito autogovernável é precisamente o objetivo da
ação de instituições como a educação (o currículo), a
igreja, os meios de comunicação de massa, as institui-
ções de “terapia”. (1995, p. 192)

77
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

No dia seguinte à manifestação, ao irmos para a praça


onde se realizaria a aula de educação física da 8ª série, pergun-
tei a uma das meninas que havia participado da coordenação
do Onda como ela tinha visto aquele acontecimento na escola.
Ela me respondeu do alto de sua personalidade responsável e
madura que o grupo havia se empolgado demais com as coisas
desenvolvidas no retiro e tinha estendido o curso para dentro
da escola. Para ela, tratava-se de um excesso infantil, comporta-
mento impensado para quem sabe que cada coisa tem seu tem-
po, lugar e duração certa para acontecer. Ela, bem como as outras
meninas da turma ligadas ao CLJ, já passaram por isso, falam
com o ar de autoridade e sabedoria que a experiência nesse tipo
de movimento lhes conferiu.
Essa identificação prematura com a maturidade foi rea-
firmada em vários momentos. Em uma das primeiras ativida-
des de campo, elaborei algumas questões pedindo a opinião
por escrito dos(as) alunos(as) a respeito de uma determinação
judicial, não mais em vigor, que proibia a circulação de meno-
res de 18 anos nas ruas da cidade após as 22 horas. A mesma
menina que se apresentou como “endeusada” respondeu o
seguinte: “Se todos realmente cumprissem a lei — sim, porque
me diz uma santa alma que faz isso — acho que isso seria
muito relativo porque têm pessoas de 18 anos com mentalida-
de de 10 anos e outras com 13 que têm mentalidade de 21 anos.
É muito relativo”.
A partir dessa fala, é possível desencadear uma série de
análises, mas primeiramente dá para observar uma certa dis-
tinção com relação ao modo de ser juvenil, inconseqüente, ge-
ralmente atribuído como característica psicológica inerente à
idade. Essa menina se vê como alguém que conquistou a matu-
ridade mais cedo do que o esperado, o que implica entender que
ela já se considera capaz de cuidar de si mesma, de discernir e
agir de forma “correta”, tendo bem claro que tipo de comporta-
mento poderia representar ou não algum risco. Mas, o fato de
ter 13 anos, implica também uma constante afirmação de si como

78
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

alguém responsável, dedicada e capaz de pensamentos inteli-


gentes, algo que a letra fria da lei não lhe confere.
A maioria não achava a medida justa. Para alguns — na
maior parte das vezes são os maiores de idade que fazem “bestei-
ras” pois não basta ter 18 anos ou mais registrados na carteira de
identidade para saber se comportar bem na rua — é preciso ter a
maioridade impressa no corpo e na alma. Outros(as) responde-
ram que não se sentiam afetados pela proibição porque não saiam
à noite e mesmo quando saiam, voltavam no horário determinado
pelo pai ou pela mãe. Um menino e uma menina, o mais velho e a
mais velha da turma, que têm permissão dos respectivos pais
para saírem à noite mais freqüentemente, consideraram correta
tal medida jurídica. Acreditavam que com ela se livrariam da
“criançada” que estão acostumados a encontrar e com as quais
não se identificam. Aqui o interessante é que mesmo tendo 16
anos não se consideram atingidos pela lei. No entanto, o que
cabe destacar é que mesmo com posições diferentes se percebia
que o incômodo maior, de forma geral, não era o impedimento
legal às saídas noturnas, mas sim a constituição da lei sobre uma
referência adolescente na qual não se reconheciam. Também por-
que nela não havia qualquer tipo de distinção entre os(as) meno-
res de 18 anos, quando legalmente a menoridade independe das
diferenças existentes antes dessa rígida fronteira jurídica. De
certa maneira consideravam injusto tal critério pois não se
viam imaturos(as); para eles(as) imaturidade é coisa de criança,
referência da qual procuram se desvencilhar e manter uma pru-
dente distância. Entretanto, perante a lei, que vai produzir essa
regulação alicerçada nos pressupostos biológicos e psicológi-
cos, alguém que tenha 13 anos de idade, possui um corpo e uma
mentalidade de 13 e não um corpo e uma mentalidade de 21,
apesar de todos os esforços empreendidos por alguém de 13
para parecer ter 21. Aqui esses adolescentes enunciam uma
outra possibilidade: a maturidade não está presa ao mundo
adulto, está também ao alcance dos mais jovens. Dessa forma, é
possível encontrar adultos fazendo “besteiras”, na mesma me-
dida em que se pode encontrar adolescentes “maduros”.

79
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Bom-mocismo: configuração
de um modo de ser adolescente

A identidade plenamente unificada, completa, segu-


ra e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medi-
da que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam, somos confrontados por uma
multiplicidade desconcertante e cambiante de iden-
tidades possíveis, com cada uma delas poderíamos
nos identificar — ao menos temporariamente (HALL,
1997, p.14).

Apesar do prestígio dos movimentos jovens de Igreja en-


tre os(as) alunos(as) da escola Maria Fausta, nem todos se reco-
nheciam nessa identidade endeusada. Existiam aqueles poucos
sujeitos que não estavam diretamente vinculados a esses movi-
mentos e que eventualmente destoavam da ala “católica-apos-
tólica-romana” da turma. No entanto, essas diferenças não se
encontravam desarticuladas do sistema de formação até aqui
tratado, mas sim compunham uma outra forma de apresenta-
ção dentro de um mesmo campo discursivo. Assim entendo que
as discordâncias surgidas estavam imbricadas ao modo parti-
cular de existência que reinventava em suas práticas os valores
tradicionais de obediência, de cultivo das relações amistosas e
de respeito às posições hierárquicas na família e na escola.
Cabe aqui lembrar novamente o menino que conduziu o
grupo na ida ao Centro Esportivo do SESI, na Vila da Paz. Esse
menino, apesar de ser o mais alto, o mais velho do grupo, de
manter os cabelos compridos e eventualmente usar brincos, mos-
trava-se como um dos mais discretos do grupo. Ele se relaciona-
va muito bem com a grande maioria dos(as) colegas, mas sempre
de forma reservada, procurava não se manifestar perante o gran-
de grupo, só quando fosse estritamente necessário (como no caso
em que precisou convencer a professora e a turma a irem ao SESI).
Nos poucos momentos em que conversávamos, propiciava-me
algumas informações bastante interessantes, como as referentes

80
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

ao tempo em que morava na Vila da Paz. Em uma dessas conver-


sas ele me relatou que sua família teve que se mudar para esse
local por um certo tempo. Lá aprendeu algumas regras de convi-
vência que lhe permitiam transitar entre os diferentes grupos sem
maiores problemas, estabelecer algumas relações mais “barra-
pesada” e reconhecer os pontos de tensão que dão “corpo” à vila,
ou seja, aquilo que a distingue das demais regiões da cidade.
Certa vez, enquanto a turma fazia o aquecimento na aula
de educação física, conversávamos sobre as poucas opções de
espaços públicos adequados para a prática de esportes no mu-
nicípio. Nesse meio tempo, ele começou a descrever como eram
as partidas de futebol nas quadras do SESI na Vila da Paz.

Bah! professor a gente joga lá na Vila da Paz só nas


segundas e nas quartas porque lá é “boca-braba”, tem
uma gurizadinha mais marginal, que joga nos outros
dias, que vai de soco, pontapé e “facada”; vale tudo no
jogo deles. A gente só pode jogar quando eles não tão...
comigo até que tudo bem porque eles me conhecem,
mas com muita gente eles não dão “arrego”.

Eu lhe perguntei como se dava essa distribuição já que, a


princípio, a quadra estava à disposição de todos.

A gente mais ou menos combinou com eles que o pes-


soal que leva mais na “boa”, joga mais na brincadeira,
jogasse nesses dias... eles até que respeitam, mas quando
eles tão a fim de jogar nesses dias aí não tem jeito, eles
entram mesmo. Eu não gosto desse tipo de jogo eles
dão muita “porrada” e o pessoal que vai só para se
divertir não pode jogar... eles fumam maconha e chei-
ram lá mesmo antes de jogar e entram “a mil”... daí
para não dar bolo a gente não joga e cai fora.

Dentro da ótica de uma das partes, essas cláusulas se


faziam necessárias para uma co-habitação pacífica entre os
diferentes grupos, só que nem sempre eram cumpridas por
todos, o que também fazia parte das regras. Cada um sabia
onde estava pisando e essa relação amistosa se configurava

81
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

na aceitação tácita da parcela mais frágil à lei do mais forte.


Portanto não tinha “arrego”.21 No mesmo espaço, comportamen-
tos dissonantes construíam uma clara delimitação de lugares, ins-
creviam fronteiras discursivas em um jogo de pertencimentos.
Esse aluno disse que, às vezes, mesmo não querendo era
inevitável entrar no “jogo deles”. Nesse mesmo dia relatou sua
participação em uma desavença ocorrida no salão de jogos do
SESI, durante uma partida de sinuca. A regra era a seguinte, o
vencedor da partida continuaria jogando e o perdedor deveria
ceder lugar ao próximo e assim sucessivamente para que todos
ali pudessem jogar. Essa combinação vinha sendo respeitada
até o momento em que um dos rapazes, que na visão desse me-
nino da escola não fazia parte da “gurizada gente boa”, perdeu
e não quis dar o seu lugar ao próximo. Perguntei, então, como
foi resolvido o impasse.

Ah! eu pedi por favor para ele sair e ele não saiu; pedi
mais duas vezes e ele não saiu; daí eu fiquei pensan-
do... se eu não fizer nada esse cara vai pensar que tô
“arregando” para ele; então eu peguei e olhei pro
lado e vi que tinha uns amigos meus por ali; um deles
fez sinal como quem diz vai; e aí eu dei com o “taco”
na cabeça do cara...

Quis saber se o menino havia se machucado e ele me


disse que só tinha ficado um pequeno “galo” na sua cabeça,
mas que a partir daí o menino passou a respeitá-lo ainda mais

21
Conforme Aurélio (1986), arrego é uma gíria que exprime impaciência
ou irritação. Essa definição não corresponde ao uso desse termo no Rio
Grande do Sul, pelo menos na região metropolitana de Porto Alegre.
Encontrei nesse dicionário uma palavra similar: arreglo que é o ato ou
efeito de arreglar; ajuste, combinação. A maneira como o termo foi
empregado me pareceu mais próxima desse sentido, pois quando se diz
que fulano “arregou” para ciclano, entende-se que fulano aceitou as
condições que estavam sendo impostas por ciclano. Aproxima-se mais
da idéia de ceder a algo que está sendo pleiteado por uma pessoa ou
grupo: “Pô, fulano, tu vais deixar assim, não vais pegar o que é teu de
volta!... tu vais arregar para ele!... Nessa lógica, arregar seria acovardar-
se diante de algo ou alguém.

82
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

e complementou: “Eu não gosto de arrumar ‘bolo’, mas se o cara


deixar os ‘nego’ não te respeitam; eles ‘cagam’ na tua cabeça...”.
Parece evidente que o comportamento descrito por esse
menino rompe com o modo de ser equilibrado e responsável que
se enunciava na adolescência endeusada. Entretanto é preciso
ressaltar que as identificações são múltiplas e que as relações
não se estabelecem a partir de uma referência binária do tipo
“endeusado/demonizado”. Há uma série de recortes e caminhos
que se cruzam, se contradizem, se apoiam ou se complementam.
No caso relatado, para se permitir tal atitude esse menino acio-
nou uma série de mesuras e solenidades que lhe são de costume,
mas que não sensibilizaram seu oponente, pois a disputa era
travada em uma outra “região”, no espaço reservado entre ho-
mens, onde um determinado discurso masculino fala mais alto.
Naquela arena, o assunto era de “homem-para-homem”, sob o
olhar de aprovação e incentivo de outros homens. Isso implicava
necessária demonstração de “virtudes viris”22 para a imposição
de respeito e obtenção de reconhecimento. Nesse quadro, ele agre-
diu o outro menino. Bateu sim, mas em “legítima defesa da hon-
ra”; para não passar por covarde e ao mesmo tempo para manter
uma prudente distância daquele com quem não se identifica. Um
ato de autoproteção para poder “ficar na sua”, isto é, ficar em paz
com sua própria verdade.
Robert Connell (1995) aponta a existência de uma narra-
tiva convencional que pressiona os meninos a agirem conforme
algumas condutas e sentimentos apropriados para homens de
“verdade”, mas enfatiza, também, que mesmo uma determina-
da masculinidade hegemônica é perpassada por outras mascu-
linidades que marcam diferentemente os corpos por meio das
relações de dominação, marginalização e cumplicidade.

22
Para Christian Pociello (1995), a combatividade, bravura, valentia, alti-
vez, etc. compõem basicamente o que ele chama de “virtudes viris”,
sentimentos masculinos tradicionais prestigiados em alguns esportes
coletivos, como no caso do futebol.

83
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Além disso, também é importante ressaltar que as cenas


relatadas se desenvolveram sobre o recorte geográfico ocupado
pelo outro, o alienígena, o demonizado que é posto (e se põe) em
contraste ao bem-comportado. Portanto, esse menino, mesmo peri-
gosamente perto de um lugar apresentado como hostil, acionou
mecanismos que lhe permitiram dominar uma situação complica-
da, de uma maneira até certo ponto equilibrada. Conforme Fou-
cault, “é sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma
exterioridade selvagem; mas não nos encontramos no verdadeiro
senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que deve-
mos reativar em cada um de nossos discursos” (1996b, p. 35).
Em outro momento, em meio a uma conversa no pátio,
duas meninas revelavam algumas contrariedades em relação ao
modo de ser endeusado que se salientava na turma. O assunto
girava em torno das saídas noturnas. Para uma delas, sair à noite
era uma novidade, falava a respeito da necessidade de conhecer
“gente nova” para poder se divertir nas festas: “é que eu nunca
saí em Cachoeirinha... eu me mudei para cá em março e as pesso-
as que eu conheço são tudo ‘crente’, não saem de casa”. Eu lhe
perguntei como ela via as pessoas da turma que faziam o CLJ e
ela respondeu: “Ai nem me fala, porque esses daqui não tem
mais ‘c.d.f.’ eu nunca vi... uma disse outro dia que gostaria de
estudar até os 60 anos... vê se pode... me dá vontade de nem sei o
quê quando eu ouço aquela guria falando...”
Apesar de não se vincularem aos movimentos de Igreja
prestigiados na escola, e até mesmo apresentando ligeiras desa-
venças em relação à ala católica, os relatos acima apontavam
diferentes maneiras de dizer a verdade sobre si dentro de uma
mesma formação discursiva. Essa, por sua vez, multiplica suas
formas de aparição nos corpos dos sujeitos adolescentes, fazen-
do com que o efeito normatizador de uma moral “neopuritana”
se dilua na complexidade das ações.
Nessa lógica, “endeusados(as) e “não-endeusados(as)”
comungavam um repertório básico de bons-comportamentos,
verificados até mesmo na forma de agitar o convívio escolar,

84
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

pequenas atitudes de transgressão que compunham o que uma


das alunas chamou de “bagunça positiva”.
Em uma das aulas na praça, antes de iniciar as ativida-
des, um dos meninos me contou que no dia anterior haviam
feito uma “guerra” de bolinhas de papel em uma das discipli-
nas. Relatava de forma entusiasmada o que considerou uma
ousadia realizada em plena sala de aula; raro momento de agi-
tação naquela rotina escolar. Uma das meninas que estava ali
por perto também comentou o fato, mas sem a mesma vibração.
Ela disse que esse menino começou atirando uma “bolinha” em
uma colega que sentava bem à frente da professora, que viu o
fato mas não se importou. A menina atingida arremessou a bo-
linha de papel de volta, algo que a professora também viu, mas
que continuou não se importando. Então, já que a professora
não havia se importado, a maioria resolveu se integrar na “ba-
talha” e começou a tocar papel um no outro. De certa forma,
esse ato de aparente rebeldia se constituiu em uma brincadeira
autorizada, pois a ação “bélica” empreendida aconteceu devi-
do à permissão tácita da professora, que reprimiu tal iniciativa
depois de algum tempo de “combate”. Pelos relatos do menino
e da menina, dava para perceber que essa pequena turbulência
não significava nenhum tipo de afronta à ordem escolar, pois o
tempo de duração da brincadeira correspondeu ao tempo em
que durou a tolerância da professora.
Esse mesmo menino também foi protagonista de outra
proeza desse tipo. Ele me contou que em um determinado dia
tinha levado para a aula um “canudinho” de refrigerante e uma
porção de grãos de arroz no bolso. Enquanto as atividades de
aula se desenrolavam, ele colocava um grão de cada vez em
uma das extremidades do canudinho e soprava na outra, na
maioria das vezes em direção às meninas, seu alvo preferido.
Fazia sem ser notado, pois as pessoas alvejadas não conseguiam
perceber imediatamente do que se tratava, além disso, estava
sentado ao fundo da sala e dava um certo tempo entre um arre-
messo e outro. Pela forma como foi relatada, pareceu que essa

85
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

ação demorou a ser percebida pelo grupo, o que demonstrava o


requinte da estratégia, uma sutil “artimanha” que também se
enquadrava perfeitamente dentro da idéia de bagunça positiva:
discreta, engenhosa, sem maldade e inteligente. Algo que se
espera de sujeitos de boa índole, uma certa esperteza e discrição
no modo de importunar.
Nessa comunidade de Cachoeirinha existiam algumas
condições que propiciavam uma maior aceitação dos(as) adoles-
centes às regras e à disciplina implementada pela instituição,
atravessadas até mesmo na forma de fazer bagunça. Acredita-
vam no valor da obediência, não somente pela coerção de alguém
eventualmente investido pelo poder, mas principalmente pelo
entendimento de que a obediência repercutia positivamente nas
pequenas e importantes recompensas cotidianas.
Nessa configuração a escola funciona como um disposi-
tivo que produz no sujeito uma maneira de se ver e ser visto
pelos demais que precisa de pressupostos idealizados como
responsabilidade, desenvolvimento da inteligência, preparação
para o trabalho, cidadania, etc. para legitimar todo processo de
formação escolar. Nessa lógica a escola julga que sua função é a
de transformar o sujeito em algo que ele não pode vir a ser sem
sua intervenção.
Philippe Ariès, coloca que essa noção de boa educação vai
surgir por volta do século XVII, com uma nova noção moral, in-
troduzida por uma disciplina religiosa que deveria distinguir o
escolar do resto da escória da qual até então pertencia (mendi-
gos, criados e soldados). Para tanto era preciso fazê-lo habituar-
se aos bons costumes que identificavam o comportamento nobre
e apartá-lo dos vagabundos. Incitar a incorporação de uma imu-
nidade moral de fundo cristão, por meio de uma educação cada
vez mais rigorosa e efetiva.

Esses hábitos no princípio foram hábitos infantis, os


hábitos das crianças bem-educadas, antes de se torna-
rem os hábitos da elite do século XIX, e, pouco a pouco,
do homem moderno, qualquer que seja sua condição

86
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

social. A antiga turbulência medieval foi abandonada


primeiro pelas crianças e finalmente pelas classes popu-
lares: hoje, ela é a marca dos moleques, dos desordeiros,
últimos herdeiros dos antigos vagabundos, dos mendi-
gos, dos “fora-da-lei” (ARIÈS, 1986, p. 185).

Dentro disso, é possível dizer que os procedimentos es-


colares que operavam na fabricação de um bom-cristão se en-
contram de certa forma legitimados nas estratégias pedagógicas
que dão forma ao bom-mocismo, no qual a boa conduta, o culti-
vo da bondade, o respeito aos mais velhos, confirmados nas
aprovações de seu comportamento pelos professores, pela fa-
mília e pela Igreja, expressam valores tidos como positivos den-
tro de uma moralidade construída sobre os rastros de uma
educação religiosa. Na análise de Rosa Fischer, “essa moral
cristã entranhou-se no corpo e na alma ocidental, percorreu os
discursos científicos, esquiva-se aqui e ali e reaparece silenciosa
nas práticas cotidianas” (1996, p. 82).
Apesar de estar de alguma forma articulado, o bom-mocis-
mo enunciado pelos sujeitos da escola Maria Fausta não se encon-
tra preso aos discursos da Igreja ou da Família que o precederam,
o que implica dizer que não se trata de uma origem sobre a qual
esteja assentado e que se possa remontar. Ele aparece reinventado
em cada detalhe e na banalidade das práticas cotidianas; ele se
espreita nessa apertada configuração discursiva que aprisiona
seus sujeitos enunciadores. O bom-mocismo tem acesso aos indi-
víduos quando esses constroem em seus próprios corpos a recusa
sobre os três grandes eixos que conformam uma identidade de-
monizada: o sexo promíscuo, o uso de drogas e a violência física
desmedida. É justamente nessa articulação que a marca da obe-
diência se faz mais irredutível e onde também os corpos demoni-
zados são vistos como potencialmente perigosos e desviantes da
regra. Dentro disso, o pesado aparato escolar vai, então, incitar o
exorcista que habita bom-moços e boa-moças, mostrando-lhes o
perigo que constantemente os ronda. Vai também poder cumprir
melhor a tarefa de “polir” as condutas bem-comportadas para que
seu “brilho” reluza por muito mais tempo.

87
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Cabe ressaltar que não se trata de entender a relação en-


tre o bom-mocismo e o discurso demonizante da adolescência a
partir de uma relação binária entre poder e resistência, pois os
discursos não se constituem de forma indepedente, mas, sim, em
uma pluralidade discursiva complexa e instável. Dessa forma,
“podem existir discursos diferentes e mesmo contraditórios den-
tro de uma mesma estratégia; podem, ao contrário, circular sem
mudar de forma entre estratégias opostas” (FOUCAULT, 1997, p.
96-7). O que se pode dizer é que há muito mais articulações do
que rupturas nessa multiplicidade de maneiras do sujeito se
constituir como um jovem.
É justamente dentro dessas diferentes “confissões de ado-
lescente” que a distinção entre dois pólos é fabricada — “ordem
pensada que se produz no corpo”23 — promessa de contenção
daquilo que teima em escapar de cada um de nós. Mas para que
seja eficiente é necessário conter o “outro” a quem se pretende
distinguir de certa forma atravessado em si mesmo, saber apon-
tar seus desvios em função de uma norma a que se está sujeitado.
É nessa articulação que o bom-mocismo se desdobra em
outras tantas formas que acentuam as distinções sociais dentro
e fora da escola como o sujeito “bom-cristão”, “bom-aluno”,
“bom-cidadão”, “bom-partido”, “bom-chefe-de-família”, “bom-
empregado”, que carrega no corpo, em diferentes momentos da
vida, as marcas da obediência e da adequação social.
O sujeito do bom-mocismo sabe o que não pode ser e sabe
muito bem como se conduzir. Onde quer que vá, sua verdade
será sempre pronunciada, pois não é algo que vem de fora, já
faz parte dele — constitui seu modo de existência. No entanto, é
provável que ele seja capaz de fissurar essa identidade ou des-
lizar através dela e deixar que outras identidades momentane-
amente prevaleçam.
Mas o que importa destacar é que esse aprisionamento dis-
cursivo que se dobra no corpo do sujeito adolescente o conforma e

23
Conforme Michel de Certeau, 1996.

88
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

o reconhece dentro de uma complexa rede de poder como aquele


que sabe se cuidar e que, portanto, pode usufruir de todas as prer-
rogativas de alguém moralmente bom. O desdobramento de suas
ações se dá na perspectiva de ser identificado como alguém “gente
boa”, que marca um lugar distinto dentro de uma mesma faixa
etária, distribuindo os diferentes sentimentos e identidades em
regiões discursivas específicas.

A constituição do
bom-moço e da boa-moça

Da arquitetura aos arranjos físicos; dos símbolos às


disposições sobre comportamentos e práticas; das téc-
nicas de ensino às estratégias de avaliação; tudo ope-
ra na constituição de meninos e meninas, de homens
e mulheres (LOURO, 1997, p. 58).

O bom-mocismo está intimamente enlaçado a uma série


de categorias: classe social, gênero, sexualidade, etnia, naciona-
lidade, regionalismo etc. É nessa trama que adquire sentido. Não
se pode pensar que haja um ponto central de onde o discurso
parta livre de qualquer influência para daí, então, espalhar-se e
preencher a mais ínfima porção do corpo social. No entanto, é
preciso produzir recortes nessa imensa superfície discursiva para
poder apontar algumas formas de interpelação do bom-mocismo
e de como ele funciona nos sujeitos. No caso específico daquela
turma de 8a série da escola Maria Fausta, as relações nas diversas
situações escolares se deram dentro de um sistema co-educati-
vo.24 Nesse quadro, meninos e meninas passam a ser configura-
dos (e se configuram) de forma mútua, porém distinta, quando se
toma as questões de gênero como perspectiva de análise.
Para Joan Scott o emprego do termo gênero como catego-
ria analítica passa a ter maior visibilidade por volta do final do

24
Sistema educacional estruturado para comportar meninos e meninas de
forma conjunta.

89
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

século XX, por intermédio do movimento feminista americano.


Ela o define como “um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (...) um cam-
po primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é
articulado” (1995, p. 86-8). Robert Connell, por sua vez, diz que
“gênero é, nos mais amplos termos, a forma pela qual as capaci-
dades reprodutivas e as diferenças sexuais dos corpos são tra-
zidas para a prática social e tornadas parte do processo histórico.
No gênero a prática social se dirige aos corpos” (1995, p. 189).
É interessante analisar que mesmo com a emergência de
uma série de deslocamentos nos modos de ser masculino e fe-
minino, mais evidentes nessa passagem de século, as desigual-
dades sociais entre homens e mulheres ainda continuam sendo
gestadas a partir das características biológicas. As condutas
corporais são fortemente amarradas à anatomia masculina ou
feminina em uma construção arbitrária dos sentidos, atribui-
ções e atitudes que instituem identidades por meio de relações
de poder nas quais diferentes “instâncias, práticas ou espaços
sociais são ‘generificados’ — produzem-se ou ‘engendram-se’
a partir das relações de gênero” (LOURO, 1997, p. 25).
A percepção social desses comportamentos está alicerça-
da na idéia de que as identidades culturais são simples imposi-
ções naturais, cujos desígnios já estão traçados hereditariamente
para cada gênero. Presumia-se (e ainda se presume) que o funci-
onamento orgânico e as diferenças anatômicas traziam em si
distinções que “naturalmente” se aplicavam às condutas sociais.
Dessa forma, acaba se confundindo, por exemplo, o “ser proge-
nitora” com o “ser mãe”, isto é, a capacidade biológica de gerar
filhos apresenta-se indissociada culturalmente do conseqüente
cuidado materno (TURNER, 1989). Essa diferença sexual alicer-
çada em processos fisiológicos é mediada por um processo cultu-
ral que lhe dá a forma requerida.
Como se pôde ver anteriormente, o menino bom-moço vai
se constituindo no ajustamento de condutas à masculinidade
tradicional, não só voltadas para a demonstração pública das

90
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

virtudes viris mas também correspondente a uma série de res-


ponsabilidades pertinentes ao bom-sujeito cumpridor de seus
deveres. No bom-moço se lapida um modo de ser “criado”25 que
se põe à mostra no corpo ativo e desbravador em diferentes fases
da vida. A captura dos sujeitos nesse discurso estabelece um
conjunto de normas que hierarquiza as relações entre os gêneros.
Assim para uma menina boa-moça as exigências sociais são di-
ferentes daquelas esperadas de um menino bom-moço. Para ela,
desde muito cedo, as atribuições se referem a toda uma constela-
ção de valores e atitudes que reafirmam de forma constante o seu
destino biológico: a maternidade. Dentro disso, espera-se que a
menina tenha um cuidado redobrado com seu próprio corpo e
que se comporte dentro dos padrões de conduta previstos para
a futura mulher/esposa/mãe. Para tanto, exige-se um demora-
do aprendizado sobre como se conduzir apropriadamente — é
preciso “andar direito”; “andar na linha” para não ficar “fala-
da”. Nessas duas sentenças a boa-moça se desdobra (e se redo-
bra) em outros termos: “moça-direita” ou “moça-decente” que
talvez exerçam um apelo mais forte em relação à forma de incor-
poração desse discurso pelas meninas.
A relação prioritária que se estabelece para a moça-direi-
ta é a do recato, da reserva e da decência, principalmente nas
questões relativas à sexualidade. A moça-direita destaca-se jus-
tamente por não chamar a atenção; nada de extravagâncias no
andar, no vestir, no modo de se pintar, de olhar e se comportar.26
Na habilidade desenvolvida para as tarefas domésticas como

25
Utilizo a palavra “criado” no sentido atribuído pelo dicionário Aurélio
(1986); como um modo de ser educado pela família/escola e também
como sinônimo de moço: alguém obediente que se põe à disposição dos
outros. Sujeito bem-criado, diferente do mal criado.
26
Segundo Denise Sant’Anna (1995b), durante boa parte da primeira meta-
de deste século se estruturaram rígidas prescrições médicas, baseadas na
moral católica, que procuravam manter sob controle o embelezamento
feminino: “A mulher de mais má pinta é a que mais a cara pinta”. Assim,
qualquer extravagância poderia pôr em risco a moral das “boas moças de
família”, caso não primassem pela modéstia no trato da própria beleza.

91
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

cozinhar, lavar, passar.27 Enfim, no aperfeiçoamento das nor-


mas de conduta desejáveis à futura mãe de família.
Aqui mais uma vez me reporto à caminhada até o SESI.
Em um dos momentos durante o percurso de volta à escola, um
grupo de quatro meninas começou a tratar, como de costume, de
assuntos pertinentes ao CLJ e ao Onda. Uma outra menina — que
se salientava por sua desinibição em aula — vinha caminhando
um pouco mais à frente prestando atenção ao assunto, mas sem
fazer qualquer comentário a respeito; parecia não estar muito
interessada em discutir o tema. Fazendo uma alusão ao que vi-
nha sendo conversado, perguntei a ela qual era a sua “onda”.
Respondeu-me de imediato que não pertencia a nenhum movi-
mento de Igreja; chegou a participar por um tempo mas desistiu
porque não “fez a sua cabeça”, achou sem “graça”. Essa respos-
ta mobilizou a manifestação das demais na tentativa de “faze-
rem a cabeça” da menina, convencê-la de que talvez não tivesse
achado graça naquele grupo específico em que ela entrou, mas
que existiam grupos de Igreja para “todo o gosto”, além de vários
movimentos nas diferentes Igrejas do município. Diziam que cer-
tamente ela encontraria a graça perdida em algum deles. Argu-
mentavam sobre as possibilidades de reingresso em um momento
menos monótono, que lhe possibilitaria concluir de forma mais
rápida algumas etapas. As meninas se esforçavam para que a
colega pudesse achar algum tipo de graça (talvez divina); mas,
provavelmente, não era isso o que a menina estava procurando.
Logo que a menina, alvo das insistências, juntou-se a um
grupo mais à frente, uma das “militantes católicas” disse que

27
Louro e Meyer (1993) citam que essas habilidades fizeram parte do
currículo de algumas escolas destinadas a educação de mulheres, con-
forme pesquisa na Escola Técnica Ernesto Dornelles em Porto Alegre
(1946-1970). Lá as mulheres se formavam nos “ofícios caseiros”. Esse
tipo de escola já não existe mais, no entanto, “sob novas formas, a
escola continua imprimindo sua ‘marca distintiva’ sobre os sujeitos. Por
meio de múltiplos e discretos mecanismos, escolarizam-se e distinguem-
se os corpos e as mentes masculinos e femininos” (LOURO, 1997, p. 62).

92
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

talvez ela fosse atéia, ao que outra imediatamente complemen-


tou de forma irônica: “ou uma à-toa!”.
O emprego desse termo adquire sentidos distintos para
homens e mulheres. Quando se refere a um homem à-toa pode
se pensar em um homem “sem-vergonha”, que está largado na
vida, ou um sujeito malandro que demonstra uma certa “esper-
teza” no trato com as mulheres (“mulherengo”). No entanto,
quando se refere ao gênero feminino é quase sempre no sentido
depreciativo, pois a mulher à-toa não corresponde ao padrão de
comportamento esperado de uma mulher-direita, geralmente está
associado a uma sexualidade feminina desregrada, em que, na
maioria das vezes, as mulheres são vistas como “vadias”, pro-
míscuas e descompromissadas — mulheres que não se impor-
tam com seus afazeres sociais como o cuidado da casa, do marido
e dos(as) filhos(as).
A menina, ao utilizar esse termo, não se dirigia direta-
mente à colega alvo do comentário. Falava de forma mais gené-
rica sobre as mulheres que não são endeusadas, sobre uma opção
de vida que para elas se apresenta muito distante. Todos ali
sabiam muito bem, mesmo aqueles que não eram católicos pra-
ticantes, que os modos de agir das meninas daquela turma não
correspondiam com a noção de à-toa levantada por aquele pe-
queno grupo. A menina-mulher à-toa é a outra, a alienígena, a
demonizada — o reverso da moça direita.
Também foi possível observar essa relação em uma das
atividades gimno-rítmicas. Nesse dia a professora utilizou na
composição dos movimentos a música Garota nacional 28 do gru-
po mineiro Skank. Durante a execução da música a maioria
dos(as) alunos(as) cantava acompanhando a letra original.
Entretanto, imediatamente após o refrão principal — quero te

28
Essa música trata basicamente do desejo masculino em relação à mulher
do tipo “gostosa”, acentuando o dilema entre resistir ou se entregar aos
prazeres da carne. Tal situação fica mais evidente na seguinte passa-
gem: “Eu detesto o jeito dela, mas pensando bem, ela fecha com meus
sonhos como ninguém”.

93
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

provar — acrescentavam, em coro, maconheira vagabunda, que


encaixava perfeitamente na melodia da música. Assim que aca-
bou a seqüência de movimentos, perguntei a uma das meninas
que estava ao meu lado se aquilo havia sido inventado por eles
ali na hora. Ela me respondeu que não: “isso é uma das coisas
que o pessoal faz na SEC (Sociedade Esportiva Cachoeirinha),
quando tá dançando”.
Essas duas situações remetem para o fato de que as desi-
gualdades de gênero não se produzem somente na oposição “na-
tural” masculino/feminino, mas também, e fortemente, no interior
de cada categoria. Nessa dicotomia, cada um destes pólos se en-
contra fragmentado e dividido, como também reagrupado em
outros conjuntos de sentidos que não são fixos. Conforme Joan
Scott, “‘homem’ e ‘mulher’ são, ao mesmo tempo, categorias vazias
e trasbordantes. Vazias, porque não têm nenhum significado
último, transcendente. Transbordantes porque mesmo quando
parecem estar fixadas, ainda contêm dentro delas definições al-
ternativas, negadas ou suprimidas” (1995. p. 93).
Os reagrupamentos de sentido tanto podem fissurar as
relações fixadas no binarismo homem/mulher como também
podem, aqui ou ali, recrudescer as tradicionais divisões hierár-
quicas de gênero principalmente em lugares que procuram cul-
tivar as tradições locais, destacando-as como a identidade maior
de um povo. Falo aqui das identidades regionais e me refiro
mais especificamente à identidade do gaúcho e da prenda.
Todos os anos, em todas as escolas municipais de Ca-
choeirinha, realizam-se as famosas “festas juninas”, onde tra-
dicionalmente se ocupa um dia inteiro em função desse evento,
geralmente um sábado do mês de junho. Diferentes atividades
são organizadas com a ajuda da comunidade, que participa em
peso de todos os momentos. A escola Maria Fausta optou pela
realização de dois momentos distintos, mas interligados. Além
do tradicional evento no sábado, foi feita uma “gincana cultu-
ral” na sexta-feira imediatamente anterior à festa junina, que

94
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

contava basicamente com apresentações de pequenas peças de


teatro, de quadrilhas, do casamento na roça e de paródias musi-
cais. Essas manifestações faziam alusão à maneira como enten-
diam a relação gaúcho/caipira.
Em todas elas o gaúcho (mais do que a prenda) estava
representado como um ser superior e mais culto do que aquele
sujeito do interior física e moralmente “fraco”, assustado, e que
não tem onde “cair morto” quando chega à cidade. Em uma das
apresentações, da 6ª série, foram colocados dois gaúchos e dois
caipiras. Somente os dois gaúchos cantavam imponentes alguns
versos voltados para a platéia, enquanto os caipiras coadju-
vantes, “ignorantes e medrosos”, ficavam espremidos no fundo
do palco à espera do desfecho. A cena final se dá com os dois
caipiras sendo corridos do palco “a facão”.29
O contraste das roupas já indicava a distinção dos luga-
res. Na apresentação da peça criada pela 8ª série não foi muito
diferente. O gaúcho se mostrava na maior parte do tempo sisu-
do, sério, compenetrado e com gestos enrijecidos, além de estar
devidamente pilchado,30 enquanto o casal caipira aparecia des-
preocupado com as regras de etiqueta doméstica, deseducado
com o anfitrião, desengonçado no jeito de andar e descuidado
com seu próprio corpo — dentes sujos ou ausentes, rosto sujo,
roupas rasgadas e de combinações extravagantes.
A relação gaúcho/caipira nas festas juninas aponta para uma
situação cultural bastante peculiar e complexa. Tradicionalmente no
resto do país as festas juninas procuram contrapor um modo de

29
“Na construção social da identidade do gaúcho brasileiro há uma refe-
rência constante a elementos que evocam um passado glorioso no qual
se forjou sua figura, cuja existência seria marcada pela vida em vastos
campos, a presença do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade e a
bravura do homem ao enfrentar o inimigo ou as forças da natureza, a
lealdade, a honra, etc.” (Oliven, 1993, p. 24).
30
A “pilcha” é um conjunto de vestes tradicionais dos antigos gaúchos
compreendendo basicamente a bombacha, botas, lenço e chapéu. Foi
oficializada como traje de honra e de uso preferencial no Rio Grande do
Sul, a partir de uma lei estadual de 1989 (Oliven, 1993).

95
vida rural a um modo de vida urbano, quase sempre em uma
perspectiva urbana. No Rio Grande do Sul, apesar da diversi-
dade interna, a contraposição que se estabelece é entre o gaú-
cho, cavaleiro e peão de estância originário da Campanha, região
rural da fronteira sudoeste do estado31 e o rural do restante do
país, representado na figura do caipira. Essa associação não
deixa de investir na mesma hierarquia que organiza a relação
rural/urbano nas outras regiões do país.
Na parte da paródia musical, a 8ª série compôs sua letra a
partir de uma canção do CLJ, que tratava das mágoas do homem
caipira em relação a sua esposa. A canção começava contando
que certa vez o pobre caipira havia sentido uma imensa atração
por outra mulher mas que sublimara em respeito à esposa e à
família. Não quis lhe “cornear”. Porém no final da história des-
cobre o que menos esperava: a esposa já havia lhe “corneado”
com o compadre. A letra retratava a desgraça de um homem mo-
ralmente bom e cumpridor de suas obrigações familiares. Apon-
tava para o perigo que constantemente ronda as mulheres e o
quanto é necessário manter a vigilância sobre seu comportamen-
to nas mais diferentes instâncias. Aqui o fato também preponde-
rante é que nessa narrativa a traição é tratada de maneira diferente
para cada gênero. Em muitos lugares essa é uma atitude indistin-
tamente recriminada, mas para os homens há uma certa licença
social concedida em nome do instinto de macho. Quando é a
mulher quem trai, a “tragédia” se instala. Para Valerie Walkerdi-
ne “os comportamentos não são ‘lidos’ de uma forma equivalen-
te. O que é lido como natural na masculinidade pode ser lido
como não-natural e ameaçador na feminilidade” (1995, p. 217).
Nesse conjunto, o processo de conformação dos(as) ado-
lescentes rumo à sonhada maturidade toma por base as regula-
mentações sociais exercidas sobre o núcleo familiar fundamental:
à mulher cabe a maternidade e o posterior cuidado com os(as)
filhos(as), enquanto ao homem cabe prover o sustento da família.

31
Conforme Ruben G. Oliven, 1993.
CORPO EM DISCURSO

São as relações que emergem como constituintes dos


corpos, são as práticas sociais, historicamente data-
das, que produzem, ao longo da vida, nossos senti-
mentos, nossas preferências, nossa aparência e nossa
fisiologia (SANT’ANNA, 1997, p. 279).

Uma construção discursiva se efetiva no momento em


que inscreve nos corpos dos sujeitos seus sinais distintivos,
instaurando marcas que identificam e produzem visibilida-
des.1 O poder de penetração de um discurso na vida social
está associado a sua capacidade de ser visto como algo “natu-
ral”, tornando imperceptíveis seus efeitos entre aqueles que se
encontram capturados. Nessa complexa rede, um discurso ao
mesmo tempo que produz a visibilidade dos sujeitos também

1
Gilles Deleuze ao comentar a obra de Foucault aponta que a visibilidade
não é algo dado a ver na realidade, assentado no sujeito ou no objeto. “É
preciso apoderarmo-nos das coisas para lhes extrairmos as visibilida-
des. E a visibilidade numa dada época é o regime de luz, o resplandecer,
os reflexos, os relâmpagos que se produzem pelo contato da luz com as
coisas. Da mesma maneira, é preciso fender as palavras, ou as frases,
para lhes extrairmos os enunciados (1996, p. 72).

97
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

produz a “invisibilidade” de seu mecanismo de poder. Organi-


za a relação entre o que é normal e o que é desviante, dando um
sentido de realidade àquilo que se vê, faz ou fala.
No entanto, a análise de uma configuração discursiva
como o bom-mocismo não se resume a um conjunto de signifi-
cações exclusivas ao tempo presente. É preciso considerar que
“os novos sujeitos e os novos enunciados constroem-se a partir
de velhos sujeitos, de velhos enunciados que criam as condi-
ções de emergência do novo” (PINTO, 1989, p. 38). Essa condição
não é dada a priori, mas sim estabelecida em uma ferrenha dis-
puta que consolida diferentes sentidos em cada época e lugar.
Em uma tradição histórica, a compreensão sobre o corpo
avançou basicamente a partir de uma concepção dualista, fun-
damentada inicialmente no ideal platônico que acreditava na
existência da alma como soberana das ações humanas. Mais
tarde, o pensamento cartesiano moderno acentuou essa distin-
ção estruturando o dualismo sob os termos razão/corpo — um
processo de distinção hierárquica que buscava neutralizar o
acontecimento aleatório, reduzindo o corpo a uma funcionali-
dade simétrica e previsível.
Na tentativa de desamarrar esse dualismo, passa a ser
importante entender o corpo não como um instrumento da ra-
zão, mas sim como uma construção discursiva, que trata não só
da maneira como o corpo é percebido ou interpretado ao longo
dos anos mas, fundamentalmente, como ele vem sendo distin-
tamente vivido; investido pelas mais diversas tecnologias e
meios de controle; incorporado em diferentes ritmos de produ-
ção e consumo; de prazer e dor (GALLAGHER e LAQUER, 1987).
O corpo é resultado provisório de diversas pedagogias
que o conformam em determinadas épocas. É marcado e distin-
to muito mais pela cultura do que por uma presumível essência
natural. Adquire diferentes sentidos no momento em que é in-
vestido por um poder regulador que o ajusta em seus menores
detalhes, impondo limitações, autorizações e obrigações para
além de sua condição fisiológica. Um poder que não emana de

98
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

nenhuma instituição ou indivíduo e muito menos se estabelece


pelo uso da força, mas sim pela sutileza de sua presença nas
práticas corporais da vida cotidiana.
Cada momento histórico estrutura sua própria “retórica
corporal”,2 que demarca fronteiras no corpo cruzando-o em to-
dos os sentidos. Podemos visualizar uma retórica anatômica
que trata o corpo em sua funcionalidade orgânica, uma retórica
militarizada que esquadrinha o corpo guerreiro, uma retórica
cristã que martiriza o corpo sexuado, uma retórica jurídica que
fundamenta o corpo legalizado...
Para entender o corpo como um lugar onde os regimes
discursivos e o poder se inscrevem, torna-se importante apon-
tar de que forma Foucault estabelece sua posição em relação ao
conceito de “bio-poder”. Em A história da sexualidade (1997), ele
descreve de forma mais detalhada um processo de captura dos
sujeitos a partir de duas redes de investimento e controle sobre
o corpo. Nessa perspectiva, passa a ser importante na investi-
gação científica

mostrar de que modo se articulam dispositivos de


poder diretamente ao corpo a corpo, a funções, a pro-
cessos fisiológicos, sensações, prazeres; longe do cor-
po ter de ser apagado, trata-se de fazê-lo aparecer
numa análise em que o biológico e o histórico não
constituam seqüência, como no evolucionismo dos
antigos sociólogos, mas se liguem de acordo a uma
complexidade crescente à medida que se desenvol-
vam as tecnologias modernas de poder que tomam
por alvo a vida (FOUCAULT, 1997, p. 142).

Primeiramente, a partir do século XVII, os procedimen-


tos de poder disciplinar edificaram o corpo como uma máqui-
na, como sistemas de controle eficazes e econômicos centrados
no adestramento, no aumento de suas capacidades e aptidões,
na extorsão de suas forças, na ampliação de sua utilidade e

2
Michel Foucault, 1996a, p.125.

99
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

docilidade tendo como fim principal o aumento do domínio de


cada um sobre seu próprio corpo.
Em um outro momento, por volta da metade do século
XVIII, o controle vai se voltar para a inter-relação dos corpos
singulares que compõem o corpo social. Um controle que vai
reivindicar a organização demográfica da população tomando
o “corpo-espécie” como suporte dos processos biológicos. Em
nome da preservação da vida, vai se investir na regulação dos
nascimentos, na mortalidade, no nível de saúde, nos casamen-
tos, na duração da vida, no espaço da existência, configurando
uma bio-política da população.
“As disciplinas do corpo e as regulações da população
constituem dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a or-
ganização do poder sobre a vida” (FOUCAULT, 1997, p. 131). Uma
sofisticada tecnologia de poder que atua sobre o corpo de duas
formas distintas, mas convergentes. À sujeição dos corpos indi-
viduais atrela-se o controle cada vez mais rigoroso das popula-
ções, normalizando as condutas por meio de mecanismos
corretivos que estabelecem um modo de ser aos sujeitos. Essa
maquinaria introduz, de forma concomitante e muito eficiente,
um mecanismo de controle que ao mesmo tempo em que se volta
para o desempenho do corpo individual, investe nos processos
da vida social.

Dentre todos estes domínios, as normas não são estáti-


cas mas, pelo menos em princípio, se ramificam para
colonizar, nos mínimos detalhes, as micro-práticas, de
modo que nenhuma ação considerada importante e
real possa escapar da rede de normalidade. Ademais,
como na ciência normal, as práticas normalizadoras
do bio-poder definem previamente o normal, para,
então, diferenciar e manipular as anomalias que rece-
bem esta definição. (DREYFUS E RABINOW, 1995, p. 285)

Há uma infinidade de técnicas que atuam na confor-


mação de um corpo normatizado, mas para que uma norma
ou lei sejam inscritas no corpo torna-se necessário analisar
que instrumentos lapidam e medeiam essa relação. “Esses

100
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

instrumentos compõem uma série de objetos destinados a gra-


var a força da lei sobre o seu súdito, tatuá-lo para fazer dele uma
demonstração da regra, produzir uma ‘cópia’ que torne a nor-
ma legível” (CERTEAU, 1996, p. 232).
Michel de Certeau argumenta que houve uma longa histó-
ria de conflitos, desde os séculos XV ao XVIII, para que o corpo
viesse a ser isolado e tomado como lugar do acontecimento discur-
sivo. O corpo para ser tratado precisou ser destacado do coletivo,
inicialmente individualizado para que então viesse a ser generali-
zado. É justamente nesse momento que o saber médico assume a
administração do bem-estar dos sujeitos, aumentando sua utilida-
de ao mesmo tempo em que passava a regular os processos bioló-
gicos da vida. Primeiramente, a medicina se apóia na lógica do
corpo-máquina, como algo que se pode consertar, corrigir, substi-
tuir o que não funciona, extrair o que há de excesso. Para isso uma
multiplicidade de instrumentos são requisitados para ajustar o
corpo à medida padrão. Já no início do século XIX, o saber médico
vai ampliar lentamente o seu procedimento ortopédico, passando
de uma terapêutica de extrações (o mal é um excesso) para uma
terapêutica de acréscimos (o mal é uma falta).3 Assim esses dois
mecanismos vão assumindo legitimidade, outorgando à medici-
na o manejo das principais intervenções no corpo. Os instrumen-
tos passam a funcionar de forma complementar, vão operar
arrancando/cortando e também inserindo/suturando para man-
ter os corpos submetidos a uma norma ou a uma lei. Essa maqui-
naria de extração e acréscimo tem como uma de suas finalidades
fazer com que os corpos sejam reconhecidos socialmente por sua
proximidade/distância dos códigos médicos emergentes.
Aqui é possível pontuar alguns desdobramentos dessa “tec-
nologia política do corpo”4 que atua e conforma diferentemente os

3
Para maiores detalhes sobre essa relação ver Michel de Certeau (1996).
4
Termo utilizado por Foucault que se refere a um saber sobre o corpo que
não se restringe ao seu funcionamento, mas também ao controle de suas
forças na tentativa de suprimi-las. É uma instrumentação multiforme
que não se localiza em nenhum ponto específico do tecido social, mas
que o atravessa em todos os sentidos.

101
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

corpos nessa passagem de século. A preocupação com o aumen-


to da utilidade/docilidade do corpo vai multiplicar a capacida-
de de intervenção sobre os desempenhos individuais e os
processos da vida. Desde os óculos que possibilitam uma melhor
visão ao coração artificial (ou de animais) que prolonga a pró-
pria vida, o corpo vai sendo redimensionado em uma velocidade
espantosa, ao mesmo tempo em que se torna radicalmente con-
tingente.5 Para Donna Haraway (1994) estamos imersos na era
do ciborgue, do pós-humano, da construção científico-tecnológi-
ca de um corpo sem substância definida, que transgride as fron-
teiras entre o animal e o humano, o natural e o artificial, o orgânico
e o não-orgânico, tornando confusos os limites em que estão ali-
cerçados uma série de binarismos clássicos.
Em um outro aspecto, a bio-política da população vai se
tornar também mais calculista a partir do nascimento da micro-
biologia e dos desdobramentos da genética. Amplia-se de for-
ma vertiginosa a possibilidade, cada vez maior, de não só
mapear mas também de intervir no código genético. Para Lucien
Sfez (1996), o que na concepção dualista se chamava “alma”,
essa substância sem forma, transmigrou para um lugar preciso.
Mudou de matéria, mas manteve seus traços de interioridade e
de segredo: “agora são os genes que compõe nossa alma” (p. 49).
Para ele, atuar sobre os genes é manipular a própria essência
interior, além de estar também agindo sobre a transmissão da
espécie humana e na sua provável transformação.
Na mesma medida em que tudo começa a parecer tão
provisório e caótico, em muitos lugares velhas certezas são rein-
ventadas e se colam aos corpos. Elas não são apenas constru-
ções de um outro tempo e muito menos se encontram de forma
acabada nos dias de hoje. Sua força interpelativa não se impõe
pela simples conservação em formol6 de um discurso tradicional

5
Conforme Paul Virilio, 1996.
6
Produto químico de forte odor utilizado na conservação de cadáveres em
laboratórios de anatomia. Aqui procurei utilizar esse termo como metá-
fora de discursos com pretensões de conservação, que insistem na crista-
lização de uma tradição inventada, procurando manter intacta uma
determinada estrutura narrativa.

102
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

que resiste ao tempo, pelo contrário, essa tradição se faz presente


porque é reinventada, afirmada e cultivada a cada alteridade em
curso, isto é, em cada deslocamento significativo estará sempre ali,
como um de seus componentes, um movimento de conservação.

Moralidade (re)marcada no corpo

Chegamos nus ao mundo, mas logo somos adornados


não apenas com roupas, mas com a roupagem metafó-
rica dos códigos morais, dos tabus, das proibições e
dos sistemas de valores que unem a disciplina aos de-
sejos, a polidez ao policiamento (PORTER, 1992, p. 325).

Não há uma formatação homogênea que possa definir


um modo de ser genuíno e polarizado que caracterize o sujeito
de um discurso. Cada sujeito é capturado de várias maneiras e
estabelece para si um modo de agir tido como verdadeiro. Mas
quando nessa trama algo é definido de forma polarizada é por-
que ali foram estabelecidos destaques valorativos em um con-
junto de significados.
No que se refere ao bom-mocismo, torna-se importante
tecer algumas considerações mais gerais a cerca dos conceitos
“bom” e “mau”, fundamentais na edificação das mais diferen-
tes moralidades. Platão considerava boa aquela pessoa dona
de si mesma,7 que havia desenvolvido a capacidade de domi-
nar seus instintos (com sede no corpo) em favor da razão (espí-
rito superior). Tais conceitos, extraídos por contraste, vão
estabelecer toda uma série de distinções que dão sentido a uma

7
“Ser dono de si mesmo significa que a parte superior, a razão, domina a
parte inferior, os apetites (...) Se a alma está dominada pelos apetites,
que são por natureza insaciáveis (...) e estão em perpétuo conflito (lite-
ralmente em guerra civil...), só há inquietude, agitação, excesso, literal-
mente caos. Mas a razão pode impor a ordem (kosmos), a calma e a
harmonia. Pode estabelecer prioridades entre os apetites necessários e os
desnecessários (...) Desse modo, a pessoa ‘ordenada’ pela razão mostra
uma espécie de autopossessão, estabilidade e unidade consigo mesma.
(LARROSA, 1995, p. 39).

103
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

determinada moralidade. Por sua vez, Nietzsche (1974) afirma-


va que havia encontrado traços de regularidade que constituí-
am duas formas básicas de moral: a moral de senhores (o lado
bom) e a moral de escravos (o lado mau). Apesar de estabelecer
dois termos originários, ressaltava que não havia definições
fixas, havia, isto sim, mediações que poderiam se encontrar con-
fundidas em um mesmo sujeito. Para ele o homem de espécie
nobre construiu todo um sistema de valores investidos pelo
poder de nomear como bom os sentimentos de felicidade, de
honradez, de paciência, de humildade e de amabilidade, en-
contrados em si mesmo; virtudes tidas como elevadas em oposi-
ção a uma moral servil, posta como essencialmente utilitária e
desprezível, facilmente encontrada entre os escravos.
Para os “bons”, trata-se de uma necessidade visceral o
reconhecimento de seu reverso, pois nessa lógica contrastante
os “maus” compõem a estrutura fundamental da sua própria
identidade. A visão do bom como o verdadeiro em si e do mau
como seu contrário se modifica a cada tempo, mas insiste em
uma forma binária de composição de valores morais.8
Todavia para a análise até aqui empreendida, torna-se
importante apontar o sentido atribuído a cada um desses ter-
mos no interior da moral cristã. O cristianismo é uma constru-
ção narrativa de grande densidade histórica, repleta de
significativas modificações que renovaram sua capacidade in-
terpelativa em diferentes momentos. Entretanto, aqui trato ape-
nas de indicar alguns pontos que de certa forma se articulam ao
que foi levantado até o momento.
Na moralidade cristã, a relação entre o “bom” (Deus) e o
“mau” (Demônio) estava diretamente associada às oposições

8
O termo moral assume uma série de significados em relação às condutas
humanas, cambiáveis em função de um tempo e de um lugar. Gilles
Deleuze, ao se referir ao conceito empregado por Foucault, define moral
como “um conjunto de regras que coagem, regras de um tipo especial
que consistem em julgar as ações e as intenções a partir de valores trans-
cendentes” (1996, p. 79-80).

104
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

alma/corpo. Para que uma alma pudesse alcançar o reino dos


céus era preciso inscrever nas práticas corporais uma lei divina
que estabelecesse um modo de agir regulado em sua mínima
funcionalidade. Era preciso transformar o corpo impuro em ima-
gem e semelhança de Deus, somente possível a partir de um
controle quase absoluto.
Nessa lógica, o sujeito do cristianismo foi sendo edificado
a partir da negação do seu próprio corpo, por meio do disciplina-
mento das condutas humanas em um rígido regime moral que
buscava “negar a vida, esmagá-la sob um peso, reduzi-la às suas
forças reativas” (DELEUZE, 1996, p. 52). Em nome da alma exigia-
se o sacrifício do corpo, a redução de todos os seus excessos.
A partir desse quadro, uma retórica corporal da “modés-
tia” começava a se constituir, permitindo, então, classificar pela
gestualidade o grau de adequação de uma alma vivente aos
pressupostos cristãos.
Assim, a gestualidade passa a ser mediadora dos proces-
sos de incorporação da boa moral, tornando-se o lugar de verifi-
cação do domínio do espírito sobre o corpo nos seus mínimos
detalhes. Jean-Claude Schimitt (1995) afirma que dentro de uma
longa tradição os gestos foram considerados a expressão física e
exterior da alma ou, ainda, a própria mediação entre corpo e
espírito. O autor aponta que a palavra gestus, desde a Antigüida-
de romana, vinha acompanhada da palavra modestia, sinônimo
de temperantia, que significava “moderação” ou “justa medida”.
A conjugação desses conceitos buscava atribuir qualquer gesto a
um espírito decente ou indecente, estabelecendo, assim, uma dis-
tinção entre o que era bom ou mau. Depois de um período de
desaparecimento na literatura moralista da Alta Idade Média, a
cultura monástica do século XII retomaria essa noção de gesto
acoplando-a a um conjunto de virtudes (modéstia, temperança,
constância, reserva, etc.) que, ao serem confinadas em institui-
ções emergentes como a escola urbana, passava a restringir de
forma mais intensa a gestualidade, ampliando a regulação cor-
póreo-moral. Segundo Schimitt, se um homem ousasse rir em

105
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

demasia, mantivesse os olhos aflitos e “falasse” como se os de-


dos acompanhassem sua boca, era então possível afirmar que
estaríamos diante de um homem perverso, do qual deveríamos
desconfiar. Assim para manter a integridade moral da alma era
preciso um corpo disciplinado em sua mínima expressão, que
se mantivesse à justa medida do movimento — “além da falta e
aquém do excesso”.9 Assim, a gestualidade controlada passa a
ser um dos eficientes mecanismos que permitiu ao cristianismo
não mais pensar o corpo como lugar da perdição da alma, mas
também submetido à modéstia, à temperança, à constância e à
reserva poderia até mesmo se tornar o lugar da salvação eterna.
Tendo o final do século XX como ponto de análise, é possí-
vel afirmar que os sentidos atribuídos a termos como modéstia são
de outra ordem e fazem parte de uma configuração discursiva
própria. Porém, mesmo possuindo temporalidades diversas, os
discursos contemporâneos não compõem formas originais de apre-
sentação, pois também estão de alguma maneira atravessados pe-
los diversos sentidos edificados em outras épocas. Torna-se mais
complexo atribuir ao sujeito atual10 uma identidade fixada em ter-
mos polarizados, pois as identidades se encontram cada vez mais
descentradas. “O sujeito, previamente vivido como tendo uma iden-
tidade unificada e estável, está se tornando fragmentado, compos-
to não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes
contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 1997, p. 12-3).

9
Alain de Lille, citado por Schimitt, vai traçar detalhadamente a forma de
se visualizar a “justa medida” da gestualidade cristã: “Ela (a modéstia)
delimita o gesto da cabeça (describit gestum capitis), equilibra com justeza
o rosto que ergue suavemente, para quem com uma fronte voltada e
estendida para o alto, ele não pareça desprezar nossos mortais, desde-
nhando de ver a terra. Um rosto excessivamente abaixado para a terra
indica um espírito ocioso e vazio: ela o eleva, pois, com moderação. Quan-
do o rosto não ultrapassa a medida, nem se elevando nem se abaixando,
é que a constância imprimiu sua marca ao espírito” (1995, p. 155).
10
Segundo Deleuze “o atual não é o que somos, mas aquilo em que vamos
nos tornando (...) a história é o arquivo, é o desenho do que somos e
deixamos de ser, enquanto o atual é o esboço daquilo em que vamos nos
tornando (1996, p. 93).

106
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

No entanto, convém lembrar que em meio a esse modo


“movente” de ser, surgem vários movimentos de contraponto
que buscam restaurar e solidificar determinadas identidades
culturais aparentemente presas a um passado distante. Se por
um lado a solução de um problema específico não se transmite a
épocas seguintes, por outro lado uma situação nova pode reati-
var os dados de uma velha problemática (DIAZ, 1993).
Tomando essa relação como parâmetro, é possível ana-
lisar a incorporação da modéstia pelos sujeitos atuais. Em ju-
nho de 1997, o jornal Zero Hora publicou um artigo intitulado
“A modéstia sobe ao pódio”, que teve como foco de análise os
motivos que levaram a imprensa nacional e estrangeira a desta-
carem de maneira tão positiva as virtudes de um tenista brasilei-
ro, após vencer um importante torneio mundial. A jornalista que
assina o artigo analisa como fator preponderante desse sucesso
a maneira como esse jovem jogador se apresenta (ou é apresenta-
do pela mídia). Ela considera que tamanho prestígio se deveu,
fundamentalmente, a sua simpatia, simplicidade e modéstia no
trato com as pessoas, bem como na maneira “despretensiosa”
com que lida com os grandes eventos esportivos. Ela pergunta:
“Com que tipo de gente estamos nos relacionando para ficar-
mos tão perplexos com a simplicidade de Guga?” Nesse artigo
a jornalista vai traçando um cenário cada vez mais corrompido
das relações sociais atuais, nas quais a mesquinhez e a arro-
gância são vistas como sentimentos negativos e inerentes ao
mundo competitivo contemporâneo — “não somos mais irmãos,
mas concorrentes”. Entretanto, em meio a tudo isto,

surge Gustavo Kuerten encantando o mundo inteiro


não só com sua raquete, mas com a cabeça. Está aí um
surfista de Joaquina nos ensinando que é possível ven-
cer a vaidade, reverenciar nossos ídolos sem sentir-se
servil e manter-se sempre natural, não importa se é o
leiteiro batendo lá fora ou os repórteres da CNN.
Enquanto todos procuram diferenciar-se para apare-
cer, pessoas como o Guga destacam-se pelo contrário:

107
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

por cultivarem sua semelhança com o resto dos mor-


tais. (MEDEIROS, 1997, p. 3).

Aqui a modéstia vai estar associada a uma idéia que


entende como “natural” tudo aquilo que se opõe a sentimen-
tos como a vaidade, a soberba e a arrogância, que apesar de
não estarem vinculados a um rígido sistema de coerção sobre
o corpo como no período monástico, distribui-se nele de forma
mais sutil. A regulação dessa nova moralidade está de certa
maneira articulada a alguns traços daquela: simplicidade e
moderação em contraponto a todo tipo de ostentação ou mes-
quinhez. A jornalista, ao mesmo tempo em que vai descreven-
do esse jovem de boa índole, vai edificando um modelo do
bom-moço dos dias de hoje, de certa forma uma versão do bom-
cristão que a modéstia de outrora anunciava.
Das observações feitas junto aos(às) adolescentes da escola
Maria Fausta, foi possível analisar a maneira como seus corpos
davam forma ao discurso do bom-mocismo. Eles(as) assumiam
para si uma conduta que também se pautava pela modéstia,
pelo equilíbrio (temperança) e pela obediência.
Já no meu primeiro contato direto com os(as) estudantes,
foi possível perceber algumas condutas correspondentes às re-
feridas acima. Não falavam muito entre si, portavam-se de ma-
neira muito discreta e se mostravam atentos(as) à explanação (e
execução) das atividades de aula, mesmo nos momentos em
que davam a impressão de não estarem muito dispostos. Quan-
do queriam comentar algum assunto que não fosse pertinente à
aula o faziam procurando não chamar muito a atenção. Inicial-
mente pensei que minha presença estivesse inibindo-os(as).
Mas, de certa forma, eu também estava me sentindo inibido com
tanta discrição.
As roupas se destacavam pela semelhança com o “resto
dos mortais”. A pouca diferença entre meninos e meninas apon-
tava para uma justa medida: nada de extravagância, mas tam-
bém nada de antiquado. Jeans, blusas, camisetas de clubes de

108
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

futebol, vestimentas bem largas e em tons mais sóbrios que pou-


co delineavam o corpo, compunham o visual — algo bem dife-
rente da farta exposição de corpos jovens seminus na mídia de
hoje. As meninas optavam por poucos ornamentos, apenas pe-
quenos brincos, correntes e pulseiras, eventualmente passavam
batom nos lábios. Os meninos tinham basicamente o mesmo
tipo de roupa. Dois deles mantinham os cabelos compridos e
três deles usavam brincos — algo que até bem pouco tempo
atrás poderia ser considerado uma extravagância, mas que ago-
ra se incorpora sem maiores problemas a um visual “querubim”.11
Nas aulas de educação física não havia nenhuma imposição
quanto ao uso de uma vestimenta específica,12 coincidiam com as
roupas de uso diário.
De modo geral as aulas educação física eram muito apre-
ciadas por essa turma de 8a série, mas nem toda atividade agra-
dava automaticamente. As atividades gimno-rítmicas, que
intercalavam as modalidades esportivas escolhidas no bimestre,
a princípio não foram muito bem assimiladas pelos meninos.
Havia um certo descontentamento. Na primeira vez que a profes-
sora ministrou uma aula desse tipo, alguns alunos se recusaram
a fazer alegando que estavam machucados — tornozelo torcido,
dor no joelho e na coluna — a professora, percebendo aquilo
como uma desculpa para não executarem a tarefa, reagiu di-
zendo-lhes que se não participassem dessa parte inicial da aula,

11
Querubim era uma personagem literária do século XVIII, na qual Philippe
Ariès vislumbrava alguns traços de uma adolescência emergente. Trata-
va-se de um menino marcado corporalmente pela ambigüidade de gêne-
ro, onde a semelhança com o lado feminino recaía sobre aquele que estava
recém-deixando a infância (1986).
12
Em quase todo o Brasil, até bem pouco tempo atrás, o uniforme era
obrigatório em uma aula de educação física. Consistia em um agasalho
esportivo, geralmente na cor azul-marinho, para os dias mais frios. Nos
dias mais quentes usava-se camisetas brancas, calções azul marinho ou
preto, meias brancas e um calçado fechado. Alguns manuais traziam
toda uma justificativa científica baseada nos preceitos higiênicos, que
via na exigência do uso de tais roupas a possibilidade de se construir
um corpo mais saudável.

109
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

depois também não participariam do jogo que tanto aprecia-


vam. Dois deles acataram prontamente o apelo da professora e
fizeram a aula resignadamente, enquanto que os outros dois
sustentaram suas alegações. O que me chamou a atenção foram
os mecanismos criados para não contrariar a professora e ao
mesmo tempo não participar de uma atividade pela qual, apa-
rentemente, não manifestavam interesse. Um mecanismo muito
sutil que construía uma negação à atividade sem afrontar dire-
tamente a autoridade instituída.
No período em que o futsal foi a atividade principal do
bimestre, logo na primeira aula uma das meninas também ale-
gou um problema de saúde (bronquite) para não participar. Su-
geriu-se à ela que jogasse como “goleira”,13 onde o esforço físico
seria menor. Essa decisão, a princípio, não a agradou nem um
pouco. Mas mesmo assim cumpriu no jogo a função que lhe foi
atribuída sem reclamar acintosamente. Em uma ocasião, quan-
do estávamos indo para a praça, perguntei a ela se a bronquite
havia se manifestado nesse período. Ela me respondeu com cer-
ta perplexidade, pois entendeu a pergunta como uma desconfi-
ança de minha parte: “Professor, o senhor pode perguntar para
minha mãe como é verdade que eu tenho bronquite... juro por
Deus que não estou mentindo”.
Passado mais ou menos um mês de trabalho com o futsal,
um dos meninos se mostrava descontente com o fato de fazer esse
tipo de aula juntamente com as meninas. Ele não via graça no
futebol misto. Em uma das aulas pediu que a professora organi-
zasse alguns jogos só entre os meninos e outros só entre as meni-
nas, sem “mistura”, apesar do reduzido número de meninos na
turma. Tal pedido não foi atendido naquela aula, o que o deixou
um tanto insatisfeito, mas mesmo assim não se recusou a partici-
par dos jogos juntamente com as meninas.

13
Aqui o termo “goleira” é utilizado como feminino de “goleiro” e não
como “meta”, composta de duas traves e um travessão, lugar onde se
procura fazer o gol. Mesmo com a participação crescente das mulheres
em vários níveis do futebol, esse esporte ainda mantém uma nomencla-
tura que remete a uma tradição masculina.

110
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

É no equilíbrio desse jogo de aceitação e recusa que o


sujeito obediente vai edificando seus contornos. Conforme Frank
Pignatelli, “o sujeito obediente é produzido e sustentado por
um poder pouco notado e difícil de denunciar: um poder que
circula através dessas pequenas técnicas, numa rede de insti-
tuições sociais tais como a escola” (1995, p. 129). Algo bem dis-
tinto da obediência por repressão física.
Mas para que essa relação se efetive, é preciso que o ato de
obedecer também gere benefícios para o próprio sujeito obediente,
é preciso que ele encontre algum prazer naquilo que a princípio
não agrada, que perceba o quanto as recompensas se tornam
mais freqüentes que as penas.
Em uma determinada oportunidade as turmas foram as-
sistir a uma peça de teatro14 na Casa de Cultura de Cachoeiri-
nha, que fica aproximadamente a umas 8 ou 9 quadras da escola
Maria Fausta. Foi colocado à disposição apenas um ônibus com
capacidade menor do que o número de alunos(as). Decidiu-se
então que a 8a série poderia ir a pé até a Casa de Cultura, junta-
mente com algumas professoras, pois se tratava de uma turma
digna de confiança.
O prestígio alcançado por essa turma e as pequenas
regalias decorrentes disso, de certa forma indicavam o quanto
esse grupo de adolescentes já havia incorporado a disciplina
escolar. Aqui o controle funcionava melhor porque os sujeitos
já se encontravam capturados em uma moral de obediência,
não se tratava apenas de subserviência a esta ou aquela auto-
ridade, mas sim a uma verdade na qual acreditavam.
Em um dos dias em que fomos à praça dois indivíduos
aparentemente bêbados ficaram o tempo todo assistindo à aula.
A turma não parecia muito à vontade com a presença deles, mas
todos(as) disseram que sempre apareciam por ali e que nunca
haviam molestado qualquer pessoa da escola. Entretanto, uma

14
Essa peça será abordada em maiores detalhes no texto que leva seu
nome: “Brinquei de médico... deu no que deu!”.

111
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

das meninas atribuiu àqueles dois uma série de adjetivos que os


enquadravam dentro de um padrão de comportamento devida-
mente distanciado do seu. Disse-me que além de bêbados, eram
“maconheiros”, “vagabundos” e também “assassinos”. Eu pon-
derei dizendo-lhe que essa era uma acusação séria e que poderia
lhe trazer problemas, mesmo assim ela manteve sua convicção,
acrescentando mais detalhes. Atribuir aos outros credenciais ne-
gativas (demonizar), também funciona como um movimento de
confirmação, para si mesmo, da validade das atitudes bem-com-
portadas e da certeza de que o caminho seguido é o mais correto.
Conforme já abordei no primeiro capítulo, aproximada-
mente a metade da turma vem estudando junta pelo menos des-
de a 3a série. Poucos entraram ou saíram da turma depois da 6a
série. No entanto, algo que não era muito comum aconteceu
enquanto eu estava realizando as observações. Um menino in-
gressou na escola em julho, proveniente do município vizinho
de Gravataí. Depois de alguns dias de “aclimatação”, pergun-
tei a ele como via a escola.

É bem diferente de onde eu tava. Lá as pessoas não


tinham muito respeito pelas regras. Se um aluno não
quisesse assistir as aulas podia ir embora que não
dava nada. Aqui não. Aqui o cara tem que se ligar...

Pedi que ele me falasse mais sobre como via essa diferença:

Acho os alunos aqui mais ligados e os professores tam-


bém exigem... eu senti que aqui o cara tem que estu-
dar, não é que nem lá que tu estuda se quer... a profes-
sora mesmo dizia que quem não quisesse ficar na sala
podia ir embora, então um monte de gente saía e não
ganhava falta...

Ligados a quê? Provavelmente ao discurso obediente que


opera a ligação entre o modo de vida dos(as) alunos(as) e as
premissas básicas da escola, da família e da Igreja; à uma narra-
tiva que funde a voz dos(as) alunos(as) à voz normalizadora
dessas instituições.

112
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Essa descrição se torna interessante por ser uma espécie


de apresentação da turma por um “forasteiro” recém-chegado,
por alguém que começava a se “ligar” aos códigos que davam
acesso ao grupo e identificavam quem pertencia ou não a essa
comunidade imaginada. Um processo que não ocorreu de forma
automática, pois os(as) colegas achavam esse menino um tanto
“esquisito” e o mantinham de certa forma distante das questões
mais íntimas da turma, algo que provavelmente estava associa-
do ao longo processo de produção do “familiar” na escola.
Cada corpo capturado pelo discurso do bom-mocismo
passa a se reconhecer (e a ser reconhecido) pelas marcas da
polidez, em que uma coerção constante e minuciosa é exercida
de acordo com uma “codificação que esquadrinha ao máximo o
tempo, o espaço, os movimentos (Foucault, 1996, p. 126).
Nessa teia de detalhes, ao sujeito bom-moço vai estar devi-
damente reservado o lugar da normalidade corporal, enquanto
que, por procedimentos de contraste, sobre os corpos demoniza-
dos se marca a ferro todo o tipo de desvio: prostituição, embria-
guez, uso de drogas, rugas precoces, tatuagens, maus cheiros,
etc. As marcas dessa manufatura corporal demonizante produ-
zem um estranhamento ao modo de ser “bom por natureza”.
Acaba reafirmando a crença na existência de um sujeito harmo-
nicamente resolvido, automaticamente protegido por seu caráter
moralmente bom, que se evidencia no frescor das peles lisas e
bem-tratadas. Para se visualizar o processo de constituição do
bom-moço e da boa-moça é preciso considerar o longo processo
de polidez que marca e captura seus corpos. Um processo que vai
apertando, extraindo, desgastando, produzindo incisões na su-
perfície corporal em busca de uma pureza que se acredita es-
condida. Normalmente, aos olhos bem-comportados, o único
corpo marcado é aquele que sofreu (sofre) com a violência físi-
ca material, que deixou (deixa) expostas as cicatrizes de seus
pesados traços. Entretanto, algo que deliberadamente escapa a
essa lógica normativa é que o sujeito bom-moço também está
marcado fisicamente.

113
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Escola, família e Igreja se articulam em linhas de força e


operam a ligação entre sujeito e discurso por meio de procedimen-
tos “cirúrgicos”. Algo que vai aparando as arestas, lapidando as
saliências, atravessando as mais diferentes camadas do corpo até
que se instale nele; até que pareça vir naturalmente de dentro dele;
até que, enfim, passe a ser irremediavelmente o próprio corpo.
Assim o sujeito bom-moço vai se tornando um estandar-
te da polidez no interior de um longo e refinado processo de
acabamento, que vai trabalhando o corpo para que ele possa ser
visto sem aspereza, limpo e sem pregas. Trata-se de uma identi-
ficação que provoca paulatinamente rejeição àquela violência
demonizada, mas de uma forma não menos violenta.

Educação física:
15
um instrumento de escarificação

A educação física não classifica os corpos com crité-


rios de doença ou saúde, mas dentro da ótica da apti-
dão e da capacidade para a prática de determinados
exercícios. Assim, a educação física age sobre o corpo
em nome do princípio da utilidade. Ela pensa no uso
do corpo (SANTIN, 1992, p. 63).

Há muito tempo a educação física se apresenta como


um eficiente instrumento que atua diretamente sobre a morfo-
logia humana, produzindo incisões materiais e simbólicas com
vistas ao aprimoramento orgânico. Seu processo de edificação
de certa forma se confunde com o processo de individualiza-
ção do corpo citado no início deste capítulo, onde as preocu-
pações de ordem anatômica/fisiológica passavam a ser cada
vez mais intensas.

15
Os instrumentos de escarificação possuem vários formatos e são usados
para produzir diferentes incisões sobre a pele. Para Michel de Certeau
(1996) são instrumentos que trabalham sobre o corpo não apenas de
forma material, mas também de forma simbólica, pois gravam sobre a
superfície corporal dos sujeitos uma determinada lei.

114
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Por volta do século XVII, quando o corpo começou a ser


visto como uma engrenagem capaz de produzir energia com
eficiência e economia, tornou-se possível endireitar eventuais
“falhas mecânicas” a partir de preceitos médicos e princípios
estéticos emergentes. Nesse período se acreditava que as defor-
midades morfológicas eram provocadas por complicações ós-
seo-articulares passíveis de correção. Portanto, para ajustá-las
à simetria desejada era preciso imobilizar o corpo para que esse
pudesse receber a pressão de uma aparelhagem reparadora.
Para Georges Vigarello (1995) foi a partir desse imaginá-
rio social que surgiu uma série de aparelhos destinados à corre-
ção de desvios posturais: tutores, cruzes de ferro, espartilhos,
alavancas de distenção corporal etc. Esses instrumentos não só
centravam seus esforços na erradicação de um mal já instalado
como também na prevenção de futuras deformidades. Assim além
de sua função ortopédica esse trabalho de modelagem anatômi-
ca começava a desenhar também uma função pedagógica.
Por volta da segunda metade do século XVIII essa lógica
corretiva vai se inverter e centrar no arcabouço muscular a ori-
gem da fragilidade orgânica. O corpo é chamado à ação e colo-
cado no lugar de instrumento de sua própria correção. De
condenado à imobilidade passa a uma mobilidade regrada,
dentro de uma lógica de atuação dinâmica em que “não é mais
o corpo que recebe uma pressão, é ele que a exerce” (VIGARELLO,
1995, p. 29). Desse modo, além das morfologias, a motricidade
também começava a ser colocada no molde.
Mas para que tal inversão nos procedimentos corretores
se tornasse efetiva, foi necessária a regulação moral de determi-
nados movimentos, em função dos benefícios/malefícios ao
organismo. Nessa lógica, vai se aplicar sobre o espaço muscu-
lar o princípio do treinamento físico, em que o próprio corpo se
repara, se educa e até mesmo se fabrica (CERTEAU, 1996).
É nessa pedagogia que a educação física vai se estruturar,
estabelecendo um princípio de racionalidade ao movimento
(apoiado na ginástica) que vai necessariamente se distanciando

115
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

dos gestos cotidianos considerados inúteis. A retidão do corpo


e a rigidez do porte vão compor as metas da ginástica científica
do início do século XIX, racionalmente distinta da gestualidade
dos artistas circenses, esta última considerada funesta ao cará-
ter utilitário dos exercícios e aos pressupostos higienistas/eu-
genistas desse período (SOARES, 1998).
Nessa perspectiva, os exercícios físicos vão ser apresen-
tados como um poderoso instrumento modelador das formas e
agente de ordenação dos corpos “promíscuos”, efetivando uma
dupla função: o controle individual e a regulação da espécie.

O exercício, este grande modificador higiênico e plásti-


co — porque a função modifica o órgão em seu favor
— desenvolve o organismo, modela a estrutura; e, a
cada geração, o aperfeiçoamento aumenta-se do con-
tingente, que lhe traz cada um dos produtores melho-
rados pela educação física, até se constituir por exten-
são progressiva de seus benefícios, uma raça forte, cujos
os caracteres se tenham firmado e cujas virtudes te-
nham sido desenvolvidas e apuradas pela ginástica ao
ar livre, pela natação e pelos esportes náuticos e nos
campos de jogos (AZEVEDO, 1960, p. 38).

Essa concepção vai atuar diferentemente em meninos e


meninas. O investimento sobre os exercícios constitui-se, histo-
ricamente, em peça-chave para o disciplinamento e a regulação
do corpo jovem, pois era preciso preservá-los, principalmente,
da “volúpia” e da “incontinência sexual”, ou seja, mais do que
uma boa postura era preciso adquirir boas maneiras.
Para tanto as práticas corporais deveriam ser específicas.
Aos meninos era importante privilegiar a virilidade e a robustez,
componentes de uma presumida identidade masculina. Às meni-
nas, o vigor necessário para superar os obstáculos impostos pela
maternidade, mas sem perder o “encanto” feminino: ser forte em
sua “missão”, mas ao mesmo tempo, graciosa em seus gestos.
Nessa articulação copóreo-moral, a ação morfogênica dos
exercícios físicos teria a força de imprimir consistência orgânica ao
efeito outrora produzido pelos tutores, cruzes de ferro, espartilhos.

116
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

A educação física, principalmente na puberdade, deveria


ser um “reduto da moralidade privada”, que fisiologicamente
diluiria por todo o corpo a vitalidade que tende a se concentrar
nos “órgãos de geração”, acalmando os ímpetos e dominando a
vontade, pois “o corpo, na expressão de Rousseau, obedece, quan-
do é forte, e comanda, quando é fraco” (AZEVEDO, 1960, p. 45).
Apesar dos corpos masculinos e femininos se constituí-
rem nas mais variadas instâncias escolares, parece que é na edu-
cação física que essa distinção é salientada repetidamente. Pois
ainda hoje, a partir de uma hierarquia das aptidões físicas acei-
tas socialmente, considera-se as meninas “naturalmente” mais
frágeis do que os meninos, justificando, assim, a necessidade de
uma estrutura especial que proteja as meninas da “brutalidade”
inerente aos meninos. Desse modo parece normal que a educa-
ção física seja direcionada para as habilidades específicas pre-
sumidas para cada gênero, mesmo em se tratando de aulas mistas.

Imprimindo um ritmo ao corpo


As atividades gimno-rítmicas introduzidas nas aulas ti-
nham um caráter bem definido tanto para a professora quanto
para os alunos e as alunas. No entender da professora, a imple-
mentação de tal atividade se justificava na medida em que uma
vez por semana, em função da combinação de horários entre as
demais disciplinas, as aulas tinham a duração aproximada de
90 minutos — tempo considerado muito prolongado para o de-
senvolvimento de um mesmo tipo de atividade física de cunho
escolar. A aula poderia se tornar enfadonha e com isso os alunos
poderiam perder a motivação. É preciso, então, variar para moti-
var; quebrar a “monotonia” para manter o prazer de estar fazen-
do a aula. Algo que já havia funcionado em outros anos no tempo
em que a mesma professora dava aula somente para as meninas.
Essa preocupação em manter o prazer nas aulas de edu-
cação física poderia soar como algo estranho, até mesmo desne-
cessário, pois na escola se toma esse sentimento como inerente a

117
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

essa área de ensino. Porém, é preciso lembrar que essa inerência


também é uma produção discursiva que captura professores e
alunos em uma norma escolar. Trata-se de uma evidência cons-
tantemente reafirmada nas conversas entre professores: “Basta
ver a alegria estampada no rosto dos(as) alunos(as) quando
saem das salas em direção ao pátio...” ou ainda, “...fazer os(as)
alunos(as) gostarem de educação física é fácil, quero ver fazer
gostar de matemática”. Assim se desenha um lugar para essa
disciplina, um espaço onde não só se permite, mas que se reser-
va e até mesmo se exige, a produção de momentos prazerosos
na escola, sendo essa uma de suas “obrigações”. Isso não signi-
fica que esses momentos não sejam buscados por professores de
outras disciplinas que se preocupam com a aprendizagem de
seus(as) alunos(as), o fato é que a esses(as) o prazer nas aulas
não é uma exigência, mas apenas uma recomendação.
Os(as) alunos(as), desde muito cedo, certificam essa cren-
ça sob forma de um relato que se torna movimento. As aulas de
educação física nas escolas, principalmente em escolas que pos-
suem espaço reduzido como o Maria Fausta, funcionam como o
“banho de sol” na prisão, onde os sujeitos são autorizados a sair
de suas quadrículas, respirar em um ambiente mais arejado e
estender o olhar para algo além do limite das quatro paredes.
Na medida em que tudo conspira a favor de uma aula
“naturalmente” alegre, parece muito estranha a preocupação
com essas questões. Porém o que incomoda professores e alu-
nos(as) não é a satisfação decorrente do fato de se estar no pátio
mais “solto”. Mas sim a necessidade de se manterem motiva-
dos fazendo algo produtivo: exercitando-se.
A exigência permanente da produção de momentos di-
vertidos, de manter uma aula sempre “pra cima”, com inova-
ções a cada dia, funciona de forma sutil e quase imperceptível
sobre e a partir de professores e alunos. Estabelece-se um jogo
complexo, uma intricada negociação, cujo entusiasmo no exer-
cício passa a ser o testemunho de sua validade. Uma senha que,
ao mesmo tempo em que acessa o sujeito ao seu próprio corpo, o

118
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

aprisiona em um campo visual; um poder dinâmico controlado


por todos à plena luz, sem que esteja centralmente encarnado
em alguém. De certa forma, é na educação física que o corpo
escolar se mostra a todos indistintamente.
A educação física vai ocupar seu espaço no interior de um
processo de disciplinamento do corpo saudável, que ao mesmo
tempo aponta pretensiosamente para a regulação dos processos
fisiológicos da espécie. A legitimação de sua funcionalidade se
dá pela noção de aptidão e capacidade física que efetiva nos
corpos o princípio da utilidade. Esse processo exige a permanen-
te construção de um espaço de interação prazerosa, que favoreça
um estilo de vida ativo, no qual alunos(as) e professores possam
investir sobre si mesmos todo um aparato de técnicas corporais
que visam imprimir no corpo um modo de ser.
Para que essa relação se estabeleça e produza os requeri-
dos efeitos de promoção da saúde é necessário que haja também
a satisfação na execução do que se está fazendo, tanto da parte
de quem ministra quanto de quem faz as aulas de educação
física. Além disso é preciso reafirmar que esse sentimento de
satisfação é produzido e significado de forma diferente para
cada gênero, principalmente a partir dessa nova mediação en-
tre meninos, meninas e professora. Portanto as atividades gim-
no-rítmicas, que quebravam a monotonia das aulas nos anos
anteriores, poderiam não ter o mesmo efeito de contentamento
nessa outra configuração.
Logo nas primeiras aulas já era possível notar uma reação
de estranhamento dos meninos na própria disposição da turma.
Tanto nas aulas no pátio quanto nas dentro da própria sala de
aula a distribuição dos alunos e alunas era basicamente a mes-
ma. A professora se colocava diante do grande grupo para de-
monstrar os passos que seriam depois repetidos por todos. As
meninas, já acostumadas com esse tipo de aula, imediatamente
se perfilavam à frente formando duas fileiras. Os meninos geral-
mente se posicionavam bem ao fundo, atrás do “pelotão” femini-
no, durante a execução dos exercícios. A pretendida satisfação

119
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

em relação à tarefa proposta não foi demonstrada automaticamen-


te pelos meninos. Manifestavam-se um tanto arredios ao que lhes
parecia uma absorção consentida à técnica corporal feminina.
O pátio, ponto de convergência de todos os olhares, foi o
local escolhido para a realização da primeira aula com ativida-
des rítmicas que observei. Como de hábito, a música acompa-
nhou a atividade, o que despertava ainda mais a atenção das
demais turmas — dava para notar algumas cabeças espreitan-
do por entre as apertadas janelas das salas — isso também cola-
borou para uma atitude mais retraída dos(as) alunos(as), mais
explicitamente dos meninos que, segundo a professora, não
participaram da maneira que ela desejava.
Incomodada com o que chamou de “cara amarrada” dos
meninos, antes do início da aula seguinte, resolveu explicar a dife-
rença entre dança e o que estavam fazendo. Ela presumia que a
preocupação dos meninos residia na associação dessas ativida-
des à dança: “O que nós estamos fazendo nessas aulas não é nada
diferente do que vocês já faziam antes. Simplesmente a gente está
colocando músicas que vocês gostam de ouvir em cima dos exercí-
cios que vocês já estão acostumados...” Para que os meninos pu-
dessem se sentir mais descontraídos nas aulas, tornava-se
necessário atribuir um sentido enrijecido e racional a uma ativida-
de que, até então, significava delicadeza e sensibilidade.
Desse momento em diante, os meninos “desamarraram
as caras” e passaram a introduzir uma outra relação com essa
atividade, extraindo dela uma certa satisfação. Entretanto, o
que a princípio se apresentava como um processo de incorpora-
ção estava mais vinculado ao que chamei de “procedimentos
de separação”. A partir daquela explicação da professora, os
meninos procuraram demonstrar no corpo não mais uma recu-
sa à tarefa em si, ou ao que era proposto, até porque participa-
vam regularmente de praticamente tudo, mas sim uma rejeição
à gestualidade que para eles identificava o gênero feminino.
Os meninos passaram então a realizar os exercícios de uma
forma “desengonçada”, “naturalmente” desajeitada, na qual

120
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

procuravam deixar evidente que essa solicitação corporal não


era correspondente à “verdadeira” habilidade masculina. Era
um jogo muito complexo: recusar uma atividade com a qual não
se identificavam e, ao mesmo tempo, não desautorizar a profes-
sora. Mas o que poderia ser apressadamente interpretado como
resistência não era nada mais do que a própria voz reguladora
da escola articulada às vozes e aos corpos dos alunos, que esta-
beleceria uma certeza de que ali não é o lugar do masculino. Aqui
não há nenhuma desobediência, pelo contrário, há uma obe-
diência às regras de distinção social que atribuem, nos mais de-
talhados lugares, o que é próprio ao menino e próprio à menina.

O argumento de que homens e mulheres são biologi-


camente distintos e que a relação entre ambos decor-
re dessa distinção, que é complementar e na qual cada
um deve desempenhar um papel determinado secu-
larmente, acaba por ter um caráter de argumento fi-
nal, irrecorrível. Seja no âmbito do senso comum, seja
revestido por uma linguagem “científica”, a distinção
biológica, ou melhor a distinção sexual serve para
compreender — e justificar — a desigualdade social
(LOURO, 1997, p. 20-1).

Assim o comportamento de desconforto apresentado pe-


los meninos de certa forma corresponde ao que socialmente se
espera deles; articula-se às regras de uma ordem social maior.
Marcas de uma disciplina que se torna mais efetiva quanto menos
ela é percebida como tal.
Esses procedimentos de separação poderiam ser perce-
bidos em vários momentos da coreografia16 montada ao longo
dos bimestres. Consistiam, basicamente, na apresentação, por
parte dos meninos, de um comportamento compenetrado na

16
Em cada aula que envolvia atividades gimno-rítmicas a professora pro-
punha a criação de alguns passos, primeiramente no grande grupo e
depois nos diferentes subgrupos. No final da atividade, pelo menos um
passo era escolhido para compor a seqüência geral. Era um trabalho de
composição diária, onde os movimentos deveriam ser sincronizados,
exigindo uma certa simetria no conjunto.

121
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

explicação/demonstração da professora, ou de uma colega pró-


xima, quanto à execução de um dos movimentos propostos. Em
seguida, quando toda turma era solicitada a realizar o exercício
de forma conjunta, a maioria dos meninos, ao menor gesto fora
do compasso, caia na risada, desistia momentaneamente da
seqüência e complementava dizendo: “é, não tenho jeito para
isso mesmo...” Ou então, executavam os movimentos em um
tempo diferente dos demais, mostrando-se geralmente atrasa-
dos, principalmente em relação às meninas. Imediatamente, zom-
bavam de seus próprios desacertos.
Porém, não é somente pelo contraste com o corpo femini-
no que a masculinidade é elaborada, mas também na compara-
ção com outros homens, com outros corpos a partir de
parâmetros estipulados como masculinos. Nessa mesma aula,
um dos meninos estava realizando a atividade de forma mais
compenetrada, acompanhando passo por passo a seqüência
estabelecida. Um outro menino ao observar seu desempenho
comentou com os demais: “Bah! Olha só como ele tá levando a
sério...”. Aparentemente esse tipo de aula era também prazero-
sa para alguns guris na medida em que de maneira sutil a trata-
vam como uma paródia dos movimentos femininos.
Depois de algum tempo de convivência, os meninos da-
vam a impressão de estarem mais afinados com esse tipo de
atividade. Tanto que em uma aula realizada na sala, a empol-
gação era notória. Havia uma maior compenetração nos movi-
mentos e, a cada passagem da coreografia, percebia-se que a
participação era mais ativa do que das outras vezes. A música
escolhida era uma das mais “curtidas” pelo grupo. Todos esta-
vam muito entusiasmados com o que estavam fazendo. A tal
ponto que ao soar o sinal para o final do turno na escola, um
pequeno grupo ainda permaneceu na sala dançando juntamente
com a professora, mesmo já podendo ir para casa. Nesse meio
tempo, a professora me falou que se sentia muito gratificada ao
ver os meninos participando ativamente do que ela propunha.
Acredito, no entanto, que esses momentos de “comu-
nhão” não chegavam a modificar o entendimento a respeito da

122
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

gestualidade masculina e feminina, pois apesar de partilharem


de alguns momentos prazerosos, os meninos insistiam em se
mostrar alheios a algumas propostas que consideravam mais
femininas, mas sem se colocarem frontalmente contra o que foi
estipulado, procurando manter a boa harmonia em suas dife-
rentes relações com as meninas.
A composição da coreografia ao longo das aulas se dava
basicamente da mesma maneira: criação de alguns passos nos
subgrupos para serem agregados à seqüência geral. Quase sem-
pre os movimentos que acabavam incorporados eram aqueles
criados pelas meninas. Além da criação, eventualmente a profes-
sora solicitava que a autora do movimento se posicionasse à
frente dos demais para apresentá-lo, o que para a maioria das
meninas era uma honra. Em uma dessas aulas, a professora
resolveu solicitar aos meninos a realização de tal tarefa. Esses,
por sua vez, apesar de estarem envolvidos com a atividade,
reagiram como se a solicitação não tivesse sido feita a eles. De-
pois de alguma insistência um menino disse: “Ah! professora
tem bastante guria aí para fazer isso, nós só estamos partici-
pando...”. Resposta pontual e convincente, que não deu espaço
para contestações de qualquer parte, pois as atividades gimno-
rítmicas não estavam postas no mesmo patamar das outras mo-
dalidades, não havia regras a aprender, era mais para “desopilar
o espírito”. Dentro de uma perspectiva que implica a educação
física em uma relação necessariamente prazerosa, os(as) alu-
nos(as) acabavam utilizando sua (in)satisfação como um pode-
roso instrumento de barganha.
Um outro acontecimento significativo nas aulas em que
havia atividades rítmicas dimensiona a força com que o autodis-
ciplinamento se inscrevia em seus corpos. Na semana seguinte
ao acontecimento relatado acima, foi implementada uma siste-
mática diferente para a composição da coreografia. Para aquele
dia e para a aula posterior, cada grupo ficaria responsável pela
criação de pelo menos um passo, que seria demonstrado para a
turma toda. Ficou combinado que um sorteio estabeleceria os res-
ponsáveis para cada um dos dias. No momento do sorteio o

123
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

grupo com maior número de meninos fazia questão de demons-


trar que torcia veementemente para não ser escolhido. Quando
esses alunos viram que o resultado foi o esperado, vibraram
intensamente como se tivessem marcado um gol importante em
uma partida de futebol. Comentei com um deles a respeito des-
sa minha impressão e ele me disse: “Nem quando eu marco um
gol eu comemoro tanto”.
Aqui, a crença na obediência às regras de conduta escolar
e a solicitação constante de uma masculinidade tradicional fa-
zem com que participem educadamente da atividade desde que
reafirmem um modo de ser necessariamente avesso à suavida-
de dos gestos. “Ainda que várias escolas e professores venham
trabalhando em regime de co-educação, a educação física pare-
ce ser uma área onde as resistências ao trabalho integrado per-
sistem, ou melhor, onde as resistências provavelmente se
renovam” (LOURO, 1997, p. 72).

Futebol “normal”
No bimestre em que se praticou o futebol, a própria profes-
sora escolheu três meninas e dois meninos para que fossem líde-
res de seus respectivos grupos. Esses por sua vez sorteariam os
nomes dos(as) integrantes do grupo a ser formado. Como se tra-
tava de um sorteio, a distribuição entre meninos e meninas não
ficou equilibrada. Acabou se formando um grupo só de meninos
e a maior parte dos demais grupos só de meninas. A professora
viu-se obrigada a intervir nessa composição. Aqui a preocupa-
ção era manter o equilíbrio nos jogos entre os grupos para não
afetar o ânimo das meninas, pois a idéia não era fazer das parti-
das disputadas uma “guerra dos sexos” — algo bem diferente da
idéia de jogos mistos.
Em função dessa configuração eram necessários cinco
integrantes em cada grupo, como dois ficaram com quatro com-
ponentes, a cada partida alguém que não estivesse jogando na-
quele momento seria “emprestado” para completar essas

124
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

equipes. Para manter uma proporção razoável entre meninos e


meninas foi necessário combinar que os grupos com menos in-
tegrantes fossem completados por meninos.
Nas aulas de futsal, os meninos tinham uma postura bas-
tante diferente daquela demonstrada nas atividades gimno-rítmi-
cas. Era possível perceber uma maior compenetração e seriedade
nas jogadas; esmeravam-se na execução dos gestos e lamentavam
quando erravam algum lance considerado decisivo no jogo. Algu-
mas vezes, discretamente reclamavam do posicionamento das
meninas em quadra e da falta de atenção aos lances mais corri-
queiros. Elas, por sua vez, divertiam-se com seus próprios er-
ros, algo que de certa forma acontecia com os meninos nas
atividades gimno-rítmicas.
Na cultura brasileira o futebol tem uma intensa pene-
tração na mídia como forma de espetáculo. Em um período
relativamente curto, surgiu uma série de práticas derivadas:
futebol sete, futvolei, futebol indoor, beach soccer, etc. Esse
esporte, de forte tradição masculina, possui no Brasil um po-
der interpelativo que atravessa as diferentes relações. Além de
se ver, ler e ouvir; joga-se futebol nos mais variados lugares: no
meio da rua, em um campinho esburacado, na beira da praia,
ou em sofisticados espaços construídos especificamente para
essa finalidade. Entretanto, na imensa maioria dos lugares,
futebol sempre é tratado como coisa séria, como uma questão
de honra. Tanto é que, mesmo durante uma despretensiosa
“pelada”17 de fim de semana, quando alguém perde a bola para
um adversário, proporcionando uma desvantagem para sua
própria equipe, é imediatamente repreendido: “vê se pára de
brincar e joga sério...”. Nesse jogo, posturas agressivas com o
outro (adversário ou companheiro) são encaradas com natura-
lidade por seus praticantes, sem que isso seja visto como um ato
de violência. É comum se ouvir após uma partida de futebol

17
Segundo o dicionário Aurélio (1986): “1. Jogo de futebol ligeiro, sem
importância, em geral entre garotos ou amadores, e que se realiza em
campo improvisado.

125
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

frases do tipo: “na hora o cara fica com a cabeça quente, mas de-
pois do jogo não dá nada”. Christian Pociello (1995) afirma que
nos esportes mais duros, combativos e violentos como o futebol
talvez ainda sejam encontrados os últimos bastiões de expressão
de uma virilidade tradicional; lugares onde os valores masculi-
nos ainda podem circular publicamente com rara legitimidade e
sem nenhuma vergonha.
O jogo de relações que se estabelecia nessas aulas era bas-
tante interessante. Os meninos, ao mesmo tempo que mantinham
uma postura de seriedade exigida por um discurso masculini-
zante, mostravam-se mais gentis nos jogos, não disputavam ne-
nhum lance de forma mais ríspida, nem mesmo entre eles. Naquele
grupo a dureza e as atitudes agressivas cediam lugar a um com-
portamento na maioria das vezes mais fraterno. Esse comporta-
mento mais sensível, em relação a um esporte que tem na mútua
agressão, na resistência à dor e na virilidade suas principais
características, fazia parte de uma intrincada negociação entre
as diferentes identificações que constituíam os meninos daquela
comunidade. Para eles parecia ser dura a tarefa de ter de nego-
ciar nos seus próprios corpos uma série de solicitações culturais
que lhes diziam como produzir uma masculinidade apropriada.
Segundo Robert Connell há uma narrativa convencional
que aponta referências socialmente fixadas, que visam definir
condutas e sentimentos apropriados para os homens.

Os rapazes são pressionados a agir e a sentir dessa for-


ma e a se distanciar do comportamento das mulheres,
das garotas e da feminilidade, compreendidas como o
oposto (...) A maior parte dos rapazes internaliza essa
norma social e adota maneiras e interesses masculi-
nos, tendo como custo, freqüentemente, a repressão de
seus sentimentos (1995, p. 190).

Os meninos têm de marcar no próprio corpo a interdição


ao prazer de um gesto mais sensível, delicado, mais leve. Um
lento aprendizado que faz com que esses sentimentos sejam per-
cebidos como estranhos ao universo masculino.

126
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Em uma das aulas de futsal na praça, a professora optou


por uma atividade que dividia a quadra em duas partes. Em
ambas ocorreriam minipartidas entre os grupos. Dessa forma,
poderiam jogar quatro equipes ao mesmo tempo e na mesma
quadra. Para tanto, foi necessária outra forma de distribuição
dos grupos. Nesse tipo de atividade não era preciso que alguém
jogasse no gol, pois foram improvisadas quatro “goleirinhas”
com pedras e tijolos.
Durante essa atividade, um dos meninos perguntou a pro-
fessora se iriam jogar “futebol normal”. Perguntei a ele o que
significava isso. Ele respondeu: “jogar na quadra toda usando as
goleiras grandes”. Logo em seguida, esse mesmo menino veio me
falar que havia lamentado a minha ausência na aula anterior,
pois tinha achado a aula muito boa. Ele me contou que nessa
aula os meninos haviam jogado entre si e as meninas entre elas,
algo que iria se repetir naquele mesmo dia. Como só havia seis
guris, questionei se não poderia ser ruim jogar só três contra três,
mas ele foi categórico em afirmar que mesmo assim era melhor,
pois dessa forma poderia haver mais disputa. Além disso, na
opinião dele, a disputa entre as gurias seria mais equilibrada.
Na semana seguinte a aula havia começado com uma
conversa informal, a professora estava explicando as ativida-
des a serem realizadas. Ao terminar a explanação, o mesmo
menino perguntou novamente se não haveria “futebol normal”.
A professora questionou o que seria futebol normal. Ele respon-
deu: “Assim professora, guri contra guri”. Ao que prontamente
uma outra menina respondeu: “Então quer dizer que nós não
jogamos futebol normal? Quer dizer que nós somos anormais?”
A professora respondeu-lhe que no final daria um arrego e os
deixaria jogar conforme quisessem. Algumas meninas reclama-
ram timidamente dizendo que só ele não queria jogar com elas.
Preferiam jogar o tempo todo de forma mista, mas a professora
manteve sua decisão de separar meninos e meninas ao final da
aula daquele dia. Apesar da reclamação partir de apenas um
menino, não se tratava simplesmente de um desejo individual,

127
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

ele enunciava toda uma tradição masculina atravessada no fu-


tebol bem como nos esportes de uma maneira geral.

Jogos e competições apontam para a construção de


corpos masculinos mais fortes e ágeis, para uma
“agressividade sadia” que pode — geralmente para
eles — se manifestar em corridas e lutas de brinque-
do. Nessas atividades, estimula-se um tipo de cama-
radagem considerada “tipicamente” masculina, na
qual está presente, freqüentemente, a lealdade, mas
onde não se supõe intimidade, confidências, demons-
tração explícita de sentimentos (LOURO, 1995, p. 177).

Dava para perceber nos jogos mistos que esse menino era
um dos que apresentava maior habilidade com a bola nos pés,
mas isso não lhe era suficiente, pois a identidade masculina é
coisa “séria”, por isso não bastava o reconhecimento da habili-
dade com a bola nos jogos entre as meninas, era necessário dar
um toque de seriedade às partidas nas aulas. Para ele se torna-
va muito mais importante ter seu talento reconhecido em uma
“verdadeira” partida de futebol. Demonstrar superioridade
técnica ou física sobre um outro menino no futebol é um elemen-
to muito valorizado na cultura masculina brasileira.
Dois fatos interessantes ocorreram em uma das aulas de
futsal. Durante um dos jogos mistos um menino em uma dispu-
ta de bola com uma outra menina levou a pior, caiu no chão,
mas não chegou a se machucar. Ele, enquanto estava caído,
reclamou para a professora da entrada mais agressiva da cole-
ga. A menina reagiu fortemente dizendo: “Ai guri! deixa de ser
florzinha, não pode nem te encostar... tu não tá vendo que tu tá
jogando junto com guria... vê se age que nem homem!” O meni-
no não respondeu, ficou até certo ponto espantado com a rea-
ção. Imediatamente se levantou e continuou jogando como se
nada tivesse acontecido.
Logo que ocorreu a inversão dos grupos, eu me aproxi-
mei dessa menina e lhe perguntei o que realmente tinha aconte-
cido naquele lance. Ela já foi logo dizendo:

128
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

é que ele sempre faz assim, cheio de ‘coisinhas’, nin-


guém pode tocar nele que ele logo começa a recla-
mar, parece uma ‘mariquinha’... É que nós aqui (apon-
tou para as gurias que estavam sentadas próxima a
ela) somos o lado masculino da turma... nós é que
brigamos, jogamos, disputamos, damos mais porra-
da no jogo.

Logo após o término da aula, dois alunos ajudavam a pro-


fessora a recolher o material. Enquanto isso, um grupo de meni-
nos da comunidade que tinha assistido praticamente toda a aula
estava se organizando na quadra recém-desocupada para reali-
zar uma partida de futsal. Logo no começo do jogo deles a bola
caiu fora das cercanias da praça, próximo de um dos alunos da
turma que estava indo embora. Pediram para que ele atirasse a
bola de volta, coisa que fez prontamente. Logo em seguida à de-
volução o menino que havia feito a solicitação disse: obrigada. Os
parceiros dele deram gargalhadas e o menino da turma, visivel-
mente constrangido, saiu sem dizer nada.
De uma certa forma esses meninos da comunidade, ao
enfatizarem ironicamente o agradecimento na condição femini-
na, procuraram demonstrar que as ações observadas não esta-
vam em conformidade com o repertório de condutas masculinas
tidas como padrão. A reação contida do menino juntamente
com aquela reação enérgica da menina, ao mesmo tempo em
que viabilizavam a ironia mostravam a dissonância dessas re-
lações em uma localidade tão arraigada a diferentes tradições.
Com o passar do tempo as meninas foram se familiarizan-
do com algumas habilidades requeridas pelo jogo, a ponto de pro-
porcionarem lances de destaque durante as partidas. Era possível
perceber uma predisposição maior das gurias no futsal, do que
dos guris nas atividades gimno-rítmicas. Boa parte delas investiu
em um trabalho de “autolapidação” corporal para modelar os ges-
tos e enquadrar o corpo no ato de jogar futebol. Porém, por mais
que as meninas demonstrassem afinidade com a bola, para os
meninos elas ainda se encontravam no lugar de ocupantes de
um território alheio. Reconheciam o esforço feminino, até mesmo

129
sua desenvoltura era considerada boa, mas elas não desfruta-
vam do certificado de posse que por força de tradição é outorga-
do aos meninos. Essa sensação ficou mais explícita no dia em
que os meninos jogaram com as meninas na presença de alguns
amigos mais velhos, que inclusive foram ex-alunos da própria
escola. Aparentemente os meninos da turma estavam menos a
vontade do que o habitual. Em um determinado momento do
jogo um deles sofreu um gol marcado por uma das meninas.
Isso provocou imediata gozação dos ex-alunos. O menino ten-
tou reparar a situação dizendo que tinha deixando a bola pas-
sar para equilibrar o jogo. Entretanto o fato é que não conseguia
reconhecer o mérito da jogada muito bem executada por ela.
Para ele levar um gol de uma guria era uma situação inadmissí-
vel, principalmente na frente de outros meninos; porém aparen-
tava não estar indignado, mas sim muito constrangido. Pelo
que se pôde observar, os meninos suportavam jogar futebol com
as meninas, mas achavam ultrajante serem superados, mesmo
em momentos muito raros de um jogo de caráter escolar.
Pelo que se mostrou, a cada mínimo deslocamento im-
plementado por alguma ação no território alheio, outros tantos
movimentos eram acionados para reafirmar o caráter transcen-
dente das oposições binárias. As fronteiras de gênero já não
estavam mais fixadas nos jogos de futsal ou na composição da
coreografia, mas no quanto cada uma dessas modalidades era
modificada para atender a uma característica feminina ou mas-
culina considerada inata.
Por isso, nem sempre a co-participação em atividades
reconhecidas como de um ou outro gênero resulta em estremeci-
mento na polarização masculino/feminino. Barrie Thorne, ci-
tada por Guacira Louro (1997), argumenta que essa interação
fronteiriça entre gêneros tanto pode abalar e reduzir o sentido
da diferença como pode, ao contrário, fortalecer as distinções e
os limites.
VOZES DA SEXUALIDADE

A sexualidade em nosso tempo assumiu o caráter da ver-


dade mais profunda a respeito de nós mesmos. Ela se tornou o
segredo mais bem-guardado por qualquer sujeito, um mistério
encarcerado no próprio corpo e do qual não se pode escapar.
Esse “signo indecifrável” não é um elemento determinado exclu-
sivamente pela natureza, é uma invenção social muito bem-dis-
tribuída em uma série de discursos que normatizam um modo de
ser universal para os sujeitos masculinos e femininos em suas
diferentes fases da vida.
Esse processo de distribuição não decorreu de uma única
estratégia lançada por um núcleo privilegiado do saber, mas sim
de um conjunto delas que se produziu e se instalou por intermédio
de um dispositivo da sexualidade.1 Uma refinada tecnologia que

1
Para Foucault o dispositivo da sexualidade é um dos pontos de passagem
mais significativos nas relações de poder, pois amplia as formas de regulação
social pela estimulação dos corpos, intensificação dos prazeres, incitação
ao discurso e formação de conhecimentos sobre o próprio corpo. “O dispo-
sitivo de sexualidade tem, como razão de ser, não o reproduzir, mas o
proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada
vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais
global” (1997, p. 100-1).

131
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

ao investir pesadamente sobre o sexo está, ao mesmo tempo, inves-


tindo no controle do corpo e na regulação da espécie, funcionando
como operadora do bio-poder.

De um lado, faz parte das disciplinas do corpo: adestra-


mento, intensificação e distribuição das forças, ajuste e
economia das energias. Do outro, o sexo pertence a
regulação das populações, por todos os efeitos globais
que induz (...) O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida
do corpo e à vida da espécie (FOUCAULT 1997, p. 136-7).

Acreditava-se que nas sociedades modernas o sexo era um


assunto proibido do qual não se ousava falar. Foucault vai mos-
trar que, ao contrário do que algumas correntes históricas supõem,
falava-se de sexo de um modo bastante prolixo, por uma série de
estratégias e de aparatos discursivos que lhe atribuíam um sentido
alarmista. Algo perigoso que precisava ser administrado nas suas
mais diferentes instâncias.2
Para uma administração eficiente era importante estrutu-
rar um saber sobre o sexo que organizasse um vocabulário auto-
rizado, mas de circulação restrita. Um jogo bastante paradoxal e
complexo que iluminava a sexualidade para poder proibi-la. Essa
operação vai se estabelecer pela técnica da confissão, que provo-
cava uma fala controlada, cujos desvios de conduta eram detida-
mente extraídos dos sujeitos que se confessavam para então
receberem a classificação conforme o mal que poderiam causar à
sociedade. Para tanto, “cumpre falar do sexo como de uma coisa
que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir,
inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos,
fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga
apenas, administra-se” (FOUCAULT, 1997, p. 27). Por meio dessa

2
Para Foucault, o discurso sobre a sexualidade não era algo que se encon-
trava reprimido nos corpos, mas sim disperso por todo o sistema social.
“Consideremos os colégios do século XVIII. Visto globalmente, pode-se
ter a impressão de que aí, praticamente, não se fala de sexo. Entretanto,
basta atentar para os dispositivos arquitetônicos, para os regulamentos
de disciplina e para toda a organização interior: lá se trata continuamen-
te de sexo” (1997, p. 30).

132
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

prática se codificava uma série de perversões, vícios, doenças e


degenerescências catalogadas como crimes contra a espécie. Foi
na esteira da confissão que se edificou um modo de se relacionar
com o próprio corpo e o corpo do outro, capturando os sujeitos
em uma trama discursiva que tem por função apontar aos sujei-
tos a fronteira entre o normal e o patológico.

O sexo, essa instância que parece dominar-nos, esse


segredo que nos parece subjacente a tudo o que so-
mos, esse ponto que nos fascina pelo poder que mani-
festa e pelo sentido que oculta, ao qual podemos re-
velar o que somos e liberar-nos o que nos define, o
sexo nada mais é do que um ponto ideal tornado ne-
cessário pelo dispositivo de sexualidade e por seu fun-
cionamento. (FOUCAULT, 1997, p. 145)

É nesse dispositivo que os sujeitos são fabricados (e se


fabricam) como homem e mulher. Nele aprendem a reconhecer as
“verdadeiras” condutas, prazeres e desejos em meio a diferentes
possibilidades de exercer sua sexualidade.
Nesse processo de fabricação, os sujeitos masculinos ou
femininos constituem suas identidades sexuais a partir da for-
ma como vivem sua sexualidade, com parceiros(as) do mesmo
sexo, do sexo oposto, de ambos os sexos ou sem parceiros(as)
(LOURO, 1997).
De uma maneira geral, essas identidades se encontram
profundamente imbricadas nas práticas corporais, mas apesar
disso não são equivalentes, pois homens ou mulheres podem ser
heterossexuais, homossexuais ou bissexuais. Para Deborah Brit-
zman, “toda a identidade sexual é um constructo instável, mutá-
vel e volátil, uma relação social contraditória e não finalizada”
(1996, p. 74). Mas ao se tomar como referência o sentido usual-
mente atribuído aos corpos masculinos e femininos, é possível
notar que as imagens construídas se apoiam na crença de que
existe um destino anatômico já traçado para cada gênero. “Essa
lógica ostensivamente afirma que, primeiro, a pessoa obtém o gê-
nero correto e, depois, ‘obtém’ a heterossexualidade. É uma lógica

133
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

que insiste na confusão da categoria de gênero com a de sexo”


(BRITZMAN, 1996, p. 78).
Esse processo de normalização do masculino/feminino
se inscreve nos corpos também a partir de modelos idealizados,
que buscam uma forma universal de representação condizente
com os conceitos que circulam em cada época. Mary Del Priore
(1994), ao se referir a Thomas Laqueur, indica duas grandes
concepções relativas aos corpos sexuados. Segundo a autora,
aproximadamente até o século XVIII, as anatomias eram perce-
bidas a partir de uma matriz “unissexual”, na qual o corpo
masculino era o modelo e o feminino a sua versão atenuada.
Acreditava-se que no plano anatômico não havia diferença en-
tre órgãos masculinos e femininos, salvo que os da mulher eram
internos (PRIORE, 1994). Conforme o próprio Laqueur (1992a), a
mulher era considerada um homem invertido, onde o útero era
o escroto, os ovários correspondiam aos testículos, a vulva a um
prepúcio e a vagina a um pênis.
Já a partir do século XVIII surge o modelo dos dois sexos;
as diferenças fisiológicas entre homens e mulheres começavam a
ser enfatizadas em meio à efervescência dos estudos anatômicos
da época. De um modo específico, o interesse dos anatomistas
estava mais voltado para a até então desconhecida constituição
orgânica das mulheres. Assim uma nomenclatura específica para
os órgãos femininos começava a tomar corpo, como os citados
acima, mas ainda associados aos órgãos masculinos.
Laqueur (1992a) vai destacar o controvertido processo
de aparecimento e sumiço do clitóris na literatura médica oci-
dental como parte de uma eficiente tecnologia de sujeição do
corpo feminino a um discurso biológico-moral. Em suas primei-
ras definições fisiológicas, os anatomistas consideravam o cli-
tóris majoritariamente responsável pelo prazer nas relações
sexuais femininas. A maioria deles acreditava que a vagina se
restringia apenas a sua condição de conduto de ligação, um
órgão com poucas ramificações nervosas e, por conseguinte,
com pouca influência no prazer. Com isso tornava-se muito

134
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

mais complicado estruturar uma regulação sexual de ordem


reprodutiva com base na anatomia emergente daquele período.
Laqueur acrescenta que antes de 1905 ninguém poderia imaginar
a possibilidade de outro orgasmo que não fosse produzido pelo
clitóris. Para o autor, foi a partir de Freud que o clitóris praticamen-
te deixou de ser identificado como um órgão de prazer sexual,
assumindo a vagina o lugar das relações sexuais possíveis.
Até então, os estudos anatômicos traziam à tona ques-
tões de certo modo fundamentais para as pretensões discursi-
vas da sociedade moderna. O que se apresentava como problema
era o fato de que o órgão considerado responsável pelo prazer
sexual feminino não possuía função reprodutora, algo que re-
presentava uma ameaça para a própria normalidade da rela-
ção heterossexual, da instituição familiar e por conseguinte da
civilização. Todavia na mesma proporção em que se fazia refe-
rência a essa função perigosamente desviante do clitóris, uma
série de aparatos eram acionados para discipliná-lo, reprimi-lo
e até mesmo extirpá-lo.3
Essa migração do clitóris (lugar de prazer sexual) para a
vagina (lugar de reprodução sexual) e o conseqüente “sumiço” do
primeiro resultou em um dos mais importantes mecanismos de
controle sobre a sexualidade feminina, engendrados por um lógica
masculina, que ainda opera sobre os corpos de nosso tempo.
Contudo esse pesado investimento sobre o corpo femini-
no não visava exclusivamente a sua adequação às normas de
reprodução humana, mas sim estruturar uma detalhada “polí-
tica sexual”4 concernente a toda a população para que os sujei-
tos se tornassem agentes de sua própria regulação, instituindo

3
Em algumas sociedades africanas, como também na Índia, ainda hoje é
possível encontrar rituais de extirpação do clitóris quando a menina
atinge a puberdade. Crêem que com esse procedimento de fundo religi-
oso estão preservando o corpo da futura “mulher-esposa-mãe” das
manifestações libidinosas consideradas nefastas a sua condição — uma
identidade que se marca a “ferro” no corpo feminino.
4
Conforme Michel Foucault, 1997.

135
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

lentamente em si mesmos uma série de condutas consideradas


apropriadas. Esse processo se efetiva em um dispositivo com-
posto por diferentes linhas de força que estão permanentemen-
te em tensão. Nas palavras do próprio Foucault, “um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, me-
didas administrativas, enunciados científicos, proposições fi-
losóficas, morais, filantrópicas...” (1992, p. 244).
Nesse conjunto, a escola se destaca como um importante
elemento na distribuição e no funcionamento de um discurso
sobre a sexualidade.
Ao se tomar como ponto de análise a forma como os
currículos escolares estão estruturados, é possível perceber
que as questões relativas à sexualidade não aparecem de ma-
neira explícita. Quando o tema precisa ser tratado, geralmente
a instituição educativa recorre aos especialistas da área médi-
ca e/ou psicológica, organizando palestras ou oficinas. Fora
disso, pouco se toca no assunto. Entretanto, independente-
mente da vontade de professores e alunos(as), “a sexualidade
está na escola porque ela faz parte dos sujeitos, ela não é algo
que possa ser desligado ou algo que alguém possa se ‘despir’”
(LOURO, 1997, p. 81).
Na escola Maria Fausta, a sexualidade também não apa-
recia “a olhos vistos”, mas sim codificada em uma série de nor-
mas e condutas aparentemente banais. De um modo geral, esses
procedimentos encontravam justificativas (e se reforçavam) na
crença de que assuntos desse tipo são pertinentes à esfera pri-
vada da família. Portanto se surgisse algo fora do previsto, de-
veria ser encaminhado e resolvido em casa.
Essa forma de entender a sexualidade se manifestou de
maneira mais intensa, quando algumas turmas (em especial a
turma de 8a série) foram assistir a uma peça de teatro local que
tratava mais diretamente de temas como menstruação, primeira
relação sexual e gravidez.

136
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

“Brinquei de médico... deu no que deu!”

Hoje em dia, o sexo existe em um vazio moral. No


meio desta confusão e incerteza, surge a tentação de
voltar às velhas verdades da “Natureza”, ou de bus-
car novas verdades e certezas, de buscar um novo ab-
solutismo (WEEKS, 1993, p. 20).

Tradicionalmente a prefeitura de Cachoeirinha realiza


uma série de atividades culturais na semana de aniversário de
emancipação política do município. Boa parte dessas ativida-
des são destinadas ao público escolar, como foi o caso da peça
“Brinquei de médico... deu no que deu!”.5
A escola Maria Fausta, depois de uma rápida discussão
entre os professores, decidiu que seria interessante a sua parti-
cipação nesse evento mas, como a entrada não era franca, foi
necessária a concordância dos(as) alunos(as). Caso a maioria
dos(as) alunos(as) de uma determinada turma não concordas-
se, haveria aula normal.
Na 8a série esse assunto foi discutido em uma das au-
las de educação física, já que para essa turma o horário de
apresentação da peça coincidia com o horário de aula dessa
disciplina. Poucos se manifestaram interessados(as) em as-
sistir à peça, alguns/mas queriam ter aula, outros preferiam
ficar em casa. Após um rápido comentário a respeito do con-
teúdo da peça, a maioria resolveu acompanhar a decisão da
escola e prestigiar o evento.

5
“Brinquei de médico... deu no que deu!” estreou em 1993 e foi uma das
primeiras montagens de um grupo de teatro local, vinculado à Secretaria
Municipal de Educação e Cultura (SMEC). No início de 1997, quando
passaram a atuar de forma independente, remontaram e encenaram até o
final de 1997 esse mesmo roteiro, quando então o grupo se dissolveu. Essa
peça, escrita, dirigida e encenada por pessoas daquela comunidade,
surgiu em um momento em que vários produtos culturais foram (e conti-
nuam sendo) lançados na mídia voltados para o público teen nos mais
variados segmentos: literatura, cinema, programas de televisão, revistas,
complementos de jornais, etc. (FISCHER, 1996).

137
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

A trama da peça girava em torno da sexualidade na ado-


lescência, mostrando a transição física e psicológica de uma me-
nina (Carol), personagem central. Seus medos, suas desconfianças,
sua entrega, suas (des)ilusões, suas culpas eram expostos em
uma série de jogos infantis e nos rituais de aproximação sexual
entre jovens.
No período que retratava a infância, as brincadeiras cor-
riqueiras eram mostradas dentro de uma lógica binária: o meni-
no naturalmente curioso e ativo com relação às transformações
ocorridas em seu próprio corpo e no corpo feminino. Já a meni-
na tinha na ingenuidade e na postura retraída sua forma de
identificação com o mundo infantil.
O foco principal era o “desabrochar” da sexualidade na
menina, que bem no começo estava muito centrada na maneira
como o irmão (Juca) via esse processo. Juca aparecia como um
sujeito que atravessava essa fase de uma forma menos traumá-
tica do que Carol. As transformações para ele ganhavam desta-
que, evidenciadas nas brincadeiras que incorporavam alguns
objetos à genitália masculina, projetando a virilidade como um
fenômeno superior, algo que provocava gargalhadas gerais do
público presente.6 Em vários momentos a gozação em relação
ao corpo feminino dimensionava a relação hierárquica entre
gêneros na idade das descobertas. Na cena em que ela mens-
trua pela primeira vez, Juca passa um bom tempo dizendo que
aquilo era uma coisa nojenta que precisava ser limpa e escondi-
da para não ficar sujando a casa.
Na fase do primeiro namoro, as cenas saem de uma in-
fância caseira para uma adolescência escolar. A cena que mar-
ca essa passagem é quando Carol está sozinha no quarto
produzindo sua metamorfose etária na maneira de se vestir.
Começa a se pintar, soltar os cabelos, pôr sutiã, enfim, vai escul-
pindo no corpo um padrão de despedida do mundo infantil até

6
As turmas da escola Maria Fausta assistiram ao espetáculo juntamente com
as turmas de outra escola municipal. Com isso, o público presente naquele
dia na Casa de Cultura municipal era de aproximadamente 250 pessoas.

138
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

então restrito a sua casa. O mundo da escola e da rua passam a


ser os locais onde transcorrem as demais cenas. Nesse momen-
to, entra na história um outro menino (Guga), um personagem
que faz o estilo “sex symbol”, conquistador de “menininhas”.
Guga, desde sua primeira aparição, passava o tempo todo
assediando Carol, enquanto esta queria apenas brincar, con-
versar e estar junto dele, apesar de se sentir incomodada com a
insistência que a colocava permanentemente à prova. Logo em
seguida, sai o primeiro beijo e a platéia, que já interagia bastan-
te, passou a se manifestar mais intensamente. Carol, aparente-
mente brava com Guga, diz: “essas coisas não são para se fazer
em público”. O rapaz se desculpa, mas insiste em encontrá-la
novamente. Combinam de se verem no baile da escola. Lá ele
volta a agarrá-la, só que agora de um modo mais truculento. Se
desentendem, pois ela não quer daquele jeito, quer de uma for-
ma mais romântica e sai de cena.
Nesse instante entra no palco a personagem “Vandeca”,
interpretada por um menino. Na trama da peça não fica bem
claro se é uma mulher do estilo “perua” ou um travesti. A reação
da platéia foi de riso frouxo com essa personagem, única a ser
anunciada com pompa por uma voz gravada em off. Logo nas
primeiras cenas já fica claro que essa personagem “ardilosa” vai
disputar o Guga com a Carol, desenhando uma luta polarizada
entre a meiguice de uma e o atrevimento de outra. A platéia, a
partir de então, posiciona-se contra a personagem amedronta-
dora que se dirige provocativa e insinuante para cima do rapaz,
em uma atitude que invertia o lugar de quem conquista e de
quem se deixa conquistar.
Carol volta à cena e se depara com o assédio de Vandeca,
que nesse momento já estava literalmente sobre o Guga. Ambos
discutem seriamente. Ele, como já havia ocorrido em outros mo-
mentos, agride Carol, sacode, empurra, esfrega a mão em seu
rosto, torce seu braço. Enquanto a maltratava, a platéia vibrava
com essa relação brutalizada que oscilava “entre tapas e beijos”,
evidenciando a preferência por um romantismo baseado na rela-
ção desigual de afetos.

139
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Já quando Carol sai novamente de cena, Vandeca toma


conta do espetáculo e do rapaz, fazendo uma coreografia mais
sensual e chegando num determinado momento a simular um
beijo na boca. A platéia aflita com a perspectiva de um eventual
romance entre ambos, tentava impacientemente “salvar” o Guga
dessa enrascada; gritavam: “não entra nessa... ele é um menino”.
Ao final da coreografia Carol retorna ao palco e vê Guga
abraçado à Vandeca. Ela discute novamente com ele e sai de
cena, só que desta vez ele sai atrás. A cena seguinte é a da recon-
ciliação entre Guga e Carol, na qual as coisas se mostram aparen-
temente resolvidas. Ambos prometem manter uma relação
diferente e chegam a fazer juras de amor eterno. Guga insiste em
transar e ela cede, deixando entender que seria uma das formas
de mantê-lo longe da Vandeca. Imediatamente após essa recon-
ciliação simulam uma transa. Ao terminar a cena sentam-se em
um banco de frente para o público. Ela começa um discurso de
arrependimento do que havia feito, dizendo que se sentia suja e
querendo conversar com ele sobre o ocorrido para aliviar a culpa,
mas ele foi embora dizendo que tinha mais coisas a fazer.
Na cena seguinte ela aparece feliz dizendo-lhe que esta-
va grávida, falando em casamento e em uma vida a três com o
futuro filho. Querendo resolver logo a situação ele lhe dá di-
nheiro para fazer aborto. Diz a ela que na realidade não queria
nada além do que “inaugurá-la”, transar e mais nada. Carol lhe
implora para que fiquem juntos. Guga a agride mais uma vez e
sai de cena. Carol fica sozinha no palco se martirizando pelo
seu próprio erro.
Na cena final ela aparece prestes a dar a luz em um quar-
to meio escuro. O recurso cênico utilizado foi o monólogo, em
que chama pela mãe e pelo pai que a abandonaram. Carol repe-
tia varias vezes: “por que não me avisaram nada... por quê?”
Pedia clemência e a presença da mãe na hora do parto. A peça
acaba com a menina caindo no chão em um final melodramáti-
co. Sozinha, indefesa e desprotegida, sua presumível morte pa-
recia o único final possível.

140
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Encerrado o espetáculo, voltamos direto para a escola; os


meninos vieram novamente separados das meninas, mas to-
dos, assim como na ida, retornaram a pé. Eu e mais três profes-
soras viemos junto com elas e o assunto durante o percurso foi
a peça. Algumas disseram que acharam o rapaz muito bonito,
mas não fizeram maiores comentários a respeito da temática
desenvolvida. Apenas uma das meninas, quando falei que tal-
vez o elenco do espetáculo fosse à escola para debater a peça,
disse-me que seria interessante que começassem explicando
algumas coisas que para ela ficaram ocultas na peça, como por
exemplo quando a menina disse no final que não haviam lhe
explicado nada. De forma enfática perguntou: “O que ela quis
dizer com esse nada?... essa parte não ficou bem clara.”
Ao chegarmos mais próximos da escola, essa mesma me-
nina fez uma pergunta aparentemente deslocada da conversa
que vinha sendo mantida durante a caminhada. Ela perguntou
para o grupo de professoras o que era ópio, pois havia lembra-
do de um filme a que assistiu em que foi utilizada a expressão
“a religião era o ópio do povo”. Logo após uma breve explica-
ção de uma das professoras, ela fez a seguinte relação: “Então
aquele cara (o Guga) é o ópio da peça!”. Para ela a presença de
um menino forte e bonito provocava um certo entorpecimento
tanto para a Carol, que acabou abandonando uma postura re-
catada e teve como castigo um final trágico, quanto para o es-
clarecimento da platéia sobre o que pode realmente significar,
para a vida das pessoas daquela idade, passar pelas mesmas
situações vividas pela personagem.
Para essa aluna da turma de 8a série, uma das mais ati-
vas integrantes de um grupo de jovens vinculado à Igreja cató-
lica, a beleza física do menino provocava torpor na platéia,
fazendo com que essa tivesse sua atenção desviada do proble-
ma fundamental trazido pela peça: o sexo é algo perigoso, prin-
cipalmente para as meninas, por isso é preciso saber qual o
momento certo, o lugar certo e a pessoa certa. Ensinamentos que
a personagem Carol não soube seguir ou não teve ninguém para
lhe indicar, mas que para essa menina está bem presente.

141
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

Aqui é possível apontar algumas entre tantas questões


que são enunciadas nessa descrição, como a idéia trazida no
próprio título da peça: sexualidade não é coisa que se brinque
impunemente, é fundamental que se fale sobre o que se tem von-
tade de experimentar (de preferência antes de que se faça) a médi-
cos, psicólogos, pais, mães, padres, professores, enfim àqueles
que possuem legitimidade social para apontar o que há de certo
ou de errado naquilo que se deseja.
Entretanto convém lembrar que os assuntos referentes ao
sexo nem sempre foram tratados como coisa séria, algo que crian-
ça devesse evitar. Philippe Ariès (1986) e Michel Foucault (1997)
afirmam que no início do século XVII era possível perceber uma
relação completamente diferente no trato da sexualidade. Brin-
cadeiras alusivas ao sexo, muito antes de serem um perigo, eram
um deleite compartilhado em público por adultos e crianças.
“Gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis,
anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas
vagando, sem incômodo nem escândalo, entre os risos dos adul-
tos: os corpos ‘pavoneavam’” (FOUCAULT, 1997, p. 9). Situações
vividas em um ambiente em que não havia reservas, culpas e
nem ameaças de qualquer espécie, pois o conceito de inocência
não tinha o prestígio que tem nos dias de hoje. Para Ariès,

essa ausência de reserva diante das crianças, esse há-


bito de associá-las a brincadeiras que giravam em tor-
no de temas sexuais para nós é surpreendente (...) Esse
hábito de brincar com o sexo das crianças pertencia a
uma tradição muito difundida, que hoje em dia ainda
encontramos nas sociedades muçulmanas. Essas soci-
edades se mantiveram alheias não apenas ao progres-
so científico, mas também à grande reforma moral,
inicialmente cristã e a seguir leiga, que disciplinou a
sociedade aburguesada do século XVIII e sobretudo
do século XIX (1986, p. 129).

Outra questão que se enuncia é o aprisionamento do cor-


po feminino no conceito de “momento certo”, que se distribui

142
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

nos mais diferentes discursos como o da família, da escola, da


Igreja, da medicina...
Rosa Fischer (1996) ao analisar a série televisiva “Confis-
sões de adolescente” produzida pela TV Cultura, descreve como
um dos episódios desse seriado mostrava os conflitos vividos
por uma das personagens com relação à iminente perda da vir-
gindade. Diante do dilema entre transar ou não com um determi-
nado menino, uma série de pessoas em quem confiava apontava
os prós e os contras de uma relação sexual nessa idade e lhe dava
o suporte necessário para uma decisão “segura”. Aqui, de uma
maneira bem mais sutil do que na peça descrita, está presente a
idéia do “momento certo” que se atrela a uma série de discursos,
principalmente o médico e o psicológico, a respeito do cuidado e
da preparação que se deve ter para realização do ato sexual.

O discurso da sexualidade adolescente agora incorpo-


ra expressões novas – ‘momento certo’, ‘pessoa certa’
–, termos sem definição precisa, que falam de um re-
torno a valores carregados de conservadorismo, como
a virgindade e o romantismo das relações. O desejo,
quando acontece, deve ser expresso em seus detalhes,
nas dúvidas que suscita, quase sempre ligadas ao jul-
gamento do outro; para a mulher, as indagações que o
desejo traz podem despertar enunciados históricos
como o que associa ‘decência’ a ‘não-desejo’, por exem-
plo (FISCHER, 1996, p. 170-1).

A narrativa da peça “Brinquei de médico... deu no que


deu!” se assemelha em alguns aspectos com a análise que Rosa
Fischer faz de “Confissões de Adolescente”. Situações onde os
momentos mais íntimos são expostos sob forma de confissão
pública, onde o palco ou a televisão são as tribunas do comporta-
mento humano. Porém diferentemente do que ocorre no seriado
— onde as angústias e os conflitos adolescentes contemporâneos
são vividos e confessados dentro de uma estrutura médico-fami-
liar equilibrada e segura —, a peça expõe a culpa de um ato sexual
consumado no momento errado e com a pessoa errada sob o
caráter de tragédia para uma menina que transgrediu as normas

143
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

da decência. A ausência da família no texto da peça anuncia a


responsabilidade de uma má-educação que começa em casa, na
falta de controle, compreensão e apoio dos pais que acaba le-
vando a menina ao desvio de conduta nos momentos mais pre-
ciosos na vida de uma adolescente. Trata-se de um discurso de
imputação de culpa aos pais na condução da educação dos(as)
filhos(as). Um discurso que prega um controle familiar mais
eficiente em tempos de maior liberdade.7
Nesse quadro, Carol se encontra jogada a sua própria
solidão, na medida em que se deixa (e foi deixada) levar pelos
desejos mais instintivos; sem marido, sem irmão (Juca não apa-
rece mais no período que retrata a adolescência), sem pai nem
mãe. Assim abandonada pela família de origem e não conse-
guindo constituir uma nova, vai moralmente morrendo aos pou-
cos, pois pela impressão deixada nessa peça, sem família não
há salvação.

Estabilizando sentidos: as releituras

Os procedimentos que fabricam os estereótipos de


nosso discurso, os preconceitos de nossa moral e os
hábitos de nossa maneira de conduzir-nos nos mos-
tram que somos menos livres do que pensamos quan-
do falamos, julgamos, ou fazemos coisas (LARROSA,
1995, p. 84).

De volta à rotina da escola, a professora de língua portu-


guesa da turma de 8a série solicitou uma releitura da peça “Brin-
quei de médico... deu no que deu!” como atividade de avaliação a
ser entregue e apresentada na semana seguinte à do espetáculo.

7
Não foi por acaso que em 1997 a família foi o tema da campanha da
fraternidade, desencadeada anualmente pela Igreja católica. Algo que
tradicionalmente já tem o apoio e a divulgação da mídia, neste ano rece-
beu um tratamento todo especial em virtude da visita ao Brasil do Papa
João Paulo II. Essa visita deu visibilidade a uma série de grupos de jovens
engajados nos mais diferentes movimentos da Igreja, mostrando a força
interpelativa do discurso católico nessa faixa etária.

144
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

Foram estabelecidos dois grupos de trabalho para que cada um


elaborasse uma livre interpretação do texto daquela encenação.
Nesse exercício de aula, a relação entre as personagens
Carol e Guga foi mantida praticamente conforme a original,
mas receberam algumas “correções” de caráter e de comporta-
mento. A modificação mais significativa ficou por conta da per-
sonagem Vandeca, que nas duas releituras foi interpretada por
meninas um pouco mais “liberadas” do que a Carol; inclusive
teve o nome alterado para “Valéria” pelo primeiro grupo, consi-
derado mais adequado às novas características da personagem.
Tanto em uma quanto na outra versão, não foi mantida a perso-
nalidade ardilosa e provocativa que a marcava no roteiro origi-
nal. Pelo que me foi relatado, nenhum dos meninos se dispôs a
interpretar uma “perua” (ou um travesti) e, além disso, pratica-
mente todos preferiram não tratar dessa questão no enredo adap-
tado. É possível que essa postura corresponda a uma lógica
protecionista que prefere censurar as cenas a que se equilibrar
sobre as bordas do comportamento masculino ou feminino apro-
priado. Isso porque,

o gênero (condição social pela qual somos identifica-


dos como homem ou como mulher) e a sexualidade (a
forma cultural pela qual vivemos nossos desejos e
prazeres corporais) tornaram-se duas coisas
inextricavelmente vinculadas. O resultado disso é que
o ato de cruzar a fronteira do comportamento mascu-
lino ou feminino apropriado (isto é, aquilo que é cul-
turalmente definido como apropriado) parece, algu-
mas vezes, a suprema transgressão (WEEKS, apud,
BRITZMAN, 1996, p. 76).

Entretanto o dado que me pareceu mais significativo foi


a inclusão das personagens pai e mãe como figuras fortes e
controladoras feitas pelos dois grupos, além de uma irmã com-
preensiva na primeira versão. A aparição dos pais estava muito
bem distribuída ao longo das cenas; momentos em que conce-
diam ou não permissão para sair à noite, deixavam ficar na casa
desta ou daquela colega e, principalmente, quando passavam

145
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

uma reprimenda ou diziam uma palavra confortadora. Alguns


diálogos foram criados para mostrar estratégias de convenci-
mento sobre a relevância ou o perigo de determinada atitude,
até mesmo para ressaltar formas de enganar o pai ou a mãe
quando queriam alguma coisa que a princípio não permitiam.
Nas duas versões foi inserida uma cena que antecede a transa
entre as personagens principais, na qual Carol aparece mentin-
do para os pais, dizendo que vai passar a noite na casa de uma
amiga mas acaba indo à festa para se encontrar com Guga.
Cada grupo apresentou um final diferente; no primeiro,
em vez de Carol anunciar que está grávida por meio de um
monólogo que evidencia seu abandono, são os pais da moça
que descobrem o fato prestando atenção (obrigação paterna/
materna) às condutas estranhas que a menina começava a apre-
sentar. O pai e a mãe, ao mesmo tempo em que provocam a
revelação, dão todo o apoio para que ela assuma o(a) filho(a)
em condições de estabelecer uma vida “correta” no seio da fa-
mília original. Não se casam, mas Guga assume a paternidade
e ambos desenvolvem uma amizade fraternal. Passam a ter uma
relação harmoniosa e se comprometem a educar a criança sob
proteção e benção da família da moça.
Nessa releitura Guga é apresentado como um sujeito mais
tranqüilo e compreensivo que trata Carol muito bem. A sua in-
sistência em transar não se dá por má-índole, como no roteiro
original, mas sim por uma necessidade de satisfação sexual
“inerente” a todo adolescente masculino, cabendo à mulher o
lugar da recusa. Carol, antes de transar com Guga, discute de-
moradamente com sua irmã a possibilidade e as conseqüências
de tal ato. Depois de muito refletir chega a uma conclusão: já
está preparada. Logo que a gravidez é constatada, o casamento
é proposto, mas Guga recusa sob a alegação de que é muito
novo. Em nenhum momento o aborto foi colocado como opção,
nem minimamente mencionado.
A segunda releitura se assemelha mais com a peça ori-
ginal, a família também não manifesta apoio e Carol acaba

146
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

morrendo ao dar a luz. Porém agregam uma espécie de epílogo


a essa cena, na qual aparecem os pais chorando sobre o corpo
da moça, arrependidos pela maneira como agiram.
O grupo que desenvolveu a primeira versão contava com
a participação ativa daquela menina que queria saber o sentido
da frase “por que não me avisaram nada”, proferida por Carol ao
final da peça. Esse grupo procurou estabilizar um sentido para
essa frase, condizente com uma adolescência ajustada que, ape-
sar de não estar imune aos “pecados” da juventude, ainda valo-
riza a proteção do lar e os preceitos da família como um bem
maior. Já que não era possível deixar de apresentar uma adoles-
cente grávida, o grupo procurou resolver o conflito de maneira
harmoniosa, articulando de forma menos trágica o desenlace
de uma situação que deveria ser evitada.
A solução criada pelo grupo para conciliar essa situação
aos valores familiares foi muito interessante. Por mais parado-
xal que pareça, o recurso de enganar o pai e a mãe, antes de ser
uma atitude de desobediência, constitui-se em uma celebração
da relação de autoridade que tanto prezam, pois acaba legiti-
mando esse lugar de controle paterno/materno de onde sempre
se espera uma palavra esclarecedora capaz de prevenir qual-
quer problema em relação aos filhos e filhas. O abandono a que
foi relegada a personagem na trama original desmancha esse
lugar da certeza, atribuído aos pais; algo insuportável para os
padrões de conduta de grande parte daqueles(as) adolescentes.
Assim as releituras recolocaram as coisas no seu devido lugar:
a personagem Carol errou porque não seguiu os ensinamentos
familiares e não por negligência dos pais. Nessa lógica, pai e
mãe podem ser eventualmente enganados, mas dificilmente se
enganam em suas previsões: “se tivesse escutado o que o teu
pai e tua mãe diziam isso não teria acontecido”.
Trata-se de uma atitude de obediência na qual os dife-
rentes sujeitos produzem e conservam como sua mais profunda
verdade a moral e os bons costumes. Algo que se enuncia a todo
instante e em diferentes lugares entre os adolescentes daquela

147
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

comunidade. Esse discurso penetra de forma extremamente efi-


ciente pois, em sua distribuição detalhada nas diferentes ins-
tâncias, vai se tornando invisível aos olhos bem-comportados
do bom-mocismo, ao mesmo tempo em que se corporifica nas
ações dos sujeitos. Com a inclusão dos personagens pai e mãe,
esse grupo adolescente edificou nessa adaptação a estabilida-
de que parecem possuir em suas relações familiares, onde a arte
de enganar não corresponde a uma recusa à autoridade dos
pais, mas sim a legitimação de sua palavra.
Pai e mãe enganados retornam à cena final com mais
força conduzidos pela mão de sua própria filha, mostrando que
as proibições impostas a filhos e filhas só existem para o pró-
prio bem deles, além de ser um sinal da constante atenção dis-
pensada às mínimas atitudes demonstradas. A arte de enganar
apresentada nessa versão aparentemente corrige aquilo que mais
perturbou aquela menina no roteiro original da peça: o descaso
da família em relação a criação de seus filhos e suas filhas. Até
mesmo na segunda versão, que se assemelha mais à original,
houve a necessidade de materializar a presença dos pais em
cena para, pelo menos, redimirem suas culpas diante de omis-
são tão grave, funcionando como uma importante lição.
Tanto na peça original como nas duas releituras não
havia qualquer espaço para uma vida fora do disciplinamento
e das regulações sociais baseadas no discurso da família. Nelas
não sendo possível uma acomodação aos preceitos convencio-
nais, como foi feito na primeira versão, então melhor seria um
final trágico com a morte da personagem do que uma vida de-
monizada, marcada pelo aborto, a maternidade desacompanha-
da ou por qualquer tipo de vida fora dos padrões tradicionais.
Aqui, de maneira muito forte, edifica-se um complexo me-
canismo de punição, no qual a representação da morte da perso-
nagem Carol produz os sinais de uma regra a ser repetida com
freqüência e seguida em todo lugar.

Em torno de cada uma dessas ‘representações’ morais,


os escolares se comprimirão com seus professores e os

148
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

adultos aprenderão que lição ensinar aos filhos. Não


mais o grande ritual aterrorizante dos suplícios, mas
no correr dos dias e pelas ruas desse teatro sério, com
suas cenas múltiplas e persuasivas. E a memória po-
pular reproduzirá em seus boatos o discurso austero
da lei (FOUCAULT, 1996a, p. 99-101).

Nessa lógica, as releituras funcionaram como uma pala-


vra de confirmação para eles(as) mesmos(as) do valor da obe-
diência, do quanto é bom ser “bom-moço” ou “boa-moça”, do
quanto é valiosa a autoridade familiar na determinação de um
futuro mais seguro e de uma transição menos traumática para a
fase adulta. Algo que também estava presente no roteiro origi-
nal, só que nas versões dos alunos da 8a série daquela escola, de
uma forma menos cruel.

Falando de sexo: enunciados


de um cotidiano adolescente
Com exceção dos desdobramentos referentes à peça
“Brinquei de médico... deu no que deu!”, dentro da estrutura
mais formal da escola prevalece, de maneira geral, uma espécie
de lei do silêncio sobre as questões relativas à sexualidade. Acre-
dita-se que essa ausência da fala possa funcionar como um
“preservativo” que impeça o “contágio” das condutas sexuais
moralmente aceitas pelas condutas rejeitadas. Ou seja, quanto
menos se discutir essas questões na escola, mais estáveis as
identidades sexuais poderão permanecer. Mas o silêncio não
significa inexistência de narrativa, pelo contrário, é uma das
tantas maneiras de se falar a respeito da sexualidade e de se
posicionar dentro desse discurso.
Para Foucault (1997),

não se deve fazer uma divisão binária entre o que se diz


e o que não se diz; é preciso tentar determinar as dife-
rentes maneiras de não dizer, como são distribuídos os

149
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

que podem e os que não podem falar, que tipo de dis-


curso é autorizado ou que forma de discrição é exigida
a uns e outros. Não existe um só mas muitos silêncios
e são parte integrante das estratégias que apoiam e
atravessam os discursos (FOUCAULT, 1997, p. 30).

Na turma de 8a série da escola Maria Fausta, as referên-


cias sobre sexo se apresentavam nessas estratégias discursivas
que delimitam o quê, onde e em que momento cada sujeito deve
falar a respeito desse segredo.
Na ocasião em que utilizei uma câmara de vídeo para
filmar a aula de educação física, os(as) alunos(as) se mostraram
bastante empolgados(as). Mesmo sem um roteiro de perguntas
definido, a filmagem acabou se encaminhando para uma espé-
cie de entrevista, onde foram relatadas algumas situações coti-
dianas. Em um dos grupos, compostos só de meninas, a questão
inicial era a respeito da mesada; se recebiam ou não, e que tipo
de relação estabeleciam com o dinheiro. Uma delas começou
respondendo que o dinheiro recebido era quase todo gasto em
“porcarias”. No meio da sua descrição, uma colega interrom-
peu para dizer, em tom de brincadeira, que uma dessas porca-
rias era camisinha, algo que todo grupo achou engraçado. Logo
em seguida ela repreendeu a colega dizendo: “camisinha não é
porcaria, é necessidade, mas não é com camisinha que eu gas-
to”. A mesma colega interrompeu novamente para dizer que
concordava com ela, pois achava que os guris é que deveriam
comprar essas coisas, pois pensava que isso era obrigação de-
les. Perguntei àquela menina se concordava com o que sua cole-
ga havia acabado de dizer. Nesse momento ela modificou a
postura descontraída que vinha tendo até então, assumindo
um ar mais formal para a conversa: “Bom, agora nós estamos
falando um ‘papo intelectual’, então vamos lá... Acho que hoje
em dia tem que dividir o ‘peso’, meio a meio para cada um. Se
custa um real, 50 centavos para cada um...” E, tal como um
anúncio de TV, foi relatando uma série de medidas e benefícios
do uso da camisinha na preservação da saúde, principalmente

150
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

da mulher, bem como a importância de se dividir não só as despe-


sas, mas principalmente as responsabilidades sobre coisas desse
tipo. No entanto, marcava uma certa distância do próprio relato.
Ao final dessa pequena entrevista coletiva, perguntei a ela se aque-
le conhecimento todo se aplicava à prática: “Não, aquilo é inte-
lectual mesmo; por enquanto. Depois, mais tarde, vem a prática”.
Aqui o mais importante não era saber se esses adolescen-
tes mantinham ou não relações sexuais, mas tentar compreen-
der o processo de incorporação de um regime de verdade que
toma como pressuposto fundamental uma forma de apresenta-
ção que tanto valoriza a postura prudente, puritana, angelical e
polida. Que exige, a todo instante, uma conduta do tipo “sexo
ausente” ao mesmo tempo em que, insistentemente, invoca sua
presença para negá-lo ou corrigi-lo, ou seja, ajustá-lo à norma.
Em meio a tantas incertezas que a vida contemporânea
oferece, a abstração passa a ser uma forma de sexo seguro. Um
jeito de se apresentar casto(a) que não deixa de ser também uma
opção sexual. Assim tratar o sexo como uma abstração corres-
ponde às condutas esperadas no bom-moço e, principalmente,
em toda boa-moça nas diferentes práticas escolares.
Conforme Jorge Larrosa,

a história das formas nas quais os seres humanos cons-


truíram narrativamente suas vidas e, através disso, sua
autoconsciência, é também a história dos dispositivos
que fazem os seres humanos contar-se a si mesmos de
uma determinada forma, em determinados contextos
e para determinadas finalidades (1995, p. 71).

Em uma ocasião na aula de educação física, uma menina


da turma de 8a série me relatou a forma como fora advertida em
uma outra disciplina. Depois de finalizar uma tarefa de aula,
ela começou a folhar uma revista “Playboy” que havia levado,
fato que chamou a atenção dos(as) colegas a sua volta, gerando
um certo murmúrio. A professora, logo que percebeu, retirou-
lhe a revista dizendo que só devolveria ao seu pai ou sua mãe.
Eu perguntei a ela como seus pais haviam encarado tal fato e ela

151
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

respondeu: “Não acharam nada demais, até porque a revista era


do meu pai e ele me emprestou... os meus pais são muito liberais”.
Esse fato não teve maiores desdobramentos na escola. A
professora simplesmente entregou a revista para a orientadora
que após ter conversado com a menina considerou o assunto
encerrado, pois de certa forma já veio “resolvido” de casa. Por-
tanto na medida em que esse assunto havia sido tratado em
âmbito familiar se tornaria inócuo qualquer encaminhamento,
cabia à escola apenas cumprir o seu papel institucional: retirar
a revista de circulação e impedir a leitura, tanto da menina quan-
to dos(as) colegas, no espaço e no momento não autorizado.
No entanto essas estratégias não são exercidas somente
pela autoridade escolar instituída, mas também estão disper-
sas no comportamento desses(a) adolescentes, que crêem no
fato de que a discrição e a reserva são as formas corretas de
tratar de um assunto quando não se pode fugir dele. Em uma
sociedade onde o sexo é a razão de tudo e as identidades sexuais
são cada vez mais cambiantes, passa a ser mais prudente, prin-
cipalmente em uma comunidade conservadora, tratar o míni-
mo possível dessa questão na escola. Esse mecanismo
protecionista em que se estrutura a instituição, “realiza uma
mediação entre os espaços públicos e privados, a fim de que
possa fazer algo mais: oferecer representações de versões social-
mente normalizadas do adulto e da criança, da mulher e do ho-
mem” (WATNEY apud BRITZMAN, 1996, p. 78). Desse modo enquanto
práticas sexuais tradicionalmente rejeitadas se tornam cada vez
mais visíveis em nossa sociedade, mais se reforçam os mecanis-
mos de conservação das práticas sexuais estabelecidas.
Nas demais aulas observadas, as situações de contato
corporal também propiciavam algumas análises sobre como os
sujeitos elaboravam, dentro do discurso do bom-mocismo, as
questões relativas à identidade sexual.
Antes de algumas atividades gimno-rítmicas na sala de aula,
a professora solicitava aos alunos exercícios de alongamento e
flexão. Como a sala era pequena, toda vez que flexionavam o

152
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

tronco as nádegas ficavam à altura do rosto dos que estavam


imediatamente atrás. Assim sempre que a atividade era mostra-
da pela professora, um burburinho tomava conta da sala, segui-
do de uma mudança de posição para fazer o exercício. A maioria
acabava ficando de costas para as paredes do fundo ou das late-
rais para “proteger” os traseiros de um olhar tão próximo. No
final da aula, a professora colocou uma música para relaxamen-
to e pediu que ficassem em duplas para fazerem exercícios de
massagem um no outro. Dois meninos ficaram juntos, um deles,
antes de começar a atividade, olhou para mim e balançando a
cabeça disse: “é brabo ter que fazer massagem em homem”.
Em uma outra aula de educação física, quando estáva-
mos passando pelo portão da escola a caminho da praça, uma
das meninas tocou acidentalmente a mão nas nádegas da cole-
ga, que imediatamente reagiu dizendo: “Opa! vamos parar com
o assédio sexual!”. Logo em seguida outra menina que tinha
observado a cena disse: “Ah! não precisa se preocupar porque
ali não tem perigo”.
Em outro momento nesse mesmo dia, também na praça,
enquanto aguardava a vez de jogar, uma das meninas rabisca-
va em um caderno que tinha impresso na capa a foto de um
jovem ator de telenovela. A colega ao lado fez um pequeno co-
mentário sobre a beleza do rapaz e elogiou a menina pelo bom
gosto na escolha. A dona do caderno aproveitou para dizer o
seguinte: “É lógico que só podia ser bonito ou tu acha que eu
iria colocar uma foto de mulher?” A colega respondeu: “Ué!
mas o que é que tem de mais?” A dona do caderno replicou:
“Ihh! tá me estranhando? Tu acha que eu ia pôr foto de mulher
na capa? Deus me livre! Era só o que me faltava começar a fazer
esse tipo de coisa”.
Nessa seqüência de acontecimentos relatados, dá para
perceber a existência de um forte componente “homofóbico”
que atravessa meninos e meninas em maior ou menor intensi-
dade. Parece que esse sentimento ambíguo de amizade precisa
ser permanentemente pontuado para que não reste dúvidas

153
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA

quanto a normalidade do relacionamento para que seja estabe-


lecida com precisão essa complexa fronteira entre sujeitos do
mesmo sexo. É provável que aí se justifique a insistência com
que se solicita a reafirmação dessa distância entre amigos ou
entre amigas; na necessidade de sempre apontar aquilo que
possa parecer estranho ao sentimento de amizade.
Mas como as exigências são de várias ordens, não basta
o(a) adolescente afirmar sua heterossexualidade para ser nor-
mal, é também preciso saber controlar o seu uso. Assim, prosti-
tuição e masturbação, desde há muito tempo, são postas como
exemplos de condutas sexuais temíveis. Ambas são considera-
das práticas “antinaturais”, pois ameaçam apartar o desejo se-
xual do seio da família (LAQUEUR, 1992).
O “vício solitário” vem compor um dos tantos crimes
contra a espécie catalogados no século XVII. Era uma prática de
libertinagem que se requeria eliminação tanto quanto a prosti-
tuição. Conforme Laqueur (1992b), o problema da masturbação
e da prostituição é essencialmente quantitativo: ao fazer sexo
sozinho ou com um montão de gente se está preterindo a rela-
ção sob a forma de casal. Ou seja, tanto uma forma quanto a
outra abalam o núcleo fundamental da família, assentado na
figura do casal procriador.
Dessa forma,

a sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada.


Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a con-
fisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da fun-
ção de reproduzir (...) No espaço social, como no cora-
ção de cada moradia, um único lugar de sexualidade
reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais.
Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das atitu-
des esconde os corpos, a decência das palavras limpa
os discursos (FOUCAULT, 1997, p. 9-10).

De certa forma, naquela comunidade analisada, a sexua-


lidade volta para casa, restringi-se à família que se (re)constitui
em cada casamento. Por isso, fora dela, passa a ser importante

154
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada

dominar o sexo, dominando o próprio desejo; mostrar sabedo-


ria sobre ele de forma abstrata, conhecê-lo para controlá-lo para
quando chegar o momento certo e a pessoa certa poder ser pra-
ticado sem traumas. Assim a peça, as releituras e as diferentes
situações em aula foram bastante pedagógicas, mostraram prin-
cipalmente como um bom-moço e uma boa-moça devem se con-
duzir. E nesse particular, boa parte daquela turma de 8a série da
escola Maria Fausta parece ter aprendido a lição.

155
PODE NÃO SER TÃO
BOM QUANTO PARECE

É preciso passar para o outro lado – “o lado correto” –


mas para procurar se desprender destes mecanismos
que fazem aparecer dois lados, para dissolver esta
falsa unidade, a “natureza” ilusória deste outro lado
de que tomamos o partido (FOUCAULT, 1992, p. 239).

Nessa seqüência descontínua de acontecimentos vividos


junto aos alunos e alunas de uma escola municipal em Cacho-
eirinha, procurei mostrar o quanto essa sujeição ao lado “bom”
da vida conformava profundamente, e de forma desigual, os
corpos dos sujeitos capturados dentro do bom-mocismo. Meca-
nismo discursivo complexo e eficiente que se materializou em
um modo de ser adolescente, produzindo marcas de distinção
cultural e constituindo uma sofisticada pedagogia do corpo.
Procurei enfatizar, em várias partes do texto, como esses
alunos e alunas se sujeitavam a essas distinções construídas e
narradas por e sobre eles(as) mesmos(as), que não só partiam
das práticas escolares como também repercutiam dentro e fora
delas. Algo que se concretizava na polidez, nos bons costumes,
no bom-caráter e em outras tantas formas de se conduzir bem.

157
Em meio a tantas coisas ditas e não-ditas, é preciso esta-
belecer um ponto final que aqui, como nos finais de cada capí-
tulo, significa um ponto de articulação para as inúmeras
possibilidades abertas pelo texto.
O importante não é definir o que há de “mau” em ser
“bom” ou o que há de “bom” em ser “mau”, ou seja, não é
pertinente estabelecer um “juízo final” sobre as ações dos sujei-
tos analisados. Esse grupo de adolescentes compõe uma “anto-
logia de existências”1 que pertence ao nosso tempo mas que
não serve de lição ou receita sobre o que é apropriado ou não no
trato com escolares.
Talvez seja mais prudente apontar que esse dualismo
não é algo naturalmente dado; faz parte de uma complexa in-
venção cultural que procura fixar desigualdades e distinções.
Talvez fosse possível dizer que a construção em si mesmo desse
sujeito bom-moço não se dá sem padecimento, pois para se tor-
nar parte desse discurso é preciso trazer inscrito no próprio
corpo uma lei de obediência que exige renúncias; além de estar
atravessada nessa mesma inscrição a idéia de eliminação do
outro; o reverso desse lado bom — algo que pode não ser tão
bom quanto parece.

1
Conforme Michel Foucault, 1993, p. 89.
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