Você está na página 1de 65

COMITÊ EDITORIAL DE LINGUAGEM

Anna Christina Bentes


Mário Eduardo Martelotta
Edwiges Maria Morato
Maria Cecilia P. Souza e Silva
Sandoval Nonato Gomes-Santos
Sebastião Cados Leite Gonçalves

CONSELHO EDITORIAL DE LINGUAGEM


Adair Bonini (UFSC)
Ana Rosa Ferreira Dias (PUC-SP/USP)
Angela Paiva Dionísio (UFPE)
Arnaldo Cortina (UNESP-Araraquara)
Clélia Cândida Abreu Spinardi Jubran (UNESP-Rio Preto)
Fernanda Mussalim (UFU)
Heronides Meio Moura (UFSC)
Mudança Linguística
Ingedore Grunfeld Villaça Koch (UNICAMP)
Leonor Lopes Fávero (USP/PUC-SP)
Luiz Cados Travaglia (UFU)
uma abordagem baseada no uso
Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN)
Maria Luiza Braga (UFRJ)
Mariângela Rios de Oliveira (UFF)
Marli Quadros Leite (USP)
Mônica Magalhães Cavalcante (UFC)
Neusa Salim Miranda (UFJF)
Regina Célía Fernandes Cruz (UFPA)
Ronald Beline (USP)

Coleção Leituras Introdutórias em Linguagem


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vol. 1

Martelotta, Mário Eduardo


Mudança Iinguística : uma abordagem baseada no uso / Mário Eduar-
do Martelotta. -- São Paulo: Cortez, 2011. -- (Coleção leituras introdutó-
rias em linguagem ; v. I)

Bibliografia.
ISBN 978-85-249-1817-9

I. Língua e linguagem - Estudo e ensino 2. Linguística l. Título.


lI. Série.

11-08057 CDD-410.07

índices para catálogo sistemático: ~c.oRTEZ


I. Linguagem: Linguística : Estudo e ensino 410.07 \lFiEDITORR
~~ 7

Sumário

Apresentação da Coleção................................................ 9
Apresentação.................................................................. 11

Capítulo 1. A natureza dinâmica das línguas 27


apítulo 2. Linguística centrada no uso e mudança..... 55
Capítulo 3. Gramaticalização e lexicalização 91

onsiderações finais 122


Desdobramentos do tema ·············· 125
Lendo mais sobre o assunto ············· 127
Relerências 129
índice remissivo ······················ 135
~~ 9

Apresentação da Coleção

A Coleção Leituras Introdutórias em Linguagem é


destinada a alunos e professores de Letras, Linguística, Edu-
cação, Design, Sociologia, Psicologia e demais interessados
nos estudos da linguagem. Tem por objetivo explorar temas
centrais para essas áreas, sempre numa perspectiva em que
se estabeleça uma articulação entre teoria e prática, através
da inserção de atividades de pesquisa, incentivando, assim, os
leitores a desenvolverem pesquisas quer no âmbito universitário
quer na educação básica. Uma característica peculiar desta
Coleção recai na forma de construção dos textos. A metodologia
de trabalho envolve, além das organizadoras da coleção, dois
"times" fundamentais que dialogam com os autores: os "leito-
res especialistas" e os "pareceristas especialistas". O primeiro
grupo, formado por 1O alunos de graduação em Letras de dife-
rentes IES, faz a leitura dos originais e emite seus comentários.
Cada original é, no mínimo, lido por três graduandos de IES
distintas. Os comentários são encaminhados aos autores pelas
organizadoras, que também leem os originais. Uma nova versão
é enviada pelos autores para as organizadoras, após leitura e dis-
cussão dos pareceres recebidos. O segundo grupo, "pareceristas
especialistas", entra em cena, quando organizadoras e autores
consideram que a reescritura do livro está pronta, finalizada.
Nesse momento, é convidado um estudioso do tema do livro
para que emita um parecer sobre o mesmo. Com o parecer
10 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA
~~ 11

em mãos, organizadoras e autores voltam ao texto do livro para


fazer as alterações que ainda possam ter sido sugeri das para
aprimorar a qualidade da obra. Em outras palavras, a Coleção
Leituras Introdutórias em Linguagem é, ao mesmo tempo,
um exercício de escrita acadêmica para autores e organizadoras Apresentação
e um exercício de aprendizagem de leitura crítica de textos
acadêmicos para alunos de graduação. Assim, esse pequeno
time, ainda em formação regular, sugere, direciona, auxilia a
escrita dos textos que poderão servir de referências para seus
pares. De nosso lado, mensuramos (se isto é possível em tal Este livro se propõe a fazer algumas reflexões acerca da
contexto) as contribuições, críticas, sugestões, através do nosso natureza da mudança que as línguas naturais sofrem com o
compromisso com a formação dos cidadãos e com o incentivo passar do tempo, dos mecanismos pelos quais ela se processa,
às pesquisas na área da linguagem. Para avaliarem os títulos bem como de suas possíveis motivações. É fato que as línguas
"Transitividade e seus Contextos de Uso" e "Princípios Básicos mudam e, se quisermos observar isso na prática, é só compa-
da Mudança Linguística: uma abordagem centrada no uso", par- rarmos o modo como nossos avós falam com a linguagem dos
ticiparam como pareceristas convidadas as professoras Maria jovens. Para percebermos diferenças mais sensíveis, basta ler
Alice Tavares (UFRN) e Maria Célia Lirna-Herandes (USP). A algum texto de uma época mais distanciada em relação à nossa:
equipe de alunos de graduação em Letras que integrou o elenco
um romance de José de Alencar, por exemplo. Logo notaremos
de leitores especialistas foi composta por Aluska Silva (UFCG),
uma linguagem aparentemente mais rebuscada, um conjunto
Andréa Moraes (UFPE), Anelize Scotti Scherer (UFSM), Ca-
de palavras e de expressões estranhas ao uso que fazemos da
mile Fernandes Borba (UFPE), Elisa Cristina Amorim Ferreira
língua.
(UFCG), Leonardo Medeiros da Silva (UFRN), Luana Lopes
Amaral (UFMG), Lúcia Chaves de Oliveira Lima (UFRN), Poderíamos pensar inicialmente que, por se tratar de um
Shenia Bezerra (UFPE) e Viviane Morais C. Gomes (UFCG). romance, era mesmo de se esperar um texto escrito em uma
A todos o nosso muito obrigada! linguagem formal, com prováveis influências do português lu-
sitano, como mandaria a norma. Mas se nos lembramos de que
Organizadoras da Coleção os manuais de literatura apresentam José de Alencar como um
Leituras Introdutórias em Linguagem autor que utilizava uma linguagem mais popular, tendendo a
refletir a variante brasileira do português, essa hipótese deve
Angela Paiva Dionisio
ser, pelo menos, repensada. Além disso, outros textos antigos
Maria Auxiliadora Bezerra
que refletem um uso menos formal, como cartas pessoais ou
Maria Angélica Furtado da Cunha peças de teatro, por exemplo, também exibem diferenças desse
tipo. E, independentemente de sua natureza, quanto mais an-
12 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 13

tigos são os textos, mais se evidencia a disparidade em relação Ao estabelecer essa distinção, Saussure caracterizou esses
aos usos atuais. dois aspectos da linguagem com os rótulos langue e parole,
Esse fato parece contrastar com a visão tradicional de uma termos normalmente traduzidos para o português como língua
gramática estática, que serve como base para o uso adequado e fala. Linguistas posteriores, por assumirem diferentes con-
da língua e que aprendemos desde cedo na escola: a chamada cepções acerca da natureza da linguagem, utilizaram nomes
gramática normativa. De fato, mesmo se não pensarmos nos diferentes para designar essa distinção: competência e desempe-
padrões de correção impostos à utilização da língua, acabamos nho, gramática e discurso, entre outras. O objetivo básico pare-
por admitir que a comunicação entre os membros de uma co- ce ser deixar claro que, embora cada indivíduo utilize a língua
munidade deveria implicar um conjunto de regras gramaticais à sua maneira, marcando o seu estilo ou buscando formas co-
regulares e relativamente estáticas, compartilhadas por seus municativamente mais eficientes nos diferentes contextos, ele
membros. Um conjunto de regras que estariam na base do uso o faz utilizando um conjunto de princípios gerais e regulares
corrente da língua, pelo menos em um determinado período de que preveem essas flutuações de uso.
tempo, cujo conhecimento habilitaria seus falantes a formar e A tradição dos estudos linguísticos apostou na existência
compreender frases mutuamente compreensíveis.
real desse conjunto de princípios gerais e regulares, subjacentes
Ou seja, parece haver aí algum tipo de contradição entre, à variação e à mudança das línguas, buscando todo tipo de ar-
de um lado, uma visão das línguas como algo essencialmente tifício teórico e metodológico que o sustentasse. Mais do que
dinâmico e mutante e, de outro, a concepção das línguas como isso, considerou esse conjunto de princípios gerais como sendo,
apresentando um mecanismo regular, que pode perfeitamente pelo menos em essência, independente em relação ao uso que
ser dominado pelos falantes e, consequentemente, ser delimi-
os falantes fazem dele.
tado pelo estudioso da linguagem e descrito a partir de regras
Na visão saussureana, as línguas constituem sistemas
bastante previsíveis.
autônomos, cujas partes se organizam em uma rede de relações,
Para dar conta desse problema, os linguistas têm propos-
de acordo com leis internas, ou seja, inerentes ao próprio siste-
to diferentes conceitos e estratégias metodológicas. Pelo menos
ma. Nesse sistema, que tem um caráter social já que é compar-
desde o Curso de linguística geral de Saussure, publicado pos-
tilhado pelos membros da comunidade, está a essência do
tumamente em 1916, costuma-se estabelecer uma diferença
processo comunicativo. Desse modo, Saussure fez da langue o
que marcou profundamente os estudos linguísticos. De um
objeto de estudo da Linguística e a observação da fala individual
lado, temos um conjunto de conhecimentos sistematicamen-
deve apenas levar à inferência da estrutura coletiva, que está
te organizados que todo falante possui e que permite a ele
na base da comunicação dos indivíduos.
falar e compreender uma determinada língua e, de outro, a
utilização individual desse conhecimento, ou seja, o ato atra- Assim, a langue, como um sistema abstrato depositado na
vés do qual o falante o põe em prática, em situações reais de mente dos falantes, constituiria algo fixo e estático, ao passo
comunicação. que a parole, essencialmente múltipla e assistemática, consti-
14 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança !ingu{stica: uma abordagem baseada no uso 15

tuiria O ponto que gera todas as modificações na língua. Isso ção a regras um pouco diferentes, a partir das falas que ouvem
levou Saussure a adotar a distinção entre sincronia e diacronia. dos adultos. Podemos dizer que o estudo da mudança linguís-
O primeiro termo designa um tipo de abordagem que leva em tica não chegou a constituir um ponto importante na agenda da
conta os fatos simultâneos que caracterizam as línguas em um tradição gerativista, ficando restrita a alguns autores que se
determinado momento de sua evolução histórica. O segundo interessaram pelo assunto.
aponta para um tratamento dos fatos sucessivos, que marcam Com o advento da Sociolinguística e a retomada dos estudos
a diferença que as línguas apresentam em momentos distintos diacrônicos por parte dos linguistas funcionalistas, mais timi-
de sua evolução histórica. damente em meados da década de 1970 e de forma mais vigo-
Assumindo uma posição coerente com sua visão estática rosa na década de 1990, o fenômeno da mudança voltou a
do sistema linguístico, Saussure confere à sincronia papel pre- ocupar um espaço importante na ciência da linguagem. À luz
ponderante nos estudos da linguagem. O linguista suíço gosta- das novas descobertas feitas a partir da análise da mudança
va de sustentar sua postura teórica, argumentando que os fa- linguística e do fenômeno da gramaticalização, alguns dos prin-
lantes não tinham consciência das mudanças diacrônicas. Eles cípios propostos por correntes que pregam a autonomia da
intuiriam, a partir das produções linguísticas com que tomavam gramática se mostraram inadequados no sentido de descrever
contato desde a infância em situações reais de comunicação, o funcionamento das línguas.
um sistema sincrônico estável que estaria subjacente ao uso de Apesar do enorme esforço dos linguistas para buscar a
sua língua naquele determinado momento do tempo, com todos sistematização dos aspectos gramaticais subjacentes à utilização
os dados simultaneamente coexistentes que o caracterizam na das línguas em um conjunto de regras estáveis aplicáveis ao
consciência da coletividade. processo de formação de frases em diferentes contextos, as
Chomsky, criador da tradição dos estudos gerativos, assu- línguas naturais teimam em se mostrar indiferentes a abordagens
miu uma posição semelhante, quando, ao estabelecer a distin- essencialmente estáticas. De fato, as línguas parecem ser alta-
ção entre competência e desempenho, fez do primeiro o objeto mente sensíveis a diferenças comportamentais dos indivíduos
de estudo da Linguística. Assim como Saussure, Chomsky que as falam, apresentando, de um lado, formas variáveis de
propôs a independência do conhecimento linguístico em relação natureza individual, social, regional, entre outras, que convivem
a seu uso, argumentando que esse conhecimento - a compe- em um mesmo momento do tempo, e, de outro lado, mudanças
tência - teria origem em princípios inatos depositados na que se manifestam com sua evolução histórica.
mente dos indivíduos, que, engatilhados pelo contato com dados Novas propostas têm sido apresentadas no sentido de in-
da experiência linguística, vão se desenvolvendo no sentido de corporar o fenômeno da mudança como algo inerente ao fun-
formar a gramática das línguas. A mudança linguística, para a cionamento básico das línguas naturais. Para isso, uma nova
tradição chomskiana, se daria de geração para geração, na me- metodologia tem sido utilizada, e, como não poderia deixar de
dida em que as crianças desenvolveriam os princípios em dire- ser, baseada em um velho princípio que tomou força entre os
MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 17

neogramáticos no século XIX e foi retomado por Saussure (1975, Gomes Filho (1994). No caso da utilização atual da língua,
p. 115): "tudo quanto seja diacrônico na língua não o é senão usamos trechos do Corpus Discurso & Gramática, I doravante
pela fala. É na fala que se acha o germe de todas as modificações: Corpus D&G, elaborado pelos pesquisadores que compõem o
cada uma delas é lança da a princípio por um certo número de grupo de estudos do mesmo nome e que desenvolvem pesquisas
indivíduos, antes de entrar no uso". na UFR], UFF e UFRN.
Este livro tem como objetivo analisar as bases do fenôme-
no da mudança linguística, retomando este velho princípio. Ou
seja, buscando demonstrar que, por ser um instrumento de INTRODUZINDO O TEMA
interação entre os indivíduos dentro de uma comunidade, as
línguas naturais tendem a variar e a mudar com o tempo. Em Por que razão as línguas mudam? Essa é uma pergunta
outras palavras, é parte da natureza essencial da língua a exis- básica no que se refere ao tema deste livro. De acordo com
tência de variação (formas de expressão alternativas, que coexis- Lyons (1987), não há consenso no que diz respeito a como
tem em um mesmo período de tempo) e mudança (surgimento responder a essa pergunta. Uma resposta mais ampla e menos
de novas formas de expressão, com o possível desaparecimento compromissada com concepções teóricas específicas seria: a
de outras mais antigas). Adotar esse princípio significa aceitar língua muda porque os homens mudam e com eles as coisas
que não há como se estabelecer uma distinção categórica entre que compõem sua realidade cotidiana. Não é incomum vermos
o uso da língua e as regras gramaticais que estão na sua base, )
1
em manuais de Linguística a informação de que uma língua
já que as regras mudam e a mudança se manifesta no uso e por cresce no que diz respeito ao número de palavras que contém,
ele se motiva. na medida em que a sociedade que a usa cria novas entidades
Sempre partindo de argumentos mais tradicionais para que precisam ser nomeadas, ao mesmo tempo em que podem
chegar a propostas mais atuais, apresentaremos, neste livro, desaparecer palavras referentes a objetos que se tornam obso-
uma visão das línguas como organismos essencialmente dinâ- letos. Assim, surgem no português palavras como xerox e xerocar
micos e adaptativos aos diferentes contextos de comunicação, e uma série de termos referentes à informática, como, por
portanto, sujeitos às necessidades subjetivas e intersubjetivas exemplo, internet ou pen drive. Por outro lado, termos como
dos seus usuários. Em função dessa concepção, tentaremos, na mata-borrão caem em desuso, passando a ser encontrados ape-
medida do possível, evitar exemplos inventados, utilizando nas nos dicionários.
trechos tomados de textos reais. Exemplos antigos foram reti- Entretanto, a expansão do número de palavras de uma
rados basicamente dos textos Livro das aves, de Rossi et aI. língua, além de não ser tão facilmente explicável, não constitui
(1965), Orto do esposo, de Maler (1956), Livro da ensinança de o único tipo de mudança linguística, que, na prática, mostra-se
bem cavalgar toda sela, de Pie] (1944), Boosco deleitoso, de Magne
(1950), e Um tratado da cozinha portuguesa do século XV, de I. Disponível em: <www.discursoegramatica.letras.ufrj.br>.
18 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança lingu{stica: uma abordagem baseada no uso 19

um fenômeno extremamente complexo. Textos escritos em diferentes níveis como sendo essencialmente distintos, e isso
português arcaico apresentam uma série de aspectos gramaticais não é diferente quando se trata do fenômeno da mudança.
diferentes daqueles que vemos no português atual: expressões Assim, os fenômenos característicos da mudança no nível fo-
que não mais existem, palavras utilizadas com valores distintos nético-fonológico são tradicionalmente tratados como alterações
dos que apresentam hoje e, muitas vezes, escritas de modo consequentes da posição dos sons na estrutura sonora da ex-
bastante diferente, ordenações vocabulares estranhas ao falan- pressão em que ocorrem. Nesse sentido, fonemas vizinhos,
te de hoje, entre vários outros fatores. contextos silábicos determinados, ou mesmo partes específicas
Os cientistas da linguagem têm tentado descrever e expli- de uma palavra, como posições pré-tônicas ou pós-tônicas,
car as mudanças que as línguas sofrem com o tempo, sempre poderiam interferir na pronúncia original do fonema. O fenô-
buscando detectar regularidades nos processos que as veiculam. meno da assimilação ilustra bem o que queremos demonstrar,
A dificuldade que esta tarefa impõe ao estudioso da linguagem já que designa a alteração envolvendo um fonema que decorre
pode ser observada em vários aspectos. Comecemos pensando da influência exercida por outro fonema vizinho de som igual
em questões mais práticas do que teóricas e lembrando que o ou semelhante, como vemos com/p/na mudança ipsu > isso, ou
fenômeno da mudança se manifesta em vários níveis de utili- na transformação do/a/em auru > ouro.
zação da língua, tendo implicações tanto no nível sonoro, que Do mesmo modo, mudanças no nível morfossintático são
engloba o que chamaremos fenômenos de ordem fonético-fo- tradicionalmente descritas a partir dos aspectos estruturais das
nológica, quanto no nível da estrutura das palavras e de sua línguas em que elas ocorrem. Assim, a estrutura ter de + infi-
organização em frases, que abarca o que aqui trataremos como '<
nitivo (como em Tenho de fazer esse trabalho), que, aliás, ainda
fenômenos de natureza morfossintática. mantém o status de forma correta, deu lugar à estrutura ter que
Assim, são exemplos de mudança no nível fonético-fono- + infinitivo (como em Tenho que fazer esse trabalho). Alguns
lógico casos como os de vocalização, ou transformação de uma autores veem aí uma espécie de analogia sintática, segundo a
consoante em uma vogal, que vemos, por exemplo, em mudan- qual que, elemento utilizado, de forma quase categórica, como
ças ocorridas do latim para o português, como nocte > noite e conjunção integrante (acho que, penso que, sei que, quero que,
regno > reino, entre outros. Por outro lado, como uma ocorrên- digo que etc.) estende-se para construções com o verbo ter,
cia de mudança no plano morfossintático, podemos apontar o substituindo a preposição de, irregular neste contexto específi-
desaparecimento do latim para o português das declinações, co. Embora essa análise leve em conta a noção da analogia,
juntamente com o surgimento de uma ordenação mais fixa para essencialmente associada ao fenômeno da frequência, que, por
indicar as relações sintáticas entre os elementos constituintes sua vez, relaciona-se ao uso efetivo da língua, limita-se a uma
r
das sentenças. abordagem essencialmente morfossintática da mudança.
Pensemos agora em questões de natureza mais teórica, Entretanto, propostas mais atuais têm demonstrado que
subjacentes à análise do fenômeno da mudança. A tradição as mudanças ocorridas com os elementos linguísticos envolvem
gramatical tem observado os fenômenos característicos desses não apenas uma interferência entre diferentes níveis estruturais
20 MÁRIO EDUARDO MARTELOTfA Mudança linguística: utna abordagem baseada no uso 21

da língua, como também uma relação com os contextos dis- Vejamos um exemplo de como a mudança envolve dife-
cursivo-pragmáticos? em que os elementos envolvidos tendem rentes níveis linguísticos. A mudança em boa hora (expressão
a ser utilizados. Ou seja, essas novas propostas não analisam adverbial temporal) > embora (conjunção concessiva) nos dá
os fenômenos linguísticos à luz de um nível específico: fenô- material para observar este fenômeno de modo relativamente
menos morfossintáticos associados aos elementos linguísticos claro. Trata-se de um processo que tem como ponto de partida
implicam normalmente questões fonéticas e, formando um a antiga expressão de valor temporal em boa hora, que, segun-
quadro mais geral, esses fenômenos tendem a ser motivados do Said Ali (1971, p. 189), era comumente acrescida "a frases
pelos contextos comunicativos em que os falantes produzem optativas ou imperativas, por sinceridade ou mera cortesia",
seu enunciado. em virtude de uma crença que existiu na era medieval e ainda
Para designar os diferentes aspectos associados a esses nos séculos subsequentes de que o êxito dos atos dependia da
contextos comunicativos, utilizaremos os termos propriedades hora em que eram praticados. A alta frequência de uso da ex-
semânticas, designativas dos significados veiculados pelos ele- pressão, na época, causa um fenômeno muito comum na fala
mentos linguísticos no contexto de uso; propriedades pragmáti- coloquial, que é a redução fonética. Embora mantendo seu
cas, relativas aos aspectos interativos do uso dos elementos sentido original, os falantes reduziam aquela forma tão comum
linguísticos, que refletem o posicionamento dos falantes ao e tão repetida naqueles contextos (como ocorre no português
produzir seu enunciado e sua preocupação com a recepção popular de hoje com formas como olha lá, pronunciada como
desse enunciado pelo ouvinte; e propriedades discursivas, refe- alá e olha só, pronunciada como OSSÓ etc.). Eis um exemplo
rentes aos aspectos textuais que interferem no uso dos elemen- apresentado pelo autor:
tos linguísticos, como, por exemplo, o fato de a informação já
ter sido ou não mencionada anteriormente no enunciado pro- ( 1) Vay-te embora, ou na má hora.
duzido pelo falante.
Temos aqui, então, uma visão diferente da tradicional, É importante registrarmos que até aqui já demonstramos,
segundo a qual as unidades linguísticas apresentam ao mesmo no processo de mudança envolvendo o elemento descrito, im-
tempo uma dimensão formal (fonético-fonológica e morfossin- plicações no nível fonético-fonológico, através da redução sono-
tática) e uma dimensão significativa (semântica, pragmática e ra por ele sofrida, e no nível morfossintático, através do proces-
discursiva). Nesse sentido, a utilização de uma expressão lin- so de aglutinação: a expressão torna-se uma palavra única,
guística implica a ativação de todas essas propriedades e, con- cumprindo um mecanismo que chamamos univerbação. Mas
sequentemente, a análise da mudança deve levar em conta a ainda há alterações importantes. Com o tempo, a expressão vai
f
conexão entre os níveis linguísticos. perdendo seu sentido original, assumindo dois valores distintos.
No primeiro, como advérbio, o elemento dá uma ideia de afas-
2. Na expressão discttTsivo-pragtnático, o termo discursivo aponta para a organização
tamento e se liga basicamente a verbos de movimento como ir,
do texto e o item pragmático, para a situação de comunicação em que ele é produzido. vir e levar (vou/venho/levo embora), o que o torna ininteligível
Mudança lingufstica: lima abordagem baseada no uso 23
22 MÁRIO EDUARDO MARTELOTrA

junto a verbos estáticos, uso que já foi possível no português. No fato de emissor e receptor negociarem sentidos de maneira
segundo, como uma conjunção, apresenta um valor concessivo, interativa nos contextos específicos de comunicação, ou seja, o
sendo, argumentativamente, contrastivo em relação à sentença emissor, ao exercer seu turno comunicativo, sugere ao receptor
à qual se subordina. Os exemplos (2) e (3), abaixo, retirados do que faça inferências, em busca de novos sentidos a partir do
Corpus D&G, ilustram, respectivamente, esses dois valores: contexto de uso.
Isso é o que acontece na mudança em boa hora> embora.
(2) ... continuei no local... e eles quiseram ir embora ... Inicialmente a expressão é constituída de elementos do léxico,
ou seja, elementos de função essencialmente representacio-
(3) Embora a noite tenha tido isso de engraçado, é triste nal, que de certa forma é mais objetiva, já que simbolizam ou
saber que um garoto de dez anos estava às onze da representam dados do mundo em que vivemos, como a divisão
noite vendendo rosas de mesa em mesa em um bar temporal em intervalos determinados (hora), ou a avaliação que
enquanto deveria estar dormindo, e pior, sem esperan- dela fazemos (boa). Com a redução fonética e a univerbação,
ça nenhuma de alcançar sucesso na vida. esses valores se perdem e o novo item passa a assumir função
de conectivo, indicando a relação de concessão existente entre
Nos dois exemplos, podemos notar o enfraquecimento do duas informações fornecidas no texto, dirigindo assim a recep-
sentido temporal que o termo originalmente apresentava. E, ção do ouvinte para essa interpretação. Mas se a mudança é
especificamente no exemplo (3), percebemos o fortalecimento impulsionada por determinados contextos comunicativos, qual o
do ponto de vista pragmático, já que embora encerra uma contexto que motivou o desenvolvimento de embora concessivo?
contra-expectativa: contrasta o lado "engraçado" da noite, que Said Ali (1971, p. 190) também propõe uma resposta a
poderia levar o ouvinte a criar uma visão agradável ou positiva essa pergunta. Segundo o autor, a origem do valor contrastivo
do fato narrado, com a tristeza de "que um garoto de dez anos está no fato de que o uso original de embora também podia
estava às onze da noite vendendo rosas de mesa em mesa". Essa introduzir sentenças para "denotar que se concede a possibili-
forma de apresentar as informações reflete uma preocupação dade do fato, ou que o indivíduo que fala não se opõe ao seu
do falante em, de um lado, ir construindo seu texto de modo a cumprimento". Esse processo reflete a pressão que o contexto
refletir suas intenções comunicativas e, de outro, ir marcando pragmático-discursivo exerce sobre a interpretação que os usu-
essas intenções para seu ouvinte. ários fazem do sentido do termo em questão. Eis um dos exem-
Traugott e Dasher (2005) argumentam que há uma ten- plos do autor:
dência geral de os sentidos dos elementos linguísticos mudarem,
caminhando na direção de uma subjetivização (com aumento (4) Ria embora quem quiser, que eu em meu siso estou.
da expressividade consequente da perspectiva do emissor) e de
uma intersubjetivização (em função de essa expressividade Segundo o autor, o item embora ainda teria, nesta frase,
estar voltada para as expectativas do receptor). Isso se deve ao seu valor temporal original, mas as características contextuais
24 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguistica: uma abordagem baseada no uso 25

das informações que ele expressa levam os usuários a lhe con- do, na relação de dependência entre o sistema da língua e seus
ferirem um novo valor. Há um claro contraste entre o siso do contextos de uso. Essa proposta de explicação de Said Ali (1971)
emissor da mensagem e o que seria para outros um bom mo- para a mudança envolvendo o item embora ilustra bem a pro-
mento para rir. Esse contexto de oposição sugere que o ouvin- posta de análise da mudança como um fenômeno integrado que
te estabeleça uma inferência de que embora traz em si esse queremos apresentar neste livro.
valor contrastivo. Trata-se aqui de uma implicatura conversa-
cional em que os usuários inferem para os elementos linguís-
ticos valores que eles não possuem em seus sentidos literais,
em função de coordenadas contextuais que possibilitam a in-
ferência. Quando esse novo valor é aceito pela comunidade,
estendendo-se a novos contextos, o item o incorpora de forma
mais definitiva e convencional, o que implica a sua inclusão
no sistema da língua.
Vale registrar que esse processo de mudança envolvendo
embora caracteriza o que chamamos de gramaticalização, ou
seja, um tipo de alteração do valor da expressão linguística que
a leva a assumir funções de caráter gramatical, típico de con-
junções, preposições e outras categorias de elementos que
ajudam a organizar o texto nas diferentes situações de comu-
nicação. Voltaremos mais tarde a essa questão. O importante
agora é perceber que, basicamente, a mudança da língua, de
acordo com a concepção centrada no uso, motiva-se a partir
do ato da comunicação. Ou seja, é na interação que os usuários
manipulam os termos e as expressões disponíveis em sua língua,
a fim de veicular estratégias comunicativas, que marquem sua
posição subjetiva em relação ao conteúdo que querem trans-
mitir ou sua preocupação com a recepção desse conteúdo por
seus interlocutores, dadas as condições contextuais em que se
dá a comunicação.
Desse modo, fenômenos de mudança têm implicações nos
diferentes níveis estruturais que compõem a língua e, sobretu-
@~ 27

Capítulo 1

A natureza dinâmica das línguas

Retomemos aqui a pergunta feita na seção anterior.por que


.razão as línguas mudam? Este ponto de nosso texto parece ser
o momento adequado para reproduzir as palavras de Bally (apud
COSERIU, 1979, p. 15): "as línguas mudam sem cessar e não ~
podem funcionar senão mudando" =t>Essaspalavras nos fazem
pensar em duas questões interessantes. A primeira delas está
associada à ideia de que, devido à sua própria natureza, as línguas
são essencialmente dinâmicas. A segunda aponta para a função
que as línguas desempenham: "elas não podem funcionar senão
mudando". Concluímos daí que a mudança está associada ao
(

funcionamento das línguas, ou, em outras palavras, S. l,llD fenô-


11 meno essencialmente funcional, no sentido de que está rela-
..:- donado às estratégias co~{;'ni~tivas que os usuários utilizam
nos diferentes eventos de uso.
Essa é a visão que tentaremos passar neste livro: as línguas
não têm finalidade em si mesmas, os humanos as desenvolveram
ara promover a comunicação ent~e eles. Ora, 07
homens evo-
luem e mudam suas concepções ac~rca do mundo em que vivem,
que, consequentemente, acaba mudando com elesj É natural,
3oc-.., ~'~~&.-P.!
28 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA mguística: uma abordagem baseada no uso 29

portanto, que o homem modifique sua forma de falar sobre Cabe aqui fazermos algumas reflexões. Em primeiro lugar,
esse mundo e isso acaba motivando as mudanças estruturais como poderíamos conciliar esse aspecto dinâmico das línguas
que as línguas sofrem com o passar do tempo. Em outras pa- com a noção tradicional de padrão de correç~ claro que não
lavras, as línguas se adaptam aos novos tempos. podemos negar a influência dos padrões de correção impostos
Por outro lado, as situações comunicativas são tantas e as pela gramática normativa sobre as restrições de combinação dos
.
intenções dos usuários, tão variadas que as línguas acabam elementos linguísticos, sobretudo em falantes com nível de
desenvolvendo eXPffis~ alternativas que se ajustam a essas escolaridade mais alto, ou em contextos de uso que exigem
diferentes realidades cQ!!!unicativas. Veremos adiante que essa maior grau de formalidade. Entretanto, parece claro para aque-
profusão de formas alternativas de expressões acaba ajudando

b
les que estudam a estrutura e o funcionamento das línguas, que
a impulsionar a mudança das línguasJ 19s padrões de correção não explicam o funcionamento da lin-
Ao lado do fenômeno da mudança, temos outro aspecto R.uagem, já que todas as línguas do mundo apresentam, e;
importante no quadro da dinamicidade das línguas, ao qual até número bastante elevado, construções alternativas aos padrões "-
agora não demos a necessária atenção: o ig!:o de que há uma--l+Aln .&ramaticais, como é o caso de construções portuguesas, como
].rande guantidade de variaç~n~o de uma mesma língua. A gente vamos lá, Eu vi ele, Isso é pra mim fazer, Vieram menas
De fato, se observarmos falantes de diferentes regiões de nosso essoas, entre outras que são combatidas pelas normas grama-
país, não teremos dificuldade de perceber diferenças em sua
ticaisç Além disso, como mencionamos acima, temos o fato de
pronúncia (menino/minino), em seu vocabulário (ah6hora/jeri-
que um mesmo falante pode utilizar, em um contexto formal, a
mum) e mesmo em sua sintaxe (casa do Paulo/casa de Paulo).
forma padrão, e, em um contexto informal, a variedade popular,
Além disso, pessoas de grupos sociais, de idades ou até de sexos
mesmo estigmatizada como incorreta. Isso aponta, necessaria-

~
distÍl-:tos falam de forma diferente. I
E mais: uma mesma pessoa, em contextos diferentes, fala
de forma diferenciady Consideremos, nesse sentido, a possi-
bilidade de um indivíduo utilizar um modo formal de falar no
mente, para um caráter adaptativo da linguagem.
Se deixarmos
tem mais implicações
de lado a questão -
da normatividade,
para o ensino do que para a pesquisa
que

trabalho e, em sua casa, uma linguagem informal. Ou imagine- referente ao funcionamento da linguagem, temos mais ou
mos um falante nordestino que more, já há algum tempo, no menos o mesmo problema. Como já vimos anteriormente, os
Rio de Janeiro e que adapte sua pronúncia à fala carioca quan- falantes interiorizam, a partir das produções linguísticas com
do se comunica com moradores nativos do Rio, mas que man- que tomam contato desde a infância, um conhecimento siste-
tenha seu sotaque nordestino quando fala com seus parentes mático de sua língua que utilizam na comunicação diária com
ou seus conterrâneos. Tudo isso aponta para a natureza adap- outros indivíduos que, supostamente, interiorizam o mesmo
tativa da linguagem, ou seja, para um sistema de comunicação conhecimento sistemático. !Como associar uma noção de sis-
que oferece opções de expressão aos falantes, refletindo sua tema comunicativo utilizado harmonicamente por uma comu-
habilidade de utilizar essas variedades adequadamente. nidade com os fenômenos da variação e da mudanç:?!Pensan-
30 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 31

do em termos dos exemplos apresentados anteriormente, A mudança linguística no século XIX


referentes à mudança em boa hora (temporal) > embora (con-
cessivo), como se deu essa mudança na estrutura gramatical o fenômeno da mudança começa a ser estudado de forma
das línguas - ou nas mentes dos falantes de português - ao mais sistemática a partir de meados do século XIX. Este é con-
longo do tempo? Vejamos, a partir de agora, como a tradição siderado o momento em que surge a ciência hoje conhecida
dos estudos linguísticos têm tratado esse fenômeno ao longo como Linguística. É o momento em que perde força a visão
de sua evolução. universalista e lógica da gramática grega, influenciada nel -
losofia aristotélica, e se desenvolve uma tendência alternativa
~e estudar as línguas, chamada gramátif-ª_hi~tóricQ-çgmparativa,c.l)
Podemos caracterizar essa nova tendência como uma pro-
COMPREENDENDO O FENÔMENO DA MUDANÇA lINGuíSTICA
posta de comparar elementos gramaticais de línguas de origem
comum, a fim de detectar a estrutura da língua original, da qual
Nesta seção, abordaremos as diferentes propostas apre-
elas se desenvolveram. Como o nome sugere, trata-se de uma
sentadas pela Linguística desde seu surgimento no século XIX,
abordagem eminentemente histórica, que evolui, sobretudo, em
no sentido de analisar e tratar metodologicamente a mudança
função da descrença dos linguistas do século XIX em relação à
e a variação.
universalidade, proposta pela tradição gramatical grega. Os com-
paratistas tomaram contato com uma grande quantidade de lín-
guas, o que possibilitou a eles constatar o caráter essencialmente
Histórico das abordagens teóricas acerca do fenômeno da mutável das língg.as naturais. Em consequência, esses cientistas
mudança defendiam que uma análise histórica seria mais adequada do
que uma análise filosófica no trabalho de descrição das línguas.
Vejamos agora, de forma bastante resumida, as principais
É interessante notarmos que, com o desenvolvimento das
propostas teórico-metodológicas para o tratamento científico da
pesquisas, houve uma evolução na compreensão que esses
mudança linguística, apresentadas desde o advento da Linguís-
compara tis tas tinham do fenômeno da mudança linguística.
tica no século XIX, com o surgimento da_gramática históri-
_Schleiche!i.....,um dos representantes do que poderíamos chamar
.s.2::S:0mparativa. Esse percurso histórico passa pela hipótese de
de primeira geração de comparatistas, nas palavras de Câmara
mudança paramétrica da gramática gerativa até chegar a pro-
Jr. (1975, p. 50),,geu "o audacioso passo de colocar a Linguís-
postas que privilegiam o caráter social e interativQ da Ungl!.§lgem,
tica no âmbito das ciências da natureza". I Para ele, as línguas,
como a Sociolinguística Variacionista e outras abordagens vol-
tadas para o uso. As informações apresentadas neste capítulo
1_Essa concepção de mudança estava subjacente a toda a primeira fase da Linguís-
são essenciais para a compreensão da visão de linguagem, que
tica Comparativa, com os linguistas buscando comparar a linguagem a um organismo na-
será apresentada nos capítulos seguintes. tural. Entretanto, foi com Schleicher, que "passamos de uma comparação vaga para uma
32 MÁRIO EDUARDO MARTELOITA Muda~a linguística: uma abordagem baseada no uso 33

em suas mudanças, apresentam uma evolução natural no sen-


tido darwiniano. Embora a teoria evolucionária de Oarwin exclua
noções de progresso ou avanço, 'r,s linguistas do século XIX
inicialmente adotaram a ideia de que as línguas se caracterizam_
por um ciclo de vida: nascem, sofrem um progressivo desenvol-
vimento de um estado primitivo até atingirem-ª plenitude, de- o processo analógico, visto como um componente univer-
.
clinam e finalmente morrem. \ sal da mudança linguística em todos os períodos da história, era
Essa visão de mudança de Schleicher e de outros de seus compreendido com0..2.. mecanismo segundo o qual a mente
~ontemporâneos foi vigorosamente negada pelos neogramáticos, .humana, estabelecendo semelhanças entre formas originalmen-
rupo de linguistas surgido posteriormente na Universidade de ,te distintas. interfere nos movimentos naturais dos sons, atra-
Leipzig, gue apresentava severas críticas às primeiras propostas _palhando a atuação das leis fonéticas. Um bom exemplo desse
comparatistas. Como algumas das propostas dos neogramáticos processo pode ser visto no desenvolvimento da palavra portu-
acerca da mudança linguística foram retomadas em pesquisas guesa campa (sino), que, por ser proveniente do latim campãna
mais atuais, é interessante observarmos alguns aspectos impor- (espécie de balança romana), deveria ser pronunciada como
tantes desta escola linguística. campã, seguindo a evolução campãa > campã. Segundo alguns
Brugmann, um dos principais representantes do movimen- autores, por analogia com a palavra campo, o acento tônico se
to ne'agramático, rejeitou a separação de estágios de mudmç-ª.:. deslocou para a primeira sílaba, enfraquecendo a nasalidade.
~ara ele, os mesmos tipos de mudança semântica ocorriam em Este é um exemplo de como a analogia pode modificar as ten-
, todas as fases da história linguística: todos os eventos passados dências ditadas pela mudança fonética ou, em outras palavras,
- cada um deles - podem ser explicados pelas ações ou cau- de como mecanismos operados na mente do indivíduo poderiam
sas agora operantes. ~enhuma causa velha se exting!!llI;~ alterar uma tendência natural de mudança.
nhuma causa nova foi introduzida. Era o princípio do unifort11:i: O outro mecanismo utilizado pelos neogramáticos para ex-
tarismo, que fornecia a ideia de que não há evolução para melhor plicar a existência em uma língua de uma forma imune às leis
ou decrepitude nas línguas, mas J,lludanças que seguem ten-

ry) dências gerais, perceptíveis


histórica das línguas.
em todos os momentos da evoluç.ffio
fonéticas, o empréstimo, é um reflexo da influência de uma língua
sobre outra ou de um falar sobre outro dentro de uma mesma
comunidade linguística. Um exemplo de empréstimo pode ser
Reforçando a tendência de aproximar o método de pesquisa visto no francês, em que, além da palavra chef, que decorre,
em Linguística do das ciências naturais, os neogramáticos pro- através das leis fonéticas, do latim caput (cabeça), encontramos
a palavra capo A palavra cap viola as leis sonoras que seriam es-
interpretação coerente" (CÂMARA]R., 1975, p. 51). Isso se manifesta no livro de Schleicher
peradas para a formação de palavras do francês: a expectativa era
intitulado A teoria de Darwin e a linguagem. a transformação da oclusiva/k/em/s/ (MARTELOTIA, 2008). Ocor-
34 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 35

re que a forma cap foi tomada de empréstimo pelo francês ao Saussure e a mudança linguística
provençal, ao qual não se aplicavam as leis sonoras em questão.
O movimento dos neogramáticos, apesar de muito criticado Como mencionamos anteriormente, na apresentação deste
em sua época, acabou por tornar-se a proposta predominante na livro, a fim d~ conciliar a natureza essencialmente dinâmica e
segunda metade do século XIX, tendo o mérito de chamar a aten- mutante das línguas e o fato de que elas podem ser descritas
ção para o fato de que, embora sejam rFfuntes de leis gerais como um mecanismo regular, do qual os falantes têm um perfei-
que transcendem o tempo, as mudanças ocorrem no indivíduo, to domínio no que se refere ao seu uso para fins comunicativos,
que, ao utilizar a língua, efetiva as tendências mecânicas, ou as Saussure (1975) propôs a distinção entre sincronia e diacroni
evita, utilizando processos analógicos ou associados ao emprés-
timo. Em outras palavras, para esses linguistas,
decorrentes de háb' lin uísticos individuais.
s mudanças são
esse modo, os
..& .,tm que os fatos convivem em um determinado -
O primeiro conceito refere-se ao eixo das simultaneidades,
momento do
tempo. O estudo sincrônico, portanto, se ocupa em observar
neogramáticos voltam seus interesses não apenas para o estudo um determinado momento da evolução histórica de uma língua, Â\.
dos dados provenientes de documentos escritos, mas também 2"em levar em conta aspectos históricos. O segundo relaciona-sp
para a observação dos dialetos falados na época. \ ao eixo das sucessões, em gue se considera um momento de cad~
Podemos dizer que o comparativismo do século XIX, so- z e que relaciona os fatos do eixo das sim0:,taneidades co~
bretudo através dos neogramáticos, lançou as bases para a ~cessivas transformações que eles sofrem com o temp..o\Assim,
proposta de abordagem da mudança linguística que propomos o estudo diacrônico aborda um determinado momento da evo-
neste livro. Entre os aspectos importantes herdados do século lução histórica de uma língua em comparação com momentos
XIX, podemos mencionar a visão de mudança como caminhan.,; anteriores e posteriores na linha do tempo.
_do do sentido mais concreto para o mais abstrato e a noção de A oposição entre os dois pontos de vista, para Saussure, é
que raízes são historicamente anteriores aos morfemas2re~~2 absoluta. Os fatos sincrônicos são organizados em um sistema,
Estando todos esses movimentos de mudança associados ao regidu,or ~~ên~s J...nternasJ~!e modo gue se estabeleçam
princípio do uniformitarismo, já que tendem a recorrer com a relações de oposição entre eles. Por outro lado, as transformações
•.evolução histórica das línguas~ muitos desses princpios estão diacrônicas têm sua própria motivação e não tendem a alterar o
na base da teoria da gramaticalizaçilQ. e, ~ certa forma, da sistema linguístico como um todo, mas apenas alguns elementos
gramática das construções. ~sse sistema. Em outras palavras, a altera<,;jQ se. dá na relação

2. A passagem mente vocábulo para -mente sufixo indicador


apresentada mais adiante, ilustra essa anterioridade
de advérbio, que será
histórica das raízes em relação aos
morfemas. Nesse caso, o item lexical, que possuía um radical ou semantema, torna-se um
_.-
entre dois ou mais elementos do sistema e, para que uma forma

-
- ---.....;;.-""'\-"
-
nova apareça, basta que a anterior desapareça. Desse modo, as
modificações no sistema da língua se dão por uma consequência
da mudança diacrônica que se observa em um ou outro elemento
elemento gramatical, um sufixo, perdendo sua estrutura morfológica original, típica de
elementos lexicais. desse sistema. Essa mudança localizada acaba afetando o equilí-
36 MÁRIO EOUARDO MARTELOlTA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 37

brio do sistema como um todo. Quando esse equilíbrio é afetado, ça entre sincronia e diacronia. ~ pesquisas atuais desenvolvidas
o sistema se reorganiza, mudando sua feição. I na área da mudança linguística demonstram a in"genuidade da\.}"\
Saussure (1975, p. 111) menciona a n;ção de pancronia, visão de que as lín8.~eja~ completamente uniformes em um~
relacionando-a
fatos específicos
a leis ou princípios gerais que sobrevivem aos
e que, consequentemente, transcendem os --
determinado
Em primeiro
momento de sua evolução.
lugar, façamos uma breve reflexão acerca
aspectos particulares da língua. O estudo pancrônico da língua dessa noção expressa pelo termo "determinado momento" da
seria possível, já que, se aceitamos o fato de que se produzem evolução da língua, que está implicado na definição de sincro-
transformações fonéticas regulares, por exemplo, podemos nia. Quanto tempo duraria esse momento? Segundo Saussure
admitir que esse fenômeno se apresenta como um aspecto ( 1975, p. 118), um es tado de língua seria um espaço de tempo
constante da linguagem, ou seja, uma de suas leis. mais ou menos longo durante o qual "a soma de modificações
Entretanto, tais leis constituem princípios gerais que exis- ocorridas é mínima" e pode durar" 1O anos, uma geração, um
tem independentemente dos fatos concretos: "quando se fala século e até mais". Seria realmente possível estipular um prazo
de fatos particulares e tangíveis, já não há ponto de vista pan- de duração de um estado de língua? Perguntas como essa apon-
crônico" (SAUSSURE,1975, p. 112). Toda mudança está limita- tam a fragilidade dessa distinção e podem nos levar à conclusão
da a um tempo e a um território determinado e nenhuma se de que essa abstração teórica que constitui a noção de estado
efetua em todos os tempos e todos os lugares, não havendo, de língua deve ser repensada.
portanto, transformações senão no plano diacrônico. Isso pare- Observemos agora essa questão do ponto de vista do usu-
ce significar que Saussure olhava mais para fenômenos estru- ário da língua. Ou seja, observemos a ideia de Saussure de que,
turais específicos do que para as motivações que poderiam para o falante, a sucessão dos fatos no tempo não existe, já que,
estar subjacentes ao seu desenvolvimento. quando aprende uma língua ele se vê diante de um conheci-
Podemos relacionar essa estratégia com o desejo de justi- mento pronto e estático. Segundo essa visão, o indivíduo intui,
ficar a existência de uma ciência linguística autônoma. Nesse a partir das produções linguísticas com que toma contato desde
sentido, Saussure propôs que as línguas constituem um orga- a infância, um sistema sincrônico estável que caracteriza o uso
nismo de vida independente, cujos elementos constituintes se de sua língua em um determinado momento do tempo.
organizam sistematicamente no eixo sincrônico. Assim, rejeitou Em relação a isso, podemos ponderar que, de fato, o falante
o ponto de vista pancrônico, caracterizado por leis gerais que comum de português, por exemplo, não conhece - e nem preci-
regem o funcionamento das línguas. Se admitimos leis gerais, sa conhecer -latim para dominar seu sistema linguístico. Mas
temos de levar em conta fatores externos à estrutura da lingua- devemos inferir daí que os falantes são cegos aos movimentos de
gem, o que implicaria entrar no campo de outras ciências. mudança que ocorrem em sua língua e que, portanto, não levam
As críticas que atualmente se fazem à proposta de Saus- em conta esses movimentos quando optam por utilizar uma ou
sure referem-se ao fato de que não se pode estabelecer diferen- outra expressão nas diferentes situações de comunicação?
38 MÁRIo EDUARDO MARTELOlTA Mudança linguística: unta abordagem baseada no uso 39

Uma grande tradição em estudos do uso nos mostra que pio (malcriado) ou ao adjetivo (malcontent~), passando a fun-
não.l\Ao contrário, percebemos que os falantes são sensíveis às cionar como prefixo.
F~ ----
mudanças que ocorrem em sua língua-quando observamos que Essa é uma mudança que ocorre no português, mas vejamos
eles fazem, ou deixam de fazer uso de uma determinada expres- algumas questões de ordem histórica. Gramáticas históricas e
são por ela ser típica da fala de pessoas mais velhas ou de fa- dicionários etimológicos nos informam que o advérbio mal
lantes mais jovens. Notamos a consciência dos usuários no que provém, por apócope (queda do e no final do vocábulo), do
concerne à mudança da língua quando percebemos o "descon- advérbio latino male. E o fato interessante é que male, já no
tentamento" de alguns falantes em relação a usos novos, que se latim, desenvolveu usos como prefixo, como se pode ver em
desenvolvem contrariamente às normas gramaticais, como é o itens como maledicentia e maleficus, que, por sua vez, geraram
caso do chamaE.0.gerundismo, ou seja, uso frequente do gerún- os vocábulos maledicência e maléfico no português.
dio em funções não previstas em seu valor tradicional, que se Mas, se observarmos bem, notaremos que casos como os
desenvolveram recentemente. Vemos esse caso em frases do de malparar, malcontente, e malcriado, por exemplo, são dife-
tipo Vamos estar mandando a mercadoria amanhã ou Eu gos- rentes, porque são formações portuguesas envolvendo o ad-
taria de estar falando com o senhor Paulo, por favor. Esses fatos vérbio mal e não evoluções de vocábulos latinos que já apre-
indicam que os usuários da língua têm consciência dos movi- sentavam o prefixo male, como ocorre nos casos anteriores.
mentos de mudança e variação que a caracterizam - pelo Parece que o elemento mal, hoje ou ontem, em latim ou em
menos daqueles que se manifestam dentro de seu tempo de português, apresenta características morfossintáticas e semân-
vida, sendo a eles perceptíveis. ticas que lhe atribuem uma grande potencialidade para assu-
Por fim, vale pensarmos um pouco nos caminhos da mu- mir a função de prefixo, que pode se renovar a cada utilização
da palavra." Isso significa que não se trata apenas de uma
dança.19s funcionalistas têm a2!esentado evidências, em s~
transformação linear de formas que se sucederam no tempo
esquisas sobre gramatic.alização, de que a mudança não se dá
ou diacronicamente, mas da atuação de forças estruturais e/ou
através.. do tempo de modo [inear..mas reflete tendências não
comunicativas que apenas precisaram do passar do tempo para
estruturais que se manifestam na organização gramatical de modo
se fazer sentir.
_ atemporala É comum a constatação de que determinadas mu-
danças não podem ser vistas como sucessões no tempo, porque Regularidades como essas serão observadas e analisadas ao
longo deste livro. Elas refletem fatos que transcendem a visão
se reproduzem incessantemente ao longo do tempo, refletindo
saussureana de mudança, voltada para fenômenos estruturais
tendências aparentemente atemporais.
específicos, apontando para motivações que transcendem esse~
É o que parece ocorrer com as mudanças que envolvem
determinados usos do item mal no português, sobretudo a pas-
3. O português antigo também gerou suas formações, conforme podemos ver em
sagem advérbio de modo> prefixo. Esse processo de mudança
Huber (1986, p. 276), que apresenta os exemplos de composição que desapareceram:
leva o advérbio mal a se ligar a um verbo (malparar), ao particí- mal-dia, mal-sen. (= insensatez), malsezo (= engano, equívoco) e malandante (= infeliz).
40 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA 41
Mudança lingufstica: uma abordagem baseada no uso

aspectos estruturais. Elas também desafiam a proposta saussu- não seriam completamente determinados antes da experiência
reana de distinção categórica entre fatos sincrônicos e diacrôni- linguística de um indivíduo. Para Chomsky, é durante os anos
cos, já que, subjacentes à mudança que se dá ao longo do tempo, de aguisição da linguagem e de acordo com as características
podemos perceber tendências regulares atuando em diferentes
momentos da evolução histórica das línguas ..cabe ao Iing.ui
tentar compreender a natureza dessas tendências atemporais, ou
~orfossintáticas da língua do ambiente da criança
-parâmetro linguístico específico será marcado como positivo
ou negativo numa determinada língua. for exemplo, são os
que um
&
yancrônicas nos termos saussureanosI que não se enquadram na dados do ambiente que indicarão para uma criança em fase de
oposição sincronia VS. diacronia do modelo estruturalista. aquisição do português se um parâmetro como, digamos, o do
sujeito nulo (isto é, a possibilidade de a língua realizar o famoso
Gerativismo e mudança "sujeito oculto") deve ser marcado nessa língua como positivo ou
como negativo. Como veremos mais à frente, essa POSsibilidad~
A teoria gerativa surgiu no cenário dos estudos linguísticos de parametrização binária é justamente o fator genétjco que, de
em meados da década de 1950, através das ideias de Chomsky. acordo com a teoria chomskiana, ao mesmo tempo permite e
Para os interesses deste livro, vale resumir algumas caracterís- impõe limites à variação e à mudança entre as línguas humanas.
ticas básicas dessa escola. Começamos mencionando que os
Outra característica da proposta gerativista é a adoção do
estudos gerativistas foçalizam o componente criativo da lingua-
princípio da modularidade da mente, nos termos de Fodor (1983).
_gem humana, indicando o papel primordial, no desenvolvimen-
De acordo com esse princípio, assume-se que nossa mente é
to e no uso da linguagem, desempenhado por determinados
modular, ou seja, é constituída de módulos ou compartimentos
processos mentais que são inerentes à nossa espécie. Isso, sem
caracterizados como sistemas cognitivos diferentes entre si, que
dúvida, é \!.,mpasso adiante no que se refere à visão de sistema
possuem natureza e função especializadas. Em outras palavras,
,como conjunto de relações e causas internas à estrutura das
para os gerativistas, a gramática é um módulo mental específico,
línguas, atribuída a Saussure.
sujos componen~stitu~ também mó,ªulQs relativamente
Assumindo mais uma vez posição divergente em relação autônomos, independentes entre si, no sentidQJk.Que são go-
a Saussure, que acreditava em uma natureza essencialmente vernados Frregras p-rópri~ e independente5. \\ hipótese da
social da estrutura gramatical das línguas, Chomsky propõe o modularidade implica que o funcionamento de um módulo como
princípio do inatismo, segundo o qual afaculdade da linguagem é a sintaxe, por exemplo, se dê independentemente das operações
uma propriedade genética e inata à espécie humana. A faculdac;k de ordem fonológica ou de ordem semântic~tclaro que há
.,.dalinguagem, conforme propôs Chomsky (1981), é constituída 'pontos de interseção entre os módulos da gramática, já gue,
de um conjunto limitado de princípios, comuns a todas as lín- ~nal, nas palavras de Kenedy (2008), "a sintaxe cria sintagmas
,guas naturais. e de parâmetros, que são variáveis distribuídas $: sentenças a partir das palavras do léxico, e o produto final da
binariamente (positivo vs. nggf1#VQ) entre as línguas. Ao contrário .?intaxe (a sentença) deve receber uma leitura fonológica e tam- '
dos princípios da linguagem, os parâmetros de uma dada língua ~ém uma interpretação semântica básica"h\ essência da ideia
43
42 MÁRIO EDUARDO MARTELOITA
Mudança lingufstica: uma abordagem baseada no uso

da modularidade parece estar, portanto, no fato de que~ do processo de aquisição da linguagem. No curso desse proces-
módulos atuam separadament\;, de maneira que çada um deles so, a criança fixará um dado conjunto de parâmetros como
~em contato com o resultado final do trabalho d<ll..Qlltros.\ positivos ou negativos, de acordo com as informações da língua
de seu ambiente, até o momento em que ela atinge um estágio
Terceiro ponto gerativista que merece menção é a tendên-
estável e a aquisição é considerada concluída. É exatamente a
cia - que se mantém da tradição estrutural - de deixar de
tarefa de fixação dos parâmetros de uma língua que abre espa-
lado o uso concreto da língua em situações reais de comunica-
ço para a mudança linguística, afinal a informação disponível
ção. Ao estabelecer a distinção entre competência, a capacidade
para a criança nem sempre é transparente a ponto de indicar
em parte inata, em parte adquirida de formar e comp'!:.eender
inequivocamente a fixação de um parâmetro como positivo ou
língua, e desempenho, utilização concreta da
negativo, o que, ao longo do tempo, pode levar à mudança pa-
-
competência. Chomsky faz do primeiro o objeto de e
LinRuística. Ao optar pelo estudo da competência linguística,
ramétrica. Com a chamada teoria de princípios e parâme..t~ a
os gerativistas clássicos assumem abertamente a opção por uma abordagem chomskiana pretende dar conta não só das diferen-
língua abstrata como seu objeto de pesquisa. Nas palavras de ças entre as línguas (descrição linguística sincrônica), mas
Chomsky (1965), o objeto da gramática gerativa subjaz na men- também das mudanças ocorridas na história de uma língua
te de um falante-ouvinte idea!J:Iue conhece sua líng~a perfei- (descrição da mudança diacrônica).
tamente, habita uma comunidade linguística completamente A ideia de uma.,wudança paramétrica ficará mais clara se
homogênea e não é afetado por fatores externos à gramática, pensarmos em termos da distinção introduzida por Chomsky
como emoção, concentração ou ruídos. (1986) entre Língua l (a língua interna, ° conjunto de regras. e
Deixando de lado o uso da língua, tradicionalmente visto rincínios aue estão na mente dos falantes) e Lín
como o gerador de mudança, e propondo a existência de prin- ~~terna, o ambiente linguístico). As crianças não têm acesso
cípios inatos como elementos decisivos na organização da es- direto à Língua l subjacente aos dados da Língua E, sendo esta
trutura da gramática, somo a teoria gerativa se propôs a expli.s& última o seu único ponto de referência em termos de aquisição.
a mudança linguístjca";) Essa possibilidade se abre a partir dos Ou seja, Q ambiente linguístico das crianças constitui os dados
estudos das mudanças paramétricas-, isto é, o estudo da mudan- ,apartir dos quais elas internalizarão sua Língua l, que pode em
ça de um dado parâmetro da língua de positivo para negativo ou vários aspectos ser diferente da língua do ambiente e da Língua
de negativo para positivo. Esse tipo de estudo promoveu o de- ) que deu origem a essa. A esse respeito, Battye e Roberts (1995)
senvolvimento de uma rica abordagem em sintaxe comp~tiva propuseram o seguinte esquema:
durante os anos de 1980, fazendo com que se desenvolvesse o
interesse pela sintaxe diacrônica. \
Língua I dos pais ~ Língua Edo ambiente 1
De acordo com essa abordagem, a gramática universal (G U) J,
, interpretada como um conjunto de princípios inatos e uma
Língua I das crianças ~ Língua E do ambiente 2
g<!.!llª gc parâmetros ainda não fixad~\A GU é o estágio inicial
44 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 45

.
Esse esquema sugere que as regras subjacentes às frases criadores esse mesmo parâmetro é marcado como [+ nulo I! entã9
que as crianças criam são inferidas a partir das sentenças que .leremos um caso de mudança paramétrica no PB. 'por fim, com
.'\l) ouvem em seu ambiente comunicativo. Ou seja, e.s senten~as uma gramática mental em que sujeito é uma categoria marcada
I.JJJ ~e as crianças ouvem açionam parâmetros eSE,e5ífi..c0se, nesse como [- nulo], essas crianças produziriam suas próprias frases,
I2S.esso, podem ocorrer interpretações inadequada~u reaná- gerando um novo conjunto de dados numa nova Língua E, a qual
~Isso pode fazer com que a Língua I das crianças apresente servirá de base para a aquisição da linguagem da nova geração
algumas singularidades, embora compartilhe grande quantidade de falantes, permitindo que reanálises continuem a acontecer e
de informação comum com os demais indivíduos que tiveram novas mudanças se processem.
aproximadamente a mesma língua ambiente. Essa visão é a Um dos principais problemas dessa abordagem da mu-
que também caracteriza textos mais recentes como o de Yang dança, segundo as análises centradas no uso, é o fato de que
(2002). Vejamos um exemplo de como a mudança linguística muitos elementos que sofrem mudanças específicas não são
pode ocorrer de acordo com essa interpretação paramétrica. utilizados por crianças e não são, para elas, visíveis nos dados
Suponhamos que a língua do ambiente da criança seja o da língua do ambiente. Além disso, há evidências históricas de
português do Brasil (PB). Nessa língua, há evidências de, que o que fenômenos associados à mudança por gramaticalização são
parâmetro do sujeito nulo deva ser marcado como positivo: PB essencialmente gradientes e variáveis e não binários, como nos
= [+ sujeito nulo]. Por exemplo, sujeitos não referenciais, isto é, parâmetros originalmente propostos por Chomsky (1981, 1995 e
sujeitos sem valor semântico, os chamados "sujeitos inexistentes", posteriores) ..tsles se E!;9cessam seguio.do pasSQs mínimos, e não
são sempre nulos em PB, como acontece em "0 choveu ontem", saltos abruptos ou mudanças paramétricas. Embora as crianças
"0 é tarde" etc. Por outro lado, há no PB evidências que parecem tenham seu papel no processo de mudança, muitos exemplos de
contradizer essa informação e indicam que a língua deva ser gramaticalização parecem ser iniciados por adultos, já que en-
marcada com o parâmetro negativo: PB = [- sujeito nulo]. Por olvem complexas inferências e funções pragmático-discursiva~
exemplo, uma forma verbal como "foi" pode ser associada a diver- ~ociadas à estruturação dos textos, que crianças não utilizam.4
sas pessoas pronominais de sujeitos referenciais: 2" do singular Heine e Kuteva (2007) apontam vários exemplos, sugerindo
(você foi), 3" do singular (ele foi) e 1a do plural (a gente foi). Desse que crianças em idade pré-escolar não são agentes de mudança
modo, é muito comum que, nos dados de fala disponíveis para a e não criam novas estruturas - somente adolescentes e -ª.dultos
criança, formas verbais como essas sejam sempre antecedidas de o fazem. Ou seja, as análises centradas no uso apontam para a
sujeito preenchido, de modo a delimitar claramente a referência proposta de que crianças não iniciam mudanças e sim grupos de
da pessoa gramatical do sujeito, fato que seria interpretado pela
criança como indício de que o parâmetro do sujeito nulo no 4. Pesquisas desenvolvidas pelo Grupo Discurso e Gramática, relatadas especialmen-
PB seja negativo. Ora, ~e a criança internalizar, a partir de sua te em Martelotta, Votre e Cezario (1996), Martelotta (1997) e Votre, Cezario e Martelotta
(2004) apontam para o fato de que alguns marcadores discursivos e determinados conec-
!!..r:tálisti0s dados da língua do ambiente, que o ~râmetro do tivos, cujos usos refletem processos de mudança por gramaticalização, são utilizados basi-
sujeito é [- nulo], t,nquanto na gramática mental d~us pais ou camente por falantes mais velhos e com níveis mais altos de escolaridade.
46 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 47

...falantes em interação, especialmente Isso significa


~esce[Jte5. mudança. O esquema abaixo representa os passos necessários
que as reanálises que veiculam mudanças nas línguas não são a essa concepção de mudança:
erros ou interpretações inadequadas, que ocorrem aleatoriamen-
te, mas alterações decorrentes de interferências ~Ógjcas..nã.o.-. A=x>A=x!B =x>B =xJ
@lares provenientes d.e~uturas de uso com alta frequência, Segundo essa concepção, a variação em uma comunidade
ou de inferências ou impli~ur_as, que sãoJ2res~ionadas pelos de fala não é casual, mas estruturada.! .podendo representar em
contextos reais em que as formas linguísticas sã~adas. illgumas situações mudança em progresso (também denomina-
da mudança em curso), cujos fenômenos sociais são mais clara-
Sociolinguística e mudança mente observáveis do que os casos em que a mudança já se
efetivou e para as quais os contextos não são facilmente recupe-
A Sociolinguística, de acordo com Mollica e Braga (2003),
ráveis. As descobertas referentes à mudança em progresso podem ~
"estuda a língua em uso no seio das comunidades de fala, vol-
ser generalizadas para os casos em que a mudança já ocorreu .~
tando sua atenção para um tipo de investigação que correlacio-
com base no princípio do uniformitarismo, de origem neogra-
na aspectos linguísticos e sociais". Estamos, portanto, falando
mática, segundo o qual os princípios que operam na base da
agora sobre um ramo da investigação linguística que leva em variação e da mudança hoje são os mesmos que estavam na base
consideração o uso concreto da língua e seu caráter inerente- das mudanças ocorridas no passadq, .0

mente dinâmico e heterogêneo, que concentra sua atenção


Essa concepção tem a vantagem de apresentar um tipo de
basicamente no aspecto variável das línguas naturais.!
mudança gradual, já que uma das formas variantes vai expandindo
Como em todas as línguas podemos encontrar variação, ou seu uso por novos contextos linguísticos e sociais, sempre toman-
seja, formas distintas com significado equivalente, no nível do do o lugar da forma alternativa. A expansão no contexto linguístico
vocábulo, da morfossintaxe e/ou da fonético-fonologia, essa se manifesta, por exemplo, no espalhamento de seu uso para
variação é tida como um mecanismo essencial das línguas, que partes da cláusula em que ela anteriormente não era utilizada. A
pode ser sistematizado através da busca de princípios gerais e expansão no contexto social se concretiza na medida em que ela
universais a ela subjacentes.tAs formas variantespodem coexis- tem seu uso estendido para novos grupos sociais e seus dialetos.
tir por séculos ou encontrar-~e num estágiQ. de. mutação. No
A Sociolinguística abordada aqui, também chamada de
último caso, uma das formas tende a desaparecer, dando lugar
Sociolinguística Variacionista ou Teoria da Variação, iniciou-se
à mais nova, que vai gradativamente tomando os lugares antes
nos Estados Unidos nos anos de 1960 sobretudo a partir das
ocupados pela forma antiga. Nesse caso, tem-se o fenômeno da
pesquisas de William Labov. Com uma metodologia bem deli-
mitada, essa área fornece ao pesquisador ferramentas para esta-
5. Embora analise a língua em uso, estamos tratando essa escola, com seus princí- belecer variáveis, para coleta e codíficação dos dados, bem como
pios e métodos próprios, como uma tendência distinta do que aqui chamamos Linguís-
tica Centrada no Uso, que une, como veremos, princípios do Funcionalismo e da Lin-
instrumentos computacionais para definir e analisar o fenômeno
guística Cognitiva. variável que se quer estudar.

\ ~ ~\ \ <e,-k.Jr a: .•
48 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguisuca: uma abordagem baseada no uso 49

Cezario e Votre (2008) assim resumem os objetivos prin- (a gente e ir + infinitivo) foram se espalhando e hoje são muito
cipais da Sociolinguística: frequentes na fala de pessoas de todos os níveis de escolaridade
Vale ressaltar que, segundo a perspectiva da Sociolinguística
o sociolinguista se interessa por todas as manifestações verbais Variacionista, toda mudança pressupõe um período de variação.
nas diferentes variedades de uma língua. Um de seus objetivos é Estamos tratando de modo simplificado a metodologia
entender quais são os principais fatores que motivam a variação variacionista, mas na verdade não é tão fácil determinar se um
linguística, e qual a importância de cada um desses fatores na con- fenômeno variável está em processo de mudança. Para chegarem
figuração do quadro que se apresenta variável. O estudo procura a conclusões a esse respeito, os sociolinguistas observam vários
verificar o grau de estabilidade de um fenômeno, se está em seu fatores, tais como escolaridade, gênero (sexo), idade, registro,
início, ou se completou uma trajetória que aponta para mudança. dentre outros, utilizando-se de programas estatísticos para cru-
zamento de fatores.
Diante de um fenômeno de variação, o pesquisador pro-
Pode-se observar a produção verbal de falantes de diferen-
cura, através da análise de diversos fatores linguísticos e extra-
tes faixas etárias para se observar as diferenças entre a fala de
linguísticos, saber se se trata de variação estável ou de mu-
jovens e idosos, por exemplo. Sabendo que a fala do idoso re-
dança em progresso. Duas ou mais formas de se dizer algo
flete os usos linguísticos mais antigos e que os jovens costumam
com valor semelhante são consideradas casos de variação. Se utilizar inovações linguísticas, é possível analisar a implemen-
tal variação se mantiver bem delimitada por grupos dialetais tação de uma mudança. Esse tipo de metod~ia diz respeito
(regionais ou sociais), dizemos que a variação é estável. Por ao estudo do chamado tempo aparente.
exemplo, pessoas de classes mais elevadas e de escolaridade
O pesquisador pode também fazer um estudo do tempo
alta usam mais a forma A, de prestígio; e pessoas de classes mais
real, coletando dados de outros períodos históricos. Por exem-
baixas com baixa escolaridade usam com mais frequência a plo, pode comparar textos escritos de diferentes décadas, pode
forma B, sem prestígio. Caso a forma anteriormente sem pres- comparar gravações de rádio da década de 1960 com gravações
tígio comece a ser usada na fala de pessoas com alto de grau de da década atual etc. Ele terá assim meios para verificar a im-
escolaridade com frequência cada vez mais alta, isso pode ser plementação do uso de um fenômeno linguístico.
um indício de mudança em curso.
Para compreender melhor os usos linguísticos, o pesqui-
Os usos de bicicleta/hicicreta, elesfizeram/eles fez, nósfalamos/ sador pode coletar dados da fala de uma comunidade e retomar
nós fala, por exemplo, podem ser considerados casos de variação à mesma comunidade num período posterior, verificando assim
estável, pois as formas sem prestígio de cada par acima não cos- se houve ou não aumento da frequência de uso de uma deter-
tumam aparecer na fala de grupos com mais escolaridade. Usos minada forma linguística. Labov aponta duas possibilidades de
como a gente estuda/nós estudamos e falarei/vou falar poderiam metodologia: coleta e análise de dados da gravação de pessoas
ser considerados (com base em pesquisas como as de Lopes, da comunidade em momentos distintos, o que configura o es-
2004 c Tesch, 2011), casos de mudança em curso. Os novos usos tudo de tendências; coleta e análise de dados da gravação dos
50 MÁRIO EDUARDO MARTELOITA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 51

mesmos indivíduos em diferentes momentos de suas vidas, o no espaço apresentado em (sa): "ele" vai se locomover em di-
que configura o chamado estudo de painel. reção à "casa" a fim de "falar com Paulo". O uso exemplificado
G!

O esquema apresentado acima (A = x > A = xlB = x > B = em (Sc) apresenta um novo valor, o de indicador de futuro, já
x) reflete muito bem os fenômenos em que há, num período de que, nesse contexto, o sentido de movimento é inteiramente
tempo, duas formas diferentes com valores semânticos referen- descartado.
ciais semelhantes. Entretanto, parece não dar conta de outro O contexto estimulador da mudança está em (Sb): há,
tipo de convivência entre formas linguísticas, que caracteri~a o neste caso, uma ambiguidade, uma vez que tanto podemos
)enômeno da polissemia, frequentemente associado aos casos entender que "ele" vai a algum lugar com o intuito de "falar com
de mudança por gramaticalização e lexicalização. ~a polissemia,
Paulo", quanto interpretar um valor de futuro, ou seja, que "ele"
um mesmo elemento tem seu uso ampliado e passa a assumir
falará com "Paulo". Essa ambiguidade se relaciona a uma estru-
novas funções ou novos significados.
tura específica em que o verbo ir é seguido de uma oração final
Assim, se, por um lado, vou fazer está em variação com reduzida de infinitivo e é dita em uma situação de interação que
farei, por formar com esta um par de formas semanticamente a estimula.\§, o que é mais importante: essa ambigllidade im-
equivalentes (ambas indicam futuro) que co/ocorrern na língua
pulsiona o novo sentido. O que queremos dizer aqui é que, em
num mesmo momento, por outro, há uma convivência entre
um contexto morfossintático em que o verbo ir é seguido de
vou (marcador de futuro) e vou (verbo de movimento). Nesse
uma oração final e em uma situação comunicativa determinada,
segundo caso, não podemos falar em formas variantes no sen-
o ouvinte infere um novo valor para o verbo ir, que ele anterior-
tido específico associado à Sociolinguística Variacionista, e a
mente não tinha.
questão básica passa a ser como e por que motivo uma forma
teve seu uso estendido para desempenhar uma nova função. O fato é que, segundo a teoria da mudança por gramati-
Costuma-se estabelecer a trajetória de mudança referente ao calização, o novo uso, indicado em (Se), implica necessaria-
desenvolvimento do verbo ir como indicador de movimento no mente um momento intermediário, em que há uma situação
espaço para um uso auxiliar marcador de futuro, através de uma de ambiguidade, ou, mais especificamente, um contexto em
sequência caracterizada pela trajetória sentido a > sentido b > que esse valor temporal, típico de verbo auxiliar, pode ser in-
sentido c, relacionados aos usos exemplificados a seguir: ferido: é o que vemos em (Sb). Na medida em que esse valor,
proveniente de uma inferência contextualmente localizada,
(5) a. Ele vai para casa falar com Paulo. vai se incorporando ao sistema linguístico dos usuários, ele
b. Ele vai falar com Paulo. vai sendo empregado em contextos não ambíguos, ou seja, em
c. Vai chover. situações em que seu sentido original não se adaptaria, como
é o caso exemplificado em (Se). Ou seja, o fato de o exemplo
Essa trajetória de mudança propõe, como ponto de partida, em (Sc) passar a ser possível indica que a mudança ocorreu de
o uso concreto de ir como verbo pleno indicador de movimento forma mais definitiva.
52 MÁRIO EOUARDO MARTELOTIA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 53

No processo de extensão para novas funções que estamos c) a ambiguidade que nasce nessa fase estimula o desen-
aqui exemplificando, a situação intermediária não pode ser volvimento automático do uso novo, através de um
vista como a coexistência entre duas formas de valor semântico processo que Traugott e Dasher (2005) chamam de
equivalente, mas como uma ambiguidade entre o uso anterior inferência sugerida, em que o contexto impulsiona o
e o novo. É o que ficou conhecido como overlap model, ou seja, ouvinte, já no ato da comunicação, a reinterpretar o
um modelo de mudança em três estágios: valor do elemento envolvido na mudança;
d) pode-se concluir do item (c) que a ambiguidade em
(i) há uma expressão linguística A, que é recrutada para
questão existe basicamente no olhar do analista, já que
cumprir gramaticalização;
os usuários aparentemente solucionam a imprecisão da
(ii) esta expressão adquire um segundo padrão de uso, B,
mensagem lançando mão de coordenadas contextuais,
que apresenta ambiguidade em relação a A;
Se adotamos esse novo foco na abordagem do fenômeno
(iii) finalmente A se perde, ou seja, agora há apenas B.6
da mudança, percebemos que, embora o fenômeno da variação
tenha, de fato, influência sobre o desenvolvimento de novos
Uma representação possível desse processo seria algo como
valores para as estruturas da língua, o que parece impulsionar
o apresentado no esquema a seguir:
o movimento de mudança são os mecanismos interacionais
A = x > A = x/y > A = y associados aos usos dessas estruturas. Em termos mais es-
pecíficos, a mudança tende a refletir o modo mais eficaz de
Esse mecanismo não pode ser d~ÇJ'it0..s.2!E0 .!:!,mprosesso negociação do sentido que falante e ouvinte promovem no ato
de variação ou ser descrito através de uma metodolQW de cunho da comunicação. Esse é um aspecto fundamental relacionado
..,Yariacionista clássico, já que: ao que chamamos anteriormente de inferência sugerida, que
a) não parece estar primariamente associado à estratifi- prevê as complexidades da comunicação em que o falante
cação social, Jllas a uma relação entre estruturas evoca implicaturas, sugerindo que o ouvinte as aplique em
Jl1orfossintáticas e contextos pragmático-discurs~ sua interpretação."
.•.que se caracteriza por um conjunto de traços que A compreensão de fenômenos desse tipo não depende,
constitl!.em os verdadeiros motivadores aa mudança; pelo menos essencialmente, de questões associadas à variação
b)
:e
não apresenta formas de valor semântico equivalente
sim uma situaÇ.ãQ...d~biguidad~l ou seja,.,& exis-
que as formas linguísticas mantêm com outras formas de valor

--tência de uma mesma forma


--
com J?,ossibilidades dife-
-- - 7. Estamos entendendo aqui implicatura como um tipo de ínferência de que o valor
rentes de interpreta comunicativo da frase, num determinado contexto, não corresponde ao seu sentido literal.
É o caso da frase Está um pouco frio aqui dentro, sendo utilizada como um pedido para
desligar o ar condicionado, por exemplo. O falante, por educação ou timidez, não faz o
6. Nem toda gramaticalização chega ao estágio (iii). pedido direto, sugerindo que o ouvinte infira, a partir do contexto, seu pedido.
54 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA ~~ 55

correspondente, mas de aspectos relacionados à utilização pelos


participantes de suas habilidades cognitivas, que tendem a se
adaptar aos diferentes contextos comunicativos, atribuindo
novos usos aos elementos linguísticos. Essa relação entre habi-
lidades cognitivas e habilidades interacionais é que constitui a Capítulo 2
essência da abordagem centrada no uso, que representa a visão
de mudança que esse livro quer transmitir e que observaremos
a seguir.
Linguística centrada no uso e mudança

Antes de entrarmos na análise do fenômeno da mudança


linguística à luz da abordagem das línguas que estamos aqui
caracterizando como linguística centrada no uso, precisamos de-
finir, de modo explícito, esta abordagem. Passemos a essa tarefa.

LlNGufSTlCA CENTRADA NO USO

Estamos aqui chamando de linguística centrada no uso'


(TOMASELLO, 2005) um tipo de abordagem que, como o pró-
prio nome sugere, considera haver uma relação estreita entre
a estrutura das línguas e o uso que os falantes fazem delas nos

I. Tradução do termo usage-based model utilizado inicialmente em Langacker (1987)


para designar modelos teóricos que privilegiam o uso da língua. Alguns autores têm usado
o termo para se referir às análises das línguas que, de um modo geral, refletem uma junção
das tradições desenvolvidas pelas pesquisas de representantes da Linguística Funcional,
como Talmy Givón, Paul Hopper, Elizabeth Traugott e Joan Bybee, entre outros, com re-
presentantes da Linguística Cognitiva, como George Lakoff e Ronald W. Langacker. Alguns
autores, como Tomasello (2005) e Martelotta (2008), também utilizam o termo Linguísti-
ca Cognitivo-Funcional para designar essa tendência.
Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 57
'Ih MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA

provenientes desses processos podem ter sua frequência aumen-


contextos reais de comunicação. Um tipo de abordagem que não
tada, a ponto de transcender os limites do ambiente comunicativo
se limita à observação de aspectos formais, ou da difusão das
em que são empregados, sendo assim incorporados ao sistema.
[armas pela estrutura social, incorporando, em suas análises,
Desse modo, o sistema tem um caráter eminentemente dinâ-
dados semânticos, pragmáticos e discursivos. Nessa perspec-
mico ou emergente, já que nasce da adaptação das habilidades
tiva, são levados em conta, na análise das línguas, aspectos
cognitivas humanas a eventos de comunicação específicos e se
relacionados a restrições cognitivas que incluem a captação de
desenvolve a partir da repetição ou ritualização desses eventos.
dados da experiência, sua compreensão e seu armazenamento
na memória, assim como aspectos associados à capacidade de Para compreendermos bem esse tipo de abordagem teóri-
organização, acesso, conexão, utilização e transmissão adequada ca, é importante começarmos observando, de modo mais deta-
desses dados. Mas é importante entendermos que esses aspec- lhado, algumas de suas características básicas.
tos de ordem cognitiva só se materializam na interação, ou seja,
não refletem apenas o funcionamento de nossa mente como
A RElAÇÃO BIOLOGIA E CULTURA
indivíduos, mas como seres inseridos em um ambiente cultural.
A habilidade linguística do falante é, então, vista como O que importa para nós nesta seção é pensar sobre o que
constituída das regularidades no processamento mental da há de biológico e o que há de cultural nas línguas humanas.
linguagem em situações de uso. Nessa visão, não faz sentido Nem a Linguística Gerativa, nem a Linguística Centrada no
uma separação categórica entre competência e desempenho: os uso negam a existência desses dois fatores. A diferença é que a
eventos de uso dirigem a formação e o funcionamento do siste- primeira, com sua proposta inatista e modular, considera que o
ma linguístico interno do falante, cuja estrutura não se separa essencial da linguagem está nos princípios inatos, portanto, em
do processamento mental que ocorre no uso que faz da língua. uma base biológica. As questões culturais ficam em um plano
Os eventos de uso, aliás, são cruciais para a continuidade de superfície, exercendo influência, no máximo, secundária na
da estruturação do sistema, já que não representam apenas o estrutura da linguagem.
produto do sistema linguístico do falante, mas fornecem o input Diferentemente, a tradição centrada no uso concede aos
para os sistemas de outros falantes. Portanto, desempenham aspectos culturais uma importância mais significativa. Embora
duplo papel no esquema comunicativo: ao mesmo tempo que admitam que os humanos possuam estruturas e habilidades
constituem o resultado da atuação do sistema linguístico, os inatas que os capacitam a aprender e usar uma ou mais Iínguas.ê
eventos de uso amoldam esse sistema, através de um processo as abordagens centradas no uso partem do princípio de que
de feedback.
Todo esse mecanismo, veiculado pelo uso, ocasiona rea- 2. Isso significa que não devemos ver, nessa teoria, uma visão do aprendizado em
nálises, analogias e outros processos que implicam alterações e termos de tábua rasa (a mente não tem traços inatos), apesar de a importância do papel de
estruturas biológicas preexistentes ser minimizada.
extensões no emprego das expressões linguísticas. Os novos usos
58 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguisuca: uma abordagem baseada no uso 59

essas habilidades não são exclusivas da linguagem, estando de regularização e unificação ao lado de fatores de criação e
associadas a outras formas de pensamento ou habilidades cog- inovaÇão.r ãtuaçao localizada desseSfãfores gera a gramática
nitivas. Desse modo, os linguistas do uso não acreditam em uma da língua, que se compõe de possibilidades de combinação de
gramática autônoma de base biológica cujos princípios estão unidades formais fixas, padronizadas e portadoras de significado,
inseridos na estrutura genética humana, não adotando, portan- incluindo aí características pragmático-discursivas. Utilizaremos
to, a noção de sintaxe autônoma. Isso implica conceber a sin- o t~rmo construção grama.!i::.alyara designar essas unidades.
taxe como estando diretamente relacionada a fenômenos de ""
, Nesse ponto, ê fundamental registrar que o sIgnIfiCadO
natureza semântica ou discursivo-pragmática. dessas combinações de unidades formais ou construções não é
r A~ abordagens cent~s no us~portanto, se distinguem da o resultado da soma dos sentidos dos elementos que as com-
roposta gerativa no sentido de que veem a sintaxe como uma põem. Nesse sentido essas unidades devem ser vistas como não
estrutura que está a serviço do discurso, aqui entendido como o composicionais. Vejamos alguns exemplos retirados de trechos
uso criativo da língua nos diferentes contextos de comunicação. narrativos do Corp1J:.ll)&G:
Segundo essa visão, a gramática de uma língua constitui um
conjunto de princípios dinâmicos que, de acordo com Langacker (6) a .... aí ela ficou assim super magoada com ele ... ele/
(1987), associam-se a rotinas cognitivas que são moldadas, man- mas só que ele nem deu bola... pra ela ...
tidas e modificadél§...Pe~j!Çfais do que isso, 3 comunicação b. uma vez eu saí pra jogar bola com uns amigos
é uma atividade compartilhada, ou seja, imElica uma série de meus ... ali ... num campo ali atrás ...
,
~preensão mútua,Assim,
----
movimentos feitos em conjunto pelos interlocutores em direção à
não há uma gramática inteiramente
Nos dois casos, que apresentam o item bola, o significado
pronta que forneça, de forma absoluta, o material necessário para
geral da expressão grifada não é composicional, ou seja, não
a produção linguística para um indivíduo falante ..l
corresponde à junção dos significados das palavras que a com-
Como, então, tratar a noção de regra gramatical? Revemos põem. Em (ôa), a expressão ele nem deu bola não significa que
3ntender gue não existem regras subjacentes ao uso linguístico? o indivíduo indicado pelo pronome "ele" não deu uma bola no
Devemos acreditar que os falantes criam as regras de sua língu; sentido literal, ou seja, algum objeto esférico, para "ela", mas
de modo arbitrário, simplesmente repetindo estruturas que de- que "ele" não deu atenção a "ela". Este é um exemplo prototí-
ram certo em situações comunicativas anteriores? Responder a pico de expressão idiomática, e existem outras expressões de
essas perguntas não é tarefa fácil e devemos fazê-lo passo a passo. valor semelhante, igualmente não composicionais, como Ele
•. Primeiramente, temos de compreender que o processo não ligou para ela, Ele não deu a mínima para ela, Ele se lixou
de trans/formação de uma língua, ou, mais especificamente, a para ela, entre outras.
gênese das estruturas morfossintáticas que caracteriza as sen- Em (éb), temos uma construção semelhante, no sentido
tenças possíveis de uma língua resulta da atuação de fatores de que também não é composicional: não devemos compreen-
w MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 61

der que o falante arremessa uma bola em uma direção qualquer, Na base do funcionamento linguístico está, então, nossa
como sugerem os itens componentes da construção. Jogar bola, capacidade de formar categorias, de agregar essas categorias em
nesse caso, significa jogar futebol (não vôlei, basquete, tênis ou diferentes domínios de conhecimento, assim como nossa habi-
qualquer outro esporte que implique a utilização de uma bola). lidade de estabelecer relações de semelhança ou analogia entre
Nesse caso, não teríamos uma expressão idiomática prototípica esses domínios. Isso significa que as regras gramaticais refletem
(talvez pelo fato de o item bola apresentar um sentido mais li- a criatividade humana, mas são restritas pelo funcionamento
teral), e sim uma maneira convencionada e aceita pela comu- natural de nossa mente. Essa restrição garante aspectos trans-
nidade de dizer jogar futebol.
linguísticos detectados nas análises das línguas naturais.
Isso sugere que a ausência de composicionalidade não se - O que estamos aqui dizendo é que as regras gramaticais
restringe às expressões idiomáticas, manifestando-se como um
\ existem, ~não ~m natureza exclusivament~gptática. Elas
fenômeno mais geral da gramática das línguas. Ou seja, salien-
\ implicam informações referentes ao ambien~ural e à si-
tam a realidade das construçõeJ,. como uma unidade da gr~~
~ação de intera~u seja, formar uma frase - ou uma se-
tica o fato de seu sentido geral não ser previsto a partir
_ r da_união
quência de frases - não implica apenas juntar palavras de
~5..\éalores de seus componêntês e o tato de poderm2E-
maneira lógica, mas estabelecer uma relação de adaptação
jç.lar que expressões inteiras possuem~o semelhante ou
entre essas estruturas e o contexto em que elas são usadas.
~ --
não ~ relação a outras expressões.
.
Outro ponto importante relacionado à natureza das estru-
-- Tendo como base a natureza adaptativo-funcional da lin-

r
guagem, que se manifesta em fenômenos de variação e mudan-
turas possíveis que compõem a gramática de uma língua está
ça, parece inevitável descartar a hipótese de que a gramática
em sua ,!!!otivacão _Ç9,g~._ Embora se aceite que as constru-
apresenta regras fixas, que se aplicam, fria e matematicamente,
ções de um língua sejam convenções e repetições ou extensões
em qualquer situação de comunicação, ou seja, sem levar em
feitas a partir de estruturas concebidas em situações comuni-
conta o conteúdo que elas veiculam e a perspectiva de seus
cativas anteriores de natureza semelhante, essas repetições
usuários. Os falantes tendem a adaptar sua fala aos diferentes
- assim como essas extensões - refletem habilidades cogni-
contextos de comunicação, o que significa que as regras mais
tivas associadas à nossa percepção do mundo. Assim, a expres-
gerais que emergem a partir das operações do sistema são ati-
são dar bola, no sentido empregado em (ôa), reflete uma exten-
vadas em combinação com eventos específicos de uso.
são metafórica do ato concreto de passar ou entregar uma bola
a alguém para a ideia, mais abstrata, de voltar a sua atenção Isso nos leva a mais um ponto importante de nossa argu-
para esse alguém, prestigiando sua presença na cena descrita.' mentação. Tendo em conta o aspecto emergente da gramática,
podemos compreender as regras que regulam o sistema linguís-

3. Assim como, na expressão pisar na bola, transfere-se


pisar literalmente
falha que constitui o ato de
na bola do domínio concreto, associado ao futebol, para o domínio social,
-
tico como um grupo de princípios de adaptação contextual. Para
--
melhor compreender essa ideia, pensemos na ordenação do
.
passando a designar uma atitude incorreta ou inadequada de alguém em sentido mais geral. sujeito em frases do português: podemos colocar o sujeito antes
62 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 63

ou depois do verbo, mas, ao formular nossas frases, temos, inevi- se deu. Entretanto, pesquisas recentes envolvendo processos
tavelmente, de decidir em que parte dela o sujeito deve aparecer. de gramaticalização, aquisição da linguagem pela criança e,
Essa decisão é arbitrária no sentido de que não há motiva- sobretudo, linguagem de animais, têm fornecido algum material
ção para a colocação do sujeito? Dados de uso nos fornecem para sustentar hipóteses acerca da evolução da linguagem na
fortes argumentos de que não há arbitrariedade nesse fenôme- espécie humana.
no, sendo o contexto de uso o fator motivador da escolha: se o Para cientista; como Noam Chomsky e Stephen Jay Gould,
sujeito expressar um referente já mencionado (uma informação por exemplo, a linguagem não deve ser um produto de seleção
compartilhada pelos interlocutores), tende fortemente a apare- natural, mas uma espécie de efeito colateral de outras forças
cer antes do verbo, se indicar um referente novo (uma informa- evolucionárias, como o aumento do cérebro. Muitos autores
ção não mencionada ou não compartilhada pelos interlocutores), consideram que a evolução da linguagem se deu de modo não
a tendência é ocorrer depois do verbo. Em outras palavras, temos gradual, ocorrendo na espécie humana através de processos
uma construção sintática para a manutenção de um sujeito já como o da mutação. Já outros - entre eles os que adotam a
mencionado e outra para a indicação de um sujeito novo. visão centrada no uso - a linguagem foi evoluindo de modo
Esse exemplo ilustra o fato de que cada evento de uso tem gradual, como uma adaptação para valores mais precisos e co-
um aspecto individual e único, sugerindo que não podemos municação mais eficiente.
decidir sobre como utilizar as estruturas que o sistema nos Para autores como Talmy Givón, por exemplo, a comuni-
fornece sem adaptá-Ias a esse contexto singular. Assim, conce- cação, nos seus primeiros estágios, seria caracterizada predo-
bemos as regras não como absolutas, mas como contextualmen- minantemente por atos de fala manipulativos," e que o desen-
te dependentes, refletindo a atuação de um organismo biológi- volvimento em direção a atos de fala declarativos constitui um
co em um ambiente cultural. desenvolvimento posterior na evolução da linguagem humana.
Mais uma questão que merece menção neste ponto de nossa Evidências para esta hipótese podem ser vistas tanto na lingua-
discussão sobre a relação entre biologia e cultura é o surgimento gem de prima tas quanto nos primeiros estágios de aquisição da
da linguagem na espécie humana. Se levarmos em conta o pro- linguagem pela criança: em ambos os casos, temos o predomí-
cesso evolutivo que gerou a espécie que somos hoje, devemos nio de comunicações manipulativas, embora a massa da maqui-
aceitar que a linguagem passou a fazer parte de nossas vidas, de naria gramatical das línguas modernas esteja relacionada à co-
forma sistemática, somente a partir de um determinado momento. díficação de atos de fala declarativos.
Como e quando desenvolvemos essa capacidade exclusi- A teoria de gramaticalização, segundo Heine e Kuteva
vamente nossa de nos comunicarmos através de sistemas tão (2007), também fornece evidências para essa hipótese da evo-
ricos e complexos como as línguas naturais? Durante muitos
anos essa questão foi considerada não científica, já que não 4. Ato de fala manipulativo é aquele que leva o ouvinte a conceber uma resposta não
havia como se chegar a conclusões mais objetivas de como isso verbal, ou seja, à realização de uma ação, como uma sugestão, um pedido ou uma ordem.
r, MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguística: unta abordagem baseada no uso 63

nu depois do verbo, mas, ao formular nossas frases, temos, inevi- se deu. Entretanto, pesquisas recentes envolvendo processos
tnvclrncnte, de decidir em que parte dela o sujeito deve aparecer. de gramaticalização, aquisição da linguagem pela criança e,
Essa decisão é arbitrária no sentido de que não há motiva- sobretudo, linguagem de animais, têm fornecido algum material
ção para a colocação do sujeito? Dados de uso nos fornecem para sustentar hipóteses acerca da evolução da linguagem na
fortes argumentos de que não há arbitrariedade nesse fenôme- espécie humana.
no, sendo o contexto de uso o fator motivador da escolha: se o Para cientista; como Noam Chomsky e Stephen Jay Gould,
sujeito expressar um referente já mencionado (uma informação por exemplo, a linguagem não deve ser um produto de seleção
compartilhada pelos interlocutores), tende fortemente a apare- natural, mas uma espécie de efeito colateral de outras forças
cer antes do verbo, se indicar um referente novo (uma informa- evolucionárias, como o aumento do cérebro. Muitos autores
ção não mencionada ou não compartilhada pelos interlocutores), consideram que a evolução da linguagem se deu de modo não
a tendência é ocorrer depois do verbo. Em outras palavras, temos gradual, ocorrendo na espécie humana através de processos
uma construção sintática para a manutenção de um sujeito já como o da mutação. Já outros - entre eles os que adotam a
mencionado e outra para a indicação de um sujeito novo. visão centrada no uso - a linguagem foi evoluindo de modo
Esse exemplo ilustra o fato de que cada evento de uso tem gradual, como uma adaptação para valores mais precisos e co-
um aspecto individual e único, sugerindo que não podemos municação mais eficiente.
decidir sobre como utilizar as estruturas que o sistema nos Para autores como Talmy Givón, por exemplo, a comuni-
fornece sem adaptá-Ias a esse contexto singular. Assim, conce- cação, nos seus primeiros estágios, seria caracterizada predo-
bemos as regras não como absolutas, mas como contextualmen- minantemente por atos de fala manipulativos," e que o desen-
te dependentes, refletindo a atuação de um organismo biológi- volvimento em direção a atos de fala declarativos constitui um
co em um ambiente cultural. desenvolvimento posterior na evolução da linguagem humana.
Mais uma questão que merece menção neste ponto de nossa Evidências para esta hipótese podem ser vistas tanto na lingua-
discussão sobre a relação entre biologia e cultura é o surgimento gem de primatas quanto nos primeiros estágios de aquisição da
da linguagem na espécie humana. Se levarmos em conta o pro- linguagem pela criança: em ambos os casos, temos o predomí-
cesso evolutivo que gerou a espécie que somos hoje, devemos nio de comunicações manipulativas, embora a massa da maqui-
aceitar que a linguagem passou a fazer parte de nossas vidas, de naria gramatical das línguas modernas esteja relacionada à co-
forma sistemática, somente a partir de um determinado momento. dificação de atos de fala declarativos.
Como e quando desenvolvemos essa capacidade exclusi- A teoria de gramaticalização, segundo Heine e Kuteva
vamente nossa de nos comunicarmos através de sistemas tão (2007), também fornece evidências para essa hipótese da evo-
ricos e complexos como as línguas naturais? Durante muitos
anos essa questão foi considerada não científica, já que não 4. Ato de fala manipulativo é aquele que leva o ouvinte a conceber uma resposta não
havia como se chegar a conclusões mais objetivas de como isso verbal, ou seja, à realização de uma ação, como uma sugestão, um pedido ou uma ordem.
Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 65
ó4 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA

lução gradual, já que apresenta processos de mudança extre- significa não apenas dominar mecanismos de natureza sintática,
mamente regulares, que podem ser utilizados para conceber os mas também processos associados a:
primeiros movimentos em direção ao desenvolvimento de nos- a) organização textual (planos discursivos, coesão e coe-
sa linguagem. O princípio aqui é relativamente simples: as rência etc.);
mudanças já estudadas nas línguas que conhecemos (mesmo b) fenômenos interacionais (intenções e expectativas dos
as mais antigas) refletem processos de transformação altamen- participantes, leituras de intenção, implicaturas con-
te regulares, que se manifestam em línguas diferentes e em versacionais etc.).
momentos distintos da evolução histórica de uma mesma língua.
É o velho princípio neogramático do uniformitarismo novamen- Há uma relação muito estreita entre esses dois pontos,
te entrando em cena. já que o texto é organizado contextualmente, ou seja, para um
Desse modo, estágios anteriores desconhecidos da evolu- interlocutor determinado em uma situação determinada. Nes-
ção das línguas podem ser reconstituídos a partir da aplicação se sentido, o texto é o próprio lugar da interação em que os
desses processos regulares de mudança. Pensemos em um interlocutores, como sujeitos ativos, negociam sentido de
exemplo simples: sabemos, através do estudo de processos maneira interativa, tanto respondendo ao contexto quanto
de gramaticalização em várias línguas, que conjunções são criando contexto (TRAUGOTIe DAscHER, 2005). Entretanto,
provenientes de verbos, substantivos e advérbios. Aplicado à podemos, para efeito de análise, falar separadamente de cada
hipótese de uma evolução gradual das línguas, esse fato leva à um deles.
hipótese de que verbos, substantivos e advérbios apareceram Comecemos a comentar o item referente à organização
antes e que conjunções surgiram em um estágio posterior da textual. Quando nos comunicamos com nossos semelhantes,
evolução das línguas. não usamos frases isoladas, mas construímos textos, ou seja,
produzimos discurso, conjunto de informações coesas e coe-
rentes que refletem nossa intenção comunicativa e nossa
o PAPEl DA INTERAÇÃO preocupação com o efeito que essas informações terão sobre
o receptor.
A gramática é um fenômeno sociocultural, o que sugere que Assim, o que falamos tem uma organização básica, que
sua estrutura e sua regularidade vêm do discurso, sendo mol- reflete maneiras de construir a significação juntamente com o
dadas em um processo contínuo. O simples fato de que não interlocutor. O chamado processo de progressão referencial é
podemos compreender o sentido dos exemplos apresentados interessante nesse sentido, já que implica a ativação de referen-
anteriormente em (ôa) e (éb) a partir de seus elementos com- tes novos, ou seja, a alusão a dados ainda não mencionados no
ponentes é sinal de que alguma convenção social está por trás texto, que passam a estar no foco da memória imediata dos
de sua interpretação. Dominar a gramática de uma língua, então, interlocutores. Ao processo de ativação associam-se mecanismos
66 MÁRIO EDUARDO MARTELOITA MUlÚlnça linguística: uma abordagem baseada no uso 67

de reativação de um referente já introduzido, mantendo-o no a um cidadão local: Você sabe onde fica a rua X? Apesar do que
foco da memória e mecanismos de deativação desse referente sugere seu valor literal, essa pergunta não pede uma simples
através da introdução de um novo dado para o qual a atenção resposta sim ou não, e o interlocutor infere, a partir do contex-
deve ser desviada. to, a intenção do falante de pedir uma informação acerca da
Esse processo de progressão referencial está relacionado, localização da rua. Assim, o cidadão local responderia algo como
por exemplo, a aspectos formais como uso de pronomes, sendo Fica a duas quadras daqui. Implicaturas como essas são muito
veiculada por pronominalizações anafóricas ou catafóricas (ex.: comuns na língua, permeando a maioria das frases que usamos
Os jogadores estão cansados. Eles correram muito durante o jogo), no dia a dia e são de fundamental importância nos processos
ou como elipses (ex.: Os jogadores estão cansados. 0Correram de mudança linguística.
muito durante o jogo). Já vimos anteriormente com exemplos
referentes à colocação do sujeito na frase, que a ordenação
efetiva dos elementos está diretamente relacionada com essas
o PAPEL DA COGNIÇÃO
operações textuais. Referentes novos tendem a ocorrer no final
da frase, ao passo que referentes conhecidos ou já ativados
tendem a ocorrer no início da frase. Ao processar o discurso, o falante atualiza uma série de
mecanismos de natureza cognitiva, essenciais aos seres huma-
Esse modelo textual tem duplo caráter do ponto de vista
nos, como simbolização, transferência entre domínios, armaze-
de sua estabilização na língua. Por um lado, ele deve ser visto
namento de informação na memória, processamento e inter-
como continuamente elaborado já que se atualiza a cada mo-
pretação da informação, entre outras. A gramática, na
mento, obedecendo a dados imediatos. Por outro lado, pela
concepção centrada no uso, está essencialmente relacionada a
repetição cíclica desses procedimentos, estabiliza-se ou ritua-
esses mecanismos gerais. Mas vejamos mais detalhadamente
liza-se em um modelo textual. Esse processo é fundamental
como esses conhecimentos gerais se relacionam com a lingua-
dentro de uma visão centrada no uso, já que implica fixação de
gem. A esse respeito, é interessante citar a proposta de Tomasello
formas cuja estrutura interna se atualiza diferentemente em
(2003), que integra o aprendizado e o uso da língua com habi-
contextos distintos.
lidades sociais e cognitivas, sendo que dois conjuntos de habi-
Passando agora ao item referente aos fenômenos intera-
lidades são de particular importância:
cionais, é interessante mencionarmos o fenômeno da implica-
a) Habilidades de busca de padrões:
tura conversacional, que, como veremos, exerce importante
papel na mudança linguística. Trata-se de um tipo de inferência • a habilidade de formar categorias perceptuais e concep-
segundo a qual o significado de uma frase não corresponde ao tuais a partir de objetos e eventos similares;
sentido literal, sendo deduzido do contexto. Um exemplo inte- • a habilidade de formar esquemas sensório-motores a
ressante pode ser visto na pergunta feita por um turista perdido partir de padrões recorrentes de percepção e ação;
68 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança ling"lstica: uma abordagem baseada no "50 69

• a habilidade de criar analogias (rnapeamentos estrutu- organizando a imensa quantidade de informações adquiridas no
rais) através de dois ou mais domínios complexos, com nosso dia a dia.
base na similaridade do papel funcional de alguns ele- Para melhor compreender esse fenômeno, tomemos o
mentos desses diferentes domínios. termo domingo e pensemos em como definir esse termo. Essa
tarefa implica levar em conta o conceito de semana, já que
De acordo com o autor, essas habilidades são antigas na domingo é o primeiro dia da semana. Ou seja, o termo domingo
espécie humana e estão presentes nos primatas de um modo implica a criação de um ciclo determinado pelo movimento do
geral, não sendo, portanto, o aspecto que individualiza os hu- sol, que indica o fim de um dia e o início de outro, caracteri-
manos. Mas, concentremo-nos na espécie humana e façamos zando-se por uma sequência de sete dias, assim como implica
algumas reflexões em relação a alguns pontos importantes que a nossa experiência diária ao longo desses sete dias. É impor-
devem ser aqui registrados. Em primeiro lugar, para utilizar a tante ressaltar que esta divisão do tempo em termos de semanas
linguagem é necessária a existência de uma categorização do de sete dias - assim como em meses e anos - é uma conven-
mundo, aqui tomada no sentido lato. Embora haja, por exem- ção humana, tendo, portanto, fundamento cultural.
plo, árvores de todos os tipos, formas e tamanhos, criamos a Em outras palavras, a semana de sete dias constitui o do-
categoria árvore, que, a despeito de diferenças individuais de mínio semântico em relação ao qual o termo domingo é normal-
seus representantes, apresenta alguns atributos comuns que nos mente compreendido. Do mesmo modo, a concepção do que é
permitem identificá-los como representantes da categoria árvore. uma perna atua como domínio cognitivo de joelho e o espaço
Não é difícil imaginar que, por um lado, se víssemos em tridimensional é o domínio em relação ao qual são entendidos
cada árvore individual um ser diferente, não teríamos como dar termos como acima e abaixo.
conta de um mundo tão diversificado e, por outro, se déssemos A habilidade de criar analogia entre dois ou mais domínios,
um nome para cada árvore que víssemos, nossa memória não com base na similaridade do papel funcional de alguns elemen-
seria suficiente para armazenar tantos nomes. Também não é tos desses diferentes domínios é outra aptidão importante do
difícil imaginar que esse processo de categorização reflete, além uso da linguagem. Através de processos de natureza analógica
de aspectos cognitivos, aspectos linguísticos e socioculturais, podemos transferir elementos de um domínio para o outro.
já que a linguagem permeia esse processo através da criação de Expressões como daqui pra frente tudo será diferente, ou há dez
convenções e de símbolos que são aceitos pela comunidade. anos atrás somente são possíveis porque projetamos no domínio
Do mesmo modo, os sentidos se encerram em padrões de do tempo elementos do domínio do espaço (frente, trás): pen-
conhecimento e de crença, e fenômenos linguísticos individuais samos o passado em função do que está espacialmente locali-
são vistos como partes de contextos cognitivos maiores. Esses ado atrás de nós e o futuro, através do que está à nossa frente.
padrões através dos quais nosso conhecimento se organiza têm Isso provavelmente se dá porque, em função de a grande
importância fundamental, no sentido de que aliviam a memória, maioria dos órgãos dos sentidos - boca, nariz, olhos -locali-
70 MÁRIO EDUARDO MARTELOTfA Mudança Iinguistica: uma abordagem baseada no uso 71

zarem-se na parte frontal da cabeça, somos seres feitos para • a habilidade de seguir a atenção e a gesticulação de
andar para a frente. Assim, habituamos-nos a pensar situações outras pessoas para objetos distantes e eventos exterio-
da nossa vida que já vivenciamos e que ainda vamos vivenciar, res à interação imediata;
em termos, respectivamente, de lugares pelos quais já passamos • a habilidade de direcionar ativamente a atenção de
e de locais à nossa frente, a que ainda pretendemos chegar. outros para objetos distantes, apontando, mostrando ou
De um modo geral, as habilidades de busca de padrões são usando gestos não linguísticos;
necessárias para as crianças encontrarem regularidades no modo • a habilidade de culturalmente (imitativamente) apren-
como os adultos utilizam os símbolos Iinguístícos em seus di- der ações intencionais de outros, incluindo seus atos co-
ferentes enunciados e, a partir daí, construírem as dimensões municativos, alicerçados por intenções comunicativas.
gramaticais (abstratas) da competência linguística. Como men-
cionamos anteriormente, os eventos de uso são cruciais para a Essas habilidades de percepção de intenção apontam para
continuidade da estruturação do sistema, no sentido de que o compartilhamento de informações e intenções, e são funda-
fornecem o input para os sistemas de outros falantes, através mentais para a criança adquirir o uso apropriado de qualquer
de um processo de feedhack. As crianças, portanto, constroem símbolo linguístico, inclusive expressões complexas e constru-
padrões a partir do que ouvem dos adultos, mas o fazem com ções gramaticais. Elas definem a dimensão simbólica ou fun-
base nas mesmas habilidades básicas. cional da comunicação linguística, que envolve a tentativa de
Não cabe neste livro discutirmos detalhes acerca de como uma pessoa de manipular os estados intencionais e mentais de
se dá essa categorização ou os fenômenos a ela associados. O outras pessoas.
importante é entendermos que, na visão centrada no uso, não há
De acordo com Tomasello (2003) essas habilidades são
um universo pronto, esperando para ser nomeado, mas sim cria-
específicas dos humanos, já que outros animais - e aí se in-
do pela e para comunicação linguística, através de um processo
cluem os grandes primatas - não são bons em compartilhar
de categorização que reflete a utilização de aspectos cognitivos
informações e intenções. Isso pode ser visto no fato de que os
atualiza dos no uso, tendo, portanto, caráter sociocultural'
primatas não costumam se reunir em função de um mesmo
acontecimento, compartilhando atenção e dividindo tarefas em
b) Habilidades de percepção de intenção:
eventos de interesse mútuo, a menos que se trate de atividades
• a habilidade de compartilhar atenção com outra pessoa associadas a caça, luta por território, ou acasalamento.

II em objetos e eventos de interesse mútuo; Se admitimos essa hipótese como verdadeira, não é difícil
compreendermos as limitações culturais e comunicativas de
S. Em termos essenciais, esse é o raciocínio da proposta relativista Herder e Humboldt, seres inábeis na compreensão das intenções de seus semelhantes
mais tarde reeditada como hipótese de Sapir-Whorf. A lingufstica centrada no uso, entretan-
to, busca ir além do velho empirismo, tentando observar a conexão entre a relativa arbitrarie-
e na tarefa de seguir e direcionar a atenção de companheiros
dade do processo de nomear coisas e as restrições de caráter cognitivo a ele subjacentes. para objetos e tarefas. Os artefatos culturais e as práticas sociais
73
72 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança lingu{stica: uma abordagem baseada no uso

apontam para além de si mesmos: os artefatos para sua função palavras que, juntas, formariam um sentido composicional, mas
utilitária e os símbolos linguísticos para a situação comunicativa. como construções, que não podem ser compreendidas a partir
da soma dos sentidos dos elementos que as compõem.
Portanto, para aprender socialmente o uso de um instru-
mento ou de um símbolo, a criança precisa compreender por
que e para que as outras pessoas estão utilizando aquele instru-
mento ou aquele símbolo. Isso significa que elas precisam en- o FENÔMENO DA MUDANÇA NA PERSPECTIVA DA lINGuíSTlCA
tender o valor intencional do uso do instrumento ou da prática CENTRADA NO USO
simbólica. Nesse ponto, a compreensão do seu semelhante como
um ser intencional é crucial no aprendizado cultural humano e, As pesquisas sobre mudança em linguística de uso têm
consequentemente, na aquisição da linguagem. refletido, predominantemente, uma preocupação com os pro-
E, no que diz respeito a essas habilidades de percepção cessos de gramaticalização e com a relação entre esse fenôme-
de intenção, é especialmente importante para os objetivos no de mudança e o desenvolvimento das construções gramati-
deste livro a capacidade de perceber o não literal na comuni- cais, que refletem as regularidades de uma língua. Passaremos
cação, acionando implicaturas conversacionais, que são fun- agora a observar como essa tendência de abordar o fenômeno
damentais no processo de mudança linguística. Já menciona- da linguagem concebe esses fenômenos, a começar por sua
mos - e ainda abordaremos de forma mais detalhada - que visão de mudança regular e as concepções teóricas associadas
as implicaturas, vistas como inferências acionadas durante os a essa visão.
eventos de uso, são de importância fundamental no processo
de mudança linguística.
Alguns pontos importantes do que dissemos até aqui de- A regularidade da mudança
vem ser resumidos antes de seguirmos adiante. Na Linguística
Centrada no Uso, fatores sociocognitivos entram em ação no Nesta seção buscaremos oferecer argumentos centrados
processamento das sentenças. Isso significa aceitar a impor- no uso para a proposta de que a mudança não se dá de modo
tância da utilização de informações contextuais na criação e aleatório, apresentando, ao contrário, uma regularidade sensível
interpretação dessas sentenças, o que também implica uma visão tanto no que diz respeito aos mecanismos através dos quais ela
adaptativo-funcional do sistema linguístico que serve de base à ocorre, quanto da natureza dos elementos nela envolvidos.
comunicação verbal. Nesse sentido, temos uma visão de gramá- Buscaremos também argumentar que a mudança tem uma
tica emergente, que reflete a criatividade humana para encon- [ortíssirna propensão para a unidirecionalidade, no sentido de
trar a forma ótima e expressiva de comunicação em diferentes que os elementos tendem a desenvolver, com o tempo, valores
contextos. Esses aspectos levam à visão das sentenças possíveis mais subjetivos e abstratos, além de se tornarem internamente
de uma língua como não sendo resultantes da união lógica de menos composicionais, e não o contrário.
74 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguisuca: uma abordagem baseada no uso 75

Cabe registrar que essa regularidade se manifesta em tipos fica originalmente vontade, desejo, passa ser utilizado como um
prototípicos de mudança que se repetem através dos tempos e auxiliar marcador de futuro (ex: Against my will > I will go6).
de diferentes línguas. Tipos de mudança que devem ser com- Ocorre que várias outras línguas apresentam esse processo de
preendidos como tendências possíveis, ou até mesmo prováveis, mudança, em que um elemento de valor volitivo tem seu uso
e não como processos absolutos que se repetem através de estendido para a expressão da categoria gramatical de futuro.
qualquer item possível em um ponto no tempo específico e em Entre essas línguas, estão o grego, o búlgaro, o suaíli, o kimbun-
uma língua específica, como os que os neogramáticos postula- do, e o mahiba.? Essa tendência reflete um processo de trans-
ram para a mudança sonora. ferência entre domínios, já que um termo que expressa o sen-
timento de desejo em relação a algo do mundo biossocial, ou
A visão da mudança como uma tendência de seguir deter-
seja, algo de nossa realidade concreta ou abstrata, tem seu
minadas trajetórias prototípicas, e não processos absolutos, tem
sentido transferido para o domínio do tempo (o que se deseja,
suas motivações nos princípios cognitivos e interativos que se
só se alcança posteriormente, ou seja, só se concretiza no futu-
manifestam no uso da língua. Essas motivações, já apresentadas
ro), passando a funcionar como um auxiliar indicador de futuro.
em seções anteriores deste livro, estão relacionadas à nossa
Entretanto, esse processo, como, aliás, já mencionamos
capacidade de produzir textos coesos e coerentes em situações
anteriormente, manifesta-se em um contexto morfossintático
reais de comunicação. Essa capacidade reflete aspectos cogni-
específico e em uma situação comunicativa determinada. Essas
tivos e mecanismos sociointerativos.
coordenadas contextuais vão acionar a relação metafórica. Con-
A noção de que nossas habilidades cognitivas não atuam de
sequentemente, essa mudança, motivada cognitivamente, está
modo absoluto, concretizando-se apenas em situações reais de
presente em várias línguas, mas não em todas, já que é neces-
uso, atribui a essas habilidades um caráter localizado e criativo, sário que algum evento de uso, de algum modo, a impulsione.
típico de situações de improviso. É essa natureza adaptativa que É uma trajetória de mudança possível, dada a natureza de sua
impede que façamos previsões absolutas acerca da ocorrência ou motivação, mas não obrigatória. Assim, também não podemos
não de processos de mudança ou do momento em que eles devem afirmar que uma determinada língua que ainda não apresenta
ocorrer em uma língua. Há, então, fenômenos de gramaticaliza- um elemento volitivo indicando futuro venha a desenvolver esse
ção que ocorrem em várias línguas, mas não em todas, por isso uso ou quando isso iria acontecer. Mas se acontecesse, não
não há como prever a mudança, apenas analisar a possibilidade seria surpreendente.
de sua ocorrência, tomando como base tendências regulares.
Além dessa questão relacionada à possibilidade ou não de
Tomemos alguns exemplos de mudança por gramaticaliza- uma mudança específica ocorrer em uma determinada língua,
ção, que provê o surgimento de elementos de valor gramatical
como conjunções, verbos auxiliares e outras categorias de ele-
6. As duas expressões podem ser traduzidas respectivamente por Contra a minha
mentos que ajudam a organizar o texto nas diferentes situações vontade e Eu irei.
de comunicação. Vemos, no inglês, que o item will, que signi- 7. Suaíli, kimbundo e mahiba são línguas africanas.
Mudança lingu{stica: uma abordagem baseada no uso 77
76 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA

há um outro ponto importante que reflete o lado fortuito da Por outro lado, frases como O soldado está querendo
mudança linguística. Diz respeito ao nível de extensão da mu- morrer ou Maria está querendo ir embora, por exemplo, não
dança que se manifesta na língua. Ou seja, o grau em que um podem ser interpretadas com tendo valor proximativo, ou seja,
uso novo se estendeu a contextos inusitados, paralelamente ao como significando que "o soldado" está a ponto de morrer, ou
aumento de sua frequência de uso e à consequente automati- quase morrendo ou que "Maria" está prestes a sair. Isso signifi-
zação pelos usuários, que passam a tê-lo como uma estratégia ca que, em português, a perífrase querer + gerúndio não se
disponível no sistema da língua. gramaticalizou definitivamente como uma expressão fixa de
Há mudanças que não chegam a se estender para outros valor proximativo, diferentemente do que ocorre em outras
contextos muito distantes daqueles em que os usos originais línguas em que a perífrase correspondente pode ser empregada
eram vistos. Novamente os itens designativos de vontade ou em vários contextos (inclusive os apresentados acima, com
desejo nos fornecem bom exemplo. Em português - e algo morrer e ir embora), já tendo gramaticalizado, de forma mais
semelhante ocorre em várias línguas, como, por exemplo, o definitiva, o valor aspectual.
húngaro, o persa e a língua africana ewe - o verbo querer de- Esses exemplos envolvendo elementos com valor volitivo
senvolve um valor aspectual proximativo, indicando que o nos mostram que, embora nada possa garantir a ocorrência da
evento expresso pelo verbo está prestes a começar ou que já dá mudança ou seu grau de extensão, existem mecanismos cog-
sinais de que vai ocorrer. São casos como os que vemos em nitivos que atuam, de modo relativamente regular, no sentido
frases portuguesas do tipo Ele está querendo ficar gripado ou de restringir os possíveis caminhos pelos quais ela pode se
O tempo está querendo mudar. concretizar.
Podemos falar de mudança nesses casos porque querer Mas, se queremos demonstrar regularidades na mudança,
assume valores que não tinha anteriormente: perde seu sen- é interessante adicionarmos outros exemplos a esses, que en-
tido volitivo associado à ideia de vontade ou desejo, e passa a volvem itens volitivos. Para isso, retomemos alguns casos de
funcionar como auxiliar indicador de aspecto. Entretanto, é mudança mencionados anteriormente: ir (verbo pleno indican-
interessante notar que, no português, a perífrase com querer do movimento) > ir (verbo auxiliar indicando futuro); em boa
parece se restringir a alguns contextos específicos, limitando-se hora (adverbial de tempo) > embora (conjunção concessiva). A
a casos de sujeitos não humanos (como em O tempo está pergunta aqui é: o que esses casos têm em comum?
querendo mudar, A casa está querendo cair etc.) ou à possibi- Basicamente duas coisas. De um ponto de vista mortos-
lidade associada a doenças (como em Ele está querendo ficar sintático, em todos os casos os itens envolvidos se tornam mais
gripado). Em contextos como esses o verbo querer não pode ligados entre si. Isso fica claro na univerbação que gera a única
ser interpretado com seu sentido volitivo normal. Até porque palavra embora. Nos casos dos itens do inglês will e do português
tempo e casa não têm querer e ninguém, em sã consciência, querer e ir, os verbos se tornam auxiliares, passando a ocorrer
vai querer ficar gripado. obrigatoriamente ao lado de um principal para formar uma
78 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança lingufstica: uma abordagem baseada no uso 79

locução verbal. Ou seja, há, em todos esses casos, um movi- jazer o melhor) é historicamente anterior ao sentido em que pro-
mento em direção a uma fusão - ou pelo menos uma maior meter reflete o grau de certeza do falante em relação ao que fala
ligação - entre os itens envolvidos. (ex.: Ele promete ser um excelente jogador - no sentido de que
De um ponto de vista semântico e discursivo-pragmático, ele é uma promessa como jogador).
há, em todos esses casos, mudança de valores mais concretos A tendência à fusão e a consequente perda de composi-
para mais abstratos e, sobretudo, uma mudança em direção a cionalidade também não são exclusivas de casos de gramatica-
uma subjetivização (com aumento da expressividade consequen- lização. Formas compostas como pé-de-meia (significando
te da perspectiva do emissor) e de uma intersubjetivização (em poupança, economia) ou comigo-ninguém-pode (um tipo de
função de essa expressividade estar voltada para as expectativas planta) que, além de mais integradas, apresentam um sentido
do receptor). não previsível a partir de seus constituintes. Veremos detalha-
Voltaremos a falar mais detalhadamente sobre isso. O damente mais adiante que casos como esses exemplificam
importante agora é compreendermos que esse processo em processos de lexicalização, em que o resultado da mudança é
direção a sentidos mais abstratos e inter/subjetivos ocorre nas um elemento representacional, típico do léxico, que se consti-
mudanças exemplificadas acima. No caso da trajetória em boa tui de termos designativos de fatos associados ao mundo bíos-
hora> embora, em que a construção se torna um conectivo, social, aqui entendido como o conjunto de dados concretos ou
indicando a relação de concessão existente entre duas informa- não, relativos à realidade na qual vivemos.
ções fornecidas no texto, dirigindo assim a recepção do ouvinte Resumindo o que dissemos até agora sobre a regularidade
para essa interpretação. No caso de will, querer e ir, a indicação da mudança, o fato de que processos específicos de mudança
de noções temporais e aspectuais reflete a visão que o falante recorrem tão frequentemente em línguas não relacionadas ou
quer passar do evento indicado pelo verbo. O sentido novo das em épocas diferentes da evolução de uma mesma língua, tem
expressões é mais abstrato e reflete a perspectiva dos usuários sua motivação em processos cognitivos e comunicativos, pelos
em relação à informação transmitida. quais os sentidos pragmáticos se tornam convencionalizados e
Esse caminho em direção a valores mais abstratos e inter/ reanalisados como polissemias semânticas. Em particular, esses
subjetivos não se restringe a mudanças por gramaticalização, processos estão associados a mecanismos de inter/subjetificação
podendo ser visto na mudança semântica de um modo geral. O e inferência sugerida, fenômenos que refletem questões de
fato de o item cabeça, compreendido originalmente como parte caráter interativo e cultural, o que nos leva a pensar os caminhos
superior do corpo, desenvolver usos como os que vemos em Ele efetivos da mudança não como absolutos, mas como possíveis,
perdeu a cabeça (juízo) e Ele é o cabeça (líder) do grupo, exem- já que constituem o reflexo da atuação contextualmente locali-
plifica a mudança para valores mais abstratos, avaliativos e ada de mecanismos cognitivos e comunicativos.
subjetivos. O verbo prometer, por exemplo, em seu sentido de Outro ponto importante no que se refere à regularidade
obrigação imposta ao falante por ele mesmo (ex.: Ele promete da mudança é sua tendência à unidirecionalidade. O elemen-
80 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança lingufstica: uma abordagem baseada no uso 81

to OU expressão que originalmente apresenta sentido repre- de conhecimento, que tende a caminhar no sentido concreto>
sentacional, fazendo referência a dados mais objetivos refe- abstrato. O princípio é relativamente simples: utilizamos con-
rentes ao nosso mundo biossocial, passa a ser utilizado para ceitos mais concretos e mais fáceis de serem conceptualizados e
expressar noções gramaticais e veicular estratégias comunica- transmitidos comunicativamente para a expressão de valores mais
tivas e atitudes subjetivas dos usuários. Por outro lado, os abstratos e, portanto, mais difíceis de serem conceptualizados.
elementos envolvidos tendem a se tornar mais idiomáticos, A metáfora constitui, portanto, uma estratégia cognitiva que
perdendo valor literal, e, em termos morfossintáticos, tornan- permite que nosso pensamento caminhe por conceitos abstratos.
do-se mais fundidos entre si. Todo esse processo tende a se Essa estratégia se reflete nas línguas naturais de um modo geral
dar de modo gradual, ou não instantâneo, ou seja, os elemen- e pode ser vista em frases portuguesas do tipo Ele é um mala
tos vão mudando de sentido, perdendo características rnorfos- (mala = chato) ou Ele é o cabeça do grupo (cabeça = líder). Casos
sintáticas, na medida em que seu uso vai sendo estendido para como esses, tradicionalmente relacionados à noção de metáfora,
novos contextos.
reproduzem o mecanismo segundo o qual um elemento de valor
originalmente concreto é utilizado com sentido abstrato.
Ocorre, entretanto, que a metáfora não se dá por si mes-
A teoria da inferência sugerida na mudança linguística ma, ela se revela no evento comunicativo, manifestando-se
como uma boa estratégia expressiva, de um modo geral. Isso
Como vimos na seção anterior, as mesmas mudanças po- implica levarmos em conta mecanismos de natureza metoní-
dem recorrer em línguas não relacionadas, tendendo a caminhar mica, aqui entendidos como processos de natureza discursiva:
mecanismos que ativam implicaturas associadas ao material
na direção de expressar as perspectivas dos envolvidos no diá-
linguístico existente em um determinado contexto sintagmáti-
logo, refletindo, assim, mecanismos de subjetificação e inter-
subjetíficação. A questão agora é refletir sobre os processos que co, que é utilizado em uma situação extralinguística particular.
Chamaremos, com Traugott e Dasher (2005) esse processo de
veiculam essa trajetória de mudança. Os pesquisadores que
inferência sugerida.
atuam na área da mudança linguística não têm a mesma posição
em relação a isso. A literatura menciona a metáfora e a meto- O processo pelo qual a mudança se dá implica a existência
nímia, ressaltando as transferências de sentidos por domínios de um uso ambíguo que possibilita o desenvolvimento do sen-
cognitivos distintos ou a contiguidade existente entre esses tido novo através de uma implicatura. É o que ocorre nos
sentidos ou entre os elementos formais que veiculam esses exemplos a seguir, envolvendo o item aí:
sentidos no contexto morfossintático. A questão não é simples
e devemos tratá-Ia por partes. (7) a. Começou a chover forte. Só aí abri o guarda-chuva.

Começando a falar sobre a metáfora, podemos definir esse b. Começou a chover forte, aí abri o guarda-chuva.
processo como um mecanismo de transferência entre domínios c. Levou um tiro na cabeça, aí morreu na hora.
82 MÁRIo EDUARDO MARTELOTfA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 83

No exemplo (7a), aí apresenta valor anafórico, indicando (ii) essa expressão adquire um segundo padrão de uso, B,
algo mencionado anteriormente. Ou seja, aí faz alusão ao que apresenta ambiguidade em relação a A;
momento em que "começou a chover forte", citado na oração (iii) finalmente A se perde, ou seja, agora há apenas B.8
anterior. No exemplo (7b), a retirada do item s6 abriu uma
nova possibilidade de interpretação: podemos ainda entender Esse mecanismo descreve o que está na base do que cha-
que o falante abriu o guarda-chuva no momento em que "co- mamos de mecanismo de inferência sugerida na mudança lín-
meçou a chover forte". Entretanto, uma inferência de causa guística. Trabalhando com o contexto morfossintático dos ele-
passa a ser possível e o ouvinte pode fazer uma implicatura mentos linguísticos e com as informações extralinguíslicas,
conversacional ao associar o segundo evento (abrir o guar- falante e ouvinte negociam sentido de maneira interativa, ou
da-chuva) como a consequência do primeiro (chover forte). seja, o emissor, ao exercer seu turno comunicativo, sugere que
Em outras palavras, o item, que como advérbio espacial tinha o receptor infira novos sentidos, trabalhando com dados con-
uma relativa mobilidade no enunciado, passa a se fixar no textuais específicos daquela situação de comunicação.
início de uma oração não inicial, tomando seu lugar em uma Essa inferência ou implicatura pode ser meramente conver-
construção maior cuja função é estabelecer uma relação de sacional, ou seja, pode se manter naquele contexto de ambiguida-
causa-consequência entre os fatos expressos em estruturas de. Por outro lado, essa inferência pode se tornar convencional,
oracionais distintas. ou seja, pode se generalizar, incorporando-se às construções
Com esse processo, aí se reanalisa como uma conjunção disponíveis no sistema, o que ocorre com a adoção definitiva
conclusiva. Com a convencionalização da implicatura que leva do novo sentido e a extensão para contextos de uso mais gerais.
a esse novo valor (ou seja, com o aumento de sua frequência Voltando ao caso dos usos de aí, é interessante lembrar que
e com os usuários adotando o novo uso de forma mais defini- esse item funciona originalmente como um advérbio espacial
tiva e geral), aí passa a ser utilizado em contextos de relação dêitico, ou seja, um elemento que localiza objetos no espaço,
causa-consequência em que não há ambiguidade alguma. É o tomando como base o lugar em que se encontram falante e ou-
que ocorre em (7c): não há como ver neste exemplo nenhuma vinte. Assim, em oposição a aqui, por exemplo, que indica algo
alusão anafórica a possíveis partes da oração anterior e aí fun- próximo ao falante, aí apresenta algo próximo ao ouvinte. Como
ciona como conjunção conclusiva. Esse mecanismo de mudan- costuma acontecer com dêiticos, aí passa a assumir valor anafo-
ça, que implica um estágio intermediário de ambiguidade, rico, indicando não mais algo no mundo real, mas algum termo
identifica-se com o chamado de ovetlap model, que, conforme mencionado anteriormente. Esse novo uso com função anafórica,
já mencionamos anteriormente, implica três estágios: exemplificado em (7a), apresenta valor temporal, já que faz alu-
são ao momento em que "começou a chover forte". Em seguida,
(i) há uma expressão linguística A, que é recrutada para
cumprir gramaticalização; 8. Já vimos que nem toda gramaticalização chega ao estágio (iii).
84 MÁRIO EDUARDO MARTELO'ITA Mudança linguisuca. uma abordagem baseada no uso 85

ocorrendo entre duas orações que sugerem uma relação de causa relacionados à possibilidade de existência de sentenças não
e efeito, o item assume função de conjunção conclusiva. composicionais. Nesse sentido, antes de entrarmos nos proces-
Além da construção envolvendo o pronome espacial dêitico sos de mudança que queremos analisar, vejamos algumas noções
aí, outros conectivos portugueses parecem ter seus usos carac- básicas da teoria das construções gramaticais que estão mais
terizados por esse processo dêitico > anafórico > conjunção, diretamente associadas aos fenômenos aqui analisados.
passando a instanciar construções conclusivas. É o que ocorre
com por isso, porém, então, portanto, entretanto, tanto que, entre
outros. Todos eles refletem o que Heine, Claudi e Hünnemeyer Algumas considerações sobre a noção de construção
( 1991) chamam de gramaticalização espaço> tempo> texto: uma gramatical
trajetória translinguística segundo a qual itens de valor espacial
- em sua maioria dêiticos - passam a assumir função textual, Abandonando a rígida separação entre léxico e sintaxe, a
podendo ou não, intermediariamente, assumir sentido temporal. chamada gramática das construções surgiu como a principal
Podemos ver nessa trajetória um processo de natureza alternativa à visão gerativa de Chomsky. Segundo esta proposta,
metafórica, já que ocorre uma transferência do mundo das ex- a unidade preliminar da gramática é a construção gramatical,
periências sensório-motoras, dos objetos visíveis, dos processos que pode ser caracterizada por qualquer elemento formal dire-
cinéticos, das relações espaciais e temporais para o mundo tamente associado a algum sentido, alguma função pragmática
do discurso. Entretanto, esse processo metafórico é acionado ou alguma estrutura informacional.
por contextos específicos de uso, como argumentamos com o
Desse modo, a noção de construção cobre uma grande
exemplo envolvendo aí.
variedade de unidades linguísticas, distribuindo-se num conti-
Essa relação entre mudança e contexto de uso, que tenta-
nuum que engloba desde morfemas simples, passando por
mos demonstrar nesta seção, associa-se ao fato de ser extrema-
palavras multirnorfêrnicas, expressões idiomáticas, sintagmas
mente comum, nas línguas naturais, a existência de sentenças
fixos com significado composicional, até padrões sintáticos
cujo sentido geral não pode ser previsto a partir da combinação
abstratos. Tendo em vista a noção de continuum, a diferenciação
dos valores de seus componentes. Isso se relaciona à noção de
entre elas se dá de forma gradativa e não discreta.
construção gramatical, vista como uma unidade linguística
complexa não composicional. Temos batido muito nessa tecla Por constituírem pareamentos de forma e sentido, as estru-
porque nossa intenção é explicitar que, na visão centrada no turas sintáticas das línguas, por hipótese, não podem ser descri-
uso, a mudança é consequente, entre outras coisas, da relação tas apenas por critérios morfossintáticos ou pelas propriedades
entre a diversidade de contextos e a criatividade humana no semânticas dos elementos que as compõem, já que o significado
sentido de buscar a forma ótima de comunicação, ou a mais da construção não equivale à soma dos significados de suas
expressiva, ou a que reflete a adoção de diferentes perspectivas unidades constituintes. Assim, Croft (2001, P: 18) propõe o
da cena comunicativa. Esses fenômenos estão diretamente seguinte modelo de estrutura simbólica para uma construção:
86 MÁRIO EDUARDO MARTELOITA Mudança !ingu{stica: uma abordagem baseada no uso 87

CONSTRUÇÃO o processo de gramaticalização tem sido definido como


um processo que afeta itens lexicais e construções sintáticas,
Propriedades sintáticas em determinados contextos que os leva a assumir funções gra-
Propriedades morfológicas FORMA maticais. Essa definição aponta para a relação entre os dois
Propriedades fonológícas fenômenos, já que focaliza o contexto morfossintático e prag-
mático do elemento lexical, apontando para uma unidade mais
~ ELO DE
J, CORRESPONDÊNCIA
complexa do que o item lexical em si. De fato, é mais correto
SIMBÓLICA dizer que uma construção que possui um determinado item se
gramaticalizou, do que afirmar que um item se tornou grama-
Propriedades semânticas tical. O mesmo ocorre com o processo de lexicalização, que
Propriedades pragmáticas SENTIDO também tem forte relação com o fenômeno da construção gra-
Propriedades discursivo-funcionais matical, já que implica fusão e univerbação, assim como perda
de composicionalidade. A diferença é que, neste caso, surge
um elemento de valor representacional.
Vejamos essa relação entre mudança linguística e constru-
Pode-se notar que o termo sentido abrange todos os aspec- ção gramatical através da análise de um processo de mudança
tos convencionalizados da função da construção, incluindo as que envolve o uso da construção um bocado de. A palavra boca-
particularidades da situação descrita no enunciado, as proprie- do designa originalmente uma porção que cabe na boca e é
dades do discurso em que ele ocorre e a situação pragmática, resultante da união de boca + o sufixo ado. Esse parece ser o
que envolve os interlocutores. De acordo com esse esquema, o
sentido que predomina no século XIV, como podemos ver nos
elo entre a forma e o sentido convencional é interno à cons-
exemplos a seguir, retirados do Boosco deleitoso (MAGNE, 1950),
trução. Isso quer dizer que estruturas conceptuais podem ser
texto do final do século XIV ou início do século XV:
universais, mas, em outros aspectos, construções são específicas
de cada língua.
(8) a. E nunca o rei come huu bocado seguramente, com
Recentemente, alguns autores têm tentado incorporar temor de peçonha ...
aspectos da teoria das construções gramaticais ao estudo da
b. Ca nom he dace nenhuüa cousa aaqueles que es-
mudança linguística, sobretudo, aos processos de gramaticali-
peram em engolir mui grave bocado que nom pode
zação e lexicalização. Aparentemente há um consenso no
seer escusado ...
sentido de aceitar que construções podem ser analisadas dia-
cronicamente, com o objetivo de descrever o modo como as
línguas, em seu constante movimento de mudança, adquirem Já vemos, no século XV, o item sendo empregado como
construções. uma medida de quantidade, como podemos observar a seguir,
88 MÁRIO EDUARDO MARTELOTTA Mudança linguística: uma abordagem baseada no USO 89

no trecho retirado do texto Um tratado da cozinha portuguesa do Det N1 de N2


século XV, de Gomes Filho (1994): Um bocado de terra

Um monte de coisa
(9) Levem 7 litros de mel ao fogo, e assim que levantar
fervura ponham no tacho 15 gramas de pimenta-do-rei- Uma pitada de gente

no. Deixem ferver um pouco mais, e comecem a pôr Uma pá de coisas

no mel fervente bocados da farinha dos biscoitos,


alternados com 450 gramas de erva-doce, também
É interessante observar que só podem ocupar a posição de
lançada aos bocados.
N 1 elementos que de algum modo se prestem a expressar a
Uma análise nos dados disponíveis no corpus do Português? noção de quantidade. Normalmente temos nessas estruturas:
indica que, aparentemente, a construção um bocado de N so- a) termos designativos de coisas que podem funcionar
mente começa a ser encontrada no século XVI, mas ainda com como containers: um bocado de, um punhado de, uma
valor mais próximo de seu sentido original, relativo à boca. pá de etc.;
Podemos ver isso na expressão um bocado de pão: b) termos designativos de parte ou fração de um todo:
uma porção de, uma gama de etc.;
(l0) Em todos estes trinta anos nao pôs pé em chao e tao
c) termos designativos de quantidade coletiva; um bando
pouco em muitos deles nao comeu coisa alguma ti-
de, grupo de uma cambada de etc.;
rando um bocado de pao molhado ou parte de uma
d) termos designativos de grandeza: um monte de, um
maça assada ou tâmara ...
montão de, uma montanha de etc.;
Somente a partir do século XVIII encontramos expressões e) termos designativos do ato de bater: uma paulada de,
do tipo um bocado de terra, um bocado de paciência c outras uma cacetada de etc.
construções em que bocado quantífica algo que não se relacio-
ne a alimentos. Este é o fato que nos interessa aqui. O item Esses dados nos mostram duas coisas importantes sobre
bocado passa a instanciar uma construção mais ampla e mais mudança. Uma delas é a interessante trajetória gradual que
generalizada na língua, que apresenta uma estrutura Det N 1 de caracteriza as alterações de uso do item bocado, partindo de algo
N2, 10 e que, semanticamente, indica quantidade. São exemplos que se pega com a boca para uma expressão de quantidade mais
dessa construção um pouco de açúcar, um monte de gente, uma geral em um processo de extensão bastante claro e até regular.
pitada de sal, uma pá de coisas, entre várias outras. Nessa mudança gradual, o elemento perde seu valor semântico
(dessemantização) e, paralelamente a isso, sofre uma espécie de
9. Disponível em: <http://www.corpusdoportugues.org/>. fusão que se manifesta na assimilação ocorrida na fala popular:
J O. Det indica determinante e N, nome. um mocado (que apresenta pronúncia semelhante a/umocado/).
90 MÁRIO EDUARDO MARTELOITA ~~ 91

Essa mudança é consequente da dessemantização, já que os


falantes já não mais atribuem a bocado uma relação com boca.
Mas essa é só uma parte da história. Por outro lado, chama
a atenção a existência de um padrão construcional do tipo Det
N 1 de N2 que se relaciona à expressão de quantidade. Esse
padrão construcional também exerce uma atração sobre o item
Capítulo 3
bocado, trazendo-o para seu campo gravitacional. A construção,
como um todo, não admite qualquer item já que, como vimos
acima, só podem ocupar o lugar de N 1 vocábulos com deter- Gramaticalização e lexicalização
minadas características.
Seria interessante brincarmos, fazendo criações de novas
dessas expressões. Se, para expressar uma quantidade razoável
de pessoas em contextos reais, utilizássemos expressões inexis- Passemos agora a tratar dos fenômenos específicos de
tentes na nossa língua, como um trem de gente, uma colina de mudança, chamados gramaticalização e lexicalização. Trata-se
gente, uma manada de gente, provavelmente seríamos compre- de processos graduais distintos, mas que apresentam caracte-
endidos. Ao contrário do que ocorreria se disséssemos um lápis rísticas semelhantes no que diz respeito à direção natural da
de gente, um papel de gente, um pensamento de gente, entre mudança que veiculam. Veremos por exemplo que, em ambos
outras instanciações que não preenchem o sentido desse tipo os casos, os elementos envolvidos sofrem fusão fonética, perda
de construção indicativa de quantidade. de sentido e de composicionalidade. Comecemos a observar
A questão, então, engloba duas perspectivas: de um lado isso no fenômeno da gramaticalização.
está a construção que funciona como um padrão para novas
formações e de outro o elemento que a compõe, que tem ca-
racterísticas semânticas compatíveis com a construção como GRAMATICAlIZAÇÃO
um todo e que cumpre alguns processos de mudança para ins-
tanciar essa construção. A teoria da gramaticalização desenvolveu-se, sobretudo, no
De posse dessas informações básicas podemos passar para contexto da Linguística Funcionalista norte-americana a partir
as considerações relativas aos processos de mudança caracteri- dos anos de 1970, quando houve um resgate do papel das trans-
zados como gramaticalização e lexicalização. formações diacrônicas nas explicações da sintaxe. Desenvol-
veu-se a partir daí a ideia de que o discurso motiva as transfor-
mações que sofrem os elementos linguísticos e que essas
transformações apresentam uma unidirecionalidade: caminham
92 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 93

do discurso para a gramática. Os elementos, com o processo de Funcionam no nível interpessoal os chamados elementos
gramaticalização, perdem a liberdade típica da criatividade con- processuais, que não têm exatamente aquela atribuição de
textualmente motivada do discurso e tornam-se mais fixos e mais caráter referencial, apresentando funções tradicionalmente
regulares. Assim, advérbios de lugar assumem função de con- definidas como gramaticais, funcionais ou interacionais, já que
junção e não vice-versa, vocábulos viram afixos e não vice-versa. refletem o processo de criação do texto em diferentes situações
Essa tendência reflete as pesquisas desenvolvidas pelos de comunicação. Por um lado, esses elementos incluem o re-
neogramáticos no século XIX, portanto, não é de se estranhar corte de tempo e aspecto que o falante quer dar ao enunciado,
que o trabalho dos linguistas americanos dialogue diretamente o tipo de relacionamento lógico com o qual busca relacionar
com as pesquisas desenvolvidas na Alemanha por linguistas como as informações transmitidas, o tipo de modalização que usa
Bernd Heine, Tania Kuteva e Christian Lehmann, por exemplo. para marcar uma posição em relação ao que diz, entre outras
coisas. Por outro lado, a construção do enunciado também im-
Nesse contexto teórico, gramaticalização é definida como
plica marcas de pressuposição, mecanismos de atenuação de
um processo de mudança linguística unidirecional, segundo o
assertividade, e outros dados que refletem algum cuidado com
qual itens lexicais e construções sintáticas, em determinados
a recepção do ouvinte.
contextos, passam a assumir funções gramaticais e, uma vez
gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gra- A função dos elementos gramaticais ou processuais deve
maticais. Seguindo esse processo, o elemento deixa de atuar no ser vista como sendo expressa por:
nível representacional, característico dos elementos que fazem a) elementos mais fixos e regulares, que assumem restri-
referência a dados mais objetivos associados ao nosso mundo ções gramaticais de um ponto de vista mais formal,
biossocial, para atuar no nível interpessoal, que engloba as como manifestação de relações de ordenação, junção
expressões de valor processual, ou seja, aquelas cujas funções de orações e sintagmas, atribuição de tempo e aspec-
estão relacionadas aos processos através dos quais o falante to. Aí se enquadram os conectivos, os auxiliares, os
elabora seu enunciado para um determinado ouvinte em um clíticos, os afixos etc.;
contexto específico de uso. b) elementos sintaticamente mais livres, que veiculam
Vejamos com mais detalhes as diferenças entre os elemen- estratégias discursivo- pragmáticas, indicando a atitu-
tos representacionais e os elementos interpessoais. Dizemos de ou a perspectiva do falante em relação ao conteúdo
que apresentam sentido representacional itens ou expressões transmitido ou sua preocupação com a recepção des-
que fazem referência a dados do universo biossocial, designan- se conteúdo pelo ouvinte. Nesse grupo estão os mo-
do, em termos muito gerais, objetos, entidades, sentimentos, dalizadores, os marcadores discursivos, os retomadores
ações e qualidades. Normalmente esses elementos pertencem de assunto, os marcadores de contraexpectativa, os
à classe dos chamados elementos lexicais, que engloba os subs- indicadores de pressuposição, os iniciadores de fala,
tantivos, os verbos e os adjetivos. e outros elementos interpessoais;
94 MÁRIO EDUARDO MARTELOTTA
Mudança linguistica: uma abordagem baseada no tlSO 95

Nos dois casos, os elementos perderam sua função repre- do verbo haver, uma formação com a posposição de haver ao
sentacional para serem usados com a função de organizar a verbo principal gerou uma nova formação, em que o verbo, ao
comunicação. Assim, o processo de gramaticalização incorpora I· . sofrer erosão fonética, passa a funcionar como uma desinência
não apenas elementos que indicam relações metatextuais entre indicadora de futuro. Neste caso, a mudança também ocorreu
proposições, mas também os que veiculam relações entre pro- já no latim, uma vez que o novo uso está presente nas línguas
posições e o contexto não linguístico, como os marcadores românicas de um modo geral.
discursivos, que indicam não apenas a perspectiva do falante,
mas também sua preocupação em relação a como a proposição
deve ser interpretada pelo ouvinte.
Passagem de verbo pleno para auxiliar

Vejamos agora alguns exemplos clássicos de gramaticalização:


É extremamente regular nas línguas naturais a passagem
de verbo pleno (que se emprega isolado) para auxiliar, em que o
verbo perde seu sentido representacional para indicar relações
Passagem de vocábulo livre para afixo
de tempo e de aspecto. O exemplo acima envolvendo o verbo
haver ilustra esse caso, já que foi seu uso como auxiliar que gerou
(11) a. Tranquila mente> tranquilamente
a desinência de futuro. Basta nos lembrarmos de que o uso de
b. Cantar hei> cantarei haver como auxiliar provém de seu valor como verbo pleno (que
significava, entre outras coisas, ter, possuir), uso que, aliás, ainda
Em casos como esses, elementos que originalmente fun- encontramos em fases antigas do português. Seguem abaixo ou-
cionavam como vocábulos independentes, prendem-se ao item tros exemplos da trajetória verbo pleno> auxiliar em português:
vizinho, incorporando funções típicas de morfemas. Pesquisas
como as desenvolvidas em Martelotta e Campos (2009) sugerem
(12) a. Ele vai para casa falar com Paulo> Ele vai falar
que, no caso de mente, temos, inicialmente, uma construção
com Paulo> Vai chover
com um ,adjetivo associado ao ablativo do substantivo feminino
b. Eu venho de casa dirigindo> Eu venho dirigindo
mente (com valor correspondente mente, espírito, vontade). Essa
> Eu venho trabalhando nesse projeto há anos.
expressão, ainda literal em latim clássico, não apresentava for-
ma fixa, podendo ocorrer com o adjetivo antes ou depois do item c. Tenho os trabalhos feitos> Tenho feitos os traba-
mente. No latim medieval, a expressão se mostra mais fixa (com lhos!fenho feito o trabalho> Tenho feito os trabalhos
mente ocorrendo mais significativamente depois do adjetivo), (pret. perf. comp.)
tendendo a ter seu sentido mais generalizado e afastado de seu
valor mais literal, num processo que se gramaticaliza definiti- Já analisamos anteriormente a gramaticalização do verbo
vamente no português e em outras línguas românicas. No caso ir como auxiliar de futuro no português, demonstrando que o
96 MÁRIo EDUARDO MARTELOITA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 97

novo uso é inferido a partir de um contexto de ambiguidade do Passagem de advérbio para conjunção
tipo indicado em "Ele vai falar com Paulo". Nesse contexto,
tanto podemos entender que "ele" vai a algum lugar com o in- o desenvolvimento de conjunções a partir de advérbios,
tuito de "falar com Paulo", quanto interpretar um valor de fu- de um modo geral, parece refletir uma transferência para a
. que "e Ie "f a Iar á com "P au I"o .
turo, ou seja, estrutura do texto de dados provenientes do mundo das expe-
Podemos afirmar que o mesmo processo ocorre com o riências sensório-motoras, dos processos cinéticos envolvendo
desenvolvimento dos auxiliares vir e ter. Vejamos inicialmente os objetos concretos, assim como as noções espaciais e tempo-
o caso de vir, que, assim como ocorre com ir, apresenta uma rais relacionadas a esses processos. O discurso é um processo
transferência do domínio do espaço para o domínio do tempo: a que se desenvolve no tempo ou no espaço. Assim, podemos
ideia de um movimento espacial em direção ao 'aqui' do falante utilizar expressões como no exemplo abaixo ou como mencionei
(ou seja, ao ponto no espaço em que ele se localiza) serve como anteriormente. Podemos também organizar as informações em
ponto de partida para a expressão da noção de um movimento nossos textos, colocando alguns argumentos acima, na base ou
no tempo em direção ao 'agora' do falante. A noção de que uma depois de outros, dizendo que os argumentos vão de encontro
ação vem se desenvolvendo no tempo corresponde ao chamado uns aos outros, apresentando a finalidade ou onde queremos
aspecto progressivo e é este o valor que vir assume no exemplo chegar com a apresentação desses argumentos, e uma série de
apresentado. É provável que o uso aspectual desse verbo tenha outros termos que indicam essa relação entre as dimensões do
surgido de contextos do tipo Eu venho dirigindo, que, literalmen- espaço, do tempo e do textual.

te expressa um processo durativo, que implica um movimento Isso levou Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991) a proporem
espacial em direção à localização do ouvinte no momento da um processo analógico chamado metáfora espaço> discurso, para
fala. Este é um contexto do qual se pode inferir o novo valor. caracterizar um tipo de mudança muito comum nas línguas
humanas, que leva elementos de valor espacial a assumirem
É também interessante a passagem de ter com valor de
funções típicas das conjunções. Na base desse processo está o
posse a ter auxiliar. A estrutura original "Tenho os trabalhos
fato de que a expressão de dados espaciais é mais básica e con-
feitos", que podia se apresentar com outra ordenação ("Tenho
creta do que a indicação das relações textuais. Vejamos os
feitos os trabalhos"), passa a ser usada com mais frequência
exemplos a seguir:
sem a concordância entre o particípio e o objeto direto. Assim
há uma reanálise do verbo, que passa a funcionar como um
auxiliar de aspecto frequentativo ou iterativo que aponta para (13) a. Lançados som fora do mudo e descenderõ aos jn-
o passado. Há evidências históricas de que essa mudança femos e outros se leuãtarõ e seu logo. (MALER,

começou em verbos transitivos tendo se difundido para os Orto do esposo, 1956)


intransitivos no século XVI. Isso aponta para um processo b. A primeira natureza da poonba he que en logo de
gradual da mudança. cantar geme. (ROSSI et aI., Livro das aves, 1965)
98 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA MUMnça ling,tística: uma aboTMgem baseaM no uso 99

c. A Serra estava totalmente deserta, e os pingos de Heine, Claudi e Hunnemeyer (1991) propuseram, então, uma
chuva que começavam a cair, logo se transforma- trajetória de mudança semântica que um elemento linguístico
ram em um verdadeiro temporal. Corpus D&G) tenderia a sofrer até atingir o status de conectivo:
d. ... e sentei-me na cama afim de vesti-Ia, mas acon-
tece que em cima da cama havia um ferro de passar
TEMPO
roupa usado a poucos instantes e logo quente
ainda, sentei-me sobre ele e foi uma dor enorme. /'
t
(Corpus D&G)
e. Falar do meu quarto! logo do meu quarto! bem o
meu quarto é uma verdadeira bagunça. É roupa pra
ESPAÇO
-, TEXTO
lá e roupa pra cá. Você sabe como é quarto de me-
nino. (Corpus D&G)
É a metáfora espaço> discurso acrescida do elemento tem-
A sequência de exemplos acima apresenta algumas ocor- po. O argumento básico é semelhante ao que está subjacente à
rências de logo que ilustram bem a gramaticalização sofrida por ideia da metáfora espaço> discurso: a expressão de dados espaciais
esse elemento linguístico. Comecemos observando as ocorrên- é mais básica e concreta do que a expressão de dados temporais,
cias apresentadas em (13a) e (13b), que já não existem no que, por sua vez, é mais básica e concreta do que a indicação das
português, pelo menos em sua variante brasileira. Elas demons- relações textuais. A metáfora, nesses casos, ocorre em função da
tram a origem espacial dos usos atuais, que, segundo Machado extensão analógica do uso espacial do termo para valores tem-
(1977), está no latim loco, ablativo locu-, que significa no lugar, porais e textuais. É o que vemos nos usos de depois, apresenta-
no sítio, no momento, logo. Por outro lado, os exemplos (13c) e dos a seguir, retirados do Corpus D&G:
(13d) apresentam respectivamente os valores temporal e textual
(conjunção conclusiva) do elemento. O exemplo (l3e) ilustra (14) a .... você chega assim ... tem ... tipo de frente pra ja-
um uso mais enfático de logo, que indica a posição do falante nela ... a porta é à minha esquerda aí toda parte
em relação ao que fala. Por apresentarem função interna ao da parede esquerda tem armário depois vem o
funcionamento da língua, no sentido de que marcam uma in- freezer ... a geladeira mais um armário ...
tenção do falante de dar uma direção argumentativa à sua fala, b .... eu encontrei com eles depois ... ( ) assim ... numa
os usos apresentados em (13d) e (13e) são gramaticalizados. altura de quarenta minutos a uma hora ... depois ...
Os valores de logo demonstram que, em muitos casos de c. esse Itamar é:: brincadeira ... é muito ruim ... não
desenvolvimento de conjunções, a polissemia do elemento está:: conseguindo nada mesmo ... o cara não tem
envolvido no processo apresenta também um valor temporal. a menor noção do que ele tinha que estar fazendo
100 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 101

lá ... é uma anta completa ... e totalmente desespera! arcaico, e perceber que muitos deles apresentavam, então, usos
despreparado pra ser presidente ... depois não tem como advérbio interno à cláusula (com valor de advérbio de
o menor controle mais sobre a economia a inflação modo) que não existem mais no português atual. É o que se pode
voltou a aumentar ... ver no exemplo (15) envolvendo usos de certamente como ad-
vérbio de modo, retirado do texto Orto do esposo, de Maler (1956):
Podemos notar que, no exemplo (14a), o item depois tem
um valor espacial, enquanto que, no exemplo ( 14b), apresenta (15) E muitas vezes a ciguidade dos olhos corporaes obra
valor temporal. Em (14c), o item perdeu aquele valor original estas taaes cuydaçõões, ca, asy como o beesteyro cõ
de sequencializador espacial/temporal e assumiu a função de olho çarrado tira mais certamente ao fito, bejm] assy,
adicionar argumentos em favor do que está sendo dito, passan- çarrada a vista da [carne per ciguidade, a outra vista da]
do a ter valor semelhante ao da construção além disso: trata-se, alma mais certamente chegua ao senhor Deus, que he
neste caso, de um uso textual. fito e fim prestomeyra, com a vissom das suas cuydações.

Os usos de certamente no exemplo acima possuem valor qua-


Passagem de advérbios de modo para modalizador litativo, já que modificam tirar ofito (mirar) e "chegar", indicando
o modo mais adequado ou eficaz de executar essas ações. Pesqui-
Traugott e Dasher (2005) propõem a existência de uma sas recentes têm detectado antigos usos com valor de advérbio
relação entre advérbios de modo e modalizadores, que aqui de modo de itens como seguramente e felizmente, por exemplo,
caracterizaremos como um tipo de advérbio sentencial, que que hoje se empregam basicamente como modalizadores.
indica uma atitude ou posicionamento do falante em relação ao
que fala. Ou seja, os modalizadores, ao contrário dos advérbios
de modo, não são modificadores do verbo, mas da sentença Passagem de advérbios de modo para marcador discursivo
como um todo e poderiam ser exemplificados com o uso de
certamente em sentenças como Certamente, vai chover amanhã. O uso de advérbios em -mente com valor de marcador
Segundo os autores acima mencionados, os usos sentenciais discursivo é mais difícil de ser observado. Esses casos refletem
se desenvolvem através da trajetória de gramaticalização advérbio um uso exagerado - e muitas vezes repetitivo - do elemento,
interno à cláusula> advérbio sentencial > marcador discursivo. sobretudo em situações em que ele não é expressivo e ocorre
Isso significa que os modalizadores são resultados de processos para preencher vazios ou interrupções na fala decorrentes da
de gramaticalização em que o advérbio que originalmente apre- perda do fluxo de raciocínio. Ocorre muito com os advérbios
sentava valor de modo assume a função de indicar a perspectiva como realmente e naturalmente.
do falante em relação ao conteúdo transmitido. É interessante Há, entretanto, outros exemplos mais claros dessa passa-
observar os valores de alguns desses elementos no português gem modo> marcador discursivo. É o que vemos em casos de
Mudança !ingu(stica: uma abordagem baseada no uso 103
102 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA

bem utilizado como um iniciador de turno. Nesse contexto, o Lopes e Duarte (2000) detectaram que, no século XIX, o uso
item, por um lado, dá tempo para o falante se preparar e orga- de vossa mercê passou a ser usado como referência a qualquer
nizar seus pensamentos antes de começar a falar, e, por outro, pessoa, independentemente de título ou posição. O aumento
liga a fala à expectativa do ouvinte, funcionando como um in- da frequência do seu uso levou à redução fonética: vossa mercê
trodutor ou um instaurador do contato com a audiência. É o > vossamecê > vossemecê > vosmecê > você e, em alguns contex-
que ocorre no exemplo (16), em que um informante do Corpus tos, ocê ou cê. Com esse processo, o item você entra definitiva-
D&G inicia sua fala logo após o comando do entrevistador: mente no quadro dos pronomes portugueses.
Algo semelhante ocorre com a gente, também usado na
(16) E: André ... eu queria que ago/ ... agora que você
e:: ...
terceira pessoa. Inicialmente reflete um SN com o artigo a e
me contasse uma história ... que tenha acontecido o substantivo gente, significando grupo de pessoas. Como em
com você e que você tenha achado engraçada ... alguns contextos o falante se inclui nesse grupo de pessoas, esse
ou triste ou constrangedora ... elemento perde seu valor composicional, passando a assumir valor
I: bem ah.: o fato engraçado foi a partir da data de de pronome de primeira pessoa do plural, especialmente no Brasil.
hoje né? seis de agosto de mil novecentos e no- Como tanto você quanto a gente são usados com verbo na
venta e três é que eu cheguei em torno de:: ... nove terceira pessoa, alguns pesquisadores propõem que o português
horas no:: no meu antigo estágio ... brasileiro está se transformando em uma língua de sistema
verbal uniforme similar ao do inglês, por exemplo, tendo sua
Fenômenos de mudança consequentes de gramaticalização morfologia verbal reduzida:

Até aqui vimos exemplos de processos regulares de grama- lSG - Eu falava


ticalização. Vejamos agora casos em que surgem mudanças mais 2SG - Você falava
gerais na estrutura das línguas como consequência de processos
3SG - Ele falava
de gramaticalização. Um bom exemplo disto podemos ver na
relação entre o desenvolvimento dos pronomes você e a gente e o
1PL - A gente falava
aumento da tendência de se utilizarem pronomes na função de 2PL - Vocês falavam
sujeito, (Nós saímos em lugar de 0Saímos) no português brasileiro. 3PL - Eles falavam I

O pronome vocêlvocês é utilizado com o verbo na terceira


pessoa, provavelmente em função de sua origem como pronome Em função disso, alguns autores propõem que o português
de tratamento. A forma original vossa mercê era utilizada até o brasileiro, diferentemente do que ocorre em Portugal, está se
século XVI para fazer referência ao Rei. De acordo com Cintra
(1972), o uso de vossa mercê foi estendido para designar uma I. Em alguns dialetos podemos encontrar as formas variantes vocês falava, eles falava
quantidade maior de níveis hierárquicos. Estudos como os de para a segunda e a terceira pessoa do plural, respectivamente.
Mudan.ça [rnguisiica: uma abordagem baseada no uso 105
MÁRIO EDUARDO MARTELOTTA
104

Ocorre que a ordenação pré-verbal mais antiga se mantém


transformando em uma língua de sujeito obrigatório." Essa é
em orações subordinadas. Em termos mais precisos, do portu-
uma mudança mais geral nas tendências gramaticais - sobre-
guês arcaico até pelo menos o século XIX, há uma variação na
tudo do português brasileiro - que pode ser vista como rela-
colocação desses elementos, que podem aparecer antes ou
cionada a processos localizados de gramaticalização.
depois do verbo, sendo a posição pré-verbal encontrada basi-
Outro fenômeno consequente de gramaticalização pode ser
camente nas subordinadas, cujo nível de encaixamento com a
visto no processo de mudança envolvendo as tendências de or-
principal é maior do que as coordenadas, por exemplo, que são
denação de advérbios de modo do latim ao português (MARTE-
tradicionalmente caracterizadas como orações independentes.
LOTTA,2005; MARTELOTTA, PROCESSyeSANTOS,2008). A posição
A questão agora é tentar explicar esses dados e o processo de
essencialmente pré-verbal latina desses advérbios dá lugar à gramaticalização nos oferece as bases para essa explicação.
tendência quase categórica de ordenação pós-verbal no português
Essas orações encaixadas têm níveis altos de gramaticali-
atual, exemplificada numa frase como Falar bem, em que o ad-
zação (HOPPER e TRAUGOTT;2003), sendo mais fixas em suas
vérbio de modo ocorre imediatamente após o verbo falar.
estruturas. Os dois verbos do exemplo 17 apresentam, inclusive,
Mas esse fenômeno não se dá de modo abrupto, começan- características de locução verbal do tipo verbo + infinitivo: "mãdas-
do a se fazer sentir em determinados contextos morfossintáticos: se atormentar" e "quiserem aprender". Isso significa que estamos
orações com maior nível de encaixamento, ou seja, orações diante de estruturas em que o primeiro verbo está se tornando
subordinadas, que funcionam como uma parte da oração prin- auxiliar e as duas orações estão tão encaixadas que estão quase
cipal, desempenhando uma função sintática dentro dos limites se tornando uma só com os dois verbos passando a formar uma
estruturais dessa principal. Como esse encaixamento se mani- locução, ou seja, uma estrutura unificada. Se aceitamos que essas
festa de forma mais sensível em orações reduzidas de infinitivo, estruturas são mais gramaticalizadas, podemos compreender que
é nesse contexto morfossintático que encontramos muitos elas são menos composicionais, mais fixas e mais cristalizadas
exemplos. Vejamos os trechos a seguir retirados respectivamen- (características básicas de estruturas gramaticalizadas).
te dos textos arcaicos Orto do esposo, de Maler (1956) e Ensi-
Estruturas cristalizadas, por sua própria natureza fixa, são
nança de bem cavalgar toda sela, de Piel (1944):
menos propensas à mudança, mostrando-se altamente conser-
vadoras. Sendo assim, as inovações sintáticas consequentes da
(17) a. ... se eu daly em diante leesse pellos liuros dos
busca de expressividade, sobretudo as relativas à ordenação voca-
gentiis, que entom me mãdasse be atormentar.
bular, tendem a começar em estruturas sintáticas menos grama-
b. E os que esto quiserem bem aprender, leamno de ticalizadas, como as orações justapostas ou as coordenadas, por
começo ... exemplo, para somente depois atingir as mais gramaticalizadas.
Assim, percebemos, observando os textos antigos, que as
2. Registra-se atualmente a tendência de os falantes brasileiros utilizarem o pronome posições pré-verbais deixam de ocorrer em orações coordenadas
sujeito, mesmo que a terminação verbal já indique a pessoa verbal: eu sei, em lugar de sei,
e justapostas e começam cada vez mais a ficar restritas a orações
por exemplo.
106 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 107

com alto grau de encaixamento ou gramaticalização, que são Entre esses fenômenos, podemos apontar a tendência, já
mais fixas e conservadoras. E, somente depois, essa ordenação apresentada anteriormente, em direção à junção de formas com
antiga desaparece também nas subordinadas, ficando restritas perda de estrutura fonética, de um lado, e generalização e abs-
a construções altamente formais e cristalizadas, como a arte de tratização de sentido, de outro. Os quatro parâmetros de gra-
bem falar ou em lexicalizações do tipo bem-querer, bem-estar, maticalização propostos em Heine e Kuteva (2007) demonstram
bem-fazer, bendizer, benzer, entre outras com o elemento bem; bem essa tendência à unidirecionalidade, quando vistos atuan-
e malconfiar, maldizer, mal-estar, malfazer, malferir, malparar, do juntos no fenômeno da mudança:
malquerer, mal-usar, entre outras com mal.
A existência dessas lexicalizações, desenvolvidas a partir
de processos de regularização de estruturas sintáticas adv. + Extensão (ou generalização de contextos)
verbo (inf) , sugere que a proposta do funcionalista de que a
morfologia de hoje é a sintaxe de ontem apresenta algum fun- Caracteriza-se pelo desenvolvimento de usos em novos
damento. Além disso, aponta para a impossibilidade de uma contextos. Os elementos envolvidos no processo assumem, com
separação categórica entre léxico e sintaxe, ressaltando a im- a mudança, um novo conjunto de contextos de uso, assim como
portância da noção de construção, que enfoca a interface entre as características estruturais deles decorrentes. A extensão é
os planos fonológico, morfossintático e conceptual. um fenômeno eminentemente gradual.
O princípio da extensão envolve componentes de natureza
sociolinguística, discursivo-pragmática e semântica. O compo-
GRAMATICAlIZAÇÃO E UNIDIRECIONAlIDADE nente sociolinguístico tem a ver com o fato de que uma inovação
na língua surge de um ato individual e vai se estendendo para ou-
o processo de gramaticalização é normalmente caracteri- tros falantes e - pelo menos em termos ideais - difunde-se por
zado como unidirecional, no sentido de que elementos repre- toda a comunidade de fala. O componente discursivo-pragmático
sentacionais se tornam gramaticais e não o contrário. Esse é um envolve o espalhamento do item ou da construção para novos
dos pontos mais debatidos da teoria da gramaticalização, tendo contextos discursivos ou pragmáticos, como demonstramos, por
alguns autores apresentado argumentos contrários a essa pro- exemplo, com o desenvolvimento da expressão um bocado de.
posta, oferecendo, inclusive, exemplos de mudança na direção O componente semântico, por sua vez, atribui ao elemento um
inversa. Embora admitam a existência de processos inversos, novo valor, que emerge dos novos contextos.
os estudiosos da gramaticalização frisam o caráter idiossincrá- A noção de que um elemento ou expressão tem seu sen-
tico desses contraexemplos e sua insignificância estatística tido estendido para novos valores tem relação com o princípio
diante da abundância de casos de gramaticalização. Mas seus apresentado por Werner e Kaplan (1963), chamado princípio da
principais argumentos estão baseados na regularidade de deter- exploração de velhos meios para novas funções. De acordo com
minados fenômenos relacionados ao uso da língua. esse princípio, para criar novos rótulos não inventamos palavras
108 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguística. uma abordagem baseada no uso 109

novas, mas aproveitamos o que já existe na língua. Assim, no A decategorização, em termos mais simples, constitui uma
caso da mudança por gramaticalização, o material para o desen- mudança de classe gramatical. Ocorre com a maioria dos exem-
volvimento de novos elementos gramaticais não é simplesmente plos apresentados neste livro. Podemos observar esse fenômeno
inventado, mas retirado dos elementos ou expressões de natureza nos casos em que os elementos se tornam mais fixos, como
lexical que funcionam no plano representacional, sendo, pelo acontece no desenvolvimento de auxiliares a partir de verbos
menos em princípio, mais delineáveis semanticamente. plenos e de conjunções a partir de advérbios. Podemos observar
também nos casos em que os elementos se tornam mais livres,
passando a veicular estratégias discursivo-pragmáticas como
Dessemantização (ou bleaching, redução semântica) nos usos dos marcadores discursivos, que perdem restrições de
caráter morfossintático, na medida em que passam a funcionar
Caracteriza-se pela perda de conteúdo semântico. Os
como um elemento interpessoal.
elementos envolvidos no processo de gramaticalização perdem
valor representacional, e, ao assumir a nova função gramatical,
adquirem funções de natureza pragmático-discursiva. Ocorre Erosão (ou redução fonética)
que, ao ser utilizado em novos contextos (extensão), o elemen-
to tende a perder parte de seu sentido original ao ser reinter- Caracteriza-se pela perda de substância fonética. O ele-
pretado nesses novos contextos: o uso de uma expressão lin- mento tende a sofrer coalescência (fusão de formas adjacentes)
guística X em um contexto Y implica que X perca parte de seu e condensação (diminuição de forma).
sentido original, ou seja, aquele que é incompatível com Y A erosão é normalmente vista como uma consequência da
Esse fenômeno pode ser exemplificado através do desen- frequência de uso do item ou da construção. Esse processo
volvimento do valor proximativo de querer, demonstrado ante- implica univerbação (HOPPER e TRAUGOTI; 2003), em que
riormente. Em contextos como o de O tempo está querendo construções inteiras são envolvidas no processo, como ocorre
mudar, não se aplica o sentido volitivo do verbo e apenas são com em boa hora > embora, ou mera perda fonética como o
ativados os traços originais do sentido do verbo que se aplicam desaparecimento de sílabas, como vemos na passagem você>
a esse contexto. Um desses traços é a noção de futuridade que cê (VITRALe RAMOS,2006), que vemos no português do Brasil,
se associa necessariamente ao ato de desejar. ou de tonicidade, como ocorre com mente na passagem traqui-
Ia mente> traquilamente.

Decategorização (ou mudança categoria/)


MOTIVAÇÕES PARA GRAMATICALlZAÇÃO
Caracteriza-se pela perda de propriedades típicas das for-
mas fonte, com a aquisição de novas características morfossin- A literatura apresenta algumas motivações para a gramati-
táticas ou discursivas. calização. Vejamos algumas delas.
110 MÁRIO EDUARDO MARTELOITA Mudança linguistica: uma abordagem baseada no uso 111

Motivações comunicativas modo geral. No caso específico da gramaticalização, a transfe-


rência se dá pelo processo segundo o qual expressões linguísticas
As motivações mais fortes não apenas para a gramaticali- de natureza lexical- ou menos gramatical- são utilizadas para
zação, mas para a mudança linguística de modo geral estão em a expressão de funções gramaticais. Nesse caso, a metáfora es-
fatores de natureza comunicativa. Esses fatores, aliás, também paço> discurso de Heine, Claudi e H ünnemeyer (1991), que
se manifestam como motivadores da unidirecionalidade da mencionamos anteriormente, constitui um bom exemplo.
mudança. Vejamos alguns deles.

b) A negociação do sentido por falante e ouvinte no ato da


a) A necessidade de expressar domínios abstratos da comunicação
cognição em termos de domínios concretos
Como já vimos anteriormente, os processos de natureza
Um dos fatores que motiva a gramaticalização e sua dire- metafórica não ocorrem por si mesmos, manifestando-se, de
cionalidade é a necessidade de utilização de formas linguísticas um modo geral, como uma boa estratégia expressiva nos dife-
cujo sentido é concreto, mais facilmente acessível, delimitável e rentes contextos comunicativos. Isso implica levarmos em
representacional para expressar um sentido menos concreto, me- conta mecanismos de natureza metonímica, aqui entendidos
nos facilmente acessível e delimitável e de natureza interpessoal. como um processo discursivo: um mecanismo que ativa impli-
A ideia básica tem a ver com o fato de que nosso pensamento caturas associadas ao material linguístico existente em um
trabalha inicialmente, e com mais facilidade, com informações determinado contexto sintagmático, que é utilizado em um
provenientes do mundo concreto, já que elas são percebidas evento de uso particular: o mecanismo de inferência sugerida.
por nossos sentidos corporais. As informações mais abstratas O processo pelo qual a mudança se dá implica a existência
provêm de uma realidade não perceptível pelos sentidos, sendo, de um uso ambíguo que possibilita o desenvolvimento do sen-
portanto, mais difíceis não apenas de serem conceptualizadas tido novo através de uma implicatura. É o que ocorre, de um
pelo indivíduo, como também de serem transmitidas para os modo geral, nos exemplos apresentados ao longo deste livro.
interlocutores. Nosso pensamento, tendo natureza imaginativa,
estrutura uma realidade abstrata a partir de dados concretos.
c) Atendência dos ouvintes para selecionar estruturas
Esse processo analógico, que efetua a transferência de deter-
ótimas
minados dados de um domínio de significação para outro se
identifica com o que chamamos de metáfora. o processo metonímico mencionado acima reflete a ten-
Os processos metafóricos constituem, portanto, uma estra- dência de os falantes se valerem dos contextos disponíveis para
tégia cognitiva que permite nosso pensamento navegar por otimizar a comunicação, assim como de os interlocutores bus-
conceitos abstratos e estão presentes nas línguas naturais de um carem, nesses contextos, informações que auxiliem no proces-
112 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguistica: uma abordagem baseada no uso 113

so de comunicação, propiciando um menor esforço de interpre- os elementos de valor gramatical, que, por não possuírem função
tação. Ou seja, trabalhar com as informações contextuais representacional, não apresentando assim informações seman-
implica utilizar dados compartilhados, diminuindo a atenção na ticamente imprescindíveis, sofrem erosão mais facilmente.
decodificação do material estrutural que se ouve. Nesse sentido, parecem estar emparelhados, em termos
comunicativos, a importância da informação e a quantidade de
d) A tendência dos falantes para usar expressõesnovas e forma utilizada para expressá-Ia. Mais tarde, Givón desenvolveu
extravagantes essa ideia, e, criando subprincípios de iconicidade, relacionou
essa conexão entre a quantidade de informação e a porção de
É fato aceito na literatura funcionalista que há contextos forma utilizada para expressá-Ia com o subprincípio da quanti-
comunicativos em que é interessante utilizar a forma frequen- dade, que prevê que informações maiores, mais importantes ou
te e, portanto, mais comum, que está disponível no sistema da menos previsíveis tendem a ser expressas com maior quantida-
nossa língua. Esse seria o modo mais prático e rápido de se de de materiallinguístico.
estabelecer comunicação. Por outro lado, há contextos em que É claro que isso passa por efeitos associados à frequência
esta forma, exatamente por ser frequente e comum, mostra-se do elemento linguístico, sua menção ou não em um contexto
inexpressiva. Nesses casos, a tendência é o falante buscar formas próximo, bem como do nível de dificuldade que os usuários têm
de comunicação novas e extravagantes que, chamando a atenção de conceptualizar as informações por ele expressas. Isso leva ao
do ouvinte, dão mais poder expressivo ao discurso. Isso nos leva conceito de marcação, que normalmente é avaliado segundo
às noções de iconicidade, marcação e frequência. três critérios:

a) Frequência de distribuição: a categoria marcada tende a


e) lconicidade, marcação e frequência
ser menos frequente, portanto, cognitivamente mais
Podemos compreender iconicidade como uma motivação saliente do que a correspondente categoria não marcada;
para os fenômenos linguísticos ocorrerem de uma forma ao b) Complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser
invés de outra, ou seja, como uma inclinação oposta a uma mais complexa do que a correspondente não marcada;
outra tendência existente nas línguas: a arbitrariedade. Givón c) Complexidade cognitiva: a categoria marcada tende a
(1975) proveu um argumento essencialmente icônico para a ser cognitivamente mais complexa, em termos de esfor-
gramaticalização e sua unidirecionalidade. O autor argumentou ço mental, atenção demandada e tempo de processa-
que relações semânticas estão associadas aos padrões formais mento do que a não marcada.
usados para expressá-Ias. Assim, levantou a hipótese de que a
informação lexical de caráter representacional tende a ser ex- Vejamos como esses três critérios podem ser relacionados
pressa por formas plenas estruturalmente mais complexas e que ao processo de mudança de um modo geral e, sobretudo, no
114 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança lingufstica: uma abordagem baseada no uso 115

caso de gramaticalização. Um item - ou uma construção - Sabendo que os elementos linguísticos podem perder
começa a ser utilizado com muita frequência em um determi- sentido representacional e complexidade estrutural, passando
nado contexto. A alta frequência possibilita ao usuário trabalhar a funcionar no nível interpessoal, não é difícil compreender que
com o item ou a construção mais automaticamente. Com isso essas alterações de uso venham a gerar novas mudanças na
o item - ou a construção - perde em força expressiva e em estrutura da língua. Ou seja, os usuários podem buscar outras
estrutura fonética. formas para expressar a ideia indicada pelo item que cumpre o
Podemos observar esse fato no uso da forma obrigado, em processo de mudança, concretizando o fenômeno de renovação
contextos de agradecimento: essa forma é tão convencionalizada (HOPPER e TRAUG01T; 2003). Essas novas formas tendem a

que perde sua motivação original na mente dos falantes, que surgir no uso da língua e a ser provenientes de elementos da
já não têm consciência de que estão se dizendo "obrigados" a mesma natureza e a cumprirem as mesmas trajetórias de mu-
retribuir o favor. E, de fato, seu uso é tão automático, que já não dança dos itens OLlexpressões que substituem. Mais uma vez
expressa uma gratidão real dos envolvidos, sendo dito por mera fazemos alusão ao princípio do uniformitarismo, apontando para
cortesia ou educação. Isso reflete sua perda de expressividade. a recorrência de processos gerais de mudança que se manifes-
tam em todos os momentos da evolução histórica das línguas.
Em termos de estrutura fonética, podemos notar que o uso
de obrigado, em contextos de agradecimento, é tão esperado O processo que tentamos apresentar acima caracteriza o
que o falante tende a pronuncíá-lo de modo simplificado ou uso da língua e seus movimentos de mudança de modo bastan-
te regular e podemos caracterizá-lo como fluxo básico de mu-
foneticamente reduzido: "brigado". Por outro lado, em outros
dança motivado pelo uso. Esse processo parte do aumento da
contextos menos frequentes, o termo tende a não aparecer re-
frequência dos elementos, passando pela perda semântica e
duzido: ninguém diria, por exemplo, a frase Ele foi "brigado" a
>(.

estrutural até chegar a formas reduzidas típicas de elementos


agir dessa maneira.
gramaticalizados e até, em alguns casos ao seu desaparecimen-
Isso significa que quanto mais frequente - e consequen-
to com a consequente busca de outras formas para a renovação
temente mais previsível - em um determinado contexto é a
do sistema gramatical.
informação transmitida por um elemento linguístico, mais ele
tende a ter sua estrutura fonética reduzida, até por uma questão
de economia. Ora, os itens de natureza gramaticais são mais Motivações associadas ao contato linguístico
frequentes já que pertencem a classes fechadas, constituídas
de poucos elementos. Esse mecanismo pode ser usado para A gramaticalização de um elemento de uma determinada
justificar a direção da mudança: aumento de frequência leva à língua pode ser acionada pelo contato com outra língua. Esse
erosão fonética e à perda de informatividade. Assim, a trequên- é um processo chamado replicação gramatical, que consiste na
cia, a estrutura fonética e a semântica do elemento têm impli- transferência de padrões ou sentidos gramaticais de LIma língua
cações importantes no processo de gramaticalização. para outra, quando ambas estão em situação de contato.
11 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA Mudança !ingu{stica: uma abordagem baseada no uso 117

Não vamos desenvolver muito esta questão aqui. Preten- Resumindo o que vimos até aqui sobre gramaticalização,
demos apenas registrar o mecanismo motivador da gramatica- podemos dizer que se trata de um processo de características
lização utilizando, como exemplo, o fenômeno apresentado em translinguísticas que provê o desenvolvimento de elementos
Heine e Kuteva (2005), envolvendo tariana, língua arawak fa- gramaticais nas línguas naturais. É um processo unidirecional
lada na área linguística da bacia do rio Vaupés, no território do motivado essencialmente por fatores cognitivos e comunicativos.
alto Rio Negro do nordeste do Brasil, que, segundo os autores, Muitas críticas são feitas à hipótese da unidirecionalidade
sofre vários tipos de influência do português. e muitos casos de mudança em direção oposta são apresentados
O fenômeno que queremos focalizar aqui é a extensão do para sustentar essa crítica. Entretanto, são raros os verdadeiros
pronome interrogativo para a função de relativo por falantes casos de antigramaticalização, termo utilizado por Haspelmath
jovens de tariana, por influência de seu contato com a língua (2004) para se referir ao que o autor considera casos reais de
portuguesa. Ou seja, os jovens estenderam o interrogativo da reversões do processo de gramaticalização, ou seja, mudanças
língua tariana para um novo uso com função de pronome rela- que vão do que normalmente é o ponto de chegada para o que
tivo e o fizeram em função de uma relação de equivalência que tende a ser o ponto de partida do processo.
estabeleceram com o português. Os jovens falantes de tariana A maioria dos processos apresentados como contraexern-
observam que, em português, o marcador usado para as inter- plos não constituem movimentos opostos à correnteza associa-
rogativas é o mesmo usado nas relativas e eles levam o mesmo da à mudança por gramaticalização, mas processos distintos,
processo para a sua própria língua, estendendo o uso de seu movidos por causas distintas e que, portanto, não refletem
pronome interrogativo para as cláusulas relativas. movimentos contrários à unidirecionalidade. Um desses pro-
cessos é o da lexicalização, que passaremos agora a analisar.
Deve ficar claro aqui que não se trata de um caso de em-
préstimo, já que os falantes de tariana não tomaram o pronome
relativo do português e sim adotaram em sua língua um padrão
gramatical característico da outra língua com que tiveram con- lEXICAlIZAÇÃO
tato e o aplicaram a elementos de sua própria língua. Por isso
dizemos que houve, em casos como esse, um processo de re- Há menos consenso no que diz respeito à definição de
plicação gramatical. lexicalização do que de gramaticalização, talvez por isso haja
É também importante registrar que essa transferência uma tradição bem menor de estudos de lexicalização associada
respeita a unidirecionalidade, já que os pronomes relativos (mais à mudança linguística. A lexicalização é normalmente definida
fixos e com comportamento semelhante ao das conjunções) são como um processo criador de novos elementos lexicais, modi-
mais gramaticais do que os interrogativos: era, portanto, de se ficando ou combinando elementos já existentes. Embora tenha
esperar que o interrogativo se transformasse em relativo, e não muito em comum com a gramaticalização, existem motivos que
vice-versa. levam alguns autores a tratarem esses dois processos como
118 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguisuca: uma abordagem baseada no uso 119

distintos e essa é a visão que adotaremos aqui. Enquanto gra- festas normalmente infantis ou juvenis), até um nível mais alto
maticalização leva o elemento a assumir função gramatical, de lexicalidade, como ocorre nas formas compostas e derivadas
funcional, não referencial, tornando-o mais produtivo, a Iexica- do tipo maria-sem-vergonha (um tipo de flor), pé de moleque
lização cria um elemento lexical, referencial, menos produtivo. (tipo de doce), que, além de mais integrados, apresentam um
Reproduzimos aqui a definição de Brinton e Traugot (2005) sentido menos previsível a partir de seus constituintes.
para lexicalização: Podemos ver mais exemplos de lexicalização em casos como
o de quadro-negro (formação de quadro + negro, que se estendeu
a mudança pela qual, em certos contextos linguísticos, os falan- para quadros de outra cor, também utilizados em salas de aula),
tes usam uma construção sintática ou uma formação de palavras bem-estar ou mal-estar (provenientes da prefixação dos advérbios
como uma nova forma significativa, contendo propriedades bem e mal ao verbo estar, na criação de substantivos, através da
formais e semânticas que não são completamente deriváveis ou
cristalização de uma ordenação pré-verbal antiga que caracte-
previsíveis a partir dos constituintes da construção ou do padrão
rizava esses advérbios), colher de chá (que embora não apresen-
da formação de palavras. Através do tempo, pode ocorrer mais
te a forma gráfica de uma única palavra, perdeu seu valor origi-
perda da constituição interna e o item pode se tornar mais lexi-
cal. (p. 96)
nal referente à indicação de tipo de colher para designar a ideia
de uma vantagem ou lucro que se concede a alguém, como na
sentença: Vou te dar uma colher de chá e deixar você sair na
De acordo com essa definição, lexicalização constitui uma
frente na corrida.). Esses casos se caracterizam pelo desenvol-
mudança diacrônica, portanto, gradual ou não instantânea,
assim como ocorre com a gramaticalização. O output da lexica- vimento gradual de novas formas de caráter lexical ou represen-
lização, portanto, é um item lexical (de caráter representacional) tacional a partir de elementos existentes na língua.
armazenado no inventário e que tem de ser aprendido pelos De acordo com Brinton e Traugot (2005), o processo de
falantes. Isso significa que seu valor, não sendo previsível a lexicalização não se confunde com processos comuns de for-
partir dos seus elementos formadores, apresenta alto grau de mação de palavras. Nestes casos, concretizados, por exemplo,
idiomaticidade. Nesse sentido, o resultado do processo de le- através da derivação (felicidade, descontente etc.), da composição
xicalização pode apresentar vários níveis de complexidade. (paraquedas, guarda-roupa etc.), ou da conversão (os prós, os
Formalmente, são itens representacionais arranjados em uma contras etc.), temos processos instantâneos de criação de pala-
escala de lexicalidade. vras. Isso diferencia esses processos dos mecanismos associados
Essa escala pode variar de um nível mais baixo de lexica- à lexicalização, que são prototipicamente graduais.
lidade, como ocorre em sintagmas idiomáticos fixos, do tipo Por outro lado, a lexicalização não pode ser vista como uma
diálogo de surdos (conversa, ou mais comumente discussão, em reversão da gramaticalização. Seu argumento se baseia na ideia
que os interlocutores não se entendem), ou em casa de festa de que uma reversão desse tipo seria logicamcnte impossível,
(espaço - não necessariamente uma casa - alugado para dados os tipos de mudança fonológica e apagamentos de fron-
120 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança Iinguisiica: uma abordagem baseada no uso 121

te iras envolvidas no desenvolvimento do processo da gramati- morfema gramatical se torna puramente fonológico. Nesses
calização. Levando em conta a ocorrência de fusão fonética, casos, pode-se falar em mudança gradual ou mesmo em perda
perda de sentido e composicionalidade, ampliação de contextos de status gramatical (como querem alguns autores), mas certa-
e outros traços que marcam gradualmente o processo de gra- mente não ocorre uma reversão de gramaticalização, já que o
maticalização, podemos entender o argumento das autoras: fi- resultado não é um elemento lexical, mas uma mera sílaba da
caria realmente difícil reconstruir partes perdidas de palavras nova palavra. Como essa nova palavra, como um todo, apresen-
ou expressões já foneticamente fundidas, assim como seria ta status de forma lexical, pode-se dizer que ela é um produto
semântica e pragmaticamente impossível recuperar sentidos de lexicalização.
dessemantizados ou perdidos. As mudanças acima caracterizadas como casos de lexica-
Os estudiosos do assunto consideram também como um lização apresentam alguns pontos em comum: (i) seu output
caso de lexicalização o fenômeno conhecido como fonogênese, constitui uma forma nova ou modificada que é semanticamen-
ou seja, a perda de estrutura característica de lexema polimor- te representacional/lexical e não funcional/indexical/gramatical;
fêrnico, que se torna um elemento monomorfêmico. A litera- (ii) semanticamente os itens diferem de suas fontes por serem
tura apresenta exemplos como o termo inglês tomorrow, que mais idiomáticos e menos composicionais; (iii) morfologicamen-
não é mais analisado como to + morrow e alone, não mais ana- te são mais fundidos; (iv) refletem um processo de mudança
lisado como all + one; ou como o caso do alemão moderno gradual, ou não instantâneo; (v) tendem a refletir baixa regula-
bleiben, cuja consoante inicial é um antigo prefixo (alemão ridade no que diz respeito às classes ou aos grupos de palavras
antigo be-liben). em que ocorre a mudança, apresentando efeitos menos siste-
máticos e pendendo para a idiossincrasia.
Podemos comparar esses casos com ocorrências do portu-
guês de antigas preposições latinas, originalmente empregadas Assim, lexicalização e gramaticalização, apesar de serem
como prefixo, cuja origem, pelo menos para o falante comum, processos distintos, apresentam similaridades:
se perdeu. É o caso de comer, considerar, colaborar (iniciadas a) perda de fronteira - nos dois processos há perda de
por com-lco-, com valor original de concomitância ou reunião), fron teiras: j unção e coalescência. 3

inibir, incorrer, enterrar, namorar [< enamorar] (iniciadas por b) perda de composicionalidade - nos dois processos há
tn-len-, com valor original de movimento para dentro); deformar, perda da motivação com o desaparecimento do senti-
demolir, depor (iniciadas por de-, com valor original de movi- do composicional.
mento de cima para baixo), entre muitos outros. c) unidirecionalidade - nos dois processos há uma uni-
Em casos como esses, em função provavelmente da perda direcionalidade que acarreta morfossintaticamente
gradual da consciência da estrutura original da expressão, aqui-
lo que, em um estágio anterior, era um item diferente, passa a 3. Coalescência é a redução de segmentos fonológicos, consequente da fusão de itens. É o
ser uma sílaba do vocábulo junto ao qual ocorre, ou seja, um que ocorre, por exemplo, com o português em boa hora > embora e com o inglês want to >tvanna.
172 MÁRIO EDUARDO MARTELOTIA Mudança linguística: uma abordagem baseada no uso 123

mais> menos fronteiras, assim como semanticamen- vem ser registrados e o primeiro deles relaciona-se ao fato de
te mais> menos composicional; e não o contrário. que normalmente na língua tudo se aproveita, de modo que a
mudança basicamente se dá com o desenvolvimento de novos
Esses três aspectos, que refletem uma forte tendência usos a partir de elementos já disponíveis aos falantes, ou com
da mudança linguística para uma determinada direção, são o surgimento de novos padrões morfossintáticos que se esten-
comuns à lexicalização e à gramaticalização. Em função disso, dem de padrões já existentes.
não é coerente pensar esses processos como caminhos inversos O segundo aspecto importante associado à regularidade
de mudança: um em direção ao léxico, outro para a gramática. da mudança tem a ver com os mecanismos cognitivos e socio-
Parece fazer mais sentido pensar em mecanismos diferentes, interativos que estão na sua base. Existem processos metafó-
com características distintas, que obedecem às mesmas tendên- ricos que nosso pensamento opera na utilização da linguagem.
cias em direção à perda de fronteiras e de composicionalidade. Como se manifestam no uso, esses processos normalmente
não ocorrem por si mesmos, sendo impulsionados por meca-
nismos de natureza metonímica discursiva. Ou seja, por um
CONSIDERAÇÕES FINAIS mecanismo que ativa implicaturas associadas ao materiallin-
guístico existente em um determinado contexto sintagmático,
A mudança é um fator inerente às línguas naturais, que que é utilizado em um evento de uso particular: o processo de
se desenvolveram para veicular a comunicação entre os seres inferência sugerida.
humanos. Os homens evoluem e mudam as concepções que
A atuação desses mecanismos leva, de um lado, a mudan-
estabelecem acerca do mundo em que vivem, que, consequen-
ças típicas de gramaticalização e, de outro, a mecanismos ca-
temente, acaba mudando com eles. Como essas concepções se
racterísticos de lexicalização. Esses dois processos não devem
estabelecem culturalmente, com os humanos interagindo entre
ser vistos como caminhos contrários de mudança, um condu-
si e cristalizando formas de significar a realidade, é na própria
zindo ao léxico e outro à gramática, mas como mudanças dife-
interação que essas concepções se alteram, motivando as mu-
rentes, com características distintas, que apresentam igualmen-
danças estruturais que as línguas sofrem com o passar do tempo.
te perda de fronteira entre elementos envolvidos, perda de
Essa é a visão centrada no uso que este livro busca transmitir: a
composicionalidade, com o desaparecimento do sentido literal
mudança não se dá apenas de geração para geração no processo
e unidirecionalidade que acarreta morfossintaticamente mais
de aquisição da linguagem, mas através de adultos e, sobretudo,
> menos fronteiras, assim como semanticamente mais> menos
de adolescentes utilizando e reorganizando o sistema linguístico.
composicional, e não o contrário.
Entretanto, essa mudança não é aleatória. Ao contrário,
ela se mostra bastante regular em sua natureza, nos mecanismos
que a veiculam e nos tipos de elementos através dos quais ela
se concretiza. Nesse sentido, alguns aspectos importantes de-
~~ 125

Desdobramentos do tema

Neste capítulo, são apresentadas algumas atividades que


têm por objetivo propiciar a investigação de questões discutidas
neste livro.
1) Com base em um texto arcaico, observe os aspectos
gerais da linguagem que o diferenciam de textos atuais. (Para
ter acesso a textos arcaicos, acesse <http://cipm.fcsh.unl.pt/>):
a) Tente encontrar divergências em relação à ortografia
atual.
b) Procure, em um texto arcaico, ocorrências da conjunção
porém, e compare aos usos desse item no português atual.
c) Observe a ocorrência de algum vocábulo que tenha, na
época, um sentido diferente do que ele apresenta atualmente.
d) Faça uma análise das tendências de ordenação dos
elementos argumentais (sujeito e objeto) em relação ao verbo
que caracteriza as cláusulas desse texto. Procure observar que
ordenação é mais comum no texto e compare com a ordenação
mais comum desses elementos no português atual.
e) Procure observar também a ordenação de advérbios de
modo e de intensidade, tentando detectar diferenças em relação
às tendências atuais de ordenação desses elementos.
f) Compare esses textos escritos antigos com a fala atual,
tentando encontrar aspectos típicos de nossa fala na escrita antiga.
126 MÁRIO EDUARDO MARTELOlTA ~~ 127

2) Análise textos de jornais escritos no Brasil no século


XIX, encontráveis em <http://www.letras.ufrj.br/phpb-rj/>.
procurando observar os mesmos dados solicitados no exercício
1, observando diferenças e/ou semelhanças em relação às fases
arcaica e atual do português. Lendo mais sobre o assunto

Esta seção apresenta um conjunto de outros livros que


tratam, direta ou indiretamente, do fenômeno da mudança.

COSERIU, Eugênio. Sincronia, diacronia e história: o problema da mu-


dança linguística. Rio de Janeiro/São Paulo: Presença/Universidade de
São Paulo, 1979.
Trata-se de um livro clássico que apresenta uma análise aprofundada
da mudança linguística, traçando análise dos problemas teóricos que
esse fenômeno traz para as concepções estruturalistas da língua.

FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica (Org.). Procedimentos discur-


sivos na fala de Natal: uma abordagem funciona lista. Natal: EDUFRN,
2000.
Este livro apresenta um conjunto de textos referentes a fenômenos
estruturais do português falado na cidade de Natal, dentro de uma
perspectiva funcionalista. É importante não apenas como o registro de
uma variedade nordestina do português do Brasil, mas, sobretudo, por
suas análises detalhadas de fenômenos de mudança, por gramaticali-
ação ou não, que caracterizam determinados usos do português atual.

FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica; OLIVEIRA, Mariangela Rios;


MARTELOTTA, Mário Eduardo. Linguística funcional: teoria e prática.
Rio de Janeiro: DP&A Editora; FAPERJ, 2004.
Esse livro apresenta as bases teóricas da linguística funcional, apre-
sentando sua concepção essencialmente dinâmica do funcionamento
da língua, bem como uma descrição dos processos de gramaticalização.
128 MÁRIo EDUARDO MARTELOTIA
~~ 129

LOPES, Célia Regina dos Santos (Org.). A norma brasileira em constru-


ção: fatos linguísticos em cartas pessoais do século XIX. Rio de Janeiro:
Pós-Graduação em Letras Vernáculas; FAPERJ, 2005.
Este livro apresenta cartas pessoais do século XIX e análises de dife-
rentes fenômenos linguísticos nessas cartas. É importante, portanto, Referências
não apenas pelas análises que apresenta acerca de fenômenos de
mudança, mas pelo fato de apresentar os próprios textos para que o
leitor tenha uma ideia da escrita do século XIX.

MOLUCA, Maria Cecília; BRAGA, Maria Luiza. Introdução à sociolin-


guística. São Paulo: Contexto, 2003. BATIYE, Adrian; ROBERTS, Ian. Clause structure and language change.
New York/Oxford: Oxford University Press,J 995.
Este livro apresenta as bases teóricas da sociolinguística variacionista,
assim como análises de fenômenos Iinguísticos feitas com base nessa BRINTON, Laurel J.; TRAUGOTT, Elizabeth Closs. Lexicalization and
teoria. language change. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

NARO, Anthony Julius; SCHERRE, Maria Marta Pereira. Origens do CÂMARA Jr., Joaquim Mattoso. História da linguística. Petrópolis: Vozes,
português do Brasil. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. 1975.
Este livro apresenta uma cuidadosa análise da variante brasileira do
CEZARIO, Maria Maura; VOTRE, Sebastião. Sociolinguística. In:
português, apresentando a tese de que nosso português constitui uma
MARTELOTTA, Mário Eduardo (Org.). Manual de linguística. São
continuação natural de tendências já presentes no português arcaico.
Paulo: Contexto, 2008.
VOTRE, Sebastião J.; CEZARIO, Maria Maura; MARTELOTTA, Mário
CHOMSKY, Noam. Aspects of the theory of syntax. Cambridge: MIT
Eduardo. Gramaticalização. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ,
Press, 1965.
2004.
Este livro apresenta detalhada mente as bases da teoria da gramatica- ___ o Lectures on government and binding. Dordrecht: Foris, 1981.
lização, exibindo análises do fenômeno não apenas no âmbito do en-
___ o Knowledge of language: its nature, origin and use. New York:
caixamento das orações, mas também no desenvolvimento de conec-
Praeger, 1986.
tivos e marcadores discursivos.
___ o The minimalist programo Cambridge: MIT Press, 1995.

CINTRA, Luiz F. Lindley. Sobre formas de tratamento na língua portu-


guesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1972.

COSERIU, Eugênio. Sincronia, diacronia e história: o problema da mu-


dança linguística. Rio de Janeiro/São Paulo: Presença/Universidade de
São Paulo, 1979.

Você também pode gostar