Você está na página 1de 10

Há crianças vendidas por pais extremamente pobres a quem tem dinheiro e falta de

escrúpulos para as comprar; pessoas cujo rendimento não permite fazer mais do que
uma refeição por dia; jovens que não têm a menor possibilidade de adquirir pelo menos
a escolaridade básica; cidadãos que estão presos por terem defendido as suas ideias.
Perante casos destes sentimos que as nossas intuições morais de justiça e igualdade não
são respeitadas. Surge assim a pergunta: Como é possível uma sociedade justa? Este
problema pode ter formulações mais precisas. Uma delas é a seguinte: Como deve uma
sociedade distribuir os seus bens? Qual é a maneira eticamente correta de o fazer?
Trata-se do problema da justiça distributiva. A pergunta que o formula é a seguinte:
Quais são os princípios mais gerais que regulam a justiça distributiva? A teoria da
justiça de John Rawls é a resposta mais influente a este problema. Esta lição irá sujeitar
à tua avaliação crítica os argumentos em que se apoia e algumas objeções que enfrenta.

A teoria de Rawls constitui, em grande parte, uma reação ao utilitarismo clássico. De


acordo com esta teoria, se uma ação maximiza a felicidade, não importa se a felicidade
é distribuída de maneira igual ou desigual. Grandes desníveis entre ricos e pobres
parecem em princípio justificados. Mas na prática o utilitarismo prefere uma
distribuição mais igual. Assim, se uma família ganha 5 mil euros por mês e outra 500, o
bem-estar da família rica não diminuirá se 500 euros do seu rendimento forem
transferidos para a família pobre, mas o bem-estar desta última aumentará
substancialmente. Isto compreende-se porque, a partir de certa altura, a utilidade
marginal do dinheiro diminui à medida que este aumenta. (Chama-se "utilidade
marginal" ao benefício comparativo que se obtém de algo, por oposição ao benefício
bruto: achar uma nota de 100 euros representa menos benefício para quem ganha 20 mil
euros por mês do que para quem ganha apenas 500 euros por mês.) Deste modo, uma
determinada quantidade de riqueza produzirá mais felicidade do que infelicidade se for
retirada dos ricos para dar aos pobres. Tudo isto parece muito sensato, mas deixa Rawls
insatisfeito. Ainda que o utilitarismo conduza a juízos corretos acerca da igualdade,
Rawls pensa que o utilitarismo comete o erro de não atribuir valor intrínseco à
igualdade, mas apenas valor instrumental. Isto quer dizer que a igualdade não é boa em
si — é boa apenas porque produz a maior felicidade total.

Por consequência, o ponto de partida de Rawls terá de ser bastante diferente. Rawls
parte então de uma conceção geral de justiça que se baseia na seguinte ideia: todos os
bens sociais primários — liberdades, oportunidades, riqueza, rendimento e as bases
sociais da autoestima (um conceito impreciso) — devem ser distribuídos de maneira
igual a menos que uma distribuição desigual de alguns ou de todos estes bens beneficie
os menos favorecidos. A subtileza é que tratar as pessoas como iguais não implica
remover todas as desigualdades, mas apenas aquelas que trazem desvantagens para
alguém. Se dar mais dinheiro a uma pessoa do que a outra promove mais os interesses
de ambas do que simplesmente dar-lhes a mesma quantidade de dinheiro, então uma
consideração igualitária dos interesses não proíbe essa desigualdade. Por exemplo, pode
ser preciso pagar mais dinheiro aos professores para os incentivar a estudar durante
mais tempo, diminuindo assim a taxa de reprovações. As desigualdades serão proibidas
se diminuírem a tua parte igual de bens sociais primários. Se aplicarmos este raciocínio
aos menos favorecidos, estes ficam com a possibilidade de vetar as desigualdades que
sacrificam e não promovem os seus interesses.

Mas esta conceção geral ainda não é uma teoria da justiça satisfatória. A razão é que a
ideia em que se baseia não impede a existência de conflitos entre os vários bens sociais
distribuídos. Por exemplo, se uma sociedade garantir um determinado rendimento a
desempregados que tenham uma escolaridade baixa, criará uma desigualdade de
oportunidades se ao mesmo tempo não permitir a essas pessoas a possibilidade de
completarem a escolaridade básica. Há neste caso um conflito entre dois bens sociais, o
rendimento e a igualdade de oportunidades. Outro exemplo é este: se uma sociedade
garantir o acesso a uma determinada escolaridade a todos os seus cidadãos e ao mesmo
tempo exigir que essa escolaridade seja assegurada por uma escola da área de
residência, no caso de uma pessoa preferir uma escola fora da sua área de residência por
ser mais competente e estimulante, gera-se um conflito entre a igualdade de
oportunidades no acesso à educação e a liberdade de escolher a escola que cada um acha
melhor.

Como podes ver, a conceção geral de justiça de Rawls deixa estes problemas por
resolver. Será então indispensável um sistema de prioridades que justifique a opção por
um dos bens em conflito. E nesse caso, se escolhemos um bem em detrimento de outro,
é porque temos uma razão forte para considerar um dos bens mais prioritário do que
outro. Nesse sentido, Rawls divide a sua conceção geral em três princípios:

Princípio da liberdade igual: A sociedade deve assegurar a máxima liberdade para


cada pessoa compatível com uma liberdade igual para todos os outros.

Princípio da diferença: A sociedade deve promover a distribuição igual da riqueza,


exceto se a existência de desigualdades económicas e sociais gerar o maior benefício
para os menos favorecidos.

Princípio da oportunidade justa: As desigualdades económicas e sociais devem estar


ligadas a postos e posições acessíveis a todos em condições de justa igualdade de
oportunidades.

Estes três princípios formam a conceção de justiça de Rawls. Mas por si só estes
princípios não resolvem conflitos como os que viste. Se queres ter uma espécie de guia
nas tuas escolhas, é preciso ainda estabelecer uma ordem de prioridades entre os
princípios. Assim, o princípio da liberdade igual tem prioridade sobre os outros dois e o
princípio da oportunidade justa tem prioridade sobre o princípio da diferença. Atingido
um nível de bem-estar acima da luta pela sobrevivência, a liberdade tem prioridade
absoluta sobre o bem-estar económico ou a igualdade de oportunidades, o que faz de
Rawls um liberal. A liberdade de expressão e de religião, assim como outras liberdades,
são direitos que não podem ser violados por considerações económicas. Por exemplo, se
já tens um rendimento mínimo que te permite viver, não podes abdicar da tua liberdade
e aceitar a restrição de não poderes sair de uma exploração agrícola na condição de
passares a ganhar mais. Outro exemplo que a teoria de Rawls rejeita seria o de abdicares
de gozar de liberdade de expressão para um dia teres a vantagem económica de não te
serem cobrados impostos.

Em cada um dos princípios mantém-se a ideia de distribuição justa. Assim, uma


desigualdade de liberdade, oportunidade ou rendimento será permitida se beneficiar os
menos favorecidos. Isto faz de Rawls um liberal com preocupações igualitárias.
Considera mais uma vez alguns exemplos. Um sistema de ensino pode permitir aos
estudantes mais dotados o acesso a maiores apoios se, por exemplo, as empresas em
dificuldade vierem a beneficiar mais tarde do seu contributo, aumentando os lucros e
evitando despedimentos. Outro caso permitido é o de os médicos ganharem mais do que
a maioria das pessoas desde que isso permita aos médicos ter acesso a tecnologia e
investigação de ponta que tornem mais eficazes os tratamentos de certas doenças e
desde que, claro, esses tratamentos estejam disponíveis para os menos favorecidos.

As liberdades básicas a que Rawls dá atenção são os direitos civis e políticos


reconhecidos nas democracias liberais, como a liberdade de expressão, o direito à
justiça e à mobilidade, o direito de votar e de ser candidato a cargos públicos.

A parte mais disputável da teoria de Rawls é a que diz respeito à exigência de


distribuição justa de recursos económicos — o que se compreende. Uma vez resolvido o
problema dos direitos e liberdades básicas nas sociedades democráticas liberais, o
grande problema com que estas sociedades se deparam é o de saber como devem ser
distribuídos os recursos económicos — trata-se do problema da justiça distributiva. Ora,
como essa exigência de distribuição justa é expressa pelo princípio da diferença, serão
submetidos à tua avaliação crítica os argumentos de Rawls em defesa desse princípio.

Argumentos

Rawls apresenta dois argumentos a favor do princípio da diferença: o argumento


intuitivo da igualdade de oportunidades e o argumento do contrato social hipotético.

O argumento intuitivo da igualdade de oportunidades

Este argumento apela à tua intuição de que o destino das pessoas deve depender das
suas escolhas, e não das circunstâncias em que por acaso se encontram. Ninguém
merece ver as suas escolhas e ambições negadas pela circunstância de pertencer a uma
certa classe social ou raça. Intuitivamente não achamos plausível que uma mulher, pelo
simples facto de ser mulher, encontre resistências à possibilidade de liderar um banco.
Estas são circunstâncias que a igualdade de oportunidades deve eliminar. Ora, estando
garantida a igualdade de oportunidades, prevalece nas sociedades atuais a ideia de que
as desigualdades de rendimento são aceitáveis independentemente de os menos
favorecidos beneficiarem ou não dessas desigualdades. Como ninguém é desfavorecido
pelas suas circunstâncias sociais, o destino das pessoas está nas suas próprias mãos. Os
sucessos e os falhanços dependem do mérito de cada um, ou da falta dele. É assim que a
maioria pensa.

Mas será que esta visão dominante da igualdade de oportunidades respeita a tua intuição
de que o destino das pessoas deve ser determinado pelas suas escolhas, e não pelas
circunstâncias em que se encontram? Rawls pensa que não. Por esta razão:
reconhecendo apenas diferenças nas circunstâncias sociais e ignorando as diferenças nos
talentos naturais, a visão dominante terá de aceitar que o destino de um deficiente seja
determinado pela sua deficiência ou que a infelicidade de um QI baixo dite o destino de
uma pessoa. Isto impõe um limite injustificado à tua intuição. Se é injusto que o destino
de cada um seja determinado por desigualdades sociais, também o será se for
determinado por desigualdades naturais. Afinal, a tua intuição vê a mesma injustiça
neste último caso. Logo, como as pessoas são moralmente iguais, o destino de cada um
não deve depender da arbitrariedade dos acasos sociais ou naturais. E neste caso não
poderás aceitar o destino do deficiente ou da pessoa com um QI baixo.

O que propõe Rawls em alternativa? Que a noção comum de igualdade de


oportunidades passe a reconhecer as desigualdades naturais. Como? Dispondo a
sociedade da seguinte maneira: quem ganha na "lotaria" social e natural dá a quem
perde. De acordo com Rawls, ninguém deve beneficiar de forma exclusiva dos seus
talentos naturais, mas não é injusto permitir tais benefícios se eles trazem vantagens
para aqueles que a "lotaria" natural não favoreceu. E deste modo justificamos o
princípio da diferença. Concluindo, a noção dominante de igualdade de oportunidades
parte da intuição de que o destino de cada pessoa deve ser determinado pelas suas
escolhas, e não pelas suas circunstâncias; mas esta mesma intuição consistentemente
considerada obriga a que aquela noção passe a incluir as desigualdades naturais. O que
daí resulta é precisamente o princípio da diferença. Como ninguém parece querer
abdicar do pressuposto da igualdade moral entre todas as pessoas, Rawls defende que o
princípio que melhor dá conta desse pressuposto é o princípio da diferença.

O argumento do contrato social hipotético

Imagina que não conheces o teu lugar na sociedade, a tua classe e estatuto social, os teus
gostos pessoais e as tuas características psicológicas, a tua sorte na distribuição dos
talentos naturais (como a inteligência, a força e a beleza) e que nem sequer conheces a
tua conceção de bem, ignorando que coisas fazem uma vida valer a pena. Mas não és o
único que se encontra nesta posição original; pelo contrário, todos estão envoltos neste
véu de ignorância. Rawls afirma que esta situação hipotética descreve uma posição
inicial de igualdade e nessa medida este argumento junta-se ao argumento intuitivo da
igualdade de oportunidades. Ambos procuram defender a concepção de igualdade que
melhor dá conta das nossas intuições de igualdade e justiça. De seguida, Rawls levanta a
questão central: Que princípios de justiça seriam escolhidos por detrás deste véu de
ignorância? Aqueles que as pessoas aceitariam contando que não teriam maneira de
saber se seriam ou não favorecidas pelas contingências sociais ou naturais. Nessa
medida, a posição original diz-nos que é razoável aceitar que ninguém deve ser
favorecido ou desfavorecido.

Apesar de não sabermos qual será a nossa posição na sociedade e que objetivos teremos,
há coisas que qualquer vida boa exige. Poderás ter uma vida boa como arquitecto ou
poderás ter uma vida boa como mecânico e parece óbvio que estas vidas particulares
serão bastante diferentes. Mas para serem ambas vidas boas há coisas que terão de estar
presentes em qualquer uma delas, assim como em qualquer vida boa. A estas coisas
Rawls chama bens primários. Há dois tipos de bens primários, os sociais e os naturais.
Os bens primários sociais são diretamente distribuídos pelas instituições sociais e
incluem o rendimento e a riqueza, as oportunidades e os poderes, e os direitos e as
liberdades. Os bens primários naturais são influenciados, mas não diretamente
distribuídos, pelas instituições sociais e incluem a saúde, a inteligência, o vigor, a
imaginação e os talentos naturais. Podes achar estranho que as instituições sociais
distribuam diretamente rendimento e riqueza, mas segundo Rawls as empresas são
instituições sociais.

Ora, sob o véu de ignorância, as pessoas querem princípios de justiça que lhes permitam
ter o melhor acesso possível aos bens sociais primários. E, como não sabem que posição
têm na sociedade, identificam-se com qualquer outra pessoa e imaginam-se no lugar
dela. Desse modo, o que promove o bem de uma pessoa é o que promove o bem de
todos e garante-se a imparcialidade. O véu de ignorância é assim um teste intuitivo de
justiça: se queremos assegurar uma distribuição justa de peixe por três famílias, a pessoa
que faz a distribuição não pode saber que parte terá; se queremos assegurar um jogo de
futebol justo, a pessoa que estabelece as regras não pode saber se a sua equipa está a
fazer um bom campeonato ou não. Imagina os seguintes padrões de distribuição de bens
sociais primários em mundos só com três pessoas:

Mundo 1: 9, 8, 3;
Mundo 2: 10, 7, 2;
Mundo 3: 6, 5, 5.

Qual destes mundos garante o melhor acesso possível aos bens em questão? Lembra-te
que te encontras envolto no véu de ignorância. Arriscas ou jogas pelo seguro? Tentas
maximizar o melhor resultado possível ou tentas maximizar o pior resultado possível?
Rawls responde que a tua intuição de justiça te conduzirá ao mundo 3. A escolha
racional será essa. A estratégia de Rawls é conhecida como "maximin", dado que
procura maximizar o mínimo. (Repara que a soma total de bens sociais do mundo 1 é
20, ao passo que no mundo 3 a soma total é apenas 16. Por outras palavras, o mundo 3 é
menos rico do que o mundo 1, mas mais igualitário.) Nessa medida, defende que
devemos escolher, de entre todos as situações possíveis, aquela em que a pessoa menos
favorecida fica melhor em termos de distribuição de bens primários. É verdade que os
outros dois padrões de distribuição têm uma utilidade média mais alta. (A utilidade
média obtém-se somando a riqueza total e dividindo-a pelas pessoas existentes. A
utilidade média do mundo 1 é 6,6 e a do mundo 3 é de apenas 5,3.) Todavia, como só
tens uma vida para viver e nada sabes sobre qual será a tua posição mais provável nos
outros dois padrões, a escolha do mundo 3 é mais racional e ao mesmo tempo mais
compatível com as tuas intuições de igualdade e justiça. E o que diz o princípio da
diferença? Diz precisamente que a sociedade deve promover a distribuição igual da
riqueza, excepto as desigualdades económicas e sociais que beneficiam os menos
favorecidos. Afinal, parece que nenhuma das desigualdades dos mundos 1 e 2 traz
benefícios para os menos favorecidos.

Objeções

A teoria de Rawls não compensa as desigualdades naturais

A conceção comum de igualdade de oportunidades não limita a influência dos talentos


naturais. Rawls tenta resolver essa falha através do princípio da diferença. Assim, os
mais talentosos não merecem ter um rendimento maior e só o têm se com isso
beneficiarem os menos favorecidos. Mas talvez Rawls não tenha resolvido o problema.
Talvez a sua teoria da justiça deixe ainda demasiado espaço para a influência das
desigualdades naturais. E nesse caso o destino das pessoas continua a ser influenciado
por fatores arbitrários.

Rawls define os menos favorecidos como aqueles que têm menos bens sociais
primários. Imagina agora duas pessoas na mesma posição inicial de igualdade: têm as
mesmas liberdades, recursos e oportunidades. Uma das pessoas tem o azar de contrair
uma doença grave, crónica e incapacitante. Esta desvantagem natural implica custos na
ordem dos 200 euros por mês para medicação e equipamentos. O que oferece a teoria de
Rawls a esta pessoa? Como esta pessoa tem os mesmos bens sociais que a outra e os
menos favorecidos são definidos em termos de bens sociais primários, a teoria de Rawls
não prevê a possibilidade de a compensar. Sobre as desigualdades naturais, apenas é
dito que os mais agraciados em talentos pela natureza podem ter um rendimento maior
se com isso beneficiarem os menos favorecidos.

O princípio da diferença assegura os mesmos bens sociais primários a esta pessoa


doente, mas não remove os encargos causados, não pelas suas escolhas, mas pela
circunstância de ter contraído uma doença grave, crónica e incapacitante. A crítica à
conceção dominante de igualdade de oportunidades devia ter levado Rawls ao princípio
de que as desigualdades naturais, tal como as sociais, devem ser compensadas. Não se
vê justificação para tratar as limitações naturais de maneira diferente das sociais. Logo,
as desvantagens naturais devem ser compensadas (equipamento, transportes, medicina e
formação profissional subsidiadas). A teoria de Rawls enfrenta a objecção de não
reconhecer como desejável a tentativa de compensação destas desvantagens.

A teoria de Rawls leva a que certas escolhas subsidiem injustamente


outras

A intuição que está por detrás da objeção anterior diz-te que não é justo responsabilizar
as pessoas pelas circunstâncias em que por acaso se encontram: um deficiente não é
responsável pela sua deficiência e um doente crónico pela sua doença crónica. O outro
lado da mesma intuição diz-te agora que não é justo desresponsabilizar as pessoas pelas
suas escolhas. Mais uma vez, o recurso a um exemplo pode ajudar-te a compreender
melhor o que está em jogo.
Imagina duas pessoas que trabalham na mesma empresa de eletrodomésticos. Têm, por
isso, os mesmos recursos económicos. Mas também têm em comum os mesmos talentos
naturais e antecedentes sociais. Uma delas é apaixonada por futebol e gasta uma parte
razoável do seu rendimento nas deslocações permanentes que faz para apoiar o seu
clube. Somadas as outras despesas inevitáveis de uma família, nada sobra. Por vezes
esta família tem de recorrer a apoio social do estado. A outra resolveu estudar sistemas
elétricos depois do expediente normal de trabalho. Após um período de estudo, compra
o equipamento necessário e resolve vender os seus serviços de eletricista das seis da
tarde às nove da noite. Com muitas horas de trabalho, esforço e competência, duplica o
rendimento inicial. O princípio da diferença diz que as desigualdades de rendimento são
permitidas se beneficiarem os menos favorecidos. Que consequência tem a sua
aplicação a este caso? A consequência de fazer o apaixonado por futebol beneficiar do
rendimento do eletricista esforçado.

Isto viola a tua intuição de justiça. Parece obviamente justo compensar custos não
escolhidos (doenças, deficiências, etc.), mas é obviamente injusto compensar custos
escolhidos. E é isso o que acontece neste caso; o princípio da diferença leva a que o
eletricista esforçado pague do seu bolso a escolha que faz e ainda subsidie a escolha do
apaixonado por futebol. Corrói assim a igualdade em vez de a promover: cada um tem o
estilo de vida que prefere, mas um vê o seu rendimento aumentado e o outro vê o seu
rendimento diminuído através dos impostos com que subsidia o outro. Rawls afirma que
a sua teoria da justiça tem a preocupação de regular as injustiças que resultam das
circunstâncias, e não das escolhas. Mas porque não faz a distinção entre desigualdades
escolhidas e desigualdades não escolhidas, o princípio da diferença viola a tua intuição
de que é justo que cada um seja responsável pelos custos das suas escolhas. A não ser
assim, que sentido fazem ainda o esforço e a ambição das nossas escolhas pessoais?

A objecção do jogador de basquetebol

Esta objeção foi apresentada pelo filósofo Robert Nozick. Ao contrário das duas
objeções anteriores, não procura melhorar o princípio da diferença de maneira a que
respeite cabalmente as nossas intuições morais de igualdade e justiça. O objetivo de
Nozick é antes derrubar o princípio da diferença e fazer assentar em bases sólidas o seu
princípio da transferência — tudo o que é legitimamente adquirido pode ser livremente
transferido. Para isso, formula o contraexemplo que é a seguir submetido à tua
avaliação.

Wilt Chamberlain é um jogador de basquetebol em alta. A sociedade em que vive


distribui a riqueza segundo o princípio da diferença ou segundo o princípio "a cada um
segundo as suas necessidades", ou então segundo o princípio que achares mais correto
— escolhe o princípio que quiseres. A esta distribuição de riqueza vamos chamar D1.
Depois de várias propostas, Wilt Chamberlain decide assinar o seguinte contrato com
uma equipa: nos jogos em casa, recebe 25 cêntimos por cada bilhete de entrada. A
emoção é grande. Todos o querem ver jogar. Chamberlain joga muito bem. Vale a pena
pagar o bilhete. A época termina e 1 milhão de pessoas viu os jogos. Chamberlain
ganhou 250 000 euros. O rendimento obtido é bem maior que o rendimento médio.
Gera-se assim uma nova distribuição de riqueza na sociedade em questão, a que vamos
chamar D2.

Por que razão é este caso um contraexemplo ao princípio da diferença? Dado que cria
uma enorme desigualdade, Nozick pergunta por que razão esta nova distribuição de
riqueza é injusta. Na situação D1, as pessoas tinham um rendimento legítimo e não havia
protestos de terceiros para que se redistribuísse a riqueza. Nenhuma questão se
levantava acerca do direito de cada um controlar os seus recursos. Depois as pessoas
escolheram dar 25 cêntimos do seu rendimento a Chamberlain e gerou-se a distribuição
D2. Haverá agora lugar a reclamações de terceiros que antes nada reclamavam e que
continuam a ter o mesmo rendimento? Que razão há para se redistribuir a riqueza? Que
razão tem o estado para interferir no rendimento de Chamberlain cobrando-lhe impostos
elevados?

Se concordas com Nozick e aceitas que a situação D 2 é legítima, então o seu princípio
da transferência está mais de acordo com as tuas intuições do que princípios
redistributivos como o princípio da diferença. Mas se assim for, o que fazer em relação
às desigualdades naturais que condenam à indigência pessoas cujos talentos naturais não
são rentáveis no mercado? Nozick aceita que temos intuições poderosas a favor da
compensação de desigualdades não escolhidas; o problema é que os nossos direitos
particulares sobre as nossas posses e rendimentos não deixam espaço para direitos
gerais.

Você também pode gostar