Você está na página 1de 101

Os Princípios Fundamentais do

Marxismo
G. V. Plekhanov
1908

Primeira Edição:........
Fonte: Biblioteca Marxista Virtual do Partido da Causa Operária.
Tradução: ........
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, janeiro 2006.
Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e
indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.

Prefácio

As últimas obras de Plekhanov, os "Princípios Fundamentais


do Marxismo", que faz uma exposição sistemática do
materialismo dialético, surgiu em 1908, um quarto de século
após ser lançado seu célebre panfleto: "O Socialismo e a Luta
Política", que inaugura a história da social-democracia
revolucionária na Rússia.

Esta brochura, publicada em 1883, marcou a ruptura


completa com os velhos preconceitos dos narodiniki. Ela
indicou ao movimento revolucionário vencido, uma nova via,
ao termo da qual, esperava a vitória, lenta a vir, porém certa.
Foi na própria realidade russa que ela mostrou o processo
social e econômico que minava lentamente, porém com
tenacidade, o antigo regime. Ela predisse que a classe operária
russa, desenvolvendo-se paralelamente ao capitalismo,
infligiria o golpe mortal no absolutismo russo e tomaria seu
lugar, em igualdade, nas fileiras do exército internacional do
proletariado.

Mas Plekhanov não se limitou à crítica do velho populismo


dos narodiniki. Num brilhante tratado, que conserva ainda todo
seu valor, ele fez a exposição dos princípios fundamentais do
socialismo científico e indicou o método do materialismo
dialético como a arma mais segura na luta teórica e prática.

"Que é o socialismo científico? Por socialismo científico,


entendemos a doutrina comunista que, desde 1840, começou
a se desprender do socialismo utópico, sob a forte influência
da filosofia hegeliana de um lado, e da economia clássica de
outro; que deu, pela primeira vez, uma explicação real de todas
as etapas do desenvolvimento da civilização humana; que
demoliu sem piedade os sofismas dos teóricos burgueses e
que, "armada de todo o saber de seu século", partiu em defesa
do proletariado. Essa doutrina não só demonstrou, com
perfeita clareza, toda a inconsistência científica dos adversários
do socialismo mas, indicando seus erros, deu-lhes, ao mesmo
tempo, explicação histórica. E assim, como outrora disse Heim
a respeito da filosofia de Hegel, "ela atrelava a seu carro
triunfal cada uma das opiniões sobre as quais triunfara".

"Assim como Darwin enriquecera a biologia com a teoria


das espécies, tão admirável em simplicidade quanto
rigorosamente científica, também os fundadores do socialismo
científico nos mostraram, na evolução das forças produtivas e
na luta destas forças contra as formas sociais de produção
atrasadas, o grande princípio da transformação das espécies
sociais."

Mas não foi como um clichê, ou uma "verdade definitiva e


sem apelo" que Plekhanov havia recomendado aos
revolucionários russos o sistema do socialismo científico. "É
evidente", escrevia ele, "que a evolução do socialismo científico
não está terminada e tampouco pode parar nos trabalhos
deEngels e de Marx assim como a teoria da origem das
espécies não podia ser considerada definitivamente acabada
com o lançamento das principais obras do biólogo inglês. Ao
estabelecimento dos princípios fundamentais da nova doutrina,
deve suceder o estudo detalhado das questões que a ela se
ligam, estudo este que deve completar e levar a seu termo a
revolução feita na ciência pelos autores do Manifesto
Comunista. Não há nenhum ramo da sociologia diante do qual
não se abriram horizontes novos e de uma amplitude
extraordinária, na medida em que cada um deles assimilava
suas concepções filosóficas e históricas. A influência benéfica
dessas concepções se faz sentir atualmente no domínio da
história do direito e no da chamada "civilização primitiva".

Plekhanov já considera necessário chamar, a atenção para


a seguinte particularidade da doutrina que ele expõe:
Remontando sua genealogia entre outros, a Kant e a Hegel, o
socialismo científico apresenta-se, entretanto, como o
adversário mais encarniçado e resoluto do idealismo filosófico.
Ele o afugenta de seu derradeiro refúgio, a sociologia, onde os
positivistas lhe haviam dado uma acolhida tão calorosa. O
socialismo científico pressupõe a"concepção materialista da
história", ou seja, ele explica a história espiritual da
humanidade pela evolução das relações sociais em seu próprio
seio (que se dão, como outras, sob a influência do meio
natural).

Um trabalho persistente para criar o partido revolucionário


do proletariado, a necessidade de aplicar um novo método ao
estudo dos problemas concretos da atualidade russa, à
pesquisa dos "destinos do capitalismo na Rússia", tudo isso, ao
mesmo tempo que uma atividade prática intensa, não impedia
Plekhanov de trabalhar no "estudo minucioso" dos "princípios
fundamentais do marxismo", concentrando-se cada vez mais
na história da filosofia, da civilização e da arte. Ao mesmo
tempo que efetuava esse trabalho específico, consagrado a
desenvolver as concepções de Marx e Engels, Plekhanov
continuava a defendê-las contra os diferentes representantes
do revisionismo russo e internacional, revisionismo que
periodicamente intenta "completar", ou "corrigir",
ou "substituir" certos princípios do marxismo por
velhos "dogmas burgueses", há muito obsoletos.

Esta obra de Plekhanov é consagrada principalmente aos


aspectos filosófico e histórico do socialismo científico. Para
Plekhanov, o marxismo é toda uma concepção do mundo, una
e indivisível, penetrada pela unidade de uma idéia
fundamental. Plekhanov protesta contra as tentativas.
empreendidas por Bogdanov, Lunatcharsky, Bazarov, Fritsche,
de separar os aspectos histórico e econômico desta concepção
do mundo, do fundamento filosófico sobre o qual ela se apóia.
Ele protesta contra todas essas tentativas de "assentar o
marxismo" sobre novas bases, acoplando-o a esta ou àquela
filosofia, como o neokantismo, o machismo, o
empiriocriticismo etc., tentativas essas freqüentemente
empreendidas sob a influência de correntes filosóficas em
moda, num dado momento, entre os ideólogos da burguesia.
Conforme a opinião de Plekhanov, emitida por ele pela primeira
vez na ocasião de uma polêmica contra Bernstein, o
materialismo de Marx e Engels está fundado no espinosismo
desembaraçado, por Feuerbach, dos elementos teológicos que
o atrapalhavam. Assim como Feuerbach, os fundadores do
socialismo científico reconheciam a existência da unidade, mas
não da identidade entre o"pensamento e o "ser". As retificações
trazidas por Marx à filosofia de Feuerbach consistem
principalmente em que as relações recíprocas de ação e reação
entre o objeto e o sujeito são vistas por Marx da perspectiva
em que o sujeito aparece num papel ativo, como um ser
atuante, não mais apenas contemplativo.

"Agindo sobre a natureza exterior e transformando-a, o


homem transforma ao mesmo tempo, sua própria natureza."

Plekhanov tem perfeitamente razão quando diz


que Marx foi fortemente influenciado por um artigo de
Feuerbach intitulado: "Teses Preliminares para a Reforma da
Filosofia", editado em 1843, no segundo tomo da coletânea
onde havia aparecido (1º tomo) um artigo de Marx sobre a
censura prussiana (Anecdota).

"O pensar é condicionado pelo ser, não o ser pelo pensar.


O ser é condicionado por si mesmo... O ser tem seu
fundamento em si mesmo". Esta concepção, acrescenta
Plekhanov, é colocada por Marx na base da interpretação
materialista da história.

Isto não é bem exato; Marx modificou radicalmente e


completou a tese de Feuerbach, que é tão abstrata, tão pouco
fundada na história quanto seu homem, que ele coloca no lugar
de Deus, e de sua transformação hegeliana, a Razão. "A
essência humana não é algo abstrato, próprio ao indivíduo
isolado. Em sua realidade, diz Marx nas conhecidas teses
sobre Feuerbach, esta essência é o conjunto das relações
sociais." É precisamente porque não chega a esta conclusão,
que Feuerbach é forçado a "abstrair o curso da evolução
histórica e partir da suposição do indivíduo humano abstrato,
isolado."

Em completo acordo com esta crítica ao homem abstrato


de Feuerbach, Marx também modifica sua tese
fundamental: "Não é", diz ele, "a consciência dos homens que
determina sua maneira de ser, mas, ao contrário, sua maneira
de ser social que determina sua consciência". Até hoje o erro
fundamental de todos os sistemas filosóficos que procuram
explicar a relação entre o pensamento e o ser, é o de querer
ignorar esta circunstância, que nem Feuerbach via,
notadamente, o fato que "o indivíduo abstrato, por eles
analisado, pertence na realidade a uma forma determinada da
sociedade".

Já em suas primeiras obras, Plekhanov tinha sublinhado


mais de uma vez a diferença entre o método dialético de Marx
e Engels e a teoria vulgar da evolução, segundo a qual nem a
natureza nem a história dão saltos, tudo no mundo só se
transformaria lenta e gradualmente. Em sua polêmica contra
Tikhomírov que, de revolucionário, se transformara em
reacionário, Plekhanov explica ao "novo defensor do
absolutismo" a inelutabilidade dos saltos na evolução. Nós
reproduzimos aqui, em anexo, estas páginas brilhantes, ainda
mais porque aí o próprio Plekhanov se refere à sua velha
brochura, que é atualmente bastante difícil de se encontrar.

Particularmente interessantes na obra de Plekhanov são os


capítulos onde o autor mostra como os cientistas
contemporâneos, o mais freqüentemente sem o saber, são
obrigados, em razão do estado atual da ciência social, a dar
uma explicação materialista dos fenômenos que estudam.
Cada nova descoberta relativa à história da civilização, à
mitologia, à arte, traz novos argumentos em apoio da
interpretação materialista da história. Às fontes de
documentação que enumera e às quais se refere, Plekhanov
teria podido acrescentar, para 1908, os numerosos trabalhos
de outros cientistas burgueses no domínio das ciências
históricas e sociológicas. Sem se aperceberem, eles usam uma
linguagem e reúnem, pedra por pedra, materiais e fatos que
confirmam a justeza das concepções filosóficas e históricas do
marxismo.
Algumas palavras sobre a presente edição. Além do
fragmento sobre os "saltos"(1), apresentamos em anexo o
artigo de Plekhanov sobre o "papel do indivíduo na história"(2),
assim como um grande extrato de seu prefácio(3) à brochura
de Engels sobre Feuerbach. Conforme desejo de Plekhanov,
estas notas sobre a dialética e a lógica tinham sido inseridas
no texto da tradução alemã de seu livro, publicado em 1910.
O leitor encontrará também uma série de novas anotações,
feitas por Plekhanov para os leitores alemães. De nossa parte,
acrescentamos algumas notas explicativas, e completamos,
onde foi necessário, as referências indicadas por Plekhanov.
I

O marxismo é toda uma concepção do mundo. Em poucas


palavras, é o materialismo contemporâneo que representa o
mais alto grau daquela concepção do mundo, cujas bases
foram lançadas, na velha Hélade, por Demócrito, assim como
pelos pensadores jônios, seus precursores. O chamado
hilozoísmo não é, pois, outra coisa que um materialismo
ingênuo. O mérito principal de ter recuperado e formulado os
princípios fundamentais do materialismo moderno pertence
incontestavelmente a Karl Marx e a seu amigo Friedrich Engels.
Os aspectos histórico e econômico dessa concepção do mundo,
a qual se designa comumente por materialismo histórico, assim
como o conjunto, a ele ligado, das concepções sobre os
problemas, o método e as categorias da economia política,
sobre o desenvolvimento econômico da sociedade e, muito
particularmente da sociedade capitalista, são quase que
exclusivamente a obra de Marx e Engels. A contribuição de
seus predecessores, neste domínio, deve ser considerada como
um trabalho preparatório. Materiais, às vezes abundantes e
preciosos, haviam sido reunidos mas não sistematizados nem
elucidados do ponto de vista de um pensamento geral e,
portanto, não puderam ser apreciados nem utilizados como
deviam. O que fizeram, neste domínio, os adeptos de Marx
e Engels na Europa e na América, foi o estudo mais ou menos
feliz de problemas particulares, algumas vezes, é verdade, da
maior importância. Daí entender-se geralmente
por"marxismo" apenas os dois aspectos acima mencionados da
atual concepção materialista do mundo, e isto não apenas no
que se refere ao "grande público", que ainda não está educado
para a compreensão profunda das doutrinas filosóficas, mas
também entre aqueles que se consideram os discípulos fiéis de
Marx e Engels, tanto na Rússia como no resto do mundo
civilizado. Esses dois aspectos são considerados algo
completamente independente do "materialismo filosófico" e
quase mesmo seus opostos. Mas como eles, arbitrariamente
desligados do conjunto das concepções que lhe são
aparentadas e formam sua base teórica, não podem ficar
suspensos no ar, aqueles que os separaram sentem
naturalmente a necessidade de "reembasar o marxismo",
acoplando-o - e ainda desta vez arbitrariamente e, com muita
freqüência, sob o domínio das correntes filosóficas
predominantes entre os ideólogos da burguesia - a este ou
àquele filósofo: Kant, Mach, Avenarius, Ostwald e, nos últimos
tempos, a Joseph Dietzgen. É verdade que as concepções
filosóficas de J. Dietzgen se formaram independentemente das
influências burguesas, pois são, numa medida notável,
aparentadas às de Marx e Engels. Mas as concepções filosóficas
destes últimos têm um conteúdo incomparavelmente mais
ordenado e mais rico e, já por esta única razão, não podem ser
completadas mas, no máximo, até certo ponto popularizadas
com a ajuda da doutrina de Dietzgen. Até agora não se
tentou "completar Marx" com São Tomás de Aquino.
Entretanto, não é nada impossível que, apesar da recente
encíclica papal contra os modernistas, o mundo católico
produza um pensador capaz desta proeza teórica.

Freqüentemente pleiteia-se a necessidade de "completar" o


marxismo com tal ou qual filosofia, alegando que em lugar
algum Marx e Engelsexpuseram suas concepções filosóficas.
Mas tal alegação é pouco convincente, e mesmo se fosse
fundamentada, não seria razão para substituir as concepções
filosóficas de Marx e Engels pelas do primeiro pensador que
surge e que freqüentemente se coloca sob um ponto de vista
totalmente diferente. É necessário lembrar que dispomos de
dados suficientes para ter uma idéia justa das concepções
filosóficas de Marx e Engels. [1]

Estas concepções, em seu aspecto definitivo, foram


expostas de maneira suficientemente completa, se bem que
polêmica, na primeira parte do livro de Engels: "Herrn Eugen
Dürings Umwälzung der Wissenschaft (Anti-Dühring)" (da qual
existem várias traduções russas). Na notável brochura do
mesmo autor: "Ludwig Feuerbach und der Ausgang der
Klassischen deutschen Philosophie" (brochura por nós
traduzida ao russo e munida de um prefácio e notas
explicativas), as concepções que constituem a base filosófica
do marxismo são então expostas de forma positiva. Uma
caracterização breve, mas brilhante, destas mesmas
concepções, em suas relações com o agnosticismo, foi
formulada por Engels no prefácio à tradução inglesa da
brochura "Socialismo Utópico e Socialismo Científico". No que
concerne a Marx, é oportuno salientar, como de grande
importância para a compreensão do aspecto filosófico de sua
doutrina, inicialmente a caracterização da dialética materialista
feita por ele mesmo, em oposição à dialética idealista deHegel,
no prefácio da segunda edição do primeiro tomo do "Capital";
em seguida, as numerosas observações detalhadas,
consignadas de passagem, no mesmo tomo, no decorrer da
exposição. Algumas páginas da "Miséria da Filosofia" são
igualmente, sob certos aspectos, da maior importância. Por
último, o processus da evolução das idéias filosóficas de Marx
e Engels se destaca com uma clareza suficiente de seus
primeiros escritos, publicados recentemente por F.
Mehring sob o título: "Aus dem literarischen Nachlass von Karl
Marx, Friedrich Engels und Ferdinand Lassalle", Stuttgart 1902.

Em sua tese de doutorado intitulada "Differenz der


Demokritischen und Epikureischen Naturphilosophie", assim
como em certos artigos reproduzidos por Mehring no primeiro
tomo da edição recém-citada, o jovem Marx ainda aparece
como o idealista puro-sangue da escola hegeliana. Mas nos
artigos publicados inicialmente no "Deutsch-Französische
Jahrbücher" e inseridos agora no mesmo primeiro tomo, Marx,
e com ele Engels, que igualmente colaborou no Jahrbücher, já
se coloca firmemente sob o ponto de vista do humanismo de
Feuerbach. Na obra intitulada "Die Heilige Familie, oder Kritk
der kritischen Kritik" (A Sagrada Família ou Crítica da Crítica
Crítica), publicada em 1845 e reproduzida no segundo tomo da
edição de Mehring, os dois autores, isto é, Marx e Engels,
realizaram alguns progressos importantes no que concerne ao
desenvolvimento da filosofia de Feuerbach. A direção na qual
empreenderam este trabalho é visível nas onze "Teses sobre
Feuerbach", que Marx redigira na primavera de 1845 e
que Engels publicou no anexo à brochura Ludwig Feuerbach,
que mencionamos acima.

Em suma, não são, no caso, os materiais que faltam; é


apenas necessário saber servir-se deles, ou seja, estar
preparado para compreendê-los. Mas os leitores atuais não
estão preparados para isto e logo não sabem deles se servir.

E por quê? Por múltiplas razões. Uma das mais importantes


é que atualmente se conhece muito mal não só a filosofia
hegeliana, sem a qual é difícil assimilar o método de Marx, mas
também a história do materialismo, sem a qual não é possível
ter uma idéia clara da doutrina de Feuerbach, que foi, em
filosofia, o predecessor imediato de Marx, e que forneceu, em
considerável medida, a base filosófica da concepção de mundo
de Marx e Engels.

O "humanismo" de Feuerbach é freqüentemente


apresentado como algo bastante confuso e indeterminado. F.
A. Lange, que muito contribuiu para divulgar, junto ao
"grande público" e ao mundo erudito, uma idéia
completamente falsa da essência do materialismo e de sua
história, recusa-se totalmente a reconhecer o "humanismo"
de Feuerbach como uma doutrina materialista. O exemplo
de F. A. Lange foi seguido pela quase totalidade daqueles que
escreveram sobre Feuerbach, tanto na Rússia como no
estrangeiro. P. A. Berline, que descreve o humanismo
de Feuerbach como um materialismo não "puro", [2] também
não pôde, visivelmente, subtrair-se à influência de Lange.
Confessamos não ver muito claramente o que pensa sobre esta
questão Fr. Mehring, o melhor e talvez único conhecedor de
filosofia entre os social-democratas alemães. Em
contrapartida, está perfeitamente claro para nós que Marx
e Engels viam em Feuerbach um materialista. É certo
que Engels chama a atenção para a inconseqüência
deFeuerbach. Mas isso não o impede, absolutamente, de
reconhecer os princípios fundamentais de sua filosofia como
puramente materialistas. E não pode ser de outra forma para
quem quer que se dê ao trabalho de estudar a fundo a doutrina
de Feuerbach.
II

Dizendo isso, compreendemos perfeitamente que corremos


o risco de surpreender um grande número de nossos leitores.
Mas isso não nos deve intimidar, pois tinha razão o pensador
antigo que dizia que a surpresa era o começo da ciência. E para
que nossos leitores não fiquem, por assim dizer, no estágio da
surpresa, recomendamo-lhes, antes de mais nada, que se
perguntem o que exatamente pretendia Feuerbach exprimir
quando, esboçando brevemente, mas de forma muito
característica seu curriculum vitae filosófico, escrevia: "Deus
foi o meu primeiro pensamento, a razão o segundo e o homem,
meu terceiro e último". Afirmamos que esta questão encontra
incontestavelmente solução nestas palavras muito
significativas do próprio Feuerbach: "Na discussão entre o
materialismo e o espiritualismo, o que está em questão, é a
cabeça humana".

Uma vez fixados sobre a matéria da qual é feita o cérebro,


logo chegaremos a uma visão clara no que concerne
igualmente toda outra matéria, no que concerne à matéria em
geral. [3] Em outra parte, ele declara que sua antropologia,
quer dizer, seu humanismo, significa unicamente que Deus,
não é outra coisa que o próprio espírito humano. [4] Esse
ponto de vista antropológico, observa Feuerbach, já não era
estranho ao próprio Descartes. [5]Mas o que significa tudo
isto? Significa que Feuerbach tinha tomado "o homem" como
ponto de partida de seus raciocínios filosóficos unicamente
porque esperava, partindo deste ponto, chegar mais cedo ao
objetivo, que era dar uma idéia justa da matéria, em geral, e
de suas relações com o espírito. Estamos pois, neste caso,
tratando com um procedimento metodológico cujo valor era
condicionado pelas circunstâncias de tempo e lugar, ou seja,
pelos modos de raciocinar habituais aos eruditos alemães, ou
simplesmente aos alemães cultos da época [6], mas que não
dependia absolutamente de qualquer concepção particular do
mundo.

Já se vê, conforme nossa citação das palavras


de Feuerbach a propósito da "cabeça humana", que na época
em que ele as escreveu, a questão da "matéria da qual é feito
o cérebro" tinha sido resolvida num sentido puramente
materialista. E essa solução tinha sido igualmente adotada por
Marx e Engels. Ela tornou-se a base de sua própria filosofia e
isso sobressai com a mais completa clareza das obras
de Engels: Ludwig Feuerbach e Anti-Dühring, por nós já
mencionadas. Eis porque devemos examinar mais de perto
essa solução, pois estudando-a, estudaremos ao mesmo tempo
o aspecto filosófico do marxismo.

Em seu artigo intitulado: "Vorlaufige Thesen zur Reform der


Philosophie", surgido em 1842, e que exerceu uma grande
influência sobre Marx, Feuerbach declara que "as verdadeiras
relações entre o pensar e o ser devem ser expressas da
seguinte maneira: o ser é o sujeito, e o pensar é o atributo". O
pensamento é condicionado pelo ser, não o ser pelo
pensamento. O ser é condicionado por si mesmo... tem seu
fundamento em si mesmo. [7]

Essa concepção das relações entre o ser e o pensamento


colocados por Marx e Engels na base da interpretação
materialista da história constitui o resultado mais importante
da crítica ao idealismo hegeliano que, em seus traços principais
foram feita pelo próprio Feuerbach, cujas conclusões podem
ser assim resumidas:

Feuerbach achava que a filosofia de Hegel suprimira a


contradição existente entre o ser e o pensar. Mas segundo ele
ela suprimiu esta contradição mantendo-se ainda em seu
interior, ou seja, no interior de um dos elementos dessa
contradição, a saber, o pensamento. Em Hegel o pensamento
é precisamente o ser: o pensamento é sujeito, o ser é
atributo [8]. Daí decorre que Hegel - em geral o idealismo - só
suprime a contradição por meio da supressão de seus
elementos constitutivos, a saber, o ser ou a existência da
matéria, da natureza. Mas suprimir um dos elementos
constitutivos da contradição não significa absolutamente
resolvê-la. "A doutrina de Hegel, segundo a qual a natureza "é
criada" pela idéia representa a tradução, em linguagem
filosófica, da doutrina teológica segundo a qual, a natureza é
criada por Deus, a realidade, a matéria, por um ser abstrato,
imaterial" [9]. E isto não se refere apenas ao idealismo
absoluto de Hegel. O idealismo transcendental de Kant,
segundo o qual o mundo exterior recebe suas leis da Razão, e
não inversamente, é estreitamente aparentado à concepção
teológica segundo a qual é a razão divina que dita ao mundo
as leis que o regem [10]. O idealismo não estabeleceu a
unidade entre o ser e o pensamento, e não pode estabelecê-
la, ao contrário, ele a rompe. O ponto de partida da filosofia
idealista - o eu, como princípio filosófico fundamental - é
totalmente errado. O ponto de partida da verdadeira filosofia
não deve ser o eu, mas o eu e o tu. Só este ponto de partida
permite chegar a uma justa compreensão das relações entre o
pensamento e o ser, entre o sujeito e o objeto. Eu sou "eu"
para mim mesmo e simultaneamente "tu" para um outro. Eu
sou ao mesmo tempo sujeito e objeto. É necessário observar,
além disso, que o "eu", não é o ser abstrato com o qual opera
a filosofia idealista. Eu sou um ser real; meu corpo pertence à
minha existência; ainda mais meu corpo, considerado como um
todo, é precisamente meu "eu", minha verdadeira entidade.
Não é o ser abstrato que pensa, mas precisamente esse ser
real, esse corpo. Daí resulta que, contrariamente ao que
afirmam os idealistas, é o ser material real que é sujeito, e o
pensamento atributo. E precisamente nisto que consiste a
única solução possível da contradição entre o ser e o pensar, a
qual se debatia sem resultado no idealismo. No presente caso,
não se suprime nenhum dos elementos da contradição; eles
são conservados ambos, ao mesmo tempo em que manifestam
sua verdadeira unidade. "O que para mim, ou subjetivamente,
é um ato puramente espiritual, imaterial, não sensível, é em
si, objetivamente, um ato material sensível" [11].

Observemos que, dizendo isso, Feuerbach aproxima-se


de Espinosa, cuja filosofia ele expunha com muita simpatia já
na época em que seu divórcio com o idealismo apenas se
esboçava, ou seja, quando escrevia sua história da nova
filosofia. Em 1843, ele observa muito habilmente em seus
Grunsatze que o panteísmo é um materialismo teológico, uma
negação da teologia, negação que se mantém num ponto de
vista teológico. E nessa confusão do materialismo com a
teologia que residia a inconseqüência de Espinosa,
inconseqüência que, entretanto, não o impediu de encontrar "a
expressão justa, ao menos para seu tempo, para os conceitos
materialistas da época moderna". Por
isso Feuerbach denominava Espinosa "o Moisés dos livres-
pensadores e materialistas modernos" [12]. Em
1847, Feuerbach coloca a questão: "O que Espinosa chama,
lógica ou metafisicamente, substância, e teologicamente,
Deus?" E, a essa questão, ele responde
categoricamente: "Nada mais que a natureza". Ele vê como
principal falha do espinosismo que a essência sensível,
antiteológica da natureza, adquire, para ele, o aspecto de um
ser abstrato, metafísico". Espinosa suprimiu o dualismo entre
Deus e a natureza, pois considera os fenômenos naturais como
atos de Deus. Mas, precisamente porque os fenômenos
naturais são a seus olhos os atos de Deus, este último
permanece para ele um tipo de ser distinto da natureza e sobre
o qual ela se apóia. Deus se apresenta como sujeito, a natureza
como atributo. A filosofia, que se emancipou definitivamente
das tradições teológicas, deve suprimir essa falha considerável
da filosofia, no fundo exata, de Espinosa. "Abaixo esta
contradição!" exclama Feuerbach. Não Deus "sive natura",
mas "Aut deus aut natura". Aí está a verdade. [13]

Portanto, o humanismo de Feuerbach aparece como não


sendo outra coisa que o espinosismo desembaraçado de seu
apêndice teológico. Foi precisamente este espinosismo
desembaraçado por Feuerbach de seu apêndice teológico, que
Marx e Engels adotaram, quando romperam com o idealismo.

Mas desembaraçar o espinosismo de seu apêndice teológico


significava desvendar seu verdadeiro conteúdo materialista.
Logo, o espinosismo de Marx e Engels, era precisamente o
materialismo mais moderno.

Mas não é tudo. O pensar não é a causa do ser, mas sua


conseqüência, ou mais exatamente, sua
propriedade. Feuerbach diz: "Folge und Eigenschaft"
(conseqüência e propriedade). Eu sinto e eu penso, de maneira
alguma como um sujeito oposto ao objeto, mas como um
sujeito-objeto, como um ser real, material. E o objeto é para
mim, não apenas a coisa que eu sinto, mas também o
fundamento, a condição indispensável de minha sensação. O
mundo objetivo não se encontra apenas fora de mim, ele está
também em mim, em minha própria pele. O homem é só uma
parte da natureza, uma parte do ser; eis porque não há lugar
para a contradição entre seu pensamento e seu ser. O espaço
e o tempo não existem apenas para o pensamento. Eles são
igualmente formas do ser. São formas da minha contemplação.
Mas eles o são unicamente porque eu mesmo sou um ser que
vive no tempo e no espaço e que só percebo e sinto porque sou
um tal ser. De maneira geral, as leis do ser são ao mesmo
tempo também as leis do pensar.

Assim se expressava Feuerbach [14]. E é também isso que


dizia Engels, se bem que em outros termos, em sua polêmica
contra Dühring. Já se vê qual parte importante da filosofia
de Feuerbach foi transportada para a filosofia de Marx
e Engels.

Se Marx começou sua obra de interpretação materialista da


história pela crítica da filosofia hegeliana do direito, só pôde
assim proceder porque a crítica da filosofia especulativa
de Hegel já fora feita por Feuerbach.

Mesmo criticando Feuerbach em suas teses, Marx muito


freqüentemente desenvolve e completa suas idéias. Eis um
exemplo extraído do domínio da "gnosiologia".
Segundo Feuerbach, o homem, antes de pensar o objeto,
experimenta sobre si sua ação, contempla-o, sente-o.

Marx tem em vista esse pensamento de Feuerbach, quando


diz: "A principal falha do materialismo - aí incluído o
de Feuerbach - consistia, até aqui, em que ele só concebe a
realidade, o mundo objetivo e sensível sob a forma do objeto
ou sob a forma da contemplação e não como atividade humana
concreta, não como exercício prático, não subjetivamente". É
esta falha do materialismo, diz Marx adiante, que explica
que Feuerbach, em seu livro sobre a Essência do Cristianismo,
só considere como atividade verdadeiramente humana a
atividade teórica. Em outros termos, Feuerbach chama a
atenção para o fato que nosso "eu" conhece o objeto somente
expondo-se à sua ação [15]; entretanto Marx replica: nosso
"eu" conhece o objeto agindo, por sua vez, sobre ele. O
pensamento de Marx é perfeitamente justo: já dissera Fausto:
"No começo era a ação".

Certamente pode-se responder, em defesa de Feuerbach,


que também no processo de nossa ação sobre os objetos, nós
só conhecemos suas propriedades, na medida em que eles
agem, por sua vez, sobre nós. Nos dois casos, o pensamento é
precedido pela sensação: nos dois casos, experimentamos de
início as propriedades dos objetos e somente após pensamos
sobre elas. Marx não o negava. Para ele, não se tratava do fato
incontestável que a sensação precede o pensamento, mas do
fato que o homem é levado ao pensamento principalmente
pelas sensações que experimenta no processo de sua ação
sobre o mundo exterior. E como esta ação sobre o mundo
exterior lhe é imposta pela luta pela existência, a teoria do
conhecimento está, em Marx, estreitamente ligada à sua
concepção materialista da história. Não é sem razão que este
mesmo pensador, que redigira contra Feuerbach a tese acima
referida, escreveu no primeiro tomo de seu Capital: "Agindo
sobre a natureza, exterior a si, o homem transforma ao mesmo
tempo sua própria natureza". Esta fórmula só revela todo seu
profundo sentido à luz da teoria do conhecimento formulada
por Marx. E veremos adiante até que ponto esta teoria é
confirmada pela história da civilização e pela lingüística. É
necessário reconhecer entretanto que a teoria do
conhecimento de Marx provém em linha direta da
de Feuerbach ou, se quisermos, que ela é, propriamente
falando, a de Feuerbach, só que aprofundada, de forma genial,
por Marx.

Acrescentemos, de passagem, que este aperfeiçoamento


genial havia sido sugerido pelo "espírito da época". A tendência
a considerar a relação recíproca de ação e reação entre o objeto
e o sujeito precisamente da perspectiva em que o sujeito
assume um papel ativo, era o reflexo do estado de espírito que
animava a sociedade da época, onde se precisou a concepção
de mundo de Marx e Engels. A revolução de 1848 já não estava
longe...
III

A teoria da unidade entre o sujeito e o objeto, entre o


pensar e o ser, que é própria tanto a Feuerbach quanto a Marx
e Engels, foi igualmente a dos materialistas mais eminentes
dos séculos XVII e XVIII.

Nós havíamos mostrado algures [16] que La Mettrie


e Diderot haviam chegado - se bem que, é necessário dizer,
cada um por via distinta - a uma concepção do mundo que era
"uma espécie de espinosismo'', quer dizer, a um espinosismo
privado de seu apêndice teológico, que lhe desfigurava o
verdadeiro conteúdo. Seria fácil demonstrar que, no que
concerne à unidade entre o sujeito e o objeto, Hobbes está
também muito próximo de Espinosa. Mas isto nos levaria muito
longe. E, além disso, não existe nenhuma necessidade
premente em fazê-lo. Será bem mais interessante para o leitor
constatar que atualmente todo naturalista que reflete, por
pouco que seja, sobre a questão das relações entre o pensar e
o ser, chega à teoria de sua unidade que encontráramos
em Feuerbach.

Quando Huxley escrevia: "Em nossos dias, nenhum


daqueles que estão ao corrente da ciência contemporânea e
que conhecem os fatos, pode duvidar que é necessário buscar
as bases da psicologia, na fisiologia do sistema nervoso e que
aquilo que chamamos de atividade do espírito é um complexo
de funções cerebrais" [17], ele exprimia precisamente o que
dizia Feuerbach. Só que aí agregava concepções bem menos
claras e por isso pôde tentar aliar sua maneira de ver ao
ceticismo filosófico de Hume [18].

Da mesma forma o "monismo" de Haeckel, aquela doutrina


que tanta repercussão teve, nada mais é que uma doutrina
puramente materialista, no fundo, próxima da doutrina
de Feuerbach sobre a unidade entre o sujeito e o objeto. Mas
Haeckel conhece muito mal a história do materialismo e por
isto julga necessário combater "seu caráter unilateral", quando
deveria dar-se ao trabalho de estudar a teoria materialista do
conhecimento na forma que ela adquiriu em Feuerbach e Marx.
Isso o teria preservado contra muitos erros e opiniões
unilaterais que facilitam consideravelmente a seus adversários
lutar contra ele no terreno filosófico.

Em suas diferentes obras, como por exemplo, no relatório


intitulado "Cérebro e Alma", lido no 66º congresso dos
naturalistas e médicos alemães em Viena (26 de setembro de
1894), Auguste Forel [19] aproxima-se muito do materialismo
moderno, do materialismo de Feuerbach-Marx-Engels. Em
certos pontos, Forel não apenas expressa idéias muito
semelhantes às de Feuerbach, mas, o que é verdadeiramente
surpreendente, ele dispõe seus argumentos exatamente da
mesma forma que Feuerbach.

Segundo Forel, cada novo dia traz novas e convincentes


provas do fato que a psicologia e a fisiologia do cérebro são
apenas duas formas diferentes de considerar "uma só e mesma
coisa". O leitor não terá esquecido o ponto de vista idêntico
de Feuerbach, citado acima, sobre esta questão. Este ponto de
vista, pode-se completar aqui com a seguinte frase
de Feuerbach: "Eu sou para mim mesmo um objeto
psicológico; mas um objeto fisiológico para o
outro" [20]. Afinal, a idéia principal de Forel se reduz à tese na
qual a consciência é "um reflexo interior da atividade
cerebral" [21]. E isto já é uma concepção puramente
materialista.

Os idealistas e os kantistas de todas as espécies e de todos


os matizes objetam aos materialistas que nós podemos
conhecer diretamente apenas o aspecto físico dos fenômenos
tratados por Forel e Feuerbach. Esta objeção, Schelhing já
havia formulado de forma extremamente clara. Ele dizia que o
"espírito permanecerá para sempre uma ilha, à qual só se
poderia atingir através do oceano da matéria, sob condição de
dar um salto". Forel sabe perfeitamente disso, mas prova de
forma concludente que a ciência seria verdadeiramente
impossível, se nós não quisermos ultrapassar os limites desta
ilha. "Cada homem", diz ele, "não teria mais que a psicologia
de seu subjetivismo e deveria positivamente colocar em dúvida
a existência do mundo exterior, inclusive a dos outros
homens" [22]. Mas tal dúvida é um absurdo. "As conclusões
tiradas por analogia, a indução aplicada segundo as ciências
naturais e físicas, a comparação da experiência de nossos cinco
sentidos nos provam a existência do mundo exterior, assim
como a de nossos semelhantes e de sua psicologia. Da mesma
forma, elas nos mostram que há uma psicologia comparativa,
uma psicologia dos animais. Enfim, nossa própria psicologia
seria para nós incompreensível e cheia de contradições, se
quiséssemos considerá-la fora de toda relação com a atividade
de nosso cérebro; ela estaria sobretudo em contradição com a
lei da conservação da energia" [23].

Feuerbach não se limita a indicar as contradições nas quais


caem inevitavelmente aqueles que repudiam o ponto de vista
materialista; ele mostra também por qual caminho os idealistas
atingem sua "ilha". Ele diz: "Eu sou eu para mim mesmo e tu
para os outros. Mas só o sou enquanto ser sensível, ou seja,
material. Mas a razão abstrata isola este 'ser para si mesmo'
enquanto substância, átomo, 'eu', Deus. Eis porque ela só pode
estabelecer de maneira arbitrária a relação entre o 'ser para si
mesmo' e o 'ser para os outros'. Aquilo que eu penso sem
sensibilidade, eu penso fora de toda relação"[24]. Esta
consideração extremamente importante é acompanhada
em Feuerbach, da análise do processo de abstração que
culmina no nascimento da lógica hegeliana como doutrina
ontológica [25].

Se Feuerbach dispusesse dos conhecimentos que fornece a


etnologia atual, teria podido acrescentar que o idealismo
filosófico procede, historicamente, do animismo, próprio às
raças primitivas. Isso já havia sido indicado por E.
Taylor [26], e alguns historiadores da filosofia [27] já
começaram a levar parcialmente em conta - se bem que, no
momento, mais como curiosidade do que como um fato de
considerável importância teórica.

Todas estas considerações e argumentos de Feuerbach não


somente eram bem conhecidos de Marx e Engels, que sobre
elas haviam refletido profundamente, mas contribuíram,
indubitavelmente em grande medida, para a formação de sua
própria concepção do mundo. Se, mais
tarde, Engelsmanifestou o maior desprezo pela filosofia alemã
posterior a Feuerbach, é porque ela nada mais fazia, em sua
opinião, que reanimar os velhos erros filosóficos
que Feuerbach já havia revelado. E, na realidade, assim era.
Nenhum dos modernos críticos do materialismo trouxe um
argumento que já não tenha sido refutado, seja pelo
próprio Feuerbach, ou ainda antes dele, pelos materialistas
franceses. Mas, para os "críticos de Marx" - E. Bernstein, K.
Schmidt, B. Croce e outros - a "deplorável sopa eclética" da
filosofia alemã mais moderna parece um prato novo: eles aí se
alimentam e, vendo que Engels não considerava útil dele
ocupar-se acreditavam que ele se "esquivava" ao exame de
uma argumentação que já há muito ele analisara e declarara
sem nenhum valor. É uma velha história, sempre nova, no
entanto. Os ratos jamais deixarão de acreditar que o gato é
muito mais forte que o leão.

Mesmo reconhecendo a incrível semelhança e, em parte, a


identidade das concepções de Feuerbach e Forel, observemos
que, se este último possui conhecimentos muito mais
consideráveis no domínio das ciências naturais, Feuerbach era-
lhe muito superior no domínio filosófico. E por isso Forel comete
erros que não encontramos em Feuerbach. Forel chama sua
teoria de teoria psicofisiológica da identidade [28]. A isto nada
há de essencial a objetar, pois toda terminologia é coisa
convencional. Mas como a teoria da identidade esteve outrora
na base de uma filosofia idealista bem determinada, Forel teria
feito melhor chamando sua doutrina, franca e corajosamente,
de doutrina materialista. Mas ele conservou, visivelmente,
alguns preconceitos contra o materialismo e essa é a razão pela
qual escolheu outro nome. Por isso consideramos necessário
advertir que a identidade, no sentido que lhe dá Forel, nada
tem em comum com a identidade no sentido idealista corrente.

Os "críticos de Marx" tampouco sabem disso. Em sua


polêmica conosco, K. Schmidt atribuía aos materialistas a
doutrina idealista da identidade. Realmente, o materialismo
reconhece a unidade entre o sujeito e o objeto, mas nunca sua
identidade. E foi ainda Feuerbach que explicou isso muito bem.

Segundo Feuerbach, a unidade entre o sujeito e o objeto,


entre o pensar e o ser, só tem sentido quando o homem é
tomado como base desta unidade. Isto tem ainda um certo ar
de "humanismo" e a maioria dos que
estudaram Feuerbach acharam desnecessário refletir
seriamente sobre a forma na qual o homem serve de base da
unidade dos opostos acima mencionados. Na
realidade Feuerbach compreende isso da seguinte maneira: "O
pensamento só não está desligado do ser onde não é um
sujeito para si mesmo, mas o atributo de um ser real (quer
dizer, material)" [29]. Ora, em quais sistemas filosóficos o
pensamento é "sujeito para si mesmo", ou seja, algo
independente da existência corporal do indivíduo pensante? A
resposta é clara: nos sistemas idealistas. Os idealistas
transformam inicialmente o pensamento em uma entidade
autônoma, independente do homem (em "sujeito para si") e,
depois, declaram que, nessa entidade - precisamente porque
ela tem existência distinta, independente da matéria - se
resolve a contradição entre o ser e o pensamento. E, com
efeito, ela aí se resolve, pois o que é afinal esta entidade? li o
pensamento. E este pensamento tem uma existência
completamente independente. Mas esta solução da contradição
é uma solução puramente formal. Obtém-se este resultado,
como já havíamos dito, suprimindo um dos elementos da
contradição, a saber, o ser independente do pensar. O ser se
apresenta como simples propriedade do pensar e, quando
dizemos que tal objeto existe, isto apenas significa que ele
existe em nosso pensamento. Assim o compreendia, por
exemplo, Schelling. Para ele, o pensar era o princípio absoluto,
de onde procedia necessariamente o mundo real, que dizer, a
natureza e o espírito "finito". Mas como? Que significava a
existência do mundo real? Nada mais que a existência no
pensamento. Para Schelling, o universo era só
autocontemplação do espírito absoluto. O mesmo se dava
em Hegel. Mas Feuerbach não se contenta com tal solução,
puramente formal, da contradição entre o pensar e o ser. Ele
mostra que não há e não pode haver pensamento
independente do homem, quer dizer, do ser real, material. O
pensamento é uma atividade do cérebro. "Mas o cérebro só é
um órgão de pensamento na medida em que está ligado a uma
cabeça e a um corpo humanos" [30].

Vemos agora em que sentido o homem é, para Feuerbach,


a base da unidade entre o ser e o pensar; no sentido em que
ele mesmo nada mais é que um ser material que possui a
faculdade de pensar. Mas se ele é um tal ser, está claro que
nenhum dos elementos da contradição tem necessidade de ser
nele suprimido: nem o ser, nem o pensar, nem a "matéria",
nem o "espírito", nem o sujeito, nem o objeto. Eles nele se
unem exatamente como um sujeito-objeto. "Eu sou e eu
penso... unicamente como um sujeito-objeto", diz Feuerbach.

Ser não significa existir no pensamento. Neste aspecto, a


filosofia de Feuerbach é muito mais clara que a de J. Dietzgen.
"Provar que uma coisa existe", diz Feuerbach, "é provar que
ela existe não simplesmente no pensamento" [31]. E isto é
perfeitamente justo. Mas isto quer dizer que a unidade do
pensar e do ser não significa e não pode significar, sua
identidade. Aqui aparece um dos traços mais importantes que
distinguem o materialismo do idealismo.
IV

Quando se diz que Marx e Engels foram durante certo


tempo adeptos de Feuerbach, freqüentemente quer-se dizer
com isto, que sua concepção do mundo se modificou
posteriormente e se diferenciou completamente da
de Feuerbach. É também o que pensa K. Diehl, que acha que
normalmente se exagera muito a influência exercida
por Feuerbach sobre Marx [32]. Aí está um erro formidável.
Mesmo após ter deixado de seguir Feuerbach, Marx
e Engels continuaram a partilhar de uma parte considerável de
seus pontos de vista filosóficos. É isto que aparece claramente
nas teses de Marx sobre Feuerbach. Estas teses não refutam
absolutamente Feuerbach; elas as completam apenas e,
sobretudo, exigem que estas idéias sejam, de forma mais
conseqüente que em Feuerbach, aplicadas à interpretação da
realidade que rodeia o homem e, em particular, a interpretação
de sua própria atividade. "Não é o pensar que determina o ser,
é o ser que determina o pensar". Este pensamento que está na
base de toda filosofia de Feuerbach, Marx e Engelso colocam
também na base da interpretação materialista da história. O
materialismo de Marx e Engels é uma doutrina bem mais
desenvolvida que o materialismo de Feuerbach. Mas as
concepções materialistas de Marx e Engels se desenvolveram
no próprio sentido indicado pela lógica interna da filosofia
de Feuerbach. Eis porque estas concepções e particularmente
seu aspecto filosófico, jamais serão completamente claras para
aquele que não quiser se dar ao trabalho de conhecer a parte
considerável da filosofia de Feuerbach que entrou na
concepção do mundo dos fundadores do socialismo científico.
E se vocês virem alguém esforçar-se por encontrar um
"fundamento filosófico" para o materialismo histórico, esteja
persuadido que existe, no saber deste mortal, apesar de sua
profundidade, grande lacuna a este respeito.

Mas deixemos os espíritos profundos entregues a seus


trabalhos. Já em sua terceira tese sobre Feuerbach, Marx
aborda o problema mais árduo de todos os que devia enfrentar
no domínio da "prática" histórica do homem social e que
resolve com a ajuda do conceito justo, elaborado
por Feuerbach, da unidade entre o sujeito e o objeto. Esta tese
é assim concebida: "A doutrina materialista segundo a qual os
homens são produtos das circunstâncias e da educação... não
tem em conta o fato que as circunstâncias são modificadas
precisamente pelos homens e que o próprio educador também
deve ser educado". Uma vez resolvido este problema, o
"segredo" da interpretação materialista da história foi
encontrado. Mas precisamente Feuerbach não podia resolvê-
lo. No domínio da história, ele permanecia idealista -
exatamente como os materialistas franceses do século XVIII,
com os quais ele tinha aliás muitos traços comuns. Então foi
necessário a Marx e Engels tudo reconstruir, utilizando o
material teórico acumulado até então pela ciência social e, era
particular, pelos historiadores franceses da época da
Restauração. Mas, também no que se refere a isto, a filosofia
de Feuerbach lhes forneceu um grande número de indicações
preciosas. Feuerbach disse particularmente: "A arte, a religião,
a filosofia e a ciência não são mais que as manifestações ou as
revelações da 'essência humana' " [33]. Daí decorre que é
necessário procurar na "essência humana" a explicação de
todas as ideologias, ou seja, que a sua evolução é determinada
pela evolução da "essência humana". Mas o que é a essência
humana? A isto Feuerbach responde: "A essência humana só
reside na comunidade, na unidade do homem com o
homem" [34]. É muito vago. E eis-nos diante do limite
que Feuerbach jamais ultrapassou. Mas é justamente para
além deste limite que começa o domínio da interpretação
materialista da história descoberta por Marx e Engels. Esta
interpretação nos indica as causas que que determinam, no
curso da evolução humana, "a comunidade, a unidade do
homem com o homem", ou seja, as relações mútuas que os
homens estabelecem entre si. Este limite, que separa Marx
de Feuerbach, mostra também até que ponto eles estão
próximos.

Lê-se na sexta tese sobre Feuerbach que a essência


humana é o conjunto de todas as relações sociais. É bem mais
preciso que em Feuerbach, mas aqui se revelam, talvez mais
claramente que em qualquer outro lugar, as estreitas relações
existentes entre a concepção do mundo de Marx e a filosofia
de Feuerbach.
Quando Marx escreveu esta tese, já conhecia não só a
direção na qual era necessário buscar a solução do problema,
mas também a própria solução. Em sua "Introdução à Critica
da Filosofia do Direito de Hegel", ele mostrara que as relações
dos homens em sociedade, "as relações jurídicas, assim como
as formas do Estado, não podem ser explicadas nem por si
mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito
humano; que elas têm suas raízes nas condições materiais de
existência, cujo conjunto foi denominado "sociedade civil"
por Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século XVIII;
que a anatomia da sociedade civil deve ser buscada em sua
"economia".

Não faltava, daí por diante, senão explicar a origem e a


evolução da economia, para ter a solução completa do
problema que o materialismo não pudera resolver durante
séculos. E esta explicação foi dada por Marx e Engels.

É evidente que, falando de solução completa deste grande


problema, nós só temos em vista a solução geral, algébrica,
que o materialismo não pôde encontrar durante vários séculos.
É evidente que falando de solução completa, nós temos em
vista, não a aritmética do desenvolvimento social, mas sua
álgebra, não a explicação das causas dos diferentes
fenômenos, mas a explicação do procedimento ao qual é
preciso ater-se para descobrir estas causas. Isto significa que
a interpretação materialista da história tem sobretudo um valor
metodológico. Isso Engels compreendia muito bem quando
escreveu: "O que é necessário, não são tanto os resultados
brutos quanto o estudo; os resultados nada são sem a evolução
que a eles conduziu" [35]. Mas é isto que não compreendem,
a maior parte do tempo, nem os "críticos" de Marx - aos quais,
como se diz, o Senhor perdoará - nem alguns de seus
"adeptos", o que é bem pior. Miguel Ângelo dizia: "Meus
conhecimentos engendrarão um grande número de
ignorantes". Essa predição infelizmente se verificou. Agora, são
os conhecimentos de Marx que engendram ignorantes. A falha
não é, evidentemente, de Marx, mas daqueles que dizem
tantas tolices em seu nome. Mas para evitar estas tolices é
necessário precisamente compreender o valor metodológico do
materialismo histórico.
V

Um dos maiores méritos de Marx e Engels no que diz


respeito ao materialismo é o de ter criado um método justo.
Concentrando todos os seus esforços na luta contra o elemento
especulativo da filosofia de Hegel, Feuerbach dela havia pouco
apreciado e utilizado o elemento dialético. Ele declarava: "A
verdadeira dialética não é absolutamente um monólogo do
pensador solitário consigo mesmo, é um diálogo entre o eu e o
tu" [36]. Mas, em primeiro lugar, para Hegel, a dialética não
tinha tampouco o valor de um "monólogo do pensador solitário
consigo mesmo", e, em segundo, a observação
de Feuerbach define de forma justa o ponto de partida, mas
não o método da filosofia. Esta lacuna foi preenchida por Marx
e Engels, que compreenderam que não era necessário, ao
combater a filosofia especulativa de Hegel, ignorar sua
dialética. Alguns críticos afirmam que, nos primeiros tempos
após sua ruptura com o idealismo, Marx manifestava também
uma grande indiferença para com a dialética. Mas esta opinião,
que parece exata à primeira vista, é desmentida pelo fato,
assinalado anteriormente, que já nos "Deutsch-französische
Jahrbücher" (Anais Franco-Alemães), Engels tratava o método
como a própria alma do novo sistema [37].

E em todo caso, a segunda parte da "Miséria da Filosofia"


não deixa nenhuma dúvida sobre o fato que Marx, na época de
sua polêmica com Proudhon, apreciava perfeitamente o valor
do método dialético e sabia muito bem dele servir-se. Nesta
discussão, a vitória de Marx sobre Proudhon foi a de um
homem que sabe pensar dialeticamente, sobre outro que não
soubera compreender a essência da dialética, mas entretanto
se esforçara em aplicar o método dialético na análise da
sociedade capitalista. E esta mesma segunda parte da "Miséria
da Filosofia" mostra que a dialética que, em Hegel, tivera um
caráter puramente idealista, e o mantivera em Proudhon, na
proporção em que este o assimilara, foi assentada por Marx
sobre um fundamento materialista.

Posteriormente, caracterizando sua dialética materialista,


Marx escrevia: "Para Hegel, o processo lógico, que ele
transforma em sujeito autônomo, denominando-o idéia, é o
demiurgo da realidade, a qual não é outra coisa que sua
manifestação exterior. Para mim, é justamente o contrário: o
ideal é apenas o material transformado e traduzido no cérebro
humano". Esta caracterização pressupõe um acordo completo
com Feuerbach, em primeiro lugar, no que concerne à opinião
sobre a "idéia" de Hegel e, em segundo, no que concerne às
relações entre o pensamento e o ser. Apenas um homem
convencido da justeza do princípio fundamental da filosofia
de Feuerbach — não é o pensar que condiciona o ser, mas o
ser que condiciona o pensar — era capaz de "colocar sobre seus
próprios pés" a dialética hegeliana.

Muitas pessoas confundem a dialética com a doutrina da


evolução. A dialética é, com efeito, uma doutrina da evolução.
Mas ela difere essencialmente da "teoria da evolução" vulgar,
que repousa essencialmente sobre o princípio que nem a
natureza, nem a história dão saltos e que todas as
transformações no mundo só se dão gradualmente.
Já Hegel demonstrara que, assim compreendida, a doutrina da
evolução era inconsistente e ridícula.

"Quando queremos representar o aparecimento ou o


desaparecimento de qualquer coisa" — diz ele no primeiro tomo
de sua Lógica — "os representamos geralmente como um
aparecimento ou desaparecimento graduais. No entanto, as
transformações do ser são, não apenas a passagem de uma
quantidade à outra, mas também a passagem da quantidade à
qualidade e, inversamente, passagem que, acarretando a
substituição de um fenômeno por outro, é uma ruptura da
progressividade" [38]. E cada vez que há uma ruptura da
progressividade produz-se um salto no curso do
desenvolvimento. Hegel mostra adiante, através de toda uma
série de exemplos, com qual freqüência se produzem saltos na
natureza tanto quanto na história, e desvenda o erro ridículo
que está na base da "teoria da evolução" vulgar. "Na base da
doutrina da progressividade", diz ele, "encontra-se a idéia que
aquilo que surge já existe efetivamente e permanece
imperceptível unicamente em razão de sua pequenez. Da
mesma forma, quando se fala de desaparecimento gradual de
um fenômeno, representa-se este desaparecimento como um
fato consumado, como se o fenômeno que toma o lugar do
procedente já existisse, mas ainda não sendo perceptíveis,
nem um nem outro... Mas desta forma, suprime-se de fato todo
aparecimento e todo desaparecimento... Explicar o
aparecimento ou o desaparecimento de um fenômeno dado,
pela progressividade da transformação, é levar tudo a uma
tautologia fastidiosa, pois é considerar como previamente
pronto (quer dizer, como já aparecido ou como já
desaparecido) tudo aquilo que está em vias de aparecer ou de
desaparecer" [39].

Marx e Engels adotaram inteiramente esta concepção


dialética de Hegel, sobre a inevitabilidade dos saltos no
processo do desenvolvimento. Engels a desenvolve de maneira
detalhada em sua polêmica com Dühring e, nesta ocasião, ele
a "coloca sobre os próprios pés", quer dizer, sobre uma base
materialista.

E assim ele mostra que a passagem de uma forma de


energia à outra, não pode consumar-se de outra forma que por
meio de um salto. Assim, ele procura na química moderna a
confirmação do princípio dialética da transformação da
quantidade em qualidade. Em geral, as leis do pensamento
dialético são confirmadas, segundo ele, pelas propriedades
dialéticas do ser. Aqui ainda, o ser condiciona o pensar.

Sem entrar numa caracterização detalhada da dialética


materialista (no que concerne às suas relações com a chamada
lógica elementar, paralelamente à matemática elementar, ver
nosso prefácio à nossa tradução da brochura Ludwig
Feuerbach) [40], lembraremos ao leitor que a teoria que via no
processo da evolução apenas modificações progressivas e que
dominou no decorrer dos últimos vinte anos, começou a perder
terreno mesmo no domínio da biologia, onde antes era quase
que universalmente reconhecida. Em relação a isto, os
trabalhos de Armand Gautier e Hugo de Vries parece que
deverão marcar época. É suficiente dizer que a teoria das
mutações de Vries não é outra coisa que a teoria da evolução
das espécies operando-se por saltos. (Ver sua obra em dois
tomos: Die Mutationstheorie, Leipzig 1901-1903; seu relatório:
Die Mutationen und die Mutationsperioden bei der Entstehung
der Arten, Leipzig 1901, assim como suas conferências na
Universidade da Califórnia, editadas em tradução alemã sob o
título: Arten und Varietaten und ihre Entstehung durch die
Mutation, Berlim 1906).

Na opinião deste eminente naturalista, o aspecto fraco da


teoria de Darwin sobre a origem das espécies é precisamente
a idéia que esta origem possa ser explicada por transformações
graduais [41]. Também muito interessante e justa é a
observação de De Vries, que constata que a teoria das
transformações graduais, que dominava na doutrina da origem
das espécies, exerceu uma influência desfavorável sobre o
estudo experimental das questões relativas a este
domínio [42].

É preciso acrescentar que, nos meios naturalistas


modernos, e muito particularmente entre os neolamarckistas,
observa-se uma difusão bastante rápida da teoria da matéria
animada, teoria segundo a qual a matéria em geral e a matéria
orgânica, em particular, considerada por alguns como sendo
diretamente aposta ao materialismo (ver, por exemplo, o livro
de R. H. Francé: Der heutige Stand der Darwin'shen Frage,
Leipzig 1907), representa na realidade, se ela é compreendida
de forma justa, apenas a tradução, em linguagem naturalista
moderna, da doutrina materialista de Feuerbach, da unidade
entre o ser e o pensar, entre o objeto e o sujeito [43]. Pode-
se afirmar com certeza que Marx e Engels teriam mostrado o
maior interesse por esta corrente das ciências naturais, que
está, na verdade, no momento, ainda muito insuficientemente
estudada.

Alexandre Herzen diz com razão que a filosofia de Hegel,


por muitos considerada como conservadora em alto grau, é
uma verdadeira álgebra da revolução [44]. Mas em Hegel, esta
álgebra ficava sem nenhuma aplicação às questões candentes
da vida prática. O elemento especulativo devia introduzir
necessariamente o espírito de conservadorismo na filosofia do
grande idealista. Ocorre diferentemente com a filosofia
materialista de Marx. A "álgebra" revolucionária aí aparece com
toda força invencível de seu método dialético. Marx diz: "Em
sua forma mística, a dialética se tornou moda alemã, porque
ela parecia glorificar o estado de coisas existente. Em sua
forma racional, a dialética não é, aos olhos da burguesia e de
seus teóricos, senão escândalo e horror, porque além da
compreensão positiva do que existe, ela engloba também a
compreensão da negação, do desaparecimento inevitável do
estado de coisas existente; porque ela considera toda forma
sob o aspecto do movimento, portanto também sob seu
aspecto transitório; porque ela não se inclina diante de nada e
é, por sua essência, crítica e revolucionária".

Se se considera a dialética materialista do ponto de vista


da literatura russa, pode-se dizer que esta dialética foi a
primeira a fornecer um método necessário e suficiente para a
solução da questão do caráter racional de tudo aquilo que é,
problema que tanto havia atormentado nosso genial
Bielinski[45]. Apenas o método dialético de Marx, aplicado ao
estudo da vida russa, mostrou-nos o que havia de real e o que
apenas parecia sê-lo.
VI

Quando abordamos a interpretação materialista da história,


enfrentamos de início, como vimos, a questão de saber onde
estão as verdadeiras causas do desenvolvimento das relações
sociais. Já sabemos que a "anatomia da sociedade civil" é
determinada por sua economia. Mas o que é que determina
esta economia?

A isto Marx responde: "Na produção social de sua vida, os


homens se acham ligados por certas relações indispensáveis,
independentes de sua vontade, por relações de produção , que
correspondem a um grau determinado da evolução de suas
forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de
produção constitui a estrutura econômica da sociedade, o
fundamento real sobre o qual se levanta a superestrutura
jurídica e política" [46].

Esta resposta de Marx reduz, pois, toda a questão do


desenvolvimento da economia às das causas que condicionam
o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade. E,
nesta última forma, a questão se resolve antes de mais nada
pela indicação das propriedades do meio geográfico.

Já Hegel assinala, em sua filosofia da história, o papel


importante da "base geográfica da história universal". Mas
como, para ele, a causa de toda evolução é no final de contas,
a Idéia, e como ele só recorria à explicação materialista dos
fenômenos de passagem e nos casos de importância
secundária, por assim dizer, contra vontade, a concepção
profundamente justa expressa por ele sobre a grande
importância histórica do meio geográfico não poderia levá-lo a
todas as fecundas conclusões que daí decorrem. Estas
conclusões só foram tiradas em toda sua amplitude pelo
materialista Marx [47].

As propriedades do meio geográfico determinam o caráter,


tanto dos produtos da natureza dos quais se serve o homem
para satisfazer suas necessidades, quanto dos objetos que ele
produz para o mesmo fim. Onde não existiam metais, as tribos
aborígines não puderam ultrapassar com seus próprios meios
os limites da chamada "idade da pedra". Da mesma forma,
para que os pescadores e os caçadores primitivos pudessem
passar ao pastoreio e à agricultura, eram necessárias
condições geográficas apropriadas, ou seja, uma fauna e uma
flora correspondentes. L. G. Morgan observa que a ausência,
no Hemisfério Ocidental, de animais passíveis de serem
domesticados, assim como as diferenças existentes entre as
floras dos dois hemisférios, explicam o curso tão diferente da
evolução social de seus habitantes [48].

Waitz diz a respeito dos peles-vermelhas da América do


Norte: "Entre eles é completa a ausência de animais
domésticos. Este fato é muito importante, pois constitui o fator
principal que os mantém num baixo nível de
desenvolvimento" [49]. Schweinfurth relata que na África,
quando uma localidade está superpovoada, uma parte da
população emigra e então ocorre que ela modifica seu gênero
de vida segundo o meio geográfico. "As tribos que até então se
ocupavam da agricultura, passam à caça, e tribos que viviam
do pastoreio de seus rebanhos, passam à
agricultura" [50]. Segundo Schweinfurth, os habitantes de
uma região rica em ferro e que engloba uma parte considerável
da África Central, puseram-se naturalmente a produzir e a
trabalhar o ferro.

Mas ainda não é tudo. Já nos mais baixos estágios da


evolução humana, as tribos entram em relação umas com as
outras, trocando entre si seus produtos. Isto tem por resultado
alargar os limites do meio geográfico, o qual, por sua vez, influi
sobre o desenvolvimento das forças produtivas de cada uma
destas tribos, acelerando assim a marcha deste
desenvolvimento. Mas é compreensível que a facilidade maior
ou menor com a qual tais relações se estabelecem e se
desenvolvem depende também das propriedades do meio
geográfico. Hegel já dizia que os mares e os rios aproximam os
homens, enquanto as montanhas os separam. Os mares,
porém, só aproximam os homens quando o desenvolvimento
das forças produtivas já atingiu um nível relativamente
elevado. Quando este nível é baixo, o mar — como diz tão
justamente Ratzel — dificulta fortemente as relações entre as
raças que ele separa [51]. Mas, quaisquer que sejam, é
indubitável que, quanto mais variadas são as propriedades do
meio, mais elas são propícias ao desenvolvimento das forças
produtivas. "Não é a fertilidade absoluta do solo", diz Marx,
"mas sua diferenciação, a variedade de seus produtos naturais
que constituem a base natural da divisão social do trabalho e
que impulsionam o homem, em virtude da variedade das
condições naturais em que vive, a variar suas necessidades e
suas capacidades, seus meios e seus modos de
produção" [52]. Quase nos mesmos termos que Marx, Ratzel
diz: "O que importa, sobretudo, não é uma maior facilidade de
achar a alimentação, é que algumas tendências, certos hábitos
e, finalmente, algumas necessidades sejam despertadas no
próprio homem" [53].

Assim, portanto, as propriedades do meio geográfico


determinam o desenvolvimento das forças produtivas que, por
sua vez, determina o desenvolvimento das forças econômicas
e, com estas, o de todas as outras relações sociais. Marx
explica isto nos seguintes termos: "As relações sociais que os
produtores contraem entre si, as condições de sua atividade
recíproca e sua participação no conjunto da produção diferem
também segundo o caráter das forças produtivas. A invenção
de um novo instrumento de guerra, a arma de fogo, devia
necessariamente modificar toda a organização interior do
exército, as relações em cujo quadro os indivíduos formam um
exército e que dele fazem um conjunto organizado enfim,
também as relações entre exércitos diferentes".

Para tornar esta explicação mais concludente, citaremos


um exemplo. Os massais, na África oriental, matam seus
prisioneiros porque — como diz Ratzel — este povo de pastores
ainda não tem a possibilidade técnica de aproveitar utilmente
seu trabalho de escravos. Mas os wakambas, que são
agricultores próximos dos pastores, têm o meio de explorar
este trabalho, e por isso deixam vivos seus prisioneiros, que
escravizam. O aparecimento da escravidão pressupõe portanto
que as forças sociais atingiram um grau de desenvolvimento
que permite explorar o trabalho de cativos [54]. Mas a
escravidão é uma relação de produção cuja aparição marca o
início da divisão em classes numa sociedade que até então não
conhecia outras divisões que as correspondentes ao sexo e à
idade. Quando a escravidão atinge seu pleno desenvolvimento,
marca toda a economia da sociedade e, através desta
economia, todas as outras relações sociais e, antes de mais
nada, o regime político. Diferentes que fossem os Estados
antigos em seus regimes políticos tinham todos um traço
comum: cada um deles era uma organização política que
expressava e defendia os interesses dos homens livres.
VII

Sabemos agora que o desenvolvimento das forças


produtivas, que determina, em definitivo, o desenvolvimento
de todas as relações sociais, depende das propriedades do
meio geográfico. Mas, uma vez que certas relações sociais
surgem, elas exercem, por sua vez, uma grande influência
sobre o desenvolvimento das forças produtivas. De forma que,
aquilo que primitivamente foi uma conseqüência, se torna, por
sua vez, causa; entre a evolução das forças produtivas e o
regime social, se produz uma ação e uma reação recíprocas,
que tomam, em diferentes épocas, as formas mais variadas.

É preciso também não perder de vista que o estado das


forças produtivas condiciona não apenas as relações interiores
existentes no seio de uma dada sociedade, mas também suas
relações exteriores. A cada grau do desenvolvimento das forças
produtivas corresponde um caráter determinado do
armamento, da arte militar e, enfim, do direito internacional
ou, mais exatamente, do direito inter-social e, dentre outros,
do direito entre tribos. As tribos de caçadores não tem
condições de constituir organizações políticas consideráveis,
precisamente porque o baixo nível de suas forças produtivas
as obriga, segundo uma velha expressão russa, a se dispersar,
cada um por si, em pequenos grupos sociais à procura de sua
subsistência. Quanto mais, porém, estes grupos sociais "se
dispersam cada um por si'', mais é inevitável que se travem
lutas mais ou menos sangrentas para resolver aqueles litígios
que, numa sociedade civilizada, poderiam facilmente ser
ajustados por um juiz de paz. Eyre relata que, quando várias
tribos australianas se encontram para certos fins, numa
localidade determinada, estes contatos jamais são de longa
duração. Antes mesmo que a falta de alimento ou a
necessidade de partir à caça tenham obrigado os aborígines
australianos a se separarem, eclodem entre eles conflitos que
culminam rapidamente em batalhas [55].

Todos compreendem que semelhantes choques podem


produzir-se pelas causas mais diversas. Mas é notável que a
maioria dos viajantes as atribuam a causas econômicas.
Quando Stanley perguntava aos indígenas da África Equatorial
porque eles guerreavam com as tribos vizinhas, eles lhe
respondiam: "Os nossos partem à caça. Os vizinhos se põem a
rechaçá-los. Então nós atacamos os vizinhos, eles nos atacam
por sua vez e nos batemos até que não agüentemos mais ou
que um dos dois campos seja vencido" [56]. Burton também
diz: "Todas as guerras na África têm duas causas principais: o
roubo de gado ou a captura de homens" [57]. Ratzel considera
provável que na Nova Zelândia, as guerras entre indígenas não
tivessem freqüentemente outro móvel que o desejo de se
regalar com carne humana [58]. Mas a própria inclinação
acentuada dos indígenas para a antropofagia se explica pela
pobreza da fauna neozelandesa.

Todos sabem quanto o resultado de uma guerra depende


do armamento das partes beligerantes. Mas seu armamento é
determinado pelo estado de suas forças produtivas, por sua
economia e pelas relações sociais que se constituíram sobre a
base desta economia [59]. Dizer que tais povos ou tais tribos
foram conquistados por outros povos, ainda não é explicar
porque as repercussões sociais de sua subjugação foram
precisamente umas e não outras. As conseqüências sociais da
conquista da Gália pelos romanos não foram absolutamente as
mesmas que as da conquista deste país pelos germânicos. As
conseqüências sociais da conquista da Inglaterra pelos
normandos não foram absolutamente as mesmas acarretadas
pela conquista da Rússia pelos mongóis. Em todos estes casos,
a diferença foi determinada, em última análise, pela diferença
existente entre o regime econômico da sociedade que tinha
sido subjugada e o da sociedade que a havia subjugado.
Quanto mais as forças econômicas de tal tribo ou tal povo se
desenvolvem, mais aumenta para esta tribo ou este povo a
possibilidade de, pelo menos, melhor se armar tendo em vista
a luta pela existência.

Esta regra geral, entretanto, admite numerosas exceções


que merecem que nelas nos detenhamos. Quando o
desenvolvimento das forças produtivas está num nível muito
baixo, a diferença no armamento de tribos que se encontram
em estágios muito diferentes de desenvolvimento econômico
— por exemplo, os pastores nômades ou os agricultores
sedentários — não pode ser tão grande quanto se tornará
posteriormente. Além disso, a progressão na via do
desenvolvimento econômico, exercendo uma influência
determinante sobre o caráter de um dado povo, diminui seu
espírito guerreiro, algumas vezes a tal ponto que o torna
incapaz de se opor a um inimigo economicamente mais
atrasado, mas, em compensação, mais acostumado à guerra.
Eis porque não é raro que pacíficas tribos de agricultores caiam
sob o jugo de povos belicosos. Ratzel observa que os mais
sólidos organismos estatais são criados por "povos semicultos"
porque estes dois elementos — o elemento agrícola e o
elemento pastoril — foram reunidos pela conquista [60]. Por
justa que seja, em geral, esta observação, é necessário
entretanto lembrar que, mesmo em tais casos — a China é um
excelente exemplo disso — , os conquistadores
economicamente atrasados sofrem completamente, pouco a
pouco, a influência do povo conquistado, economicamente
mais avançado.

O meio geográfico exerce grande influência não apenas


sobre as tribos primitivas, mas também sobre os chamados
povos cultos. Marx diz: "A necessidade de estabelecer um
controle social sobre tal força natural, de explorá-la de forma
econômica, de captá-la de início ou domá-la por meio de obras
consideráveis, erigidas pelo esforço humano organizado, esta
necessidade exerce um papel decisivo na história da indústria.
Tal foi a importância da regulamentação das águas no Egito,
na Lombardia, nos Países Baixos, na Pérsia e na Índia, onde a
irrigação por meio de canais artificiais leva ao solo não apenas
a água indispensável, mas, ao mesmo tempo, com o barro que
esta carrega, o fertilizante mineral das montanhas. O segredo
da arrancada da indústria na Espanha e na Sicília sob a
dominação árabe residia na canalização" [61].

A doutrina da influência exercida pelo meio geográfico


sobre a evolução histórica da humanidade era freqüentemente
reduzida ao simples reconhecimento da influência imediata do
"clima" sobre o homem social: supunha-se que, sob a
influência do "clima", uma "raça" tornava-se amante da
liberdade, outra tendia a sofrer pacientemente o poder de um
soberano mais ou menos despótico, uma terceira tornava-se
supersticiosa e logo caía na dependência do clero. Tal
concepção prevalece ainda, por exemplo, em
Buekle [62]. Segundo Marx, o meio geográfico age sobre o
homem por intermédio das relações de produção que nascem
num meio determinado, sobre a base de forças de produção
determinadas, cuja primeira condição de desenvolvimento é
representada precisamente pelas propriedades desse mesmo
meio. A etnologia moderna se aproxima cada vez mais deste
ponto de vista e portanto vai reservando à "raça" um lugar
cada vez mais restrito na história, da "civilização". "A posse de
algum patrimônio de civilização", diz Ratzel, "nada tem a ver
com a raça em si".

Mas uma vez atingido em certo estado de "civilização" ele


exerce incontestavelmente sua influência sobre as qualidades
físicas e psíquicas da "raça" [63].

A influência do meio geográfico sobre o homem social


representa uma quantidade variável. A evolução das forças
produtivas condicionada pelas propriedades deste meio
aumenta o poder do homem sobre a natureza e, por isso
mesmo, cria uma relação nova entre o homem e o meio
geográfico ambiente. Os ingleses de nossos dias reagem a este
meio de modo muito diverso que as tribos que povoavam a
Inglaterra no tempo de Júlio César. Com isto se encontra
definitivamente descartado o argumento segundo o qual o
caráter da população de um dado país pode transformar-se
fundamentalmente, mesmo que as condições geográficas
permaneçam as mesmas.
VIII

As relações jurídicas e políticas [64] engendradas por uma


dada estrutura econômica exercem uma influência decisiva
sobre toda a psicologia do homem social . Marx diz: "Sobre as
diferentes formas da propriedade, sobre as condições sociais
de existência, vem-se erigir toda uma superestrutura de
sensações, ilusões, maneiras de pensar, de conceber a vida,
todas diversas e singulares em seu gênero". O "ser" determina
o "pensar". E podemos dizer que cada novo progresso realizado
pela ciência na explicação do processo do desenvolvimento
social, representa um novo argumento em favor desta tese
fundamental do materialismo moderno.

Já em 1877, Ludwig Noiré escrevia: "Foi à atividade em


comum, dirigida para um objetivo comum, foi o trabalho
primordial de nossos ancestrais que produziram a linguagem e
a vida cultural" [65]. Desenvolvendo este notável pensamento,
L. Noiré indica que, primitivamente, a linguagem designa as
coisas do mundo objetivo, não como figuras mas como coisas
que adquiriram uma figura (nichtals Gestalten, sondernals
gestaltete), não como seres ativos, exercendo uma ação, mas
como seres passivos, sofrendo uma ação [66]. E ele explica
isso por intermédio da consideração justa de que "todas as
coisas surgem no campo visual do homem, ou seja, elas
adquirem para ele existência de coisas, unicamente na medida
em que sofrem sua ação, e é de acordo com isso que elas
recebem suas denominações, seus nomes" [67]. Em resumo,
é a atividade humana, na opinião de Noiré, que dá conteúdo às
raízes primitivas da linguagem [68]. É interessante constatar
que Noiré via o primeiro germe de sua teoria no pensamento
de Feuerbach segundo o qual a essência do homem reside na
comunidade, na unidade do homem com o homem.
Visivelmente ele ignorava totalmente Marx; senão teria
percebido que sua concepção do papel da atividade na
formação da linguagem é mais próxima da de Marx que, em
sua teoria do conhecimento, insistia sobretudo na atividade
humana, em oposição a Feuerbach, que falava de preferência
da "contemplação".

É desnecessário relembrar, a propósito da teoria de Noiré,


que o caráter da atividade humana no processo da produção é
determinado pelo estado das forças produtivas. Isto é
evidente. E mais útil notar que a influência decisiva do modo
de existência sobre o pensamento é particularmente visível nas
raças primitivas, cuja vida social e intelectual é
incomparavelmente mais simples que a dos povos civilizados.
Van den Steinen escreve a respeito dos indígenas do Brasil
central, que nós só os compreenderemos ao considerá-los
como o produto de uma sociedade baseada na caça. "A fonte
principal de sua experiência", diz ele, "era seu contato com os
animais, e é sobretudo desta experiência que se valiam... para
explicar a natureza, para formar uma concepção do
mundo" [69]. As condições de uma vida feita de caças
determinaram não apenas a concepção do mundo própria a
estas tribos, mas também suas idéias morais, seus
sentimentos e (observa o mesmo autor) até seus gostos
artísticos. E vemos exatamente a mesma coisa entre os povos
pastores. Dentre aqueles que Ratzel chama de povos pastores
exclusivos, o "assunto de noventa por cento das conversações
é o gado, suas origens, seus hábitos, suas qualidades e seus
defeitos" [70]. Os infelizes herreros, que os "alemães
civilizados" recentemente pacificaram com tanta crueldade
bestial, pertenciam a estes "povos pastores exclusivos" [71].

Urna vez que a principal fonte de experiência era para o


caçador primitivo o gado e toda a sua concepção do mundo se
baseava sobre esta experiência, não é de admirar que na
mesma fonte tenha sido colhido o conteúdo de toda a mitologia
das tribos de caçadores, que para estes faz as vezes tanto de
filosofia quanto de teologia e ciência. "O que caracteriza a
mitologia dos bosquímanos", diz Andrew Lang, "é o papel
quase exclusivo que aí representam os animais. Com exceção
de uma velha mulher que aparece aqui e ali em suas lendas
incoerentes, o homem aí não representa nenhum
papel" [72]. Segundo Br. Smith, os indígenas da Austrália que,
como os bosquímanos, ainda não estão no estágio da caça, têm
principalmente por deuses os pássaros e os animais [73].

A religião das raças primitivas não está, no momento, ainda


suficientemente pesquisada. Mas o que dela já sabemos
confirma absolutamente a justeza da breve fórmula
de Feuerbach: "não é a religião que faz o homem mas é o
homem que faz a religião". Taylor diz: "É evidente que, entre
todos os povos, o homem era o protótipo da divindade. Isto
explica porque a estrutura da sociedade humana e seu governo
se tornam o modelo sobre o qual se representam a sociedade
celeste e o governo dos céus" [74]. Isto já é, não há dúvida,
uma concepção materialista da religião. Sabe-se que Saint-
Simon sustentava um ponto de vista oposto, que ele explicava
o regime social e político dos antigos gregos, por suas crenças
religiosas. Bem mais importante ainda, porém, é o fato que a
ciência já começa a descobrir a relação causal existente entre
o desenvolvimento da técnica das raças primitivas e sua
concepção do mundo [75]. É certo que descobertas numerosas
e preciosas a esperam, por este lado.

De todas as ideologias da sociedade primitiva, a arte é


atualmente a que foi melhor pesquisada. Neste domínio
reuniram-se materiais extremamente abundantes que
constituem a prova mais inatacável e a mais concludente da
justeza e, porque não dizer, da inevitabilidade da interpretação
materialista da história. Estes materiais são tão numerosos que
só podemos enumerar aqui as obras mais importantes da
literatura sobre o assunto: Schweinfurth, Artes Africanae,
Leipzig 1875; R. Andree, Ethnographische Parallelen, artigo
intitulado Das Zeichnen bei den Naturvölkern; Von den
Steinen, Unter den Naturvölkern Zentral-Brasiliens. Berlim
1894; C. Mallery. Picture Writing of the American Indians —
Annual Report 0f the Bureau of Ethnology, Washington 1893
(os relatórios dos outros anos contêm informações preciosas
sobre a influência exercida pela técnica, principalmente da arte
têxtil, na ornamentação); Hoernes, Urgeschichte der bildenden
Kunst in Europa, Viena 1898; Ernest Crosse, Die Anfange der
Kunst e seu outro livro: Kunstwissenschaftliche Studien,
Tübingen 1900; Yrjö Hirn, Der Ursprung der Kunst, Leipzig
1904; Karl Bücher, Arbeit und Rhythmus, 3ª. edição, 1902;
Gabriel e Adr. de Mortillet, Le Préhistorique, Paris, 1900;
páginas 217-230; Hörnes, Der diluvuale Mensch in Europa,
Brunswick 1903; Sophus Müller, L'Europe préhistorique,
traduzido do dinamarquês por Em. Philippot, Paris 1907; Rich.
Wallascheck, Anfänge der Tonkunst, Leipzig 1903.

Veremos, de acordo com as teses que se seguem,


recolhidas entre os autores acima citados, quais são as
conclusões às quais a ciência moderna chega na questão do
nascimento da arte.

Hornes diz [76]: "A arte ornamental só pode desenvolver-


se partindo da atividade industrial, que é sua condição material
prévia... Povos sem nenhuma indústria não têm ornamentação
e não podem absolutamente tê-la".

Von den Steinen avalia que o desenho (Zeichnen) surgiu


dos signos (Zeichen) adotados em objetivos práticos para
designar os objetos.

Bücher chegou à conclusão que "o trabalho, a música e a


poesia deviam, em seu estágio primitivo, formar um amálgama
único, mas que o elemento fundamental desta trindade era o
trabalho, enquanto os dois outros só tinham valor acessório".
Em sua opinião, "a origem da poesia deve ser buscada no
trabalho". Ele observa que nenhuma língua dispõe em ordem
rítmica as palavras que formam uma proposição. É portanto
impossível que os homens tenham chegado à linguagem
poética cadenciada, pela via do emprego de sua linguagem
comum. A isto se opunha a lógica interna desta última. Mas
como explicar o nascimento da linguagem ritmada? Bücher
supõe que os movimentos rítmicos e coordenados do corpo
comunicaram à linguagem figurada as leis de sua coordenação.
É ainda mais plausível que, nos graus inferiores da evolução,
estes movimentos rítmicos sejam habitualmente
acompanhados de canto. Mas como se explica a coordenação
dos movimentos corporais? Pelo caráter dos processos de
produção. Assim, portanto, "o segredo da versificação reside
na atividade produtiva" [77].

R. Wallascheck formula sua concepção sobre a origem das


produções cênicas entre as raças primitivas nos seguintes
termos [78]:

"Os temas destes jogos cênicos eram:

1 . a caça, a guerra, a canoa (entre os caçadores, a vida e


os hábitos dos animais; pantomimas animalescas e
máscaras) [79];
2. a vida e os hábitos do rebanho (entre os povos pastores);

3. o trabalho (entre os agricultores: a semeadura, a


debulha do trigo, o cultivo das vinhas).

A representação é assegurada por toda a tribo (coro) que


canta e representa. Cantam-se quaisquer palavras, pois o
conteúdo dos cantos é precisamente o aspecto cênico
(pantomima). Só se interpretam os atos da vida cotidiana, cuja
execução é absolutamente necessária na luta pela
existência". Wallascheck diz que, num grande número de
tribos, quando acontecem tais representações, o coro era
dividido em duas partes colocadas uma na frente da outra. "Tal
era", acrescenta ele, "o aspecto primitivo do drama grego que,
originariamente era também uma pantomima animalesca. O
animal que tinha maior papel na vida econômica grega era a
cabra donde a palavra tragédia, que deriva de tragos, bode) ."

É impossível imaginar ilustração mais brilhante da tese,


segundo a qual não é o ser que é determinado pelo
pensamento, mas o pensamento pelo ser.
IX

A vida econômica se desenvolve sob a influência do


crescimento das forças produtivas. É isto que explica porque
as relações existentes entre os homens no processo da
produção se transforma e com elas o estado psíquico
humano. Marx diz:

"Num certo grau de sua evolução, as torças produtivas do


sociedade entram em contradição com as relações de produção
existentes no seio desta sociedade ou, em termos jurídicos,
com as relações de propriedade em cujo quadro estas forças
evoluíram. De formas que favoreciam a evolução das forças
produtivas, estas relações se tornam grilhões que as entravam.
Inicia-se então uma época de revolução social. Com a
transformação da base econômica, toda a formidável
superestrutura levantada sobre ela se transforma num ritmo
mais ou menos rápido. Nenhuma formação social desaparece
antes que nela se tenham desenvolvido as forças produtivas
que ela comporta, e relações de produção novas e superiores
jamais ocupam o lugar das precedentes antes que as condições
materiais indispensáveis à sua existência tenham amadurecido
no seio da mesma antiga sociedade. Eis porque a humanidade
só se coloca problemas que ela pode resolver, pois se considero
as coisas mais de perto, se chegará sempre à conclusão que o
problema só é proposto onde as condições materiais
necessárias à sua solução já existem, ou, pelo menos, estão
cm vias de aparecimento" [80].

Temos aqui, sob os olhos uma verdadeira "álgebra", uma


"álgebra" puramente materialista, da evolução social. Nesta
álgebra tanto há lugar para os "saltos" — da época da
revolução social — quanto para as transformações graduais.
Transformações graduais que, operando quantitativamente
nas propriedades de uma dada ordem de coisas, culminam
finalmente numa transformação da qualidade, ou seja, no
desaparecimento do antigo modo de produção — ou da antiga
formação social, segundo expressão empregada por Marx
neste caso — e na sua substituição por um modo de produção
novo. Segundo Marx, os modos de produção oriental, antigo,
feudal e burguês contemporâneo, podem ser considerados, de
forma geral, como épocas consecutivas ("progressivas") da
evolução econômica da sociedade. Mas é de supor que após ter
tomado conhecimento do livro de Morgan sobre a sociedade
primitiva, Marx modificou sua concepção da relação existente
entre o modo de produção antigo e o modo de produção
oriental. Com efeito, a lógica do desenvolvimento econômico
do modo de produção feudal levou à revolução social que
marcou o triunfo do capitalismo. Mas a lógica do
desenvolvimento econômico, por exemplo da China ou do Egito
Antigo, não conduziu absolutamente ao aparecimento do modo
antigo de produção. No primeiro caso, tratam-se de duas fases
do desenvolvimento, onde uma sucede à outra e é engendrada
por coexistentes de desenvolvimento econômico. A sociedade
antiga sucedeu à organização social por clãs, e esta precedeu
igualmente ao advento do regime social oriental. Cada um
destes dois tipos de organização econômica surgiu como
resultado do crescimento das forças produtivas, que se operara
no seio da organização social baseada no clã e que devia,
finalmente, levar à decomposição dessa organização. E se
estes dois tipos diferem consideravelmente um do outro, seus
signos distintivos principais se formaram sob a influência do
meio geográfico. Num caso, ele prescrevia à sociedade que
havia atingido um grau determinado de desenvolvimento das
forças produtivas um certo conjunto de reclamações de
produção, num outro caso, outro conjunto, bem distinto do
primeiro.

A descoberta da organização em clãs é evidentemente


chamada a ter na sociologia o mesmo papel que a descoberta
da célula na biologia. E enquanto Marx e Engels não tinham
conhecimento da organização em clãs, sua teoria da evolução
social não podia deixar de comportar lacunas consideráveis, o
que posteriormente foi reconhecido pelo próprio Engels.

Mas a descoberta da organização social em clã, que, pela


primeira vez, permitia compreender os estágios inferiores da
evolução social, nada mais foi que um argumento novo e
poderoso a favor da interpretação materialista da história, não
contra ela. Esta descoberta permitiu compreender bem melhor
o processo das primeiras fases do ser social, assim como a
maneira pela qual este último determinou então o pensamento
social. E assim, esta mesma descoberta deu um brilho
surpreendente à verdade que o pensamento social é
determinado pelo ser social.

Isto, porém, foi dito apenas de passagem. O principal,


sobre o qual é preciso reter a atenção é a indicação feita por
Marx, que as relações de propriedade estabelecidas num grau
determinado do desenvolvimento das forças produtivas
favorecem durante um certo tempo, o crescimento destas
forças, e ulteriormente começam a entravá-las [81]. Ainda que
um certo estado das forças produtivas seja a causa que suscita
determinadas relações de produção, e em particular, de
propriedade, estas últimas, uma vez surgidas como a
conseqüência da causa indicada, começaram a influir, por sua
vez, sobre esta mesma causa. Estabelece-se assim um sistema
de ação e reação recíprocas entre as forças produtivas e a
economia social. Por outro lado, vêm-se edificar sobre a base
econômica toda uma superestrutura de relações sociais, assim
como sentimentos e concepções da mesma ordem. Ora, como
esta superestrutura também começa a favorecer o
desenvolvimento econômico, para em seguida, entravá-lo, se
estabelece também uma ação e uma reação recíprocas entre a
superestrutura e a base. Este fato resolve inteiramente o
mistério de todos estes fenômenos, que parecem, numa
primeira abordagem, contradizer a tese fundamental do
materialismo histórico.

Tudo o que foi dito até hoje pelos "críticos" de Marx sobre
o suposto caráter unilateral do marxismo e sobre seu pretenso
desprezo por todos os "fatores" da evolução social, exceto o
fator econômico, resulta simplesmente da incompreensão do
papel que Marx e Engels reservam à ação e reação recíprocas
entre a "base" e a "superestrutura". Para persuadir-se quão
pouco Marx e Engels pretendiam ignorar, por exemplo, a
importância do fator político, é suficiente ler as páginas do
"Manifesto Comunista", onde é abordado o movimento de
emancipação da burguesia. Está dito: "Classe oprimida pelo
despotismo feudal, associação armada se auto-governando na
comuna, aqui livre república municipal, lá terceiro
estado tributário da monarquia, depois, durante o período
manufatureiro, contrapeso da nobreza nas monarquias
limitadas ou absolutas, pedra angular das grandes monarquias,
a burguesia, após o estabelecimento da grande indústria e do
mercado mundial, conquistou finalmente o poder político
exclusivo no Estado representativo moderno. O governo
moderno nada mais é que um comitê administrativo dos
negócios comuns da classe burguesa".

A importância do "fator" político aparece aqui com nitidez


suficiente — alguns "críticos" iriam até considerá-la exagerada.
Mas a origem e a força deste fator, assim como a sua maneira
de atuar em cada período dado do desenvolvimento da
sociedade burguesa, são explicados no Manifesto pela marcha
do desenvolvimento econômico e, conseqüentemente, a
variedade dos "fatores" em nada prejudica a unidade da causa
inicial.

Não há dúvida que as relações políticas influem sobre o


desenvolvimento econômico, mas é também indubitável que
antes de influir sobre este desenvolvimento, elas são por ele
criadas.

É preciso dizer o mesmo do estado psíquico do homem


social, daquilo que Stammler chamava, um pouco
unilateralmente, os conceitos sociais. OManifesto prova
incontestavelmente que seus autores tinham compreendido
bem o valor do "fator" ideológico. Mas vemos, de acordo com
o mesmo Manifesto, que se o "fator" ideológico representa um
papel importante no desenvolvimento da sociedade, ele próprio
é previamente criado por este desenvolvimento.

"Quando o mundo antigo estava decadente, as velhas


religiões foram vencidas pela religião cristã. Quando as idéias
cristãs sucumbiram ante as idéias de progresso do século
XVIII, a sociedade feudal travava uma luta de morte contra a
burguesia, então revolucionária". Mas no caso que nos
interessa, o último capítulo do Manifesto é ainda mais
convincente. Seus autores aí dizem que seus companheiros de
idéias aspiram inculcar nos operários, tão nitidamente quanto
possível, a consciência do antagonismo existente entre os
interesses da burguesia e os do proletariado. É compreensível
que aquele que não atribua importância ao "fator" ideológico,
não tenha motivo algum para aspirar a conscientizar do que
quer que seja, a não importa qual grupo social.
X

Nós citamos o Manifesto de preferência aos outros escritos


de Marx e Engels porque ele se refere à primeira época de sua
atividade onde, como asseguram alguns de seus "críticos", eles
tinham uma forma particularmente "unilateral" de
compreender as relações existentes entre os diferentes
"fatores" do desenvolvimento social. Vemos claramente que
também nesta época, Marx e Engels não se distinguiam por
uma "maneira unilateral" de compreender as coisas, mas
apenas por uma tendência ao monismo, por uma certa
repugnância pelo ecletismo que tão manifestamente permeava
as observações dos senhores "críticos".

Não é raro que se refira a duas cartas de Engels, publicadas


no "Sozialistischer Akademiker" e escritas uma em 1890, outra
em 1894. M. Bernsteinse apossou com alegria destas duas
cartas, cujo conteúdo constituiria um suposto testemunho
evidente da evolução que se teria consumado nas opiniões do
amigo e colaborador de Marx. Ele extraiu daí duas passagens,
em sua opinião, das mais convincentes, que consideramos
necessário reproduzir aqui, dado que provam exatamente o
contrário do que pretendeu provar M. Bernstein.

Eis a primeira destas passagens:

"Existem, portanto, forças inumeráveis que se


entrecruzam, um número infinito de paralelogramos de forças,
dando uma resultante, o evento histórico, que pode, por sua
vez, ser considerado como o produto de uma potência agindo
como um todo, sem consciência nem vontade. Pois aquilo que
cada um quer separadamente, é impedido por todos os demais,
e aquilo que daí resume, algo que ninguém quis" (Carta de
1890).

E agora, eis a outra passagem:

"O desenvolvimento econômico, jurídico, filosófico,


literário, artístico etc., repousa sobre o desenvolvimento
econômico. Mas todos eles reagem, conjuntamente e
separadamente, um sobre o outro e sobre a base econômica"
(Carta de 1894).
M. Bernstein achou que "isto soa um pouco
diferentemente" do prefácio da obra "Zur Kritik der politischen
Oekonomie", que salienta a relação entre a "base" econômica
e a "superestrutura" que sobre ela se levanta. Mas por que
então "diferentemente"? A passagem acima nada mais faz, na
realidade, que repetir o que foi dito no prefácio em questão.
Este desenvolvimento político, como outros, repousa sobre o
desenvolvimento econômico. O próprio Bernstein,
evidentemente, compreendeu o prefácio de Zur Kritik um
pouco diferentemente, ou seja, no sentido de que a
superestrutura social e ideológica que vem se levantar sobre a
"base econômica" não exerce nenhuma influência sobre ela.
Mas já sabemos que não há nada mais errado que tal maneira
de compreender o pensamento de Marx. E aqueles que
acompanharam de perto os ensaios "críticos" de
M. Bernstein só podem dar de ombros vendo que o homem que
outrora se havia proposto popularizar a doutrina de Marx não
se dera ao trabalho, ou mais exatamente, se mostrara incapaz
de compreender previamente esta doutrina.

Na segunda das cartas citadas por Bernstein, há para


elucidar o sentido causal da teoria histórica de Marx e Engels,
passagens talvez bem mais importantes que as linhas tão mal
compreendidas por M. Bernstein, acima reproduzidas. Uma
destas passagens é concebida nestes termos:

"Não existe, portanto, um efeito automático da situação


econômica, como alguns gostam de interpretar por
comodismo. São os próprios homens que fazem sua própria
história, porém dentro de um meio dado, que os condiciona,
sobre a base de relações efetivas dadas. Entre estas últimas,
as relações econômicas, por mais poderosa que seja a
influência exercida sobre elas pelas outras relações de ordem
política e ideológica, são, apesar de tudo, aquelas cuja ação é
decisiva, no final de contas, e constituem o fio condutor que
permite compreender o conjunto do sistema".

Entre as pessoas que interpretam a doutrina histórica de


Marx e Engels no sentido que "existe um efeito automático da
situação econômica", se encontrava também, como vemos
agora, o próprio M. Bernstein, na época em que era ainda
"ortodoxo"; entre estas pessoas é preciso incluir também um
grande número de "críticos" de Marx que recuaram "do
marxismo ao idealismo". Estes espíritos profundos dão prova
de uma grande suficiência quando descobrem e mostram aos
espíritos "unilaterais" que são Marx e Engels que a história é
feita pelos homens e não pelo movimento automático da
economia. Assim, testemunham seu apreço por Marx e nem
sequer desconfiam em sua incrível ingenuidade, que o Marx
que "criticam" nada tem em comum, salvo o nome, com o
verdadeiro Marx, o primeiro nada mais sendo que a criação de
sua própria incompreensão que, entre eles, é verdadeiramente
"multilateral". É natural que "críticos" deste jaez tenham sido
totalmente incapazes de "completar" e de "corrigir" o que quer
que seja no materialismo histórico. Sendo assim, não nos
ocuparemos mais deles, preferindo tratar daqueles que
lançaram as bases desta teoria.

É extremamente importante salientar que quando Engels,


pouco tempo antes de sua morte, repudiava a forma
"automática" de conceber a ação histórica da economia, ele
apenas repetia — quase nos mesmos termos — e comentava
aquilo que Marx escrevera já em 1845, na terceira tese sobre
Feuerbach, anteriormente reproduzida por nós. Marx
reprovava ao materialismo anterior a ele ter esquecido que "se,
de um lado, os homens são um produto do meio, este é, por
outro lado, transformado precisamente pelos homens". A
tarefa do materialismo no domínio da história, tal como a
concebia Marx, consistia portanto em explicar precisamente de
que forma o "meio" pode ser transformado pelos homens que
são, eles mesmos, os produtos deste meio. E ele encontrava a
solução deste problema indicando as relações de produção que
se estabelecem sob a influência de condições independentes da
vontade humana. As relações de produção são as relações que
se estabelecem entre os homens no processo social da
produção. Dizer que as relações de produção se modificam é
dizer que as relações existentes entre os homens no processo
em questão, se modificam. A transformação destas relações
não pode se efetuar "automaticamente", quer dizer,
independentemente da atividade humana, porque elas são
relações que estabelecem os homens no processo de sua
atividade.
Mas estas relações podem se transformar — e
efetivamente, com freqüência, se transformam — numa
direção bem diferente daquela na qual os homens tencionavam
modificá-las . O caráter da "estrutura econômica" e o sentido
no qual este caráter se transforma não dependem da vontade
humana, mas do estado das forças produtivas e da própria
natureza das transformações que se produzem nas relações de
produção e se tornam necessárias à sociedade em
conseqüência do desenvolvimento destas
forças. Engels explica isto nos seguintes termos:

"Os próprios homens fazem sua história, mas até agora,


mesmo nas sociedades bem delimitadas, eles fizeram
conforme uma vontade de conjunto nem segundo um plano
geral. Suas aspirações se entrecruzam e é precisamente por
isto que, em todas as sociedades semelhantes, reina a
necessidade, da qual o acaso é o complemento e a forma sob
a qual se manifesta".

A própria atividade humana se define aqui não como uma


atividade livre, mas como uma atividade necessária, quer
dizer, regida por leis e podendo constituir o objeto de um
estudo científico. Assim, portanto, o materialismo histórico,
assinalando constantemente que o meio é modificado pelos
homens, possibilita ao mesmo tempo, pela primeira vez,
considerar o processo desta modificação do ponto de vista da
ciência. E eis porque estamos no direito de dizer que a
interpretação materialista da história fornece os prolegômenos
indispensáveis a toda doutrina sociológica que pretenda o título
de ciência.

Tudo isto é tão verdade que, desde já, todo estudo de um


aspecto qualquer da vida social só adquire valor científico na
medida em que se aproxima da explicação materialista de seu
objeto. E, apesar da famosa "ressurreição do idealismo" na
sociologia, tal explicação se torna cada vez mais corrente onde
os cientistas não se entregam a meditações edificantes e a
discursos grandiloqüentes sobre o "ideal", mas se atribuem a
tarefa de descobrir a relação causal entre os fenômenos.
Atualmente, as pessoas que, além de não serem partidárias da
concepção materialista da história, dela não têm sequer a
menor idéia, sustentam que são materialistas em suas
pesquisas históricas. E então sua ignorância desta concepção
materialista ou sua prevenção contra ela, impedindo-os de bem
compreendê-la em todos os seus aspectos, leva-as
efetivamente àquilo que conviria chamar concepções
unilaterais e estreitas.
XI

Eis um exemplo. Há dez anos, o célebre sábio francês Alfred


Espinas — seja dito de passagem, grande adversário dos
socialistas atuais — publicava "Origens da Tecnologia", "estudo
sociológico" extremamente interessante, ao menos pela idéia
que desenvolve. Partindo da tese puramente materialista que,
na história da humanidade, a prática sempre precede a teoria,
ele examina em sua obra a influência da técnica sobre o
desenvolvimento da ideologia, ou seja, da religião e da
filosofia, na Grécia Antiga. Ele chega à conclusão que, em cada
período deste desenvolvimento, a concepção do mundo dos
antigos gregos era determinada pelo estado de suas forças
produtivas. Este é, certamente, um resultado muito
interessante e importante. Mas quem está habituado a aplicar
o método materialista para a compreensão dos fenômenos
históricos achará certamente que a idéia expressa no "estudo"
de Espinas é demasiadamente unilateral. E isto pela simples
razão que o sábio francês quase não deu atenção aos outros
"fatores" do desenvolvimento da ideologia, tais como, por
exemplo, a luta de classes. E no entanto, este fator tem uma
importância realmente formidável.

Na sociedade primitiva, que ignora a divisão em classes, a


atividade produtiva exerce uma influência direta sobre a
concepção do mundo e sobre o gosto estético. A ornamentação
recebe seus motivos da técnica e a dança — a arte talvez mais
importante em tal sociedade — limita-se o mais
freqüentemente a reproduzir um processo de produção. Isto é
particularmente visível entre as tribos caçadoras situadas no
mais baixo grau de desenvolvimento econômico, acessível a
nossa observação [82]. É por esta razão que nos referimos
principalmente a estas tribos quando tratamos da dependência
na qual se encontra o estado psíquico do homem primitivo em
relação à sua atividade econômica. Mas, numa sociedade
dividida em classes, a influência direta desta atividade sobre a
ideologia se torna bem menos aparente. Isto é compreensível.
Se, por exemplo, um gênero de dança executado pela
australiana nativa reproduz simbolicamente seu trabalho de
colheita de raízes, é evidente que nenhuma destas danças
elegantes com as quais se divertiam, por exemplo, as belas
mundanas da França no século XVIII, podia ser a interpretação
de um trabalho produtivo destas damas, visto que elas não se
ocupavam com nenhum trabalho produtivo, preferindo
dedicar-se à "ciência do doce amor". Para compreender a
dança da australiana nativa basta conhecer o papel que
representa na vida de uma tribo australiana a colheita, pelas
mulheres, das raízes das plantas selvagens. Mas para
compreender, por exemplo, o minueto, não basta,
absolutamente, conhecer a economia da França no século
XVIII. Neste último caso está em questão uma dança que é
uma expressão da psicologia de uma classe não produtora. A
grande maioria dos "usos e conveniências" da chamada "boa
sociedade" se explica por este mesmo gênero de psicologia.
Assim, portanto o "fator" econômico cede, aqui, o lugar ao fator
psicológico. Mas não se pode esquecer que o próprio advento
de classes não produtoras na sociedade é o produto de seu
desenvolvimento econômico. Isto quer dizer que o "fator"
econômico conserva inteiramente seu valor predominante,
mesmo quando cede seu lugar a outros. Ao contrário, é
precisamente então que este valor se faz sentir mais, pois são
determinadas por ele a possibilidade e os limites da influência
dos outros fatores [83].

Mas ainda não é tudo. A classe superior olha a classe


inferior com um desprezo não velado, mesmo quando ela torna
parte no processo de produção na qualidade de classe
dirigente. Isto se reflete também na ideologia das classes em
questão. As trovas francesas da Idade Média, e
particularmente as canções de gesta, representam o camponês
de então sob um aspecto dos mais desagradáveis. A dar-lhes
crédito:

Li vialaen sont de laide forme


Aine si tres laide ne vit home;
Chaucuns a XV piez de granz
En auques ressemblet jâianz,
Mais trop sont de laide manière;
Boçu sont devant et derrière [84].

Mas os camponeses, evidentemente, tinham de si mesmo


uma idéia totalmente diferente. Indignando-se com a
arrogância dos feudais, cantavam:
Nous sommes des hommes, tout comme eux,
Et capables dc soufrir tout autant qu'eux,

e assim por diante.

E eles perguntavam: "Enquanto Adão arava e Eva fiava


onde estava o fidalgo?" Em suma, cada uma destas duas
classes via as coisas de seu próprio ponto de vista, cuja
característica particular era condicionada pela situação que
estas classes ocupavam na sociedade. A luta de classes
influenciava a psicologia das partes em luta. E assim era,
naturalmente, não apenas na Idade Média e nem só na França.
Quanto mais a luta de classes se acirrava num país e numa
época dados, mais forte se tornava sua influência sobre a
psicologia das classes em luta. Aquele que pretende estudar a
história das ideologias numa sociedade dividida em classes,
deve consagrar toda sua atenção a esta influência. De outra
forma, nada compreenderá. Experimente-se dar uma
explicação econômica direta do aparecimento da escola de Davi
na pintura francesa do século XVIII e se chegará a um
resultado que nada mais será que um contra-senso ridículo e
fastidioso. Mas se considera escola como o reflexo ideológico
da luta de classes que se desenvolve no seio da sociedade
francesa às vésperas da Grande Revolução, imediatamente a
questão mudará totalmente de aspecto. A arte de Davi que,
como outras, poder-se-ia crer, é tão desvinculada da economia
social que não se pode, por meio algum, associá-las a esta
última, se tornar então perfeitamente compreensível.

É preciso que se diga o mesmo da história das ideologias


na Grécia Antiga: ela sentiu profundamente a influência da luta
de classes. E é precisamente esta influência que Espinas pouco
enfatizou em seu interessante estudo, o que dá a suas
importantes conclusões um caráter demasiadamente
unilateral. Poder-se-ia, já agora, citar numerosos exemplos
semelhantes e todos eles testemunhariam que a influencia do
materialismo de Marx sobre muitos estudiosos seria
extremamente benéfica, no sentido em que ela lhes ensinaria
a considerar outros "fatores" além dos fatores técnico e
econômico. Isto parece um paradoxo, mas é uma verdade
incontestável, que não mais nos surpreenderá se nos
lembrarmos que, ainda que em Marx, todo movimento social
seja explicado pelo desenvolvimento econômico da sociedade,
ele é muito freqüentemente explicado por este
desenvolvimento apenas em última análise, ou seja, este
movimento pressupõe a ação intermediária de toda uma série
de outros "fatores".
XII

Atualmente, uma outra tendência começa a se esboçar na


ciência moderna. Ela é diametralmente oposta àquela que
viemos de constatar em Espinase se propõe a explicar a
história das idéias pela influência exclusiva da luta de classes.
Esta tendência bem nova, e no momento ainda pouco evidente,
desenvolveu-se sob a influência direta do materialismo
histórico de Marx. Nós a encontramos nos trabalhos do autor
grego A. Eleuteropoulos, cuja obra principal, Wirtchaft und
Philosophie (t. I, Die Philosophie und die Lebensauffassung des
Griechen-tums au/ Grund der gesellschaftlichen Zustãnde e t.
II, Die Philosophie und die Lebensau/jassung der germanish-
römischen Volker), surgiu em Berlim em 1900. Eleuteropoulos
sustenta que a filosofia de cada época expressa a concepção
do mundo e da vida (Lebens-und Weltanschauung) próprios
desta época. Isto não é muito novo. Hegel já dizia que cada
sistema filosófico é a expressão ideológica de sua época. Mas,
para Hegel, as particularidades das diferentes épocas e,
portanto, das fases correspondentes ao desenvolvimento da
filosofia, eram determinadas pelo movimento da Idéia
absoluta, enquanto que para Eleuteropoulos, cada época é
caracterizada antes de mais nada pelo estado econômico que
lhe corresponde. A economia de cada povo determina a
concepção do mundo deste povo, concepção que encontra,
como outras, sua expressão na filosofia. Ao mesmo tempo que
se transforma a base econômica da sociedade, transforma-se
também sua superestrutura ideológica. Mas tendo o
desenvolvimento econômico conduzido à divisão da sociedade
em classes e à sua luta, a concepção do mundo própria a uma
época determinada não tem caráter uniforme: ela difere
segundo as classes e se modifica segundo a situação, as
necessidades, as aspirações destas classes e as vicissitudes da
luta entre elas.

Este é o ponto de vista de Eleuteropoulos a respeito de toda


a história da filosofia. Ele merece, incontestavelmente, a maior
atenção e toda aprovação. Há muito tempo já se constatava na
literatura filosófica uma certa tendência a não mais querer
aceitar o velho método que consiste em só considerar a história
da filosofia a simples filiação dos sistemas filosóficos. Em sua
brochura publicada por volta de 1890 e consagrada à questão
de saber como é preciso estudar a história da filosofia, Picavet,
o conhecido escritor francês, declarava que tal filiação explica,
na verdade, muito pouca coisa [85]. Poder-se-ia saudar a
publicação do livro de Eleuteropoulos como um novo passo à
frente no estudo da história da filosofia e como uma vitória do
materialismo histórico aplicado a uma das ideologias mais
distanciadas da economia. Mas, que pena! Eleuteropoulos não
demonstrou um grande engenho no manejo do método
dialético do materialismo. Ele simplificou ao extremo os
problemas que surgiam diante dele e portanto só pôde
encontrar para eles soluções muito unilaterais e, logo, muito
pouco satisfatórias.

Tomemos, por exemplo, Xenófanes. De acordo com


Eleuteropoulos, foi, em filosofia, o intérprete das aspirações do
proletariado da Grécia Antiga. Foi o Rousseau de sua
época [86]. Ele era partidário de uma reforma social pela
igualdade de todos os cidadãos, e sua teoria da unidade do
mundo nada mais era que a base teórica de seus projetos de
reformas [87]. Sobre esta base teórica das tendências
reformadoras de Xenófanes vinham logicamente edificar-se
todos os detalhes de sua filosofia, iniciando por sua concepção
da divindade e terminando por sua teoria, segundo a qual
nossos sentidos nos dão uma representação ilusória do mundo
exterior [88].

A filosofia de Heráclito, o Obscuro, fora engendrada pela


reação dos aristocratas contra as aspirações revolucionárias do
proletariado grego. A igualdade universal é impossível; a
própria natureza faz os homens desiguais. Cada um deve
contentar-se com sua sorte. No Estado é preciso objetivar não
a derrubar a ordem estabelecida, mas a supressão do
arbitrário, tanto sob o domínio de alguns quanto sob o da
massa. O poder deve pertencer à lei, na qual a lei divina
encontra sua expressão. A lei divina não exclui a unidade; mas
a unidade, segundo esta lei é a unidade dos antagonismos. E
por isto a realização dos planos de Xenófanes seria uma
infração à lei divina. Desenvolvendo este pensamento e
apoiando-o em outros argumentos, Heráclito criou sua doutrina
do devir [89].
Isto é o que diz Eleuteropoulos. A falta de lugar não nos
permite reproduzir outros extratos de sua análise das causas
determinantes da evolução da filosofia. Mas não há quase
necessidade em fazê-lo. O leitor, esperamos, vê por si mesmo
que esta análise teve pouco êxito. Na realidade, o processo da
evolução das ideologias é incomparavelmente mais
complexo [90]. Lendo suas considerações — não se pode ser
mais simplista — sobre a influência que a luta de classes
exerceu sobre a história da filosofia, lamentamos que
Eleuteropoulos não tenha conhecido o livro precitado
de Espinas, cuja maneira unilateral, somada à sua própria,
teria, talvez, preenchido muitas lacunas em sua análise.

Qualquer que seja, a infeliz tentativa de Eleuteropoulos não


deixa de constituir um argumento novo em favor da tese —
inesperada para muitos — que um conhecimento mais
aprofundado do materialismo histórico de Marx seria de grande
utilidade a inúmeros estudiosos contemporâneos, justamente
para preservá-los de cair em formas unilaterais de tratar as
questões. Eleuteropoulos conhece o materialismo histórico de
Marx. Conhece-o, porem, mal. Prova disso é a pretensa
retificação que ele supõe necessária aí introduzir.

Ele observa que as relações econômicas de um determinado


povo só condicionam "a necessidade de seu desenvolvimento".
O próprio desenvolvimento seria um problema individual; de
forma que a concepção do mundo deste povo está
determinada, em primeiro lugar, por seu caráter e o da região
que habita, em segundo, pelas necessidades desse povo e,
finalmente, pelas qualidades pessoais dos homens que atuam
como reformadores em seu seio. É somente neste sentido,
observa Eleuteropoulos, que se pode falar de uma relação da
filosofia com a economia. A filosofia satisfaz as exigências de
seu tempo, e isto conforme a personalidade do filósofo.

Eleuteropoulos pretende, evidentemente, que esta


concepção das relações entre a filosofia e a economia
represente algo muito novo face à concepção materialista de
Marx e Engels. Ele julga necessário dar um novo nome à sua
interpretação da história, denominando-a a teoria grega do
devir [91]. É simplesmente divertido, e a propósito só se pode
dizer uma coisa: a "teoria grega do devir" não sendo, na
realidade, nada mais que materialismo histórico muito mal
digerido e exposto de maneira muito incoerente, promete
entretanto, muito mais do que dá Eleuteropoulos quando passa
da caracterização de seu método à sua aplicação. Então ele já
se distancia totalmente de Marx.

No que concerne especialmente à "personalidade do


filósofo" e, em geral, à de todo homem que deixa na história
humana o vestígio de sua atividade, é um grave erro acreditar
que a teoria de Marx e de Engels não lhes tenha reservado
espaço. Ela certamente reservou. Mas soube, ao mesmo
tempo, evitar a admissível oposição entre a atividade do
"indivíduo" e a marcha dos acontecimentos, determinada pela
necessidade econômica. Recorrer a tal oposição, é provar que
não se compreendeu grande coisa da explicação materialista
da história. A tese inicial do materialismo, como repetimos
inúmeras vezes, diz que a história é feita pelos homens. E se
ela é feita pelos homens, está claro que é feita, também, pelos
"grandes homens". Só resta discernir o que, exatamente,
determina a atividade destes homens. A propósito
disto, Engels diz numa das cartas que citamos acima:

"Que um tal homem, e precisamente este, surja numa


época determinada e num país determinado é, naturalmente,
puro acaso. Se nós, porém, o eliminamos, será necessário um
substituto, que acabamos sempre por encontrar, de uma forma
ou de outra. É preciso atribuir ao acaso o fato que o ditador
militar, cujo advento se tornara necessário para a República
Francesa esgotada por suas próprias guerras, fosse
precisamente o corso Napoleão. Mas que, na falta de Napoleão,
outro teria preenchido seu lugar, está provado pelo fato que o
homem necessário, César, Augusto, Cromwell ou outro, foi
encontrado sempre que necessário. Se Marx descobriu a
concepção materialista da história, o exemplo
de Thierry, Mignet, Guizot e de todos os historiadores ingleses
até 1850 mostra que havia uma tendência para este resultado;
e a descoberta desta mesma concepção por Morgan prova que
havia chegado seu tempo e que ela era uma necessidade. O
mesmo sucede com todos os acasos ou com tudo o que parece
acaso na história. Quanto mais o domínio que exploramos se
distancia da causa econômica e adquire um caráter ideológico
abstrato, mais nós encontramos acasos em seu
desenvolvimento, mais sua curva se desenha em ziguezague.
Mas trace o eixo médio da curva e você descobrirá que, quanto
mais o período a examinar é longo e o domínio tratado é vasto,
mais este eixo tenderá a tornar-se paralelo ao do
desenvolvimento econômico" [92].

A "personalidade" de todo homem eminente no domínio


intelectual ou social pertence ao rol destes acasos cujo
aparecimento não impede, absolutamente, a linha "média" do
desenvolvimento intelectual da humanidade, de seguir um
curso paralelo ao de seu desenvolvimento
econômico [93].Eleuteropoulos teria percebido melhor o que
precede, se tivesse estudado atentamente a teoria histórica de
Marx e se estivesse menos preocupado em criar sua própria
"teoria grega" [94].

Inútil acrescentar que atualmente estamos longe de poder


descobrir sempre a relação causal entre o aparecimento de
uma idéia filosófica e a situação econômica de sua época. Mas
é porque apenas começamos a trabalhar nesta direção; se nós
estivéssemos à altura de dar uma resposta a todas as questões
que aqui se colocam, ou mesmo apenas à maioria delas, nosso
trabalho já estaria terminado, ou a ponto de sê-lo. O que
importa, no presente caso, não é o fato de ainda não sabermos
dar conta de todas as dificuldades encontradas neste domínio.
Não há e não pode haver método capaz de suprimir de um só
golpe todas as dificuldades que surgem na ciência. O que
importa é que a interpretação materialista da história dá conta
das dificuldades em questão com facilidade
incomparavelmente maior que as interpretações idealistas e
ecléticas. A prova disso é que o pensamento científico no
domínio da história tendia com uma força excepcional para
uma explicação materialista dos fenômenos que, por assim
dizer, ela buscava com insistência desde a época da
Restauração [95], não cessava de gravitar em torno dela, de
procurá-la até a época atual e isto apesar da nobre indignação
que se apodera de todo ideólogo burguês que se preze, quando
ouve a palavra "materialismo".

A obra de Franz Feuerherd, intitulada "Die Entstehung der


Stile aus der politischen Oekonomie, erster Theil" (Leipzig
1902), pode servir de terceiro exemplo para mostrar como são
atualmente inevitáveis as tentativas de fornecer uma
explicação materialista de todos os aspectos da cultura
humana. Feuerherd diz:

"Segundo o modo de produção predominante e a forma de


Estado por ele condicionada, a inteligência humana se
desenvolve em sentidos determinados, os outros lhe
permanecendo inacessíveis. E por isto a existência de todo
estilo (na arte) pressupõe a existência de homens vivendo em
condições políticas determinadas, produzindo segundo um
modo de produção determinado e animados por ideais
determinados. Quando estas causas prévias estão dadas, os
homens criam os estilos correspondentes, tão necessária e
inevitavelmente quanto a tela embranquece, o brometo da
prata escurece e o arco-íris aparece nas nuvens assim que o
sol, sua causa, provoque estes efeitos" [96].

Isto é justo, com efeito, e é interessante constatar que é


um historiador da arte quem o reconhece. Mas quando
Feuerherd começa a explicar a origem dos diversos estilos
gregos pelo estado econômico da Grécia antiga, ele chega a
um resultado demasiadamente esquemático. Nós não sabemos
se a segunda parte de sua obra foi editada. Não nos
interessamos em saber, porque compreendemos que ele
assimilou mal o método materialista moderno. Por seu
esquematismo, seus raciocínios nos lembram os dos nossos
clotitrinários Fritsche e Rojkov, aos quais é preciso
recomendar, como a ele, que estudem, antes de mais nada e
sobretudo, o materialismo contemporâneo. Apenas o
marxismo pode resguardá-los de cair no esquematismo.
XIII

O falecido Nicolas Mikhailovsky afirmava outrora, em sua


polêmica conosco, que a teoria histórica de Marx jamais teria
larga difusão no mundo dos sábios. Acabamos de ver e ainda
veremos que isto não é bem exato. Mas antes é necessário
desfazer ainda alguns outros mal-entendidos que prejudicam a
compreensão do materialismo histórico.

Se nos propuséssemos a expor brevemente a concepção de


Marx e Engels, sobre a relação entre a célebre "base" e a não
menos célebre "superestrutura", chegaríamos a isto:

1. Estados das forças produtivas;


2. Relações econômicas condicionadas por estas forças;
3. Regime sócio-político, edificado sobre uma "base"
econômica dada;
4. Psicologia do homem social, determinada, em parte,
diretamente pela economia, em parte por todo o regime sócio-
político edificado sobre ela;
5. Ideologias diversas refletindo esta psicologia.

Esta fórmula é suficientemente ampla para que todas as


"formas" do desenvolvimento histórico encontrem aí seu lugar;
ao mesmo tempo é completamente estranha àquele ecletismo
que não sabe ir além da ação recíproca entre as diferentes
forças sociais e nem sequer duvida que o fato da ação recíproca
entre estas forças não resolve ainda a questão de sua origem.
Nossa fórmula é uma fórmula monista. Esta fórmula monista
está essencialmente impregnada de materialismo. Hegel dizia
na Filosofia do Espírito: "O espírito é o único princípio motor da
história". Não se pode pensar de outra forma, atendo-se ao
ponto de vista do idealismo segundo o qual o ser é
condicionado pelo pensar. O materialismo de Marx mostra de
que maneira a história do pensamento é condicionada pela
história de ser. Mas o idealismo não impediu Hegel de
reconhecer a ação da economia como a de uma causa "tornada
efetiva por intermédio do desenvolvimento do espírito". E, da
mesma forma, o materialismo não impediu Marx de
reconhecer, na história, a ação do "espírito" como a de uma
força cuja direção, em cada época, é determinada pelo
desenvolvimento da economia.
Que todas as ideologias têm uma raiz comum, a saber, a
psicologia da época em questão, não é difícil de compreender,
e todos disso se convencerão pondo-se, mesmo que
superficialmente, ao corrente dos fatos. Como exemplo,
citaremos, dentre outros, o romantismo francês. Vítor Hugo,
Eugèrne Delacroix e Hector Berlioz trabalhavam em três
domínios artísticos totalmente diferentes. Estavam os três,
bastante distanciados um do outro. Pelo menos Vítor Hugo não
gostava da música e Delacroix desprezava os músicos
"românticos". E apesar disso, denomina-se, com razão, estes
três homens notáveis, de a "trindade romântica". Em suas
obras se refletiu uma mesma psicologia. Pode-se dizer que o
quadro Dante e Virgílio, de Delacroix expressa o mesmo
estado de alma que o que ditou a Vítor Hugo seu Hernâni e a
Berlioz sua Sinfonia Fantástica. Isto, seus contemporâneos o
sentiam, ou seja, aqueles que se interessavam seriamente por
literatura e arte. Clássico em seus gostos, Ingres chamava
Berlioz "horrível músico, o monstro, o bandido, o
Anticristo" [97]. Isto lembra as opiniões lisonjeiras expressas
pelos clássicos em relação a Delacroix, cujo pincel eles
qualificavam de "vassoura ébria". Sabemos que Berlioz, assim
como Vítor Hugo, teve que sustentar verdadeiras
batalhas [98]. Sabemos também que ele obteve a vitória após
esforços incomparavelmente maiores que os de Hugo, e bem
mais tarde. Por que foi assim, sendo que a psicologia expressa
em sua música foi a mesma que encontrara sua expressão na
poesia e no drama românticos? Para responder a esta questão,
seria necessário explicar-se muitos detalhes na história
comparada da música e da literatura francesas [99], detalhes
que permanecerão talvez sem explicação durante muito
tempo, senão para sempre. Mas o que não pode suscitar
nenhuma dúvida, é que a psicologia do romantismo francês só
se tornará compreensível quando a considerarmos a psicologia
de uma classe determinada, situada em condições sociais e
históricas determinadas [100].

J. Tiersot diz: "O movimento de 1830 na literatura e na arte


estava longe de ter um caráter de revolução popular" [101]. É
bem verdade. O movimento em questão era essencialmente
burguês. Mas ainda não é tudo. No interior da própria
burguesia, tampouco, ele tinha a simpatia geral. Na opinião de
Tiersot, ele expressava a tendência de um pequeno grupo de
"eleitos", suficientemente perspicazes para saber descobrir o
gênio lá onde ele se abrigava [102]. Tiersot constata com isso,
de forma superficial — ou seja, idealista —, o fato que a
burguesia da época não compreendia grande parte das
aspirações e sentimentos que, na literatura e na arte,
animavam então seus próprios ideólogos. Semelhante
desacordo entre os ideólogos e a classe cujas tendências e
gostos eles expressavam não é coisa rara na história. Este
desacordo explica muitas particularidades no desenvolvimento
intelectual da humanidade. No caso, ele havia provocado,
dentre outras, a atitude de desprezo da "elite" "refinada" para
com os burgueses "obtusos", atitude que, até nossos dias,
induz em erro as pessoas ingênuas e as torna decididamente
incapazes de compreender o caráter arquiburguês do
romantismo [103].Mas, também aqui, a origem e o caráter de
um tal desacordo só podem ser explicados, em última análise,
pela situação econômica da classe social no seio da qual este
desacordo se manifestou. Aqui, como em tudo, somente o ser
elucida os "segredos" do pensar. E eis porque aqui — como
aliás em tudo — só o materialismo é capaz de dar uma
explicação científica da "marcha das idéias".
XIV

Em seus esforços para explicar esta marcha, os idealistas


jamais souberam olhar atentamente da perspectiva do "curso
das coisas". Assim, Taineexplica as obras de arte pelas
propriedades do meio que cerca o artista. Mas quais? As
propriedades psicológicas, ou seja, aquela psicologia geral que
é própria a uma época dada e cujas propriedades têm,
também, necessidade de uma explicação [104]. O
materialismo, explicando a psicologia de uma sociedade ou de
uma classe dada, se refere à estrutura social criada pelo
desenvolvimento econômico, mas Taine, que é idealista,
explicava a origem do regime social pela psicologia social, o
que o fez enredar-se em contradições sem saída. Os idealistas
de todos os países não gostam de Taine agora. Compreende-
se porquê: por "meio" ele entende a psicologia da massa, a
psicologia do "homem médio" de uma época e de uma classe
determinadas e essa psicologia é para ele a última instância
para qual o estudioso pode apelar. Para Taine, portanto, o
"grande" homem, pensa e sente sempre inspirando-se no
homem "médio", nas "mediocridades". Ora, isto é, além de
falso, embaraçoso para os "intelectuais'' burgueses, sempre
propensos a se situar mais ou menos na categoria dos grandes
homens. Taine foi o homem que, tendo dito "A", se mostrou
impotente para pronunciar "B", arruinando assim a própria
causa. Para sair das contradições nas quais se enredara, não
havia outra saída, salvo no materialismo histórico, que reserva
um lugar tanto para o "indivíduo" como para o "meio", tanto
para as pessoas "médias" como para os grandes "eleitos da
sorte".

Da Idade Média até 1871, inclusive, a França foi o país onde


a evolução social e política e a luta entre as diferentes classes
sociais se revestiram do caráter mais típico da Europa
Ocidental. Isto dito, será interessante salientar que é
precisamente na França que se pode descobrir mais facilmente
a relação causal existente entre o desenvolvimento e a luta
acima mencionada de um lado, e a história das ideologias de
outro.
Falando da razão pela qual se difundiram, na época da
Restauração na França, as idéias da escola teocrática sobre a
filosofia da história, R. Flint observa:

"O sucesso de tal teoria permaneceria no


entanto inexplicável se o caminho não lhe
tivesse sido preparado pelo sensualismo
de Condillac, e se ela não tivesse sido
manifestamente destinada a servir os
interesses de outra teoria que representava as
idéias de vasta classe da sociedade francesa
após a Restauração" [105].

Isto é justo, evidentemente. E é fácil compreender qual era


a classe que havia encontrado, na escola teocrática, a
expressão ideológica de seus interesses. Mas aprofundemos
nosso estudo da história francesa e coloquemo-nos a seguinte
questão: não seria possível descobrir também as causas sociais
do sucesso do sensualismo na França de antes da Revolução?

O movimento intelectual do qual haviam saído os teóricos


do sensualismo não expressava, por sua vez, as tendências de
certa classe social? Incontestavelmente. Este movimento
expressava as tendências de emancipação do terceiro
estado francês. Se fôssemos mais longe neste sentido,
veríamos que, por exemplo, a filosofia de Descartes reflete
muito vivamente as necessidades da evolução econômica e a
relação das forças sociais de sua época [106]. Se nos
reportássemos, enfim, ao século XIV e fixássemos nossa
atenção, por exemplo, sobre os romances de cavalaria que
tiveram grande sucesso na corte e entre a aristocracia francesa
da época, veríamos que estes romances eram o espelho da vida
e das preferências da classe em questão [107]. Em poucas
palavras, neste notável país, que ainda há pouco estava
perfeitamente no direito de dizer que "caminhava à testa das
nações", a curva do movimento intelectual toma urna direção
paralela à curva do desenvolvimento econômico e à do
desenvolvimento social e político, condicionado também pelo
precedente.

Todos estes senhores que haviam "criticado" Marx em


diferentes tons não faziam a menor idéia de tudo isto. Não
suspeitavam que se a crítica é, evidentemente, coisa bela e
louvável, é necessário criticar com conhecimento de causa,
quer dizer, compreender o que se critica. Criticar um dado
método de investigação científica, é determinar até que ponto
ele pode servir para descobrir a relação causal entre os
fenômenos. Mas só se pode fazê-lo por meio da experiência,
ou seja, pela aplicação deste método. Criticar o materialismo
histórico é tentar utilizar o método de Marx e Engels no estudo
do movimento histórico da humanidade. Somente desta forma
podemos descobrir os aspectos fortes e fracos deste método.
"The proof of the pudding is in the eating" (a prova do pudim
está no comer), disse Engels, explicando sua teoria do
conhecimento. Isto também é verdade para o materialismo
histórico. Para criticar este prato, é necessário inicialmente tê-
lo experimentado. Para experimentar o método de Marx
e Engels é necessário saber dele servir-se. Mas servir-se
adequadamente, pressupõe uma preparação científica
incomparavelmente mais séria e um trabalho intelectual bem
mais persistente que eloqüentes discursos pseudocientíficos
sobre o caráter "unilateral" do marxismo.

Os "críticos" de Marx dizem, uns com mágoa, outros com


reprovação e ainda outros com uma alegria malvada, que até
o presente não foi editado sequer um livro fornecendo uma
justificação teórica do materialismo histórico. Por um tal livro,
eles entendem comumente algo no gênero de um tratado
sucinto da história universal do ponto de vista materialista.
Mas, neste momento, tal tratado não poderia ser escrito nem
por estudioso isolado, por mais universais que pudessem ser
seus conhecimentos, nem por todo um grupo de estudiosos.
Para tal livro, não existem materiais suficientes e nem tempo.
Estes materiais só podem ser acumulados por meio de longa
série de investigações sobre os detalhes dos diversos domínios
da ciência e feitas com a ajuda do método de Marx. Falando de
outra maneira, os "críticos" que exigem um tal livro queriam
que o trabalho fosse iniciado pelo fim, ou seja, que fosse
previamente explicado do ponto de vista materialista o próprio
processo que se trata, propriamente falando, de expor. De fato,
este livro se escreve precisamente na medida em que os
estudiosos contemporâneos — o mais freqüentemente sem se
dar conta, como já havíamos dito — se vêem obrigados, pelo
estado atual da sociologia, a dar uma explicação materialista
dos fenômenos que estudam. Por si sós, os exemplos
anteriormente citados, são uma prova suficiente que houve,
até hoje, muito poucos destes estudiosos.

Laplace diz que, após a grande descoberta de Newton,


cinqüenta anos decorreram antes que ela fosse completada por
outras, descobertas de alguma importância. Foi necessário a
esta grande verdade todo este tempo para ser compreendida
por todos e para vencer os obstáculos que lhe eram lançados
pela teoria dos turbilhões e possivelmente pelo amor-próprio
dos matemáticos contemporâneos de Newton [108].

Os obstáculos que encontra o materialismo moderno,


enquanto teoria harmoniosa e conseqüente, são
incomparavelmente mais consideráveis que os que encontrou
em seu aparecimento a teoria de Newton. Contra ele se dirige
direta e resolutamente o interesse da classe atualmente
dominante, a cuja influência se submetem necessariamente a
maior parte dos estudiosos de nossos dias. A dialética
materialista "que não se inclina diante de nada e considera as
coisas sob seu aspecto transitório" não pode gozar da simpatia
da classe conservadora que é atualmente, no Ocidente, a
burguesia. Ela é a tal ponto contrária ao estado de espírito
desta classe que se apresenta naturalmente a seus ideólogos
como algo intolerável e inconveniente, como algo que não é
digno nem de "pessoas honestas" em geral, nem em particular
dos "respeitáveis homens de ciência" [109]. Não é de admirar
que cada um destes "respeitáveis" sábios se considere
moralmente obrigado a afastar de si toda suspeita de simpatia
pelo materialismo. E, muito freqüentemente, ele o proclama
com tanto mais força quanto persiste, em suas pesquisas
especiais, em manter-se num ponto de vista
materialista [110]. Daí resulta uma espécie de "mentira
convencional" semiconsciente que, evidentemente, só pode ter
influência das mais prejudiciais sobre o pensamento teórico.
XV

A "mentira convencional" de uma sociedade dividida em


classes adquire proporções tanto mais consideráveis quanto a
ordem de coisas existente é abalada pela ação do
desenvolvimento econômico e da luta de classes por ele
provocada. Marx disse, com muita justeza, que quanto mais se
desenvolvem os antagonismos entre as forças produtivas
crescentes, mais a ideologia da classe dominante se impregna
de hipocrisia. E quanto mais a vida desmascara a natureza
mentirosa dessa ideologia mais a linguagem desta classe se faz
sublime e virtuosa (Sankt Max. Dokumente des Sozialismus,
agosto 1904, p. 370-371). A justeza deste pensamento salta
aos olhos com evidência particular, agora que, por exemplo,
na Alemanha, a propagação da corrupção, revelada pelo
processo de Harden-Moltke, caminha a par com o
"renascimento do idealismo" em sociologia. E entre nós
encontra-se, mesmo nas fileiras dos "teóricos do proletariado",
pessoas que não compreendem a causa social deste
"renascimento" e se submetem a sua influência. Tal é o caso
dos Bogdanov, Bazarov e outros.

De resto, as vantagens que o método de Marx proporciona


a todo investigador são tão consideráveis que elas começam a
ser plenamente reconhecidas mesmo pelas pessoas que se
submetem de bom grado à "mentira convencional" de nosso
tempo. Entre estas pessoas é necessário incluir, por exemplo,
o americano Seligman, autor do livro intitulado The Economic
Interpictation of History, editado em 1909. Seligman
reconhece abertamente que aquilo que fazia recuar os
estudiosos diante da teoria do materialismo histórico, eram as
deduções socialistas tiradas por Marx. Mas ele acha que se
pode satisfazer a cabra e ao mesmo tempo salvar a couve, que
se pode ser partidário do materialismo econômico ''e
entretanto permanecer adversário do socialismo. "O fato que
as concepções econômicas de Marx fossem erradas", diz ele,
"não tem nenhuma relação com a veracidade ou a falsidade de
sua filosofia da história" [111].

Na realidade, as concepções econômicas de Marx estavam


estreitamente ligadas às suas concepções históricas. Para bem
compreender o Capital, é absolutamente indispensável
aprofundar bem o célebre prefácio a Zur Kritik der politischen
Oekonomie e assimilá-lo. Mas nós não poderíamos, aqui, nem
expor as concepções econômicas de Marx nem elucidar o fato,
incontestável, entretanto, de que elas são parte integrante da
doutrina chamada materialismo
histórico [112]. Acrescentaremos apenas que Seligman é um
homem suficientemente "respeitável" para se intimidar
também com o materialismo. Este "partidário" do materialismo
econômico considera que é levar as coisas a um extremo
intolerável, procurar explicar "a religião e até mesmo o
cristianismo" por causas econômicas [113]. Tudo isto mostra
claramente a que ponto estão profundamente enraizados os
preconceitos e portanto também os obstáculos que a teoria de
Marx deve combater. E, apesar disso, o próprio fato do
lançamento do livro de Seligman, assim como o caráter das
reservas que formula, permitem, numa certa medida,
alimentar esperanças que o materialismo histórico — mesmo
que sob forma lapidada, "depurada" — terminará por ser
reconhecido pelos ideólogos da burguesia que todavia ainda
não renunciaram a pôr em ordem suas concepções
históricas [114].

Mas a luta contra o socialismo, o materialismo e outros


extremos desagradáveis, pressupõe a existência de certa
"arma espiritual". Esta arma espiritual para a luta contra o
socialismo é sobretudo, atualmente, aquilo que chamamos
"economia política subjetiva", completada por uma estatística
mais ou menos habilmente violentada. A principal fortaleza na
luta contra o materialismo é representado por todas as
variedades possíveis de kantismo. Na sociologia, utiliza-se para
este fim o kantismo como uma doutrina dualista, que rompe a
relação existente entre o ser e o pensar. Como o exame das
questões econômicas não faz parte de nosso plano, limitar-
nos-emos aqui à apreciação da arma filosófica da qual se serve
a reação burguesa no domínio ideológico.

No fim de sua brochura "Socialismo Utópico e Socialismo


Científico", Engels observa que, quando os poderosos meios de
produção criados pela época capitalista se tornarem
propriedade social e a produção tenha sido organizada de
forma consoante às necessidades da sociedade, os homens se
tornarão finalmente senhores da natureza e de si próprios. É
somente então que eles começarão a fazer conscientemente
sua história; é somente então que as causas sociais acionadas
por eles terão cada vez mais os efeitos desejáveis. "A
humanidade saltará do reino da necessidade para o reino da
liberdade".

Estas palavras de Engels suscitaram as objeções de todos


aqueles que, refratários em geral à idéia dos "saltos", não
podiam e não queriam de forma alguma compreender o "salto"
do reino da necessidade para o da liberdade. Tal "salto" lhes
parecia mesmo estar em contradição com a concepção da
liberdade que o próprio Engels havia formulado na primeira
parte do "Anti-Dühring"; para explicar, portanto, em que
consiste a confusão em suas idéias a este respeito, somos
obrigados a relembrar o que Engels dissera no livro em
questão.

Explicando as palavras de Hegel: "A necessidade só é cega


na medida em que não é compreendida", Engels afirmava que
a liberdade consiste "no domínio exercido sobre nós e sobre a
natureza externa, domínio fundado no conhecimento das
necessidades inerentes à natureza" [115]. Engelsdesenvolveu
este pensamento de forma suficientemente clara para aqueles
que estão ao corrente da doutrina de Hegel, à qual ele se
referia. Mas o mal consiste precisamente em que os kantistas
modernos só fazem "criticar" Hegel, sem contudo estudá-lo.
Não conhecendo Hegel, não podiam tampouco
conhecer Engels. Eles faziam, ao autor de Anti-Dühring, a
objeção que não há liberdade onde há submissão à
necessidade. Isto era bastante lógico, da parte de pessoas
cujas concepções filosóficas estão impregnadas de um
dualismo que não sabe unir o pensar ao ser. Do ponto de vista
deste dualismo, o "salto" da necessidade para a liberdade,
permanece, com efeito, totalmente incompreensível. Mas a
filosofia de Marx — como a de Feuerbach — proclama a
unidade entre o ser e o pensar. E se bem que ela compreenda
— como vimos anteriormente, ao falar de Feuerbach — esta
unidade, diferentemente do que compreendia o idealismo
absoluto, não se diferencia entretanto da teoria de Hegel na
questão que nos ocupa, a saber, a da relação entre a liberdade
e a necessidade.
Todo o problema reside em saber o que é preciso entender
exatamente por necessidade. Aristóteles [116] já havia
indicado que o conceito da necessidade tem muitas nuanças: é
necessário usar o medicamento para curar; é necessário
respirar para viver; é necessário fazer uma Viagem a Egina
para recuperar uma soma de dinheiro. É uma necessidade, por
assim dizer, condicional: é preciso que respiremos, se
queremos viver, é preciso usar um medicamento se nós
queremos livrar de uma doença e assim por diante. O homem
está constantemente enfrentando necessidade deste gênero,
no processo de sua ação sobre a natureza exterior: é-lhe
necessário semear, se quer colher; lançar a flecha se quer
matar a caça: prover-se de combustível se quiser colocar em
movimento uma maquina a vapor e assim por diante. Se nos
colocamos sob o ponto de vista da "crítica neokantista" de
Marx, é preciso admitir que, nesta necessidade condicional,
existe também um elemento de submissão. O homem seria
mais livre se pudesse satisfazer suas necessidades sem
dispender nenhum esforço. Ele se submete à natureza, mesmo
quando a obriga a servi-lo. Mas esta submissão é a condição
de sua libertação: submetendo-se à natureza, aumenta com
isto, seu poder sobre ela, ou seja, sua liberdade. Seria o
mesmo no caso onde a produção social estivesse organizada
de forma racional. Ao se submeter às exigências da
necessidade técnica e econômica, os homens poriam termo a
este regime insensato que faz com que sejam dominados por
seus próprios produtos, ou seja, aumentariam
formidavelmente sua liberdade. Aqui também sua submissão
tornar-se-ia a fonte de sua libertação.

E não é tudo. Afeitos à idéia de que o pensar está separado


do ser por um abismo, os "críticos" de Marx só conhecem uma
única nuança da necessidade: utilizando ainda uma vez os
termos de Aristóteles, eles representam a necessidade
unicamente como uma força que nos impede de agir segundo
nosso desejo e que nos obriga a fazer o que é contrário a ele.
Tal necessidade está, com efeito, em oposição à liberdade e
não pode deixar de pesar sobre nós. Mas é preciso não perder
de vista, tão pouco aqui, que uma força que se apresenta ao
homem como força exterior de coerção indo de encontro a seu
desejo, pode, em outras circunstâncias, apresentar-se a ele
sob aspecto totalmente diferente. Tomemos, como exemplo, a
questão agrária tal como se nos apresenta atualmente na
Rússia. A "expropriação obrigatória da terra" pode parecer ao
proprietário territorial inteligente, a um "cadete", uma
necessidade histórica mais ou menos triste — mais ou menos
triste segundo o montante da "compensação justa" que lhe é
atribuída. Mas, aos olhos do camponês, que acalenta a idéia de
se ver atribuir aquilo que ele chama a "terrinha", a necessidade
mais ou menos triste será, ao contrário, unicamente esta
"compensação justa", enquanto a "expropriação obrigatória"
lhe parecerá, seguramente, ser a expressão de sua livre
vontade e o penhor mais precioso de sua liberdade.

Tocamos aqui no ponto talvez mais importante da doutrina


da liberdade, que não havia sido mencionada por Engels, pela
única razão, evidentemente, que este ponto era
compreensível, sem maiores explicações a quem quer que
tenha seguido a escola de Hegel.

Em sua filosofia da religião, Hegel diz: "Die Freiheit ist dies;


nichts zu wollen als sich" [117], quer dizer: "A liberdade
consiste em nada querer além de si mesmo" . E esta
observação ilumina toda a questão da liberdade, na medida em
que concerne à psicologia social; o camponês que reivindica a
"terrinha" ao grande proprietário não quer "nada além de si
mesmo". Mas o que o reformista agrário "cadete" que consente
em lhe ceder esta "terrinha" quer, não é mais a "si mesmo",
mas apenas aquilo que a história o obriga. O primeiro é livre,
o segundo se submete sabiamente à necessidade.

Seria o mesmo para o proletariado que transformaria os


meios de produção em propriedade social e organizaria a
produção social em novas bases: ele não quer nada além de si
mesmo. E ele se sentiria completamente livre. Mas no que
concerne aos capitalistas, eles se sentiriam na melhor das
hipóteses na situação do reformista agrário que aceitara o
programa agrário dos "cadetes"; eles só poderiam constatar
que a liberdade é uma coisa e a necessidade histórica outra.

Temos a impressão que aqueles que criticavam Engels não


o compreendiam e uma das razões dessa incompreensão é
que, se eram capazes de se colocar mentalmente na situação
de um capitalista, não podiam, de maneira alguma, imaginar a
si próprios na "pele" dos proletários. E consideramos que para
isto havia também uma causa social particular, causa
econômica em última instância.
XVI

O dualismo para o qual se inclinam atualmente os


ideólogos da burguesia, dirige ainda uma outra censura ao
materialismo histórico. Na pessoa de Stammler, ele o reprova
por não levar absolutamente em conta a teleologia social. Esta
segunda censura, aliás estreitamente relacionada à primeira,
não é menos desprovida de fundamento.

Marx disse: "Para produzir, os homens contraem entre si


relações determinadas". Stammler vê nesta fórmula a prova de
que o próprio Marx, a despeito de sua teoria, não pôde evitar
as considerações teleológicas. As palavras de Marx significam,
em sua opinião, que os homens contraem conscientemente as
relações sem as quais a produção é impossível. Estas relações,
portanto, são o resultado de uma ação levada a cabo tendo em
vista o objetivo a atingir [118].

Não é difícil mostrar em que ponto deste raciocínio


Stammler peca contra a lógica e comete um erro que marcara
todas as suas observações críticas posteriores.

Tomemos um exemplo. Selvagens caçadores vão perseguir


uma presa, digamos um elefante. Para isto, eles se reúnem e
dispõem suas forças numa certa ordem. Onde está aqui o
objetivo? Onde está o meio de atingi-lo? O objetivo consiste,
evidentemente, em capturar ou matar o elefante, e o meio é a
perseguição do animal com todas as forças conjugadas. Pelo
quê o objetivo é sugerido? Pelas necessidades do organismo
humano. Pelo quê o meio é determinado? Pelas condições da
caça. As necessidades do organismo dependem do homem, de
sua vontade? Não, elas não dependem e isto, aliás, compete à
fisiologia e não à sociologia. Que poderemos aqui pedir à
sociologia? Que explique por que razão os homens, buscando
satisfazer suas necessidades — digamos, a necessidade de
alimentação —, contraem, num momento, tais ou quais
relações e, num outro, relações totalmente diferentes. Este
fato, a sociologia — na pessoa de Marx — explica pelo estado
das forças de produção. Agora, o estado destas forças depende
da vontade dos homens e dos objetivos que perseguem? A
sociologia, de novo na pessoa de Marx responde: não, não
depende. E se não depende, é porque estas forças aparecem
em virtude de certa necessidade determinada por condições
dadas e situadas fora do homem.

O que resulta disto? Resulta que se a caça é uma atividade


de acordo com o objetivo que persegue o selvagem, este fato
incontestável em nada diminui o valor deste pensamento de
Marx: as relações de produção que se estabelecem entre os
selvagens que se entregam à caça, se estabelecem em virtude
de condições, todavia, completamente independentes desta
atividade, de acordo com o objetivo perseguido. Em outros
termos, se o caçador primitivo aspira conscientemente matar
o quanto for possível de caça, daí não decorre ainda que o
comunismo, próprio à vida que leva o caçador, tenha surgido
como produto de acordo com o objetivo de sua atividade. Não,
o comunismo nasce, ou mais exatamente, se conservou —
visto que se constituiu bem antes — como o resultado
inconsciente, ou seja, necessário, desta organização do
trabalho cujo caráter era totalmente independente da vontade
dos homens [119]. É precisamente isto que não compreendeu
o kantista Stammler; ele tomou aqui um falso caminho, ao
mesmo tempo que arrastou consigo nossos Strouvé, Boulgakov
e outros marxistas temporários, cujos nomes formam uma
legião [120].

Continuando suas observações críticas, Stammler diz que,


se o desenvolvimento social se efetuasse exclusivamente em
virtude da necessidade causal, toda tendência consciente a
contribuir com este desenvolvimento seria um contra-senso
manifesto. De acordo com ele, de duas uma: ou eu considero
um fenômeno qualquer necessário, quer dizer, inevitável e
então eu não tenho nenhuma necessidade de contribuir para
seu aparecimento; ou minha contribuição é necessária para
que este fenômeno possa produzir-se, e então não se pode
chamá-lo de necessária. Quem, afinal, procura contribuir com
o nascer do sol, nascer necessário, ou seja, inevitável? [121].

Aqui se manifesta de uma maneira notável o dualismo


próprio às pessoas educadas na filosofia de Kant: para elas, o
pensar está sempre separado do ser.

O nascer do sol não está ligado de forma alguma, nem


como causa, nem como conseqüência, às relações sociais dos
homens. E por isto pode-se opô-lo enquanto fenômeno da
natureza, às aspirações conscientes dos homens que tampouco
tem alguma relação causal com ele. Mas não é isso que
acontece com os fenômenos sociais da história. Nós já sabemos
que a história é feita pelos homens. As aspirações humanas,
portanto, não podem ser um fator exclusivo do movimento
histórico. Mas a história é feita pelos homens de certa maneira
e não de outra, em conseqüência de certa necessidade da qual
falamos o suficiente anteriormente. Uma vez que esta
necessidade está dada, as aspirações dos homens, aspirações
que constituem um fator inevitável da evolução social, estão
também dadas como conseqüência. Estas aspirações não
excluem a necessidade, mas são, elas mesmas, determinadas
por esta última. É uma grande falta de lógica, portanto, opô-
las a esta mesma necessidade.

Quando uma classe que aspira à sua emancipação efetua


uma revolução social, ela age no caso, de forma mais ou menos
apropriada ao objetivo que persegue e, em todo caso, sua
atividade é a causa desta revolução. Mas esta atividade, com
todas as aspirações que a suscitaram, é ela mesma a
conseqüência do desenvolvimento econômico e portanto ela é
em si mesma determinada pela necessidade.

A sociologia só se torna ciência na medida em que chega a


compreender o aparecimento de objetivos no homem social
("teleologia" social) como conseqüência necessária do processo
social, condicionado, em última instância, pela marcha do
desenvolvimento econômico.

E é muito característico que os adversários conseqüentes


da interpretação materialista da história se vejam obrigados a
demonstrar que a sociologia é impossível enquanto ciência.
Isto significa que o "criticismo" se torna um obstáculo ao
desenvolvimento científico de nossa época. Aqueles que
procuram encontrar uma explicação científica da história das
teorias filosóficas poderão empreender uma tarefa
interessante: determinar a maneira pela qual o papel do
"criticismo" se relaciona com a luta de classes.

Se pretendo tomar parte num movimento cujo triunfo me


parece uma necessidade histórica, isto significa unicamente
que considero minha própria atividade também como um elo
indispensável na cadeia das condições cuja totalidade
assegurará necessariamente o triunfo do movimento que me é
caro. Nem mais nem menos. Isto um dualista não compreende.
Mas é perfeitamente claro para quem assimilou a teoria da
unidade entre o sujeito e o objeto e compreendeu de que
maneira essa unidade se manifesta nos fenômenos de ordem
social.

É extremamente importante notar que os teóricos do


protestantismo na América do Norte não compreendem
evidentemente nada desta oposição entre a liberdade e a
necessidade que tanto preocupou e ainda preocupa muitos
ideólogos da burguesia européia. A. Bargy diz que "na América,
os propagandistas da energia mais convictos são poucos
propensos a reconhecer a liberdade da vontade" [122]. Ele
explica isto pelo fato que estes homens, enquanto homens de
ação, preferem as decisões fatalistas. Mas Bargy se engana. O
fatalismo nada tem com isto. O que se pode ver em sua própria
observação a respeito do moralista Jonathan Edwards... é o
ponto de vista de Edwards... é o ponto de vista de todo homem
de ação. Para quem jamais na vida se propôs um fim
determinado, a liberdade é a faculdade de colocar toda a sua
alma em buscar este fim" [123]. Isto está muito bem dito e
parece bastante com o "nada querer além de si mesmo" de
Hegel. Mas quando o homem "nada quer além de si mesmo"
ele não é absolutamente fatalista; ele é um homem de ação,
exclusivamente.

O kantismo não é uma filosofia de combate, não é uma


filosofia de homens de ação. É uma filosofia de pessoas que em
tudo ficam a meio caminho, uma filosofia de compromisso.

Engels diz que é preciso que os meios de suprimir o mal


social sejam descobertos nas condições materiais dadas da
produção, mas não inventadas por este ou aquele reformador
social. Stammler está de acordo com Engels neste ponto, mas
o acusa de falta de clareza, visto que, segundo ele, o âmago
da questão é saber "com a ajuda de qual método esta
descoberta deve ser feita'' [124]. Esta objeção apenas
testemunha a confusão que reina no próprio pensamento de
Stammler. E ela se esvazia pelo fato muito simples que mesmo
se o caráter do "método" está, em tais casos, determinado por
grande número de "fatores" extremamente variados, todos
estes "fatores" entretanto podem ser reconduzidos, no final de
contas, à sua fonte, a saber, a marcha do desenvolvimento
econômico. O próprio fato de a teoria de Marx ter podido nascer
foi condicionado pelo desenvolvimento do modo de produção
capitalista, enquanto a predominância do utopismo [125] no
socialismo anterior a Marx é bem compreensível numa
sociedade que tenha sofrido não apenas o desenvolvimento do
modo de produção indicado, mas também, talvez ainda mais,
da insuficiência deste desenvolvimento .

É inútil estender-nos ainda mais sobre este assunto. Mas


talvez o leitor consentirá que, ao terminar este artigo,
chamemos sua atenção sobre a estreita relação entre o
"método" tático de Marx e Engels e as teses fundamentais de
sua teoria histórica.

Nós já sabemos que, nos termos desta teoria, a


humanidade só se coloca problemas que pode resolver "pois...
o próprio problema só se apresenta onde as condições
materiais indispensáveis à sua solução já existem ou estão em
vias de aparecimento". Mas onde as condições já existem, a
situação é totalmente diferente daquela onde elas "apenas
estão em vias de aparecimento". No primeiro caso, o momento
do "salto" já chegou; no segundo, o "salto" é coisa de um futuro
mais ou menos distante, um "objetivo final", cuja aproximação
é preparada por toda uma série de "transformações graduais"
nas relações entre as classes sociais. Qual deve ser o papel dos
inovadores na época em que o "salto" ainda é impossível? Só
lhes resta, evidentemente, contribuir para as "transformações
graduais", falando de outra maneira, a lutar para obter
reformas. Assim o "objetivo final" tanto quanto as reformas
encontram seu lugar, e a oposição entre a reforma e o objetivo
final perde toda a razão de ser e se encontra relegado ao
domínio das legendas utópicas. Qualquer que seja o homem
que admita tal oposição — "revisionista" alemão, no gênero
de E. Bernstein, ou "sindicalista revolucionário" italiano, do
gênero daqueles que participaram do recente congresso
sindicalista de Ferrara — revela na mesma medida a sua
incapacidade de compreender o espírito e o método do
socialismo científico moderno. Isto é útil relembrar no
momento atual em que o reformismo e o sindicalismo ousam
falar em nom de Marx.

Mas que robusto otimismo emana destas palavras: "A


humanidade só se coloca problemas que ela pode resolver".
Elas não significam, evidentemente, que toda solução dos
grandes problemas, apresentada pelo primeiro utopista que
surja, seja boa. Uma coisa é o utopismo, outra é a humanidade,
ou mais exatamente falando, a classe social que representa
num momento dado os interesses supremos da humanidade.
O próprio Marx disse muito bem: "Quanto mais uma ação
histórica for profunda, mais crescerá a amplitude das massas
que a efetuam". Por aí se encontra definitivamente condenada
toda atitude utópica em relação aos problemas históricos. E se
Marx pensava, contudo, que a humanidade jamais se propõe
problemas insolúveis, suas palavras, do ponto de vista teórico,
representam apenas uma nova expressão da idéia da unidade
entre o sujeito e o objeto aplicada ao processo do
desenvolvimento histórico. Do ponto de vista prático elas
expressam a fé calma e viril de que o "objetivo final" será
atingido, fé que outrora fez exclamar nosso inesquecível N. G.
Tchernychevsky com calorosa convicção:

"Aconteça o que acontecer, será, apesar de tudo, o nosso


campo que festejará a vitória!"
Notas:

(1) trata-se do texto intitulado: Os "Saltos" na Natureza e na História. (retornar ao


texto)

(2) ainda não incluído no sítio (retornar ao texto)

(3) ainda não incluído no sítio (retornar ao texto)

[1] O livro de VI. Verigo: Marx als Philosoph (Berna e Leipzig, 1904), é consagrado
à filosofia de Marx e Engels. É difícil, todavia, imaginar obra tão insatisfatória.

[2] Ver seu interessante livro: A Alemanha nas vésperas da Revolução de 1848, São
Petersburgo, 1906, p. 228-229.

[3] Ueber Spiritualismus und Materialismus,Oeuvres, X, p. 129.

[4] Oeuvres, IV, p. 249.

[5] Ibid.. , p. 249.

[6] O próprio Feuerbach diz muito bem, que o começo de toda filosofia é determinado
pelo estado precedente do pensamento filosófico.

[7] Oeuvres, II, p. 263 ( Oeuvres , edição do Instituto Marx-Engels, t. I, p. 71).

[8] Ibid.,II, p 261.

[9] Ibid., p. 262.

[10] Ibid., p 295.

[11] Ibid., p 350.

[12] Ibid., p 291.

[13] Ibid., p 350.

[14] Ibid., 11, p. 334, e X, p. 184-186.

[15] "O pensar", diz ele,"é precedido pelo ser; antes de pensar a qualidade, você a
sente" (Oeuvres , II, p. 253).

[16] Ver o artigo intitulado: "Bernstein e o Materialismo" em nossa coletânea Critique


de nos Critiques (Plekhanov, Oeuvres, t. XI)

[17] Hume, as Vie, as Philosophie, p. 108.


[18] Ibid., p. 110.

[19] Ver também o terceiro capítulo de seu livro: l'Âme et le Systême Nerveux.
Hygiene et Pathologie, Paris, 1906.

[20] Oeuvres, II, p. 348-349.

[21] Die physchischen Fahigkeiten der Ameisen etc., Munique, 1901, p. 7.

[22] Ibid., p. 7 e 8.

[23] Ibid.

[24] Oeuvres, II, p. 322.

[25] "O espírito absoluto de Hegel não é outra coisa que o espíritcs abstrato, que o
espírito isolado de si mesmo, o que chamamos o espírito finito, assim como o Ser
infinito da teologia não é outra coisa que o Ser abstrato finito". (Oeuvres, II, p. 263).

[26] La Civilisation Primitive, Paris, 1876, t. II, p. 143. É preciso-observar


que Feuerbach teve, no que se refere a isto, uma intuição-verdadeiramente genial.
Ele diz: "O conceito de objeto não é primitivamente outra coisa que o conceito de um
outro 'eu'. Assim, o homem concebe na infância todos os objetos como seres que
agem livre e arbitrariamente; é por isso que o conceito de objeto nasce, em geral,
por intermédio do tu, que é o eu objetivo". Reymond, Lausanne, 1905, p. 414-415

[27] Ver T. Gomperz: Les Penseurs de la Grèce, trad. por Aug. Reymond, Lausanne,
1905, p. 414-415.

[28] Ver seu artigo, intitulado: Die Psycho-physiologische Identitatstheorie als


wissenschaftliches Postulat, na coletânea Festschrift, I.

[29] Oeuvres, II, p. 340

[30] Jbid., p. 362 e 363.

[31] Ibid., X, p. 187

[32] Handwõrterbuch der Staatswissenschaften, V, p. 708.

[33] Oeuvres, II, p. 343.

[34] Ibid., II, p. 344.

[35] Oeuvres posthumes, 1, p. 477.

[36] Oeuvres, II, p. 345.


[37] Engels não tinha em vista sua própria pessoa mas, em geral, todos aqueles que
tinham as mesmas idéias: "Precisamos...", dizia ele. Não há dúvida de que Marx
estava entre os que pensavam como ele.

[38] Wissenschaft der Logik, t. 1, Nuremberg, 1812, p. 313-314.

[39] No que concerne à questão dos "saltos" ver nossa brochura L'Iniortune de M.
Tikhonrirov, São Petersburgo, edição M. Malykh, p. 6-14 (v. o anexo).

[40] Ver o anexo Dialética e Lógica.

[41] Die Mutationen, p. 7-8.

[42] Arten etc., p. 421

[43] Sem falar de Espinosa, é preciso não esquecer que muitos materialistas
franceses do século XVIII tendiam para a teoria da "matéria animada".

[44] Ver Engels: Ludwig Feuerbach, p. 1-5.

[45] Ver nosso artigo "Bielinski ct Ia Réalité Rationnelle", na coletânea Vingt Années
(Oeuvres, t. X).

[46] Ver o prefácio ao livro Zvr Kritik der politischen Oekorzomie.

[47] Assim como já disséramos, Feuerbach não tinha ido, neste caso, mais longe
que Hegel.

[48] Die Urgesellschaft, Stuttgart, 1891 p. 20-21.

[49] Die Indianer Nordamerikas,p. 91

[50] Au coeur de l'Afrique, t. 1, p. 209

[51] Anthropogeographie, Stuttgart, 1882, p. 29.

[52] Capital, t. 1, 3.a ediçao, p. 524-526.

[53] Völkerkunde, Leipzig, 1887, t. 1. p. 56

[54] Vàlkerkunde, 1, p. 83. E, além disso, é preciso lembrar que reduzir à escravidão
é, por vezes, nos primeiros graus da evolução, simplesmente incorporar os
prisioneiros à força na organização social dos vencedores conferindo-lhes os mesmos
direitos. Não há pois lucro fornecido pelo sobre-trabalho do prisioneiro, mas
simplesmente um proveito comum decorrente da colaboração com este último. Mas
esta forma de escravidão pressupõe a existência de algumas forças de produção e
de certa organização da produção.

[55] Ed. J. Eyre: Manners and Customs of the Aborigines of the Australia, Londres,
1847, p. 243.
[56] Dans les Ténèbres de l'Afrique, Paris, 1890, t. II, p. 91.

[57] Burton: Voyage aux Grands Lacs de l'Afrique Orientale, Paris, 1862, p. 666.

[58] Völkerkunde, t. I, p. 93.

[59] É o que Engels explica muito bem nos capítulos do Anti-Dühring, consagrados à
análise da "teoria da violência". Ver também Les Maitres de la Guerre, pelo Tenente-
Coronel Rousset, professor na Escola Superior de Guerra, Paris, 1901 (p. 2).

[60] Vólkerkunde, p. 19.

[61] Le Capital, p. 524-526

[62] Ver sua History of Civilization in England, vol. 1, Leipzig, 1865, p. 36-37.
Segundo Buckle, "o aspecto geral da região" (the general aspect of nature), que é
uma das quatro causas determinantes do caráter particular de um povo, influi
sobretudo sobre a imaginação, e uma imaginação fortemente desenvolvida engendra
as superstições que, por sua vez, retarda o desenvolvimento do saber. A freqüência
dos tremores de terra no Peru, agindo sobre a imaginação dos indígenas, também
exerceu influência sobre seu regime político. Se os espanhóis e os italianos são
supersticiosos, isto ainda provém dos tremores de terra e das erupções vulcânicas
(Ibid. p. 112-113). Esta ação diretamente psicológica é particularmente forte nos
primeiros estágios do desenvolvimento cultural. A ciência moderna, estabelece,
entretanto, uma semelhança evidente entre as crenças religiosas das raças primitivas
situadas ao mesmo nível de desenvolvimento econômico. As opiniões de Buckle, que
ele empresta dos escritores do século XVII, já haviam sido exprimidas por Hipócrates
(ver Des Airs, des Eaux et des Lieux, tradução de Coray, Paris, 1800, parágrafos 76,
85, 86, 88 etc.).

[63] Para tudo o que se refere à raça, ver o interessante ti abalhn de 1. Finot: Le Pré
jugé des Races, Paris, 1905. Waitz diz: "Certas tribos negras apresentam um notável
exemplo da ligação existente entre a principal ocupação e o caráter nacional"
(Anthropologie der Naturvölker, II, p. 107).

[64] No que concerne à influência exercida pela economia sobre as relações sociais,
ver Engels: Der Ursprung der Familie des Privateigenthums und des Staats, 8.a
edição, Stuttgart, 1900; R. Hildebrand: Recht und Sitte aul verschiedenen
Kulturstufen, 1ª. parte, lena, 1896. Infelizmente Hildebrand não sabe utilizar bem os
dados econômicos. A interessante brochura de T. Achelis: Rechtsentstehung und
Rechtsgeschichte, Leipzig, 1904, trata do direito enquanto produto do
desenvolvimento social, mas não aprofunda a questão de saber o que condiciona este
desenvolvimento. No livro de M. A. Vaccaro: Les Bases Sociologiques du Droit et de
I'Etat, Paris, 1898, encontramos muitas observações de detalhes esparsas que
iluminam alguns aspectos da questão, mas, enfim, o próprio autor ainda não tem
idéia clara do objeto. Ver também Teresa Labriola: Revisione Critica delle più Recenti
Teorie sulle Origini del Diritto, Roma, 1901.

[65] Der Ursprung der Sprache, Mogúncia, p. 331.


[66] 66 Ibid., p. 341

[67] Ibid., p. 347.

[68] lbid., p. 369.

[69] Unter den Naturvöikern Zentral-Brasiliens, p. 201.

[70] Ibid., p. 205-206.

[71] No que concerne aos "povos pastores exclusivos", ver especialmente o livro de
Gustav Fischer: Eingeborene Süd-Afrikas, Breslau 1872. Fischer diz: "O ideal do
cafre, o objeto com o qual sonha e que exalta com predileção em seus cantos, são
os bois, quer dizer, seu mais precioso bem. Os louvores ao gado se alternam no
canto, com os do chefe da tribo e ainda é seu gado que tem grande papel, nos
louvores que dele se faz". (t. 1, p. 85). Os cuidados a dispensar ao gado são, aos
olhos do homem cafre, a labuta mais honrosa (1, p. 85); a própria guerra é a
ocupação favorita do cafre, principalmente porque, em seu pensamento, ela está
associado à idéia de um butim composto de gado" (1, p. 79). "Os litígios entre os
cafres vêm de disputas que têm por móvel o gado" (1, p. 322). Fischer também fez
uma descrição muito interessante da vida dos bosquímanos caçadores (1, p. 424 e
seguintes).

[72] Mytlzes, Cu1t~s et Religions, trad. por Charillet, Paris, 1896, p. 332.

[73] É conveniente lembrar aqui a observação de R. Andree, que diz que,


primitivamente, o homem representa seus deuses sob o aspecto de animais. "Quando
se chega, mais tarde, a conceber os animais com atributos antropomórficos, os mitos
da metamorfose de homens em animais nascem". (Ethnographische Parallele und
Vergleiche, Neue Folge, I.eipzig, 1889, p. 116). O aparecimento das idéias
antropomórficas sobre os animais já pressupõe um nível relativamente mais elevado
do desenvolvimento das forças produtivas. Consultar também Frobenius: Die
Weltanschauung der Naturvölker, Weimar, 1898, p.24.

[74] La Civilisatjon Primitive, Paris, 1876, t. II, p. 322.

[75] Consultar G. Schurz: Vorgeschichte der kultur, Leipzig e Viena, 1909, p. 559-
564. Mais adiante, retornaremos a este objeto em outra circunstância.

[76] Urgeschichte etc., p. 38.

[77] Arbeit und Rhythmus, p. 342.

[78] Anjãnge der Tonkunst, p. 257

[79] Figurando comumente também animais.

[80] Prefácio à Critica da Economia Política.


[81] Retornemos à escravidão. Num certo nível ela contribui para o desenvolvimento
das forças produtivas mas, depois, começa a entravá-lo. Seu desaparecimento nas
nações civilizadas do Ocidente é conseqüência de seu desenvolvimento econômico
(Sobre a escravidão ver a interessante obra do Prof. Et. Cicotti: II Tramonto della
Schiavità, Turim, 1899).

J.-H. Speke diz em Les Sources du Nu (Paris, 1865, p. 21) que, entre os negros, os
escravos consideram que evadir-se é cometer para com o senhor que pagou por ele,
uma ação contrária à honra, infamanto. A isto se soma que esses mesmos escravos
consideram sua situaçao como mais honrosa que a de um trabalhador assalariado.
Tal maneira de ver corresponde àquela fase da sociedade "onde a escravidão ainda
se mantém como fenômeno de progresso".

[82] Os povos caçadores foram precedidos pelos coletores de frutos e raízes,


Sammelvölker, segundo expressão empregada presentemente por cientistas
alemães. Mas todos os povos selvagens conhecidos já ultrapassaram esta etapa de
desenvolvimento.

[83] Aqui está um exemplo extraído de outro domínio: O "fator populacional",


segundo expressão empregada por A. Kost (Ver sua obra: Les Facteurs de Population
dans le Développement Social, Paris, 1910), exerce incontestavelmente uma
influência muito grande sobre o desenvolvimento social. Marx, porém, tem
perfeitamente razão quando diz que as leis abstratas da multiplicação só existem
para os animais e as plantas. O crescimento (ou a diminuição) da população na
sociedade humana depende da organização desta sociedade, organização
determinada pela estrutura econômica desta mesma sociedade. Nenhuma "lei
abstrata da multiplicação" explicará algo sobre o fato de a população francesa atual
quase não aumentar. Grande é o erro dos sociólogos e economistas que vêem no
crescimento da população a causa inicial do desenvolvimento social. (Ver A. Lona: La
Legge cli Popolazione cd ii Sistema Sociale, Sena 1882).

[84] Consultar Les Classes Rurales et le Régime Dornanial en France au Moyen Âge,
por Henri Sée, Paris 1901, p. 554. Ver também Fr. Meyer: Die Stände, ihr Leben
Treiben, Marburg 1882, p. 8.

[85] L'Histoire de la Philosophie, ce qu'elle a été, ce qu'elle peut être, Paris, 1888.

[86] Wirtschaft raid Philosophie, t. 1, p. 98.

[87] Ibid., p. 99

[88] Ibid, p. 99-101.

[89] Ibid., p. 103-107

[90] Referindo-se ainda à economia da Grécia Antiga, Eleuteropoulos não dá


nenhuma idéia concreta dela e se limita a lugares-comuns que tanto aqui como lá,
nada explicam.

[91] Ibid., p. 17.


[92] Der sozialistiche Akademiker, 1895, nº. 20, p. 374.

[93] Ver nosso artigo intitulado "Du Róle de la Personnalité dans l'Histoire" em nosso
livro Vingt Annés (Oeuvres, t. VIII).

[94] Ele denominou de grega "sua teoria" porque, segundo ele, as teses
fundamentais "foram anunciadas pelo grego Tales e desenvolvidas novamente por
um grego" (quer dizer, por Eleuteropoulos; v. seu livro, p. 17).

[95] A este respeito, ver nosso prefácio à segunda edição de nossa tradução russa
do Manifesto.

[96] páginas 19 e 20 do livro de F. Feuerherd.

[97] Ver Souvenirs d'un Hugolâtre por Augustin Challamel, Paris, 1885, p. 259.
Ingres foi mais conseqüente que Delacroix que, romântico em pintura, conservou
unia predileção pela música clássica.

[98] Consultar o livro de Challamel, p. 258.

[99] E sobretudo na história do papel exercido por cada uma destas artes, enquanto
intérpretes dos estados de alma da época. Sabemos que em épocas diferentes
surgem, em primeiro plano, diferentes ideologias e diferentes ramos ideológicos. A
teologia exerceu, na Idade Média, um papel muito mais importante que atualmente;
a dança era, na sociedade primitiva, a arte mais importante, hoje está longe de ser
assim etc. etc.

[100] Há no livro de Chesneau (Les Chels d'École, Paris, 1883, p. 378-379) uma
observação muito sutil sobre a psicologia dos românticos. Chesneau salienta que o
romantismo surgiu logo após a Revolução e o Império. "Na literatura e na arte, houve
uma crise, semelhante àquela que se produziu nos costumes após o Terror, uma
verdadeira crise dos sentidos. As pessoas haviam vivido num medo perpétuo. Depois
seu medo cessa a elas se abandonam ao prazer de viver. As aparências exteriores,
as formas exteriores atraíam exclusivamente a atenção. O céu azul, a luz
deslumbrante, a beleza das mulheres, os veludos suntuosos, as sedas de cores
cambiantes, o brilho do ouro, o fogo dos diamantes, tudo dava prazer. As pessoas só
viviam com os olhos, tinham cessado de pensar". Isto se assemelha, em muitos
pontos, à psicologia da época que vivemos atualmente na Rússia. Mas a marcha dos
acontecimentos, que era a causa deste estado de alma, era, por sua vez, provocada
pela marcha da evolução econômica.

[101] Hector Berlioz et la Société de son Temps, Paris, 1904, p. 19Q.

[102] Ibid., p. 190

[103] Aqui temos o mesmo qüiproquó que faz com que os partidários do
arquiburguês Nietzsche se tornem verdadeiramente divertidos quando atacam a
burguesia.
[104] "A obra de arte", diz Taine, "é determinada por um conjunto que é o estado
geral do espírito e dos costumes do meio".

[105] The Philosophv ai History in France and Germany. p. 149.

[106] Ver Histoire de la Littérature Française de G. Lanson (Paris, 1896, p. 394-397),


onde a relação entre certos aspectos da filosofia de Descartes e a psicologia da classe
dominante na França na primeira metade do século XVIII está bem explicada.

[107] Em sua Histoire das Français (t. I, p. 59), Sismondi emite uma interessante
opinião sobre o significado destes romances, que fornece elementos para o estudo
sociológico da imitação.

[108] Exposition du Système du Monde, Paris, ano IV, t. II, p.29 1-292.

[109] A este respeito ver, entre outros, o artigo de Engels anteriormente citado:
Ueber den historischen Materialismus.

[110] Lembrem com que ardor Lamprecht defendia-se da acusação de materialismo.


Vejam também como se defende Ratzel (Die Erde und das Leben, p. 631). E no
entanto o mesmo Ratzel escreve: "O total das aquisições culturais de cada povo, em
cada época de seu desenvolvimento, compõe-se de elementos materiais e
espirituais... Eles não são adquiridos através de meios idênticos nem com a mesma
facilidade e ao mesmo tempo para todos... Na base das aquisições intelectuais estão
as aquisições materiais. As criações do espírito surgem, como um luxo, somente após
terem sido satisfeitas as necessidades físicas. Conseqüentemente, toda questão
colocada sobre o aparecimento da cultura leva àquela sobre os fatores que favorecem
o desenvolvimento das bases materiais da cultura" (Völkerkunde, t. I, l.ª edição, p.
17). Isso é o mais incontestável materialismo histórico, se bem que uma concepção
muito menos profunda e portanto de qualidade inferior ao materialismo de Marx
e Engels.

[111] Páginas 24 e 109 do livro de Seligman.

[112] Ainda algumas palavras para explicar o que precede. Segundo Marx, "as
categorias econômicas são apenas expressões teóricas, abstrações das relações
sociais de produção" (Miséria da Filosofia, II parte, 2.a nota). Isto significa que Marx
considera as categorias econômicas também do ponto de vista das relações mútuas
que existem entre os homens no processo social da produção e pela evolução das
quais ele explica em suas linhas fundamentais o movimento histórico da humanidade.

[113] Ibid., p. 37. A origem do Cristianismo, de Kautsky, sendo um livro no mesmo


gênero "extremo" merece, evidentemente, segundo Seligman, ser estigmatizado.

[114] O paralelo que traçaremos aqui, será extremamente instrutivo. Segundo Marx,
a dialética materialista, explicando o que existe, explica, ao mesmo tempo, seu
desaparecimento inevitável. Nisto Marx vê o aspecto vantajoso, o valor da dialética
sob o ponto de vista do progresso. Mas Seligman diz: "O socialismo é uma teoria que
se reporta ao porvir, o materialismo histórico é uma teoria que se reporta ao passado"
(Ibid., p. 108). Por esta razão, unicamente, Selígman considera possível para si,
defender o materialismo histórico. O que equivale a dizer que se pode ignorar este
materialismo na medida em que ele explica o desaparecimento inevitável do que
existe, mas dele servir-se para a explicação do que existiu. Esta é uma das
numerosas variedades da "contabilidade por partidas dobradas" no domínio
ideológico, contabilidade também engendrada por causas econômicas.

[115] Herrn Eugen Dühring Umwãlzung der Wissenschalt, 5,8 edição, p. 113.

[116] Metalísica, livro V, Cap. 5

[117] Hegel: Oeuvres, t. XII, p. 98.

[118] Wirtschaft und Recht, 2.a edição, p. 421.

[119] "A necessidade, por contraste com a liberdade, nada mais é que o
inconsciente". (Schelling, System des Tranzendentalen Idealismus, 1880, p. 524).

[120] Este aspecto da questão foi exposto por nós de forma suficientemente
detalhada em diferentes pontos de nosso livro sobre o Monismo Histórico (Oeuvres,
t. VII).

[121] Ibid., p. 421 e seguintes. Consultar também o artigo de Stammler:


Materialistische Geschichtsauffassung no Handwörterbuch der Staatswissenschaften,
t. V, p. 735-737

[122] A. Bargy: La Religion dans la Société aux États-Unis, Paris, 1902, p. 88-89.

[123] Id., Ibid., p. 97-98.

[124] Handwörterbuch, p. 736.

[125] Ibid., mesma pagina.


Os "Saltos" na Natureza e na
História
G. V. Plekhanov
Primeira Edição: ........
Fonte: Biblioteca Marxista Virtual do Partido da Causa Operária.
Tradução: ........
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, janeiro 2006.
Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e
indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.

"Entre nós, aliás não apenas entre nós", diz M.


Tikhomírov, "enraizou-se profundamente a
idéia de que vivemos num período de
destruição que, acredita-se, terminará por
uma terrível catástrofe, com torrentes de
sangue, detonações de dinamite e assim por
diante. Após o que - supõe-se - abrir-se-á um
"período de construção". Esta concepção
social é totalmente errada e não é mais que o
reflexo político das velhas idéias de Cuvier e
da escola das bruscas catástrofes geológicas.
Mas, na realidade, a destruição e a construção
vão ao par, e são mesmo inconcebíveis uma
sem a outra. Que um fenômeno caminhe para
sua destruição, resulta, na verdade, do fato
que nele mesmo tem lugar algo de novo
constituindo-se e, inversamente, a formação
de nova ordem de coisas não é nada além da
destruição da antiga" [1].

Estas palavras não permitem uma compreensão muito


clara; em todo caso, delas podemos destacar duas teses:

1. "Entre nós, aliás não apenas entre nós", os


revolucionários não têm nenhuma idéia da evolução, da gradual
"transformação do tipo dos fenômenos", segundo expressão
empregada por M. Tikhomírov;
2. Se eles tivessem uma idéia da evolução, da gradual
"transformação dos fenômenos", eles não pretenderiam que
"vivemos num período de destruição".

Vejamos inicialmente como são as coisas não apenas entre


nós, ou seja, no Ocidente.

Como se sabe, existe atualmente no Ocidente um


movimento revolucionário da classe operária, que aspira à
emancipação econômica. Ora, apresenta-se a questão: os
representantes teóricos deste movimento, ou seja, os
socialistas, teriam conseguido combinar suas tendências
revolucionárias com uma teoria tão pouco satisfatória do
desenvolvimento social?

A esta questão, quem quer que tenha uma idéia, por fraca
que seja, do socialismo contemporâneo, responderá sem
hesitação pela afirmativa. Todos os socialistas sérios da Europa
e da América se atêm à doutrina de Marx; mas então quem
ignora que esta doutrina é antes de mais nada a doutrina da
evolução das sociedades humanas? Marx era um defensor
ardente da "atividade revolucionária". Ele simpatizava
profundamente com todo movimento revolucionário dirigido
contra a ordem social e política existente. Podem, se quiserem,
não partilhar de simpatias tão "destrutivas". Mas, em todo
caso, só o fato de elas terem existido não autoriza a concluir
que a imaginação de Marx estivesse exclusivamente "fixada
nas transformações pela violência", que ele esquecia a
evolução social, o desenvolvimento lento e progressivo. Não
apenas Marx não esquecia a evolução, como descobriu grande
número de suas leis mais importantes. Em seu espírito, a
história da humanidade se desenrolou pela primeira vez num
quadro harmonioso, não fantástico. Ele foi o primeiro a mostrar
que a evolução econômica leva às revoluções políticas. Graças
a ele o movimento revolucionário contemporâneo possui um
objetivo claramente fixado e uma base teórica vigorosamente
formulada. Mas se é assim, por que então M. Tikhomírov
imagina poder, com algumas frases descosidas sobre a
"construção" social, demonstrar a inconsistência das
tendências revolucionárias existentes "entre nós, aliás não
apenas entre nós"? Não será porque ele não se deu ao trabalho
de compreender a doutrina dos socialistas?
Agora M. Tikhomírov experimenta repugnância pelas
"catástrofes súbitas" e pelas "transformações pela violência". E
seu problema: ele não é o primeiro, nem o último. Mas ele está
enganado ao pensar que as "catástrofes súbitas" não são
possíveis nem na natureza, nem nas sociedades humanas.
Inicialmente a "subitaneidade" de semelhantes catástrofes é
uma idéia relativa. O que é súbito para um, não o é para outro:
os eclipses do Sol se produzem subitamente para o ignorante,
mas não são absolutamente súbitos para um astrônomo.
Exatamente o mesmo acontece com as revoluções. Estas
"catástrofes" políticas se produzem "subitamente" para os
ignorantes e a multidão de filisteus pretensiosos, mas não são
absolutamente súbitas para um homem que esta a par dos
fenômenos que se passam no meio social que o cerca. Em
seguida, se M. Tikhomírov experimentasse volver os olhos para
a natureza e a história, colocando-se do ponto de vista da
teoria que agora faz sua, ele se exporia a toda uma série de
surpresas espantosas. Ele tem bem fixado na memória que a
natureza não dá saltos e que se abandonamos o mundo das
miragens revolucionárias para descer ao terreno da realidade.
"só se pode falar cientificamente da lenta transformação de um
dado tipo de fenômeno". Mas, no entanto, a natureza dá saltos,
sem se preocupar com todas as filípicas contra a
"subitaneidade". M. Tikhomírov sabe muito bem que as "velhas
idéias de Cuvier" são erradas e que as bruscas catástrofes
geológicas e chega mais são que o produto de uma imaginação
sábia. Ele leva uma existência sem preocupações, digamos, no
sul da França, sem entrever nem alarmes, nem perigos. Mas
eis, de repente, um tremor de terra, semelhante ao que se
produzira há dois anos. O solo oscila, as casas desabam, os
habitantes fogem terrificados, em poucas palavras, é uma
verdadeira "catástrofe", indicando um incrível desleixo na mãe
natureza. Instruído por esta amarga experiência, M.
Tikhomírov verifica atentamente suas idéias geológicos e chega
à conclusão de que a lenta "transformação de um tipo de
fenômeno" (no caso, o estado da crosta terrestre) não exclui a
possibilidade de transformações que possam parecer, sob certo
ponto de vista "súbitos" e produzidas pela "violência" [2].

M. Tikhomírov aquece água, e esta, permanecendo água


enquanto ele a aquece de 0º a 80º [3], não o inquieta
nenhuma "subitaneidade". Mas eis que a temperatura se eleva
até o limite fatal, e de repente - oh terror! - a "catástrofe
súbita" lá está: a água se transforma em vapor, como se sua
imaginação se houvesse "fixado nas transformações pela
violência".

M. Tikhomírov deixa resfriar a água e eis que a mesma


estranha história se repete. Pouco a pouco a temperatura da
água se modifica sem que a água deixe de ser água. Mas eis
então que o resfriamento atinge 0º e a água se transforma em
gelo, sem absolutamente cogitar que as "transformações
súbitas" representam uma concepção errada.

M. Tikhomírov observa a evolução de um dos insetos que


sofrem metamorfose. O processo de evolução da crisálida
efetua-se lentamente e, até nova ordem, a crisálida permanece
crisálida. Nosso pensador esfrega as mãos de contente. "Aqui,
tudo vai bem", diz de si para si, "nem o organismo social nem
o organismo animal experimentam estas transformações
súbitas que fui obrigado a constatar no mundo inorgânico.
Ascendendo à criação dos seres vivos a natureza se torna
pausada". Mas rapidamente sua alegria dá lugar ao desgosto.
Um belo dia, a crisálida efetua uma "transformação pela
violência" e entra no mundo sob a forma de uma borboleta.
Assim, pois, M. Tikhomírov é forçado a se convencer que
mesmo a natureza orgânica não está assegurada contra as
"subitaneidades".

Exatamente o mesmo se dará com M. Tikhomírov, por


pouco que ele "volte sua atenção" para sua própria "evolução".
É certo que aí também ele encontrará um semelhante ponto de
reviravolta ou "transformação violenta". Ele se lembrará qual
foi precisamente a gota que fez transbordar o copo de suas
impressões e o transformou, de defensor mais ou menos
hesitante da "revolução", em seu adversário mais ou menos
sincero.

M. Tikhomírov e eu nos exercitamos em fazer adições


aritméticas. Tomamos a cifra cinco e, como pessoas sérias, a
ela somamos "gradualmente", uma unidade de cada vez: seis,
sete, oito. Até nove, tudo vai bem. Mas logo que tentamos
aumentar esta cifra de uma unidade, uma infelicidade nos
atinge: bruscamente, e sem razão plausível, nossas unidades
se transformam em uma dezena. Experimentamos a mesma
aflição, quando passamos das dezenas às centenas.

M. Tikhomírov e eu não nos ocuparemos de música: ai


existem demasiadas passagens "súbitas" de toda espécie, o
que poderia colocar em desordem todas as nossas
"concepções".

A todos os confusos raciocínios de M. Tikhomírov sobre as


"transformações pela violência" os revolucionários
contemporâneos podem retrucar com esta simples questão:
que é necessário fazer, em sua opinião, das "transformações
violentas" que já se produziram na "realidade da vida" e que,
em todos os casos, representam "períodos de destruição"?
Iremos declará-las nulas e não acontecidas ou considerá-las
obra de pessoas frívolas e nulas cujos atos não merecem a
atenção de um "sociólogo" sério? Mas qualquer que seja a
importância que se dê a estes fenômenos, é necessário, apesar
de tudo, reconhecer que houve na história transformações pela
violência e "catástrofes" políticas. Por que M. Tikhomírov pensa
que admitir a possibilidade futura de semelhantes fenômenos,
é ter "concepções sociais erradas?"

A história não dá "saltos"! É perfeitamente verdade. Mas,


por outro lado, é também verdade que a história já cometeu
numerosos saltos, efetuou uma multidão de "transformações
pela violência". Os exemplos de semelhantes transformações
são inumeráveis. Que significa então esta contradição? Ela
significa unicamente que a primeira dessas teses não foi
formulada muito rigorosamente, o que faz com que muitos a
compreendam mal. Deveríamos dizer que a história não dá
"saltos" sem que eles tenham sido preparados. Nenhum salto
pode acontecer sem uma causa suficiente, que reside na
marcha anterior da evolução social. Mas dado que esta
evolução jamais se detém nas sociedades em vias de
desenvolvimento, pode-se dizer que a história está
constantemente ocupada com a preparação de saltos ou
transformações violentas. Ela faz esta obra assídua e
imperturbavelmente, ela trabalha lentamente, mas os
resultados de seus esforços (os saltos e as catástrofes
políticas) são inelutáveis e inevitáveis.
Lentamente se consuma a "transformação do tipo" da
burguesia francesa. O habitante da cidade da época da
Regência não se assemelha ao da época de Luís XI, mas, em
suma, ainda assim não nega o tipo de burguês do antigo
regime. Ele se tornou mais rico, mais instruído, mais exigente,
mas não deixou de ser o plebeu que deve, sempre e em todas
as ocasiões, ceder o passo à aristocracia. Mas eis que chega o
ano de 1789, o burguês levanta orgulhosamente a cabeça.
Ainda alguns anos se passam e ele se torna o senhor da
situação, e de que maneira! "com torrentes de sangue", no
rufar dos tambores, acompanhado das "detonações de
pólvora", não de dinamite, porque ainda não fora inventada.
Ele obriga a França a atravessar um verdadeiro "período de
destruição" sem se preocupar o mínimo, que, com o tempo,
existirá talvez um pedante que proclamará que as
transformações pela violência são uma "concepção errada".

Lentamente se transforma o "tipo" das relações sociais na


Rússia: os ducados de apanágio, cujos possuidores tinham
desmembrado o país com suas lutas intestinas, desaparecem,
os boiardos descontentes se submetem definitivamente ao
poder do czar e se tornam simples nobres, submetidos, como
toda a sua classe, ao serviço da coroa. Moscou submete os
ramos tártaros, adquire a Sibéria, anexa a metade da Rússia
Meridional; mas ainda assim permanece Mascou, a Asiática.
Pedro, o Grande faz sua aparição e efetua uma "transformação
pela violência" na vida da Rússia. Um período novo, europeu,
da história russa se inicia. Os eslavófilos intitulam Pedro, o
Grande de Anticristo, precisamente por causa da
"subitaneidade" da transformação efetuada por ele. Eles
afirmam que, em seu zelo reformador, ele esquecera a
necessidade da evolução, a lenta "transformação do tipo" do
regime social. Mas todo homem capaz de pensar,
compreenderá facilmente que a própria transformação
efetuada por Pedro, o Grande era imposta pela evolução
histórica da Rússia, que a havia preparado.

As transformações quantitativas, acumulando-se pouco a


pouco, tornam-se, finalmente, transformações qualitativas.
Estas transições se efetuam por saltos e não podem efetuar-se
de outra forma.
Os "gradualistas" de todos os matizes, os
Moltchaline [4], que fazem da moderação um dogma e da
ordem minúcia, não podem compreender este fato há muito
tempo elucidado pela filosofia alemã. Neste caso como em
muito outros, é útil relembrar a concepção de Hegel, o qual
certamente seria difícil de acusar de apaixonado pela "atividade
revolucionária". ''Quando queremos conceber o advento ou o
desaparecimento de qualquer coisa'', diz ele, imaginamos
comumente compreender a questão ao representar este
advento e este desaparecimento como se produzindo
gradualmente. Está portanto confirmado que as
transformações do ser se consumam não apenas pela
passagem de uma quantidade a outra, mas também pela
transformação das diferenças quantitativas em diferenças
qualitativas e inversamente, transformação que é uma
interrupção do "devir gradual" e uma maneira de ser
qualitativamente diferente da precedente. E cada vez que há
interrupção do "devir gradual", produz-se no curso da evolução
um salto, em seguida ao qual o lugar de um fenômeno é
ocupado por outro. Na base da doutrina da gradualidade se
encontra a idéia de que aquilo que está cm vias de tornar-se,
já existe de fato, mas ainda permanece imperceptível em razão
de suas pequenas dimensões. Da mesma forma, quando do
desaparecimento gradual de um fenômeno, representa-se a
inexistência deste ou a existência daquele que ocupa seu lugar
como fatos que não são ainda perceptíveis. Mas, desta forma,
suprime-se todo advento e desaparecimento. Explicar o
advento ou o desaparecimento de qualquer coisa pela
gradualidade da transformação é reduzir tudo a uma tautologia
fastidiosa, pois é considerar o fenômeno pronto previamente
(ou seja, já advindo ou já desaparecido) o que está em vias de
aparecer ou de desaparecer [5]. O que quer dizer que, se
houver necessidade de explicar o nascimento de um Estado, há
que imaginar, com simplismo, uma microscópica organização
de Estado que, modificando pouco a pouco suas dimensões,
faria enfim as "pessoas" se aperceberem de sua existência. Da
mesma forma, se for necessário explicar o desaparecimento
das relações primordiais de clã, há que dar-se ao trabalho de
imaginar uma minúscula inexistência destas relações - e o
negócio estará feito. É evidente que com tais procedimentos de
pensamento não se irá muito longe nas ciências. É um dos
maiores méritos de Hegel ter depurado a doutrina da evolução
de semelhantes absurdos. Mas que importam a M. Tikhomírov,
Hegel e seus méritos! Ele disse de uma vez por todas que as
teorias ocidentais não nos são aplicáveis.

A despeito da opinião de nosso homem sobre as


transformações violentas e as catástrofes políticas, diremos
com segurança que, na época atual, a história prepara, nos
países avançados, uma transformação de importância
excepcional, a qual se está fundamentado a presumir que se
produzirá pela violência. Ela consistirá na transformação do
modo de repartição dos produtos. A evolução econômica criou
forças de produção colossais que, para serem ativadas, exigem
uma organização determinada da produção. Estas forças só
podem ser aplicadas em grandes estabelecimentos industriais
baseados no trabalho coletivo, na produção social.

Mas a apropriação individual dos produtos, originando-se


em condições econômicas totalmente diferentes, numa época
onde dominava a pequena indústria e a pequena exploração
agrícola, está em contradição flagrante com este modo social
de produção. Em virtude desse modo de apropriação, os
produtos criados pelo trabalho social dos operários se tornam
propriedade privada dos empresários. Esta contradição
econômica inicial condiciona todas as outras contradições
sociais e políticas existentes no seio da sociedade atual. E ela
se torna cada vez mais grave. Os empresários não podem
renunciar à organização social da produção, pois ela é a fonte
de sua riqueza. Por outro lado, a concorrência os obriga a
estender esta organização a outros ramos da indústria, onde
ela ainda não existe. As grandes empresas industriais eliminam
os pequenos produtores e determinam assim o crescimento em
número, e portanto em força, da classe operária. O desenlace
fatal se aproxima. Para suprimir a contradição entre o modo de
produção dos produtos e o modo de sua repartição, contradição
prejudicial aos operários, estes devem tomar o poder político
que se encontra atualmente nas mãos da burguesia. Se
quiserem, pode-se dizer que os operários provocarão uma
"catástrofe política". A evolução econômica leva
necessariamente à revolução política, e esta última será, por
sua vez, a fonte de transformações importantes no regime
econômico da sociedade. O modo de produção adquire lenta e
gradualmente caráter social. A transformação do modo de
produção será o resultado de uma transformação efetuada pela
violência.

É assim que o movimento histórico se desenrola, não entre


nós, mas no Ocidente. M. Tikhomírov não tem nenhuma
"concepção" da vida social deste Ocidente, se bem que se
tenha ocupado com a "observação da poderosa civilização
francesa".

Transformações pela violência, "torrentes de sangue


machados e patíbulos, pólvora e dinamite, são "tristes
fenômenos". Mas que fazer, já que são inevitáveis? A força
sempre desempenhou o papel de parteira, cada vez que uma
nova sociedade vem ao mundo. Assim falava Marx, e ele não
era o único a pensar desta maneira. O
historiador Schlosser estava convencido de que é unicamente
"a ferro e fogo" que se efetuam as grandes transformações nos
destinos da humanidade [6]. Donde vem esta triste
necessidade? De quem é a culpa?

Pois então o poder da verdade.


Não pode tudo abarcar sobre esta terra?

Não, no momento ainda não tudo! E a razão está na


diferença existente entre os interesses das diferentes classes
da sociedade. Para uma destas classes é útil, e mesmo
indispensável, refazer de certa forma a estrutura das relações
sociais. Para outra é proveitoso, e mesmo indispensável, opor-
se a tal refazer. A uns ele promete felicidade e liberdade; a
outros o presságio da abolição de sua situação privilegiada e
mesmo sua supressão enquanto classe privilegiada. E qual é a
classe que não luta por sua existência, que não tem instinto de
conservação. O regime social proveitoso a uma dada classe lhe
parece não apenas justo, mas também o único possível. Essa
classe considera que tentar mudar de regime é destruir os
fundamentos de toda comunidade humana. Ela se considera
chamada a defender estes fundamentos, mesmo que seja pela
força das armas. Donde as "torrentes de sangue", donde a luta
e as violências.
Por outro lado, os socialistas, meditando sobre a
transformação social a vir, podem consolar-se com a idéia de
que quanto mais as doutrinas "subversivas" se difundem, mais
a classe operária será desenvolvida, organizada e disciplinada,
menos a inevitável "catástrofe" necessitará de vítimas.

Ao mesmo tempo, o triunfo do proletariado, colocando fim


à exploração do homem pelo homem e portanto à divisão da
sociedade em classe de exploradores e classe de explorados,
tornará as guerras civis não apenas inúteis mas também
diretamente impossíveis. A humanidade progredirá então
unicamente pelo "poder da verdade" e não terá mais
necessidade do argumento das armas.
Notas:
[1] Pourquoi j'ai cessé d'être Révolutionnaire, p. 19.

[2] Que a ciência tenha refutado a doutrina de Cuvier, ainda não implica que ela
tenha demonstrado a impossibilidade, em geral, das "catástrofes" ou "convulsões"
geológicas. Ela não poderia demonstrar isso, sob o risco de estar em contradição com
os fenômenos geralmente conhecidos, tais como as erupções vulcânicas, os tremores
de terra etc. A tarefa da ciência consistia em explicar estes fenômenos como produtos
da ação cumulativa de forças da natureza cuja influência, lentamente progressiva,
nós podemos observar a cada instante. Falando em outros termos, a geologia devia
explicar as revoluções que sofre a crosta terrestre em sua evolução. Uma tarefa
semelhante foi enfrentada pela sociologia que, na pessoa de Hegel e de Marx, a
cumpriu com o mesmo sucesso que a geologia.

[3] Na Rússia, geralmente só se faz uso do termômetro Réaurnur. (N.T. francês).

[4] Personagem de um drama de Griboiedov. (N . T. francês)

[5] Wissenschaft der Logik, t. 1, p. 313-314. Citamos de acordo com a edição de


1812, surgida em Nuremberg.

[6] Dado o seu profundo do conhecimento da história, SchIosser estava disposto a


aceitar mesmo as velhas concepções geológicos de Cuvier. Eis o que ele diz a
propósito dos projetos de reforma concebidos por Turgot e que ainda hoje, suscitam
o enternecimento dos filisteus: "Estes projetos continham todas as vantagens
essenciais adquiridas mais tarde pela França por meio da Revolução. Estas vantagens
podiam ser obtidas unicamente por uma revolução, pois o ministério Turgot provara,
pelos resultados auferidos, ter um espírito onde a filosofia e a ilusão tinham muito
espaço: a despeito da experiência e da história, ele esperava transformar unicamente
por meio de suas ordens a organização social que se havia formado no decorrer dos
tempos e se mantinha por sólidos laços. As reformas radicais, tanto na natureza
quanto na história. não são possíveis antes que tudo o que existe tenha sido
aniquilado pelo fogo, o ferro e a destruição". (Histoire du XVIIIe Siêcle, 2.a edição,
São Petersburgo, 1868, t. III, p. 361). Que admirável fantasista, este sábio alemão!
diria M. Tikhomírov.

Você também pode gostar