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A quela tarde de outono se parecia com todas as outras, embora fosse tão
diferente e especial. O mundo ainda era completamente normal. Não
havia nenhum traço de coisa extraordinária, nem as flores eram tantas, nem
os pássaros eram tão belos. Ele ainda parecia uma obra inacabada e ansiava
por sua coroação. E isso aconteceu no dia em que a natureza resolveu criar
um menino diferente — um menino para se lembrar.
Desde criança, demonstrou que era especial. Via cores onde não havia,
conversava com os pássaros e com as árvores, ouvia a voz das pedras e das
cascatas, que lhe falavam naturalmente. Assobiava melodias maravilhosas em
modos desconhecidos, que ecoavam o som que ele ouvia das estrelas. Não
havia nada que lhe fosse estranho no mundo, exceto ele próprio, pois não
percebia o quanto era extraordinário. Era inocente de si, mas não havia em
nenhum lugar uma criatura tão única e iluminada. Ele era o preferido da
natureza.
Gostava de andar sozinho no bosque, onde sua imaginação voava solta.
Ele viajava para lugares distantes e o tempo passava veloz enquanto via em
sua mente as coisas mais maravilhosas que se pode imaginar. De fato, passava
tanto tempo sozinho, conversando com árvores, cachoeiras e animais, que
alguns moradores da vila em que morava o chamavam de menino da natureza.
Numa tarde fria de outono, quando tinha sete anos, ele partiu para o
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bosque que conhecia tão bem, das tantas tardes ensolaradas. Mas, ao andar
distraído por entre as árvores, algo diferente chamou sua atenção. Por um
momento achou que fosse imaginário, mas, ao esfregar os olhos, viu que era
vivo e real — um pássaro brilhante e iluminado que parecia ser feito de algo
absolutamente diferente de tudo que ele já vira. Ele brilhava luzes amarelas
e vermelhas e se movia devagar de modo que deixava um rastro de luz por
onde passava. Aquele pássaro era feito de algo inimaginável. Ele era uma gota
de sol.
O menino se encantou. Sentiu que o mundo não era mais o mesmo.
Havia um pássaro que era luz. Naquele momento, a natureza toda mudou
aos seus olhos. Agora em seu coração também havia um pássaro iluminado e
isso preencheu a sua alma de vida, calor e afeto.
Quis seguir o pássaro. Tentava tocá-lo com seus pequeninos dedos de
criança. O pássaro voava devagar, até um ou dois galhos adiante e depois
parava novamente. Parecia esperar o menino chegar mais perto para então
avançar um pouco mais. O pássaro se deixou seguir, e o menino adentrou
no bosque, indo mais longe do que jamais havia ido. Mais longe na verdade
do que qualquer pessoa jamais havia ido. Seguiu o pássaro por muito tempo.
Queria apenas tocar no pássaro de sol e sentir o seu calor. Pensou que, talvez,
se ele o tocasse, também pudesse se transformar numa gota de sol, também
pudesse ser feito de luz... Mas não podia alcançá-lo. Até que, num momento,
o pássaro subiu para os céus e desapareceu por entre as copas das árvores,
e o menino sentiu-se acordar de um sono profundo ao olhar em volta e
não reconhecer em nada o lugar onde estava, nem se lembrar bem de como
chegara até ali. Caiu em si. Estava perdido. Logo começou a chorar.
Foi vagando por entre as árvores sem saber voltar para casa. A ideia de
passar a noite sozinho no bosque o encheu de medo e aflição. Os galhos e as
folhas, antes tão conhecidos e amigáveis, se transformavam em imensas garras
na sua imaginação. Seu coração foi ficando cada vez mais apertado. Sentia
que estava correndo perigo, mas “do que teria medo o menino da natureza?”,
pensava. Ele conhecia as árvores e as folhas, os ventos e as cascatas. Conhecia
até mesmo as estrelas. Mas algo no ar lhe parecia diferente demais. Se viu
pela primeira vez num desconhecido ambiente selvagem. Estar sozinho
naquela região longínqua do bosque, sem saber voltar para casa, colocava
pensamentos em sua mente de que talvez... talvez ele realmente não pudesse
voltar.
Até que, no meio da sua aflição, avistou algo que fez seu coração dar um
salto e esfregou os olhos para crer no que via. Pintados de dourado e rosa pelo
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pôr do sol, em uma clareira um pouco adiante, cinco crianças brincavam,
vestidas com roupas brancas e douradas, correndo e tentando pegar umas as
outras, rindo e se divertindo, e suas risadas ecoavam pelo bosque. O menino
sentiu um grande alívio, pois viu que não estava sozinho. Havia alguém mais
naquela região longínqua e desconhecida.
Se aproximou devagar, tentando esconder suas lágrimas e seus olhos
marejados. Mas, ao entrar na clareira, as crianças sequer o notaram e
continuaram brincando e se divertindo. Até que ele falou:
— Olá.
Ao ouvirem sua voz, elas pararam de súbito e se viraram para olhá-lo.
Pareceram surpresas. O menino se apressou a falar e sua voz embargada
deixou claro que ele havia chorado.
— Eu estou perdido.
Um dos garotos, que tinha bochechas rosadas e alegres e uma feição
amigável, lhe respondeu:
— Estamos brincando de guardar segredos — sua voz era firme, mas
simpática. Deu um sorriso e depois continuou, mais devagar. — Você…
sabe guardar segredo?
A garota mais velha, que era bonita e tinha os olhos azuis e os cabelos
pretos, olhou fundo em sua alma e lhe perguntou:
— Você estava chorando?
Ele ficou envergonhado. Tentou limpar as lágrimas com sua roupa.
— Eu só quero voltar pra casa.
Ela sorriu.
— Podemos te levar pra casa — disse ela —, mas antes… você quer
brincar com a gente?
— Eu não sei como — ele respondeu. — E, além do mais, vai escurecer
em breve…
Ela riu, como se o dia escurecer fosse uma ideia engraçada e sem sentido.
— Aqui nesta clareira não escurece nunca. Nós te levaremos para casa
quando a brincadeira chegar ao fim.
Ele era curioso demais para não aceitar. Mesmo que não soubesse quem
eram aquelas crianças ou o que era brincar de guardar segredos, ele aceitou.
Eles corriam em círculos para tentar agarrar uns aos outros e cochichavam
nos ouvidos quando eram pegos. O que diziam, ele logo descobriu, eram
segredos mágicos que não deveriam ser contados a ninguém, o que foi
pedido repetidas vezes por todos. Descobriu que aquelas crianças realmente
não eram o que pareciam, mas algo infinitamente maior. Eram aquilo que
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ele sempre percebera e que sempre o encantara na natureza. O que compõe
todas as coisas no Universo e que ele sabia que encontraria um dia, bem no
fundo do seu coração — elas eram os Cinco Elementos.
Os segredos dos Elementos eram histórias, mistérios e magias de todos
os tipos. Foi assim por muito tempo, período em que ele ouviu todas as
palavras mágicas que existem, conhecendo profundamente cada Elemento.
E quando já não havia mais o que ser dito, eles passaram a tocar em seu rosto
e fazê-lo enxergar e sentir todos os segredos que não podiam ser expressos
por palavras. Era como se vivesse em sonhos incríveis as experiências mais
maravilhosas que se pode imaginar, luzes que preencheram o seu coração e
a sua mente de verdades belas. E sempre que queriam levá-lo a esse estado
de encantamento, os Elementos tocavam em seu rosto e diziam uma palavra
mágica que lhe chamava a atenção.
— Luminus.
Era como se o Universo inteiro de repente entrasse em expansão, e tudo
tivesse um tempo diferente, e nada acontecesse que ele não soubesse e
sentisse. Daquele momento de êxtase, surgiam sons e imagens, sentimentos
e palavras, e qualquer coisa que os Elementos quisessem lhe mostrar. Era um
canal direto ao seu coração. O que ele vivia em Luminus não poderia jamais
ser esquecido e permanecia gravado em seu espírito para sempre.
Entre brincadeiras e risadas, a primeira que ele conheceu se chamava
Acqua, e ela aparentava ser a mais velha dos cinco. Seu nome era um dos seus
segredos favoritos: Acqua Stella Maris. Ela era a Água. Tinha a pele clara e os
olhos azuis brilhantes, contrastando com seus cabelos bem pretos. Era linda e
aparentava ter doze anos. Ela lhe revelou os mistérios mais profundos da alma
e disse que tudo que acontece na Terra tem origem no coração do homem.
Ensinou a respirar água como se fosse ar, mostrou os lugares mais longínquos
do fundo dos oceanos e o levou para conhecer as sereias e todas as criaturas
dos mares, dos rios e das cascatas. Mostrou como tirar água do ar, como se
liquefazer e se condensar e como curar qualquer doença ou maldição, usando
a Água para o benefício da humanidade. Com ela, aprendeu toda a Magia
Elemental da Água, a mais benevolente e pacificadora de todas as Magias:
Acqua Magis.
O segundo que ele conheceu se chamava Wayra e ele era o Ar. Seus nomes
eram muitos, entre eles Hermes e Galegust. Era magro e alto, de pele pálida
e cabelos claros. Disse que o ar está presente em todos os lugares e que é
o mensageiro que ouve tudo o que é dito na face do planeta e que carrega
consigo todos os perfumes de todas as flores e todas as palavras de amor. Ele
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lhe ensinou a voar, o levou para conhecer as estrelas e ver os seres fantásticos
em outros planos. Mostrou como chamar o vento, como conjurar lanças e
espadas feitas de puro ar para atacar os seres malignos, como criar furacões e
mover chuvas e tempestades, usando o ar para se transportar, atacar, defender
e se comunicar. Com ele aprendeu toda a Magia Elemental do Ar, a mais ágil
e versátil de todas as Magias: Aria Magis.
A terceira era a Terra e ela se chamava Gaia. Sua pele morena e cabelos de
índia eram lindos, e ela usava um colar branco e azul, que disse simbolizar
as nuvens e o céu do planeta. Ela lhe revelou ser mãe de todos os animais e
plantas e conter em si a cura de todas as doenças. Disse que tudo que vive
tem alma própria, mas que a energia que move todos os seres vivos vinha dela
e que esta nunca se acaba, apenas se transforma e se renova. Ela fez dele um
alquimista, ensinou os segredos e utilidades de todas as ervas, mostrou como
fazer as árvores se moverem, fazer brotar raízes e cipós do chão para serem
usados no ataque e na defesa, como liquefazer as pedras e os metais e utilizar
o poder de todos os cristais mágicos. Ensinou a fazer tremer o chão, a mover
montanhas e a se transformar em qualquer animal. Com ela aprendeu toda a
Magia Elemental da Terra, a mais defensiva de todas as Magias: Tera Magis.
O Quarto era o Fogo e ele se chamava Edan, mas gostava mais de um
apelido dado por seus irmãos: Lux. Era rosado e tinha bochechas grandes
que não paravam nunca de sorrir. Ele lhe ensinou a história de todas as
civilizações, as estratégias de guerra e a habilidade de qualquer combate. Lhe
deu as forças do ataque e da destruição de qualquer material. Mostrou como
não sentir calor nem frio e como não se queimar jamais. Ensinou a criar
o fogo mágico e a disparar bolas de chamas que voavam pelos ares e até
como se transformar em um imenso cometa voador. O Fogo lhe ensinou
a destruir o mal e a aplicar a justiça verdadeira. Com ele, aprendeu toda a
Magia Elemental do Fogo, a mais destrutiva e ofensiva de todas as Magias:
Ignes Magis.
A quinta era especial. A mais nova se chamava Aura. Era uma menina
encantada, a mais linda criatura que já existiu. Usava um vestido dourado e
tinha longos cabelos claros. Aparentava ter sete anos, mas tinha a idade do
tempo e falava com mais sabedoria do que todos os outros. Aura lhe ensinou
a verdade suprema da Magia. Disse que cada elemento tinha sua própria
força, mas que a energia mágica de todos vinha dela. Ela era a própria Magia,
a origem de todos os poderes e a pureza do amor. Era a força do Cosmos
que, singela, tomara forma de uma criança menina. O quinto elemento
mágico e inexplicável, a essência do Universo, que ele aprendeu se chamar
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Éter. Seu nome completo era Aura Etherea Magis e ela lhe ensinou a conhecer
as estrelas, a perceber a energia em tudo e todos e a navegar no tempo e
no espaço. Ela aumentou seus poderes até quase o infinito e lhe deu toda
a Magia do Éter para tornar real tudo que sentisse em seu coração. Ela lhe
ensinou a ver com clareza as intenções de qualquer pessoa e a conversar com
as estrelas e ouvir delas a resposta para qualquer pergunta. Mas, acima de
tudo, Aura lhe ensinou o que é o amor. Foi num momento breve, quando
estavam sentados na grama, à sombra de uma árvore, e ela aproximou os
dedos iluminados de seu rosto para ascendê-lo em Luminus. Ele, porém,
como se estivesse brincando, fugia do seu toque mágico.
— Quero te levar para o Éter, Fael. Olha pra mim — disse ela, esticando
seus dedos em sua direção. Mas ele, divertido e distraído como sempre, não
se concentrava.
— O que é o Éter? — perguntou curioso, se desviando de seus dedos,
sorrindo.
— O Éter sou eu, você sabe — disse ela, tentando alcançá-lo mais uma
vez, sem sucesso.
Ele balançou a cabeça.
— Não. Você é o Éter, como a Acqua é a Água e Lux é o Fogo... mas o que
é o Éter, de verdade?
Aura abaixou os dedos e os olhos e começou a brincar suavemente com
seu vestido dourado, sempre enfeitado com pequenas flores do campo.
— O Éter é um segredo... o Segredo dos Elementos. Um dia você vai
saber.
— É um lugar? — perguntou ele. — Você disse que queria me levar para
lá…
Ela encolheu os ombros.
— Uma energia, um tempo, um lugar. Pode ser um sonho ou o que você
quiser imaginar. Mas o que ele é realmente... é o segredo do Universo. E isso
eu não vou te contar.
Como se desistisse de querer saber, perguntou:
— Então, o que quer dizer Luminus?
Ela sorriu.
— É quando algo está se iluminando dentro do seu coração, tanto que
você consegue enxergar, como se fosse um sonho. É a primeira magia do Éter.
— Você pode me mostrar um Luminus do Éter? Assim posso ver com
meus próprios olhos e você não precisa me contar!
Naquele instante, quando ele parou de se mexer, os dedos dela já estavam
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erguidos e tocaram em seu rosto com suavidade. Tudo mudou. Ele entrou
nos olhos de Aura. Viu a verdade de sua alma, o Universo e as estrelas que
pulsavam vivas como se quisessem explodir de amor. Nebulosas e planetas,
raios de todas as cores e poeira estelar pintavam a íris da menina do Universo.
E foi assim que ele, por ela, se encantou. Ao entrar em seu ser e mergulhar no
Cosmos, ele passou a amá-la por inteiro. A partir daquele dia, ele a amaria a
todo instante, como um menino ama uma menina — gentilmente. E para
sempre ela seria o seu amor.
Fael viveu na clareira por muito tempo. Não percebeu o seu corpo mudar
porque estava encantado e porque via os Elementos que, feitos de Magia e
Tempo, não sabiam envelhecer. Dentre todos os segredos, este foi o único
que não lhe foi revelado até a hora final — passaram-se quarenta anos naquela
clareira. Até que o momento finalmente chegou.
— Já te contamos tudo — disse Acqua, a mesma garota de olhos azuis e
cabelos pretos que o recebera tantos anos antes. — A brincadeira chegou ao
fim. Podemos te levar para casa agora.
Mas sua memória do tempo antes da clareira estava perdida. Ele não se
lembrava de quando não estivera ali, no Círculo dos Elementos.
— Casa? — perguntou ele, confuso. — Eu não entendo, essa é a minha
casa.
E então, pela primeira vez naqueles quarenta anos, ele olhou para baixo e
levou um susto ao cair em si e ver sua real condição. Estava mais velho. Seus
cabelos estavam tão longos que se emaranhavam na barba comprida e suja
de terra e folhas. Usava uma túnica branca da qual não se lembrava, mas que
também estava imunda. Sentiu vergonha de sua aparência. Quis tampar o
rosto para que Aura não o visse daquela maneira, mas sentiu que ela o olhava
com mais ternura do que nunca. E ele começou a chorar e a se desvanecer.
— Nós te encantamos — disse Lux, que havia se tornado seu amigo mais
querido — para que você pudesse nos conhecer. E você conseguiu! Você viu
o nosso mundo.
Mas ele chorava descontroladamente, como não havia chorado naqueles
quarenta anos. E Aura sentiu tanta compaixão e tanto amor que quis lhe
mostrar que nada havia mudado em sua alma. Mais uma vez, ela tocou em
seu rosto para levá-lo para o Éter.
Luminus.
Ele ascendeu. Se viu no alto de uma colina, de onde se avistava o sol,
que se punha no mar ao longe. Era novamente um menino de sete anos,
exatamente como se lembrava, com seus cabelos castanhos e seus olhos cheios
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de luz. E diante dele estava Aura, a pura menina do amor. Aquela cena para
sempre ficaria marcada na memória mais profunda de Fael — duas crianças
que se amavam, com tanta pureza e graça, no alto de uma colina, vendo o
sol se pôr no mar. Ao olhar para ela, ele sentiu florescer todo o seu amor. Ela
sorriu para ele e encostou os dedos nos seus, gentilmente.
— Um dia eu vou voltar a ser criança para viver para sempre com você! —
disse ele, sentindo pulsar todo seu amor pela menina dos olhos de Universo.
A sua primeira jura, um laço inquebrável que o marcaria para sempre.
Naquele instante, das pontas dos dedos unidos, uma luz amarela surgiu e se
espalhou como um segundo sol a brilhar, engolindo a paisagem e o céu. No
momento seguinte, ele estava de volta à clareira dos Elementos.
Se levantou. Deixou a clareira, sem olhar para trás, para se tornar o primeiro
mago da história da humanidade — Fael, o pai da Magia e o escolhido do
Círculo dos Elementos.

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