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ROSTOS DA HISTÓRIA

Michel Mourre
1928-1977

M
ais do que provavelmente – ou talvez nem será esse o aspeto mais apelativo. Falar de Michel
não, porque a francofilia se vai per- Mourre implica, obrigatoriamente, trazer à baila o chama-
dendo em Portugal, e esta nossa área do “Escândalo de Notre-Dame”.
do saber ressente-se profundamen- Tal escândalo é a forma como ficou conhecida uma ação
te disso –, os estudantes de História anticlericalista levada a cabo no dia 9 de abril de 1950, do-
estão familiarizados com “o Mourre”. mingo de Páscoa. E Michel Mourre foi, apenas, o principal
Ou com o “Petit Mourre”, cuja tradu- protagonista dessa ação iconoclasta levada a cabo na cate-
ção em português resultou em três volumes sob o título “Di- dral de Paris, durante uma missa presidida pelo arcebispo
cionário de História Universal”. A obra, resultante do afã da capital francesa, Maurice Feltin. Envergando um hábito
pessoal de Michel Mourre, é uma referência num género dominicano, Mourre aproveitou um hiato na celebração, an-
que era absolutamente essencial (e continua a ser) antes de tes do muito aguardado sermão de Michel Riquet, um reno-
as dúvidas da humanidade desaguarem num motor de bus- mado pregador jesuíta, para se apossar do microfone e pro-
ca chamado Google, apenas para designar o mais popular ferir, ante a incredulidade da vasta congregação, um anti-
mundialmente: os dicionários temáticos, variante concisa, -sermão blasfemo, escrito por Serge Berna e proclamando
setorial e direcionada do saber enciclopédico instituído pe- a morte de Deus. Veja-se este excerto: “(...) Acuso a Igreja
los iluministas Jean le Rond d’Alembert e Denis Di- Católica de escroqueria;/ Acuso a Igreja Católica de
derot, que entre nós tem expressão maior (e se- infetar o mundo com a sua moral mortuária,/ De
minal) no Dicionário de História de Portugal ser o cancro do Ocidente decomposto./ Em
dirigido por Joel Serrão. Mas não nos desvie- verdade vos digo: Deus está morto!”.
mos do caminho encetado por Michel A ação, integrada na ala mais radical do
Mourre em 1968, quando deu à estampa o movimento artístico conhecido por letris-
primeiro “Dictionnaire d’Histoire Uni- mo, não suscitou a compaixão dos cren-
verselle” em dois volumes, a que se se- tes. O anti-sermão de Mourre não che-
guiu, com publicação entre 1978 e 1972 gou ao fim, começando por ser silencia-
o mais monumental “Dictionnaire do pelo som tonitruante dos órgãos da
encyclopédique d’histoire”, em oito vo- catedral, e os intrusos (Mourre, Berna e
lumes, e o já referido “Petit Mourre. Dic- mais uns quantos) só escaparam ao lin-
tionnaire d’Histoire”, que já conheceu chamento devido à ação da polícia. To-
várias atualizações até 2003, evidente- dos foram detidos, e o caso teve, então,
mente feitas por outros que não o próprio, forte impacto junto dos meios intelectuais,
morto em 1977. não apenas em França. E por aí se ficou a re-
Michel Mourre, há que dizê-lo, não é, pela beldia do jovem Michel, nascido no seio de
habitual bitola da construção do conhecimen- uma família que proclamava o ateísmo, filho de
to ou da inovação nesse âmbito, um nome maior uma mãe enlouquecida, que morreu antes da Se-
da historiografia. Nem seria, há ainda que salientá-lo, gunda Guerra Mundial, e de um pai que o abandonou
dos mais estimados pelos pares, que nele não viam propria- para ir atrás de uma amante.
mente um par. Ou até pelo desconforto gerado pela sua mi- A história pessoal poderá ajudar a explicar o facto de
litância, ainda na juventude, no Partido Republicano da Li- Mourre não ter seguido um percurso tradicional nos seus
berdade, uma força de direita instituída em 1945, já depois estudos, mas é preciso deixar claro que essa heterodoxia
de concluído o período de quase um ano conhecido por “Li- não lhe retirou mérito. Um estudo sobre Charles Maurras,
bertação” (de junho de 1944 a maio de 1945). O principal o mentor da Action Française, livros sobre o mundo no tem-
“pecado” dele, aos olhos de boa parte dos historiadores, se- po de Sócrates ou aquando da morte de Cristo, uma histó-
ria o facto de ser um autodidata estranho aos meios acadé- ria do monaquismo, dos padres do deserto a Cluny, ou um
micos. Não obstante, é unanimemente reconhecido como ensaio sobre religiões e filosofias asiáticas são alguns dos
um indivíduo extremamente rigoroso e exigente consigo trabalhos publicados por este homem (premiado enquan-
próprio, em particular a partir da década de 1950, quando to jovem autor pela Academia Francesa) que veio a morrer
decidiu dedicar-se inteiramente à história. Mas a sua curio- prematuramente, aos 49 anos. Mas é evidente que os dicio-
sa biografia não se cinge a esse período em que se tornou nários de história universal são a marca que deixou no mun-
particularmente ativo no campo a que aqui nos dedicamos, do. De tal forma que se confundem com o seu nome.

@jornaisPT

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