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Representações do amor

A obra apresenta um curioso triângulo amoroso, cujo vértice, o poeta


das Odes, é incapaz de tomar uma atitude mais ativa, movendo-se entre o
desejo carnal que o impele para a sábia e ousada Lídia e o impulso afetivo
que o leva a seduzir a virgem Marcenda.

Ricardo Reis e Lídia

Ao instalar-se no Hotel Bragança, Reis conhece Lídia, a discreta e


atenciosa criada do hotel, instruída por Salvador para dar “atenção ao
hóspede do duzentos e um, ao doutor Reis” O cuidado com que trata o
médico quando este se encontra febril é revelador da sua genuinidade que
se transforma em amor. Contudo, Reis está consciente das diferenças
sociais, e, por isso, apesar de revelar uma clara atração sexual por esta
mulher, sabe, contudo, que tal relação não é socialmente bem vista. Lídia é
uma mulher humilde e daí autêntica, sem subterfúgios na forma como se
entrega a Reis, vivendo o prazer do amor físico. Apresenta-se, assim, como
uma figura oposta à musa distante das odes do poeta e dos preceitos
estoicos e epicuristas – esta Lídia não se limita a contemplar o rio.

Para além disso, parece haver neste Reis que se quer demarcar da sua
condição de heterónimo e conquistar uma individualidade própria uma certa
incapacidade para exprimir sentimentos, uma certa incapacidade para amar,
daí que seja incapaz de retribuir o amor que Lídia tem por ele. Sintomática
desta frieza sentimental é a forma como reage à notícia de que vai ser pai.

Não obstante a dualidade de atuação de Reis, que ora se sente atraído por
esta mulher, ora se mostra indiferente, devido aos preconceitos sociais,
Lídia revela-se determinada na forma como comunica a Reis a sua decisão
de não abortar, independentemente da decisão do médico.

Ricardo Reis e Marcenda

Na chegada ao Hotel Bragança, Reis sente um fascínio por uma jovem


tímida, acompanhada por seu pai, e que possui uma mão inerte. Marcenda,
nome próprio retirado de uma ode de Ricardo Reis e que significa “a que irá
murchar”, está condenada a ser prisioneira desse membro inútil, que
acaricia como um animalzinho doméstico.

Virgem e recatada, conhece o contacto físico com um homem através do


beijo que Reis lhe dá. Recusa, porém, o pedido de casamento deste,
argumentando que não seriam felizes, o que revela que, tal como Reis, tem
dificuldade em assumir compromissos.
Ao contrário da relação com Lídia, a relação com Marcenda é basicamente
platónica, espiritual e condenada ao insucesso, porque ambos
“desenlaçam” as mãos.

► Caracterização das personagens

Ricardo Reis:

• 48 anos, médico, solteiro e exilado no Brasil há 16 anos;


• regressa a Portugal ao receber a notícia da morte de Fernando Pessoa e
sem grandes planos futuros;
• revela um crescente cansaço da vida e alguma apatia;
• na tentativa de conhecer melhor a realidade circundante, lê avidamente
jornais;
• solitário e errático, acaba por procurar em Lídia algum conforto carnal.

Fernando Pessoa:

• falecido aos 47 anos, a 30 de novembro de 1935, tem nove meses para


circular pelo mundo dos vivos;
• veste um fato preto completo, “como se estivesse de luto ou tivesse por
ofício enterrar os outros”.

Lídia:

• com cerca de 30 anos, trabalha como criada no Hotel Bragança;


• é inteligente, discreta e educada, embora pouco instruída;
• próxima do seu irmão Daniel, é através dele que se mantém a par da
situação política do país;
• consciente e crítica, reflete sobre o contexto político-social e rejeita normas
estabelecidas;
• é uma figura de contrastes: frágil com a relação amorosa e segura quanto
a questões existenciais, como a morte e o destino.

Marcenda:

• solteira, 23 anos, destaca-se pelo facto de a sua mão esquerda estar


“morta” – simbolismo do antropónimo (marcere – murchar, tornar-se fraco);
• órfã de mãe, vem todos os meses a Lisboa com o pai, aparentemente
devido ao acompanhamento médico da sua mão;
• educada e de boas famílias, Marcenda tem uma postura exemplar, apesar
de ser inocente e inexperiente, resignando-se à sua condição clínica (sem
solução);
• recusa ter um envolvimento mais profundo com Ricardo Reis.
Outras personagens

Dr. Sampaio:

• notário de meia-idade, “alto, formal, de rosto comprido e vincado”, que dá


grande importância às aparências;
• embora o motivo aparente dos três dias que passa hospedado no hotel
seja o acompanhamento clínico da enfermidade da filha, vem-se a descobrir
que há outra razão para estas visitas: o Dr. Sampaio tem uma amante na
cidade.

Salvador:

• gerente do Hotel Bragança, é atencioso com os clientes e revela um


particular interesse pelas suas vidas, procurando conhecer o que os
hóspedes lhe omitem;
• defendendo a suposta moral e os bons costumes, não admite faltas de
respeito ou de lealdade de ninguém.

• nos diálogos que mantém com Reis, mostra-se interessado pelas


novidades do mundo e pela vida do interlocutor, que comenta de modo
irónico e cínico;
• revela-se crítico, assumindo todavia posições diferentes das que tinha em
vida, nomeadamente no que respeita à solidão, à dualidade vida/morte, à
paternidade e à atitude do “poeta fingidor”.

Os criados do hotel:

• Pimenta é o “empregado, moço dos recados e homem dos carregos” do


Hotel Bragança. Revela-se bom profissional e extremamente dedicado ao
hotel, cumprindo todas as ordens do gerente Salvador;
• Ramon é o empregado de mesa galego que, ocasionalmente, conversa
com Ricardo Reis.

Outras personagens

• Daniel, irmão de Lídia e oponente do regime, morre no episódio da revolta


dos marinheiros;
• Victor e o “doutor-adjunto” são representantes das forças opressoras e
interrogam Ricardo Reis aquando da sua ida à Polícia de Vigilância e
Defesa do Estado;
• velhos que leem os jornais no Alto de Santa Catarina;
• vizinhas de Reis na sua casa alugada e que fazem questão de comentar
a sua vida e as suas relações pessoais.
Representação do amor

Reis/Lídia
• Relação intermitente e marcada pelo envolvimento carnal.
• Sentimento amoroso de Lídia não correspondido por Reis, que ora se
sente atraído, ora repudia a humilde criada do hotel.
• Relação sem futuro devido às diferenças sociais, mas que dará um fruto –
o filho que Lídia escolhe ter, ainda que Reis não manifeste qualquer tipo de
apoio.

Reis/Marcenda 
• Relação mais platónica que física, apesar de Reis beijar Marcenda (o
primeiro beijo que esta recebera).
• Sentimento de proteção que Marcenda desperta em Reis, que tem um
fascínio inicial pela sua frágil mão inerte.
• Relação sem futuro, sem que a jovem ceda à sedução do médico,
recusando o seu pedido de casamento.

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