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pela conquista burguesa do poder políti-

Psicologia e a co, tomado à aristocracia e implicando um


modelo de cidadania que alcança apenas
o proprietário (Buffa, 1988). O conceito
de homem livre se vincula à idéia de que
todos são proprietários de seu próprio cor-

construção da po e, por extensão, de seu próprio traba-


lho: nesse sentido, a liberdade aí implícita
é assegurada pelo arbítrio pessoal quanto
ao uso desse organismo auto-apropriado.
Uma liberdade evidentemente limitada,
até porque coloca um sentido absoluta-

cidadania mente ingênuo de autodeterminação, es-


pecialmente quando se sabe, na Psicolo-
gia como em toda ciência social, que as
contingências subjacentes ao ir-e-vir não
são apenas internas: normas, regras, con-
o presente ensaio incluirá, preliminarmente, venções, crenças, práticas e tantas variá-
uma incursão às raízes históricas daquilo que veis mais entram nessa composição cau-
constitui o tipo de organização sócio-política sal. O exemplário dessa pseudoliberdade é
mais comum na sociedade contemporânea, imenso: para qualquer trabalhador assala-
sempre buscando desvelar implicações para a riado, um contrato com o proprietário re-
presenta, quase sempre, uma condição de
compreensão da cidadania.
subordinação e não de igualdade. Alçar à
condição de cidadão, para ambos, não tem
Evolução histórica da o mesmo preço. Historicamente, na ver-
Kester Carrara dade, o cidadão acaba sendo tão-somente
Professor Assistente - UNESP - Marília/SP
organização social do proprietário. É por essa razão que o Zei-
Estado: liberalismo e tgeist da Revolução Francesa, acabou dis¬
seminando-se a idéia de uma proposta edu-
ão antiga quanto o próprio ser hu- democracia e m
T
cacional para os proprietários e outra para
mano, a busca da igualdade talvez os não- proprietários ou cidadãos de "se-
seja o propósito mais complexo e
questão gunda categoria", se isso é possível. A di-
A literatura mostra flagrante discrepân-
controvertido que se impõe na vida visão parcelar do trabalho, mormente na
cia entre os conceitos de Estado liberal e
em sociedade. Ser igual implica, por pressu- Inglaterra de Adam Smith (1723-1790)
Estado democrático. No primeiro, o par-
posto, a existência do plural: ao menos duas serve como justificativa (negativa) para
ticularismo do poder se define na idéia da
pessoas são necessárias, interagindo no mes- que o Estado imponha uma educação bá-
propriedade, enquanto no segundo a dis-
sica que inclui o trabalhador: supõe-se que
mo espaço de vida. E essa convivência inter- tribuição do poder se contrapõe às idéias
o povo (limitadamente) instruído é ordei-
pessoal, que tem sua significação afetada por de autocracia e oligarquia. Em cada qual,
ro, de modo que o que se propõe para a
uma multiplicidade de variáveis, é objeto de a questão da cidadania deve ser tratada sob
maioria da população é apenas o mínimo.
estudo fundamental na Psicologia. ótica diversa. Como no caso brasileiro o
E o modelo liberal para fazer do traba-
modelo de Estado, o tipo de regime e a
A compreensão do conceito de igualdade lhador, na verdade, um cidadão passivo
ideologia navegam ora em águas liberais,
social conduz um inevitável exame de modos que, apesar de tudo, tem alguns poucos
ora em águas democráticas, não é sem mo-
de organização social do Estado, a uma per- direitos (Buffa, 1988).
tivo que se torna imprescindível, aqui, me-
cepção necessária das relações entre partici- lhor caracterizar esses aspectos. Até porque, O liberalismo, enquanto concepção de
pação e emancipação e à constatação de sua mais recentemente, essa pauta de discussão Estado, apresentou-se robustecido após a
indissociabilidade em relação às idéias de li- se amplia pela inclusão de um novo item, Revolução Francesa, consolidando-se como
berdade e cidadania. Não sem o risco de al- qual seja a validade atual da dicotomia di¬ modelo teórico compatível com a realida-
gum reducionismo involuntário, é impossível reita-esquerda: o tema começou a ser vei- de moderna. Todavia, por mais que tente
culado no último livro Bobbio(1995) e ser aliado, esbarra em alguns pressupostos
analisar essas vinculações conceituais à luz invade os meios acadêmicos de todo o Oci- da democracia enquanto forma de gover-
do papel que a Psicologia pode desempenhar dente. no muito mais antiga e que tem nuanças
como área detentora de conhecimento promis- Para o mesmo Bobbio (1990), por li- particulares em cada Estado onde se aplica.
sor para a compreensão e mesmo a militância beralismo entende-se uma concepção de No Brasil, por exemplo, a aliança liberal-
no contexto da cidadania. Esclarecer esses me- Estado possuidor de poderes e funções li- democrata é reconhecível nas ações de go-
canismos, todavia, torna-se impossível se se mitadas, em contraposição ao Estado ab- verno, que ora são centradas na privatiza-
ousa prescindir das contribuições dos antro- soluto. Por democracia, entende-se uma ção de serviços e empresas, com um conse-
pólogos, dos sociólogos e dos historiadores, para forma de governo em que o poder está qüente desmonte de um aparato estatal con-
dizer o mínimo. Qualquer tentativa apenas nas mãos da maioria, em contraposição siderado arcaico e ora, paradoxalmente, se
às formas autocráticas. Todavia, a compa- dirigem à personificação do governo en-
vertical dentro da Psicologia torna-se inócua
tibilidade projetada entre liberalismo e de- quanto mantenedor do controle social do
em razão da própria natureza do fenômeno: Estado. Para sumariar, o peso histórico da
mocracia nem sempre tem sido real atra-
o aprofundamento da análise está condicio- vés da história. Originalmente, o libera- democracia assegura a ela, hoje, a condição
nado a um mínimo de horizontalidade dita- lismo paternalizado por Locke e presente de forma de governo privilegiada mundial-
do pela multidisciplinaridade. Nessa direção, na Revolução Francesa, está representado mente, não sem que permaneça aberta a dis¬
cussão de uma verdadeira tipolo-
gia de regimes democráticos par-
ticulares, em alguns dos quais
uma aliança mais ou menos in-
tensa com o liberalismo é admi-
tida. Para Bobbio (1990), ao lon-
go de todas as transformações
que os séculos impuseram à de-
mocracia desde a Grécia antiga,
jamais se alterou seu aspecto des-
critivo (de governo do povo),
embora tenha sido alterado o seu
aspecto valorativo (que se refere
à amplitude da democracia). Dito
de outro modo, o que essencial-
mente muda de um modelo de-
mocrático para outro é a intensi-
dade da abertura democrática e a
composição da representativida-
de popular no governo. Sob o
manto do discurso democrático,
as práticas político-ideológicas di-
ferem, de modo que, se se pre-
tende propor traços preliminares
de um modelo de contribuição
da Psicologia à construção da ci-
dadania, não se pode alienar à
análise a identificação do modelo brasileiro te de tal modo que, "se é verdade que os dade, onde os direitos do homem e do
de governo. No mínimo, por essa razão, é direitos de liberdade foram desde o início cidadão simplesmente não existem. São
fundamental ver em que casos é conseqüen- a condição necessária para a aplicação di- dispensados pela elite, de vez que ela não
te a necessidade de um afastamento da de- reta das regras do jogo democrático, é precisa de maiores direitos porque tem pri-
mocracia liberal e uma aproximação à de- igualmente verdadeiro que o desenvolvi- vilégios, estando, pois, acima deles; e não
mocracia social e em que casos há pressu- mento da democracia se tornou o princi- existem para a maioria da população, por-
postos que permitem uma convivência de pal instrumento para a defesa dos direitos que suas tentativas de consegui-los são
critérios de ambas as tendências. Para Bob- de liberdade"(p. 44). A veracidade a afir- sempre encaradas como problemas de po-
bio (1990), a igualdade na liberdade é uma mação se comprova pelo fato de que hoje lítica e tratadas com todo o rigor do apa-
das formas de igualdade não só herdada, apenas os Estados resultantes de revolu- rato repressor do Estado (p.2). Esperar
mas requerida pelo liberalismo: nas suas pa- ções liberais são verdadeiramente demo- como dádiva do Estado as condições bá-
lavras, "cada um deve gozar de tanta liber- cráticos e apenas os Estados democráti- sicas para alcançar a condição da cidada-
dade quanto compatível com a liberdade cos amparam seguramente os direitos hu- nia é pouco promissor. Além disso, é mes-
dos outros..."(p. 39). Essa concepção, bá- manos, o que se denota do fato de que mo inseparável do conceito de cidadania
sica a qualquer forma democrática, inspira todos os Estados autoritários sustentam a idéia de conquista e não de dádiva.
normas constitucionais de igualdade perante duas características: são antiliberais e são
a lei e igualdade de direitos, de onde a im- antidemocráticos. Não seria preciso reite-
portância de se considerar, numa proposta
de trabalho de Psicologia, os conceitos de
rar que no caso do Brasil a democracia é Os caminhos da
incipiente, a não ser para esclarecer que
direitos e deveres comuns, sem privilégios um dos passos básicos para a conquista da emancipação: da
em função de propriedade ou posse, como
filosoficamente implícitos em qualquer pro-
cidadania se constitui na consolidação des- cidadania oferecida à
sa forma básica de governo mediante ações
cesso de conquista da cidadania. políticas intensas e de longa duração. As cidadania conquistada
Em última análise, o conceito e o mo- manipulações na superfície da política mo- O conservadorismo populista tão
delo de cidadania que se veicula no pre- netária, sem que se invista em mudanças a gosto, nos quase quinhentos anos de Bra-
sente trabalho pretende ancorar-se sob as estruturais (a questão econômica tem sido sil, à maioria dos homens que ocuparam
garantias básicas de uma forma de gover- tratada como se fosse um problema de cargos públicos, tem feito disseminar o
no democrática: isto deve ser razão míni- software, quando parece que é também de conceito de que direitos são matérias de
ma para que o leitor se familiarize, mais hardware), exemplificam a dificuldade de concessão. Sob o discurso da ampliação
adiante, com facetas da proposta que ne- romper com o modelo de domínio capi- de direitos (de voto, de greve, de amparo
cessariamente implicarão certo desapon- talista que não pode ser simplesmente im- à saúde etc.), pratica-se o manobrismo da
tamento para quem se acomoda sob a ma- portado sem ajustes para a realidade naci- barganha eleitoreira, como se fosse lícito
nutenção de alguns privilégios. A idéia de onal. Razões existem, de sobra, para crer prometer à população o que já lhe perten-
proteção dos direitos humanos, embora no argumento de Chauí (1986), que mos- ce e exigir dela o que não pode ser objeto
nascida sob a égide do liberalismo, é hoje tra a distância entre a democracia conce- de permuta. Esse imaginário político con-
condição indispensável ao processo demo- bida e de discurso e a democracia pratica- verte-se em triste realidade que se dissemi-
crático. Bobbio (1990) assevera que idéi- da. Na verdade, a caracterização capitalis- na ao longo da história brasileira, fazendo
as liberais e o que ele chama de método ta do Brasil se mostra pela constituição crer que a cidadania é algo que pode acon-
democrático combinaram-se gradualmen- autoritária e hierarquizada de nossa socie- tecer, de forma mais ou menos plena, de
conformidade com a boa vonta-
de (a "vontade política") do go-
vernante. Tais práticas, aliadas ao
descaso para com a educação e a
cultura, têm tornado fáceis as
ações desses verdadeiros usurpa-
dores da consciência popular,
constituindo-se em agentes que
atravancam o caminho mais cur-
to e mais seguro para a conquista
da cidadania: a participação.
Na lição de Demo (1988),
o processo participativo define
a cidadania organizada, que faz
prevalecer o coletivo sobre o in-
dividual, sendo objeto de con-
quista e não de consentimento.
Acrescenta que o conceito de ci-
dadania, embora possua laivos
conservadores históricos desde
os gregos, que privilegiam como
cidadãos apenas um grupo de eli-
te, precisa hoje ser entendido
como condição desejável à so-
ciedade integral. Nesse sentido,
deve escapar à tutela do Estado
e emergir a partir da iniciativa
dos interessados, dos desiguais,
dos excluídos (p.70). O Estado,
na figura das instituições e das
pessoas que ocupam o poder, será
efetivamente mobilizado na di-
reção do aprimoramento da con-
dição social coletiva, a partir das ações or-
ganizadas dos membros dessa sociedade. 1988) e se reduz a um pedagogismo es- de governar democrática, ainda hoje em
Descaracteriza-se, portanto, o mecanismo téril, descolado do econômico, do políti- processo de consolidação. Desde esse mo-
da concessão, que subverte a ordem do co, do ideológico. Desse modo, este tra- mento da história brasileira, em que a co-
processo e funciona como engodo que co- balho pretende deixar claro que a Psicolo- munidade acadêmica manifestava clara
bra ao cidadão um compromisso indivi- gia apenas poderá instrumentalizar sua consciência da necessidade de democrati-
dual. Para Weffort (1981), é razoável su- contribuição à construção da cidadania na zação, pouca coisa se fez quanto a instru-
por que o processo de democratização por medida em que privilegie um processo mentalizar respostas práticas à pergunta
via concessiva esteja próximo do esgota- educacional contextualizado sócio-politi¬ de Weffort, sem os riscos do paternalis-
mento, de modo que se prioriza a pers- camente e formalize a participação en- mo. Caminhou-se pela via artificial do
pectiva da democratização progressiva, quanto estratégia de trabalho. consentimento administrativo, político e
conquistada, capaz de privilegiar o apri- legal (vide o exemplo -certamente bem in-
moramento de recursos institucionais de tencionado- do estatuto do menor e do
representação e participação. Assim, a adolescente, construído no rigor da me-
construção de qualquer proposta nova pas- Educação, participação lhor lei, mas sem consideração à realidade
sa pela recusa ao modelo de cidadania re- e igualdade: social brasileira): o mecanicismo e o arti-
gulada, na medida em que esta é vertical e ficialismo do direito consentido provêm
vai do topo às bases da pirâmide social e na implicações conceituais justamente do seu caráter de benesse da
medida em que carece de representativida-
de popular, uma vez que oferecida pela eli-
para a compreensão da autoridade. Não se pode fazer o mesmo
com a cidadania, na sua inteira acepção:
te e não conquistada pela maioria social. cidadania a conquistar quando se passa da conquista à conces-
Privilegiar a participação e rejeitar a Weffort (1981)- na época professor ad- são, a legitimidade desmorona. Até mes-
cidadania concedida são procedimentos junto do departamento de Ciências Soci- mo quanto ao próprio conceito de auto-
estratégicos para assegurar legitimidade ao ais da USP- analisando a questão dos di- ridade, que não se impõe (porque trans-
processo, mas são igualmente instrumen- reitos sociais e participação e diante de um forma-se em autoritarismo), mas se con-
tos para se compreender que outra díade, Brasil em que "nem o liberalismo, nem a quista (porque implica representatividade).
moralização-educação, embora condições classe operária e, talvez menos ainda, nem A emancipação social, por essa ótica,
necessárias, não pode ser vista como cons- a burguesia apresentam a nitidez que po- requer o envolvimento, a participação, a
tituindo solução única e isolada para a ins- demos perceber nos países mais crença, a consciência e muito trabalho de
tituição de uma sociedade igualitária. A modernos"(p-139), crê prudente indagar todos quantos a vejam como condição que
defesa ingênua da educação, como meca- se poderia os trabalhadores contribuir para não privilegia o particular, até porque quan-
nismo isoladamente suficiente para a a conquista da democracia. Estava implí- do apenas alguns levam vantagem, não só
transformação social, constitui raciocínio cita a concepção de participação, embora a maioria perde, mas todos perdem, ainda
que elide a questão do poder (Arroyo, ainda fosse incipiente uma efetiva forma que em momentos e instâncias diferentes
maior parte é iniciati- lação. E deve ser planejada, porque a par-
va da sociedade civil, ticipação na busca pela cidadania implica
apesar do Estado, ou necessariamente a utilização de todos os
mesmo à revelia ou instrumentos práticos e conceitos teóricos
contra o Estado. Além acessíveis e oriundos das mais diversas fon-
disso, constitui erro tes organizadas de conhecimento: as diver-
estratégico imaginar sas áreas científicas, por exemplo, terão
possível ficar esperan- seus efeitos diluídos, desperdiçados ou con-
do aflorar toda a po- fundidos, se não forem mobilizados de for-
tencialidade para o de- ma criteriosa e orientada.
senvolvimento: não se Ao mesmo tempo, embora se possam
pode permanecer à es- encontrar resistências localizadas em diver-
pera de iniciativas má- sos setores do aparato estatal, não há Esta-
gicas, até porque as co- do que seja completamente monolítico.
munidades excluídas Com Demo (1988), pode-se assegurar que
nem sempre se com- uma visão histórica de Estado mostra que
prometem imediata- sempre há brechas a explorar mediante
mente com mudanças, uma forma organizada de participação.
aparentando uma ali- Uma das brechas fundamentais, mas
enação enganosa, que não a única, através da qual a população
não lhe é inerente por pode aprimorar seus projetos de conquis-
natureza, mas decor- ta da cidadania é a Educação. Não se pen-
rente de repressão his- se, todavia, no processo educacional como
tórica de quem mani- veículo único para tal conquista. Se assim
pula o poder. Não se fosse, qualquer projeto que mudasse cer-
pode deixar de reco- tas estatísticas brasileiras seria suficiente:
nhecer, nesse sentido, embora desejável, não será o fato de que
que as comunidades deixemos de ter trinta milhões de analfa-
pobres também se en- betos funcionais e vinte milhões de anal-
contram sob efeitos fabetos absolutos que concederá ao país o
alienantes, não decor- título de Brasil-cidadão. Claro está que a
rentes, obviamente, da reversão desse quadro só pode resultar de
(Carrara, 1992). ausência de projetos e expectativas, mas um esforço de toda gente séria e compro-
A procura da igualdade implica, por porque a manipulação que lhes impõe o metida com mudanças, mas além disso
tautologia, que se parta de uma condição poder tem as malhas fortes da legislação, existe muito trabalho a ser feito. A Edu-
de desigualdade, ademais uma fonte es- do saber consensualmente constituído e cação formal, pelo menos, não pode eli-
trutural de mudanças, tal como aponta do domínio das relações de troca entre ca- minar completamente as tentativas de "do-
Demo (1988): da reunião dos desiguais pital e trabalho. mesticação ideológica", apesar de que fun-
nasce a conquista participativa, vinculada Pelo menos por estas razões, a con- cione como espaço seguro de discussão.
a uma visão de política social que implica quista da cidadania deve passar (ao con- Conforme Arroyo (1988), não é fácil de-
interligação à questão da infra-estrutura trário da expectativa ingênua freqüente- fender, como não é fácil afastar "as for-
econômica, na medida em que toda polí- mente veiculada de que as mudanças to- mas sinuosas e sutis através das quais a
tica efetivamente social significa mudan- das brotarão naturalmente) por um proces- vinculação entre Educação e cidadania,
ças na ordem econômica. Na prática, so construído, projetado com a utilização como pré-condição para a participação,
pode-se constatar medidas econômicas ótima do conhecimento disponível e com vem agindo durante séculos para justifi-
que distribuam ou concentrem renda, por a integral participação de todos quantos es- car a exclusão da cidadania, a condenação
exemplo, com as conseqüentes implicações tejam conscientes de sua importância. Não das camadas populares à condição de in-
as tensões sociais. Para Demo (1988), a é sem grande trabalho e sem projetos que civilizados, de não-aptos como sujeitos de
construção participativa de uma socieda- se mudam, por exemplo, os conceitos do história e de política, bem como a legiti-
de majoritariamente desejada ressalta a di- fatalismo religioso (que concebe a divisão mação da repressão..." (p.40). De certo
mensão política, mas não sua supervalo¬ de classes como inerente à natureza huma- modo, o escudo da incivilidade, da falta
rização desligada do processo econômi- na) e da prevalência do poder econômico de preparo, da ignorância às letras, tem
co, bem como ressalta a importância do (onde, não sem motivos, mas desprotegi- sido ruidosamente manipulado pela clas-
conceito de desenvolvimento, em contra- da, a maioria excluída se auto-obriga à su- se dominante. A população, nesse senti-
partida a crescimento (porque para o pri- jeição nas relações de trabalho). do, não estaria "preparada" para a amplia-
meiro concorre a necessidade de partici- Entre as características básicas da par- ção de direitos. No discurso político, a ne-
pação e a idéia de processo qualitativo, ticipação reitera-se a de processo coletivo cessidade de educar é ressaltada, mas na prá-
como tal, dinâmico). Essa política social planejado. É um processo na medida em tica o suporte à Educação é removido en-
passa (p.16-17) pela necessidade de inser- que não existem objetivos terminais na quanto medida que impede a proliferação
ção no mercado de trabalho, pela conquis- participação social: trata-se de algo inter- de gente que raciocina e que, por conseqü-
ta política e pela rejeição a certos vícios minável, que revela novas facetas e possi- ência, passa a questionar a realidade vigen-
como o assistencialismo (que coíbe a au- bilidades a cada etapa vencida. Deve ser te. Para Arroyo (1988), os trabalhadores já
topromoção, instituindo a prática da con- coletiva em razão da amplitude e generali- foram considerados como objeto de amor,
cessão, da tutela e da manipulação). Acau- dade dos ganhos que se esperam: embora caridade, filantropia e educação, o que ca-
tela com propriedade o mesmo autor importante, a participação individual nem racteriza uma submissão das camadas po-
(Demo, 1988), que a política social é ape- sempre traz ganhos que possam ser distri- pulares à condescendência e benesses da
nas parcialmente política pública; na sua buídos eqüitativamente por toda a popu- classe dominante: manter essa condição
de subserviência tem sido mais uma ques- aprenderá a construir a democracia (Ar- sam parecer), o profissional deve buscar
tão política do que pedagógica. Lamen- royo, 1988): da simulação deve-se passar suas fontes, de qualquer natureza teóri-
tavelmente, por essa vertente, o ideal de apropriadamente à prática no convívio so- ca, de modo a pensar um projeto que im-
educação política da criança não seria o cial, único lugar onde os efeitos da apren- plique o desenvolvimento coletivo.
de prepará-la para participar do jogo do dizagem política se concretizam enquan- Respeitados os pressupostos sócio-po-
poder, mas para renunciar a ele e dedicar- to conquista da cidadania. líticos do projeto, o passo seguinte con-
se apenas a uma convivência apolítica e siste na escolha da natureza teórica do tra-
fraterna. O que, convenhamos, não asse- balho. Será mais progressista, mais "en-
gura uma sociedade igualitária. Também
Caso Brasil: a gajado", politicamente correto, trabalhar
não é suficiente uma Educação, tal como relevância da com esta ou aquela abordagem? Há alter-
hoje se privilegia, centrada na transmis- nativas teóricas que são incompatíveis com
são de conhecimento e/ou na socializa- Psicologia na um trabalho comunitário? Desafortuna-
ção. Ambos caracterizam o reprodutivis¬ construção da damente ou felizmente, não há respostas
mo até aqui tão denunciado: no primeiro prontas para estas questões. No entanto,
caso, retira-se a intocabilidade do edifício verdadeira cidadania seguramente não é a linha teórica que de-
da ciência; no segundo, a reprodução de O rol de pressupostos para uma ação limita a amplitude e alcance de um proje-
costumes, atitudes e expectativas da gera- da Psicologia em qualquer projeto de to de construção da cidadania, mas uma
ção precedente, preservando a mesma di- construção da cidadania pode parecer demarcação clara da conquista pretendi-
visão entre os privilegiados e os desprivi¬ mais amplo que a dimensão da própria da. Ajuda muito tentar responder com
legiados (Demo, 1988). ação. Afortunadamente, não há excesso nitidez à tradicional e sempre atual ques-
Definitivamente, a função precípua da de zelo em se delimitar com clareza as tão: a quem a Psicologia estará servindo
Educação é de ordem política, como con- razões e implicações, menos estratégicas nesse momento? Se a resposta represen-
dição ao desenvolvimento da participação que éticas, dos principais mecanismos em tar avanços coletivos na direção da demo-
e no melhor sentido que o conceito de jogo no processo. Em particular no caso cracia, da igualdade e da cidadania, qual-
política possa ter. Num bom projeto de brasileiro, onde a Psicologia tem curta quer obstáculo relacionado à natureza te-
cidadania, alguns componentes básicos in- história e, via de regra, sofre as mazelas órica poderá ser superado.
cluem a noção de formação e não de ades- das adaptações teóricas importadas, não O trabalho básico do profissional es-
tramento; a noção de sujeito social e não é sem tempo que a consciência ética do tará centrado no colocar integralmente o
de recipiente passivo do saber; a noção de psicólogo seja estimulada para agir de conhecimento acumulado em Psicologia
conquista e não de concessão da cidada- modo conseqüente. A partir da concep- a serviço dos setores majoritários da po-
nia; a noção de direitos e deveres do cida- ção de que constitui cidadania a qualida- pulação que reivindicam mudança: nessa
dão; a noção de democracia como forma de social de uma sociedade organizada direção, todas as vertentes teóricas têm
de governo melhor habilitada a tornar pos- sob a forma de direitos e deveres majori- contribuições a oferecer, sem distinção.
sível a participação; a noção de liberdade, tários e não-o que é engodo corriqueiro- Ainda que nenhuma delas, isoladamen-
de igualdade e de comunidade, que leva à uma série de valores do psicólogo enquan- te, possa responder completamente a to-
consolidação de ideologias comprometidas to pessoa (por mais virtuosos que pos- das as dúvidas formuladas, o conhecimen-
com a redução de diferenças to em Psicologia possui hoje
sociais. Demo (1988) aduz argumentos sólidos para inú-
ainda que a Educação deve meros problemas. Além dis-
estar comprometida com so, cabe ao bom profissional
construir "gente", numa di- a necessidade de ser transpa-
mensão que vai para além de rente às contribuições teóri-
simples trabalhadores treina- cas divergentes, desde que as-
dos, pessoas bem comporta- sentadas em pelo menos uma
das, seres informados. de duas virtudes: bons dados
Torna-se evidente, pelo e argumentação sólida. Qual-
exposto, que o processo quer outra postura pode im-
educacional é instrumento plicar ortodoxia infrutífera: já
de vital importância para a se disse que a Psicologia atu-
construção da cidadania al possui diversas construções
apenas se se ancorar na pre- teóricas sérias, porém igual-
paração para a vida em co- mente possui alguns modis-
mum, se se delimitar en- mos perigosos. Finalmente,
quanto espaço para a livre nessa questão da preferência
discussão das relações inter- teórica, a própria multiplici-
pessoais, se contemplar a dade de concepções é uma
idéia de oferecer instrumen- questão de direitos e liberda-
tal efetivo à construção par- de de pensamento implícita
ticipativa da cidadania e se na idéia de cidadania. Aliás,
levar em conta integral- inserida na constituição bra-
mente o contexto político- sileira: há psicólogos de to-
econômico típico da demo- das as formações e espera-se
cracia vigente. que a pluralidade das teorias
Entretanto, não se pen- adotadas possa representar
se que brincando de demo- uma vocação democrática da
cracia na escola o cidadão própria área.
Outra consideração refere-se ao local campo particular para a construção da ci- relações de trabalho, como o Executivo
de atuação do psicólogo: deve atuar no dadania. O que se pode veicular, a título administra, como o Legislativo produz
ambiente natural, na clínica, em organi- de maior organização, são projetos naci- leis, como o Judiciário as aplica. Mais:
zações? No caso da cidadania, onde é seu onais ou regionais, com a possibilidade como e por que o mesmo Executivo dei-
espaço de trabalho? Também neste caso a de envolvimento de uma multiplicidade xa de administrar, por qual razão o Le-
resposta deve compatibilizar-se com os re- de profissionais. Nesse caso, o projeto gislativo não fiscaliza e o que emperra
sultados esperados. Sabe-se que quanto maior desmembra-se em campos de atu- o Judiciário. Ainda mais: qual o meca-
mais distante da realidade onde se dá o ação que aproximem afinidades teóricas nismo pelo qual todas as ações (aqui
fenômeno, tanto mais demorada ou difí- ou estratégicas naturais em vista da fina- minimamente exemplificadas) instituci-
cil a transferência de resultados. Nesse sen- lidade geral, que é a construção da cida- onais públicas e privadas afetam direta-
tido, a clínica seria a última alternativa a dania a partir da contribuição do psicó- mente o cidadão. E, sobretudo, muito
ser escolhida, sendo primeira o cotidiano logo. mais importante: de que maneira, na
social. Entretanto, por um lado não há Neste ponto, duas observações impor- busca da cidadania e, com o auxílio ins-
muito tempo para escolhas sutis e, por ou- tantes precisam ser feitas: 1. Não se pense trumental da Psicologia, as pessoas po-
tro, todas as instâncias devem ser soma- na possibilidade de um conjunto de su- dem organizar-se e atuar efetivamente
das para o resultado total, porquanto a gestões de trabalho enquanto um receitu- para a mudança da realidade presente.
busca da cidadania deve estar representa- ário; 2. Não se imagine que a atuação iso- No Brasil, o caminho passa pela ela-
da em todos os lugares e momentos. A lada do psicólogo pode resolver a questão boração multidisciplinar de um grande
escola, por exemplo, é local privilegiado da cidadania. Respectivamente, (1) não Projeto de Construção da Cidadania,
para o trabalho psicopedagógico, mas tra- existe receituário em Psicologia, até por- que muito bem pode ser liderado pela
balhar o acadêmico sem trabalhar a famí- que são tão dinâmicas as relações inter- Psicologia, envolvendo o Conselho Fe-
lia constitui ver apenas meio corpo do pessoais que sempre há aspectos novos em deral, os Regionais, os cursos de Psico-
problema. jogo e (2) como já se expôs, a busca da logia, os departamentos de Psicologia
Um terceiro aspecto é o que respon- cidadania é conquista e , como tal, implica de outros cursos. Um congresso preli-
de à questão da necessidade ou não de participação, o que, por sua vez, é um pro- minar e uma atuação forte dos conse-
uma sub-área ou uma disciplina especifi- cesso coletivizante que recebe múltiplas in- lhos pode polarizar motivações para a
camente preocupada com a questão da ci- fluências. operacionalização das frentes de atua-
dadania. Nem isto é necessário, nem re- De qualquer maneira e embora este ção, sem que se corra o risco de uma
comendável. Por um lado, restringiria o abreviado ensaio não diga respeito a fór- proposição unilateral. Um fórum ini-
número de profissionais envolvidos, por mulas prontas de atuação, aparenta clare- cial de publicações sobre o tema da ci-
outro descaracterizaria a Psicologia como za a idéia de que em qualquer subárea ou dadania, sugeridas algumas preocupa-
área complexa de conhecimento, porque disciplina, um traço fundamental é neces- ções centrais, pode funcionar como es-
a mutilaria denotando que constitui um sário: o sujeito do processo (a coletivida- tratégia geradora de atividades da cate-
mosaico de pequenas e específicas psico- de) precisa cientificar-se e aprender a lidar goria. No caso brasileiro, estamos se-
logias (se essa metáfora é possível). As- com os mecanismos sociais que dão ori- guros de que a lamentável grandeza da
sim, o que já se tem é mantido: traba- gem a limites, normas convenções, leis e demanda pela cidadania, aliada à con-
lham-se momentos importantes em que regras, que dizem respeito ao seu próprio figuração político-ideológica favorável ora
a consciência social aflora quando se es- comportamento no cotidiano. Ou seja, em instalada e à potencialidade que se reconhece
tuda a Psicologia do Desenvolvimento; todo trabalho da Psicologia direcionado à na categoria dos psicólogos, podem, jun-
discutem-se os mecanismos que facilitam busca da cidadania, um conjunto de pro- tas, catalisar grandes mudanças. Afinal, o
ou dificultam a aquisição de conceitos cedimentos deve estar disponível para tor- que todos nós profissionais buscamos é,
quando se está no campo da Psicologia nar claro, por exemplo, como se dão as também, uma Psicologia cidadã.
da Aprendizagem; centraliza-se a discus-
são nos valores que sustentam a dinâmi-
ca grupal, quando se está na Psicologia
Social; encara-se a ética do assegurar ao
cliente instrumentos para que possa lutar
por seus objetivos, respeitados os direi-
tos daqueles com os quais convive, quan-
do se trabalha com qualquer conjunto de
teorias e técnicas psicoterápicas na clíni- ARROYO, M. Educação e exclusão da cidadania. In E. Buffa, M. Arroyo e P. Nosella,
Educação e cidadania: quem educa o cidadão? São Paulo: Cortez Editora/Editora
ca; identificam-se reivindicações e ofere-
Autores Associados, 1982,2a ed.
cem-se procedimentos de contracontrole
BOBBIO, N. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 1990,3a ed.
ao poder vigente, quando se opta pela Psi- BOBBIO, N. Direita e esquerda: razões e significado de uma distinção política.
cologia Comunitária; cuida-se para não Editora da UNESP, 1995.
ceder a um comprometimento com o po-
der econômico da empresa ou institui- BUFFA, E. Educação e cidadania burguesas. In E. Buffa, M. Arroyo e P. Nosella,
ção, quando se pratica a Psicologia das Educação e cidadania: quem educa o cidadão? São Paulo: Cortez Editora/
Relações Humanas; aprofunda-se a di- Editora Autores Associados, 1988,2a ed.
mensão da crítica social, sem deixar de CARRARA, K. A conquista da cidadania. Folha de São Paulo: Folha Norte, caderno
lado o aprimoramento da competência, 6, p. 2, 4. 7. 92.
quando se atua como psicólogo escolar. CHAUÍ, M. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1986.
Enfim, o exemplário é tão infinito quan- DEMO, P. Participação é conquista-noções de política social participativa.
to as possibilidades da própria Psicolo- São Paulo: Cortez Editora/Editora Autores Associados, 1988.
gia, tornando-se absolutamente desneces- WEFFORT, F. C. Direitos sociais e participação. In B. Lamounier, F. C. Weffort e
sário (embora seja possível) delinear um M. V. Benevides (org.) Direito, Cidadania e Participação.
São Paulo: T. A. Queiroz Edit. Ltda, 1981.

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