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O salário do professor oscila de R$0,50 a R$2,00 a hordaula,

retrato fiel da importância dada à qualidade do ensino no Brasil

Tenho lido dezenas de estudos rechea- vestir em construções não deve ser priorida-
dos de tabelas e gráficos provando à socie- de para nossos governos estaduais e munici-
dade o que toda gente sabe: a educação bá- pais. O conúbio de prefeito e empreiteira se-
sica no Brasil vai muito mal. Na lista dos ria hoje um conluio.
piores do mundo suplantamos só o Haiti e Outra hipótese aparentemente justa,
parece que também Moçambique. A repe- mas ainda fora do alvo, atribuía o fracasso es-
tência ao longo do primeiro ciclo é altíssi- colar a fatores extra-educacionais, como a
ma. Quem acompanhou as pesquisas do desnutrição dos alunos pobres, ou a baixa
saudoso Sérgio Costa Ribeiro, mestre em qualidade de vida das suas famílias de ori-
Estatística, está consciente dessa verdadeira gem. Trata-se de males reais, sem dúvida,
praga que vem sendo a reprovação sistemá- mas, segundo fontes idôneas, os casos de ma-
tica no ensino primário. E a evasão é fato logro no aprendizado devido à má alimenta-
notório nas primeiras séries. ção da criança não constituem regra geral. A
Depois de muito bater a cabeça à pro- administração da merenda escolar estaria su-
cura das causas de uma situação tão vexató- prindo as deficiências mais graves, o que soa
ria, os analistas foram descartando, uma a como uma boa nova em meio a tanta desola-
uma, as hipóteses falsas ou frágeis. Lembro ção. Igualmente a chamada "carência cultu-
duas que ainda são correntes. ral" do meio de onde provém o alunado já não
Em primeiro lugar, não se trata de falta é o bode expiatório que por tanto tempo ser-
de vagas nem de prédios escolares2. Pelo viu para justificar, não sem uma ponta de pre-
contrário, há salas ociosas em algumas cida- conceito, a prática da reprovação em massa.
des do interior de São Paulo e dos estados
sulinos. Afora os bolsões de miséria do Nor-
O AUTOR
deste rural, o problema das vagas, outrora
crônico, deixou de ser agudo, passou a con-
Alfredo Bosi
juntural. Pode-se dizer, grosso modo, que as Professor 17tular da Faculdade de Filosofia, Le-
crianças brasileiras têm seu lugar nas esco- tras e Ciências Humanas da USP, autor, entre ou-
las. O acesso ao primeiro grau foi razoavel- tros, de História Concisa da Literatura Brasileira.
mente ampliado nos últimos anos. Logo, in-
1. Publicado originalmente no Jornal do Brasil. 10102196, p.7.
2. Ver sobre o assunto: SOARES, Ismar de Oliveira. A televisão e as prioridades da educação. Comunicação & Educação.
São Paulo: CCA-ECAICISP; Moderna, n.6. maiolago-1996, p.22-28.
14 Comunicação & Educação, São Paulo, (7):
23 a 25,set./dez. 2996

A causa das causas do nosso desastre e cinquenta aulas por mês. Ou seja, teria que
pedagógico não se acharia portanto nem na cumprir a façanha de trabalhar entre dez e
falta de prédios e vagas, nem nas condições doze horas por dia.
de saúde, nem na extração cultural das Calculo por médias, mas não escondo
crianças e adolescentes do país. extremos afrontosos. Professores há, no Vale
do Jequitinhonha, que amargam 40 reais por
mês, isto é, 50 centavos por aula. Quanto ao
ONDE IDENTIFICAR limite superior da amostra: no Rio, em São
O X DA QUESTÃO? Paulo e em Belo Horizonte, cidades onde
"melhor" se paga ao mestre-escola, a hora-
Entre as quatro paredes da sala de au- aula não vale mais que dois reais e cinquenta
la. Na relação do professor com a sua pro- centavos. É um salário menos vil, relativa-
fissão. Chegando mais perto: nas mentes e mente, mas, absolutamente, sempre vil.
nos corações dos nossos mestres. E para não Escolhi o teto de cinco salários míni-
cair na tentação fácil do idealismo: o nó mos, pois não ousei tocar a soleira dos 763
górdio a ser cortado é o que amarra as con- reais, que representariam aquele quantum
dições que o próprio professor leva dentro necessário para que uma família de quatro
de si quando exerce o magistério. pessoas pudesse viver hoje com alguma de-
-
cência. Louvo-me aqui na estimativa do
Tanto a sociedade civil quanto os Dieese, Departamento Intersindical de Esta-
aparelhos estatais pensam e agem como tística e Estudos Sócio-Econômicos.
se ignorassem este fato cotidiano mas es- Temo que este cenário de desvaloriza-
pantoso: o nosso professor primário é re- ção brutal do professor primário não mude
munerado como se fosse um operário não tão cedo. Li com interesse o elenco das prio-
qualificado. O seu salário nada tem a ver ridades com que o governo pretende enfren-
com a importância crucial da sua função tar o desafio da educação básica. Não discu-
pública, que é a de primeiro motor do de- to intenções. Apenas constato o primado das
senvolvimento, nem merece as ácidas co- coisas sobre as pessoas. Computadores aos
branças de eficiência que periodicamente milhares sem professores prezados e esti-
lhe fazem a mesma sociedade e o mesmo mulados são sucata virtual. Livros didáticos
estado, que o deixaram à míngua. sem mestres que os leiam e os interpretem
com garra e entusiasmo são pilhas de papéis
Tive o cuidado de comparar o venci- destinados ao lixo do esquecimento. Quanto
mento de professores da rede oficial em várias às avaliações severas prometidas (tremam
unidades da federação. O docente de primeiro os relapsos afundados nos seus pingues pro-
grau, aquele a quem a Nação delega o encargo ventos!), supõem um longo tempo de expe-
de ensinar a ler, escrever e contar, ganha, em riência em condições humanas de trabalho.
média, dois reais por aula nas províncias mais
bem aquinhoadas do Sudeste e do Sul. As pessoas, quando respeitadas no seu
Façamos as contas, o que é sempre oficio, produzem sentido e valor. Com ou
mais honesto do que fazer-de-conta que tu- sem as coisas. Mas as coisas sem as pessoas
do vai bem. Para receber cinco magros salá- são letra morta. Preferir coisas a pessoas
rios mínimos, este nosso bóia-fria do giz e não é realismo. É apenas conformismo.
da lousa teria que dar em tomo de duzentas
Comunicação & Educação, São Paulo, [71: 13 a 15, set./dez. 1996 15

Resumo:A baixa qualidade de ensino e o alto Abstract: The low quality of education and
nível de repetência não têm como causa, na the high level of failures are not due nowa-
atualidade, a falta de vagas nas escolas. Es- days to lack of vacancies in schools. But they
tão ligadas, na verdade, as condições de tra- are connected with the working conditions gi-
balho oferecidas, pelo Estado, aos professo- ven by the Government t o the teachers: long
res: longas jornadas e péssimos salários. hours and low salaries.

Palavras-chave: educação, professores, repe- Key-words: education, teachers, failures, sa-


tência, salários. laries.

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