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e

Histór
e om este primeiro volume d a H istória do Teatro Bra-
sileiro, vai ch egando a termo um projeto longam enre
acalentado pela editora Perspectiva, o qual, a p artir de 2 0 0 2,
cornecou a ser co ncretizad o, sob a direcáo de joáo Roberto
Faria, com a particip acáo d e um corpo de colaboradores de
notória competenc ia teórica e crítica e ora coeditado pelas
Edic óes SESC -SP. Trata -se, pois, de urna obra col etiva ; e nem
oderia ser diferente dada a amplitude, diversidade e pro-
fundidade qu e o movimento teatral e os trabalhos
em arte dramática assumiram em no sso país
como efetiva respo sta do que ocorre ínter-
mente nesse domínio. E, pelo
erá ler neste tomo, ver-se-á,
er, que ele reúne nao só
quisa do s autores p ar-
o, no conjunto, urna
oriográflca qu e, sem
a
scabido sua novi-
debates, os pontos
mos do s processos
e culturais o ra em
acionais sob as luz es
izadas da atualidade
rtanto, pretensáo afir-
dessa natureza, de há
ítica e pelos estudiosos
e, na imprensa e, mais
a ricam diuturnamenre
lássica ou p erformática,
cáo do público leitor.
Atento as várias ép ocas e modos de realizar a arte tea tral
no Brasil, este primeiro volume, D as Origens ao Teatro Projis-
sional da Primeira Metade do Século xx, consid era e avalia as
suas inter-relac óes e dífercncas. O teatro jesuítico, por exern-
plo, requer urna abordagem diacrónica, voltada mais para UIn
trabalho arqueológico, em virtude da escassez do cumental e
textual ern que est á envolvido esse fazer te atral, m uit o em -
bora as páginas a ele dedicadas tenham rec ebido o sop ro
d e urna tentativa de captar sua realidade enquanto exp ressáo de
urn a arte que só se materializa por sua vida no aqui e agora .
Assim sen do, relevam n áo só os aspectos ligados ao escrito
drarnat úrgico, como tudo o que ele envolvia para exp or-se e
com un icar-se com seu espectador, num movimento de cap -
tura do processo vivo das primeiras manitestac óes teatrais no
Brasil Colonia. Subsequentemente, o rnesrno propósito e os
mesmos instrumentos de abordagem esten dem-se aos desdo-
br am entos anteriores do teatro em cena até me ado s do século
xx, quando o "teatráo", embora conservando esp etáculos e
artistas d e vitalidad e convincente, é questionado por novas
p ropostas COIn atrev ime n tos da vanguard a e em basame n to
nas realidad es soc ioculturais de novas formas da existe ncia
coletiva. É claro que esse percurso diacr ónico prop óe, desde
logo, um enfoque mais centrado no exame crítico e teórico
sincró n ico dos problemas constantes na ordem do d ia do
teatro contemporáneo - é o que faz Do Modernismo as Ten-
dencias Contemporáneas, o segundo volume destaHistória do
Teatro B rasileiro.
J. GU INS BU RG
História do Teatro
Brasileiro
EDITORA PERSPECTIVA SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
Administração Regional no Estado de São Paulo

Supervisão editorial J. GUINSBURG Presidente do Conselho Regional ABRAM SZAJMAN


Díreror Regional DANILO SANTOS DE MIRANDA

Edições SESC SP

Equipe de realização Conselho Editorial


Preparação de texto MÁRCIA ABREU IVAN GIANNINI, JOEL NAIMAYER PADULA,
Revisão ELEN DURANDO, IRACEMA A. DE OLIVEIRA LUIZ DEOCLÉCIO MASSARO GALINA,
e MARCIO HONORIO DE GODOY SÉRGIO JOSÉ BATTISTELLI
Capaeprojetográfico SERGIO KON
Produção RICARDO W. NEVES, LUIZ HENRI~E SOARES, Gerente MARCOS LEPISCOpo.Adjunto ÉVELIM LÚCIA
SERGIO KON e RA~EL FERNANDES ABRANCHES MORAES. Coordenação editorialCLÍVIA RAMIRO, ISABEL
M.M. ALEXANDRE. Produção editorialANA CRISTINA
PINHO,JOÁO COTRIM

Colaboradores
MARTA RA~EL COLABONE
História do Teatro
Brasileiro
JOÃO ROBERTO FARIA
direção

J. GUINSBURG EJOÃO ROBERTO FARIA


projeto e planejamento editorial


volume I

DAS ORIGENS AO TEATRO PROFISSIONAL


DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX

edicoes
SESC~[?
crr-Brasíl. Catalogação-na-Fonte
Sindicaro Nacional dos Edirores de Livros, RJ

História do teatro brasileiro, volume I: das origens ao teatro profis-


sional da primeira metade do século xx I João Roberto Faria (dir.); J.
GuinsburgeJoão Roberro Faria (projeto e planejamento edirorial). - São
Paulo: Perspectiva: Edições SESCSP, 2012.
58 U.

ISBN 978-85-273-0946-2 PERSPECTIVA


ISBN 978-85-799-5031-5 EDIÇÕES SESC SP

L Teatro brasileiro - História - Séc. xx. 2. Teatro brasileiro - Séc. xx


- História e crítica. 3. Teatro - Brasil - História. r. Guinsburg,J. (Jacó),
1921-. II. Faria, João Roberro, 1946-. r. Título.

12- 0 17 8. CDD: 792.0981


CDU: 792(81)

10.01.12 11.01.12

Direitos reservados à

EDITORA PERSPECTIVA S.A. SESC


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Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 Av. Álvaro Ramos, 991


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www.ediroraperspectiva.com.br edicoes@edicoes.sescsp.org.br
www.sescsp.org.br
2012
Para]. Guinsburg

Em reconhecimento pelos inestimáveis


serviços que vem prestando à causa
do teatro no Brasil, como professor,
ensaísta e editor. [;.R. FARIA]
Sumário

NOTA EDITORIAL [J. Guinsburg e João Roberto Faria] II


O LOCUS DO SUJEITO [Danilo Santos de Miranda] 13
INTRODUÇÃO:
POR UMA NOVA HISTÓRIA DO TEATRO BRASILEIRO [João Roberto Faria] 15

r. AS RAÍZES D O TEATRO BRASILEIRO


I. O Teatro Jesuítico [Décio de Almeida Prado] 21
2. Entreato Hispânico e Itálico [Décio de Almeida Prado] 38
3. A Herança Teatral Portuguesa [Décio de Almeida Prado] 52

II. O TEATRO ROMÂNTICO


I. O Advento do Romantismo [Décio de Almeida Prado] 67
2. A Tragédia e o Melodrama [Ivete Susana Kíst] 75
3. O Drama [Elizabeth R. Azevedo] 94
4. A Comédia de Costumes [VilmaAtêas] II9
5. A Arte do Atar e o Espetáculo Teatral [LuizFernando Ramos] 137

III. O TEATRO REALISTA


L A Dramaturgia Realista [João Roberto Faria] 159
2. Os Ensaiadores, os Intérpretes e o Espetáculo Teatral Realista [João Roberto Faria] 185
3. O Pensamento Crítico [João Roberto Faria] 201

IV. O TEATRO DE ENTRETENIMENTO E AS TENTATIVAS NATURALISTAS


I. O Teatro Cômico e Musicado:
Operetas, Mágicas, Revistas de Ano e Burletas [Rubens José Souza Brito] 21 9
2. A Continuação da Comédia de Costumes [FlávioAguiar] 233
3. Artistas, Ensaiadores e Empresários:
O Ecletismo e as Companhias Musicais [Fernando Antonio Menearelli]
4. Artistas Dramáticos Estrangeiros no Brasil [Alessandra Vannueei]
5. O Naturalismo: Dramaturgia e Encenações [João Roberto Faria]
V. o TEATRO NO PRÉ-MODERNISMO
r. A Permanência do Teatro Cómico e Musicado [Angela Reis e Daniel Marques] 3 21
2. Uma Dramaturgia Eclética [Marta Morais da Costa] 335
3. O Teatro Filodramático, Operário e Anarquista [Maria Thereza Vargas] 35 8
4. Iniciativas e Realizações Teatrais no Rio de Janeiro [Níobe Abreu Peixoto] 37 1
5. Artistas e Companhias Dramáticas Estrangeiras no Brasil
[Walter Lima Torres e Francisco José Vieira]

VI. O TEATRO PROFISSIONAL DOS ANOS DE 1920 AOS ANOS DE 1950


1. A Retomada da Comédia de Costumes [Claudia Braga] 4 03
2. A Dramaturgia [Maria Helena Werneck] 4 17
3. O Teatro de Revista [Neyde Veneziano] 43 6
4. Os Grandes Astros [Tania Brandão] 455
5. Os Ensaiadores e as Encenações [Walter Lima Torres] 479

Colaboradores do Volume I 497


Nota Editorial

A divisão desta História do Teatro Brasileiro em dois volumes obedeceu a critérios estéticos e cronológicos.
Considerando que as práticas do chamado "velho teatro" se estenderam até pelo menos a década de 195 o,
convivendo com experiências e realizações modernas que se anunciavam já nos anos de 1920 e se conso-
lidaram posteriormente, decidimos que o primeiro volume poderia avançar até a metade do século xx,
ao passo que o segundo deveria recuar aos tempos da Semana de Arte Moderna. Inicialmente, pensamos
em cinco ou seis volumes menores, com uma divisão que levaria em conta os movimentos literários. No
entanto, o teatro brasileiro adquiriu dinâmica própria e desenvolveu-se independentemente da literatura
a partir das últimas décadas do século XIX. Sua especificidade como arte que conquistou autonomia e
estatuto próprios exigiu uma divisão menos fragmentada e orientou-nos na concepção dos dois volumes:
o primeiro tem 6 partes e 26 capítulos que abordam desde as origens até o declínio das velhas companhias
dramáticas profissionais e de seus astros, na década de 195 o; o segundo, com 5 partes e 25 capítulos,
começa com a contribuição dos modernistas de 1922 e alcança as realizações contemporâneas, passando
pelo processo de modernização do nosso teatro.
Quando começamos a nos reunir para discutir a presente obra, era intenção da editora Perspectiva
contar com a participação de um dos maiores críticos brasileiros, o prof Sábato lvlagaldi. Infelizmente,
essa valiosa colaboração - que, por certo, teria enriquecido sobremaneira o trabalho realizado - não
pôde efetivar-se. De todo modo, aqui ficam os nossos agradecimentos pelos ensinamentos que ele nos
proporcionou por meio de seus escritos, tanto no terreno da crítica jornalística e ensaística como no da
historiografia. Deixamos, pois, registrado o nosso reconhecimento pela importância de sua obra para a
concepção e realização desta História do TeatroBrasileiro.

J. GUINSBURG E JOÃO ROBERTO FARIA


o Locus do Sujeito

o que é lersenãoaprenderapensar que aqui deixa sua marca, com suas dúvidas, certe-
na esteira deixadapelopensamentodo
zas, paixões, desencantos e tudo o mais que uma
outro?
pesquisa - e a vida! - podem suscitar.
Ler é retomara reflexão de outrem como
Quando nós do SESC chegamos, a esteira já
matéria-primapara o trabalho de nossa
própriareflexão. estava trançada. Fomos convidados a percorrê-la
Marilena Chauí
pelas hábeis mãos desses artesãos da palavra, ].
Guinsburg e João Roberto Faria. Intuíamos que
a nossa experiência com a cena teatral nos daria
[...] a História existeapenasem relação
as questões que nóslheflrmulamos. certa tranquilidade de travessia. Os anos de proxi-
midade com o Centro de Pesquisa Teatral e Antu-
Materialmente,a História é escrita com
fatos;flrmalmente, comuma problemá- nes Filho; as centenas de espetáculos vistos desde
ticae conceito. o nascedouro até a última mudança de luz antes da
PaulVeyne cortina se abrir; a observação das pessoas que, dia
a dia, visitam o teatro como a visitar a si mesmas;
a construção, a reforma, a manutenção de salas
Pois aqui estamos diante de uma longa esteira, feita que acolhem corpos e encenações. Surpreendidos
com as hastes finas do junco colhido por quarenta fomos. À cada passo, a cada reflexão, novas pos-
e cinco pesquisadores que, ao longo dos últimos sibilidades de pensar, descobrir e redescobrir não
anos, têm formulado questões acerca da história somente a história do teatro brasileiro, mas a nossa
do teatro brasileiro. Não se trata de esteira comum, própria história. Problematizações, inquíetudes, o
de trançado fácil, sem acabamento; trata-se, sim, rompimento das fronteiras do debate acadêmico, a
de esteira com trançado elaborado, o qual carrega vontade de dialogar. De fato, estávamos diante de
consigo a cautela advinda da experiência, o zelo uma História. De uma nova História.
pela harmonia das linhas que se cruzam, a precisão Mas o que é a História? A origem da palavra
no arremate. nos responde e nos incita. Tomemos emprestado
Percorrê-la é uma oportunidade. Diríamos um dos seus significados: história é testemunha, é
mais, percorrê-la é uma experiência que vai além aquele que vê, é o espectador. E tomemos empres-
do simples conhecer os fatos que compõem a his- tado, também, um dos significados da origem da
tória do teatro brasileiro. Percorrê-la é, também, palavra teatro: teatro é o lugar de onde se vê.Juntos,
conhecer a história do pensamento de cada geração determinam o locus do sujeito. Nosso lugar, nessa

• 13
História do Teatro Brasileiro • volume 1

esteira, não é mais o do espectador da cena, mas o para a esfera dos cuidados do sujeito'", o que mais
do espectador da interpretação da cena. Qual seja: poderíamos dizer ao leitor?
buscamos explicações, nos dão sentido àquilo que ~e aceite a travessia por essa bela esteira. E que
um dia foi trazido à luz. faça a travessia com os olhos imbuídos da mesma
Se "olhar não é apenas dirigir os olhos para per- paixão com que cada pesquisador viu e verteu em
ceber o 'real' fora de nós. É, tantas vezes, sinónimo palavras as experiências vividas nesse local de onde
de cuidar, zelar, guardar, ações que trazem o outro se vê tanta vida.

Danilo Santos de Miranda


Diretor Regional do SESC São Paulo

1 Alfredo Bosi, Fenomenologia do Olhar, em Adauro Novaes


(org.), O Olhar, São Paulo: Companhia das Letras, 1988, P: 78.

• 14
Introdução:

Por urna Nova História


do Teatro Brasileiro

o objetivo desta introdução é apresentar e discu- tospara a sua História. Para piorar a situação, uma
tir algumas ideias sobre a historiografia do teatro grande parte das peças brasileiras encenadas ou
brasileiro, a começar pelo seu atraso em relação à escritas durante o século XIX permaneceu inédita,
historiografia da literatura brasileira. Por atraso dificultando qualquer análise mais abrangente da
entendo o seguinte: ao longo do século XIX nossa nossa produção dramática. Comparando, porém, a
literatura foi objeto de vários estudos críticos e primeira história do nosso teatro com os capítulos
historiográficos, os primeiros feitos com regula- dedicados à dramaturgia por Romero e Veríssimo,
ridade no país, nos quais se estabeleceu o cânone percebemos que a literatura brasileira teve grandes
relativo aos gêneros épico e lírico que serviu de base historiadores, na virada do século XIX para o XX,
às histórias literárias do século xx. Assim, obras mas não o nosso teatro. A obra de Marinho não foi
como o Résumé de l'bistoire littéraire du Brésil, de capaz de estabelecer o nosso cânone dramatúrgico
FerdinandDenis (r826); o "Ensaio Sobre a História e, ao mesmo tempo, refletir sobre a especificidade
da Literatura no Brasil': de Gonçalves de Magalhães do teatro como arte que extrapola os limites do
(r836); os estudos de Joaquim Norberto de Sousa domínio literário. Curiosamente, no próprio pre-
Silva, publicados na Revista Popular entre r 859 e fácio desse livro, escrito por Sílvio Romero, estão
r 862; o CU1'SO Elementar de Literatura Nacional apontadas suas falhas:
deJoaquim Caetano Fernandes Pinheiro (r862); e
Le Brésillittéraire, de Ferdinand Wolf (r 863), entre o sr. Henrique Marinho, no trabalho que ora publica, pro-
muitos outros textos críticos, seguramente serviram cura adiantar nossa historiografia por este lado [estudar com
de guia para as duas primeiras histórias da literatura afinco a história do teatro no Brasil]. Infelizmente ele atende
brasileira realmente importantes: a de SílvioRomero mais à história dos edifícios destinados às representações cê-
(r888; 2. ed. r902) e a de José Veríssimo (r9r6). nicas, e às companhias que neles funcionaram do que àhis-
Estava consolidada a tradição a partir da qual seriam tória da produção literária do gênero dramático entre nós'.
escritas as demais histórias da nossa literatura.
No caso do teatro, vale dizer que a dramatur- Como que desejando sanar a lacuna existente na
gia - apenas a dramaturgia, não a arte do espetá- obra de Henrique Marinho, Sílvio Romero apre-
culo - sempre foi um apêndice dessa historiografia, senta um quadro da evolução dramática no Brasil,
não merecendo, até r904, nenhuma obra especí-
fica. É desse ano, como se sabe, o livro de Henrique 1 A Dramaturgia Brasileira, em Henrique Marinho, O Teatro
Brasileiro: Alguns Apontamentos para a Sua História, Rio de
Marinho, O Teatro Brasileiro: Alguns Apontamen- Janeiro: Garnier, 19 04, P: 4.

+ 15
História do TeatroBrasileiro • volume 1

de .Anchieta a Coelho Neto, dividindo-a em oito representadas, mas pobreza franciscana nas consi-
fases. Em seu pensamento e também no de Verís- derações de ordem estética ou no plano analítico e
simo, o teatro ainda é uma arte literária, o que os interpretativo, seja no terreno da dramaturgia, seja
faz escrever especificamente sobre a dramaturgia, no da encenação. Em outras palavras, tanto Hen-
com alguns julgamentos que não aceitamos mais. rique Marinho como Múcio da Paixão escreveram
Romero, por exemplo, apesar de valorizar a nossa histórias do teatro brasileiro sem levar em conta ou
dramaturgia, afirma que aprecia mais os dramas estudar a dramaturgia, ao contrário de Veríssimo e
quando os lê, porque "uma representação teatral é Romero, que escreveram capítulos sobre o teatro
uma arte que se sobrepõe a outra e a vela em grande brasileiro considerando apenas a dramaturgia.
parte. O talento dos ateres produz uma como se- A consciência de que uma história do teatro
gunda criação que pode até certo ponto dificultar devia abordar o texto dramático e a cena, conjun-
a exata inteligência da primeira'". José Veríssimo, tamente, aparece pela primeira vez na História do
por sua vez, é capaz de afirmar que "Martins Pena Teatro Brasileiro, de Carlos Sussekind de Men-
não é senão isto, um escritor de teatro" 3, desejando donça, publicada em 1926. E é de se lamentar que
dizer que faltava ao criador da comédia brasileira o autor tenha ficado no primeiro volume, pois, ao
o propósito literário e diminuindo o valor de sua contrário dos seus predecessores, tinha uma con-
obra. Hoje, apreciamos Martins Pena exatamente cepção moderna de teatro. É interessante acompa-
por ter sido um comediógrafo que escrevia com os nhar a exposição de seu "método", feita depois de
olhos voltados para a cena. arrolar os estudos de cunho histórico que já haviam
Se para Romero e Veríssimo o que conta é a sido feitos no Brasil e que são os seguintes:
dramaturgia de cunho literário, conceito comum
na época em que escreveram suas histórias da litera- r. O capítulo de José Veríssimo sobre o teatro brasileiro,
tura brasileira, como entender que Henrique Mari- incluído em sua História da LiteraturaBrasileira.
nho não tenha sequer estudado nossa dramaturgia 2. O estudo de Clóvis Bevilacqua, "O Teatro Brasileiro e
em sua história do teatro? A resposta está em uma as Condições de sua Existência': publicado em Épocas
nota prévia na qual ele explica que era sua intenção eIndividualidades.
3. O ensaio de Mello Moraes Filho, "O Teatro no Rio de
fazer as críticas das peças mais notáveis da nossa dramatur- Janeiro", introdução às Comédias, de Martins Pena.
gia e tracejar as biografias dos nossos autores dramáticos e 4. O estudo de Aderbal de Carvalho, "O Teatro Brasileiro
comediantes, mortos e vivos. Não pudemos, porém, vencer de Relance", publicado em Esboços Literários.
as dificuldades com que tivemos que arrostar. Ficará isso 5. O livro de Henrique Marinho, O Teatro Brasileiro:
para mais tardei, AlgunsApontamentospara a Sua História.
6. A conferência de Reis Perdigão (João de Talma) sobre
Infelizmente a promessa não foi cumprida e "O Teatro Brasileiro antes de João Caetano" publicada
nossa primeira história do teatro brasileiro, incom- no SuplementoTeatraldo Imparcial, em 1923.

pleta, não pôde influir com eficácia sobre as futuras 7. Uma polianteia organizada por Carlos Câmara sobre
obras de mesma natureza. Assim, os problemas que O Teatro Cearense, 1922.

aparecem em Marinho reaparecem em Múcio da 8. Uma conferência de Cláudio de Souza, "A Evolução do
Paixão (O Teatro no Brasil, escrito em 19 17, publi- Teatro no Brasil", 1920.
cado em 1936): muitas informações sobre edifícios 9. O texto "100 Anos de Teatro no Brasil", de Renato
teatrais, companhias, repertório, decretos, uma Vianna, publicado emA Noite, setembro de 1922.

infinidade de nomes de autores e títulos de peças 10. A resenha de Chichorro da Gama, Através do Teatro
Brasileiro, 1907.
2 História da Literatura Brasileira, 2. ed., Rio deJaneiro: Gar-
nier, v. 2,1903, p. 185.
Ir. A síntese de Max Fleiuss, publicada no DicionárioHis-
3 História da Literatura Brasileira, 5. ed., Rio deJaneiro: José tórico) Geográfico eEtnográfico Brasileiro, I922.
Olympio, 1969, P: 254. 12. Um projeto sugerido por Zeferino Oliveira Duarte'
4 O Teatro Brasileiro: Alguns Apontamentos para a Sua His-
sobre "Organização do Teatro Dramático Nacional".
tória, P: 7.

+ 16
+ Introdução: Por uma Nova História do Teatro Brasileiro

13. O livro de Sousa Bastos sobre o teatro português e uma história do teatro brasileiro de modo correto,
brasileiro, Carteira doArtista. é preciso que se estabeleça "o sincronismo entre
14- O capítulo de Eduardo de Noronha sobre "A Arte as manifestações literárias e as manifestações cê-
Dramática no Brasil",do livro Evolução do Teatro. nicas, sem o que muitos fenômenos, talvez os mais
1 5. A conferência de Oscar Lopes, "O Teatro Brasileiro: interessantes da nossa vida teatral, escaparão de
Seus Domínios e Suas Aspirações': publicada nos Anais todo ao nosso entendimento". Por fim, Mendonça
da Biblioteca Nacional, 1914. acrescenta um terceiro aspecto que deve ser con-
1 6. As observações de Ronald de Carvalho sobre o teatro siderado no estudo do teatro: o sociaL A seu ver,
brasileiro em sua Pequena História da LiteraturaBra- cada um dos três aspectos corresponde a funções
sileira. definidas: "a de criação (aspecto literário), a de
17. Um estudo de Eduardo Vitorino, "AEvolução da Cena representação (aspecto cênico), a de repercussão
Brasileira': publicado na Ilustração Brasileira, 19 23. (aspecto social). A primeira função é exercida pelos
18. A memória de Samuel Campello sobre "O Teatro em autores. A segunda pelos artistas, pelas empresas e
Pernambuco", 1922. pelos profissionais do teatro em geral. A terceira,
19. O ensaio de Múcio da Paixão, "Do Teatro no Brasil". finalmente, pelo público e pela crítica'.
20. O livro O Teatro naBahia(1823-1923) emaisseisconferên- Em linhas gerais, é com essas ideias em mente
cias de Sílio Boccanerajúnior sobre "O Teatro Brasileiro" que Mendonça pretende escrever a história do tea-
(1906), "O Teatro Dramático na Bahia" (1908), "Flores- tro brasileiro. No primeiro volume, o único que nos
cência e Decadência do Teatro Nacional" (1912), "O Cen- deixou, ele se aplica com diligência e põe em prática
tenário do Teatro SãoJoão" (1912), "O Teatro na Bahià' o seu "método': abordando o teatro brasileiro nos
(19 15) e "Teatro Nacional: Aurores e Atares na Bahià'. tempos coloniais e em nosso primeiro romantismo,
levando em conta aspectos literários e cênicos.
Que contribuição esses estudos trouxeram para Q::.ero crer que sua obra deveria ter servido de
a história do teatro brasileiro? Para Mendonça, modelo para quem viesse a escrever a próxima histó-
pouca, por uma razão muito simples: em nenhum ria do teatro brasileiro. Afinal, ela trazia um método
deles o teatro é considerado simultaneamente em e uma concepção modernos de teatro. Mas não é
seus aspectos literários e cênicos. Afirma ele a res- isso que acontece logo em seguida, quando Lafayette
peito dos estudos citados: "A maioria se vicia de um Silva publica a sua História do Teatro Brasileiro, em
mal considerável: os que se ocupam da literatura 1938. Ele repete o padrão de Henrique Marinho e
dramática esquecem-se da cena; os que se interes- Múcio da Paixão: muitas informações, datas, nomes,
sam pela cena despreocupam-se, em absoluto, da epouca reflexão crítica. Leia-se,por exemplo, o capí-
literatura dramátíca'". Mas, poder-se-ia perguntar: tulo sobre a dramaturgia brasileira, para se perceber
a soma desses estudos não apresenta uma visão a fraqueza ou mesmo a inexistência de análises e
completa do teatro brasileiro? Não, diz Men- interpretações ou considerações de ordem estética.
donça, que explica seu ponto de vista: "Quando Além disso, não há integração entre as partes que
se diz, de um modo geral, que o estudo do teatro abordam a literatura dramática e os aspectos ligados
abrange dois aspectos - o literário e o cênico - não ao que ocorria nos palcos brasileiros.
quer dizer, com isso, que se creia possível estudá- Depois de Lafayette Silva, a proposta de Carlos
-lo, separadamente, em um ou outro. Não. A sua Sussekind de Mendonça foi retomada porJosé Ga-
evolução não se fez isoladamente com a de um ou lante de Sousa, que em 1960 publicou a primeira
a de outro. Fez-se, pelo contrário, da conjugação boa história do teatro brasileiro, em dois volumes:
de ambos, da ação recíproca de um sobre o outro, O Teatro no Brasil. Pode-se dizer que Galante é
ação às vezes convergente, de outras oposta, mas o primeiro estudioso do nosso teatro que soube
sempre interdependente". Logo, para se escrever sistematizar o trabalho de pesquisa e refletir sobre
sua trajetória, desde Anchíeta até o final dos anos
5 C. S. de Mendonça, Históriado Teatro Brasileiro, v. I, 1565- de 1950, referindo-se tanto aos aspectos drama-
1840, Rio de janeiro: Mendonça Machado & Cía., 1926, P: 60.
túrgicos como aos cênicos. Grande pesquisador,
As citações seguintes provêm desta edição.

• 17
História do Teatro Brasileiro • volume 1

escreveu uma obra notável, à qual devemos voltar da dramaturgia brasileira: apenas três dos seus 21
sempre, mas, infelizmente, limitada pelo modesto capítulos são dedicados a outros aspectos ligados
alcance crítico de seu pensamento. Assim, se o ao fazer teatral: arte do ator, companhias teatrais
resultado concernente às informações sobre vida modernas, papel do encenador etc. Ninguém con-
teatral, artistas, companhias dramáticas, censura e testará o mérito dessa obra, dada a qualidade das
outros aspectos é muito positivo, decepcionam na análises e interpretações de peças e autores, porém
obra as análises críticas e as interpretações que faz o fato é que ela não contempla todos os aspectos ne-
da dramaturgia brasileira. Sem fôlego crítico, Ga- cessários para que se escreva uma história do teatro
lante sanciona o tempo todo as opiniões que Décio brasileiro. Aliás, o próprio autor tinha consciência
de Almeida Prado havia exposto em 1956, num disso quando a escreveu, pois ao final do volume, em
capítulo de obra coletiva - A Literatura noBrasil-, nota intitulada "Informações bibliográficas': afirma:
intitulado ''A Evolução da Literatura Dramática"
De qualquer modo, o mérito de Galante é ine- Ainda está por escrever-se uma História do Teatro Bra-
gável, não apenas pela extensão da pesquisa, mas sileiro. Somente quando se fizer um levantamento com-
também por discutir as divisões da história do pleto de textos se poderá realizar um estudo satisfatório
teatro brasileiro, feitas anteriormente por Sílvio de todos os aspectos da vida cênica - dramaturgía, evo-
Romero, Henrique Marinho, Múcio da Paixão e lução do espetáculo, relações com as demais artes e com a
Carlos Sussekind de Mendonça, propondo uma realidade social do país, existência do autor, do intérprete
divisão mais correta, aprimorando as sugestões do e dos outros componentes da montagem, presença da crí-
último historiador mencionado, o único, a seu ver, tica e do público. Por enquanto, mesmo que seja imensa a
"que abordou com visão mais ampla o problema da boa vontade, se esbarrará em obstáculos intransponíveis.
divisão em períodos'". Talvez a tarefa não seja de um único pesquisador: exige
É de 19610 Teatro in Brasile, de Ruggero Jacobbi, busca paciente em arquivos e jornais, leitura dos alfarrábios
uma síntese benfeita da nossa história teatral, mas e inéditos, a esperança de que se publiquem documentos
com ênfase no estudo da dramaturgia, que ocupa inencontráveis. Todos fornecemos subsídios para a obra
quase que a totalidade de suas cem páginas. Ruggero que - acreditemos - um dia virá a Íume/,
viveu no Brasil entre 1946 e 1960 e desempenhou
um papel importante como encenador no processo Com a lucidez de quem acompanhou e apoiou
de modernização do nosso teatro. Além disso, foi o nascimento e o fortalecimento do teatro mo-
professor, crítico e ensaísta que se empenhou pro- derno no Brasil, Magaldí sabia que seu Panorama
fundamente em compreender nossa história, costu- não atendia ao que ele denomina no excerto acima
mes e cultura. São muito boas as observações críticas "todos os aspectos da vida cêníca" E pela relação
que faz sobre as comédias de Machado de Assis e desses aspectos, percebemos o quanto sua concep-
de Martins Pena e excelentes as dedicadas à obra ção de teatro é moderna. Além disso, há na citação
dramática de Gonçalves Dias. No volume Teatro in uma constatação importante: a "vida cênica" tem
Brasile, merecem destaque os momentos nos quais tantos domínios que talvez já não seja possível que
o autor aborda os anos de 1940/5 o com o olhar de um único pesquisador consiga escrever uma história
quem participou da renovação teatral que estava em do teatro brasileiro realmente significativa. O leitor
curso quando da publicação de seu livrinho. destas páginas pode deduzir de onde vem a inspi-
Em 1962, Sábato Magaldí publica o seu Pano- ração para a presente história do teatro brasileiro.
rama do Teatro Brasileiro. O que faltava a Galante, Depois de Magaldi, em 1980, Walter Rela
no que diz respeito ao alcance crítico, sobra em Ma- publica Teatro Brasileiio, no Uruguai, e Mário
galdi, que não escreve uma história do teatro brasi- Cacciaglia, na Itália, Quattro secoli di teatroin Bra-
leiro na linha preconizada por Carlos Sussekind de sile- edição brasileira em 1986: PequenaHistória
Mendonça, mas, fundamentalmente, uma história do Teatro no Brasil: Quatro Séculos de Teatro no

o Teatro noBrasil, Rio deJaneiro: MEC/INL, 1960, V. 1, p. 70. 7 Panorama do Teatro Brasileiro, SãoPaulo:Dífel, 1962, p. 271.

• 18
• Introdução: Por uma Nova História do Teatro Brasileiro

Brasil. Ambos os autores apresentam uma síntese de 1940); Cem Anos de Teatro em São Paulo, de
da nossa história teatral, com base na bibliografia Sábato Magaldi e Maria 1hereza Vargas; Aspectos
que existia à época em que se puseram a escrever. do Teatro Brasileiro, de Paulo Roberto Correia de
Nesse sentido, as obras não trazem acréscimos sig- Oliveira (obra centrada nas realizações do século
nificativos ao que se conhecia antes, seja porque xx), O Teatro Através da História: O Teatro Bra-
não nascem de novas pesquisas, seja porque não sileiro, de Carlinda Fragale Pare Nufiez (org.) e
trazem análises e interpretações aprofundadas. O Brasil: Palco e Paixão - Um Século de Teatro, livro
livro de Walter Rela me parece uma síntese mais ricamente ilustrado que contém textos de Leonel
feliz, uma vez que o autor preocupou-se em consi- Kaz, Bárbara Heliodora, Tania Brandão, Sábato
derar tanto a drarnaturgia como os aspectos cêni- :Magaldi e Flávio Marinho.
cos de nossa vida teatral- pelo menos do período Todas essas obras trazem contribuições críticas
moderno -, com ênfase nos grupos, companhias e inestimáveis. Consultá-las é uma obrigação para
encenadores das décadas de 1940 a 1970.Já a obra quem queira ampliar pesquisas sobre a história do
de Cacciaglia é mais uma história da nossa drama- teatro brasileiro ou mesmo sobre um determinado
turgia, não do nosso teatro, prejudicada por muitos dramaturgo ou ater, um ensaiador ou encenador,
equívocos - nomes de autores, títulos e enredos um período ou uma forma dramática.
de peças, datas etc. - e omissões. Ressaltem-se, to- Há que se somar a essa bibliografia os estudos
davia, os méritos do autor: ele comenta a obra de críticos, de natureza historiográfica ou não, que
dramaturgos que estrearam nos anos de 1960/70 e foram realizados a partir de meados da década
elabora uma ótima bibliografia do teatro brasileiro. de 1970, no âmbito das universidades brasileiras.
Outra síntese bem cuidada e que se pode ler Como se sabe, com o surgimento dos cursos de
com interesse foi publicada em 1996, no volume pós-graduação em artes cênicas, e com a contribui-
3 da prestigiosa The Cambridge History ofLatin ção de pesquisadores das áreas de letras, história e
American Literature. O autor, Severino João Al- sociologia, formou-se uma enorme fortuna crítica,
buquerque, concentra em dois alentados capítulos oriunda das dezenas de dissertações de mestrado
a história do teatro brasileiro, desde Anchieta até e teses de doutorado. Nos últimos dez ou vinte
as manifestações da década de 1980. Ainda que o anos multiplicaram-se também as revistas acadê-
foco central seja a evolução da literatura dramática, micas dedicadas ao estudo das artes cênicas. A
ganham destaque as realizações de grupos e ence- consequência disso tudo é que ampliamos muito
nadores do período moderno. o conhecimento sobre o nosso teatro, tanto o do
Há trabalhos importantes de historiografia tea- passado como o do presente, tanto o feito no eixo
tral, mas que abordam períodos determinados, não Rio-São Paulo como o feito nas mais diversas re-
se configurando como propostas de uma história giões, do país, o que nos dá condições de escrever
do teatro brasileiro em sua totalidade. Refiro-me uma nova história do teatro brasileiro, nos moldes
às seguintes obras: 40 Anos de Teatro, de Mário daquela vislumbrada por Sábato Magaldi. Em
Nunes; O Drama Romântico Brasileiro, História outras palavras, é preciso incorporar à história do
Concisa do Teatro Brasileiro (1570-1908) e O Tea- teatro brasileiro o conhecimento produzido no
tro Brasileiro Moderno (1930-198 o), de Décio de espaço universitário. É preciso agregar o que se
Almeida Prado; O Teatrono Brasil (quatro volumes encontra disperso.
dedicados ao teatro jesuítico, ao teatro da colônia e Tal tarefa, evidentemente, não pode ser levada a
da regência, e ao teatro sob D. Pedro II), de Lothar cabo por uma única pessoa. Se em 1962 já parecia
Hessel e Georges Raeders; Moderno Teatro Bra- difícil a Magaldí, o que dizer cinco décadas depois?
sileiro, de Gustavo Dória; Teatro Brasileiro: Um O fato é que, com a especialização crescente dos
Panorama do Séculoxx, de Clóvis Levi; História do profissionais que atuam na universidade, há quem
Teatro Brasileiro: De Anchieta a Nelson Rodrigues, se dedique ao estudo da dramaturgia, da encenação,
de Edwaldo Cafezeiro e Carmen Gadelha (publi- da arte do intérprete, de um determinado período,
cada em 1996, avança apenas até o início da década de um determinado gênero dramático, de aspectos

• 19
História do Teatro Brasileiro • volume 1

do espetáculo, e assim por diante. Daí a ideia de se mais técnica do que artÍstica. A partir de 1922, a
fazer uma nova história do teatro brasileiro com insatisfação com o "velho teatro" já aparece entre os
a colaboração de vários especialistas, somando as escritores modernistas - por exemplo, na crítica tea-
contribuições do passado com a volumosa produ- tral de Antônio de Alcântara Machado, e em seguida
ção crítica do presente. nas peças teatrais de Oswald de Andrade - e nos tra-
Em relação à bibliografia citada acima, merecem balhos pioneiros de Renato Vianna, Álvaro Moreyra
destaque as obras de Décio de Almeida Prado, por- e Flávio de Carvalho. Durante mais de três décadas
que, justapostas a outras que escreveu, acabam abor- nossa vida cênica se exprime em duas vertentes que
dando praticamente todas as épocas e a maior parte correm paralelas, até que nos anos de 195 o o teatro
do nosso movimento teatral até o final dos anos de moderno se impõe. O segundo volume aborda esse
1970. Infelizmente, ele não teve tempo de escrever processo histórico, em suas múltiplas manifestações,
uma história completa do teatro brasileiro. Entre- voltando ao movimento modernista de 1922 e se-
tanto, no livro Teatro deAnchietaaAlencar, de 1993, guindo até a contemporaneidade.
a primeira parte intitula-se significativamente "Para O primeiro desafio que uma obra coletiva dessa
uma História do Teatro no Brasil".São cinco densos dimensão coloca diante de seu organizador diz res-
capítulos que abordam desde o teatro jesuítico até peito à harmonia e unidade do conjunto. Depois de
a obra de Gonçalves de Magalhães, Levando ao pé receber a primeira redação dos capítulos, trabalhei
da letra que o autor destinava esses textos para uma junto aos colaboradores, dando sugestões de cortes
futura história do teatro brasileiro, pareceu-me de e acréscimos, discutindo conceitos e opiniões crí-
bom alvitre aproveitar quatro deles aqui. Essa deci- ticas, aceitando as divergências, sempre aberto ao
são deve ser entendida como uma forma de garantir diálogo para alcançar o melhor resultado possível.
a qualidade das investigações sobre o nosso período Devo dizer que foi uma experiência enriquecedora
colonial e o advento do romantismo, e também como e que, graças ao empenho de todos, o leitor tem
uma homenagem ao extraordinário homem de tea- diante dos olhos não uma antologia de ensaios,
tro que foi Décio de Almeida Prado. mas uma verdadeira história do teatro brasileiro,
Os demais capítulos estampados nos dois vo- isto é, uma obra à qual não faltam unidade e or-
lumes desta obra foram encomendados a mais de ganicidade. Ainda que seja inevitável, com tantos
quarenta especialistas, a maioria formada nos cursos colaboradores, haver algum choque de opiniões,
de pós-graduação e atuando no ensino em várias uni- uma ou outra informação que se repete, e mesmo
versidades brasileiras. Esse perfil dos colaboradores alguma eventual nota dissonante entre um capítulo
dá uma dimensão nova a esta história do teatro brasi- e outro, não creio que fique prejudicada a visão de
leiro: é a primeira em nosso país escrita com base no conjunto de nossa história teatral.
espírito universitário de pesquisa. Daí a abrangência, Agradeço, pois, a todos os envolvidos nesta
a riqueza de informações, o domínio da bibliografia, empreitada. E agradeço especialmente ao editor
a verticalidade das análises e interpretações de peças e amigo J. Guinsburg a confiança depositada em
teatrais, espetáculos, fatos artísticos, ideias, formas mim para levar adiante esta obra, bem como as su-
dramáticas, bem como do trabalho de ateres e atri- gestões para a inclusão de alguns capítulos sobre
zes, encenadores, grupos e companhias etc. as práticas teatrais modernas e contemporâneas. O
A divisão em dois volumes obedeceu a critérios seu interesse, ao longo do trabalho, foi tão grande
cronológicos e artÍsticos. O primeiro volume dá que acabou envolvido na redação de um capítulo.
conta do nosso teatro desde Anchieta até meados Como esta história do teatro brasileiro vem a lume
do século xx. Como se sabe, em grande medida devido à sua persistência e amor pelo teatro, ela lhe
muitas das práticas teatrais do século XIX tiveram pertence. Dedico-a a ele, como prova de amizade
continuidade no Brasil até a década de 1950: ma- e admiração.
nutenção do ponto, companhia dramática apoiada
no grande astro, repertório de peças convencionais, João Roberto Faria
esperáculos montados por um ensaiador - função

• 20
I.
As Raízes do
Teatro Brasileiro

r. o TEATRO JESUÍTICO nhia a transigir, admitindo em seus espetáculos,


ao lado do português e do espanhol, até mesmo o
Commúsica eharmoniaeume atrevo a tra-
tupi, ou língua geral, a única capaz de atrair aquela
zera mim todos osindígenas daAmérica.
porção do público, a indígena, que mais interessava
Padre Manuel da Nóbrega
aos jesuítas conquistar.
Se já em 1557 o padre Manuel da Nóbrega, o
o teatro chegou ao Brasil tão cedo ou tão tarde primeiro provincial do Brasil, escreve um diálogo
quanto se desejar. Se por teatro entendermos es- sobre a Conversão do Gentio, o teatro propriamente
petáculos amadores isolados, de fins religiosos dito vai expandir-sesobretudo a partir de 1567 (data
ou comemorativos, o seu aparecimento coincide aproximada), quando o padre José de Anchiera, por
com a formação da própria nacionalidade, tendo sugestão de Nóbrega, faz representar em São Paulo
surgido com a catequese das tribos indígenas feita de Piratininga uma peça intitulada (por motivos
pelos missionários da recém-fundada Companhia que só podemos conjeturar) Pregação Universal,
de Jesus. Se, no entanto, para conferir ao conceito da qual não sobrevivem mais do que duas estrofes.
a sua plena expressão,exigirmos que haja uma certa Entre essemodesto início e o final do século, alguns
continuidade de palco, com escritores, ateres e historiadores, valendo-se de referências passageiras,
público relativamente estáveis, então o teatro só chegam a enumerar 25 espetáculos, incluindo-se
terá nascido alguns anos após a Independência, na neles peças e simples diálogos, montados pelos je-
terceira década do século XIX. suítas'. Número certamente significativo, mas que
Entre os projetes que os jesuítas traziam de Por- devemos dispersar não só por algumas décadas como
tugal, ao criar a Província do Brasil em 1552, logo por meia dúzia de postos avançados da civilização
estaria o de realizar representações escolares que, cristã. A Companhia de Jesus mantinha "escolas de
reafirmando o ponto de vista católico contra os ler e escrever" ou colégios de humanidades em Per-
protestantes, na linha da Contrarreforma, dessem nambuco, Bahia, Espírito Santo, Rio deJaneiro, São
ainda aos alunos de seus colégios a oportunidade Vicente e São Paulo ("sertão e cabo do mundo': no
de praticar o latim, a exemplo do que se fazia na dizer do padre Fernão Cardim", porque era a única
Europa. A precariedade cultural do Brasil, todavia,
nesses bravios tempos de colonização em que os 1 CE. Lothar Hessel, Georges Raeders, O Teatrofesuitico, Porto
Alegre: UFRGS, 1972, p. 19.
próprios idiomas europeus podiam figurar como
2 Tratados da Terra e Gente doBrasil, 2. ed., São Paulo: Com-
estrangeiros, levou os responsáveis pela Compa- panhia Editora Nacional , 1939, p. 313.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

vila afastada da orla atlântica). Todo esse pequeno foi a modo de di~logo. Toda a festa causou grande alegria
acervo dramático estaria provavelmente perdido no povo, que concorreu quase todo'.
não fossem certas circunstâncias bastante especiais,
como veremos, terem conservado oito textos, todos Agora, em contraposição, três exemplos de
eles, de resto, atribuídos a um único autor.josé de manifestações indígenas, ocorridas em ocasiões
Anchieta (I 534- I 597). diversas, que transcreveremos longamente, em
Porém, antes de analisar tais peças, convém, sequência, quase sem cortes, para não prejudicar
para melhor compreendê-las, delinear, ainda que o pitoresco - "a cor local" dos românticos - de
um tanto obliquamente, as condições em que elas quadros tão graciosamente pintados, que servem
puderam germinar, até chegar ao palco, ou a algo para nos restituir o passado em toda a sua espessura
semelhante. Sobre esse ponto contamos afortuna- material e espiritual:
damente com um testemunho idóneo e explícito:
a carta que o padre Cardim endereçou a Lisboa em Chegamos à aldeia à tarde; antes dela, um bom quarto de lé-
I 585, relatando a viagem de inspeção que vinha gua, começaram as festas que os índios tinham aparelhadas,
fazendo havia já dois anos na Província do Brasil, as quais fizeram em uma rua de altíssimos e frescos arvoredos,
na qualidade de secretário do padre visitador Cris- dos quais saíam uns cantando e tangendo a seu modo, ourros
tóvão Gouveia. Por onde passava a ilustre comitiva, em ciladas saíam com grande grita e urros, que nos atroa-
que tinha caráter quase oficial, era recebida num vam e faziam estremecer. Os cunumis, scilicet meninos, com
ambiente de grande festividade, com muita come- muitos molhos de frechas levantadas para cima, faziam o seu
doría, muita música vocal e instrumental (dentro motim de guerra e davam a sua grita, e pintados de várias
dos limites da colônía) e também com algum teatro. cores, nuzinhos, vinham com as mãos levantadas receber
Fora, claro está, as cerimônias religiosas, organiza- a bênção do padre, dizendo em português, "louvado seja
das, geralmente, em torno das preciosas relíquias - Cristo". Ourros saíram com uma dança d'escudos à POrtu-
uma cabeça das Onze Mil Virgens, um braço de São guesa, fazendo muitos trocados e dançando ao som da viola,
Sebastião - que a Companhia enviara à colônia, pandeiro e tamborim e fraura, e juntamente representavam
para reforço da fé e prova de consideração. Impres- um breve diálogo, cantando algumas cantigas pastoris. Tudo
siona, no relato espontâneo de Cardim, o grau de causava devoção debaixo de tais bosques, em terras estra-
interpenetração existente entre arte e religião, bem nhas, e muito mais por não se esperarem tais festas de gente
como o ambiente de confraternização estabelecido tão bárbara. Nem faltou um Anhangá, scilicet diabo, que
por tais festas entre a cultura europeia e a cultura saiu do mato: este era o índio Ambrósio Pires, que a Lisboa
indígena, quando se tratava, bem entendido, de foi com o padre Rodrigo de Freitas. A esta figura fazem os
tribos já cristianizadas e amigas dos jesuítas. índios muita festa por causa de sua formosura, gatimanhos
Eis uma amostra da recepção oferecida pela ci- e trejeitos que faz: em todas as suas festas metem algum
dade da Bahia, em que os protagonistas, segundo diabo, para ser deles bem celebrada. [...]
tudo indica, eram portugueses ou filhos de por- Debaixo da ramada se representou pelos índios um diá-
tugueses: logo pastoril, em língua brasílica, portuguesa e castelhana,
e têm eles muita graça em falar línguas peregrinas, máxime
Trouxe o padre uma cabeça das Onze Mil Virgens, com ou- a castelhana. Houve boa música de vozes, frauras, danças, e
tras relíquias engastadas em um meio corpo de prata, peça dali em procissão fomos até a igreja, com várias invenções.
rica e bem-acabada. A cidade e os estudantes lhe fizeram um [...]
grave e alegre recebimento: trouxeram as santas relíquias da Véspera da Conceição da Senhora, por ser orago da al-
Sé ao Colégio em procissão solene, com frauras, boa música deia mais principal, foi o padre visitante fazer-lhe a Festa.
de vozes e danças. A Sé, que era um estudante ricamente Os índios também lhe fizeram a sua: porque duas léguas da
vestido, lhe fez uma fala do contentamento que tivera com aldeia em um rio muito largo e formoso (por ser o caminho
sua vinda; a Cidade lhe entregou as chaves; as ourras duas por água) vieram alguns índios morubixâba, scilicet princi-
virgens, cujas cabeças já cátinham, a receberam à porta de pais, com muitos ourros em vinte canoas bem equipadas, e
nossaIgreja; alguns anjos as acompanharam, porque tudo
Idem,P: 254-

• 22
• As Raízes do Teatro Brasileiro

Padre José de Anchíera - Tela que se encontra em Tenerife, terra natal do escritor jesuíta.

• 23
História do TeatroBrasileiro + volume 1

algumas pintadas, enramadas e embandeiradas, com seus ciladas, declarações de guerra, combates navais.
tambores, pífaros e frauras, providos de mui formosos arcos Sem esquecer esse curioso Ambrósio Pires, levado
e frechas mui galantes; e faziam amodo de guerra naval a Lisboa, especialista no desempenho de Anhangás,
muitas ciladas em o rio, arrebentando poucos e poucos com em quem devemos saudar o primeiro ator brasileiro
grande grita, e perpassando pela canoa do padre lhe davam a merecer as honras de uma citação nominaL Que
o Ereiupe, fingindo que o cercavam e o cativavam. Neste côrnico moderno não se reconhecerá em seus "ga-
tempo um menino, perpassando em uma canoa pelo padre timanhos e trejeitos"?
visitador, lhe disse em sua língua: Pay, marâpeguariníme Mas ainda não nos despedimos de Fernão Car-
nandapopeçoarii, scilicet, em tempo de guerra e cerco como dim, guia admirável nessas terras ainda mal conhe-
estás desarmado? e meteu-lhe um arco e frechas na mão. cidas e nesses territórios artísticos pouco explorados.
O padre assim armado, e eles dando seus alaridos e urros, Será dele mais uma citação, que nos transportará de
tocando seus tambores, frauras e pífaros, levaram o padre até tais formas escassamente teatrais, ou parateatrais, a
a aldeia, com algumas danças que tinham prestes. [...] Aca- uma cena genuína de teatro, ainda que engastada,
bada a missa houve procissão solene pela aldeia, com danças como de hábito, num contexto festivo mais vasto.
dos índios a seu modo e à portuguesa; e alguns mancebos Estamos no Rio de Janeiro, comemorando a chegada
honrados também festejaram o dia dançando na procissão, e de uma relíquia de São Sebastião, padroeiro da ci-
representaram um breve diálogo e devoto sobre cada palavra dade. Já se realizou no mar uma "escaramuça naval':
da Ave-Maria, e esta obra dizem compôs o padre Álvaro réplica longínqua das naumaquias romanas, a que
Lobo e até ao Brasil chegam suas obras e caridades', não faltaram nem "grita" por parte dos índios, nem
"arcabuzaria" e "artilharia grossà' por parte dos por-
Temos aí, esboçados por Fernão Cardim, al- tugueses. A inevitável procissão termina em frente à
guns dos princípios fundamentais da encenação - Santa Casa: "estava um teatro (no sentido de palco,
e, portanto, da dramaturgia - jesuítica: o teatro tablado, acreditamos) à porra da Misericórdia com
concebido como parte de uma festa maior, que nem uma tolda de uma vela, e a santa relíquia se pôs sobre
por ser religiosa deixa de ter lados francamente um rico altar enquanto se representou um devoto
profanos e divertidos; o constante deslocamento diálogo do martírio do santo, com choros e várias
no espaço (observável também nas festividades figuras muito ricamente vestidas; e foi asseteado
indígenas), como suporte de diálogos ocasionais, um moço atado a um pau: causou este espetáculo
não necessariamente ligados entre si, que faziam muitas lágrimas de devoção e alegria a toda a cidade
a procissão estacionar por minutos; as figuras por representar ao vivo o martírio do santo, nem
simbólicas, quando não sacras (a Sé, a Cidade, o faltou mulher que não viesse à festa" (alusão prova-
Anjo); o cenário quase sempre natural; os papéis velmente ao fato de a presença feminina não ser bem
interpretados por alunos de vários níveis, sem ex- acolhida pelos jesuítas, nem sequer entre o público).
clusão dos indígenas; o diabo visto como fonte de Seguem-se um sermão, um desfilepúblico para beijar
comicidade, à maneira indígena (e portuguesa, se a relíquia, rematando-se a festa com um final alegre:
lembrarmos de Gil Vicente); a comunicação de na- "era para ver uma dança de meninos índios, o mais
tureza sensorial, proporcionada pela música e pela velho seria de oito anos, todos nuzinhos, pintados de
dança, com os instrumentos indígenas de sopro e certas cores aprazíveis, com seus cascavéisnos pés, e
percussão sendo equiparados aos correspondentes braços, pernas, cintas e cabeças com várias invenções
europeus (fraura, tambor); e, antes e acima de tudo, de diademas de penas, colares e braceletes" 5.
o aspecto lúdico do teatro, entendido como jogo, A coerência e a homogeneidade não constituíam,
brincadeira, porra imaginária através da qual entra- como se percebe, traços distintivos dos espetáculos
vam com enorme entusiasmo os índios, simulando jesuíticos, se é que desse modo os podemos consi-
derar. Começava-se ao mar, com o simulacro de
4 Idem, p. 258, 268, 299-300. Cunumi é uma variante de
uma batalha naval, transpunha-se, já em terra, o
Curumi, forma mais conhecida modernamente. Ereiupe era a
saudação habitual entre os índios. Quanto ao "diálogo" do padre
Álvaro Lobo, trata-se de obra portuguesa, faro ao que parece não
comum nas representações jesuíticas brasileiras.

+ 24
• As Raízes do Teatro Brasileiro

martírio do santo, a homenagem às suas relíquias, não passa de recursos retóricos (o que não significa
o sermão do dia e chegava-se, como fecho que insinceros), próprios de textos que, devendo fun-
modernamente chamaríamos de divertissement, à cionar como sermões dramáticos, não aceitavam
ingênua exibição coreográfica dos indiozinhos nus. qualquer desfalecimento da vontade perante o Mal.
Tudo encadeado, impulsionado pelo ritmo da pro- A condenação impiedosa do pecador, a presença do
cissão, ora estático, ora dinâmico, com o público na castigo eterno pairando sobre a cabeça de todos, e
dupla condição de participante e espectador. não apenas dos infiéis, talvez fosse uma das regras
Passando-se às peças de Anchieta, o tom muda, do gênero, se não a sua regra básica.
torna-se mais severo. Duas peças avultam, até pela extensão, como tem
Não que as cartas de Cardim não contenham sido acentuado, na produção de Anchieta: Na Festa
informações ameaçadoras, alusivas a males presen- de São Lourenço (1.493 versos) e Na Vila de Vitória
tes ou futuros. Assim, a referência ao mar litorâneo, (1.674 versos). Tentar datá-las sem margem de erro
"infestado de franceses e ingleses': corsários que um seria exercício de imaginação, alicerçado sobre dados
dia, sob a capa das guerras de religião, aprisionarão indiretos e rarefeitos. Mas parece certo que ambas
o próprio Cardim, só o libertando, após demorado foram redigidas entre I 583 e 1586, quando o escri-
cativeiro, mediante pagamento de resgate. Assim, tor andava por volta dos cinquenta anos, no mesmo
o perigo constante representado pelo assédio dos decênio e provavelmente nos mesmos anos em que
guaimorés (aimorés na versão moderna), aliados Fernão Cardim percorria a Província do Brasil.
dos franceses, no ataque desfechado poucos anos Em conjunto, as duas interessam muito ao
antes ao Rio de Janeiro. Assim, a constatação, sem crítico, menos enquanto teatro, mais pela luz que
comentários, de que "os portugueses têm muita lançam sobre a mente missionária - e nossa inten-
escravaria destes índios cristãos': levantando a sus- ção é conhecê-la, não julgá-Ia.1vfaria de Lourdes de
peita de que a conversão frequentemente não era Paula Martins, que as editou, primeiro separada-
um bom negócio para o índio. E assim, para termi- mente, depois reunindo-as às demais peças e poe-
nar este leve esboço das dificuldades enfrentadas sias de Anchieta, traduzindo pela primeira vez de
pelos jesuítas, a dúvida que parece insinuar-se no forma sistemática os trechos em tupi, salientou as
espírito do nosso rnissivista com relação à possi- semelhanças que as unem, achando que as variações
bilidade de obter-se uma verdadeira modificação existentes entre elas"indicam, na realidade, mudança
na alma e nos costumes dos indígenas, quando ele, de público, apenas"? Ela não o diz, mas a inferência
após entremear elogios e descrições objetivas, deixa é óbvia: a primeira, mesclando tupi, português e
escapar um suspiro de desalento: "Enfim, por mi- castelhano, dirigir-se-ia de preferência aos índios; a
lagre tenho o domar-se gente tão fera'". segunda, na qual o tupi não comparece, ao público
Tais obstáculos e preocupações perpassam pelo de origem europeia.
teatro de Anchieta, em primeiro ou em segundo Na Festa de São Lourenço congrega um elenco
plano. A diferença entre os dois escritores não é de personagens tão disparatadas, tão dilatadas no
essa, portanto. Onde Cardim opta pelo otimismo, espaço e no tempo, quanto se possa desejar. Des-
por essa afabilidade de pensamento e de escrita que filam em cena, nos papéis principais, Guaixará e
é a constante de suas cartas, Anchieta, nas peças, Aimberê, conhecidos chefes tarnoios, que haviam
apresenta-se impregnado pela vertente pessimista lutado em 1566-1567 ao lado dos franceses, contra
do cristianismo - a do pecado original, do homem portugueses e jesuítas, entre os quais se encontra-
enquanto lodo -, embora sem omitir, nem poderia vam, correndo risco de vida, Nóbrega e Anchieta;
fazê-lo, a redenção tornada possível pelo sacrifício Décio e Valeriano, imperadores romanos dos pri-
de Jesus. É difícil dizer se se trata de uma marca meiros séculos; São Sebastião e São Lourenço,
pessoal, de um certo ceticismo gerado por três dé-
cadas de sofrida experiência missionária ou se tudo 7 Na Vila de Vitóriae Na VISitação de Santa Isa6el. Peças em
castelhano e português do século XVI, São Paulo: Museu Paulista,
BoletimIII, 1950, p. 128 (transcritas e comentadas por Maria de
Idem, p. 32.0, 261, 3°2,271. L. de Paula Martins).

• 25
Historia do Teatro Brasileiro • volume 1

mártires cristãos desse período, um morto a flecha- A moral em vigência é a do Velho Testamento:
das, o outro "assadona grelha' (práticas, sejadito de olho por olho, dente por dente. Não morreu assado
passagem, que não deviam surpreender nem chocar na grelha São Lourenço? Pois então que sofram
o público indígena); um Anjo; o Temor e o Amor igual pena os seus algozes, conforme constatam
de Deus, figuras simbólicas (como todas de certo tardiamente Valeriano e Décio:
modo o são), inseparáveis porque complementares.
À volta deles estende-se uma rede de referências Porque Lorenzo cristiano
ainda mais ampla, colhendo desde César, Pompeu asado nos asará.
e Nero, até Esculápio, Plutão eJúpiter.
Esseverdadeiro caoshistórico, ou a-histórico, vai Quanto ao sangrador de São Sebastião, já se
do infinitamente grande ao infinitamente pequeno, sabe que castigo o espera:
do divino ao humano, do material ao imaterial, do
passado remoto ao presente imediato, do local ao Dias ha que esta sangría
universal, formando um bloco cultural complexo a se guardaba para vos
que unicamente os padres da Companhia de Jesus que sangrabais noche y día
(e talvez nem todos) estavam em condições de ter con obstinada porfía
acesso. Mas o caos organiza-se, adquire sentido, a los mártires de Dios.
torna-se compreensível mesmo a cérebros jejunos
de teologia e Antiguidade Clássica, se, ignorando A luta não se trava exclusivamente em sentido
as épocas e passando por cima das individualidades, figurado. A imagem que passa, e se desejava pas-
separarmos as personagens, como faz idealmente a sar, é a de um combate que começa a ser decidido
peça, em apenas dois grandes e bem caracterizados na terra, a golpes de "bofetonazos" e "tizonazos',
grupos: os amigos e os inimigos da Igreja Católica. quando não de lances ainda mais inequivocamente
De um lado, no centro do conflito, São Sebastião, marciais. É assim que Saravaia conta a derrota de
padroeiro do Rio de Janeiro, e São Lourenço, pa- Décio:
droeiro da aldeia homónima, vizinha da atual Nite-
rói, onde a peça foi representada. Do outro, Guaixará Pensaba dar, de revés,
eAimberê, velhos inimigos dos jesuítas,promovidos espantables cuchillazos,
agora, por suas últimas façanhas, a demónios gra- mas en fin, nuestros balazos
duados, tendo por auxiliares uma série de diabos dieran con él aI través,
menores, de nomes arrevezados a ouvidos europeus: con muy pocos cafionazos",
Saravaia, Tataurana, Urubu,Jaguaruçu, Caborê. Em
plano dramático inferior, com menos participação, Nesse belicoso final do século XVI, quando os
os dois imperadores romanos, chamados àsfalaspor jesuítas brasileiros,acossados de tempos em tempos
crimes cometidos nos albores do cristianismo. por tribos rebeldes, sofriam ainda na carne a reper-
A unidade dramática é das mais precárias, cussão das guerras europeias, tornava-se necessário
porém a de ordem pessoal adivinha-se qual seja. provar, pelos resultados, que a causa da Igreja era
O tema "São Lourenço", com as suas duas cono- não só a única santa como a mais forte, tendo, em
tações, a geográfica e a histórica, a da vila e a do postos de comando, soldados da intrepidez de um
santo, chamou por contiguidade, por associação São Sebastião, que muitos portugueses juravam ter
de ideias, todos os nomes que lhe eram correlates visto brigando ao lado deles no cerco do Rio de
no pensamento e na vivência de Anchieta, não
8 Poesias: Manuscrito do Século XVI, em Português, Castelhano,
importando se por fatos ocorridos há vinte ou há Latim e Tupi. São Paulo: Museu Paulista, Documentação Linguls-
muitas centenas de anos. A peça, como todo bom tica 4> 1954, p. 724, 727, 728 (transcrição, tradução e notas de
M. de L. de Paula Martins). As citações das peças de Anchíera
ajuste de contas, não quer outra coisa senão reviver serão todas deste volume, dispensando-se a numeração das pá-
no presente, em tom triunfalista, batalhas ganhas ginas para não sobrecarregar a leitura. Os trechos em tupi foram
vertidos pela tradutora em prosa, mantendo-se, contudo, quanto
ou perdidas no passado pela Igreja. à disposição das linhas, o formato do verso.

• 26
• As Raízes do Teatro Brasileiro

Janeiro. Até os anjos, por espirituais que fossem, crivando-os de ironias, de "amargosos chistes" (é
desciam à arena, na medida em que os demônios Décio quem se queixa), a exemplo deste, lançado
igualmeme assumiam feições humanas. Ninguém, por Aimberê, falando ao mesmo tempo como ci-
na verdade, sabia dizer onde terminava a terra e dadão do Inferno e represemame do Céu:
onde principiava o Céu - ou o Inferno.
A ação dramática, definida como o caminhar Pues me honraste,
constante (por mais voltas que dê) para um fim y siempre me contentaste
predeterminado, apresema-se tão descentralizada, ofendiendo a Dias eterno,
tão privada de um eixo único, quamo o tempo e o es justo que en el infierno,
espaço. A peça compõe-se de partes, que não cha- palado que tanto amaste,
maríamos de aros, embora o texto o faça por uma no sintas mal el invierno.
vez, porque não têm o sentido que a dramaturgia
clássica lhes conferiu, de unidades de extensão rela- Essa estranha delegação de poderes permite
tívamente idênticas, com certa autonomia própria, manter-se a nota cómica, além de ensejar que a
porém fortemente ligadas entre si e subordinadas punição, a morte pelo fogo, seja realizada com re-
ao todo. quintes de crueldade mental que não ficariam bem
Na primeira cena do manuscrito, aliás sem tí- em anjos e santos. ~e o Mal seja punido pelo Mal,
tulo", por ter desaparecido a página inicial, Guai- deixando o Bem com as mãos limpas - e o poder
xará e Aimberê preparam-se para atacar a vila de São decisório.
Lourenço. Em seu diálogo, todo ele em língua tupi, Observe-se que Lúcifer enquanto complemento
alternam-se o medo (Aimberê: "Tenho medo, todos da justiça divina não é conceito alheio ao universo
os meus músculos tremem, estão ficando duros") cristão. Despojada do Inferno, ficaria a Igreja sem
e a fanfarronice (Guaixará: "Recrudesça a minha a possibilidade de punir o pecado. Mas um autor
insolência antiga!"), os dois um tanto ridículos, pela hábil, de clara vocação teatral, não teria dificuldade,
covardia ou pela pretensão, na tradição dos diabos como não teve Gil Vicente na trilogia das Barcas,
cômicos apreciados pelos indígenas, segundo Car- em separar as atribuições do Anjo e as do Diabo,
dirn. O episódio termina com a prisão dos dernô- tornando-os figuras complememares exatamente
nios, executada pelo Anj o (Anj o custódio da cidade, por nunca transgredirem as fronteiras dos respec-
semelhante ao Anjo da guarda das pessoas), ajudado tivos territórios.
por São Lourenço e por São Sebastião. Não há atrito Solucionado este segundo conflito, que fecha
entre os litigantes, resistência efetiva por parte dos o que com alguma boa vontade chamaríamos de
diabos - e talvez nem pudesse haver, dada a dispa- enredo, abre-se o caminho para uma terceira e uma
ridade de força entre Deus e Lúcifer (pronunciado quarta partes, já não dramática, no sentido de não
Lucifér por Anchieta). O papel do Mal era o de ser comportarem opositor. O Anjo faz tranquilamente
esmagado pelo Bem, uma vez encerrada a fase dos a sua prédica e o Temor e o Amor de Deus desen-
desafios e bravatas. volvem as suas falas, a primeira bem mais longa
Há uma curiosa inversão a partir desse primeiro que a segunda, sob a forma poeticamente consa-
desfecho: os dois chefes indígenas, que já expres- grada de mote (chamado tema) e glosa. Encerra
savam em uma ou outra frase a posição da Igreja o espetáculo, à maneira descrita por Cardim, uma
(Guaixará: "a taba inteira é pecadora'), como se dança e canto de meninos índios (talvez nuzinhos)
tivessem consciência de que estavam moral e reli- celebrando o Senhor.
giosamente errados, mudam de campo, passando Já deve ter ficado claro, a esta altura, que a coe-
a funcionar como servos submissos do Anjo. Se- rência formal, ao contrário da religiosa, nunca es-
rão eles, com efeito, que enfrentarão o novo par teve entre as cogitações do autor de Na Festade São
anticristão surgido em cena, Décio e Valeriano, Lourenço. Não admira, pois, que numa cena norável
pela quebra da verossimilhança, Valeriano se ponha
9 O título Na Festa de São Lourenço foi dado pela tradutora
por analogia com os de outras peças de Anchiera.
a falar tupi ('i\uj é,xe jukáj epé"), enquanto Aimberê

• 27
História do Teatro Brasileiro • volume 1

recebe dos imperadores romanos, com o uso do ambas as partes, seria um crime horrível contra a
espanhol, toda a sua carga de erudição clássica, humanidade? A passagem para o cristianismo, na
mencionando, por exemplo, a "agua del Flagetón". prática, não se mostrava exequível senão abando-
Não se pense, todavia, que essesurpreendente in- nando todo o complexo modo de viver nativo. Não
tercâmbio de idiomas seja involuntário ou produto sejam índios, sejam europeus - pregava a Igreja.
de desatenção. Aimberê chega mesmo a justificá-lo: E acrescentava: se com isso perderem o reino da
terra - da sua terra -, ganharão o reino do Céu.
Quiero hacerme castellano Essa incômoda questão, até hoj e não resolvida,
y usar de policía da permuta dos "velhos maus hábitos" (a expressão
con Decio y Valeriano é da peça) americanos pelos novos bons hábitos
porque el espafiol ufano europeus, percorre Na Festa de São Lourenço como
siempre guarda cortesia, um fio subterrâneo que reponta por vezes à luz do
dia com surpreendente clareza.
E quando Valeriano, pagando na mesma moeda, Guaixará já a formula em sua primeira inter-
prorrompe a discursar em tupi, o chefe tamoio in- venção cênica, rebelando-se contra a intrusão dos
daga, malicioso, humoristicamente: "tais padres":

Vinísteis del Paraguay Molestam-me os virtuosos,


que habláís en carijó? irritando-me muitíssimo
os seus novos hábitos.
Buscava-se, como se percebe, um efeito cômico Quem os terá trazido
acessível ao público, ainda que à custa da lógica Para prejudicar a minha terra?
e das regras habituais da dramaturgia. Importava
o "recado" (é a palavra empregada a respeito dos Mais adiante, reitera a mesma perspectiva na-
sermões do Temor e do Amor de Deus) religioso, tivista:
não a estruturação e o acabamento artístico.
Mas qual seria esse "recado': em relação à área As suas próprias coisas a gente
indígena, a mais especificamente visada? Os jesuí- Ama sinceramente.
tas tinham em mira dois fins precisos: substituir
uma religião (ou mitologia) por outra e um código E ao invocar os costumes ameaçados, entre
moral por outro. Quanto ao primeiro ponto, não muitos que a ótica cristã condena - beber, matar,
enfrentavam obstáculos maiores. Na galeria de se- amancebar-se, ser desonesto, adúltero -, enumera
res sobrenaturais oferecida pelo politeísmo tupi, outros de natureza meramente social:
segundo a interpretação da época, Anhangá ajus-
tava-se ao papel de Satanás, enquanto Tupã, deus É bom dançar,
do trovão, assumia a posição de Deus único e todo- adornar-se, tingir-se de vermelho,
-poderoso, figura desconhecida entre os índios. As empenar o corpo, pintar as pernas,
soluções verbais, pelo menos, estavam dadas. fazer-se negro, fumar [...]
Já quanto aos costumes, terreno ambíguo, em
que a moral se emaranha com o social, as dificul- Admiramos a equanimidade com que a causa
dades revelavam-se maiores. De que modo, por indígena está sendo colocada, até lembrarmos que
exemplo, passar repentinamente de um sistema Guaixará encarna na peça "o rei" dos diabos, "o
sexual relativamente livre para outro, construído diabão assado" (como ele mesmo se qualifica). As
sobre séculos de ascetismo, de repressão aos im- suas falas espelham, portanto, as razões do Mal, o
pulsos da carne? Ou, então, como incutir a ideia que pretendem é a perpetuação do pecado.
de que assar e comer os prisioneiros de guerra, em A conversão ao cristianismo, para não per-
vez de constituir-se numa cerimônia honrosa para manecer na superfície, tinha de mexer com toda

• 28
• As Raízes do Teatro Brasileiro

a sociedade indígena. Os jesuítas, tendo ou não Palavras sábias da Vila de Vitória, que o go-
consciência disso, valendo-se da fé ou da má-fé, verno, falando português, não pode senão apoiar,
raciocinavam aqui menos enquanto homens de invocando inclusive o poder divino, modelo do
religião do que enquanto europeus convencidos de terrestre:
sua esmagadora superioridade, seja em armas ma-
teriais, seja em armas intelectuais. Entre a América Quem o contrário disser
neolítica e a Europa do décimo sexto século da Era . é digno de pena eterna,
Cristã não se achava com facilidade - e continua pois Jesus nos manda ser
não se achando - o ponto ideal de convergência. sujeitos, e obedecer
Na Vila de Vitória amplia o foco cênico e como a Deus, a quem governa.
ideológico, abrangendo portugueses e espanhóis,
além dos índios. Pouco antes, em 158 o, o trono Essa é a "lei natural': que assegura "o bom regi-
de Portugal, havendo ficado vacante, coubera em mento" das coisas públicas, como é também o que
herança a Filipe II, rei da Espanha. Segundo se "ensina a Igreja Romana'.
depreende da peça e de certos indícios históricos, A forma hierárquica, princípio organizador do
a transmissão de poder entre os dois países não universo, desce do céu à terra, deJesus, "o sumo rei':
se efetuara na pequena cidade do Espírito Santo ao monarca, e deste a seus múltiplos representantes.
sem despertar alguma ebulição. O texto aproveita Aos simples súditos não resta senão submeter-se.
a oportunidade para dar em breves palavras uma ~e ninguém, sobretudo, tente exorbitar da posi-
lição tanto quanto possível completa sobre a orga- ção que lhe coube em partilha, querendo subir mais
nização do Estado e as relações entre governantes que de direito. O assunto está explanado com tanto
e governados. detalhe, delineia um quadro social tão completo,
Duas figuras alegóricas defrontam-se em cena: que merece transcrição integral:
o Governo, ou "o bom governo': como a seguir se
define, e a Vila de Vitória. Esta explica por que, Toda humana criatura
sendo portuguesa, utiliza-se do espanhol: guarde as regras de seu estado
- o religioso encerrado,
Porque quiero dar su gloria o sacerdote e o cura,
a Filipe, mi sefior, o solteirão e o casado,

yo soy suya, sin porfía, o juiz, o v'reador


y él es mi rey de verdad Ouvidor e capitão
a quien la suma bondad o meirinho e escrivão
quiere dar la monarquía o escravo e o senhor,
de toda la cristiandad. o fidalgo e o peão.

Era fechar o debate político antes mesmo de Porque estas são leis humanas
abri-lo. Restava não justificar a obediência ao novo que dependem da divina.
rei, que tal tipo de obediência dispensa justificati-
vas, mas tirar dela todas as consequências. O que Tal visão da sociedade contém em germe o
se faz quase automaticamente, já que do poder do argumento por excelência do conservadorismo.
rei decorre, como a conclusão das premissas, a legi- Poderíamos resumi-lo assim: tudo o que existe tem
timidade dos aros de quem o representa: alguma razão para ser como é; logo, não pode (e,
por extensão, não deve) ser modificado. Dentro de
~en qui era a su rey honrar um universo historicamente estático, não existindo
debe en todo obedecer possibilidade de mudança, não há propriamente
al que rige en su lugar. justiça ou injustiça social. A ordem reinante, iden-

• 29
História do Teatro Brasileiro • volume1

tificando-se com a ordem natural, é igualmente a em pessoa, o diabo-mar, que se gaba de ter perdido
ordem ideal. "o grande Adão" e tirado do céu "tantos mil anjos".
Não é fácil concordar hoje com Anchieta. Mas Volta até certo ponto a dupla cênica de Na Festa de
é não só possível como necessário alegar em sua SãoLourenço, com a sua mistura peculiar de medo
defesa duas circunstâncias atenuantes. Pelo ângulo e arrogância. Jactam-se de vencer a Igreja pela força
teológico, o imobilismo social apoiava-se sobre a ou pela astúcia, mas sabem, como sabemos nós e sa-
ideia de que a obra de Deus, sendo produto de um bia o autor, que nada podem contra São Maurício,
só jato criador, saiu já pronta e acabada, pelo menos "capitán afamado': e que, além do mais, conta com a
em suas linhas mestras, das mãos do Senhor. Pelo proteção divina. Satanás adverte em tal sentido Lúci-
ângulo histórico, não há como negar que a Espanha fer, que sai para o combate escoltado pelo Mundo e
de Filipe II, naquele momento em que a Inglaterra pela Carne, tradicionais inimigos do homem:
desligava-se do Vaticano e a França debatia-se en-
tre o catolicismo e o protestantismo, era a única Cuatro higas para vós!
potência capaz de oferecer à Contrarreforma o Vos volvereis bien pelado,
indispensável respaldo político. Tempo de guerra que ese escuadrón esforzado
é tempo de cerrar fileiras em torno do chefe mais tiene de su parte a Dios,
poderoso. A própria peça, a outro propósito, rea- y de fé está todo armado.
firma tal convicção:
Ao desafio verbal, em que São Maurício acusa
Bem o sabeis vós que nas guerras Lúcifer, entre outros vícios mais comezinhos, de
bem mais vai o sapiente "sodomita" (o que não surpreende, se admitirmos
que grande corpo de gente, que todos os pecados provêm do Inferno), segue-sea
que quem vence e ganha terras rápida derrota do diabo. Agora será a vez de Satanás,
é um capitão prudente. que até troca de idioma para enfrentar o santo:

Ora, o capitão prudente (no sentido de sábio, Por eso mudé mi voz:
ponderado) só podia ser, em fins do século XVI, para hablarle castellano
Filipe II. A peça enxergava nele, conforme vimos, a y mostrarme más feroz.
pessoa destinada por Deus ("la suma bondad") a ser
o monarca de "toda la cristiandad". Para compreen- O segundo demônio não tem melhor sorte.
der o zelo castelhano de Anchieta não é preciso Pensava que São Maurício, sendo grego, não
recordar que tanto ele, nascido nas Ilhas Canárias, aguentaria "balazos" e "arcabuzazos". Não sabia
quanto a Companhia de Jesus deitavam raízes em que o santo, no Brasil, tornara-se português. Ao
terras hispânicas. A lição da peça não fazia mais que retornar vencido, quase partido ao meio, queixa-se
repetir a de Santo Inácio de Loyola, que exigia de como qualquer soldado terreno:
seus comandados espirituais um senso de disciplina
já quase militar. A perspectiva política e o empenho Más que fiero cuchillazo
guerreiro, para a Contrarreforma, constituíam a el Mauricio me arroj ó!
outra face da religião. Por poco que me llevó
Militar e "muy guerrero': com efeito, não por el pescuezo y espinazo.
simples coincidência, é São Maurício, chamado
a proteger a Vila de Vitória, em sua condição de A sua conclusão não é destituída de um certo
padroeiro da cidade. Quem a quer tomar, como humor, talvez involuntário:
sempre, são as hostes diabólicas, desta vez repre-
sentadas por Satanás, que jura por Maomé, Lutero Ox! que tajos y reveses
e Calvino, juntando no mesmo saco demoníaco acostumbran de arrojar
muçulmanos e protestantes, e Lúcifer, ele mesmo, estes santos portugueses!

• 30
• As Raízes do Teatro Brasileiro

Terminados estes dois episódios, representados no Brasil, o medo do Inferno um aguilhão mais
em ordem inversa à nossa, com a luta entre santos seguro para conduzir ao aprisco o seu rebanho?
e diabos antecedendo a discussão sobre o bom go- Ou a demora na rememoração do castigo eterno
verno, inicia-se um novo confronto, mais cômico explicar-sé-ia por ser ele mais facilmente comuni-
que sério, entre a figura simbólica da Ingratidão e cável através da palavra? O Céu, na verdade, por
um Embaixador do Paraguai, personagem supos- sua própria beatitude, escapa à experiência humana.
tamente de carne e osso e talvez sugerida, como Não podemos descrevê-lo nem sequer imaginá-lo,
acreditam os historiadores, por alguém procedente sem diminuí-lo. O Inferno, ao contrário, firma-se
daquela região. Duas intenções entrecruzam-se em sobre essa mesma experiência. Os seus males ("ham-
cena. Uma, menos clara, de alcance restrito, referir- bre sin nunca comer': "sed terrible sin beber") são
-se-ia aos desentendimentos pouco antes verifica- os nossos sofrimentos diários elevados à máxima
dos entre os defensores da causa portuguesa e os potência. Símbolo de tudo isso - mas símbolo al-
da causa espanhola. As ofensas voam de parte a tamente materializado e visualizado - é a imagem
parte. Se a Ingratidão, falando português, chama tantas vezes repisada do fogo que consome o peca-
o embaixador de "bujarrão" (a versão popular de dor, sem consumir-se e sem nunca consumi-lo de
sodomita) e de "blasonador andaluz", replica este todo. O pior do Inferno está na impossibilidade de
fingindo ver na Ingratidão um "dragón', um "ba- sair desse estado intermediário, sem os benefícios
silisco", ou "el fiero tarascón", invocando assim a seja da vida seja da morte, nessa "muerte sin muerte",
famosa "tarasca' das festas ibéricas. O final, que nesse "vivir siempre muriendo, / y morir siempre
não chega a ser bem uma conclusão, parece querer vivicndo', que fornece ao Temor de Deus o tema de
conciliar as duas nacionalidades, já unidas sob o um dos seus sermões. A peça ilumina com as chamas
cetro de Filipe II, considerando-as irmãs. do Inferno a triste condição do homem, "escravo
A segunda intenção, esta bastante explícita, do Senhor': "pobre fantasma sem vida': vítima de
diz respeito às relíquias sagradas que tanto espaço uma estranha cegueira perante o espiritual que o
ocupam nas cartas de Fernão Cardim. A Vila de faz temer mais os sofrimentos físicos que a ameaça,
Vitória teria esquecido muito rapidamente as que incomparavelmente mais real, da punição divina:
lhe tinham sido destinadas, depois de recebê-las
com mostras de carinho e devoção. Temes a dor corporal
Esta é a face local da Ingratidão. A face universal Foges de qualquer afronta
já abarca toda a história sagrada: e daquele eterno mal
do bravo fogo eternal
sou a velha Ingratidão não fazes nenhuma conta?
que todo mundo cerquei,
toda terra conquistei, Esgotada a sua matéria doutrinária, o espetáculo,
sou mais antiga que Adão mais do que o texto dramático, já inteiramente con-
pois em Lucifér comecei. cluído, fecha-se com uma cerimônia próxima da pro-
cissão, na qual as relíquias sagradas, protetoras da
A subida do particular ao geral acaba de con- cidade, são reconduzidas à tumba onde repousam.
cretizar-se com os sermões do Temor e do Amor Acabou-se, para logo recomeçar, a pugna entre o "es-
de Deus, as verdadeiras bases do bom governo. cuadrón de santos" e a "cuadrilla infernal': cabendo a
Novamente, como em Na Festa de São Lourenço, vitória, mais uma vez, aos que, obedecendo a Deus,
o Temor não só fala em primeiro lugar, o que se "se deixam martirizar". Seja na Roma antiga seja-
justificaria pelo desejo de concluir o espetáculo em conclui-se implicitamente - no Brasil.
tonalidade menos sombria, como discorre por um Comparando-se as duas peças (Na Vilade Vitória
lapso de tempo consideravelmente maior. melhor estruturada que Na Festa de São Lourenço,
Como interpretar tal prioridade? Julgaria sabendo estabelecer conexões e transições entre os
Anchieta, após trinta anos de vida missionária episódios), sobressaem de imediato certas similari-

• 31
História do Teatro Brasileiro • volume 1

dades existentes entre elas, de personagens, de con- Até o cheiro da carne humana assada transubs-
flitos (diabos versus santos), de temas (os sermões do tancia-se em incenso celestial.
Temor e do Amor de Deus) e de metrificação. Indo Em Na Vila de Vitória nada há de equiparável
mais longe, na tentativa de alcançar o âmago, distin- a esta elaboração metafórica que, de resto, concede
guiríamos porventura em ambas os mesmos hábitos «Na Festa de São Lourenço a unidade, puramente
mentais, o mesmo tipo de pensamento. temática, que lhe falta quanto ao mais. Não se es-
Em Na Festa de São Lourenço) notou-o de queça, todavia, a importância assumida na segunda
passagem Alfredo Bosi'", a imagem do fogo que peça pela própria palavra "vitória". Ela reporta-se,
martirizou o santo parece estar na origem da peça, em planos sucessivos e ascendentes, à cidadezinha
formando o seu núcleo central. Mas esse fogo, que em que se dá a representação; à vitória obtida por
a princípio é real, ligado à terra, remete-nos ao fogo ela em seus primeiros anos ("en la nífiez") sobre os
do Inferno, que, sem deixar de ser o que é,já assume indígenas, fato que lhe valeu o nome; à vitória que
ares sobrenaturais, signo do infinito poder punitivo ela pede a São Maurício, seu patrono, coadjuvado
do Senhor. É eterno, por ser também espiritual, além pelo Temor e Amor de Deus, nas lutas que trava:
de material. Essa espiritualização - ou metaforização internamente, contra a Ingratidão, externamente,
crescente - completa-se com o fogo que é a negação contra os "corsários luteranos" e os "pagãos tapuias"
do anterior, o fogo positivo, aquele que sustém o (nome genérico dado às tribos inimigas dos tupis);
santo em seu martírio, neutralizando as chamas da e por fim, já em nível cósmico, às vitórias passa-
grelha ao abrasar-lhe a alma. É o que diz o Anjo, re- geiras do diabo sobre o homem e à vitória sempre
ferindo-se ao sacrifício suportado por São Lourenço: renovada de Deus sobre Lúcifer.
Com um pouco de atenção, consegue-se ouvir
Dois fogos trazia na alma essa espécie de "baixo contínuo" que acompanha
com que as brasas resfria, o desenrolar dos incidentes, reaparecendo em di-
e no fogo em que se assou, ferentes lugares, na boca de personagens diversas:
com tão gloriosa palma,
dos tiranos triunfou. VITÓRIA (implorando ao Senhor):
A vos, mi Dios lloraré,
Esses dois fogos, que salvam e não castigam, y con suspiros del pecho
chamam-se Temor ("um fogo foi o temor / do bravo justicia demandaré.
fogo infernal") e Amor de Deus ("Outro foi o amor Pues "Victoria" me nombré,
fervente / deJesus que tanto amava'). A dialérica, ana- que me guardeis mi derecho.
lisando a palavra em seus múltiplos significados, dos
concretos aos abstratos, dos próprios aos figurados, VITÓRIA (respondendo ao governo):
dos maléficos aos benéficos, transfigurou a derrota Pues que lo quereis saber
do santo em triunfo sobre os "tiranos': o martírio em soyla "Vila de Victoria',
"gloriosapalma' e a morte em vida eterna. Quanto a cuya dignidad y gloria,
esses dois fogos benéficos, eis o que aconselha a peça: pienso, ya debe de ser
venida a vuestra memoria.
Deixai-vos deles queimar
como o mártir São Lourenço GOVERNO (aconselhando Vitória a recorrer ao Temor e
e sereis um vivo incenso Amor de Deus):
que sempre haveis de cheirar Sem estes não pode haver
na corte de Deus imenso. bom governo, nem Victoria.

10 Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, São


Paulo: Cultríx, 1970, P: 26: "Os versos em português [...] trazem
VITÓRIA (acatando a sugestão do governo):
a fala do Anjo que apresenta as figuras simbólicas do Amor e do Sin ellos mi nombre y vida
Temor, fogos, segundo ele, que o Senhor manda para abrasar as
almas, como o fogo marerial abrasara a de São Lourenço [...]".
de "Victoria" vano es,

• 32
• As Raízes do Teatro Brasileiro

Pues, vendendo en la nífiez, de cauim, por exemplo), preparam-se para desafiar


ahora seré vencida o poder de Nossa Senhora. Já vimos cenas pare-
al cabo de mi vejez. cidas, mas esta tem as suas particularidades. O
Inferno acha-se representado por nada menos do
A acepção mais ampla da palavra é exposta por que quatro diabos, reunidos em conciliábulo - o
Vitória num monólogo de que destacaremos, sal- concílio do Mal. Não só um deles preside a sessão,
teadamente, duas quintilhas: ouvindo os demais, dando-lhes a palavra, como
a certo momento todos se sentam, parecendo
Perdió el hombre aquel valor senhores interessados em resolver problemas
que de! sumo Dios tenia, práticos através da livre discussão. Sabemos que
yvencido, obedecia o ato de sentar, quando a personagem nada tem
al Diabo vencedor, a dizer, devendo contudo reaparecer mais tarde,
sin contraste ni porfia. é frequente em tal tipo de peça, resolvendo, para
o autor, o difícil manejo das entradas e saídas de
cena. Assim mesmo, causa espécie, como uma
contradição entre forma e conteúdo, ver perso-
Y aunque el Padre soberano nalidades dramáticas usualmente tão dinâmicas,
su hijo nos envió, de tanta vivacidade verbal e corporal como as
que los cautívos libró provenientes do Inferno, em posição tão estática-
con su poderosa mano talvez os quatro primeiros diabos sentados de toda
y la victoria nos dió. a história do teatro ocidental.
Não existindo antagonista, estando todos os
A palavra "vitória': modulada em conotações presentes de acordo, um deles encarrega-se de re-
variadas, une a história da humanidade (em suas presentar o ponto de vista da Igreja, como sucedia
relações com o sagrado) e as vicissitudes vividas no em Na Festa de São Lourenço. É curioso ouvi-lo
momento pela pequena Vila de Vitória, na sua ba- repreender os colegas, defendendo calorosamente
talha entre a fé e o pecado, finda a qual fará ou não Nossa Senhora:
jus ao nome. A unidade de concepção gira de novo
à volta, se não de um elemento como o fogo, de um - Tu é que não sabes de nada.
vocábulo, que parece ter posto em movimento a
imaginação do autor. A mãe de Deus
Mais duas peças de Anchieta - ou atribuídas está sabendo de tudo.
a ele - chamam a nossa atenção, por motivos Ela se ergue altaneira,
opostOS, aliás: Na Aldeia de Guaraparim, a mais libertando-se de nós,
longa escrita em tupi, por visar de modo especial perdoando os seus filhos.
ao público indígena; Na Visitaçãode Santa Isabel,
por renunciar a qualquer intenção imediatista, Ou exaltando o Senhor:
concentrando-se, como nenhuma outra, nos
mistérios cristãos. Assinalam, por assim dizer, os Eu tremo, desafiei,
pontos extremos da dramaturgia jesuítica: a que se ofendi o Senhor Deus!
volta para fora, para a catequese, e a que se volta Ele é misericordioso,
para dentro, para o culto religioso. O teatro dos pratica sua própria virtude.
catecúmenos e o teatro dos fiéis. Sua mãe é, também, compassiva.
Na Aldeia de Guaraparim (865 versos) começa
sem surpresas. Dernônios, de complicados nomes Um padre da Companhia de Jesus não diria
indígenas, correspondentes ao que supomos me- melhor. Os pecados indígenas são os de sempre: "a
nos a pessoas que a vícios e virtudes (o bebedor bebida, o fétido adultério, mentiras, brigas,ferimentos

• 33
História do Teatro Brasileiro + volume 1

mútuos, guerra': Há, no entanto, uma informação que tes na terra, ou nada esperar de sua misericórdia. A
nos faz sorrir, pondo em evidência os óbices encontra- confissão proporcionava à Igreja, em princípio, o que
dos pela missão jesuítica, no seu empenho em extirpar nenhum sistema autoritário moderno conseguiu: o
os maus "velhos hábitos" da tribo. Alguns índios não conhecimento da totalidade dos ates condenáveis
se importavam com que as suas respectivas consertes efetivamente cometidos na aldeia. a julgamento
os enganassem abertamente com outros homens: celeste iniciava-se na terra, por interpostas pessoas.
a crente subordinava-se ao padre, como este a Deus.
E com as mulheres a original de Na Visitação de Santa Isabel (572
Não protestam, não brigam? versos), escrito em espanhol e do próprio punho
- Até gostam, comam-no! de Anchieta, contém no final o seguinte comen-
Os índios gostam de ficar espreitando. tário: "Esta é a derradeira que o padre José fez em
sua vida, estando já muito doente, o qual se foi a
Parece que o "fétido adultério" não cheirava tão gozar do Senhor aos 9 de junho de 1597". Talvez
mal às narinas dos tupis, como atestam esses casos por isso, por já estar despedindo-se de suas tarefas
de "voyeurísmo" talvez mais infantis que perversos. humanas, é a sua peça mais intensamente religiosa,
A parte propriamente conflitual inaugura-se ao no sentido de buscar o que o cristianismo possui
entrar no palco uma Alma indígena, recém-emigrada de primordial. a motivo da representação, como
do corpo, que será duramente atacada pelos quatro de hábito, encontra-se na terra: a inauguração de
demônios e carinhosamente defendida pelo seu uma Santa Casa, realizada sob os auspícios de Santa
a
Anjo da Guarda e por Nossa Senhora. desfecho, já Isabel, conforme o costume português. enredo éa
se imagina qual possa ser.A nossa curiosidade volve- simples. Um romeiro castelhano quer saber da mãe
-se desse modo para a dialética do pecado e do per- de S. João Batista ("miJuanito': em suas palavras)
dão, cuidadosamente explicitado. Muitos exemplos como ocorreu a visita feita por ela a Maria, sua
concretos são aventados, sem se chegar, no entanto, prima, para anunciar-lhe o próximo nascimento de
a um casuísmo completo. As linhas básicas é que Jesus. Santa Isabel concorda em contar ao romeiro -
ficam bem delineadas. Todo pecado tem remissão, "no todo, mas um poquiro" E de seus lábios flui,
desde que confiado a um padre: em forma de versos (e às vezes de singela poesia), a
história que envolve três grandes mistérios cristãos:
Ainda que os pecados sejam muitos, o da Santíssima Trindade ("Dios uno y trino"), o de
ainda que sejam grandes, Cristo ("Dios y hombre") e o de Nossa Senhora ("a
se a geme os confessa eles são todos madre doncélla"). A mulher que se tornou esposa e
perdoados, aplacando-se a cólera de Deus. mãe de Deus sem perder a virgindade lavou a huma-
nidade de todo o lodo resultante da desobediência
Caso contrário, as consequências podem ser de Adão. Eva metamorfoseou-se em Ave (Maria). À
terríveis, conforme explica a Alma aos Diabos: volta do seu culto aglutinou-se o que o catolicismo
tem de mais consolador. Só ela merece o título
Se um índio esconder
ainda que seja uma só ação, de madre de pecadores,
Deus não o perdoando abogada de culpados,
deixa de considerá-lo coisa sua refugio dos atribulados,
e ele cai em vosso fogo. medicina de dol ores
liberrad de encarcelados.
Só há uma exceção a essa regra. a
pecado omi-
tido ao padre também estará na lista dos perdoados, Mas O elogio da Virgem, confinando por mo-
se se tratar de um esquecimento genuíno, não simu- mentos com a li tania, não esquece de assinalar
lado. Quanto aos outros, só há duas alternativas: ou que a "mãe de misericórdia" é igualmente uma
tudo revelar ao Senhor, através de seus representan- "capitana muy guerrera'. Não bastava, como se vê,

+34
+ As Raízes do Teatro Brasileiro

o amor ao Bem. Ele pouco seria sem a coragem de folhas avulsas, devidamente numeradas, ou desses
levá-lo às últimas consequências físicas. cadernos, admitindo-se que primitivamente seriam
Anchieta, ao penetrar no centro místico do cris- mais de um, uma nota da época, sem assinatura,
tianismo, não parece ter confiado na capacidade afirma que a autoria de Anchieta, em relação a to-
de compreensão dos seus queridos e talvez abomi- dos aqueles textos, era "fama antiga, e constante".
nados selvagens, não recorrendo ao tupi (e nem Especificava ainda qual entre as três letras existen-
mesmo ao português). Nada nos garante, no en- tes nos manuscritos pertencia a Anchíeta, "fato de
tanto, que os mistérios da história sagrada, através que se não duvida":". Teríamos, assim, uma certeza,
dos quais Deus, permanecendo longínquo, adquire a das peças escritas de próprio punho, e uma forte
uma simpática costela humana, não falassem com probabilidade, alicerçada sobre a tradição, para as
maior eloquência à imaginação indígena do que a restantes, devidas à pena de mais dois copistas.
severa moralidade cristã. Este raciocínio complica-se, todavia, quando é
O chamado "caderno de Anchieta" contém lembrado que entre a morte de Anchieta e o envio
ainda outros quatro textos teatrais, de menor exten- do material a Roma medeiam 130 anos, tempo
são e significaçãoI I • Mais proveitoso do que analisá- suficiente para que a memória coletiva se perca ou
-los, todavia, repisando caminhos já trilhados, será se turve. E mais ainda quando se verifica que pelo
passar adiante, abordando certas questões gerais menos uma dessaspoesias era conhecida em Portu-
suscitadas por este tão peculiar teatro. A primeira gal, onde já fora publicada. O códice de Roma, em
delas, naturalmente, diz respeito à própria autoria suma, não mais do que um ou vários cadernos de
das peças. Algumas vezes as atribuímos todas, sem trabalho, sem veleidades literárias, não destinados
aparente hesitação, a Anchieta. Em outras ocasiões à publicação, poderia reunir, ao lado de originais
deixamos pairar sobre tal paternidade literária uma de Anchieta, produções de procedência diversa,
ligeira dúvida. Esse é, efetívamente, o estado atual coligidas, ou por ele mesmo ou por outros padres
do problema - e não cremos que ele, decorridos da Companhia, com o objetívo de aproveitá-las em
quatro séculos, venha a ser modificado pela reve- futuras festas escolares e cerimônias religiosas. O
lação de novos fatos. teatro jesuítico, ainda quando concebido por um
Anchieta morreu em odor de santidade - ou só, era de todos.
quase. Fernão Cardim descreve-o como um ho- Na impossibilidade de se atingir por esse lado
mem simples ("anda a pé': "descalço") que é ao factual resultados definitivos, a solução é recorrer
mesmo tempo "uma coluna grande desta provín- a provas indireta~ de N1. de L. de Paula Martins,
cia". Essa conjunção de virtudes opostas colocava-o que como dissemos se debruçou longamente so-
à parte, acima tanto de seus companheiros quanto bre tais peças, para traduzi-las, quando em tupi, ou
das contingências terrestres, como "um santo de editá-las em português e espanhol modernos, ao
grande exemplo e oração, cheio de toda perfeição, comparar JVaFesta de São Lourenço e JVa Vila de
desprezador de si e do mundo"r:>.. Só esta auréola, Vitória, chegou à seguinte ampla conclusão:
que foi crescendo com os anos, não demorando
em originar as primeiras hagiografias repletas de Este fato é especialmente interessante por contestar suspei-
feitos miraculosos, explica que tenham chegado tas de se encontrarem no caderno de Anchiera, selecionadas
até nós as suas peças e poesias, remetidas que fo- para trabalhos carequétícos, poesias de diferentes autores.
ram a Roma por volta de 173 o para servir ao seu A análise do conjunto dá, pelo contrário, a impressão de
processo de beatificação. Na página inicial dessas um autor único, muito modesto, as ter composto todas,
sozinho, sem pretensões e poucas vezes com preocupações
11 Intitulam-se eles, na ordem em que estão publicados nas literárias, plagiando-se a si próprio, readaptando os seus
Poesias de Anchíeta: Quando no Espírito Santo SeRecebeu uma trabalhos, repetindo frases deles, com variações ou não,
Relíquia das Cnvze Mil Virgens (271 versos);Dia de Assunção)
Quando Levaram Sua/magem a Reritiba (103 versos);Recebi- mas conservando as mesmas ideias, insistindo nas mesmas
mento queFizeram osÍndiosde GuaraparimaoPadreProvincial
Marcial Beliarte (289 versos);Na Festade Natal (496 versos).
12 F. Cardirn, Tratados da TeI7'a e GentedoBrasil, p. 264. 13 Poesias, p. 17.

+ 35
História do Teatro Brasileiro • volume 1

lições, alimentando, na mesma fé, o mesmo carinho pela quanto mais a encaramos como teatro no sentido
Virgem Maria. É possível que, para esse fim, aproveitasse específico da palavra, menos a compreendemos e
pecinhas populares, amenizando, pelo divertimento, a se- menos lhe fazemos justiça. Só tendo em vista as
veridade da moral cristã. Mas isso não afetaria a autoria da condições e os intuitos que guiaram tais peças é que
obra, reduziria a sua originalidade, apenas':', lhes perdoaremos as falhas dramáticas e as incon-
gruências lógicas, nascidas não da ausência de qua-
A esse argumento de ordem interna, o padre lidades intelectuais por parte de Anchieta - estas
Hélio Viotti, grande autoridade no assunto, ao lhe sobravam - mas por seu desinteresse por tudo
prefaciar o volume de Poesias de José de Anchieta que não se relacionasse no palco com o trabalho
publicado em 1954, aduziu outro, de natureza de catequese.
externa. Com exceção de Bento Teixeira, autor Por essarazão mantivemos os títulos de suas pe-
fora de cogitação, ele não via no Brasil da segunda ças tal como aparecem em seu volume de Poesias)
metade do século XVI ninguém com cabedal li- alguns dados pela tradutora e editora. Destacam
terário bastante para responsabilizar-se por uma eles, singelamente, não o fato teatral, o gênero ao
produção teatral e poética tão abundante. "Que qual se subordinariam, e sim o lugar onde ocorre
outro nome" - indaga - "de poeta quinhentista o espetáculo ou a celebração religiosa que se de-
em nossa terra foi até hoje documentadamente seja comemorar. Não nos permitem, dessa forma,
apontado, dentro ou fora da Companhia de Jesus esquecer que, para Anchieta, apenas dois fatores
além do de Anchieta?" E rematava: "Não há por contavam quando pegava da pena: a festividade
que voltar a este ponto. Histórica e cientificamente, em vias de organização, com as suas motivações
portanto, todas as peças contidas neste códice, sem próximas, e a relação Deus-Diabo, Bem-':Mal, in-
discrepância, continuam sendo atribuídas ao padre cumbida de propiciar sentido metafísico a cada
José de Anchieta"I5. pequeno incidente do universo. O homem como
Em conclusão: a autoria de Anchieta, não sendo que desaparece nessa perspectiva cósmica, joguete
um fato ou uma certeza absoluta, é de longe, se que é de mãos poderosíssimas. E os meios dramá-
não a única, a hipótese mais aceitável. Pode-se, no ticos empregados, os recursos teatrais, nunca se
entanto, abrir exceção para esta ou aquela peça libertam de suas funções auxiliares, nunca sobem
(ou poesia), em particular, quando houver provas até adquirir a condição de fins em si mesmos, como
inequívocas para tal. Por que não dar crédito à sucede na obra de arte.
tradição, aceitando como válida "a fama antiga, É expressiva,a essepropósito, a sua indiferença
e constante': se não dispomos, para raciocinar, de por histórias de santos, em sua fase terrena, ou por
outro real ponto de apoio? esses numerosos episódios bíblicos que conferem
Como classificaras peças de Anchieta? Auto é o ao Velho Testamento um cunho humano especial,
gênero em que elas têm sido sempre incluídas e de alimentando a dramaturgia cristã durante séculos.
fato é o que melhor lhes convém, tanto por se liga- O que Anchieta via era, de um lado, indígenas e
rem de alguma forma (que ignoramos em detalhe, colonos europeus, ou tentados pelo Diabo ou seus
nada sabendo sobre a formação teatral do autor) representantes no Brasil; de outro, Anj os, Santos,
à tradição ibérica, como porque o vocábulo, não Nossa Senhora. Sobre eles falava mais em termos
significando mais do que ato, tem amplitude capaz de sermão, de pecado e indulto que de criação
de abranger toda uma variedade de textos impreg- teatral, sujeita a regras, que ele provavelmente não
nados de cristianismo e derivados dos espetáculos conhecia, nem intuía com a vocação do verdadeiro
medievais. ':Mas não devemos insistir demais, em dramaturgo.
nosso entender, nesta filiação, como se a sua obra Não colocamos em dúvida a autenticidade de sua
cênica não passasse de um capítulo igual aos outros veia poética. Os versos, geralmente sob o formato
da história do teatro. Pensamos, ao contrário, que da quintilha espanhola de sete sílabas,vinham-lhe à
pena com facilidade (e às vezes felicidade), obede-
]4 JVa Yila de YitóriaeNa Visitação deSanta Isabel, P: I r.
15 Poesias, P: xxv-xxvr. cendo a uma tendência natural do seu espírito.
• As Raízes do Teatro Brasileiro

Diríamos mais: ele pensava como poeta, verbal- por que Anchieta passa, na mesma personagem e
mente, fazendo o discurso girar em torno de ima- situação dramática, de uma língua a outra. Se oca-
gens, metáforas. É visível o seu gosto pelo jogo de sionalmente o próprio texto justifica a mudança -
palavras, pelos torneios paradoxais da frase, desde e já vimos exemplos disto -, com certo humor e
, que não quebrem a lógica interna do pensamento. usando da licença poética, em Outros trechos tal
A Ingratidão, Na Vila de Vitória, gaba-se de liberdade linguística afigura-se total, no sentido
parir a cada dia sem nunca parir de todo, já que se de prender-se unicamente ao arbítrio do escritor.
renova incessantemente ("cuantas veces ha pecado . Todas essas qualidades poéticas, todavia, não
/ tantas veces pares tu"), do mesmo modo que os perfazem um autor teatral. Se o auxiliam, não subs-
santos martirizados, explica o Temor de Deus, ven- tituem os dons característicos do dramaturgo, o de
cem a morte ao morrer: criar personagens autónomas, com vida própria,
relativamente desligadas do autor, e o de passar do
Elias vencerán la rnuerte, abstrato ao concreto - mesmo quando se deseja
con nuestra ayuda y favor, exprimir o abstrato - através das invenções do
porque, con temor y amor enredo. No fundo, Anchieta não dominava outro
sufrieram, con pecho fuerte, recurso cênico a não ser o diálogo, limitando-se,
la muerte por su amor. em certas peças, a desdobrá-lo - quatro diabos, por
exemplo, ou dois santos, em vez de um só.
Devido a essas sutilezas, essas inversões dialé- Esse é um dos motivos por que não concorda-
ticas, em que alguma coisa se transforma em seu mos com os que enxergam similaridades entre o
contrário, ele já foi suspeitado de maneirismo e teatro grego (ou medieval) e a dramaturgia jesuí-
apontado como precursor do barroco. Não nos tica. Os três, é verdade, assentam-se sobre a sacra-
parece descabido, contudo, lembrar que o próprio lidade, pelo menos de início.Mas tanto em Atenas
exercício da escolástica medieval, com os seus fa- quanto na Idade Média o teatro é um gênero a ser
mosos e engenhosos distinguo, a sua preocupação inventado (ou reinventado), o que se dá a partir
em esmiuçar cada termo, analisando-o em suas de rituais religiosos. Já no Brasil o que houve foi
diversas denotações e conotações, preparava a apenas o aproveitamento de uma forma teatral
inteligência clerical para que ela se movimentasse existente, o auto, para objerívos de catequeses. No
com desembaraço dentro do universo dos concei- primeiro caso, cria-se, no segundo, usa-se o teatro.
tos. Talvez não fosse outro o travejamento oculto A Companhia de Jesus, de resto, tomou todas
dos bons sermões literários. as precauções para que os seus espetáculos não
~anto à língua, Edith Pimentel Pinto, que degenerassem em arte profana, apresentando-
estudou com vagar e competência os aspectos lé- -os em latim (com exceção concedida ao Brasil),
xicos e sintáticos (e não apenas estes) de Anchieta, proibindo o tema do amor humano, excluindo a
a propósito de Na Vila de Vitória, concluiu que o mulher do palco. Em consequência, assim como
seu português era o então corrente nas camadas cul- floresceu, extinguiu-se sem deixar descendência
tas, estando mais próximo de Camões que de Gil o teatro jesuítico em terras brasileiras. Não tendo
Vicente. Também a alternância entre os dois idio- havido outro santo, outro candidato à beatificação,
mas ibéricos pouco fugiria aos hábitos literários desapareceram com o tempo os textos dramáticos
da época, embora o escritor jesuíta incline-se de porventura escritos por membros da Companhia,
preferência para a sua língua materna, o espanhol, antes e depois da morte de Anchieta.
o que legitimaria a frequência com que ela surge Nada disso, evidentemente, diminui a impor-
em nossas citações'". Não é fácil, aliás, entender tância dó fato para a história do Brasil, mais que
para a história do teatro. E aqui chegamos, como
16 CE O Auto da Ingratidão, São Paulo: Conselho Estadual de
Arte e Ciências Humanas, 1978, P: 140-147, 153-157,162-163.
termo derradeiro, à questão indígena, formulada,
No mesmo volume, sempre sobre o teatro de Anchlera, em linhas
paralelas ou suplementares à nossa, consulte-se, com especial peça, p. 201-208; sobre a figura do diabo, p. 222-230; sobre o
proveito: sobre a representação, p. 199-201; sobre a estrutura da auto como gênero teatral, p. 233-239.

• 37
História do Teatro Brasileiro + volume 1

infelizmente, antes como perguntas que como Mas enquanto jesuítas, homens de religião, res-
respostas. De que maneira encarava Anchieta o ponsáveis pelo êxito da catequese, inspirados pela
seu naturalmente indisciplinado rebanho nativo? mais estrita disciplina e ortodoxia, ambos não po-
Seguiria Santo Agostinho, abominando o pecado diam ir ao encontro dos índios e de encontro a eles
e amando o pecador? Ou transferiria em algumas senão com a ideia de aniquilar-lhes toda a singulari-
ocasiões a abominação de um para outro? dade, de abolir neles tudo o que os diferenciasse dos
A verdade é que a missão dos jesuítas tinha europeus. Esse processo, de substituição de cultu-
proporções gigantescas. Se aos colonos portugue- ras, através do qual emergiu penosamente o Brasil,
ses competia conquistar a terra, subjugando-lhes foi um bem? Foi um crime contra a humanidade?
os habitantes, cabia aos padres uma tarefa ainda Existiriam alternativas viáveis? Teria sido melhor,
mais árdua: sujeitar a alma indígena. Anchieta segundo a sugestão poética - e gaiata - de Oswald
intimida-a constantemente, no palco, com as cha- de Andrade, se, em vez do português ter vestido o
mas do Inferno, pretendendo dobrá-la pelo terror. índio, o índio é que tivesse despido o português?
Mas não haveria no mais íntimo do seu coração, A resposta escapa a nossos limites e a nossas
animando-o a persistir apesar de tudo, um ímpeto limitações. Uma coisa é certa, porém. Não seria
de afeto, uma onda de generosidade que o levava a justo debitar a um só homem, chame-se ele José de
não transigir com o índio exatarnente para salvá- Anchieta, ou a um grupo de homens unidos pela fé
-lo? Não constituirá preconceito moderno este católica, a autoria de um vastÍssimo projeto, tanto
que nos faz acreditar só nos sentimentos de sinal religioso quanto militar, tanto político quanto eco-
positivo, de expansão, não de repressão, como fonte nômico, que no século XVI era o de toda a Europa
de atividade criadora? Em épocas dilaceradas pela e para toda a América.
ideologia religiosa ou poética não será o ódio ao
Mal um incentivo tão forte e tão saudável para a
personalidade quanto o amor ao Bem?
Seja como for, julgamos perceber em seus escritos,
como nos de Fernão Cardim, um duplo, e até certo
ponto contraditório, impulso. Enquanto homens de
inteligência e cultura, buscavam ambos penetrar no
mundo primitivo que se descortinava a seus olhos 2. ENTREATO HISPÂNICO
surpresos de europeus com o intuito de descrevê- E ITÁLICO
-lo, de compreendê-lo por dentro. Deve ter sido,
pelo menos em parte, a pura curiosidade científica NestaAmérica, incultahabitação anti-
gamentede bárbaros índios) mal sepodia
que induziu Anchieta a compilar a sua pioneira gra- esperar queasMusassefizessembrasileiras.
mática de língua tupi e incitou Cardim a coligir as
Manuel Botelho de Oliveira
n~erosas informações que puderam ser editadas no
século passado sob o título, não mentiroso, de Tra- I
tados da Terra e Gente doBrasil. Sem o saber, os dois
inscreviam-se entre os nossos primeiros etnógrafos e A expectativa histórica, passando-se de um século a
antropólogos. Provas deste interesse pelo indígena é outro, em países como o Brasil, que nasciam para a
que não faltam nos autos de Anchieta, nos quais a civilização europeia, seria a de crescimento, mesmo
ingapema concorre com a espada cristã, ao passo que se descontínuo. Não foi o que sucedeu. Frente às
vocábulos castiços como "cruz': "castelhano" e "Lou- descrições parateatrais de um Fernão Cardim e
renço" veern-se transformados, inesperadamente, aos oito textos restantes de Anchieta, sobre os
pela ausência de fonemas locais equivalentes, em quais assentamos o pé como sobre terra firme, o
"curuçá', "kasiána" e "Rorê" Ninguém mais do que século XVII nada oferece além de notícias esparsas
ele conhecia a face selvagem do país a que dedicara a e sucintas, ora de autores nacionais cujos nomes se
vida, dos vinte anos em diante. conservaram mas não as suas peças, ora de "comé-
• As Raízes do Teatro Brasileiro

dias" (no amplo sentido espanhol), que teriam sido


encenadas sem que se saiba quem as escreveu. Tudo
não chegando a somar, segundo os cálculos mais MUSICA 1)0

otimistas, uma dezena de representações.


Tem-se alegado, para justificar esse colapso cê-
PARNASSQ
DIVID IDA EM QU A TRO COROS

nico, as guerras travadas em defesa da terra contra


franceses e holandeses.Mas estas, sob formas pouco DE RIMAS
PORTUGUESAS, CASTELHA-
diversas, já se prenunciavam desde o século prece- nas, Italianas, & Latinas.
COM SE.U 1JESCANTE COMiCO IJ{.E1JUSl:
dente, com o agravante de que então o perigo vinha dom duas Comtdiar,
com frequência igualmente do interior do país. O OFFERECIDA
AO EXCELLENT1SS1MO SEr-;HOR DOM NUl':O
AJuros Pore)·r. do Mellc , Duque do C.d'TOI. &c.
que faltava agora, ao que parece, era não apenas a E ENTOADA
'ELO CAPITAM MOR MANOEL BOTrLHO
decidida vocação literária de um Anchieta - e o de Oliveyra.Fldalgo da Caza dcSua
argumento reforça a tese de sua autoria - mas tam- Magcfiadc.
L I S BOA.


bém a crença de que o gentio podia ser "domado" (a
expressão é de Cardim) através do teatro. Encerrada
a fase heroica da catequese (e não de todo: o jesuíta
português Luís Figueira, mestre de tupi e autor (. . . .tIil"l~~6I'".... ~~lI!jeto.IiSEil)
~!Offi§n~~. M IG UE~ MA N ESC.A!., lmprdTordo
~:2Pf!i~l":.luJ!lpd= .Il 0 ! : · ..
de um Diálogo de Igreja Nova de Maranhão) foi
morto pelos índios na ilha de Marajó em 1643), a
tendência, nos colégios mantidos pela Companhia
de Jesus, seria a das representações caírem na ro- Folha de rosto da primeira edição de Música do Parnaso.
tina, n'ão transpondo, a partir de 1584, os limites
estreitos que lhes impusera a Ratio Studiorum. Tra- "comédias" em homenagem ao casamento de Carlos II
gédias e comédias, escritas em latim (o que sempre da Inglaterra com a infantaportuguesa D. Catarina19.
admitiu exceções), deviam ser "muito raras': não se Esse pouco é quase tudo que se sabe sobre o
permitindo nem encenações dentro das igrejas, nem teatro do século }"''VIl, se excetuarrnos um fato de
personagens ou vestimentas femininas em cena'? alcance mais literário que propriamente dramático.
Os espetáculos jesuíticos certamente conti- Peças escritas por um brasileiro, não de adoção,
nuam, não havendo motivo para que cessassem como Anchieta, mas de nascimento e domicílio, são
tão abruptamente. Como provam, de resto, alguns pela primeira vez publicadas em Portugal. Homem
documentos, referentes à Bahia, ao Pará e ao Mara- erudito, dominando em seus versos quatro línguas
nhão. Mas, amenizada a fúria catequética, abran- (português, espanhol, italiano, latim), bacharel for-
dada a surpresa do encontro inicial com a cultura mado em leis pela Universidade de Coimbra, poeta
indígena, essa dramaturgia perde impulso, reduz-se revalorizado pelo renascimento crítico do barroco 20,
à sua verdadeira dimensão de exercício escolar. Já o escritor baiano Manuel Botelho de Oliveira (1636-
não interessa tanto, nem como realização, nem 171 I) declarava-se admirador, entre os modernos,
como notícia digna de registro. na Itália, do "grande Tasso" e do "delicioso Matino",
Em compensação, começam a surgir, ainda muito e na Espanha, do "culto Gôngora': que merecera
timidamente, os espetáculos cívicos comemorativos. "extravagante estimação': e do "vastíssimo Lope":".
No Rio de Janeiro, em 1641, a restauração da mo- Música do Parnaso (Parnasso no original), obra
narquia portuguesa dá ensejo à encenação de "uma editada em 1705, recolhe toda a sua produção poética
comédia":". E em 1662, na Bahia, a Câmara de Sal-
vador toma providências relativas à representação de 19 Affonso Ruy, História do Teatro na Bahia, Salvador: Livraria
Progresso, 1959, p. 23·
20 CE Natália Correia, Antologia da Poesia do PeríodoBarroco,
17 L. V. Gofflor, Le 'Ibéâtre au collêge, Paris: Honoré Charn- Lisboa: Moraes, 1982, P: 225.
pion, 1907, P: 92. 21 Manuel Botelho de Oliveira, Música do Parnaso, prefácio e
18 L. Hessel e G. Raeders, O Teatro no Brasil: Da Colônia ti organização do texto de Antenor Nascentes, Rio de Janeiro: Edi-
Regência) Porto Alegre: UFRGS, 1974, p. 19-20. ções de Ouro, 1957, p. 16.

• 39
História do Teatro Brasileiro • volume 1

e ainda duas comédias, provavelmente jamais repre- No siendo el objeto negro,


sentadas, redigidas ambas em espanhol e talhadas No siendo el remo partido.
pelo figurino inconfundível da comédia de capa y
espada do Século de Ouro. Portugal já se separara Se assim é no campo das coisas materiais, como
da Espanha, desde 1640, mas dramaticamente con- não será no terreno movediço das afeições e das
tinuava caudatário do seu poderoso vizinho. O uso paixões, onde tudo é possível, até mesmo a ami-
do castelhano para o diálogo teatral não constituía, zade - Hay AmigoparaArnigo - suplantar o amor?
portanto, anomalia ou excentricidade, podendo Amor, Enganos) y Celos (grafado zelos no origi-
Botelho de Oliveira, a esse respeito, louvar-se no nal), que se passa na Itália, leva adiante essejogo dia-
exemplo de inúmeros dramaturgos e comediógrafos lético entre mentira e verdade. Dois pares amorosos
portugueses, tanto entre os antecessores do século são lançados num "obscuro labirinto': de desencon-
XVI, um Gil Vicente, um Camões (para não citar tradas identificações, causadas de propósito por
Anchieta), como entre os contemporâneos". uma das mulheres, que usa o nome de outra, numa
O barroco alcança nas duas peças do poeta sarabanda de confusões que dura enquanto o autor
baiano um dos momentos de maior expansão no não vem desenlaçar o que ele mesmo enlaçara, aliás
Brasil, seja pelo torneio precioso da frase, pela sé- de modo bastante artificial. O título deriva também
rie de engenhosidades e agudezas verbais, seja pelo do teatro espanhol, repetindo, conscientemente ou
substrato do pensamento, sempre interessado no não, um verso de Lope de Vega,o "vastíssimo Lope"
conflito ambíguo entre ser e parecer. que aconselhava às damas falar
Hay Amigo para Amigo (resposta, como já se
observou, aNo HayAmigo para Amigo) de Rojas de amor, de enganos, de celas.
Zorilla) tenta nos convencer de que um homem (La Dama Boba) AtO III, cena VII)
apaixonado, mesmo sendo um perfeito caballero
espanhol, é capaz de renunciar à mulher amada, Como se sabe não é outra - ciúmes, quiproquós,
cedendo a um amigo, movido não pela leviandade paixões - a substância que recheia habitualmente
e inconstância amorosa, como todos supõem, mas as comédias de capa e espada castelhanas, das quais
por um exacerbado sentimento de amizade. No fi- Botelho de Oliveira recebeu tudo pronto: ritmos,
nal, a conclusão é dupla: admiração pelo sacrifício da redondilha ibérica a formas eruditas de origem
por ele efetuado em silêncio e perplexidade pelo italiana;,personagens (discretas, os amos; graciosas,
caráter tantas vezes enganoso da suposta realidade. os lacaios};pares de rimas que se atraem como na-
Esta segunda parte, de alcance universal, chega morados de longa data (deseos-enleos) celos-recelos,
a exemplificar-se: enojos-ojosí, associação entre o imenso cosmo e o
pequeno microcosmo do coração humano (compa-
Mírase un astro en el Cielo, ração dos sentimentos com o sol, as estrelas, o mar, a
Y da de pequeno indicias; tempestade); truques de enredo (a pessoa que tudo
Mírase un ave en el aire, ouve escondida); jogos paradoxais do pensamento
Y muestra un colar Lucido; (;.Ha deserloqueno veo? ;.Loqueveo noha deser?).
Mírase un objeto lejos, Tudo, exceto, infelizmente, o que faz uma peça
Y entonces negro se ha visto; funcionar no palco: o senso do tempo dramático,
Mírase un remo en el agua, a movimentação cênica, a aparente espontaneidade,
Y parece quebradizo; uma certa verossimilhança mesmo dentro da mais
No siendo el astro pequeno, ousada fantasia. Resta assim, do barroco, o lado
No siendo el colar preciso, pior, aquele que ressalta quando o projeto artístico
falha: o cerebralismo, a indiferença ou o desapreço
pela realidade, a afetação erigida em princípio esti-
lístico, a literatura concebida em circuito fechado,
22 CE. Luiz Francisco Rebello, História do Teatro Português,
4. ed., Lisboa: Europa-América, 1969, p. 63-66.
como entretenimento para iniciados.

• 40
• As Raízes do Teatro Brasileiro

II agastado. Cantou-se a missa durante a qual todas as freiras


comungaram",
No transcorrer do século XVIII o teatro começa a
despontar. De início mais ao norte, tendo como Em outra festividade o teatro entrou de maneira
centro Salvador, na Bahia, sede do Vice-Reinado mais discreta:
do Brasil. Depois, caminhando para o sul, rumo ao
Rio de Janeiro, seguindo o fluxo político e econô- o více-rei nos convidou para a festa de São Gonçalo do
mico. As duas cidades eram importantes portos de Amarante que se celebrava no interior. Para lá nos dirigi-

mar. Em direção ao interior a atividade dramática mos. Ao redor da igreja uma multidão de dançarinos pu-
só se deslocava naquelas capitanias, Minas Gerais, lava ao som de seus violões. No interior da mesma ecoava
Mato Grosso, onde a descoberta do ouro ou de pe- plenamente o nome do santo. Assim que chegou o více-reí,

dras preciosas gerara riqueza e improvisara núcleos foi obrigado a dançar e a pular sob pena de ser considerado

urbanos da noite para o dia. anticristão. Também nós tivemos de dançar. Era coisa bem

A Igreja continua a desempenhar papel rele- divertida ver, dentro de uma igreja, dançarem, misturados,

vante, significando sempre uma pequena ilha de padres, freiras, monges, cavalheiros e escravos e a gritarem

saber (ou de alfabetização) perdida num mar de em plenos pulmões: Viva São Gonçalo do Amarante! A

ignorância. Uma religiosidade difusa e mal com- seguir, atiraram-se uns aos outros estatuetas do santo.

preendida infiltrava-se de resto em todas as ini- A igreja foi construída sobre um outeiro que se estende

ciativas da Colônia, esbatendo as fronteiras entre até as bordas do mar. Está rodeada de arvoredo, sob o qual

o sagrado e o profano, não respeitando sequer o se armaram tendas, repletas de mulheres de vida fácil: só

território defeso da sexualidade. D.João v, em Por- faltavam bacantes nessa festa. As tendas para o více-rei ha-

tugal, não demonstrava menos a sua devoção ao viam sido armadas sob um laranjal, e nelas se comeu à tripa

amar abadessas do que ao construir monumentais forra por três dias. No primeiro, maus ateres representaram

conventos. Tudo era ou podia ser religião, desde aí uma comédia medíocre, La Monja Alférez24•

que não o fosse plenamente.


Um viajante francês que passou pela Bahia, em Não é de teor diverso o depoimento de outro
1717-1718, deixou consignado o seu espanto, entre francês, quarenta anos mais tarde, em 1757, refe-
prazeroso e escandalizado, pelo que presenciou: rindo-se ao Rio de Janeiro:

No dia de Natal, fomos convidados pelo více-rei para as- Assisti, certo dia, a uma comédia burguesa em que vários

sistir à Missa do Galo, todos os oficiais da guarnição esta- frades davam a mão a amabilíssimas penitentes. A esta peça

vam presentes e o více-rei os brindou com uma soberba recheavam obscenidades em bando, mas tal fato não me cau-

refeição. Fomos depois à igreja onde não esperávamos, ab- sou a menor surpresa. Tudo isso conferia perfeitamente com

solutamente, assistir a uma farsa. Jovens religiosas haviam a fácies da colônia. Mas o que me causou espanto foi ver du-

aprendido canções jocosas para apresentar naquela noite; lá rante os entreatos duas meninas fantasiadas de anjos, que se

estavam elas, sentadas sobre uma tribuna aberta e um pouco puseram a entoar a ladainha de Santa Ana. Essa extravagância
elevada, cada uma com seu instrumento, harpa, tamborim procede certamente da ideia que tem essa gente de que tudo

etc. Dado o sinal, cada uma delas cantava uma canção, e se arranja quando se reza um terço ou canta uma ladainha".

essa mixórdia de instrumentos e vozes em desacordo nos


provocou grande vontade de rir. Pulavam elas; dançavam, A tais manifestações teatrais ou parateatrais, de
parecendo animadas por algum duende. Depois fez-se natureza privada e repercussão restrita, com mar-
silêncio e uma delas, erguendo-se, leu para os presentes gem para improvisações pessoais e libertinas, con-
um relato satírico das aventuras galantes da corte do vice- trapunha-se outro tipo de espetáculos. Promovidos
-rei, Após novo silêncio, retornou-se a algazarra de antes.
A seguir, uma das religiosas, enamorada do sobrinho do 23 L. Hessel, G. Raeders, O Teatro no Brasil: Da Colônia d
Regência, P: 31-32.
více-rei, dirigiu-lhe as mais ternas recriminações por suas
24 Idem, p. 32-33.
infidelidades, e com isso o cavalheiro retirou-se da igreja, 25 Idem, P: 41-42.

• 41
História do Teatro Brasileiro • volume 1

pela Igreja e bem organizados, encaixam-se sem vir em espanhol. Que não se tratava de fatos isolados
dificuldade, em proporções relativas aos recursos parece provar um trecho de Francisco Adolfo de
locais, dentro do perfil das grandes festas barrocas Varnhagen, publicado originalmente em 1850.
ibéricas". A apresentação de peças completa nesses
casos uma programação ambiciosa, que empenha Em janeiro de 1717 [escreveu ele, num dos primeiros recen-
toda a comunidade, comportando, eventualmente, seamentos feitos da poesia nacional] sabemos que se repre-
além do teatro, cavalhadas, touradas, combates si- sentaram na BahiaBl Conde deLucanore os A.lfectos de Odio
mulados, mascaradas, execuções musicais, fogos de )' Amor de Calderón; em 1729, com a notícia do casamento
artifício, desfiles de carros alegóricos e triunfais. dos príncipes (de Portugal e Espanha), representaram do
Minas Gerais viu no século À'VlII mais de uma mesmo Calderón - Finezacontra Fineza;La Fiera, elRayo
destas comemorações direta ou índiretamente re- )' La Piedra; e El Monstruo deLosJardines; e além disso La
ligiosas, nas quais compareciam não só divindades FuerzadelNatural; e BlDesdéncon elDesdén, de Moreto".
mitológicas (Apolo, Mercúrio), como "figuras ves-
tidas à trágica' (e sabe-se lá o que isso significava). Somos tentados a concluir, em face dessa amos-
Quanto ao teatro, não faltava um lugar maior ou tra do repertório, que o castelhano mantinha-se
menor reservado para a apresentação de "comédias" ainda como língua corrente no Brasil, ao menos
ou de "um ato cómico'?", sempre naquele sentido nos círculos literários, e que o nosso panorama
ibérico que se traduz em português moderno pela teatral, apesar de fragmentário, não deixava de
denominação genérica de peça de teatro. oferecer uma certa coerência, na medida em que
Foi assim que Vila Rica, a arual Ouro Preto, que espelhava o da Europa. Rojas Zorilla e AgustÍn
fazia então jus ao nome, festejou em 1733 a trans- Morero, com efeito, citados ao lado de Calderón,
lação do Sacramento Eucarístico de uma igreja a formam com ele o que historiadores modernos do
outra, celebrando ao mesmo tempo, com satisfação teatro espanhol chamam de Ciclo Calderón de la
provavelmente não menor, a sua recém-adquirida Barca, subsequente ao Ciclo Lope de Vega3I • São,
condição econômica de "a pérola preciosa do Bra- os três, escritores da segunda geração do Século de
sil". O padre português que descreveu em linguagem Ouro, que chegavam aos tablados nacionais - se
eufórica o acontecimento, Simão Ferreira Machado, é que só então chegavam - com atraso de mais de
num opúsculo intitulado Triunfl Eucarístico) saído cinquenta anos.Mas, curiosamente, não fora da vi-
dos prelos de Lisboa em 1734, relata que o tablado gência artística de suas obras, dado o imobilismo
"das comédias se fez junto da igreja, custoso na fá- que tomara conta dos palcos espanhóis.
brica, no ornato, e aparência de vários bastidores [ou Outras tendências só surgirão com o apareci-
seja, cenários]: viram-se nele insignes representantes mento de um novo gênero, a ópera italiana, e de um
[ou seja, ateres] e gravíssimas figuras [ou seja, per- novo mestre, Metastasio. A novidade vinha de Por-
sonagens]: foram as comédias El Secreto a Võzes; El tugal, como de costume. Mas, desta vez, com o aval
PríncipeProdigioso; El Amo Criado". A primeira do poder monárquico, interessado, desde a ascensão
peça é de Calderón de La Barca, a terceira de Rojas ao trono de D. José I, em não ficar devendo muito às
Zorilla". Príncipe Prodigioso pertence ao repertório demaiscortes europeias em questão de brilho musical.
espanhol, de autor desconhecido". Um alvará concedido pelo governo em 1771
Não é casual a presença em palcos brasileiros de aconselhava
Calderón, nem a circunstância do nome das comédias
o estabelecimento dos teatros públicos bem regulados, pois
26 Cf.José María Díez Borque (comp.), Teatroy Fiesta en eL
Barroco, Ediciones dei Serbal, 1986. deles resulta a todas as nações grande esplendor e utilidade,
27 Affonso Ávila, O Teatro emMinas Gerais. SécuLo XVIII e XIX, visto serem a escola, onde os povos aprendem as máximas
Ouro Preto: Prefeitura Municipal de Ouro Preto, 1978, p. 5.
28 Cf. idem, O Lúdico e as Projeções do Mundo Barroco, São 30 FLorilégio da PoesiaBrasileira, tomo I, Lisboa: Imprensa
Paulo: Perspectiva, 1971, p. 121. A identificação de amaria das Nacional, 1850, p. XXXIV. Foram feitas pequenas correções de
peças foi feita porJosé Ferreira Carrato. grafia e pontuação.
29 Cf. José Oliveira Barata; Antônio José da Silva, v. I, Coim- 31 Francisco Ruiz Ramón, História del Teatro Espaiiol, 2. ed.,
bra:Universidade de Coimbra, anexo n~ 380, 1985. Madrid: Allanza-Edirorlal, 1971, p. 164.

• 42
• As Raízes do Teatro Brasileiro

sãs da política, da moral, do amor da pátria, do valor, do comparecer ao teatro rodas as vezes que a composição não
zelo e da fidelidade com que devem servir aos soberanos, e é de Metastasio l>'
por isso não só são permitidos, mas necessários".
Mas deve-se, mesmo assim, sem subscrever
Entre 1760 e 1795, datas aproximadas, sob a in- palavras que, desejando ser laudatórias, não esca-
fluência da política de despotismo esclarecido do pam ao ridículo, assinalar a encenação ocasional
Marquês de Pombal, são construídos teatros na de óperas de Metastasio em regiões tão apartadas
Bahia, no Rio de Janeiro, em Vila Rica (este ainda entre si como Pernambuco e Mato Grosso. Além,
em funcionamento, o mais velho da América do claro está, do Rio de Janeiro, onde o culto ao seu
Sul), no Recife (Pernambuco), em São Paulo e em repertório, iniciando-se por volta de 175 o, entrou
Porto Alegre (Rio Grande do Sul). Com lotação vitoriosamente pelo século XIX adentro.
em torno de 3 5o lugares, esses teatrinhos ficaram Nenhuma homenagem ao autor de Dido Aban-
logo conhecidos como Casa da Ópera. donada) contudo, é tão significativa quanto a ad-
Quando sefalavaem ópera, nessaaltura do século, miração que lhe votava um poeta como Cláudio
pensava-se imediatamente em Pietro Metastasio, Mancel da Costa (1729-1789). Segundo seu pró-
até mesmo no Brasil. Em 1767, mais um viajante prio testemunho, ele traduziu e foram representa-
francês (abençoados os viajantes europeus, é através das em Vila Rica sete obras de Metastasio, entre
deles que conseguimos colher algo de mais con- dramas para música, ações teatrais e ações teatrais
creto sobre as representações coloniais) deu as suas sacras: Demétrio, Atilio Regulo)Artaxerxes (as três
impressões sobre os espetáculos a que assistiu no de maior sucesso público), Dirceia (Demofoonte)
Rio de Janeiro, cidade pouco antes alçada a sede em italiano), O Parnaso Acusado (Il Parnaso Ac-
do Vice- Reinado. cusato e Difeso) em italiano),]osé Reconhecido e
O Sacrifício de Abraãon. Todas essas traduções
Numa sala assaz bela - escreveu Bougainville, oficial gra- se perderam, com exceção talvez de duas-". E de
duado da marinha francesa que percorria o mundo co- sua produção dramática original só uma peça
mandando uma fragata - pudemos ver as obras-primas subsistiu - a única, aliás, de toda a dramaturgia
de Metastasio, representadas por um elenco de mulatos, e brasileira do século XVIII. O Parnaso Obsequioso»,
ouvir os trechos divinos dos mestres italianos, executados escrito em 1768 para comemorar o aniversário
por uma orquestra má, regida por um padre corcunda em do governador de Minas, toma como modelo, até
rraj e eclesiástico!'. no título, as ações teatrais do poeta italiano, que
se diferenciavam de suas óperas, ou "dramas para
Supõe-se que esse regente seja o padre Ventura,
mencionado por outros documentos. Ele seria, 34 Carla Inama, Metastasío e i poeti arcadi brasiliani, São Paulo:
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1961, Boletim n. 23 I,
nesse caso, o primeiro diretor de uma companhia P: 5. A tradução é nossa, do italiano.
regular de teatro em território brasileiro - e como 35 Idem, P: 61.
tal tem sido muitas vezes celebrado. 36 Sob o título Demojoonte em Trdcia, a Casa dos COntos de
Ouro Preto publicou, num opúsculo sem data, o que se pretende
Basílio da Gama, autor do Uraguay, estavalonge ser a óperaDemofoonte de Merasrasío, "adaptada ao teatro portu-
de exprimir a verdade quando, ao enviar ao mestre guês por Cláudio Manoel da Costa". Tarquínio J.B. de Oliveira,
no Preâmbulo, diz ter encontrado essa tradução, juntamente com
italiano o seu poema épico, afirmou enfaticamente: -a de rlrtaxerxes, no Arquivo Diocesano de Mariana. A cópia,
feita "em fins do século xvrn, ou início do seguinte", estaria em
mau estado de conservação, além de conter "cincadas do copista,
A homenagem da inculta América é bem digna do grande despreocupado da posição correta das palavras no verso, assim
Merastasio. Este nome é escutado com admiração no fundo como da grafia original ou do seu exato sentido". Em face dessas
circunstâncias achamos mais prudente adiar toda e qualquer aná-
de nossas florestas. [...] É belo ver as nossas índias chorar lise para quando se fizer uma rigorosa edição crítica da obra, ainda
com o vosso livro na mão e fazer ponto de honra em não mais que a tradução, se realmente de Cláudio, nada acrescenta,
apesar do seu interesse histórico, nem à gloria do poeta mineiro,
nem ao que se sabe sobre o teatro da época.
32José Galante de Sousa, O Teatro no Brasil, Rio de Janeiro: 37 CE Caio de Mello Franco, O Inconfidente Cláudio Manoel
MEC/INL, 1960, v. r, P: 109. da Costa, Rio de Janeiro: Schmidt, 1931. Até esta data a peça
33 Idem, P: 113. mantinha-se inédita.

+ 43
História do Teatro Brasileiro + volume 1

música", entre outras coisas, pela extensão menor "cordel" por serem vendidas nas ruas ou ficarem ex-
e pelo caráter francamente áulico. Eis como Carla postas nas lojas presas por barbantes. Em literatura,
Inama coloca a questão: o vocábulo tomou logo um sentido popularesco e
pejorativo. Mas em teatro, muitos autores, entre
o esquema destas ações é sempre o mesmo, do modo como os mais ilustres, Moliere, Voltaire, Goldoni (os
Cláudio o seguiu: Apolo chama em conselho deuses, musas, três encenados ocasionalmente no Brasil), encon-
deusas e pede-lhes que se enfrentem em tecer loas a uma de- travam em tais folhetos, graficamente pobres e de
terminada pessoa, altamente colocada, no dia em que trans- duvidosa idoneidade editorial, um veículo rápido
corre o seu aniversário ou celebram-se as suas núpcias'". e barato de difusão em língua portuguesa.
Uma espécie de festival rústico de teatro realizado
Dito isto, nada mais resta senão deplorar que do em Mato Grosso, sobre o qual existem informações
esforço criativo de um grande poeta só haja chegado seguras, permite que se compreenda melhor como
à posteridade uma pecinha de circunstância, "para se dava a passagem desse repertório europeu para o
se recitar em música': que fugiria às regras do gênero Brasil, em seu mais modesto nível artístico. Cuiabá,
se não fosse estritamente acadêmica e convencional. cidade distante do mar, de acesso difícil, possuía, não
A palavra ópera, por sua vez, não deve despertar obstante, uma apreciável tradição teatral, legado da
excessivas reminiscências europeias. No contexto mineração. Com o propósito de homenagear uma
nacional, como no português, aplicava-se, se não a alta autoridade judiciária, formaram-se em 1790
todas, a qualquer peça que contivesse números de vários conjuntos amadores - ou de "curiosos': na
canto, executados de conformidade com os recursos linguagem da época -, que acabaram por apresentar,
musicais de cada cidade. Os "dramas para música' durante um mês, cerca de uma dezena de espetáculos.
de Metastasio prestavam-se, de resto, a tratamentos O nível social dos ateres e cantores improvisados,
mais livres quantO à proporção entre o cantado e de acordo com o grupo em que amavam, compreen-
o falado, podendo ser lidos ou como Iíbretos de dia desde negros alforriados e mulatos até estudantes,
ópera (e dezenas de compositores valiam-se do professores de primeiras letras, funcionários públicos,
mesmo texto) ou como tragédia de fundo histórico c~ixeiros de lojas, modestos negociantes e militares.
(e final geralmente feliz), centradas sobre heróis da Entre estes, os soldados reforçavam a música com
Antiguidade Clássica, cujos nomes ligavam-se não tambores, clarins, trombetas, ao passo que os oficiais,
raro aos de uma cidade ou região - Catone in Utica, capitães, majores, não se acanhavam em subir ao palco
Adriano in Siria -, que figuravam menos como en- para dançar em vestes femininas. É que as mulheres
tidades geográficas precisas que como cenários de não participavam desta diversão considerada tipica-
instantes cruciais de suas vidas. O coro não tinha mente masculina. Também aqui o exemplo procedia
muita importância no desenvolvimento do enredo, de Portugal, onde era prática comum, antes mesmo
as personagens eram poucas, seis ou sete, a ação que Di Maria I proibisse o acesso de atrizes ao palco.
relativamente concentrada no espaço e no tempo. Os gêneros abordados iam da comédia seiscen-
Esta economia de meios, mais próxima da disciplina tista espanhola (O Conde de Alarcos, de Mira de
neoclássica que das elaboradas fantasias mitológicas Amescua; Amor e Obrigação) de Antônio de Solís)
da ópera barroca do período anterior, facilitava evi- à ópera setecentista italiana (Ézio emRoma)Zenóbia
dentemente a montagem do espetáculo. no Oriente) de Metasrasio), da comédia (Sganarelo)
Ao contrário das peças espanholas, importadas baseada em Moliere) à tragédia clássica francesa
a princípio, ao que parece, na língua original, as (Zaíra) de Voltaire). Ainda que várias dessas atribui-
óperas italianas passavam sempre por Lisboa, de ções de autoria sejam passíveis de dúvida, resultando
onde já vinham traduzidas ou adaptadas, às ve- de deduções atuais, impressiona a variedade de fon-
zes com títulos modificados e quase sempre sem tes, estendendo-se por dois séculos e três países. Mas
menção do amor, através de edições chamadas de a surpresa desvanece assim que se verifica, como fez
um estudioso moderno, que as peças representadas
38 Metastasio e i poetiarcadibrasiliani, P: 62. A tradução é nossa,
do italiano. em Cuiabá, sem exceção, possuíam um denominador

+ 44
+ As Raízes do Teatro Brasileiro

comum bem próximo do Brasil, via Portugal: "todas Alguém que assistiu ao festival com olhos bene-
elas são teatro de cordei"; constatou Carlos Francisco volentes, cúmplices quase, porém não desinforma-
de lvloura39.lvfais ainda: todas haviam sido publi- dos, o próprio homenageado, ao que indicam certas
cadas ou republicadas recentemente em Lisboa. frases, deixou sobre as peças e sua execução algu-
.Parrícípavam, portanto, do repertório corrente em mas anotações marginais interessantes. Criticou,
Portugal e desse ângulo devem ser analisadas. A ao falar de Zaira, a versificação, "um pouco frouxa
expressão "teatro de cordel': pouco significando do por defeito do tradutor': elogiou uma comédia,
ponto de vista literário, como se tem notado, porque cuj o nome se perdeu, "uma das melhores que há':
comportava de tudo, nem por isso deixava de cor- "à exceção de alguns poucos defeitos próprios do
responder a uma determinada realidade dramática. teatro português" - sem esclarecer, infelizmente,
Esta identidade de palco, constituída por usos e cos- quais seriam eles. Sobre os "cómicos'; ou ateres,
tumes teatrais, alterava não pouco as características salientou que a maior parte nunca havia subido ao
nacionais e estilísticas dos textos, tendendo a unifor- palco (a palavra empregada é "teatro': mas nesse
mizá-los. Um exemplo curioso desse fenômeno de sentido, então habitual), "e por isso mesmo é tanto
contaminação literária acha-se no próprio repertório mais admirável o como executam os seus papéis".
cuiabano. Pelo gênero e pelo título, dir-se-ia, nada Quase todos, pelo visto, eram igualmente "curiosos
de mais lusitano que o entremez O Saloio Cidadão. na cantoria': já que as anotações destacam um deles,
Mas trata-se, efetivamente, de uma adaptação livre por ser "músico de profissão, de voz e de estilo". Na
deLe Bourgeois Gentilbommc, de Moliêre", devida óperaÉzio em Roma) ele interpretou, como "dama':
provavelmente à pena incansável de Nicolau Luís, o papel de Honória. Registre-se, a propósito, que
homem de teatro em atividade nos palcos lisboe- as personagens femininas, bem como os "graciosos"
tas na segunda metade do século XVIII. A ele são de ambos os sexos, ficavam sempre a cargo de alguns
creditadas perto de cinquenta de tais transcrições especialistas, talvez de maior experiência teatral.
anônimas, entre as quais umas cinco ou seis das ence- Um dos comentários, em especial, por dar a
nadas em Cuiabá, inclusive a tragédia Inêsde Castro, exata dimensão social e artística do empreendi-
"que segue de perto o texto de Vélez de Guevara"4\ mento, vale uma longa citação:
Reinar Después deMorir. Almeida Garrett resumiu
sem piedade o processo de produção deste reper- Esta noite saiu a público a comédia Tamerlão na Pérsia, re-
tório híbrido: "traduziam em português as óperas presentada pelos crioulos. Quem ouvir falar neste nome dirá
de Metasrasio, metiam-lhe graciosos - chamava-se que foi função de negros, inculc~ndo neste dito a ideia geral
a isto acomodar aogosto português -, e meio rezado, que justamente se tem que estes nunca fazem coisa perfeita
meio cantarolado, lá se ia representando'w, e antes dão muito que rir e criticar. Porém não é assim a res-
No Brasil, no distante Mato Grosso, as confu- peito de certo número decrioulos que aqui há; bastava ver-se
sões conceituais e cênicas aumentavam. Zaíra passa uma grande figura que eles têm; esta é um preto que há pouco
de tragédia a ópera, enriquecendo-se com árias e se libertou, chamado Víctoriano. Ele talvez seja inimitável
duetos, e Zenóbia no Oriente) presumivelmente a neste teatro nos papéis de caráter violento e altivo. Todos os
obra de Merasrasío intitulada Zenobia ou Zenobia mais companheiros são bons e já têm merecido aplausos nos
in Palmira) recebe o rótulo de "comédia ou tragédia" anos passados. Eles, além da comédia, cantaram muitos reci-
aparente contradição em termos, que só se desfaz se tados, árias e duetos, que aprenderam com grande trabalho,
admitirmos que "comédia" está empregada na acep- e como só o faziam por curiosidade causaram muito gosto!'.
ção espanhola e "tragédia': na francesa, nenhuma das
duas, no entanto, convindo a uma ópera italiana. Terminada a leitura desses apontamentos, fica a
impressão de uma amálgama pobre de três drama-
39 O Teatro em lvIato Grosso no Século XVIII, Belém: Univer- turgias ricas: a espanhola, a francesa e a italiana. Algo
sidade Federal de Mato Grosso, Sudam, 1976, P: 37. mal definido, que nunca é exatamenre comédia (a
40 Idem, P: 38.
41 L. F. Rebello, História do Teatro Portuouês, p. 76. 43 C. F.Moura, op. cit., p. 62-66. Modernizou-se a ortografia
42 Obras, v. II, Porto: Lello e Irmãos, 1963, p. !.32!. e corrigiram-se pequenos lapsos de linguagem.

+ 45
História do Teatro Brasileiro • volume 1

designação mais frequente), ou tragédia, ou ópera, dramática brasileira reconhecida e nomeada por
extraindo de cada gênero alguns traços, que se fun- escrito como tal. Um primitivo, sem dúvida - mas
dem ao sabor das circunstâncias locais, mais como já aprendemos modernamente a não desprezar em
veleidade artística do que como realização efetiva. Se arte o primitivismo.
qualquer coisa de nacional possuíam tais espetáculos No final do século XVIII, com a disseminação das
seria apenas esta própria mistura, nascida de frustra- Casas de Ópera, manifestou-se em vários lugares a
ções, de insuficiências, não de qualidades positivas. intenção de fugir ao amadorismo, ou à "curiosidade':
- - ·0 que parecia determinar o teatro, em princí- palavra sugestiva porque exprime bem o que havia
pio, seria o desejo de fornecer ao público uma di- de frágil nessas adivinhações cênicas, nas quais se
versão tão completa quanto possível, reunindo no procurava intuir o que não se sabia, nem pela teoria,
mesmo produto os prestígios combinados da fala nem pela prática. Não terá sido por acaso que três
dramática, do canto, da dança, das vestimentas raras documentos contemporâneos hajam chegado aos
(Orosmane apresentando-se "à turca" em Zaíra) , da nossos dias, atestando a vontade de regularizar-se
"profusão de luzes" (a cargo de velas de cera) e da em definitivo o movimento teatral. São três contratos
música instrumental. A orquestra, colocada ao lado firmados em cartório, um em São Paulo, em 1798, e
ou dentro do tablado (chamado às vezes de "tea- dois em Porto Alegre, em 1797 e 180545. Formal-
tro"), incluía rabecas, flautas e, excepcionalmente, mente assemelham-se a qualquer outro instrumento
uma trompa, além dos metais e tambores militares. jurídico destinado a ordenar as relações entre empre-
A Pérsia (Tamerlão na Pérsia), a Síria (Aspásia sários e ateres profissionais, estabelecendo os direitos
na Síria) e o Egito (Sesostris no Egito) surgiam em e deveres recíprocos. Nas entrelinhas, entretanto,
cena, ao menos nas intenções, como países remotos, certos detalhes entrernostram a realidade. Algumas
lendários, habitados por heróis e heroínas de nomes atrizes, por exemplo, assinam a rogo, obviamente por
convenientemente arrevezados. O outro lado da serem analfabetas. Com relação ao número de repre-
medalha, necessário como complemento do espe- sentações, preveem-se desde uma cota dificilmente
táculo, sobretudo quando a peçaprincipal não con- exequível (dois entremezes e duas óperas novas a cada
tinha "graciosos': era proporcionado pelo entremez. trinta dias, no primeiro contrato de Porto Alegre)
De fôlego curto, ligadas à vida diária, deixando-se até um cálculo menos ambicioso e mais apropriado
aportuguesar ou abrasileirar com facilidade mesmo à realidade social do teatro: haveria estreia de peça em
quando de nacionalidade diversa, essaspequenas far- São Paulo, nas palavras de Viriato Corrêa, que teve
sas, por sua despretensão, não inibiam a criatividade em mãos o contrato, "por ocasião do aniversário de
de ninguém. Também em Cuiabá produziu-se um pessoas da família real, do general governador da ca-
"composto aqui mesmo': por um capitão dado às pitania e do bispo. E também quando fosse do agrado
letras, "bastantemente gracioso': ou seja, engraçado. do governador" 46• Antes de ser arte ou diversão, o tea-
Já celebramos na figura curiosa do índio Ambró- tro propunha-se como cerimônia cívica.
sio Pires, que foi a Lisboa com os jesuítas e se distin- O centro da vida teatral fixara-se de vez no Rio
guia no palco contrafazendo ridículos "Anhangás', de Janeiro, sob a proteção, variável em intensidade,
o nosso primeiro ator cômico mencionado em le- de sucessivos vice-reis. Não faltam descrições deta-
tra que com o tempo se tornaria de forma. Nada lhadas referentes à Casa da Ópera fluminense: do
mais justo, então, até a título de símbolo cultural, interior do teatro, "adereçado com a maior pompa de
do que reconhecer em Victoriariov', negro, ex- brilhos de argênteos candelabros nos panejamen-
-escravo, intérprete de Bajazet em Tamerlão na tos carmesins"; de espetáculos, que "deslumbravam
Pérsia, "talvez inimitável neste teatro nos papéis com o seu esplendor o povo colonial"; do palco,
de caráter violento e altivo", a primeira vocação
45 Arhos Damasceno Ferreira, Palco, Salão ePicadeiro em Porto
44 O Victoriano destacado pela crítica em Tamerlão na Pérsia Alegreno Século XIX, Rio deJaneiro: Globo, 1956, P: 4-8.
deve ser o mesmo que reaparece a 11 de setembro na lista dos par- 46 Primeiro Contrato Teatral que Se Fez no Brasil, A Noite,
ticipantes do esperáculo, já que os seus companheiros de elenco Rio de janeiro, 25 de novembro de 1954, P: 3. Também, do
são em parte os mesmos. O seu nome completo seria nesse caso mesmo autor, Origens e Desenvolvimento do Teatro Brasileiro,
Víctoríano da Costa Viana. CE. idem, P: 64, 58,61. Jornal do Comércio, 27 de julho de 1954.
• As Raízes do Teatro Brasileiro

"adornado de vistosas bambinelas', sobressaindo-se Cabe perguntar, no entanto, se o nome desse Fígaro
"um riquíssimo pano de boca, pintado pelo pardo frusto e bem-sucedido teria ficado na história do
Leandro Joaquim, artista de reputação célebre e seu teatro brasileiro caso ele não demonstrasse tanta
principal cenógrafo"; e até de um incêndio sete- impudência e coragem na prática empresarial. Se
centista, descrito com minúcias de quem viu tudo ganhou dinheiro com teatro - parece que sim -
pessoalmente e muito de perto". merece homenagens esfuziantes da posteridade.
Mas todos essesquadros, traçados a distância, na Também é certo haver sido na última década
segunda metade do século XIX ou em meados do sé- do século XVIII que se iniciou o intercâmbio,
culo xx, por diferentes autores, pecam pelo mesmo ainda muito ocasional, entre colônia e metrópole.
defeito histórico: não revelam as fontes que lhes dão Dos teatros portugueses nos veio Antônio José de
tanta segurança informativa. De garantido, de in- Paula, mulato, natural de Cabo Verde, "um dos
questionável mesmo, restam alguns fatos (o incêndio mais famosos ateres do seu tempo e sem dúvida o
do primitivo teatro, substituído pela chamada Ópera mais culto': no dizer autorizado de Jorge de Faria,
Nova) e alguns nomes, de ateres bem recebidos pelo que julga não andar "longe da verdade" ao situar
público, como "o mulato José Inácio da Costa, apeli- esta temporada pioneira "entre 1790 e 1792"51.
dado o Capacho': e de um empresário, Manuel Luís Quanto ao prestígio artístico do nosso visitante,
Ferreira, nascido em Portugal, "barbeiro, dançarino também tradutor e empresário, basta dizer que foi
e tocador de fagote, vindo ao Brasil como tambor a seu pedido que as mulheres retornaram aos palcos
de um regimento'T. Protegido por dois vice-reís, de lisbonenses, em 1800, após um exílio de perto de
quem teria sido, segundo as más línguas, alcoviteiro vinte anos.
e bobo da corte, ele subiu até chegar a comendador, De nossa parte, enviamos para lá a mais apre-
dando origem a uns versinhos cáusticos: ciada cantora brasileira, Joaquina ( Giovacchina em
posteriores versões italianas) Maria da Conceição
Quem desejar Lapa, a popular Lapinha, que, em fins de 1794 e
ser comendador começo de 1795, deu dois concertos no Porto e um
no recentemente inaugurado Teatro São Carlos, de
toque fagote Lisboa". Não sabemos se ela incluía "modinhas"
ou seja tarnborv. nacionais em seu repertório. Mas estas já eram
conhecidas em Portugal, pelo menos desde 1776,
Homem de iniciativa, certamente, proprietário quando começam a entrar na execução de entreme-
da Ópera Nova, que manteve em funcionamento zes e mesmo de outros gêneros de peça".
por muitos anos, Manuel Luís não deixava de ter Saindo do Rio, cidade que ia se destacando das
lados francamente ridículos, que seriam glosados demais pelo tamanho e pelo grau de urbanização,
meio século depois nas crônicas de Martins Pena, o que narram os viajantes europeus, sem excluir os
onde ele aparece como sinônimo de atraso, misto mais simpáticos ao Brasil, não é de molde a dar uma
de ignorância e de ousadia teatral. Entre as suasproe- ideia favorável - para dizer o menos - do teatro
zas dramáticas, incorporadas ao folclore do palco, nacional. Os alemães Carl Friedrich von Martius
estariam ter proposto substituir leões por jacarés na eJohann Baptiste von Spix visitaram São Paulo em
oratória Daniel no Lago dos Leões (o título bíblico 18 I 8. Sobre a atividade dramática escreveram:
correto seria Daniel na Cova dos Leões) e ter feito
César "aparecer certa ocasião em cena de botas de 51 As Primeiras Quatro Levas de Cômicos para o Brasil, Oci-
dente, vol. III, P: 322. Bocage dedicou-lhe, em 1802, uma poesia,
montar, casaca de corte e cabeleira de rabicho":". intitulada "Despedida de Antônio José de Paula aos Portuenses".
52 CE. Ernesto Vieira, DicionárioBiográfico de Músicos Portu-
gueses, v. II, Lisboa: Matos Moreira e Pinheiro, 1900, p. 14.
47 CE. L. Hessel e G. Raeders, O Teatro no Brasil,p. 43-46.
53 Cf.M. C. de Brito, Opera in Portugal in theEigbteenth Cen-
48 Idem, p. 45-46. tury, Cambridge: Cambridge Uníversíry Press, 1989, p. 215. O
49 Ayres Andrade, Francisco Mnnoel e Seu Tempo, v. I, Rio autor afirma, na mesma página, que "o vasto e pouco estudado
deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 64. assunto da ópera no Brasil colonial é complexo demais para ser
50 Folhetins, Rio deJaneiro: MEC/rNL, 1965, p. 267- 268. sequer esboçado aqui".

• 47
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Assistimos, no teatro construído em estilo moderno, à re- teto, à cortina e às decorações, eram de um mau gosto mais
presentação da opereta francesa Le Déserteur, traduzida acentuado do que o encontrado mesmo nas casas mais mo-
para o português. A execução evocava o tempo em que a destas. Na plateia só se viam homens, todos acomodados
carruagem de Tespis andou nas ruas de Atenas pela pri- em bancos. O camarote do general ficava na segunda fileira,
meira vez. O conjunto de ateres, pretos ou de cor, pertencia defronte do palco, e era estreito e comprido, com cadeiras
à categoria daqueles aos quais Ulpíano ainda dá levisnotae dispostas dos dois lados. Uma galeria bastante bonita dava
macula. O ator principal, um barbeiro, emocionou pro- acesso a ele. Quando chegamos, o público já estava presente.
fundamente os seus concidadãos. O fato de ser a música, O general distribuiu cumprimentos à direita e à esquerda, e
igualmente, ainda confusa, e à busca dos seus elementos nesse instante todos os homens da plateia se levantaram e se
primitivos, não nos estranhava, pois, além do violão, pre- voltaram para ele. Sentaram-se todos de novo quando a peça
dílero para acompanhamento do canto, nenhum outro começou, mas voltaram ase conservar de pé nos intervalos 55.
instrumento é estudado>'.
O teatro não possuía caráter oficial, não fazia
o francês Saint-Hilaire, um ano mais tarde, não parte dos órgãos do governo, mas, como se vê, man-
manifestaria maior entusiasmo pelo teatro paulista: tinha com ele relações de subordinação e respeito.
''A representação constou de O Avarento e de uma As observações de Auguste Saint-Hilaire sobre
pequena farsa. Os ateres eram artesãos, em sua maio- São Paulo repetem, com pequenas variações, muitas
ria mulatos, e as atrízes, prostitutas. O talento destas das que elehavia feito pouco antes, ao passar por Vila
se harmonizava perfeitamente com o seu grau de Rica, que, na verdade, ao entrar no século XIX, já
moralidade. Dir-se-ia que se tratava de marionetes não merecia tal nome: teatro de "aparência mesqui-
movidas por um cordel. A maior parte do elenco nha" em sua fachada; sala "bastante bonita, porém
masculino não era melhor do que elas. No entanto, pequena e muito estreita"; "quatro ordens de camaro-
não se podia deixar de reconhecer que alguns deles tes, cuja frente é fechada por balaústres rendados que
tinham um certo pendor inato para o teatro". não produzem mau efeito"; plateia só de homens,
Mais interessante, contudo, do que essa de- sentados em bancos. O detalhe a mais, nesta parte
capitação sumária, é a parte introdutória do de- material, fica por conta dos cenários, que ganham
poimento de Auguste Saint-Hilaire, em que ele um elogio, embora expresso, como os demais, por via
descreve o teatro, diz alguma coisa sobre o público negativa: "entre as decorações, que são variadas, há
e revela de passagem os laços entre governantes e algumas suportáveis".Já era algum progresso.
governados que o palco estabelecia ou reforçava: A respeito da representação, ele fornece informa-
ções suplementares, sempre no mesmo tom agridoce:
Certa ocasião em que jantei com o general, ele me convidou
para assistir a um espetáculo, e às oito da noite dirigi-me ao Os ateres têm o cuidado de cobrir o rosto com uma camada
palácio. Era em frente do prédio que ficava a sala de espetá- de branco e vermelho; mas as mãos traem a cor que a natu-
culos, e nada no seu exterior indicava a finalidade a que se reza lhes deu, e provam que a maioria deles é de mulatos.
destinava. O que se via era apenas uma casa pequena, de um Não têm a menor ideia da indumentária; e, por exemplo,
só pavimento, baixa, estreita, sem ornamentos, pintada de em peças tiradas da história grega vi personagens vestidos
vermelho e com três amplas janelas de postigos pretos. Até à turca e heroínas à francesa. Quando esses ateres gesticu-
mesmo as casas de pessoas de poucas posses tinham melhor lam, o que raramente sucede, poder-se-ia pensar que são
aparência. O interior era mais bem cuidado, mas extrema- movidos por molas, e o ponto, que lê a peça enquanto eles
mente exíguo. Entrava-se inicialmente num pequeno saguão, declamam, fala tão alto, que frequentemente sua voz mas-
que dava acesso aos camarotes e à plateia. A sala, bastante cara completamente a dos intérpretes 56.
bonita e com três fileiras de camarotes, era iluminada por
um belo lustre e por vários lampiões. 02::.anto à pintura no 55 Viagem à Província de São Paulo, tradução de Regina Regis
Junqueira, São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Itatíaía, 1976, P:
144- O Avarento é naturalmente a comédia de Molíêre.
54 Viagem pelo Brasil, v. I, tradução de Lúcia Furquim Leh- 56 Viagem pelas Províncias do Rio deJaneiro e Minas Gerais,
meyer, São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/ltatiaia, 198 I, p. 141. tradução de Vivaldi Moreira, São Paulo/Belo Horizonte: Edusp/
Le Déserteur deve ser a conhecida peça de Sedaine. Irariaia, 1975, P: 73. A indumentária "à turca': já presente nos es-
• As Raízes do Teatro Brasileiro

Chama a atenção, nos relatos dos europeus, dois teatros públicos">". Mas a prevenção persistia. A
tópicos recorrentes: a má qualidade das represen- verdade é que os brancos desciam e os mulatos
tações, reafirmada por todos eles, e, já na passagem subiam socialmente ao tornarem-se ateres. E se
do século XVIII para o XIX, a presença constante havia prostitutas entre as atrizes, isto se dava pela
de mulatos entre os ateres. razão óbvia de que as mulheres de conduta ilibada
A acidez das críticas estrangeiras contrasta sentir-se-iam manchadas em sua reputação caso se
terrivelmente com as apreciações nacionais con- exibissem perante públicos predominantemente
temporâneas, nos raros casos em que elas existem, masculinos. Essa situação não era exclusiva do
e mais ainda com o que escreveram cronistas ehis- Brasil. Também na Europa existia uma distância
toriadores brasileiros de épocas seguintes, sempre bem marcada entre uma arte valorizada como tal e
prontos a suprir com fértil imaginação a ausência o homem que a exercia. O espaço reservado aos ato-
de documentos. Mas não se trata só de ufanismo. res pela sociedade oscilava precariamente entre os
Há igualmente uma diversidade de critérios. Os primeiros e os últimos lugares. Não andavam longe
de fora encaravam o teatro como fenômeno es- as fulminações da Igreja Católica contra esses hís-
tético, comparativamente, valendo-se de padrões triões de vida errante, que não hesitavam em mudar
europeus. E tinham razão. Os de casa, sentindo na de voz, de cara e de personalidade. No Brasil, este
carne as nossas insuficiências, saudavam qualquer preconceito somava-se, ou cruzava-se, com outro,
realização cênica como um triunfo inesperado e o racial. Daí o predomínio cênico de mulatos, que
honroso da civilização sobre a barbárie. Não era não duraria muito, desaparecendo com a chegada
necessário que fosse bom: bastava que fosse teatro de profissionais de palco portugueses.
para despertar o entusiasmo patriótico. E também Causa estranheza, por outro lado, a escassez no
tinham razão. repertório setecentista, não diremos de brasileiros,
Quanto à participação de mulatos, ou pardos, seria pedir muito, mas de autores portugueses, cuja
ou homens de cor, conforme as versões, o fato contribuição limitava-se quase a entremezes e adap-
pode explicar-se tanto por uma propensão natural tações. Pelo menos um comediógrafo de além-mar
da raça ou da cultura negra, sobretudo em relação (nascido no Brasil, mas que daqui partiu menino)
à música, quanto pelo descrédito que envolvia a mereceria aparecer com destaque nas representa-
profissão de ator, Na primeira metade do século ções do lado de cá do Atlântico. Antônio José da
XVIII, época em que o teatro ainda se concebia Silva (1705-1739), o Judeu, vitimado pela Inqui-
como festa coletiva, os negros não se negavam a sição, foi o único escritor teatral do seu país e do
dar o seu quinhão, comparecendo, embora margi- seu século a agradar indistintamente ao público e à
nalmente, com os seus cantos, os seus instrumentos crítica, aos doutos e aos iletrados. As suas "óperas"
musicais, as suas danças africanas - "o vil batuque': joco-sérias constituíam uma resposta ibérica (com
na expressão das Cartas Chilenas -) que mais tarde forte carga espanhola) e popular às aristocráticas
se integrariam na arte e na consciência nacional. óperas italianas, que começavam a invadir os palcos
Agora, na virada do século, quando o teatro ten- portugueses. Só a esse título já lhes caberia uma
tava a todo custo profissionalizar-se, oferecia-se a posição privilegiada na cena nacional. E, de fato,
ocasião para que os seus descendentes já mestiçados referências a elas é o que não falta na história do
subissem até o palco, aproveitando-se das interdi- teatro brasileiro. Mas é preciso um pouco de cautela
ções morais que pesavam sobre ele. O marquês quanto a essas atribuições autorais. Quase todas, se
de Pombal decretara em 1771 que a atividade bem examinadas, deixam a descoberto um perigoso
dramática "por si é indiferente e que nenhuma caráter retrospectivo, ressalvando-se uma ou outra
c"" infâmia irroga àquelas pessoas que a praticam nos exceção, como a provável montagem das Guerras
do Alecrim e Manjerona em Mato Grosso no ano
peráculos de Cuiabá, explica-se provavelmente pelas montagens
frequentes de Zaira, tragédia de Voltaire. Quanto à autentici-
dade histórica das roupas de palco, essafoi uma das preocupações
centrais dos grandes trágicos franceses do período, de Lekain 57 Antônio de Sousa Bastos, Carteira do Artista, Lisboa: An-
(1729-1778) a Talma (1763-1826). tiga Casa Bertrand, 1898, p. 203.

• 49
História do Teatro Brasileiro • volume J

de 178558. No mais das vezes afirma-se que o Judeu portanto, permanece em aberto, discutível caso a
foi encenado nesta ou naquela cidade porque, em caso, à espera da última palavra, se é que algum dia
tese, por uma questão de probabilidade e até de ela será proferida.
reivindicação nativista, deveria ter sido. A hipótese,
trazendo de volta o escritor ao Brasil, é das mais
simpáticas. Mas para confirmá-la, sem provas do- III
cumentais diretas, há de se vencer algumas objeções
preliminares. As suas peças, de assunto mitológico Recapitulando e sintetizando, para finalizar, di-
(salvo duas), de estrutura episódica, lançando mão ríamos que o teatro colonial equilibrou-se como
de efeitos especiais ("tramoias': no jargão teatral) pôde entre três instáveis pontos de apoio: o Ouro,
e de constantes mutações de cenário, foram ima- o Governo e a Igreja.
ginadas, dentro de um estilo barroco em vias de O ouro pode ser entendido como símbolo da
desaparecer, para se apresentarem em teatro de vida econômica. Mas, no contexto brasileiro, sig-
bonecos, onde tudo isto se realizava através de fios, nificou quase sempre ele mesmo, um dos poucos
sem dificuldade. Exigiriam, para ser interpretadas elementos capazes de garantir, enquanto durou,
por ateres de carne e osso, como se pretende haja um razoável arremedo de cultura urbana, propícia,
acontecido no Brasil, um aparelhamento cênico, ao contrário da cultura rural, ao crescimento do
um domínio artesanal do palco, que o teatro colo- teatro. Foi ele o responsável pelos numerosos espe-
nial não parecia possuir. Além disso, muitos títulos táculos de Mato Grosso, não inferiores em número
seus eram tradicionais, a exemplo dos enredos que aos de qualquer outra província, e pela dissemina-
transcreviam. Citados isoladamente, sem menção ção dramática de Minas Gerais, espraiando-se de
de autor, nada nos autoriza a ligá-los sem maiores Vila Rica a várias cidades da zona de mineração,
investigações a determinado escritor. OsEncantos Sabará, Mariana, São João Del-Rey, Diamantina.
de Medeia, por exemplo, a peça que estaria sendo O governo agia em mais de um nível. Lo-
encenada na Casa da Ópera do Rio quando ela foi calmente ajudava a edificar as Casas de Ópera.
destruída pelo fogo em 1769, conforme narra com Em plano mais amplo, criava em torno dos go-
pormenores Luís Edmundo'", tanto pode ser a co- vernadores, e principalmente dos vice-reis, uma
nhecida ópera do escritor português como, embora pequenina corte, formada por magistrados, bis-
com menos probabilidade, a comédia espanhola pos, advogados, altos funcionários, gente letrada,
homônima de Rojas Zorilla. O erro da maioria acessível às aventuras da arte e do pensamento. A
desses raciocínios, feitos a posteriori, é supor que a doutrina oficial, quando começou a formular-se
figura do Judeu, mantida por muito tempo quase velada e timidamente, inspirava-se no exemplo de
em sigilo por causa de sua condenação e morte bár- Luís XIV (e mais tarde no de Napoleão) em suas
bara em auto de fé, era tão conhecida e festejada relações paternalistas com a Comédie Française.
então quanto passou a ser a partir do século XIX. O teatro concorreria para o avanço da civilização
Varnhagen, em contraposição, historiador seguro e seria o termómetro pelo qual se mediria o grau
e afeito a documentos, escreveu em 185 o que não de adiantamento de um país. Cumpria ainda uma
lhe constava "que fossem jamais representadas em missão cívica, aproximando as pessoas comuns
teatrosdo Brasil"6o óperas de AntônioJosé.A questão, das autoridades, ao ensejar que as primeiras ho-
menageassem as segundas em ocasiões especiais.
58 CE.C. F.Moura, op. cit., p. 46. O documento refere-se à repre- Eventos relacionados com a corte portuguesa
sentação "de uma ópera intitulada O Alecrim e a Manjerona". Há
uma ópera portuguesa de título semelhante, Gl6riasdo Alecrim e
repercutiam aqui sob a forma de canhestras e
Triunfoda Manjerona, escrita em 1741 (CE.].O. Barata, Antônio bem-intencionadas representações. No biênio
Joséda Silva, P: 213). Mas parece bem mais provável que a repre-
sentação de Cuiabá seja da peça de Antônio José, inspiradora da
1793-1794, o nascimento da princesa da Beira,
outra e muito popular em Portugal. filha de D. Carlota Joaquina e do futuro D.João
59 O Rio de faneiro no Tempo dos Vtce-Reis, 4. ed.,v. 3, Rio VI, foi festejado através de esperáculos comemo-
de]aneiro: Conquista, 1956, P: 526-528.
60 Op. cit., p. XXXIII.
rativos por assim dizer do norte ao sul do Brasil:

• 5°
• As Raizes do Teatro Brasileiro

em Belém do Pará, num extremo, em Rio Pardo, As óperas italianas, a rigor, só podiam ser can-
cidade gaúcha, no outro extremo, e, ao centro, em tadas pelos próprios italianos, que contavam para
Cuiabá'". Mas os governantes não dispunham, isso com um trunfo insubstituível- os castrati. É o
para a execução de urna política contínua, dos que demonstra o panorama operístico português,
necessários instrumentos jurídicos e recursos onde as carreiras internacionais de urna Luiza Todi
econômicos, de modo que o interesse pelo teatro (nascida Aguiar), corno cantora, e de um Marcos
flutuava ao sabor das preferências pessoais. Portugal, corno compositor, constituem exceções
A Igreja, desses três poderes, foi o mais cons- quase absolutas. No Brasil, a ópera caía nas mãos
tante, o único que esteve com o teatro de princípio de executantes medíocres, ou de simples "curio-
ao fim, desde Anchieta, digamos assim, até o padre sos': depois de sofrer um primeiro rebaixamento
Ventura, ainda que no campo doutrinário muitas de nível em Lisboa, ao passar dos palcos ligados à
vezes se manifestasse contra ele. As fileiras ecle- Casa Real aos de segunda linha, sustentados pelo
siásticas, cobrindo em princípio todo o território pequeno público pagante.
nacional, ofereciam à cena um pouco de tudo: au- A tragédia em moldes franceses, que a Arcádia
tores (de longe a categoria mais numerosa), ateres sonhou em reviver no Brasil corno em Portugal,
ocasionais, músicos, regentes, e até empresários alimentando-se menos do enredo que da perfeição
(num dos contratos teatrais celebrados em Porto formal, impunha normas estilísticas impossíveis de
Alegre, o de 180 5, o contratante é exatamente um serem atendidas por intérpretes sem escola e sem
padre). O exemplo de Minas Gerais mostra bem tradição. Esse impasse transparece com clareza em
que as artes (excluindo-se a poesia, sempre mais Vila Rica, nos poucos decênios em que conviveram
autónoma socialmente) só floresciam no período lado a lado eminentes poetas arcádicos e pessoas
colonial na medida em que se integravam à própria interessadas em elevar o teatro à altura deles. Mas
estrutura da Igreja, formando com ela um corpo se Cláudio Manoel da Costa escrevia tragédias e
só: a arquitetura, a pintura, a escultura, ajudando traduzia Metastasio, cujas óperas revelavam algo da
a construir templos; a música, participando dos nova simplicidade cênica, as Cartas Chilenas, hoje
ritos religiosos, o que dava origem a cargos fixos e atribuídas a Tomás Antônio Gonzaga, deploravam,
remunerados, corno o de "mestre de capela". Não na mesma ocasião, que, em festividades organizadas
era o caso do teatro, chamado a atuar somente nas pelo governador da província, "os três mais belos dra-
grandes festas, nas quais todos os segmentos da mas se estropiem, repetidos por bocas de mulatos" 62 •
sociedade se faziam representar. Exceto em tais Ora, mulatos eram também, em sua maior parte, os
ocasiões, as suas oportunidades ficavam na depen- músicos, os compositores, os pintores, os escultores
dência da vocação dramática ou da curiosidade de Vila Rica. A diferença é que a cor deles não se
artística deste ou daquele eclesiástico, coisas que imprimia, corno um estigma, na obra de arte que
para sorte sua nunca lhe faltaram. produziam. O contrário dava-se com os ateres, cuja
Mesmo, no entanto, que o teatro do século matéria-prima é sempre o próprio corpo, as mãos,
XVIII - o dos séculos anteriores já fazia muito em o rosto, que inutilmente pintavam para embran-
existir - vencesse todos esses obstáculos, encontra- quecê-los. Entre os escritores de cultura europeia,
ria pela frente urna contradição mais funda, a que formados em Coimbra (a nossa grande fornecedora
separava os dramaturgos em potencial dos ateres de juristas e poetas), e os seus porta-vozes em cena,
disponíveis no mercado. A arte encurta às vezes abria-se assim um fosso econômico e artístico in-
a distância existente entre o erudito e o popular. transponível. Há qualquer coisa de ridículo - e de
Os dois gêneros teatrais em ascensão entre 175 o e patético - naquele espetáculo da longínqua Cuiabá
1800, a ópera e a tragédia neoclássica, distinguiam- em que um grupo de negros, "uns pobrezinhos': na
-se, ao contrário, pelo traço aristocrático. classificação de quem nos legou piedosas notas sobre
eles, interpretou urna peça intitulada nada menos

61 CE. L. Hessel e G. Readers, O Teatro noBrasil, p. 67-68, 72; 62 Tomás Antônio Gonzaga, Obras Completas, v. I, Rio de Ja-
C. F. Moura, op. cit., p. 70. neiro: INL, 1957, p. II 5·

• 51
História do Teatro Brasileiro • volume 1

que Tamerlão na Pérsia) atribuída, ao ser encenada mas inexequível aspiração nacional. Sonhávamos
em Lisboa, ao libretista Apostolo Zen0 63, anteces- em ingressar no recinto das grandes obras univer-
sor de Metastasío pa renovação da ópera italiana. As sais, reduto e apanágio das nações civilizadas, sem
distâncias sociais e estéticas eram'porventura ainda dispor dos recursos extraliterários, propriamente
maiores do que as geográficas e históricas. teatrais, para isso necessários. Não possuíamos
O teatro apresentava-se no Brasil sob várias nem público em quantidade suficiente, nem ato-
máscaras, às vezes tão diversas como as da comédia res profissionais qualificados - a camada interme-
e da tragédia. Pelo seu lado mais pobre, mais terra diária que nos permitiria passar da mais fácil das
a terra, contentava-se com espetáculos amadores artes, quando amadora, para uma das mais difíceis,
improvisados, aproveitando-se de que para subir quando estritamente profissional.
a um estrado e dizer algumas frases decoradas Portugal, em matéria dramática, era o reflexo de
não era preciso nem mesmo aquele mínimo de suas irmãs latinas, a Espanha, a Itália, a França. Ao
exercício técnico imprescindível na pintura e na Brasil cabia um papel ainda menor: o de satélite
música. Esse hábito popular nos vinha através das de um astro que só muito de raro em raro brilhava
naus portuguesas, seja nas quinhentistas, em que por conta própria.
padres jesuítas encenavam vidas de santos e autos
sacramentais durante as calmarias'<, seja, duzentos
anos mais tarde, nas embarcações setecentistas,
como maneira fortuita de preencher as horas va-
zias. Foi este o caso na vinda ao Brasil de D. Luís de
Albuquerque, nomeado em 1771 governador de
Mato Grosso. Em seu Diário de Viagem, ele assi-
nala a montagem de dois entremezes: As Preciosas 3. A HERANÇA TEATRAL
Redicolas [síc] e O Velho Namorado'í. A este nível PORTUGUESA
de diversão, para os que falam como para os que
ouvem, o teatro floresceu no Brasil em proporções A última horada tirania soou;o
fanatismo) que ocupava aface da Terra)
que podemos conjecturar mas não recensear (nem
desapareceu, osolda Liberdade brilhou
haveria interesse nisso). no nosso horizonte, e as derradeiras trevas
Pelo outro lado, exatarnente oposto ao primeiro, do despotismofiram, dissipadas por seus
raios, sepultar-se no infirno.
a dramaturgia, enquantO literatura, oferecia-se, à
imaginação de alguns poetas que habitavam em Almeida Garrett

pensamento mais a Europa clássica que o Brasil I


presente, como um dos três gêneros literários no-
bres por direito de nascença, por possuírem as mais No século XIX os fatos teatrais, acompanhando
antigas e frondosas árvores genealógicas. Se éramos os políticos, precipitam-se. As tropas de Napo-
capazes de escrever epopeias e poesias líricas, por leão invadem Portugal. A corte portuguesa busca
que não seríamos de compor dramas e tragédias? refúgio no Brasil, logo está instalada no Rio de
Que nada haja subsistido em papel impresso des- Janeiro. Em 1810, o príncipe regente, o futuro D.
ses projetes ambiciosos do século XVIII, a não ser João VI, revela através de um decreto o seu desejo
nomes de autores e títulos de peças, além do pobre de que "nesta capital [...] se erija um teatro decente
Parnaso Obsequioso) é prova que o teatro, em seu e proporcionado à população e ao maior grau de
plano mais elevado, nunca passou de uma forte elevação e grandeza em que hoj e se acha pela minha
residência nela [...]"66. Não se compreendia, obvia-
63 M. C. de Brito, op. cit, p. I I 5.
mente, casa real sem o seu respectivo palco, traço de
64 CE. C. Martins, O Teatro Quinhentista nasNaus da Índia,
Lisboa: Brotería, 1973. união - e às vezes de desunião - entre poder e povo.
65 C. F.Moura, op. cir., p. 45-46. O entremezAs Preciosas Re-
dicolas é evidentemente uma adaptação da famosa comédia de
Moííére. 66 A. Andrade, op. cit., p. 109.

• 52
• As Raízes do Teatro Brasileiro

A iníciativa de construção caberá a Fernando transitaram todos os gêneros teatrais vigentes: tragé-
José de Almeida, que chegara de Portugal em 1801, dia, ópera, drama, comédia, melodrama, entrernez,
na qualidade de cabeleireiro do novo vice-rei. Re- mágica, farsa, vaudevile, opereta, burlem, revista. Se
cordando que Manuel Luís, o empresário teatral em algum lugar pulsou com certa regularidade o co-
anterior, começara como barbeiro, Ayres de An- ração do teatro brasileiro, foi certamente aqui.
drade comenta com graça: "Naqueles tempos, pro- Para inaugurá-lo, na parte referente à represen-
fissionais do pente e tesoura dir-se-ía que haviam tação dramática - a outra parte competia à ópera e
de andar sempre metidos em assuntos de teatro"67. ao bailado -, importou-se a companhia portuguesa
Exato, mas, aparentemente, sob uma condição: que de Mariana Torres, a "mais famosa atriz do primeiro
eles fossem ou tivessem sido serviçais da corte, quartel do século passado'", que disputava com duas
perante a qual, devido à sua própria situação so- ou três rivais o cerro da tragédia, o único gênero tea-
cial, ao mesmo tempo inferior e íntima, achavam-se tral a conferir no breza artística a seus praticantes. O
habilitados a prestar serviços delicados, como esses Rio, nessa altura, devia constituir um centro teatral
de teatro, pouco apropriados a pessoas sérias - e a de relativa importância, já que ela voltou ao Teatro
fidalgos então nem se diga. São João em 1819, permanecendo nele até 1822,
O teor do decreto esclarece de que forma, mar- quando, com a saúde abalada, regressou a Lisboa.
cadamente Indireta, a coroa protegia o palco. Per- As temporadas portuguesas - a de Antônio
nandinho, como todos o conheciam, entrava com José de Paula no século XVIII e as duas de Mariana
o terreno e responsabilizava-se pela venda de ações Torres - deixaram no Brasil alguns ateres que, em
que formaria o fundo econômico do negócio. Em conjunção ou em concorrência com elementos
compensação, sempre sob a vigilância do governo, locais, porventura remanescentes dos tempos he-
recebia vários benefícios, tais como isenção dé ta- roicos de Manuel Luís, mantiveram acesa, bem ou
xas e concessão de loterias. Uma vez pago o teatro, mal, a chama dramática. O de maior renome e ex-
este seria inteiramente seu. O príncipe oferecia o periência, entre eles, era sem dúvida Victor Porfírio
aval da realeza, mas sem se comprometer com o de Borja. Se somássemos todos os dados disponíveis
empreendimento, realizado por interposta pessoa. a seu respeito teríamos uma longevidade de palco
Três anos depois o "teatro decente" está pronto, verdadeiramente espantosa, que se estenderia de
o primeiro de grandes dimensões erigido no Bra- 1771, em Lisboa, a 1852, no Rio de Janeiro. É mais
sil, pondo fim ao ciclo das "Casas de Ópera". É prudente proceder como Luís Francisco Rebello
também o primeiro de uma série de cinco edifí- que, ao referir-se à sua atuação em Portugal, ficou
cios teatrais que se sucederão no mesmo local, em termos amplos, inquestionáveis: "Um dos ateres
três consumidos pelo fogo (1824, 185 I, 1856) e mais populares nos últimos anos do século XVIII e
o quartO, vítima (193 o) de um feroz e desastrado primeiros do século XIX"69. Registre-se, em com-
ímpeto modernizador. As denominações também plemento, que ele fazia papéis femininos em 1789,
variaram, conforme as circunstâncias históricas: provavelmente bem jovem ainda, e que Adrien
Teatro S. João (o regente permitira que o seu au- Balbi atribuiu-lhe como especialidade cênica a in-
gustO nome fosse usado), Teatro S. Pedro de Al- terpretação de "peralvílhos marotos (petit-maítre
cântara (D. Pedro proclamara a Independência do espif}gle) no original), e.de papéis espirituosos"?".
Brasil), Teatro Constitucional Fluminense (vitória
dos liberais em 183 I), de novo Teatro S. Pedro de 68 J.de Faria, op. cít., p. 324.
Alcântara (firmara-se a sucessão dinástica), e, por 69 Dicionário do Teatro Português, Lisboa: Prelo, [s.d.], p. 99. A
fim, denominação atual, já desligada do trono, que obra, publicada em fascículos, não se completou. Victor Porfírio
de Borja mereceu a atenção de escritores famosos da época. Bocage
desaparecera, Teatro João Caetano. escreveu, em I 8o 5, um diálogo para ser recitado por ele e Clau-
Por ele,em suas diversasencarnações materiais, em dina Rosa Botelho, no dia do benefício desta. E José Agostinho
de Macedo, polernista à galega, reservou-lhe alguns versos em Os
que se alternaram períodos de glória e de ostracismo, Burros: "Mas neles inda está Porfírio Borja, / mais a esposa gentil,
Claudina Rosa, / Uma atríz, outro ator, ambos um corno':
70 Essaistatistiquesurleroyaume dePortugal et d:Algarve, Paris:
67 Idem, P: I08. Rey et Garnier, 1822, P: CCXXI.

• 53
História do Teatro Brasileiro + volume 1

D. Pedro, em 1822, antes da Independência, o público parecia aborrecer-se muito: no entanto, a sala
cita o seu nome em bilhete enviado a José Boni- estava cheia e ela é bem grande. O seu aspecto é 'o das salas
fácio. Dois grupos travavam uma luta interna pela da Itália: não há lustres mas lampiões colocados em frente
posse do Teatro S.João e o príncipe alertava o mi- dos camarotes. As mulheres, ataviadas; os homens em trajes
nistro, "porque estrangeiros não devem bigodear de cerimônia, todos cobertos de condecorações, assumindo
os nacionais"?'. Um dos "estrangeiros", ou por a partir dos quinze ou dezesseis anos o ar desdenhoso e
ser português ou por estar ligado aos italianos da enfastiado dos dandys de Regent-Street, Creio que todo
ópera, era Victor Porfírio de Borja. mundo que o Rio chama de alta sociedade tem camarote
Jacques Arago, que passou pelo Rio por essa reservado na ópera. O imperador é frequentador assíduo,
mesma época, traçou um quadro desolador do porque as dançarinas e figurantes são muito de seu gosto,
teatro nacionaL Depois de escrever - e desenhar- sem prejuízo das senhoras respeitáveis. Durante o espetá-
a inacreditável vestimenta oriental do ator que, culo a praça fronteira ao teatro fica repleta de carruagens,
na Zaíra de Voltaire, fazia o papel de Orosmane, nas quais vieram de suas chácaras os espectado res dos cama-
ornamentada por 25 ou 3o plumas e gigantescos rotes. Desatrelam-se as mulas, que mascam um pouco de ca-
braceletes, contrastou a interpretação das demais pim empoeirado que brota aqui e ali no lugar. Os cocheiros
personagens com a figura ilustre do autor da tra- dormem por perto ou jogam entre si e bebem [...] A praça
gédia: durante a representação parece um acampamento militar.
Não há nela menos do que trezentos ou quatrocentos carros
Eis Zaíra, Nerestan, Charíllon, Lusignan; todos juraram e mil mulas e cavalos, além de algumas centenas de servido-
ultrajar o grande homem. Mas os camarotes aplaudem... res negros. Tudo isso é necessário ao prazer de duzentas ou
Não desejo outra coisa, faço como eles: - Bravo! Bravís- trezentas famílias. Se ao menos elas se divertissem!
simo! Por que singularizar-se? Após a tragédia, a comédia, A plateia da Ópera, no Rio, pareceu-me composta por
as farsas... quanto a mim, julgava a farsa já representada. essa classe burguesa decididamente branca, formada de mé-
dicos, advogados, e dos que ocupam posições secundárias
oespetáculo comportava, além de Zaira, três e subalternas na administração pública. Procurei em vão
entremezes (intermedes) no original) e um balé pessoas de cor: elas teriam o direito de comparecer mas
completo, Psyché, a cargo, nos primeiros papéis, provavelmente não seriam bem acolhidas".
de bailarinos franceses. A conclusão de Arago
não poderia ser mais fulminante: "Os nomes de A década da Independência fora de intensa ebu-
Ésquilo, de Sófocles e de Eurípedes estão na cortina lição política, com prejuízo para o teatro. Quando
do proscênio; é tudo que há de Ésquilo, de Sófocles ela já se aproximava do fim, tentou-se uma solução
e de Eurípedes no teatro do Rio"72 • definitiva. Fernando José de Almeida mandou con-
O que disse Jacques Arago sobre a tragédia, tratar em Lisboa uma companhia completa, cerca
quanto à qualidade de interpretação, reiterou de vinte pessoas, distribuídas, as mais importantes,
Victor Jacquemont, francês que esteve no Rio de acordo com a hierarquia habitual do palco: pri-
em 1828, em relação à ópera. Nada lhe agradou meira dama, segundas damas, primeiro galã, velho
na encenação de L'Italiana in AIgeri) de Rossini: sério, galã central e tirano, primeiro gracioso e
"orquestra, cantores, espetáculo, tudo era lamen- petimetre (o petit-maitre francês naturalizara-se
tável". A parte mais interessante do retrato que português), segundo gracioso>'. O velho não sério
traçou com detalhes curiosos refere-se, todavia, ao já por aqui se achava: Victor Porfírio de Borja,
lugar que cabia ao teatro no contexto da sociedade "consumado no gênero cómico, em que era natural e
carioca:
73 Yó)lage dansl'Inde, torno 1,Paris: FirminDídot Frêres, 1841, p.
57-) 8. A palavraloge, traduzidaaquipor "camarote', compreendia
certamentetambémasfrisas. Traduzimos viiia, grifadano original,
71 Raimundo MagalhãesJúnior, "D. Pedro e os Artistas': Bo- por "chácara': pela indicação, numa frasesuprimida, de que essas
letim da SBAT, n, 289, P: 1). O original do bilhete, informa o casasse situavamnos arredores da cidade.Quanto à praça men-
articulista, encontra-se no Museu Imperial de Perrópolis, cionada,trata-seda praça do Rocío, hoje praça Tíradentes,
72 Souuenirs d'un Aveugle, II. Lebrun, nova edição [s.d.],v. 1, 74 CE. LafayetteSilva,Históriado Teatro Brasileiro, Rio deJa-
p.83- 84· neiro: Ministério de Educação e Saúde, 1938, p. 29.

+ 54
+ As Raízes do Teatro Brasileiro

mestre"?'. Por baixo dessa estrutura artística, fun-


cionava outra, familial, também não incomum no
teatro: mulher, irmãs, irmão, sobrinhos, marido.
O astro em torno do qual os restantes gravita-
vam era a primeira dama, Ludovina Soares da Costa
, (1802-1868), filha e neta de ateres, sem contar osvá-
rios parentes espalhadospela companhia. A sua mãe,
"agrande Josefa Tereza Soares': substituíra Mariana
Torres, "quando da primeira ida desta ao Brasil"76 •
Por ocasião da segunda vinda ao Rio da atriz por-
tuguesa, em 1820, a mesma honra coube à própria
Ludovina, que estreara aos nove e agora, aos dezoito
anos apenas, ascendia aos primeiros papéis. Com ela,
que veio ao Brasil para ficar, como de resto a maior
parte de seus companheiros de elenco, pode-se dizer
que nascia em nossos palcos, embora tardiamente,
a arte clássica,enquanto continuidade profissional.
Decorridos trinta anos, acalmada a tormenta român-
tica e já em plena reação realista, o seu estilo nobre
de representar ainda arrancava elogios de um jovem
crítico que, além de partidário das recentes mudan-
ças cénicas, costumava pesar muito bem as palavras.
Eis como a caracterizou Machado de Assis em 18 59:
"É a trágica eminente, na majestade do porte, da voz
e do gesto, figura talhada para um quinto ato de Cor-
neille, trágica pelo génio e pela arte, com asvirtudes
da escola e poucos dos seus vícios":".
No dia em que desembarcava no Rio a segunda Ludovina Soares da Costa, aos 55 anos,
leva da companhia, vinda em duas galeras, em ju- esafoana, a Doida.

lho de 1 829, realizava-se o enterro de Fernando


José de Almeida, o empresário que a contratara. mentos de apuros financeiros, concedera subsídios
Em face do imprevisto e da inquietação dos ateres e novas loterias. Na sala do Teatro S.João, incen-
portugueses, D. Pedro teria dito, à sua maneira im- diado em 1824, ele comemorara festivamente não
petuosa e generosa: "E não estou eu aqui?" A frase, só datas familiares, aniversários, casamentos, como
transmitida pela tradição, tem visos de verdade. De o seu com D. Leopoldina, mas também relevantes
fato, o imperador era quase tão dono - ou talvez acontecimentos públicos: a subida ao trono de D.
mais - do teatro que passara a trazer o seu nome João VI; a proclamação da Independência, quando,
quanto o prestativo Fernandinho, a quem, em mo- voltando de São Paulo, foi acolhido no teatro, onde
se representava uma ópera aos gritos de "Viva Pe-
75 João Caeranos, LiçõesDramáticas, Rio deJaneiro: MEC, 1956,
dro, viva o grande imperador do Brasil"?".
P·13·
76 J.de Faria, op. ~it., P: 3 I 5-326; É curioso que José Maria da A análise de dois desses espetáculos comemo-
Costa e Silva, tradutor teatral e atar em ocasionais espetáculos rativos de fundo político lança alguma luz sobre
amadores, nos volumes I e 3 de suas Poesias, editadas postuma-
mente em 1843 e 1844, haja dedicado, se não inspirados, ardo- as relações entre a Coroa eas representações dra-
rosos versos tanto aJosefa Tereza Soares ("sublime arríz") como à máticas, não menos indíretas que as mantidas com
sua filha, a "formosa Ludovina", ressaltando-lhe, por exemplo, os .
"olhos divinos'; o "nevado colo'; "aslongas tranças cor da noite'; os empresários.
e1evando-a a "esplendor e assombro" da "lusa cena" (vol. I, p. 203,
216). 78 CE. A. Andrade, op. cít., p. 119. A citação foi tirada de um
77 CríticaTeatral, Rio deJaneiro:Jackson, 193 8, p. 132-133. periódico da época.

+ 55
História do Teatro Brasileiro • volume 1

No ano de 1821, após um esboço de revolução, Defende a autoridade de Aristóteles, Horácio,


abriam-se em Lisboa as Cortes Gerais, destinadas Boileau, sem ignorar, no entanto, as razões de seus
a dar uma Constituição à nação portuguesa. Era adversários:
o primeiro passo jurídico de um conflito que di-
vidiria e ensanguentaria Portugal, a exemplo e às Embora eu veja os espanhóis, os alemães e os ingleses,
vezes na cola da Espanha, por mais de um decênio. desprezando as doutrinas de tais mestres, seguirem outra
Como a ideia republicana parecia ter naufragado marcha; e até alguns pugnarem contra as três unidades,
miseravelmente em sangue na França, o conflito principalmente contra a de lugar, demonstrando que ela
entre liberais e conservadores transferira-se para o restringe o fogo da imaginação e tira a vida à maior parte
centro mesmo da monarquia, repartindo-a, pela das composições dramáticas.
ideologia e logo a seguir pelas armas, entre cons-
titucionalistas, que admitiam limites claramente A dificuldade, para Fernando José de Queirós,
expressos ao poder real, e absolutistas, apegados ator, autor, segundo informa, de 48 peças não pu-
a valores aristocráticos anteriores à Revolução blicadas, que já se adornara "com o alto título de ad-
Francesa. Entre os dois extremos localizavam-se ministrador do Teatro Nacional da rua dos Condes':
posições intermediárias - Constituição votada, de estava em conciliar teoria e prática. Uma peça como
baixo para cima; Constituição outorgada, de cima a sua, "drama em três aros e de grande espetáculo',
para baixo -, permitindo contínuas permutações digno por esselado do acontecimento cívico que co-
no jogo político. memorava, não se escrevia com facilidade, nos oito
A exaltação liberal de 1821 originou um drama. dias em que foi urdida, sem arranhar aqui e ali as ben-
O Verdadeiro Heroísmo ou o Anel de Ferro (o se- ditas regras.Estas, aliás, "não são tão restritas em peças
gundo título logo prevaleceria sobre o primeiro), aparatosas, que devem brilhar também pela pompa
que repercutiu dernoradamente, inclusive em dis- da decoração': Repugnavam-lhe, contudo, por atentar
tantes palcos brasileiros. O seu autor, Fernando contra o realismo, as mutações de cenários efetuadas
José de Queirós, cujo maior mérito literário é ter à vista do público, mutações que, lidando com relões
sido avô paterno de Eça de Queirós, publicou-o em que subiam e desciam movidos por cordas, faziam
1822, procedendo-o por uma dedicatória endere- de repente "voar uma casa, um bosque etc. etc." A
çada equitativamente ao "soberano Congresso" e a mudança entre os ates "já é transgressão das regras,
"vossa majestade" (D .João VI), na qual explica que a porém mais perdoável, porque não apresenta aos
peça "foi representada nos faustíssimos dias em que olhos a monstruosidade mágica, e os modernos as
no teatro Nacional da rua dos Condes se celebrou, admitem nas peças de espetáculo" (e entre as mons-
com a devida pompa, a instalação das Cortes"79; e truosidades mágicas incluía-se, evidentemente, a
por um prefácio, intitulado ''Ao Benévolo Leitor", produção barroca de Antônio José da Silva).
precioso pelas informações e reflexões que contém O avô de Eça, seja-lhe creditado à memória,
sobre esse tumultuado período de transição teatral, punha o dedo na ferida, acusando o impasse que
mais tarde classificado de pré-romântico. preocupará o teatro por todo o século XIX e boa
As suas simpatias teóricas iam todas para o clas- parte do século xx. A carapaça imposta por Boi-
sicismo, na verdade agonizante, com não mais do leau z: num só lugar, num só dia, uma só ação -,
que dez anos de vida - mas ninguém então o sabia. não constrangendo os dilemas morais e psicoló-
"O teatro francês" - escreve - "é o mais perfeito do gicos das tragédias de Racine, começava a estalar
mundo: os seus bons autores são os mais escrupulo- e a romper-se assim que se desejava escrever peças
sos observadores das regras, e nem por isso as outras tão movimentadas, de tanto conflito exterior,
nações, que as desdenham, têm maior abundância quanto as de Shakespeare.lvIas o palco "à italiana':
de composições dramáticas"!", uno, fechado pelo pano de boca, com cenários
que se pretendiam reais, não podia ter a B.uidez,
79 O Verdadeiro Heroísmo ouoAneldeFerro, Lisboa:Tipografia a variedade de locais e de tempos, proporcionada
Bulhões, 1822.
80 Idem, P: 7-19.
pelo velho palco elisabetano, múltiplo, em parte
+ As Raízes do Teatro Brasileiro

aberto, completado só com acessórios. Ou casas e liberais do que hoje seria". Mas essepouco, dez anos
bosques surpreenderiam o público ao "voar" pelos depois, bastou para incendiar o coração de muitos
ares, com quebra da ilusão cênica, ou fechava-se e brasileiros quando a ocasião histórica se apresentou.
abria-se o pano a cada novo quadro, com quebra A peça comemorativa seguinte, O Príncipe
do ritmo dramático. Uma coisa era a cogitação es- Amante da Liberdade ou a Independência da
tética, a liberdade total sonhada pelos românticos, Escócia, surge com destaque em dois momentos
ou a meia liberdade já posta em execução pelos pré- capitais da vida brasileira. Foi representada no
-românticos, para alegria do público e horror dos Real Teatro de São João, em r 822, celebrando, no
eruditos; outra coisa, a resistente realidade material dia do aniversário de D. Pedro I, a sua aclamação
do palco com que se contava. como imperador do Brasil; e serviu para que João
Quanto à peça, não era original, revela o autor Caetano (r808-r863), em r833, já em oposição ao
com uma candidez nem sempre encontrável na elenco português, estreasse em Nit~rói a primeira
cena portuguesa: companhia, profissional e moderna, integrada ex-
clusivamente por ateres brasileiros.
Como de modo algum pretendo roubar a glória alheia, . Um jornal de r822 fez um relato extenso e
devo confessar que arquiteteí o presente drama sobre o elucidativo de como se festejava no teatro um im-
casco da peça francesa de Mr. Victor, que se intitula O Prín- portante evento cívico:
cipe da Noruega, e quem se der ao trabalho de confrontar
as duas verá que, se não mereço o nome de autor, também Suas majestades imperiais com sua augusta filha foram ao

não me compete o de tradutor". teatro às 8 e meia, com grande acompanhamento; não temos
expressões com que descrever o alvoroço e vivo entusiasmo

A declaração suscita de imediato uma pergunta. que causou o aparecimento de suas majestades imperiais.

Terá algo a ver com as Cortes portuguesas de r 82r Repetiam-se os vivas, a que suas majestades imperiais

uma peça composta na França sobre um príncipe prestavam a maior atenção, agradecendo com repetidas

da Noruega que, ao se casar com a rainha da Di- inclinações de cabeça o público regozijo que eles motiva-

namarca, em tempos dramaticamente incertos e ram; recitaram-se inúmeros versos de diferentes qualidades

mal sabidos, acaba por reunir os dois reinos sob mas todos alusivos ao "Grande Objero" e que foram mais

uma só coroa? Nada, evidentemente. Ou quase ou menos aplaudidos conforme o melhor ou mais inferior

nada, apenas algumas frases não extraídas e sim desempenho dos poetas e recitadores.

enxertadas um tanto a fórceps no diálogo, quando, Dos camarotes apareceram três bandeiras de seda com

por exemplo, alguém afirma: "O monarca a quem as novas armas do imperador do Brasil, sendo a primeira

sirvo é nimiamente defensor da lei e da Constitui- apresentada pelo excelentÍssimo general das Armas; se fora

ção". Ou então, desta vez enunciado pelo próprio possível aumentava-se com esta vista o entusiasmo, porém

príncipe, liberal convicto avant la lettre: "Eu sou o já não era possível porque tinha chegado ao extremo.

monarca, e como tal devo ser o primeiro executor Durou este interessante espetáculo quase uma hora e

da Constituição [...] Desgraçados dos povos onde sossegou para a orquestra dar princípio à sinfonia; finda
se dita a lei pelo despotismo, onde não é o voto esta recitou-se um assaz benfeiro "Elogio Dramático" alu-

geral da nação que a promulga"82. sivo ao aniversário natalício de sua majestade, à Indepen-

Parece pouco, além de mal a propósito, tão dência do Brasil e sua elevação à categoria de Império; findo

pouco que Fernando José de Queirós, no prefácio, se o "Elogio" cantaram de três camarotes contíguos, da ordem

penitenciou: "Fui mais parco na exposição de ideias nobre, vários cidadãos conspícuos um novo hino nacional,
que transcrevemos abaixo e cuja música foi composta pelo
bem conhecido e insigne compositor Marcos Portugal.
81 Mr. Victor é um pseudónimo comum a vários escritores. No
caso, trata-se de Victor Ducange, um dos mestres do melodrama Seguiu-se a representação pela Companhia Portuguesa do
francês. O título original da peça, estreada em Paris, em 18 I 8, é
drama em três aros Independência daEscócia, traduzido livre-
Le princedeNorwege ouLa bague defiro CE. Beaumont \Vicks,
TbeParisian Stage, Parte 2, Birmingham: Universiry ofAlabama mente e acomodado ao arual sistema do Império do Brasil... 8)
Press, 1953, P: 66.
82 F.J. de Queirós, op. cit., p. 64, I I 6. 83 A.Andrade,op.cit.,p.151-152.

+ 57
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Pano de boca do Teatro de S.João, de autoria de Debret, Sua inauguração ocorreu em 1822,
nas festas da coroação de D. Pedro I.

A autoria da peça é desconhecida. Mas talvez de Azevedo), que se tornou homem de teatro nesse
se possa adiantar uma hipótese viáveL A primeira período, havendo falecido com trinta anos em 1814.
parte do título, nunca citado, ao que saibamos, A "feroz Dinamarca" invadira a Escócia. Al-
em repertórios de peças portuguesas, ou mesmo guns cedem ao inimigo, ou causam tal impressão,
francesas, celeiro habitual dos palcos de Lisboa, foi como Lombecour, cidadão dos mais respeitados
evidentemente arranjada para recair sobre a pers.o- da localidade. Outros - especialmente as mu-
nalidade de D. Pedro, por antonomásia O Príncipe lheres e as pessoas do povo - aguardam com
Amante da Liberdade. Pode-se, pois, descartá-la. ansiedade a volta do rei legítimo, Alfredo, o Res-
Resta, como pista, a segunda parte, A Indepen- taurador (termo político eminentemente portu-
dência da Escócia) também ela alusiva, remetendo guês), cuja vitória não deve tardar. A peripécia,
a outra independência, aquela que estava no espí- a transformação do "delinquente sem culpá' em
rito de todos. Ora, existe uma peça portuguesa, do "patriota escocês", dá-se nas últimas cenas. A
escritor mais representado no Brasil nas primeiras principal acusação que fazem a Lombecour é ter
décadas do século, que se presta admiravelmente a ele pintado, no recesso do seu palácio, um painel
essa passagem da Escócia ao Brasil. exibindo o pavilhão nacional sendo vilipendiado
ODelinquenteSem Culpa ouoPatriota Escocês'», pelo gênio que protege os tiranos. Pois essa vai
apesar de ocorrer em país e tempos distantes, tocava ser exatarriente a sua defesa, a carta que tira da
num ponto sensível da recente experiência histórica manga do casaco, onde o autor a escondera, ao
portuguesa, dizendo respeito ao que modernamente ser cercado e ameaçado pela multidão em fúria,
sechamou de colaboracionismo.Asinvasões napoleô- Para mostrar que não traíra o seu rei, fingindo
nicas, não menos em Portugal do que em outras na- abandoná-lo para melhor servi-lo às escondidas,
ções, forçavam a população local, ainda que apenas aciona uma mola secreta: cai o painel ignóbil, sur-
em seu foro Íntimo, a colocar-se a favor ou contra as gindo em seu lugar, ao som de um hino, a efígie
forças estrangeiras. É o que mostra o drama de An- de Alfredo. A comoção é intensa:
tônio Xavier (por extenso, Antônio Xavier Ferreira
TODOS - ~evejo?

84 Antônio Xavier Ferreira de Azevedo, O Delinquente sem


povo - Viva o nosso libertador, o nosso monarca".
Culpa ou o Patriota Escocês,Jornalde Comédias e Variedades,
parte 4. Lisboa, 183 5. v. I. A publicação é póstuma, como quase
roda a obra do auroro 85 Idem. p. 88.
+ As Raízes do Teatro Brasileiro

Não é proibido imaginar, perante tal cena, os de Ferro é um bom exemplo, com a sua cadeia de
espectadores brasileiros de 1822 voltando-se para intrigas e contraintrigas, golpes e contragolpes).
suas majestades imperiais e estas agradecendo le- Alguns episódios ajudam a sustentar a ação, mas
vemente com a cabeça. Estava ali, no "casco" (ex- esta se concentra, basicamente, de um lado no
pressão de Fernando José de Queirós) do drama, próprio fenômeno da guerra, equiparando pela
a cunha necessária para acomodá-lo, corno diz a bravura moral ricos e pobres, homens e mulheres;
notícia, "ao atual sistema do império brasileiro". e de outro, em nível ainda mais alto, ainda mais
Talvez esse trabalho fosse rematado pela cenografia, idealizado, na figura de Palafox, cunhada sobre o
oferecendo ao público um painel final com marcas modelo do "chevalier sans peur et sans reproche',
inequivocamente brasileiras. Dar-se-ia nesse caso implacável no com bate, generoso com os vencidos.
ao esperáculo aquele caráter amplo e alegórico que Para aproximar a trama do público a que ela se diri-
se esperava do teatro nas ocasiões solenes, papel gia, comparece em cena um voluntário português,
representado em geral pelas personagens abstra- que traz gravada na espada a imagem de D. João
tas - o Gênio da Nação, a ':Musa - dos indefectíveis VI, o "imortal]cão" - e talvez por isso a peça tenha
Elogios Dramáticos. sido editada tão cedo no Brasil -, e cuja presença
O terna da Independência, tendo um sentido justifica elogios ainda mais gratos à vaidade lusitana
para a América, tinha outro para a Europa. Do por emanar, sob forma de advertência, dos lábios
lado de lá do Atlântico tratava-se não de obtê-la, de uma aristocrata aragonesa: "E quando noutro
livrando-se do estatuto colonial, mas de garanti-la momento repetires o nome português, não te
ou de recobrá-la. A guerra, sendo urna realidade esqueças! Adora tal nome, respeita-lhe o valor e
inescapável, que refluía tanto sobre a vida das na- segue-lhe as virtudes'V, A façanha pertencia à Es-
ções quanto sobre a dos indivíduos, dificilmente panha, mas Portugal a ela se associava por direito
ficaria ausente dos palcos. Entre as peças portu- de contiguidade e de parentesco.
guesas inspiradas por este período bélico, urna das Enquanto teatro, Palafox imagina-se mais corno
mais populares foiPalafox em Saragoça (subtítulo: espetáculo aparatoso do que corno literatura dra-
ouA Batalha de 10 de agosto de 1808\ do mesmo mática. A descrição minuciosa, dirigida a futuros
onipresente Antônio Xavier. A rapidez com que ensaiadores, do cenário onde se travará o combate
repercutiu no Brasil - logo se verá por quê - é decisivo, primeiro com vitória dos franceses, depois
atestada por urna edição baiana lançada em 18 I 2 86. dos espanhóis, dá urna excelente ideia do gênero de
encenação imaginada pelo autor para tais peças:
O episódio da desesperada resistência imposta
aos franceses pela cidade espanhola, sob o co- Grande praça, algum tanto arruinada; todos os bastidores
mando de Palafox, mais tarde duque de Saragoça, (isto é, os que forem suscetÍveis) com janelas praticáveis, e
espantou e comoveu a Europa. Levar ao palco um aqueles que as não tiverem deverão figurá-las em pintura,
assunto corno este, não fictício, com algumas perso- mostrando pessoas a espreitar, outras com armas de fogo,
nagens tiradas diretamente da atualidade histórica, outras com algum móvel para lançar à praça. As janelas
era urna ousadia dramatúrgica só explicável, corno praticáveis deverão abrir-se quando a rubrica mandar. No
outras semelhantes, pela confusão de fronteiras e fundo grande eminência de ruína (tudo praticável). Um
de espíritos causada pelas incessantes iniciativas de templo pintado no centro do pano, que deve mostrar uma
Napoleão. Ele é, de resto, o vilão da peça, somente longitude considerável; dos lados barracas de campanha; e
mencionado mas todo-poderoso - o "imperador" para mais acrescentar à visualidade, mesmo junto ao pano
para os franceses, o "tirano': o "monstro': o "déspota do fundo haverá pedaços de papelão com cavalaria e infan-
infernal': o "corso infame': para os espanhóis. taria pintada, os quais no calor da peleja podem sumir-se,
Palafox em Saragoça não tem exatamente enredo, para mais certificar o destroço do inimigo. Na direita da
corno propunha o nascente melodrama (e OAnel eminência há duas peças de artilharia, montadas em carretas,

86 A. Xavier, Palafox emSaragoça, Bahia: Tipografia de Manuel


Antônio da Silva Serva, 1812. 87 Idem, P: 23.

+ 59
História do Teatro Brasileiro + volume 1

e na esquerda uma bateria com peças assestadas, e bandeira É que, se se estava em tempo de guerra, estava-se
espanhola'". também em plena voga da sensibilidade exaltada, à
maneira de Rousseau, quanto à filosofia, e de certos
É aí, nesse palco tão bem preparado, nessa dramas de Kotzebue, quanto ao teatro, como o fa-
curiosa mistura de objetos de duas e de três dimen- moso MisantropiaeArrependimento) representado
sões, de janelas "praticáveis" - as que se abrem - e em Portugal e no Brasil, que levava o sentimento
janelas impraticáveis, de carretas, canhões e barracas de comiseração ao seu extremo, ao indulto conce-
de verdade e um templo patentemente de mentira, dido pelo marido à esposa, no passado, infiel e no
porque pintado no pano de fundo, que se enfrenta- presente, arrependida.
rão soldados de carne e osso e imóveis soldados de Chora-se muito e limpa-se bastante os olhos em
papelão. A convenção teatral, o pacto de verossimi- O Novo Desertor Francês) "comédia sentimental em
lhança estabelecido com o público, tentava, mais três aros traçada sobre o bem conhecido assunto
do que descrever, exibir a guerra em toda a sua ma- do insigne Mercier por Antônio Xavier F. de
terialidade, num esforço penoso e vão de realismo Azevedo"?'. O insigne Mercier era Louis-Sebastien
ingênuo. A palavra, embora heroica e altissonante, Mercier, escritor de carreira desenvolvida um tanto
já não bastava, nem mesmo quando secundada pelo a contrapelo da literatura oficial. Amigo de Restif
cheiro de pólvora seca, pelo troar das armas e pelo de la Bretonne, admirador entusiasta de Rous-
rufar dos tambores. O autor, homem prático de seau, partidário em teoria teatral de Diderot, não
teatro, rodo prevê, inclusive as falhas. A certa al- aceitava a obediência estrita à lei das três unidades
tura, "atravessam algumas bombas o teatro [ou seja, e defendia o uso da prosa para peças referentes
o palco] pelo alto". Mas, "no caso que as bombas à burguesia, como as que punha em cena. Este
não apareçam o ator pode substituí-las" pela frase: drama, publicado em 1771, chamava-se em francês
'Porém que vejo! As bombas já cruzam os ares"'89. somenteLe Déserteur. O título dado por Antônio
Planejava-se como teatro rico, executava-se como Xavier e as palavras explanatórias que o acompa-
teatro pobre. Das duas hipóteses, a primeira, a rica, nham destinavam-se a manifestar que o texto fora
entrando pelos olhos, é a preferível, provocando remanejado, adquirindo certa personalidade pró-
seguramente mais sensação cênica. pria. De fato, entre outras modificações, uma das
Palafox, herói perfeito, não se revela atento personagens mudara de sexo, passando de mãe a
apenas ao "direito das gentes': barbaramente piso- pai, e o desfecho se invertera. O desertor em ques-
teado por Napoleão. "Homem sensível", segundo tão é salvo na última hora, por ordens superiores,
os melhores padrões da época, condói-se de todo e não fuzilado, como queria Mercier (ao menos na
sofrimento humano, chegando, em situações raras, versão original), para melhor destacar a iniquidade
difíceis, senão a chorar abertamente, "a limpar os da disciplina militar. Da peça de tese de natureza
olhos" (esclarece a rubrica), desculpando-se: "Di- humanitária permanecera o travejamento melo-
zem que Palafox é homem, que preza os homens; dramático, despertando apreensões e arrancando
e que até sem desdouro sabe chorar como eles">". lágrimas antes do desafogo final. Em resumo: um
Gesto esse, de limpar os olhos, disfarçando a emo- drama polêmico transformara-se, para uso local,
ção, que recorre em todos os combatentes da boa em "comédia (porque acabava bem) sentimental".
causa, separando com nitidez a clemência ibérica Não se creia, todavia, que a exploração cênica do
da impiedade francesa. "homem sensível" fosse exclusividade do copioso
Antônio Xavier. O ImperadorJoséII Visitando os
88 Idem, p. 169. Praticável é a parte do cenário, construída em
Cárceres daAlemanha?", publicado anonimamente,
madeira e oculta aos olhos do público, que serve de suporte a "um mas atribuído a Antônio Ricardo Carneiro, ter-
acidente de terreno, uma construção, ou qualquer objeto sobre o
qual um ou mais personagens possam estar, subir, andar, mover-
mina a sua apologia do bom monarca, do "déspota
-se e entrar" (A. Sousa Bastos, Dicionáriodo Teatro Português,
Lisboa: Libanio da Silva, 1908, p. II 5). 91 Cópia manuscrita, datada de 1841.
89 Idem, p. 167-168. 92 Antônio Ricardo Carneiro, O ImperadorJoséII Visitando os
90 Idem, p. II 5. Cárceres daAlemanha, Lisboa: Imprensa Régia, 1819.

+ 60
• As Raízes do Teatro Brasileiro

esclarecido': com esta mesma nota moral: "Amável a alemã (as·três citadas com ótima visão histórica
clemência, tu és filha do céu; tu não és grata ao por Fernando José de Queirós no prefácio de O
ímpio; desagradas ao tirano, mas serás sempre grata Anel de Ferroi, começavam a emergir, a subver-
ao homem sensível'w. ter a ordem instituída pela França, preparando
Os três tipos dramatúrgicos exemplificados o advento do romantismo. O público inculto,
acima, as peças sensíveis, as peças bélicas e as peças curiosamente, encontrava-se, em certo sentido,
liberais, surgidas ao mundo mais ou menos nessa na vanguarda dos acontecimentos, na medida em
sequência nos primeiros decênios do século XIX, que não tinha preconceitOs de espécie alguma a
nunca prosperaram a ponto de constituir escolas imobilizá-lo. Desejava ver no palco emoções fortes,
ou movimentos teatrais, identificáveis como tal. lances sensacionais - e logo os teria, de primeira
Não foram além de modismos, tendências passa- ordem, proporcionados por personalidades vigo-
geiras, fatos de palco, não de literatura. Quem as rosas como as de Victor Hugo e Alexandre Dumas.
compunha enxergava-se a si mesmo menos como Nesse sentido, e apenas nesse sentido, pode-se falar
escritor - a maioria dos textos nem sequer foi pu- em pré-romantismo no teatro de Portugal.
blicada - do que como homem de teatro, no sen- Os três tipos de dramaturgia, de resto, não
tido profissional do termo. Sem imaginação para apontavam na mesma direção. As peças de sensi-
elaborar uma história que relacionasse meia dúzia bilidade vinculavam-se ao passado, a hábitos vigen-
de personagens em torno de um conflito central, ou tes na segunda parte do século XVIII. As guerreiras
sem habilidade para, a partir desse núcleo, desen- tentavam retratar o presente, em seus aspectos mais
volver um enredo teatral propriamente dito, isto é, pinturescos - palavra ancestral do "pitoresco"
uma sucessão de cenas que vá entrelaçando progres- romântico - e candentes. Os dramas liberais, ao
sivamente os fios dramáticos até chegar o instante contrário, procuravam adivinhar e construir o fu-
de desenlaçá-los com um só golpe de efeito, não turo, proj etando a imagem de uma sociedade mais
lhes restava outro recurso senão aproveitar "cas- equilibrada e mais justa.
cos" de dramas estrangeiros, já provados perante Foram os ateres portugueses, alguns, como
o público, recheando-os com algumas invenções vimos, recrutados entre os melhores do país, que
pessoais e sobretudo com alguma matéria ao gosto trouxeram para o Brasil todo esse atropelado
português. Em última análise, prosseguia o sistema repertório, que, se não brilhava pela qualidade
de adaptações utilizado por Nicolau Luís no século artística, tinha a vantagem de representar o que
anterior, com duas diferenças importantes: a fonte chamaríamos de teatro real, em oposição ao teatro
estava agora na França, não na Espanha ou na Itá- ideal, sempre sonhado e raramente realizado pelos
lia; e a participação dos "graciosos': não havendo grandes escritores.
desaparecido de todo - há cenas e personagens cô- Um jovem crítico, Justiniano José da Rocha,
micas intercaladas até entre as batalhas de Palafix que logo se dedicaria unicamente ao jornalismo
em Saragoça -) já não pesava tanto na ação e não político, acusou do lado de cá do Atlântico a che-
desfigurava tanto os entrechos dramáticos. gada quase simultânea dessas ondas sucessivas de
Todo esse repertório inscrevia-se num quadro peças. As de sensibilidade, mais antigas, pouco o
de teatro popular, sustentado pelo grosso público, atingiram, embora ele se refira de passagem, entre
não por pessoas eruditas, porque estas achavam-se as velharias imprestáveis, ao "cediço Desertor". Já
presas, ao escrever e ao julgar produções alheias, às a fase bélica mereceu-lhe todo um parágrafo num
fórmulas em vias de exaustão da tragédia francesa. balanço feito com graça e penetração em I 84I.
Tal foi, com efeito, o paradoxo do teatro português: Sobre a "época cavalheirosa e guerreira' escreveu:
inclinar-se para o classicismo no momento em
que este já perdia forças, quando as dramaturgias Agora sim, isso é que foi sublime! O enredo dramático, a
consideradas heterodoxas, a inglesa, a espanhola, beleza do diálogo, o bem tecido das cenas, o sublime do des-
fecho, tudo foi posro de lado. Só uma coisa tinham em firo
os empresários do teatro: atravancar o tablado de cavalos,
93 Idem, P: 125-126.

• 6r
História do Teatro Brasileiro • volume 1

guerreiros, bagagens militares, tropa e mais tropa. Coinci- Na ocasião, seria difícil não reparar. Basta ler os
dência notável! Enquanto nossos batalhões desapareciam comentários jornalísticos suscitados pela encenação
todos os dias do quadro do exército, o teatro ostentava uma em cidades mineiras do drama de Fernando José de
profusão de militares verdadeiramente espantosa! Nessa Queirós, naqueles anos cruciais de 1829 e 1830, em
época foram representados O Bombardeamento do Porto, que a campanhaliberal fervia, como se fosseum con-
a Corte dasÁguasLivres, a Tomada da Terceira, Palafox em flito local- em parte era - por toda Minas Gerais.Em
Saragoça, e a inimitável Expulsão dosHolandeses, drama em jornal de Ouro Preto:
que não se viam senão peças e mais peças, soldados e mais
soldados, caboclada e mais caboclada! Era uma balbúrdia Representou-se ultimamente no teatro desta cidade um
estupenda. Essa época belicosa dos nossos teatros durou drama intitulado O Anel de Ferro. Foi composto para se
pouco, mas teve imensos admiradores. recitar na presença do Congresso em Lisboa em 1821, e
contém muitas ideias. Observei que o povo desta cidade
Agora, retratada com o mesmo espírito cáus- aplaudiu com entusiasmo os períodos que continham os
tico, a "época liberal": queridos nomes Constituição, liberdade etc. 96

Entendia-se então que o poder era inimigo declarado da Na imprensa de Mariana:


liberdade, e que cumpria esmagá-lo, para que esta não pe-
rigasse. O teatro ressentiu-se desta influência dos ânimos, Os sectários do governo absoluto cansam-se de afastar dos
e só trataram de levar à cena essas peças declamatórias, re- olhos do povo tudo aquilo que pode instruir, receando
cheadas de ideias muito corriqueiras sobre a liberdade dos que o povo ilustrado conheça os seus direitos e se torne
povos e tiranias do governo. Sem uma banda [síc] formidá- amante e defensor do sistema constitucional. Se dois cida-
vel no despotismo horrendo e feroz nada se fazia, e apenas dãos honrados se juntam e conversam em doce harmonia,
se falava contra esse monstro cruel, explosões de aplausos já os cativos se enchem de terror e já lhes parece que se
redobrados atroavam todo o salão. Então faziam as delícias forma um clube anárquico, republicano, incendiário. De-
deste bom povo o célebre Anel de Ferro, A Independência pois que aqui se pôs em cena a bela peça intitulada An elde
daAmérica,D.José ri, Cristinas etc. etc. 94 Ferro e que foi aplaudida pelo público, os tais homens não
sossegam. Cheios de indignação diziam a cada passo que
A agitação liberal, no Brasil como em Portugal, as peças devem ser sujeitas à censura, que no teatro não se
não se fazia apenas em torno de princípios. Lá, os deve falar em Constituição, porque assim corrompem-se
constitucionalistas enfrentavam os "miguelistas': os costumes e ilustra-se o povo que só deve ser estúpido e
defensores da volta à monarquia absoluta. Aqui, cheio de cega obediência e temor'",
tentavam pôr freios ao temperamento autoritário de
D. Pedro. Foi então que OAnel deFerro ressuscitou Em São João De! Rey:
e cresceu em palcos brasileiros, como uma das ar-
mas desse confronto de forças que só terminou em Esta peça foi muito aplaudida não só pelo bom desempe-
1831, com a abdicação do imperador. Vinte anos nho, como por ser constitucional; o teatro (quando nele
passados, a atuaçâo política do teatro era relembrada representam ates dessa natureza) é a melhor escola de bons
nos debates do Parlamento, por intermédio de um costumes e civilização dos povos; ali se exalta a virtude e se
deputado: "Talvez não se tenha ainda reparado na abatem os vícios, e o povo aprende a conhecer as intrigas
influência que teve no 7 de abril a representação do das Cortes para se pôr vigilante contra elas98•
Anel deFerro, do Novo Totila, e de outras peças que
no teatro do Rio deJaneiro, com enchentes extraor-
dinárias, eram nessa época aplaudidas"?'. 96 Cf. A. Ávila, O Teatro deMinas Gerais. Século XVIII e XIX,
parte de documentaçãonão numerada.
94 Revista Teatral, O Brasil, n12 140, 15 de junho de 1841. O 97 Cf.José SeixasSobrinho, O Teatro em Sabard, Belo Hori-
artigo não é assinado, mas o jornal pertencia a Justiniano, seu zonte: BernardoAlves, 1961, P: 82-83.
redaror principal. A expressão "o cedíço Desertor" encontra-se 98 Cf.Antônio Guerra,PequenaHistóriade Teatro, Circo, Mú-
em outro jornal seu: O Cronista, de 20 de agosto de 1836. sica e Váriedades em SãoJoãoDelRey,Juiz de Fora: ClubeTeatral,
95 Anais doParlamento, sessão de 15.5. I 85 o, p. 83. [s.d.],p. 24.

• 62
+ As Raízes do Teatro Brasileiro

o teatro não se deu por satisfeito com a abdi- a marcha dos acontecimentos para um fim previsto,
cação. No dia 3 de maio, menos de um mês após conhecido de antemão por todos.
o 7 de abril, o antigo Teatro S. Pedro de Alcân- Não deixava, portanto, de ter alguma razão,
tara, rebatizado às pressas Teatro Constitucional além das sentimentais, o beligerante, divertido e,
Fluminense, acolhia o drama O Dia dejúbilo para se calhasse, desbocado padre José Agostinho de
osAmantes da Liberdade ou A Queda do Tirano. Macedo, conservador em política e em literatura,
Qualquer que fosse o entrecho, a alusão histórica, quando escandalizava-se perante as incongruên-
díreta, ou mais provavelmente indireta, não esca- cias das peças ou adaptações de Antônio Xavier.
pava a ninguém. O autor, Camilo José do Rosário Separava-os, conta indiscretamente Inocêncio em
Guedes, vindo de Lisboa com a companhia de livro póstumo, intrigas ao mesmo tempo de alcova
1829, fora um dos subscritores da primeira edição e de palco. O padre, igualmente escritor de teatro,
de OAnel deFerro. Prova que o seu liberalismo pelo mantinha "mui íntimo trato" com a atriz lYlaria
menos não era de última hora. E o ator encarregado Inácia da Luz, ao 'pásso que o seu rival dramático,
de representar a personagem sobre a qual recairia a mais afortunado junto ao público, era amante da
ira do público, JoséJoaquim de Barros, "galã central conhecida Mariana Torres'?".
e tirano" do elenco encabeçado por LudovinaSoares Numa carta atribuída a um imaginário missi-
da Costa, avisavaatravés dos jornais, como medida vista,José Agostinho de Macedo reproduz com po-
de precaução, que: "para bem do drama é que se lêmíca facúndia as suas experiências de espectador
prontificara a fazer semelhante papel, pois que seus de teatro, por volta de 18 10, ao assistir a uma peça
sentimentos eram inteiramente opostos ao que se de Antônio Xavier. Cada vez que ele protestava
via obrigado a fazer sobre a cena"?". contra as incoerências da ação ou ilogicidade das
Quanto àquele que foi imperador na América personagens, um dos seus vizinhos acudia pressu-
e rei na Europa, Pedro I no Brasil e Pedro IV em roso: "São golpes de teatro" (a versão castiça dos
Portugal, o seu curioso destino seria o de recuperar famosos coups detbéâtre do melodrama e mais tarde
em sua terra natal, ao triunfar sobre o "miguelismo': do drama romântico francês). "Fora, disse eu, com
o título de O PríncipeAmante da Liberdade} que tanto golpe de teatro 1" A inegável comicidade e
o teatro lhe conferira em 1822, antes de se alegrar, o efeito crítico do folheto resultam da repetição
em 183 I, com A Queda do Tirano. constante e cumulativa da mesma invariável situa-
ção. "São golpes de teatro, me dizia o meu golpeado
vizinho: ele tem frequentado o teatro e sabe os
II golpes de teatro, ainda que os descarregue na ra-
zão e gosto". Segue-se uma explicação: "a plateia
Acima desse plano polítíco-popularesco, já tocado está nesse gOSto, é preciso fazer o gosto à plateia,
pelo espírito do melodrama, que nasce oficialmente ainda que se quebrantem todas as regras da Arte e
como gênero e como denominação na França em da Natureza". A motivação política também não
1800, pairava a tragédia, fechada em sua imutabi- é esquecida:
lidade formal: cinco aros: personagens restringidas
às essenciais (os protagonistas e seus confidentes ou A estas minhas reflexões abriu o meu vizinho um palmo de
auxiliares dramáticos); enredo relativamente sim- boca, e disse: Pois se não é um golpe de mão de mestre, é
ples, isento de surpresas de última hora; tempo e um golpe de teatro, e o autor, que é um brilhante gênio que
espaço rigidamente enclausurados; relações causais abrilhanta a cena, conhece perfeitamente a iluminada plateia.
fortes e bem justificadas (não se entrava ou saía do Conheça (lhe tornei eu), conheça ele embora a plateia, as fri-
palco sem um motivo convincente); abundância sas, as angras e as torrinhas, por certo não conhece o coração
de monólogos e diálogos (no sentido estrito); inte- humano, que é a única escola onde deve estudar a grande
resse concentrado não sobre o desfecho e sim sobre
100 Para esta citação e se.suintes, cf Inocêncio Franciscoda Silva,
Memoriaspara a Vida Intima deJoséAgostinho de Macedo, Lis-
99 CE. J. Galante de Sousa, O Teatro no Brasil, vol. r, P: r 55. boa: Tip. da Academia Real das Ciências, r898, p. 78-80.
História do Teatro Brasileiro • volume1

difícil arte dramática. Se me diz que a origem desta comédia e morte, inocência e crueldade. Opõe as razões de
é francesa, os franceses, meu Senhor, degeneraram depois da Estado às razões do coração (ou da natureza). E
Revolução [...]. São sentenças à toa, sem ordem e sem ligação, tem a vantagem, própria da tragédia desde os dias
e se a isso chama Vossa Mercê golpes de teatro, são pancadas de Sófocles até os de Racine, de apresentar-se ao
dadas na razão, no siso comum e no gosto apurado. público como verdade histórica, fatos que em ter-
mos exatos ou semelhantes realmente aconteceram,
A conclusão é que quase sempre em épocas longínquas.
João Batista Gomes junior, falecido jovem em
os franceses estão perdidos em matéria de gOStO (e em 1803, antes de dar plena medida de sua vocação
tudo o mais) e querer reduzir os seus monstros com os seus dramática, procura desculpar tanto quanto possível
golpes de teatro à nossa cena portuguesa, ingerindo-lhes não apenas Inês de Castro, cordata e conciliadora,
quatro sentenças choças, é dar meia dúzia de piparotes na imagem da afetividade feminina, como o próprio
razão humana'?'. Manso IV, cuja falha capital, na qualidade de pai e
de rei, seria a de prestar ouvidos a maus conselhei-
Duas tragédias portuguesas, contemporâneas ros. Assim, assinalava-se o perigo de tirania, que
desse cataclisma libertário mas indenes à sua in-' sempre ronda a realeza nas peças desse período, sem
fluência, brilharam em palcos brasileiros ou cha- arranhar em si mesma a instituição da monarquia.
maram a atenção sobre si: Nova Castro, de João O único desvario - desvario de amor e de orgulho
Batista Gomes junior, escrita em 1798, e O Triunfo ferido, ambos admitidos pela tragédia - é o de D.
da Natureza, de Vicente Nolasco da Cunha, edi- Pedro, por isso mesmo um papel caído do céu para
tada em Londres, onde o autor achava-se exilado, os atares de têmpera genuinamente trágica.
em 1809. As duas de certa forma questionam o que A Nova Castro conheceu mais de uma edição
Macedo chama de "razão humana', sondando-lhe no Rio de Janeiro, fenômeno editorial raro e que
os limites - mas sem perder de vista, sequer por comprova a sua popularidade local. A peça, aliás,
um minuto, a velha e boa razão estética de Boíleau, acompanhou a carreira de João Caetano pratica-
que impunha ordem à dramaturgia, ainda que sob mente do começo ao fim, pelo menos desde 1839
pena de condená-la a um perpétuo confinamento. até 186 r. Numa dessasrepresentações, o ator sentiu
ANova Castro (chamada Nova em oposição às em cena as "afrontações'?" que em breve o levariam
Castras anteriores, entre as quais a do árcade Do- a morrer do coração.
mingos dos Reis ~ta lhe teria servido de ponto A importância nacional de O Triunfo da Natu-
de partida), se não é uma obra-prima de poesia, ou reza) mencionada às vezes como Coraou O Triunfo
simplesmente de alta literatura, motivo pelo qual daNatureza, é de outra ordem, conceitua], não de
figura apagadamente nas histórias do teatro portu- palco. É provável que jamais tenha sido represen-
guês, revela, não obstante, qualidades não despre- tada profissionalmente no BrasiL Em compensa-
zíveis de fatura teatral. As cenas se sucedem sem ção, foi das primeiras peças escolhidas pelos alunos
pausas ou sobressaltos, as personagens recortam-se da Faculdade de Direito de São Paulo, fundada em
com clareza, os versos, embora sem grande inspi- 1828, para integrar o seu repertório amador':".
ração, correm com ritmo e naturalidade, nunca se É que ela punha em cena um dos temas que
afastando da língua falada a ponto de dificultar a se tornariam centrais no pensamento romântico
dicção dos ateres. Quanto ao episódio em que se brasileiro: a relação entre a Europa e a América,
inspira, com a sua aura poética e mítica, presta-se considerada esta ainda como um todo indiviso.
como poucos à transposição dramática. Conta Já se quis ver no texto de Nolasco da Cunha, por
uma história patética, em que se entrelaçam amor causa disso, ecos daAlzira ou OsAmericanos. Certo

101 José Agostinho de Macedo, CartaqueEscreveu oDoutorMa-


nuelMendesFogaça) Lisboa: Imprensa Régia, 181 I, P: 8-31. Ou- 102 Lafayetre Silva,João Caetano e Sua Época, Rio de Janeiro:
tra carta, de 1812, criticaPalafox em Saragoça) que não passaria Imprensa Nacional, 1936, p. 179·
de "assédios, ataques, mensagens, amores, sortidas, prisioneiros, 103 CE. Almeida Nogueira, A Academiade S. Paulo, São Paulo:
batalhas': Quarta Série, 1908, p. 57-60.
+ As Raízes do Teatro Brasileiro

que a tragédia de Voltaire, escrita em 1736, deve ter mas como religião do perdão, vinda para substituir
ressoado longamente na consciência liberal portu- os antigos cultos baseados na vingança ou no der-
guesa, já que ela aparece citada no Brasil durante ramamento ritual do sangue. A diferença, a favor
a campanha nativista que antecedeu e sucedeu à da Europa, passa a ser mais de natureza moral que
proclamação da Independência. Um periódico de teológica. O melhor Deus, pode-se inferir, é o que
1823, de título apropriado, O Tarnoio'?', colocou menos sofrimento causa à humanidade, não pe-
como epígrafe dois dos seus versos: dindo sacrifícios de vidas humanas. Neste ponto,
não há dúvida, Alzira e O Triunfi da Natureza se
Tu voisde ces tyrans lafureur despotique: aproximam. A crítica às religiões primitivas atinge,
Ilspensentquepoureux le Cielfit l'Amérique". de ricochete, como desejam os dois autores, o pró-
'prio cristianismo, em seus aspectos intolerantes e
Não há, no entanto, entre os dois textos, o francês sanguinários (de que seria exemplo, não referido,
e o português, qualquer laço de parentesco, a não ser a Inquisição).
os do gênero adotado e aqueles que abarcam toda Mas onde Nolasco da Cunha em verdade se
uma família ficcional, procedendo de afinidades inspirou, como tem sido notado, foi na adaptação
ideológicas. No "Discurso Preliminar': que lhe serve que R. B. Sheridan fez, em 1799, de OsEspanhóis
de prólogo, Voltaire descreve a sua peça como uma no Peru ou A Morte de Rolla, de Kotzebue, intitu-
tragédia "inteiramente de invenção e de uma espé- lando-a Pizarro e classificando-a como "tragédia
cie bastante nova"?". De fato, ela, ao tomar como romântica': o que para a ortodoxia clássica não
pano de fundo a conquista do Peru pelos espanhóis, deixava de constituir uma contradição em termos.
por um lado introduzia no território clássico fran- Foi no texto inglês, que deve ter conhecido durante
cês um continente até então desconhecido, e, por os seus anos de Inglaterra, que ele achou o seu par
outro, tirava da imaginação enredo e personagens, amoroso, Cora e Alonso, ela peruana, ele espanhol,
característica que se atribuía geralmente à comédia. rodeando-os, de acordo com o modelo, por duas
Mas as intenções do autor não ficavampor aqui. No bem conhecidas personalidades históricas, Ataliba,
fundo de seu pensamento escondia-se mal o intuito o infeliz rei (ou inca) do Peru, e Las Casas, o célebre
de atacar, por vias transversas, as únicas consentidas, dominicano que lutou bravamente, por ates e por
o fanatismo religioso. A conclusão a que chega o palavras, contra a selvageria espanhola na América.
lance final não difere muito, na aparência, da prática Nada disso significa que a peça portuguesa haja
implantada pelos jesuítas no Brasil. As duas culturas abdicado de sua originalidade. Pizarro movimenta
devem entender-se, mas sob a tutela da Europa, com dezoito personagens em treze quadros, escolhidos
o direito que lhe confere o seu grau de civilização: com pelo menos um olho no pitoresco cênico:
florestas, penhascos, tendas de campanha, mas-
Instruisezl:Amérique; apprenez ti ses rois morras, esconderijos nas montanhas. O Triunfi da
Que lesChrétiens sontnéspour lesdonnerdeslois": Natureza) contentando-se com sete personagens
e sete quadros, nunca abandona o Templo do Sol
A justificativa para este predomínio, contudo, incaico, mostrado interna e externamente, para não
não é a mesma nos dois casos. O cristianismo so- comprometer de vez a unidade de lugar. Ou seja,
brepõe-se aos cultos locais, para Voltaire, não en- transformou-se em tragédia clássica um drama de
quanto religião verdadeira frente a falsas religiões, proporções shakespearianas, que faz inclusive duas
referências expressasao romantismo, mencionando
104 CE Otávio Tarquínio de Sousa, HistóriadosFundadores do a "loucura romântica" e o "selvagemromântico" ("o
Império doBrasil, v.III, Rio deJaneiro: José Olympio, 1957, P: 558. bom selvagem" de Rousseau).
Instruí a América; ensinai a seus reis / Que os cristãos nas-
ceram para lhes dar as leis (N. daE.).
Não são menores as diferenças de enredo e de
105 Voltaire, 'IbéâtreChoisi, Paris: Hachette, 1912, p. 285. As propósito. Tanto Voltaire quanto Sheridan, para
duas citações da peça encontram-se nas p. 324 e 337 desta edição. incutir vibração humana, armam os seus entrechos
*' Tu vês o furor despótico desses tiranos; I Eles pensam que o
Céu fez a América para eles (N. daE.).
sobre um triângulo de amor (dois homens, uma
História do Teatro Brasileiro • volume 1

mulher) que só se dissolverá com o sacrifício de um mais tarde, em 1865, quando José de Alencar de-
de seus ângulos - o espanhol Gusman, em Alzira) sejou evocar simbolicamente o nascimento da na-
o peruano Rolia, em Pizarro. cionalidade, foi à fórmula proposta por Pizarro e O
Nolasco da Cunha, menos homem de teatro, tra- Triunfo daNatureza que recorreu: a união amorosa
gediógrafo ocasional, mais interessado em ideias que entre um europeu e uma índia. Antes, no Guarani)
em pessoas, recorre a outro tipo de conflito. Cora, o escritor tentara o casal oposto: um índio apaixo-
virgem dedicada ao culto do Sol, teria de pagar com nado por uma virgem de ascendência porroguesa.
a vida o filho que teve com Alonso. O desenlace, Mas algo, um mal-estar qualquer, impediam que o
feliz, significará, mais que a vitória de uma religião idílio florescesse em comunhão carnal. O romance,
civilizadora sobre uma religião bárbara, O Triunfo nas linhas derradeiras, lança Peri e Cecília em di-
daNatureza sobre leis artificiais, que negam o amor reção a um futuro incerto, suspenso entre a vida e
e a sexualidade. O Deus cristão impõe-se apenas na a morte, onde, longe dos olhos dos leitores, rodo
medida, para dizer a verdade um tanto estreita, em pode ocorrer, mas como simples hipótese poética.
que se ajusta à racionalidade e aceita os impulsos Agora, em Iracema, a questão sexual se aclara. Ao
naturais, posição sustentada, contra o sacerdote continente maduro, caberá o papel masculino, ativo,
peruano, pelo espanhol Las Casas. Natureza, razão fecundante; ao que começava a se abrir para a civi-
e crença religiosa são os três conceitos, nem sempre lização, não restará senão representar a encantadora
cartesianamente claros e distintos, com que joga o amorosidade feminina, ressaltada ainda mais pelo
autor. Sob o pretexto de reviver o passado, ele alude primitivismo. Parece que Sheridan, valendo-se de
ao presente. Sem combater o cristianismo, longe Kotzebue, e Nolasco da Cunha, nas pegadas dos
disso, rejeita-lhe, indiretamente, certos traços, como dois, não pretenderam dizer outra coisa. Não have-
a intolerância e o apego à castidade. ria mal que a Europa violentasse a América, desde
Talvez não seja muito, de um ponto de vista que fosse para lhe dar filhos, unindo num só os dois
moderno. Mas era o suficiente, em 183 o, para en- sangues. A metáfora literária cumpria a sua missão:
tusiasmar os jovens liberais brasileiros. Ainda bem adoçava e transfigurava a brutalidade da história.

• 66
II.
O Teatro Romântico

r. o ADVENTO DO ROMANTISMO com a intenção declarada de liquidar a unidade de


tempo, e Os Seis Degraus do Crime) de 18 3 I I.
A cauda do século XVIII arrasta-se ainda Justiniano José da Rocha registrou, em cima dos
no XIX; mas não seremos nós) jovens) que
vimosBonaparte)que a iremoscarregar. acontecimentos, o clima de competição e excitação
provocado por essa súbita reviravolta:
Victor Hugo

I Aberta estava a nova carreira, nela se precipitaram os dois


teatros à porfia de quem havia de desperdiçar maior nú-
De repente, em 1836, chega ao teatro brasileiro mero de riquezas, antes que o público estejasatisfeito de um
a onda revolucionária romântica, de cambulhada drama, quando ele vai principiando a entendê-lo, quando
com melodramas modernos, de segunda geração, os ateres vão-se penetrando de seus papéis, e tomando
perturbando para sempre, por parte do público e conta do caráter que têm de representar, eí-lo abandonado,
da crítica, a caracterização exata de um ou de ou- eis que novo drama lhe sucede; destarte em breve teremos
tro gênero, não raro irmanados sob a etiqueta de esgotadas todas as riquezas dos Dumas, dos Hugos, todos
"dramalhão". esses dramas, todas essas tragédias com que a fecundidade
Os ateres portugueses haviam trocado o Tea- de tantos escritores alimenta continuadamente os teatros".
tro Constitucional Fluminense, denominação que
duraria até 1838, por outra sala, abrindo paraJoão Poucos anos antes o jornalismo parisiense, em
Caetano a possibilidade de apresentar-se no palco fase de grande expansão, inventara ofiuilleton: gra-
de maior prestígio no país como primeiro ator e ficamente, a colocação da matéria ao pé da página,
chefe de companhia. A rivalidade entre os dois sob um traço horizontal que por assim dizer a iso-
elencos ensejou a entrada em cena da nova escola, lava, privilegiando-a; quanto ao texto, um tom que
que vinha romper a pasmaceira de um repertório desse prazer à leitura, mas sem perda da qualidade
antiquado e remoído à exaustão. Começava-se a literária. Era ali que se abrigavam, conforme os dias,
importar de Paris, sem a intermediação de Lisboa. os romances publicados em série - os de Eugêne Sue
Num pequeno lapso de tempo a plateia carioca viu
O Rei Se Diverte) de Victor Hugo, A Torre de Nesle 1 TrintaAnosé produto da colaboração de Ducange, Goubaux
e Beudin; OsSeisDegraus, de Nézel e Antier.
e Catarina Howard) de Alexandre Dumas, ao lado 2 Teatro, Artigo 2 2 , O Cronista, de 20 de agosto de 1836. A
de verdadeiros clássicosdo melodrama, como Trinta crónica não vem assinada, mas outras, a seguir, trazem as iniciais
J. J.R ou R. As citações subsequentes de Justiniano procedem da
Anos ou A Vida de um Jogador, escrito em 1827 mesma fonte e ano.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

entre os primeiros - e a crítica teatral de um Jules populares - "o romanesco e o mágico" (referia-se
Janin, feita para deleitar e não apenas para julgar. às "mágicas" teatrais), "o romanesco e o incrível":',
a gênero estava fadado a deixar marcas duradouras pondo em evidência que o vocábulo ainda não se
no Brasil, através do romance-folhetim, do rodapé desprendera de sua fonte, o romance medieval, cheio
literário e dacrônicaleve, um tanto fantasiosa, como de aventuras e prodígios, parodiado e supostamente
a cultivaram, entre outros, Martins Pena, Alencar, enterrado por Cervantes no Dom Quixote.
Macedo, FrançaJúnior e Machado de Assis. Daí ao romântico seria uma passagem lógica,
A ambição de Justiniano, iniciando-se no jor- embora difícil, demandando para completar-se al-
nalismo depois de completar estudos secundários guns decênios de transformações históricas. Mas
em Paris e jurídicos em São Paulo, era introduzir não existiu em Portugal um período pré-romântico,
na cinzenta imprensa brasileira o feuilleton) essa de discussões teóricas intensas, ataques e contra-
"abençoada invenção da literatura periódica, filha -ataques, como se deu na França. Se não ocorreram
mimosa de brilhante imaginação': que ele não sa- em Lisboa batalhas semelhantes à do Hernani, de
bia como verter, não lhe agradando nem "folhetão" Victor Hugo, travada durante meses em 183 o,
"que soa tão mal", nem "folhazinha", a tradução muito menos houve os preparativos bélicos, as to-
literal. Cinco anos depois, em I 841, quando ele madas de posição, configuradas na literatura fran-
volta à crítica teatral, que logo abandonará, a forma cesa por obras fundamentais, como De I:Allemagne
definitiva já fora descoberta - "folhetim". (18 I 3), de 1vlme.de Staél, e Racine et Shakespeare
a candidato a folhetinista pretendia receber de (1823), deStendhal. Quando o romantismo chega,
braços abertos o romantismo. Propunha-se mesmo é de supetão, já vitorioso, como um fato, não como
a preceder a estreia deA Torre deNesle de um uma possibilidade em ascensão.
No Brasil a menção inaugural ao teatro ro-
pequeno artigo sobre a diferença da escola clássica e român- mântico, ao menos de que se tem notícia, é muito
tica, cuja luta tanto tempo ocupou a atenção dos teatros na tardia. Uma publicação de alunos da Academia de
França, da qual pouca geme entre nós está ao fato - que, Direito de São Paulo, a Revista da Sociedade Fi-
sem esse conhecimento, impossível nos parece a inteligên- lomatica, editada de junho a dezembro de 1833,
cia das novas produções'. lançou em cinco números consecutivos um extenso
estudo intitulado "Ensaio sobre a Tragédia". Vinha
Resultam da última frase a novidade que re- datado de outubro de 1832 e fora elaborado por
presentava no Brasil a peça romântica e a falta de uma comissão integrada por três jovens acadê-
informação sobre o que ela queria dizer e fazer, micos, entre os quais figurava Justiniano José da
ambas as coisas dificultando, se não impedindo, a Rocha, o mais velho (nascido em 181 I) dos três e
sua perfeita compreensão. ao que parece o mais díretamente interessado no
Voltando ao passado, com olhos instruídos so- teatro. Como trabalho escolar ou quase escolar,
bre o que viria a seguir, é possível descobrir aqui e esse longo ensaio não deixa de ter méritos, aliás
ali vagas premonições sobre a eclosão romântica. não pequenos, apesar do seu caráter compilatório e
Ainda em Portugal, naquela segunda metade do de transmitir uma visão em excesso tradicionalista.
século XVIII na qual o arcadismo tenta livrar-se dos Por ironia da história, que não anda com o mesmo
cânones espanhóis em proveito dos franceses, um passo em todos os continentes, o Brasil ganhava, de
escritor, pouco dotado para realizar tal façanha, mas uma só vez, o seu primeiro e o seu último tratado
dedicado ao teatro, 1vlanoel Figueiredo, acusou o sobre a tragédia. Que, porventura, não poderia
despontar de uma tendência que com o tempo evo- ter sido escrito a não ser por estudantes, pela forte
luiria do "romanesco" ao "romântico': palavra que até razão de não haver professores versados na matéria.
aquele instante não surgira ou não se popularizara. a romantismo aparece no final do ensaio como
Associou ele- de passagem,sem lhe dar importância, antagonista, ou mesmo como vilão,produto de uma
já que se tratava de uma entre várias formas literárias
4 Manoel Figueiredo, Teatro, tomo x, Lisboa: Imprensa Régia,
3 Esse artigo não foi localizado nas bibliotecas consultadas. 180 4, p.
347-349·

• 68
• o Teatro Romântico

conspiração antifrancesa que, paradoxalmente, teria Fora do romantismo, quando abordam as tragé-
partido da pátria de Corneille ("não tem quem o dias portuguesas recentes, elogiam « Noua Castro
exceda"), Racine ("o mais perfeito versificador dos ("essapeça pode considerar-se como a mais perfeita
tempos modernos") e Voltaire ("o primeiro dos seres do Teatro Português") e erram grotescamente a res-
pensantes"). As más ideias de La Morte e Diderot, peito de O Triunfo da Natureza, que afirmam ter
propagando-se ao exterior, haviam dado origem ao sido "composto por um jovem fluminense, Luís de
"teatro monstruoso dos Alemães': voltando agora ao Melo, corrigido e publicado debaixo do nome do
solo natal sob a forma de uma invasão de bárbaros, baiano Vicente Pedro Nolasco'".
"cuja irrupção no meio-dia neste século é igual em A próxima alusão ao romantismo vem de Paris.
violência e resultados funestos à invasão dos Tárta- Gonçalves de Magalhães, em janeiro de I 834, co-
ros, Sarmatas e Escandinavos': Parte da culpa caberia munica ao padre Monte Alverne, seu mentor filosó-
a Mme. de Staêl, escritora francesa de "talentos su- fico, as primeiras impressões que a vida intelectual
periores': mas que tivera a fraqueza de "prostrar-se da França lhe causara. O teatro romântico, ainda a
ante os ídolos góticos do estrangeiro". grande novidade do momento, é naturalmente um
Esta "gente cismática': esta "seita germana': este dos tópicos abordados. Os termos empregados pelo
"gênero ridículo': esta "escola tudesca', que atenta- jovem poeta, já com um livro impresso, mostram
vam contra "regras que o bom gosto havia ditado sem ambiguidade até que ponto a nova escola per-
por perto de vinte séculos': não observavam sequer manecia ignorada no Brasil, mesmo entre pessoas
a coerência, valendo-se da "aproximação contínua cultas, e com que violência ela atingia e feria as sensi-
das coisas as mais opostas".Se tinham "por fito seguir bilidades educadas pelo decoro e disciplina clássicas.
inteiramente o natural': "chamar a um só ponto a Diza carta:
natureza inteira': tanto em sua parte baixa quanto
na alta, em contraste com a "natureza embelecida" Os poetas estão aqui empenhados em explorar a mina da
dos clássicos,valorizavam igualmente o "fantástico': meia-idade, fatigados com as ideias antigas, e não podendo
"o possível e o quimérico". "Os apóstolos do natural quase marchar na estrada de Racine e Corneille e Voltaire,
são os chefes e pregadores do Vago!" Mais ainda: eles calcam todas as leis da unidade tão recomendadas
pelos antigos; as novas tragédias não têm lugar fixo, nem
por confissãoprópria rodo o que é extravagante e disparatado tempo marcado, podem durar um ano e mais; o caráter
é romântico. Se não é esta anaroreza do romântico, não existe dessas composições é muitas vezes horrível, pavoroso, fe-
semelhante gênero, porque o que não é disparatado, o que é roz, melancólico, frenético e religioso. Os assassínios, os
feito com senso e juízo está dentro dos limites do clássico", envenenamentos, os incestos são prodigalizados às mãos
largas, mas nem por isso deixam de ter pedaços sublimes.
Unicamente "aanarquia literária da Alemanha': con- Os principais trágicos são De Laragotine, Alexandre Du-
jugada perversamente com a antirrazâo, explicariam mas, Victor Hugo. Esses poetas chamam-se rornânricos",
"o frenesi': "os cegos atordoamentos': "os desvarios
de um delírio': numa palavra, "o furor romântico". 5 Revista da Sociedade Filomática, São Paulo: Tip. Novo Fa-
rol Paulistano, 1833, P: 141-142 (edição fac-similar, editada em
Certos detalhes significativos revelam que os três São Paulo pela Metal Leve, em 1977)' Embora as citações feitas
jovens acadêmicos não estavam tão seguros quanto aqui refiram-se à totalidade do ensaio, os trechos relacionados
ao romantismo concentram-se, de preferência, nas p. 136-148.
pensavam do seu assunto, que aparentemente só co- Os outros dois redarores do Ensaiosobrea Tragédia, ao lado de
nheciam por intermédio de terceiros. Não citam o Justiniano José da Rocha, foram Antônio Augusto Queíroga e
Francisco Bernardino Ribeiro, o famoso "Mestrinho', falecido, já
Prefácio do Cromwell, manifesto graçasao qual Victor como professor da Academia, pouco antes de completar 22 anos,
Hugo fora aclamado chefe da nova escola em I 827, que deve ter contribuído não pouco com o seu saber precoce na
estruturação da parte clássica do Ensaio.
e ao se referirem a Alexandre Dumas, guiando-se, ao 6 Porto Alegre - Gonçalves de Magalhães, Cartas a Monte
que tudo indica, pelo ouvido, não pela palavra escrita, ALverne, apresentação de Roberto Lopes, São Paulo: Conselho
Estadual de Cultura, 1964, p. 16-18. O apresentador esclarece,
grafam-lhe o nome, por duas vezes,como Domat (não em nota, não ter conseguido localizar "esseDe Laragotíne'; nome
há dúvida, é Dumas mesmo, não existia outro suscetí- lido num trecho "carcomido em parte pela traça".Só pode tratar-
-se de Delavigne, Casemir Delavigne, frequentemente citado,
vel de ser confundido com ele). na época, como êmulo de Dumas e Victor Hugo. Note-se que
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Entre os ateres, Magalhães salienta Ligier (intér- Isso foi em setembro de 1836. Em novembro
prete de Le Roi s'amuse, de Victor Hugo, em 1832), a estreia de O Rei se Diverte) de Victor Hugo, faz
"que, sem ser Talma, me tem feito tremer': e "outro, com que a benevolência seja substituída por uma
também grande, cuja voz é um trovão sonoro" - torrente de indignação, um tanto retrospectiva, que
provavelmente Beauvallet, famoso pela potência explode logo na abertura da crítica:
da voz, uma das armas do ator naquele contexto
de teatros espaçosos e peças de alta voltagem. Ainda crimes, ainda horrores! Ainda o Teatro Constitucio-
É óbvio que nenhuma dessas manifestações nal não abandonou seu sistema de depredações da escola ro-
fracas e isoladas chegou aos ouvidos do público mântica! Depois dos incestuosos deboches da Torre deNesle,
brasileiro. A Revista Filomática não passava de um quantos crimes não têm reproduzido nossa cena! Que hor-
órgão estudantil, de circulação restrita, e as cartas rível desperdício de sangue e de atentados! Agora dão-nos o
a Monte Alverne só foram editadas em nossos dias. divertimento de um rei, esserei é o vencedor de Marignan, o
Foi nesse meio cultural acanhado, distante do protetor das letras, o cavaleiro discípulo de Bayard: esserei é
que se passava na Europa, preocupado sobretudo Francisco r, Francisco r que só tinha dois cultos, o da honra
com o destino imediato do Brasil no período de e o do amor. Esperávamos portanto uma peça agradável, es-
agitação política que se seguiu à abdicação de D. perávamos ver o rei cavaleiro em toda a sua glória, em todo
Pedro I, que Justiniano teve de enfrentar a chegada o seu esplendor: enganamo-nos: o Francisco I do drama não
do drama romântico francês, com o qual, segundo é o Francisco r da história, é um homem sem pejo, sem brio,
as aparências, tomava contare direto pela primeira que desce às tabernas, que se entrega a meretrizes.
vez. Como instrumento crítico dispunha ele de
uma marcada inclinação conservadora em política, A revolta do crítico tinha raízes morais e polí-
e, em literatura, da formação clássica recebida no ticas, não estéticas. Justiniano não reagia enquanto
Liceu Henrique IV, até hoje existente em Paris, clássico, mas enquanto patriota francês (muitos
onde fora, conta a tradição, aluno destacado? O brasileiros o eram) e enquanto monarquista fer-
choque entre a velha e a nova estética, patente na renho, não admitindo insultos às suas queridas
Revista da Sociedade Filomdtica, não tardaria a verdades - ou ilusões - históricas,
reaparecer em seus escritos. O engraçado é que A Torre de Nesle ia muito
A Torre de Nesle, de Dumas, até que obteve mais longe nessa direção, como era hábito de
por parte dele um tratamento respeitoso, bastante Dumas, escritor não embaraçado pelo excesso de
convencional para um temperamento impulsivo ao escrúpulos. lvlargarida de Borgonha, rainha da
escrevercomo o seu: "Eis o drama que se acaba de re- França, monopoliza em seu drama um número
presentar no Teatro Constitucional entre numerosos impressionante de crimes nefandos, do adultério ao
e bem merecidos aplausos de espectadores". Depois incesto, do parricídio ao infanticídio, uns premedi-
de analisar a má tradução e o desempenho de alguns tados, outros acidentais, uns levados a efeito, Outros
ateres - João Caetano no brilhante papel de Buri- deixados a meio caminho, mas todos executados
dan - fechava a crónica no mesmo tom amistoso: por mãos alheias. Uma de suas diversões é fechar-
-se na torre de Nesle com as duas irmãs, princesas
Em geral a peça foi bem representada; o cenário bem pre- de França, passar uma noitede orgia desfrutando
parado e rico, enfim esse espetáculo é digno de ser visto, e a beleza de três jovens aristocratas, escolhidos ao
certo o Teatro Constitucional pode contar com numerosas acaso entre os recém-chegados a Paris; e depois,
enchentes se souber aproveitar a curiosidade pública exci- saciada a fome, mandar matá-los e jogar os seus
tada pelo novo drama. corpos nas águas acolhedoras e silenciosas do Sena.
Acontece, contudo, que lvlargarida viveu no obs-
curo século XIV, deixando, justa ou injustamente,
Magalhães traduz moyen-âge ao pé da letra (meia-idade) e não
distingue ainda entre tragédia e drama. má memória na imaginação popular. Outro era o
7 CE. Raimundo MagalhãesJúnior.Três Panfletários doSegundo caso, obviamente, paraJustiniano, do rei cavaleiro,
Reinado, SãoPaulo:Nacional, 1956, p. 13 I; Elmano Cardim,Jus-
tiJJidJJoJosédaRocha, São Paulo: Nacional, 1964, P: 10.
do vencedor de lvIarignan!

• 70
+ o Teatro Romântico

Além disso, Alexandre Dumas deslizava sobre A segunda objeção particulariza:


as escabrosidades com tamanha leveza e destreza de
movimentos, com tanto bom humor, interessado A essa crítica que ataca todo o drama, em sua ideia geradora,
menos nas personagens e mais na ação, no desdo- juntaremos outra. Um estupro se comete aos olhos do es-
brar do enredo, na sucessão de golpes engenhosos, pectador, sem respeito à moral pública. Sim, é em cena que
que não dava tempo a objeções tão sérias quanto Francisco quer por força abraçar a mísera Branca, quatro ou
descabidas. Na advertência que colocou como pre- cinco vezes o tentou, e tudo tentaria aos olhos do público,
fácio de CatarinaHoward (peça também represen- se por acaso esta não tivesse a felicidade de refugiar-se num
tada no Brasil naquele final de década), ele classifica quarto; e é nesse quarto contíguo à sala em que nos achamos
A Torre de Nesle como "drama de imaginação", e que o rei impudico a vai violar. Será tudo isso muito decente?
considera Catarina "um drama extra-histórico, Por nós, que não afetamos demasiada pudícícía, atrevemo-
uma obra de imaginação criada pela minha fanta- -nos a dizer que é tudo isso de uma imoralidade asquerosa.
sia; Henrique VIII não foi para mim senão o prego
no qual pendurei o meu quadro'". (Victor Hugo poderia alegar que estupro con-
A crítica de Justiniano incide com mais vigor sumado nos bastidores, entre duas cenas, longe
sobre dois aspectos de O Rei SeDiverte. O primeiro dos olhos e perto da imaginação do público, não
é de ordem geral, dizendo respeito à ausência de era invenção sua. Alexandre Dumas, em 183 I,
moral, entendida estreitamente como falta de pu- dera-lhe o mau exemplo. Em Antony) no entanto,
nição dos culpados: a posse pela força tinha ao menos uma justificativa
romântica. Significativa para o homem, solteiro,
Eis o drama horrível que nos foi representado. Mas para um desafio lançado às leis sociais limitadoras do
que tantos crimes? Que lição moral deve deles resultar? amor, e para a mulher, casada, a escusa que necessi-
Francisco I, que o drama nos pinta tão infame, fica triun- tava para apaziguar a própria consciência culpada.
fante e pronto para voar a novos amores; nem ao menos Adele D'Hervey é forçada por Antony a fazer o que
com um instante de remorsos pagou seus crimes. As vítimas no fundo ela mesmo desejava. A paixão é igual em
são todas inocentes, é Saint-Valier, ancião respeitável, é a ambos. Já em O Rei SeDiverte a situação é diferente,
virtuosa Branca, amante tão terna. Esses viciosos cortesãos desproporcionada; por parte de Francisco I, não há
ficam ilesos, esse rei, digno chefe deles, fica impune: apenas mais que luxúria, libidinagem; por parte de Branca,
Triboulet recebe o justo castigo de seus escárnios, de seus há o amor ingênuo por alguém que se apresentara a
sarcasmos. Onde pois a moralidade da peça? ela sob nome falso e por quem se apaixonara a ponto
de lhe dar não só a virgindade como a própria vida.
(Victor Hugo poderia responder, com o Prefá- A vítima aqui não é ao menos em parte a sociedade,
cio do Cromwell, que "o caráter do drama é o real': como em Dumas, mas a mulher, somente a mulher,
"tudo que existe na natureza existe na arte". Ou en- submetida sentimental e sexualmente ao homem.)
tão com a defesa que apresentou em 1832, quando Quanto aJustiniano, é difícil dizer o que elejulga
Le roi s'arnuse foi interditado em Paris após a pri- "de uma imoralidade asquerosa": o estupro ou o aten-
meira representação: "Basta, para o futuro como tado cênico ao pudor público? Se o conteúdo moral
para o passado, que a polícia saiba de uma vez por e político do drama romântico cosmmavacausar-lhe
todas que eu não faço peças imorais. Que ela tenha tais reações, as inovações formais, como a quebra das
isso por dito, não voltarei ao assunto'P.) unidades que tanta tinta fizera correr, passavam-lhe
pelo crivo sem despertar mais que uma leve nota de
8 Alexandre Dumas, Tbéâtre Complet, v. IV, Paris: Calman ironia. Ao criticar Camões, peça de Luís Antônio
Levy, I890,P' 207.
9 Victor Hugo, Oeuures, Drames, tomo I, Paris: Houssiaux,
Burgain, fez ele nesse sentido apenas uma objeção,
1878, P: 21; torno II, P: 358. Le Roi s'amuse serviu de base ao Ri- à troca de cenário dentro do ato e à vista do público:
goletto, de Verdi. As modificações, com Francisco I rebaixado a
duque de Mantua e Triboulet, personalidade histórica como quase
todas as da peça, transformando-se em Rígcletro, foram feitas por Sabemos, com a nova escola, que a unidade de tempo
exigência da censura italiana. Mas o estupro, cometido suposta-
e lugar é uma futilidade que só serve para pôr tropeços
mente ao lado da cena e em alguns exíguos minutos, permaneceu.

+ 71
História do Teatro Brasileiro • volume 1

ao talento: todavia quiséramos, para salvar a verossimí- tadores, pelas mesmas razões por que se apinham de gente
lhança, que quando se muda de lugar, quando tem decor- as praças públicas quando há enforcado.
rido tempo, não haja uma simples mutação de vistas e que No horror porém não há gradação, os primeiros dramas
aqueles que neste instante vimos, verbigrafia, na quinta de esgotaram a mina, de modo que a época romântica brava,
Belém - dado um apito -, não se achem repentinamente posto durasse mais do que a época belicosa, não pôde do-
em Lisboa. Certo, impossível é que conserve a ilusão: é de minar por muito tempo. Se há curiosidade que se satisfaça
mister que o pano desça, que o intervalo dos ates deixe aos facilmente, é a de conhecer as sensações do crirne'".
espectadores tempo para fazerem estas viagens.
Esses julgamentos históricos levantam urna sé-
("Vista' está aí, obviamente, por "cenário"; e rie de questões. Justiniano não erra nem ao julgar
quanto ao misterioso e algo miraculoso "apito",era terminada essafase, nem ao classificá-lade "român-
apenas o sinal dado pelo chefe dos maquinistas, ou tica brava'. O romantismo, no teatro francês, não
"puxa-vistas': para que estes efetuassem a mutação.) foi crescendo até atingir aquele paroxismo que se
Em 1841, extinto O Cronista, Justiniano José da chamou em Portugal de "ultrarrornantismo" - "o
Rocha revive o folhetim teatral em OBrasil, proce- drama plusquam romântico': na expressão pitoresca
dendo a uma revisão crítica do teatro brasileiro no de Garrett. As primeiras peças de Victor Hugo e
último decênio. Distingue três épocas: a "liberal': Alexandre Dumas são, de fato, as mais românticas,
a das proclamações políticas; a "belicosa', a da sol- no sentido de romper com o classicismo em todos
dadesca em cena (as duas já abordadas em páginas os seus níveis, dos literários aos sociais, dos estéticos
anteriores); e, por fim, "a época endiabrada, a que aos metafísicos e morais. Não perdoaram as conve-
chamaremos': diz ele, "romântica brava!" niências e o decoro, como não pouparam a lei das
unidades e a técnica do verso (que, aliás, aos poucos
Os berros infernais dos dramaturgos do horror foram ouvi- desaparece, desalojado do palco pela prosa). E com o
dos aquém do Atlântico. Também nós tivemos de assistir à mesmo ímpeto que vieram logo se foram. Os histo-
época do crime, de admirar as orgias asquerosas do talento riadores tomam 1843 como a data que fecha o ciclo
em delírio. Como a sociedade política sofreu em 1789 uma propriamente romântico, relacionando-a ao pouco
revolução assim também a sociedade literária teve a sua, entusiasmo despertado pela estreia deLesBuryraues,
consequência imediata daquela. Em ambas essas revolu- peça de Victor Hugo. Naquele mesmo ano Émile
ções predominaram os mesmos princípios, o desrespeito Adet, francês de nascença, brasileiro por adoção li-
à autoridade, às leis e o desejo excessivo de tudo nivelar, terária, aludia nas páginas daiV1inervaBrasiliense aos
e em ambas os mesmos excessos foram cometidos, senão "dramas febricitantes, cujo gosto já na França passou
maiores na sociedade literária. [00'] Ora, o processo seguido para dar lugar a urna literatura mais sâ'l!.
por ambas essas revoluções foi o mesmo, só com uma dife- O romantismo, continuando a impregnar o
rença, e diferença bem importante, é que uma não foi mais século XIX com o seu espírito, colorindo a poesia
do que representação fantasmagórica da outra. O sangue e o romance, desaparecia dos palcos parisienses em
foi derramado em ambos os períodos às mãos cheias, mas suas formas realmente características. O drama ro-
a revolução política inundava com ele as praças, tingia com mântico ainda não germinara no Brasil, onde será
ele os rios, e a revolução teatral não levava além do tablado fenômeno temporão, e já se via ofuscado na França,
suas destruições e seus horrores. ['00] seja pelo retorno à tragédia clássicaproporcionado
Mas, como íamos dizendo, também tivemos de assistir às pelas interpretações de uma atriz de vinte anos, Ra-
orgias asquerosas do talento em delírio. Os célebres Trinta chel, a nova musa racineana, sejapelo aparecimento
Anos ouA Vida de UmJogador romperam a marcha, e de- de outras tendências de literatura dramática. Émile
pois seguiu-se a longa série dos desatinos dramáticos que Adet, no mesmo artigo daNJinerva) sugeria a en-
por tanto tempo foram representados em nosso teatro. A cenação no Rio de Lucrécia) de François Ponsard,
Torre de Nesle com rodas as suas impudicícias, O Rei Se
Diverte) OsSeisDegrausdo Crime despertaram a atenção 10 Folhetim, O Brasil, 15 de junho de 184I.
11 Êmile Adet, Da Arre Dramática no Brasil, Minerva Brasi-
do público e chamaram ao teatro grande cópia de espec-
liense) tomo I, 1843,P' 155.

• 72
• o Teatro Romântico

futuro chefe da "escola do bom senso': que domi- Exatamente o contrário acontece no drama ro-
nará os próximos anos. Passara, com efeito, a voga mântico, onde o herói ou a heroína trazem dentro
do "drama febricitante': cuja febre sempre fora na de si, a um só tempo, o bem e o mal, o anjo e o de-
França um tanto simulada. Só um texto romântico mônío, na linguagem poética da época, embebida
permanecerá demoradamente no repertório dos de cristianismo. Os seus crimes, estupro, incesto,
grandes atores internacionais, ressurgindo há pou- parricídio, surgem marcados pela atração por
cos anos em versão moderna de Sartre. Mas Kean, tudo que a sociedade interdita como pertencendo
de Dumas, já é muito mais comédia que drama. já ao território do sagrado. São transgressões em
Onde Justiniano erra, e erra feio, é ao pôr no si mesmas terríveis e ainda agravadas por serem
mesmo saco A Torre de Nesle e Trinta Anos ou A efetuadas por reis, rainhas, ou seja, pelos supostos
Vida de um ]ogado 0 O Rei Se Diverte e Os Seis guardiões do patrimônio moral da coletividade.
Degraus do Crime. ~e todas essas peças giram Se esses vilões chamam-se, por exemplo, Francisco
em torno do crime e abusam do coup de théâtre) I e Margarida .de Borgonha, pode-se continuar a
parece inegável. Mas as diferenças sobrepujam as acreditar que Deus escreve direito, ainda que por
semelhanças. De início, há a desigualdade literária. linhas muito tortas? O próprio conceito de justiça
Victor Hugo e Alexandre Dumas são "monstros sa- terrena não estará sumariamente negado?
grados" da literatura, que encheram o seu século - e Não adianta Victor Hugo escrever que em O Rei
parte do nosso - com as suas gigantescas presenças. Se Diverte triunfa a Previdência, ao punir o bufão,
Os autores de melodrama, em contrapartida, não o maior ou o único culpado: "Assim Triboulet tem
costumam figurar sequer nas histórias de teatro. dois discípulos, o rei e sua filha, o rei que ele ades-
A disparidade maior é outra, contudo. O me- tra para o vício, sua filha que ele faz crescer para a
lodrama - e é extraordinário que Justiniano não o virtude. Um perderá o outro">. O argumento não
haja notado - não merece essenome se não terminar convence. Nesse laço tão forte estabelecido entre
bem, distribuindo castigos e recompensas conforme soberano e bobo da corte, será possível que o se-
os méritos e dernéritos de cada personagem. O seu gundo é que determine o primeiro, em completo
objetivo, como diz um ditado português admirado desacordo com a hierarquia social? Francisco I será
por Paul Claudel, consiste em provar que Deus es- produto de Triboulet - e não o inverso? ~e es-
creve direito por linhas tortas. Após as sinuosidades tranha sociedade é essa monarquia, regida de baixo
de enredo dos primeiros atos, destinados a manter para cima?
no grau máximo a ansiedade do público, lá vem, A diferença do ponto de vista entre drama e
como coroamento, quando tudo parece perdido, .melodrama fica patentemente clara quando se
a intervenção da Divina Providência. O público confronta o desfecho de duas dessas peças, ambas
deleita-se com o espetáculo da vilania, porque sabe colocando em cena a relação pais-filhos, tão enca-
que no fim sairá reconfortado em seu otimismo mo- recida pelo cristianismo.
ral. Apesar das aparências, o mundo é bom, a justiça, Eis as réplicas decisivas deA Torrede Nesle, tra-
que tarda mas não falha, acaba por realizar-se aqui vadas entre dois namorados (platónicos), que até
mesmo na terra, perante os nossos olhos. então ignoravam o parentesco que os unia:
Para tanto faz-se necessário que os dois grupos
em luta, protagonistas e antagonistas, recortem-se GAULTIER (entrando todo ensanguentado): Margarida!
com nitidez. Quem é mau, é mau mesmo; quem é Margarida! Trago-te a chave da torre.
bom, é bom mesmo. Inexiste possibilidade de meio MARGARIDA: Infeliz, infeliz! Eu sou rua mãe!
termo. Quanto aos crimes cometidos, graves, sem GAULTIER: Minha mãe? Pois bem minha mãe, sejas mal-
dúvida, acusações falsas, usurpação de bens e títulos dita (ele cai e morre)').
sociais, assassínios, são, de certo modo, de ordem
12 V. Hugo, Oeuores, Drames, tomo II, p. 343.
primária, não possuindo requintes intelectuais de 13 A. Dumas, Théâtre Complet, p. 97. Victor Hugo desenvolveu
perversidade. Sem prejuízo da malignidade, são tema semelhante em LucréciaB6rgia, nesse mesmo ano de 1833.
Aqui está a sua última fala: "LUCRÉCIA - Ah! tu me matastel.;
crimes comuns, desses que correm as ruas. Gennaro, eu sou tua mãe!"

• 73
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Agora, em contraste, a morte edificante que fe- II


cha TrintaAnos ouA Vidade umJogador, com o pai
salvando na última hora o filho que tentara matar, Não durou muito o propósito de Justiniano José
sem saber quem ele era, para morrer pateticamente da Rocha de se transformar no Jules Janin - citado
em seu lugar: como modelo por ele em duas crónicas - do teatro
nacional. Em fins de 1837, ainda no Cronista) ele
GEORGES (sem alento): Infelizes, de quem eu tenho causado apontou as razões dessa precoce desistência:
a desgraça!... Meu filho, detesta o jogo ... bem vês os seus fu-
rores e os seus crimes!... Cara esposa... a morte já se apresenta De há muito que desaprendemos o ofício de crítico dra-
ante os meus olhos ... Oxalá que as tuas virtudes obtenham a mático, porque não nos deixam nossas ocupações tempo
sua justa recompensa e a graça e o perdão do delinquente!'! bastante para que o vamos esperdiçar em nossos teatros, e
quando mesmo elas deixassem, conselhos higiênicos nos
São, como se vê, universos dramáticos e metafísi- fazem recolher ao toque de trindades, conselhos econô-
cas oPOStos, um de confusa e veemente contestação, micos nos obrigam a não despendermos assim de chofre
o outro de reafirmação de valores morais e religio- aquilo que tanto nos custa a ganhar".
sos vigentes. O crime está no centro de ambos, mas
movendo-se em direções contrárias. A predileção Razões pessoais ponderáveis, sem dúvida. Sem
pelos lances folhetinescos e pelos enredos enovela- um certo gosto pela vida noturna, sobretudo, não
dos, que subia do melodrama para o drama, permi- se compreende o exercício de profissão alguma
tia no entanto que os dois fossem frequentemente ligada a uma atividade de vocação tão notÍvaga
confundidos, e não apenas por Justiniano, sob a como o teatro. A razão maior, contudo, ficou su-
denominação pejorativa de "dramalhão". Essa ainda bentendida: a verdadeira paixão de Justiniano era
é a palavra empregada por Artur Azevedo, alguns o jornalismo político, onde ele podia dar vazão aos
decênios mais tarde, em Impressões de Teatro. "Que seus pendores polêmicos.
dramalhâo" é, com efeito, a frase que abre este seu Foi assim que o primeiro crítico teatral do Brasil
soneto cómico, predispondo-nos para rir à custa de deixou passar em branco os dois acontecimentos
um melodrama dos bons. Mas a ambiência medie- julgados pela posteridade como fundamentais - no
val, o adultério feminino - a prevaricação da con- sentido de inaugurais - do período. Ou seja, a ence-
dessa enquanto o marido bate-se nas Cruzadas -, nação da tragédiaAntônioJosé ou OPoeta ea Inquisi-
e, sobretudo, o tenebroso final, confronta-nos im- ção) de Gonçalves de Magalhães, e da comédia OJuiz
piedosamente com o radicalismo romântico. Basta, dePaz da Roça) de Martins Pena, respectivamente
para comprová-lo, reler os tercetos conclusivos, que em março e outubro de 1838, com as quais, segundo
levam ao extremo a crueldade divertida da paródia: a interpretação moderna, nasce oficialmente a dra-
maturgia brasileira. Não só ele não as consignou no
Folga o intrigante... Porém surge um mano Cronista) por aqueles motivos alegados, como, ao
E, vendo morro o irmão, perde a cabeça: fazer em 1841 o retrospecto dos últimos anos nas
Crava um punhal no peito do tirano! páginas de O Brasil, ignorou tanto uma quanto ou-
tra, demonstrando que os julgamentos estéticos do
É preso o mano, mata-se a condessa, futuro nem sempre transparecem nas linhas ainda
Endoidece o marido... e cai o pano próximas do presente. O teatro nacional passara a
Antes que outra catástrofe aconteça. existir e Justiniano não percebera.
Valendo-se só de suas crónicas chegar-se-ia à
Era a derradeira pá de cal - a pá de cal do riso - surpreendente conclusão de que os primeiros dra-
que se jogava sobre o túmulo do "drama febrici- mas brasileiros da época romântica foram A 6rfã
tante" de 1830. ou A Assembleia dos Condes Livres e Camões) do

14 Tradução anônírna portuguesa, publicada em 1838 na cole-


ção de peçasinriruladaArqttivo Teatral. 15 Apêndice, O Cronista, 6 de dezembro de 1837.

• 74
+ o Teatro Romântico

escritor franco-brasileiro Luís Antônio Burgain 16; implicitamente lhe falava do Brasil. Isso sucedia dezesseis
e as primeiras comédias, O Triunfo da Imprensa anos após a Independência, quando ainda referviam e bu-
e Um dos Muitos, de Joaquim José Teixeira (mal lhavam na jovem alma nacional todos os entusiasmos desse
escondido sob as iniciais J. J. T), o Teixeirinha, já grande movimento político e todas as alvoroçadas esperanças
interessado em teatro desde os anos estudantis, e generosas ilusões por ele criadas. Nada mais era preciso para
quando foi contemporâneo de Justiniano na Aca- que na opinião do público brasileiro, em quem era ainda
demia de Direito de São Paulov. então vivo o ardor cívico, aquele teatro, com os que nele ofi-
Os dois tiveram longa carreira literária, com ciavam como autores e ateres, tornassea feição de um templo
marcada preferência pelo gênero dramático. Mas onde se celebrava literariamente a pátria nova".
os constrangidos elogios que o Cronista concede às
comédias (e dramas) de J. J. T., rodeando essas pa-
lavras de incentivo com severas restrições e reservas
críticas, assim como o resumo que faz de uma de-
las, não animam a compará-las às de Martins Pena,
ainda mais que nunca chegaram a ser impressas.
Quanto aos dramas de Burgain, que sobreviveram
em forma de livro, a sua leitura não desperta o me- 2. A TRAGÉDIA E O MELOPRAMA
nor entusiasmo, não nos autorizando a antepô-las
ou sobrepô-las às tragédias de Gonçalves de Ma- É na terceira década do século XIX que começa a
galhães, a não ser em estrito sentido cronológico. haver produção teatral consistente no Brasil. Até
Vieram antes, é indubitável, todos esses dramas e então, a regra era virem juntos da Europa tanto
comédias. Mas, merecidamente, não ficaram como as peças como os artistas e os empresários. De
marcos na memória nacional. Portugal, principalmente, chegavam companhias
Podemos, pois, sem problemas de consciência, inteiras. Apertavam para animar o Rio de Janeiro
retornar à versão histórica tradicional. O teatro e encontravam recepção muito positiva. Especial-
brasileiro, enquanto modernidade, empenho em- mente depois que a ascensão da cidade à capital
presarial e valor literário, começa quando um ator, do reino português - r808-r8r9 - possibilita a
João Caetano, representa no mesmo ano, r 838, consolidação de algumas casas de espetáculo e a
uma tragédia em cinco ates de Gonçalves de Ma- criação de um público mais estável. As facilidades
galhães e uma comediazinha em um ato de Martins operacionais eram óbvias. Dada a proximidade lin-
Pena. Tinham eles, nessa ocasião e nessa ordem, 3o, guística e cultural, era possível encenar aqui, sem
27 e 23 anos de idade. E eram todos brasileiros. maiores adaptações, o mesmo repertório apresen-
José Veríssimo captou com precisão, não pro- tado em Lisboa; por isso o retorno compensador
priamente o que foi, mas o que significou no plano ensejava a repetição do processo.
do símbolo a estreia de AntônioJosé: A identificação das raízes portuguesas do teatro
brasileiro é importante para a matéria a ser tratada
o importante, porém, estava feito, um belo exemplo estava aqui, porque ajuda a localizar um gosto comum
dado, uma fecunda iniciativa realizada, e não sem supe- em ambos os países: o gOSto que está situado na
rioridade. Ateres brasileiros ou abrasileirados, num teatro origem do teatro mais popular da época, ou seja,
brasileiro, representavam diante de uma plateia brasileira, o melodrama de temática sentimental. Essa ten-
entusiasmada oe comovida, o autor brasileiro de uma peça dência tinha chegado a Portugal através da França
cujo protagonista era também brasileiro e que explícita e e veio para o Brasil mais rapidamente em função
das excursões das companhias teatrais. As cansei-
16 CE. J. Galante de Sousa, O Teatro no Brasil, v. 2, Rio de Ja- ras da viagem transatlântica tinham de encontrar
neiro: MEC/INL, 1960. p. 139.
17 CE. Sacramento Blake, Dicionário Bibliográfico Brasileiro compensação à altura. Não admira, portanto, que
(reimpressão de off-ser), V.IV, Rio deJaneiro: Conselho Federal
de Cultura, 1970, P: 180,518; Almeida Nogueira,AAcademia 18 Históriada LiteraturaBrasileira, 3. ed., Rio de Janeiro :José
de S. Paulo,São Paulo: Sexta Série, 1908, p. 91. Olympio, I954,P' 312-313.

+ 75
História do Teatro Brasileiro • volume 1

as companhias escolhessem o repertório de aceita- Uma noite de espetáculo típica naquela altura
ção mais imediata e com essa iniciativa acabassem era constituída de três partes. Começava por um
influenciando a sedimentação de valores estéticos. número "sério': que podia ser tanto uma tragédia
Estudiosos do intercâmbio teatral que Portugal como um drama romântico ou um melodrama - os
mantém com sua colônia, como Paria'>, Victor'? três gêneros do repertório de João Caetano a partir
e Bastos", destacam o papel das companhias dra- da segunda metade da década de 183 o. Em seguida,
máticas em viagem para o Brasil e mostram sua para encerrar, vinham dois números mais leves:
importância na formação de um certo padrão ar- comédia, farsa ou bailado. Sendo tragédia, a peça
tístico brasileiro, que engloba desde o perfil de uma seguia o padrão neoclássico, acentuando a conten-
noite de espetáculo até a maneira de representar; ção em termos de ação, de espaço e de tempo, além
que vai desde a indumentária até a composição dos de ostentar notável virtuosismo formal. O drama,
cenários. por sua vez, era de caráter histórico ou, então, sim-
A companhia dramática de Mariana Torres é plesmente contava uma história sentimental. Nesse
o primeiro grupo que chega ao Rio de Janeiro no caso, as peças seguiam um estilo melodramático
século XIX, no ano de 18 12 ou 18 I 3. Claramente, que facilmente agradava o grande público. Isso
tenciona tirar partido da presença da'corteportuguesa acontecia na França, onde o melodrama tinha se
na cidade.lvlariana Torres traz consigo um grupo de desenvolvido, e em Portugal, que acatara a moda.
sete ateres, três dos quais voltam pela segunda vez No Brasil, o processo é semelhante, acrescido de
com a empresária no ano de 1819. Neste ano a uma particularidade: o melodrama toma o espaço
companhia chega para permanecer no Brasil por dos gêneros tradicionais, como é o caso da tragédia,
uma temporada longa, que se estende até 1822. com velocidade muito maior do que naqueles países.
Outro grupo que vem completo para o Brasil é o Provavelmente são duas as razões implicadas: o nível
de Ludovina Soares da Costa. Pressionados pelo de exigência da plateia, responsável pela tendência
fracasso do Teatro da Rua dos Condes, em Lisboa, para preferir diversõesmenos sofisticadase a fórmula
onde atuavam, os ateres querem tentar a sorte na intrinsecamente otimista do melodrama, que enco-
ex-colónia. Aportam no Rio de Janeiro em meados raja heróis e heroínas a lutar por uma sorte melhor.
de 1829 e dias depois fazem a estreia no Teatro S. Quando analisa a penetração do melodrama nos
Pedro. Se pensavam retornar, mudaram de ideia Estados Unidos, Daniel C. Gerould'" reconhece
diante das facilidades encontradas. Com efeito, a causas semelhantes para explicar a rápida expansão
maior parte dos integrantes da companhia jamais desse gênero na América. Havia um grande público
voltou à pátria. Seu sucesso pode ser medido atra- ávido por diversão que desconhecia as convenções
vés de dois indicadores importantes. Primeiro, pela artísticas tradicionais, constata o amor. Um pú-
aproximação comJoão Caetano - o ator e empre- blico que, de outra parte, faz uma leitura otimista
sário mais bem-sucedido do país à época. Segundo, da realidade, pois ele mesmo se encontra engajado
pelo número de peças de prestígio encenadas por num processo de ascensão e confia na ideia de que
esses ateres. É o caso de obras de Martins Pena e o futuro pode ser mudado. Próximo dos ideais de
de Luís Antônio Burgain, por exemplo, nas quais democracia e de empreendedorismo, o melodrama
os artistas portugueses figuram invariavelmente tinha as melhores chances de se expandir nos Es-
em papéis de destaque, conforme demonstram os tados Unidos, como de fato aconteceu. Vivendo
créditos das versões impressas. uma fase histórica parecida, o Brasil viu o gênero
melodramático consolidar-se, mesmo à revelia de
19 Jorge de Faria, As Primeiras ~atro Levas de Cômicos para
o Brasil, Ocidente, Lisboa, v. III, n. 8, dez, 1938, P: 321-328.
camadas mais intelectualizadas, que preferiam as
20 Jayme Victor, O Teatro Português no Brasil, Rio de Janeiro: qualidades estéticas e morais da tragédia. Gon-
David Corazzi, 1887. çalves de Magalhães, o nosso primeiro romântico,
21 Três obras do amor, Antônio de Sousa Bastos, tratam do
assumo. São elas: A Carteirado Artista: Apontamentospara a
quando escreveuAntônioJosé ou OPoeta ealnquisipío
História do Teatro Português e Brasileiro, Lisboa: José Bastos,
1898; Dicionáriodo Teatro Português, Lisboa: Libânío da Silva, 22 The Americanization oEMelodrama, AmericanMelodrama,
1908 e Recordações de Teatro, Lisboa: Século, 1947. New York: PerEormingAnsJournal Publications, 1983, p. 7-29.
• o Teatro Romântico

e Olgiato, colocou-se entre os que remaram contra opera as adaptações necessárias para tornar-se
a corrente. Sua opção foi oferecer peças híbridas, a acessívelao entendimento comum. São três os seus
meio caminho da tragédia neoclássica e do drama pontos fortes: em primeiro lugar, o espetáculo, que
romântico, para um público preferentemente inte- ganha importância sobre o acabamento retórico;
ressado nas peripécias do melodrama. em segundo, a felicidade do par romântico, para
a qual converge a atenção máxima; em terceiro, a
mensagem edificante. "Eu escrevopara aqueles que
Melodrama e não sabem ler': afirmou Píxérécourrv' sem meias
Drama Histórico palavras, numa espécie de justificativa diante da má
vontade da crítica à generalização do estilo que em-
Considerados rigorosamente, melodrama e drama pregava. A preocupação com a resposta da plateia e
histórico são gêneros distintos.Mas eles facilmente certa resistência por parte dos analistas são traços
se aproximam e se interpenetram em razão da ên- que integram a história do melodrama juntamente
fase comum para a movimentação do enredo e para com uma nova concepção de verossimilhança.
o enfoque nos temas sentimentais. De um modo O melodrama é uma composição movimentada
geral, é o estilo melodramático que se impõe nas que reúne muitos personagens e se desenvolve em
origens do teatro brasileiro, passando a dar forma torno de emoções intensas. Ele é capaz de aproxi-
para a cultura dramática local. E o faz com tal pro- mar uma soma notável de elementos díspares e até
fundidade que dificilmente encontrará concorrên- antagónicos, porque desafia conceitos de verossi-
cia no gosto popular. milhança vigentes em outros gêneros dramáticos.
O drama histórico desenvolve-se em torno de Ao misturar epopeia, tragédia, narrativas de terror
histórias verídicas que são buscadas no passado e e comédia no espaço de uma única peça, vê-se obri-
de preferência em países distantes. A seleção do as- gado a encontrar solução nova para administrar um
sunto é determinada pela possibilidade de juntar conjunto tão opulento. É por isso que introduz aca-
aos fatos um caso amoroso fictício. No decorrer da sos miraculosos e coincidências providenciais. Não
ação, a história de amor tende a entrelaçar-se com fosse assim, seria difícil levar a história nó rumo da
os demais acontecimentos, de modo que o desfecho convenção de final feliz que o público reclama: a
deve resolver tudo ao mesmo tempo. Vai solucio- convenção de que o bem é recompensado, ao passo
nar tanto as contendas políticas como aproximar que o mal tem punição à altura.
o casal de namorados, que, até ali, foi impedido de A presença de uma concepção nova de verossi-
viver seu romance. milhança deriva igualmente da necessidade de levar
O melodrama, por sua vez, tem sua populari- à conclusão os múltiplos enredos que se entrelaçam
dade associada com a repercussão obtida pela obra e as expectativas desencontradas dos diferentes per-
do escritor francês Charles Guilbert de Pixérécourt. sonagens. Somente em certo sentido, portanto, o
Ele é autor de mais de uma centena de peças, que melodrama é um teatro singelo. Como regra, ele é
foram representadas milhares de vezes com perma- muito engenhoso no esforço de prender a atenção
nente sucesso de público. O melodrama entrelaça do público. Contrapõe personagens representativas
vários gêneros. Contém elementos da epopeia, da de valores opostos: vício e virtude; patriotismo e
tragédia, das narrativas de terror e da comédia, traição; amor e ódio. Alterna momentos de ex-
como assinala Barbero'", e apresenta quatro figu- trema desolação com outros de euforia, fazendo as
ras características: o herói, o traidor, a vítima e o mudanças ocorrer em alta velocidade. Em geral, no
bobo, através de numerosas variações. Atento às andamento da peça o mal se mostra mais vigoroso,
particularidades de sua audiência, o melodrama mas, no fim, depois de batalhas, duelos, explosões
e também de muitas lágrimas, a situação muda e
23 ] esús Martin-Barbero, Claves para re-conocer el melodrama,
em J.Martin-Barbero; Sonia Mufioz (coord.), Teleuiston y Melo- 24 Charles Guilbert Píxérécourt, Derníêres réflexions de l'aureur
drama: Géneros]Lecturasdela Telenovela en Colombia, Bogotá: sur le melodrama, em Théâtre Choisi, tome IV, Cenêve: Slarkine
Tercer Mundo, 1992, P: 46. Reprinrs, 1971, P: 498.

• 77
História do Teatro Brasileiro + volume 1

a virtude é devidamente reconhecida. O desfecho compor suas peças, que denominaram dramas, por
representa urna confirmação da boa ordem: aquela haver de fato alguns pontos de coritato com o re-
que deve permanecer de agora para sempre. Para pertório ligado ao movimento romântico, embora
sempre também deve perdurar a felicidade do pouca ou nenhuma qualidade literária.
par enamorado, cuja concretização coincide com A confusão atravessou o Atlântico e chegou ao
o afastamento de todos os entraves encontrados Brasil. Em 1836, quando João Caetano encenou
durante o desenrolar da história. A ideia de que o dramas de Victor Hugo e Alexandre Dumas (O
binômio felicidade-casamento é indissociável está Rei SeDiverte eA Torre deNesle, respectivamente)
fortemente vinculada à tradição do melodrama. e melodramas corno TrintaAnos ouA Vida de um
Pode haver casos de peças que não fazem do ca- Jogador e Os Seis Degraus do Crime, o primeiro
samento a sua culminância, porém a mensagem crítico teatral brasileiro,]ustiniano José da Rocha,
edificante está invariavelmente presente. colocou-os todos sob a mesma rubrica de dramas
Tanto o melodrama corno o drama histórico românticos. Assim, não admira que nossos primei-
se distanciam da contenção clássica, que dita as ros autores dramáticos importantes, Luís Carlos
regras da tragédia. Desenvolvendo histórias cheias Martins Pena e Luís Antônio Burgain, tenham
de meandros e de surpresas, ambos requerem cená- escrito melodramas, chamando-os de dramas.
rios complexos. Ficam para trás os austeros paços De modo particular no melodrama, a retórica
reais das tragédias mais conhecidas, o despojamento elegante cai para segundo plano. A explicação para
do esperáculo, a ação concentrada no tempo e no isso é simples. Plateias pouco afeitas a torneios de
espaço, envolvendo um número pequeno de perso- linguagem - corno seria o caso mais frequente do
nagens, pouca ação física e linguagem versificada. público brasileiro - preferem viver emoções fortes
Ao contrário, os personagens dos dramas e melo- a acompanhar discursos bem elaborados. Cabe lem-
dramas se deslocam por espaços variados e têm nos brar que o melodrama se desenvolveu sintonizado
arranjos cênicos um forte aliado para caracterizar com as características do seu público. Nunca ficou
os sentimentos que os envolvem. iluminação, movi- alheio às condições da recepção. Tal preocupação
mento, figurinos e múltiplos elementos plásticos são pode ser igualmente visualizada no cuidado em al-
convocados para compor cenários impressionantes. ternar momentos de tensão máxima com outros de
Tal dispersão vai igualmente afetar a unidade riso e de descontraçâo, O espectador atravessa suces-
de tempo. A duração será expandida para longos sivos estados, ri e chora, e no final sai recompensado.
períodos, ao sabor das necessidades do enredo que Se não testemunha sempre a felicidade dos jovens
inclui peripécias contínuas. Esse alargamento se apaixonados, encontra a certeza de que o crime
justifica bem diante do número de casos a serem não compensa. Como demonstram estudiosos da
resolvidos e da extensão da complicação armada. matéria, entre os quais Bentley'", Carlson", 1homas-
Anos, ou mesmo gerações, podem ser requeridos seau", Barbero" e Huppes", a sentimentalidade, a
para desvendar segredos, para consumar vinganças variedade de tom, a mensagem positiva e a exube-
ou simplesmente para restabelecer a verdade que rância formal marcam o estilo melodramático. Ao
estivera ameaçada durante toda a peça. acentuar a distinção face aos gêneros clássicos, os au-
No decênio de 183 o, o drama histórico foi culti- tores de melodramas demarcam as fronteiras de um
vado no interior do romantismo por autores corno estilo com personalidade própria. Têm o cuidado de
Victor Hugo, Alexandre Dumas, Alfred de Musset,
25 Eric Bendey, Melodrama, em A E:...iperiência Vivado Teatro,
entre outros, que lhe deram estatuto literário. O
tradução de Álvaro Cabral, Rio deJaneiro: Zahar, 1967,P' 181-2.00.
primeiro inspirou-se em Shakespeare para propor 26 Marvin Carlson, Teorias do Teatro: EstudoHistórico-Crítico,
o fim da separação entre tragédia e comédia, cujas dos Gregos à Atualidade, tradução de Gilson César Cardoso de
Souza, São Paulo: Unesp, 1997.
características deveriam ser unificadas no interior
27 Jean-Marie Thomasseau, O Melodrama, tradução de Claudia
do novo gênero; o drama. Autores de melodrama, Braga, São Paulo: Perspectiva, 2.006.
corno Adolphe Dennery ou Victor Ducange, tam- 28 J.Martín-Barbero, Television y Melodrama..., p. 39-60.
29 Ivete Huppes, Melodrama: O Género eSuaPermanência, São
bém lançaram mão de argumentos históricos para Paulo: Atelíê, 2.000.
+ o TeatroRomântico

redefinir o sentido de adjetivosfrequentemente asso- Naquela altura, Gonçalves de Magalhães já go-


ciados ao gênero - sentimental, exagerado,simples - zava de prestígio nos meios literários e, além disso,
que servem melhor para desqualificarosprodutos de tinha muitos planos. No ano de r 836 editara em
aceitação popular do que para compreender-lhes a Paris os famosos Suspiros Poéticos e Saudades, cole-
estrutura e o funcionamento. tânea de poemas proclamados como marco inicial
Quando escritores brasileiros começam a es- do estilo romântico brasileiro. Queria agora con-
crever para o teatro no século XIX, a não ser que solidar a fama no teatro, provavelmente inspirado
cultivem a comédia, eles em geral se dedicam à pela atuação que consagrara Almeida Garrett no
composição de dramas históricos de feição melo- cenário artístico português. Garrett se tornara am-
dramática. Fossepela vontade de sintonizar com a plamente reconhecido por revolucionar a poesia,
moda, fosse pela maior probabilidade de sucesso, através do poema Camões) publicado em r825, e
ou por ambas as razões, o certo é que essa é a op- por liderar a renovação do teatro do seu país.
ção dominante. O inventário de toda a produção As avaliaçõesde críticos da época, tendo à frente
dramática de que se tem notícia, entre os anos de Joaquim Norberto de Sousa e Silva", Ferdinand
r 830 e r 8 5o, mostra que àquela altura a tragédia Wolf33 e Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro>
nitidamente perdia terreno para os outros gêneros. atestam que a semelhança entre o autor lusitano e o
Em um total de 58 peças identificadas, encontram- brasileiro foi de fato identificada. Não se limitaram
-se 25 comédias, 22 dramas ou melodramas, 7 tra- a assinalar a coincidência de papéis entre Garrett
gédias e 4 peças de natureza diversa". e Nlagalhães. Também registraram a vantagem do
brasileiro, cuja peça de estreia subiu ao palco cinco
meses antes de Um Auto de Gil Vicente, peça do
Gonçalves de Magalhães escritor português. Ferdinand Wolf, em O Brasil
Literário, faz uma análise altamente lisonjeira para
Não obstante a crescente popularidade do drama o nosso conterrâneo. Ele equipara a contribuição
e do melodrama no Brasil, a tragédia neoclássica de ambos os escritores para o teatro dos respectivos
continua um gênero de prestígio durante a primeira países e faz questão de destacar a anterioridade de
metade do século XIX. Não fosse assim, não teria Nlagalhães sobre a estreia de Almeida Garrett:
entre seus cultores o escritor mais destacado do
período, Domingos José Gonçalves de lvlagalhães ficou reservado então a este espírito independente que
(r8rr-r882). Tampouco contaria com a simpatia operou uma revolução tão feliz com os seus Suspiros Poéti-
de João Caetano, ator de renome e empresário cos a glória de abrir o caminho ao teatro nacional. Ele tem
teatral de sucesso. A estreia de Magalhães como mesmo a honra de ter precedido Garrett, que teve mais
dramaturgo acontece em grande estilo, o que per- tarde a mesma influência sobre a cena portuguesa".
mite fazer uma avaliação do seu destaque. Dá-se
no dia r 3 de março de r 838, tendo por cenário o O entusiasmo de Ferdinand Wolfseria difícil de
melhor teatro do Rio de Janeiro, o Constitucional justificar, se não fosse um fatO sabido que contou
Fluminense, e levada exatarnente pela companhia com a colaboração do próprio Gonçalves de Ma-
dramática de João Caetano. Não bastasse isso, o galhães. Este, em pessoa, mais os amigos Manuel
famoso ator se incumbe pessoalmente de represen- de Araújo Porto-Alegre e Ernesto Ferreira França
tar o papel principal. A peça é uma tragédia em foram conselheiros do autor, quando ele escrevia
cinco atos vazada em rigorosos versos decassílabos.
Trata-se de Antônio Joséou O Poetaea Inquisição", 32 Bosquejo da História da Poesia Brasileira. em Modulações
Poéticas. Rio deJaneiro: Francesa. 1841. p. 37-40.
33 O BrasilLiterário: Históriada LiteraturaBrasileira. tradução.
30 L Huppes, Gonçalves de lvlagalhães e o Teatrodo Primeiro prefácio e notas deJamil Almansur Haddad, São Paulo: Nacional,
Romantismo, Porto Alegre: Movimento. Lajeado. Faces, 1993. 1955.P·3 28.
P· 183- 197· 34 Resumo de História Literária. v. II. Rio de Janeiro: Garnier,
31 Domingos José Gonçalves de Magalhães. AntônioJoséou O 1873.P· 45 2-4 62.
Poetae a Inquisição. Rio de Janeiro: F. de Paula Brito. 1839. 35 F.Wolf, O BrasilLiterário. p. 328.

+ 79
História do Teatro Brasileiro • volume 1

oBrasilLiterário. É bem provável que, na condição teatrais do século XIX. Em todo o caso, o naciona-
de conselheiros, os três amigos tenham reforçado a lismo da primeira produção dramática de Gonçalves
ideia da comparação entre artistas de calibre tão de Magalhães é dado como qualidade romântica
distinto. Seja como for, a análise feita pelos críticos importante, que recoloca a questão do paralelismo
literários da época servepara elucidar aspretensões do com Almeida Garrett. Ao buscar no século XVIII
nosso primeiro romântico, além de fazer prova da ex- a figura do popular comediógrafo Antônio José
celente reputação de que gozava nos meios letrados. da Silva, Magalhães procedia tal qual Garrett, cuja
A julgar pelos termos do prefácio intitulado peça de estreia, Um Auto de Gil Vicente) encontra
"Breve notícia sobre Antônio José da Silvá' que igualmente inspiração na dramaturgia do passado.
Gonçalves de :Magalhães escreveu para a primeira O tom da peçaAntônioJoséé austero. A tensão
edição de Antônio [ose" e que tornam a aparecer não afrouxa um momento sequer. Afinado com
com a mesma redação na edição das obras com- o estilo da tragédia neoclássica, o protagonista,
pletas, datada de 1865, os planos estavam sendo Antônio José, é implacavelmente conduzido à
satisfatoriamente concretizados. Ao apresentar sua fogueira, em que pese o arrependimento de seu
obra, em 1839, ::Magalhães rememora o sucesso da acusador. Não há espaço para desenvolver alguma
estreia e também os aplausos que despertou em história de amor. Antônio José não dá mostras de
sucessivas representações. Diz que o acolhimento estar apaixonado por Mariana. Esta, por sua vez,
superou de longe as suas previsões e que a atenção tem um comportamento ambíguo em relação ao
do público "recompensou as fadigas do poeta". Para escritor, misto de amizade e de admiração. Já em
explicar a recepção positiva, encontra duas razões: relação a Frei Gil, ela manifesta decidida aversão.
em primeiro lugar, o fato de ter escolhido um as- Tanto que prefere deixar-se morrer a concordar
sunto nacional; depois, as novas técnicas dramáticas com as propostas que o religioso lhe faz.
trazidas da Europa, que teriam determinado maior Mas do ponto de vista do espetáculo há nítidas
informalidade na representação e contribuído para novidades. Nesse aspecto Gonçalves de ::Magalhães
a melhoria dos recursos cênicos empregados. tem razão em julgar-se, pioneiro. O cenário varia
A ideia de que o assunto de AntônioJosé é nacio- adequando-se à ação bastante dinâmica. Nos pri-
nal surpreende o leitor moderno. Afinal, Antônio meiros atos são mostradas apenas salas domésticas,
José da Silva- em torno de quem gira a história - era mas no último a ambientação pode impressionar.
filho de pais portugueses eviveu no Brasil apenas até Mostra uma cela no cárcere do Santo Ofício, com
os nove anos de idade. Além do mais, os episódios um feixe de palha onde jaz Antônio José, tendo ao
que a tragédia de Gonçalves de Magalhães focaliza lado um pote de água e um candeeiro bruxuleante.
passam-se todos em Portugal. Mostram Antônio A solidão do condenado é interrompida por um
José - oJudeu - já famoso como autor de comédias ruído no ferrolho da porta localizada no alto de
populares. Nessa condição, em Lisboa, ele é perse- uma escada. Entra um vulto encapuzado com um
guido e acusado de judaizante por Frei Gil, um reli- archote aceso. É Frei Gil, que chega para pedir
gioso que se enamorou de lvlariana'- a principal atriz perdão. Mais adiante, um estrondo no ferrolho dá
das peças apresentadas no Bairro Alto. Diante da entrada para um grupo, que avança empunhando
resistência da moça, a punição recai sobre o Judeu. brandões acesos. Ato contínuo, Antônio José é
Ele é aprisionado e levado, por fim, à fogueira da vestido com o traje do suplício e levado para fora,
Santa Inquisição. O entendimento de que o tema é enquanto sons de marcha fúnebre, rufo de tambo-
brasileiro pode estar ligado à tradição de determinar res e badaladas de um sino encerram o espetáculo
a nacionalidade em função do local de nascimento com macabra solenidade.
do autor. Pode também relacionar-se ao costume de Depois da estreia bem-sucedida, logo no ano
não julgar estrangeiros no Brasil os assuntos portu- seguinte Gonçalves de Magalhães apresenta outra
gueses,ideia que igualmente aparece em várias peças tragédia, Olgiato 37 • Tanto a data da representação

36 D.J. Gonçalves de Magalhães, Breve Notícia sobre Antônio


José da Silva, AntônioJoséou O Poeta ea Inquisição, p. 3-8. 37 Idem, Olgiato, Rio deJaneiro: F. de Paula Brito, r841.

• 80
• o Teatro Romântico

como o espetáculo prometem muito. Olgiato sobe A pobre repercussão do segundo trabalho deve
à cena em 7 de setembro de 1839, numa récita que ter abalado profundamente o autor e os seus pro-
comemora a Independência do Brasil e ao mesmo pósitos de liderar o desenvolvimento do teatro no
tempo marca a reabertura do Teatro S. Pedro de Al- BrasiL Não fosse assim, não se compreenderia que
cântara, depois de ampla reforma. A circunstância alguém com as pretensões de Magalhães viesse
da estreia ilustra bem a expectativa favorável com a encerrar ali mesmo a carreira de dramaturgo.
que a nova produção é cercada e, mais uma vez, o Embora tenha continuado a escrever, nunca mais
prestígio de que goza o autor. compôs peças de teatro. Acontecimento tão ines-
A segunda peça, como a primeira, inspira-se em perado sugere questionar as razões da resistência
material de fundo histórico. A ação é localizada em do público. O que teria determinado o malogro
Milão, onde um grupo de jovens idealistas cons- de Olgiato) quando tudo levava a apostar em mais
pira contra o governador tirano, o duque Galeazzo uma representação plenamente exitosa?
Sforza. Olgíato não só é um dos conspiradores como Tudo indica que faltaram várias qualidades ao
está apaixonado pela filha de importante magistrado. teatro de Gonçalves de .iYIagalhães. Primeiro, a noção
Ao cabo dos cinco ates, escritos mais uma vez em do rumo para o qual corria a renovação teatral. Os
decassílabos, o empreendimento fracassa. O herói e tempos não eram favoráveisà solenidade das tragédias
seus amigos perecem quase à vista do público, numa em verso.Seu teatro é demasiado sériopara uma época
cena que deveria coroar de aplausos a bravura que que começava a gostar da mescla de sofrimento e riso,
malogra sob a força de um tirano crueL que apreciava o movimento, o espetáculo e histórias
Tampouco em termos de representação e recep- sentimentais. Por conta desse equívoco, nem o autor
ção as coisas acontecem conforme o esperado. Para nem os críticos da época conseguem distinguir os
começar, a personagem principal tinha sido criada pontos fortes e os pontos fracos dessa segunda expe-
para a atuação de João Caetano, mas desta vez o riência dramática. Não reconhecem, por exemplo, que
famoso ator declina do papel. Teria ele antecipado a melhor qualidade de Olgiato é a variação de cenários
a dificuldade de agradar a plateia? O que se sabe e a utilização de recursos plásticos. Exemplo positivo
é que Magalhães ficou ressentido com a ausência pode ser encontrado numa cena construída de forma
do ater e mais ainda com a frieza da recepção. No impressionante. Ela se desenrola à noite no cemitério
"Prólogo" de oito páginas que escreveu para a pri- de Santo Ambrósio, onde Olgíaro vai rezar junto ao
meira edição da peça, ele se esforça para vencer a in- túmulo da irmã. Primeiro, uma sombra desce sobre a
compreensão dos espectadores. A redação original lápide; depois, despenca a lâmpada do oratório, tra-
é mantida no interior das obras cornpletas'", mos- zendo presságios negativos para as ações futuras. A
trando claramente o desencontro que aconteceu. atmosfera sombria tinha um potencial dramático que
Na explicação, o autor procura destacar as virtudes as cenas seguintes dispersam, porque voltam a fixar-se
que considera indispensáveis ao bom teatro. Afirma no recinto fechado, onde as personagens se limitam a
a importância de manter a fidelidade ao motivo exercitar uma oratória tão filosóficaquanto repetitiva.
histórico que serve de base para peças com fundo Distanciadas da nova tendência que se deli-
verídico e realça a função educativa da arte. Cons- neava, as peças de 1.Y1agalhães carecem de teatrali-
ciente de que Ofgiato atende a ambos os requisitos, dade e imaginação dramática. Olgiato é antes uma
Magalhães tem dificuldade para aceitar críticas e narrativa do que um drama. Além disso, o autor
repele "as amargas censuras" de que foi alvo. Quem confia demais na importância que a mensagem
igualmente repudia a recepção é o amigo Joaquim moralizante pode ter no teatro. Ele sacrifica o
Norberto de Sousa e Silva". Destacando o papel espetáculo sob o argumento equivocado de que
renovador de Magalhães, o crítico qualifica "injus- assim promove a virtude e condena o mal. A tal
tos os apupos dos censores de Olgiato". ponto incorpora a responsabilidade de educar, que
praticamente esquece o fato de estar fazendo arte.
38 Idem, Obrasde Di]. G. deMagallrães. Tragédias:Antôniojosé, Falha no estabelecimento da indispensável tensão,
O~iato e Otelo, v. III, Rio deJaneiro: Garnier, 1865, p. 131-138.
39 ]. N. de Sousa e Silva, Modulações Poéticas, p. 28.
com o argumento de impedir o mal de aparecer.

• 8r
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Concentra-se em dar voz ao grupo de jovens bem- Antes de Gonçalves de Magalhães


-intencionados, que querem acabar com a tirania,
mas se esquece de desenvolver o conflito dramático. Dramas ou melodramas com estilo mais popular
Acredita que reforça os méritos da peça se retira do que a solene austeridade de Olgiato tinham che-
dos maus inclusive a possibilidade de aparecer em gado ao Rio de Janeiro ainda antes de Gonçalves
cena. Fixa a atenção exclusivamente sobre o grupo de Magalhães retornar da Europa. E haviam sido
de conspiradores, preocupado em justificar a ação representados como pelas companhias dramáticas
violenta que, em nome do bem, os rapazes se pre- estrangeiras quanto peladeJoão Caetano. Tais peças
param para praticar. Limita-se a insistir nas justi- serviram de modelo para escritores que moravam
ficativas para o assassinato do ditador, sem nunca aqui e estavam mais atentos às tendências da moda
sequer apresentar o duque Sforza em cena. Como e mais despreocupados do compromisso com a ele-
resultado, inexíste dramaticidade e os bons propó- vação moral da plateia.
sitos sozinhos não conseguem sustentar o interesse Antes da estreia de AntônioJoséhá registros de
do público. Se fosse para inovar o teatro nacional- várias peças escritas e mesmo representadas não
como pretendia -lvfagalhães deveria ter arranjado só no Rio de Janeiro como em outras cidades bra-
a peça de maneira diferente. Em primeiro lugar, ti- sileiras. O livro de Lothar Hessel e Georges Rae-
nha de ter trazido o conflito para o primeiro plano, ders, O Teatro no BrasilsobD. Pedro II, é rico em
colocando os opositores face a face ou, ao menos, informações que podem surpreender o estudioso
mostrando também os maus em ação. Em segundo de teatro brasileiro acostumado a ver em Gonçalves
lugar, poderia ter concedido mais espaço ao casal de Magalhães o escritor dramático que inaugura o
de namorados. Na peça, o romance ocupa lugar teatro romântico entre nós. Esses mesmos auto-
muito discreto. Além disso, os jovens parecem res defendem a tese de que "o primeiro intento
demasiadamente resignados em relação aos seus consciente de literatura dramática brasileira, a
planos de felicidade. Por fim, teria sido oportuno que presidia um sentido nacionalista":" deu-se na
alternar passagens mais leves ou mais impactantes noite de 2 de dezembro de r 837, com a encenação
com a monocórdia e repetitiva oratória que con- da peça lírica em um ato, Prólogo Dramático, de
some a maior parte do tempo. Araújo Porto-Alegre (r806-r879). Essa pecinha,
A conclusão que :Magalhães elabora a partir da uma alegoria política, trazia o Brasil para a cena,
decepcionante repercussão de Olgiato é também personalizado num jovem que precisava ser bem
apressada. Julga que o público repudia a mensagem encaminhado para garantir o seu futuro. Outro
construtiva. Sendo assim, passa ao largo das lacunas pesquisador do nosso teatro que não concorda
da composição e direciona as baterias para a defesa com o pioneirismo de Gonçalves de lvfagalhães é
da moralidade. No "Prólogo': afirma que o artista Augusto de Freitas Lopes Gonçalves, que escreveu
tem a missão de "despertar os nobres e belos senti- um ensaio para atribuir a Luís Antônio Burgain o
mentos d'alma" em lugar de distrair o público com
fantasias atraentes, mas pouco edificantes. Como
se vê, faltou a percepção de que o público de teatro que tratam do teatro de Gonçalves de Magalhães: Décio de Al-
buscava entretenimento sem que isso implicasse meida Prado, O Ecletismo Liberal de Gonçalves de Magalhães,
Teatro de Ancbieta a Alencar, São Paulo: Perspectiva, 1993, P:
imoralidade. No final da quarta década do século 141-18) e Entre Tragédia e Drama: Gonçalves de Magalhães,
XIX, a plateia queria simplesmente ver um bom em ODramaRomântico Brasileiro, São Paulo: Perspectiva, 1996,
P: I 1- 52; Mariângela Alves de Lima, Entre o Rigor Clássico e
esperáculo, um espetáculo dramático, de conflito o Desalinho Romântico, em Gonçalves de Magalhães, Tragédias,
e de tensão. Provavelmente Machado de Assis se São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. IX-XLV; Kãthe\V'indmüller, O
judeu no Teatro Romântico Brasileiro, São Paulo: Centro de Estu-
referia a problemas desse tipo ao criticar na peça a dosJudaicos da USP-FFLCH, 1984; André Luís Gomes,idarcasde
falta de "imaginação própria e especial da cena":". Nascença: A Contribuição deGonçalves delvlagalhãesparao Teatro
Brasileiro, São Paulo: Antiqua, 2004; Roque Spencer Maciel de
Barros, A Significação EducativadoRomantismoBrasileiro: Gon-
40 Joaquim Maria Machado de Assis, Do Teatro: Textos Críticos e çalves deidagalhães, São Paulo: Grijalbo/Edusp, 1973.
Escritos Diversos, São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 404-409. Além 41 O Teatro no BrasilsobD. PedroII. I. Parte. Porto Alegre:
do estudo de Machado, o leitor pode consultar as seguintes obras UFRGS~E~197~P' 5~

• 82
• o Teatro Romântico

título de "criador do teatro brasileiro'T'. Afinal, ganhar reedições em curto espaço de ternpo.Mas é
argumenta, Antônio José subiu à cena um ano de- exatamente o que ocorre com a peça encenada em
pois desse escritor francês naturalizado brasileiro 1837, Glória e Infortúnio ou A Morte de Camões.
ter escrito e feito representar os dramas A Última No ano seguinte, 1838, é editada por J. Villeneuve
Assembleia dos Condes Livres e Glória e Infortúnio e três anos depois chega à terceira edição". A peça
ou A Morte de Camões, em 1837, o primeiro a 3o Luís de Camões, por sua vez, é lançada em 1845 e
de maio, o segundo a 9 de agosto. decorridos quatro anos alcança a quinta ediçãov.
Outros autores e peças podem ser lembrados Além de sucesso editorial, Luís Antônio Bur-
como exemplos de precedência cronológica. Hes- gain gozou de prestígio no meio teatral e nunca teve
sel e Raeders informam que em Pernambuco, na dificuldades paraver suas peças encenadas. Seus
década de 183 o, houve certa atividade teatral, que comentários acerca da representação de A Última
resultou em peças provavelmente de autores brasi- Assembleia dos Condes Livres não deixam dúvida
leiros, como A Mulatinha Pernambucana e Restau- acerca da ampla repercussão alcançada. O prefácio
ração de Pernambuco doJugo Holandês. Em 1834, ''A ~em Ler", escrito para a primeira edição da
foi publicado em Porto Alegre, sem indicação de obra, é bem ilustrativo": Ele se refere com gratidão
autoria, o Novo Entremez Intitulado o Político e à colaboração que recebeu deJoão Caetano. O ator
Liberalpor Especulação. É de 1835 a peça Tbelaira e empresário teria encorajado sua carreira, além de
ou OsEspanhóis no Nouo Mundo, composta porum prover as condições necessárias à encenação. Bur-
obscuro Antônio José de Araújo. A 2 de julho de gain conta que, tendo submetido ao ator essa peça
1837, representou-se em Salvador o drama A Res- e mais outra que também já estava concluída, inti-
tauração da Bahia ou A Expulsão dos Holandeses, tulada Glória e Infortúnio ou A Morte de Camões,
do português naturalizado brasileiro Manuel An- João Caetano "aconselhou supressões e mudanças,
tônio da Silva. Por fim, vale lembrar que Martins que deviam concorrer para o efeito teatral e tornar
Pena escreveu cinco melodramas com argumentos mais verossimilhantes algumas passagens". Não se
históricos, todos em prosa, entre o ano de 1837, ou limitando a conselhos, João Caetano também se
ainda antes, e o ano de 184143. encarregou do papel de vilão, na peça de estreia,
De todos os autores acima mencionados, o único e do papel de Camões, quando da representação
que, de fato, gozou de popularidade no terreno do da segunda no Teatro Constitucional Fluminense.·
chamado "teatro sério" foi Luís Antônio Burgain. O aplauso dos contemporâneos não foi sufi-
De longe, foi o mais prolífico e o mais sintonizado ciente para garantir a Burgain um reconhecimento
com o gosto popular no grupo dos pioneiros da por parte da intelectualidade que escreveu sobre
dramaturgia brasileira. O reputado bibliófilo o teatro nos tempos do romantismo. Talvez pelo
português Inocêncio Francisco da Silva já no ano fato de suas duas primeiras peças encenadas não se
de 1860 registra dez dramas, três comédias, duas passarem no Brasil, talvez por ser francês de nasci-
tragédias e um vaudevile de sua autoriar'. Antônio mento, talvez por não ter anunciado uma intenção
de Sousa Bastos" afirma que Burgain foi um au- explícita de criar o teatro brasileiro, talvez por ter
tor muito bem-sucedido em seu tempo. Esse fato cultivado o gênero menos nobre do melodrama,
pode ser confirmado pela cuidadosa edição de suas seu nome foi pouco lembrado nos textos teóricos
obras, algumas tendo alcançado até impressões su- e críticos do nosso movimento romântico. Uma
cessivas - algo extraordinário para uma época em injustiça, por certo, para um homem de teatro que
que chegar ao prelo já era coisa rara, quanto mais teve mais leitores e espectadores do que Gonçalves
de lvIagalhães. Assim, se por um lado as peças de
42 Idem, p. 46 e 51.
43 Luís Carlos Martins Pena, Dramas, edição crítica por Darcy
Damasceno, com a colaboração de Maria Filgueiras, Rio deJa- 46 Luís Antônio Burgain, Glória e Infortúnio ou A Morte de
neiro: Instituto Nacional do Livro, 1956. Camões, 3. ed., Rio deJaneiro: Despertador, 184I.
44 Inocêncio Francisco da Silva, DicionárioBibliográfico Portu- 47 Idem, Luís de Camões, 5. ed., Rio deJaneiro: Laemmerr, 1849.
guês, v. v, Lisboa: Imprensa Nacional, 1860, p. 215-217. 48 Idem, A Quem Ler, em Glória eInftrtúnio..., Rio de Janeiro:
45 A. de S. Bastos, Carteira doArtista, P: 277. J.Villeneuve, 1838,P' v-x.
História do Teatro Brasileiro + volume 1

Burgain representadas em 1837 não foram lembra- Luís Antônio Burgain


das como marcos importantes para a história do
teatro brasileiro, por outro a encenação deAntônio Encenado com sucesso não só no Brasil, mas tam-
José e o papel de Gonçalves de Magalhães ao lado de bém em Portugal, Burgain (18 12- 1877) é amor de
João Caetano jásão reverenciados pelos nossos es- oito peças identificadas ou como dramas históricos
critores e intelectuais desde o decênio de 1840. Um ou como melodramas. Por ordem de estreia, são
exemplo disso está no texto "Da Arte Dramática no elas: A Última Assembleia dos CondesLivres, em
Brasil': de Émile Adet, datado de 1844 e publicado 1837; Glória e Infortúnio ou A Morte de Camões)
na revista românticaJV!inerva Brasiliense. Em seu em 1837; O Amor de um PadreouA Inquisição em
balanço da nascente literatura dramática brasileira, Roma, em 1839; Fernandes Vieira ou Pernambuco
ele cita Gonçalves de Magalhães e alguns outros, Libertado) em 1843; Pedro Sem quejá Teve eAgora
como Teixeira e Souza e Joaquim Norberto, mas não Tem) em 1845; Luís de Camões) em 1845; Três
não se refere a Burgain. Ainda em 1849, ao dis- Amores ou O Governadorde Braga) em 1848 e O
cursar na Academia de Direito de São Paulo sobre Mosteiro de Santo lago) em 1860.
a missão civilizadora das universidades, Álvares de No prefácio que está incluído na edição de Pedro
Azevedo menciona Gonçalves de Magalhães como Sem..., feito dois anos depois da estreia da peça",
o "fundador do nosso Teatro":". consta o parecer elogioso do Conservatório Dra-
Outros depoimentos ou análises posteriores mático Brasileiro e o do Conservatório Dramático
ratificaram o juízo de Álvares de Azevedo. Num de Lisboa. Este último aparece integrado à carta do
artigo importante que publicou na revista O Gua- sr. Francisco Martins d'Alrneida, amigo de Burgain
nabara, em 1852, intitulado "O Nosso Teatro e proprietário dos direitos de representação da peça
Dramático': Araújo Porto-Alegre assevera que "da em Portugal. A carta é datada de 25 de novembro
representação de AntônioJosédata o ponto saliente de 1846 - menos de um ano depois da estreia no
da revolução dramática no Brasil, porque aí o sr. Brasil- e traz detalhes da recepção do trabalho na-
João Caetano, como agente principal na sua rea- quele país. Relata a disputa causada pela solicitação
lização, começou a obra da reforma"!". O próprio do escritor português Inácio Maria Feijó, que pedia
João Caetano em suas LiçõesDramáticas, obra de a preferência do Conservatório para a própria peça,
1862, só tem palavras de admiração para o autor intitulada Pedro Sem, sobre a composição do bra-
de AntônioJosé. Outro juízo de peso, o de Machado de sileiro. Ao que parece, a solicitação buscava uma
Assis, data de 1866, ano em que assinou um ensaio espécie de reserva de mercado contra a entrada da
sobre a dramaturgia de Gonçalves de Magalhães. concorrente brasileira. Sucede que ambas as com-
Embora não o considere um bom autor teatral, posições exploram a mesma história, verídica, ao
ressalta que seu maior mérito foi o de ter sido "o que se diz, e muito popular àquela altura. Embora
fundador do teatro .brasileiro" 51. os enredos não sejam desenvolvidos da mesma ma-
De um modo geral, a posteridade não fez mais neira, as duas peças localizam as ações na cidade do
que repetir os juízos citados acima, lançando para Porto e destacam a desgraça que atinge o homem
o esquecimento a obra dramática de Burgain, mais que ousa desafiar o poder de Deus. As informa-
extensa e mais representada do que a de Gonçal- ções do prefácio acrescentam também que a peça
ves de Magalhães, além de mais sintonizada com o de Burgain foi a preferida para as representações
gosto popular do período. em PortugaL Trazem ainda comentários dos con-
selheiros portugueses imaginando a atuação da
conterrânea Ludovina Soares da Costa, no papel
de Maria, a moça enganada por Pedro Sem. Eles
49 Álvares de Azevedo, Obras Completas, v. II, edição de Ho-
mero Pires, São Paulo: CompanhiaEd. Nacional, 1922, P: 399.
52 L. A. Burgain, Pedro Sem quejá Teve eAgoranão Tem, Rio
50 Manuel Araújo Porto-Alegre, O Nosso Teatro Dramático, deJaneiro: Laernrnert, 1847, p. v-viii.Sobre a obra dramática de
em João Roberto Faria, Idéias Teatrais: O Século XIX no Brasil, Burgain, há capítulos específicos em D. de Almeida Prado, O
São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 369. Drama RomânticoBrasileiro, p. )3-87 e L. Hessel; G. Raeders,
51 Machado de Assis,Do Teatro..., p. 405. O Teatro sobD. Pedro II, I parte, p. 46- 53.
• o Teatro Romântico

Pernambuco Libertado; mais outras duas se passam


em Portugal: Pedro Sem quejá Teve eAgoranão Tem
e Três Amores ou O Governadorde Braga; uma na
Espanha: O Mosteiro de Santolago; e as outras duas
têm por cenário, respectivamente, a Alemanha e a
. Itália: A Última Assembleiados Condes Livres e O
Amor de um PadreouA Inquisição em Roma.
As peças de Burgain são sempre muito movi-
mentadas e têm na base, invariavelmente, um caso
sentimental de difícil solução. Passam-se geralmente
em cenários remotos e entrelaçam fortemente os
motivos históricos e as desventuras amorosas. Os
conjuntos bem amarrados desenvolvem acirrados
conflitos, aos quais se juntam lances cómicos, his-
tórias de amor e belos finais felizes. Tal concepção
aparece já na peça de estreia, o drama em prosa
com cinco ates intitulado A Última Assembleia
dos Condes Livres.
Outro exemplo ilustrativo pode ser buscado na
peça Fernandes Vieira ou PernambucoLibertado.
Trata-se de obra de caráter histórico calcada em um
dos mais conhecidos episódios da história do Brasil:
a invasão dos holandeses no Nordeste, no século
XVII, e as lutas que se seguiram para expulsá-los. Até
certo nível, há completa fidelidade ao tema original.
Luís Antônio Burgain.
Todos os personagens citados nos compêndios es-
pecializados apar~cem em cena: Fernandes Vieira,
igualmente elogiam a atriz que continuava co- Calabar, Vidal de Negreiros, Henrique Dias e Filipe
nhecida na sua terra quase vinte anos depois de Camarão. Mas a base histórica não fecha a porta
ter partido para o Brasil. Independentemente da para a criatividade do autor. Aos fatos juntam-se
querela, o fato consistente é que a versão de Pedro peripécias e personagens fictícíos com toda a na-
Sem assinada por Inácio Maria Feijó só logrou ser turalidade. Burgain não esquece de colocar um ro-
impressa em r 86r, quatorze anos depois da de Luís mance no centro das atenções. Ao mesmo tempo,
Antônio Burgain. não faz cerimônia para modificar o andamento dos
O episódio é trazido aqui como evidência de episódios, divergindo dos registres da história na-
que Burgain foi um autor bastante conhecido na cionaL Por exemplo, nessa sua versão sobre a luta,
sua época. A sensibilidade para escrever segundo a traição de Calabar é motivada pela frustração
o gosto reinante deve ter contribuído muito para amorosa. Ele está apaixonado pela filha adotiva de
a sua popularidade. Não menos importante seria a Fernandes Vieira, mas a moça ama um soldado das
habilidade para compor cenas dramáticas em torno tropas brasileiras. A paixão infeliz perturba Cala-
de conflitos temperados com emoção e suspense. bar a ponto de justificar a traição à pátria. Depois
As histórias se localizam em épocas passadas e em de marchas e contramarchas, Calabar confessa o
geral são inspiradas em assuntos portugueses e bra- crime e se arrepende sinceramente. O reconheci-
sileiros. É notável a variedade dos temas. Duas peças mento do erro motivado por amor permite que os
abordam a vida de Camões: Glória eInfortúnioouA demais personagens tenham uma percepção mais
Morte de Camões e Luís de Camões; uma versa sobre branda do delito. Isso não impede o movimento
episódio da história do Brasil: Fernandes Vieira ou seguinte. Uma vez arrependido, Calabar quer
História do Teatro Brasileiro + volume 1

recuperar a sua honra. Nesse afã, acaba perdendo a governador de Braga. Também não despreza a pers-
vida em ates de bravura, novamente enfileirado ao pectiva favorável que o casamento lhe assegura,
lado dos brasileiros. Sua coragem é tão grande que do ponto de vista financeiro. Se aceita o laço de
determina a definitiva expulsão dos estrangeiros. A Teodora, conquista um futuro sem sobressaltos
ousadia terá duas consequências importantes para o em casa de amigos do rei. Literalmente.
enredo: possibilitará a Calabar se reabilitar depois
de ter expiado seu crime e ao mesmo tempo o tirará
da cena. Dessa maneira, abre espaço para a solução Martins Pena
feliz. A filha adotiva de Fernandes Vieira e o bravo
soldado que ela ama podem se aproximar sob o ":Martins P~na (18 I 5-1847), que sobreviveu ao seu
aplauso geral, ao mesmo tempo que os vencedores tempo como comediógrafo, escreveu cinco melo-
comemoram a vitória sobre os holandeses. dramas, aos quais denominou "dramas': confusão
Um aspecto muito frequente nas obras de Luís comum nos anos de 183 o e 1840, quando o pró-
Antônio Burgain é o tom galhofeiro; que ameniza prio drama romântico se deixou contaminar por
a seriedade dos fatos principais. Isso aparece bem certos recursos formais e conteudístícos do gênero
na peça Três Amoresou O Governador deBraga, em criado por Pixérécourt. Por ordem de produção,
que se tem o caso de D. Branca e de Eduardo, que são os seguintes: Fernando ou O CintoAcusador, de
estão diante dos preparativos para o seu casamento 1837; D.João deLira ou O Repto, de 1838; Itaminda
quando a inesperada paixão que a moça desperta no ou O Guerreiro de Tupã, escrito provavelmente antes
governador de Braga vem alterar o rumo previsto. de 1839; D. Leonor Teles) de 1839; e Vitiza ou O
No meio de peripécias e de sobressaltos, destaca- Nero de Espanha, escrito entre 1839 e 1840. Ne-
-se a figura de Teodora, uma serviçal de D. Branca. nhum foi publicado durante sua vida e apenas o
À semelhança da ama, também ela procura um último foi representado sem ter feito sucesso. A
companheiro. A diferença é que a criada age fora estreia ocorreu no dia 21 de setembro de 1845 no
da pauta do amor cortês em que os nobres se movi- Teatro S. Pedro, no Rio de Janeiro.
mentam. Sem lances patéticos, longe de alimentar o Como regra os melodramas de Martins Pena bus-
sonho da paixão romântica, ignorante da convenção cam cenários distantes e um passado remoto para
do primeiro amor, o propósito de Teodora é mais desenvolver enredos muito dinâmicos. Fernando ou
simples: quer arranjar marido, por bem ou por O CintoAcusadorlocaliza as ações em Nápoles, em
mal. O canhestro assédio que faz aJ erônimo, outro masmorras e em castelos medievais, onde os cava-
criado da casa, introduz uma dimensão realista. Em leiros se medem em lutas pela honra e pela mão de
vez de enamoramento e romantismo, aqui valem os donzelas. D. João de Lira ou O Repto se passa em
objetivos práticos. O propósito de casamento en- Portugal, no ano de 1400. Itaminda ou O Guerreiro
tre os nobres, D. Branca e Eduardo, está alicerçado de Tupã, por sua vez, é a única peça do autor que foi
so bre base cortesã, razão pela qual se desenvolve ambientada no Brasil, mais precisamente na Bahia
entre sutilezas e enfrenta muito mais riscos. O de de Todos os Santos, no ano de 1550. Outro aspecto
Teodora, pelo contrário, não necessita aguardar o que torna a peça especial é o fato de apresentar índios
destino nem a resolução de dificuldades políticas. A como protagonistas, coisa rara no teatro brasileiro,
moça rude sabe que o desfecho depende do próprio que aproveitou muito pouco a temática indianista.
esforço e trata de tomar providências. Ao presenciar Itaminda ou O Guerreiro de Tupã mostra a luta
o encontro feliz que frei Eusébio - um disfarce do fratricida entre Itaminda e Tabira, motivada pela
próprio rei de Portugal- concede à ama, não hesita paixão que ambos sentem por Beatriz, a moça por-
em barganhar igual ajuda. J erônimo, por sua vez, tuguesa que está prisioneira da tribo. A contenda
embora relutante e minimamente entusiasmado, entre os dois guerreiros mais destacados faz com
enfim se submete. Em lugar do amor incoercível, que a tribo se torne vulnerável ao avanço estran-
o que o move é o receio de ser atingido pela pu- geiro. A disputa fica mais complicada ainda pela
nição do monarca, a exemplo do sucedido com o interferência da esposa de Irarninda, Moerna, que

+ 86
+ o Teatro Romântico

está empenhada em destruir Beatriz, para recupe- imediatamente se transforma. A consciência da


rar o amor do marido. No fim, os índios morrem. maternidade tem o poder de despertar na rainha
Beatriz é resgatada pelos compatriotas, que ao os melhores sentimentos. Isso a leva a prejudicar
mesmo tempo se apossam do território indígena. Vitiza, contando favorecer a filha. Na sequência,
Estranhamente, esse desfecho é apresentado como morrem o rei e a rainha. O final é providencial,
um final feliz. O sucesso dos colonizadores apa- pois permite que o cavalheiro Rodrigo e Aldo-
rece como a única alternativa positiva, numa peça zinda possam ser felizes para sempre.
escrita quase duas décadas depois da Independên- Os melodramas de Martins Pena caracterizam-
cia do Brasil. De outra parte, embora mostrados -se pelos enredos complexos e pela recorrência dos
no seu cotidiano na selva, os índios apresentam temas históricos. São escritos sempre em prosa, de
comportamento afetivo idêntico ao dos europeus. acordo com a tendência dominante. Por outro
As expressões de amor e de ciúme, por exemplo, lado, eles não seguem o estilo sugerido pelas obras
seguem à risca as convenções cavalheirescas euro- de Burgain, que alterna o tom sério com o riso. Os
peias. Registre-se que, embora procedendo como melodramas de Martins Pena mantêm constante
procederiam fidalgos, Itaminda e Tabira não me- seriedade. Embora apenas um tenha sido represen-
recem de Beatriz mais do que compaixão: "Pobre tado, eles constituem testemunho importante do
selvagem! Que amor!"!', exclama amoça diante da modo como era possível conceber uma obra dramá-
catástrofe dos povos da floresta. tica por volta da metade do século XIX. A mesma
A peça escrita depois, D. Leonor Teles) desen- afirmação vale para autores de cuja produção se
volve-se em Lisboa no ano de 1383. Já a história sabe menos. É o caso de Antônio Gonçalves Tei-
de Vitiza ou O Nero deEspanha acontece na cidade xeira e Souza, Antônio de Castro Lopes, Francisco
de Braga, em 700. Essas duas últimas peças versam Antônio de Varnhagen e Pedro José Teixeira, que
sobre disputas de poder misturadas com romance. passam a ser objeto de atenção daqui por diante.
D. Leonor Teles é provavelmente a peça mais
bem-acabada dentre as que Martins Pena escreveu.
Focaliza a sucessão do trono português, abordando Antônio Gonçalves Teixeira e Souza
um momento histórico que inspirou uma série de
obras dramáticas também em Portugal. Nessa Antônio Gonçalves Teixeira e Souza (1812-1861)
versão, a rainha Leonor é o centro das atenções dá sua contribuição ao imaginário teatral do pe-
em função da ascendência que vai ganhando sobre ríodo escrevendo duas tragédias: O Cavaleiro
o rei. O poder que detém a torna especialmente Teutônico ou A Freira de Marienbury e Cornélia.
visada por parte dos compatriotas. A resistência A primeira foi escrita no ano de 1840 e publicada
que Leonor oferece aos adversários produz a ten- quinze anos depois>', Fiel às convenções neoclás-
são que qualifica a peça. O final, dessa vez, não sicas, o autor utiliza versos decassílabos e a divisão
aproxima um casal enamorado, concentra-se na em cinco aros. Chama a atenção o esforço empre-
deposição de Leonor e no triunfo da revolução gado para manter a unidade de tempo no enredo
no país. Vitiza ou O Nero de Espanha, por sua vez, construído com várias peripécias, que seria mais
tem um enredo complicado na medida em que en- verossímil caso se desenrolasse no período de al-
trelaça várias histórias aparentemente descosidas. guns meses. Aqui, ele deve caber num espaço de
No fim descobrem-se inesperadas relações entre menos de 24 horas, para acompanhar o modelo
ambas, bem ao gosto da convenção melodramá- da tragédia clássica. Assim, a passagem do tempo é
tica. A filha que a rainha perdera há quinze anos, marcada com extraordinária minúcia, com as rubri-
Aldozinda, subitamente aparece na forma de uma cas indicando a hora precisa em que se passa cada
rival da própria mãe. Acontece que o homem que ato e o tempo decorrido entre eles. Mais ainda, há
a rainha ama é o mesmo que está apaixonado por sempre badaladas de relógio, para lembrar as horas,
Aldozinda. Quando a mãe reconhece a filha,
54 O Cavaleiro Teutônico ou a Freira de kfarienburg, Rio de
Janeiro: Dois de Dezembro, 1855.
53 L. C. Martins Pena, Dramas, P: 230.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

como se o espectador também estivesse interessado as tendências. Mantém a forma antiga e desenvolve
na façanha de arrematar uma história tão complexa um enredo sentimental, sem outro componente que
no prazo de um dia apenas. as peripécias, as surpresas e os amores desesperados
Seguindo meticulosamente a tradição no que diz de praxe. Não há preocupação em vincular o enredo
respeito à forma, a tragédia de Teixeirae Souza dá uma a fatos históricos conhecidos. O caso amoroso ocupa
guinada quando se trata do conteúdo. Concentra-se todo o espaço. Aparecem expedientes bem conven-
sobre matéria estritamente sentimental, ao melhor cionais do melodrama, corno o namoro infeliz, o
estilo do romantismo. Desenvolve um enredo cheio convento que recebe amantes contrariados, a audácia
de lances fortes, ao qual não faltam surpresas e vira- do cavalheiro apaixonado e a perda do sentido da
voltas. Conta a estranha história de um pai que ama vida, quando o casal de amantes é separado.
tanto a filha, Branca, e é tão zeloso de sua felicidade, Cornélia não é superior a O Cavaleiro Teutônico.
que resolve encerrá-la num mosteiro. A justificativa Ao contrário, é uma repetição da mistura de tragédia
é simples: assim Branca ficará livre das decepções e melodrama. Escrita em decassílabos e publicada
mundanas, não conhecerá a maldade da vida. Mas a em 1847, gira em torno dos desejos lúbricos do pre-
moça não aceita a decisão. Ela não quer se afastar do lado de Sevilha por Cornélia, filha do governador de
mundo, especialmente porque isso significa perder Sevilha, noiva e em vésperas de se casar com Barto-
seu amado Hugo. Tendo de optar entre a obediência lomeu Vargas.Típico vilão de melodrama, o prelado
ao pai ou o amor, Branca decide que não vai renunciar rapta a mocinha e envolve-a numa trama que a torna
à felicidade. Isso a encoraja a renegar osvotos religio- suspeita aos olhos da Inquisição. O noivo é obrigado
sos e a fugir do convento. Às cenas de tensão e de dú- a fugir, o pai morre, os amigos nada podem fazer,
vida vem somar-se a intervenção desastrosa do irmão de modo que no desfecho ela é obrigada a enfrentar
de Branca. Em defesa da honra familiar, elepersegue fisicamente o prelado, na masmorra onde espera a
o namorado, para assassiná-lo. Acaba atingindo o alvo morte. Virtuosa, Cornélia se defende e acaba por
errado, pois apunhala a própria Branca, que sevestira conseguir um ferro que enfia no peito do vilão. Nesse
com os trajes de Hugo. Este, por sua vez, não resiste à momento, ele compreende que foi a mão de Deus
constatação de que Branca morrera para salvá-lo e se que o puniu, arrepende-se do que fez e tenta salvar
mata em pleno palco. O irmão, por fim, quando vê a mocinha do Santo Ofício, confessando os seus cri-
monos os dois, julga que cumpriu seu dever. Nesse mes, antes de morrer. O inquisidor geral não o ouve
momento ele tem uma interpretação surpreendente e conduz Cornélia às chamas da fogueira.
do ocorrido. Em lugar de lamentar o engano fatal, A peça peca pelo exagero retórico, pelos furores
exclama: "O céu é justo!"!' e o pano fecha. que acometem as personagens, pela frouxidão das
O Cavaleiro Teutônico ou A Freira de Marien- cenas às vezes longas e enfadonhas demais. Num
burg é urna peça frágil do ponto de vista dramático. texto que escreveu sobre Cornélia para e Minerua
A motivação interna é sofrível. Não fica suficiente- Brasiliense, Luís Antônio Burgain'" aponta os de-
mente explicada a razão que leva o pai a colocar a feitos da peça e os atribui à pouca idade do autor,
filha no convento. De outro lado, a precipitação da dezoito anos, quando a escreveu. Difícil acreditar
ação em nome do rigorismo temporal acaba soando nessa informação. O ponto de partida e o último
pouco convincente. Para não extrapolar as 24 ho- ato da tragédia lembram demais AntônioJosé ou O
ras de preceito, atropelam-se os acontecimentos, Poeta e a Inquisição. O prelado de Sevilha é urna
fazendo com que fugas e perseguições aconteçam versão piorada de frei Gil. E seu arrependimento
com demasiada rapidez. De toda a maneira, a obra no desfecho repete a cena criada por Gonçalves de
ilustra bem a ambiguidade do momento. Processava- 1Y1agalhães no último ato da sua tragédia. Outro
-se a transição entre a preferência por tragédias e dado que se deve levar em conta é que Teixeira
a inclinação crescente pelo estilo melodramático. e Souza, na mesma época em que divulgou Cor-
Teixeira e Souza sintomaticamente mistura ambas nélia - por volta de 1844 - traduziu a tragédia

56 Cornélia, tragédia em cinco aros de A. G. Teixeira e Souza,


55 Idem, p. 98. Minerua Brasillense, n. 24, v.II, 15 deourubro de 1844,P' 751-756.

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+ o Teatro Romântico

Lucréce, de François Ponsard. A mesma virtude da que rondava a aldeia. Trata-se de um português, An-
esposa que se mata para preservar a honra está pre- selmo, que é o pai de Porangaba. Dezesseisanos atrás
sente na personagem Cornélia, claro que em escala ele teve de partir para servir a pátria, deixando aqui
menor, uma vez que não chegou a ser violentada, a esposa Moerna e a filhinha. Ao retornar, agora, ele
como a heroína de Ponsard. Ou seja, se houve uma reencontra a filha. Assim que a reconhece não hesita
primeira versão da tragédia, escrita em 183 o, com em dar sua permissão para o casamento e tudo parece
certeza o texto ganhou acréscimos e modificações se encaminhar bem. Mas o fato é que Abamoacara
na primeira metade da década de 1840 e ao ser não está informado do encontro nem do reconheci-
publicado no Archivo Theatral, em 1847. mento ocorrido; por isso,ao constatar a familiaridade
que existe entre o estrangeiro e sua noiva, confirma as
suspeitasiniciais:tem certeza de que estásendo traído.
Antônio de Castro Lopes Cheio de fúria, eleinveste contra a moça e a fere mor-
talmente. No momento em que constata o engano, o
Em 1845, Antônio de Castro Lopes (1827-1901) índio não suporta a dor e se mata também, não sem
escreve Abamoacara. É uma peça em quatro atos, antes exclamar: "FerozAbamoacara, eu te detesto l?".
que teve aprovação do Conservatório Dramático em Antônio de Castro Lopes é autor também de
1846, mas que só veio aser publicada quasevinte anos comédias e, a julgar pelo título da coletânea de suas
depois de escrita, em 1864 57 • É mais uma tragédia em obras - Teatro do Doutor A. de Castro Lopes -,
versos decassílabosperfeitos. De especial,destaca-seo gozou de prestígio na sua época. Seja como for,
fato de colocar-se entre as raras peças do período que não há como escapar à constatação de que falta a
situam a ação numa aldeia indígena. Antes desta, por Abamoacara um conflito dramático convincente.
volta de 1839, Martins Pena escrevera Itaminda ou Abamoacara começa a duvidar da lealdade da noiva
O Guerreiro de Tupá) também utilizando a floresta sem qualquer razão mais sólida. O fato de divisar a
como cenário, conforme assinalado antes. Seguindo presença de um estrangeiro nas cercanias da aldeia
o formato clássico,Abamoacara mantém unidade de soa completamente desproporcional ao ciúme e
ação, de tempo, além de um cenário muito restrito. rancor que tomam conta do índio. Em lugar de
Limita o espaço à oca do cacique e a um jardim com identificar o forasteiro, ele, exatamente o cacique
uma sepultura ao fundo. A sepultura, como se pode da tribo, de imediato incrimina sua amada e a mata
imaginar, introduz um inequívoco toque pressago. por fim. Pareceria muito mais natural que ele alve-
O tema é de caráter sentimental. No dia do seu jasse Anselmo, o estranho, em vez de investir contra
casamento, o cacique Abamoacaravê um estrangeiro Porangaba. Além de tudo, é difícil de entender por
rondando a aldeia e imediatamente acredita que se que a chegada de um homem branco desperta tal
trata de um rival.Passa,então, a duvidar que sejapos- energia autodestrutiva no chefe indígena.
sível ser feliz com Porangaba, sua noiva. Ela está de A ideia de concentrar a ação num motivo único
fato triste e silenciosa. Acontece que a moça recorda leva Castro Lopes ao equívoco de reduzir demasia-
a perda da mãe, sucedida há exatos quatro anos, mas damente a história. Tão concentrada fica a ação que
Abamoacara interpreta a melancolia como desinte- praticamente não acontece nada, além da chegada
resse e fica ainda mais inquieto. Porangaba também de um estrangeiro e da morte dos noivos. Dessa ma-
se angustia, mas por outra razão. Tendo ido rezar neira o tom solene que o autor escolhe soa muito
junto à sepultura da mãe, ouvira a voz da falecida artificial. Não há segredos, nem obstáculos para a
dizer: "Filha, não gozarás quem te idolatra!" 58. felicidade do par de namorados, tampouco o con-
Enredada em mal-entendidos e suspeitas, a ação fronto com escolhas dilacerantes, como seria cabível
prossegue. Num vaivém de meias palavras, o público em um enredo trágico centrado em caso amoroso.
tem chance de conhecer a identidade do estrangeiro Existe apenas a desconfiança de Abamoacara, que
de tão pouco fundada chega a parecer inoporruna.
57 Abamoacara, em Teatro doDoutorA. de Castro Lopes, tomo
1, Rio de Janeiro: Imperial Instituto Artístico, 1864, P: 107- 186.
58 Idem, P: 126. 59 Idem, p. 186.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Do POnto de vista temático, cabe destacar que rico. Enredo fictício e fatos verdadeiros coexistem
ein rlbamoacara, da mesma forma que sucedera em com naturalidade. Os acontecimentos verdadeiros
Itaminda ou O Guerreirode Tupã, índios e brancos ganham colorido especial pela proximidade com
se misturam na condição de personagens. Vê-se ín- os aspectos sentimentais introduzidos de uma ma-
dios apaixonados por moças brancas ou mestiças. neira semelhante ao que sucede na peça de Luís
Itaminda ama Beatriz, a prisioneira branca; e Aba- Antônio Burgain, Fernandes Vieira ou Pernambuco
moacara, a filha de um cavalheiro português com a Libertado.
índia Moerna, Para nenhuma das duas histórias fica O enredo se concentra no ano de I64I, apro-
reservado um final feliz. Parece que, àquela altura veitando dois acontecimentos notáveis do passado
do século, não havia condições para aceitar o amor brasileiro. Em primeiro lugar, trata da iminente
ínrer-racial, Desse modo os índios parecem antes desmobilização dos comandos espanhóis no Bra-
vilões do que heróis, embora ganhem papel de pro- sil em virtude da restauração de Portugal como
tagonistas. Estranhamente, nosso teatro trabalha reino independente. Em segundo, da expulsão
com a ideia de que a chegada dos brancos leva a dos jesuítas da capitania de São Vicente. No
população nativa ao auto extermínio. Afasta, por- cruzamento desses fatos situa a venerável figura
tanto, a interpretação de que os invasores seriam de Amador Bueno, um patriota fiel a Portugal, e
responsáveis pela destruição dos povos da floresta mais o casal de jovens que está enamorado. Este
e que a presença dos estrangeiros não é direta- é formado por Luísa, filha de Amador Bueno, e
mente agressora. Os índios é que se desestabilizam por André Ramalho, um descendente de Cara-
por conta própria. Eles perdem a serenidade e as muru. Vítima de intrigas dos jesuítas, Ramalho
condições de defender seu território, quando se está decidido a entrar para um convento, apesar
defrontam com homens brancos. do amor que sente por Luísa. Amador Bueno, por
O tema indianista poderia ter inspirado com- sua vez, também sofre oposição dos jesuítas. Já os
posições muito diferentes e ter acrescentado pon- espanhóis que~em que ele seja proclamado rei do
tos à originalidade da dramaturgia brasileira. Da Brasil, para evitar que o país volte ao domínio
maneira como é tratado, porém, leva para uma português. Depois de variadas peripécias, vem o
direção única: o catálogo das peças de estrutura esperado final feliz. Amador Bueno ratifica sua
dramática frágil e verossimilhança duvidosa. A lealdade a Portugal, afasta de vez os religiosos e
começar pelo cavalheirismo com que os silvícolas desautoriza a pretensão dos espanhóis. Ficando
cortejam a amada e atingindo o núcleo da ação que restabelecida a ordem política, não tardam os re-
não é suficientemente motivado. Um tom postiço flexos sobre o jovem André Ramalho. Diante da
envolve o conjunto. Por exemplo, na condição de situação, ele se sente autorizado a dar novo rumo
caciques de tribo, era de se esperar que Itaminda e à vida. Desiste do convento em favor do matri-
Abamoacara investissem contra os invasores e lu- mônio com a filha de Amador Bueno.A moça,
tassem pela posse da terra e da felicidade. Mas eles por sua vez, assim como antes acatara a decisão
se voltam contra si mesmos e acabam perdendo o de Ramalho, que queria buscar refúgio num con-
amor, o território e também a vida. vento, agora igualmente aceita que ele mude de
opinião para casar-se com ela. Sendo assim, o final
estabelece a melhor das ordens: junta a satisfação
Francisco Antônio dos noivos com a euforia patriótica.
de Várnhagen Amador Bueno adora um tom grave que cabe
bem à focalização de um momento crucial para a
Francisco Antônio de Varnhagen (I8I6-I878) é au- vida brasileira. Mas Varnhagen é um escritor habili-
tor de um drama, Amador Bueno'". A peça mescla doso. Ele sabe modular a tensão. Duas personagens,
o acento histórico com o andamento melodramá- Rendon e Carrasco - este escrivão da Câmara de
São Paulo -, respondem pela oportuna quebra de
60 Drama épico e histórico americano, Lisboa: edição particu-
seriedade. Ambos são espanhóis e ficam alheios
lar, r847.

• 9°
• o Teatro Romântico

às preocupações dos patriotas. Interessa-lhes de- Pedro José Teixeira


finir a situação individual, em vista da iminente
mudança política, após oitenta anos de governo Em 1848, é publicado o drama de Pedro José Tei-
hispânico. Num primeiro momento, mofam da xeira, O Poder da Natureza ou A Honra Premiada
pretensão lusitana: "Portugal tornará a ser reino e a Imprudência Punida. Não há notícia de que
separado, quando as galinhas tiverem dentes"?'. a peça tenha sido representada. As intenções do
Mais adiante, a preocupação com o futuro passa ao autor são muito claras, segundo se pode concluir
primeiro plano. Carrasco tem a ideia de implantar a pela apresentação feita para introduzir a obra, "Ao
Inquisição no Brasil e já vai se apresentando como leitor"64. Ele quer cooperar para "o progressivo
candidato a inquisidor. Nesse momento, o aspecto desenvolvimento da mocidade brasileira"
prático é lembrado: "Por que não haveríamos nós O exame da peça mostra que as intenções
aqui de ter uma Inquisição, quando a há até em estão muito mais bem definidas do que a obra
Goa? Com tanta lenha para as fogueiras, como se propriamente dita. Esta se concentra em mostrar
encontra por estes matos..."62 a indecisão amorosa de Cornélia, a filha de um
É a mesma personagem quem recita uma copla rico comerciante. A moça tem vários namorados
reveladora de sua filosofia de vida. A cançoneta e não perde oportunidade de acrescentar mais um
faz contraponto com a elevação da abordagem nome à lista. Faz isso em segredo, sem a aprovação
restante. Destoa completamente, por exemplo, da dos serviçais da casa e, muito menos, do pai. Aliás,
abnegação com que o grupo de Amador Bueno quando este toma conhecimento de que sua filha
enuncia seus valores e objetivos. O espanhol canta, recebe a visita de vários pretendentes, não hesita
divertido: em tomar uma decisão drástica e bem ao gosto da
época. Resolve encaminhar a jovem para um con-
Todo se vende este dia vento. Um rapaz que ousa ir ali à procura dela é
Todo el dinero lo iguala: preso por uma guarda armada, que aparentemente
Las cortes vendem su gala, estava prevendo assédios inconvenientes e pronta
La guerra su valentia: para evitá-los. Assim separados, um na cadeia, a
Hasta la sabiduria outra no convento, ambos os jovens têm condições
Vende la Universidad'". de voltar à razão. O rapaz resolve casar com uma
moça pobre e virtuosa que o ama de forma abne-
É admirável que o teatro de Francisco Antônio gada e Cornélia se arrepende do passado, podendo
de Varnhagen se volte para a história do Brasil à assim retornar à casa paterna. Agora ela está com-
procura de protagonistas. A mesma coisa fizera pletamente mudada, traja roupas sóbrias e virou
Luís Antônio Burgain com seu Fernandes Vieira uma donzela respeitável. A transformação serve
ou Pernambuco Libertado quatro anos antes. São para provar - confirmando o intuito educativo do
exemplos isolados, todavia. Os ideais nacionalistas autor - que o castigo infligido pelo pai alcançou
permaneceram pouco explorados no cenário tea- seu objetivo: Cornélia se converteu à modéstia que
tral. Mesmo Gonçalves Dias, amor de obras-primas cabe às moças de boa família.
da poesia indianista, quando escreveu teatro ficou Sinalizando, provavelmente, a transição que
alheio a essa vertente. As convenções adoradas ocorria por volta da metade do século XIX, o drama
no teatro passaram ao largo da ideia de reforçar a de Pedro José Teixeira pende entre a comédia e o
identidade nacional nos primeiros tempos do ro- melodrama, sem que lhe falte em certos momen-
mantismo. Em geral, foram preferidos os ambientes tos uma gravidade que faz lembrar a tragédia. Mal
remotos e o passado distante. equilibrada entre os três gêneros, a peça apresenta
problemas de identidade. O assunto escolhido é
sentimental, mas os desencontros são cípicos da
61 Idem, P: 15.
62 Idem, p. 57. 64 O Poderda Natureza ouA HonraPremiadaea Imprudência
63 Idem, P: 56. Punida, Rio deJaneiro: Laemmert, 18 48 , p. 7.

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História do Teatro Brasileiro + volume 1

comédia. Mostram-se os apuros de Cornélia para dessa conclusão o fato de que o drama histórico
administrar os vários namoros. Ela quer manter trabalha o fundo verídico com a visível intenção
todos os rapazes apaixonados e evitar que cada de abrir espaço para histórias de amor e que essas
um descubra a concorrência dos demais. Impos- acabam por catalisar o interesse em detrimento dos
sível não lembrar aqui a namoradeira criada por fatos reais. O motivo realista chega a ser pouco mais
Martins Pena em O Judas em Sábado de Aleluia, do que um pretexto para movimentar a ação. É o que
representada inúmeras vezes na segunda metade se pode constatar no exame das duas peças da época
do decênio de 1840. Por outro lado, é no catálogo que versam assuntos do passado nacional, Fernandes
melodramático que são buscados os lances de Vieira ou Pernambuco Libertado, de Luís Antônio
efeito, como a decisão paterna de decidir o futuro Burgain, e Amador Bueno, de Francisco Antônio
da filha, lançando mão do recurso do convento, ou de Varnhagen. E o mesmo pode ser dito a respeito
a prisão intempestiva de um dos pretendentes, mais das demais obras de cunho histórico, mas sem vin-
os lances de abnegação da moça pobre e virtuosa, culação com temas brasileiros, que os autores aqui
que tudo faz para ver feliz o seu amado. estudados assinam.
A aproximação de ingredientes tão díspares não Considerando a relação entre tragédias e melo-
deixa de produzir certo desconforto. O especta- dramas produzidos na fase inicial do romantismo
dor/leitor fica sem saber se cabe levar a sério a vo- brasileiro, observa-se que ambos os gêneros são
lubilidade da personagem principal, a namoradeira representados nos mesmos teatros e, por vezes,
Cornélia, ou se deve rir das trapalhadas resultantes compostos pelos mesmos autores. Mas a dominân-
da dificuldade de aparentar fidelidade a cada um cia do melodrama não tarda a se estabelecer sobre
dos rapazes. De outro lado, sente-se igualmente o gênero mais tradicionaL Com naturalidade ele
perturbado pela desproporção do castigo que o vai superando a tragédia de inspiração neoclássica.
pai reserva à filha, quando descobre que ela tem Em vez da contenção dos sentimentos e da elevação
vários pretendentes. Se fosse para ser melodrama, formal, a tendência do gosto conduz na direção do
o motivo que leva Cornélia à vida religiosa soaria teatro que Martín-Barbero classifica de "espetáculo
fútil demais. A mesma coisa vale para o namorado, total': onde a representação tem importância equi-
que é preso só porque se aproxima do convento. Se valente à história e com ela se entrelaça em torno
fosse para ser uma comédia, o claustro rodeado de de quatro sentimentos básicos - medo, entusiasmo,
guardas fortemente armados, mais as falas austeras pesar e ríso'". Ou seja, um espetáculo em que emo-
do pai de Cornélia e da moça pobre também pare- ções fortes mantêm o público envolvido e atento.
ceriam deslocados. O único aspecto sobre o qual Contrariamente ao esforço de Gonçalves de
não pairam dúvidas é a intenção educativa do autor. Magalhães e à simpatia de João Caetano, o melo-
drama se desenvolve mais do que a tragédia. Fazer
essa constatação é simples. Basta contar o número
o Triunfo do Melodrama de peças produzidas entre 1830 e 1850. Compa-
radas com um total de 22 dramas e melodramas
O exame da produção teatral "séria" dos nossos pri- conhecidos, as tragédias somam apenas 7. Razões
meiros dramaturgos do período romântico permite para o número pouco expressivo não podem ser
associar as origens do teatro brasileiro a uma sensível buscadas na falta de prestígio do gênero, menos
inclinação para o drama histórico de feição melodra- ainda na falta de incentivo vindo das camadas mais
mática. Lembrando que, ao lado do fundo histórico, cultas. Acontecia exatamente o contrário. Sabe-se
esse tipo de peça valoriza o dinamismo do enredo, que João Caetano, por exemplo, tinha franca pre-
o choque de valores e a sentimentalidade, ao tempo ferência por figurar em papéis trágicos e que Gon-
que cria enredos cheios de surpresas e cenários que çalves de Magalhães, quando se apresentou como
impressionam. Pode-se dizer, então, que o melo- líder do teatro romântico, ofereceu a tragédia como
drama aparece como uma espécie de denominador
comum do estilo da época. Acrescente-se em favor 65 Teleuision y Melodrama, p. 45-46.

• 92
• o Teatro Romântico

modelo de composição. :Magalhães era uma figura escola e as contradições que marcaram sua atuação
consagrada nas letras locais - já publicara os Sus- foram apontadas por alguns estudiosos, entre eles
piros Poéticose Saudades - e sua influência contava Décio de Almeida Prado, que observou:
muito, portanto. Mas as duas tragédias que assinou
não provocaram o aparecimento de peças nacio- A posição de Gonçalves de Magalhães dentro da história do
nais com características semelhantes. Seu exemplo teatro brasileiro é das mais ambíguas. Ponto pacífico é que
como autor dramático não frutificou, apesar da boa com ele se inicia oficialmente a nossa dramaturgia moderna.
linguagem, da elevação dos protagonistas e da boa Já não diríamos o mesmo quanto à sua intrincada relação
vontade da crítica. Querendo ou não, a forma da com o romantismo teatral: ele nunca definiu bem se queria
tragédia versificada, solene e triste, era um gênero ser o último clássico ou o primeiro romãntico'w,
em vias de superação já no início do nosso roman-
tismo. Por outro lado, faça-se justiça às novidades Claro está que o comentário de Décio de Al-
introduzidas por Gonçalves de :Nlagalhães, relativas meida Prado nasce da percepção de que como nas
sobretudo à composição do cenário - para cuja ta- tragédias quanto nos prefácios que escreveu, Gon-
refa teve a colaboração do amigo Manuel de Araúj o çalves de Magalhães buscou um meio-termo, entre
Porto-Alegre, um artista plástico com formação classicismo e romantismo, que em nada ajudou o
europeia. Louve-se também sua contribuição para teatro romântico que os novos tempos reclamavam,
a melhoria do trabalho do intérprete, aquilo que
ele chamou no prefácio de AntônioJosé de "novi- Em segundo lugar, os autores aqui estudados
dade da declamação e reforma da arte dramática' revelam a força com que o melodrama se introduz
ao substituir "a monótona cantilena com que os na cultura teatral brasileira, em contraste com a
ateres recitavam seus papéis, pelo novo método discreta presença da tragédia, ao longo da primeira
natural e expressivo, até então desconhecido entre metade do século XIX. Uma vez examinada a pro-
nós?". Provavelmente Magalhães se refere ao estilo dução de um significativo conjunto dos autores -
romântico de representação que vira na França e Luís Antônio Burgain, Martins Pena, Gonçalves de
que apresentara aJoão Caetano, cujo desempenho, :Nlagalhães, Antônio Gonçalves Teixeira e Souza,
em Antônio José, foi marcado pelos gestos arreba- Antônio de Castro Lopes, Francisco Antônio de
tados, pela contundência física e emocional com Varnhagen, e Pedro José Teixeira -, pode-se con-
que se entregou ao papel, conforme lembra em suas cluir que a dramaturgia brasileira de estilo melodra-
Lições Dramáticas", mático não é apenas a mais numerosa. É também a
O inventário aqui realizado aponta para dois que mais sucesso registra, como é possível verificar
aspectos da história do teatro brasileiro que mere- pelo número de peças escritas, encenadas e publi-
cem realce. Em primeiro lugar, fica claro que houve cadas. Aos autores acima citados, outros podem ser
produção dramática local encenada em nossos tea- lembrados para complementar o quadro do nosso
tros antes da estreia de Gonçalves de Magalhães, primeiro romantismo, nos anos de 1840. No Rio
ocorrida no ano de 1838. Se os contemporâneos e de Janeiro, o poeta, historiador e dramaturgo Joa-
a própria posteridade lhe concederam a glória de quim Norberto de Sousa e Silva (1820-1891) con-
ser considerado o fundador do teatro nacional; se tribui com uma tragédia, Clitemnestra, Rainha de
a representação de AntônioJosé em março de 1838 Micenas e um drama de assunto nacional, Amador
tornou-se um marco do início do teatro romântico Bueno ou A Fidelidade Paulistana, composto em
no Brasíl'", o fato de sua pequena obra não ter feito 1843 e representado no Teatro S. Francisco, em

tagonista era também brasileiro e que explicita ou implicitamente


66 D. J. Gonçalves de Magalhães, AntônioJoséou..., P: 3-8. lhe falava do Brasil. Isso sucedia após a Independência, quando
67 João Caetano, Lições Dramáticas, Rio deJaneiro: MEC, 1956, ainda referviam e bulhavam na jovem alma nacional todos os en-
P·44· tusiasmos desse grande momento político e todas as alvoroçadas
68 Veja-se, a propósito, o significado histórico da encenação de esperanças e generosas ilusõespor ele criadas".História daLiteratura
AntônioJosé, segundoJosé Veríssimo: "Arores brasileiros ou abrasi- Brasileira, Rio deJaneiro:José Olympio, 1954, p. 312-313.
leirados, num teatro brasileiro, representavam diante de uma plateia 69 Historia Concisa do Teatro Brasileiro, São Paulo: Edusp, 1999,
brasileira, enrusiasmada e comovida, o autor de uma peça cujo pro- p·44·

• 93
História do Teatro Brasileiro • volume 1

setembro de 1846; em São Paulo, além de Paulo fortuna teve o melodrama, cujos recursos formais,
Antônio do Vale, que será estudado no capítulo temas, situações dramáticas, apelo popular e visão
seguinte, destaca-se Martim Francisco Ribeiro de mundo sobreviveram ao século XIX e foram
de Andrada (1825-1886), com o drama Januário transmitidos para outras formas de entretenimento
Garcia ou Sete Orelhas; no Rio Grande do Sul,José do século XX, como o rádio, o cinema e a televisão.
Antônio do Vale Caldre Fião (1813-1876) escreve
o "drama trágico em quatro ates e sete quadros"
O CoronelManuel dosSantos; na Bahia, Francisco
Jacinto da Silva Coelho (1820?-1860?) compõe
A Imprudência de um Pai e Olavo José Rodrigues
Pimenta (1809-1883), O Noivado de Sangue; em
Salvador, na noite de 13 de abril de 1847, sobe à
cena o drama O Vaticínio Cumprido, deJoão Fran- . 3. O DRAMA
cisco da Silva Ultra (1802- 1873); em Pernambuco,
João Barbosa Cordeiro publica o "drama histórico
nacional" Arco-Verde ouA Glória dosTabajaras": De um modo geral, 1838 é considerado o marco
Razões para a ascensão do melodrama podem ser inaugural do romantismo no teatro brasileiro. Foi
encontradas nas virtudes desse teatro. A verdade é em março desse ano que se deu a estreia da tragédia
que ele oferece bom espetáculo, envolve emocio- AntônioJosé ou OPoeta ea Inquisição, de Gonçalves
nalmente a plateia e a mantém cativa em função de Magalhães e, em outubro, a representação da
das estratégias que aciona. Consegue ser atraente, primeira comédia de Martins Pena) O Juiz de Paz
valendo-se de recursos plásticos variados e tra- da Roça) ambas levadas ao palco pela companhia
balhando o suspense de forma criativa. Mobiliza teatral deJoão Caetano. Tais eventos, muito embora
personagens dinâmicas, ação intensa e mistura importantes, não indicam um momento inicial para
cenas austeras com momentos engraçados. Além o desenvolvimento do drama romântico brasileiro:
disso, conclui as histórias de uma maneira otimista: no caso da obra de Gonçalves de lvlagalhães,porque
mostra a capacidade que o amor tem de tornar as está muito mais próxima do classicismo do que do
pessoas felizes para sempre, reforçando a esperança romantismo; no de Martins Pena, por tratar-se do
de que no final o bem triunfa. Os escritores que trabalho de um comediógrafo.
utilizaram tais componentes para dialogar com o Igualmente delicada é a questão de se estabelecer
público, no momento em que a nação começava a uma data final, a partir da qual se possa dizer que o
construir sua identidade cultural, tiveram recepção drama romântico foi definitivamente abandonado,
compensadora, dando notável contribuição para a superado por uma nova estética. Peças de inspiração
popularização do teatro no Brasil. romântica foram escritas durante praticamente todo
O drama histórico terá vida longa em nosso país, o século XIX, convivendo com as obras de cunho
ora mantendo uma nítida feição melodramática - e realista, por vezes no conjunto dos trabalhos de um
isso praticamente até o final do século XIX -, ora mesmo autor, corno ocorre com José de Alencar,
se afastando um pouco desse modelo, como no Joaquim Manuel de Macedo, Agrário de Souza Me-
caso de Gonçalves Dias, cujo conhecimento da nezes ou Constantino do Amaral Tavares.Houve até
obra de Shakespeare e das ideias românticas sobre quem mesclassetemas românticos e forma realista-
o drama, desenvolvidas por Victor Hugo na França, ou vice-versa - numa mesma obra.
o leva a escrever quatro dramas. Outros escritores Particularidades da história nacional e do teatro
importantes seguiram o seu exemplo nos anos de brasileiro explicam essa longevidade. O ideário
1850 e 1860, como se verá mais adiante. Maior romântico adequava-se à expressão do sentimento
nacionalista e libertário, primeiramente no período
70 Essas informações encontram-se no segundo volume daHis- de formação e afirmação da nacionalidade brasileira
tória da Inteligência Brasileira, de Wilson Martins (São Paulo:
CulcrixlEdusp, I977). e, em seguida, na longa luta pelo fim da escravidão.

• 94
• o Teatro Romântico

Autores que se dedicaram a discutir através do tea- tismo valorizou os temas históricos nacionais, em
tro as grandes questões nacionais lançaram mão contraposição à tradição da tragédia clássica, que
seguidamente dos procedimentos românticos. Por se inspirava na antiguidade grega ou romana. Os
outro lado, a presença central de um ator como João dramas brasileiros caracterizam-se, geralmente, pe-
Caetano, com um estilo de atuação pouco afeito ao las combinações, em doses diferenciadas, das duas
realismo e que dominou a cena brasileira durante linhas temáticas apontadas. São histórias de amor
cerca de trinta anos, ajudaria a explicar também a inseridas num contexto político, ou a dramatização
permanência entre nós do estilo romântico. Sirvam de um evento de relevância histórica que também
então como balizaspara a história do drama român- apresenta uma trama amorosa. Raras são, como se
tico no Brasil as datas de r843 e r882.lvfais de trinta verá, as obras que escapam a essa combinação. Os
anos de romantismo, portanto. A primeira data é a dramas que destacam os casos amorosos o fazem
da conclusão do drama escrito por Gonçalves Dias, pela apresentação de "amores impossíveis': que
Patkull. A segunda, a da publicação da peça O Es- ferem as normas sociais, que vão de encontro aos
cravocrata, de Artur Azevedo. preconceitos raciais e sociais. O amor infeliz, nesses
Outra dificuldade está em se definir um cor- casos,resolve-segeralmente com a morte de um dos
pus para um capítulo sobre o drama romântico, parceiros ou, de preferência, dos dois.
tendo em vista a proximidade, para não dizer o Ao abordar um episódio político, o drama ro-
relacionamento "promíscuo': desse gênero com o mântico se apoia num acontecimento do passado.
melodrama. Em vários dos textos aqui analisados É o destino de um povo que vem à cena, evocado
são encontrados elementos melodramáticos; espe- pelo gênio do poeta. A história é uma das grandes
cialmente o goSto pelo enredo complicado, cheio fontes românticas em países em fase de afirmação
de reviravoltas (os chamados "golpes de teatro"), o de sua nacionalidade, como o Brasil do século XIX.
uso de confusões de identidade, das cartas perdidas, Uma característica comum a praticamente todos
dos disfarces, dos desencontros, dos punhais e ve- os dramaturgos românticos brasileirosé o fato de sua
nenos. Uma peça como Gonzaga ouA Revolução de dedicação ao teatro ter sido uma espéciede apêndice,
Minas, de Antônio Castro Alves, está cheia de tais de atividade paralela e temporária no conjunto de
malabarismos. Na certa, essas obras integrariam o suas obras. Seus nomes entraram para a história da
universo do melodrama se não fossem além desses literatura brasileira sobretudo como poetas ou ro-
jogos de cena e não apresentassem características mancistas. Castro Alves,Fagundes Varela,Álvares de
. próprias do romantismo. Azevedo, Gonçalves Dias são exemplos do primeiro
A diferença fundamental entre os dois gêneros caso eJosé de Alencar, Bernardo Guimarães oujoa-
reside no fato de que o melodrama está preocu- quim Manuel de Macedo, do segundo.
pado em apresentar uma lição moral, culminando A partir de r 843, a primeira década do movi-
geralmente num final feliz que premia os bons e mento romântico teatral no Brasil foi marcada pelo
pune os maus. Já o drama romântico quer trazer ao conjunto da obra de três autores: Gonçalves Dias,
palco figuras que estão em conflito com os valores Joaquim Manuel de Macedo e Paulo Antônio do
da sociedade, que se recusam a aceitar as regras Valle.Os dois primeiros, um poeta e um romancista
estabelecidas e que, muitas vezes, se dilaceram in- de renome nacional; o último, um autor de provín-
ternamente por causa disso. O romantismo elege cia. Há proximidades entre as obras dos três: Gon-
temas que a sociedade concebe como tabus. Amor çalves Dias lançou-se ao estudo das paixões; Paulo
impossível, adultério, incesto, estupro, parricídio e Antônio do Valle quis fazer o retrato da nascente
regicídio são os principais dentre eles. nacionalidade, recuperando o passado e personagens
Analisando o conjunto de obras que compõem históricos da vila de São Paulo; já Macedo tentou
o repertório brasileiro do drama romântico, é pos- uma mescla dos dois assuntos,procurando recompor
sível identificar duas linhas temáticas principais: fatos mais distantes da história pátria, entrelaçados
as tramas amorosas e os enredos que se ocupam com casos de amores infelizes, e idealizando até um
da história do Brasil. Vale lembrar que o rornan- modelo de herói "legitimamente"brasileiro- o índio.

• 95
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Amor e pátria estão, portanto, presentes nos três é menor - o espaço restringe-se a aposentos de
primeiros expoentes do drama romântico brasileiro, um mesmo palácio (jardim, salão de baile, dor-
ainda que em graus diferentes. mitórios) e os períodos de tempo são mais curtos.
Em seus quatro dramas, o dramaturgo combina
de forma inteligente trama política com amores e
Gonçalves Dias traições, sempre com destaque para a intriga amo-
rosa. De acordo com o ideário romântico, os amores
Gonçalves Dias (1823-1864) estava em Coimbra, postos em cena têm algo de proibido, até mesmo
onde frequentava a universidade, quando escreveu de sacrílego, afrontando as convenções sociais e
suasduas primeiras peças: Patkull, em 1843, «Beatriz os desígnios familiares (como a paixão incestuosa
Cenci, em 1845. De volta ao Brasil, compôs Leonor de Francisco Cenci, que o leva a estuprar a filha
deMendonça, em 1846, encerrando sua carreira de Beatriz). Já foi dito que nas obras do maranhense
dramaturgo com Boabdil, em 1850. Dos autores a sujeição feminina às imposições masculinas, pa-
românticos brasileiros, talvez seja ele o que mais ternas sobretudo, é a base dos conflitos. Amores
de perto seguiu o receituário romântico europeu, contrariados, bem como pais e maridos tirânicos,
a começar pelos temas das peças, todas passadas no provocam desenlacesfunestos. A paixão desafiaseus
velho continente: Patkull, na Polônía, na Alemanha opositores, mas não osvence, é subjugada por eles. A
e na Áustria; Boabdil, na Espanha; BeatrizCenci, na morte é, geralmente, o destino dos amantes. Desse
Itália, e LeonordeMendonça, em Portugal. ponto de vista, a escolha do mote do amor feminino
No prólogo escrito para o drama Leonor de contrariado fez de Gonçalves Dias um crítico de seu
Mendonça, Gonçalves Dias defende, como nin- próprio tempo, uma vez que a situação das mulhe-
guém ainda havia feito no Brasil, os preceitos res no século XIX não diferia fundamentalmente
românticos, justificando-os à luz do respeito à ver- daquela vivida pelas heroínas antigas".
dade "incisiva e áspera' - como preconizava Victor Nos dramas que escreveu,Gonçalves Dias elegeu
Hugo - e não à facilidade da condenação moral do como protagonistas dois homens e duas mulheres.
culpado, punido tão ao gosto do melodrama. Seu Nos casos dePatkull e Boabdil, as tramas se asseme-
conhecimento da obra de Shakespeare e dos autores lham no plano amoroso, embora tenham desenlaces
românticos contemporâneos proporcionou-lhe as diferentes no enredo político. Na primeira, Patkull
basessobre as quais assentou sua obra. Os temas das é um revolucionário livônio?', exilado na Polônia,
peças, ligados à onda de revalorização do medievo, onde vive uma profunda paixão por sua noiva
das tradições cavalheirescas, dos heróis galantes e Romhor. Esta, porém, ama Paikel, contra a vontade
dos revolucionários apresentavam personagens de de seu pai, que lhe impôs Patkull como noivo.
existência histórica comprovada. Segundo Décio Do POnto de vista da intriga amorosa, há certo
de Almeida Prado?', esse procedimento visava re- desajuste no drama. O amor proibido (romântico)
forçar na plateia o sentimento de que aquelas cenas em essência deveria ser o de Romhor e Paikel. Am-
poderiam, eventualmente, ter ocorrido como vistas bos deveriam enfrentar o desfecho fatídico unidos
no palco. Desse modo, talvez, a realidade projetada até o fim (como, aliás, acontece em Boabdil, cuja
se aproximasse mais da realidade vivida. A vida, trama amorosa é praticamente idêntica). Ao obter
sim, poderia ter lances românticos.
Do ponto de vista estrutural, Gonçalves Dias 72 Vale lembrar que o pr6prio autor enfrentou a proibição fa-
miliar de um amor quando ainda jovem. Em Patkull escreve na
procurou libertar-se da rigidez da regra clássica dedicatória: <CE possas tu em lendo esta minha obra para o futuro,
das unidades, ampliando o tempo e o espaço quando minha voz não responder à tua voz, por me ter eu partido
para longes terras - encontrar nela alguma coisa que te diga - que
principalmente em sua primeira obra, Patkull, que eu te amava como Patkull a Romhor, e que o meu amor, como o
apresenta maior diversidade de cenários e disten- dele, s6 acabará com a minha vida".Em Gonçalves Dias, Teatro de
Gonçalves Dias,São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 2.
são temporal. Nas peças seguintes, a flexibilidade 73 A Lívônla situava-se entre o lago Peipus e o mar Báltico. Em
1557, a região foi invadida pela Rússia; em 1629 foi conquistada
pela Suécia. Mais tarde foi anexada ao império russo por Pedro,
71 ODramaRomântico Brasileiro. o Grande.
• o Teatro Romântico

Gonçalves Dias, no desenho de Ângelo Agostini, publicado emA Vida Fluminense (1882).

• 97
História do Teatro Brasileiro • volume 1

o amor de Romhor, Patkull é como que premiado didade ao melhor drama romântico do repertório
por sua bravura e sentimento, fazendo o drama brasileiro.
roçar o melodrama. Já em Boabdil, o amor de Leonor deMendonça retraça a história da duquesa
Zorayma por Ibrahim não se altera até o desfecho portuguesa Leonor, mulher do duqueJaime de Bra-
mortal (Boabdil mata a ambos). No entanto, nesse gança e objeto da paixão do jovem cortesão Alco-
caso, o romance tem consequências políticas muito forado. Rapaz arrojado, ele consegue ser recebido
mais graves, pois implica a queda do último reino por Leonor quando já sabemos que ela havia ficado
árabe da Península Ibérica. impressionada com sua bela figura. Pouco tempo
Como heroínas, Gonçalves Dias escolheu Bea- depois, Alcoforado salva a vida de Leonor durante
triz Cenci e Leonor de Mendonça. As desventuras uma caçada, volta a cortejá-la e solicita um derradeiro
da família Cenci já haviam inspirado outra peça encontro privado antes de partir para terras distantes.
romântica, de autoria de Shelley - The Cenci. O Na primeira parte do segundo ato, a cena se passa
autor brasileiro retrabalhou o tema, adaptando na casa do rapaz, que se prepara para ir ver Leonor,
livremente os fatos históricos aos seus interesses enquanto dialoga com o pai e os irmãos. Gonçalves
artÍsticos. Francisco Cenci é apresentado como o Dias pretendeu combinar aí os elementos estrutu-
Mal personificado. Lucrécia, segunda esposa de rais que compõem o drama romântico - a mistura
Francisco, percebe a atração que Beatriz exerce da comédia e da tragédia. Como diz claramente no
sobre ele e, embora tente prevenir a jovem contra prólogo, a comédia não supõe, obrigatoriamente,
seu pai, o estupro é inevitável, Francisco é todo- o riso, mas sim o retrato de uma camada social que
-poderoso. Só o assassinato poderia colocar um era tradicionalmente apresentada nesse gênero.
ponto final em seus desatinos. Madrasta e enteada Portanto, o autor caracteriza estilisticamente
unem-se na vingança. Às duas associa-se Márcio, essa sua obra, mais do que as demais"; como um
desejoso de vingar sua amada Beatriz.1vlas numa verdadeiro drama (com a junção de elementos da
reviravolta que se dá apenas no drama, não no tragédia e da comédia, como preconizava Victor
fato histórico que lhe serviu de base, é Francisco Hugo). Plagrados pelo duque, mas sem que o adul-
quem mata Márcio e apunhala Lucrécia. Beatriz tério tenha se concretizado, porque os sentimentos
apenas cai ao chão, morta". A peça, apresentada eram mais da alma do que do corpo, o destino de
ao Conservatório Dramático do Rio de janeiro, foi ambos está selado. Alcoforado enfrenta a morte
proibida sob a alegação de imoralidade. com altivez e aceita a punição sem contestá-la. Já
Leonor de Mendonça é, sem dúvida, o melhor a duquesa luta pela vida: lastima a existência que
dos quatro dramas de Gonçalves Dias. Em pri- teve, denuncia sua condição de mulher subjugada,
meiro lugar, por escolher como protagonista não sua infância abortada, seu casamento infeliz, sua
um amante traído ou uma vítima indefesa, mas o honra maculada. Apela para a ajuda de seu confes-
dilema, as incertezas, os conflitos interiores de uma sor, para a compaixão dos servos e para a piedade
mulher chamada a tomar uma decisão sobre sua do duque. Tudo em vão. Diante da absolvição do
própria vida e a enfrentar as consequências de sua confessor e da recusa dos servos em executá-la, o
escolha. Como diz o autor em seu belo prólogo", o duque se encarrega pessoalmente de matar a esposa.
assunto colhido em crónicas portuguesas abria-lhe Por todo o texto, há uma brilhante caracteriza-
duas possibilidades: retratar Leonor como culpada ção de Leonor - dama de alta estirpe, jovem muito
e punida (enfoque de moral clara e didática) ou cedo separada da família e das despreocupações da
vê-la como inocente mas, mesmo assim, conde- infância para enfrentar um casamento arranjado
nada - desenlace que ampliaria a dramaticidade e (como convinha a uma pessoa de sua classe social).
a complexidade do drama. Gonçalves Dias optou Forçada a submeter seu temperamento juvenil a um
pela segunda solução, dando intensidade e profun-
76 Nas demais peças essacombinação não acontece. Muito em-
bora se tenha uma procura intensa pela "cor local" (exotismo,
74 Na realidade, Márcio matou Francisco e foi condenado à caracterização tão buscada pelo romantismo) e a presença de
morte, juntamente com Beatriz e Lucrécia. algumas figuras de perfil social mais humilde, não se pode dizer
75 Teatro de Gonçalves Dias, P: 289-303. que haja cenas típicas da comédia.
• o Teatro Romântico

marido radicalmente oposto ao seu feitio, 'frustra- indeléveis n'alma - creio que para esta vida e para a outra e
-se numa vida que não deseja. O encontro c~m para a eternidade. E o que foram os meus não imaginas78 •
Alcoforado, um jovem apaixonado, aventureiro e
bravo, leva-a a arriscar-se por alguns momentos de A qualidade de Leonor de Mendonça, que faz
fantasia. Sua relação com o rapaz passa também por com que ela seja uma das poucas peças do re-
uma insinuação de incesto, na medida em que ela pertório sério brasileiro do século XIX capaz de
compara seu sentimento por ele àquele que devota ainda sustentar uma encenação moderna", está na
a seus próprios filhos. simplicidade da trama com poucos personagens,
O duque é pintado com a mesma riqueza de poucos acontecimentos e apenas uma reviravolta
detalhes e profundidade psicológica. Muito se dis- final e fataL Está, sobretudo, na concentração tem-
cutiu sobre o parentesco do drama com o Otelo, de poral do enredo, no qual as ações se precipitam
Shakespeare". A diferença básica, no entanto, está num suspense constante e denso. Está, enfim, no
no fato de que o duque não ama realmente Leonor desenho dos personagens centrais, vistos na sua
como Otelo ama Desdêmona. Não é o ciúme que psicologia mais profunda. Gonçalves Dias afirmou,
o move, mas a raiva e o orgulho ferido. Urna raiva no prólogo, que queria pintar um drama determi-
e uma amargura que o transtornam. Assim como nado pelas circunstâncias daqui da terra. Queria
para Leonor, o casamento também não era de seu e conseguiu. Encontrou nas histórias de vida, nas
agrado. Homem dado ao retiro, diz que prefere frustrações pessoais, nas contingências sociais, nos
o ermo e a solidão ao convívio das pessoas. Tem desejos reprimidos de cada um dos personagens o
um temperamento explosivo e irascível que ame- motor das ações mostradas em cena.
dronta a todos. Por outro lado, é extremamente
cioso de seu status (apenas menos nobre do que
o rei, como ele mesmo diz) e usa a afronta feita Paulo Antônio do VaZZe
à sua honra de cavalheiro como argumento para
condenar Leonor. No fundo de todo esse desassos- A obra de Paulo Antônio do Valle (1824-1886)
sego e sofrimento interior, Gonçalves Dias revela situa-se no final de 1840. Advogado e professor da
uma infância infeliz que viu a morte violenta dos recém-fundada Academia de Direito do largo de
pais e do irmão e a ameaça sobre sua própria vida. São Francisco em São Paulo (1827), escreveuquatro
Nas outras peças esse dado também está presente. peças em três anos, três delas no estilo romântico:
Parkull fora preso e tinha visto os pais morrerem Caetaninbo, ou O Tempo Colonial (I 848),AsFeiras
condenados pelo rei Carlos XI; Beatriz ficou de Pilatos (1849) e Capitão Leme ouA Palavra de
encarcerada num aposento do palácio de seu pai Honra (1850)8°. Os três trabalhos são ambientados
durante anos; Boabdil teve sua infância ameaçada na cidade de São Paulo durante o período colonial.
por intrigas palacianas.1vfas é no duque que Gon- Com eles, Paulo Antônio quis recuperar o passado
çalves Dias melhor desenha as consequências das da cidade que, a partir da instalação dos cursos ju-
infelicidades da infância. Talvez aqui se faça ouvir rídicos, passava a conviver com a juventude mais
a voz do próprio autor, que carregava uma história preparada do país, decidida a discutir os problemas
pessoal cheia de percalços: da jovem nação e a debater as questões da literatura e
da arte em geral. O palco, ao lado do jornalismo, foi
Pudesse eu apagar da minha vida ou pelo menos da mi-
nha memória muita miséria e desgosto, como na pedra se 78 Declaração feita em carta escrita a um amigo e publicada
nos Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1971, v. 84,
passa a esponja sobre o desenvolvimento de um cálculo
P: 90-9 I, e citada por D. de A. Prado em Teatro de Anchieta a
que se errou! [...]; mas se o ferro deixa uma cesura eterna Alencar, P: 282.
no corpo - acredita que há desgostos que deixam traços 79 Lembre-se aqui a monragem do Teatro Brasileiro de Comé-
dia (TBC) em agosto de 1954,sob adireção de Adolfo Celi, com
Cleyde Yáconis (Leonor), Sérgio Cardoso (Alcoforado) e Paulo
Autran (Duque).
77 Váriaspassagensdo drama lembram cenas de Otelo, de Shakes- 80 Em 1858, compôs um último drama, realista, chamado O
peare, como foi assinalado pelo próprio autor no prólogo. Mundo à Parte.

• 99
História do Teatro Brasileiro • volume1

um dos meios mais utilizados para pôr em discussão sidenteda província, Antônio de Melo. O drama
H . ., ... ,

os temas que excitavam os ânimos dos acadêmicos. érr:aÍ;c;aaôiptil~ discussão da "queda e recuperação
Isolado na província atrasada, o professor Paulo feminina' e do amor que vai além das regras so-
Antônio tinha apenas cerca de 25 anos quando es- cais. De todo modo, o vaivém do enredo, as bruscas
creveu seus dramas. Retomar os acontecimentos mudanças de opinião dos personagens fazem deste
passados da, na ocasião, pequena e inexpressiva vila drama uma obra com muitos problemas.
de São Paulo, pareceu-lhe o meio de valorizar algumas Capitão Leme ouA Palavra de Honra é menos
características reputadas genuinamente paulistanas e confusa e apresenta o retrato mais claro de um he-
que poderiam servir de modelo para a nação que se rói local que surge como Deus ex machina no final
organizava, a saber: a independência e a unidade. da peça. A questão central do drama são as conse- .
Paulo Antônio escolheu personagens e fatos histó- quências de um compromisso verbal acertado pelo
ricos, mesclando-os com a ficção do drama de amor. capitão Leme e que não poderia ser quebrado, pois
Ao contrário de Gonçalves Dias, no entanto, o que se para esses"grandes paulistas" a palavra empenhada é
destaca na trama é o retrato do herói, deixando o es- tudo. Sem saber que sua filha, Maria, está apaixonada
tudo do caso amoroso sem maiores desdobramentos. por seu protegido, Antônio, ele a promete ao filho de
O primeiro drama, Caetaninho ou O Tempo Co- Amador Bueno. Tudo gira em torno da questão dessa
lonial, aborda o confronto real acontecido em fins suposta "honra paulista" pela qual se pautam todos
do século XVII entre um jovem soldado, mulato e os personagens. São valores que os acadêmicos de-
pobre, Caetano, e o filho do governador da Provín- sejam disseminar na nova nação. Figura do passado
cia, Antônio Lobo. A razão do conflito é parte da glorioso da cidade, o grande herói da peça é Amador
ficção criada pelo autor - a disputa pelo amor de Bueno, muito embora só apareça na última cena.
Joana, amante de Caetaninho. A moça, exemplo de Uma passagem interessante e que provocou rea-
virtude e fidelidade, repele todas as investidas e as ções adversaspor parte do Conservatório Dramático
ofertas de Antônio Lobo, o que o faz aproveitar um Nacional é aquela na qual o capitão Leme, em sua
pequeno incidente com Caetaninho para levá-lo fazenda, ao ouvir um canto entoado pelos escravos,
à prisão e à condenação capital. O amor de Cae- lamenta a sorte daqueles homens. O autor faz aí uma
taninho e Joana não tem futuro num mundo sem analogia entre a condição do Brasil-Colônia e a es-
liberdade e está condenado ao fracasso. Sua história cravidão. Contudo, o capitão se exime de qualquer
de amor, enfrentando um vilão declarado (muito culpa pela situação e responsabiliza os traficantes
embora arrependido no final), teria permanecido no como os grandes vilões. Esse trecho é o primeiro
registro do melodrama, não tivesse o autor investido retrato claro no drama romântico brasileiro da pro-
Caetaninho do símbolo da liberdade nacional. funda contradição que se vivia no Brasil: muitos di-
A peça estreou em 2 de dezembro de 1848, na ziam deplorar o sistema escravísta, mas fincavam nele
antiga Casa da Ópera (ou Teatro de São Paulo) e as raízes de sua riqueza. O drama com tema calcado
fez bastante sucesso no acanhado ambiente teatral na escravidão começava a ganhar espaço em cena.
paulistano, pois, segundo seu autor, foi ao encontro
da missão civilizatória que se esperava do teatro dos
acadêmicos. Joaquim Manuel de Macedo
A peça seguinte, As Feiras de Pilatos, de 1849,
sofreu alterações em 1856. A história se passa em Joaquim Manuel de Macedo (1820- 1882) tem
1800 e retrata os costumes da política do período. uma obra tão variada quanto extensa. Ao longo
Nesse enquadramento, tem-se não um triângulo de três décadas, o escritor passou pela comédia de
amoroso, mas um verdadeiro polígono formado costumes, pela burleta e até mesmo pelo drama sa-
pelo tenente Fernandes, que ama a prima Leonor cro. Dramas românticos, escreveu três: O Cego, em
Fernandes e é amado por Márcia de Miranda, a 1849, Cobé, em 18 528r, eAmore Pátria, em 1859.
quem abandonou; Leonor, por sua vez, é amada
também pelo coronel Fontes e pelo general pre- 81 Data provável.

• 100
• o Teatro Romântico

o Cego, em cinco atas, foi composta em versos. questões sociopolíticas. No entanto, não deixa de
A razoável concemração da trama no tempo e no denunciar como fator decisivo do desfecho infeliz
espaço guarda proximidade com os procedimentos a situação de imeira submissão a que estão sujeitas
clássicos. São dignos de nota, igualmeme, os longos as mulheres. A certa altura diz Maria: "Quantas
solilóquios ou falasque tornam o ritmo da peça lento mártires passam sobre a terra!... Que angústias em
e reflexivo. Macedo, no entanto, agrega elementos silêncio se devoram!. .. Que dores n'alma da mulher
que o afastam do figurino clássico estrito. Os per- se abafam!"84. No final do drama, a última fala é
sonagens não têm origem nobre (muito embora a de Henrique, que sentencia: "(Correndo a Da-
não sejam "populares"), o enredo remete ao passado mião, travando-lhe o braço, e trazendo-o à força
histórico recente, com referências à Guerra da Cispla- até junto do cadáver do irmão.) - Chegue!. .. vede-
tina, no ano de 1825, e o cenário reproduz a natureza, -o l... (Apontando com gosto terrível o cadáver do
tema tão caro aos românticos. A rubrica diz assim: irmão) - Eis o fruto, senhor, da prepotência!' !"85
O segundo drama escrito por Macedo tem
o teatro represema um bosque aprazível e belo; ao fundo e como protagonista a figura idealizada de um índio,
do lado direito do espectador, uma fome natural está meio Cobé, criada a partir do ideário do romantismo.
encoberta por algumas árvores, que parecem ligadas por um Em comum com Paulo, de O Cego, Cobé sofre a in-
tecido de trepadeiras floridas, as quais formam um como que felicidade de um amor não correspondido. O autor,
caramanchão sobre a fome. O dia amanhecendo!", porém, ambiemou a obra num passado ainda mais
distante: os primeiros tempos da colonização em
Esse é o cenário dos dois primeiros atos. Por ele Niterói, durame os confrontos entre portugueses
passam primeiramente Paulo, o cego, e Daniel, seu e tribos indígenas pela posse da terra.
escravo e confidente, a quem se queixa de seu infeliz A peça começa com um longo arrazoado de
destino, preso na escuridão para sempre em virtude Cobé explicando por que, apesar de ser um guerreiro
de uma enfermidade. Antes de perder a visão, co- bravo e leal à sua tribo, permanece como escravo de
nheceu Maria e se apaixonou pela moça. O que ele Branca, filha de D. Rodrigo. Acontece que Cobé
não sabe é que ela era apaixonada por seu irmão ama Branca e deseja ficar a seu lado, mesmo que
Henrique, dado como morto nas campanhas do isso signifique o cativeiro. Branca, no entanto, está
sul do país 83. Acreditando que Maria está desimpe- apaixonada por Estácio, jovem soldado conhecido
dida, Damião, pai da jovem, a promete a Paulo. Para por sua bravura, mas que não tem título de nobreza,
complicar a situação, Henrique volta do campo de e teme que seu pai a faça se casar com D. Gil, fidalgo
batalha e continua apaixonado por Maria, português, apresador de índios. Sozinha, sem alia-
Após a cerimônia de casamento, Daniel con- dos, Branca enfrema D. Gil e se coloca na posição de
firma a Paulo que vira Maria marcar um encontro vítima da intransigência masculina que a impede de
com Henrique ainda para aquela noite. Enciu- decidir seu próprio destino. O que ela não diz a D.
mado, Paulo jura vingança, mas ao descobrir que Gil é que pretende envenenar-se antes do casamento.
é o empecilho ao amor entre seu irmão e Maria, Cobé, porém, fica sabendo do plano e apressa-se a
mata-se com uma punhalada. tirar o veneno das mãos de Branca. No momento
Alguns dos lances da peça são claramente fracos, exato da cerimônia, após tomar o veneno que era de
apelando para a facilidade dos golpes de teatro. Es- Branca, Cobé mata D. Gil evai morrer aos pés de sua
tão nessa situação: a volta miraculosa de Henrique, amada, não sem antes, finalmeme, declarar seu amor
o punhal convenientemente trazido por Damião e por ela, num brevíssimo "Eu te amo!"
até a própria condição física de Paulo. O Cego é um Na verdade, a peça lembra em muitos aspectos
drama de amor sem maiores considerações sobre o drama anterior. O punhal é substituído pelo ve-
neno, que acaba provendo o meio de suicídio do
82 Joaquim Manuel de Macedo, Teatro Completo I, Rio de Ja- protagonista/herói. Em ambos os casos a atitude
neiro: SNT, 1979, p. 241.
83 A época é 182.5, período da Guerra da Cisplatína (1825- 84 J.M. de Macedo, Teatro Completo I, P: 257.
1828). 85 Idem, p. 29 L

• ror
História do Teatro Brasileiro • volume1

inflexível dos pais em relação às filhas leva ao desen- chega de São Paulo. Os personagens comemoram
lace infeliz. A impotência feminina fica claramente com Rores, bandeira e o hino da Independência.
demonstrada. O estilo também se assemelha ao A trama frágil e as reviravoltas abruptas abrem
apresentar grandes solilóquios dos protagonistas. poucas possibilidades à análise dessa pequena peça,
Em Cobé, porém, acrescenta-se ao assunto amo- classificada como drama pelo autor. Trata-se mais
roso a questão política e racial. Há na peça dois de uma comédia do que realmente de um drama,
tipos de preconceito: o racial e o social. Cobé é pra- inclusive pela presença de uma personagem, Pru-
ticamente invisível a Branca como possível preten- dêncio, tio de Afonsina, responsável pelas tiradas
dente, pois é índio, um selvagem. Estácio também de humor do texto que fazem contraponto ao
é recusado pela ausência de fidalguia. Em O Cego patriotismo inflamado dos protagonistas. É, sem
não havia desnível social entre os pretendentes. Por dúvida, um "respiro" dentro da peça, no melhor
outro lado, o fato de os rivais serem irmãos garantia estilo dos personagens cômicos de Macedo.
dramaticidade ao entrecho. Em Cobé o opositor do
guerreiro tamoio é alguém de caráter duvidoso e,
portanto, quase um vilão. Nos dois casos,não se trata Álvares de Azevedo
exatamente de um amor impossível que enfrenta as
regras sociais, mas de um amante não correspondido Álvares de Azevedo (183 1-1852) marca a produção
que decide agir para que se realize a felicidade da da década de 1850 com o seu singular Macário. Se
mulher amada. São dramas de autossacrifício que Leonor de Mendonça é o melhor drama romântico
abrem caminho à suposta felicidade do casamento brasileiro, Macário é o mais original. É um "drama
antes impossível. Não se contesta o valor do casa- fascinante': escreveu Antonio Candido em seu belo
mento, mas criticam-se as bases em que é realizado. ensaio, 'h Educação pela Noite" 87. Amor ou pátria?
Macedo escreveu ainda dentro da linha do Ambos, mas por um prisma diferente: amor bipolar
drama histórico uma pequena peça em um ato, da mulher ora vista como anjo, ora como demônio -
Amor e Pátria, para as comemorações da Inde- o que deixa o protagonista da peça absolutamente
pendência, em 185986. Novamente, o amor con- desorientado; pátria - através do que prezava mais:
fronta portugueses e brasileiros pela posse da terra aliteratura. Qual o caminho do Brasil na literatura?
brasileira. A ação passada no dia 15 de setembro Qual sua tradição? As duas linhas condutoras desen-
de 1822 pode ser resumida como um grande mal- rolam-se num quadro inédito e associam-se a um
-entendido que tem mais de comédia do que de elemento que também destacaJl1acário no cenário
drama. O enredo envolve um casal de jovens apai- do drama brasileiro: o fantástico.
xonados, Luciano e Afonsina, entusiastas do novo Macário compõe-se de duas partes distintas: na
governo nacional brasileiro. Luciano fora criado primeira, o jovem estudante segue à noite por uma
como um filho por Plácido, pai de Afonsina, e está estrada solitária com destino à cidade onde irá estu-
de casamento marcado com ela. Ao chegar para a dar. Parando para pernoitar numa estalagem à beira
cerimônia, fica sabendo que Plácido fora acusado do caminho, encontra-se com uma figura misteriosa,
de traição (pois é português e deverá ser depor- sábia e irônica. É Satã em pessoa. De início, Macário
tado). Na verdade, ele fora denunciado por Velasco, não o reconhece. Depois de alguma conversa, eles
outro português, que se sentiu preterido em relação saem pela estrada. Falam sobre a cidade à qual Ma-
a Afonsina e que apontou Luciano como delator. cário se dirige 88, sobre a vida, o amor, as mulheres, a
Na última hora sabe-se da notícia de que Luciano morte. Passam pela casa de Satã e por um cemitério,
pagou a fiança de Plácido, evitando a deportação. onde Macário, finalmente, consegue esconjurá-lo.
Esclarece-se a trama armada por Velasco, que é ex- No final da primeira parte, Macário está de volta à
pulso da casa. Depois da reconciliação, ouvem-se ao
87 A Educação pela Noite e OutrosEnsaios, São Paulo: Ática,
fundo música e gritos de alegria. É D. Pedro I, que 1987,P' II.
88 Sabe-se que é São Paulo, cidade onde Álvares de Azevedo
86 Foi representado no Teatro S. Pedro, Rio de Janeiro, em 7 de cursou direito. A descrição de seus habitantes, hábitos e mazelas
setembro de 1859, no mesmo dia de Cobé. é viva e contundente.

• r02
+ o Teatro Romântico

estalagem, mas não sabe se apenas sonhou ou se, de cinco jovens amigos embriagados que se encontram
fato, encontrou-se com Satã. Nesse primeiro episó- na taverna e contam um episódio mais abominável
dio, Macário destaca-se,especialmente, pelo diálogo que o outro, nos quais estão presentes ingredientes
ágil, as falas curtas, em linguagem despretensiosa. corno incesto, necrofilia, fratricídio, canibalismo,
Marcada por um humor irânico, provoca um sorriso traição e assassinato.
amargo sobre a condição humana. Álvares de Azevedo escreveu ainda uma pe-
Na segunda parte desaparece essa leveza. Tam- quena obra em versos em um ato chamada Boê-
bém se perde ainda mais o contare com a realidade. mios - Ato de uma Comédia não Escrita. Dois são
Os episódios são passados na Itália, muito embora os personagens de caracteres opostos, como Satã e
esse dado não contribua em nada para a caracteriza- Penseroso: Nini, o poeta, e Puff seu amigo boêmio.
ção do espaço e para o desenvolvimento do enredo. A cena tem lugar novamente na Itália do século
O que Macário faz lá não se sabe, mas ele encontra À'VI. Encontrando-se uma noite sob a luz de um
um segundo companheiro - Penseroso. Juntos lampião, Nini tenta por várias vezes recitar seu
têm longas discussões sobre arte. São trechos tão novo poema para o amigo. Este, porém, sempre
extensos que comprometem a já frágil ação da peça. o interrompe e começa a divagar sobre variados
Penseroso defende uma poesia mais sentimental e assuntos. Juntos passam em revista as mazelas dos
que valorize as belezas nacionais (brasileiras), ao habitantes da cidade. Puff adormece e Nini final-
passo que Macário propõe uma visão mais crítica mente dá início à leitura do poema. Trata-se de uma
e cosmopolita. Os diálogos versam também sobre história de amor passada numa ilha distante entre
o tema do amor. Penseroso sofre pela perda de sua uma jovem desconhecida, um príncipe, o rei e o
amada e acaba se envenenando. Anteriormente, bobo da corte. Quando termina o relato, surge a
dissera a Macário que o livro que este lhe oferecera figura de um velho calvo metido num camisolão.
tinha sido "como um copo de veneno". De certa É o prólogo que vem à cena defender o poeta e
forma, Penseroso morre envenenado pela poe- sua obra, quebrando a cena ilusionista e instalando
sia. Influenciado pela situação, Macário se deixa um inesperado procedimento de metateatro. Tudo
abater pela dor. Para salvá-lo da aniquilação, Satã muito incomum para meados do século XIX.
reaparece, símbolo de uma força vital que resgata Por seu subtítulo, Ato de uma Comédia não Es-
o jovem de seu torpor e lhe propõe uma nova ex- crita, e pelo fato de ter sido, assim como Macário,
periência cheia de emoções. publicada postumamente, é possível avaliar quão
Naverdade, tanto Satã como Penseroso são repre- precárias são ambas as tentativas dramáticas de Ál-
·sentações de duas faces opostas do próprio Macário, vares de Azevedo. Talvez pensadas mais para a lei-
que se alterna entre um extremo e outro, procurando tura do que para o palco, em função das estruturas
um equilíbrio, quase impossível de encontrar. fragmentadas, discussões literárias e pouco respeito
Drama tão singular não poderia se encerrar de pelas convenções cênicas vigentes na época, o fato
forma menos inesperada e original. Amparando é que, por tudo isso mesmo, por não se prender
um Macário cambaleante, Satã para diante da a convenções, Álvares de Azevedo compôs uma
janela de uma estalagem e ordena: "Cala-te. Ou- obra (sobretudo a primeira parte delVIacário) que
çamos". Ouvir o quê? O drama termina aí. O que venceu o tempo e chegou até nós com raro frescor.
haveria na estalagem? Segundo Antonio Candido,
Macário termina justamente onde começa Noite
na Taverna, cuja primeira linha já é uma fala: "Jo- Casimiro de Abreu
hann - Silêncio! moços! acabai com essas canti-
lenas horríveisl'">. É o começo da conversa entre Outro jovem poeta, de história tão breve e trágica
quanto Álvares de Azevedo e que também se arris-
89 Álvares de Azevedo, Macdrio/Noite na Taverna, São Paulo:
couno teatro foi Casimiro de Abreu (r839-r86o).
Marrins Fomes, 2002, p. 97. Noite na Taverna foi publicada pela
Ia. vez em I 878. Segundo Candido, ligar o final de Macário ao [...] pois aqui eles [os gêneros] estariam não apenas misturados,
início de Noite na Taverna foi um "verdadeiro desvario estético mas acoplados numa mesma empresa".

+ 10 3
História do Teatro Brasileiro + volume 1

Teve ele mais sorte, pois conseguiu ver encenado dão como uma péssima influência para as relações
o seu drama Camões e]au 90 , em 18 de janeiro de familiares burguesas. Com poucas exceções, os en-
18 56, no Teatro D. Fernando, em Lisboa. A obra redos se referem a filhos e filhas de mães escravas
foi um dos primeiros trabalhos escritos por Casi- com pais brancos - o inverso é muito raro, mas
miro, três anos antes de publicar seu único livro de existe - que vivem sem saber de sua verdadeira ori-
poesias e falecer logo em seguida. Escrita em versos gem. Esses segredos, mantidos com muitos sacrifí-
decassílabos brancos, a peça foi composta a pedido cios, quando revelados causam geralmente grande
de um amigo, o ator e escritor português Brás 1Y1ar- dano: suicídio, loucura e morte. Apenas em alguns
tins, que se incumbiu do papel de Camões, ao lado casos mais felizes o desfecho se dá com alforrias.
do ator José Carlos, que interpretou Antônio (ou Deve-se notar ainda que qualquer que seja
Jau), o escravo javanês do poeta'". a solução do conflito, ela é proposta sempre no
Na pequena e única cena da peça, num clima de âmbito individual. Com exceção de Gonzaga ou
confidência, em que os dois homens rememoram A Revolução de Minas, na qual se prega uma ação
seus amores perdidos, o autor rende homenagem à conjunta entre negros e brancos para obtenção da
grandeza da epopeia portuguesa. Apesar de afirmar liberdade política e social, nenhuma peça encara o
que não trocaria o Brasil por nenhuma terra estran- fim da escravidão como o resultado de uma ação
geira, é o glorioso passado português que Casimiro levada a cabo pelos principais interessados - os
faz surgir nesse breve retrato dos últimos minutos de negros. Há um pavor surdo que não permite
vida do grande poeta-herói, ou herói-poeta, Camões. pôr em cena uma possível revolta organizada
Ainda que se trate de um escravo javanês e não por parte dos escravos:". A solução do conflito é
africano, a figura do escravo fiel e dedicado, esque- sempre individual. O negro se integra à sociedade
cido de sua condição e imbuído de eterna gratidão branca - os "escravos fiéis" - ou é dela excluído.
por seu amo tem aqui um retrato acabado. Uma longa lista de títulos faz referência a per-
sonagens ou situações ligadas à escravidão. Dessas
peças, algumas serão tratadas a seguir, outras fo-
Agrário de Menezes ram impossíveis de ser encontradas e outras ainda
pertencem a gêneros que não o drama romântico.
o tema da escravidão, que fora tocado apenas de Dentre todas, poucas foram capazes de perscrutar
leve por Paulo Antônio do Valle, tornou-se objero o tormento do coração cativo, a dor da condição
de diversas obras do teatro brasileiro. A maioria servil, como Calabar, de Agrário de Souza Mene-
delas apresentando uma leva de "bons escravos". zes (1834-1863). O autor, nascido em Salvador e
Pode-se registrar a presença da figura do escravo um dos fundadores do Conservatório Dramático
negro no teatro brasileiro desde o período inicial da Bahia, em 185793, teve considerável produção
de sua consolidação, em fins da década de 183 o, dramatúrgica. Apesar da brevidade de sua vida,
início da seguinte, com as comédias de Martins estigma de quase todo escritor romântico, deixou
Pena. Com o passar do tempo, a dinamização da ao todo, entre trabalhos publicados e obras iné-
sociedade brasileira e o crescimento do movimento ditas, catorze peças entre dramas realistas, comé-
abolicionista entre os intelectuais e a classe média dias e dramas históricos>. Nessa última categoria
nacional fizeram com que o teatro passasse a tratar
92 Até hoje, não se conhece nenhumapeça dessaépoca que retrate
com maior frequência o problema da escravidão, uma dasinúmeras revoltasescravas que agitaram a história brasileira.
embora respeitando certos limites. Na maioria das 93 Até meados de 1850 o teatro baiano (cujo principal edifício
vezes, as peças - românticas, melodramáticas ou era o Teatro Real S.João, em Salvador) vivia da visita de compa-
nhias vindas do Rio de Janeiro ou estrangeiras. Com a criação
realistas, sérias ou cômicas - apresentam a escravi- do Conservatório, propiciou-se um local de reunião e reflexão
para todos aqueles interessados pela arte dramática. Eram feitas
90 Casimiro de Abreu, Camões efau, Lisboa: Tip. do Panorama, leituras de trabalhos inéditos, críticos emitiam suas opiniões. Em
18 56. seu discurso de inauguração, Agrário de Menezes valorizava a
91 A peça teve outras récitas em Portugal, em 1867 e 188o, e história como um dos elementos fundamentais do drama.
no Brasil, em 1860, segundo Raimundo Magalhães Jr., Poesia e 94 Além das que serão mencionadas neste capítulo, escreveu
Vida de CasimirodeAbreu, São Paulo: Lisa, 1971, P: 26-28. a farsa Uma Festa no Bonfim (1855), as comédias O Vóto Livre

+ 1°4
• o Teatro Romântico

enquadram-se; jV[atilde (1854), O Dia daIndepen- Menezes se sentiu livre para dar sua versão do ocor-
dência (1857 - peça perdida), Calabar (1858) e rídc'". Ainda que respeitando os fatos históricos,
Bartolomeude Gusmão (1863). explorou as razões amorosas como justificativa para
Matilde, drama em cinco atos e em versos, foi es- as ações do herói (ou anti-herói).
crito quando Agrário estudava Direito em Olinda e Dominado por uma paixão avassaladora por
tinha dezenove anos. O tema remete ao período das Argentina, filha de seu companheiro, o índio ]a-
guerras pela Independência travadas na Bahia entre guarari, Calabar não resiste aos seus instintos e ao
1822 e 1823. No entanto, o drama que garantiu a ciúme que sente dela e a estupra - o que de alguma
Agrário de Menezes fama no repertório nacional forma era também um ato incestuoso, já que a
foi Calabar, também escrito em cinco atos e em ver- moça lhe dedicava um amor de filha. Argentina,
sos, no ano de 1856. Em carta dirigida ao secretário apaixonada pelo soldado português Faro, recusa
do Conservatório Dramático Brasileiro, em 1857, qualquer ligação com Calabar. Esse desprezo leva-
ele explicou por que compôs o seu drama em ver- -o a bandear-se para os holandeses como forma
sos. Dois foram os motivos principais: em primeiro de vingança. No fim, Calabar mata Faro, é preso
lugar, apesar do predomínio da prosa na compo- pelos portugueses e condenado à morte. A pobre
sição de peças teatrais, acreditava que a tradição Argentina enlouquece.
do verso poderia ser mantida sem embaraço para a O drama Calabar tem implicações que vão além
compreensão do público; em segundo, levando em do simples caso amoroso. Se alguns estudiosos o
conta que Calabardestinava-se a um concurso", e compararam a Otelo, de Shakespeare, em função do
sendo o verso sabidamente mais difícil de executar ciúme, outros ressaltaram a questão do preconceito
do que a prosa, pensava ele favorecer a apreciação racial presente no drama. Na verdade, reside aí um
sobre o trabalho. Apesar da feição classicizante dos dos aspectos mais interessantes da peça. Calabar
decassílabos brancos e do número de ates, os versos sente-se, como mestiço que é, representante da so-
são claros e fáceis de dizer. Além disso, Agrário de ciedade brasileira em formação. O que significava
Menezes adiciona certa dose de humor a algumas ser brasileiro na situação em que se encontrava?
poucas cenas - as dos soldados, por exemplo -, o Na luta entre holandeses e portugueses/espanhóis
que o aproxima da prática do drama romântico. Da pelas terras do Brasil, qual deveria ser a posição de
mesma forma, a extensão no tempo do enredo tem um brasileiro? Não eram todas potências europeias
o efeito de afastá-lo das regras clássicas. colonizadoras? Não eram exploradoras do povo e
Calabar retroage ao século XVII para contar a das riquezas brasileiras? Se essa discussão parece
história do brasileiro Domingos Fernandes Cala- anacrônica para o século XVII, é perfeitamente per-
bar, que durante as lutas em Pernambuco passou tinente para o século XIX, um tempo de afirmação
do lado espanhol- e português, já que estávamos da nacionalidade. Calabar, pela mão de Agrário,
no período da União Ibérica - para o dos "invaso- transforma-se no primeiro herói brasileiro. Apesar
res" flamengos. Além da questão política central, de ser impossível pensar em autonomia nacional
Calabar apresenta uma história de amor, bem aos naquele período, a personagem denuncia a condi-
moldes românticos, expressa na paixão do prota- ção do país explorado e espoliado. Calabar, com
gonista por uma índia chamada Argentina. Como seu amor não correspondido, sem pátria, sofrendo
nunca foram explicados claramente os motivos o preconceito racial, entrega-se à traição, o que faz
que levaram Calabar a mudar de lado, Agrário de de Calabarum drama ainda mais interessante. No
melhor modelo romântico, o protagonista traz
(rS 54), O Príncipedo Brasil (rS 56), O RetratodoRei (rS 56), O dentro de si a contradição: o amor pelo país e a
PrimeiroAmor (rS59), O Bocado não éparaQuemFaz (rS60),
AQuestão doPeru (rS6r) e os dramas OsivIíseráveis (rS62), São traição, o amor por Argentina e a violência.
Tomé (inacabado - rS63).D. Forte (rS63) é uma peça anónima
atribuída a Agrário de Menezes.
95 Agrário de Menezes inscreveu Calabar no concurso promo- 96 Defende Agrário de Menezes que à versão mais conhecida
vido pelo Conservatório Dramático Brasileiro, no Rio deJaneiro. de que Calabar deserdara dos portugueses por problemas com
Como não se divulgou nenhum resultado depois de vários meses, a justiça, era perfeitamente possível opor outras hipóteses mais
o autor retirou-o da disputa e publicou-o em Salvador, em r8 58. dramáticas. A arte lhe dava essaprerrogativa.

• 1°5
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Em 1863, ano de sua morte, e em apenas vinte que se seguíram'", apenas Mãe, representada em
dias, Agrário de Menezes escreveu Bartolomeu 1860 99, e OJesuíta, montada pela primeira vez em
de Gusmão) drama em três ates sobre o inventor 1875, lançam mão de procedimentos que podem
santista que viveu na corte de D. João v, em Por- ser considerados românticos. As demais foram
tugal, onde, entre outras atividades, desenvolveu a escritas dentro dos cânones do teatro realista,
técnica de voar em balões. Bartolomeu, no entanto, passadas na "atualidade", abordando os assuntos
despertava a inveja da corte e a desconfiança da In- preferidos por essa escola, como a questão do cré-
quisição. Foi acusado de ser amigo de judeus e teve dito, da prostituição de luxo, dos casamentos por
de fugir. De volta a Portugal, foi novamente per- interesse, e contando com a presença quase sempre
seguido pelo Santo Ofício, desta vez sob suspeita incómoda do raisonneur'?'.
de feitiçaria. Acossado e doente, morreu em 1724. Das duas obras que interessam aqui, Mãe é a que
Agrário de Menezes, liberal histórico, valorizou no mais timidamente se liga ao romantismo. Calcada
drama a figura do brasileiro erudito e culto opri- no tema da escravidão, como já fizera pela via da
mido pela metrópol~. Um herói brasileiro que teve comédia em O Demónio Familiar, Alencar opta
de enfrentar as intrigas palacianas e a limitada visão aqui pelo drama, que, em quatro atos, respeita as
científica da Igreja. Bartolomeu se transforma num unidades de tempo e espaço, à maneira da tragédia.
libelo pela liberdade de pensamento e de expressão. Na peça de Alencar, Joana é a escrava de Jorge,
Lembra, pelas circunstâncias, a peça de Gonçalves jovem estudante de medicina apaixonado pela vi-
de :Magalhães - António Joséou O Poeta e a Inqui- zinha Elisa, filha do funcionário público Gomes.
sição -, seja pela intenção de valorizar a figura de Tentando conseguir dinheiro para saldar dívidas do
um pensador brasileiro (no caso de António José pai, Elisa recorre aJorge, que se prontifica a ajudá-
isso parece discutível), seja por retratar a sanha -la, embora não tenha dinheiro. Arriscando-se numa
da Inquisição católica e o tacão do colonialismo solução temerária, mas temporária, Jorge hipoteca
metropolitano. sua escravaJoana a um usurário, Peixoto. É a própria
Joana que insiste nessa solução, já que é absoluta-
mente devotada ao jovem. Ela chega até a rasgar a
José de Alencar carta de alforria que acabara de receber dele. Após
Gomes ter sido salvo, espera-seque no dia seguinte
Dos aurores examinados até agora, pode-se dizer Jorge possa resgatarJoana com o dinheiro que o dr.
que o que os aproxima, além dos grandes temas Lima, velho conhecido da família, lhe dará. O que o
românticos que aqui nos servem de guia - amor e rapaz ignora, no entanto, é queJoana é sua mãe e que
pátria -, é o fato de serem, na maioria, "escritores elamanteve o fato em segredo para não prejudicá-lo
de província" - Maranhão, Bahia, São Paulo. É junto à sociedade preconceituosa da época. Ao ser
claro que todos eles mantinham contares com a revelado o grande segredo, Joana foge e suicida-se
corte, mas boa parte de suas produções está ligada com o veneno queJorge tirara de Gomes. Apesar do
a essapremissa básica de semi-isolamento, sobres- filho reconhecê-la como mãe, até o finalJoana nega:
saindo nas obras assuntos locais como temas das "Nhonhô !... Ele se enganou!. .. Eu não... Eu não sou
peças. Ao abordar os trabalhos deJosé Martiniano - nao...
tua mae, - meu filh o.I ("lO/r
Morre. )"101 .
de Alencar (1829-1877) chegamos ao centro do A intenção de Alencar, segundo declarou, era
poder'? e da cultura do Brasil imperial. Alencar mostrar a profundidade do amor materno. Parte da
escreveu ao todo nove peças teatrais. Estreou em
1857 com O Rio deJaneiro) Verso e Reverso, uma 98 A NoitedeSãoJoão (r857), O Crédito (r857).AsAsasdeum
comédia curta, e no mesmo ano apresentou O De- Anjo (r858). Oqueéo Casamento (r862),AE,.piação (r868).
mónio Familiar, sua peça mais famosa. Das obras 99 O drama alcançou enorme sucesso quando de sua represen-
tação pelo Ginásio Dramático.
100 Raisonneur: personagem de convenção que apresenta o POnto
97 Alencar. formado em Díreto, foi deputado pelo Ceará. de vista do autor sobre os temas discutidos em uma peça.
ministro, jornalista. romancista e membro do Conservatório 101 José de Alencar, Teatro Completo. Rio deJaneiro: SNT. r977.
Dramácico Brasileiro. P·3 r o.

• r06
------- - - - - - - - - - -

• o Teatro Romântico

crítica entendeu que a escravidão, sendo capaz de que Jorge lhe oferece pelo empréstimo, submete-a a
criar um ser tão devotado como Joana, não poderia uma "vistoria' degradante. Nesse rnornento.joana
ser de toda má I 0 2 • Já Machado de Assis considerou desce à categoria do sub-humano. A crueza da es-
a peça uma crítica contundente à instituição do cravidão revela-se inteiramente.
cativeiro. O conflito interior vivido por Joana, entre
Outra figura, embora secundária na trama, que demonstrar todo seu amor pelo filho, mas não
toca no problema da escravidão, é Vicente. Escravo poder contar-lhe a verdade e receber o devido re-
alforriado, sonha em subir na vida. Tornou-se ofi- conhecimento, é pungente e altamente dramático.
cial de justiça e passa a cobrar de todos, inclusive de Joana é uma heroína dividida: sofre por um amor
Joana, tratamento adequado a seu novo status. Es- socialmente condenado, que pode destruir o ser
sas cenas, aliás as mais divertidas da peça, lembram amado. Por outro lado, a atitude de Jorge ao acei-
também o desejo de ascensão social de Pedro, de O tar sem reservas a inesperada revelação sobre sua
Demônio Familiar, que quer passar de moleque da origem não deixa de surpreender. Se considerados
casa a cocheiro de gente importante. os fortes preconceitos que vigoravam na sociedade
Polêmicas à parte, o drama tem muitos ele- escravocrata, é uma reação idealizada, romantizada,
mentes identificáveis com o realismo: a figura essa de Jorge - secundada por Elisa - ao abraçar,
do agiota, devidamente punido no final, a honra incondicionalmente, Joana como mãe. A reação de
feminina e familiar, a valorização do trabalho. Do Gomes nas últimas cenas talvez seja a mais cruel
mesmo modo, não apela para apartes, nem apre- e a mais realista, pois por um momento avalia a
senta reviravoltas inesperadas. A ação caminha em gravidade da revelação evolta atrás na permissão do
"linha reta' inexoravelmente para seu desenlace. casamento entre Elisa eJorge. É preciso uma forte
Veja-se, por exemplo, o caso do veneno usado por repreensão do dr. Lima para fazê-lo ver a nobreza
Joana. Todos sabem que ele existe, que foi tirado de do sacrifício de Joana. Do ponto de vista estrito da
Gomes. Mas nem o público, nem os personagens intriga sentimental, estamos diante de uma "comé-
parecem se preocupar muito com ele. Ele está lá dia' que, dentro do padrão clássico, termina com
de direito, naturalmente, como diz Flávio Aguiar: o casamento dos enamorados. De certa forma, a
"entrou pela porta da frente"?". Entre os elementos trágica morte de Joana é atenuada pela certeza de
românticos, podemos citar em primeiro lugar e, felicidade futura do casal.
sobretudo, a figura de Joana. Na sua condição de Se o dramal\1ãe trata do amor, OJesuíta focaliza
- escrava, marginal à sociedade burguesa, impedida a pátria. É um drama de ideias, com pano de fundo
de ser feliz com o grande amor de sua vida - seu histórico, mas com intriga e quase todos persona-
filho -, mata-se para salvá-lo. Seu sacrifício e sua gens fictÍcios.Escrito em fins de 1860 10 4, tem como
renúncia garantem a ele a felicidade sentimental e enredo a história de um médico italiano, dr. Sa-
a aceitação social. muel, afamado por sua bondade, inteligência e de-
EmJoana, Alencar consegue também uma boa terminação. Samuel criou desde pequeno o jovem
mistura de sublime e grotesco. Ao lado de seu amor Estevão e este está apaixonado por Constança de
sem limites, o autor apresenta-a como uma mulher Castro, filha do conde de Bobadela, governador do
simplória, mas por vezes espirituosa, dividindo Rio de Janeiro. A peça se passa durante os últimos
com Vicente as melhores cenas cômicas. Seu jeito meses de 1759, ano em que os jesuítas foram expul-
de incentivar o romance do filho com Elisa tem sos do Brasil por ordem do marquês de Pombal':".
sempre leveza e graça. É ela também que protago-
niza a cena mais grotesca e constrangedora da peça 104 Foi escrito a pedido de João Caetano para ser representado
no dia 7 de setembro de 1861. No entanto, o grande atar român-
no momento em que Peixoto, avaliando a garantia tico brasileiro não montou o drama. Somente em 1875 OJesuíta
subiu ao palco. A representação foi um fracasso e deixou Alencar
102 O mesmo tipo de polêmica já havia ocorrido por ocasião do bastante abalado. Na verdade, o estilo da peça já não correspondia
lançamento de O DemônioFamiliar, em que a punição do escravo mais ao goSto do público do último quarto do século XIX, muito
Pedro era a sua alforria. mais inclinado ao teatro musical ligeiro.
103 A ComédiaNacionalno Teatro deJosédeAlencar, São Paulo: 105 Eles só retornariam em 1841, vinte anos antes do drama de
Ática, 1984, P: 168. Alencar ser escrito.

• Ia?
História do Teatro Brasileiro • volume 1

o drama em quatro ates, cuja história se passa Companhia de Jesus no Brasil. Revelado seu dis-
em poucas semanas, mistura intriga política e farce, Samuel finalmente percebe que seus planos
um certo clima de espionagem, com romance e de independência são impossíveis e que ele exigira
pequena dose de humor. Tantos assuntos assim muito de Estevão, quando o escolheu para conti-
misturados não poderiam ter como resultado uma nuar a sua obra. Os jesuítas são presos, mas Samuel
obra muito coesa. Principalmente no que se refere foge por uma passagem secreta. Deixa como men-
às idas e vindas sentimentais entre Constança e Es- sagem final um desafio ao poder português e prediz
tevão. O fato de Constança ser filha do governador a futura independência brasileira:
complica a situação e lhe dá maior dimensão polí-
tica. Bobadela não é contra a união dos jovens. Pelo (Ao conde) ~e quereis de mim?... O frade?, o jesuíta?...
contrário, ele quer atrair o rapaz para a vida militar, (Tiraohábito elança-lho aospés) Ei-lo, é um hábito. Podeis
ao que Estevão está muito inclinado. Samuel, no rasgá-lo; mas a ideia não morrerá, não! Ela fica plantada no
entanto, é um idealista. Há mais de cinquenta anos solo americano; cada homem que surgir do seio desta terra
vem tramando a independência do Brasil. Sua es- livre será um novo apóstolo da independência do Brasil!
tratégia é bastante singular. Usando do poder e da
organização alcançados pela Companhia de Jesus Muito diferente de Mãe, esse drama tem inú-
no Brasil, ele acredita que deveriam ser atraídos meros personagens, alguns de alta estirpe (como o
para o país os contingentes de insatisfeitos da conde de Bobadela e um nobre espanhol aventu-
Europa para que aqui, finalmente, encontrassem reiro, D.Juan de Alcalá), jesuítas (padres e noviços),
uma pátria. Desses deserdados nasceria um novo soldados, ciganos, índios, empregados. Mensagens
país independente. Um deles é o cigano Daniel, criptografadas, espionagem, chantagem, sonífero e
protetOr de Samuel, que avalia que eles já sejam passagem secreta também comparecem em cena.
alguns milhares espalhados pelo Brasil e que logo Samuel encarna a fixidez de uma ideia e uma
terão condições de sublevar. A ele se une Garcia, vida dedicada a uma única causa. Todos os esfor-
representando os índios brasileiros interessados em ços e sacrifícios são feitos com um único objetivo.
reaver as terras tomadas pelos portugueses. Samuel Mesmo a felicidade de um filho adotivo pode ser
menciona ainda a vinda de judeus para dar início sacrificada à causa maior. Felizmente, há um desen-
ao novo Brasil independente: lace satisfatório para todos. Samuel, percebendo o
sofrimento que infligiria a Estevão, vê que sua luta
Lembrei-me que havia na Europa raças vagabundas que não tornou-se uma obsessão desmedida e reconcilia-se
tinham onde assentar a sua tenda; lembrei-me também que com o rapaz. Este também é, afinal de contas, um
no fundo das florestas ainda havia restos de povos selvagens. drama sobre o amor entre pais e filhos.
Ofereci àqueles uma pátria; civilizei estes pela religião. [...]
Todos os elementos estavam dispostos [...] em menos de
vinte anos o Brasil deixaria de ser uma colônia de Portugal?". Bernardo Guimarães

Essa estratégia, no mínimo estranha, é conhe- Ao lado de Cobé, de Macedo, A Voz doPajéé um
cida pelos representantes portugueses que estão dos poucos dramas que têm o índio como prota-
preparando o cerco para prender SamueL O que gonista I 0 7 • Escrito por Bernardo Guimarães (1825-
ninguém sabe, nem os jesuítas, é que, além de
conspirador, Samuel também é o vigário-geral da 107 Segundo o levantamento efetuado pelos pesquisadores Fi-
lomena Chiaradia e Alberto FerreiraJúnior (1986/87), sob a
106 J. de Alencar, Teatro Completo, P: 497. É bom lembrar que orientação de Flora Süssekind para a Funarte - O Índiono Teatro
na década de 1850 havia começado no Brasil as primeiras ex- Brasileiro - foram escritos, no século XIX, além do drama de
periências com a imigração europeia patrocinadas pelo senador Bernardo Guimarães, as seguintes peças que apresentam índios
Vergueiro. Também é interessante perceber que em lugar nenhum como protagonistas ou coadjuvantes: Abamaacara, tragédia em
da peça se menciona nem de longe a questão da escravidão. Qual quatro aros de Antônio Castro Lopes; Itaminda ou O Guerreiro
seria o lugar dos escravos nessa grande festa da liberdade? Só há de Tupã, de Martins Pena; Calabar, de Agrário de Menezes; O
um grande silêncio a respeito. Muito diferente do que virão a pro- Jesuíta, de Alencar; Pacaby, Chefe da TribodosTapuias, de Joa-
por os dramas de PauloEíró e Castro Alves nos anos seguintes. quim Ferreira da Silva; O Guarani, adaptação de J. Alves Coaraci

+ 108
• o Teatro Romântico

1884), recebeu o avaldo Conservatório Dramático Jurupema mata Diogo de Mendonça, mas é tarde
Brasileiro em 1860, mesmo ano em que foi ence- demais para salvar Elvira. Desesperado, transpassa-
nado em Ouro Preto'?". -se com um punhal Io9 . Fecha o drama o pajé que
Trata-se de um drama histórico em cinco atas, sentencia: ''Acabou a nação dos poriguaras'"!".
cuja ação se passa no Maranhão do século XVI, Jurupema, a princípio um "índio de alma
em meio ao confronto entre colonizadores por- branca', evolui para tomar consciência de sua
tugueses e a tribo dos índios potiguaras. A peça "nacionalidade" e juntar-se aos seus na luta pela
estrutura-se com base no entrelaçamento do con- liberdade da terra. Ao escolher um índio como
flito político com a trama amorosa. As unidades de protagonista, Guimarães une à cor local represen-
tempo e espaço são bastante maleáveis, de acordo tada pela figura do índio o seu papel heroico como
com os procedimentos românticos consagrados, e representante da brasilidade' II.
os diálogos são escritos em linguagem exaltada e Por outro lado, há o amor de Jurupema por
elevada, a não ser por poucos substantivos próprios Elisa, uma portuguesa. É esse, afinal, o grande di-
e comuns de origem indígena que servem para dar lema brasileiro: a um só tempo ama-se e odeia-se
certo colorido ao quadro evocado. o estrangeiro. Jurupema é, por sua criação, pelo
Jurupema, jovem índio criado pelo capitão-mar processo civilizatório que vivenciou, um pouco
da província, Coelho de Souza, tem o nome cristão português - mas sem deixar de ser índio. O Bra-
de Henrique e há muito vive distante de sua tribo. sil também é índio, sem deixar de ser português.
Jurupema é apaixonado pela filha de Coelho de A relação de poder entre os dois grupos leva ao
Souza, Elvira, que também o ama. A tensão entre confronto das lutas externas e internas do dividido
portugueses e índios é grande. A revolta indígena Jurupema. O final não permite vislumbrar uma so-
está prestes a estourar. O que falta aos potiguaras é lução conciliatória. Parece que não há saída para
um líder. Cabe ao pajé reconhecer Henrique como a nacionalidade. Se Guimarães descreve Jurupema
o filho desaparecido do chefe e tentar convencê-lo como o perfeito guerreiro, bravo, leal, inteligente,
a se aliar à causa dos seus, vingando-se de todas capaz de despertar a admiração e o desejo de Elvira,
as atrocidades cometidas contra sua tribo. Ele em uma personagem secundária como Julião pinta
enfrenta um drama de consciência, pois se sente o mestiço como portador de todos os defeitos. É o
devedor em relação ao seu tutor português. Além próprio Julião que se descreve:
disso, teme que Elisa sejavítima numa guerra entre
brancos e índios. Mas o pajé, figura misteriosa e [...] em minhas veias gira o sangue de duas qualidades; te-
orgulhosa, é convincente. Pirajá, chefe da tribo, nho o tino e a astúcia do selvagem, e a reflexão do homem
morre deixando ao filho o encargo de prosseguir de além-mar; tenho dois olhos na cara; este olho é tapuia;
com a luta. Jurupema afinal aceita. este outro é emboaba, por isso vejo as coisas muiro bem
Por outro lado, o pai de Elvira a prometera para ambos os lados lI2•
a Diogo de Mendonça, um fidalgo português.
Diogo, através de uma denúncia, prende Jurupema Tanto tino redunda em atitudes absolutamente
como traidor, levando-o a ser condenado à morte. condenáveis como delação, venalidade e bajulação.
Ao ver um corpo pendurado do lado de fora da Francamente favorável aos portugueses, Julião trata
fortaleza, Elvira desespera-se. Aceita casar-se com
Diogo de Mendonça, mas envenena-se pouco antes 109 Uma clara referência ao final do drama de Shakespeare, Ro-
da cerimônia. A fortaleza é cercada pelos índios. meu ejulieta.
110 Elizabeth R. de Azevedo (org.), Antologiado Teatro Român-
Jurupema entra vitorioso. Não era dele o cadáver tico, São Paulo: Martins Fontes, 2006, P: 304.
visto ao longe. Era o de seu delator, o mestiço Julião. 111 Ao contrário do que se vê no tratamento dado aos negros, os
índios no teatro brasileiro aparecem sempre como um grupo socio-
e Luis J. Pereira da Silva para o romance de]osé de Alencar; A cultural coeso, autónomo e ativo. As revoltas são coletivas. Talvez
FestadosCrânios, de]osé Ricardo Pires de Almeida. issoaconteça porque no século XIX as tribos indígenas já não repre-
108 Segundo]. Galante de Sousa (O Teatro noBrasil, v. 2, p. 274), sentassem mais uma ameaça real à "sociedade civilizada"e à família
Bernardo Guimarães escreveu também os dramas inéditos Os patriarcal, podendo ser posras em cena sem maiores traumas.
DoisRecrutase Tiradentes. 112 Idem, p. 208.

• 1°9
História do Teatro Brasileiro • volume 1

os índios como inferiores, esforçando-se em des- 7 de setembro de 1822, abordando o romance entre
crevê-loscomo selvagens canibais. A única coisa que um jovem português de família nobre, Aires, e Luísa,
sepode reconhecer em favor de Julião é seu senso de uma moça mestiça, órfã e irmã do sargento da milícia
humor nas raras cenas menos sérias da peça. Rafael Proença. O problema do preconceito racial
em SangueLimpo é o centro do drama, pois Rafael
e Luísa são filhos de escravos. O amor entre Aires e
Paulo Eiró Luísa se desenvolve através de cartas entregues em
segredo e de uma visita noturna. Sabendo dos sen-
Se a escolha de um protagonista indígena permite a timentos do casal, Rafael recebe a visita do pai de
Bernardo Guimarães discutir os temas da liberdade Aires, D .José Saldanha, que afirma ser até capaz de
e da escravidão sem tocar diretarnente nas questões aceitar como nora uma moça que pouco aparenta sua
da mestiçagem e do preconceito social e racial em ascendência negra. O que não é possível conceber é
relação aos negros, esses são, contudo, os assuntos ver seu nome ligado a uma família que há pouco
claramente abordados no drama Sangue Limpo, deixou a condição servil. Tratar-se-ia, portanto, de
do escritor paulista Paulo Eiró II 3 (1836-1871). O uma questão social e não racial II 5. Porém, Rafael é
autor é tido, inclusive, como um dos precursores da cioso de suas origens. Não há acordo possível entre
literatura abolicionista, antecedendo a Castro Alves ambos. São dois orgulhos que se contronram':".
em alguns anos. No último ato, Luísa sai à procura de Aires,
. Escrita em 186 I, a peça venceu o concurso do Ins- que fora levado por seu pai para a baixada. Rafael
tituto Dramático de São Paulo, que tinha por tema também desce a serra na companhia do príncipe
um "assunto da história nacional': e deveria ser ence- D. Pedro e os encontra. Abominando a atitude
nada no aniversário do imperador, em 2 de dezem- de Luísa, renega-a como irmã. A situação não se
bro. Paulo Eiró escolheu o período da independência resolveria se não houvesse uma aparição absoluta-
como pano de fundo para um drama maior: o da mente inesperada e colada artificialmente à ação.
formação étnica do homem brasileiro. Para defender Na mesma pousada em que estão os personagens,
suas ideias, o autor deu vida a uma série de perso- aparece um negro de "aparência feroz" que conta
nagens, na maioria de baixo estrato social, isolados como matou seu senhor depois da última de muitas
na província paulista. Desse modo, tornou possível humilhações e maus tratos. Liberato, nome suges-
associar os desencontros amorosos e os preconceitos tivo do escravo, deveria ser punido por ter deixado
raciais aos desajustes da nação que se constituía. No o filho de seu senhor escapar. Este não era outro
prefácio, ele expressa sua visão do destino brasileiro: senão D.José Saldanha. Assim, sem o impedimento
paterno, Aires está livre para casar-se com Luísa,
São três raças humanas que crescem no mesmo solo, si- agora com o consentimento de Rafael. É esta a
multaneamente e quase sem se confundirem; são três co- tese do autor: a base da sociedade brasileira está
lunas simbólicas que, ou hão de reunir-se, formando uma na união do português com os elementos nativos
pirâmide eterna, ou tombarão esmagando os operários"-. e mestiços encontrados no novo mundo.
Pela sinceridade com que expôs os problemas do
SangueLimpo é composto de um prólogo e três cativeiro e do preconceito, o drama de Paulo Eiró é
aros. Passa-se durante a semana que antecede o dia admirável para seu tempo. Nele há retratado todo
o espectro social da colônia às vésperas da indepen-
113 Há muitas variáveis para o nome correto de Paulo Eiró: Paulo dência, unindo-se dessa forma ao drama histórico
Francisco de Sales Chagas, Paulo Francisco de Sales, Paulo Emílio o retrato típico da comédia de costumes. Chama a
de Sales, Paulo Emílio de Sales Eiró e, finalmente, Paulo Eiró. O es-
critor nasceu em Santo Amaro, então uma vila próxima a São Paulo.
Mesmo antes de entrar na Academia de Direito já granjeara fama 115 Note-se o mesmo recurso de outras peças em que as moças
de bom,poeta. Sua obra dramática contava com diversos trabalhos, são tão claras que parecem brancas. No caso de SangueLimpo,
mas perdeu-se toda, com exceção de SangueLimpo, quando o amor não é diferente. Jorge, de Mãe, é um caso similar no rol mascu-
decidiu tornar-se religioso e permitiu que se queimasse todo o seu lino, como já foi visto.
trabalho. Paulo Eiró acabou seus dias num hospício. 116 E. R. de Azevedo (o rg.), Antologiado Teatro Romântico. Este
114 E. R. deAzevedo (org.), Antologia do Teatro Romântico, p. 308. é, aliás, o nome do ato: "Dois Orgulhos".

• Iro
• o Teatro Romântico

atenção, no entanto, a tigura de Liberare represen- Constantino do Amaral Tavares


tando o escravoacostumado ao trabalho pesado, aos
castigos e à vida mais sofrida e rude. Como não vê Do mesmo ano de r 86 r é o drama histórico de
saída para sua situação,reage com a violência de que é Constantino do Amaral Tavares (r828-r889), Os
vítima. Diga-se que esseé um aspecto pouco comum Tempos da Independência. Nascido na Bahia, Cons-
no teatro brasileiro. De um modo geral, os escravos tantino foi militar e funcionário público, além de
vistos no palco são aqueles que convivem "harmo- jornalista, crítico, tradutor e dramaturgo II 9 • É um
niosamente" com os senhores. São os "escravos fiéis". escritor predominantemente romântico, muito
Na verdade, o herói da peça é Rafael. É ele quem embora tenha escrito pelo menos uma peça de cará-
defende as ideias patrióticas, morais e sociais lança- ter realista, Um Casamento daÉpoca. Outro drama
das em cena pelo auroro Cabe a ele descrever o que é histórico de sua autoria que pode ser lembrado é
o Brasil cativo de Portugal e o que deve ser o Brasil Gonzaga, de r869I20.
livre, onde a integração dos povos que o compõem Os Tempos da Independência é composto de
seja a base do futuro. A independência seria um um prólogo, três ates e um epílogo. Essa divisão
primeiro passo. O Brasil deixaria de ser escravo se faz necessária para dar conta de um enredo que
de Portugal e, coerentemente, todos os brasileiros cobre cerca de quarenta anos. O prólogo passa-se
deixariam de ser escravos também. Sobre Rafael, em r8r7, numa cela de prisão onde está o padre
contudo, sabe-se pouco. É um soldado fidelíssimo, Roma, figura histórica que participou da Revolu-
sem ambições pessoais. Parece que íntrojetou os ção de Pernambuco e que viera à Bahia fazer pro-
preconceitos e não quer alçar-se acima de "sua con- paganda dos ideais revolucionários. O governador
dição': chegando a rejeitar uma promoção: baiano, o conde dos Arcos, tenta fazer um acordo,
prometendo-lhe o perdão se denunciasse os cons-
RAFAEL - [... ] A sorte do homem pardo é tão miserável! piradores baianos. Roma recusa-se e é executado.
O pobre pode chegar à fortuna; o plebeu pode alcançar Mas seus ideais não morrem. Ele tem um pupilo a
honras e glória: mas o homem que traz em si o selo de duas quem deixa encarregado de dar continuidade à luta
raças diversas e inimigas, o que poderá fazer ele? Dirá às pela independência e de vingá-lo. Estão lançadas aí
suas veias que conservem este e não aquele sangue? Dirá as bases para o resto do drama. A ação se passa entre
à sua epiderme que tome esta ou aquela cor? Obstáculo fevereiro de r 822 e r 823 e culmina no dia da vitó-
insuperável, que esmaga os maiores arrojos da vontade! ria brasileira - 2 de julho - contra o general por-
Preconceito bárbaro e monstruoso que vota ao desalento tuguês Madeira de Melo. Luís está noivo de Maria,
e à obscuridade tanta alma grande!Il7 que tem como tutor André. Este é um rematado ca-
nalha e trama para entregá-la a Madeira, que se diz
De amor ou paixão nenhuma notícia. Ele está apaixonado por ela. Sabendo do planejado, ela foge
condenado à solidão, a não ter descendência: e se casa com Luís. A luta continua e Maria toma
parte dela intensamente, colaborando com o gene-
RAFAEL - [... ] olha, Luísa, eu também tenho-me vencido, ral francês Labatut. Avisado por André, Madeira
tenho arrancado muito desejo do coração. Pensas tu que a prende Maria. Luís, servindo como mensageiro das
minha mocidade é uma árvore manínha, sem rama e sem tropas brasileiras, oferece-se para intermediar a ren-
verdor? Só deus sabe o que tem sido. Mas eu nunca embalei dição do general português. Este prefere bater em
essasilusões; vestia a minha farda, dava-te um beijo na testa
e esquecia-me de tudo. Às vezes somente demorava-me a 119 Tavares era membro do Instituto Histórico Provincial e do
olhar para o futuro e dizia comigo: O soldado há de ter Conservatório Dramático da Bahía, do qual foi presidente em
1884, quando tentou reatívá-lo depois de encerradas suas ativi-
descanso um dia, e poderá em algum retiro plantar a flor
dades desde 1875.
cheirosa de sua felicidade Il 8. 120 Segundo Galante de Sousa (O Teatro no Brasil, v. 2, P: 536),
Constantino do Amaral Tavares escreveu também: S. Gregório,
o Taumaturgo (r857), ElogioDramático (r857), O Conde de
Zampieri (r 860), O Lucasda Feira de Santana,Romancede um
117 Idem, p. 393. Enjeitado,OsCaixeiros NacionaiseAs LeoasPobres (r 862 - tra-
118 Idem, P: 378-379. dução da peça de E. Augier).

• III
História do Teatro Brasileiro • volume 1

retirada, fugindo em seus navios e abandonando lucionárias para a época, como a independência, a
Maria, que se reencontra com o marido. O epílogo república ou a abolição. Pelo contrário, o desenho
se passa durante a comemoração do 2 de julho em desse Gonzaga é o de um homem de meia-idade,
um ano qualquer da década de 1850. Mais de trinta bem-posto na vida, que no fundo não acredita que
anos transcorreram desde a vitória. A essaaltura da a tentativa de separação da coroa portuguesa tenha
peça, Luís, já velho e prevendo sua morte (de Maria qualquer possibilidade de ser vitoriosa, No entanto,
não se tem a menor notícia), lamenta o rumo que o seus companheiros veem nele uma liderança sem a
país seguiu depois dos heroicos acontecimentos das qual não poderiam passarMais de uma vez, Cláu-
batalhas pela independência, frustrando de certa dio - o mais velho e o mais empenhado - vem
forma os ideais de 1823. Seu único consolo foi ter exortá-lo a liderar a conspiração.
servido à pátria como prometera ao padre Roma e A grande paixão de Gonzaga nesse momento é
ter ajudado a conquistar a independência. mesmo Maria. O drama não deixa de mencionar a
Das personagens enfocadas nesse drama, grande diferença de idade existente entre os dois: o
poderia-se dizer que têm pouco desenvolvimento poeta tem 45 anos e ela 16. Essadiferença dá margem
psicológico, quando não são puros retratos frios a vários comentários, sobretudo no primeiro ato, que
de figuras históricas que se misturam a persona- é tomado em grande parte por um clima de encontro
gens fictícios. O amor de Maria e Luís não sofre familiar e elegante, cheio de poesia - todas do poeta
maiores ameaças; eles estão sempre certos de seus Gonzaga - na casado tio de Maria. O ato se encerra
sentimentos e o final é feliz. As convicções polí- com uma revelaçãosurpreendente: Silvério também
ticas são também tão inabaláveis quanto o amor. está apaixonado por Maria e, porque ela o rejeita,
Luís cumpre à risca o destino traçado para si pelo decreta: "Não há de ser minha, nem dele"!".
padre Roma. São todos heróis. Quanto aos adver- A partir do segundo ato, o enredo se modifica
sários, pouco se pode dizer. O conde dos Arcos é para destacar a questão política. Gonzaga ainda
descrito como um homem de honra e cumpridor está indeciso, acha tudo uma loucura e critica dura-
de seus deveres. Madeira de Melo é mais perigoso, mente Tiradentes: "Imprudentes que fostes todos
mas nunca um vilão. Talvez esta seja a peça que vós. Fiastes-vos nas palavras de um louco, de um
mais se aproxima de um melodrama, não fosse pelo ideólogo e embarcastes-vos em uma empresa que
epílogo que relativiza o tom patriótico e heroico, não tem bases no presente, nem esperanças no fu-
mostrando o desencanto de Luís. turo!" E mais adiante: "[...] Tiradentes, que do Rio
Gonzaga I2I , escrito alguns anos depois de OsTem- de Janeiro nos escreve, desvaira-se desgarrado pela
pos daIndependência, apresenta em seu núcleo central loucura que o domina, e às suas imprudências de-
de personagens os inconfidentes Gonzaga, Cláudio vemos talvez as denúncias, que já nos envolvem">".
Manoel, Alvarenga, Silvério dos Reis e o padre Car- Gonzaga somente adere ao movimento por
los Toledo. Entram também no drama Maria Seixas solidariedade aos amigos, no último momento,
Brandão, seu tio, Silva Ferrão, entre outras figuras quando a conjuração está sendo desmantelada e
menos importantes. Os doisprimeiros arossepassam os conspiradores perseguidos.
em Vila Rica, em 1789; o terceiro e último, na prisão O último ato apresenta a tão apreciada cena
onde está Gonzaga, no Rio deJaneiro, em 1792. de calabouço, comum em muitas peças da época.
Ao contrário do que se verá no drama de Castro Três anos se passaram. Gonzaga está num estado
Alves sobre o mesmo assunto, Gonzaga ouA Revo- lastimável - macilento, envelhecido, andrajoso.
lução deMinas, a peça de Ama~al Tavares tem uma Aproxima-se o momento de sua sentença. Maria
trama única, mais concentrada, sem enredos pa- vem visitá-lo para um último encontro, em com-
ralelos. Estranhamente, Gonzaga não é mostrado panhia do tio, Silva Ferrão. Na cena final, Maria
como um herói convicto, lutando por ideias revo- amaldiçoa Silvério, também presente, e, abalada
pelas fortes emoções, cai e é amparada pelo tio,
121A peça foi publicada inicialmente no periódico Leiturapara
Todos e em seguida pela Tipografia e Litografia de F.A. de Souza, 122 Idem, p. 38.
em 1869. 123 Idem, p. 45.

• 112
• o Teatro Romântico

segundo a rubrica. O espectador fica sem saber se Castro Alves escreveu sua peça quando ainda era
ela desmaia apenas ou se morre. estudante na Faculdade de Direito em Recife, entre
A linguagem em que foi escrito esse Gonzaga é 1864 e 1867, e enquanto vivia com a atriz Eugênia
díreta e não parece ter aspirado a maiores voos poé- Câmara, para quem concebeu o papel de Maria, Às
ticos. A simplicidade é a marca do texto. Talvez isso personagens históricas, o autor acrescentou as figu-
se explique pelo período já tardio para um drama ras de dois escravos, Luís e Carlota. Com isso, criou
histórico romântico. A escola realista no teatro já duas linhas de enredo que se articulam, tendo como
tinha deixado suas marcas na cena brasileira e, ao assunto comum as idas e vindas da conspiração dos
que tudo indica, Constantino as tinha absorvido. inconfidentes. Em primeiro lugar, vêm o poeta e sua
Do mesmo modo como a linguagem, os perso- amada, secundados pelos companheiros nos mo-
nagens são pouco trabalhados. Com exceção de mentos decisivos da revolta. Ao lado de Gonzaga
Gonzaga, que questiona a conspiração e hesita em está também Luís, um velho escravo alforriado que
abraçá-la, todos os demais personagens existem em há tempos procura pela filha, Carlota, fruto de um
função dela, sem deixarem transparecer outras face- amor da juventude tragicamente terminado com a
tas de suas personalidades. É claro que há o caso de morte da mãe da criança. Luís acredita nas promes-
Silvério, que, além de traidor político, é apaixonado sas da sociedade livre de que lhe fala Gonzaga e na
por Maria.1Yfas sua paixão é fria, sua personagem possibilidade de encontrar finalmente sua filha. Do
tão secundária - no segundo ato, mesmo em cena, outro lado está Silvério dos Reis, o delator e senhor
ele praticamente não diz ou faz nada - que seu de Carlota. Se Gonzaga usa argumentos e promes-
amor é o que soa mais falso em todo o texto. sas para convencer Luís, Silvério recorre a ameaças
Peça sem maiores qualidades, Gonzaga integra a para forçar Carlota a encontrar provas contra os in-
lista de obras escritas ao longo de todo o século XIX confidentes. Para conferir ainda mais dramaticidade
dedicadas aos inconfidentes. As figuras envolvidas ao enredo, Castro Alves faz do visconde de Barba-
na conspiração nunca deixaram de atrair o interesse cena um apaixonado por Maria, Assim, a disputa
dos dramaturgos brasileiros pela aura libertária com Gonzaga não se limita ao campo político, mas
combinada ao sofrimento da derrota e ao viés da alastra-se para as questões do coração.
traição. Evitar o maniqueísmo e criar personagens A certa altura, Maria, num momento de fra-
que fossem além do estereótipo foi o grande desa- queza típica de heroínas românticas, desmaia,
fio, raramente vencido. deixando à mercê de Carlota uma série de docu-
mentos incriminadores contra os inconfidentes.
Cumprindo seu papel, a jovem escrava os entrega
Castro Alves a Silvério, selando a sorte dos revoltosos. Arrepen-
dida do que fez, Carlota tenta salvá-los e acaba,
A fama e a importância de Castro Alves (1847- finalmente, descobrindo seu pai. Silvério, furioso
1871) como poeta certamente facilitaram a divul- com a desobediência da escrava, promete-lhe um
gação para a posteridade de seu drama Gonzaga ouA futuro atroz. Carlota prefere a morte e atira-se ao
Revolução deMinas. O mesmo se deu comJ\1acário, rio, onde morre afogada.
de Álvares de Azevedo, e com as peças de Gonçalves No último ato, há ainda um derradeiro encontro
Dias, mas ao contrário dessesdois poetas, Castro Al- entre os protagonistas na cela de Gonzaga. Silvério,
ves teve a oportunidade de ver seu drama encenado e apesar da "vitória': é devidamente punido, pois cai
avaliado positivamente por escritores como José de em desgraça com o governador, que o responsabiliza
Alencar e Machado de Assis'>. por ter perdido Maria. Na última cena, grandiosa,
Gonzaga e Luís partem para o exílio. Maria vem à
frente do palco e recita um poema ao estilo de Castro
124 Castro Alves deixou ainda uma peça inacabada, D. Juan ou
A ProledosSaturnos, provavelmente escrita entre 1868 e 1869, Alves. A peça se encerra com o hino nacional.
e um poema dramático chamado UmaPáginadaEscola Realista, A disputa entre o poeta e o governador pelo
de I87!. Ver Teatro Completo de Castro Alves, São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
amor de Maria tem a peculiaridade de pôr em

• 113
História do Teatro Brasileiro • volume 1

--~
> ,

Castro Alves.

• II4
+ o Teatro Romântico

cena dois lados de um sentimento, apresentando em dívidas e que não se recusa a fazer negócios com
imagens contrastantes de luz e sombra. Maria e o inimigo, desde que isso lhe proporcione um bom
Gonzaga vivem um ideal de amor cheio de honra lucro. Desmascarado ao final, épunido. Adolfo volta
e respeito. A paixão do governador, o reverso desse de combate e é aclamado como herói'".
amor casto, é alimentada pela lascívia. Diferentemente, a peça O Soldado Brasileiro
A presença de Carlota dá ensejo a que se discu- apresenta a questão da guerra interferindo no ro-
tam questões relativas ao cativeiro, com ênfase em mance de dois casais de jovens: Francisco de Sousa,
dois aspectos: a escravidão vista como fonte de ví- que ama Elisa, e Egídio dos Santos, que se apaixona
cios e a falta de responsabilidade ética e moral dos por Adelaide. As duas moças são, respectivamente,
escravos, submetidos às ameaças dos senhores. Por filha e sobrinha do rico comerciante Oliveira, que
outro lado, em Luís se idealiza a relação entre senhor não admite nenhum dos dois romances, pois Egí-
e escravo.Ele é o modelo do escravofiel,sempre bem dio é um pobre órfão que desconhece sua origem e
tratado, que acompanha seu senhor até o fim. Francisco é descendente de escravos. Desse modo,
Castro Alvesfaz do poeta Gonzaga o cérebro e a caracteriza-se o amor que vai contra as conveniên-
alma do movimento, uma figura libertária imbuída cias sociais tão aguerridamente defendidas por Oli-
de ideais que iriam muito além da separação política veira. A guerra não aparece logo como um campo
entre Brasil e Portugal, e incluiriam a abolição e a re- sagrado de luta pela pátria, mas, inicialmente, como
pública. Ideais,evidentemente, muito mais do século um castigo. Desiludido em suas esperanças amo-
XIX do que do período dos inconfidentes. Lembre-se, rosas, Egídio se alista. Oliveira delata Francisco
porém, que a peça foi escrita durante o período da à milícia, que o prende e o envia para o ftont. O
Guerra do Paraguai (1864-1870) e que o patriotismo segundo ato, passado no campo de batalha, traz de
deu o tom a muitas das obras desse período. efetivo para a trama, depois de muitos discursos
sobre o amor ao Brasil, uma tramoia para roubar o
soldo e a notícia da morte de Sousa. Tempos depois,
Araújo Porto-Alegre; sabe-se que Elisa não sobreviveu à dor de perder seu
Ubaldino do Amaral Fontoura e grande amor. No entanto, Sousa não estava real-
Cândido Barata Ribeiro mente morto. Sem a amada, ele dedicará sua vida
apenas ao país'<. Adelaide e Egídio têm um destino
É isso,aliás,o que acontece com dois dramas surgidos mais feliz e conseguem finalmente se casar.
justamente nessaépoca e que têm por tema o conflito Não fosse pela infelicidade do desfecho, o re-
com o Paraguai. São eles: Os Vóluntários da Pátria, corte histórico e o enredo sentimental, O Soldado
de Araújo Porto Alegre (1806-1879) e O Soldado Brasileiro seria um drama realista. A peça conta in-
Brasileiro, de Ubaldino do Amaral Fonroura (1843- clusive com uma bem definida figura de raisonneur
1920) e Cândido Barata Ribeiro (1843-1910). que acompanha e comenta os erros e acertos dos
A primeira peça I 2 5, em versos, tem o tom patrió- personagens.Mas a questão levantada sobre o amor
tico e heroico comum aos dramas históricos, mas inter-racial permanece no teatro brasileiro como
ao ambientar-se na atualidade do Rio de Janeiro um exemplo de amor romântico por excelência.
nos oferece um retrato muito mais próximo dos
procedimentos realistas do que propriamente do
drama romântico. A obra relata a partida de Adolfo, Fagundes Varela
um jovem idealista alistado como voluntário nos
primeiros batalhões de combate ao inimigo para- Assim como Macário foge aos procedimentos mais
guaio. Enquanto está fora, defendendo o país, seu comuns do drama romântico feito no Brasil, no fi-
romance com Amália é ameaçado pela ação de Gil, nal da década de 1860 outro drama, também de um
um rematado canalha, traidor da pátria, afundado
126 Araújo Porto-Alegre escreveu também um libreto de ópera com
125 Araújo Porto-Alegre, Teatro Completo deAraújoPorto-Alegre assunto histórico:ARestauraçáo dePernambuco, porvolta de 1856.
II, Rio deJaneiro: Funarte, 1997. 127 Substituição do escravo fiel ao senhor pelo soldado leal ao país.

+ II5
História do Teatro Brasileiro • volume 1

jovem poeta, destaca-se da norma principalmente a família voltara levando consigo inclusive Sílvia,
na questão do tema proposto. Chegou até nós, num que pretende casar-se com Conrado. Bruno ficara
manuscrito autenticado pela família, uma única obra encarregado de solucionar o assassinato. Ele chega
dramática de Fagundes Varela (1841-1875)128_A à fazenda e revela a Álvaro que Conrado era o as-
Mortedo Capitão-Mor. Dentre todas as peças anali- saltante que ele procurava naquela noite e que tam-
sadas aqui, esta é a única que tem um ar de suspense bém é o responsável pela morte do capitão-mar. O
policial. É nisso, aliás, que reside muito de sua ori- desenlace final do drama é difícil de precisar, já que
ginalidade. Escrita em três atas, está ambientada em as últimas páginas do manuscrito estão danificadas.
Minas Gerais e no Vale do Paraíba no século XVII. É possível dizer que Conrado admite as acusações.
Por causa de uma tempestade, os personagens en- Sílvia morre, mas não se sabe como. Parece que
contram-se todos reunidos num velho convento em Conrado também. Mas de que maneira? Ele havia
ruínas. É aí que as histórias de cada um se cruzam. ameaçado Bruno. Ele chega a matar o soldado? Ele
Está presente o casal Álvaro e Mercedes. Ele, @ho se suicida? Não há como saber.
de rico fazendeiro mineiro, foi deserdado pelo pai Encontram-se nessa peça vários elementos de
por ter se casado com uma moça pobre. A herança gosto romântico: o passado histórico, as coincidên-
deveria ter ido diretamente para o @ho do casal, cias,a ambientação num cenário tenebroso, persona-
porém, ainda pequeno, o menino é sequestrado gens perdidas na noite e na vida. Álvaro, punido pela
por ciganos e desaparece por anos a fio. Durante escolha de um amor condenado - por Mercedes ser
todo esse tempo, Álvaro e Mercedes não desistem mamelucavv -, abandona sua alta posição social
de reencontrar a criança, que, no momento em que a na colônia para vagar pelo mundo em busca de um
peça começa, já deve ter cerca de vinte anos de idade. filho desaparecido. Há Conrado, um marginal,
Abrigam-se também no convento o capitão-mar fugindo, sem raízes, sem passado, contestando as
da província, Guilherme de Almeida, sua filha Sílvia convenções sociais do casamento por conveniência
e uma pequena comitiva. O governador não teria e da vida familiar aburguesada, bem como o servi-
chegado são e salvo ao convento, não fosse o auxílio lismo diante do domínio português.
de dois viajantes que o salvaram de morrer afogado Fazendo contraste com esse núcleo dramático,
durante a travessia do rio que margeia o edifício. São Varela apresenta personagens secundárias que tra-
eles:Bruno, soldado encarregado de prender um pe- zem certa distensão à cena. São os criados, do con-
rigoso assaltante que age nas cercanias acompanhado vento ou da fazenda, responsáveis por breves falas
de um bando de "sertanejos e desertores': e Conrado, cômicas. As cenas de amor também interrompem o
um jovem misterioso cujas feições lembram Álvaro fluxo do enredo de suspense. No entanto, a relação
quando jovem. Durante a noite, Mercedes, Álvaro e entre Conrado e Sílvia é fria. Conrado parece sem-
Conrado conversam e acabam descobrindo que o jo- pre um pouco blasé. O romance mais bem explorado
vem é o filho desaparecido. Ele ficasabendo também é o de Mercedes e Álvaro, apresentado no primeiro
da antiga disputa entre Álvaro e Guilherme pelas ato. Eles são, sem dúvida, um casal que enfrentou
terras que deveriam ser dele. Na verdade, o capitão- os preconceitos para consumar sua união e que tem
-mar dera um jeito de despojar Álvaro de todos os sofrido durante anos em consequência de sua opção.
seus bens e o tem perseguido nesses anos todos. A Se por um lado o drama de Fagundes Varela se
noite, porém, não termina sem que se encontre o afasta do enredo comum do caso de amor ou do
capitão-mar misteriosamente assassinado. drama histórico patriótico, como tantos vistos an-
Os atas seguintes passam-se um ano depois teriormente, ele se ressente do uso de recursos tec-
do crime, na fazenda de Álvaro, para onde toda nicamente fracos, apelando aos procedimentos mais
fáceispara criar e resolver situações: punhais, identi-
128 Segundo Galante de Sousa (O Teatro noBrasil, v. 2., p. 554), dades trocadas ou desconhecidas, perseguições, um
ele teria escrito também: Baltasar(1870), O DemóniodoJogo, A
Fundação dePiratiningae PontoNegro. Há notícias também de
uma comédia chamada 39 Pontos. Talvez A Mortedo Capitão-Mor 129 Não se discute nessa peça a questão da escravidão. Na
tenha sido escrita antes, mas em 1868 há notícia de que a compa- verdade, Álvaro é senhor de centenas de escravos sem que isso
nhia de Eugênia Câmara apresentaria uma peça de Varela. apareça como um problema.

• II6
• o Teatro Romântico

vilão. As personagens não são desenhadas com pro- inconfidentes. A menina se inclina claramente
fundidade psicológica e há até mesmo certa incer- peJo segundo, mas Bárbara, nessa altura da peça,
teza na identificação clara do protagonista da peça. "conspira" com o dr. Monteiro para separá-los. Essa
De início é Álvaro, depois é Conrado. A morte do intriga amorosa fica como que colada fragilmente
capitão-mar, logo no primeiro ato, também cria à trama central da peça. Parece colocada ali apenas
um vazio em relação ao antagonista, função que para ser um dos possíveis motivos para a morte da
acaba sendo preenchida medianamente por Bruno. menina no quarto ato. Ela teria morrido de des-
gosto pela perda do pai e do rapaz.
O segundo ato é dividido também em dois
Francisco Antônio Pessoa de Barros quadros. O primeiro trata de um estranhíssimo
entendimento conspiratório entre Tiradentes e
Ao criar Bárbara de Alvarenga ou Os Inconfiden- os índios Guaicurus, com direito a uma cena na
tes, Francisco Antônio Pessoa de Barros deixou aldeia, com música e dançaP3 2 Na segunda parte
claro no prefácio a intenção de seguir o ideário do ato, Bárbara modifica completamente seu com-
romântico. Menciona como fonte de inspiração portamento em relação à conjura. Se anteriormente
as obras de Gonçalves Dias, Castro Alves e Victor tinha se manifestado completamente contrária ao
Hugo, a quem chama de "Aristóteles da literatura movimento, temendo pelas consequências em re-
rnoderna'">. Sua proposta foi declaradamente a de lação ao marido, agora, depois de ter presenciado
escrever uma obra que glorificasseos heróis do Brasil. os desmandos do governo em uma viagem a Vila
Para tal, limitou-se a apresentar figuras históricas, Rica, compreende e apoia o levante.
eximindo-se de incluir qualquer personagem ficcio- Os ates seguintes são tomados pelo desenrolar
nal. Pretendeu também fazer o retrato, incomum, da conspiração, pela delação e pela prisão dos revol-
de urna heroína'!'. Contudo, ao contrário de Gon- tosos. Bárbara volta a aparecer somente na primeira
çalves Dias e Alencar, que realmente fizeram de suas parte do quarto ato, quando se coloca, junto com
personagens as protagonistas do drama, Pessoa de Maria Efigênia, diante da cadeia, tentando obter
Barros criou apenas uma sombra, um eco da ação informações sobre o destino de Alvarenga. Estra-
protagonizada, realmente, pelos inconfidentes - daí, nhamente - são duas horas da manhã! -, encontra
até, a justeza do subtítulo da peça. o dr. Monteiro, que passa por ali e lhe conta que
Bárbara de Alvarenga ou Os Inconfidentes é um todos foram condenados à morte. O ato completa-
drama histórico em quatro atos e um epílogo, única -se com uma cena dentro da cadeia, onde onze dos
obra conhecida desse autor. As cenas se passam em inconfidentes esperam pela execução até saberem
lugares variados da capitania de Minas Gerais e na da comutação das penas, com exceção da de Tira-
corte, entre 1787 e 1797. O primeiro ato é com- dentes. É um momento para o discurso final do
posto por dois temas principais: a conspiração, cla- herói da Inconfidência.
ramente organizada e conduzida por Tiradentes, e Assim, Bárbara, na verdade, não tem uma ação
um caso de triângulo amoroso entre a filha de treze efetiva no desenrolar da ação. Ela está em cena ape-
anos de Bárbara, Maria Efigênia, e dois pretenden- nas para sofrer as consequências dessa ação. Por
tes, o promissor filho do dr. Monteiro e o valente isso, aliás, é necessário um epílogo para dar conta
filho do capitão Rezende, esses últimos também de seu destino final. Algum tempo depois das mor-
tes de Alvarenga e Maria Efigênia, ela é encontrada
130Francisco Antônio Pessoa de Barros, Bárbara deALvarenga ou sozinha e enlouquecida, vivendo numa choupana.
OsInconfidentes, Rio deJaneiro: Tip. Central Brown & Evaristo, Para tornar a cena ainda mais lúgubre, passa pelo
1877,P·8.
131 Seu verdadeiro nome era Bárbara Guilhermina da Silveira
local uma tropa que leva na bagagem a cabeça de
Bueno, mas ficou conhecida como Bárbara Heliodora. Não se
sabe ao certo quando nasceu em Minas Gerais. Foi poeta como o
marido, Inácio José de Alvarenga Peixoto, com quem teve uma fi- 132 Dentre as várias obras que tratam da conspiração mineira,
lha, Maria Efigênia. Depois que Alvarenga foi preso e deportado - esta é a única que aborda o envolvimento dos índios. Por outro
morreu um ano depois de chegar à África -, Bárbara enlouqueceu lado, do mesmo modo que Gonzaga, de Constantino do Amaral
e viveu na miséria em São Gonçalo do Sapucaí (MG) até 18 I 2. Tavares, não toca na questão dos escravos.

• 117
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Tíradentes, que será exposta em Vila Rica. Pen- CARLOTA (delirante) - [...] Quem perdoará minhas faltas?
sando tratar-se da cabeça de seu marido, ela tenta Piedade?! Ahl Isto é irrisório! Quem a terá por mim?
tirá-la do alforje. Felizmente, fica só na intenção. Nunca, nunca! Resta-me morrer... meu opróbrio todos
Mas, com as mãos empapadas de sangue, tem um o sabem hoje ... sou odiada... nem me dão o olhar de
último delírio e morre. Apesar de cioso no que compaixão que merece qualquer ente desprezível! [...]
concerne à veracidade histórica, o autor distorce FÁBIO - Morreu... Fiz tudo para salvá-la... não o quis...
as datas para fazer coincidir a ida dos despojos de O castigo do céu tardou, mas veio sempre ... A casa de
Tiradentes a Vila Rica com a morte de Bárbara, Basílio é roda chamas...135
que na verdade se deu cerca de vinte anos depois.
Bárbara de Alvarenga ou OsInconfidentes foi Antes disso, porém, Carlota fizera um sincero e
uma tentativa de retornar o drama romântico. O inédito relato da força da paixão que a atraiu para
autor pecou por querer fazer dele uma lição de o escravo:
patriotismo grandiloquente para a educação do
público. Pecou também ao tentar o retrato de uma CARLOTA - Porque te amo muito, ArmÍnio! Ó este amor
personagem a quem não dá direito de agir. Sua peça foi uma verdadeira desgraça para ambos [...]. E por
nunca chegou ao palco. que amei-te, perguntaste? [...] Oh! Porque encontrei
corações mirrados, áridos, mortos! Máquinas que só
se moviam à impulsão de uma mola: o dinheiro, o in-
Apolinário Porto-Alegre) teresse! [ ] Como achei-te sublime no meio daquela
Urbano Duarte e Artur Azevedo gente!? [ ] O que fez que eu te amasse, pois tinhas
um coração de fino quilate numa sociedade de marca-
o final do século XIX viu aproximar-se o momento dores?! Escravo, fazias corar a face de teus senhores !...
da abolição e crescer o número de peças dedicadas ~em te deixaria de amar, Armínio?
ao tema. Três autores dispõem de obras que abor-
daram, com uma contundência inédita, a questão Não é demais lembrar que, na peça, Carlota tem
da ascendência negra!escravade personagens repre- o papel de vilã feminina e que, então, seu relacio-
sentantes da classe média brasileira'» . O primeiro namento "desajustado" é parte da caracterização da
foi o gaúcho Apolinário Porto-Alegre (r844-r904) personagem como mau elemento.
com seu drama OsFilhos daDesgraça, de r 869 I 34 • A Anos mais tarde, em r882, o comediógrafo Artur
peça, bastante confusa e melodramática, tem como Azevedo escreveu,em parceria com Urbano Duarte,
enredo o relacionamento de uma mulher branca um drama sobre essemesmo terna':" chamado OEs-
com um escravo negro, fato, na época, considerado crauocrata'F, Esse trabalho lembra em alguns aspec-
inaceitável. Trata-se de um amor condenado pela tos o dramaj\lfãe, de Alencar, pela mistura entre um
sociedade, sobretudo para uma mulher que, ao agir mote romântico e a forma realista. Entretanto, Aze-
assim, questiona o modelo de poder tradicional da' vedo foi mais ousado e colocou em cena o caso de
família brasileira. Após várias peripécias, o mulato amor entre uma mulher branca casada e um escravo.
Armínio vai preso e morre na cadeia, enquanto Durante muitos anos, Gustavo, fruto desse ro-
Carlota, sua amante, acaba se suicidando: mance, foi considerado filho legítimo de Salazar,
marido de sua mãe. Porém, quando o rapaz começa
133 Sobre o mesmo assunto, pode-se também mencionar as peças a se comportar mal, o pai assume a culpa, mas acaba
de Carlos Antônio Cordeiro (r8 12-r 866), O Escravo Fiel, de
r859; Manuel Joaquim Valadão (r860-?), O Pai da Escrava, de desencadeando a revelação de sua origem I3 8• A mãe
r88r; eJoséAlves Coelho da Silva (r839-r900), Escrava eMãe.
escrita em r885.
135 Apolinário Porto-Alegre, O Teatro de Apolinário Porto-
134 Ver as peças Mulheres (comédia de r 873), Benedito (comé- -Alegre,p. rsr, r84.
dia de r 874), Sensitiva (drama de r 873) e OsFilhos da Desgraça
136 Azevedo escreveu também uma comédia sobre o assunto, O
(drama de r 874), em Apolinário Porto-Alegre, O Teatro deApo-
linário Porto-Alegre, Porto Alegre: IEL/Corag, 200!. Segundo Liberato,em r87!.
Galante de Sousa (O Teatro no Brasil,v. 2, p. 432), Apolinário 137 O título original da peça era A FamíliaSalazar.
escreveu ainda os dramas: Cham e]aphet (r868), Ladrões da 138 Há uma cena preciosa na peça pelo que tem de reveladora
Honra (r 875),Jovita e a comédia EpidemiaPolítica (r882). da mentalidade da sociedade brasileira, quando a irmã de Salazar,

• rr8
• o Teatro Romântico

enlouquece no ato - não se dá nenhuma chance construir uma parte elahistória da nação. Dentro
para que ela justifique suas ações - e o rapaz fica dos limites de sua origem entre a camada letrada,
atordoado: fez a crítica ao cativeiro, aos preconceitos de raça
e sociais, aos casamentos sem afeto e à situação
GUSTAVO - Gustavo Salazar,és filho de um escravo! Ferve-te de submissão da mulher. Construiu a imagem do
nas veias o sangue africano! Pertences à raça maldita dos herói nacional, na pele do selvagem bravo e altivo,
párias negros! À qual sempre votaste o desprezo mais na figura do soldado valoroso, na imagem do poeta
profundo! Tua mãe prevaricou com um escravo... Oh! fogoso ou do escravo leaL
Em seus melhores momentos, quando con-
Entretanto, quando se encontra com o pai, Lou- seguiu escapar dos clichês do melodrama, criou
renço, abraça-o e justifica sua ascendência de uma personagens conflituosos, envolvidos nos dilemas
forma no mínimo questionável: cM! Os senhores do amor e da pátria, sem o consolo das soluções
pisam a tacões a raça maldita, cospem-lhe na face? fáceis ou das certezas absolutas. Momentos capazes
Ela vinga-se como pode, introduzindo a desonra de vencer o tempo, a diferença de costumes e de
no seio de suas famílias !"I39 oferecer ainda hoje a possibilidade de reflexão a
Condenado ao açoite por Salazar, Lourenço en- quem se dispuser a conhecê-lo.
forca-se. Os outros escravos revoltam-se e iniciam
uma rebelião, tentando matar o feitor e atacando o
dono da fazenda I 4 0 • Gustavo, que correra em busca
do pai, é encontrado morto a seu lado.
Esses dramas sobre a escravidão revelavam a
profunda contradição no seio da sociedade brasi-
leira, tão mestiça e, talvez por isso mesmo, tão cheia
de preconceitos. Foram um alerta sobre a urgente 4. A COMÉDIA DE COSTUMES
necessidade de se acabar com a triste instituição do
cativeiro e um apelo à transformação das relações
familiares e sociais no Brasil. A ponderação de Roger Bastide de que precisaría-
mos inventar categorias líquidas para tratar do
• Brasil - já que conceitos europeus não dão conta
dos aspectos movediços da sociedade brasileira -
Como um todo, o drama romântico brasileiro ini- não deve ficar rest ...rita a aspectos económicos
ciado na década de 1840 se estendeu por mais de ou políticos. Ela também diz respeito à cultura
quarenta anos. De vida longa e variada, debruçou- de um modo geraL Ninguém ignora que o nosso
-se sobre temas como o amor infeliz, a liberdade, romantismo teatral foi inaugurado em 183 8 com a
a escravidão, a independência do país, o poeta encenação de AntônioJoséou OPoeta ea Inquisição}
sofredor. Falou sobretudo do Brasil, imaginando paradoxalmente uma peça próxima da tragédia,
composta por Gonçalves de Nlagalhães. Escritor
de voo curto, definido como "clássico emperrado"
ao saber da verdadeira ascendência do sobrinho, comenta: "jo-
SEFA - [...] nosso bisavô materno era pardo. SALAZAR (tapando- por Sílvio Romero, era tido na conta de grande
-lhe a boca) - Psir, mulher!... JOSEFA - E foi escravo até a idade filósofo e poeta pelo imperador Pedro II, de quem
de cinco anos! [...] Era mulato e era escravo; mas a aliança com
galegos purificou a raça, de sorte que tanto você como eu somos era amigo íntimo. Por conseguinte, fazia parte da
perfeitamente brancos... temos cabelos lisos e corridos, beiços
"cidade letrada': caracterizada por Ángel Rama I 4 I
finos e testa larga. [...] como é que se explica que seu filho seja
bastante moreno, tenha beiços grossos e cabelos duros?" Em como "o anel protetor do poder e executor de suas
nenhuma outra peça a questão racial é tratada com tamanha ordens [...] para cumprir sua missão civilizadora".
sinceridade. Artur Azevedo, O Escrauocrata, em Teatro Completo,
v. II, Rio deJaneiro: MEc/lnacen, 1985, p. 207-208. Diga-se a favor de nossa bisonha tragédia que,
139 Idem, p. 204 e seguintes. assim como Portugal importou a nova escolaatravés
140 Outra ousadia dos autores. Talvez seja desnecessário dizer
que a peça foi proibida pela censura. 141 A CidadedasLetras,São Paulo: Brasiliense, 1985, P: 41 e s.

• II9
História do Teatro Brasileiro • volume 1

dos esforços de Almeida Garrett e Alexandre Her- Roberto Schwarz chamou de "aquele desconcerto
culano'<', nós lhe seguimos os passos a partir da que foi nosso ponto de partidá'14 6 , Pois nada se
fundação, em Paris, de Niterái, Revista Brasiliense afastava mais das ideologias do liberalismo europeu
de Ciências) Letras e Artes (1836) por Gonçalves que nossa sociedade escravista, que estrangulou por
de Magalhães, Araújo Porto-Alegre, Sales Torres- quase quatro séculos a vida intelectual, no limite difi-
-Homem e Pereira da Silva. A revista visava à pro- cultando o acerto do tom literário desejado pela elite.
moção dos ideais românticos entre nós, tendo como Isso não significa tornar irrelevantes os dons
epígrafe "Tudo pelo Brasil e para o Brasil". Mas a intelectuais de nossos homens de letras envolvidos
boa vontade e o desejo de modernidade de nossos no projeto de modernização, pois quando apoiados
intelectuais, esforçando-se para implementar o ro- na ideologia escravista e patriarcal, mesmo quando
mantismo no Brasil, refletiam os desajustes de ou- disso não tinham inteira consciência, compunham
tras áreas, principalmente no que dizia respeito aos páginas vigorosas. Confira-se de Gonçalves de Ma-
princípios liberais, também importados, e que não galhães a "Memória Histórica e Documentada da
podiam significar entre nós o que significou na Eu- Revolução da Província do Maranhão desde 1839
ropa, isto é, a luta da burguesia contra os privilégios até 1840"147,quando nosso poeta secretariava Caxias
da aristocracia e da realeza. É verdade que a partir na repressão à Balaiada. No texto de Magalhães, o
do século XVIII, no quadro da crise geral do colo- "oprimido': em vez de idealmente consolado pelo
nialismo mercantilista143, as contradições políticas e ''Anjo da amargurá: conforme se lê em Suspiros
culturais se aguçaram entre nós, tendo sido abalada Poéticos e Saudades, transforma-se objetivamente
a legitimidade da escravidão. Mnltiplicaram-se as em "animal". Confira-se também, de Joaquim Ma-
sociedades secretas - como a maçonaria':" -, que nuel de Macedo, o romance As Vítimas Algozes,
divulgavam teorias liberais e os "abomináveis prin- que denuncia os males da escravatura, mas que de
cípios franceses".Datam dessa época a Inconfidência modo surpreendente opõe inocentes proprietários,
Mineira (1789), a Rebelião dos Alfaiates(1798), na "incônscios opressores': ao "coração escuro" e aos
Bahia, e a associação carioca de cunho liberal em "ferozes instintos" dos escravos. Esse viés que deriva
1794, todas duramente reprimidas. A verdade é que do medo das elites a partir das rebeliões escravas-f
não tÍnhamos uma burguesia necessariamente forte não está muito longe da ideologia de O Demónio
para servir de suporte a ideias liberais'<, e as cama- Familiar, de Alencar, com sua liberdade compreen-
das senhoriais não estavam dispostas a renunciar ao dida como "punição': quem sabe parente da "maldita
latifúndio e à propriedade privada ao lutar pela.líber- liberdade" aludida por documentos da época149.
dade de comércio e pela autonomia administrativa Não deixa de ser significativo que o livro de
e judiciária. Essas circunstâncias são a base do que Macedo tenha levantado polêmica, sendo consi-
derado "sobejamente imoral para penetrar no lar
142 Segundo Luciana Stegagno Pícchío, Garrett ganhou "uma espé- doméstico'?". Tal juízo deve se apoiar não só nas
cie de bolsa de estudos no estrangeiro" com o exíliopolítico, quando cenas lúbricas do livro, mas também na noção de
então descobriu o romantismo. CE. Históriado Teatro Português,
tradução de Manuel de Lucena, Lisboa: Pormgália, 1968, P: 225.
146 As Idéias fora do Lugar, em Ao Vencedor asBatatas:Forma
143 CE. Fernando A. Novais, Aproximações, São Paulo: Cosac
Naify, 2005,
Literária eProcesso SocialnosInícios do RomanceBrasileiro, São
Paulo: Duas Cidades, 1977, P: 13-29,
144 Apesar dos aspectos paradoxais que tomou no Brasil, pois o
maçom e o anticlerical às vezes também se consideravam cató- 147 O documento de 1848 foi republicado em Novos Estudos
licos; a ameaça da maçonaria durou até o século xx. Confira-se
Cebrap, n. 23, março de 1989, com introdução de Luiz Felipe
de Alencastro, Memórias da Balaiada: Introdução ao Relato de
Baú de Ossos (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1972) em que
Gonçalves de Magalhães, p. 7-66,
Pedro Nava relata a primeira vez que em menino ouviu a palavra
greve, dita por uma tia em voz tão baixa que ele pensou tratar-se 148 Sobre esse imaginário do medo, ver Célia Maria Marinho de
de uma indecência. Mas o pior de tudo, pior que os bordéis e os Azevedo, OndaNegraMedoBranco: O NegronoImagináriodas
colégios leigos, era a maçonaria, "casa maldita", em cuja calçada ElitesnoSéculo six, Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1987. Sobre a es-
as mulheres evitavam pisar (p. 21-22). Em OsIrmãosdasAlmas, pecificidade brasileira na tensão rnecrópole-colônia no complexo
Martins Pena faz o protagonista assustar a mulher e a sogra, que processo de desatamento dos laços coloniais, veja-se Fernando A.
o tiranizavam, gritando "Sou pedreiro-livre! Satanás!': ao que as Novais, op. cit., especialmente a primeira parte.
duasviragos clamam: "Misericórdia! Jesus!" (cena XXI). 149 F.Aguiar, A Comédia Nacional..., p. 66 e s.
145 Emília Viotti da Costa, Da Monarquia aRepública: Momen- 150 Tânia Serra,Joaquim2danuel deMacedo ou OsDoisMacedos,
tosDecisivos, São Paulo: Grijalbo, 1977. Brasília: UnE, 2004, P: 155 e s.

• 120
~ o Teatro Romântico

literatura que começava a surgir entre nós, ligada livraria'P, a biblioteca pública, algumas escolas
a uma "civilização do recreio': correspondendo o superiores, o primeiro teatro "decente"I5 8 , dife-
hábito da leitura ao desejo de descanso e distra- rente das "Casas da ópera" que existiam então,
ção I5I. Nosso público romântico compunha-se de entendendo-se por "ópera" qualquer peça que
jovens principalmente das classesaltas, ou com elas intercalasse trechos falados e musicais. Macedo
relacionadas, à procura de entretenimento, e "que ainda emprega o termo com esse sentido. Deve-
não percebia muito a diferença de grau entre um mos recordar que tais repertórios híbridos exis-
Macedo e um Alencar urbano" I52. tiam também em Portugal e foram censurados
Voltando a nosso tema, a comédia no roman- pelo próprio Garrett, que ironizou o hábito de
tismo brasileiro, ele não escapa das contradições, "acomodar ao gosto português" as traduções de
pois que se duvida mesmo da existência desse gênero Metastasío, recheadas de graciososI 59.
entre nós. 'A comédia romântica, quando existe, A vinda da missão francesa em 1816 e o floresci-
banha-se na fantasia poética de Shakespeare': afirma mento de uma notável atividade musical coroaram
Décio de Almeida Prado", acrescentando que as iniciativas de desenvolvimento cultural. Apesar
nosso maior comediógrafo do período romântico, disso, as informações dos viajantes nos dão uma
Martins Pena, "sejapelo temperamento, sejapela es- ideia da precariedade dos espetáculos, secunda-
crita teatral, nada tinha de romântico': embora fosse das pelas críticas de nossa imprensa nos anos de
fiel "ao senso da cor local e ao gosto pelo pitoresco". 1830-40, desejosa de que o Brasil definitivamente
Devemos tomar essas palavras no sentido tam- acertasse o passo pelo da Europa.
bém aplicado a Debret: "tudo o que se presta a fazer A inauguração do Real Teatro de São João em
uma pintura bem caracterizada, e que impressiona e 1813, depois rebatizado ao compasso das conjun-
encanta ao mesmo tempo os olhos e o espírito"I54. turas políticas, animou a criação de aproximada-
Gruzinski acrescenta que a arte do pintor francês mente 23 casas de espetáculo em diversos pontos
era "uma arte da teatralização" e o artista um "pin- do reinado na primeira metade do século XIX. A
tor de costumes". A isso voltaremos. importância com que se revestia na época a quali-
As mudanças introduzidas na Colônia com a dade da relação teatro/política entre nós revela-seno
chegada da corte portuguesa ao Brasil significa- episódio envolvendo o "teatro do Plácido" (1823),
ram para nós uma espécie de Iluminismo, com que ousou barrar a entrada da marquesa de Santos,
o adensamento do meio cultural e a tentativa de amante favorita de D. Pedro r. Apesar de seu apreço
civilizar as povoações que às vezes não passavam pela arte cênica, o imperador comprou imediata-
de "meros presídios ou plantações': conforme as mente o teatro, destruiu as instalações com seus
descreveu Hipólito da CostaI 55 com ironia. A homens de armas, exigindo o despejo da companhia.
transferência possibilitou a vinda de estrangeiros Aliadas à descontinuidade que sempre regeu
ilustrados de vários países, a fundação da Im- nosso palco, tais circunstâncias explicam a ra-
prensa Régia e os primeiros jornais", a primeira zão pela qual o nosso romantismo teatral possui

151 Jefferson Cano, Justiniano José da Rocha: Cronista do De-


temente de censura. Portanto, além de fundador da imprensa
sengano, em Sidney Chalhoub et al. (orgs.), Históriaem Cousas
brasileira, Hlpólíro da Costa foi também o criador da imprensa
Miúdas, Campinas: Editora da Unicarnp, 2005, p. 23-65.
política em língua portuguesa.
152 Alfredo Bosi, História Concisa da LiteraturaBrasileira, São
157 S6 nos finais do século À'VIl1 começou a entrar no Brasil
Paulo: Cultríx, 1994, P: 128. algo mais que folhinhas, catecismos e gramática. "A ignorância
153 História Concisa do Teatro Brasileiro, P: 60. do povo, a sujeição da diminuta gente letrada ao jesuitismo, o
154 Littré, em Serge Gruzinsld, Rio deJaneiro CidadeMestiça: medo à Inquisição e a barreira da Censura Literária somaram-se
Ilustrações e Comentários deJeanBaptisteDebret, tradução de Rosa para obstruir o curso das letras impressas".Acrescente-se o preço
Freire d'Aguiar, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 180. do papel na época. Carlos Rizzini, Hipólitoda Costa e o Correio
a
155 Apud Viotti da Costa, Da Monarquia República, p. 37. Brasiliense. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957.
156 oprimeiro peri6dico brasileiro, Correio Braziliense (1808- 158 O teatro de Manuel Luís, apesar de reformado especialmente
1822) foi editado em Londres por Hípólíto da Costa, "o mais para a chegada da corte, foi considerado insuficiente para os
lúcido representante do espírito ilustrado no mundo luso-brasileiro novos tempos. CE Luís Carlos Martins Pena, Folhetins, Rio de
da época". CE Antonio Candido, O Romantismo no Brasil, São Janeiro: MEC/INL, 1965, nos quais esse empresário figura como
Paulo: USP-FFLCH, 2002, p. 14. A publicação foi também o símbolo da mediocridade desse teatro "do passado".
primeiro peri6dico português postO em circulação índependen- 159 D. de A. Prado, Teatro deAncbietaa Alencar, P: 70.

• 121
História do Teatro Brasileiro • volume 1

um aspecro incompleto e às vezes equivocado, à ou de traduções e adaptações de peças francesas.


semelhança do que acontecia em outros domí- Referindo-se ao final desse decênio, afirma:
nios. Nosso melodrama, entendido como drama,
equívoco comum em roda parte'?", foi "fenômeno Foi neste período que nasceu a comédia nacional de costu-
ilusório", segundo Décio de Almeida Prado, pois mes. Foi Araújo Porto-Alegre (1806-1879) quem esboçou
embora empenhado em "enriquecer a ação e re- os primeiros delineamentos de nossa comédia popular es-
chear o palco': não passou de tentativa canhestra, crevendo O Sapateiro Politicão, O TutordeParati, O Espião
"antes literária que dramática" 161. Além disso, nos- deBonaparte, A EstátuaAmazónica, O Dinheiro é Saúde,
sos melhores dramas nunca chegaram ao palco no Osjudasr",
momento aprazado, como aconteceu com Leonor
de Mendonça, de Gonçalves Dias, uma peça his- Mas na sequência do texto, Múcio da Paixão es-
tórica composta com talento, não destoando do creve que Martins Pena é "o verdadeiro criador da
gênero desenvolvido no exterior. Pouco depois, o comédia nacional': não voltando a abordar a obra
que se chamou de "realismo" também obedeceu à de Araújo Porto-Alegre, o que não deixa de ser um
lei geral do hibridismo que regia a Colônia, mis- tanto contraditório. Apesar disso, alguns historia-
turando-se a nova escola aos tons idealizados do dores do teatro brasileiro transcrevem a citação
romantismo. De um lado existiam os objetivos lite- acima em seus trabalhos, sem questioná-la. Con-
rários dos autores imbuídos do método, de outro a vém então esclarecer que, excetuada a comédia A
"impregnação social, que está um pouco em tudo': Estátua Amazónica, as demais não foram nem en-
como pondera Décio de Almeida Prado-'", o que cenadas nem publicadas e encontram-se perdidas.
faz, por exemplo, com que O DemónioFamiliar, de Com que base Múcio da Paixão fez essa afirmação
Alencar, tenha seu traço "mais entranhadamente não se sabe. Não se pode afirmar, portanto, que
nacional" nesse "dengo mais próximo do roman- as comédias de Araújo Porto-Alegre tenham, de
tismo que do realismo, deAj\1oreninha que deLa fato, apontado um caminho para a nossa comédia
Question dargent"16 3• O que mais uma vez exem- de costumes. Não há documentos que indiquem
plifica o equilíbrio em antagonismos e variações que Martins Pena as conhecia antes de começar
às vezes pitorescas de nosso perfil. Não por acaso a escrever sua obra, que eferivamente instaura um
o gênero teatral que mais floresceu entre nós foi a modelo de comédia para os seus contemporâneos e
comédia, estruturalmente apoiada na fratura, nos para os que vieram depois dele. Quanto aA Estátua
equívocos de toda ordem e na instabilidade de suas Amazónica, trata-se de uma obra escrita em I 848 e
relações de força e de sentido. publicada em 18 5I, depois que todas as comédias
de Martins Pena já haviam sido encenadas. Além
disso, nem se pode vinculá-la à tradição da comédia
Os Autores de costumes. Porto-Alegre a escreveu para satiri-
zar os viajantes franceses, depois que o conde de
Fiel às próprias origens teatrais, enraizadas nas Castelnau expôs no Louvre uma pedra encontrada
comemorações dionisíacas, a comédia brasileira na Amazônia, tida como uma estátua do tempo
nasceu sob o signo do entremez e da farsa, aqui das amazonas. Em cena, os personagens tornam-se
abundantemente encenados nos anos de I 830. "preciosos ridículos': com suas teorias absurdas, um
Um historiador do nosso teatro, Múcio da Pai- conhecimento pífio da ciência e uma linguagem
xão, arrola dezenas de títulos do repertório de vazia de conteúdo e empolada na forma. No pre-
duas companhias dramáticas, em I834 e I83 5, fácio à comédia, o autor explicou a sua motivação:
que são provavelmente de originais portugueses
A leviandade da maior parte dos viajantes franceses e a su-
160 J.R. Faria, IdéiasTeatrais, p. 27 e s. perficialidade com que encaram as coisas que encontram
161 História Concisa do Teatro Brasileiro, p. 45 e s.
162 Teatro deAnchietaa Alencar,p. 340. 164 Múcio da Paixão, O Teatro noBrasil, Rio deJaneiro: Brasília,
163 Idem, p. 34+ 193 6'P·15 8.

• 122
. o TetLtro Romântico

na nossa pátria, unidas a um desejo insaciável de levar ao Nesle (uma paródia do drama de Alexandre Dumas,
seu país novidades, têm sido a causa desses grandes depósi- A Torre de Nesle) e O Barbeiro Importuno.
tos de mentiras que se acham espalhados por muitos livros A esses autores podemos acrescentar Joaquim
daquele povo, que as mais das vezes sacrifica a verdade às Norberto de Sousa e Silva (1820-1891), historiador,
facécias do espírito e o retrato fiel dos usos e costumes de escritor prolífico que, no terreno da comédia, foi tra-
uma nação ao quadro fantástico de sua imaginação ardente, dutor do TartuJO, de Moliêre, e de vários vaudeviles
auxiliada livremente pela falta de conhecimento da língua franceses, além de ter escrito a ópera-cômicaBeatriz
e pela crença de que tudo o que não é França está na última ou OsFranceses no Rio deJaneiro. Escritores ainda
escala da humanldade'<. menos conhecidos deram sua modesta contribuição
à comédia brasileira do período romântico: João José
Porto-Alegre escreveu outra comédia nesse de Sousa e SilvaRia (1810-1886) escreveu O Calo-
período inicial do romantismo. Pelo menos assim teiro por Bailes, A Viúva da Moda e CinquentaMil
é classificada Angélica e Firmino, publicada em Cruzadospor Dote;José Rufino Rodrigues de Vas-
1845, cuja ação é carregada de lances dramáticos, concelos (1807-1893) fez representar num teatro
por força de um enredo e de personagens que não particular a comédia em três aros OsExtravagantes;
são absolutamente cômicos. Longe da comédia de em Minas Gerais, na cidade de Barbacena, o padre
costumes com recursos farsescos, o autor filiou-se Justiniano da Cunha Pereira imprimiu uma sátira às
à tradição clássica da comédia em cinco aros para instituições judiciárias e às conspirações políticas,
contar a história de amor dos dois jovens que dão o intitulada O ClubedosAnarquistas, em 1838.
título à peça. O caminho para a conquista da felici- Diante desse quadro, um tanto pobre, de escri-
dade no desfecho é árduo, mas ambos superam todos tores pouco representativos e de peças perdidas,
os obstáculos que surgem. Pena que falte fluência aos não admira que, já nos anos de 185o, os intelectuais.
diálogos e algumas falas sejam longas perorações do brasileiros se referissem apenas a Martins Pena e a
honesto Firmino em favor da pátria e dos bons senti- Joaquim Manuel de Macedo como os únicos co-
mentos. O nacionalismo típico da primeira geração mediógrafos importantes do período romântico.
dos escritores românticos se faz presente o tempo É o que se lê, por exemplo, no artigo "A Comédia
todo na sátira aos maus políticos, que disputa com Brasileira': de José de Alencar, datado de novembro
o enredo amoroso a atenção do leitor. de 1857. De fato, foram eles os mais encenados e
Infelizmente uma grande parte das comédias comentados - muitas vezes negativamente - pelos
brasileiras escritas ou encenadas nos decênios de seus contemporâneos, visão felizmente corrigida
1830 e 1840 não foi publicada e se perdeu para nos estudos que se fizeram posteriormente.
sempre. Talvez fossem bem realizadas as comédias
A Ciumenta e O Brasileiro em Lisboa, de Francisco
José Pinheiro Guimarães (18 09- 1857), intelectual Luís CarlosMartins Pena
respeitado, tradutor do Hernani, de Victor Hugo,
do Sardanapalo, de Byron, e de vários líbretos. As Tudo éparcialidade, e não sâ no mundo
comono céu, que é mais ainda!
comédias foram encenadas no Rio de Janeiro em
1843 e 1844, respectivamente, mas à semelhança Martins Pena
de Porto-Alegre o autor obedeceu à tradição clás- Martins Pena (1815-1848) foi essencialmente um
sica dos cinco ates. Luís Antônio Burgain (1812- homem de teatro. Entretanto, não descobriu a vo-
1877), mais conhecido pelos seus melodramas, cação imediatamente. Sem fortuna, órfão de pai e
também tentou o gênero cômico, fazendo repre- mãe aos dez anos, e sem acesso ao grupo de inte-
sentar o vaudevile O Remendão de Smirna ou Um lectuais ao redor da confraria do trono, foi encami-
Dia de Soberania, em 1839, e escrevendo comédias nhado para as aulas de comércio por seus tutores
como O Noivo Distraído ou Uma Cenana Torre de comerciantes. Embora tivesse terminado o curso
com brilho, não sentia atração pela profissão, e com
165 A. Porto-Alegre, Teatro Completo deAraújoPorto-Alegre II,
p. 1 2 4· certeza ajudado pela irmã, que se casara com um

12
• 3
História do Teatro Brasileiro • volume1

alto funcionário da alfândega, passou a estudar na Biblioteca Nacional't'') interessa particularmente


Academia de Belas Artes, que ainda contava com "A Sorte Grande': pois aí já o surpreendemos ca-
alguns professores franceses da missão cultural. sando imaginação e nonsense com a importância da
Com eles, Martins Pena adquiriu conhecimentos riqueza, que uma vez conseguida transforma um
de pintura, estatuária e arquitetura. Também es- pobre-diabo delirante em homem considerado. Al-
tudou música e canto, por conta do bom ouvido guns anos depois, o notável desfecho de OsCiúmes
e de sua admirada voz de tenor 166• Enquanto isso, deum Pedestre também apoia uma de suas soluções
também estudava literatura e inglês, francês e ita- no delírio do protagonista, agora por conta de uma
liano, línguas que chegou a falar fluentemente, fortuna perdida.
segundo dizem. O ano de 183 8 foi fundamental não só para o
Essa formação variada e não ortodoxa certa- teatro brasileiro, mas também para nosso autor, que
mente facilitou-lhe o desenvolvimento do goSto pouco depois da estreia de AntônioJosé teve sua pri-
artístico, aguçando o ouvido e o olhar de observa- meira comédia, OJuiz dePazdaRoça, levada à cena,
dor, qualidades imprescindíveis a quem alimente embora sem menção de autoria, talvezpelo temor de
pretensões teatrais. "Bons olhos e bons ouvidos - dificultar, com isso,a conquista do emprego público:
ouvido do crítico de música que ele foi -, eis realmente foi nessa época que conseguiu o cargo de
certamente o que não faltava a Martins Pena" 167. amanuense com a ajuda do cunhado poderoso, fa-
Acrescente-se o momento politicamente pertur- zendo carreira no setor. Quando morreu, a caminho
bado em que viveu, que deve ter contribuído para do Brasil, era nosso diplomata em Londres, e estava
o amadurecimento da sensibilidade social, atento prestes a. iniciar uma nova etapa. Quem sabe escrever
aos movimentos revolucionários da época 168• Sua a ópera côrnica brasileira que nos prometeu nos Fo-
estreia na literatura, com o conto-crónica "Um lhetins? 'Aonde ele iria depois desseimpulso, jamais
Episódio de 183 1" 169 , publicado em 1838 no saberemos': pondera Décio de Almeida Prado'?'.
Gabinete de Leitura) já é revel~dor desse interesse, Mas, nesses inícios, talvez o desejo de seguir
pois é na cena social que se concentra sua atenção, a moda, alçando-se a um gênero maior, o tenha
descrevendo os ates de selvageria que se seguiram levado a experimentar o drama - na verdade, o
à abdicação de D. Pedro r. Com 16 anos na época, melodrama, como se viu no capítulo "A Tragédia
deve ter assistido a cenas semelhantes e ouvido e o Melodrama"
comentários inflamados sobre os acontecimentos. Se às vezes as comédias de Pena são avaliadas
Entre os textos divertidos que escreveu para como ingênuas, negligentes com relação à lingua-
o Correio de Modas (há também notícias de um gem 17 2 e ideologicamente isentas ("a verdade aqui,
romance histórico e de uma novela inacabada para não provocar indignação, carece de ser auxi-
que, apesar da menção, não foram encontrados na liada provocando bom frouxo de riso", diz ele nos
Folhetins), por outro lado encontramos observa-
ções como a de Ruggero Jacobbi: "'~al o autor ou
166 De julho a setembro de 1847 O Mercantil moveu uma vio-
lenta campanha contra Pena, coincidindo as datas com a defesa autores mais importantes da literatura dramática
insistente da greve dos coristas assumida pelo escritor, então brasileira?' Tive que responder: 'Gonçalves Dias e
folhetinista do Jornal do Comércio. Através dessa campanha
sabemos que nosso autor compusera uma ária a ser inserida em Martins Pena'''I73 e a de Sílvio Romero:
Gemma di Vàgy, "além de modificações outras", e que cantava
junto aos uirtuoses "do público salão", em salas particulares.
167 D. de A. Prado, HistóriaConcisa do Teatro Brasileiro (1570- 170 Raimundo de Menezes, Dicionário LiterárioBrasileiro Ilus-
19 08), p. 59· trado,v. IV,São Paulo: Saraiva, 1969.
168 A respeito da grevedos coristas,Pena se refereduas vezes à morte 171 História Concisa do Teatro Brasileiro, p. 6 r.
"do grande reformador e agitador O'Connell, cujos passos (os co- 172 Pena estava atento à prosódia brasileira: muitos de seus textos
ristas) queriam seguir': O irlandês Daniel O 'Connell (1775-1847) são emendadíssimos e com várias versões. Apesar disso foi mais
dedicou-se no parlamento inglês a melhorar a situação da Irlanda, representado por ateres portugueses, o que significa mais um
fazendo votar a Carra de Emancipação. Com seu desaparecimento, desajuste de nossa cena, e isso foi anotado por folhecinísras da
conclui Pena, "oscoristas caíram em prostração e desafinaram como época. CE D. de A. Prado,Joáo Caetano: O Ator, O Empresário,
hereges. É mais uma emancipação abortada!" Folhetins, P:297, 329. O Repertório, São Paulo: Perspectiva, 1972, P: 123-124).
169 Barbosa Lima Sobrinho, OsPrecursores, Rio deJaneiro: Ci- 173 Crítica da Razáo Teatral, org. Alessandra Vannucci, São
vilização Brasileira, 1960, p. 23 I e s. Paulo: Perspectiva, 2005, p. 164.

12
• 4
• o Teatro Romântico

Se se perdessem todas as leis, escritos, memórias da história


brasileira dos primeiros cinquenta anos deste século XIX,
que está a findar, e nos ficassem somente as comédias de
Pena, era possível reconstruir por elas a fisionomia moral
de toda essa época'>'.

Não há como discordar. Aí estão, desdobrados em


vários momentos, nossos vícios maiores: a política
do favor como mola social, a corrupção em todos os
níveis, a precariedade e atraso do aparelho judicial, a
exploração exercida por estrangeiros e a má assimi-
lação da cultura europeia importada, que o inspirou
a escrever irônicas paródias da ópera, como O Dile-
tante, ou dos melodramas levados à cena por João
Caetano. Acrescentem-sea esserolo contrabando de
escravos,os mecanismos da contravenção, a servidão
por dívida, comportamentos sexuais e familiares etc.
Esses e outros aspectos que percorriam a sociedade
brasileira de alto a baixo são exibidos no palco.
Segundo Paula Beiguelman'?', a comédia de Pena I
se baseia principalmente na quebra de autoridade,
ocasionada pelos efeitos desintegradores da urbani-
I
~r
zação. Acrescente-se, entretanto, que algumas falas o atar]orge Fischer ]r., no papel de Gainer, em
e desfechos podem ser considerados morais, mas montagem de OsDoisou oInglês Maquinista, de Martins
não muito, como em Os Irmãos das Almas, quando Pena, pela Escola de Arte Dramática (EAD), em 1954-
Paulino abençoa os recém-casados na última cena
com as palavras: "Sejam felizes se o puderem"; ou mente censurada pela Câmara dos Deputados?",
como em O Namorador ou A Noite de S.João) que porque, a certa altura, "aparece em cena um con-
ao conselho bem-humorado de que os velhos devem trabandista de africanos trazendo um debaixo de
deixar os namoros para os jovens, juntam-se infor- um cesto". Trata-se da cena 13, quando Negreiro
mações menos inocentes: o desejo de adultério e a entra na sala acompanhado de um velho pretO de
manipulação dos inferiores, embora fosse voz geral ganho com um cesto na cabeça, "coberto com um
que o pouco recomendável em questão de morali- cobertor de baeta encarnada":
dade era o escravo; completa o quadro a dominação
da mulher e o contraponto contínuo dos africanos a NEGREIRO - Boas-noites.

trabalharem calados, enquanto os outros se divertem CLEMÊNCIA - Oh, pois voltou? O que traz com este preto?
na noite de SãoJoão. Não surpreende que a censura NEGREIRO - Um presente que lhe ofereço.

estivesse sempre atenta a essaspeças. CLEMÊNCIA - Vejamos o que é.

É o caso de Os Dois ou O Inglês Maquinista't", NEGREIRO - Urna insignificância... Arreia, pai!1 7 8 (Ne-

comédia que estreou em 1845, sendo imediata- greiro ajuda o preto a botar o cesto no chão. Clemência,
Mariquinha chegam-se para junto do cesto, de modo
174 História da Literatura Brasileira, 5. ed., tomo IV, Rio de
porém que este fica à vista dos espectadores.)
Janeiro: José Olympio, 1953, p. 1.477.
175 AnáliseLiteráriaeInvestigação Sociológica, em Vtagem Sentimen-
tal a D. Guidinha doPoço, São Paulo: Centro Universitário,1966.
Confira-se também, de MarlyseMeyer,O Inglêsnas Comédias de traficante de escravos,atividade proibida naquela data, e um in-
Martins Pena, em Pirineus, Calçaras....: da Commedia deli'Arteao glêsmanipulador dos cordéis económicos ("maquinista" :::: o que
Bumba-meu-boi, 2.. ed, Campinas: Editora daUnícamp,199I, P:9 5es. controlava os cenários teatrais).
176 O título, além de parodiar jocosamente os títulos duplos de 177 Ata da Assembleia Geral Legislativa,p. 864.
dramas e melodramas,alude aos doisvilõesda peça: um português 178 Tratamento dado a escravovelho.

12
• 5
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Cena da montagem de OsDoisouoInglês Maquinista, de Martins Pena,


pela Escola de Arte Dramática (EAD), em I9 54-

CLEMÊNCIA - Descubra. (Negreiro descobre o cesto e dele transforma em vilões figuras respeitadas na socie-
levanta-se um moleque de tanga e carapuça encarnada, dade. O inglês, não por acaso denominado Gainer,
o qual fica em pé dentro do cesto.) Ó gentes! [...] bem poderia exclamar como seu conterrâneo em
NEGREIRO - Então, hem? (para o moleque) Querida! As Casadas Solteiras: "Brasil é bom para ganhar di-
Querida! (puxa o moleque para fora). nheiro e ter mulher... Os lucros... cento por cento ...
CLEMÊNCIA - Como é bonitinho! É belo"!".
NEGREIRO - Ah, ah! Mais adiante, na mesma peça, a protagonista,
CLEMÊNCIA - Por que o trouxe no cesto? ironicamente chamada Clemência, interrompe a
NEGREIRO - Por causa dos malsins ... conversinha social para ir lá dentro chicotear as
CLEMÊNCIA - Boa lembrança. (examinando o moleque): "negras", a propósito de louças efetivamente que-
Está gordinho... bons dentes... bradas pelo cão. Na volta, ruborizada e ajeitando o
NEGREIRO (à parte, para Clemência) - É dos desembarca- lenço ao redor do pescoço, comenta que não gos-
dos ontem no Botafogo'79. tava de "dar pancada". À semelhança de muitas ou-
tras comédias, assistimos aqui ao jogo das palavras
Não podemos nos esquecer de que a questão do desmentindo a realidade da cena e das personagens.
tráfico negreiro era a mais espinhosa do momento. Estas estão por demais mergulhadas no contexto
De forma provocativa, Martins Pena não só exibe escravista para entenderem a incompatibilidade
todo o trâmite da contravenção, que envolvia depu- entre o que dizem e o que fazem, movimento que
tados, desembargadores e ministros, como também constrói a ironia dramática da peça.

179 Martins Pena, Comédias (1833-1844), São Paulo: WMF 180 Idem, Comédias (1844-1845), São Paulo: WMF Martins
Martins Fomes, 2007, p. 188-190. Fomes, 2007, p. 406.

• I26
• o Teatro Romântico

Concentrada embora na corte, o teatro de Pena Em O Namorador ouA Noite de S. João surgem
faz alusão à maioria das regiões brasileiras, mas tam- colonos emigrantes da Madeira, submissos à servi-
bém a outras terras, em especial Portugal, França dão por dívida, mourejando durante todo o tempo,
(denúncia da cultura mal assimilada), Itália (a mania identificados aos escravos que têm a obrigação de
da ópera) e Inglaterra (a exploração econômica). Isso vigiar, sem possibilidade de juntar vinténs para a
serve ao comediógrafo para a defesa dos interesses sua libertação. Já em Desgraças deuma Criança, que
nacionais. Por exemplo, um derrotado artesão brasi- se passa numa noite de Natal, somos apresentados a
leiro (Francisco, em O Caixeiro da Taverna) explica uma ama de leite branca que perdera o filho, e que
as razões de seu fracasso pela presença, no Império, se aluga a patroas que "embirram com amas negras':
de alfaiates e cabeleireiros franceses, dentistas ame- ficando ao alcance do velho libidinoso da casa.
ricanos, maquinistas ingleses e relojoeiros suíços. Não é raro Martins Pena ser comparado a De-
Só restava aos nacionais arranjarem um emprego bret na pintura dos costumes do Brasil, e é bom que
público, se por acaso tivessem algum conhecido in- nos lembremos quevários membros do Instituto
fluente.1vIas às vezes nem mesmo isso bastava: "Há Histórico e Geográfico Brasileiro (1HGB) reagi-
coisa de 12 para 14 anos, eu era empregado público; ram mal a alguns aspectos abordados pelo pintor
Demitiram-me porque diziam que eu roubava a francês na Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil
nação. Qual roubava! A nação é que me roubava, "pela referência direta à escravidão com cenas, por
pagando-me menos do que eu merecia" (variante exemplo, de castigos a escravos'"!'. Eis aí o nó da
de OsIrmãosdasAlmas). questão. A aparente despretensão dos trabalhos dos
Entre as personagens encontramos funcionários dois artistas, até pelas dimensões e o meio que esco-'
públicos e toda uma gama de empregados de repar- lheram - pequenas aquarelas e minúsculas comé-
tições, representantes da elaboração lenta e difícil de dias ou farsas I 83 - revelam um olhar independente
uma camada social intermediária no Brasil. A eles sobre a sociedade brasileira, sem a idealização da
acrescentam-se caixeiros, classepoliticamente avan- elite. Era impossível a um observador atento apro-
çada na época ("insolentes': diz Macedo em Luxo e ximar as cidades de Paris e Rio deJaneiro, esta com
Vaidade), sacristãos, soldados, artesãos, floristas e as ruas percorridas por enxames de africanos, com
costureiras, essasúltimas tidas como profissões pros- escarificações no rosto, trabalhando e cantando
tituídas de moças pobres. Em O Caixeiro da Taverna, para ritmar o esforço. "O escravo estava por toda
Angélica afuma, muito ironicamente, que Deolinda, parte. A primeira coisa que ocorria a alguém que
costureira, "cosepara fora com muita honestidade": melhorava de vida, até mesmo a um ex-escravo
agora liberto, era adquirir um escravo"I 84.
ANGÉLICA - Ah, a senhora é asra. Deolinda, que cose para Comentando a própria aquarela intitulada
fora e com muita honestidade? "Carros e móveis prontos para ser embarcados",
DEOLINDA - Uma sua criada. Debret se espanta ao encontrar escravos carre-
ANGÉLICA - E que vem em pessoa tomar medida aos fre- gando na cabeça fardos pesados "neste século das
gueses ... em suas próprias casas... e tudo com muita Luzes". Entende depois o motivo da resistência
honestidade ?'8' .da população a outro tipo de transporte: grandes
ou pequenos proprietários de escravos, mesmo "a
Em Os Irmãos das Almas, cuja sonoplastia re- classe mais numerosa, a do pequeno rentista e da
comendada pelo autor é o lúgubre dobrar de sinos
durante toda a ação, Jorge recorda com a irmã mo- 182 Márcia Regina Capelari Naxara, Cientificismo eSensibilidade
Romântica:Em Buscade um SentidoExplicativopara oBrasilno
mentos de aperto financeiro, quando ela foi apren- Século XIX, Brasília: UnB, 2004, P: I I r.
der a fazer flores com uma francesa, com quem ele 183 Costuma-se apomar O Noviço como a obra-prima de Pena,
acabara brigando, "porque isso de fazer floresparece- talvez porque contenha três aros e cornumente se associe valor
a tamanho. Mas trata-se de um equívoco, porque nela o come-
-me assim... ofício muito leve" (variante da cena 3). diógrafo apenas multiplica por três a estrutura da peça de um só
aro, na qual era virtuose.
184 Alberro da Costa e Silva, Castro Alves, São Paulo: Compa-
181 Idem, p. 298. nhia das Letras, 2006, p. 23.

12
• 7
História do Teatro Brasileiro + volume 1

Cena de A Família ea Festa da Roça, na montagem de Alfredo Mesquita


para a Escola de Arte Dramática (EAD), em 1954.

viúva indigente", teriam prejuízo ou perderiam o que marca não só o afastamento do padrão francês,
meio de subsistência com a modernizaçâc'J'. mas uma percepção inteligente de nossa sociedade.
Diante disso, só restava aos artistas inventar Martins Pena, por sua vez, apesar das tentativas
uma solução formal adequada às circunstâncias. de voos altos - tropeço também de seus contempo-
Num ensaio inaugural, Rodrigo Naves':" mostra râneos - acerta na forma miúda'V, vivíssima, a todo
que este foi o maior mérito de Debret. Vindo do momento posta à prova no palco. Seus Folhetinsva-
ateliê do neoclássico David, percebeu a diferença lem também como um exemplo de sua formação,
do meio e inteligentemente procurou adequar-se a com minuciosa descrição da dramaturgia da época
ele. Se as obras realizadas na França tinham "uma através da encenação das óperas. Se lhe são familia-
forma ostensivamente forte", Debret "deriva para res as convenções teatrais e a tradição francesa I 88,
trabalhos acanhados e modestos". O mérito não foi vira-se também para a prata da casa: aproveita-se
só a substituição do óleo pela aquarela, mas a pró-
187 Observando as crónicas de Martins Pena, Flora Süssekind se
pria realização desta, com linhas flutuantes, dispo- refere aos "minúsculos roteiros das barcas a vapor e dos ônibus"
sições inesperadas e contornos pouco definidos - o que não despertaram maior interesse numa época ocupada com
os grandes mapas do território nacional ou com "a demarcação
de um 'Brasil-picoresco", Cf. O BrasilNão é Longe Daqui} São
185 Cf. Rio defaneiro CidadeMestiça: Ilustrações e Comentários Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 226.
dejean-Baptiste Debret, P: 64-65. 188 Se compararmos Os Três Médicos, de Martins Pena, Le Ma-
186 A FormaDifícil, São Paulo: Ática, 1996, p. 41-13°. riageflrc~ de Molíere e O Esganarelo ou O Casamento porForça,

• 128
• o Teatro Romântico

dos teatrinhos de feira, nos quais era comum, como uma comédia de amor, a que ele nunca se dedicou.
no resto do mundo, populares se misturarem a in- O autor parece mais interessado em aprofundar
telectuais, além do circo de cavalinhos, a cujo en- uma dialética amorosa, observada em suas diferen-
cantamento se refere já em O Juiz de Paz da Roça; tes fases, o que é quase impossível de se executar,
menciona ainda os teatros mecanizadosv" que, como ele o faz, numa comédia de um só ato. Nela
infelizmente, só conhecemos pelos anúncios nos há relações envolvendo sexo e amor entre diferentes
periódicos da corte e das províncias, tanto devia ser níveis da sociedade: entre jovens da mesma condição
o seu sucesso. Ao alcance de Pena estavam também económica, outros mais pobres, entre velhos casados
as representações de rua, extremamente engenhosas, e ricos, entre serviçais, entre patrão (moço ou velho)
conforme as descreve Thomas Ewbank'?", com ani- com empregadas, entre moço rico e vários tipos de
mais ensinados, fogos e figuras "de papel colorido mulher: velha, moça, bonita, feia, branca, cabocla,
sustentadas por delicadas armações" executando escrava. Observe-se o diálogo abaixo, cena 15, ver-
piruetas no alto de mastros, bufões "irresistíveis" e sando sobre o tempo e o amor:
até mesmo números da Commedia dell'Arte, como a
menção que faz aPuncheJuddf9 I , uma das referên- Luís - Mas há já três meses que ela me ama!
cias de As Desgraças deuma Criança'>. Não se pode CLEMENTINA - Boa razão! Não a ama porque ela ainda
também esquecer a proliferação, a partir da década o ama. É isto ?
de 1840, das caricaturas e dos desenhos cómicos, Luís - Pois priminha, há três meses que ela me ama, e isto
de saída inspirados na Lanterna J.Vfágica) Periódico já é teima, e eu não me caso com mulher teimosa, isso
Plástico-Filosófico) de Araújo Porto-Alegre. nem pelo diabo'93.
Surpreendemos esse contexto colorido e frag-
mentado nas minúsculas comédias de Pena, tecidas A segunda linha explorada é a da farsa rústica
com fios de qualidades diferentes. Na primeira peça, portuguesa, representada pelos ilhéus submetidos à
ainda treinando a mão, encontramos o entremez ar- servidão por dívida. Pena também inova aqui, pois
ticulado a uma estrutura de comédia clássica, mas as características dessa farsa (rusticidade de perso-
o resultado ainda é indeciso e muito preso ao do- nagens, palavras chulas e pancadaria) misturam-se
cumento. Mais tarde, em 1844, em O Namorador à patética revolta do ilhéu em relação à exploração
ou A Noite de S. João) um de seus trabalhos mais de seu trabalho.
bem urdidos e mais inovadores, Pena conjuga três
fios. O primeiro é o do enredo amoroso próprio MANUEL - [...] Oh! Quem pudera viver sem trabalhar!
da comédia de costumes, embora não se trate de Cresce-me água à boca quando vejo um rico. São os
felizes, que cá o homem anda de canga ao pescoço'z-.

entrernez que corria volante na época, perceberemos sem dificul-


dade que Pena inspirou-se díreramente no dramaturgo francês. Por fim, temos alinha da farsa propriamente dita,
189 Confira-seo seguinteanúnciopublicado noJornaLdoComércio, levada a cabo por um velho em suas investidas se-
em 28 de março de 1838: "Vende-seum maravilhoso teatro pito-
resco e mecânico, composto de grandes vistas mecânicas e meta- xuais em relação à ilhoa, que tem mais dois interessa-
morfoses - arranjado pelos melhores artistas de Paris,aumentado dos: o marido e Luís, sobrinho do velho, compondo
e aperfeiçoado por um curioso e amante das belas-artes".Entre
outros recursos, o tearrinho possuía cinco dúzias de autómatos, todos uma ciranda cómica no melhor estilo.
sendo os pontos de perspectiva "de tal modo graduados", que Como ponto de convergência desses três fios há a
figuras de dois pés de altura pareciam naturais. O anunciante
afirma que esperará quinze dias por algum retorno, "findos eles fogueira de SãoJoão, metaforizada no "fogo do amor':
se desarmará tudo para se lhe dar outro destino". tendo ao mesmo tempo valor funcional e utilitário,
190 Vida no Brasil, tradução de Jamil.Almansur Haddad, São
Paulo/Belo Horizonte: Edusp/Iratiaia, 1976.
pois à sua luz desmascara-se o velho amoroso.
191 "Punch", como se sabe é o "Polichinelo" da Commedia. A Se olharmos a produção de Pena como um
versão inglesaintitula-se TbeTragical Comedy, orComical Tingedy' todo, perceberemos que a comédia que marca o
ofPunch and]udy. Foi publicada a primeira vez pela George
Roudedge & Sons, em 1860, e republicada pela mesma editora ponto de inflexão da obra é OsDois ou O Inglês
em 1980.
192 Vilma Arêas, Na Tapemde Santa Cruz, São Paulo: Martins 193 Martins Pena, Comédias (r 844-1 845), p. )0.
Fontes, 1987, especialmente o 12 capítulo. 194 Idem, P: 22.

12
• 9
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Maquinista, que esboça em vários momentos uma recheiam o teatro de intenções moralizantes, o que
comédia de meios-tons, refinada, que poderia ser facilitava a identificação com o nacional buscada
um caminho desenvolvido por Martins Pena, se por todos, Martins Pena deu o seu recado através
assim o desejasse. Observe-se a leveza do diálogo do próprio jogo de relações que a cena estabelece.
na cena 10, que funciona pelo que não diz, e que Retrato em três por quatro, mesquinho e me-
é absolutamente impensável no teatro da época: lancólico, muitas vezes tosco ou constrangedor?
Claro, mas as limitações eram do contexto, não
MARIQQINHA - ... Primo? dos recursos utilizados. "E se nós não estamos bem
FELÍCro - Priminha? constituídos, a culpa não é minha [...] E passo para
MARIQQINHA - Aquilo? a oposição!" - diz uma personagem de OJudas em
FELÍCro - Vai bem. Sábado de Aleluia. Nessa peça também lemos que
CECÍLIA - O que é? no Brasil "um cidadão é livre... enquanto não o
MARIQQINHA - Uma coisa l 9 S• prendem': afirmação particularizada em O Nouiço.
"as leis criminais fizeram-se para os pobres". Esse
o
Judas em Sábado de Aleluia (1844)) obra- abalo do país "livre e ilustrado" apoia-se também
-prima de apenas 12 cenas, já mostra um teatrólogo nas minuciosas rubricas que o autor nos deixou,
absolutamente dono das técnicas e consciente do em manuscritos com incontáveis variantes, que
caminho escolhido (por essa época, Martins Pena o aproximam do papel do moderno encenador,
desiste dos dramas a que tão equivocadamente se profissão inexistente na época. Frequentemente,
dedicara). Agora a comédia está ajustada a princí- exige "inteligência cênica" dos ateres, palavras
pios teatrais, e a preparação das cenas faz-se com sempre utilizadas para a compreensão da sutileza
minúcia, resultando num desfecho absolutamente dos papéis, sua interpretação, marcação cênica etc.
amarrado, com o protagonista dirigindo-se ao pú- É importante sublinhar que, ao colocar dessa
blico à maneira clássica':". forma o escravo em suas peças, definidas como "mi-
No entanto, a verdadeira invenção formal de crocosmo cênico dotado de notável pugnacidade" 1 99,
Pena foi introduzir na simetria da tradição cô- Pena rejeitou a tradição de identificá-lo ao simples
mica (velhos versus jovens, serviçais versus amos, palhaço"'",com seus lances de finura e imbecilidade,
nacionais versus estrangeiros etc.) uma assimetria mero gracioso rodeado de tiradas morais, exemplo
básica: a presença dos escravos, que se deslocam no seguido por Alencar em O Demónio Familiar, ape-
palco sem correspondência de pares'?". Sem voz e sar das expressivas qualidades cênicas da peça. Em
sem razão, trabalham sem descanso, chicoteados, Martins Pena, o escravoestá à margem da convenção
empurrados, enganados, sugerindo uma outra his- cristalizada e à margem da sociedade, embora seja o
tória recalcada pela trama colorida e veloz que gira único visto a trabalhar em cena. Como se nas mar-
diante dos olhos do espectador. chas e contramarchas da comédia fosse introduzido
Se concordamos com Sábato 1'lagaldF9 8, se- um elemento retardador, silencioso, que impressiona
gundo o qual a comédia de Martins Pena pode ser por também aludir à tensão de classes da época.
considerada "uma escola de ética': antecipando o "O bom negro no Brasil" - afirma Décio de
que se chamou de "alta comédia realista': podemos Almeida Prad0 2 0 1 analisando Mãe, de Alencar -
acrescentar que entre esta e a obra de Pena há uma "é aquele que desaparece de imediato, quando sua
diferença básica: em vez dos discursos estilosos que presença incomoda a memória familiar".
Com o silêncio, talvez Martins Pena sugira não
195 Martins Pena, Comédias (1833-1844), p. 176-177. haver palavras para descrever tal ignomínia.
196 Bárbara Heliodora, A Evolução de Martins Pena, Dionysos,
Rio deJaneiro: MEC/INL, n. Ia, 1966. 199 D. de A. Prado, Historia Concisa do Teatro Brasileiro, p. 59.
197 V. Arêas, No Espelho do Palco, em Roberto Schwartz (org.) 200 Na página 2.97dos Folhetins encontramos a distinção entre
OsPobres na LiteraturaBrasileira, São Paulo: Brasiliense, 1983, o buffonobile (fidalgo ridículo e côrníco) e o palhaço, momento
p.2.6-3 0 . em que o folhetinista se aproveita para criticar os exageros e a
198 Panorama do Teatro Brasileiro, ssrr/nac/Punarre/xrzc, falta de entendimento dos papéis por parte dos ateres.
2..ed., [s.d.], p. 58. 201 Histâria Concisa do Teatro Brasileiro, P: 85.

• 13 0
• o Teatro Romântico

Joaquim Manuel de Macedo a ausência do marido, e em O lvIacaco do Vizinho o


adultério é apenas uma possibilidade.
...semserpadre) gosto depregarosmeus Assim vemos que as fronteiras da comédia de
sermões.
Macedo podem estar entre as de Martins Pena e as
J.M. de Macedo
comédias de José de Alencar. Mas colocar os dois
Macedo (1820-1882) foi médico e literato como primeiros lado a lado, como se faz aqui, torna clara
Gonçalves de Magalhães, falecidos ambos, aliás, a diferença entre ambos. A distância diz também
no mesmo ano. Ambos faziam parte da "cidade respeito aos círculos que frequentaram, segundo
letrada" de D. Pedro II, de cujas filhas o autor de a proximidade ou distância do poder político, se-
O Novo Otelo foi preceptor. Até o final da vida, gundo a vida privadar" e o empenho em relação
Macedo lecionou no prestigioso Imperial Colégio ao palco.
Pedro II, tendo ingressado aos 25 anos no Insti- Apenas cinco anos mais novo que Martins Pena,
tuto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em nosso autor sobreviveu a este em 34 anos, tempo
1838 "sob a imediata proteção de Sua Majestade', e que ultrapassa os 33 vividos pelo autor de Quem
considerado a síntese da elite intelectual e política Casa Q!terCasa. No entanto, à variação e desenvol-
do Império. Além disso, ocupou cargos políticos, vimento da obra de Pena em direção à conquista da
foi comendador da Ordem da Rosa e da Ordem de técnica teatral corresponde o molde mais ou me-
Cristo e escreveu crónicas na imprensa. nos invariável dos textos de Macedo, sejam ficção,
O ano de 1844 foi crucialpara nosso autor, menos crónica ou teatro, o que permite com frequência
pela tese de medicina defendida e intitulada signifi- uma forma escorregar para outra: teatralização de
cativamente "Considerações sobre a Nostalgia" do romances (A Moreninha), ficção atravessando as
que pela publicação deAMoreninha. Uma das obras crónicas e virando teatro no final (Romance de uma
mais lidas na época, elainaugurou nosso romance de Velha). Não se trata de moldar uma estrutura fic-
costumes sem prejuízo dos lances folhetinescos então cional para as crónicas, recurso usado por Martins
indispensáveis, sendo transformada imediatamente Pena nos Folhetins, mas de emparelhar uma forma
em peça teatral. Em 1849, com Porto-Alegre e Gon- com a outra, perfeitamente nítidas as duas.
çalves Dias, Macedo fundou a revista Guanabara, Adiantamos que a chave dessa volubilidade
sucessora daNiterói nos postulados e ideais. apoia-se formalmente no que o próprio Macedo
Tendo passado "sem muita convição ou força"2.02. chamou de trocadilho, largamente usado por ele,
por todos os gêneros teatrais disponíveis no mo- menos no sentido do jogo interno de palavras (pa-
mento, Macedo seachavamais à vontade na comédia, recidas no som e diferentes no significado) do que
que abarcava outros gêneros, fossem "inspirados no na equivalência entre frases ou sintagmas diversos,
francês" (O Primoda Califórnia), fossemas chamadas na maioria das vezes arbitrária e referente a coisas
"óperas" (O Fantasma Branco), a comédia burlesca (A incompatÍveis. Analogia seria o termo mais ade-
Torre em Concurso), fosseo drama realista (Lusbela), a quado. Esse tipo de composição acaba por ajudar
comédia realista (Luxo e Jiáidade, Cincinato Quebra- o ritmo digressivo do autor. Às vezes são meras
-Louça) ou O vaudevile (O Macaco do Vizinho2.0 3) , no transposições, comuns na retórica do melodrama,
qual, à semelhança de Martins Pena ( Os Ciúmesde o "mundo" e o "abismo", por exemplo, mas com
umPedestre), descobria-se que a mulher podia enga- esse volteio jocoso tudo se torna vagamente inter-
nar também o marido e não somente o pai, perigo já cambiável, pouco diferencíável, raso. É comum o
apontado pelo Otelo shakespeariano no século XVI. A recurso alongar as frases, tornando o texto meio
diferença é que na peça de Pena a mulher realmente se
envolve com outro, que penetra em sua casa durante 204 Macedo casou-se com Carolina (confessadamente inspiradora
deA lvloreniniJa) após vencer 10 anos de oposição do futuro sogro,
homem de posses e foros de nobreza, descendente de Fernão de
202 D. de A. Prado, Historia Concisa do Teatro Brasileiro, p. I I 8 Magalhães e tio de Álvares de Azevedo. Martins Pena jamais se
e S., onde encontramos a melhor análise do teatro de Macedo. casou, embora tivesseuma filha com uma atriz. Ao que tudo indica
203Em "Colerânea Teatral': da Revistada SBAT, Caderno n. 59, assumiu a responsabilidade da menina, pois quando partiu para a
apud idem, p. 123. Inglaterra deixou-a aos cuidados da irmã e do cunhado.

• 13 1
História do Teatro Brasileiro • volume 1

frouxo. Como neste exemplo colhido no Labirinto Nada mais sincero e mais verdadeiro, apesar
de 20 de maio de r860, em que "artigos jornalísti- da pretendida seriedade dos conselhos e sermões
cos" e "governos" são equiparados: que recheiam a obra, causando desequilíbrio no
conjunto. Vejamos um pequeno trecho de Luxo e
Começar um artigo não é empresa assim tão fácil; é como Vaidade, considerada muitas vezes sua obra-prima:
o começar o seu governo para ministros novos [...]. E as
mais das vezes começa-se [síc] os artigos, e também o go- ANASTÁCIO - Aqueles que negam a primazia à virtude são
verno, do mesmo modo como estamos começando este: uns miseráveis.Já se foi o tempo em que um sandeu va-
um dilúvio de palavras, um labirinto de ideias, um dia que lia mais do que um sábio; um depravado mais do que
se assemelha à noite; e quem quiser que nos enrendav". o homem honesto, quando o homem sábio ou honesto
era filho de um sapateiro, e o acaso dera ao depravado
Em O Novo Otelo, a suposta versatilidade tea- meia dúzia de avós,falsa ou realmente ilustres. Não temos
tral, isto é, a possibilidade de um ator desempenhar senão uma nobreza, a nobreza da constituição, que é a
vários papéis, é definida em termos de acumulação do merecimento e das virtudes. Já não se reconhece [sic]
de empregos: privilégios,graças a Deus, e as portas das grandezas sociais
estão abertas a todos os que sabem merecê-las: nobre é o
ANTÔNIO - Então eu sou tanta coisa ao mesmo tempo? estadista que se consagra aos serviços da pátria; nobre é o
CALISTO - Não faz mal: está no sistema de acumulações diplomata que sustenta no gabinete a causa do país; nobre
de ernpregos-". é o soldado que a defende no campo de batalha; nobre é
o sábio, nobres são todos aqueles que ilustram e honram
EmA Torreem Concurso) a divisãopolítica entre a nação, e nobre é principalmente a virtude, a virtude que
conservadores e liberais é equiparada à rivalidade é a sublime benemérita aos olhos do Senhor!...
entre dois falsos engenheiros seguidos de seus LEONINA - Oh! E como há então pessoas que olham com
admiradores. Um deles se veste de vermelho, o desprezo para um artista? (comviveza) O artista não
outro de amarelo, formando dois partidos rivais, pode também chegar a ser nobre, meu padrinho ?208
mas absolutamente idênticos, o que gera as alusões
políticas e as brincadeiras cênicas de praxe. O terna Ternos de convir, saltando as ilusões políticas
foi também admiravelmente desenvolvido por Ma- e convicções pessoais, além do tópico da nobreza
chado de Assis em Esaú eJacó, conforme observa do artista, que o peso dessa fala atravanca e rompe
Márcio Jabur Yimes':", em seu excelente prefácio à qualquer equilíbrio possível numa comédia de en-
obra dramática de Macedo. trecho convencional: livrar uma mocinha de um
~er nos parecer que a epígrafe introdutória casamento, com um velho rico, que visa salvar os
da primeira edição deA Moreninha, pela Garnier, pais da bancarrota. Acrescente-se aqui a qualidade
retirada de um poema de Gresset, ilumina toda a do universo fortemente contrastivo, entre o vício
produção literária e teatral do escritor: (esbanjamento, esnobismo social, vida na cidade,
dinheiro) e a virtude (economia que leva à riqueza,
Trop occupépour corriger ausênciade preconceito de classe, vida na roça, arte).
Je vous livremesrêueries José Veríssimo apontou a monotonia da obra
j'enfais pour me désennuyer*. macediana, sua ingenuidade parelha a urna socie-
dade "chã e matuta': a sentimentalidade que beira a
pieguice, a filosofia banal, tudo embrulhado numa
205 Joaquim Manuel de Macedo, Labirinto, organização, apre-
sentação e notas de]efferson Cano, Campinas/São Paulo: Mer- moral de catecismo "para uso vulgar".O crítico tam-
cado de Lerras/Ceculr/Fapesp, 2004, p. 44. bém identifica com acerto a inclinação dramática
206 Idem, Teatro Completo 2, Rio deJaneiro: MEC/Funarte/SNT,
de Macedo, dirigida a fazer de sua arte um diverti-
1979, p. 254·
207 Introdução ao Teatro de Joaquim Manuel de Macedo, em mento para moralizar risonhamente seus contem-
llatro Completo I, Rio deJaneiro: MEc/Funarte/sNT, 1979,P.17.
Muito ocupado para corrigir / Entrego-vos meus devaneios
/ Faço isso para me desenfastiar. (N. da E.)
• o Teatro Romântico

porâneos':". Antonio Candido completa o perfil da média, para a qual o casamento era uma transação
prolixa produção de nosso autor (vinte romances, económica igual às demais. Se essas observações
doze peças de teatro, um "poema-romance': e mais agudas de nosso autor não são suficientes para a boa
de dez volumes de variedades), afirmando que "o execução teatral, é fácil concluir que o problema
bom e simpático Macedo" sempre cedeu ao impulso repousa menos nos temas do que na inconsciência
da tagarelice "de alguém muito conversador, cheio dos recursos cênicos, apresentando soluções inve-
de casos e novidades". Sua popularidade junto aos rossímeis, sem a clareza que a progressão das cenas
leitores baseava-se na criação de cenários e perso- exige. As falas são tão compridas que, emA Torre
nagens familiares, a que se acrescentava a oralidade em Concurso, Felícia se perde no próprio discurso:
da língua. Além disso, as peripécias "e sentimentos "mas ... a que veio isso? Ah! sim: para provar a mi-
enredados e poéticos" garantiam "as necessidades nha experiência; pois bem: com ela adivinhei que
médias de sonho e aventura">". vocês se amavam"2.1 4 etc.
Yunes"" acrescenta outras observações às ante- Amor e Pátria, "drama em um ato': celebração
riores: numa época de nacionalismo exacerbado, do 7 de setembro de r822, pode bem ser com-
anos de r 860-70, contraditoriamente banhada do preendido como comédia (assim como os dramas
fascínio "ainda forte demais" pelas modas e ma- de Martins Pena são todos cómicos pela inadequa-
neiras europeias, o dramaturgo se vinga, transfor- ção dos procedimentos). Nele, o amor romântico
mando em clowns dois europeus a serviço de um de dois jovens é a outra face do amor da pátria,
brasileiro (os criados emLuxo e Váidade), fazendo misturando-se tiradas sobre "o patriota', sobre
o mesmo com os falsos ingleses de A Torre em valentia e temor, a denúncias políticas e traições
Concurso?": pespontadas de quiproquós melodramáticos. No
Mas ao contrário de Martins Pena, os estrangei- universo nacionalista, o vilão não pode deixar de
ros em Macedo são utilizados basicamente como ser um "ilhéu".As peripécias se dão com velocidade,
ocasião para a comicidade provocada pela língua sem qualquer preparação das cenas, por isso não
portuguesa estropiada, à maneira do entremez. O podem convencer. Vale a pena transcrever parte da
detalhe verdadeiramente cómico é que não haja es- última cena, de louvação a Pedro I:
cravos nas salas brasileiras e, sim, criados europeus.
Em outras palavras, a crítica dos costumes é feita, LUCIANO - Salve! salve! o Príncipe imortal, o paladim

paradoxalmente, deixando intactos os valores bási- da liberdade chegou de S. Paulo, onde a 7 deste mês, nas
cos da sociedade e às vezes criando aporias na argu- margens do Ipiranga, solrou o grito "Independência ou
mentação. Por exemplo, se Macedo, que conhecia Morte!" grito heroico, que será doravante a divisa de todos
bem o assunto, pinta o casamento como mercado os Brasileiros...ouvi! ouvi! (aclamações dentro) Sim! - "In-
lucrativo, segundo a lei da oferta e da procura, tal dependência ou Morte">",
qual se via nos salões, é o dinheiro muitas vezes que
resolve os problemas dos enamorados. Não deixa de ser curioso que a última fala caiba
É igual a conclusão de Gilda de Mello e à personagem poltrona, que só funciona para dar
Souza2 1 3 : Macedo refletia a opinião da burguesia contraste, momento em que se mostra tocado de
valentia ao escutar aqueles "gritos elétricos"
A obediência aos valores patriarcais no tea-
209]. Veríssimo, Histôriada LiteraturaBrasileira) p. 239.
210 Antonio Candido, Formação daLiteraturaBrasileira. 2. ed., tro de Macedo (religião, pureza e conformismo)
São Paulo: Martins, 1964,P. 138. perturba u~ dos princípios básicos da comédia,
211 M.]. Yunes, Introdução ao Teatro de Joaquim Manuel de
que é justamente o advento do novo em luta com
Macedo, em op. cito
212 Sobre a implicância de Macedo com os cronistas estrangeiros, princípios ultrapassados. Ao contrário disso, esses
"que sem sair do Pharoux já têm passado por Minas, Goiás e Mato princípios são defendidos pelos sermões que prega
Grosso; e milagrosamente escapado de serem lambidos pelos bu-
gres e pelas onças" (A Carteira de Meu. Tio), ver F.Süssekind, O
BrasilNão éLongeDaqui, p. 226 e s.
213 Macedo, Alencar, Machado e as Roupas, em A Idéia e oFi- 214]. M. de Macedo, Teatro Completo I, p. 182.
gurado) São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2005, p. 73-89. 215 Idem, p. 151.

• 133
História do Teatro Brasileiro + volume 1

sem descanso defendendo a moralidadcv" e que deu aJoão Caetano o maior prestígio de sua
arvorando-se em "realista". Mas o alvo, de novo, carreira. O próprio Macedo escreveu que ficara
não é atingido, pois falando do Brasil e indicando impressionado "pela exageração dos impulsos
locais e datas da ação, seus personagens são "o me- apaixonados, pelos gritos ou rugidos selvagens e
nos possível brasileiros'?". Faz-se necessário frisar desentoados'>".
o mais grave: a escravidão, o ponto inflamado da Martins Pena de saída desloca as altas razões da
sociedade, só está presente nas comparações lin- honra e os motivos da bravura da peça original, com
guísticas, apoiadas em repetidas analogias. Surge, a transformação do "fero africano" em nosso pedes-
assim, destituída de importância, completamente tre, policial subalterno, que merece dele minuciosa
absrrata. Vejamos essesexemplos colhidos ao acaso: definição: sua limitação intelectual, sua desonesti-
dade, sua bazófia, seu autoritarismo. Desse ponto
CRESPIM - ... e corro, há dois dias, como um preto quilorn- de vista e adiantando conclusões, a comédia frisa
bola! (A Torre em Concurso, Ato r, cena 4). que na "tapera de Santa Cruz': o amor e o problema
GERMANO - ~e posso eu fazer?... decrete, mande, como social são um caso de polícia. Mas a lei clássica da
uma soberana dá ordens a um escravo... (Idem, Ato II, comédia, que sempre derrota os tolos, transforma o
cena 9). esforço policial numa "inútil precaução".
BEATRIZ - ... ainda trabalho [...] perde-se a noite... e isto Váriasvezes a figura do pedestre vem citada nos
acontece à Beatriz, a formosa, por causa de um músico Folhetins, pois tinha a função dupla e paradoxal de
de meia-carat..."! (O Primoda Califórnia, Ato l, cena 8) caçarescravos fugidos e,ao mesmo tempo, controlar
desordens nas representações tearraisf'". Talvez por
o cotejo entre nossos dois comediógrafos fi- isso Os Ciúmesde um Pedestre se organize formal-
cará mais claro com a comparação da paródia de mente aludindo, deforma incansável, ao próprio
Otelo que ambos escreveram: Martins Pena, Os palco, cujo espaço, sempre versátil na comédia, é
Ciúmes de um Pedestre, proibida de subir à cena reforçado com a multiplicação de saídas e entradas,
pelo Conservatório Dramático, que a considerou incontáveis chaves guardadas dentro de quartos
"imprudentlssima'v'", e Macedo, O Novo Otelo 220. por sua vez trancados etc. No final nos é sugerido
O ponto central das comédias apoia-se emJoão que estamos mesmo num teatro, quando um dos
Caetano e em sua celebradíssima interpretação da personagens, ao se encerrar a ação, e olhando tudo
personagem shakespeariana. Claro está que não de "um buraco': afirma que já vai dormir, "que já
se trata da obra original, mas de sua versão neo- deu uma hora'.
clássica através do "reflexo gelado"22I da adaptação O ponto central da comédia é a discussão sobre
de Jean-François Ducis, retraduzida entre nós por a liberdade, a opressão e a maneira de resistir a ela.
Gonçalves de Magalhães, De 1837 a 1860, houve "Pensa meu marido que se prende uma mulher
vinte e seis representações desse Otelo, apertado prendendo-a a sete chaves! Símplório!""! - diz
nos padrões clássicos, "com exclusão do povo, do uma das duas encarceradas. Particularizando-se
humor, da grosseria, da sexualidade, da maldade", na família, o tema da escravidão atinge o aspecto
observa Almeida Prado?". Essa foi a interpretação social mais amplo.
Desde o início o mote é dado pelo pedestre, em
216 Sobre a problemática adesão do autor ao realismo, consulte- resposta às amargas queixas da mulher, que aspira
-se]. R. Faria, O Teatro RealistanoBrasil: r855-r865, São Paulo:
à fuga "desta casa, onde vivo como miserável es-
Perspectíva/Edusp, 1993,P' 158 e s.
217 L. Hessel, G. Raeders, O Teatro no BrasilsobDom Pedro II, crava': ''Até agora tenho te tratado como um fi-
Ia parte, p. II 1. dalgo, nada te tem faltado, a não ser a liberdade."226
218 "Meia-cara" era o escravo contrabandeado; por isso mesmo,
o sentido pejorativo da expressão adjetiva. 223 Idem, p. 28.
219 Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional (1-2, 3, 61 A) 224 Em "Pai contra Mãe" Machado de Assis aponta que o desem-
220 V.Arêas, Na Tapemde Santa Cruz, p. 23 I e s. prego do pobre livre levava-o a transformar-se em ftee-lancerno
221 Palavras de Álvares de Azevedo, referidas por D. de A. Prado, ofício de caçar escravos fugidos, competindo com os pedestres.
João Caetano, p. 26. 225 Martins Pena, Comédias (r845-r847),P' 120.
222 A Escalada Neoclássica, em idem, p. 21 e s. 226 Idem, p. 141.

+ 134
• o Teatro Romântico

Se a redefinição de fidalguia implica a escraviza- acontecimentos constrangedores da época: o


ção do outro, ela também arrasta a um novo enten- achado do cadáver de um negro assassinado,
dimento o poder de castigar, que se aproxima agora dentro de um saco, para ser jogado ao mar, e a
do delírio sádicov". Por exemplo, o pretendente deportação de figura "de família respeitada, um
da .filha do protagonista se disfarça pintando-se de dos nossos mais modernos consócios'<" que, apai-
preto, como muitas vezes faziam os atores a fim de xonado por uma jovem, "subiu ao telhado e desceu
ficarem "tisnados" para a representação de Otel0 2 2 8 ; as escadas de um sótão para lhe falar" 233 • O texto
agarrando-o ao supô-lo um escravo fugido, assim diz dos censores é explícito: mais do que ameaçar a
o pedestre: "vem cá,negrinho de minha alma, tratante obra de Ducis na interpretação de João Caetano,
[...], hei de te dar uma reverendíssima maçada de pau a paródia também atingia a "moral familiar'">'.
. . dinha... '(vem
bem repilllca T.
ca, meu ne grinho..."229
I
"Deus me dê paciência com a Censura!", desaba-
No mesmo ato, à filha que pede perdão de fou Martins Pena em carta a um amigo, acrescen-
joelhos, o pedestre, com a palmatória nas mãos, tando que os censores deviam estar com "catarata
também implora transportado: "Só quatro dúzias, na inteligência': inclusive por desconhecerem que
só quatro dúzias.. ."23 0 paródias eram admitidas "em todas as partes do
Mas se OsCiúmes deum Pedestre em grande parte mundo civilizado">".
gira ao redor da paródia de Otelo na interpretação de O Nouo Otelo, de Macedo, passa longe dessas
João Caetano'?', também inclui outros dramas e me- atribulações. Trata-se de uma peça em um ato e
lo dramas, como o famoso Pedro-Sem, com seu fim nove cenas, o que conta ponto para Macedo, pois
delirante, ofait-divers nacional, e a "inútil precaução" a brevidade ajuda na concentração que lhe era tão
do Barbeiro deSevilha, que ronda a peça. Os fios das difícil. Quatro personagens contracenam, mais
várias tramas e o jogo das distorções causado pelos um cachorrinho chamado Querido. Esse animal
recursos paródicos são de extrema complexidade. É de estimação é o pivô do quiproquó, equivocada-
importante lembrar que existiram muitas paródias mente considerado um rival por Calisto, dono de
das versões melodramáticas de Shakespeare no sé- um armarinho, pretendente de uma das jovens.
culo XIX, não só aqui, mas também na Inglaterra Também ator em um teatrinho particular onde
e em Portugal, onde encontramos uma paródia da representa Otelo, esse enamorado fica obcecado
peça de autoria de Garrett, além do entremez Otelo pela personagem, por isso deseja sentir ciúmes para
Tocador deRealejo, que corria anónimo. desempenhar bem o papel:
Os censores da obra de Pena não se irritaram
somente com as alusões "ao único ator brasileiro Adoro esta rapariga tanto, como a minha parte de Otelo...
que entre nós tem representado o papel de Otelo': sim... [ ] Oh! se fosse ela que fizesse o papel de Hedel-
pois Martins Pena completou o quadro com dois monda •36 com que prazer e arrebatamento eu lhe daria a
punhalada do quinto ato! Ao menos porém deve aparecer
algum ímpeto de ciúme [... ] é preciso que eu me exaspere,
227 Uma das aquarelas mais constrangedoras de Debret mostra
um negro sendo castigado pelo dono numa sapataria, enquantO que eu esbraveje mordido pelo ímpeto do ciúme [... ] ou en-
uma mulher, com um bebê nos braços, espia atrás de uma porta. O
tão não passarei de um Mouro de Veneza muito ordinário.
pínror descreve a cena, observando que a mulher, mulata, "embora
ocupada em aleitar o filho, não resiste ao prazer de ver um negro Se eu apanhasse um pretexto... >)?
ser castigado': CE.Rio deJaneiroCidadeMestiça..., p. 14- I 5.
228 Martins Pena, Folhetins, p. 238.
229 Idem, Comédias (1845-1847), p. 130.
Não é difícil perceber que o querersentir ciúmes
230 Idem, p. 132. baixa a temperatura do delírio da personagem, não
231 "Vi muitas vezes Otelo no teatro / [...] / O crime de Otelo
é uma migalha, uma ninharia, uma nonada, comparado com o 232 Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional (r-z, 3, 61 A).
meu" (idem, p. 134). Isso depois de dizer que diante disso seria 233 R. Magalhães jr., DicionárioLiterárioBrasileiro ILustrado, Y.
"um tigre, um leão, um elefante". Com esse carrossel de animais IV, São Paulo: Saraiva, 1969, p. 165 e s.
selvagens, o amor destrói o efeito da feroz sublimidade atribuída 234 Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional (r-R, 3,61 A)
à personagem trágica. Não esquecer que "tigre" era o nome dado
235 Idem, ibidern.
ao escravo que levava os despejos da casa, para atirá-los ao mar ou
enterrá-los nas praças. O epíteto, pronunciado em cenas trágicas, 236 Tradução de Ducis para "Desdêrnona"
causava às vezes hilaridade na plateia brasileira. 237 J.M. de Macedo, Teatro Completo 2, p. 256.
• 135
Hist6ria do Teatro Brasileiro • volume 1

a afastando demasiado das margens da normali- também ao patriotismo da época, exacerbado pelas
dade e da pura brincadeira. Apesar das alfinetadas circunstâncias políticas, os autores também se di-
no governo e na política, sempre pelo recurso do ferenciam. Em Luxo e Vaidade, a fala de Anastácio
trocadilho, o texto aconselha sem ironia, tem um ar (Ato II, cena 4) é esclarecedora, pois vemos o Brasil
cordial e amigo. Além disso, o texto de Ducis não é ao alcance das conquistas do liberalismo: "Já não
transformado por dentro, desviando-se do sentido se reconhece [sic] privilégios, graças a Deus, e as
original; ao contrário, comparece entre aspas na portas das grandezas sociais estão abertas a todos os
comédia de Macedo, que por isso mesmo funciona que sabem merecê-las".Em contrapartida, Martins
mais como apoio jocoso do que paródia. Pena é um mal-humorado sob muitos pontos de
Mas a forma caseira também tem sua eficáciae a vista. Nos Folhetins, confessa que as pessoas ilus-
crítica aJoão Caetano, pairando por sobre o texto, tres que, por acaso, sentam-se a seu lado no teatro,
transfere-se para a tolice do protagonista Calisto, estragam-lhe a noite, o grande império transforma-
que julga infantilmente poder imitar o grande ator -se na tapera de Santa Cruz, entedia-se com os
num teatrinho de bairro. A afirmação explícita de elogios dramáticos e zomba da mania das cores
que sua interpretação ficava "dez furos acima do nacionais que emocionam a "rapaziada patriótica";
João Caetano': quando vemos essamesma persona- o aniversário da abdicação merece-lhe irreverente
gem mergulhada na própria mediocridade e falta comentário e escarnece, da maneira mais feroz, da
de discernimento, produz o efeito oposto, isto é, o estupidez da censura, que apenas se preocupa com
de preservar a glória de nosso trágico. Além disso, "o amor e os pecadinhos que ele nos faz cometer':
a inverossimilhança da confusão do cachorrinho em nome de um inexistente passado dignificante.
da amada com um amante tira o ponto de apoio da Todos essesaspectos negativos ao espírito moderno
pretendida caricatura, que sevolta contra seu autor, foram abordados e criticados por Martins Pena.
concluindo-se o texto pela costumeira harmoni- O acanhamento e as contradições do meio, além
zação das diferenças. Mais uma vez a pecinha de das limitações materiais do teatro, não deixaram
Macedo deixava intocados os valores básicos do também de constituir empecilhos à cabal realiza-
que supostamente pretendia criticar. Apesar disso, ção de cada um dos autores. É muito significativa a
não podemos negar algumas tiradas espirituosas, descrição de uma cena na apresentação de L'Elisir
principalmente no diálogo inicial entre Calisto e d:Amore que, segundo os Folhetins assemelhou-se a
o pai de sua amada, ou na metamorfose do "punhal "uma verdadeira patuscada": um cão latia sem pa-
de Otelo': tantas vezes repetido, numa inofensiva rar na plateia; um cavalo trôpego e raquítico, que
vela de cera. puxava um carro de papelão dourado levando três
Para resumir essas observações sobre a obra de personagens, "deu com os olhos no lustre e recuou
Pena e Macedo, podemos dizer que entre os vários ofuscado"; o carro, "impelido e acelerado pelo de-
aspectos em que se diferenciam o mais importante clivedo tablado, rolou com velocidade para diante".
diz respeito ao aspecto formaL Em Pena, assistimos Seguiu-se uma tremenda confusão, acompanhada
ao aprendizado da forma encaminhando-se sempre de vaias da plateia; os ateres saltaram do carro, os
ao controle dos procedimentos teatrais, afinal atin- coros fugiram, até que "um homem valente" sal-
gido com originalidade; em Macedo, no retraçar tou sobre o cavalo, que caiu de focinho, em meio
de alguns temas comuns, não existe grande preo- a ruídos de tropel e gargalhadas. Minutos depois
cupação com a pesquisa estética, apresentando-se a ordem foi estabelecida, a orquestra principiou
os problemas sempre diluídos ou equalizados por a tocar, os personagens subiram no carro, e tudo
meio dos mesmos procedimentos. Ora, essaforma continuou como se nada houvesse acontecido.
tendia à harmonização de todos os termos, fossem Entre nós, quase tudo precisava ser feito, do
estéticos ou ideológicos, como observamos no tra- abandono das velhas normas neoclássicas, já des-
tamento dado à escravidão. gastadas, à promoção da literatura nacional (os
Quanto ao nacionalismo, isto é, à escrita das jovens autores da revista Niterói não conheciam
coisas locais, fundamental no romantismo, unido bem os autores do passado - era difícil localizar os
• o Teatro Romântico

textos - e chegaram a procurar registros que con- 5. A ARTE DO ATOR


tivessem "a desejada poesia original dos índios"2 38). E O ESPETÁCULO TEATRAL
Em segundo lugar, a ação ininterrupta da censura
era facilitada pelos subsídios oficiais. Na mesma
sessão da Câmara em que os deputados censuraram A demarcação do romantismo teatral no Brasil,
O Inglês Maquinista, discutiu-se a oportunidade ou nos seus aspectos espetaculares e autorais, exige
não dos subsídios teatrais. O deputado Mendes de algumas considerações preliminares. Segundo o
Almeida votava contra, pois "há entre nós a ma- cânone estabelecido nos estudos literários no Bra-
nia de fazer o governo carregar com tudo, e assim sil, a partir de Antonio Candido e, principalmente,
vamos de certa maneira caminhando para o comu- naquele fundado pelos estudos teatrais de Décio de
nismo". O senhor Rocha, contudo, desconfiado do Almeida Prado, o romantismo teatral é um territó-
poder subversivo da arte cênica, votava a favor, e rio bem delimitado que compreende alguns autores
explicava: "é importante que haja o subsídio para dramáticos e que, nos aspectos do espetáculo e da
a facilidade do controle sobre o teatro'">. interpretação, foi hegemonicamente dominado por
Sem dúvida, a obra de Pena supera a de seu co- um único artista, João Caetano (r808-r863):
lega em originalidade e consequência. Inaugurando
o gênero mais fecundo entre nós - a comédia de João Caetano representa a chave que abre todo o período de
costumes -, ele refundiu as formas existentes do formação do nosso teatro, visto pelo lado de dentro, a partir
entremez no interior de um minucioso trabalho de do palco, através de sua parte mais viva e atuante. Os nos-
incorporação de outros gêneros. ~anto a Macedo, sos escritores passaram em geral marginalmente pela cena.
não podemos discordar de Machado de Assis: "O Antes de comediógrafos ou dramaturgos, foram poetas,
autor abre à sua musa um caminho fácil aos triunfos romancistas, historiadores, políticos, quando não simples
do dia, mas impossível às glórias duráveis"240.lvfas ele funcionários públicos. Não viveram de suas peças, nem lhes
também contribuiu para fazer a passagem da "orali- devem, com raríssimas exceções, a sua notoriedade literária.
dade de salão e academia, típica do arcadismo, para a Somente ele, na sua dupla função de ator e de empresário,
oralidade de teatro, comício, reunião política - coisas sustentou durante três decênios a continuidade de nossa
novas no Brasil"!". Não se pode também esquecer o vida teatral, em condições sempre adversas e em nível sur-
elogio do tipo brasileiro, na figura da "moreninha". preendentemente alto 24 3•
Com isso revitalizou o antigo tópico que atribuía aos
olhos ou cabelos negros as qualidades da malícia ou Não há como negar as evidências que con-
da rraiçâo?". Traduzida em forma teatral, A More- substanciaram essa visão, nem é intenção aqui
ninha foi a peça mais popular de Macedo, chegando contraditá-las. O que se propõe é, olhando para
a Portugal com o mesmo sucesso. além dessas certezas conquistadas, tentar uma visão
mais ampla que inclua, além dos conteúdos progra-
máticos dos dramas encenados e das biografias de
seus atares, a reconstituição da materialidade tea-
tral que existia na cidade do Rio de Janeiro durante
a década de r 840, período que concentra a maior
parte da chamada fase romântica do nosso teatro.
Não que uma leitura pelo viés da literatura dramá-
238 A. Candido, O RomantismonoBrasil,São Paulo: USP-FFLCH, tica não possa apontar aspectos importantes dessa
2.002.,p·33· materialidade. É que, a despeito das avaliações da
239 V. Arêas, Na Tapem de Santa Cruz, p. 2.70.
dramaturgia encenada no período, um outro cami-
240 L. Hessel: G. Raeders, O Teatro no BrasilsobDom Pedro II,
Ii. parte, p. IIG. nho pode ser buscado, com base nos espetáculos e
241A. Candido, O Romantismo no Brasil, P: 95. manifestações de teatralidade, independentemente
242Sérgio Buarque de Holanda, Da Alva Dinamene à Mo~ra
Encantada, em Tentativasde j\(fitologia. São Paulo: Perspectiva, 243 D. de A. Prado,João Caetano e a Arte do Ator, São Paulo:
1979, p. 85-97· Ática, 1984, p. IX.

• 137
História do Teatro Brasileiro • volume 1

da valoração literária. Assim, nosso ponto de par- empreitada prossegue sob o comando de João Cae-
tida será o panorama de fatos objetívos que eram tano - desde 185 I instalado no Teatro S. Pedro -,
diariamente noticiados pela coluna "Teatros': do indo até a estreia de O DemónioFamiliar, de José de
Jornal do Comércio, e que incluía desde as estreias Alencar, no Teatro Ginásio Dramático, em novem-
de espetáculos de acrobatas e malabaristas, transcor- bro de 1857. Antigo Teatro S. Francisco, que tinha
ridos no "anfiteatro do campo de São Cristóvão': até acolhido João Caetano por quase uma década, o
os grandes espetáculos do Teatro S. Pedro de Alcân- Ginásio consolidou naquela data, com uma peça de
_ tara, que consistiam da justaposição de concertos e autor nacional, um modo realista de encenar, que
tragédias, dançados e dramas, farsas e recitais líricos. se diferenciava da tradição romântica ainda vigente
Buscaremos relacionar alguns desses fatos extraídos no S. Pedro. São anos, pode-se dizer, de agonia do
do principal periódico do Rio de Janeiro à época modelo teatral anterior, paulatinamente substi-
com outros registres preciosos, como as crónicas tuído pelo que se foi criando nas bases da escola
de Martins Pena (1815 -1848) sobre os espetáculos realista europeia, cujos ecos se faziam sentir seja
de ópera nos anos de 1846 e 1847, e com a própria pela vinda de companhias francesas, seja por meio
tradição canónica fixada numa série de trabalhos de de novos atores e ensaiadores portugueses que che-
pesquisadores que estudaram esse período. gavam ao Rio, como foi o caso de Furtado Coelho.
O ciclo da teatralidade romântica compreende Uma terceira fase, já incluindo o início da década
os anos de 183 3 a 1863, período em que se de- de 1860, marca a decadência definitiva do modelo
senvolve o trabalho de João Caetano. Na primeira de interpretação consagrado por João Caetano e
data o ator criou em Niterói a primeira companhia dos valores da encenação romântica. Ao mesmo
brasileira de teatro; a segunda é a data da sua morte. tempo, da perspectiva da constituição de uma tec-
Trinta anos na vida do maior ator romântico nologia de montagem de espetáculos, essa última
compreendem todas as manifestações dramáticas fase configura a consolidação da teatralidade gerada
e cênicas do romantismo teatral e tangenciam, in- nos vinte anos anteriores, e que se exemplifica no
clusive, as fases identificadas como anterior e de crescente êxito de João Caetano como ator e em-
ruptura com o romantismo. presário, bem como na projeção de seu nome em
Dentro desse ciclo maior pode-se recortar uma termos nacionais e internacionais. Afinal, a despeito
primeira década, que compreende o período das das críticas ao seu repertório e à sua interpretação à
encenações das peças de Martins Pena no Teatro antiga, que já se manifestavam no início da década
S. Pedro. Pena foi o autor brasileiro que mais en- de 185 o, ele foi um produtor vitorioso pelo menos
cenou textos seus e que, de fato, imiscuiu-se nas até 1857, quando inaugurou, pela segunda vez em
artes da cena, exercendo esse mister no maior tea- quatro anos, depois de dois incêndios, um Teatro
tro da corte à época. Esse ciclo de encenações vai S. Pedro todo de ferro, e se manteve até morrer, a
da estreia de O Juiz de Paz da Roça no Teatro S. figura referencial nas artes da cena no Brasil. Se o
Pedro, em outubro de 1838, poucos meses depois Ginásio apresentava um novo estilo de encenação,
da encenação de António Joséou oPoeta e a Inqui- é provável que, estruturalmente, em termos ceno-
sição, de Gonçalves de Magalhães (I8rr-I882), até técnicos, ainda herdasse grande parte dos procedi-
o fim da colaboração de Pena como folhetinista do mentos da fase considerada romântica. Também
Jornal do Comércio, em outubro de 1847. Nessas é inegável que no estilo de interpretação de João
atividades contribuiu decisivamente, muito mais Caetano já havia um passo no caminho do realismo,
do que como autor de comédias, como artista do na medida em que se rompia com o modelo neo-
teatro para a consolidação de práticas e assimilação clássico de interpretação e avançava-se rumo a uma
de procedimentos de encenação no país. interpretação menos hierática e mais sanguínea.
O período se desdobra numa segunda fase, Araújo Porto-Alegre (1806-1879), comentando a
que esboça a decadência do projeto de construção importância da união entre João Caetano e Gon-
de uma teatralidade romântica no Brasil. Já não çalves de Magalhães, em 1838, aponta a reforma na
se conta com a participação de Martins Pena e a arte da interpretação nestes termos:
• o Teatro Romântico

a nosso teatro tem tido uma existência aventureira. A arte destinado a mim [...]. Martins Pena leu-me a sua primeira
dramática só fez legítimos progressos naquela época em que tragédia, que passei ao Florindo'<.
o sr. dr. Magalhães se uniu ao sr.João Caetano: nesta época,
todos os elementos artísticos se associaram e revestiram o Mais do que dispensar papéis e oportunidades,
palco-cênico de toda a sua dignidade. a ator trocou a mo- João Caetano evitou confrontos, e, como prata-
nótona declamação e acionado dos galãs da escola rotineira gonista-rnor, só ofereceu aos pares coadjuvações à
pela declamação onomaropeica, e pelos gestos que servem distância. Nesse sentido, atraiu não só o foco dos
de colorido às ideias do poeta, que as aviventam, e lhes dão historiadores para si como evitou que qualquer ou-
um poderio mágico para agradavelmente penetrarem na tro ator pudesse rivalizar com ele de fato. Mesmo
alma do espectador. os supostos grandes ateres realistas que o teriam
a ater começou a compreender o equilíbrio natural do superado, Furtado Coelho e Joaquim Augusto,
movimento do corpo humano, a oposição dos membros não foram termo de comparação: o segundo era
superiores com os inferiores; começou a mover o braço um discípulo seu e o primeiro era português. Nesse
antes do antebraço, e este antes da mão, para que esta re- sentido, o ciclo de interpretação que ele encarnou, e
matasse o pensamento e fixasse os olhos do espectador no do qual foi o principal representante, só finda com
ponto preciso a que deviam ser levados; o ator começou a sua morte, pois não chega a haver destronamento. É
compreender que os músculos da face deviam-se tornar es- como se ele não só já tivesse empunhado a bandeira
cravos à sua vontade, e que uma fisiológica aplicação de suas realista - quando, ainda que traduzindo de forma
contrações e repouso lhe devia dar em resultado a expressão tosca o impulso romântico, rompeu com a declama-
necessária, e não uma careta, que é o fruto da ignorância. ção cantada em alexandrinos - como tivesse sido o
Senhor dos primeiros rudimentos de uma arte tão variada, principal gestor da implantação das condições mate-
como a natureza que ele imita, começou a sentir a neces- riais que geraram a competência humana nativa para
sidade de um estudo profundo e contínuo para que o seu encenar-se qualquer tipo de espetáculo no país: de
físico se tornasse facilmente uma máquina artística, um farsas a melodramas, de tragédias a óperas.
moto sentimental, um espelho das paixões, e uma espécie De fato, em termos de tecnologia cênica, as bases
de Pro teu, apto para todas as transformações-e. românticas da teatralidade brasileira foram funda-
mentais não só para o realismo posterior como, nas
Como aqui o foco não se dirige aos aspectos bio- décadas seguintes, para a concretização da materia-
gráficos, mas à tendência geral que esse ciclo de im- lidade cênica da comédia de costumes e das operetas,
plantação de uma teatralidade brasileira evidencia, das mágicas e das revistas. Nessa perspectiva, além do
o que salta aos olhos quando se pensa em João Cae- papel central deJoão Caetano em todo o processo,
tano é a sua dificuldade de contracenar com antago- sobressai a participação de Martins Pena como dra-
nistas à sua altura e de repartir com qualquer outro maturgo, encenador e crítico. É eleque, mais do que o
talento contemporâneo a ele as glórias de imperador consagrado ator; emerge como o grande pioneiro no
do teatro brasileiro. Essa questão já foi apontada processo de aquisição de uma tecnologia de encena-
por Décio de Almeida Prado, quando pinçou uma ção europeia-". Imprescindível mencionar também,
afirmação do aror depois de cobrado por não ter
sido parceiro de ateres e autores nacionais: 245 Em D. de A. Prado,João Caetano, P: 121.
246 Ruggero Jacobbi foi o primeiro a minimizar a perspectiva
literária no enfoque a Pena e a perceber traços de um homem da
cedi ao Florindo o protagonista do Olgiato, papel que o cena no seu processo criativo: "No fundo Martins Pena vai mais
além do que um simples artesão, justamente por nada almejar.
Magalhães havia escrito para mim; pedi ao Macedinho que
Não imaginava ele que pudesse haver outra espécie de teatro fora
escrevesse o Cobépara o Germano; o Joaquim Norberto, do teatro cotidiano. Refaz conscienciosamente as tramas e as si-
mações de aurores menores (em sua maioria anônímos, ou então
por sugestão minha, produziu o drama Amador Bueno,
franceses ou pormgueses da época, algumas vezes adaptados).
que passei, sem representar, ao Costa, tendo-o aliás o autor Não viveentre os livros, mas entre copiões manuscritos, cheios de
anotações feitas por empresários, corres, palavras acrescentadas
ou sugeridas pelos ateres e anotações dos dírerores de cena. A
publicação é um destino com que não sonha para suas obras,
244 A. Porto-Alegre, O Nosso Teatro Dramático, em]. R. Faria, voltado como está para a representação. Sente-se, em todas as
Idéias Teatrais, P: 368. suas comédias, o estado fluido da produção teatral, que precede

• 139
História do Teatro Brasileiro • volume 1

para a consecução desse propósito, a colaboração A construção original data de 18 I 3, quando foi
anónima de outros muitos atores e ensaiadores, ins- batizada como Real Teatro de S. João. Era um em-
petores de cena e maestros, cenógrafos e contrarre- preendimento de Fernando José de Almeida Castro,
gras, fossem eles estrangeiros ou brasileiros. um ex-barbeiro apadrinhado do marquês Fernando
José de Portugal e Castro, vice-rei do Brasil entre
1801 e 18062.48. Ele foi construído em um terreno
Véstígios de uma Teatralidade pantanoso, localizado próximo ao Campo de Santana
(atual praça Tlradentes), de propriedade do próprio
No decênio de 1840, o município do Rio de Ja- barbeiro Fernando José de Almeida, também conhe-
neiro tinha 276-466 habitantes, sendo que 60.500 cido como "Fernandinho". O projeto de sua constru-
moravam na área rural. Desse total, apenas 155.864 ção é do engenheiro militar e marechal de campoJosé
eram livres ou libertos'<. Uma parte considerável Manoel da Silva, e obedecia ao padrão das grandes
desses fluminenses não escravos devia frequentar casas de ópera, como atesta a pesquisa de José Dias:
os três teatros existentes no Rio. Eles eram, em
ordem de tamanho e importância na vida social e o projeto arquitetônico com sua volumetria dominava a
cultural da cidade, o Teatro S. Pedro, o S. Francisco paisagem enobrecendo o largo do Rocio, obedecendo ao
e o S.Januário. Nos trinta anos anteriores, além de estilo da cena italiana, seguia hierarquicamente os espaços
conquistar a independência de Portugal, o país bus- internos do edifício teatral, separando os limites entre o
cara a emancipação em todos os campos, inclusive palco e a plateia com sua forma aproximada de ferradura:
no artístico. No caso do teatro de ópera, símbolo apresentava a curvatura dos balcões em forma de u alon-
arquitetônico e cultural imprescindível em todas gado, definindo o flyer, o proscênio e o fosso da orquestra.
as capitais europeias à época, o Rio de Janeiro dis- Seguindo o modelo daarquitetura teatral europeia, o teatro
punha, desde 18 13, de um legítimo exemplar pro- possuía um pórtico ao corpo frontal do edifício para a pro-
jetado no modelo do teatro S. Carlos, de Lisboa: o teção dos espectadores que chegavam de carruagens. [...]
Real Teatro de S.João. Durante todo o século XVIII O teatro possuía quatro ordens com quinze camarotes de
o país tivera, no máximo, "Casas de Ópera". Agora, cada lado da tribuna, com exceção da última, que tinha mais
ganhava acesso às tecnologias cênicas desenvolvidas três camarotes sobre a tribuna real. O prédio externamente
desde o século XVI e que tiveram, no século XVIII, possuía trezentos palmos de comprimento (66 m), centro e
um apogeu com a consolidação dos espetáculos trinta palmos de largura (28,60 m), e noventa e nove e meio
operísticos na Europa. Além das formas neoclássi- palmos de altura (21,89 m). [...] Acomodava 1.020 pessoas
cas e da imponência arquitetônica, o novo edifício na plateia e possuía quatro ordens de camarotes, com trinta
trazia embutida uma tecnologia de encenação ine- camarotes na primeira ordem, vinte e oito na segunda, vinte
xistente no país e atraía para si técnicos e artistas e oito na terceira e vinte e dois na quarta. [...] Em 1821 foi
europeus capazes de operá-la. É parte da história feita uma reforma, o teatro foi pintado interna e externa-
de como essa teatralidade se implantou no Brasil, mente, forrados os camarotes, de cujos parapeitos pendiam
no sentido do desenvolvimento de um modo de sanefas de veludo e ouro, festões de flores, bandeiras e tro-
produzir cenas ou espetáculos, que interessa aqui féus; foi estendido um tablado que encobrindo os camarotes
resgatar, com ênfase na materialidade cênica no pe- de primeira ordem, corria até o soalho do proscênio. Do teto
ríodo romântico. O locusprivilegiado para observar pendia grande quantidade de lustres de cristap-l9.
e analisar esse primeiro desenvolvimento de uma
tecnologia cênica no país é o Teatro S. Pedro. O Real Teatro deS.João incendiou-se em 1824
e o seu proprietário logo se mobilizou solicitando
a imaginosa improvisação dos côrnicos, e no qual o escrito é ape-
nas uma indicação, raramente conservado intacto nas viagens
autor-ponto, ponto-intérprete, intérprete-público". Suplemento 248 O novo teatro foi largamente subsidiado pelo Tesouro do
Literário d'Q Estadode S. Paulo, 17 de agosto de 1957. Império, seja através de isenção fiscal na importação de sua so-
247 Em R. Magalhães Jr., Martins Pena e Sua Época, São Paulo: fisticada decoração, seja através do benefício de loterias.
Lisa; Rio de Janeiro: INL/MEC, 1972, p. 78. Os dados foram 249 José da SilvaDias, OsTeatros doRio deJaneirodoSéculo XVIII
retirados do recenseamento de 1850, feito por Roberto Jorge ao Século xx: Inventário,Análise, Trajet6ria, tese de doutorado,
HaddockLobo e publicados noJornal do Comércio. Departamento de Artes Cénicas da ECA-USP, P: 28-55.

• 14 0
• o Teatro Romântico

um empréstimo do Banco do Brasil, a concessão Essa reunião dos fragmentos disponíveis da


de loterias e vendendo ações em troca da cessão história material do Teatro S. Pedro dá a medida
de camarotes do teatro que se construiria. O novo de quanto ainda resta para investigar nessa direção.
teatro, em grande parte espelhado no anterior, foi Por exemplo, pouco se sabe acerca da arquitetura
inaugurado em 4 de abril de 1826, rebatizado como interna do palco do teatro, de como era seu urdi-
Imperial Teatro S. Pedro de Alcântara. Segundo mento e de como funcionava o sistema de varas
João Ângelo Labanca, a fachada "conservou todas contrapesadas para a entrada de telões. A única
as características do projeto anterior'Y". Mas quem coisa certa é que a cenografia era estruturada
dá detalhes mais completos sobre a arquitetura do em torno de telões pintados provavelmente em
S. Pedro é Galante de Sousa: papel252. Mas sobre as bases técnicas em que eles
eram utilizados pouco se sabe. Segundo José Dias,
o teatro possuía 100 camarotes distribuídos em quatro o arquireto responsável pelo projeto do Teatro S.
ordens, com capacidade para umas 300 pessoas, e sepa- Carlos, José da Costa e Silva, veio ao Brasil em
rados por um gradil dourado da plateia que acomodava 18 12, quando foi empossado no cargo de Arqui-
aproximadamente 600 espectadores. Ao centro ficava o teto Geral de todas as obras reais no Brasil, o que
camarote imperial, ornado com o brasão do Império, com incluía as obras do Real Teatro deS.Joã0 253. Na ver-
lindos trabalhos de talha dourada e guarnecido de cortinas dade, os vestígios estão em documentos esparsos, de
de seda azul, bordadas a ouro (essa decoração deve ter sido épocas distintas, mas que aos olhos do observador
substituída por verde e ouro, cores a que se refere Carlos da materialidade cênica serão sempre produtivos.
Seidler). A iluminação era feita por 220 velas de cera, res- Por exemplo, Henrique Marinho informa, sobre
guardadas em mangas de vidro. A não ser no camarote im- o incêndio de 185 I, quando a casa de espetácu-
perial, onde havia um grande lustre e várias arandelas, do los já tinha voltado às mãos de João Caetano, que
teta não pendia nenhum candelabro para não prejudicar a foi perdido um arquivo das companhias lírica e
visão. O edifício era bastante arejado, atendendo aos rigores dramática contendo "mais de 12 mil vestimentas,
do clima. À entrada havia um buffet2.í1. cenário e instrumentos de música" e que só se sal-
varam os livros do escritório'?". Saber que existiam
Com a morte de Fernando José de Almeida em tantos figurinos no S. Pedro é um indício seguro
1826, o Banco do Brasil, credor do empresário, re- da grandiosidade do teatro, assim como os livros de
cebeu a posse do teatro como hipoteca. Em 1829, o escritório podem se revelar preciosos para avaliar os
Imperial Teatro S. Pedro passou a ser administrado custos e a burocracia de seu funcionamento.
por uma comissão de cinco membros, sempre de- A história do Imperial Teatro S. Pedro de Alcân-
pendendo da concessão de loterias. Finalmente, em tara coincide com a história do romantismo teatral
1838, o Banco do Brasil decidiu liquidar a dívida brasileiro. Depois de queimar novamente em 1855,
acumulada desde a época do primeiro proprie- foi reinaugurado, na sua última e duradoura versão,
tário e vendeu o teatro a Manoel Maria Bregaro em 1857255. Foi em seu palco que a "escola român-
e Joaquim Valéria Tavares, que formaram uma tica" mais explicitamente se desenvolveu em termos
sociedade composta por quarenta acionistas. Os de encenação e interpretação.
novos proprietários fecharam o teatro para uma
reforma, mandando construir um segundo andar, 252 R. MagalhãesJr. comenta a primeira estreia de Martins Pena,
em 1838, com OJuiz de paz da Roça, observando que, sendo uma
que se tornou a frente do edifício, bem como um comédia de quatro quadros, com dois cenários distintos, exigiria
frontão sobre o corpo central. Os administradores repetidas mutações. Salienta, contudo, que "sendo os cenários de
papel pintado, isso não representava grande problema, desde que
dessa sociedade demitem João Caetano, no início os contrarregras e maquinistas fossem rápidos na troca do escasso
da década de 1840. Contra eles, Martins Pena as- mobiliário". Cf.lvlartins Pena e Sua Época, p. 24.
Os Teatros doBrasil, p. 32.
253 ]. Dias,
sestará suas críticas, a partir de 1846.
254 O Teatro Brasileiro: AlgunsApontamentospara SuaHistória,
Rio deJaneiro: Gamier, 1904.
250 A História do Teatro João Caetano, em Teatro Ilustrado, 255 O Teatro S. Pedro foi demolido em 1928 para a construção
junho de 1959, p. 40. de um teatro mais moderno, o atual Teatro João Caetano, na
251 O Teatro no Brasil, v. I, p. 248-249. praça Tíradenres, no Rio de Janeiro.

• 14 1
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Teatros: Miscelânea de Repertórios Catton e Clara Ricciolini. Rematará o espetáculo com a


e Companhias farsa o Filho doBrauo'",

Como a história material das encenações ocorri- Essa amplitude de ofertas dentro de um único
das no Teatro S. Pedro é efêmera e, a princípio, espetáculo, que era constante e comum aos três
inacessível, necessita-se aqui de estratégias e pro- teatros da corte, sugere que os aparatos cênicos e
cedimentos metodológicos próximos da arqueo- de produção eram fartos o suficiente para suportar
logia, que lida com vestígios e partes perdidas de apresentações com muitas mudanças de cena e um
um todo a ser virtualmente reconstituído. Entre elenco variado de atrações. A ideia de que houvesse
as carências de documentos que poderiam permi- uma sucessão necessária de tragédia ou ópera, bai-
tir a reconstituição da cena romântica em termos lado e farsa é desmentida não só pelo noticiário
ideais, a mais sensível é a de imagens. Muito ainda relativo ao S. Pedro como pelo que abarca os outros
há que pesquisar nas coleções de viajantes e de teatros da corte no período. Nas colunas exami-
artistas plásticos estrangeiros que nos visitaram nadas encontraram-se notícias relativas ao Teatro S.
em busca de descrições visuais de espetáculos. Pedro, praticamente diárias; ao Teatro S. Francisco,
Na ausência de imagens, há pois que se trabalhar destacado sempre que João Caetano ali se apresen-
com descrições verbais de testemunhos dessas en- tava; ao Teatro de Santa Teresa, em Niterói, onde
cenações, que se encontram nas crónicas, críticas e João Caetano também costumava se apresentar e
folhetins que eram publicados nos jornais do Rio que abrigava espetáculos menos ortodoxos; e ao
de Janeiro. Entre esses, uma fonte interessante é a Teatro S. Januário (antigo Teatro da Praia de D.
coluna "Teatros" doJornal do Comércio, principal :'Manuel),ocupado por uma companhia írancesa'v.
periódico da corte naquele momento, que atraves- A variedade de atrações e a noção de que o es-
sou a década de I 840 refletindo tudo que acon- petáculo era o conjunto não homogêneo de artes e
tecia nos teatros. A coluna trazia, diariamente, gêneros distintos são comuns às notícias de todos
informações sobre os assuntos teatrais, entre no- esses teatros. Há uma tendência de se somarem
tícias de estreias futuras, comentários críticos e todos os esforços para fortalecer o novo hábito
anúncios dos próprios empresários teatrais, todos de frequentar espetáculos. O teatro de ópera eu-
espremidos na exiguidade do espaço disponível. ropeu torna-se um espaço de convivência de gê-
O redator, que nunca assinava a coluna, fazia, em neros e teatralidades distintas e a cada noite essa
geral, a descrição das partes encenadas nos espe- variedade é exercitada, mesmo quando se trata
táculos oferecidos em todos os teatros da·corte. O de uma estreia portentosa. Sempre há, também,
mais comum era a programação, por mais variada participação combinada de membros dos corpos
que fosse, ser interpretada pelo articulista como estáveis - músicos, atores e bailarinos - e artistas
um espetáculo em si. Não importava se numa convidados. Esse ecletismo, que combinava a ópera
certa noite apresentava-se uma tragédia, um e a farsa, o melodrama e o concerto de câmara
bailado ou um drama. Invariavelmente o redator reflete, na verdade, o papel central que uma insti-
iria utilizar, antes de descrever a última atração, a tuição como o S. Pedro desempenhou na difusão
expressão "rematará o espetáculo". Por exemplo, cultural e no entretenimento da população da corte
na quinta-feira, dia 2 de fevereiro de I 843, abaixo nas três primeiras décadas depois da independên-
do título "De S. Pedro de Alcântara" lê-se: cia. Da primitiva acrobacia ao sofisticado trinado
operístico, arte e entretenimento conviveram e se
Terá lugar a representação do drama em um actO O Cego apresentaram como alternativas espetaculares. De
eseuBordão. Seguir-se-á o dançado da tarantela, pela sra. certa forma, ensaiou-se ali, no principal teatro do
Farina e Clara Ricciolini, findo o qual se representará o
256 Teacros,]omaL do Comércio, Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de
drama em um acto A Mãe e o FilhoPassam Bem. Depois 1843.
haverá a execução do baile do grande esperáculo A Vin- 257 As informações sobre o Teatro S.Januário vinham, no ano
de 1843, em francês, numa coluna abaixo da coluna "Teatros':
gança de Ulisses com o terceto dançado pela sra. Farina, intitulada Théâtre.

• 14 2
• o Teatro Romântico

Rio de Janeiro, uma variedade de formas e misce- sempre encerrava as notícias sobre um determinado
lânea de gêneros que se adaptariam, a partir do fim espetáculo e, quando não se tratasse da programa-
do século XIX e início do xx, nos "Polytheamas" ção oficial do S. Pedro, que pressupunha a venda de
criados em todo o Brasip·5 8 • Na década de 1840, o ingressos na bilheteria do teatro, remetia invaria-
Teatro S. Pedro foi um grande politeama. velmente ao endereço do ator "beneficiado". Outro
Outro aspecto interessante da teatralidade ro- exemplo interessante, por envolver uma das estreias
mântica revelado pela coluna "Teatros" é o apelo das comédias de Martins Pena, é a coluna do dia 17
à participação do público nos anúncios de novas de setembro de 1844, que anuncia espetáculo em
estreias, o que dá a medida do caráter publicitário benefício de Mancel Soares. Esse ato r, que integra
que a coluna possuía, além de ser voz autorizada a a geração de ateres portugueses chegada no final da
criticar ou elogiar os desempenhos. Um bom exem- década de 1820, foi um dos que mais apoiou Mar-
plo desse tom quase de súplica à boa vontade dos tins Pena, tendo desempenhado o primeiro papel
espectadores é a notícia no pé da coluna de I I de em diversas das montagens do cornediógrafov":
fevereiro de 1843, que anuncia a estreia do "exce-
lente drama As Memorias doDiabo': em benefício Comédia nova em cinco aros, OsCasados em Segredo. Ter-
da primeira bailarina da Companhia Nacional, minará o espectáculo a nova farsa, escrita pelo autor de
Francisca Farina. O redator antecipa que: Juiz dePaz da Roça, e Festa na Roça, intitulada OJudas em
Sábado deAleluia. Os bilhetes acham-se à disposição do pú-
Em um dos entreatos o sr. Caton, a beneficiada e sua filha blico na casa do beneficiado, na rua do Piolho n!!85. Se os
Judith dançarão um agradável terceto; porém como esta dramas de grande espetáculo, quer do gOStoantigo, quer da
jovem tem apenas dez anos, e sendo a primeira vez que escola moderna, arrebatam o espectador, há também mui-
aparece em cena, com ano e meio de estudo, espera a bene- tos que, escritos no gOStofaceto, têm belezas que instruem e
ficiada que o público lhe relevará as faltas neste seu debut, deleitam; por isso não deixará de ter o mesmo acolhimento
e animará da difícil carreira que vai começar neste terceto: Os Casados em Segredo que é a tradução da mesma pena e
Vénus) Zéfiro eAmor. Haverá, em seguimento, executado do mesmo gosto. O beneficiado, tendo feito escolha de um
pela beneficiada, em caráter Soisero, Um Dançado. Termi- espectáculo todo novo e todo jocoso, persuade-se de ter
nará o espetáculo com a belíssima e acreditada dança Amor concorrido de sua parte para que fiquem satisfeitas aquelas
Protege Amor. Sendo esta a primeira vez que a beneficiada, pessoas que se dignarem protegê-lo.
chegada de pouco a esta capital, para onde veio, não só
apresentar ao público o que de melhor pode fazer na sua
arte, como receber dele, em retribuição dos seus bons de- o Inspetor de Cena e a Cenografia
sejos e esforços, as demonstrações de acolhimento e favor
(qualidades estas que o tornam recomendável e digno de Uma das questões mais difíceis de elucidar, quando
ser generosamente atendido), espera ela merecer neste dia se investiga o funcionamento dos teatros da corte,
indulgência, animação e patrocínio. Os bilhetes vendem-se e principalmente do Teatro S. Pedro, é a que diz
na casa da beneficiada, rua de S.Jorge n!!2, entre a praça da respeito ao responsável pela palavra final sobre os
Constituição e a rua da Lampadosa, das 2 às 6 da tarde 259 • espetáculos que eram apresentados. Quem definia
os repertórios e selecionava as partes dos esperácu-
Além da indulgência que se roga para mãe e fi- los? Havia alguém que exercesse uma função apro-
lha, ambas estreando na corte, é de destacar o tom ximada à do encenador moderno? Em havendo,
caseiro da indicação final, informando o local de quais seriam exatarnente suas atribuições? O exem-
venda dos ingressos. Essa era uma informação que plo de João Caetano confirma que, no âmbito das
companhias, os procedimentos da encenação eram
258 É possível comprovar isso através da coluna "Palcos e Cir-
cos",do jornal O Estado de S. Paulo, que traz a programação do
"Polytheama Nacional" de São Paulo, no período que existiu 260 Manoel Soares era irmão da atriz portuguesa Ludovina Soa-
entre 1892 e 1914. res e pai de Tereza Soares, respectivamente primeira e segunda
259 "Teatros",Jornal do Comércio, Rio deJaneiro, I I de fevereiro damas da Companhia Portuguesa Cômica vinda ao Brasil em
de 1843. 19 29.

• 143
História do Teatro Brasileiro + volume 1

coordenados pelo principal ator, principalmente a eventual talento. É o caso de josé Antônio Tomás
partir das convenções de encenação portuguesa e Romeiro, que aparece, com bastante frequência,
francesa26I. citado tanto na coluna "Teatros", no ano de 1843,
No caso do Teatro S. Pedro, a situação é um como nos folhetins de Martins Pena, entre 1846 e
pouco mais complexa, pois aquela casa de espetá- 1847. Galante de Sousa refere-se a ele como "ins-
culos era uma cidadela encravada no Rio de Janeiro petor do Teatro S. Pedro de Alcântara em 1843, e
imperial. O teatro abarcava corpos estáveis de can- entre 1848 e 1850". Informa também que ele foi
tores, de atores e de músicos, e diversas funções membro do Conservatório Dramático, "eleito em
específicas como as do ponto, do puxa-vistas, do sessão de 15 de janeiro de 1848", e "suplente do
contrarregras, dos pintores e marceneiros, além Conselho em 1844 e 184(.
de muitas outras atribuições técnicas e burocrá- Luís Francisco da Veiga - o primeiro biógrafo
ticas. Tinha um corpo diretivo que atuava como de Martins Pena, que se deu ao trabalho de reali-
o governante de uma cidade cheia de problemas, zar um paciente levantamento, através do Jornal
impotente para atender tantas demandas. O cargo do Comércio, de todas as notícias publicadas acerca
máximo era o do presidente da diretoria, que da edição e representação das peças do dramaturgo
pouco se enfronhava nos assuntos propriamente no Rio de Janeiro entre 1837 e 1847263 - revela
teatrais. Havia, em seguida, o secretário da direto- ter havido uma franca amizade entre Pena e Tomás
ria, que deveria ser um cargo mais executivo, a ad- Romeiro, o que talvez explique como um jovem
ministração geral dos teatros, que, provavelmente, dramaturgo brasileiro tenha encenado dezenove
incluía a gestão dos teatros S. Pedro e S. Januário, peças no palco do principal teatro da corte, entre
e, finalmente, o inspetor de cena, também referido 1838 e 1845, incluindo-se entre elas o melodrama
como inspetor dramático, que com seu "camarim Vitiza ou o Nero de Espanha. Veiga resgata, por
no arco do proscênio'Y" era o responsável por exemplo, um comentário não assinado no Jornal
tudo o que acontecia no palco, incluindo-se os do Comércio do dia 15 de setembro de 1845, fora
espetáculos e todas as suas consequências na con- da coluna "Teatros': em que se elogia o esmero do
frontação com o público. Pelos registros encontrá- "sr. Romeiro" nos preparativos para a estreia:
veis na coluna "Teatros': de remissões ao inspetor
de cena do Teatro S. Pedro, é possível deduzir que Consta-nos que se acha em ensaios, e que brevemente subirá
além de decidir o repertório a ser encenado, definir à cena no teatro de S. Pedro, um drama original em cinco
os elencos, a cenografia, os figurinos e todos os aros e em verso, pelo autor das comédias O Noviço, O Inglês
demais aspectos artísticos e materiais das encena- Maquinista, OsIrmãos dasAlmas etc. Esse drama que se in-
ções, ele era o responsável imediato sobre tudo que titula Vitiza ou oNerodeEspanha, é extraído das crônícas
dissesse respeito ao teatro. Como era um cargo de espanholas do tempo dos reis Godos. Afirmam-nos que o sr.
poder e de confiança, é possível identificar alguns Romeiro, inspetor de cena, desvela-se em que o drama suba
períodos em que ele foi exercido por pessoa ligada à representação com todo o primor e pompa, e que assim
por parentesco ao presidente da diretoria, o que dirigido fará grande efeito em cena, tanto pelo interesse e vi-
deveria ser muito prejudicial para as lides concre- vacidade da intriga, como pelo aparato de todos os seus aros.
tas da cena. Com os indícios disponíveis, não só se Ansiosos esperamos pela noite da representação esem dúvida
conclui que o ínspetor de cena do S. Pedro foi uma o público acostumado a rir-se com as graciosas comédias do
pessoa com várias atribuições e habilidades, como mesmo autor nos acompanhará nesse desejo curioso de ver
é possível recolher comentários elogiosos ao seu como escreve ele o gênero trágico. É sem dúvida digna de
louvor a diretoria do teatro de S. Pedro por animar e proteger
261 Na verdade, no Brasil, continuou sendo assim até, pelo
menos, a década de 1940, senão até a de 1960, quando uma a escritores nacionais. Só assim teremos um teatro brasileiro;
geração de jovens encenadores, no TBC (Antunes Filho e Flávio e a nosso ver esse é o mais valioso documento que a díretoría
Rangel), Teatro de Arena (Augusto Boal e Vianinha) e Teatro
Oficina (José Celso Martinez Corrêa) pretenderam desenvolver
uma teatralidade à brasileira, com características cenotécnicas e 263Luís Francisco da Veiga, Luís Carlos Martins Pena: O
cenográficas próprias. Criador da Comédia Nacional, Revista do Instituto Histórico e
262 Martins Pena, Folhetins, p. 346. Geognífico, Rio de Janeiro, v. 4 0 , 1877, p. 375-395.

+ 144
• o Teatro Romântico

pode exibir, quando requer ao corpo legislativo loterias para selecionar uma companhia e, sem prejuízo da pro-
manutenção do teatro nacional"'64. gramação já definida para assinames e acionistas,
estabelecer critérios para sua permanência lá. Os
Esse comemário é um indício eloqueme de que jornais das semanas seguintes revelariam a situação
Romeiro era um nome decisivo na concretização incompatível que se criou entre a trupe chefiada pelo
do projeto teatral de Martins Pena. Sugere, tam- sr. La Puerta e a Companhia Nacional, impossibili-
bém, que a presença do "sr. Romeiro': como Pena tando que a primeira cominuasse ocupando o Tea-
a ele se referia em seus folhetins, iria além dos três tro S. Pedro, como será detalhado a seguir, quando
anos mencionados por Galame de Sousa e teria se for tratada a relação desse atar espanhol com João
manifestado em toda a década de 1840. Caetano. O episódio é ilustrativo das atribuições do
Que o inspetor de cena fosse responsável pela sr. Romeiro como gereme da programação, selecío-
concretização dos esperáculos, incluindo-se nessas nando os espetáculos merecedores de ocuparem o
atribuições a definição de papéis, coordenação de maior teatro da corte. Outro indício pertinente do
ensaios e definição de soluções cenográficas e ceno- papel cemral que o inspetor de cena exercia no Tea-
técnicas, já se podia supor pela leitura de Folhetins: tro S. Pedro, e indicativo de como ele era responsável
A Semana Lírica. O dado novo nessa notícia é o por todos os detalhes das encenações, aparece nos
reconhecimemo do inspetor de cena como alguém comemários críticos de Martins Pena. A opinião
com mais poderes e atribuições do que se imaginava. de Pena ganha relevo, se nos lembrarmos de que ele
As pistas apresemadas por Pena, acerca do desern- devia ter uma relação de amizade com o sr. Romeiro.
penho desse profissional na intermediação das Comemando a estreia da ópera Lucrécia Bórgia no
relações trabalhistas, já sugeriam uma autoridade dia 8 de junho de 1847, Pena assesta suas baterias
significativa sobre todas as ações transcorridas no comra os figurinos, responsabilizando o inspetor de
Teatro S. Pedre.Mas na coluna "Teatros" também cena e dirigindo-se díretamente a ele:
a sua autonomia em relação às questões estéticas
ou artísticas, freme à direção administrativa do Quando qualquer escritor crítico teatral diz que um artista
teatro, é realçada. No dia 2 de fevereiro de 1843, cantou e representou bem ou mal, pode-se deixar muitas ve-
por exemplo, informa-se sobre a perspectiva de zes de seguir asua opinião, por isso que reputa-se esta aprecia-
residência temporária da "Companhia Dramática ção negócio de gOSto;mas quando ele nota o erro de aparecer
Hespanhola', recém-chegada de Montevidéu. em uma mesma ópera arares com vestímentas disparatadas e
ridículas, e cuja censura não pode ser contestada, é do rigo-
o ínspetor dramático tem concedido o teatro mediante roso dever de V. Sa., como encarregado da inspeção da cena, o
ajuste particular a uma companhia dramática espanhola corrigir semelhantes erros, que tanto rebaixam o nosso teatro
chegada proximamente de Montevidéu, e a sua primeira à vista dos estrangeiros que o frequentam. [...] Pedimos-lhe
récita não será ainda esta semana. Os srs. acionistas e assi- que tenha mais atenção com a dignidade da cena, como lhe
nantes que querem gozar de seus camarotes, são rogados a cumpre, e com arepuração do primeiro teatro da corte, e que
mandar buscar os bilhetes de entrada até o dia 2, às 2 horas não se deixe levar por caprichos que nada servem. Por muitas
da tarde. O contrato é celebrado somente por três repre- vezes temos deixado de falar dos anacronismos acerca das
sentações, que serão extraordinárias, realizadas em dias di- vestímentas teatrais, por conhecer as circunstâncias do nosso
ferentes dos espetáculos da casa, findos os quais, conforme teatro; mas tudo tem limites, e não queira o sr. Romeiro, que
a aceitação, se resolverá se a referida companhia fará parte aliás é uma pessoa em quem reconhecemos merecimento,
das representações ordinárias do teatro",6s. que o tempo de sua inspeção passe em provérbio como o do
célebre Manuel Luís do Jacaré'66.
Fica claro pela notícia que o inspetor dramático,
ou de cena, do Teatro S. Pedro tinha a liberdade de 266 Martins Pena, Folhetins, p. 26 I. A ironia final de Martins Pena,
evocando a figura de Manuel Luís, dono e ensaiador do Teatro da
Praia (primeira edificação teatral do Rio deJaneiro, construída no
264 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1845. século XVIII) e que será sempre citado por Pena como paradigma
265 "Teatros",Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 2 de fevereiro de um artista despreocupado em zelar pelas artes da encenação,
de 1843. revela que, a despeito da amizade que houvesse entre os dois, o

• 145
A centralidade do inspetor de cena, particular- Sou muito obrigado a este senhor, tanto pelo acolhimento
mente de Romeiro no funcionamento do S. Pedro, franco e cordial que fez ao autor e à peça, pelo muito que
pode ser exemplificada, também, em notícia de 7 de se esmerou naquilo que dele dependia, bem como cenário,
abril de 1843 no Jornal do Comércio. Numa nota vestuário, ensaios etc. Demais como já disse, não deixei
fora da coluna "Teatros': intitulada "Teatro S. Pedro de aproveitar as observações mui judiciosas que me fez,
de Alcântara" e situada logo abaixo do noticiário da e não poucas vezes tive ocasião de avaliar sua penetração,
Câmara Federal e do Senado, José Bernardino de conhecimento da arte e o zelo incansável com que dirige os
Sá e Antônio da Cunha Barbosa Guimarães, ambos trabalhos cênicos. Não há dúvida que a concorrência que
membros de uma comissão nomeada pelos acionis- de há tempos se observa no teatro S. Pedro é devida aos
tas da "Sociedade Teatral S. Pedro de Alcântara': constantes esforços de seu digno ínspetor-",
relatam a exposição das contas dos teatros S. Pedro
e S. Januário, feita em assembleia geral pelo "ins- Ou, ainda, para confirmar a participação desse
petor dramático" José Antônio Tomás Romeiro. inspetor de cena do Teatro S. Pedro em todos os
Depois de considerarem as contas apresentadas, os assuntos propriamente artísticos, vale citar que,
dois relatores recomendam que sejam as mesmas em fevereiro de 1843, a coluna "Teatros" noticiou
contas completamente aprovadas, e que outrossim ter o "inspetor dramático" com "apossível antecedên-
se lhe agradeça o bom desempenho da missão que cia" ordenado "a prontificação de um rico cenário
lhe foi confiada, e as acertadas providências que e vestuário que exige a representação do aparatoso
deu a bem da empresa, dos quais tem resultado drama sacro - OReinado deSalomão-, o qual fará
o regular andamento dos espetáculos, apesar dos parte principal dos esperáculos da quaresma [...]".
inúmeros tropeços e dificuldades que de ordinário No dia 5 de março, informa-se que não foi pos-
se encontram em tão espinhosa tarefa, e que só por sível "prontificar-se" os cenários daquele drama e,
uma demasiada perseverança e absoluta dedicação finalmente, no dia 9 de março, o novo espetáculo
podem ser removidos'<. estreia com a coluna apresentando uma detalhada
É notável aqui como o inspetor de cena acumu- exposição de suas partes e cenografia269 • Mesmo
lava poderes no campo administrativo e contábil, não sendo mencionado o nome do ínspetor de
e poder-se-ia, em função dessa evidência, imaginar cena, fica claro na nota o enorme contingente de
que ele, afinal, não só participava ativamente das profissionais que a ele eram subordinados quando
gestões artísticas e técnicas das encenações como se tratava de uma nova estreia importante, como é
exercia funções administrativas. De qualquer modo, o caso dessa, realizada na quaresma, para o deleite
independentemente do seu grau de envolvimento da família imperial. Destaque-se entre os colabora-
na administração financeira e contábíl, é certa sua dores de Romeiro, Lopes de Barros, o responsável
ascendência sobre os espetáculos. Por exemplo, em pela pintura de diversos telões, João Victor Ribas, o
um "Comunicado" inserido na coluna "Teatros" de
uma edição abrangendo os dias 15 e 16 de junho
de 1843, um dramaturgo responsável por um texto 268 Idem, 15-16 de junho de 1843.
269 "Distribuição dos aros. Primeiro ate: a morre, a luta e a un-
recém-encenado no S. Pedro, Um Episódio da His- ção. Cena do Bosque, árvores e rochedos que se transformam em
tóriado Brasil, que não assina o artigo, analisa sua uma rica apoteose. Segundo ato: a traição, a estrela, a audiência
e as duas mulheres. Sala de audiência de Salomão: desenho e
própria obra e comenta a montagem. Apesar de um pintura do sr. Lopes de Barros. Terceiro ato: a morte de Híran.
tom autocrítico, a principal preocupação do autor O templo de Salomão: desenho e pintura de mr. Olivier. Quarto
aro: o prazer, a idolatria e o castigo. Sala dos prazeres que se trans-
é elogiar explicitamente o ínsperor de cena José An- forma em um árido deserto, o desenho e pintura do sr. Lopes
tônio Tomás Romeiro, destacando a forma como de Barros. Neste ato haverá um grande dançado, compostO e
dirigido pelo sr. Luís Montaní, do qual farão parte, executando
conduziu o processo de encenação: um terceto, as sras. Farina, Catton e Clara Ricciolini. ~ntO
ate: O Jordão, a profecia e a glória. Um deserto. Transformação
para a cena de glória, ornada com grupos de anjos: pintura do sr.
Lopes de Barros. O drama é ornado de coros e música em todos
cronisra não poupava ninguém em sua cruzada pelo fortalecimento os aros, cuja díreção e ensaios são do sr.João Vítor Ribas. Rico
do teatro brasileiro. vestuário, todo novo, feitOpelo mestre do guarda-roupa, Manoel
267 "Teatros':Jornal do Comércio, 7 de abril de 1843. Joaquim Fernandes Nobre".
+ o Teatro Romântico

maestro do coro e da orquestra; e ManoelJoaquim consolidou no período entre I83 3 e I863, definido
Fernandes Nobre, o "mestre do guarda-roupa". aqui como o da encenação romântica, ou como o
Um capítulo à parte, e o de mais difícil reconsti- de consolidação de uma teatralidade brasileira27 1•
tuição nessa arqueologia do Teatro S. Pedro na dé- Com o título "Cenografia" e o subtítulo "os srs.
cada de I 840, é o da cenografia. À parte a menção a Tagliabue e Picozzi", o artigo procura louvar dois
alguns nomes de pintores de telões, a base da ceno- cenógrafos que tinham recém-chegado ao Rio de
grafia romântica e de quase todo o século XIX, muito Janeiro com uma companhia de ópera italiana, co-
pouco se sabe sobre os efetivos recursos cenotécnicos mentando favoravelmente a cenografia criada por
do Teatro S. Pedro e sobre todo o suporte de adere- eles para as montagens de OsPuritanos e do balé
ços e recortes que eventualmente interagiam com os O Lago dasFadas. Porto-Alegre diz que o trabalho
fundos pintados. Na coluna "Teatros" encontram-se dos dois cenógrafos é "uma luz, que será profícua': e
algumas menções à cenografia e à indumentária dos os compara a antigos mestre da cenografia italiana
espetáculos. Em várias ocasiões o redator da coluna como "Servandoni, Biniena, Pozzo, Dagotti, San-
informa sobre aspectos cenográficos notáveis que o quirico e Nícolini" Segundo Araújo Porto-Alegre:
público poderá esperar de uma determinada ópera
ou tragédia. Em geral, essas informações estão asso- a cenografia é a vestimenta a caráter de um drama, é a sua
ciadas, como na última citação, à exposição dos aros vida local, é o complemento de todas as harmonias do ta-
das peças, correspondendo cada ato a um "decorado" lento: as musas do poeta, do músico e do pintor formam a
específico e, algumas vezes, com a indicação do pin- trindade do gênio na ópera italiana, cuja criação pertence
tor responsável pelo telão. Os dois ali mencionados, à civilização modernas".
Lopes de Barros e mr. Olivier, são também citados
por Lafayette Silva, quando comenta a decoração Comparando a cenografia às outras artes, refere-
do Teatro S. Januário, depois da reforma de I842. -se a ela como "a pintura" que escreve as "suas tragé-
OSmesmos Olivier e Lopes de Barros, bem como o dias e os seus poemas': ao contrário da música e da
figurinista Manoel Fernandes Nobre, não constam poesia, "em uma linguagem universal, que tem por
da lista apresentada por Galante de Sousa de artistas vogais a luz, e por consoantes as cores". Ela "possui
envolvidos com a cenografia no período. Referindo- a vara mágica, que toca num momento da vida da
-se aos principais cenógrafos para a implantação do humanidade, daguerreotipa-o, e transporta-o às
teatro de palco italiano no Brasil, Galante, um dos gerações vindouras, arrancando da noite do pas-
pioneiros na pesquisa da materialidade cênica do tea- sado uma dessas cenas exemplares". Comentando os
tro brasileiro, cita apenas os nomes de Jean Baptiste antecedentes cenográficos no Brasil, Porto-Alegre
Debret, Manoel da Costa eJosé Leandro de Carva- menciona Manoel da Costa, "que nos trouxe a
lho, este último responsável pela pintura do pano de vinda d'El-Rei, e que fez abrolhar alguns germens"
boca do Real Teatro de S. João, na inauguração em e "o inesgotável Debret, cujas composições subi-
I 8 I 3. No capítulo de O Teatro noBrasilem que trata ram o nosso cenário a um grau muito elevado". Os
da indumentária e cenografia no chamado período telôes de Debret teriam sido "o último clarão do
romântico, após I 838, cita apenas o esmero de João antigo teatro de S. João". Entre estes dois nomes,
Caetano com suas produções e arremata afirmando informa Porto-Alegre, "se intercalaram José Lean-
que "a missão do cenário não foi compreendida pelo dro, Francisco Pedro do Amaral, Francisco Ignácio
romantismo'Y". e José da Silva Arruda". Quanto ao período entre
Em meio a essa escassez de referências sobre a
cenografia romântica no Brasil do século XIX, um 271 Ver também ensaio de João Roberto Faria, A Lanterna
Mágica: Imagens da Malandragem, entre Literatura e Teatro,
texto de Manuel de Araújo Porto-Alegre, publi- em A Comédia Urbana: De Daumier a Porto-Alegre, São Paulo,
cado na revista Guanabara, é um dos testemunhos Catálogo de exposição homónima, Paap, 2003, P: 172-191. O
pesquisador contextualiza a participação de Porto-Alegre no
mais ricos sobre o conceito de cenografia que se meio teatral brasileiro na década de 1840, a partir do folhetim
ilustrado A LanternaMdgica, Periódico Plástico-Filosófico publi-
cado no Rio de Janeiro entre 1844 e 1845.
270 J. Galante de Sousa, O Teatro no Brasil,v. 1, P: 187. 272 Cenografia, Revista Guanabara, 1850, n. 2, p. 19.

+ 147
História do Teatro Brasileiro • volume 1

1839 e 18 5o, Porto-Alegre menciona os nomes de sua origem réproba". Enfim, havia uma limitação
"Mrs. Malívert e Olivier, dos srs.Joaquim Lopes de insuperável naquela teatralidade construída no
Barros, Freitas e Morta" só para retornar ao tema principal teatro da corte e, talvez por isso, os dois
central do artigo e lembrar que, "com a presença italianos tenham sido para Porto-Alegre, além de
de Tagliabue e Picozzi, todos estes jovens se escu- Debret, os únicos cenógrafos que tiveram a honra
recem". É, porém, no comentário díreto sobre os es- de ser chamados à cena para receber aplausos pelo
petáculos que mais se revelam a cenografia daquele cenário construídov",
período e os critérios de valor que a sustentavam:

Os cenários do Lago dasFadas são obras superiores: o luar João Caetano) José La Puerta
foi mui bem ordenado; a vista da Aldeã que nos abriu a e Outros Atores-Empresários
gruta encantada tinha belezas magistrais; a massa de luz que
batia nas casas da direita, e aquela réstia de sol que vinha Como já foi apontado no início, seJoão Caetano foi
dourar a base da torre antiga, a entrada da ponte, do lado es- o ator brasileiro romântico por excelência, sua traje-
querdo, assim como os bastidores do quarto plano, eram de tória tanto intersecta retrospectivamente com a es-
uma execução brilhante. O segundo plano, figurando uma cola neoclássica como antecipa a escola realista. No
colina rídente da bela Itália, coroada por fábricas colossais, período mais propriamente romântico, da década de
assentadas sobre gigantescos berarcos, e circulada de outras 1840, ele esteve fora do Teatro S. Pedro. Afastado no
construções, é uma bela concepção: as linhas têm um bom final de 1840, depois de um desentendimento com
cadenciado perímetro, e recordam ao vivo aquele caráter a administração do teatro, João Caetano permane-
de edificar, que nenhuma nação moderna tem sabido dar às ceu atuando nos teatros S. Francisco e S. Januário,
suas obras. A gruta encantada, o cimbre fantástico, é uma na corte, e no Santa Teresa, em Niterói, Em 18)1,
obra magistral; que belo efeito não produz esse granizo de retornou ao S. Pedro na condição de empresário,
prata, tressuado pelos ínterstícios, pelos ramos encarnados assumindo não só a administração como todo o
de formosos corais, e pelo âmago esmaltado das alvíssimas controle das encenações ali realizadas, além, é claro,
conchas, que perfilam e procuram uniformizar aquelas ar- de continuar se apresentando como ator. Todo esse
carias, onde o gênio que criara Alhambra parece ter bebido período de atuação de João Caetano, que se con-
suas inspirações! Conhecimento perspectivo, vigor de to- funde com a própria história do teatro romântico
que, feliz disposição da luz, tais são os predicados dos srs. no Brasil, foi brilhante e minuciosamente analisado
Tagliabue e Picozzi, de quem esperamos mais amplamente por Décio de Almeida Prado, em dois livros funda-
escrever,quando os virmos colocados no espaço majestoso mentais sobre a trajetória artística do ator e o papel
da arquitetura, e nos fizerem penetrar momentaneamente que desempenhou em nosso romantismo teatral'?',
nessas sunruosas criações de todas as idades, e aí lermos João Caetano, não é demais enfatizar, foi um
na forma do arco, do capitel, e da laçaria o século a que ator extraordinário, que se notabilizou como
pertencem, e a mão que as edificou'?'. protagonista de tragédias neoclássicas, dramas
românticos e melodramas, que consagraram seu
Porto-Alegre termina o artigo dividido entre o estilo de interpretação grandioso e grandiloquente.
entusiasmo por uma "nova era e brilhante para o Comparado pelos seus contemporâneos a grandes
teatro de S. Pedro de Alcântara': que a cenografia atares europeus, como Talma ou Frédérick Lemairre,
mencionada augura, e a certeza de que ali "nada se conquistou uma legião de fiéis admiradores que o
faz de completo': pois todas as obras lá encenadas seguiram pelos teatros em que trabalhou e que o
"aparecem como aquelas virgens do inferno, que, defenderam de críticas, sobretudo as desferidas por
apesar de sua beleza e satânicos artifícios, nasciam jovens intelectuais que, na década de 1850, queriam
com um sinal indelével na fronte e no peito, para
que sempre se conhecesse o eterno estigma de 274 Idem, p. 2I. "Os srs. Tagliabue e Picozzi forão chamados à
scena, e vivamente aplaudidos: são os segundos que obtiveram
esta honra, em Outros tempos concedida a Mr, De Bret",
273 Idem,p. 2I. 275 João Caetano; eJoão Caetano eaArte doAtor.
• o Teatro Romântico

maior empenho do acor no fortalecimento do teatro João Caetano a partir de 1845. Melodramas de
brasileiro e menos preocupação com a glória pessoal. Joseph Bouchardy, Victor Ducange, Anicet Bour-
O repertório de João Caetano, em trinta anos geois e Adolphe Dennery, entre outros, ganharam
de trabalho ininterrupto, revela as tendências e o a preferência do ator, quando percebeu que fazia
gosto da plateia brasileira dos tempos românticos. muito mais sucesso nesse tipo de peça de forte
Inicialmente o ator notabilizou-se como intérprete apelo popular do que em peças de valor literário.
de tragédias neoclássicas, como Zaíra, de Voltaire, Eis como Décio de Almeida Prado explica a adesão
Fayel, de Baculard de Arnaud; Otelo e Hamlet, de João Caetano ao melodrama:
adaptações de François Ducis; A Nova Castro, do
portuguêsJoão Batista Gomes Júnior; AntônioJosé ParaJoão Caetano, em particular, a literatura melodramática
ou o Poeta e a Inquisição, de Gonçalves de Maga- foi o esteio que o escorou nos anos de maturidade. Transpos-
lhães; Oscar, de Antoine Vincent Arnault; eAristo- tas as ilusões da juventude, quando ele encarnou, perante os
demo, de Vincenzo Menti. Curiosamente, o estilo olhos maravilhados dos escritores do seu tempo, sejam os
de interpretação deJoão Caetano, nessas tragédias, últimos lampejos da tragédia neoclássica, seja a meteórica
distanciava-se do ideal clássico e fazia uso de re- ascensão do drama romântico, seja a esperança de uma dra-
cursos românticos. Quer dizer, nem sempre o ator maturgia nacional, a realidade de todos os dias que lhe res-
conseguia manter a objetividade e o domínio sobre tou nas mãos, como expressão média da sensibilidade teatral
os sentimentos dos personagens, confundindo-os brasileira, foi muito mais Bouchardy do que Victor Hugo,
às vezes com os seus próprios, a ponto de certa vez, muito mais Dennery e Anicet Bourgeois do que Voltaire e
num dos intervalos da representação de Antônio Ducis. A partir de 1845, à medida que crescem os seus encar-
José, ficar no camarim, banhado em lágrimas, ten- gos comerciais e as suas responsabilidades como empresário,
tando se recompor para voltar ao palco. Em outra todos os seus grandes êxitos são, de uma forma ou de outra,
ocasião, quase estrangulou a atriz Estela Sezefreda de natureza popular. A bilheteria falava - e João Caetano,
numa cena de ciúmes, provocando a interrupção do vivendo de sua profissão, não podia fechar os ouvldos'>.
espetáculo pelos outros artistas. Esses fatos foram
relatados pelo próprio João Caetano no livro que O fato é que tamanha presença na cena teatral
escreveu para auxiliar os candidatos à profissão de brasileira ofuscou os demais artistas e realizadores
ater, Lições Dramáticas. Ele se criticava por esses do período romântico. O que se pode fazer aqui, a
exageros interpretativos, porque se queria ator trá- partir da coluna "Teatros': do Jornal do Comércio,
gico, mas todo o prestígio que conseguiu deveu-se é retirar da sombra provocada por João Caetano
aos momentos em que se mostrou ator emocional e sobre seus contemporâneos alguns nomes, algumas
intempestivo. Afinal, os personagens que encarnou práticas e até alguns antagonistas que tenham divi-
traziam dentro de si paixões violentas, emoções dido com ele a atenção do colunista.
fortes, delírios, cóleras, tudo enfim que exigia uma Os artistas em atividade na década de 1840
resposta cênica vibrante. eram, em sua grande maioria, portugueses, alguns
Além das tragédias neoclássicas, João Caetano remanescentes da companhia dramática portuguesa
pôs em cena cerca de vinte dramas românticos, que viera ao Brasil.em 1829, e outros recém-apor-
notadamente entre 1836 e 1845. Não fosse o seu tados. Nenhum deles fazia sombra aJoão Caetano,
empenho, a plateia brasileira não teria conhecido que mesmo não trabalhando no principal teatro da
as principais obras de dois grandes escritores corte permanecia como a referência nacional em
franceses, Victor Hugo e Alexandre Dumas. Do termos de qualidade interpretativa. Um dos pou-
primeiro, ele encenou Ernani e O Rei se Diverte; cos casos em que se esboçou uma rivalidade, ainda
do segundo, nada menos que nove dramas, com que tênue, foi quando, na temporada de 1843, a já
destaque para Antony, A Torre de Nesle e Kean ou citada Companhia Espanhola, do ator e empresário
Desordem e Gênio. Jose La Puerta, desembarcou no Rio de Janeiro.
O valor literário dessas peças contrasta com o
das peças que passaram a dominar o repertório de 276 João Caetano, p. 88.

• 149
História do Teatro Brasileiro • volume 1

La Puerta continua em cartaz por cerca de


dois meses, ocupando ora o Teatro S. Pedro, ora
o S. Francisco. Seu trabalho é comentado favo-
ravelmente pela imprensa e o articulista da seção
"Teatros': a I I de abril, destaca as apresentações
do ator como fatos extraordinários na vida teatral
da corte. O desempenho na montagem deA Gar-
galhada ganha elogios que não deviam deixar João
Caetano indiferente:

Quereis ver o que é representar bem? Ide ver trabalhar o


sr. La Puerta, a sra. Carmem. Aborreceis a declaração can-
tada, a monotonia dos acionados, as posições afetadas, de-
feitos inseparáveis da mor parte dos nossos artistas? Ide ver
trabalhar a companhia dramática espanhola; dela devem
aprender os artistas do Teatro S. Pedro... aprender? Não são
capazes; o sr. Romeiro, apesar de grandes esforços, nada tem
obtido de ateres que por amor da arte nenhum sacrifício
fazem: salvamos as poucas exceçõest".

João Caetano, jovem, retratado por Boulanger.


Com certeza, João Caetano devia sentir-se a
exceção àquela regra da mediocridade, que atingia
tanto os artistas brasileiros como os portugueses.
A primeira menção aparece na coluna "Teatros" Ainda em abril, a coluna "Teatros" anuncia mais
em 2 de fevereiro de 1843. Informa-se sobre sua duas estreias da companhia espanhola, sempre
chegada procedente de Montevidéu. Nas duas se- . com entusiasmados elogios, o que chega a sugerir,
manas seguintes, a partir do dia 4, são feitas quatro mais do que um trabalho de crítica teatral, o caráter
récitas extraordinárias no Teatro S. Pedro, interca- publicitário de suas linhas. Fosse estimulado pelo
lando O Trovador, de Garcia Gutíerrez'?", um su- desafio em si, fosse pela necessidade de confron-
cesso de João Caetano dos anos anteriores, e Otelo tar um rival que ameaçava sua condição de maior
ou oMouro de Veneza, anunciada sem o nome do ator em solo pátrio, João Caetano respondeu em
autor (Shakespeare ou Ducis?). No ápice dessa se- maio, anunciando, no dia 17, que estrearia no S.
quência, no dia 24, anuncia-se a apresentação "em Francisco A Gargalhada, na qual interpretaria
benefício de D. Jose La Puerta' deA Gargalhada o papel de André, o "ladrão honrado". Décio de
ouoLadrãoHonrado, de Jacques Arag0 278, seguida Almeida Prado comenta que La Puerta estava no
da comédia.LVão Mais Rapazes, com destaque para teatro no dia da estreia do ator brasileiro na peça
a atriz Carmem La Puerta, uma especialista no que introduzira no Brasil meses antes e que ao fi-
gênero interpretando "quatro caracteres, três deles nal do espetáculo foi aos camarins, receando que
em traje de homem'T". João Caetano tivesse sofrido uma apoplexia, tal a
intensidade de seu desempenho na famosa garga-
277 D. de A. Prado (Idem, p. 44), comenta que o "drama caballe- lhada que a personagem dava 28I • Descontadas as
resco" de Gutierrez continha "o maior equívoco já ousado por um
autor dramático: a mãe que por engano lançaao fogd b próprio filho': 280 Idem, 11 de março de 1843.
278 D. de A. Prado define a peça corno melodrama, mas atípico, 281 Eis o enredo da peça: "André Lagrange retira 1.000 francos
pelo "seu realismo miúdo e cotidiano (realisl}1o apenas de deta- da firma em que trabalha para salvar a vida de sua mãe, necessi-
lhe, bem entendido), a relativa simplicidade de sua concepção tada, por conselho médico, de um longo repouso numa estação
[...] numa caregoria à parte, sem nada que a aparente, quanto à de águas. Quando vai repor o dinheiro, é surpreendido e acusado
temática e aos processos teatrais, ao melodrama autêntico". CE de roubo. Enlouquece, mas de um modo estranho, através de um
Idem, p. 94-97. ataque de riso convulsivo, frenético". CE D. de A. Prado,João
279 "Teacros~Jornal do Comércio, 24 de fevereiro de 1843. Caetano, p. 97.
• o Teatro Romântico

versões favoráveis ao brasileiro, não resta dúvida de quando este dirigia, em fins de 18 58, a companhia
que João Caetano tomou La Puerta, mais do que do Teatro S. Januário. Germano tinha montado
como um rival, como um modelo que influenciaria 29 ouHonra e Glória, do português José Romano.
seu estilo doravante. Isso fica claro na afirmação de João Caetano, que já rivalizara com ele em duas
Araújo Porto-Alegre, segundo a qual]oão Caetano ocasiões - em 1840, no Teatro S. Pedro, e 18 49,
"somente o imitou plasticamente". Comentando na Bahia - decidiu montar a mesma peça e estreou
essas palavras, Décio de Almeida Prado conclui menos de dois meses depois no S. Pedro. Germano
que a influência do espanhol sobre o brasileiro mandou seus fãs vaiarem João Caetano, atitude que
consistiu apenas "num certo repertório de gestos, foi retribuída, depois, pelos fãs de João Caetano
de atitudes': e "numa movimentação mais ousada, contra Germano. No final, como João Caetano já
mais romântica'.282 fosse, naquela altura, unanimidade nacional, Ger-
O troco de La Puerta não demorou. Seis dias mano acabou retirando-se da luta e viajando para
depois ele estreou no S. Pedro Oscar ou o Amor Pernambuco'<'. O importante a frisar é que, seja
Frenético, peça que, com outro nome, tinha con- no caso de Germano, o único brasileiro a desafiar
sagrado João Caetan0 283. O ator espanhol utilizou abertamente a hegemonia de João Caetano, seja no
dessa vez, inclusive, a tradução para o português de de La Puerta, que indiretamente não só o desafiou
Gonçalves de Magalhães. Para evitar qualquer mal como muito o influenciou, trata-se das exceções
entendido, La Puerta faz o colunista do Jornal do que confirmam uma soberania incontestada do
Comércio publicar uma advertência: ator brasileiro no panorama teatral do romantismo.
Para o estudo da teatralidade romântica vale
Sem pretender o díretor da Companhia Espanhola rivalizar também colher informações acerca do estilo de in-
com tão digno ato r, seu amigo, tendo por fim oferecer ao terpretação dos ateres no período. Seguindo ainda
público as obras de mais mérito que tem no seu arquivo, o rastro da Companhia Espanhola, em 2 de julho
escolheu esta que entre todas estudou com mais meditação de 1843, pode-se ler um texto supostamente escrito
e representa com mais goSto284 • pela jovem primeira atríz da Companhia, a sra. Car-
mem La Puerta, enaltecendo e, em última instância,
Para não deixar dúvidas de que se tratava de uma descrevendo a interpretação de La Puerta no drama
corrida competitiva, vale lembrar que João Cae- derivado de Shakespeare, OsFilhos deEduardo ou o
tano reestreou pouco mais de quinze dias depois, Regente Usurpador. A descrição apresenta um con-
a 10 de junho, no S. Francisco, a sua montagem de junto de traços típicos da interpretação romântica,
Oscar ou oFilhode Ossian. e revela de forma eloquente os valores que conta-
Todos esses fatos colhidos na coluna sugerem minaram a interpretação do próprio João Caetano:
uma provável tensão criativa entre um grande ator
estrangeiro e o nosso maior ator do século XIX, e, no o odioso papel do tirano usurpador e assassino hipócrita,
mínimo, confirmam a influência, por espelhamento, duque de Gloucester, será desempenhado por nosso mestre
do ator e empresário espanhol sobre João Caetano. e díretor o sr. La Puerta [...]. A execução desta parte é amais
Outros episódios de uma competição aberta en- difícil que a um arar oferecer-se pode, pois que, sendo a
treJoão Caetano e os ateres seus contemporâneos principal e a de mais trabalho cênico, o sr. La Puerra tem
foram apontados na bibliografia canónica sobre de em todo o drama jogar toda a ação, e exprimir diversos
o ater, sendo o mais famoso deles o que envolve sentimentos d'alma.sornente com o braço direito e os olhos,
o conterrâneo Germano Francisco de Oliveira, tendo imóveis a cabeça e o braço esquerdo, figurando ter
defeituoso e disforme o peito e o ombro; finalmente, re-
282 Idem, ibidem. presentando a figura de um corcovado, com a cabeça saída
283 Com o título Oscar ou o Filho de Ossian, a tragédia de An-
toine Vícent Arnault foi interpretada por Talma em 1796. D. de
A. Prado lembra que Oscar mereceu três citações deJoão Caetano 285 Lafayette Silva, Histáriado Teatro Brasileiro, Rio de Janeiro:
em seu livro LiçõesDramáticassó sendo excedido por Otelo, que Ministério da Educação e da Saúde, 1938, p. 193-194. Segundo
teve cinco. CE. idem, P: 32. Lafayette Silva, Germano era carioca, nascido em 28 de maio de
284 "Teatros':Jornal do Comércio, 23 de maio de 1843. 1820 e estreou aos treze anos no teatro da rua dos Arcos.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

sobre o ombro esquerdo, e este mesmo braço imóvel, tal pela Companhia Lírica Francesa. Mathevet ofe-
como era o usurpador Ricardo n 286 • recia um tipo de atração que décadas depois seria
apresentada nos politeamas e nos circos brasileiros.
É imprescindível mencionar ainda, no que diz No dia 12 de março de 1843, a coluna "Teatros"
respeito aos ateres em atividade naquele período, a trazia informações, na parte dedicada ao S. ]anuá-
existência de atrações nos teatros da corte que hoje rio, em francês, sobre uma atração nada lírica, a ser
seriam identificadas como performances, ou como apresentada no dia seguinte:
shows de variedades. Elas eram apresentadas tanto
nos maiores teatros como em anfiteatros abertos, Grande récita extraordinária em benefício do sr. Machevet,
como o do Campo de S. Cristóvão ou o da rua do primeiro alcide e primeiro modelo das academias das cinco
Lavradio. Para a coluna "Teatros': tudo era espe- grandes potências da Europa. Assinaturas e entradas de fa-
táculo e não se diferenciavam as atrações e os de- vor geralmente suspendidas; o sr. Mathevet nada poupou
sempenhos. Veja-se a notícia que vinha embaixo do para tornar esta representação brilhante e digna das pessoas
título 'Anfiteatro': no dia 12 de novembro de 1845: que se dignarem honrá-lo com a sua presença'!".

Beneficiado: sr. Alexandre Loanda, Direror da Compa- A notícia prosseguia, em francês, informando
nhia. A Companhia americana espanhola dará o seguinte que participava do programa a peça Le Paysan
esperáculo. Primeira parte: r. Grande entrada a dez cavalos perverti ou Quinze ans de Paris - drame en trois
em vestuário chinês, ao som da Marselhesa; 2. A muito journées de NI. Théaulon. Em seguida vem a des-
aplaudida dança chinesa; 3. Pirâmides executadas pelo crição em português de "exercícios ginásticos in-
beneficiado; 4. Exercício a cavalo pelo sr. Cruz. Segunda teiramente novos" :
parte: r. Forças e diferentes posições na coluna giratória
pelos três Hércules, um dos quais suspenderá um cavalo; Primeira parte: O Braço deAço- o sr. Mathevet ficará com
2. Pirâmides de 5 pessoas sobre 2 cavalos; 3. Pernas de pau o corpo perpendicular, sustendo-se com um só punho. A
pelo beneficiado; 4. O célebre equestre sr. Acher fará muiro Coluna no Carvalho - A Experiência doLenhadordeSalerte,
dificulrosos exercícios a cavalo; 5. A macaca gregária apare- na qual o sr. Mathevet quebrará um pau de 4 polegadas de
cerá no seu piquira; 6. Terminará o espetáculo com a muito diâmetro sobre dois copos com água, sem a enrornar [...]290
aplaudida cena pantornímica - O Oficial eoRecruta-, so-
bre dois cavalos, pelo beneficiado e o sr. Cruz. Eis o diver- Na sequência, nova atração em francês, seguida
timento que o beneficiado oferece ao respeitável público da "terceira parte":
desta corte, de quem espera acolhimento e proteção-".
O Sonho de Hércules) ou A Noite dosMortos, na qual o
Se cada um dos teatros tinha suas companhias sr.Marhevet represenrará rodas as estátuas de mármore
estáveis, em geral formadas na sua maioria por que se acham expostas no Vaticano de S. Pedro em Roma.
ateres porrugueses-", havia sempre companhias
internacionais itinerantes que passavam por Bue- Mathevet esticaria sua temporada no Rio até o
nos Aires e Montevidéu. Uma delas foi a do "sr. início de abril, quando, no dia 9, fez no teatro Santa
Mathevet", que esteve no Rio em 1843 e apresen- Teresa "uma última récita' entre os atas da comédia
tou-se no Teatro S. ]anuário, na época ocupado D.João d'Alvarado:

286 "Teatros",Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 2 de julho No fim do 12 aro o fenômeno ocidenral executará a Ia
de 1843. A aurora provavelmente confunde Ricardo II com
Ricardo III. parte - deslocação geral. Seguindo-se o 2 2 aro da comédia,
287 Idem, 12 de novembro de 1845. findo o qual seguír-se-á a 2 i parte executada pelo sr. Mathe-
288 No Teatro S. Pedro havia a Companhia Nacional, onde só vet: Gymnase ateniense - O Deus Marre - O Pedestal- La
os coros e figurantes eram brasileiros e, a partir de 1844, a Com-
panhia Lírica Italiana. O S. Francisco tinha a Companhia de
João Caetano, também frequentadora do Santa Teresa. E no S. 289 Este e os demais trechos do referido programa foram tradu-
Januário, como já dito, por alguns anos, no início da década de zidos por mim.
1840, esteve a Companhia Lírica Francesa. 290 Jornal do Comércio, 13 de março de 1843.
• o Teatro Romântico

Diavolo - O Passeio de Hércules - As Folias de Baco. - O o título ''A Semana Lírica': noJornal do Comércio,
sr. Eugênio fará o passeio sobre 12 garrafas e tomará dife- ao longo de .catorze meses, não só servem farta-
rentes equilíbrios. Em seguimento o 32 • ato da comédia; mente ao historiador da materialidade teatral como
finalizando o esperáculo com a 3i\parte - Mario nos Fer- criam uma verdadeira peça literária, com narrativa
ros - o sr.Marhevet executará todas as dores e sofrimentos estruturada em personagens fixos e mecanismos
segundo a história. A sra. Francisca Mathevet executará o retóricos recorrentes.
moinho encantado, iluminado pelas chamas de Bengala. Há uma preocupação de valorizar cada noite,
cada ópera, cada evento comemorativo específico
o programa é o testemunho mais cabal de como se fosse uma obra em si mesma que merecesse
que o espectador do período romântico, quando detida análise. Na maior parte das vezes, o olhar do
pensa em teatro, reúne nessa ideia uma variedade cronista escapa do palco e vê-se tentado a incluir
de desempenhos que transcende em muito o uni- na sua apreciação o desempenho do público, da
verso ficcional e formal da literatura dramática. A polícia e da justiça do teatro, de seus administra-
própria coluna "Teatros" do Jornal do Comércio dores e funcionários, quando não salta do próprio
reflete essa amplitude na medida em que, tradu- espaço do S. Pedro e do S. Francisco e se lança em
zindo objetivarnente o que se apresenta nos teatros projeções mais ambiciosas e visionárias->.
no dia a dia da corte, acaba sendo ela própria uma Na "Semana Lírica': além da descrição e críticas
miscelânea. A história do espetáculo romântico e da realidade crua do S. Pedro, alinhavam-se fatos de
da teatralidade que o caracterizava, bem como do um passado remoto em um plano ficcional à parte,
teatro brasileiro em todo o século XIX, não pode para onde o cronista se evade sempre que for ne-
prescindir dessa dimensão material e concreta da cessário um termo de comparação com o presente.
cena do período. Nesse sentido, Mathevet ou o por- Às vezes será a alma de Manuel Luís que se mani-
tuguês João Pereira?" - cujas especialidades eram festará em cartas ao cronista, toda vez que se trate
anunciadas poucos dias depois dos espetáculos do de mostrar que o princípio da ruindade tem no
francês - são tão relevantes quanto João Caetano, passado um modelo em que se basear. Mas quando
e colaboram igualmente para a consolidação das se trata de projetar um futuro glorioso, o cenário
práticas teatrais no país. se torna um distante "céu': onde dialogam sobre
as agruras do Teatro S. Pedro o próprio São Pedro,
São Francisco e o grande Bellini. Nesse plano ideal
Folhetins - Semana Lírica: o cronista, além de colorir os comentários com fino
Ensaio de Uma Farsa Trágica senso de humor, comunga com as opiniões sensatas
dessas entidades celestes sobre os caminhos para a
De todas as referências disponíveis sobre a teatrali- redenção do teatro brasileiro.
dade brasileira romântica, nenhuma se equipara às De certa maneira, o que pareceria uma farsa,
crónicas de Martins Pena sobre as temporadas líri- ou comédia, como o próprio Pena sugere quando
cas da corte entre 1846 e 1847 e, principalmente, aponta o caráter novelesco da contenda interminá-
sobre o Teatro S. Pedro. As crónicas, publicadas sob vel entre os corpos estáveis e a diretoria do S. Pedro,
resolve-se em desfechos dramáticos - o fim da or-
291 No dia 23 de abril de 1843 a coluna "Teatros" informa a
chegada do artista, que já havia trabalhado "nos teatros de S. questra, a saída da Companhia Italiana, a saída da
Carlos, Salitre e outros. Depois de executada uma das melhores
sinfonias, dará princípio a primeira parte com jogos rnalabares.
As bolas de ouro - as facas - os pratos - os ovos - o colar ameri- 292 Na crónica de 17 de março de 1847, Pena se posiciona
cano - os pauzinhos incendiados - e a subida da escada chinesa. frente à ópera antecipando, em seu raciocínio, a ideia de \Vag-
Findo o qual seguir-se-á a jocosa comédia em dois aros Próspero ner de umagesamtkunswerk (obra de arte total): "Vemos nela a
e Vicente. No fim do primeiro ato terá lugar a segunda parte do reunião de todas as belas-artes, da música, da poesia, da pintura,
equilíbrio - o pião, a escada - a moleta - a espingarda - aspenas da arquitetura, da ótica e da mecânica, em uma palavra, a grande
de pavão - o salto do leão por cima de quatro pessoas.Seguindo- obra por excelência, como o seu nome indica: Ópera': Martins
-se o ato da comédia. Em seguimento, a terceira parte - A gra- Pena, Folhetins: SemanaLírica, Rio deJaneiro: MEC-INL, 1965,
ciosa cena do bêbado nas pernas de pau. Finalizará o espetáculo p. 171. VilmaArêas foi a primeira a lançar luz sobre as crónicas
com a quarta - a subida do fio frouxo, executando nele o jogo de Pena no capítulo Caixa da Cena, de Na Tapera de Santa
das bandeiras, o arco, o copo e o exercício militar do fogo". Cruz, P: 5-42 .

• 153
História do Teatro Brasileiro • volume 1

soprano francesa do S. Francisco - e, não incluído (i) a criação e a operação da cenografia; (ii) a admi-
nesse roteiro de peripécias, mas projetando nele nistração dos corpos estáveis pela díretoria e a crise
um tom inescapável de tragédia, a morte do pró- dela advinda; (iii) a análise do comportamento do
prio Pena, menos de um ano depois da última e já público e, em particular, do fenômeno da pareada,
melancólica crônica. (iv) um programa específico para a reforma da cena
Quando os folhetins deixam de ser publicados de seu tempo, que levaria a uma eventual "ópera-
em 1847, sem que nenhuma daquelas reclamações -côrnica brasileira">".
por um teatro melhor tivesse sido atendida, já se Os comentários de Martins Pena sobre a cenogra-
pressente que todos aqueles sonhos teriam de ser fia e sobre os procedimentos cenotécnicos são acura-
adiados. Nos dez anos anteriores, Pena tinha pro- dos e não serestringem a opiniões superficiaissobre as
pugnado pela viabilização, no Teatro S. Pedro, das imagens que são oferecidas; ao contrário, vão às suas
condições técnicas e materiais necessárias à ence- origens e remetem aos seus autores. Isso fica claro no
nação de todo o repertório europeu de ópera, e dos comentário feito em 8 de setembro de 1846 a respeito
autores brasileiros que se aventurassem nessa dire- da estreia de Beatrice di Tenda, de Bellini:
ção:1.93 • Essas condições só se concretizam quando
João Caetano assume o Teatro S. Pedro, artística e Ao levantar do pano, avista-se um pátio interno no castelo
empresarialmente, em 185 I. Por essa razão poderia de Binasco, uma ala do palácio iluminada e sinais de festa. A
ser chamado de patrono do espetáculo brasileiro, nossa má sina já nos obriga aqui a fazer uma censura. Fecha a
embora mais justo seria dividir a honraria com cena pelo fundo com as muralhas do castelo, ao qual supõe-se
Martins Pena, que foi quem primeiramente pro- dar ingresso,uma ponte levadiça que joga entre dois bastões;
pôs esse caminho: concretamente, nas montagens ora servindo as pontes levadiças para se transportarem os
em que acompanhou Romeiro no Teatro S. Pedro; fossos que circundam as muralhas pela parte exterior, como
imaginariamente, em seus folhetins'>. figurou o pintor a dita ponte dobrando para o interior do
O caráter programático e reformador dos folhe- castelo? Ele que nos explique essenovo sistema de fortifica-
tins de Pena, ao lado da narrativa bem-humorada ção. [...] A perspectiva foi bem tornada, a colunata do pano
e satírica já mencionada, revela, inclusive, uma co- está em perfeita harmonia com os bastidores, predicado a que
nexão entre o projeto de um espetáculo brasileiro e nunca atendem os nossos pintores de teatro, que quebram
alguns de seus dramas. Os aspectOs programáticos sempre a linha de perspectiva na passagem dos bastidores
expressam-se nos quatro temas que mais se repetem: para o pano do fundo. É de sentir que se não concluísse esta
decoração pintando-se as bambolinas apropriadas, cuja falta
293 Ironicamente, em 17 de julho de 1857, segundo oJornaldo deixa a galeria como arruinada em parte. Os srs. Mota e Frei-
Comércio, nove anos depois do falecimentode Pena,foi criadaa tas devem completar a sua obra ' 96.
ImperialAcademiade Músicae Ópera Nacionalevaleriainvesti-
garo quanto essefato poderia ter sidoinfluenciado pelascrônicas
queescreveu. A instituiçãointerrompeusuasatividades em 1864- A questão dos corpos estáveis - orquestra, coro
294 R. MagalhãesJr.e SoaresAmoraapontam umaconexão entre
as descrições pitorescasde Debret e algumas das cenasdas comé- de cantores, coro de ateres - consome boa parte
diasde Martins Pena. SoaresAmora salientaque Pena conviveu, de várias das crônicas de Martins Pena. Em 6 de
entreosdezoitoe osvinteanos,comoalunodaAcademia deBelas-
-Artes,com a herança deixadapor Debrer, cujo Viagem Pitoresca julho de 1847, ele fala na "comédia que segundo
Através doBrasilfoipublicado em 1834,quando o comediógrafo nos consta já se está escrevendo e cujo título é o
tinha 19 anos. Ele estende essainfluência às imagens de outros
viajantescomo John Luccok, de Notas Sobre o Rio defaneiro e seguinte: A Crise Teatral ou, Em Casa Onde não
Partes Meridionaisdo Brasil, publicado em 1820; Rugendas, de Há Pão, Todos Gritam e Ninguém Tem Razão".
Viagem Pitoresca eHistórica doBrasile CarlosSeídler, deDezAnos
deBrasil, esses doisúltimospublicadosem 1835;R. MagalhãesJr., Como o título por ele sugerido indica, boa parte
Martins Penae SuaÉpoca, São Paulo/Rio de]aneiro: : Lisa/INL/
ME C, 1972, P: 35-37;e SoaresAmora,BrasilPitoresco, emSuple- 295 "Entrenósexistem compositores quesóesperam o momentoe
mento Literáriod'O EstadodeS. Paulo, de 17 de agostode 1954- animação paranos oferecerem seustrabalhos: o público,que corre
Acrescentaria que na contramãodo quefoivalorizado emMartins ansioso ao teatroda ópera-cómica francesa, paraverum dramaque
Penapeloshistoriadores da culturabrasileira, Silvio Romero,]osé muitasvezes não entendee ouvirmúsica bemdiversa da do estilo e
Veríssimo e mesmo Décio de Almeida Prado, a habilidadepara gostonacional, não deixaráde sustentarcom empenhoe aplaudir
captar o pitoresco em Pena é, se concordamos com Magalhães a ópera-cómica brasileira, quepara eleseráescrita. Longenão está
Júnior e Amora, a de espelhara leitura europeiade Debret, e de talvez a realização destaideia': CEMartinsPena, Folhetins, p. 257.
fazê-lo na perspectivado encenadore não na do dramaturgo. 296 Idem,p. II-I3.

• 154
+ o Teatro Romântico

cios problemas com os corpos estáveis envolvem de pagamento minem o seu projeto de edificação
questões salariais. A primeira evocação de proble- de uma companhia capaz de montar as óperas de
mas trabalhistas na administração do teatro surge forma decente. Num comentário anterior ao citado
em I I de maio de 1847, numa crónica intitulada ''A acima, Pena descreve as consequências artísticas
Revolta dos Coristas". Ocorre que, depois de três dessa administração deficiente:
meses de atraso no pagamento do coro e seguidas
postergações às promessas da diretoria, os "coristas" Há meses que não se estuda um só drama novo e tem-se
rebelam-se e ameaçam uma greve. O cronista não apenas entretido a curiosidade pública e feito acreditar que
economiza na ironia ao dramatizar o fato: ainda existe uma companhia dramática com a represen-
tação de peças velhas, safadas e improdutivas. Os ateres
Dinheiro é sangue, dizem os ricos; sem dinheiro não se queixam-se do abandono em que os deixam e o público
come, murmuram os pobres, e sem comer não se canta, foge de os ouvir por lhes faltar o incentivo da novidade.
acrescentam os coristas. Estes pobres coitados ganham 30$ Por economia ordena-se ao ínsperor de cena que não com-
por mês para cantarem todos os dias desde pela manhã até pre traduções de comédias e dramas novos, dizendo-se-lhe
alta noite. Com 30$ ninguém vive, e como tratam eles de que no arquivo do teatro há centenas de peças velhas que
agenciar a vida por outro modo, faltam às horas do ensaio podem ser remontadas; e assim, para poupar-se oitenta ou
e o teatro vai lhes roendo com multas o magro ordenado. cem mil réis, que tanto custariam essas traduções, paga-se
[...] Pobres coristas, com estes atrasos de pagamento é im- no fim do mês contos de réis de ordenado aos ateres, que
possível que não andem com fome; e agora é que se pode não ganharam nenhum real. Excelente cálculo! Não existe
explicar devidamente a razão por que nos coros comem eles o menor zelo para a conservação dos ateres na companhia
a metade das notas ' 97• e seu aperfeiçoarnento'w.

O ponto de vista crítico reconhece a justiça do A crise teatral do Teatro S. Pedro vai culminar
pleito, mas sempre para cobrar uma melhor quali- com a greve da orquestra em razão da díreroria
dade. Nesse sentido, as críticas aos administradores não cumprir uma antiga promessa de, a exemplo
são o denominador comum de todos esses comen- do que acontecia nos centros europeus, pagar os
tários sobre o material humano de que dispunha o músicos pelos ensaios. Numa das crónicas, Pena dá
Teatro S. Pedro para realizar as óperas. E por mais informações sobre os argumentos do maestro que
rigorosos e sérios que sejam os comentários, nunca encabeçava o movimento. Segundo ele, os músicos
deixam de ser mordazes. Quando, por exemplo, o que estavam acostumados a tocar apenas nos espe-
movimento grevista é contido com o pagamento de táculos dramáticos tinham passado, nos últimos
um mês dos três em atraso, Pena não perde a opor- . três anos e meio, desde a chegada da Companhia
tunidade de extrair do fato seus aspectos risíveis: Italiana, a executar óperas, que exigiam muito mais
ensaios. Ficamos assim sabendo que, por exemplo,
Levantou-se o pano e entraram os coristas em cena como na ópera II Giuramento, a orquestra participou de
conquistadores em terra conquistada, não envergonhados dezenove ensaios para a apresentação de quatro ré-
e corridos como sempre, mas sim com a cabeça alta e orgu- citas e só recebeu por essas últimas. A crise se acirra
lhosa como quem diziam: "Este tablado em que pisamos quando, depois de continuarem os ensaios sob a
também pertence-nos, por isso que a nossa soberania de promessa do inspetor de cena de que receberiam
povo cantarejo foi reconhecida, e o direito de revolta jus- por eles, os músicos decidem não mais acreditar
tificado, e até mantido pelas autoridades policiais; somos na diretoria e paralisam definitivamente as ativi-
pois senhores in partibus"'9 8. dades. Diante dessa posição, a diretoria prefere, a
ceder aos músicos, demiti-los em bloco, inclusive
Claramente, há uma preocupação de que a ao maestro, e montar uma nova orquestraMartins
crise provocada pelos baixos salários e os atrasos Pena narra todo o episódio em detalhes e vaticina

297 Idem,P: 225.


298 Idem,P: 287. 299 Idem,P: 271.

+ 155
História do Teatro Brasileiro • volume 1

depois da estreia dos novos músicos que, por mais dos assim como o seu empresário, o sr.João Caetano. Nada
condescendente que ele fosse, eles não alcançariam de zombaria com o público! Até quando, ó cantarejo povo,
o nível mínimo necessário à continuidade das tem- abusarás de nossa paciênciai?".
poradas líricas. Nessas últimas crónicas, se bem que
se mantenha o bom humor, já há uma melancolia 1vlas nem sempre a postura de Pena é favorável à
explícita. No fundo, reconhece-se que o sonho de pareada. Na verdade, em seu projeto ideal, ela deve-
uma ópera brasileira ainda terá que esperar uma ria ser eliminada como um mal que fora necessário
nova conjuntura para se realizar: por um tempo, mas que numa determinada hora já
não será mais necessário:
Não querendo a diretoria do Teatro S. Pedro aceder à re-
presentação dos professores da orquestra, assinada em "cír- A pareada serve para corrigir os artistas maus e então é ela
culo", e da qual já falamos, despediu a todos. Está pois o salutar; mas como a entendem os nossos pareadores, é alta-
Teatro S. Pedro sem orquestra [...] O objeto é grave porque mente prejudicial aos artistas de merecimento e proveitosa
pode trazer consigo a interrupção dos espetáculos líricos. aos mais. Os artistas de merecimento desgostam-se porque
Lembremo-nos agora daquele dito, talvez profético, de um veem os esforços que fazem com consciência e arte para agra-
empregado: a que estado de miséria chegou o teatro, que dar, tão mal e indignamente recompensados; e os artistas
nem memória terá no seu enterro?". maus, que levam de envolta pareada com os bons, escudam-se
nesta circunstância para se dizerem também vítimas de par-
Os folhetins de Pena também miram a plateia tidos, e não procurarem assim corrigir-se. São pois danosos
do S. Pedro. O público não escapa do olhar crítico nossos pateadores, e mais cedo ou mais tarde, para que o
do cronista, tornando-se personagem ativa das teatro possa progredir, serão eles corridos pela porta fora, se
narrativas. Os comentários acerca dos espectado- antes disso não se emendarem, como é de se esperar'?'.
res surgem, em geral, quando são mencionadas as
torcidas das cantoras e cantores que se digladiavam Um último comentário de Pena sobre a pateada
entre si e forçavam a entrada em cena de mais dois merece ser destacado. É quando, em um raro mo-
personagens: o Chefe de Polícia e oJuiz do Teatro!". mento na "Semana Lírica: ele cita uma de suas
O principal instrumento de manifestação do pú- peças e mesmo discretamente estabelece com cla-
blico era, à época, a pateada. E Martins Pena chega , reza a ponte entre seus comentários e seus próprios
a admiti-la como legítima. No comentário sobre espetáculos:
um espetáculo do Teatro S. Francisco, para onde
estendia o seu rigor crítico a despeito da simpatia Os pareadores em serviço ativo estão tornando-se bravios:
pelo conterrâneo João Caetano, narra uma pateada já não é somente nos espetáculos líricos que mostram para
que, provavelmente, nem chegou a acontecer: quanto prestam; nos dramáticos também se lhes assanha
o furor. No sábado deram pareada à comédia O Noviço e
Em uma palavra houve da parte de todos, e particularmente ao provérbio Quem Casa Quer Casa 304•
deste nosso amigo, um tal desleixo e pouco caso, que foi
coisa por maior e digníssima de uma tremenda pareada. O programa da "ópera-cómica brasileira' que
Ah! Que se ela rompesse, bradaríamos entusiasmados: Pena menciona na citação já apresentada é com-
"Assim, rapazes, batam, batam e nunca os pés lhes doam". plexo e envolve uma série de aspectos que não se
Desculpam-se esses executores de músicas com a falta de resumem aos musicais, mas remetem também à
necessários ensaios. E que temos nós com isso? Queremos administração, ao público, à formação técnica e à
ouvir óperas sabidas; quando não os artistas serão fustiga- otimização de todas as seções de um teatro como
o S. Pedro. A maior parte das responsabilidades,
300 Idem, p. 333. numa estrutura extremamente hierarquizada como
301 Na década de 1840, a maior rivalidade no Teatro S. Pedro em
a que havia entre as sopranos Augusta Candiani e Clara Delmas-
302 Martins Pena, Folhetins, P: 255.
trooVer Luís Antônio Giron, A Minoridade Crítica: A Opera eo
Teatro nosFolhetins da Corte, Rio deJaneiro/São Paulo: Ediouro/ 303 Idem, P: 327.
Edusp, 2004. 304 Idern.p. 325.
+ o Teatro Romântico

era a do Teatro S. Pedro, tem que recair sobre a enormes estantes, as do sistema francês, que, mais delgadas
cúpula mandante, ou sobre a "diretoria', como ele e descansando sobre um único pé de ferro, são parafusadas
sempre se refere ao colegiada de administradores no chão, ficando assim fixos e inalteráveis os lugares dos
do teatro. Nesse sentido, é exemplar a lista de músicos uma vez determinados; substituam-se também
conselhos que Pena dá à diretoria no auge da crise por assentos fixos esses enormes bancos que só servem
com a orquestra, propondo entre outras tarefas que para causos de embaraço; e ado te-se enfim outro método
"escriturem" os músicos por um ano, paguem-lhes de iluminação, que não o atual de gigantescos candeeiros
os ensaios e que se obriguem os "mestres de canto" que tanto incomodam aos frequentadores das cadeiras?".
a revisarem as partituras para expurgarem-nas
de erros; que se faça os cantores virem com suas A despeito do desfecho inesperado e melan-
partes decoradas e que se aumente o número de cólico dos "Folhetins: A Semana Lírica", Martins
instrumentos de corda para que estejam em relação Pena parecia confiante na possibilidade de se vir
com a considerável força de instrumentos de metal a realizarem montagens espetaculares consisten-
exigida nas óperas modernas. Mas onde a condição tes no país. O que o exasperava na administração
de conselheiro mar do teatro aparece em toda a sua desastrada do Teatro S. Pedro era, exatarnente, a
dimensão é quando, comentando especificamente chance que se estava perdendo de desenvolver-se
sobre a orquestra, propõe uma nova disposição uma estrutura teatral autónoma em todos os aspec-
desta no fosso do teatro: tos possíveis e que ensejasse não só a realização de
óperas como de qualquer espetáculo teatral.
Julgamos pois que será proveitoso mudarem-se essaslinhas De certa forma essa estrutura acabou sendo
de estantes que cortam o espaço da orquestra em ângulos implantada nos anos em que João Caetano esteve
retos, para lhes dar a forma de arco de círculo; com isso se à frente do Teatro S. Pedro e difundiu-se, depois,
ganhará espaço para que os violinos fiquem imediatos ao pelos demais teatros do Rio de Janeiro. Essa evi-
regente, assim como o piano, o primeiro violoncelo e con- dência permite confirmar que, quanto aos aspectos
trabaixo; ganhando-se além disso posição mais vantajosa cênicos e materiais da história do teatro brasileiro,
para os professores, que mais diretamente verão os cantores o romantismo foi uma fase de consolidação em que
em cena, o que não é de pouca consideração para a inte- se criaram as fundações onde se erigiria, no futuro,
ligência do acompanhamento. Adore-se, em lugar dessas o teatro brasileiro moderno.

305 Idem, P: 337.

+ 157
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III.
O Teatro Realista
/

I A DRAMATURGIA REALISTA entre as duas companhias dramáticas, que só ter-


minou com a morte de João Caetano, em I 863.
o teatro romântico brasileiro não havia ainda A imprensa da época acompanhou de perto
encerrado o seu ciclo dramatúrgico, quando uma essa disputa e, de um modo geral, mostrou-se mais
nova maneira de escrever peças e conceber espetá- simpática aos esforços do Ginásio, que propunha
culos conquistou a simpatia de toda uma geração de uma renovação dramatúrgica e cênica para o palco
jovens intelectuais no Rio de Janeiro. Exatamente nacional. Assim, quando as peças realistas francesas
no ano de 18 55, o recém-criado Teatro Ginásio começaram a ser representadas no Rio de Janeiro,
Dramático começou a pôr em cena algumas peças na época o centro da nossa vida cultural, um forte
francesas da então chamada "escola realísta'", nas entusiasmo tomou conta de uma boa parcela do
quais eram abordados os costumes e os problemas público e dos intelectuais. Não era apenas a última
que afetavam a burguesia, classe com a qual se novidade dos teatros parisienses que aqui chegava,
identificavam e para a qual escreviam autores como mas um tipo de peça que, por suas características
Alexandre Dumas Filho, Émile Augier, Théodore formais e pelos assuntos que discutia em cena, po-
Barriêre e Octave Feuillet, entre outros. dia ter um enorme alcance social, no sentido de
Até então, a hegemonia do ator e empresário educar a plateia, mostrando-lhe a superioridade
João Caetano não havia sofrido nenhuma ameaça dos valores éticos da burguesia, tais como o traba-
significativa. Aclamado pelo público, sem rivais a lho, a honestidade, o casamento e a família.
sua altura, ele vinha reinando absoluto na cena do A boa acolhida que teve a encenação de As Mu-
Teatro S. Pedro de Alcântara, com um repertório lheres deMdrmore, de Théodore Barriêre e Lambert
de tragédias neoclássicas, dramas românticos e me- Thiboust, em outubro de 18 55, abriu o caminho
lodramas, recebendo inclusive uma subvenção do para peças como OsParisienses, dos mesmos autores;
governo imperial. A criação do Ginásio Dramático, A Dama das Camélias e OMundo Equívoco, de Ale-
pelo empresário Joaquim Heleodoro Gomes dos xandre Dumas Filho; OsHipócritas eA Herança do
Santos, desencadeou uma estimulante rivalidade Sr. Plurnet, de Théodore Barriére e Ernest Capendu;
O Genro do Sr. Pereira, OsDescarados eAs LeoasPo-
1 Sobre o realismo teatral no Brasil, seus dramaturgos, postu- bres, de Émile Augier; A Crise, Dalila, O Romance
lados estéticos, artistas e o papel do Teatro Ginásio Dramático,
leiam-se: João Roberto Faria, O Teatro RealistanoBrasil: 1 855-
deum Moço Pobre eA Redenção, de Occave Feuillec;
1865, São Paulo: Perspectíva/Edusp, 1993 j e SílviaCristina Mar- Por Direito de Conquista, de Emesr Legouvé. Ou-
tins de Souza, As Noitesdo Ginásio: Teatro e Tensões Culturais na
Corte: 1832-1868, Campinas: Editora da Unicamp, 2002.
tras, como A Qy-estão doDinheiro, Um Pai Pródigo
Histâriado Teatro Brasileiro • volume 1

-~~

e O Filho Natural, de Dumas Filho, circularam por descrever o seu .inodo d~ vidaeprescrever os seus
aqui em forma impressa. A primeira inclusive foi valores éticos, no interior de um-enredo que opõe
traduzida por Justiniano José da Rocha e publicada
. \. " - "
. -

bons e maus burgueses':'? reã1IS-9:1.2~ss<::.tipo de


-

em I858. Também O Casamento de Olímpia, de peça é evidentemente relativo, poi\a obj~"t~v~dade


Augier, foi apenas lida pelos intelectuais, uma vez
que o Conservatório Dramático proibiu sua repre-
, ,
se perde quando os autores submetem o retrãüo da
sociedade burguesa aos retoques das pincelad~s~\~
--

sentação, por considerá-la imoral. " moralizantes. À maneira do mel6tirama, mas sem
Essas peças, vistas no palco do Ginásio, ou lidas, os exageros típicos do gênero, as peç~\ealistas con-
entre I8 55 e I 862, serviram como modelos para cluem sempre com a vitória dos bon~"burgueses,
"-
vários dramaturgos brasileiros que surgi~am a par- que conseguem ou regenerar os maus, ou e~'pulsá-
tir de I8 57. Embora sejam diferentes entre si, fo- -los do seu convívio. O resultado é sempre o retrato
ram consideradas obras representativas dorealismo melhorado de uma sociedade moderna, civilizada
teatral por nossos folhetinistas e críticos, porque re- e moralizada. Não há lugar, por exemplo, para as
tratavam a vida social contemporânea com alguma esposas adúlteras ou para os jovens impetuosos que
naturalidade na construção da ação dramática. É colocam a paixão acima das convenções sociais
o que se percebe sobretudo nas peças de Dumas nesse universo. Os heróis, ao contrário, são com-
Filho e Augier, autores de autênticas comédias portados pais e mães de família ou moços e moças
realistas, isto é, comédias que não tinham como que têm a cabeça no lugar; e o amor que vale não
objetivo primeiro provocar o riso, mas descrever é mais a paixão ardente dos tempos românticos,
costumes. Ambos evitam exageros na expressão mas o amor conjugal, que deve ser calmo e sereno.
dos sentimentos das personagens e nos diálogos Igualmente devem ser banidos da boa sociedade
que buscam reproduzir a linguagem do dia a dia. os agiotas, os caça-dotes que veem no casamento
Já Barriere e Feuillet nem sempre foram fiéis à ideia um meio de enriquecimento, os viciados no jogo,
da naturalidade em cena e escreveram peças em que os golpistas que acumulam dinheiro ilicitamente
se misturam os procedimentos dramáticos da co- e, acima de tudo, as prostitutas, uma ameaça aos
média realista e do drama romântico ou mesmo do maridos e jovens das boas famílias. Apenas o tra-
melodrama. No repertório brasileiro, também esse balho honesto deve pautar a vida do bom burguês e
hibridismo será contemplado por nossos autores, só pelo trabalho é que ele deve enriquecer. ~anto
como veremos mais à frente. à prostituta, a ideia romântica da sua regeneração
O aspecto que une todos os dramaturgos dessa por amor - que aparece no dramajl1arion Delorme,
geração, franceses ou brasileiros, é a preocupação de Victor Hugo, e em A Dama das Camélias, de
com a função moralizadora do teatro. Eis como Dumas Filho - foi completamente descartada e
Dumas Filho a define: duramente criticada pelos dramaturgos do realismo
teatral francês. O próprio Dumas Filho, depois da
Seja pela comédia, tragédia, drama, bufonaria, seja pela peça que o fez conhecido no mundo inteiro, assu-
forma que melhor nos convenha, inauguremos o teatro útil, miu uma postura de defensor radical dos valores
apesar do risco de ouvirmos gritar os apóstolos da artepela burgueses. Já em I8 55, ao escrever Le Demi-Monde
arte três palavras absolutamente vazias de sentido. Toda (O Mundo Equívoco), abordou um universo para-
literatura que não tem em vista a perfectibilidade, amo- lelo ao da prostituição, formado por mulheres de
ralização, o ideal, o útil é, em uma palavra, uma literatura má conduta moral, para condenar esse tipo mais
raquítica e malsã, nascida morta", refinado de cortesã que deseja voltar a fazer parte
da sociedade formada pelas famílias honestas.
O universo retratado pelas peças realistas é Mais que autores dramáticos, Dumas Filho,
preferencialmente o da burguesia, apreendida com Augier, Barriêre e Feuillet fizeram-se porta-vozes
visível simpatia pelos dramaturgos, interessados em da burguesia nas peças que escreveram. Para for-
talecer suas ideias e torná-las ainda mais claras aos
2 Tbéâtre Complet, v. 3, Paris:Calmann-Lévy, [s.d.],p. 30-31. espectadores, lançaram mão de uma personagem de

• r60
• o Teatro Realista

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Caricatura alusiva às candidaturas a deputado por Minas Gerais de Machado de Assis, Henrique César Muzzio
e Quintino Bocaiúva - este, o autor da peça OsMineiros da Desgraça, encenada em 1861 no Ginásio Dramático.

• 161
História do Teatro Brasileiro • volume 1

convenção, o raisonneur, cuja função, no interior de 1857, estreou no Ginásio Dramático ODemónio
dos enredos, é a de comentar a ação dramática ou Familiar, que o próprio autor assim definiu: "Esta
o comportamento das personagens, sempre com comédia é um quadro da nossa vida doméstica; uma
tiradas moralizantes, dirigidas principalmente pintura de nossos costumes; um esboço imperfeito
para os espectadores. Já na primeira peça desse das cenas Íntimas que se passam no interior das nos-
repertório encenada no Ginásio Dramático, As sas casas; é, enfim, a imagem da família" 4 •
Mulheres de Mdrmore, de Barriêre e Thiboust, a Os termos utilizados pelo escritor revelam a
personagem Desgenais acompanha a trajetória do filiação realista, mas não o que está no cerne da
jovem escultor Rafael Didier, que se apaixona pela peça, definido por Francisco Otaviano como "um
terrível cortesã Marco, que o leva à degradação e à hábito que herdamos dos nossos avós relativamente
morte. Desgenais faz intervenções o tempo todo, aos escravos domésticos">. O demônio familiar do
para ressaltar o caráter demoníaco de Marco e o título é um moleque escravo, Pedro, que destrói a
perigo que mulheres como ela representam para os paz doméstica de seus senhores, aproveitando-se da
jovens de boas famílias. Suas lições moralizadoras e intimidade que tem com todos da família do jovem
sua função na peça são tão marcantes que "Desge- médico Eduardo, para afastar o rapaz e a irmã de
nais" tornou-se logo sinónimo de raisonneur para seus respectivos pretendentes, porque queria ca-
os críticos teatrais brasileiros da época'. samentos ricos para ambos. Alencar o fez esperto
Com as caraterísticas acima descritas, as peças do como os lacaios da tradição cómica que remonta a
repertório realista francês foram aplaudidas pela ge- Plauto, hábil na arte de mentir e enredar a todos,
ração de jovens intelectuais brasileiros que atuavana mas ao mesmo tempo ingênuo e simplório como
imprensa e que, nessa época, via o teatro não apenas um escravo sem instrução. O que motiva suas ações
como uma diversão entre tantas outras, mas, acima é apenas o desejo de ser cocheiro e vestir uma libré.
de tudo, como um meio de instrução pública. Não há maldade aparente em seu comportamento,
que no entanto é guiado pelo conhecimento de um
hábito da sociedade brasileira que Alencar deseja
o Daguerreótipo Moral criticar: o do casamento por dinheiro. Ao armar as
de José de Alencar confusões que alimentam o enredo da peça, Pedro
não leva em conta os sentimentos dos personagens
A formação de um repertório de peças nacionais envolvidos e quase provoca a infelicidade de todos.
escritas sob a influência dos temas e das formas Acostumados com a truculência da sociedade
da dramaturgia realista francesa foi uma conse- escravocrata, os espectadores que lotavam o Giná-
quência natural, poder-sé-ia dizer, da renovação sio Dramático na estreia da peça talvez esperassem
teatral levada a cabo pelo Ginásio. É inegável que que Eduardo punisse Pedro severamente no desfe-
os dramaturgos brasileiros se apropriaram do mo- cho. Mas o médico surpreende a todos, com uma
delo francês, algumas vezes ficando muito presos "punição" desconcertante. Pedro não é castigado
ao original, por abordarem as mesmas questões fisicamente nem é vendido, atitudes que seriam tí-
sociais, outras vezes conseguindo dar às suas pro- picas de um proprietário de escravos. Eduardo, ao
duções um notável cunho de nacionalidade, por contrário, dá-lhe uma carta de alforria, tornando-
trazerem para a cena alguns aspectos da nossa so- -o, a partir de então, com a liberdade, responsável
ciedade escravocrata. pelos seus ates, conforme enfatiza em sua fala no
O primeiro escritor brasileiro que escreveu uma final da comédia.
comédia realista nos moldes das peças francesas foi Esse desfecho foi interpretado pelos críticos e
José de Alencar (1829-1877). No dia 5 de novembro estudiosos da obra de Alencar de duas maneiras: a

4 Trecho da dedicatória da peça à imperatriz dona Teresa Cris-


3 Leia-se, a propósito, o texto de Machado de Assis sobre Os tina, publicada no Diário doRio dejaneiro, a 4 de novembro de
Mineirosda Desgraça, de Quintlno Bocaiúva, emJoaquim Maria 18 57.
Machado de Assis, Do Teatro: Textos Críticos eEscritos Diversos, 5 Em João Roberto Faria, Idéias Teatrais: O Século XIX no
org.João Roberto Faria, São Paulo: Perspectiva, 2.008,p. 2.42.. Brasil, São Paulo: Perspecrlva/Fapesp, 2.001,P: 464.

• r62
• o Teatro Realista

José de Alencar aos 32 anos.

primeira, que pode ser exemplificada pelas palavras por mim assinalada. Continuei como político a
de Machado de Assis,considera que ODemónioFa- propaganda feita no tearro'". Como se vê, Alencar
miliar e o dramajY.[ãe são "um protesto contra a ins- considera a sua peça "propagandà' contra a escra-
tituição do catíveiro'", a segunda não vê na comédia vidão, mas o verdadeiro significado da atitude de
ou no desfecho nenhuma crítica à escravidão, mas Eduardo foi assinalado com pertinência por Décio
sim uma atitude conformista de Alencar, que queria de Almeida Prado: ''A escravidão é condenada, em
os escravos "fora dos lares e longe das famílias, mas primeiro lugar, pelo mal que faz aos patrões'". Ou
permanecendo nas senzalas e no trabalho forçado seja: mostrando unicamente os inconvenientes da
dos eitos"? O próprio Alencar escreveu sobre o as- escravidão doméstica, tão comum no Brasil urbano
sumo, dizendo que jamais havia aplaudido a escravi- de seu tempo, o escritor não aprofunda as críticas
dão em seus discursos ou escritos, e que a respeitara a essa instituição, que afinal sustentava a economia
enquanto lei do país, acrescentando: "manifestei-me do país. Seu objerivo é condenar um velho hábito
sempre em favor de sua extinção espontânea e na- das famílias brasileiras, talvez por duas razões: em
tural, que devia resultar da revolução dos costumes
8 Mrânio Coutinho (org.), A Poiêmica Alencar-Nabuco, Rio
Machado de Assis, Do Teatro..., P: 414. deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1965, p. 58-59.
7 Raimundo Magalhães Jr.,]osé deAlencare SuaÉpoca, 2. ed., 9 Os Demônios Familiares deJosé de Alencar, Teatro de An-
Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 1977, P: II9. chietaa Alencar, São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 330.
História do Teatro Brasileiro • volume1

primeiro lugar, porque as próprias famílias po- como o pintaram os românticos mais extremados.
diam tornar-se vítimas do escravo doméstico; em Eduardo e Henriqueta não aparecem em cena como
segundo, porque se tratava de costume herdado apaixonados capazes de fazer uma loucura, nem
da tradição colonial. Manter o escravo doméstico, demonstram viver uma paixão devastadora. Não
em 1857, era um anacronismo, pelo menos para se encontram em lugares ermos, escondidos, nem
as famílias modernas dos profissionais liberais que fazem declarações arrebatadoras. O amor que os
naquela altura viviam de seu trabalho. Eduardo, mé- une é calmo, equilibrado, uma afeição que nasceu
dico e membro da pequena burguesia emergente de nas reuniões de família e se alimentou do convívio
então, dá a liberdade a Pedro e ao mesmo tempo decente que se espera de jovens que se preparam
se liberta da última amarra que o prendia à antiga para o casamento, em meados do século XIX. Para
estrutura social. Alencar, o amor, encarado desse modo, era sempre
Se entendermos o desfecho dessa maneira, a uma garantia da fidelidade conjugal e do equilíbrio
comédia pode ser lida como uma provocação à da família e sociedade. Perceba-se, pois, como o
sociedade escravista, que não abdica dos costumes amor é desromantizado ao longo da comédia e
que vêm dos tempos coloniais. Eduardo dá o exem- principalmente na cena em que Eduardo explica à
plo, no palco, de uma atitude fundamental para mãe porque convidou Alfredo, pretendente à mão
a modernização da família brasileira, em termos de Carlotinha, a frequentar a sua casa. Era preciso
burgueses. E não só no desfecho, pois toda a sua que sua irmã o conhecesse de verdade, numa sala,
postura, ao longo da comédia, é de quem se con- conversando, e não em encontros fortuitos. Ele
trapõe aos velhos hábitos no que diz respeito ao quer que ela o veja de perto, "sem o falso brilho,
namoro, ao casamento e à constituição da família. sem as cores enganadoras que a imaginação em-
Em termos mais precisos, o enredo da comédia presta aos objetos desconhecidos e misteriosos":".
possibilita a conciliação entre o assunto nacional- Por incrível que possa parecer para nós, tão
a presença do escravo nos lares brasileiros - e a distantes dos costumes descritos por Alencar, sua
questão mais ampla que era discutida pelos dra- posição era avançada para a época, pois em geral
maturgos franceses: a das relações entre o amor, os casamentos eram arranjados pelos pais, sem que
o casamento e o dinheiro, presente, para dar dois os filhos tivessem o direito da escolha. Pois nosso
exemplos, nas comédias A Questão do Dinheiro, escritor defende exatamente esse direito, fazendo
de Alexandre Dumas Filho, e em O Genro do Sr. de Eduardo o seu porta-voz, espécie de ideólogo
Pereira, de Émile Augier. Caberá a Eduardo, prota- cuja função principal na comédia é proteger o ca-
gonista do núcleo familiar da comédia e ao mesmo samento e a família de todos os perigos que possam
tempo raisonneur, combater os velhos hábitos e lu- abalar os seus alicerces. Na ótica da comédia, pre-
tar pela sua felicidade, pois sua amada está prome- servar a integridade dessas instituições considera-
tida para um rapaz rico a quem o pai deve dinheiro. das modernas e civilizadoras significa garantir um
Alencar tem uma posição crítica tanto em relação futuro de progresso para o país.
ao casamento por dinheiro quanto em relação ao Diferentemente de Martins Pena ou de]oaquim
casamento por conveniência, como se percebe no Manuel de Macedo, que haviam escrito comédias
diálogo entre Eduardo e Azevedo, logo no início farsescas para ridicularizar os costumes de uma
da comédia. O segundo justifica com cinismo o seu sociedade tacanha, Alencar assumiu uma postura
casamento com Henriqueta, por quem não tem ne- respeitosa em relação à nossa burguesia emergente, a
nhuma afeição. ~er uma esposa porque pretende quem, no seu entendimento, cabia o papel histórico
entrar na carreira política, nada mais. As falas de de civilizar e modernizar o país. Daí a reverência aos
Eduardo, ponderadas e equilibradas, fazem a crítica valores éticos dessa classe social, como o trabalho, o
moralizadora das ideias tão insensatas de Azevedo. casamento e a família, tratados com seriedade em
Evidentemente para Alencar o casamento deve O Demónio Familiar. A única personagem ridicu-
ter por base o amor, não o dinheiro ou as conve-
10 José de Alencar. O DemónioFamiliar. Campinas: Editora da
niências socíaís. Mas não se trata do amor-paixão,
Unícamp, 2003, p. 150.
+ o Teatro Realista

larizada na comédiá é o afrancesado Azevedo. Era Sabe, meu colega, que a escola dramática mais perfeita que
preciso dar um exemplo de personagem negativa, hoje existe é a de Molíêre, aperfeiçoada por Alexandre Du-
de mau burguês, para que seu expurgo da boa so- mas Filho, e de que a Question d'argent é o tipo mais bem
ciedade tivesseum efeito moralizador. Não importa acabado e mais completo.
que seus traços sejam exagerados, que o realismo da Molíêre tinha feito a comédia quanto à pintura dos
comédia diminua, por força da caricatura em que costumes e à moralidade da crítica; ele apresentava no
ele se transforma quando abre a boca. Alencar ti- teatro quadros históricos nos quais se viam perfeitamente
nha em mente fazer uma crítica aos brasileiros que desenhados os caracteres de uma época.
se encantavam com a França e que não amavam su- Mas esses quadros eram sempre quadros; e o especta-
ficientemente o seu próprio país. Azevedo é afetado, dor vendo-os no teatro não se convencia da sua verdade;
pernóstico, ridículo, com a sua mania de introduzir era preciso que a arte se aperfeiçoasse tanto que imitasse a
palavras francesas o tempo todo em suas falas. O natureza; era preciso que a imaginação se obscurecesse, para
exagero é proposital, para que o espectador não se deixar ver a realidade.
engane acerca do que significa essa personagem, É esse aperfeiçoamento que realizou Alexandre Dumas
quando comparada aos bons rapazes que são Al- Filho; tomou a comédia de costumes de Molíêre, e deu-lhe a
fredo e Eduardo. É bom mesmo que volte a Paris, naturalidade que faltava; fez que o teatro reproduzisse a vida
como anuncia no desfecho. Não há lugar para ele da família e da sociedade, como um daguerreótipo moral".
na sociedade retratada por Alencar. Além disso, em
seu desamor às coisas brasileiras, Azevedo despreza Alencar compreendeu bem a natureza da comé-
a arte nacional. Num curto diálogo travado com Al- dia de Dumas Filho, como demonstra ao chamá-la
fredo, na décima terceira cena do terceiro ato, ele diz de "daguerreótipo moral". Apropriar-se dessa forma
que não há nem arte nem artistas no Brasil.Transfor- teatral e nacionalizá-la por meio dos nossos tipos
mado em porta-voz do autor, Alfredo responde que e paisagem urbana, bem como dos assuntos que
a arte existe, que o que não existe é o amor por ela, diziam respeito à nossa realidade, eis o que lhe pa-
condenando então a atitude de todos aqueles "que receu um bom caminho para a própria "criação" do
só acreditam e estimam o que vem do estrangeiro" I I. teatro brasileiro, conforme afirma no mesmo artigo.
Esse diálogo traduz a preocupação de Alencar E mais: com esse tipo de dramaturgia, o escritorva-
com a defesa do nacionalismo - sentimento que lorizava o seu ofício e punha a sua arte a serviço do
alimenta toda a sua obra - e, por conseguinte, com país, buscando sensibilizar o cidadão para os valores
a afirmação de uma arte autenticamente nacional. éticos da burguesia que deviam reger a sua existência,
O sucesso da peça junto ao público e a repercus- se quisesse fazer parte de uma sociedade moderna.
são na imprensa foram tão expressivos que Alencar Nas duas comédias que escreveu em seguida,
resolveu explicar em um artigo como e por que a Alencar foi menos feliz. Apesar das boas intenções,
escreveu. A certa altura, esclarece o que tinha em O Crédito, encenada pela primeira vez a 19 de de-
mente e revela o modelo formal ao qual recorreu: zembro de 1857, fracassou completamente. A peça,
toda calcada err:LaQuestion dargent, aborda o papel
No momento em que resolvi a escrever O Demónio Fami- do dinheiro na vida social, retomando e ampliando
liar, sendo minha tenção fazer uma alta comédia, lancei algumas situações de O Demónio Familiar. Assim,
naturalmente os olhos para a literatura dramática do nosso . mais uma vez veremos uma família honesta ser asse-
país em procura de um modelo. Não o achei; a verdadeira diada por personagens desonestos ou de má forma-
comédia, a reprodução exata e natural dos costumes de uma ção moral, movidos por interesses escusos, como o
época, a vida em ação não existé no teatro brasileiro [...]. casamento por dinheiro. A monetização dos senti-
Não achando pois na nossa literatura um modelo, fui mentos e a especulação são duramente condenadas
buscá-lo no país mais adiantado em civilização,e cujo espírito pela personagem central, o engenheiro Rodrigo, que
tanto se harmoniza com a sociedade brasileira; na França. é também o raisonneur da peça. É ele quem salva
a família de Pacheco das garras afiadas do agiota e
11 Idem, P: 163. 12 Idem,p.31-33.

+ I65
História do Teatro Brasileiro • volume 1

especulador Macedo. Em seus discursos moraliza- Em vão o raisonneur da peça, o jornalista Me-
dores, critica os desmandos da burguesia ávida de neses, que Alencar definiu como "a razão social
dinheiro, o enriquecimento ilícito, e ensina que o encarnada em homem': contrapõe os seus argu-
trabalho e a inteligência são os capitais mais valiosos. mentos aos vitupérios de Carolina, defendendo
Além disso, faz a defesa do crédito, instituição que a sociedade honesta e a vida em família. Nem o
possibilita a ascensão econômica do homem inteli- desfecho moralizador convenceu a censura das in-
gente e honesto, ainda que pobre. tenções do autor. A figura prostrada de Carolina,
Não é difícil explicar as razões do fracasso da arrependida, vivendo um casamento sem vida se-
peça na cena do Ginásio. Alencar deixou-se levar xual, que lhe trazia o remorso à memória o tempo
pelo excesso da retórica, sacrificando o ritmo da todo, não apagava a figura da cortesã impudente
ação dramática, que se tornou lento, pesado, enor- dos ates anteriores.
memente prejudicado pelas intervenções moraliza- Talvez o excesso de realismo tenha chocado
doras de Rodrigo. Nem a plateia fluminense nem os contemporâneos de Alencar. Furioso e indig-
os críticos gostaram: O Crédito não foi além de três nado com a proibição de As Asas de um Anjo, ele
representações. defendeu-se num longo artigo para demonstrar
Para Alencar, tal fracasso era inaceitável. Em sua justamente a sua intenção moralizadora. A seu
cega dedicação ao teatro, em sua crença no modelo ver, a peçamostrava o vício para melhor castigá-lo.
dramático de Dumas Filho, não conseguiu enxergar No final do ano seguinte, 1859, com o ânimo
os defeitos de sua peça. Magoado, antes mesmo de serenado, nosso escritor tinha mais uma peça pronta
terminar o ano, ele manifestou a intenção de não para o Ginásio Dramático. É provável que tenha
mais escrever peças teatrais, atribuindo a deserção refletido muito sobre o fracasso de O Crédito e o
do público ao indiferentismo eincompreensão da incidente em torno de AsAsasdeum Anjo, pois pela
sociedade diante do seu espírito inovador. Como, primeira vez afastou-se do modelo da comédia rea-
nessa altura, já tinha em mãos mais uma peça, lista para escrever um drama, abordando mais uma
encaminhou-a ao Ginásio Dramático. Represen- vez o problema contemporâneo da escravidão'. Se
tada pela primeira vez no dia 3o de maio de 1858, em O Demónio Familiaro acento era côrnico, agora
apesar de liberada pela censura, As Asasdeum Anjo, a intenção é explorar o drama da escravidão, a partir
depois de três representações, foi retirada de cena de uma situação potencialmente explosiva: a de uma
pela polícia, que a considerou imoral. Alencar pagou mãe que vive como escrava do próprio filho.
caro a ousadia de abordar assunto tão controvertido A estreia deiVIãe ocorreu a 24 de março de 1860. E
como a prostituição. A história de Carolina, moça o enorme sucesso recolocou Alencar no lugar que era
de família seduzida a prostituta que se regenera pelo seu de direito, conforme escreveu Machado de Assis:
amor e pela maternidade, passando pelo luxo e pela "Para quem estava acostumado a ver no sr. José de
miséria, tinha lances e diálogos que no palco pare- Alencar o chefe da nossa literatura dramática, a nova
ciam agredir os espectadores. Causou desagrado, por peça resgatava todas as divergências anteriores'?",
exemplo, a cena em que o pai da heroína, bêbado, Misturam-se na peça traços típicos do roman-
tenta seduzir a própria filha, na penumbra de um tismo e do realismo. Joana é evidentemente uma
quarto. O que na leitura parecia aceitável, na cena figura idealizada, assim como Jorge, que não se
tornou-se insuportável para os padrões morais da comporta como um típico proprietário de escravos.
época. É possível imaginar o desconforto da plateia, Já os aspectos realistas estão presentes nas cenas de
de certos pais de família, principalmente, ouvindo comédia entre Joana e Vicente, nos diálogos que
Carolina denunciar a falsa moral burguesa, dizendo, reproduzem a fala cotidiana e na própria natu-
por exemplo, que seus amantes vão, "com os lábios ralidade da ação dramática, que procura retratar
ainda úmidos dos nossos beijos, manchar a fronte o universo da família brasileira de poucas posses.
casta de sua filha, e as carícias de sua esposa' 13. Também a punição de Peixoto, no final, parece típica

13 Comédias, São Paulo: Martins Fomes, 2004, p. 420. 14 Machado de Assis, Do Teatro..., P: 419 .

• r66
• o Teatro Realista

da comédia realista, com sua feição de lição mora- A Expiação não despertou o interesse de nenhum
lizadora, bem como a defesa de valores éticos como empresário teatral e não foi encenada.
o trabalho e a honestidade, que aparece aqui e ali. Desse modo, pode-se afirmar que a contribui-
Inteiramente romântico, sem o hibridismo de ção de Alencar para o teatro brasileiro foi impor-
Mãe, é o drama histórico OJesuíta, escrito logo de- tante entre 1857 e 1862. Vista em conjunto, sua
pois, a pedido de João Caetano. Por alguma razão, obra pode ser considerada sob dois ângulos: por
o famoso ator não gOStou do que leu e recusou-se a um lado, ela privilegiou os temas urbanos e tocou
encená-lo, ao que tudo indica sem dar explicações em questões importantes para que se compreenda
a Alencar. Irritado, na peça que escreveu logo em melhor, hoje, aquele momento histórico de for-
seguida, ainda no ano de 1861, o escritor ridícula- mação de uma primeira burguesia entre nós; por
rizouJoão Caetano ao fazer uma personagem rir outro, no terreno artístico, inaugurou o realismo
do marido ciumento e dizer-lhe que ele tinha "ares teatral, servindo de exemplo para toda uma geração
de João Caetano no Otelo". Era uma observação que consolidou esse movimento na cena brasileira,
ferina, baseada no papel mais famoso da carreira nos anos que se seguiram.
do ater. Com O que é o Casamentai, encenada
anonimamente em outubro de 1862, Alencar, já
desinteressado do teatro, volta ao gênero da comé- o "Mundo Equivoco"
dia realista, aos personagens e assuntos contempo- de Q?intino B ocaiúva
râneos. Como opróprio título indica, o enredo
pretende dar uma resposta ao que está indagado. O primeiro intelectual brasileiro que seguiu os pas-
No entanto, como o casamento é definido em ter- sos de Alencar foi um jovem intelectual e jornalista
mos de harmonia e entendimento entre marido e de bastante prestígio. Quintino Bocaiúva (1836-
mulher, mostrar isso em cena seria aitamente ente- 1912) estreou com o drama em sete quadros,
diante. Assim, o que a ação dramática apresenta é Onfália, a 28 de junho de 1860, não no Ginásio,
o que não deve ser o casamento. Ou seja: em cena, mas no Teatro das Variedades, onde a companhia
dois casais se desentendem, brigam, vivem uma dramática de Furtado Coelho, o principal ator do
verdadeira guerra conjugal, motivada por ciúme, realismo teatral, atuou durante alguns meses.
suspeita de adultério e falta de diálogo. Já o que O título do drama remete à mitologia grega:
deve ser o casamento aparece nos discursos mora- Ônfale, rainha da Lídia, tão bela quanto depravada,
lizadores da personagem raisonneur e no desfecho conquistou Hércules, que se sujeitou a todo tipo
em que os dois casais se reconciliam. Embora não de humilhação para ficar a seu lado. O tema da
seja uma grande peça, O que é o Casamento? tem mulher que rouba as forças ao homem, que o seduz
interesse para a compreensão do realismo teatral e o abandona, que o leva à morte, já havia aparecido
como movimento ligado ao universo da burguesia. na cena do Ginásio, em peças como As Mulheres
Aqui, tudo gira em torno da defesa do casamento e de Mármore, de Barríere e Thiboust, e Dalila, de
da família, em termos muito próximos dos que se Feuillet. Quíntino Bocaiúva situou a ação de On-
encontram nas comédias realistas francesas. fália no Rio de Janeiro do seu tempo, fazendo-a
Nos anos que se seguiram a 1862, Alencar girar em torno de uma viúva rica e sem escrúpulos
dedicou-se ao romance e à política. Teve apenas morais, a baronesa Lucília, que arrasta para a morte
uma recaída, em 1865, dando à luz sua última peça, um jovem inexperiente, Jorge, escravo de uma pai-
mais uma comédia realista, intitulada A Expiação, xão incontrolável e doentia.
na qual dava sequência ao enredo deAs Asas de um Lucília não é, portanto, uma prostituta, mas
Anjo. Carolina volta à cena para expiar os seus erros uma mulher que pertence a um meio social muito
e, mais uma vez, repetem-se as discussões moraliza- particular, que Dumas Filho, na França, denomi-
doras sobre o tema da regeneração da cortesã, sem nava demi-monde, expressão traduzida na época
nada de novo, a não ser o fato de que aquele casa- como "mundo equívoco". Fazem parte desse uni-
mento branco não deu certo. Publicada em 1868, verso as pessoas corrompidas pela prostituição
História do Teatro Brasileiro + volume 1

moral, pelo dinheiro fácil, pelo jogo e pelo ócio. se diz arrependida e pretende ver Jorge, que está
As mulheres, geralmente elegantes e sem problemas à beira da morte, é barrada pelo dr. Eduardo, em
financeiros, estão sempre à espera de uma oportu- nome da moral. Apenas Deus poderia perdoá-la,
nidade para voltar à sociedade regular, casando-se jamais os homens, ele lhe diz. Por outro lado, o
com um rapaz de boa família. Quintino Bocaiúva ex-amante da baronesa, rapaz de vida dissoluta e
dialoga abertamente com a peça em que Dumas dado ao jogo, consegue reencontrar o caminho
Filho evoca essa sociedade, Le Derni-Monde, das virtudes burguesas, graças às perorações do dr.
criando uma situação dramática idêntica, mas com Eduardo, e se reintegra à boa sociedade por meio
desenvolvimento diferente. Depois de confessar ao do casamento com uma moça honesta. Ninguém
amante o plano de se casar com Jorge, o diálogo que contesta a sua regeneração, o que dá a medida da
se segue é significativo: moralidade burguesa, rigorosíssima para com as
mulheres, condescendente para com os homens.
VISCONDE - Tem assistido às representações do Mundo Apesar do excessode retórica que por vezes toma
Equívoco, Baronesa? conta da peça, principalmente nas falas do raison-
BARONESA - Por quê? Quer ter a pretensão de parecer-se neur, Onfália cumpre o que se espera de uma comé-
com o Oliveiras? dia realista, ainda que o autor a tenha denominado
VISCONDE - Não, mas queria perguntar-lhe quem é o novo "drama': talvez por conta da morte de Jorge no des-
Raymundo Nangeac". fecho. A defesa do casamento e da família, a crítica
moralizadora dos vícios, a naturalidade nos diálogos
Lucília age como a baronesa Suzanne d'Ange, e no jogo de cena, tudo colaborou para o seu sucesso
que seduz o jovem Raymond de Nanjac na peça no palco, que ganhou interpretações marcantes de
francesa, mas sem conseguir o casamento, por Furtado Coelho e Eugênia Câmara. Ambos viajaram
causa da intervenção do raisonneur Olivier de Ja- por quase todo o Brasil, em: 1861 e 1862, e fizeram
lin (O liveiros, na tradução encenada no Ginásio). de Onfália uma das peças mais aplaudidas do seu
Já Lucília será bem-sucedida, porque o raisonneur repertório, ao lado daDalila de Feuillet.
brasileiro, o dr. Eduardo, não consegue convencer Animado com a boa estreia como autor dramá-
Jorge de que vai dar um mau passo, de que é melhor tico, Quintino Bocaiúva escreveu Os Mineiros da
permanecer ao lado da mãe e da irmã. Desgraça, que o Ginásio Dramático pôs em cena
O enredo tem caráter demonstrativo, pois o que a 19 de julho de 186 I. Mais uma vez, seu alvo é
se vê, após o casamento, é um dia a dia de sofrimen- o "mundo equívoco" do Rio de Janeiro, agora
toS e humilhações para o rapaz, que morre para centrado na trajetória de dois usurários que enri-
significar que essetipo de amor não era o mais indi- quecem à custa da desgraça alheia e de negócios
cado para os jovens que assistiam à peça em 1860. escusos. Vidal e Venâncio são gananciosos e insen-
Ao final da trajetória de Jorge, o raisonneur observa síveis, hipócritas e mentirosos. Vamos vê-los em
à outra personagem - e também ao espectador: "que ação nos dois primeiros aros, quando enganam e
o exemplo sirva para benefício dos ínexpertos" levam à ruína um negociante honrado, João Vieira,
Preocupado em extrair o máximo de morali- impossibilitado de pagar o que deve a Venâncio. Ao
dade da peça, Quintino Bocaiúva introduz o tema lado da filha Elvira e do seu guarda-livros, Paulo,
da regeneração da cortesã. Ao contrário de Alencar, jovens que se amam, João Vieira recebe a visita de
que ficou numa espécie de meio-termo no desfe- Vidal, que se oferece para ajudá-lo. Insinuando-se
cho de As Asas de um Anjo, ele procede à maneira como amigo e interessado em Elvira, o usurário,
de um Augier ou de um Barriêre, isto é, considera com mentiras e falsas evidências, convence o ne-
que a mulher decaída não pode ser perdoada, que gociante de que Paulo é desonesto e que deve ser
sua afronta à sociedade é sempre maior do que despedido e afastado da família.
qualquer arrependimento. Assim, quando Lucília A ação dramática desses dois primeiros ates, res-
trita a poucos personagens, é rápida e direta, pois
15 Citação feita a partir do manuscrito da peça, que se encontra
na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
não quer mais do que fixar o caráter dos usurários,

+ r68
• o Teatro Realista

o que, diga-se de passagem, foi conseguido com um mostra, no desfecho, a prisão dos usurários, graças
realismo que chamou a atenção da crítica". A mo- a Paulo, que traz de Portugal provas de que passam
ralidade da peça se concentra nos outros dois aros, dinheiro falso.
quando o autor retrata a sociedade da qual Vidal Machado de Assis escreveuum folhetim bastante
e Venâncio fazem parte. ~em pode ser amigo e elogioso à peça, em que viu "mérito literário" e "alta
frequentar a casa de seres tão ignóbeis? O terceiro moralidade". Destacou também a forte presença do
ato responde à pergunta. Muitos anos depois dos raisonneur, com suas "censuras aos vícios da socie-
acontecimentos do segundo ato, Venâncio dá uma dade': a reprodução fotográfica do "mundo equí-
festa, o que permite que outras personagens surjam voco" e ressaltou a boa acolhida do público, tocado
em cena: Ernesto, jovem afrancesado, fútil, que deve "no íntimo porque se lhe falou a verdade'l".
a Vidal;Jorge, seu amigo, que só fala banalidades e O sucesso de OsMineirosda Desgraça foi muito
só pensa em ser rico como Venâncio; Olímpia, mu- grande, como comprovam os jornais da época.
lher adúltera, apaixonada por Ernesto; Maria, quase Embora tenha seguido os postulados da comédia
uma alcoviteira, querendo jogar uma amiga malca- realista para escrevê-la, Quintino Bocaiúva deno-
sada nos braços de um homem que nem conhece minou-a "drama', talvez para deixar claro que se
direito; um político corrupto, amigo dos usurários. tratava de uma peça séria'>.
Todas essaspersonagens ilustram, com suas ações e Em maio de r862, o Ateneu Dramático, teatro
pensamentos expostos nos diálogos, o lado podre da com a mesma orientação do Ginásio, divulgou que
sociedade do Rio deJaneiro que Quintino Bocaiúva ia encenar a terceira peça de Quintino Bocaiúva, A
deseja criticar. Depois de lamentar que "nós temos Família, bem como outras produções nacionais. No
igualmente o nosso mundo equívoco': o raisonneur entanto, por alguma razão isso não ocorreu. Sua pri-
da peça, o jornalista Mauricio, assim o define: meirarepresentação se deu apenasem r 868, dois anos
apóster sidopublicadapelaTipografiaPerseverança. É
Mundo flutuante que acompanha a sociedade, que se trans- apeça maisfracado autor, embora,no plano dasideias,
forma, que se engrandece à custa do que rouba ou recruta em a mais comprometida com a tese principal do teatro
todas as classesúteis. Esses banqueiros fraudulentos, essesre- realista: a do elogio das virtudes burguesas,em parti-
batedores sem alma, as mulheres sem pudor e as crianças sem cular,do casamento, do amor conjugal e da família.
virgindade, os sedutores de profissão, os empregados ociosos Os três primeiros aros apresentam quadros
e concussionários, os juízes prevaricadores, todas essas exce- da vida doméstica em que predominam os bons
ções monstruosas que envergonham a probidade social, que sentimentos, a confiança recíproca entre marido e
desonram aos companheiros de ofício e que entristecem o mulher, a índole honesta dos filhos, de modo que
coração nacional, tudo isso faz parte desse mundo híbrido e as cenas, construídas com naturalidade, desenham o
repulsivo. Não há lugar vedado a essa classe de parasitas; eles retrato de uma família feliz. Os diálogos, por vezes,
têm uma representação em todos os lugares, no governo, nas servem apenas para trazer à tona uma lição edifi-
câmaras, nas igrejas, nos salões, nos teatros. Adorados por cante. Como esta, dirigida às mocinhas da plateia:
uns, escarnecidos por outros, detestados por alguns, esses
aleijões sociais pavoneiam-se altivos, e pode-se dizer que têm PEDRO - ... O futuro das mulheres, Clemência, é o casa-
a primazia das venturas efêmeras; felizmente efêrneras!'? mento. Se uma moça tem a fortuna de encontrar um bom
marido, está feliz. Pobres que sejam, mas que se amem!
Descontado o excesso de retórica, a peça atinge O amor não é esse sentimento extravagante em que os
a sua finalidade moralizadora, não só com as falas libertinos e os levianos modernos transformaram essa lei
do raisonneur, mas com o próprio enredo, que sublime da natureza. Ele deve ser a base do rnatrimônio, o

16 "Vídal e Venâncio são dois tipos de que se acotovelam as 18 Machado de Assis, Do Teatro..., P: 2.41-2.44.
cópias diariamente nas ruas da cidade", escreveu o folhetinista 19 Outros dramaturgos, à semelhança de Quíntíno Bocaiúva, tam-
Henrique César Muzzio no Diário do Rio defnneiro de 2.8 de bém denominaram "dramas" as peças que escreveram sob inspiração
julho de 1861. do realismo teatral. Isso não provocou nenhuma discussão teórica
17 Quintíno Bocaiúva, OsMineirosda Desgraça, em Antologia importante. Alencar, por exemplo, preferiu chamar de "comédias" as
do Teatro Realista,São Paulo: Martins Fontes, 2.006, p. 53-54. suas peças. O que importa ressaltar é que são rodas da mesma família.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

elo insolúvel da família que se perpetua nas gerações. Deus amigos da família, unidos pelos mesmos preconcei-
não deu ao homem sentimentos inúteis. Todas as paixões tos, escravos todos do luxo e da vaidade. Como o
humanas fecundam-se pela virtude". gênero da comédia realista requer o raisonneur, ele
aparece na pele do velho Anastácio, rico fazendeiro
de Minas Gerais e irmão de Maurício, que visita
o Ecletismo a corte depois de dezoito anos de ausência. Suas
deJoaquim Manuel de Macedo intervenções são devastadoras e reforçam a crítica
implícita no enredo e no perfil das personagens.
Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) já era Maurício e Hortênsia o suportam, interessados que
um escritor conhecido, tanto como romancista estão em seu dinheiro. O primeiro chega a reco-
quanto como dramaturgo, quando escreveu a co- nhecer os erros, mas tarde demais, pois já não tem
média Luxo e Vaidade e o drama Lusbela, ambos como pagar as contas. Leonina, porém, ouve o tio
com base nos preceitos do realismo teatral. e se transforma da noite para o dia, reconhecendo
A primeira estreou no Ginásio Dramático a 23 seus erros, admitindo gostar de Henrique, rapaz
de setembro de 1860 e foi o maior sucesso do ano, pobre e seu primo, filho do marceneiro Felisberto.
permanecendo bastante tempo em cartaz, bem re- Dois são os conflitos que a peça desenvolverá: o
cebida pelo público e pela crítica, que ressaltou seu primeiro, centrado nas dificuldades financeiras do
caráter moralizador e seu realismo na construção de casal; o segundo, envolvendo Leonina e Henrique,
certos tipos sociais do Rio de Janeiro. Já pelo título, que deverão lutar contra os planos de Hortênsia, a
a peça aponta os vícios que serão vergastados pelo fim de derrotar a ideia do casamento por dinheiro e
seu raisonneur. Em cena, uma família que vive acima tornar vitorioso o casamento por amor. Macedo não
das suas condições financeiras e que se quer nobre se contentou com essa matéria, suficiente para uma
aprende, à beira da ruína e do opróbrio, que o luxo e comédia realista, e deu relevo a algumas persona-
a ostentação são inimigos dos bons sentimentos, da gens secundárias, inventando uma trama um tanto
honestidade, das amizades sinceras, e sinónimos de folhetinesca, na qual uma mulher que fora preterida
miséria moral. As personagens e o enredo são cons- por Maurício quando jovem planeja, junto com uma
truídos para que o autor faça a crítica moralizadora filha invejosa, o rapto de Leonina para comprometê-
dessa família que se desviou do bom caminho das -la aos olhos da sociedade. Além disso, o autor abu-
virtudes burguesas. Logo no primeiro ato, são fixa- sou dos recursos anrírrealistas, como o aparte e o
dos os caracteres de Maurício e Hortênsia, o casal, e monólogo, comprometendo a desejada naturalidade
de Leonina, a filha em idade de se casar. Os três são na apresentação da ação dramática. Se por esse lado
apresentados com cores tão negativas que aparen- Luxo e Vaidade falha - as cenas do raptO frustrado
temente parecem irrecuperáveis. A esposa é o pior lembram inclusive o drama de capa e espada com
caráter: fútil, arrogante, faz questão de ter um criado máscaras, punhais e lutas no escuro -, o aspecto da
francês e uma professora inglesa para a filha Leonina, moralidade está plenamente contemplado, ainda
e assim se exibir perante a alta sociedade. O marido é que ao custo de um certo exagero retórico. Ao salvar
um homem fraco, um funcionário público que gasta o casal da ruína, Anastácio, dirigindo-se a Hortênsia,
mais do que ganha para manter as aparências de ri- faz uma peroração que era também para a plateia:
queza e que se aíastou do irmão para não ser visto
com um simples marceneiro. Leonina não é melhor Acima dos meus parentes está a nação que pode colher
que os pais, com seus sonhos de grandeza e de um benéficos resultados da lição que oferece a sua desgraça. A
casamento rico, aliás aventado por sua mãe como sociedade acha-se corrompida pelo luxo e pela vaidade, e um
uma solução para as dívidas que se avolumaram. quadro vivo das consequências desastrosas dessas duas pai-
Os defeitos morais se estendem às demais perso- xões talvez lhe seja de prudente aviso. Em Maurício verá o
nagens da alta sociedade do Rio de Janeiro que são homem de medíocre fortuna e especialmente o empregado
público, que a ostentação e o fausto de alguns anos determi-
20 A Família, Revista de Teatro, Rio de Janeiro: Sbar, n. 294,
nam a miséria de todo o resto da vida; nas suas lágrimas de
nov./dez. 1956,P' 8.

• 17 0
• o Teatro Realista

Sua personagem, Damiana, surge no primeiro ato


com alguns traços da heroína deA Dama das Ca-
mélias, como o arrependimento pela vida dissoluta
e o amor sincero a um rapaz e, à semelhança da
Carolina de As Asas de um Anjo, odeia a sociedade
que despreza a mulher seduzida sem condenar o se-
dutor. É que no prólogo, um pequeno melodrama,
ela era uma moça honesta que se deixou seduzir por
um moço rico, que a abandonou à própria sorte.
Amaldiçoada pela avó e expulsa de casa pelo pai,
tornou-se uma prostituta terrível. Durante oito
anos, conta uma personagem, essa mulher de "co-
ração de mármore e olhos sem lágrimas'? afrontou
a moral e dissipou a fortuna de seus amantes, rindo
da sociedade que a condenava. Agora, apaixonada
e transformada pelo amor que sente por Leonel,
acredita que poderá ser perdoada e amada.
Se a peça prosseguisse por esse caminho, fica-
ria muito próxima de A Dama das Camélias, que
Joaquim Manuel de Macedo.
aborda de um ponto de vista romântico o tema da
regeneração da cortesã. Mas como Leonel não ama
esposa e de mãe, as mães e as esposas verão os horrores a que Damiana, o enredo aponta para outra direção: a
as pode levar o abuso do amor de um marido extremoso e da prostituta má, que, tão logo desprezada, faz
cego e a falsa educação dada às filhas. A sua triste pobreza planos para destruir a pureza e perverter a noiva
proclama a necessidade da economia. A própria desonr~ do rapaz. O terreno aqui é o do realismo teatral,
de meu irmão ensina que desvairado pela paixão do luxo, como apontou o censor do Conservatório.Dramá-
um homem honesto é capaz de arrojar-se até o crime. As tico, Antônio Ferreira Pinto, ao condenar a cena
suas pretensões de nobreza, enfim, dizem ao mundo que o em que Damiana começa a pôr em prática o seu
uropel não é ouro, que a máscara não é o rosto, e que nobre, plano. Ele afirma que "a escola realista pouco ou
verdadeiramente nobre, é só o que é virtuoso e probo, o que nada ganha com a pintura descarnada do vício" e
é grande e generoso, o que é digno de Deus e da pátria". que fica horrorizado quando Damiana, diante da
inocente Cristina, afirma em aparte: "destruirei a
Aí está o recado de Macedo, que faz seu raison- suave pureza do seu olhar, acendendo-lhe nos olhos
neur exorcizar os vícios que atrapalham a constru- a lasciuia"?",
ção de uma sociedade assentada sobre os valores Mas Lusbela não se realiza tampouco como um
éticos da burguesia. Os arrependidos e regenerados drama realista à maneira de um 1héodore Barriere.
Maurício e Hortênsia agora recebem o marceneiro A mulher de mármore que se desenha no primeiro
Felisberto e aceitam o casamento de Leonina e ato já não existirá nos demais, porque Macedo
Henrique - um desfecho cujo alcance moral, na apela para uma dessas coincidências que alimenta-
época, não foi posto em dúvida por ninguém. ram os dramalhões do século XIX. No diálogo com
Com Lusbela, drama representado também Cristina, Damiana se dá conta de que está diante
no Ginásio Dramático a 28 de setembro de 1862, da própria irmã.
Macedo traz para a cena a figura da prostituta, O que se pode notar é que já ao final do pri-
nessa altura bastante conhecida da plateia do Rio meiro ato são apresentadas abortadas as duas
de Janeiro, graças a peças francesas e brasileiras.
22 O parecer encontra-se depositado na Seção de Manuscritos
21 Joaquim Manuel de Macedo, Teatro Completo I, Rio deJa- da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e traz a data de 11 de
neiro: MEC/SNT, 1979, p. 88. outubro de 1861.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

principais possibilidades de abordagem do pro- Aquiles Varejão)


blema da prostituição. Damiana não terá a oportu- Sizenando Nabuco,
nidade de regenerar-se por amor, já que Leonel não Valentim da SilveiraLopes
a ama, e nem poderá ser má, para não prejudicar a
irmã. Não é sem razão, portanto, que na sequência Com a encenação de peças de escritores jovens
Lusbela se transforme num drama de enredo mo- ou desconhecidos, o Ginásio Dramático demons-
vimentadíssímo, no qual o fato de Damiana ser trou que suas portas estavam de fato abertas para
prostituta torna-se secundário. Sem as bases das a dramaturgia brasileira, em especial aquela es-
peças românticas ou realistas que trataram do pro- crita sob a inspiração do realismo teatral. Depois
blema, Macedo leva o enredo para outra direção, de Luxo e Vaidade, de Macedo, subiu à cena A
envolvendo a protagonista numa trama folheti- Época, de Aquiles Varejão (1834-1900), a 30
nesca, tornando-a cúmplice de um passador de de dezembro de 1860. Desse mesmo autor o
dinheiro falso. A ação dramática ganha um ritmo Ginásio também encenou A Resignação, a 24 de
ofegante, recheada de jicelles* e de cenas de im- novembro de 1861, e O Cativeiro Moral, a 8 de
pacto, ou de mau gosto - como o delírio do pai de dezembro de 1864. Infelizmente nenhuma dessas
Damiana no terceiro ato -, de modo que não há peças foi publicada, o que impossibilita uma aná-
mais lugar na peça para qualquer tipo de reflexão lise detalhada dos seus recursos formais e temas
moral ou de descrição de costumes. Sem um rai- abordados. Segundo a imprensa da época, apenas
sonneur para extrair as lições morais da trajetória a primeira foi bem-sucedida, provavelmente por
da personagem, tudo se concentra no enredo, que combinar de maneira satisfatória a naturalidade
passa a girar em torno de um cofre com dinheiro e a moralidade exigidas pela comédia realista. Eis
falso, sem que voltem à cena as questões suscitadas o ponto de partida da peça:
no prólogo e no primeiro ato.
Com muita razão os críticos da época censu- Uma família, composta de pai, madrasta e dois filhos, vive
raram os exageros de Lusbela, cuja primeira ideia na opulência: Carolina, a madrasta, tem pronunciada
era discutir os preconceitos da sociedade contra a queda para o esbanjamento, não pensa senão em diaman-
mulher decaída. Mas ao abordar o problema da tes, bailes e teatros, só frequenta fidalgos e ricaços, e olha
prostituição e o tema específico da regeneração da c0Il'l; asco para todos aqueles cuja fortuna é medíocre ou
prostituta, Macedo esqueceu-se de que o retrato nula; Carlos, o filho pródigo, deixa-se arrastar pelas más
dos costumes e o debate de uma questão social exi- companhias, entrega-se a todos os vícios desde o jogo até
gem a simplificação do enredo. Em sua peça, apenas o roubo, e dissipa com sofreguidão a riqueza, à força de
o primeiro ato apresema algumas características da trabalho adquirida por seu pai; este negociante honrado,
comédia realista, isto é, cenas que reproduzem o porém homem fraco, consente que sua segunda mulher
universo da prostituição elegante com objetivi- o impila para o abismo, e não tem ânimo, sequer, para
dade, diálogos que exprimem uma conversação retirar o filho das bordas do precipício, que o vai tragar,
natural e discussão de ideias. Macedo, como se nem tampouco para opor um paradeiro aos maus tratos
vê, não assimilou o realismo teatral com a mesma que Júlia, menina dotada de excelente coração, sofre da
facilidade de Alencar e de Quintino Bocaiúva.Mas impertinente madrasta.
isso não impediu que Lusbela fosse bem recebida Júlia não desgosta de Moreira, futuro doutor em medi-
pelo público do Ginásio, prova do prestígio do cina, e crê na possibilidade de ser sua esposa; o estudante,
escritor, que, além de Luxo e Váidade, havia tido porém, é pobre e não lhe vale ser honrado: as intrigas de
outras duas comédias montadas no mesmo teatro: Carolina o afastam da infortunada menina, que luta com
ONovo Otelo, em dezembro de 1860, eA Torreem a perfídia, e presta-se, contrariada, a desvanecer o temor da
Concurso, em setembro de 1861. megera, para quem um casamento na família corresponde
à diminuição da sua riqueza".

Recurso cênico conhecido e já gasto, usado para alcançar um


efeito ou desfecho qualquer bastante previsível (N. da E.). 23 Reviria Popular, Rio deJaneiro, tomo IX, jan./ mar. 1860, p. 126.
• o Teatro Realista

No desenvolvimento do enredo, em que há a O Cínico, drama em três atos de Sizenando Barreto


falência do negociante, Aquiles Varejão reserva a Nabuco de Araújo (r842-r892), irmão mais velho
punição para os maus burgueses, aqueles que se dei- de Joaquim Nabuco.
xaram corromper pelo dinheiro, e o prêmio para os Todo o primeiro ato é uma exposição do modo
bons, como Júlia e Moreira, que se casam por amor. de vida dos acadêmicos, representados por um
Nos jornais, foram comuns os elogios aos diálogos grupo que vive em uma república e seus amigos. O
construídos com naturalidade e à capacidade de que interessa ao autor é mostrar que assim como há
observação do autor. o estudante pobre e honesto que leva a sério o seu
A segunda peça, A Resignação, agradou menos. curso, há também o estudante que gasta o dinheiro
A tentativa de escrever um drama realista esbar- dos pais com bebida, jogo e prostitutas. Há cenas
rou na utilização de recursos fáceis do melodrama, na peça que lembram um pouco as descrições feitas
segundo se depreende da leitura dos jornais. O por Álvares de Azevedo emlvIacário: os estudantes
enredo, sobrepondo-se à descrição dos costumes e fazem guerra aos livros e proclamam o conhaque
discussão de problemas da vida social, não descarta ou o champanhe como companheiros preferidos.
nem mesmo um vilão que ao final se revela pai da Não falta ao quadro de costumes da vida acadêmica
mocinha, que acaba num convento, separada do o agiota que se aproveita das dívidas contraídas pe-
amado. Igualmente fraca deve ter sido O Cativeiro los rapazes. No grupo destaca-se André, o único
lvIoral, que saiu de cartaz depois de três representa- que estuda verdadeiramente e que se encarrega dos
ções. A imprensa praticamente a ignorou, de modo comentários moralizadores. Cabe-lhe condenar o
que nem mesmo seu enredo pode ser conhecido. que vê, isto é, o convívio estreito dos acadêmicos
O desejo de se filiar ao realismo teatral levou com a prostituição, a usura e o jogo.
Aquiles Varejão a escrever pelo menos mais uma Feita a pintura dos costumes, Sizenando Na-
peça, que permaneceu inédita, mas que pode ser buco tratou de armar o enredo da peça. Do uni-
lida na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacio- verso dos estudantes escolheu Luís, rapaz rico e
nal. Trata-se deA Vida Íntima, que já traz no título de vida dissoluta, para protagonizar a história de
um programa: o de exaltar a vida em família, a fe- sedução e cinismo que ocorre já no segundo ato.
licidade doméstica de personagens que têm como Colocando dinheiro no bolso do paletó de Jorge,
valores o trabalho e a honestidade. Todo o primeiro irmão de Amélia, para incriminá-lo, observa des-
ato mostra uma família unida, moralmente sã, caradamente que "elenão dormirá em casa e a irmã
formada pela mãe, Leonor, e pelos filhos Carlos será minha">'. De fato, segue-se a cena da sedução,
e Lúcia. A situação inicial de equilíbrio sofre um que reforça o caráter ignóbil da personagem.
abalo quando o filho começa a pensar que sua mãe No terceiro ato, que se passa depois de algum
deseja se casar novamente. O enredo nasce de um tempo num hotel no Rio de Janeiro, Luís está pres-
quiproquó, pois Júlio está interessado em Lúcia, tes a completar a sua obra, ou seja,abandonar Amé-
não em Leonor. Tão logo tudo se esclarece, o final lia. Surdo às palavras de André, que define como
feliz garante a vitória das virtudes burguesas, as "inúteis lições de moral': e insensível às lágrimas
verdadeiras protagonistas da peça. da mocinha, prepara-se para ir embora, como au-
Sem ter sido um dramaturgo de valor, Aquiles têntico vilão de melodrama. A necessidade de dar
Varejão deu sua contribuição à renovação teatral uma solução moral para o conflito levou Sizenando
levada a cabo pelo Ginásio Dramático, apoiando- a imaginar um desfecho nada convincente. Jorge
-a com suas peças e também com textos de crítica chega para vingar a honra da irmã e atira em Luís,
teatral nos quais sempre defendeu os princípios que minutos antes de morrer arrepende-se de tudo
estéticos do realismo teatral. o que fizera e se casa in extremis com Amélia.
As fileiras realistas ganharam em seguida a Provavelmente insatisfeito com essa solução,
adesão de um jovem de apenas dezenove anos, ao imprimir a peça o autor modificou o desfecho.
acadêmico da Faculdade de Direito de São Paulo.
24 Sizenando Barreto Nabuco de Araújo, O Cínico, São Paulo:
A ro de março de r86r, o Ginásio pôs em cena Tip. Literária, 1861, P: 23.

• 173
História do Teatro Brasileiro • volume1

Quando Jorge vai atirar em Luís, Amélia interpõe- Ginásio, revelando como foi difícil e incompleto o
-se entre ambos, afirmando ter tomado veneno e aprendizado da nova estética teatral.
desmaiando de emoção. Aflito, como sugere a ru- O mesmo hibridismo aparece na peça Amor e
brica, o sedutor chama por um médico e abraça-a, Dinheiro, de ValentimJosé da Silveira Lopes (1830-
regenerado. Felizmente André havia substituído o ?), escritor português naturalizado brasileiro, pai da
veneno por pó de arroz. escritora Júlia Lopes de Almeida. Pelo resumo do
A regeneração de Luís e a descoberta de seu enredo publicado nos jornais, esse drama em quatro
amor repentino por Amélia são mal preparadas e atos, encenado no Ginásio a 8 de março de 1862,
sem fundamento. Num rompante que violenta a psi- apresenta algumas características da comédia rea-
cologia da personagem, o autor destrói o caráter que lista, como a defesa das virtudes burguesas e preo-
havia construído nas cenas anteriores. Com muitas cupações moralizantes, mas a ação dramática não
falhas no desenvolvimento da ação dramática, não descarta os clichês do dramalhão.lvlais interessante
surpreende que O Cínico não tenha feito sucesso. é a primeira peça do autor, o drama em dois aros Sete
Nos jornais foram publicadas algumas palavras de de Setembro, que estreou no Ginásio a 7 de setem-
estímulo ao dramaturgo estreante, mas sem elogios bro de 1861. Ainda que não se trate de uma obra
ao "drama da escola realistá: como o definiu Macedo bem realizada no plano da forma, sua importância
Soares no prefácio ao volume editado em 186r. está no fato de ter trazido para a cena a ideia de
A segunda peça de Sizenando Nabuco, A Tú- que a escravidão é incompatível com a sociedade
nica de Nesso, estreou no dia 3 de janeiro de 1863 moderna, que deve ter como pilares o trabalho livre
no Ateneu Dramático, também sem conseguir uma e o conhecimento científico.
boa acolhida do público e dos críticos. Como não Preocupado com a exposição e a discussão de
foi publicada, só podemos ter uma noção do seu ideias, Silveira Lopes cria um enredo frouxo, opondo
enredo, com base em matérias jornalísticas. Trata- uma família de lavradores pobres a uma de um rico
-se de um drama centrado na trajetória de Adélia, fazendeiro. Na primeira imperam os bons senti-
mulher que abandona o marido, trocando-o por mentos e o orgulho do pai, Raimundo, por não ter
um amante rico, passando assim a levar uma vida escravos em suas terras. Nos diálogos com o filho
desregrada, apesar de ter levado consigo uma filha Carlos ou com Maria, moça criada por ele e noiva do
pequena. Com o objetivo de moralizar a partir rapaz, ele condena o dinheiro que não é ganho com
do próprio enredo, o autor carregou nas tintas o trabalho e todo tipo de vaidade. Todos se pautam
e puniu a personagem num desfecho típico de pela honestidade e sentimento nobres nessa família,
dramalhão. A filha morre enquanto ela se diverte cujo retrato possui equilíbrio e harmonia.
num banquete. O padre que vem ver a criança é por Para instaurar o conflito, uma denúncia esclarece
coincidência o ex-marido, que não lhe dá o perdão que Maria era filha de uma escrava e pertencia ao
implorado entre lágrimas. Na última cena Adélia fazendeiro Jacinto. Em sua casa se passa o segundo
dá uma gargalhada e enlouquece. ato. Personagem curiosa, um tanto inconsistente,
Como escreveu Machado de Assis, falta ao autor ele lamenta viver numa sociedade escravocrata e a
"certo conhecimento da ciência dramática" A ação condena em suas falas, mas não tem coragem de
"não é suficiente para as proporções da peça, nem abdicar das vantagens que obtém. A condenação
caminha sempre pela razão lógica das coisas'>'. Tudo do cativeiro é mais digna na boca de Raimundo,
indica que o enredo de A Túnicade Nesso mistura que afronta a pobreza e dispensa a regalia que lhe
os procedimentos do realismo teatral, no início, no oferece a sociedade. É Artur, o filho de Jacinto, re-
qual parecem ser veementes as críticas ao dinheiro, cém-chegado da Europa com o diploma de bacharel
ao luxo e à ostentação, com os do melodrama, do e a cabeça tomada pelas ideias liberais, que liberta
meio para o finaL Esse hibridismo caracteriza uma Maria. Ele representa na peça o pensamento anties-
boa parte do repertório brasileiro encenado no cravocrata ilustrado, o homem brasileiro de uma
futura sociedade alicerçada na solidez do trabalho e
25 Machado de Assis,Do Teatro..., p. 287.
da ciência. A cena se passa ao mesmo tempo em que

• 174
• o Teatro Realista

soam, ao longe, tiros de artilharia comemorando o entre a baronesa de Periripe e seu filho Artur, am-
7 de setembro. Juntando o dia da liberdade da pátria bos revelam de maneira cínica e despudorada que
com o gesto de Artur em relação a Maria, Silveira a solução para os problemas financeiros da família
Lopes propõe o fim da escravidão no Brasil e a ver- é um casamento rico.
dadeira liberdade para todos os brasileiros. Carlos, Todo o primeiro ato é uma condenação da
estendendo amão a Artur, lhe diz: "Aperte esramão, "aristocracia do dinheiro': que o raisonneur da peça
mancebo, é a mão do homem do trabalho, que se define como "a mais estúpida e brutal de todas as
ufana de apertar a mão ao homem da ciência". aristocracias, e a mais intolerante" 28• Henrique e
Peça afinada com o espírito do Ginásio, na qual Amélia serão as vítimas dessa mentalidade que o
está presente a defesa das virtudes burguesas e das autor censura, porque coloca o dinheiro acima
ideias liberais, Setede Setembro não fez sucesso de de valores mais nobres como o trabalho e a inte-
público, mas mereceu duas matérias elogiosas no ligência. Vieira separa os jovens e impõe à filha o
jornal A Marmota e na RevistaPopular, justamente casamento com Magalhães.
pelo seu conteúdo progressista. L. A. - provavel- O segundo ato tem por objetívo mostrar que
mente Leonel de Alencar, irmão deJosé de Alen- a vida de Amélia transformou-se num inferno. O
car - escreveu: "Louvamos a maneira como o sr. marido a maltrata e a humilha constantemente, não
Silveira Lopes apresentou-nos o homem moderno, escondendo que está amancebado com a escrava
o homem do século em que vivemos, o homem en- Bráulia. Esposa honesta, ela tudo suporta e até
fim do progresso e do coração Iíberal'"? mesmo repele as investidas do sedutor Alberto,
que frequenta a casa e a percebe infeliz. Ao final
de quatro anos de sofrimentos, a agressão física
o Sucesso de Pinheiro Guimarães torna a situação insuportável e Amélia dá o passo
que não queria dar: foge com Alberto, sabendo que
A peça mais bem-sucedida na cena do Ginásio, em será condenada pela sociedade.
r 86 r, foi Históriade uma MoçaRica, de Francisco Nessa altura, o espectador ou o leitor deverá se
Pinheiro Guimarães (r 832- X 877), que estreou a 4 de lembrar de que a atitude de Amélia é uma conse-
outubro e permaneceu em cartaz até o final do ano, quência do erro cometido por Vieira, aferrado ao
com enorme repercussão na imprensa, por conta costume patriarcal de negar aos jovens o direito
dos temas polêmicos abordados: a prostituição e a de escolher, por amor, os seus parceiros. Pinheiro
regeneração da prostituta, os casamentos impostos Guimarães escreveu que essa é a ideia que domina
às filhas pelos pais, o casamento por dinheiro, a man- todo o drama, pois quis demonstrar que:
cebia entre homens casados e escravas domésticas.
Pinheiro Guimarães estruturou o enredo da sua casamentos impostos à mulher e celebrados entre indiví-
peça com base na trajetóría da protagonista, Amélia, duos que por suas índoles, educação, ideias e sentimentos
apanhada em quatro momentos importantes da sua se repelem, casamentos em que de um lado há uma mártir,
existência. O primeiro é o que precede a escolha do do outro um especulador, podem levar a mísera sacrificada
futuro marido. Filha d~ homem rico e insensível, à mais completa degradação, por bem formada que seja
que só pensa em dinheiro, Amélia ama o primo sua alma".
pobre, Henrique, enquanto é disputada por dois
caça-dotes, que hipocritamente se aproximam da O primeiro passo da degradação de Amélia foi
família. As cenas revelam o despudor de persona- a fuga com Alberto, que será forçosamente seu
gens como os especuladores Magalhães e Antunes, amante. Seis anos depois, ela encontra-se numa
que negociam a quantia que o primeiro pagará ao situação ainda pior. O desprezo da sociedade, as
segundo se o casamento se realizar. E no diálogo
28 Pinheiro Guimarães, História de uma Moça Rica, Antologia
26 Valentim José da Silveira Lopes, Setede Setembro, Rio deJa- do Teatro Realista,São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. r6r.
neiro: Tipografia e Livraria de B. X. Pinto de Sousa, 186r,p. 53. 29 Pinheiro Guimarães, Na EsftradoPensamento Brasileiro, Rio
27 Revista Popular, Rio deJaneiro, tomo xv, jul./ dez. 1862, P: 223. deJaneiro: 1. Amorim e Cia. Lrda., 1937, p. 189-190.

• 175
História do Teatro Brasileiro • volume1

humilhações constantes, a miséria e até mesmo a para os senhores. Alencar já havia demonstrado os
mendicância a levam ao extremo da prostituição. malefícios da escravidão doméstica em O Demónio
Agora ela é Revolta, a cortesâ mais requestada Familiar, apelando para a leveza e a comicidade.
do Rio de Janeiro, por quem os homens fazem Bráulia, na peça de Pinheiro Guimarães, é uma es-
qualquer tipo de loucura. Todo o terceiro ato é crava má, ardilosa, falsa e, ao final, criminosa, pois
um quadro da prostituição elegante da cidade, Magalhães é envenenado por ela.
com várias personagens secundárias retratando A peça não é abertamente antíescravista, em-
os costumes dissolutos de homens e mulheres que bora essa seja uma leitura possível para o segundo
vivem à margem da sociedade, entregues à vida fá- ato, uma vez que o caráter de Bráulia foi forjado
cil e aos prazeres condenados pela moral burguesa. pela sua condição de escrava. Além disso, num
No plano do enredo, Amélia arma sua vingança diálogo no primeiro ato, o raisonneur dr. Roberto
contra Magalhães, o causador da sua desgraça, admite ser um "negrófilo'; isto é, um homem favo-
humilhando-o em público. rável à libertação dos escravos.Pinheiro Guimarães,
Peça de estrutura aberta, com largos intervalos espírito liberal, provocava assim os conservadores
de tempo entre os ates, Históriadeuma Moça Rica da época e, juntamente com Alencar e Silveira
culmina com a discussão sobre a possibilidade de Lopes, antecipava no teatro um debate que logo
regeneração da prostituta. Amélia desce todos os tomaria conta das esferas política e econômica.
degraus da degradação, mas encontra apoio em Com tantas ideias apresentadas e debatidas em
Frederico, um jovem estudante de medicina que se cena, enredo estruturado com coerência interna,
apaixona por ela.e que a leva para viver no interior personagens bem delineadas, naturalidade na apre-
de Minas Gerais, longe do burburinho da corte. sentação da ação dramática e nos diálogos, História
Depois de sete anos de expiação, embora esteja de uma Moça Rica é uma das peças mais represen-
viúva, ela ainda não aceita o pedido de casamento tativas do repertório brasileiro ligado ao realismo
do rapaz. Regenerada, trabalha como costureira, teatral. Foi elogiada por intelectuais como Machado
ajuda os pobres, mostra-se altiva e digna, incor- de Assis, Francisco Otaviano, Sousa Ferreira, Joa-
porando a moral rígida da sociedade da época, quim Manuel de Macedo e Henrique César Muzzio.
que tinha regras diferentes para os homens e as É de se crer que os amigos, na época, esperas-
mulheres. Como ela mesma diz a Frederico, que sem outras produções parecidas. Mas Pinheiro
se regenerou de uma vida de vícios, "um homem Guimarães escreveu apenas mais uma peça, Pu-
se regenera e purifica: a mulher nunca! A nódoa nição, um autêntico drama romântico que gira
que uma vez a poluiu é eterna; nem todas as suas em torno das paixões violentas de um pai e um
lágrimas, nem todo o seu sangue a podem lavar">, filho por uma mesma mulher. Tal fato demonstra
Palavras semelhantes foram usadas pelo raison- que apesar da hegemonia do realismo teatral no
neur Meneses, em Asas de um Anjo, de Alencar, palco do Ginásio, o romantismo jamais deixou
ao condenar Carolina. E Amélia, à semelhança de ser uma opção estética para os dramaturgos
daquela personagem, também encontrará forças brasileiros do período.
na maternidade para enfrentar os remorsos e ex-
piar o pecado da prostituição.
História de uma Moça Rica é uma peça vigo- Álvares de Araújo)
rosa e corajosa, escrita para provocar o debate das França Júnior)
questões sociais que levanta. O último tema que Constantino do Amaral Tavares
merece considerações é o que se apresenta no se-
gundo ato: a mancebia entre Magalhães e a escrava O ano de 1861 deixou os folhetinistas animados
Bráulia. O autor quis mostrar que a escravidão é com os rumos do teatro nacional, que se firmava
um mal não apenas para os escravos, mas também no palco do Ginásio. Pois em 1862, três novos dra-
maturgos estrearam no mesmo teatro, reforçando
30 Pinbeiro Guimarães, História de uma Moça Rica, Antologia
ainda mais o otimismo. O primeiro, Francisco
do Teatro Realista,p. 259.
• o Teatro Realista

Manuel Álvares de Araujo (1829-r879), estreou a subiu à cena do Ginásio Os Tipos da Atualidade,
17 de janeiro com a peçaDeLadrão a Barão. O título de França júnior (r838-r890). O autor que se
resume a trajetória da personagem principal, Pereira, notabilizou por ter dado continuidade à tradição
um homem obcecado pela ideia de enriquecer e que cómica iniciada por Martins Pena tentou, no início
para isso não dispensa a hipocrisia, o roubo, a chan- da carreira, escrever à maneira do realismo teatral.
tagem e a falsificação de um testamento. Sua peça não perde de vista o intuito moralizador,
Numa peça com propósitos moralizadores, é mas apresenta como traço marcante a comicidade
claro que o vilão será punido no desfecho. Mas centrada no exagero caricato de uma das persona-
antes disso, é preciso mostrá-lo em ação, para que gens, o barão da Cmia.
seu caráter se desenhe diante do espectador. En- O tema principal de Os Tipos da Atualidade é
tre as suas vítimas destaca-se Veiga, um jovem de o casamento por dinheiro. A discussão do assunto
vinte anos, estudante da Faculdade de Direito de atravessa a peça de ponta a ponta e oferece ao amor
São Paulo, capaz de vender a ultima joia da mãe várias oportunidades para deixar claro o seu ponto
para alimentar o vício do jogo. Ao longo de quatro de vista, idêntico ao de Alencar, Quintino Bocaiúva
aros, ele encarna a fraqueza moral, a aversão aos ou Pinheiro Guimarães. Seu porta-voz é Carlos,
bons sentimentos, o distanciamento da família, médico recém-formado, orgulhoso do diploma
tudo aquilo, enfim, que Álvares de Araujo deseja conquistado com esforço e da disposição para o
criticar. Em sua derrocada, Veiga perde a estima trabalho. Sem fortuna, porém, não tem a simpatia
de Almeida, pai de Elvira, a moça que o ama e de de D. Ana de Lemos, mãe de Mariquinhas, a moça a
quem acaba se afastando. Ao chegar ao fundo do quem ama. A situação dramática, bastante simples,
poço e pedir ajuda a Pereira, percebe a hipocrisia é exposta já na cena de abertura, que fixa o caráter
do falso amigo e conhece o arquiteto da sua ruína, das duas mulheres. Enquanto Mariquinhas elogia
o homem que o incitou a jogar e que roubou todo o Carlos, porque é inteligente e estudioso, D. Ana
seu dinheiro com a ajuda da ex-amante Leopoldina o vê apenas como um domorzinho pobre e sem
e Como, hábil manejador do baralho. futuro. Por isso, quer casar a filha com o barão da
O caráter demonstrativo da peça é evidente. O Cutia, rico fazendeiro paulista, homem bronco e
destino de Veiga é o dos jovens que se deixam levar desajeitado. Conflito armado, cada grupo vai àlma
pelo vício do jogo . Mas como se manteve honesto com as armas que tem. Com a ajuda do afrancesado
na adversidade, o amor reserva-lhe o direito da e ridículo Gasparino, que tenta ensinar boas ma-
regeneração. Arrependido, utiliza o dinheiro que neiras ao barão, em cenas hilárias, D. Ana não pode
recebe de um devedor do finado tio para voltar a vencer. Ela mesma acaba sendo lograda ao se casar,
São Paulo, concluir o curso de Direito e tornar-se no desfecho, com o viúvo Gasparino, pensando ter
digno de Elvira. Nesse processo, assume por vezes dado um belo golpe. Ele, por sua vez, também havia
o papel de raisonneur, defendendo os valores éticos se casado por dinheiro com a velha Porfíria, que ao
da burguesia. Assim, enquanto sua trajetória no in- morrer lhe deixou uma ninharia.
terior da sociedade do Rio de Janeiro é descendente Como convém às peças ligadas ao realismo
até o final do quarto ato e ascendente no último, a teatral, os maus burgueses são punidos de maneira
de Pereira é proporcionalmente inversa. O ladrão exemplar. Carlos e Mariquinhas se casam por amor,
que chega a barão é desmascarado e preso, como .embora, num lance de sorte, o rapaz tenha ficado
convém aos enredos moralizantes. rico, com uma herança inesperada. Cabe-lhe ainda
No palco, De Ladrão a Barão teve receptividade a palavra final, em que faz a crítica moralizadora
discreta por parte do publico; nos jornais, mereceu à sociedade apegada ao dinheiro e às aparências.
elogios pelo alcance moralizador e restrições por O que chama a atenção em Os Tipos da Atua-
conta de algumas incongruências do enredo e pela lidade é que as personagens dividem-se em dois
inconsistência das personagens secundárias. grupos distintos. Carlos, :'Mariquinhas e D. Ana são
Um mês depois da estreia da peça de Álvares reproduções da vida real, daguerreótipos, como se
Araujo, exatarnente a 19 de fevereiro de 1862, dizia na época, ao passo que Gasparino, o barão

• 177
História do Teatro Brasileiro • volume 1

da Cutia e Porfíria são apreendidos pelo ângulo da moralizadoras por parte da baronesa. No quinto
deformação caricatural. Quando os três últimos, e último ato, porém, a formação romântica ao
principalmente o barão da Cutia, estão em cena, a autor o fez imaginar um desfecho de drama. Um
comicidade ganha o primeiro plano; quando são os bilhete de Carlos a Elvira, interceptado por Clo-
outros, a peça adquire a naturalidade da comédia tilde e entregue a Moncorvo, denuncia a esposa
realista e incorpora inclusive as costumeiras tira- como adúltera. É uma falsidade, mas o marido
das moralizantes. O hibridismo que a caracteriza, a abandona, o pai a despreza e a sociedade não
portanto, é diferente daquele que se encontra no re- acredita em sua inocência. Apenas a baronesa lhe
pertório até aqui analisado. Os outros dramaturgos dá apoio, acolhendo-a em sua casa. Elvira não su-
preferiram o tempero romântico, e não o cómico, porta as emoções fortes e morre, para comover
em suas obras. França Júnior, porém, já antecipa, o espectador e demonstrar as consequências dos
na pintura das personagens ridículas, o caminho casamentos por dinheiro.
que seguirá nas décadas seguintes, como autor de Misturando aspectos do drama romântico e
comédias satíricas de costumes. da comédia realista, Amaral Tavares reproduziu
A crítica ao casamento por dinheiro é também o o comportamento de outros dramaturgos do
tema principal de Um Casamento da Época, drama período, concebendo uma peça híbrida, na qual
em cinco aros de Constantino do Amaral Tavares a descrição dos costumes e a preocupação moral
(r 828-r 889), representado no Ginásio a 9 de maio convivem com a emoção de certos lances dramá-
de r862. A protagonista da peça é Elvira, moça ticos. Razoavelmente recebida pelo público, Um
de vinte anos que, por imposição do pai, casa-se Casamento da Época mereceu mais elogios do
com Moncorvo, homem de maus hábitos e vida que restrições da crítica especializada. Enquanto
dissoluta, porém muito rico. O ponto de partida Machado de Assis, mais rigoroso, não gostou da
é idêntico ao de História de uma Moça Rica, em- construção das personagens, outros apreciaram as
bora as consequências e o encaminhamento da ação lições morais e o retrato verdadeiro da vida social
dramática sejam diferentes. Enquanto Pinheiro do Rio deJaneiro.
Guimarães vai mais longe em sua ousadia, trans-
formando a esposa sofrida em prostituta, Amaral
Tavares contenta-se em fazê-la bater à porta do Maria Angélica Ribeiro:
adultério, sem todavia consumá-lo. Crítica ti Escravidão
As intenções críticas do autor são evidentes.
A trajetóría de Elvira tem como pano de fundo o Uma das poucas mulheres a escrever para o teatro,
retrato de urna parcela da alta sociedade do Rio de Maria Ribeiro (r 829-r 88o) estreou no Ginásio a
Janeiro em que o desregramento moral é a marca I I de março de r863, com a peça Gabriela, bem
dominante. Três das personagens envolvidas na recebida pelo público e pela crítica. Inédita e, ao
trama são hipócritas, invejosas e corruptas: ':Mon- que tudo indica, perdida, essa peça é uma espécie
corvo, que só encontra prazer na prostituição e de elogio à esposa honesta. Os comentários publi-
no jogo, deseja conquistar Clotilde, mulher falsa, cados nos jornais indicam que o enredo foi cons-
adúltera, amante de Carlos. Este, por sua vez, finge truído para que a protagonista se afirme como um
ser amigo de Moncorvo para seduzir Elvira. Em exemplo de virtudes, a despeito das dificuldades
contrapartida, há também as personagens que que enfrenta. Em linhas gerais, no centro da ação
cultivam os bons sentimentos e os valores morais, dramática está Gabriela, casada com um oficial
como a baronesa de S. João, que faz por vezes o da marinha que se ausenta do Rio de Janeiro por
papel de raisonneur, e Eduardo, que não conseguiu muito tempo, sem deixar para a esposa e a filha
se casar com Elvira. os meios necessários à sobrevivência. Envolvida
Até o final do quarto ato Um Casamento da na trama de personagens desonestas que querem
Época preenche as condições das peças realistas. perdê-la, Gabriela mantém-se digna, sofre com a
Há naturalidade nos diálogos e intervenções separação do marido que ao voltar dá ouvidos a
• o Teatro Realista

boatos, e, nas palavras de Machado de Assis, "acha a faltam críticas ao luxo e à ostentação ou elogios
força para o combate no fogo da própria virtude"!'. à felicidade doméstica nas cenas que preparam a
Em sua segunda peça, Cancros Sociais, represen- introdução do assunto central da peça: a escravi-
tada pela primeira vez no dia 17 de abril de 1865, dão, apreendida como uma instituição que deprava,
e também filiada ao realismo teatral, Maria Ribeiro humilha e envergonha as suas vítimas.
expandiu a discussão de ideias, como se vê logo no No plano do enredo, Maria Ribeiro criou um
primeiro ato, em que várias questões que já haviam ponto de partida baseado numa ideia nobre do pro-
aparecido no palco do Ginásio alimentam os diálogos. tagonista: no dia do aniversário de quinze anos de
Assim, também nessa peça há uma personagem, sua filha, vai libertar uma escrava da sua terra natal,
Matilde, que sofreu com o casamento, porque o pai a Bahia. ~er dar à menina um exemplo de consi-
lhe impôs um marido que se revelou desonesto e la- deração e bondade. Eugênio é um negociante bem-
drão. Desquitada, ela sofre o preconceito da socie- -sucedido no Rio de Janeiro, um homem íntegro,
dade, embora se mantenha virtuosa. O casamento generoso, bom marido, trinta e quatro anos. Ele
por dinheiro ou conveniência é execrado pelo rai- tem todas as qualidades dos heróis das comédias
sonneur, o barão de Maragogipe, em diálogo com realistas. Na última cena do primeiro ato, porém,
um dos vilões, o afetado visconde de Medeiros. O o espectador é surpreendido com uma revelação.
tema da regeneração da prostituta é discutido por Quando lhe é apresentada a escrava que vai libertar,
duas personagens femininas, cada uma defendendo finge não conhecê-la, muito constrangido e enver-
um ponto de vista. Paulina acha que a regeneração gonhado.1Yfas ela o reconhece, pois um coração de
é possível e que a prostituta arrependida pode se mãe não se engana, mesmo que tenha sido separada
tornar uma boa esposa e mãeMatilde, ao contrário, do filho quando ele era um menino de cinco anos.
defende a ideia de que a regeneração só é possível O enredo que se desenvolve ao longo dos ou-
no ostracismo, pois a seu ver a pecadora verda- tros três atos da peça gira em torno do segredo
deiramente arrependida sabe que não tem mais de Eugênio - o filho branco de uma escrava -, só
lugar na sociedade. Por fim, discute-se também a conhecido pelo seu protetor, o barão de 1Yfarago-
escravidão. O barão de 1Yfaragogipe é antiescravista, gipe. Paulina nada sabe, claro, e todo o drama do
assim como o protagonista Eugênio, que se orgulha protagonista nasce do medo de ser repudiado pela
de não ter escravos em casa - todos os seus em- esposa, porque nasceu escravo, e do remorso por
pregados são trabalhadores livres. Já Matilde, por ter repudiado a mãe naquele primeiro encontro.
questões pessoais, não tem muita simpatia pelos A partir desse ponto o enredo se enovela, o pre-
escravos, mas defende a abolição do cativeiro em sente se mistura ao passado, onde estão todas as
termos explícitos, acrescentando que isso devia explicações. Maria Ribeiro lança mão de recursos
ter sido feito logo depois da Independência, uma folhetinescos, apela para coincidências forçadas,
vez que a escravidão "nos apresenta ao estrangeiro afasta-se das lições do realismo teatral, deixando
como um povo bárbaro e ainda por civilizar">, em segundo plano a descrição dos costumes, para
Esses vários assuntos que preenchem todo o privilegiar a ação e ao final salvar o protagonista:
primeiro ato têm uma dupla função: atingir o es- velhos papéis confirmam que à época de seu nasci-
pectador com lições morais e delinear o caráter das mento a sua mãe já havia sido libertada. Não pode,
personagens em função das ideias que defendem. portanto, ser vítima de qualquer preconceito.
Assim, de um lado estão aqueles que cultuam os As trajetórias de Eugênio e de sua mãe, separa-
valores éticos da burguesia: o barão de 1Yfarago- dos um do outro e vendidos por um especulador
gipe, Matilde, Eugênio, sua mulher Paulina e sua quando já eram livres, dão a medida dos sofrimen-
filha Olímpia; do lado oposto, os especuladores, tos provocados pela escravidão. A força do drama,
os desonestos visconde de Medeiros e Forbes. Não que teve boa acolhida por parte do público e da
crítica, está na denúncia que faz desses sofrimen-
31 Machado de Assis, Do Teatro....p. 302. tos e dos preconceitos contra o escravo, força que
32 Maria Ribeiro, Cancros Sociais, em Antologiado Teatro Rea-
lista, São Paulo: Martins Fontes, 2006, P: 303.
se sobrepõe aos defeitos da forma. Machado de

• 179
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Assis, que aproximou Cancros Sociais de Mãe, de o universo que estará presente na maioria das co-
José de Alencar, louvou o assunto escolhido por médias do escritor: o da alta sociedade brasileira de
Maria Ribeiro, observando que "na guerra feita ao seu tempo, constituída pela burguesia emergente.
flagelo da escravidão, a literatura dramática entra Aí ele vai colher sugestões para os enredos e tipos
por grande parte"!'. como as viúvas ainda em idade de se casar, homens
D e fato, basta lembrarJosé de Alencar, Pinheiro ricos que veraneiam em Petrópolis, negociantes, di-
Guimarães e Valentim José da Silveira Lopes. O plomatas, políticos, advogados, rapazes e mocinhas
teatro entendido como uma arte civilizadora e bem educados.
regeneradora da sociedade não poderia deixar de Em Desencantos, a família brasileira burguesa
abordar a questão central da escravidão ou mesmo está representada pela viúva Clara e por seus dois
os outros vícios e defeitos morais que ameaçavam pretendentes, Pedro Alves e Luís Melo, ambos
a integridade das famílias e do próprio país. Toda muito cordatos, finos, mas diferentes em suas
. uma geração de autores acreditou que o teatro não visões de mundo. O primeiro é mais prático e se
era apenas diversão, mas sim um poderoso instru- define como "homem de juízo e espírito sólido",
mento de educação pública. enquanto o segundo mostra-se um tanto român-
tico e sonhador. A viúva - também um espírito
prático - inclina-se por Pedro Alves, restando a
o Diálogo de Machado de Assis Luís Melo retirar-se e, confirmando sua índole,
com o Realismo Teatral anunciar uma longa viagem pelo Oriente. A graça
da comédia está toda em sua segunda parte, que
Em I8 59, aos vinte anos de idade, Machado de As- se passa cinco anos após a primeira: a personagem
sis (I 839- I 9o8) tornou-se crítico teatral do jornal que se casou, agora deputado, enfrenta um dia a
O Espelho e acompanhou de perto o trabalho do dia de contrariedades e discussões com a esposa
Ginásio Dramático, apoiando abertamente o re- voluntariosa; a personagem que viajou, curada da
pertório de peças realistas. Fez o mesmo quando velha paixão, volta ao Rio de Janeiro e interessa-
passou a escrever no Diário do Rio deJaneiro, na -se justamente pela filha de Clara. A cena em que
primeira metade da década de I860. E, além d~ pede a mão da mocinha à mãe é repleta de ironias
documentar esse momento de vitalidade do teatro e farpas que trocam entre si. Mas Luís possui me-
brasileiro, deu também a sua contribuição como lhores armas e Clara não tem como negar o pe-
autor dramático. Curiosamente, não seguiu o dido. Ao nocauteá-la, ele diz: "Se V. Exa. não teve
modelo da comédia realista, que tanto apreciava, bastante espírito para ser minha esposa, deve tê-lo
começando inclusive por uma "imitação" de uma pelo menos, para ser minha sogra">, Tivesse outras
pequena comédia francesa - Chasseau lion (Caça tiradas como essa, Desencantos seria uma comédia
ao Leão [Janota]), de Cusrave Vattier e Émile de mais cintilante, próxima do gênero da alta comédia
Najac - a qual intitulou Hoje Avental Amanhã curta que Machado parece almejar. Aos diálogos
Luva. Prática comum na época, "imitar" uma da primeira parte, principalmente, falta o brilho
peça significava apropriar-se do enredo original e que deveria ser construído com mais falas e répli-
adaptá-lo à paisagem e aos tipos brasileiros. Não há cas espirituosas, com o ritmo próprio que esse tipo
notícias de que essa pequena comédia tenha sido de peça exige. Mesmo assim, a pequena comédia
encenada. Machado publicou-a no jornal A Mar- agrada, sobretudo por força de seu surpreendente
mota, de seu amigo Paula Brito, nos dias 20, 23 e 27 e bem-humorado desfecho.
de março de I 860. O mesmo Paula Brito editou, no Em I862, Machado tem finalmente a satisfa-
ano seguinte, a "fantasia dramática" em duas partes, ção de ver suas criações dramáticas em cena. Duas
Desencantos, que também não subiu à cena. Nessa novas comédias curtas, O Caminho da Porta e O
primeira comédia de autoria individual já se esboça Protocolo, são representadas no Ateneu Dramático

34 Joaquim Maria Machado de Assis, Teatro de Machado de


33 Machado de Assis, Do Teatro..., P: 369. Assis,São Paulo: Martins Fomes, 2003, p. 117.

• 180
• o Teatro Realista

do Rio de Janeiro, respectivamente em setembro e teatral, pondo igualmente em cena personagens e


dezembro. Recebidas com simpatia pelos folheti- costumes colhidos na alta sociedade. Issosignificava
nistas e críticos teatrais, foram publicadas em um romper definitivamente com a comédia de costumes
volume no ano seguinte, precedidas de uma carta de traços farsescos que Martins Pena havia criado e
do autor endereçada a Quintino Bocaiúva e da res- à qual]oaquim Manuel de 1vlacedo havia dado con-
posta desre.Modesro, 1vlachadopedia a opinião do tinuidade. E significavatambém que suas pequenas
amigo a respeito das duas comédias e colocava-se comédias eram aliadas na luta pelo bom gosto, pela
como escritor novel, com forças ainda insuficientes vitória do novo repertório, que se contrapunha ao
para produzir mais do que os "simples grupos de teatro concebido como pura diversão, às comédias
cenas" que apresentava.A seu ver, o teatro era "coisa construídas com recursos do baixo cômico.
muito séria" e as qualidades de um autor dramá- O Caminho da Porta e O Protocolo, nesse sen-
tico desenvolviam-se com o tempo e o trabalho. tido, são exemplares, principalmente a segunda,
Em futuro próximo pretendia escrever comédias que põe em cena quatro personagens refinadas,
"de maior alcance, onde o estudo dos caracteres que dialogam com inteligência e brilho, lançando
seja consciencioso e acurado, onde a observação mão da linguagem cifrada e dos ditos espirituosos.
da sociedade se case ao conhecimento prático das O tema da comédia, aliás, parece ter sido inspi-
condições do gênero'v'. rado pelo repertório realista: o perigo que ronda
~ntino Bocaiúva fez um julgamento ainda os lares honestos quando o marido se ausenta, ou
mais severo, considerando as duas comédias um para 'cuidar dos negócios, ou por causa de algum
"ensaio", uma "ginástica de estilo". Eram bem es- desentendimento com a esposa. Na França, entre
critas - "um brinco de espírito" -, tinham valor outros autores, Émile Augier e Octave Feuillet já
literário, inspiravam simpatia, mas não apresenta- haviam abordado esse tema em Gabrielle (1849) e
vam ideias. Sem isso, eram "frias e insensíveis': não La Crise (1854), respectivamente. No Brasil, Alen-
podiam sensibilizar ou atingir o espectador. Era car o aproveitara em O que é o Casamento?
preciso, pois, ousar, ir além dos resultados já obti- O enredo de O Protocolo lembra em parte o da
dos: "Jáfizeste esboços, atira-te à grande pintura">. peça de Alencar. Mas Machado, ao contrário do
Tanto as palavras de 1vlachado quanto as de colega brasileiro e dos escritores franceses, não
Quíntino Bocaiúva não deixam dúvidas sobre o pôs as personagens a emitir lições morais e orga-
tipo de peça que tinham em mente como parâme- nizou a trama de modo ameno. O casamento de
tro de julgamento. Ambos consideravam a comédia Pinheiro e Elisa não chega a correr perigo, por
realista, de alcance edificante e moralizador, como duas razões: em primeiro lugar, porque eles se
o modelo adequado para a construção de uma amam e o desentendimento é fruto apenas dos
dramaturgia brasileira robusta, debruçada sobre caprichos de ambos, que ainda são jovens e não
as questões sociais do momento. Tudo indica que aprenderam a ceder; em segundo, porque Venân-
Machado, muito jovem, não quis arriscar-se de ime- cio, o conquistador de plantão, não consegue im-
diato, preferindo adiar um pouco a empreitada que pressionar Elisa, que o tempo todo o desencoraja.
não estava fora de seus planos. Seguiu então um A ação da comédia, na verdade, ilustra o provérbio
caminho que lhe pareceu mais seguro, identificado que aparece tanto na fala do marido quanto na
por Quintino Bocaiúva e outros intelectuais logo da esposa, quando conversam com a prima Lulu:
depois da primeira representação de O Caminho "para caprichosa, caprichoso", ou, "para capri-
da Porta: o dos provérbios dramáticos franceses de choso, caprichosa". É Lulu quem abre os olhos
Alfred de Musset e Octave Feuillet. do casal para as intenções de Venâncio, levando
De certa forma, é de se crer que nosso escritor Pinheiro a pôr um fim ao desentendimento com
tenha desejado estabelecer um diálogo com a dra- Elisa e, educadamente, com bom humor, convidar
marurgia hegemônica naquela altura, a do realismo o rival a retirar-se de sua casa.
Com ação tão rarefeita, O Protocolo só poderia
35 Idem,P: 122.
36 Idem, p. 126-127.
mesmo ser uma comédia centrada na linguagem.

• 181
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Como, aliás, costumam ser os provérbios dramáticos Se há, nos provérbios de Machado, momentos que
de Alfred de Musset. Assim, não surpreende que lembram Musset, este é um deles. Observem-se,
também O Caminho da Porta dependa dos chístes, entre outras características, a presença de espírito
da ironia, do humor, das tiradas espirituosas e da das personagens, a guerra lúdica que travam, a
comicidade que nasce das palavras para adquirir efi- elegância do vocabulário, as alusões inteligentes,
cácia. Machado, porém, trabalhou um pouco mais a graça das réplicas e o próprio ritmo das falas.
a caracterização das personagens, dando-lhes traços Tudo é extremamente ágil, agradável e de bom
que colaboram na construção do efeito cómico, mais gosto. Mantivesse a comédia esse tipo de diálogo
forte nesta comédia do que na outra. De qualquer o tempo todo, estaríamos diante de uma pequena
modo, trata-se de um legítimo provérbio dramático, obta-prima teatral, de uma autêntica comédia de
cuja ação mostra que "quando não sepode atinar com linguagem, inteiramente digna do mestre francês
o caminho do coração toma-se o caminho da porta". desse gênero.
Em outras palavras,estamos diante de um enredo À mesma família das comédias elegantes e
sem grandes conflitos entre as personagens. Tudo se particularmente dos provérbios dramáticos per-
resume a uma situação cômica por natureza: uma tence As Forcas Caudinas, escrita provavelmente
viúva, Carlota, tem dois pretendentes, Valentim e entre 1863 e 1865, que Machado deixou em forma
Inocêncio, que lhe fazem a corte, e não se decide por manuscrita e não fez chegar à cena. A personagem
nenhum. Penélope sem juízo, como a chama o dou- Emília - vinte e cinco anos, viúva duas vezes! -, já
tor Cornélio - a terceira personagem masculina da quase no desfecho resume o que aconteceu com
comédia, que também já foi pretendente -, evita o ela: "quis fazer fogo e queimei-me nas mesmas
confronto aberto e se relaciona com todos, tecendo chamas". O que ela quer dizer é que ao tentar fa-
seu charme com inteligência, presença de espírito e zer Tito apaixonar-se por ela, numa espécie de
uma certa malícia. Com essespoucos elementos, a jogo ou aposta consigo mesma, apaixonou-se por
pequena comédia desperta a curiosidade no leitor/ ele. O que ela não sabia é que também ele jogava,
espectador acerca do desfecho da situação armada representando o papel de homem avesso ao casa-
em torno da viúva namoradeira. Algum dos seus mento, para conquistá-la.
pretendentes conseguirá conquistá-la? Algum de- A comédia tem um bom ritmo, enredo bem
les encontrará o caminho do seu coração ou todos estruturado em dois aros, com uma revelação sur-
tomarão o caminho da porta? preendente no final, diálogos chistosos e persona-
É bem provável que Machado tenha se inspi- gens refinadas, com exceção de um extravagante
rado no provérbio IIfaut qu'une porte soit ouverte coronel russo, tipo cômico por excelência, todos
oufermée (ÉPreciso Que Uma Porta Esteja Aberta frequentando a alta sociedade de Petrópolís. O
ou Fechada), de Musset, para escrever O Caminho que talvez defina melhor o enredo de As Forcas
da Porta. Mas, enquanto o escritor francês faz o Caudinas seja outro provérbio, que não é explici-
conde encontrar o caminho do coração da mar- tado por nenhuma personagem, embora se aplique
quesa, ao final de um diálogo ao qual não faltam perfeitamente a Emília: "quem com ferro fere, com
brilho, leveza e atmosfera poética, as personagens ferro será ferido". Troque-se "ferro" por "amor" e
Inocêncio e Valentim procuram em vão esse cami- teremos a chave do enigma. Ou seja, no passado,
nho, atrapalhados que são, como tipos cômicos. cinco anos antes, ela havia desprezado Tito, que so-
A graça da comédia, em boa medida, está nas frera muito. No presente, sem reconhecê-lo, cai em
tentativas que fazem, todas fadadas ao insucesso, sua armadilha e apaixona-se por ele, sofrendo por
porque ambos não estão à altura da inteligência de sua vez diante de uma indiferença que é aparente,
Carlota. Por outro lado, a eficáciada comicidade ele- pois ele ainda a ama. A derrota de Emília explica
gante de O Caminho da Porta deve-se à linguagem o título da comédia: passar pelas forcas caudinas
dos diálogos, que prima pelos chistes, mordacidade, significa render-se. Machado, conhecedor da nisró-
ironia e cinismo maroto. Leia-se especialmente a ria antiga, deu esse título à comédia ao lembrar-se
quinta cena, em que dialogam o doutor e a viúva. de uma batalha perdida pelo exército romano, em

• r82
• o Teatro Realista

321 a.C., que obrigou os soldados, na condição de De fato, diante do número de dramaturgos e
prisioneiros, a passarem por uma estreita passagem peças que se ligam a esse período, o mínimo que se
entre as montanhas da região de Cápua, na Itália, pode afirmar é que a renovação levada a cabo pelo
chamada justamente Forcas Caudinas. Ginásio Dramático, com a encenação do repertório
As pequenas comédias de Machado, pelo realista francês, não ficou sem uma resposta brasi-
modo como abordam a vida social da burguesia leira. Se inicialmente os intelectuais manifestaram
emergente do Rio de Janeiro e pelos enredos que a sua simpatia pelo realismo teatral na imprensa,
envolvem relacionamentos amorosos, são ensaios comentando as peças francesas e seus preceitos es-
para a alta comédia de maior fôlego que o autor não téticos, numa segunda etapa arregaçaram as mangas
chegou a escrever. No entanto, atestam o compro- e produziram um repertório que por algum tempo
misso do escritor com uma dramaturgia de quali- esteve no centro da nossa vida teatral. Em face do
dade literária, refinada, sem apelos ao burlesco, que quadro traçado até aqui, pode-se também concluir
ele tanto condena em seus folhetins. Foi a modesta que, ao contrário do teatro romântico, que se carac-
contribuição que conseguiu dar, além do inestimá- terizou pela dispersão de forças, o realismo teatral no
vel apoio, como crítico teatral, aos companheiros Brasil constituiu-se como um movimento coeso, que
de geração que estavam criando um repertório ra- nasceu e cresceu com base em conceitos claramente
zoável de comédias realistas e tentando fortalecer definidos. Um grupo de intelectuais e escritores, vá-
a dramaturgia brasileira'? rios artistas de prestígio e uma casa de espetáculos
estiveram ligados por cerca de dez anos em torno de
objetivos comuns e estimulados por uma mesma ma-
o Significado neira de conceber o teatro. Foi um notável esforço de
da Dramaturgia Realista atualização estética. E ainda que nem todas as peças
representadas no Ginásio Dramático sejam de alto
Artur Azevedo, numa crônica escrita em 1899, a nível, o conjunto se impõe pelo avanço que represen-
propósito da morte da atriz Adelaide Amaral, afir- tou em relação ao teatro romântico. Há profundas
mou que o período de mais ou menos dez anos, diferenças entre o repertório realista e a produção
entre 1855 e 1865, foi "incontestavelmente o mais romântica de Gonçalves Dias, Teixeira e Souza, Car-
brilhante do nosso teatro" 38 • los Antônio Cordeiro ou Luís Antônio Burgain. Os
dramaturgos ligados ao Ginásio deixaram de lado .
o drama histórico, o passado, e escreveram com os
37 Ainda na primeira metade dos anos de I 860 Machado es-
creveu outras duas comédias em que predomina o viés satírico: olhos voltados para o seu tempo, com o objetivo de
Q!taselvfinistro (1863) e OsDeuses de Casaca (1865). A primeira retratar e corrigir os costumes, acreditando que o
aborda a vida política e a segunda apresenta os deuses depostos
do Olimpo e transformados em seres humanos imperfeitos. teatro tinha uma função moralizadora.
Em 1870, nova incursão pela Grécia antiga: no livro de poesias Como explicar esse fenômeno? Que público
Falenas, é publicada a comédia lírica Uma Ode de Anacreonte.
Em 1880, convidado pelo Real Gabinete Português de Leitura aplaudiu essa dramaturgia que apresenta uma visão
a participar das comemorações do tricentenário de Camões, de mundo burguesa, numa sociedade escravocrata?
Machado colabora com uma pequena joia literária, intitulada
Tu Só) Tu)PuroAmor, que é representada no Teatro D. Pedro II, É preciso considerar que o Ginásio Dramático
a Iode junho. Em plena maturidade o escritor volta ao gênero nasceu num momento muito especial da vida bra-
do provérbio dramático que havia cultivado na mocidade, publi-
candoNão Consultes Médico (1896) e LiçãodeBotânica (1906). sileira. O país e particularmente a cidade do Rio de
38 Artur Azevedo, Palestra, em O País, Rio de Janeiro, 19 set. Janeiro vinham passando por uma série de transfor-
1899. Esse artigo foi transcrito na Revista de Teatro, Rio de ja-
neiro: Sbar, n. 317, ser.Zout., 1960, p. 13. Para se compreenderas
mações, provocadas pelos efeitos da então recente
palavras de Artur Azevedo, é preciso lembrar que exatarnente a interrupção do tráfico negreiro. Beneficiadas com
partir de 1865 o teatro brasileiro toma um novo rumo, determi-
nado pelo sucesso da ópera-bufa Orphée aux enfers, de Offenbach,
o dinheiro que antes era investido na compra dos
encenada em francês no Alcazar Lyríque, um teatro que desde escravos, algumas cidades se expandiram, graças
1859 vinha divertindo os espectadores com pequenosvaudevíles,
comédias e cançonetas, repertório que contava com a ajuda im-
aos negócios que se multiplicaram, ao comércio
prescindível de belas atrízes francesas. O chamado "teatro sério", que gerou mais empregos, aos bancos, pequenas
com preocupações literárias, começa o seu declínio, substituído
no gosto da plateia por peças cómicas e musicadas.
indústrias, jornais, às atividades, enfim, que foram
História do Teatro Brasileiro • volume 1

desenvolvidas e gerenciadas por pessoas formadas Um Casamento da Época, Luxo e Vaidade e História
nas faculdades de direito, medicina e engenharia, de uma MoçaRica. O abrasileiramento da comédia
bem como por intelectuais, negociantes e finan- realista fez-se mais evidente ainda nas peças que
cistas. Formava-se assim uma classe média e uma discutiram o problema da escravidão. O Demónio
primeira burguesia no país, sensíveis aos valores Familiar, Sete de Setembro,História de uma Moça
éticos que eram defendidos com vigor nas peças Rica e Cancros Sociais, cada uma a seu modo, fize-
realistas francesas e em seguida nas brasileiras. ram a crítica dessa herança colonial que impedia o
O Ginásio Dramático tornou-se o espaço fre- país de ingressar na modernidade burguesa.
quentado por essas novas classessociais em ascen- O aprimoramento moral da sociedade foi a
são, formadas por pessoas de bom gosto, educadas, grande divisa do realismo teatral. E a instituição
como não se cansaram de registrar os folhetinistas. burguesa por excelência que esteve no centro das
O que viam no palco, de certa forma, era um re- preocupações dos dramaturgos franceses foi a fa-
trato do seu universo doméstico e social, pautado mília. Preservá-la, defendê-la, enaltecê-la, eis o que
pela defesa do trabalho, do casamento, da.família, fizeram em suas obras. Os dramaturgos brasileiros
da honra, da honestidade e da inteligência. Não é compreenderam sem nenhuma dificuldade a im-
sem motivo, pois, que as personagens principais portância dada à família no universo social burguês.
das peças brasileiras sejam médicos, advogados, Em peças como O que é o Casamentai,A Família e
engenheiros, negociantes, jornalistas, ou seja, pro- A Vida Íntima, os argumentos foram construídos
fissionais liberais e intelectuais de mentalidade no sentido de convencer o espectador acerca das
burguesa. Assim, tanto no palco quanto na plateia virtudes dessa instituição considerada moderna e
uma parcela da sociedade brasileira acreditava-se civilizadora. Tudo indica, pois, que a despeito do
moderna e civilizada, porque em sintonia com as predomínio do sistema escravista, o país assistiu ao
tendências das sociedades mais avançadas. surgimento de uma camada social aberta ao libera-
O que se deve ressaltar, portanto, é que nossos lismo e aos valores éticos da burguesia nos anos de
dramaturgos não se distanciaram de certos aspectos 18 55 a 1865. O teatro a retratou na cena do Ginásio
da realidade brasileira, ainda que motivados pela Dramático. E com sucesso,porque os espectadores
forma e pelos temas do teatro realista francês. A podiam se reconhecer no palco e aplaudir os valores
questão do dinheiro, por exemplo, é abordada em que acreditavam. Nesse sentido, a conclusão não
para se fazer a crítica da usura, da agiotagem, do pode ser outra: os dramaturgos brasileiros, estimu-
casamento por interesse, da desonestidade, mas lados pelo repertório francês, mas sintonizados com
não só porque tudo isso aparece nas peças france- as nossas transformações sociais,realizaram em suas
sas. Guardadas as diferenças, o aparelhamento da obras o primeiro esforço conjunto para a formação
vida financeira do Rio de Janeiro, a partir de 185 o, de uma consciência burguesa no Brasil.
permitiu o surgimento dos agiotas e especuladores Depois de 1865, nos dez ou vinte anos seguin-
retratados em peças como O Crédito, OsMineiros tes, o realismo teatral permaneceu como referência
da Desgraça, Luxo e Vaidade, O Cínico ou De La- para muitos dramaturgos e críticos. Ainda que as
drão a Barão. O mesmo raciocínio aplica-se ao peças cômicas e musicadas tenham conquistado o
pro blema da prostituição, abordado em As Asas de favor do público e se tornado hegemônicas em nos-
umAnjo, Onfália,Lusbela e História de uma Moça sos palcos, a ideia de que o teatro devia ser uma es-
Rica. Se a preocupação moralizadora evidencia cola de costumes e um instrumento de moralização
a fonte francesa, há que se considerar, por outro e civilização continuava a ter adeptos. Leia-se, por
lado, que a prostituição já existia como ameaça à exemplo, o prefácio de Visconti Coaracy ao drama
placidez das famílias burguesas ou de classemédia ANegação da Família, do ator Pimentel. Em 1868,
do Rio deJaneiro. Também não se pode pensar que ele define a missão do dramaturgo nestes termos:
o casamento por dinheiro era prerrogativa da socie-
dade francesa. Nossos dramaturgos denunciam esse Estudar a sociedade, analisar-lhe os defeitos e os vícios,
costume nas peças A Época, OsTipos daAtualidade, reuni-los no espaço limitado, restrito de uma ação drarná-
• o Teatro Realista

rica, e extrair desta a consequência filosófica para oferecê-la Sem ter a importância. que teve entre 1855 e
como lição benéfica, como exemplo salutar'>. 1865, o realismo teatral não desapareceu de todo
dos nossos palcos, até porque o ator e empresário
Quase dez anos depois, em 1877, o poeta Carvalho Furtado Coelho incumbiu-se muitas vezes de ence-
Júnior ainda pensa o teatro de acordo com as ideias nar as novas peças de Dumas Filho e Augier, que na
de Dumas Filho. Ao escrever o dramaParisina, ele França continuavam a fazer sucesso, ou de reencenar
elegeu como modelo O Suplício de uma Mulher, alguns dos seus sucessos de juventude, baseados em
esclarecendo no prefácio que o teatro, com Dumas originais brasileiros, como a Onfália, de Quintino
Filho, começou a exibir na cena vários problemas Bocaiúva, reencenada em 188 2.1Ylas nessa altura os
sociais e teses filosóficas, "cujo ensino proveitoso tempos eram outros e mesmo Furtado Coelho não
dirige-se universalmente às multidões e propaga-se pôde dedicar-se apenas ao então chamado teatro sé-
de um modo fácil e deleitável":", rio. O teatro de entretenimento impôs-se com força
Fora do Rio deJaneiro, o realismo teatral já havia total nas três últimas décadas do século XIX.
seduzido Franklin Távora, que fizera representar Um
Mistério deFamília no Recife, em 1863. Também é
de sua autoria o drama Três Lágrimas4I , publicado
em 1873. Na Bahia, o escritor romântico Agrário de
Menezes experimentou a nova forma no drama Os
1vliseráveis, que foi encenado no Rio de Janeiro pela
companhia Boêmia Dramática, em 1864-1865. No
Rio Grande do Sul, Apolinário Porto-Alegre deu sua 2. OS ENSAIADORES, OS INTÉRPRETES
contribuição com a comédia Benedito, calcada em O E O ESPETÁCULO TEATRAL REALISTA
DemónioFamiliar, e nas peças OsFilhos daDesgraça
e Sensitiva misturou elementos do drama romântico,
do melodrama e da comédia realista. Todas foram Quando o Ginásio Dramático apresentou o seu pri-
publicadas na RevistaMensalda Sociedade Partenon meiro espetáculo, a 12 de abril de 185 5, composto
Literário, em 1873 e 187442. Em São Paulo, Felizardo por duas peças em dois atas, o drama Um Erro, de
Júnior e Carlos Ferreira escreveram várias peças em Scribe, e a ópera-côrnica O Primo da Califórnia, de
parceria, entre 1867 e 1873, notadamente o drama Joaquim Manuel de Macedo, os folhetinistas sauda-
Lúcia, encenado em São Paulo em 1868. A defesa do ram com entusiasmo a nova empresa dramática, que
realismo teatral aparece também no prefácio escrito nascia com um modesto programa: o de "estabele-
por Carlos Ferreira para O Marido da Doida, drama cer o verdadeiro e apurado goSto pela representação
de sua autoria, em 1877. Vinte anos depois de Alen- do vaudeville e comédia"!'. A vida teatral no Rio
car ter afirmado que emAs Asasdeum Anjo defendeu de Janeiro, nessa época, era bastante pobre, como
a ideia de que era preciso cuidar da educação moral comprovam os folhetins ''Ao Correr da Pena': que
das meninas para que não seguissem o destino da José de Alencar publicou no Correio 1vlercantil e no
personagem Carolina, esseautor criou uma adúltera Diário doRio deJaneiro. A rigor, apenas dois teatros
que, a seu ver, era também o resultado da falta de funcionavam regularmente: o Lírico Fluminense,
uma educação moral adequada. Repetia Alencar e dedicado à ópera, e o S. Pedro de Alcântara, onde
exprimia a crença no teatro como escola de costumes. João Caetano oferecia ao público um repertório de
tragédias neoclássicas e, preferencialmente, melo-
39 E. Barroso Pimenrel, A Negação da Família, Rio de Janeiro:
dramas. O Teatro S. Januário, longe do centro, era
Típ. do Diário doRio defaneiro, 1868, p. r. eventualmente alugado por companhias itinerantes
40 Francisco Antônio de Carvalho Jr., Parisina, Rio deJaneiro: ou de duração efêmera. Para não competir comJoão
Típ. de Agostinho Gonçalves Guimarães, 1879, P: 5.
41 CE. Franklin Távora, Teatro de Franklin Távora, São Paulo:
Caetano, o empresário do Ginásio, Joaquim He-
Martins Fontes, 2003. leodoro Gomes dos Santos, optou por representar
42 CE. Carlos Alexandre Baumgarren (org.), O Teatro deApoli-
nárioPorto-Alegre: Antologia, Porto Alegre: IEL, 2001. 43 CE. Diário doRio deJaneiro, 5 de março de 1855.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

comédias leves, a maior parte delas de Scribe, que Observe-se no texto transcrito o elogio 'dO
eram traduzidas pela atriz Maria Vellutí e postas em trabalho do ensaiador, a quem cabia orientar a in-
cena pelo ensaiador Émile Doux (?-I 876). terpretação dos artistas - uso da voz, fisionomia,
gestos e movimentos - e cuidar da disposição cê-
nica de móveis e objetos no palco. Sousa Ferreira
Érnile Doux, não deu mais detalhes acerca das duas primeiras
O Primeiro Ensaiador montagens e, assim como outros folhe tinistas,
do Teatro Ginásio Dramático comentou mais demoradamente a construção das
peças e seu alcance moralizador. Por outro lado,
Pouco se sabe sobre esse francês que se radicou no quando o Ginásio encenou A Dama das Camélias,
Brasil em 1851. Segundo informações de Lopes em fevereiro de 1856, cobrou mais naturalidade
Gonçalves, ele havia vivido muitos anos em Lisboa, dos artistas e analisou o espetáculo ensaiado por
onde, além de encenar vários dramas românticos Émile Doux em termos que denotam pleno conhe-
franceses, introduzira o vaudevile com grande su- cimento da estética teatral realista. É bem possível
cesso. Pode-se dizer que fez o mesmo no Rio deJa- que o ensaiador tenha orientado o elenco para que
neiro, pois entre abril e outubro de 1855 o Ginásio todos atentassem à questão da naturalidade, mas
se consolidou graças ao seu trabalho. Cerca de vinte apenas a atriz principal, Gabriela da Cunha, con-
e cinco comédias de Scribe foram produzidas nesse seguiu o efeito desejado, segundo o crítico:
período, com boa aceitação por parte do público e
grande apoio dos jovens intelectuais que atuavam A naturalidade da conversação, a verdade da paixão e do so-
na imprensa. Tal apoio foi decisivo para o passo frimento, soube a sra. Gabriela imitar na voz, no gestOe no
seguinte, mais ousado: a encenação das comédias semblante. [...] O sr. Amoedo (Armando Duval) ainda não
realistas francesas, que exigiam outra concepção do quis ouvir-nos; a exageração é má e defeituosa, quando não
espetáculo teatral e outro tipo de interpretação dos sabemos usar dela [...]. O sr. Pedro Joaquim (sr. Duval) de-
artistas. A aprovação do público pode ser avaliada sempenhou bem asuaparte; apenas diremos que na bela cena
pelo sucesso extraordinário deAs Mulheres deMar- com Margarida é dispensávelaquela abundância de lágrimas45•
more - dez representações seguidas C0m o teatro
lotado e muitas outras nos meses seguintes - e pela Como se vê, o folhetinista critica os ateres que
boa acolhida a OsParisienses, peças de Théodore não evitaram o exagero em cena e elogia a atríz que
Barriere e Lambert Thiboust, representadas em ou- soube ser natural. Não devia ser fácil para os artistas
tubro e dezembro de 1855. A repercussão junto à o aprendizado do novo modo de interpretação que
imprensa pode ser medida por este comentário do as peças realistas exigiam. Todos vinham do Tea-
crítico Sousa Ferreira: tro S. Pedro de Alcântara, onde haviam trabalhado
durante anos com João Caetano. Estavam acostu-
Se, solícito em agradar ao público, [o Ginásio] corre o re- mados, por exemplo, a falar sempre se dirigindo
pertório dos mais afamados teatros de Paris, escolhendo os à plateia, seja porque trabalhavam num teatro de
dramas e comédias que ali têm maior aceitação merecido, grandes dimensões, seja porque assim aprenderam
apresentando-os com rapidez que admira, traduzidos, com o ator formado na leitura de velhos manuais de
ensaiados, POStOS em cena com todo o rigor das decora- interpretação. No esperáculo realista, ao contrário,
ções, quase sempre novas, e desempenhados o mais per- o artista devia ignorar a plateia e dialogar natural-
feitamente que se tem feito até hoje entre nós, igualmente mente com o seu interlocutor. É o que afirma Sousa
tem visto a sua pequena sala, onde se apinha uma multidão Ferreira, ao recomendar ao aror Martins (Gastão
satisfeita, estremecer aos aplausos repetidos; tem ouvido a de Rieux) que aproveite sua habilidade ao piano
imprensa uníssona, eco da satisfação pública, repetir o juízo para conversar enquanto toca, pois o ater, em cena,
dos seus frequentadores, altamente Iísonjeíro-'. "deve esquecer que o público está em frente; deve

44 Idem, 14 de dezembro de 1855. 45 Idem, 4 de março de 1856.

• 186
• o Teatro Realista

não distrair-se um instante: Gastão pode responder Émile Doux encenou apenas mais uma comédia
sem voltar-se para os espectadores". realista francesa no Ginásio: O Genro do Sr. Pereira
A observação do folhetinista é corretíssima. (Le Gendre de M. Poirier), de Émile Augier, que es-
Tanto os artistas do Ginásio quanto o ensaiador treou a 3 de junho de 1856. Ao contrário das ante-
Émile Doux podiam se beneficiar com o diálogo riores, a peça fracassou e os folhetinistas a ignoraram.
estabelecido com os críticos. Parecia mesmo uma Apenas Sousa Ferreira dedicou-lhe um folhetim,
tarefa coletiva o aprimoramento do espetáculo mas sem tecer considerações a respeito dos aspectos
realista no palco do pequeno teatro. realistas da montagem. Pouco tempo depois desse
Nesse sentido, outro interlocutor importante espetáculo, Émile Doux transferiu-se para o Teatro
para Émile Doux foi Furtado Coelho, que publicou S. Pedro de Alcântara, contratado porJoão Caetano.
um longo folhetim sobre O Mundo Equívoco (Le Lá, aguardava-o um repertório dos tempos român-
Demí-Monde), de Dumas Filho, no Correio Mercan- ticos e outra orientação para montar os espetáculos.
til de 28 de março de 1856, cinco dias depois da es-
treia da peça. Recém-chegado de Portugal, o futuro
ator e ensaiador do Ginásio, adepto do realismo tea- o Ensaiador Furtado Coelho
tral, discorreu sobre várias questões relativas ao texto
dramático para, em seguida, deter-se no trabalho dos Tudo indica que Furtado Coelho (1831-1900) foi
artistas e do ensaiador. Preocupado com o efeito rea- uma presença marcante no meio teatral do Rio de
lista da encenação, Furtado Coelho demorou-se na Janeiro, nos três meses que se seguiram à publicação
análise do desempenho de cada papel, reservando do folhetim sobre OMundo Equívoco. Em maio, ele
os maiores elogios a Gabriela da Cunha e Pedro teve um provérbio de sua autoria encenado - Nem
Joaquim, que demonstraram ter compreendido o por Muito Madrugar Amanhece mais Cedo - e em
espírito da alta comédia. A atriz, principalmente, julho de 1856 foi contratado pelo Ginásio como
soube transformar-se numa "elegante e sedutora ensaiador, para substituir Émile Doux. Essa pri-
baronesa dos salões da atualidade". O resultado geral meira experiência profissional, no entanto, durou
da encenação agradou ao folhetinista, que conside- apenas quatro ou cinco meses, tempo suficiente para
rou o esperáculo de bom nível, atribuindo o mérito reencenar As Mulheres de Mármore, A Dama das
a Émile Doux. Mas a seu ver, aqui e ali o realismo Camélias e O Mundo Equívoco e montar peças como
poderia ter sido atingido com maior perfeição. A A Última Carta, de Augusto César de Lacerda; A
esse respeito, o comentário mais interessante é o que Crise, de Octave Feuillet; PorDireito de Conquista,
se refere a duas cenas em que os intérpretes ficam de de Ernest Legouvé; A foconda, de Paul Faucher e
pé o tempo todo. Segundo Furtado Coelho, a natu- Regnier; eA BatalhadeDamas, de Scribe e Legouvé.
ralidade que se quer nas representações das comédias 02:.em melhor acompanhou e comentou o
realistas foi prejudicada nessas cenas. Esse detalhe trabalho de Furtado Coelho como ensaiador foi
curioso, que parece pequeno, é bastante revelador Quintino Bocaiúva, que no segundo semestre de
das novas exigências cênicas: 18 56 exerceu a função de folhetinista do Diário do
Rio deJaneiro. Seu apoio aos espetáculos do Giná-
Não passarei em claro, porém, a má impressão que causou e sio foi importante, pois também procurou dialogar
deveria causar a todos, ver os atores quase sempre de pé. Na com os artistas, aplaudindo os acertos e apontando,
alta comédia parece-me ser isso um erro e um contrassenso. sempre que necessário, os erros que prejudicavam
Por que motivo na cena 83 do 2fJ- ato, ao dizer as seguintes pa- a construção do realismo teatral no palco. Vale a
lavras: - Vaiver o que surge ... ouça! - há de Oliveiro levantar- pena ler, como exemplo de sua simpatia ou mesmo
-se? Qual será o homem da educação de Oliveiro, que num adesão à estética realista, as observações que fez a
salão como o da Viscondessa, vá para o meio da cena pregar? respeito da montagem da peçaA Última Carta, do
No 4 2 ato, por que não há de a baronesa dAAge receber sen- português Augusto César de Lacerda. Em primeiro
tada as suas visitas, em vez de fazer o que nenhuma senhora lugar, leiamos os elogios feitos ao ensaiador, no fo-
faz na sua sala, isto é, arvorá-la em parque ou passeio público? lhetim de 3 I de julho de 1856:
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Antes de tudo, um cumprimento de felicitação cordial e sin- Não acho pois inconveniente, e muito menos fora do

cera ao sr. L. C. Furtado Coelho, pelo esmero, bom gosto e natural que o ator que está sentado a uma mesa de jogo, por

propriedade que presidiu à decoração e à disposição da cena. exemplo, tenha as costas voltadas para o público, como num

Para aqueles que não conhecem os nossos teatros, ou salão estaria também voltado para aspessoas, por mais distin-
que os conhecem menos perfeitamente, o seu trabalho pa- tas que fossem, que assistissem,ou tivessem ido vê-lo jogar.
receria talvez um trabalho sem esforço, uma obra, linda, é
verdade, mas natural e fácil, para mim porém e para todos o apoio à mise-en-scéne concebida com evi-
os que têm uma ideia, se não completa, ao menos muito dente propósito realista por Furtado Coelho dá
aproximada, do estado de nossa cena, das dificuldades e a medida do envolvimento dos folhetinistas no
óbices que tem a superar um ensaiador inteligente e; dedi- processo de assimilação das novas ideias teatrais
cado, ele foi a revelação de muito estudo e de muito esforço vindas da França. A informação de que o jovem
de sua parte, estudo e esforço que têm direito à cooperação ensaiador do Ginásio dispôs as cadeiras e sofás de
do público, isto é, ao reconhecimento de sua aptidão e de um modo que alguns artistas ficaram de costas
sua inteligência. para o público, é preciosa, pois o que está por trás
desse procedimento é a ideia de que no espetáculo
É de se crer que a montagem deA Última Carta realista uma "quarta parede" separa palco e plateia.
obedeceu aos princípios do realismo teatral com Como sugere Quintino Bocaiúva - "no palco há a
bastante fidelidade. No folhetim seguinte, de 7 de vida" -, os artistas devem não apenas representar
agosto, Quintino Bocaiúva transcreveu uma carta mas "viver" os seus papéis, como se não estivessem
que recebeu de um amigo, assinada apenas com a diante de espectadores. Essa ideia, como se sabe,
inicial "]", na qual havia uma crítica ao "luxo de foi retomada, aprofundada e posta em prática com
realismo" do espetáculo: eficiência em Paris por André Antoine, nos espetá-
culos naturalistas que fez no 1héâtre Libre, em fins
Segundo me disseram, o ensaiador do Ginásio é moço de do século XIX.1tIas se em meados dos anos de 1850
talento conhecido, e tem amor à arre; verifiquei pela dis- algo parecido acontecia na cena do Ginásio, é por-
posição cêníca que tinha bom gosto. Mas confesso-te que que também em Paris os procedimentos realistas
não concordo com aquela distribuição de cadeiras e sofás já estavam sendo utilizados.Muito provavelmente,
no primeiro ato, pondo os ateres de costas para o público; Furtado Coelho tinha notícias do que se passava no
é um luxo de realismo no teatro, onde o sol é de papel, as palco do Théâtre Gymnase Dramatique, dirigido
nuvens de papelão, e o mar um lençol passado pelo anil: por Montígny; Foi esse ensaiador, segundo o crítico
Olha, um sofá de um lado, uma conversadeira no centro, Sarcey", o responsável pela valorização do espaço
as atrizes sentadas aqui e ali, os atores em torno delas bor- cênico em moldes realistas, o que significa que
boleteando ou vendo jogar o wist, produzia mais efeito. buscou reproduzir, no palco, por meio de móveis
e objetosconcretos, os ambientes burgueses do
Quintino Bocaiúva respondeu a essas palavras seu tempo. Além. disso, Montígny baniu a decla-
no folhetim de 14 de agosto, nos seguintes termos! mação, o vício dos artistas de dirigirem-se ao centro
da cena no momento de suas falas e todo tipo de
Entretanto permita-me o meu amigo que discorde de sua exagero na interpretação. Os dramaturgos france-
opinião, quando entendeu um luxo de realismoa disposição ses, especialmente Dumas Filho, encontraram nele
cênica do teatro, que obrigou alguns atores a dar as costas um colaborador incansável e indispensável para a
ao público. afirmação da nova tendência teatral.
O palco é um campo neutro, consintam-me; o ator não Furtado Coelho, apesar de pouco experiente,
tem costas. Ele é surpreendido em sua casa pelo público, só esmerou-se nos espetáculos que realizou, mos-
com a diferença de que é sempre surpreendido em posições trando-se sempre exigente em relação ao efeito
visíveis, em situações discretas. realista da representação. Se recebeu elogios pelos
No palco há a vida, e seu desenvolvimento tal qual
46 Francisque Sarcey, Quaranteansdetbéâtre, v. 6, Paris:Biblio-
como no mundo. thêque desAnnales Politiqueset Lírréralres, 1901, p. 136.

• r88
• o Teatro Realista

Furtado Coelho ganhou a admiração dos artistas,


do público e dos intelectuais pelo seu trabalho.
No final de 1856, porém, o Ginásio enfrentou
sua primeira grave crise, provocada pela vinda de
uma companhia dramática francesa, cujo repertó-
rio era formado pelas peças realistas que o Rio de
Janeiro aplaudira em português. O público, ávido
para conhecer no original o que já tinha visto
em traduções e curioso em relação às novidades,
dirigiu-se ao Teatro S.Januário, deixando o Ginásio
às moscas. A solução encontrada pelo empresário
Gomes dos Santos, para conseguir alguma bilhe-
teria, foi o recurso a dramalhões, como A Cigana
de Paris, de Gustave Lemoine e Paul de Kock, ou
OsPobresde Paris, de Édouard Brisebarre e Eugêne
Nus. Avesso a esse tipo de peça, Furtado Coelho
pediu demissão, contrariado também por não ter
sido contratado como ator, Esse seu desejo foi
realizado já em 1857, no Rio Grande do Sul, de
onde retornou ao Rio de Janeiro, em fins de 1858,
com fama de excelente "primeiro galâ'. O Giná-
sio o contratou e em maio de 1859 atribuiu-lhe
também a responsabilidade pela montagem das
peças. O repertório que escolheu pôr em cena foi
Caricatura do atar e empresário Furtado Coelho.
predominantemente português, de amores como
Mendes Lealjr., Ernesto Biester, Augusto César de
seus trabalhos, uma ou outra vez foi criticado exata- Lacerda, Camilo Castelo Branco, Ernesto Cibrão e
mente por falhar na construção do realismo cênico. Antônio Mendes Leal. Mas, além de uma remon-
Quintíno Bocaiúva, sempre atento aos detalhes, fez tagem de O Demónio Familiar, de Alencar, houve
a Furtado Coelho o mesmo reparo que este fizera lugar também para algumas peças francesas, entre
a Émile Doux, ou seja, exigiu maior naturalidade elas O Romance de um Moço Pobre, de Feuillet,
numa das cenas dePor Direito de Conquista, de Er- Esta, por sinal, foi montada com esmero, segundo
nest Legouvé, em que três personagens conversam se depreende do comentário que se lê nas "Páginas
de pé, quando o melhor era fazê-los sentar: "Não Menores" do Correio Mercantil de 26/27 de de-
lhe parece mais conveniente e mais próprio, na cena zembro de 1859: "O todo da execução do drama
do encontro entre a marquesa de O berval, Jorge e é perfeito e merece mais um elogio ao ensaiador,
Bernardo, fazê-los sentar, como é mais natural, para o sr. Furtado".
depois então encetarem e continuarem a conversa- Como se vê, pela citação acima, infelizmente os
ção que sustentam de pé?"47 folhetinistas não analisavam com detalhes o traba-
A naturalidade em cena é o princípio básico do lho do ensaiador. São poucas as informações que se
realismo teatral. A conversa entre as personagens, tem dessa arividade, como comprovam também as
em pé, não era "natural': isto é, não reproduzia com críticas teatrais de Machado de Assis, publicadas no
fidelidade o hábito do cotidiano que a cena devia jornal O Espelho entre setembro de 1859 e janeiro
representar. O ensaiador não atentou a esse detalhe de 1860. De um modo geral, ele faz um estudo da
observado pelo crítico. De um modo geral, porém, peça, do ponto de vista literário e dramático, e em
seguida um comentário sobre a encenação, desta-
47 Diário do Rio dejaneiro, 4 de setembro de 1856, p. r.
cando porém, quanto a este segundo aspecto, as
História do Teatro Brasileiro • volume 1

interpretações dos artistas. Nas poucas vezes que repetir uma cena duas, três e quatro vezes, para que ela se
se refere à decoração, encontram-se elogios aos te- aproxime o mais possível do natural; só quem tem sido tes-
Iões pintados porJoão Caetano Ribeiro, críticas ao temunha dos esforços e da paciência do sr. Furtado Coelho
Teatro S. Pedro de Alcântara e ao Ginásio, quando nesse mortificante trabalho, é que pode compreender o seu
usam "decorações gastas", e referências rápidas gênio e dedicação pela arte.
à boa ou má realização das montagens, sem que
sejam dados detalhes das mesmas. Quer dizer, no Como se vê, os esforços de Furtado Coelho
que diz respeito à contribuição dos aspectos ceno- visavam à construção da naturalidade em cena.
gráficos para a afirmação do realismo no palco do Precisando contar com profissionais de formação
Ginásio Dramático, Machado pouco escreveu. So- romântica, não devia ser fácil o seu trabalho, como
bre o trabalho de Furtado Coelho como ensaiador, sugere o adjetivo "mortificante". Observe-se ainda
ele se refere uma única vez, em uma linha que não na citação transcrita que o folhetinista se refere
diz muito: "O sr. Furtado como ensaiador merece apenas ao trabalho do ensaiador com os artistas
ainda os aplausos do folhetim. Revela-se antes o e nem toca nos outros aspectos da encenação, que
cavalheiro do salão, que o ator do tablado":". Esse também deviam contribuir para o realismo cénico.
comentário vem em seguida à afirmação de que, Assim também procediam os demais folhetinistas,
como ato r, Furtado Coelho havia demonstrado quando comentavam os espetáculos. Como ana-
talento também para os papéis cômicos. Como lisavam preferencialmente o texto dramático e o
Machado não acrescenta nada às palavras trans- desempenho dos artistas, não é difícil saber qual o
critas, não é possível saber exatamente por que o melhor caminho para se caracterizar o que foi o rea-
ensaiador merece aplausos. Pode-se afirmar, no lismo ria cena brasileira. Ainda que Furtado Coelho
entanto, que Furtado Coelho tinha prestígio nessa tenha sido ensaiador a vida toda, consagrou-se na
atividade. Num breve comentário sobre a criação verdade como ator, Nos testemunhos a respeito das
do Teatro das Variedades, que ele empresariou por suas atuações e de outros artistas como o brasileiro
um breve período em 1860, no Rio de Janeiro, lê-se Joaquim Augusto Ribeiro de Sousa (1825-1873),
que a nova empresa será bem-sucedida por contar as portuguesas Gabriela da Cunha (1821-1882) e
com bons artistas e com "um ensaiador da força Adelaide Amaral (1834-1899) pode-se vislumbrar
do sr. Furtado Coelho":". Para se ter uma ideia de melhor o que foi a renovação realista no terreno da
como essa atividade era desempenhada, o melhor encenação. As informações que se podem colher
depoimento é o de um folhetinista anônimo, talvez na imprensa da época sobre outros ensaiadores do
um amigo ou conhecido, que esteve presente em Ginásio, como Vitorino Ciríaco da Silva (1856),
alguns ensaios dirigidos por Furtado Coelho em Luís Carlos Amoedo (1857 e 1863), Antônio José
São Paulo. Eis o que escreveu no Correio Paulistano Areias (1858- 1859) e Joaquim Augusto Ribeiro
de 9 de janeiro de 1861: de Sousa (r86r-r862) - todos eles atores -, são
pouquíssimas e nada acrescentam a respeito dessa
ninguém ainda disse palavra acerca de um grande mérito atividade que não despertava tanta atenção.
do sr. Furtado Coelho, e que para nós é de suma valia. É
a mestria com que tem ensaiado todos os esperáculos que
têm ido à cena depois dasuachegada; é a paciência e o jeito Furtado Coelho e]oaquimAugusto:
que para esta especialidade da arte dramática ele tem em Intérpretes Realistas
subido grau. Só quem tem presenciado o trabalho insano
do insigne artista em todos os ensaios, em fazer compreen- o principal desafio enfrentado pelo Teatro Ginásio
der aos nossos ateres, já o papel que vão representar, já os Dramático, quando começou a representar as peças
ademanes que devem ter, já o modo de falar etc., fazendo do realismo teatral francês, foi o de encontrar uma
expressão cênica adequada ao novo repertório. João
48 Machado de Assis,Do Teatro..., p. 149. Caetano havia acostumado a plateia fluminense
49 Artigo assinado por "L",intitulado Teatro das Variedades e
às peças de época com seus figurinos típicos, aos
publicadonoJornal do Comércio, em 15 de abril de 1860.
+ o Teatro Realista

telões pintados por vezes com paisagens exóticas, Janeiro, impediram que ele fosse contratado como
e ao seu estilo de interpretação um tanto exage- ator, Disposto a seguir o destino que escolhera, Fur-
rado e grandiloquente. O Ginásio se contrapôs aos tado Coelho partiu para Porto Alegre, onde estreou
velhos hábitos, impondo uma série de mudanças: em agosto de 1857. Seu primeiro papel foi o de Ra-
os cenários foram aperfeiçoados, utilizando-sé por fael Didier, o jovem artista vitimado pela cortesã
vezes os relões pintados e, preferencialmente, mo- Marco, em As Mulbcres deMármore, de Barriêre e
biliário de verdade, a fim de reproduzir da melhor 1hiboust. Depois, seguiram-se várias peças, quase
maneira possível, por exemplo, uma sala de uma todas do moderno repertório francês é português.
casa burguesa; os figurinos, posto que a ação dra- Segundo um estudioso do teatro gaúcho, o início
mática das peças se passava no presente, passaram da carreira dramática de Furtado Coelho foi auspi-
a acompanhar as tendências da moda; por fim, o cioso. Durante pouco mais de um ano ele fez o seu
estilo de interpretação tornou-se menos enfático e aprendizado em papéis difíceis para um estreante,
mais natural, sem o antigo cunho melodramático sem decepcionar a crítica e o público. Se foi alvo
que era comum nos artistas do Teatro S. Pedro de de pequenas restrições nos primeiros desempenhos,
Alcântara. com o tempo aprimorou-se e adquiriu segurança,
Em 1863, Furtado Coelho ganhou uma biografia conquistando um grande prestígio nas cidades de
precoce, escrita por Filgueiras Sobrinho, que é um Porto Alegre, Pelo tas e Rio Grande. A conquista
documento imprescindível para o conhecimento do Rio de Janeiro foi o passo seguinte: a 18 de de-
do seu trabalho artístico e da própria afirmação do zembro de 1858 sua estreia no Ginásio, na peça Por
realismo teatral nos palcos brasileiros. Nascido em Direito de Conquista, de Ernest Legouvé, foi um
Lisboa a 28 de dezembro de 183 I, numa família de grand~ sucesso. O estilo de interpretação do "pri-
generais e altos burocratas do Estado, ele foi desde meiro galã': adequado ao repertório realista, agradou
jovem um apaixonado pelo teatro e pela música. bastante. Os folhetinistas chamaram a atenção para
Tudo indica que, para não desagradar aos pais - que as qualidades do ator e ressaltaram sua voz "agradável
o queriam continuador das tradições da família - e sonora': bem como sua "inteligência, instrução e
veio ao Brasil sob o pretexto de se dedicar ao comér- bela presença". A rapidez com que Furtado Coelho
cio. Deixava em Portugal um volume de poemas, se impôs na cena do Ginásio é impressionante. Um
Sorrisos ePrantos, e o drama OAgiota, razoavelmente mês e meio depois de seu primeiro espetáculo, eis
bem-sucedido na cena do Teatro Di Maria II, em como foi homenageado na noite de 5 de fevereiro
setembro de 18 55. Como ator, havia trabalhado de 1859, por ocasião de seu "benefício":
uma única vez numa associação dramática particular,
em Viana do Minho, em 185 I, quando fez o papel Terminou o espetáculo a representação do excelente drama
principal do drama Pajemd:Aljubarrota, de Mendes Pedro, do sr. Mendes Leal, no qual o eminente artista, de-
Leal jr, É certo, porém, que frequentava os teatros sempenhando o papel do protagonista, revelou o seu gênio
e estudava a literatura dramática. É muito provável, deslumbrante a POntOde levar os espectadores a tão subido
também, que tenhavisto A Dama das Camélias feita grau de entusiasmo que, não se satisfazendo em o chamar à
por Emília das Neves no Teatro Nacional, em 1854, cena por mais de seis vezes, nestas ocasiões, assim como em
bem como outras peças realistas, representadas por todos os ates, foi o palco alcatifado com flores que choviam
companhias francesas que estiveram em Portugal dos camarotes, e o artista presenteado com duas mimosas
nos anos de 1854 e 1855. coroas, com uma chuva de bouquets, poesias análogas, e,
Furtado Coelho chegou ao Rio de Janeiro em por todo o teatro, aclamado como o primeiro ator da escola
março de 1856 e identificou-se de imediato com dramática moderna.
o trabalho do Ginásio, elogiando a montagem de Findo isto, perro de quatrocentas pessoas se dirigiram à
O Mundo Equívoco, de Dumas Filho, e aceitando porta da caixa do teatro, a fim de receberem o exímio artista
o convite para tornar-se ensaiador, como foi visto e o acompanharem até sua casa, o que teve lugar, seguindo
há pouco. Segundo Filgueiras Sobrinho, pressões o acompanhamento pelo largo do Rodo, rua dos Ciganos
da família, que tinha parentes influentes no Rio de e campo da Aclamação.

+ 19 1
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Ao longo do ano de 1859, o sucesso dos desem- em seguida, recomenda-se que a voz seja forte para
penhos de Furtado Coelho em peças portuguesas ser ouvida por todos os espectadores e a dicção cor-
e francesas foi tão grande que em pouco tempo reta; os artistas devem representar naturalmente,
ele tornou-se o principal rival de João Caetano, "mas o natural do teatro que não é o natural de
até então sem ameaças à sua glória. Os críticos e o uma conversa particular"; por fim, épreciso estudar
público encantaram-se com a gestualidade contida, a arte da respiração, para a declamação e o canto,
a voz bem modulada, a naturalidade e os gestos e praticar, pois é no palco que se apura a arte do
elegantes do ator talhado para os papéis centrais ator, Essas regras foram estabelecidas por grandes
das comédias realistas. Leia-se, por exemplo, este artistas, como Talma, Lekain, Molé, Préville, mlle.
entusiasmado elogio de Machado de Assis, datado Lecouvreur, mlle. Mars, entre outros e com eles a
de setembro de 1859: arte dramática teria chegado à perfeição, afirma o
articulista anônimo. Baseado nessas premissas, ele
o sr. Furtado Coelho, Paulo de Chennevíêres, pintou o nega que possa haver outra forma de arte e contesta
caráter de que estava encarregado com expressão e verdade. que Furtado Coelho possa ser apresentado como
Teve cenas de verdadeira expansão, no segundo ato sobre- o inventor de uma nova maneira de representar.
tudo. O que se nota neste artista, e mais que em qualquer Pois se existe apenas aquela dos grandes artistas do
outro, é a naturalidade, o estudo mais completo da ver- passado...
dade artística. Ora, isto importa uma revolução; e eu es- Na sequência do texto, são apontados os "de-
tou sempre ao lado das reformas. Acabar de uma vez essas feitos" de Furtado Coelho. Ele fala baixo e "parece
modulações e posições estudadas, que fazem do ator um ter voz de doente"; vira as costas para o público
manequim hirto e empenado, é uma missão de verdadeiro e fala de perfil, evitando assim a "dificuldade do
sentimento da arte!", jogo de fisionomia"; diz com frieza as tiradas que
deviam ser calorosas e faz declarações de amor sem
Em novembro de 1859, uma polêmica envol- impetuosidade. Pior que tudo isso, Furtado Coelho
vendo os admiradores deJoão Caetano e Furtado parece não saber que o ator "deve ser um Pro teu':
Coelho ocupou um largo espaço no Jornal do isto é, que deve mudar de figura de acordo com os
Comércio. João Caetano havia reencenado um ve- papéis que representa. Ao contrário, "o sr. Furtado
lho drama, O Sineiro de S. Paulo, e as críticas ne- Coelho com os seus bigodes, de que usa na rua,
gativas dos folhetinistas - entre eles Machado de apresenta sempre a mesma fisionomia em todos os
Assis - foram respondidas por alguns articulistas papéis". O articulista quer que o ator sacrifique os
anónimos, numa discussão que se estendeu de 4 de tais bigodes à arte, o que não deixa de ser engra-
novembro a 2 de dezembro. O interessante dessa çado, e resume os seus argumentos em poucas pa-
polêmica é que um dos seus textos, intitulado ape- lavras: "Esta maneira de representar vai de encontro
nas "Teatros" e assinado por "um artista dramático': a todas as regras da arte e do bom senso, e longe de
descreve perfeitamente o estilo de interpretação de ser apresentada como modelo deve se fugir dela se
Furtado Coelho, ainda que para atacá-lo, em oposi- se quer fazer algum progresso".
ção ao deJoão Caetano. Trata-se de um documento É importante notar que em nenhuma passa-
precioso para se compreender as diferenças entre o gem do texto é citado o nome de João Caetano.
ator formado nas escolas neoclássica e romântica e Mas toda a parte que antecede as críticas feitas a
o ator do teatro realista. Furtado Coelho é uma defesa de princípios que o
O texto começa pela exposição dos princí- grande ator romântico vai expor dois anos depois
pios básicos de interpretação que um ator deve em suas Lições Dramáticas, notadamente os que se
obedecer. O primeiro deles é cuidar do "jogo de referem ao jogo de fisionomia, à voz, à respiração e
fisionomia", de modo que seu rosto e expressões ao "natural" distanciado do real. Do mesmo modo,
faciais possam ser sempre apreciados pelo público; os artistas franceses mencionados como modelos e
mestres são os mesmos que João Caetano leu, como
50 Machado de Assis, Do Teatro. .., p. 128.
demonstrou cabalmente Décio de Almeida Prado
• o Teatro Realista

em seu estudo João Caetano e a Arte do Ator. As absorver e arregimentar em seu grêmÍo todas as vocações
coincidências sugerem que o artigo pode ter sido nascentes, malgrado os estéreis protestos de um ou outro
escrito com a ajuda da parte interessada. As res- sectário do antigo sistema".
trições feitas a Furtado Coelho, por outro lado,
revelam o que devia ser, em linhas gerais, a interpre- Além de escrever pelo menos oito folhetins, nos
tação realista na qual a voz, o jogo de fisionomia, quais descreveu com entusiasmo o trabalho de Fur-
a moderação, o gesto contido, o andar em cena, tado Coelho, Joaquim Serra exprimiu-lhe afetuo-
tudo enfim obedecia ao princípio da reprodução da samente sua admiração, numa carta datada de 26
realidade exterior. A informação mais importante de setembro de 1863. Trata-se de um documento
para caracterizar o realismo instaurado na cena do importante para a caracterização da interpretação
Ginásio é a que sugere ter havido representações realista e do prestígio conquistado pelo ator em
nas quais uma espéciede "quarta parede" separava o suas viagens. Na parte principal da carta, lê-se:
palco do público. Ou seja, à semelhança dos artistas
franceses do Gymnase Dramatique de Paris, onde Triunfas porque és natural e verdadeiro; porque sente-se
eram encenadas as comédias realistas, Furtado palpitar a fibra e bater a artéria quando pões em cena
Coelho também virava as costas para o público, alguma paixão; porque estudas as dobras e refolhos do co-
representando como se não houvesse plateia, como ração humano, sem essasterríveis contorções, que, tirando
se a ação se passasse entre quatro paredes. Essa ino- a elevação dos papéis, podem, quando muito, acreditar o
vação, como se sabe, só foi plenamente desenvol- artista como uma obra-prima de mecânica.
vida e aprimorada por André Antoine, no Théâtre Triunfas, porque não concedes um gesto à arte vulgar;
Libre, nos tempos do naturalismo. não dás arras nem fazes concessões a essaspopularidades
Saudado invariavelmente como o principal parvas e balofas, que degradam a arte. Não sacrificas a
intérprete da então chamada escola realista, Fur- verdade ao efeito nem a harmonia e ritmo de palavras, ao
tado Coelho apresentou-se com sucesso em várias trovejar da voz, que desnatura a verdade.
cidades brasileiras na primeira metade do decênio
de 1860. Na biografia que lhe dedicou Filgueiras Em 1866, a curta trajetóría artística de Furtado
Sobrinho, em 1863, estão transcritos vários trechos Coelho mereceu um estudo crítico em que não fal-
de artigos e folhetins publicados em jornais e re- tam elogios ao ater e críticas ao empresário. Num
vistas do Rio deJaneiro, São Paulo, Santos, Cidade livreto de 91 páginas, intitulado Uma Fisionomia
do Desterro (atual Florianópolis), Porto Alegre, de Artista: Furtado Coelho, Manoel Antônio Ma-
Pelo tas, Recife, São Luís do Maranhão, nos quais jor fez restrições ao repertório do Ginásio, que
os seus desempenhos são descritos e julgados fa- começou a apresentar pequenas peças musicadas
voravelmente. Entre essestextos que documentam à maneira do Alcazar ou cenas cómicas um tanto
a irradiação do realismo teatral pelo Brasil, desta- apimentadas. Mas ao discorrer sobre o ato r, "o
cam-se, pela qualidade das análises e reflexões, os único grande artista em atividade no Rio depois da
folhetins publicados por Joaquim Serra, no jornal morte de João Caetano': Major equipara Furtado
A Coalição, de São Luís, entre agosto e outubro Coelho a grandes artistas franceses, salientando
de 1863. Apresentando Furtado Coelho como "o suas qualidades:
maior propagandista das práticas e teorias da escola
realista' e como "inimigo jurado das extravagâncias Furtado Coelho, como NEgue! Baron, tem a voz sonora,
melodramáticas e desseromantismo pernicioso que justa, desempeçada e flexível, sua pronunciação fácil,
estragou a cena, qual lepra contagiosa: o folheti- elegante, precisa, seus tons enérgicos e variados; como
nista elogia também o repertório do ator e coloca- Dancourt dialoga perfeitamente, e no gestO, na maneira
-se como adepto do realismo teatral: de entrar e pisar em cena, revela a inteligência consumada
do artista, que em cada passo que dá manifesta estudo e
A escola que quer a lógica da verdade, a observação exata,
51 Francisco Antônio Filgueiras Sobrinho, EstudosBiográficos,
o fato preciso e nada mais, por força fará prosélitos e há de
Teatro I: Furtado Coelho, Pernambuco, 1863. P: 157.

• 193
História do Teatro Brasileiro • volume 1

reflexão. Dotado de talento criador, e de originalidade, no quadro envelhecido lhe podia dar; o romantismo não se
drama ou na comédia, lembra sempre Armand Huguet, que acordava com a sua fibra dramática; chamava-o uma outra
nos papéis de Lubin, naLa Suprise de I:Amour, de Timantí, escola; uma outra plateia".
no Le Fauxsavant, estampava o cunho que lhe era próprio
e conveniente. Joaquim Augusto foi contratado pelo Ginásio
o gesto, essa sublime linguagem que muitas vezes avan- Dramático em 1859. Antes, havia passado tem-
taja-se à palavra, a inflexão de voz quando o diálogo cresceem poradas no Rio Grande do Sul e em São Paulo,
proporções, ou no monólogo quando fala a paixão que nos onde conquistou admiradores. Mais velho que
arde no peito, Furtado Coelho os manifesta tão explendentes Furtado Coelho, não fazia os papéis destinados ao
que melhor não é possível desejar.Vimo-lo uma vez no drama "galá'. Era, na terminologia da época, "primeiro
A Honrade um Marinheiro, ele era José Canoa, e quando o centro': isto é, ator especializado em interpretar
honrado marujo, atormentado pela desventura, ergueu a mão homens maduros ou mesmo velhos, com o auxílio
e abaixou a fronre, para pedir uma esmola, a plateia irrompeu da maquiagem. Exemplo do primeiro caso é o de-
em bravos: Furtado Coelho revelara-se um gênio". sempenho no dramaMãe, de Alencar. Observe-se
que ele não fez o papel do jovem Jorge, o filho da
Voltando ao texto assinado por "um artista escravaJoana, mas o do dr. Lima, o velho amigo da
dramático" e publicado no Jornal do Comércio em família. Na encenação de O Romance de um Moço
novembro de 1859, resta ainda dizer que o arti- Pobre, de Octave Feuillet,Joaquim Augusto obteve
culista, não contente em criticar Furtado Coelho, um dos seus maiores êxitos artísticos no papel do
estendeu as suas restrições a todos os artistas do octogenário Laroque. A seu lado estavam Furtado
Ginásio. Desagradava-lhe evidentemente o novo Coelho, o "galã': e Gabriela da Cunha, a "dama-
estilo de interpretação, que nessa altura já havia -galã':; formando o par centraL
conquistado vários adeptos, entre eles Joaquim Com a morte do empresário Joaquim Heleo-
Augusto. Esse ator, como todos da sua geração, doro Gomes dos Santos em agosto de 186o, foi
havia começado a carreira artística na companhia Joaquim Augusto quem teve a ideia de formar uma
dramática de João Caetano. Pode-se imaginar o companhia dramática para ocupar o Ginásio Dra-
esforço que fez para abandonar os velhos hábitos. mático. A 23 de setembro, com a representação de
Segundo os folhetinistas da época, entre os artistas Luxo e Vaidade, de Joaquim Manuel de Macedo, a
que passaram do Teatro S. Pedro de Alcântara para Sociedade Dramática Nacional dava início aos seus
o Ginásio, houve alguns que demoraram mais que trabalhos, com um elenco formado por oito atrizes
Outros no aprendizado da interpretação realista, e doze ateres, entre eles Furtado Coelho, Antônio
mas, de um modo geral, os resultados finais apon- Moutinho de Souza, Eduardo da Graça, Pedro
tam para uma autêntica renovação da arte do intér- Joaquim do Amaral, Eugênia Câmara, Adelaide
prete no período. São muitos os depoimentos que Amaral e Maria Velutti.
comprovam esse dado histórico do nosso teatro, O prestígio de Joaquim Augusto, nessa altura,
como o que segue, sobreJoaquimAugusto, escrito pode ser medido pela homenagem que recebeu de
por Machado de Assis: artistas e intelectuais quando criou a Sociedade
Dramática Nacional - uma medalha de ouro
Com a sua entrada para o Ginásio, o sr. Joaquim Augusto com a inscrição ''Ao restaurador do Ginásio" - e
veio mostrar-nos a transfiguração de uma vocação erradia pelo sucesso que obteve como intérprete do char-
outrora em um clima que lhe não convinha, o que forçosa- latão Beaujolais, personagem de O Pelotiqueiro
mente lhe nulificava a aptidão e a inteligência. (L'Escamoteur, de Adolphe Dennery eJules Brésil),
Artista consciencioso, aperfeiçoado pelo estudo e pela que João Caetano também havia interpretado. A
observação, não podia viver na luz melancólica que um comparação entre os dois desempenhos foi ampla-
mente favoráv~l aJoaquim Augusto que, evitando
52 Manoe1 Antônio Major, UmaFisionomia deArtista:Furtado os exagerosda interpretação romântica, demonstrou
Coelho, Rio deJaneiro: Tip. de Domingos Luís dos Santos, 1866,
p. r6- 17· 53 Machado de Assis, Do Teatro..., p. 209-2 I O.

• 194
+ o Teatro Realista

seu domínio no terreno do realismo, como apon- nístas da época, que viam nos desempenhos do ator
tou o cronista "Carlos': da Revista Popular: um exemplo a ser seguido pelos seus pares. O domí-
nio da naturalidade em cena exige o uso correto da
A sua declamação é racional; não se lhe ouve um estampido voz, sem qualquer tipo de excesso desnecessário. E a
de voz, a pronúncia é reta, verdadeira, e quando lhe cumpre, "declamação" de Joaquim Augusto sempre foi bem
sabe dar às palavras o tom de franqueza e de expansão, não dosada, sem exageros, como lembrou um dos seus
ignorando quando as deve proferir envoltas na emoção e admiradores, que se nomeou "um artista brasileiro':
no pranto. Desconhece a epilepsia; o seu gesto é medido, num texto publicado no Correio Mercantil de ro
violento agora e sem contorções, para logo apresentar-se de outubro de 1862:
imponente e despido de pretensão" 54.
A declamação, que pelos nossos ateres ou cai na monoro-
Para o cronista, o desempenho de João Caetano nia de uma naturalidade afetada, ou na gritaria desastrada
havia sido irregular, pois não conseguira interpretar de um possesso, é um dos seus mais árduos labores, para,
o Beaujolais charlatão, personagem que é um tanto com o tipo do gênio da língua vernácula, poder satisfazê-la
cómico até o final do quarto ato. com todas as exigências do claro-escuro, vivificando com
Julgamento semelhante foi feito por Joaquim a modulação da voz todas as mil minuciosidades do som e
Manuel de Macedo no Jornal do Comércio de 6 de do sentido das palavras.
maio de 186I.Aseu ver,Jo ão Caetano só foi bem no
quarto e quinto atos, ao passo que Joaquim Augusto Joaquim Augusto aprimorou-se como ater
teve um desempenho mais harmonioso em toda a realista e tornou-se também ensaiador. Mas a sua
extensão da peça. Embora O Pelotiqueiro não se filie maior obra à frente da Sociedade Dramática Na-
ao realismo teatral, foi possível a Joaquim Augusto cional foi acolher e animar os dramaturgos brasi-
uma interpretação próxima do estilo que vinha re- leiros que surgiram no período, preferindo-os por
novando a cena nacional. Eis o elogio de Macedo: vezes aos autores estrangeiros. Entre setembro de
I 860 e fevereiro de I 862, ele encenou dez novas
É um ator de consciência e de verdade: não hesita em sa- peças nacionais, destes autores: Joaquim Manuel de
crificar um movimento, uma explosão que lhe renderiam Macedo, Quintino Bocaiúva, Pinheiro Guimarães,
aplausos para respeitar a verossimilhança e a expressão fiel Aquiles Varejão, Sizenando Barreto Nabuco de
da natureza que fala. Araújo, Valentim José de Silveira Lopes e Francisco
Quando ele entra em cena, o espectador como que se Manuel Álvares de Araújo. Dos três primeiros,
esquece de que está no teatro, eparece-lhe que o que se repre- Luxo e Váidade, OsMineirosda Desgraça e História
senta na cena está na verdade se passando. Não exagera, nem de uma MoçaRica foram grandes sucessos de crítica
se abate: conserva as situações, põe em ação os sentimentos e de público. Vale lembrar também que Joaquim
nas suas justas proporções, e tem assim O condão de sustentar Augusto remontou O Demónio Familiar, de Alen-
a ilusão por modo tal, que a ilusão se afigura realidade. car, a peça que desencadeou a formação do nosso
repertório realista. Nesse período, pois, o palco do
É claro que o elogio transcende a interpretação Ginásio Dramático acolheu mais originais brasi-
do papel de Beaujolais. Macedo admira Joaquim leiros que estrangeiros, consolidando a renovação
Augusto como ator realista e realça sua capacidade iniciada alguns anos antes.
de evitar os exageros, de ser natural em cena e de Em novembro de I 862,JoaquimAugusto inau-
criar a ilusão da realidade, uma emoção estética di- gurou em São Paulo a sua Companhia Dramática
ferente da que era proporcionada pelos rompantes Nacional; em I 864, de volta ao Rio de Janeiro,
nervosos de João Caetano ou dos seus discípulos trabalhou com a célebre atriz portuguesa Emília
no Teatro S. Pedro de Alcântara. Esse tipo de jul- das Neves, em sua longa temporada brasileira. O re-
gamento é constantemente reiterado pelos folheti- conhecimento de seu talento como intérprete rea-
lista foi reiterado porJoaquim Manuel de Macedo,
54 Revista Popular, Rio deJaneiro, tomo XI, jul./ser. 1861, p. 256.
que lhe reservou algumas páginas no Ano Biográfico

+ I95
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Brasileiro para lembrar dos sucessos alcançados no de peças como As MulheresdeMármore, de 'Ihéo-
palco do Ginásio: "Depois de João Caetano dos dare Barriêre e Lambert Thiboust, ouA Dama das
Santos foi o ator dramático de maior e mais justa Camélias, de Dumas Filho. Nesta última, como
nomeada do seu tempo, cabendo-lhe a glória de protagonista, colheu os mais calorosos elogios dos
ter sido no Brasil um dos primeiros intérpretes da folhetinistas. Nas prestigiosas "Páginas Menores"
escola chamada realista" 55. do Correio Mercantil de Iode fevereiro de I 8 56,
seu desempenho foi avaliado como "admirável".
O cronista descreve a profusão de aplausos que a
Gabriela da Cunha e Adelaide Amaral: atriz recebeu e acrescenta: "Gabriela foi dramática
Musas do Realismo Cénico de princípio a fim, e deu às menores cenas do seu
papel um relevo singular. Por vezes teve lágrimas
À semelhança dos outros artistas de seu tempo, na voz e nos olhos, por vezes as arrancou a todos os
Gabriela da Cunha, nascida no Porto em 1821, espectadores". Sousa Ferreira, em folhetim publi-
formou-se como atriz nos tempos do romantismo. cado no Diário doRio deJaneiro, a 13 de junho de
Como chegou ao Brasil em 1837, trabalhou em vá- 1856, escreveu: "Como Eugênia Doche em Paris, a
rios teatros no Rio de Janeiro, antes de ingressar no sra. Gabriela criou entre nós o papel de Margarida
Ginásio Dramático em 1855. Isso quer dizer que Gautier; às outras só resta imitá-Ia".
foi intérprete de dramas, melodramas e comédias Entre os admiradores da artista, "que vale por
do velho repertório que a nova empresa dramática si só um teatro" - como escreveu "G", no Correio
passou a combater. Mercantilde 18 de março de 186I - avulta o nome
No dia 102 de março de 1860, no primeiro nú- de Machado de Assis. Muito jovem, aos vinte anos
mero de um pequeno jornal dedicado à vida teatral de idade, acompanhou a temporada da atriz no
na corte, Entreato, a primeira página traz um breve Ginásio em 1859 e não lhe fez nenhuma restrição
esboço biográfico de Gabriela da Cunha, sem assi- nos folhetins que publicou no jornal OEspelho. Ao
natura, no qual se lê que ela fora uma atriz brilhante contrário, os elogios foram tantos que pelo menos
nas velhas peças, mas que se sentia, apesar disso, um dos seus biógrafos enxergou uma paixão amo-
"em terreno falso': porque "a índole do seu talento rosa onde havia apenas amor à arte e interesse pelas
não comportava os desvarios da escola romântica coisas do teatro 56.
e descabelada; não estava com aquela literatura de O que Machado admirava em Gabriela da
estimulantes e cáusticos, na frase de um espirituoso Cunha - "a melhor atriz que tem pisado as tábuas
crítico". Para o articulista, foi no Ginásio que Ga- do palco do Ginásio", como se lê em texto sem
briela da Cunha revelou seu verdadeiro talento, assinatura da Semana Ilustrada de dezembro de
como intérprete das heroínas das comédias realistas: 1860 - era a sua capacidade de ser verdadeira em
cena. A expressão dos sentimentos vinha sempre na
Ali encontrou a sua esfera; o seu talento respirava ali um medida certa, sem exageros, mas sem frieza. Esse
ar mais de acordo com as suas necessidades vitais. [...] Ali equilíbrio deu-lhe nomeada logo nos primeiros
criou a Marco, Margarida Gautier, a Estela, a Bernard, a anos do Ginásio, em 1855 e 1856, pois foi ela,
Saint-Ange, a Gabriela, e tantas outras, que se não desluzem conforme se lê nos "Comentários da Semana" de I I
da memória do público. de dezembro de 186 I, "aprimeira que nos revelou
os belos trabalhos do teatro moderno francês, e de
De fato, os jornais da época atestam o sucesso modo a encher de orgulho a cena brasileira">, Ar-
da atriz, que foi sem dúvida a mais aplaudida tista de alto nível, nem mesmo nas peças menores
"dama-galá' de seu tempo. Na velha nomenclatura deixava de brilhar. Como protagonista do drama
teatral, isso significa que ninguém soube melhor
que ela interpretar os principais papéis femininos 56 O biógrafoé R. MagalhãesJr.,em Vidae Obra deMachado de
Assis, v. I, Rio deJaneiro: CivilizaçãoBrasílelra/nn-xrac, 1981,
55 Ano Biográfico Brasileiro, v. I, Rio deJaneiro: Típ, e Lit. do P: II 5-127.
Imperial InstitutO Artístico, 1876-1880, p. 78. 57 Machado de Assis, Do Teatro.... p. 252.
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• o Teatro Realista

Válentina, encenado sem indicação de autoria em A sra. Gabriela teve momentos em que arrebatou os es-
novembro de I8 59, teve um "desempenho magis- pectadores. Aquele grito de aliviada angústia quando se
tral": e'A unção de sentimento, deu-a ela, à frase e ao vê livre do sedutor atrevido, aquela cena quando ela julga
gesto: e nas cenas capitais da peça, reproduz tanta que à declaração do amante vai seguir a morte instantânea
verdade, que o espírito como que se incomoda; valem por si só um drama. É que na mimosa atríz nos pa-
é doloroso demais'l". Machado a viu em muitas rece viver o verdadeiro sentimento da arte. Nunca o seu
peças e algumas vezes deixou-se levar pelo entu- garbo senhoril se desmente, nunca lhe notamos um mo-
siasmo. Eis como descreve a interpretação que a vimento decomposto, e a mobilidade de sua fisionomia, a
atriz deu ao papel central deA Dama das Camélias: propriedade com que um simples gesto exprime uma paixão
desordenada, a arte de dar vida e calor à palavra com uma
Confesso, não me cansa nunca esse magnífico drama. Mas parcimônia de ademanes violentos, que em outra qualquer
não me cansa com essaMargarida Gautier que a sra. D. Ga- seria insuportável frieza, eis o que nos parece constituir o
briela nos sabe dar; frívola ao princípio, depois sentimental, principal merecimento dessa artista.
depois apaixonada, resignada enfim no alto do seu amor,
tendo percorrido a escala gradual desse sentimento lustral Julgamentos semelhantes a esse são comuns na
que a lava da culpa,e lhe ergue uma coroa de flores em sua imprensa da época. Gabriela da Cunha tinha pleno
sepultura de tísica. Com essa Margarida pálida e arque- domínio dos recursos do realismo teatral e sabia dar
jando do quarto ato, desvairada com a afronta de Armando, vida às personagens qu~ interpretava. Furtado Coe-
procurando colher e adivinhar as suas palavras, e curvando- lho, quando a viu no papel da baronesa Suzanne
-se pouco a pouco à proporção que elas lhe caem dos lábios, d'Ange, de O Mundo Equívoco, impressionou-se
até ao grito final, expressão sintética de um despedaçar in- com a sua capacidade de reproduzir a "verdade"
terno de ilusões e de vida. Com essa Margarida do quinto da personagem. e'A sra. D. Gabriela, no Mundo
ato, abatida e prostrada, que morre quando parecia voltar à Equívoco, é, sem questão, uma elegante e sedutora
vida, com o riso nos lábios e a mocidade na fronte s9• baronesa dos salões da atualidade", escreveu no
Correio Mercantil de 28 de março de I8 56.
Primeira atriz do Ginásio durante anos, Ga- Furtado Coelho contracenou em muitas peças
briela da Cunha tinha todos os requisitos neces- com Gabriela da Cunha e nunca deixou de admirá-
sários para interpretar as heroínas das comédias -la. Numa carta escrita ao empresário teatral portu-
realistas, francesas ou brasileiras. Voz e gestos guês Sousa Bastos, em I 893, aíirmou que ela fora
sempre adequados aos papéis vividos em cena, sa- a "primeira entre as primeiras" e que seu talento só
bia comover sem exagerar, dando ao estilo realista poderia ser comparado ao de Emília das Neves":
de interpretação teatral a sua versão feminina mais Aliás, quando essa atriz portuguesa - a mais fa-
bem realizada, segundo Machado e os folhetinistas mosa de seu tempo - esteve no Brasil, em I864,
da época. Seus maiores sucessos foram em peças fez questão de ver Gabriela em cena. Machado de
como as citadas As Mulheres deMármore eA Dama Assis conta o que viu na noite de 3o de junho de
das Camélias e outras como O Mundo Equívoco, I864, quando Emília das Neves foi ao teatro S.
de Dumas Filho; Por Direito de Conquista, de Januário assistir à representação de Os Íntimos, de
Ernest Légouvé; Romance de um Moço Pobre, de Sardou: "As duas irmãs d'arte confundiram nessa
Octave Feuillet; Rafael e Os Homens Sérios, de noite as suas glórias - uma fazendo as melhores
Ernesto Biester: Dois Mundos, de Augusto César manifestações do seu talento peregrino, a outra
de Lacerda; e OsÍntimos, de Victorien Sardou. Eis fazendo-lhe em palmas entusiásticas a admiração
como seu desempenho nesta última foi avaliado de que se achava possuída. Foi uma das mais belas
pela "Cazetilha' do Jornal do Comércio de 25 de noites a que tenho assistido em teatro"?'.
maio de I 862:
60 Antônio de Sousa Bastos, Carteira doArtista:Apontamentos
para a História do Teatro Português e Brasileiro. Lisboa: Antiga
58 Idem, p. 178. Casa Bertrand, 1898. p. 775.
59 Idem, P: 214. 61 Do Teatro..., p. 322.

• 197
História do Teatro Brasileiro • volume1

Em sua Carteira do Artista, Sousa Bastos dá Mas no segundo semestre de 1857, aproveitando a
várias informações sobre Gabriela da Cunha, res- ausência de Gabriela da Cunha, que fora trabalhar
saltando que ela era mulher de finíssima educação, por uns tempos no Rio Grande do Sul, Adelaide
que falava e escrevia perfeitamente o português, o Amaral pôde fazer papéis mais importantes e de-
francês e o italiano. Filha da atriz e escritora Ger- monstrar seu talento, principalmente nas peças de
trudes Angélica da Cunha, casou-se no Rio de Ja- José de Alencar que o Ginásio pôs em cena: O Rio
neiro comJosé De-Vecchi, também ator, e faleceu deJaneiro} Verso e Reverso, O Demónio Familiar e
na Bahia em 188 2. No esboço biográfico publicado O Crédito. Na primeira, fazendo o papel da mo-
no jornalEntreato, o talento de Gabriela da Cunha cinha por quem o estudante paulista se apaixona,
é descrito em termos superlativos: mereceu estas palavras de Sousa Ferreira, em carta
a Leonel de Alencar (Diário do Rio deJaneiro de I Q
Artista de natureza e sentimento, a vida que dá às criações de novembro de 1857): "peço-te que me acompa-
da cena vem espontânea e abundante [...]. É uma glória nhes nos louvores devidos à perfeita interpretação
nacional: quando se quiser definir esta época de reforma que a atriz Adelaide soube dar ao lindo papel de
da arte no Brasil, o nome de Gabriela da Cunha há de ser Júlia; não se pode exigir mais graça e naturalidade".
um dos primeiros a invocar. Em O Demónio Familiar, Adelaide Amaral fez o
papel de Carlatinha, irmã do médico Eduardo, e
A segunda atriz mais importante do Ginásio foi elogiada por Francisco Otaviano e pelo próprio
Dramático foi Adelaide Amaral, também biogra- Alencar, no texto ''A Comédia Brasileira': escrito a
fada pelo jornal Entreato, em seu número I I, de 21 propósito da encenação da peça: ''A sra. Adelaide e
de julho de 1860. O texto sem assinatura informa o sr. Pedro Joaquim são um exemplo de que as obras
que ela nasceu em Ponta Delgada (Açores) no dia nacionais é que hão de criar os grandes artistas'F'.
18 de agosto de 1834, que viveu a infância e a ado- Se nessas peças as heroínas de Alencar são boas
lescência em Lisboa, onde se fez bailarina e atriz, moças, em maio de 1858 Adelaide enfrentou o
tendo trabalhado inclusive com Émile Doux no desafio de viver em cena a prostituta Carolina de
Teatro do Salitre. Em 1849 desembarcou no Rio AsAsas de um Anjo. É muito provável que seu bom
de Janeiro, acompanhada dos pais, que morreram desempenho tenha contribuído para a proibição da
um ano depois, vítimas de doença epidêmica. Já peça pela polícia, pois há falas e cenas que, no palco,
casada com o atar Pedro Joaquim do Amaral, ganharam um significado que provavelmente não
especializou-se como "ingênua', isto é, como atriz foi percebido pelos membros do Conservatório
que faz papéis de mocinhas delicadas. Em seus pri- Dramático que haviam lido e liberado a peça.
meiros trabalhos agradou bastante o público, como De acordo com o Entreato, a atríz identificou-se
registra o Entreato: com as peças do escritor brasileiro porque foram
criadas sob a inspiração de Barriêre, Dumas Filho,
Agradava principalmente na recém-chegada, a par de uma Feuillet, e pertenciam a
fiel compreensão dos caracteres que representava, a natura-
lidade com que os reproduzia, afastando-se dos grosseiros esse sistema da verdade cênica que detesta os pesados or-
hábitos, dos vícios da velha escola de declamação que trans- natos e a pompa fastidiosa dos partos da antiga escola. É
forma os ateres em pregoeiros de belas frases, cujo espírito nessa atmosfera pura que Adelaide vive sem esforço, é nela
e sentimento desprezam ou talvez desconhecem. que viceja sem constrangimento, que floresce, que produz
o seu belo talento.
Essa tendência à "naturalidade" foi decisiva para
Adelaide firmar-se no Ginásio Dramático, já em Depois de uma temporada na Bahia e uma breve
1855, nos primeiros espetáculos apresentados pela passagem pelo Teatro S. Pedro de Alcântara, Ade-
nova empresa. De um modo geral, os folhetinistas laideAmaral tornou-se, em 1860, a segunda "dama-
elogiavam as suas interpretações em papeis côrni-
cos ou secundários das comédias realistas francesas. 62 Em]. R. Faria, Idéias Teatrais, P: 473.
• o Teatro Realista

-galâ' do Ginásio Dramático, ao lado de Gabriela da Silva Amaral, artista inspirada, que soube dar vida
Cunha. A disputa pelos primeiros papéis fez nascer e colorido a esse pálido esboço dramático".
uma rivalidade incontornável e acabou provocando Outro bom momento da carreira artística de
o afastamento da atríz mais velha e experiente, que Adelaide Amaral foi sua passagem por Pernam-
aceitou uma oferta de trabalho na Bahia. Houve buco, em fins de 1865, início de 1866. A fama
protestos de folhetinistas e Adelaide não escapou conquistada no Rio de Janeiro e os desempenhos
de críticas pelo seu comportamento aguerrido. No de seus principais papéis granjearam-lhe admirado-
entanto, iniciava-senessa altura talvez o melhor mo- res incondicionais, como o jovem Tobias Barreto,
mento da sua carreira. Durante os anos de 1861 e que lhe dedicou poemas e se envolveu em polêmica
1862, ela atuou em peças estrangeiras que fizeram com outro jovem poeta, Castro Alves. Este preferia
sucesso - como O Pelotiqueiro, A Pecadora, A Re- Eugênia Câmara - de quem se tornará amante - a
denção - e interpretou com brilho, segundo os fo- Adelaide, ambas atrizes da companhia dramática
lhetinistas, os principais papeis femininos de várias que então se apresentava no Recife. O episódio tor-
peças brasileiras do repertório realista: OsMineiros nou-se bastante conhecido por envolver um poeta
da Desgraça, Lusbela, O Cínico, Amor eDinheiro, famoso como Castro Alves e pela alta temperatura
Um Casamento daÉpoca, A Resignação, A Torre em da disputa, que terminou com versos insultuosos
Concurso e Históriade uma Moça Rica. Com a pri- das duas partes e o rompimento das relações entre
meira, peça de Quintino Bocaiúva, colheu elogios os dois poetas, antes amigos.
de Joaquim Manuel de Macedo, que no Jornal do Pouco se sabe sobre a carreira de Adelaide de-
Comércio de 29 de julho de 1861 escreveu: pois dos anos de 1870. Sua morte, em setembro de
1899, foi comentada por Artur Azevedo, em crô-
A sra. Adelaide encontrou um papel que executa sem es- nica publicada no jornal O País. Ele ressalta justa-
forço e com naturalidade. No 32 e 1 2 ates, conquistou justos mente o que deixamos aqui registrado: a principal
aplausos, representando com uma verdade e sentimento, contribuição da atriz à história do teatro brasileiro
que todos pagaram com palmas e bravos. deu-se no palco do Ginásio, como intérprete das
heroínas das peças do repertório brasileiro realista.
1YIas o papel em que Adelaide mais brilhou foi
o de Amélia, a esposa que, maltratada e humilhada •
pelo marido imposto pelo pai, rebela-se, abandona
o lar e se transforma em prostituta que depois se A naturalidade em cena foi a pedra de toque da
regenera. É a heroína de História de uma Moça estética teatral realista, no que dizia respeito ao tra-
Rica, de Pinheiro Guimarães. Intelectuais como balho do aror, Com esserecurso aparentemente tão
Francisco Otaviano, Henrique César Muzzio, simples, mas que exigia muito, nos tempos ainda
Sousa Ferreira eJoaquim Manuel de Macedo, entre marcados pelo romantismo, os artistas do Giná-
outros, não pouparam elogios ao seu desempenho. sio puderam interpretar adequadamente as peças
Macedo, no folhetim que publicou no Jornal do francesas e brasileiras que haviam sido concebidas
Comércio em 7 de outubro de 1861, observou: como "daguerreótipos morais".
Num plano inferior ao de Furtado Coelho,
As honras da noite pertenceram incontestavelmente à atriz Joaquim Augusto, Gabriela da Cunha e Adelaide
Adelaide que compreendeu com felicidade o dificílimo papel Amaral, outros artistas deram sua contribuição
de Amélia e o executou com habilidade e consciência, arran- para a renovação que aconteceu no teatro brasileiro
cando por muitas vezes bravos e palmas de toda a plateia: entre os anos de 1855 e 1865. Merecem registro,
neste drama tem essaatriz um dos seus mais belos triunfos. entre as mulheres, Maria Velluti e Eugênia Câmara.
A primeira distinguiu-se em papéis cômicos, que
Ratificando o julgamento dos folhetinistas, Pi- interpretava com graça e leveza. Fez algumas ten-
nheiro Guimarães, ao publicar a peça no final de tativas em papéis dramáticos e não foi muito bem-
186 I, fez esta dedicatória: "AAdelaide Cristina da -sucedida, exceção feita à interpretação de Joana,

• 199
História do Teatro Brasileiro • volume 1

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Cena de Lusbela, de]oaquim Manuel de Macedo, em um desenho de Henrique Fleiuss


publicado em A VidaFluminense de 29 de fevereiro de 1868.

• 200
• o Teatro Realista

a escrava do próprio Elho em ivfãe, de José de 3· O PENSAMENTO CRÍTICO


Alencar. Nos primeiros tempos do Ginásio, Maria
Velluti desempenhou uma tarefa fundamental para A rivalidade entre o Teatro S. Pedro de Alcântara
a sobrevivência da pequena empresa: ela traduziu e o Teatro Ginásio Dramático, a partir de 18 55,
dezenas de peças francesas - várias de Scribe - e ita- no Rio de Janeiro, desencadeou uma disputa ao
- - --- - -- - -- - - lianas, que subiram à cena com boa receptividade mesmo tempo empresarial e estética: de um lado,
do público. Eugênia Câmara, por sua vez, não era o grande ator romântico e empresário João Cae-
considerada uma grande atriz pelos folhetinistas da tano, subsidiado pelo governo imperial; de outro,
época. Como não ia bem nos papéis dramáticos, não uma pequena empresa dramática, num teatro com
se tornou uma admirada "dama-galâ'. Seu terreno apenas 25 6 lugares, lutando contra todas as dificul-
foi a comédia e, curiosamente, fazia sucesso quando dades para renovar a cena por meio do repertório
se travestia de homem. Pode-se dizer que Eugênia realista e de concepções diferentes sobre a arte do
Câmara ficou mais conhecida pelos escândalos que intérprete e da encenação.
protagonizou do que pelas peças que representou. A imprensa acompanhou com interesse e até
Tornou-se amante de Furtado Coelho logo que che- mesmo incentivou essa rivalidade, que esteve no
gou ao Rio de Janeiro, em 1859, e posteriormente centro da vida t~atral do período. Coube aos críti-
viveu um rumoroso caso de amor com Castro Al- cos teatrais e aos folhetinistas noticiar e comentar
ves. De qualquer forma, deixou seu nome gravado os espetáculos dados pelas duas empresas dramáti-
na história do teatro brasileiro, como intérprete e cas, de modo que nos principais jornais e revistas
tradutora de peças francesas. do período - Diário do Rio de faneiro, Jornal do
Quanto aos ateres, podem ser lembrados o Comércio, CorreioMercantil, A Marmota, Revista
"galâ' dos primeiros tempos do Ginásio, Luís Car- Popular, A Semana Ilustrada, OEntreato, O Espe-
los Amoedo, e o "centro" Pedro Joaquim do Ama- lho etc. - podemos colher informações e reflexões
ral. Ambos tiveram dificuldades para abandonar que permitem reconstituir a trajetória do teatro
os velhos hábitos adquiridos no Teatro S. Pedro brasileiro e identificar seus protagonistas também
de Alcântara, mas aos poucos substituíram os pro- no terreno do pensamento crítico e estético. Não
cedimentos românticos pelos realistas. Foram os foram poucos os intelectuais que escreveram
principais intérpretes das peças francesas e portu- sobre o teatro. Sem contar as colaborações anô-
guesas encenadas no Ginásio entre 18 55 e 18 58. nimas ou assinadas por pseudônimos, que eram
O que se depreende da leitura dos jornais da época abundantes, destacaram-se, entre outros, José de
é que não foram nem brilhantes nem medíocres, Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Quinrino
mas irregulares em seus desempenhos, alternando Bocaiúva, Machado de Assis, Sousa Ferreira, Fran-
bons e maus resultados artísticos. Outros artistas cisco Otaviano, Henrique César Muzzio, Leonel
se destacaram naqueles tempos, no palco do Giná- de Alencar, Paula Brito, Moreira de Azevedo e
sio: Antônio de Sousa Martins, que fez o moleque Augusto de Castro.
Pedro de O Demónio Familiar, notabilizando-se O que se pode adiantar, de imediato, é que não
posteriormente nos papéis cómicos: Antônio Mou- demorou muito para os mais jovens se alinharem
tinho de Sousa, amigo de Machado de Assis e autor com o Ginásio. João Caetano, insistindo em apre-
de algumas comédias; Francisco Corrêa Vasques, sentar o repertório que o havia consagrado a partir
talvez o nosso maior ator cómico do século XIX, da década de 183 o, formado por dramas, melodra-
autor de hilariantes cenas cómicas e satíricas que ele mas e tragédias neoclássicas, parecia envelhecido e
mesmo interpretava; eJacinto Heller, que trocou a incapaz de tomar parte da renovação cênica trazida
carreira de ator pela de empresário, quando o Rio pelo realismo teatral. Vejamos como os quatro pri-
de Janeiro rendeu-se ao teatro cómico e musicado, meiros escritores elencados acima se manifestaram
a partir da década de 1870. sobre o que viram nos palcos da corte. Por meio de
seus textos é possível reconstituir o pensamento
crítico em relação ao teatro do período.

• 201
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Joséde Alencar Dramática no Rio de Janeiro, em 1857 e 1862,


sem sucesso'".
Sem ter sido um crítico teatral, José de Alencar teve A criação do Teatro Ginásio Dramático, em
a oportunidade de escrever sobre teatro quando março de 1855, foi uma grata surpresa para os
se tornou folhetinista do Correio Mercantil, em que se queixavam da situação teatral. Na época, os
setembro de 18 54. O folhetim, como se sabe, era espectadores não tinham muita opção: ou iam ao
um tipo de texto que conciliava o jornalismo e a Teatro Lírico Fluminense assistir às óperas italianas
literatura. O autor, em estilo leve e gracioso, devia ou ao S. Pedro de Alcântara. O primeiro espetáculo
- - -- - -- - abordartodos os assuntos da atualidade que lhe pa- da nova empresa, realizado a 12 de abril, com um
recessem importantes, principalmente aqueles que drama de Scribe, UmErro, e uma ópera-cómica de
diziam respeito ao Rio de Janeiro e sua vida social, Joaquim Manuel de Macedo, O Primo da Califór-
cultural e política. Uma das obrigações de Alencar, nia, foi saudado com entusiasmo pela imprensa,
portanto, era frequentar os teatros e escrever sobre menos pelo valor das peças ou dos espetáculos e
espetáculos líricos e dramáticos. mais pelo que significava como esperança de reno-
Em relação ao teatro dramático chama a atenção vação do teatro brasileiro. Alencar esteve presente
o folhetim datado de 19 de novembro de 1854, no à estreia e deixou registradas suas impressões:
qual o escritor faz severas restrições a João Cae-
tano. A seu ver, o teatro estava estagnado, sem bons E isto vem a propósito, agora que a nova empresa do Giná-
artistas, sem uma escola para aperfeiçoá-los. E o sio Dramático se organizou, e promete fazer alguma coisa
grande ator romântico não havia feito nada para a bem do nosso teatro.
modificar esse quadro, porque a glória pessoal era Assistimos quinta-feira à primeira representação da
a sua única preocupação. A crítica é dura e coraj osa, nova companhia no Teatro de S. Francisco: foi à cena um
vindo de um rapaz de 25 anos de idade, que estava pequeno drama de Scribe e a comédia do dr. Macedo.
no início de sua carreira literária e era desconhecido Embora fosse um primeiro ensaio, contudo deu-nos as
do grande público. Mas Alencar vai ainda mais melhores esperanças; a representação correu bem em geral,
longe. Depois de afirmar que o ator, "como artista e em algumas ocasiões excelente.
e como brasileiro': precisa trabalhar para "o futuro O que resta, pois, é que os esforços do sr. Emílio Doux
de sua arte e para o engrandecimento do seu país': sejam animados, que a sua empresa alcance a proteção de
acrescenta: que carece para poder prestar no futuro alguns serviços.
Cumpre que as pessoas que se acham em uma posição
SeJoão Caetano compreender quanto é nobre e digna de elevada deem o exemplo de uma proteção generosa à nossa
seu talento esta grande missão, que outros, antes de mim arte dramática. Se elas a encorajarem com a sua presença, se
jálhe apontaram; se, corrigindo pelo estudo alguns peque- a guiarem com os seus conselhos, estou certo que em pouco
nos defeitos, fundar uma escola dramática que conserve os tempo a pequena empresa que hoje estreia se tornará um
exemplos e as boas lições de seu trabalho e sua experiência, teatro interessante, no qual se poderão ouvir alguns dramas
verá abrir-se para ele uma nova época. originais e passar-se uma noite bem agradável".

É provável que os "pequenos defeitos" a que Alencar passou a frequentar o Ginásio e em vários
se refere Alencar digam respeito ao estilo de in- dos folhetins, que intitulava "Ao Correr da Pena': fez
terpretação grandiloquente, um tanto exagerado, elogios ao repertório encenado, aos desempenhos
de João Caetano, como convinha às personagens dos artistas e também às mocinhas que se debru-
do seu repertório. Note-se também que a crítica çavam nas balaustradas do teatro. A prova de que
ao individualismo do famoso ator já havia sido via com simpatia o trabalho de renovação teatral,
feita por outros intelectuais, que desejavam vê-lo à com base nas comédias realistas francesas, é que
frente de um movimento em favor da melhora do
teatro brasileiro. Justiça seja feita, João Caetano 63 CE. Décio de Almeida Prado,João Caetano, São Paulo: Pers-
pectíva/Edusp, 1972, P: 160.
tentou pelo menos duas vezes criar uma Escola 64 Ao C07Ter daPena,São Paulo: Martins Fomes, 2004, p. 283.

• 202
• o Teatro Realista

escreveu, em 1857, cinco peças, que foram encena- o fizeram compreender que o teatro podia ter um
das pelo Ginásio: ORio deJaneiro} Vérso eReverso, O extraordinário alcance social quando no palco a re-
Demónio Familiar, O Crédito eAs Asasde um Anjo. produção dos costumes se fazia acompanhar pela
A primeira é uma pequena comédia elegante; as de- preocupação moralizadora. Para Alencar, Dumas
mais são comédias realistas. Alencar deixou algumas Filho havia atingido a perfeição nesse tipo de peça,
reflexões sobre essaspeças, que são importantes para adicionando à comédia de costumes de Moliêre um
compreendermos as ideias teatrais que fundamenta- traço novo: a naturalidade. A "comédia moderna',
ram o pensamento crítico do período. na certeira definição do escritor brasileiro, repro-
A propósito da encenação de O Demónio Fami- duzia a vida da família e da sociedade como um
liar - e respondendo aos elogios feitos por Francisco "daguerreótipo moral".
Otaviano e às poucas restrições que a peça rece- Alencar não podia ser mais claro. O caminho para
beu da imprensa - Alencar publicou, no Diário a criação do teatro que tinha em mente, com a cola-
do Rio deJaneiro de 14 de novembro de 1857, um boração de outros intelectuais, devia conciliar os dois
artigo intitulado e'A Comédia Brasileira" É uma princípios básicos da comédia realista: a moralidade
espécie de credo estético no realismo teatral de e a naturalidade. De um lado, a influência clássica,
extração francesa. Já citamos parte dele quando trazendo à tona a ideia horaciana do utilitarismo
comentamos as peças do autor, no capítulo sobre da arte; de outro, a realista, de seu próprio tempo,
a dramaturgia realista. Mas é preciso enfatizar aqui contribuição de Dumas Filho. Na síntese desses dois
não apenas a filiação a Dumas Filho mas também princípios, a peça que fotografa a realidade, mas
outras questões que estão presentes no texto. acrescentando ao retrato o retoque moralizador.
Em primeiro lugar, ressalte-se que Alencar fez O artigo de Alencar traz também várias refle-
um balanço do teatro brasileiro de seu tempo, xões sobre o novo "jogo de cena" criado por Du-
chegando à conclusão de que não existia. Apenas mas Filho e a consequente defesa do conceito de
Macedo e Martins Pena foram lembrados por ele, naturalidade, aplicado tanto ao esperáculo quanto
o primeiro como autor "que nunca se dedicou ao texto dramático. Afinal, os desafios do realismo
seriamente à comédia', o segundo limitado pelo teatral não se dirigiam exclusivamente aos ensaia-
pequeno alcance de suas farsas. Daí ter buscado dores e artistas, mas também aos dramaturgos, que
no teatro francês o modelo de alta comédia que deviam escrever suas peças com ação dramática, ce-
tinha em mente ao escrever O Demónio Familiar. nas e diálogos adequados à construção do realismo
Quando afirma que era preciso "criar" o teatro na- cênico. Não é fácil, diz o escritor, "fazer que oito
cional- "Nós todos jornalistas estamos obrigados ou dez personagens criados pelo nosso pensamento
a nos unir e criar o teatro nacional, criar pelo exem- vivam no teatro como se fossem criaturas reais, ha-
plo, pela lição, pela propaganda" - deixa implícito bitando uma das casas do Rio de Janeiro".
o reconhecimento de que os escritores românticos Se a naturalidade é o pressuposto básico do
que o precederam não conseguiram realizar tal ta- realismo teatral, a grandiloquência e todo tipo de
refa. E mais: que a forma do drama de Victor Hugo exagero na cena apontam para o teatro do passado,
e Alexandre Dumas já não servia como parâmetro. que os jovens intelectuais identificavam com João
Os novos tempos pediam a comédia realista de Du- Caetano. Alencar dá algumas alfinetadas no atar
mas Filho e Augier como modelo. e empresário, afirmando, sem citá-lo diretamente,
Não é preciso concordar com o julgamento que que ele desprezava as produções nacionais e preferia
Alencar faz do teatro romântico. Mas é possível representar "traduções insulsas, inçadas de erros e
interpretá-lo como estratégia para justificar a opção galicismos". No fecho do artigo, é o estilo de repre-
pelo realismo teatral, que o escritor aprendeu a sentação do ator romântico e seu repertório que são
admirar como espectador do repertório encenado duramente criticados: "O tempo das caretas e das
pelo Ginásio Dramático. Foi a pequena empresa exagerações passou. Inês de Castro, que já foi uma
que introduziu na corte a "verdadeira escola mo- grande tragédia, hoje é para os homens de goSto uma
derná', ele afirma; e foram as peças francesas que farsa ridícula". Comenta Décio de Almeida Prado:

• 2°3
História do Teatro Brasileiro • volume1

A referência a]oão Caetano não podia ser mais direta e cruel. quiserem ser madrinhas do pequeno, não terei dúvida de
Era todo um repertório, todo um estilo de interpretação, assegurar-lhe um brilhante futuro.
que começavam a parecer enfáticos e vazios para as gerações
literárias mais moças, afeitas ao coloquialismo, ao intimismo, Macedo gostava das comédias de Scribe que,
à placidez burguesa e moralizante dos dramas de casaca". traduzidas por Maria Veluttí, foram a base do re-
pertório dos primeiros seis meses do Ginásio. Em
Não deixa de ser curioso lembrar que Alencar média, a cada semana uma nova peça entrava em car-
escreveu o dramaJ\1ãe, encenado pelo Ginásio em taz, num ritmo de trabalho estafante, mas necessário
1860, no qual aspectos românticos e realistas estão para atrair o público. Em relação ao repertório do
bem combinados. E que escreveu, a pedido deJoão S. Pedro de Alcântara, as diferenças eram sensíveis,
Caetano, o drama histórico - e romântico - O Je- como apontou o folhetinista já a 20 de maio:
suíta,que o ator acabou por não representar.A verdade
é que nosso escritor conhecia os fundamentos das o Ginásio prossegue no empenho de agradar ao público
duas estéticas teatrais. Mas sua preferência foi pelo que o frequema; nos dramas de seu repertório não há gritos
realismo, como comprovam outros escritos de sua de maldição, nem punhais, nem envenenamentos: mas, a
autoria. Na dedicatória de As Asas de um Anjo, para falar a verdade, há muita coisa que faz rir, e que diverte a
dar um último exemplo, explicou que ao escrever gente. Tenho minhas predíleções por aquele Ginásio: pelo
as quatro primeiras peças sua intenção fora "pintar menos ainda não é bananeira que já deu cacho.
os costumes de nossa primeira cidade e apresentar
quadros antes verdadeiros do que embelezados pela A 24 de junho, Macedo registra a primeira ida
imaginação e pelo artifício"66. de Dom Pedro II e da imperatriz ao Ginásio, fato
que atesta o reconhecimento da qualidade dos espe-
táculos apresentados. O folhetinista aproveita para
Joaquim Manuel de Macedo estimular os artistas, admite os progressos que têm
feito, mas chama a atenção para o trabalho que têm
À semelhança de Alencar, Macedo também acom- pela frente para se aprimorar. Em outros folhetins
panhou boa parte dos trabalhos do Ginásio Dra- há informações de que o público tem prestigiado
mático como folhetinista, além de ter tido várias a pequena empresa, que a 15 de julho - em três
peças encenadas no pequeno teatro. Ele é o autor meses de atividades, portanto - chega à marca de
da ópera-cómica O Primo da Califórnia, como quatorze peças apresentadas.
sabemos, uma das duas peças do espetáculo inau- As primeiras comédias do realismo teatral
gural em abril de 1855, o que já demonstra simpatia francês também foram recebidas com simpatia
pelos esforços do empresário Gomes dos Santos por Macedo, mas não com o entusiasmo que po-
e da atriz Maria Velutti, os líderes da empreitada. deria denotar uma adesão incondicional à nova
No dia 29 desse mês, em seu folhetim ''A Semana': "escola", como se dizia na época. Seu comentá-
do Jornal do Comércio, ele elogia as comédias que rio sobre As lvIulheres de Mármore, de Barriêre
são apresentadas, comenta as dificuldades que uma e 1hiboust, no folhetim de 25 de novembro de
nova empresa dramática enfrenta para se firmar e 1855, são positivos. Ele considera a peça "uma
pede apoio aos leitores e principalmente às leitoras, bela e sábia lição, de que se devem aproveitar to-
como, aliás, Alencar fez muitas vezes: dos os moços e até os velhos, que em alguns há,
não poucos, que no fim da vida dão em gaiteiros".
É porém mais que muito necessário que o belo sexo flu- Além do aspecto didático, de fundo moralizante,
minense tome debaixo de sua imediata proteção o jovem o folhetinista ressalta também os traços realistas
Ginásio; se as moças, e principalmente as moças bonitas, da peça, a seu ver:

65 João Caetano, p. 130-13 r. um terrível espelho, em que pode mirar-se muita geme
66 Em joão Roberto Faria,JosédeALencareo Teatro, São Paulo:
de gravata lavada. Aquele tim-rim que soa tão docemente
Perspectíva/Edusp, 1987, P: 23.
aos ouvidos de Marco, é também uma deliciosa harmonia
20
• 4
• o Teatro Realista

que cega até o coração das três quartas partes do gênero Há quem fale por aí em guerra que se faz ao sr.João Cae-
humano. tano dos Santos. Eu pela minha parte não acredito nela, e
quando a evidência me provasse que a guerra existe, não
Era de se esperar que Macedo comentasse as me alistaria por certo nas falanges inimigas.
outras peças do repertório realista francês que o
Ginásio pôs em cena nos meses seguintes. Mas Macedo continuou com os folhetins da série
isso não se deu. Ele não fez nenhuma análise das ''A Semanà' até 5 de setembro de 1859. Escreveu
outras peças de Barriere ou de Dumas Filho, Augier pouco sobre os espetáculos dramáticos, mas co-
e Feuillet, limitando-se a observações superficiais e meçou a se mostrar mais sensível à ideia de que
a pequenos elogios ou censuras às representações. o teatro podia ser uma escola de moralização dos
Em fevereiro de 1856 o Ginásio encenouA Dama costumes. Por outro lado, chegou a duvidar do
das Camélias, com enorme sucesso e repercussão futuro do Ginásio Dramático, por ser um teatro
entre os intelectuaisMacedo anunciou que ia ver a muito pequeno, e continuou a admirar João Cae-
peça, mas não escreveu uma linha sobre ela em seus tano como intérprete. Entre abril e dezembro de
folhetins. A 3o de março dedica dois brevesparágra- 1860, Macedo assinou outra série de folhetins no
fos para elogiara montagem e o desempenho do ator Jornal do Comércio, intitulada "Labirinto". A lei-
Pedro Joaquim em O Mundo Equívoco, outra peça tura desses textos sugere que a ótima temporada
de Dumas Filho. A 20 de abril recrimina o Ginásio, de 1859 no Ginásio, que reuniu Furtado Coelho,
que teria perdido "aquele seu velho e bom costume Gabriela da Cunha eJoaquim Augusto, contribuiu
de dar todas as semanas uma comédia nova" mas para o escritor acreditar não só no sucesso da pe-
recomenda a peça em cartaz, intitulada Ramalhete quena empresa, mas também na forma da comédia
de Violetas, acrescentando: "Eu gosto mais de viole- realista. Não por acaso, quando os melhores artistas
tas do que de camélias; pelo menos aquelas têm um dramáticos do Rio de Janeiro se juntaram, após a
suave perfume de inocência" morte do empresário Gomes dos Santos, em agosto
O que deduzir dessaspalavras? No mínimo, que de 1860, para criar a Sociedade Dramática Nacio-
Macedo não gostou muito da peça de Dumas Filho e nal - sediada no Ginásio -, a peça de estreia da
que preferia as comédias de Scribe.Há que selembrar nova companhia foi Luxo e Váidade, de Macedo,
o peso da formaçãoromântica do escritor e asligações que fez extraordinário sucesso. Essa peça, como já
que mantinha com João Caetano, que havia ence- se viu em capítulo anterior, concilia a naturalidade
nado algumas peças de sua autoria. No momento em na construção da ação dramática e as lições morais
que a rivalidade entre o Ginásio Dramático e o S. que são passadas pela personagem raisonneur.
Pedro de Alcântara seacirrou, Macedo posicionou-se A adesão de Macedo ao realismo teatral apa-
com cautela em relação às peças realistas francesas, rece também na peça Lusbela, tentativa menos
evitando fazer comentários mais analíticos e extensos, feliz que a anterior, e em outra série de folhetins -
Tome-se como exemplo o pouco que escreveusobre "Crônica da Semana" - escritos igualmente para
A Crise, de Feuillet, no folhetim de 24 de agosto de o Jornal do Comércio, entre janeiro e outubro de
1856: "O Ginásio ocupa agora os seus espectadores 1861. O Ginásio, agora, torna-se merecedor de
com a sua Crise, e prova que se para os ministérios e muitos elogios. Furtado Coelho, Joaquim Au-
teatro políticos uma crise é moléstia aterradora, para gusto e Adelaide Amaral são considerados artis-
ele Ginásio é sinal de saúde, pois lhe dá casascheias". tas notáveis. Embora não perca a admiração por
Nenhuma palavra sobre o enredo, aspersonagens João Caetano, Macedo julga que na peça O Peloti-
ou o pensamento da peça. Por outro lado, em vários queiro, representada simultaneamente no Ginásio
folhetins, são fartos os elogios e palavras de incentivo e no S. Pedro, o ator romântico não conseguiu ser
aJoão Caetano. A I I de janeiro de 18 57lvIacedo faz melhor que Joaquim Augusto no papel de Beau-
referência às críticas que o famoso intérprete român- jolais, que exigia mais naturalidade em cena. Em
tico vem recebendo dos folhetinistas mais jovens e vários folhetins, ressalta que o teatro tem função
toma a seguinte posição no debate: civilizadora e que exerce importante influência

20
• 5
História do Teatro Brasileiro • volume 1

sobre os espectadores, com as lições edificantes e desastrosas que impõe, a vaidade que abre precipícios, a
moralizadoras que trazem as peças. deslealdade que agiganta a desconfiança, o ceticismo que
Macedo compreendeu a essência do realismo assassina todas as crenças, a descrença religiosa que parece
teatral e tornou-se defensor irrestrito de seus pos- ligar-se com as tentativas de um fanatismo anacrónico, con-
tulados. A representação, em julho de 1861, de siderai enfim a desmoralização profunda que se faz sentir,
Os Mineiros da Desgraça, de Quintino Bocaiúva, e dizei se o escritor dramático deve, trêmulo e receoso pegar
o levou a escrever uma verdadeira profissão de fé na pena, trêmulo e receoso escrever suas ideias, coarctando
nesse tipo de teatro, no folhetim de 12 de agosto. pensamentos, medindo palavras, abundando em satisfa-
A citação é longa, mas diz tudo o que precisamos ções, e todo meiguice e brandura pedir de joelhos ao vício
saber para compreender os pontos de vista do e ao escândalo, e até às vezes ao crime, perdão do epigrama
escritor: que lhe escapou por acaso? ..
Não: o médico aplica muitas vezes o fogo para cauteri-
Qual é a missão do poeta ou do escritor dramático?... qual zar a úlcera.
é a missão do teatro?.. fazer-nos chorar com a tragédia, Antes de se irritarem contra algumas pungentes verdades
ou rir com a comédia, sem que essas lágrimas e esses risos que uma ou outra vez, e por infelicidade bem raramente, se
sejam férteis em lições morais e aproveitem à sociedade?... manifestam no teatro, irritem-se contra os abusos, os vícios
ninguém será capaz de dizer que sim. e malversões [sic] que provocam tais manifestações.
O teatro não deve nem pode ser simplesmente um pas- Falar e escrever sem rebuço, com franqueza e vigor pa-
satempo; é preciso que seja além do mais que todos sabem, tenteando os males que afetam a sociedade, é já um grande
uma escola de moral e de costumes. serviço.
Amesquinhar-se-iam muito os poetas, os romancistas e os
dramaturgos se se reduzissem a representar o papel de ale- Como Alencar e vários outros intelectuais do
gres e complacentes lisonjeadores dos poderosos de todos período, Macedo atribui ao teatro a tarefa de re-
os gêneros. Há de sobra quem lisonjeie e adule aos que mais produzir a realidade social de seu tempo no palco
têm e aos que mais podem: os poetas, os romancistas e os e de aperfeiçoar os costumes por meio da crítica
dramaturgos têm de cumprir uma missão grandiosa; devem moralizadora dos vícios. As peças francesas e
ser os pregadores de princípios sãos e de todas as verdades brasileiras encenadas no Ginásio vinham fazendo
em proveito dos homens, em proveito da sociedade, em que exatamente isso.
pese aos que lucram com a mentira, com os abusos e com a Nos últimos folhetins que escreveu, em agosto,
ignorância e a sombra. setembro e outubro de 1861, Macedo reivindicou
O poeta deve ser destemido e franco, deve ir procurar com veemência a proteção do governo ao teatro.
os abusos e os vícios onde eles se abrigam, e feri-los sem he- Ele já havia feito isso no final de 1860 em alguns
sitação nem piedade. Na inspiração, e no espírito do poeta, folhetins da série "Labirinto":". A seu ver era
há às vezes como centelhas de divina flarna, não é muito preciso uma reforma completa para se criar um
pois, e até é belo, ver que o brado de sua cólera excitado "teatro normal", isto é, um teatro semelhante à
pelo gemer dos oprimidos vá como o raio do céu procurar Comédie Française, constituído por uma socie-
de preferência as alturas. dade de artistas de valor inconteste, subsidiado
Nas obras dramáticas de cada época deve aparecer a e inspecionado pelo governo. Junto a esse teatro
mesma época com as suas feições características, com os seus funcionaria um novo Conservatório Dramático,
encantos e os seus senões, com as suas virtudes e os seus vícios: onde jovens artistas teriam as aulas necessárias
quando não acontece assim, é porque os escritores dramáticos para a sua melhor formação. As. peças a serem
mentem, e não sabem compreender a importância e a gran- representadas seriam as de valor literário, para
deza da sua missão moralizadora e civilizadora, e portanto aprimorar o gosto do público. Os direitos amorais
QE.E VÃo POETIZAR PARA OS CONVENTOS. dos escritores dramáticos seriam respeitados, fato
rodos a época em que vivemos, considerai as circunstâncias que estimularia a produção dramática nacional.
em que se acha a moral no Brasil, considerai a ambição des-
67 CE]. M. de Macedo, Labirinto, organização, apresentação e
regrada de riquezas, a usura que se alimenta das exigências
notas de Jefferson Cano, Campinas: Mercado de Letras, 2004.

• 206
• o Teatro Realista

Por fim, o governo se incumbiria de providenciar elogiou O ensaiador Furtado Coelho, no folhetim
um rnontepío para garantir uma velhice tranquila de 3 I de julho reservou para o "galâ' Luís Carlos
aos arriscas". Amoêdo estas palavras de incentivo: "Confesso
Nem é preciso dizer que tais ideias não vinga- mesmo que nessa noite notei-lhe algum progresso,
ram. Macedo as apresentou ao governo no final de mais comedimento nas expressões, mais natura-
1861, quando fez parte de uma comissão formada lidade e força na representação de seu caráter"
por ele, Alencar e Cardoso de Menezes e Souza, Quintino Bocaiúva não deixou de fazer restrições
que a pedido do conselheiro Souza Ramos elabo- aos artistas do Ginásio, mas sempre pontuais: um
rou dois pareceres com sugestões para melhorar o gesto fora de propósito, a roupa inadequada, a voz
teatro no Rio de Janeiro. Os pareceres foram en- muito alta de um determinado atar, a eventual falta
gavetados e os teatros continuaram sem subvenção de estudo dos diálogos etc. Sabia que quase todos
ou qualquer ajuda do governo. tinham vindo do S. Pedro de Alcântara e que era
difícil o aprendizado de um modo de interpretação
mais natural, adequado ao novo repertório francês.
~intino Bocaiúva Isso não o impediu de considerar o Ginásio "a me-
lhor casa de espetáculos desta corte': como se lê no
Um dos jovens intelectuais mais atuantes na im- folhetim de 4 de setembro. Por outro lado, embora
prensa fluminense na década de 1850, Quintino considerasseJoão Caetano o melhor ator brasileiro
Bocaiúva manifestou sua simpatia pelo realismo em atividade, fez-lhe duras críticas a 7 de agosto,
teatral em vários folhetins que escreveu a partir de por não procurar melhores artistas coadjuvantes
1856, no Diário do Rio deJaneíro. Nesse ano, no para sua companhia e até mesmo pela displicência
segundo semestre, assinou um conjunto de onze no desempenho de alguns papéis:
folhetins dramáticos - isto é, textos de crítica
teatral - em que comentou os espetáculos dados E por que um artistadas proporções do sr.João Caetano
pelo Ginásio Dramático e pela companhia de João deixa-se assim comprometer por companheiros que nem
Caetano. Metódico, no primeiro folhetim, de 24 sequer ombreiam com sua pessoa?
de julho, expôs os princípios que iriam nortear o Por que a si mesmo se compromete quando não estuda
seu trabalho, prometendo imparcialidade, hones- ou não se lembra de seus papéis?
tidade e independência nos julgamentos. Depois, Pois para que serve o gênio?
entre várias considerações, elogiou a atuação de Se o gênio não é a criação, se o gênio não é a força que
João Caetano no drama A Gargalhada e noticiou serve ao indivíduo que o possui para livrá-lo das crises
a entrada da atríz Joana Noronha no Ginásio, lem- embaraçosas, para que o sr.João Caetano ressente-se das
brando "que se acha estabelecida uma espécie de ri- observações que lhe são feitas?
validade entre os teatros que se disputam a primazia
dos esforços e dos estudos". A seu ver: Para Quintino Bocaiúva, uma das causas de
alguns fracassos de João Caetano e das críticas que
o Ginásio aí está de pé contra os desejos de alguns e con- recebe é que em sua companhia dramática os ar-
tra a esperança de muitos. Com um quadro artístico não tistas não estudam seus papéis. Nesse folhetim ele
completo, mas bem preenchido, atirou-se à exploração de aponta ainda outro problema, relativo à decoração
um novo gênero e tem sabido conservar-se com brilho em e ao arranjo das cenas, em que a falta de cuidado
sua especialidade. e a mistura indiscriminada de objetos e figurinos
comprometem as encenações:
Já vimos no capítulo anterior a defesa que o fo-
lhetinista fez da encenação realista da peçaA Última Mas a mesma sala, as mesmas arandelas, o mesmo eterno e
Carta, de Augusto César de Lacerda. Assim como constante lustre, Luís XV no meio de Renaissance, o estilo
bizantino de braço dado com o gótico, vestidos deriscadinho
68 Essas ideiasforamparticularmentedesenvolvidas na Crônica
num baile de grande etiqueta... creio que estas reticências
da Semana de 19 de agosto de 186 r.

20
• 7
Historia do Teatro Brasileiro • volume 1

exprimem perfeitamente aquilo que o folhetinista cala por Já sabemos que o Ginásio sobreviveu à crise. Por
delicadeza. um tempo o empresário modificou o repertório, al-
ternando em cena as peças realistas com dramalhões
Comparem-se essaspalavras com as que dedicou que atraíam outro tipo de público. Quintino Bo-
à encenação de PorDireito de Conquista, de Ernest caiúvalamentou essadecisão, mas não pôde discutir
Legouvépelo Ginásio, no folhetim de 4 de setembro: os rumos do Ginásio, pois deixou de escrever folhe-
"A representação foi boa. Os papéis estudados e tins em outubro. Isso não significa que se afastou do
compreendidos, a decoração decente e própria, o teatro. Ao contrário, a experiência jornalística o fez
vestuário escolhido, fizeram o espetáculo agradável refletir sobre o fenômeno teatral de maneira ainda
e tornaram a noite amena e apreciada". mais densa. Em abril de 1857, no Correio Mercan-
A superioridade do Ginásio está também em til, publicou, capítulo por capítulo, os seus Estudos
seu repertório, formado por peças que têm uma Críticos eLiterários; Lanced'Olbos sobre a Comédia e
preocupação com a moralidade. A Crise, de Feuil- sua Crítica, pequeno livro impresso no ano seguinte.
ler - "espirituoso escritor e sobretudo moralista As reflexões de Quintino Bocaiúva dirigem-se
profundo" -, é considerada no folhetim de 28 de inicialmente à tarefa da crítica, que considera di-
agosto "uma das mais belas composições dramáti- fícil, muitas vezes mal compreendida, mas neces-
cas que têm subido à cena entre nós". sária para o progresso da literatura e do teatro. Em
Em setembro de 1856, o Teatro S. Januário seguida, passa a discutir as três principais formas
acolheu uma companhia francesa, que passou a teatrais que existem no seu tempo: a tragédia, o
apresentar no original as peças que o Ginásio já drama e a comédia. A seu ver, a comédia é o gênero
havia encenado, como O Mundo Equívoco, de Du- mais difícil de ser cultivado, mas é também o que
mas Filho, ou Por Direito de Conquista, ainda em tem a missão mais nobre: "corrigir os costumes da
cartaz. Na imprensa, especulou-se muito sobre a sociedade pela crítica moralizada de seus defeitos,
sorte do Ginásio: teria público os seus espetácu- . pela ridicularização sentenciosa de seus vícios"69.
los ou os espectadores iriam todos ao S.Januário? A função utilitária do teatro é colocada em
Houve mesmo quem pensasse que o pequeno primeiro plano por Quintino Bocaiúva. Para ele,
teatro iria à falência, por não poder concorrer em não apenas a comédia, mas também a tragédia e o
pé de igualdade com a companhia francesa que, drama devem obedecer à "lei geral" da moralidade.
dizia-se, era muito boa. Sem rodeios, vai direto ao ponto:
De fato, o Ginásio entrou em crise. E um
dos primeiros a sair em sua defesa foi Quintino Hoje o povo e os literatos simultaneamente hão compreen-
Bocaiúva, já no folhetim de 25 de setembro, ob- dido que o teatro não é só uma casa de espetáculos, mas uma
servando que as montagens brasileiras das peças escola de ensino; que seu fim não é só divertir e amenizar
francesas foram muito boas se comparadas com o o espírito, mas, pelo exemplo de suas lições, educar e mo-
que era apresentado no S.Januário. Nossos artistas ralizar a alma do público.
mereciam todo apoio, pois tinham realizado inter-
pretações corretas dos papéis que lhes couberam: Para cumprir essafunção, o teatro deve ser realista,
isto é,deveser a expressão da sociedade, ou, ainda me-
A imprensa já o disse e o povo há de justificá-lo, agora mais lhor, de uma parte dela,para que não seperca em ge-
que nunca deve-se fazer justiça ao talento e ao esforço dos neralidades. Os benefícios advindos dessaconcepção
artistas do Ginásio por bem terem adivinhado na execução são evidentes, pois se é na sociedade que o teatro vai
de seus papéis o gênio dos autores que interpretaram, auto- buscar os seus tipos, "é no teatro que a sociedade vai
res filhos de um país, de uma literatura diversa. ver a reprodução de uma parte de seu todo, considerá-
Agora mais que nunca, digo eu, deve o público mani- -lo, compará-lo, aproveitá-lo em seu desenvolvimento
festar seu reconhecimento ao estudo e ao trabalho desses
artistas que nos deram as noites que gozamos e que podem 69 Esse e os demais trechos transcritos dos Estudos Críticos e

continuar a dar-nos outras tão boas e melhores. Literários podem ser consultados em J.R. Faria, IdéiasTeatrais...,
P·447-4 6 1.

• 208
• o Teatro Realista

e perfeição': Nesse sentido, "a comédia é como um las altas comédias que escreveu. À semelhança dos
daguerreótípo" mas que deve trazer sempre "uma li- teóricos do classicismo que negavam o valor artístico
ção instrutiva, um ensino proveitoso, um fim moral". das farsas, incorre no mesmo preconceito contra o
É muito provável que Alencar tenha lido essaslinhas baixo cômico . Masnão se pode condená-lo por isso;
antes de escreversuas comédias e o texto comentado em sua época, todos os intelectuais pensavam assim.
há pouco, quando definiu a comédia de Dumas Filho Os capítulos que vêm em seguida às breves consi-
com a expressão"daguerreótipo moral". derações sobre Moliêre ocupam a parte central do
Quintino Bocaiúva amplia as suas considera- livro, na qual entram assuntos de literatura, teatro e
ções a partir da ideia de que a comédia, pela sua história da França, tratados um tanto genericamente.
própria natureza, é o gênero mais apropriado para Quintino Bocaiúva aponta o abandono da alta co-
realizar os altos ideais do teatro que tem em mente. média no século XVIII e início do XIX, escreve sobre
Mas não a comédia que visa apenas a provocar o a Revolução Francesa, sobre Napoleão, sobre a Res-
riso e que abusa dos elementos farsescos ou satí- tauração, para enfim chegar, nos últimos capítulos,
ricos. Para fazer parte dessa "cruzada instrutiva e ao romantismo e ao teatro romântico. Nessa parte,
moralizadora que o teatro deve fortalecer': a comé- o livro ganha novamente interesse, pelas questões
dia que interessa é a alta comédia, assim definida: estéticas que levanta.
O teatro romântico no Brasil, especificamente
Sendo ela destinada a instruir divertindo, sendo por sua em 1857, sofria a concorrência do teatro realista. A
própria natureza de todas as fórmulas dramáticas a mais simpatia de Quintino Bocaiúva pelo último, como
simples, a mais popular, deve por consequência falar de vimos em seus folhetins, traduz-se agora em críticas
modo que seja facilmente compreendida, deve dirigir-se à contundentes ao romantismo, movimento literário
inteligência do público, tão simples em sua dicção quanto que, a seu ver, inoculou no espírito dos jovens o
profunda em sua moralidade, de sorte que se insinue facil- desânimo, o ceticismo, a revolta e a descrença nas
mente por seu espírito, que se introduza sem esforço em sua instituições sociais:
consciência, para ali deixar implantada a semente instrutiva
que lhe deve ofertar e cuja germinação deve fazer todo o Os sentimentos mais puros do coração, as conveniências
seu fim, todo o interesse de seu efeito. mais melindrosas da sociedade, as mais sagradas leis da re-
ligião e do estado, tudo foi esquecido ou desprezado.
É curioso notar que Quintino Bocaiúva não se A autoridade quer doméstica, quer pública, ridiculari-
refere uma única vez aos dramaturgos franceses ou zada e apupada na cena, os dogmas mais sacrossantos da fi-
às comédias realistas que viu no Ginásio Dramá- losofia e da religião, mal interpretados ou intencionalmente
tico. Suas reflexões, nessa parte do livro, ou são in- torcidos, deram em resultado a desmoralização do povo, o
teiramente teóricas, voltadas para questões gerais, desprezo de todos os deveres, o afrouxamento das obriga-
tais como a função social do teatro e a natureza da ções sociais, bem como o das obrigações da consciência.
comédia, ou são históricas, para apontar critica- A família ficou sendo uma instituição ridícula, a autori-
mente os momentos em que a comédia adquiriu dade um boneco espantalho a quem se pateava e escarnecia.
aspectos satÍricos e farsescos. Para o autor, que
prefere Menandro a Aristófanes, só com Moliêre Quanto ao teatro, especificamente, Quintino
houve a regeneração da comédia, a reforma neces- Bocaiúva estabelece uma oposição entre a drama-
sária para demonstrar que esse gênero "não era, turgia clássica e a romântica, demonstrando maior
nem a sátira como supuseram alguns, nem a farsa, simpatia pela primeira, que busca a clareza, a aná-
como compreenderam outros". A seu ver, infeliz- lise de caracteres, o intuito moralizador, ao contrá-
mente, Moliere não teve seguidores. Depois dele, rio da segunda, que valoriza o enredo complicado,
"a comédia morreu': abastardada e corrompida por o lance de efeito e o imprevisto. A descrição da
uma "tradição infiel" da herança que nos deixara. ação dramática romântica merece ser transcrita,
Quintino Bocaiúva faz evidentemente uma apre- para se perceber melhor a visão crítica do autor.
ciação equivocada de Moliêre, julgando-o apenas pe- Na sua linguagem um tanto carregada de exageros

• 2°9
História do Teatro Brasileiro • volume J

e preciosismo retórico, ele afirma que os autores poetas. Mas Quintino Bocaiúva, liberal em política
românticos têm conseguido desde muito jovem e entusiasta dos valores éticos
da burguesia, não queria para o Brasil - um país
amarrar o espectador a um pensamento, conduzi-lo desca- novo experimentando o seu primeiro surto de pro-
beladarnenre por um caminho largo e escabroso, bordado gresso em moldes capitalistas, como consequência
de mil precipícios, historiado de mil horrores, entravado de da interrupção do tráfico de escravos - o irraciona-
obstáculos humanamente insuperáveis, cercado de abismos lismo romântico, altamente destrutivo e pessimista.
e trevas, só lá de quando em quando apontando-lhe uma As peças realistas francesas haviam mostrado para
luz frouxa e mal distinta". ele exatamente o contrário, ou seja, que o teatro
podia exercer uma influência benéfica no espírito
E isso "para aumentar-lhe o tormento, fazê-lo do espectador, incutindo-lhe bons sentimentos.
tressuar nas vascas de uma agonia sem termo, à O gênero adequado para cumprir essa função era,
semelhança do náufrago que no desespero de sua a seu ver, a alta comédia de fundo realista, cujas
aflição divisa ao longe a luz trêmula e indecisa, de características principais são o assunto dos últimos
um farol, que lhe não pode valer". capítulos do livro. Lá estão as sugestões para que os
Essa passagem mostra claramente como o autores brasileiros não percam de vista a "verdade
drama romântico foi contaminado pelo melo- em sua descrição", para que busquem um pensa-
drama, ao incorporar os exageros típicos de seu mento "nobre e elevado': para que não se esqueçam
enredo mirabolante. E não pense o leitor que a da finalidade moral do teatro.
descrição terminou. Na sequência, o texto ganha Para demonstrar que poderia ir além das teorias
ainda mais colorido: e contribuir de maneira concreta para a renova-
ção do teatro brasileiro, nos moldes do realismo
E nesse tresloucado passeio vão ambos, espectador e teatral francês, Quintino Bocaiúva escreveu pelo
poeta, arrastados pelo mesmo carro, tropeçando nos menos duas peças que foram encenadas com bas-
mesmos embaraços, cansando-se na mesma carreira, des- tante sucesso, como já visto em capítulo anterior.
pedaçando-se as carnes contra as mesmas farpas, até che- Com a primeira, Onfália, em 1860, abordou o tema
garem extenuados de fadiga, assombrados de tanto horror, polêmico da prostituição, retratando com eficácia
ofegantes, pálidos, desfigurados e túrbídos, ao termo fatal o demi-monde fluminense; com a segunda, Os
e inevitável desse galope infernal, em cujo ímpeto a ima- Mineiros da Desgraça, em 186 I, tratou da question
ginação tem perdido todas as ilusões, a personagem toda dargent, ridicularizando e criticando a prática da
a configuração de seu caráter, o poeta toda a seiva de seu usura. Em outras intervenções como folhetinista,
gênio, e o espectador todo seu interesse no esforço de seu o autor ratificou os pontos de vista que defendeu
alento, para chegarem finalmente a esse POntO extremo de como espectador do Ginásio e dramaturgo. Jamais
todas as composições modernas, isto é, à sublimidade do deixou de considerar o teatro como um meio de
horrível, à divinização do horror, à apoteose da agonia e instrução pública, de aperfeiçoamento moral do
do assombro! cidadão. Eis um último exemplo - tirado de um
folhetim publicado no Diário do Rio de Janeiro
Uma dramaturgia com essas caracteristicas de 4 de outubro de 1862 e escrito a propósito
requer interpretações igualmente exageradas, que da encenação de Lusbela, de Joaquim Manuel de
Quintino Bocaiúva condena em dois ou três pa- Macedo - para que não pairem dúvidas sobre seu
rágrafos. Os mesmos defeitos das obras, observa, entendimento da arte teatral:
hão de aparecer também na cena, no trabalho do
ater. Assim, condena o romantismo em bloco, Ilustrar os espíritos e moralizar os costumes; instruir e edi-
chamando-o de "escola das desordens e da anar- ficar as consciências; ampliar a esfera das ideias que exaltam
quia literária". Essas críticas, é preciso lembrar, são a alma e limitar a esfera das paixões que a desvairam, tal me
feitas num momento em que a estética romântica parece ser o método mais conveniente para alcançar-se o
ainda era hegemônica entre os nossos romancistas e aperfeiçoamento das sociedades humanas.

• 210
• o Teatro Realista

DaS formas literárias que melhor se prestam a essa edu- nacionais. Lamentava esse fato porque o sucesso
cação, considero o drama a mais enérgica, a mais eficaz, a que haviam obtido as comédias de Martins Pena,
mais produtiva de bons resultados. Macedo e Alencar em passado recente era prova de
E, se me é lícita a manifestação de um sentimento pes- que o público aplaudia as peças brasileiras e que era
soal, que no seu tanto interessa a minha vaidade de escri- possível formar um repertório maior do que aquele
tor, direi que essa é a razão de minha predileção por esse que havia. Retomando a proposta feita por Alen-
gênero literário. Levado por uma imprudência desculpável car no texto "A Comédia Brasileira", proclamava
já o acometi por vezes. E é justamente em desforra dessa então a necessidade da criação do teatro nacional
temeridade que eu aplaudo com ardor todos os esforços e apontava igualmente o realismo teatral francês,
que triunfam. chamado de "escola moderna", como modelo:

A escola moderna presta-se precisamente ao gOSto da atua-


Machado de Assis lidade. As MulheresdeMármore- O Mundo Equívoco - A
Dama das Camélias - agradaram, apesar de traduções. As
Os textos críticos de José de Alencar, Joaquim Ma- tentativas do sr. Alencar tiveram um lisonjeiro sucesso.
nuel de Macedo e Quintino Bocaiúva foram possivel- Que mais querem? A transformação literária e social foi
mente lidos por Machado de Assis, que se interessou exatarnente compreendida pelo povo; e as antigas ideias, os
vivamente pelo teatro no início de sua carreira lite- cultos inveterados, vão caindo à proporção que a reforma
rária. Aos 17 anos, em 1856, ele arriscou algumas se realiza. Qual é o homem de gosto que atura no século
opiniões sobre o teatro num texto intitulado "Idéias XIX uma punhalada insulsa tragicamente administrada, ou
Vagas"e publicado naMannotaFluminense de 31 de os trocadilhos sensaborões da antiga farsa?
julho. Apesar do conhecimento precário da matéria, Não divaguemos mais; a questão toda está neste pOnto.
afirmava sua crença no teatro como termómetro da Removidos os obstáculos que impedem a criação do teatro
civilização de um povo e apontava o parentesco entre nacional, as vocações dramáticas devem estudar a escola
o teatro e a imprensa, ambos a indicar o estágio em moderna. Se uma parte do povo ainda está aferrada às an-
que se encontra uma sociedade. Entendendo o teatro tigas ideias, cumpre ao talento educá-la, chamá-la à esfera
como lugar de "dístração e ensino': condenava o ele- das ideias novas, das reformas, dos princípios dominantes.
mento burlesco e os recursos do baixo cômico, que, É assim que o teatro nascerá e viverá; é assim que se há de
em sua opinião, deseducavam o público e o afastavam construir um edifício de proporções tão colossais e de um
das boas produções dramáticas. futuro tão grandioso?".
No todo, o texto revela o deslumbramento de
um jovem intelectual que começa a frequentar Como se vê, o jovem Machado colocava-se como
os teatros e percebe na "comédia moderna" o seu aliado da renovação teatral que ocorria no palco do
intuito de reproduzir em cena a vida social para Ginásio Dramático, mencionando aspeças francesas
corrigi-la com lições moralizadoras. ali representadas. Os recursos do velho teatro ro-
É certo que Machado acompanhou o movi- mântico ou da comicidade farsesca são desprezados,
mento teatral e frequentou o Ginásio antes de es- em nome de uma dramaturgia que devia nascer do
crever o seu primeiro texto importante de crítica estudo da vida social contemporânea.
literária, "O Passado, o Presente e o Futuro da Lite- No segundo semestre de 1859, 1vIachado pôde
ratura': que o jornalA Marmota publicou em abril dedicar-se com mais empenho ao debate teatral.
de 1858. Toda a parte final desse texto, dedicada ao Tornou-se crítico de OEspelho, hebdomadário que
teatro, dá a entender que o autor estava a par do que circulou no Rio de Janeiro a partir de 4 de setem-
se passava nos palcos do S. Pedro de Alcântara e bro e que fechou as portas a 8 de janeiro do ano
do Ginásio Dramático. Severo em seu diagnóstico, seguinte. Nesse pequeno jornal, assinou a "Revista
começava por condenar o excesso de traduções em de Teatros': escrevendo dezoito textos críticos. Nos
nossa cena, atribuindo a culpa aos empresários, que
preferiam encenar traduções a animar os autores
70 Machado de Assis, Do Teatro...,p. II3-II4.

• 211
História do Teatro 'Brasileiro • volume 1

números 4, 5 e 17 publicou também as suas "Ideias folhetim, dando continuidade às reflexões sobre o
sobre o Teatro': artigos nos quais não comentava os teatro brasileiro, o escritor preconiza a existência
espetáculos em cartaz, mas discorria sobre a situa- de uma dramaturgia forte, sem a qual a cena brasi-
ção e os problemas do teatro brasileiro. leira deixa de ter "cunho nacional': isto é, "deixa de
O primeiro deles apresenta um diagnóstico pes- ser uma reprodução da vida social na esfera de sua
simista do que se passa nos palcos e nas plateias flu- localídade't'". Sem essa característica, seu alcance
mínenses.Machado constata que o teatro no Brasil é moral é limitado e o teatro perde sua função ci-
muito pobre de realizações importantes do ponto de vilizadora: ''A arte destinada a caminhar na van-
vista estético e que apenas acidentalmente desponta guarda do povo como uma preceptora - vai copiar
um talento. Entre as causas dessa pobreza o crítico as sociedades ulrrafronteíras"?'. Destituído de uma
destaca primeiramente a falta de iniciativas dos dramaturgia voltada para as questões nacionais, o
empresários teatrais e do governo, que teria trans- teatro não se realiza como o "canal de iniciação"
formado a arte dramática numa "carreira pública: que deve ser, assim como o "meio de propaganda'
com suas "subvenções improdutivas, empregadas mais eficaz de que o homem dispõe para a afirma-
na aquisição de individualidades parasitas'?" Sem ção e defesa dos seus ideais. O que Machado que-
nomear ninguém, as palavras, duríssimas, referiam- ria para o Brasil, em suma, era um teatro realista,
-se provavelmente a João Caetano, o único artista civilizador, formado por peças que retratassem os
dramático e empresário que recebia subvenção do costumes da nossa vida social com o objetivo de
governo. O repertório inadequado, sem qualidade li- melhorá-los por meio da crítica moralizadora.
terária, das companhias dramáticas subvencionadas, Deve-se lembrar que, na altura em que essaspala-
teria contribuído para a má formação cultural da pla- vras foram escritas, apenas José de Alencar havia apa-
teia, que via o teatro apenas como um passatempo. recido no cenário teatral brasileiro com peças feitas
Esse estado de coisas necessitava de reformas. com base no modelo do realismo teatral francês. Nos
As mudanças viriam apenas com iniciativas que anos seguintes, porém, Machado vai acompanhar de
não deviam se restringir a resolver os problemas perto e aplaudir o surgimento de uma dezena de dra-
relativos ao palco, mas também atingir a plateia. maturgos que fornecerão ao Ginásio Dramático um
Era preciso educá-la para aproximá-la das novas conjunto nada desprezível de peças que abordam os
concepções teatrais trazidas pelo realismo teatral: costumes da burguesia emergente do Rio de Janeiro,
com propósito moralizador.
o teatro é para o povo o que o Coro era para o antigo teatro Quanto ao terceiro artigo, trata-se de uma
grego; uma iniciativa de moral e civilização. Ora não se crítica às limitações impostas ao Conservatório
pode moralizar fatos de pura abstração em proveito das Dramático, que, organizado apenas para cuidar das
sociedades; a arte não deve desvairar-se no doido infinito questões morais, não tinha autoridade para proibir
das concepções ideais, mas identificar-se com o fundo das as peças mal escritas de subir à cena. Esse folhetim
massas; copiar, acompanhar o povo em seus diferentes foi republicado com pequenas modificações no
movimentos, nos vários modos e transformações da sua jornal A Marmota, de 13 de março de 1860. Era,
atividade. na verdade, a primeira metade de um artigo, que
Copiar a civilização existente e adicionar-lhe uma par- teve sequência no mesmo jornal, três dias depois.
tícula, é uma das forças mais produtivas com que conta a Machado reforça os argumentos em favor de uma
sociedade em sua marcha de progresso ascendente. reforma no Conservatório, no sentido de dar-lhe
Assim os desvios de uma sociedade de transição lá vão a autoridade de uma censura literária. Não quer
passando e à arte moderna toca corrigi-la de todo/ 2 que os censores se vejam obrigados a aprovar "as
frioleiras mais insensatas que o teatro entendesse
A "partícula" que se deve adicionar ao retrato qualificar de composição dramática"?'. Quer que o
da sociedade é o traço moralizador. No segundo
73 Idem,P: 136.
71 Idem, P: 134. 74 Idem,ibidem.
72 Idem,p. 132. 75 Idem,P: 219

• 212
• o Teatro Realista

Machado de Assis em fotografia tirada no estúdio do fotógrafo Insley Pacheco, em 1864-

21
• 3
Historia do Teatro Brasileiro • volume 1

Conservatório Dramático tenha o direito de "re- em cenaA Nova Castro, tragédia neoclássica deJoão
provar, e proibir por incapacidade intelectual'f", Batista Gomes Júnior, que vinha oferecendo ao pú-
que se torne um "tribunal de censura", "uma mu- blico desde 1839, escreveu em outubro de 1859:
ralha de inteligências às irrupções intempestivas
que o capricho quisesse fazer no mundo da arte, Aprecio o sr.João Caetano, conheço a sua posição brilhante
às bacanais indecentes e parvas que ofendessem a na galeria dramática de nossa terra. Artista dotado de um
dignidade do tablado'?". raro talento escreveu muitas das mais belas páginas da arte.
A posição de Machado pode parecer, hoje, ex- Havia nele vigorosa iniciativa a esperar. Desejo, como de-
tremamente autoritária. Até no tom enfático das sejaram os que protestaram contra a velha religião da arte,
suas palavrasMas ele não estava sozinho na defesa que debaixo de sua mão poderosa a plateia de seu teatro se
da ideia de que o governo devia zelar pelo patri- eduque e tome uma outra face, uma nova direção; ela se
mônio artístico da nação. Além disso, ao postular converteria decerto às suas ideias e não oscilaria emre as
maior autoridade para o Conservatório, quer vê-lo composições-múmias que desfilam simultâneas em procis-
constituído por membros inteligentes e cultos, dar- são pelo seu tablado".
-lhe transparência com a divulgação dos pareceres
devidamente assinados pelos censores. Tudo isso Alencar e Quintino Bocaiúva, como já vimos,
protegeria a plateia da má literatura, do mau teatro, haviam feito críticas semelhantes e pedido a João
além de propiciar o desenvolvimento da literatura Caetano que deixasse de se preocupar com a glória
dramática do país. Em resumo: "Um Conservató- pessoal e que trabalhasse pelo futuro do teatro bra-
rio ilustrado em absoluto, é uma garantia para o sileiro.Machado firmou sua posição, como crítico,
teatro, para a plateia e para a literatura":". e em outros folhetins repetiu os ataques, uma vez
Foram esses conceitos comentados acima que que o ator continuou a recorrer às peças de seu
guiaram o crítico militante na análise e interpretação velho repertório. Se elogiou o seu desempenho no
dos espetáculos teatrais que viu nos palcos do Rio de melodrama Simãoou O Vélho Cabo deEsquadra, de
Janeiro entre setembro de 1859 e janeiro de 1860. Adolphe Dennery e Dumanoir, censurou-o aspe-
De um modo geral, Machado contrapôs quase ramente por reencenar O Sineirode São Paulo, de
todo o tempo as encenações do S. Pedro de Alcân- Joseph Bouchardy. Arrancado "do pó do arquivo':
tara e do Ginásio Dramático, deixando um tanto velho "na forma e no fundo; pautado sobre os pre-
à margem dos comentários os espetáculos dados ceitos de uma escola decaída, limpo totalmente de
no Teatro S. Januário, cuja localização, longe do mérito literário"!", esse melodrama era um "regalo
centro, era sempre motivo de reclamação. de antepassados infantes que mediam o mérito
Machado foi um crítico preocupado com todos dramático de uma peça pelo número dos abalos
os aspectos da montagem teatral, mas escreveu nervosos"!'. Nesse folhetim, de 13 de novembro
pouco sobre os cenários e os figurinos que viu nos de 1859, Machado vai ainda mais longe em suas
palcos, detendo-se mais na análise das peças e em críticas: vê defeitos no trabalho e no caráter do ator,
considerações sobre os desempenhos dos artistas. Coloca-se como alguém que tem ilusões, que acre-
Pode-se dizer que raras vezes Machado dirigiu dita que "a fortuna pública não está só em um farto
elogios aJoão Caetano ou aos melodramas e dra- erário, mas também na acumulação e circulação de
malhões ultrarromânticos por ele representados. uma riqueza moral"82. Palavras duras, acrescidas de
Reconhecia o talento do famoso ato r, mas não tile outras, nas quais afirma ver a arte não como uma
perdoava o repertório anacrónico, a falta de inicIa- "carreira pública': mas como "uma aspiração nobre,
tiva para se atualizar enquanto artista, o que signi- uma iniciativa civilizadora e um culto nacional"!'.
ficava manter o seu público distanciado das novas
tendências teatrais. QuandoJoão Caetano recolocou 79 Idem, p. 145.
80 Idem, P: 171.
76 Idem, P: 220 81 Idem, P: 172.
77 Idem, ibidem. 82 Idem, p. 171.
78 Idem, p. 221. 83 Idem, ibidem.

21
• 4
• o Teatro Realista

Quando João Caetano morreu, em agosto de escola realista. Pertenço a esta última por mais sen-
I 863, Machado reiterou os elogios ao talento do sata, mais natural, e de mais iniciativa moralizadora
ator e as críticas ao empresário teatral. "Ninguém e civilízadora'f". No mesmo texto, as referências ao
o igualou na tragédia e no drama': afirmou em suas "desfecho sanguinolento" e "nada conforme com o
"Conversas Hebdomadárias", acrescentando que gosto dramático rnoderno'f" do drama Cobé, de J oa-
via nele uma intuição poderosa, que compensava quim Manuel de Macedo, representado no Teatro
a falta de estudos regulares sobre a arte do intér- S. Pedro de Alcântara, evidenciavam ainda mais a
prete. "Dotado de talento superior e admiráveis sua inclinação pelo repertório realista.
dotes': destacava-se dos demais, uma vez que tinha, Nos folhetins seguintes, sem ser condescen-
"nas ocasiões supremas, uma inspiração que em dente com as peças e espetáculos que julgava mal
vão se procurará nos talentos de ordem inferior"84. realizados, Machado acompanhou com simpatia
Machado lembrou ainda a qualidade superior do e boa vontade o trabalho do Ginásio. Fez elogios
desempenho da personagem Augusto, da tragédia a várias comédias e dramas que considerou repre-
Cinna, de Corneille, mas contrapôs aos elogios os sentativos da "escola moderna': como As Mulheres
defeitos do ater-empresário que fazia muitas conces- Terríveis, de Dumanoir; A Honra de uma Família,
sões à plateia. Vítima de seu próprio sucesso e - por encenada sem indicação de autoria; A Probidade e
que não? - da sua vaidade,]cão Caetano deixou-se Dois Mundos, do dramaturgo português César de
levar pelos aplausos fáceis e pel~ bilheteria, mere- Lacerda; A Dama das Camélias, de Dumas Filho. E
cendo por isso duras reprimendas de Machado. O restrições a outras peças que o Ginásio pôs em cena,
crítico militante não se conformava em ver o maior a despeito de não pertencerem ao repertório mo-
teatro do Rio de Janeiro nas mãos de um ator que dernó, comolvIigue0 o Torneiro, de José Romano,
não abdicava de suas velhas concepções teatrais. e Valentina, também representada sem o nome
Claro está que, ao se contrapor dessa maneira do autor, como era comum na época. Por vezes,
aJoão Caetano e ao Teatro S. Pedro de Alcântara, ao fazer uma consideração teórica ou um elogio,
Machado comportava-se como adepto quase irres- Machado deixava escapar o conceito que o guiava
trito do Teatro Ginásio Dramático. De fato, já em em seu julgamento. Assim, por exemplo, aprecia o
seu terceiro folhetim, de 25 de setembro de 18 59, dramaLuís, de Ernesto Cibrão, porque as persona-
podemos ler uma apreciação do "querido Ginásio': gens são verdadeiras e "estão bem reproduzidas". O
o "primeiro da capital': nestes termos: teatro é considerado "reprodução da vida real" no
folhetim de 6 de novembro. E a I I de dezembro
Em sua vida laboriosa ele nos tem dado, horas aprazíveis, todo um parágrafo explica seu modo de pensar:
acontecimentos notáveis para a arte. Iniciou ao público da
capital, então sufocado na poeira do romantismo, a nova A leitora sabe que o clássico não é o meu forte; aplaudo-lhe
transformação da arte - que invadia então a esfera social". os traços bons, mas não o aceito como forma útil ao século.
Digo forma útil, porque eu tenho a inqualificável rnonoma-
Em outras palavras, o Ginásio revelou para os nia de não tomar a arte pela arte, mas a arte, como a toma
brasileiros as peças do realismo teatral francês, Hugo, missão social, missão nacional e missão humana",
com as quais conquistou a simpatia da jovem inte-
lectualidade. Machado entusiasmou-se tanto que As diferenças entre o Ginásio Dramático e o S.
logo em seu primeiro folhetim, de I I de setembro, Pedro de Alcântara não se resumiam ao repertório.
esclareceu sua posição. Ao comentar a encenação Eram visíveis também no terreno da interpretação.
do drama OAsno Morto, adaptação do romance ho- Enquanto João Caetano não economizava os exa-
mônimo de Jules Janin por 1héodore Barriere, afir- geros típicos do ator romântico - gestos arreba-
mou: "O Asno lvIorto pertence à escola romântica tados, fisionomia carregada, voz impostada etc. -,
e foi ousado pisando a cena em que tem reinado a
86 Idem, P: II9.
84 Idem, p. 39. 87 Idem, P: 120.
85 Idern.p.Yz.y. 88 Idem, p. 192.

21
• 5
História do Teatro Brasileiro • volume 1

ateres como Furtado Coelho e Joaquim Augusto tinham trabalhado com João Caetano em passado
procuravam atingir o máximo de naturalidade em recente. Para ele, progresso significava abandonar
seus desempenhos, visando ao efeito realista. Ma- os exageros da interpretação romântica e adorar a
chado foi muito atento ao trabalho dos artistas e, naturalidade realista. Assim, no folhetim de 25 de
coerente com as suas ideias, criticou os exageros setembro considera que o ator Heller progrediu
que viu em cena. Um dos seus alvos preferidos fpi bastante desde que começara a trabalhar no Gi-
o ator Barbosa, do S. Pedro de Alcântara, que o ir- násio e que seu talento "andava encoberto quando
ritava com suas "contorções de corpo e fisionomia" errava lá pelas constelações do romântico">, A 25
entre outros recursos de interpretação. Eis o que de dezembro, afirma o mesmo sobre a atriz Teresa
escreve no folhetim de I I de dezembro: Martins, que antes se prejudicava pela "escola vi-
I ciosa em que estava"?'. Também Joaquim Augusto,
i
Fez de uma criação grosseira uma entidade banal. Locução a seu ver, melhorou os desempenhos depois que
laboriosa, arrastada, com os 17 de carrinho, e as frases pro- passou para o Ginásio.
nunciadas gota a gota; gesto grotesco, contorções de corpo Os maiores elogios Machado destinou-os a Fur-
e de fisionomia, eis pouco mais ou menos o belchior d~s tado Coelho, o grande artífice do realismo teatral
Dez Contos de Papelote", na cena brasileira. Admirava a naturalidade do ator:
ele não gritava, era elegante, tinha voz agradável e
Machado criticou outros artistas da companhia evitava qualquer tipo de exagero na interpretação
dramática de João Caetano que, a seu ver, extrapo- das personagens das comédias realistas.
laram os limites da boa interpretação, caindo e~ Entre as atrizes do Ginásio, a preferência de Ma-
exagerosmelodramáticos ou demonstrando poucp chado recaía sobre Gabriela da Cunha. Tinha algum
estudo dos papéis. Mas reservou elogios para lvIaf- apreço por Maria Velluti e considerava Eugênia Câ-
tinho Corrêa Vasques, reconhecendo-lhe o talento mara - a futura amante de Castro Alves - uma atriz
cômico, e para Ludovina Soares da Costa, atrik limitada pelo estro cômico. Pouco escreveu sobre
portuguesa que chegara ao Brasil em 1829, aos 2t Adelaide Amaral, que não fazia parte do Ginásio
anos, já com fama de grande intérprete de tragédias. em 1859, mas que havia se destacado nas tempora-
Para Machado - folhetim de I I de dezembro - ela das de 1857 e 1858, como atríz que compreendera
era a "trágica eminente, na majestade do porte, da perfeitamente a noção de naturalidade, depois de ter
voz e do gesto, figura talhada por um quinto ato de trabalhado comJoão Caetano.
Corneille, trágica - pelo gênio e pela arte, com as O que se pode concluir, acerca das críticas tea-
virtudes da escola e poucos dos seus vícios"?". trais publicadas n' O Espelho, é que elas nos dão um
Passando aos artistas do Ginásio, os comentários retrato acabado do crítico militante, que pôs sua
de Machado obedeceram a uma constante. Toda vez pena a serviço da renovação do teatro brasileiro,
que via no palco um desempenho menos enfático"e apoiando fortemente o realismo teatral. Mas já em
mais natural, baseado no emprego adequado da voz, 1860, quando começa a escrever num jornal mais
dos gestos, da postura, regozijava-se. Quando issonão importante, o Diário do Rio deJaneiro, Machado
acontecia, chamava a atenção do artista, orientava-o. revê seu posicionamento e afirma, na primeira
Assim foi, por exemplo, com Militão. No folhetim "Revista Dramática': a 29 de março, que suas opi-
de 16 de outubro pede-lhe mais naturalidade no niões sobre o teatro são "eclétícas em absoluto':
desempenho de seu papel na comédia Ovos de Ouro acrescentando:
e lhe sugere certa negligência em cena, como que se
esquecendo "do público que tem diante de Si"9 I • Não subscrevo, em sua totalidade, as máximas da escola
Outro comentário que Machado gostava de realista, nem aceito, em toda a sua plenitude, a escola das
fazer dizia respeito ao progresso dos artistas que absrrações românticas; admito e aplaudo o drama como

89 Idem,p.194-195.
90 Idem, P: 193. 92 Idem, p. 127.
91 Idem, p. 150. 93 Idem, p. 203.

• 216
• o Teatro Realista

a forma absoluta do teatro, mas nem por isso condeno as Dramático. Nos dezesseis pareceres que emitiu,
cenas admiráveis de Corneille e Racine", não poupou as peças mal escritas, as comédias
Apesar dessas palavras, Machado continua a que não passavam de "baboseiras" e os dramas
acreditar que o teatro é um "grande canal de propa- incongruentes. 1YIas reservou elogios às peças do
ganda".1Yfas escrevendo em jornal maior, procurou realismo teatral francês, como Os Descarados e As
colocar-se acima das escolas literárias, abraçando Leoas Pobres, de Émile Augier.
critérios estéticos, como esclareceu ao afirmar que Outro assunto que aparece bastante nos folhe-
o belo não era exclusivo de nenhuma forma dramá- tins de Machado é o da situação de abandono do
tica, mas do trabalho do artista: teatro brasileiro por parte do governo imperial.
Num debate com Macedo Soares, para quem o
Entendo que o belo pode existir mais revelado em uma forma governo não devia subsidiar companhias dramáti-
menos imperfeita, mas não é exclusivo de uma só forma dra- cas, deixando-as concorrer entre si, opôs-se firme-
mática. Encontro-o no verso valente da tragédia, como na mente a tal ideia. No folhetim de 16 de dezembro
frase ligeira e fácil com que a comédia nos fala ao espírito?'. de 1861, citou Victor Hugo para demonstrar que
o teatro não era uma "indústria': que as peças não
Entre 1860 e 1865, Machado acompanhou de eram "mercadorias': que o governo devia ter, sim,
perto todo o movimento nos palcos fluminenses e uma responsabilidade em relação à arte. Afinal,
o registrou nos folhetins que escreveu para o Diário "criar no teatro uma escola de arte, de língua e de ci-
do Rio de]aneiro, entre outubro de 1861 e maio vilização não é obra da concorrência". Como jamais
de 1862; para O Futuro, entre setembro de 1862 foi atendido, em vários folhetins Machado lamenta
e julho de 1863; e novamente para o Diário, entre que não se tenha criado naqueles anos um "teatro
junho de 1864 e maio de 1865. Seus comentários normal': isto é, uma companhia dramática admi-
são às vezes mais curtos, às vezes mais longos, mas nistrada pelo governo, junto da qual funcionaria
jamais desprovidos de importância. Eles nos permi- uma escola de formação de ateres. Nesse sentido,
tem compreender melhor as suas ideias teatrais, e fazia coro com Joaquim Manuel de Macedo, como
também acompanhar a própria evolução do teatro se viu alguns passos atrás.
brasileiro no período. As intervenções do escritor no debate cultural
Quanto ao primeiro ponto, pode-se dizer que foram bastante abrangentes. Como crítico teatral
o escritor continuou a valorizar o realismo teatral, e folhetinista, escreveu sobre a maior parte dos
isto é, a dramaturgia preocupada com a natu- espetáculos teatrais que se realizaram no Rio de
ralidade e a moralidade na cena. 1YIas isso não o Janeiro entre setembro de 1859 e maio de 1865,
impediu de avaliar positivamente alguns dramas quando deixa de assinar os folhetins semanais do
românticos, como Angelo, de Victor Hugo, ou os Diário do Rio de]aneiro.1Yfais que isso, expôs com
desempenhos da maior atriz portuguesa da época, franqueza suas ideias sobre o teatro, elogiou e cri-
Emília das Neves, que se apresentou no Rio de Ja- ticou os intérpretes que viu nos palcos, deliciou-se
neiro em 1864 e 1865, com um repertório quase com os espetáculos protagonizados por Emília
que totalmente romântico. Essa imparcialidade das Neves, discorreu sobre a forma de organização
em relação às duas estéticas teatrais lhe permitiu das companhias dramáticas, além de reivindicar o
acompanhar o fortalecimento do realismo teatral tempo todo a melhoria das condições de trabalho
no palco do Ginásio, com o surgimento de vários para os artistas e a proteção do governo para a arte.
dramaturgos brasileiros, de maneira mais objetiva, No ano de 1865, o teatro de cunho literário
distribuindo parcimoniosamente os elogios e apon- que vinha sendo hegemônico nos palcos do Rio
tando os defeitos das peças menos bem realizadas. de Janeiro sofre um forte revés. Desde 1859, o
Nesse período, entre 1862 e 1864, Machado foi pequeno teatro Alcazar Lyrique vinha oferecendo
também um rigoroso censor do Conservatório um outro tipo de espetáculo, baseado na alegria,
na música ligeira, na malícia e na beleza das mu-
94 Idem, P: 222-223.
95 Idem, p. 223
lheres. O público, gradativamente, foi trocando as

21
• 7
História do Teatro Brasileiro • volume 1

peças recheadas de preocupações literárias e lições há é um resto de hábito que ainda reúne nas plateias al-
edificantes pelas cançonetas, cenas cómicas, duetos guns espectadores; nada mais. Que os poetas dramáticos,
cômicos e pequenos vaudeviles vindos diretamente já desiludidos da cena, contemplem atentamente este
de Paris, assim como as artistas, e apresentados em fúnebre espetáculo: não os aconselhamos, mas é talvez
francês. O golpe de misericórdia sobre o chamado agora que tinha cabimento a resolução do autor das Asas
teatro sério veio em fevereiro de 1865, quando o de um Anjo: quebrar a pena e fazer dos pedaços uma cruz 96 •
Alcazar estreou a opereta Orphée aux enfers, mú-
sica de Offenbach, texto de Hector Crémieux e A referência ao desabafo de Alencar, estampado
Ludovic Halévy, com sucesso extraordinário. Nos no final de um artigo em que protestou contra a
anúncios dos jornais de 28 de dezembro de 1865, proibição imposta pela polícia a As Asas de um
podia-se ler que a peça já havia sido representada Anjo, em 1858, vem à mente de Machado como
150 vezes. Ou seja, a enorme afluência do público exemplo de atitude irada contra um abuso inacei-
sinalizava para os empresários teatrais o caminho tável ou uma situação artística deplorável. Estava
fácil para o lucro. A menos que fossem tomadas apenas no começo o processo de substituição do
medidas para salvar o teatro de cunho literário, teatro de cunho literário pelas formas mais popu-
seus dias estavam contados. É com esse quadro em lares da opereta, da mágica e da revista de ano em
mente que Machado abre o importante artigo "O nossos palcos. E o crítico sensível, desgostoso em
Teatro Nacional", publicado no Diário do Rio de ver que o teatro estava perdendo as suas funções de
Janeiro, de 13 de fevereiro de 1866: educar o público e aprimorar seu gosto artístico,
não escondeu o pessimismo diante da situação,
Há uns bons trinta anos o Misantropo e o Tartuft faziam prevendo um futuro de "completa dissolução da
as delícias da sociedade fluminense; hoje seria difícil res- arte", se não fossem tomadas as medidas corretas
suscitar as duas imortais comédias. Quererá isto dizer para evitar o desastre iminente. Os sinais já estavam
que, abandonando os modelos clássicos, a estima do pú- dados: depois das tragédias clássicas, dos dramas
blico favorece a reforma romântica ou a reforma realista? românticos e das comédias realistas, o teatro que
Também não; Molíêre, Victor Hugo, Dumas Filho, tudo se anunciava servia apenas "para desenfastiar o es-
passou de moda; não há preferências nem simpatias. O que pírito, nos dias de maior aborrecimenro'w,

96 Idem, p. 395.
97 Idem, p. 396.

• 2I8
IV.
O Teatro de Entretenimento
e as Tentativas Naturalistas

r. o TEATRO CÔMICO E MUSICADO: nós, de outras operetas concebidas por Offenbach


OPERETAS, MÁGICAS, ou por Charles Lecocq, para citar os mais requi-
sitados. Os homens de teatro brasileiros viram-se
REVISTAS DE ANO E BURLETAS
estimulados a traduzir, adaptar e a escrever esse tipo
de peça que o público do Rio de Janeiro e de outras
o teatro romântico e o realista, com suas preocupa- cidades aplaudiu com entusiasmo. Os empresários
ções literárias, começaram a perder público a partir teatrais exploraram incansavelmente a opereta e as
de 1859, quando foi criado no Rio de Janeiro o outras formas dramáticas cômicas e musicadas, que
teatro Alcazar Lyrique, pelo empresário Joseph Ar- foram surgindo e consolidando o gosto teatral das
naud. A plateia masculina em especial foi seduzida nossas plateias nos últimos decênios do século XIX.
pelo ambiente de cabaré - podia-se beber nas me-
sas dispostas diante do palco - e pelos espetáculos
baseados na música, na dança, na beleza das mu- A Opereta
lheres e na malícia com que eram representados os
duetos, os pequenos vaudeviles e as cenas cômicas. O sucesso da opereta deveu-se inicialmente ao ale-
O repertório, inteiramente francês, era apresentado mão Jacques Offenbach, que na segunda metade
na língua original, principalmente por atrizes dos anos de 1850, em Paris, ocupou o Théâtre des
francesas contratadas para passar temporadas no Bouffes-Parisiens, onde apresentava espetáculos
Brasil. Com o sucesso crescente desse teatro que era compostos por dois ou três esquetes de um ato
puro entretenimento, vários escritores deixaram de cada, sempre em tons farsescos e satÍricos, e entre-
escrever peças e não poucos intelectuais protesta- meados por números musicais executados por uma
ram nos jornais e revistas contra o avanço do teatro orquestra de dezesseis músicos. Foi em 1858 que
cômico e musicado, que não tardaria em se tornar ele estreou sua primeira obra-prima, Orphée aux
hegemônico nos palcos fluminenses. enfers, uma deliciosa e trepidante paródia do mito
Em fevereiro de 1865, o Alcazar estreou a ope- grego de Orfeu, o músico apaixonado que desce ao
reta - ou ópera-bufa - Orphée aux enfers, música inferno à procura da amada. Pouco tempo depois,
de Offenbach, texto de Hector Crémieux e Ludovic Offenbach escreveu outras operetas (La Belle Hé-
Halévy. Esse espetáculo decidiu a sorte do teatro bra- Iene, 1864; La Vie parisienne, 1866; Barbe-Bteue,
sileiro nas décadas seguintes. Tendo ficado um ano 1867; La Grande-Duchesse de Gérolstein, 1867)
em cartaz, abriu caminho para a encenação, entre que conquistaram Paris e todo o território europeu.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

As notícias sobre o sucesso desse repertório che- francês, e às versões brasileiras em outros teatros.
garam ao Brasil e logo o Alcazar se incumbiu de La Grande-Duchesse de Gérolstein - texto de Henri
colocá-lo em cena. Em 1864, o elenco havia ganho Meilhac e Ludovic Halévy, música de Offenbach -
alguns reforços, com a contratação de novos artis- foi parodiada por Caetano Filgueiras, Manceljoa-
tas franceses, entre os quais a atriz que interpretou quim Ferreira Guimarães e Antônio Maria Barroso
o papel de Eurídice em Orphée aux enfers: Mlle, Pereira, em A Baronesa de Caiapó, representada
Aimée. Famosa por outros dons que não apenas os no Ginásio Dramático em dezembro de 1868. No
artísticos, nem mesmo Machado de Assis escapou ano seguinte, outra obra de Offenbach e da dupla
aos seus encantos, chamando-a de "demoninho Meilhac-Halévy, Barbe-Bleue, ganhou duas versões
louro" em crônica bastante conhecida: "É um de- brasileiras: a primeira, assinada por Augusto de
moninho louro, uma figura esbelta, graciosa, meio Castro, intitulada Barba deMilho e encenada por
angélica, uns olhos vivos, um nariz como o de Safo, Vasques no Teatro Fênix Dramática; a segunda,
uma boca amorosamente fresca, que parece ter sido intitulada Traga-moças, foi feita por Joaquim
formada por duas canções de Ovídio, enfim, a graça Serra, jornalista e intelectual ligado ao teatro. Em
parisiense, toutepure'", 1870, Augusto de Castro inspirou-se em Gauault,
Com Aimée iniciou-se o período áureo do Alca- Minara & Cia., opereta que estava em cartaz no
zar. As principais operetas francesas foram apresen- Alcazar, para escrever a paródia Váz Teles & Cia.
tadas, sempre com sucesso, o que levou escritores O Teatro Fênix Dramática, empresariado por
e artistas brasileiros a se apropriarem do modelo Jacinto Heller e ocupado pela companhia de
oferecido por Offenbach ou por Lecocq" para criar Vasques, transformou-se no concorrente direto
operetas que mantinham as partituras, mas adapta- do Alcazar, alternando porém em seu repertório
vam os enredos aos costumes nacionais. A paródia paródias de operetas francesas e peças de apelo
das operetas francesas tornou-se moeda corrente popular, como as mágicas e os dramas fantásticos.
nos teatros do Rio de Janeiro, sobretudo a partir Vale registrar que foi esse empresário que apostou
de 1868, quando o ator Francisco Corrêa Vasques em Artur Azevedo, encenando em,1876, a peça
pôs em cena, no Teatro Fênix Dramática, Orftu na de estreia do autor maranhense no Rio de Janeiro:
Roça, opereta em que recriou o Orphée aux enfers. A Filha de Maria Angu, paródia da opereta La
À irreverência do original Vasques acrescentou o Fille de Madame Angot, de Siraudin, Clairville e
tempero brasileiro, transformando Orfeu em Ze- Koning, música de Charles Lecocq. Além de con-
ferino Rabeca, barbeiro do arraial, e Eurídice em tar com atores experientes como Vasques, Areias,
Dona Brígida, roceira que sonha em morar no Rio Lisboa e Machado, a companhia de Heller havia
de Janeiro. O rebaixamento típico da farsa atingiu contratado as atrizes francesas Rose Villiot e Del-
os demais personagens (Cupido, Morfeu e Hércu- mary, para interpretar, emA Filha deMaria Angu,
les transformam-se respectivamente em Quinquim em português, os mesmos papéis que haviam repre-
das Moças.]oaquim Preguiça e Antônio Faquista) sentado no Alcazar, na versão original da opereta.
e o próprio enredo, centrado nas brigas conjugais, Esse dado, amplamente divulgado, contribuiu com
nas aventuras e estrepolias do casal protagonista. certeza para o extraordinário sucesso do espetáculo,
O sucesso obtido por Vasques foi ainda maior que atingiu mais de cem récitas consecutivas.
do que o de Orphée aux enfers. E a consequência Estimulado a escrever outras paródias de
disso não tardou a aparecer: o público fluminense operetas francesas, Artur Azevedo não se fez de
podia assistir às operetas francesas no Alcazar, em rogado: ainda em 1876 entregou ao Teatro Fênix
DramáticaA Casadinha de Fresco, paródia de La
Machado de Assis, Do Teatro, P: 330. Petitemariée, música de Charles Lecocq e texto de
2 Um estudioso da opereta explica a diferença entre ambos: "As Leterrier e Vanloo. No ano seguinte, nova paródia
óperas-bufas de Offenbach caracterizam-se pela temática escra-
chada e satírica; os charmosos sucessores de Offenbach (Lecocq, de Offenbach: La BelleHéléne, que tinha libreto de
Audran, Planquette) retomam a temática antes sentimental que Meilhac e Halévy, transforma-se em Abel Helena,
satírica das óperas-cômícas de antigamente" (CE. David Rissin,
Offinbach oule RireemlvJusique, Paris: Fayard, 1980, p. 74). na pena do escritor brasileiro. Encorajado pelos

• 220
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Artur Azevedo, a esposa Adelaide Carolina e a enteada Lucinda, em foto de 1905.

• 221
História do Teatro Brasileiro • volume 1

sucessos obtidos no palco e consciente de que po- material e à locação do teatro. Ao final, o aporte
dia lançar mão do próprio talento para escrever os financeiro necessário para a produção dos espetá-
enredos das operetas, já em 1877 Artur Azevedo culos musicais atingia uma cifra de ordem astro-
arrisca-se como coautor de Nova Viagem ti Lua, nômica. Nesse contexto, um fracasso de bilheteria
dividindo a autoria com Frederico Severo. Nessa poderia significar a ruína do empresário, ao passo
opereta, que estreia no Teatro Fênix Dramática, ele que a situação contrária propiciava o pagamento
aproveita a música de Lecocq, mas pede a Henrique das vultosas dívidas contraídas e, por vezes, um
Mesquita que componha um jongo para o primeiro bom lucro, ainda que insuficiente para o enrique-
ato e uma barcarola para o segundo. Com OsNoi- cimento.
vos eA Princesa dos Cajueiros, encenadas em 1880,
também no Fênix, Artur Azevedo nacionaliza por
completo a opereta, tendo como parceiro o compo- A lvIágica
sitor português Francisco de Sá Noronha.
A essas obras que consolidaram o gênero no Em OJuiz dePaz da Roça, peça de estreia de Mar-
Brasil, seguem-se muitas outras, entre as quais se tins Pena, encenada pela companhia do ator João
destacam Um Roubo no Olimpo (que o autor de- Caetano, no Teatro S. Pedro de Alcântara, no Rio
nominou jocosamente "opereta-bufa mitológica de Janeiro, em outubro de 1838, José fala à amada
escrita por um Meilhac do Morro do Nheco e posta Aninha sobre as maravilhas que encontrou na
em música por um Offenbach de Mata Porcos"), corte, de onde acabara de retornar:
A Donzela Teodora, O BarãodePituaçu e O Califa
da Rua do Sabão. ANINHA":" Mas então o que é que há lá tão bonito?

A encenação das operetas, assim como a das joss - Eu te digo. Há três teatros, e um deles maior que o
mágicas, revistas de ano e burletas -gêneros que engenho do capitão-moro
serão vistos à frente - assentava-se, principalmente, ANINHA - Oh, como é grande!
sobre as seguintes áreas: dramaturgia, composição josá - Representa-se todas as noites. Pois uma mágica ...
musical, regência, encenação, cenografia, interpre- Oh, isto é cousa grande!
tação e produção. No caso brasileiro, era sobre o ANINHA - O que é mágica?
dramaturgo que recaía a função de iniciar o pro- josé - Mágica é uma peça de muito maquinismo.
cesso de criação. Artur Azevedo, por exemplo, ao ANINHA - Maquinismo?
dar esse primeiro passo, conhecia de antemão os josé - Sim, maquinismo. Eu te explico. Uma árvore se vira
artistas que fariam parte do espetáculo. Em vista em uma barraca; paus viram-se em cobras, e um homem
disso, criava o texto e a proposta de encenação vira-se em macaco.
(dada através das rubricas) na medida e para cada ANINHA - Em macaco! Coitado do homem!
um desses artistas. joss - Mas não é de verdade.
Naqueles tempos, somente companhias está- ANINHA - Ah, como deve ser bonito! E tem rabo?

veis - e eram poucas - conseguiam colocar em joss - Tem rabo, tem",


cena espetáculos dispendiosos, que demandavam
uma produção de grandes proporções. A de Jacinto A falta de um inventário mais preciso sobre a in-
Heller exemplifica muito bem essa condição. A trodução da mágica enquanto gênero teatral no tea-
empresa mantinha sob contrato cerca de vinte tro brasileiro atribui a esta cena o sabor e o valor de
ateres e atrizes, um casal de bailarinos, o diretor um documento histórico. O autor de O Noviço, por
da orquestra, um contrarregra, um ponto, um meio das frases da personagem José, informa que,
guarda-roupeiro, um fiscal, um guarda-livros, um de "bonito': na capital do Império, há os teatros. O
arquivista, um avisador e um fiel, perfazendo um público que assiste a OJuiz sabe que o maior deles é
total de trinta e três pessoas, sem contar os adere- o Teatro S. Pedro de Alcântara, que é justamente o
cistas, cenógrafos, maquinistas e outros auxiliares.
3 Martins Pena, Comédias (x833-x844), São Paulo: W:MF
Havia, ainda, os custos referentes à aquisição de Martins Fontes, 2007, p. 8-9.

• 222
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

teatro no qual está sendo levada a peça. No desen- verossimilhança, permite, por exemplo, que uma persona-
volvimento desse recurso de natureza metateatral, gem agraciada com um talismã peça que outra personagem,
Martins Pena inclui a referência aos truques cêni- no palco, junto dela, se transforme em um animal, ou que
cos da mágica. Tal inserção indica que se tratava aquele espaço onde estão - uma sala, digamos - seja trans-
de uma novidade que começava a se firmar no formado em ourro - uma gruta'.
cenário teatral do país. Sensível à observação dos
costumes de sua gente, o dramaturgo não perdeu A essência da mágica contempla, pois, as ideias
a oportunidade de registrar a infiltração do gênero de transformação e de teatralidade: uma "coisa" se
nos palcos cariocas. Há informações de encenações transforma em "outra" por meio de uma conven-
de mágicas nos tempos de D.João VI, como, por ção genuinamente teatral. Na dinâmica construtiva
exemplo, a de O lvIágico em Valença, representada do espetáculo, a transformação exige o emprego de
em 181 5, no Real Teatro de São J oão, A referência recursos que modifiquem os elementos visuais da
comprova que a mágica foi introduzida no Rio cena: um ou mais figurinos, objetos, o próprio
de Janeiro logo após a inauguração desse teatro, cenário ou parte dele. Daí a importância do cenó-
ocorrida dois anos antes. Tudo indica que coube grafo e do maquinista na criação do esperáculo, já
às companhias de ateres portugueses, radicados que eles são os responsáveis pelas mutações, nome
ou não no Brasil, a introdução desse tipo de peça frequentemente usado pelos profissionais para de-
entre nós. A companhia dramática criada porJoão signar os efeitos cênicos. Ao cenógrafo cabe a pin-
Caetano em 1833, para fazer frente ao domínio dos tura dos telões, bastidores e bambolinas, conjunto
intérpretes lusos sobre o ambiente teatral carioca, que delineia os quadros da peça; ao maquinista, a
incluiu a mágica em seu repertório somente a partir retirada ou a entrada das novas vistas.
da década seguinte, incentivada pela predileção do A teatralidade resulta da aceitação, por parte
público pelos esperáculos vistosos. do público, da transformação proposta pela cena.
Nos diálogos dos enamorados de O Juiz de O charme do gênero, como se vê, não reside na
Paz da Roça estão apontadas as principais carac- sofisticação do enredo ou nas qualidades literárias
terísticas da mágica: um espetáculo grandioso que do texto, mas, sim, nos efeitos visuais e no trata-
encanta os olhos do espectador pela beleza, que mento musical e coreográfico que deixam a plateia
surpreende pela apresentação de fatos inesperados maravilhada.
e, ainda, que deixa claro à plateia, através de uma re- A julgar pelo volume de encenações, pelo
solução cênica extremamente complexa, que aquilo imenso sucesso obtido junto ao público e pelo vul-
que ela está vendo e ouvindo é pura fantasia, ou toso montante de recursos financeiros mobilizados
seja, não acontece ou não é possível acontecer na pelas companhias, a mágica atingiu seu apogeu nas
vida real. Eis como o Dicionário do Teatro Brasileiro décadas de 188 o e 1890, perdurando até a primeira
define a mágica: década do século xx.
Foi nesse período que se revelaram os cenógra-
Tipo de peça teatral que fez muito sucesso nos palcos euro- fos que deram vida cênica não só às mágicas, mas
peus e brasileiros durante o século XIX. Chamada defterie também às operetas e revistas de ano. Os italianos
na França, porque seus personagens podiam ser fadas e ou- Oreste Coliva e Gaetano Carrancini foram os dois
tros seres sobrenaturais, como sereias, gênios, demônios ou grandes mestres da pintura, da cenografia e da con-
gnomos, sua atração maior não estava nem nos personagens cepção dos maquinismos necessários para a efetí-
nem nas histórias que trazia à cena, mas sim nos cenários vação das mutações cênicas. Incluem-se no seleto
e figurinos, na representação luxuosa, repleta de truques e grupo o espanhol josé Canellas y Clavell, os por-
surpresas, assim como nos números de dança e música. De tugueses Barros, Antônio José da Rocha, Eduardo
um modo geral, a mágica tem enredo simples, centrado Reis e Francisco de Oliveira Camões e o brasileiro
num protagonista que no início da ação dramática recebe
um talismã, com o qual realiza todos os seus desejos, por 4 J. Guínsburg; João Roberto Faria; Mariângela A. Lima
(orgs.), Dicionário do Teatro Brasileiro, São Paulo: Perspectivai
mais extravagantes que sejam. Sem compromisso com a
Sesc, 2006, P: 175.

• 223
História do Teatro Brasileiro + volume 1

Frederico de Barros. Na função de maquinista -


técnico responsável pelas mutações - e em outras
ocupações de caráter técnico, sobressaíram-se os
portugueses.
Cabia quase que exclusivamente aos cenógrafos
e maquinistas o sucesso das mágicas, que ganharam
enorme impulso com a descoberta da eletricidade.
Como se sabe, a luz elétrica foi empregada pela
primeira vez no teatro brasileiro em 1884, na en-
cenação da revista de ano O Mandarim, de Artur
Azevedo e Moreira Sampaio. Numa das cenas, um
foco de luz elétrica proporcionado por um gerador
portátil produziu, para surpresa geral da plateia,
um breve efeito cêníco. No ano seguinte a monta-
gem da revista Cocota, também de autoria da dupla
Azevedo-Sampaio, beneficiou-se da eletricidade,
que foi empregada em todas as cenas.
A partir dessas datas, a encenação das mágicas
incorporou a iluminação elétrica, que se tornou
recurso precioso para cenógrafos e maquinistas.
Compreende-se que o apogeu desse gênero de peça o dramaturgo Moreira Sampaio.
tenha se dado justamente após a incorporação das
lâmpadas elétricas na iluminação da cena.
Entre as mágicas representadas no Rio de Ja- dispomos para obter algumas informações sobre as
neiro e eventualmente em outras cidades brasileiras mágicas concebidas por nossos dramaturgos.
figuram as seguintes: Pílulas do Diabo, A Cauda
do Diabo, A Corça do Bosque, A Pera de Satanás;
A Galinha dos Ovosde Ouro, de Eduardo Garrido; A Revista de Ano
O Gato Preto, arranjada por Eduardo Garrido; O
Gênio do Fogo, de Primo da Costa (1885); Loteria A germinação plena da revista de ano no Brasil
do Diabo, de Henrique Alves de Mesquita, A Cor- consumiu o período de um quarto de século e o
nucópia do Amor, de Moreira Sampaio, partitura processo de sua implantação e nacionalização pão
de Costa Júnior (1894); A Borboleta de Ouro, de se fez sem dificuldades. Amores, ateres e empresá-
Moreira Sampaio e Orlando Teixeira; A Chave do rios empenharam-se rara dar ao público brasileiro
Inferno, de Domingos Castro Lopes e música de o que o europeu dispunha no mesmo período: um
Abdon Milanez (1895); A Rainha dos Gênios, de gênero teatral que passava em revista os principais
Vicente Reis e Azeredo Cominho (1897); O Pé de acontecimentos sociais, culturais, artísticos, polítí-
Cabra, de Vicente Reis (1903); A Boceta de Ful- cos e econômicos do ano findo. Eis como Antônio
gurina, de Orlando Teixeira e Eduardo Vitorino; de Sousa Bastos define a revista de ano em seu Di-
A Tentação, de Augusto de Castro; A Rainha da cionário do Teatro Português:
Noite, de Barroso Neto (1905). Entre os drama-
turgos brasileiros que escreveram mágicas os mais É a classificação que se dá a certo gênero de peças, em que
bem-sucedidos foram Moreira Sampaio, Vicente o autor critica os costumes de um país ou de uma locali-
Reis e Augusto de Castro. Infelizmente não as pu- dade, ou então faz passar à vista do espectador todos os
blicaram, de modo que não podemos saber como principais acontecimentos do ano findo: revoluções, gran-
eram exatamente seus enredos e personagens. Os des inventos, modas, acontecimentos artísticos ou literários,
j ornais da época são os únicos documentos de que espetáculos, crimes, desgraças, divertimentos etc. Nas peças

+ 224
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

desse gênero todas as coisas, ainda as mais absrratas, são Rei Posto, encenada no Teatro Fêníx Dramática por
personificadas de maneira a facilitar apresentá-las em cena. iniciativa de Jacinto Heller. A julgar pelo tempo
As revistas, que em pouco podem satisfazer pelo lado li- demandado para a ocorrência dessas duas novas
terário, dependem principalmente, para terem agrado, da investidas na fixação do gênero no Brasil, pode-se
ligeireza, da alegria, do muito movimento, do espírito, com deduzir que empresários e dramaturgos esperavam o
que forem escritas, além de couplets [coplas] engraçados e momento adequado para enfrentar o desafio de im-
boa encenação'. plantar a revista de ano no país. Porém, nenhuma das
duas peças conseguiu atrair o público. Nem mesmo
A primeira tentativa de aclimatar essa forma os elogios de Machado de Assis, nas páginas da Se-
teatral em palcos nacionais foi encenada pela pri- mana Ilustrada, principalmente à RevistadoAno de
meira vez no dia 15 de janeiro de 1859, no Teatro 1874, escrita em versos, despertaram a curiosidade
Ginásio Dramático. Os anúncios nos jornais deram dos frequentadores de teatros?
destaque aos diversos quadros que compunham a A tentativa seguinte coube a Artur Azevedo e ao
peça, intitulada As Surpresas do SenhorJoséda Pie- autor português Lino de Assumpção. Em janeiro
dade, e a definiam como "revista do ano de 1858, de 1878, dá-se a primeira representação de O Rio
peça extravagante em dois ates e quatro quadros deJaneiro em 1877) no Teatro S. Luís. Recebido
por ***e por ***, ornada de música'. Apesar da clara razoavelmente pelo público e pela crítica, o espetá-
indicação de uma dupla autoria, lê-se naHistória do culo, contudo, não consegue atingir a consagração
Teatro Brasileiro, de Lafayette Silva, que a primeira almejada. Artur ainda tenta escrever uma revista
revista de ano nacional foi escrita por Justino de de ano com França Júnior, TalQual c~mo lá, mas
Figueiredo Novais. Galante de Sousa observa: "Não o projeto não é finalizado.
sei com que fundamento Lafayette Silva atribui a A essa altura, empresários, dramaturgos e ar-
autoria a Justino (e não Justiniano, como às vezes tistas deviam se interrogar acerca das razões do
se escreve) de Figueiredo Novais'". Apesar da adver- fracasso da revista de ano, sem chegar a uma boa
tência, estudos recentes sobre a revista de ano têm resposta. Talvez possamos especular, lembrando
preferido a versão de Lafayette Silva, que se baseou o que ocorreu com a opereta, cujo aprendizado
provavelmente na informação dada por Artur Aze- por parte de autores nacionais se fez com base nos
vedo em crônica publicada no jornal A Noticia de espetáculos que viram primeiramente no Alcazar.
26 de novembro de 1896. Apesar de grafar o nome O conhecimento das operetas originais, em cena,
de forma equivocada - Justino Xavier de Novaes-, deve ter sido fundamental para que os dramatur-
Artur esclarece que o autor já havia escrito a co- gos pudessem dar início à vitoriosa produção de
média O Proteu Moderno e que era funcionário do paródias e, posteriormente, de operetas brasileiras.
TesoU:ro Nacional. Outra informação importante Esse processo não ocorreu com as revistas de ano,
dada pelo cronista: a primeira revista de ano brasi- o que significa que os dramaturgos brasileiros não
leira foi proibida pela polícia, após três ou quatro tiveram modelos à sua disposição; nossos teatros
representações - que não atraíram muito público -, não receberam companhias dramáticas estrangei-
porque ridicularizava o Diário doRio defaneiro, na ras especializadas na montagem de revistas de ano.
época conhecido como Diário da Manteiga. Afinal, o gênero, estruturando-se principalmente a
Dezesseis anos depois, precisamente em janeiro partir de fatos locais, perde sua comunicabilidade
de 1875, estreiam, no Rio de Janeiro, duas revistasde quando encenada para outra sociedade que não
ano escritasporJoaquim Serra:Revista doAno de 1874, aquela ligada aos fatos passados em revista. Em
apresentada no Teatro Vaudeville e empresariada outras palavras, os autores nacionais só puderam
pelo ator Antônio de Souza Martins, e Rei Morto, escrever revistas de ano a partir do conhecimento
dos textos, geralmente portugueses, sem passar,
5 Dicionário do Teatro Português, Lisboa: Imprensa Libânio da portanto, pela vital experiência de assistir aos
Silva, 1908, P: 128.
6 O Teatro no Brasil, v. r, Rio de Janeiro: INL/MEC, 1960, p.
227· 7 Machado de Assis,Do Teatro..., p. 533-534.

• 225
História do Teatro Brasileiro • volume 1

espetáculos revisreiros. É provável que isso tenha mais a curiosidade do público, que afluiu em grande
atrapalhado o pleno desenvolvimento da revista número para o Príncipe ImperiaL
de ano, ainda mais que em tal gênero a encenação Resultado similar obteve Cocota, revista cômica
ocupa um lugar primordial. Conclusão: faltou aos de 1884, dos mesmos autores, com música de
primeiros autores nacionais que se arriscaram no Carlos Cavalier, cenários de Frederico de Barros e
gênero o contato com a revista de ano no palco. Huáscar de Vergara, representada pela primeira vez
Daí a importância da viagem de Artur Azevedo à em 6 de março de 188 5 no Teatro Santana do Rio
Europa, em 1883. Em cidades como Lisboa, Madri de Janeiro, tendo Jacinto Heller como ensaiador.
e Paris ele deve ter visto muitos espetáculos, revistas E triunfo ainda maior conquistou O Bilontra,
de ano entre eles. Um de seus biógrafos afirma que revista fluminense do ano de 1885, de autoria da
ele viu apenas uma revista, Les Dieux en Rtgolade, mesma dupla, que estreou em 29 de janeiro de 1886,
no Théâtre Montparnasse, mas não esclarece de com música de diversos autores, coordenada, instru-
fato com qual repertório Artur entrou em contato". mentada e ensaiada por Gomes Cardim, cenários de
Não pode ser mera coincidência que já no final de Orestes Coliva, Carrancini, Zenotti e Frederico de
1883 o escritor maranhense e seu parceiro Moreira Barros e com os vestuários desenhados pelo irmão
Sampaio tenham escrito a revista de ano que mu- de Artur Azevedo, o escritor Aluísio Azevedo. A
dou a sorte desse tipo de peça no BrasiL mise-en-scéne de O Bilontracoube a Adolfo de Faria.
Em 9 de janeiro de 1884, no Teatro Príncipe A peça pôs em cena um fata verídico ocorrido em
Imperial do Rio de Janeiro, estreia O Mandarim, 1884, no Rio de Janeiro. O empregado do comércio
revista cômica do ano de 1883, com música de J. MiguelJosé de Lima e Silva enganou o comerciante
Simões Júnior e cenografia de André Caboufigue, português Joaquim José de Oliveira, prometendo,
Huáscar de Vergara e Frederico de Barros e com por três contos de réis - valor que era então uma
Adolfo de Faria na função de ensaiador. fortuna - conseguir-lhe o título de Barão de Vila
O êxito estrondoso do espetáculo pode significar Rica junto ao governo imperiaL O espertalhão en-
que a viagem de Artur Azevedo foi de fato impor- tregou um tÍtulo falso ao comerciante, que até fez
tante para que ele visse como se escreve e se encena uma festa para comemorar a distinção recebida, e
uma revista de ano". Teria ele constatado lá o papel foi preso quando descoberta a farsa.
central da caricatura nesse tipo de peça? Porque O "conto do vigário" ganhou a imprensa e o co-
um dos motivos do sucesso de O Mandarim foi a merciante português se transformou em motivo de
caricatura de pessoas que por alguma razão estive- chacota. Artur Azevedo e Moreira Sampaio cons-
ram em evidência no ano de 1883. No espetáculo, truíram o fio condutor de O Bilontra (a palavra é
para dar um exemplo, o excelente ator Xisto Bahia, um neologismo criado pelos autores para significar
interpretando a personagem barão de Caiapó, faz pelintra, malandro) inspirados nesse fato notório
com perfeição a caricatura de um ilustre fluminense e fizeram da caricatura do comendador um grande
chamado João José Fagundes de Resende e Silva. atrativo. Mais de cem representações atestam o su-
Esse cidadão, ao se ver retratado satiricamente na cesso obtido pelo espetáculo. O curioso é que O
revista, promoveu uma verdadeira batalha pela Bilontra influenciou a decisão do tribunal do júri:
imprensa, pedindo a proibição das apresentações. como ocorre na peça, a instituição, no âmbito real,
Recorreu, também sem sucesso, à polícia e ao Con- absolveu Lima e Silva. No livro Cena Aberta: A
selho de Ministros. A polêmica alimentou ainda Absolvição de um Bilontra e o Teatro de Revista de
ArthurAzevedo, Fernando Mencarelli historia em
detalhes o escândalo e os autos do processo, com-
8 Raimundo MagalhãesJr.,Al'tul' Azevedoe SuaÉpoca, 4. ed., provando a influência do espetáculo na sentença
São Paulo: Lisa, 1971, p. 30. proclamada pelo tribunaL
9 Para Roberto Seidl, não há dúvida: "Em Paris, onde observou
muito os teatros, viu como se fazia uma revista leve, brejeira, sal-
A sequência triunfante de O Mandarim, Cocota
picada do picante sal gaulês... Trouxe, assim, quase uma novidade e O Bilontra consagra, em definitivo, a revista de ano
para o nosso público: a revista de ano!'~Al'tur Azevedo:Ensaio
Biobibliogrdjico. Rio deJaneiro: ABC,1937, P: 28.
no Brasil, assim como a maior dupla de revistógrafos

• 226
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

nacionais, Artur Azevedo e Moreira Sampaio. A par- Vicente Reis (r 896); O Diabo a Quatro, de Vicente
tir de então, o público fluminense habitua-se a poder Reis (r896); eA Roda da Fortuna, de Demétrio
assistir, a cada início de ano, a mais de um espetá- Toledo e Eduardo Vitorino (r899).
culo que passa em revista os acontecimentos do ano Conjuga-se, com a fixação da revista de ano no
findo. Artur Azevedo ainda escreve em colaboração país, a incorporação de procedimentos inéditos
com Moreira Sampaio as revistas de ano O Carioca nos processos criativos conhecidos até então. Após
(r 886),j\;fercúrio (r886) e O Homem (r887). Sozi- O Mandarim, por exemplo, a cenografia passa a ser
nho, produz ViagemaoParnaso (r890), O Tribofe idealizada e executada por dois ou três artistas, uma
(r89r), O Major (r894), A Fantasia (r895), O vez que apenas um cenógrafo não consegue mais dar
Jagunço (r897), Gavroche (r898) e Comeu (r90r). conta de toda a estrutura cenográfica. De um modo
Com o irmão Aluísio Azevedo, Artur cria Fritz- geral, a revista de ano se organiza em três aros: cada
mac (r888) e República (r899). Divide a parceria ato é subdividido em quadros, e cada quadro em ce-
de Guanabarina (r905) com Gastão Bousquet e nas; a passagem de um quadro a outro se dá através
de Pum! (r894), com Eduardo Garrido, deixando da mutação do cenário e o espetáculo se encerra com
inacabada a revista OAno que Passa (r907). uma apoteose. Podia haver, no entanto, mais de uma
A produção revisteira de Moreira Sampaio, sem apoteose por espetáculo, sempre realizada no final
a participação de nenhum outro autor, compreende de um dos aros. Para desenvolver o enredo, sempre
Há Alguma Novidade (r895), O Rio Nu (r895- muito simples, o dramaturgo emprega uma ou duas
seu grande sucesso), Dona Sebastiana [s.d.], O personagens, que alinhavam os acontecimentos
Engrossa (r899) eA Inana (r900). Com Vicente apresentados; essas personagens são conhecidas
Reis, escreve OAbacaxi (r892) eA Vóvó (r893); e como o compadre da revista - ou comadre, caso a
com Acácio Antunes, O Buraco (r898). personagem seja feminina. O espaço cenográfico da
A entronização da revista de ano no cenário revista de ano se constrói a partir dos quadros, das
teatral brasileiro efetivada por Artur Azevedo mutações, das apoteoses e dos efeitos cenográficos.
e Moreira Sampaio incentivou o surgimento de Em geral, cada peça desse gênero dispõe de r o a r 8
uma nova geração de autores, os quais não tarda- quadros (que exigem entre r o e r8 cenários); cada
ram a produzir uma grande quantidade de peças do quadro se concretiza pela pintura de um tema nos
gênero. Até a virada do século, os palcos cariocas quatro rompimentos da caixa teatral (o rompimento
foram tomados pelas seguintes revistas de ano: A é o conjunto formado por dois bastidores e a res-
Mulher-Homem, de Valentim .Nlagalhães e Filinto pectiva bambolina), configurando um determinado
d'Almeida (r 895); Zé Caipora, de Augusto Fábre- espaço dramático. Em seu todo, os quadros dão a
gas e Barbado Lisboa (r 886); CobraseLagartos, de unidade cenográfica ao esperáculo. As mutações
Augusto Fábregas (r886); Os Coroados, deJoaquim ocorrem de duas formas: as realizadas sem que o
Serra e Múcío Teixeira (r886); O Boulevard da público as veja e as realizadas à vista do público.
Imprensa, de Oscar Pederneiras (r887); 1888, de A apoteose é um momento especial da encenação,
Oscar Pederneiras (1888); Fecha!Fecbal, de Soares no sentido de ser uma homenagem, de caráter sur-
de Souza]únior (r888); Notas Recolhidas, de Lo- preendente, a uma personalidade, a um sentimento,
pes Cardoso (r 888); Abolindenrepcotchindegó, de a uma data histórica etc. É o clímax da peça, inclusive
Valentim .Nlagalhães e Filinto d' Almeida (r 888); . emocional, e requer oapoio do cenário; nenhuma
O Sarilho, de Oscar Pederneiras (r889); O Grude, apoteose tem sentido sem um cenário muito bem
de Valentim Magalhães e Henrique Magalhães realizado, porque aí reside sua alma. Os efeitos ceno-
(r 89 o); O Mundo da Lua, de Figueiredo Coim- gráficos são os resultados da modificação qualitativa
bra (r893); Pontos nos ii, de Vicente Reis (r894); da cena causados por manobras, transformações ou
A Bicharia, de Vicente Reis (r894); Aquidabã, de movimentações do cenário. Destacam-se como
Assis Pacheco (r894); Pão, Pão,Queijo, Queijo, de cenógrafos das revistas de ano Orestes Coliva, Car-
Demétrio de Toledo e Orlando Teixeira (r89 5); O rancini, Zenotti, Frederico de Barros, Huáscar de
Zé Povinho, de Vicente Reis (1895); O Filhote, de Vergara, André Caboufigue e Camões.

• 227
História do Teatro Brasileiro • volume1

A música, na cena da revista de ano, assumenovas artigos de Artur Azevedo publicados nos jornais
funções dramáticas ou realça atributos tradicionais. cariocas. Por exemplo, ao comentar os enormes
Os autores empregam a música para abrir e fechar gastos com a montagem da comédia Viagem deSu-
cenas ou quadros, apresentar personagens, atribuir zette, no Recreio Dramático, ele observa, em artigo
um caráter cómico às situações, fazer passagens de publicado emA Notícia de 8 de novembro de 1900,
cenas, dar suporte a coreografias, efeitos cenográfi- que "não é absolutamente o luxo da encenação que
cos ou apoteoses, intervir na ação dramática, susten- determina o sucesso das peças". Mas que ele faz
tar mutações de cena ou cenas mudas. Em algumas questão de que os espetáculos sejam bem cuidados:
ocasiões, a música é o próprio motivo da cena, como
nos "desafios musicais" empreendidos por duas per- Exijo que os cenários, o guarda-roupa e os acessórios sejam
sonagens. Assis Pacheco, Gomes Cardim, J. Simões decentes, e apropriados; nada mais. A miséria e a impro-
Júnior, Carlos Cavalier, Adolfo Lindner, Leocádio priedade da mlse-en-scêne revelam absoluta falta de respeito
Raiol, Luís Moreira, Paulino Sacramento, Abdon pelo público, ofendem a inteligência, o bom senso e o gosto
Milanez, Nicolino Mílano, Chiquinha Gonzaga e estético da plateia; mas entre a decência e a propriedade
Cardoso de Menezes foram os mais importantes de um lado, e o luxo exagerado de outro, há um abismo.
compositores musicais no período.
Para ateres e atrizes, a revista de ano confirma Com as mortes de Moreira Sampaio, em 1901, e
e redimensiona - tal a quantidade de peças desse de Artur Azevedo, em 1908, e com o abandono da
gênero - os desafios interpretativos colocados pela produção de revistas de ano por parte dos promisso-
opereta. Além da declamação (parte dialogada), cabe res Oscar Pederneiras eVicente Reis, essetipo de peça
ao elenco executar os números de canto e dança; logo desapareceda cena nacional. Mas não o teatro de
para dar conta do grande número de personagens. revista, que adquire novas característica e continua a
Como observado, O Mandarim foi o portador desfrutar do prestígiojunto ao público por mais algu-
da grande revolução tecnológica proporcionada mas décadas, como se verá adiante neste livro.
pela iluminação elétrica, que logo passou a ser apro-
veitada pelos demais revistógrafos. Outro dado a
acrescentar é que, a partir de O Bilontra, Artur Aze- A Burleta
vedo e Moreira Sampaio passam a utilizar o termo
mise-en-scéne, no original ou traduzido - "ence- Ao escreverA CapitalFederal, Artur Azevedo colo-
nação" -, para indicar o trabalho requerido para cou em prática um procedimento dramatúrgico até
harmonizar os elementos de que se compunham então inédito no teatro brasileiro: o de extrair uma
uma revista de ano: o desenvolvimento do enredo peça de uma revista de ano. A novidade provocou,
segundo uma estrutura dramática diferenciada, a além da natural expectativa que acompanhava a es-
caricatura pessoal, a concorrência de vários cenó- treia de cada novo trabalho do autor maranhense,
grafos na criação dos quadros, mutações e apoteo- uma série de boatos, segundo os quais o tal método
ses, o uso cêníco da iluminação elétrica, as inéditas não passaria de um mero arranjo de um texto an-
funções dramáticas da música, os novos atributos tigo. Artur veio então a público, nas páginas do
dos intérpretes e a presença obrigatória de um en- jornal fluminense A Notícia, de 4 de fevereiro de
saiador, a quem cabia organizar, ensaiar e colocar a 1897, para explicar como a concebeu:
peça em cena, de forma que esta apresentasse uma
determinada unidade estética. Na ficha técnica de Em 189 I re,Presentou-seno Teatro Apolo, com muita acei-
O Bilontra, lê-se: Mise-en-scéne do sr. Adolfo de tação do público, a minha décima revista de ano, que se
Faria; já na revista seguinte, Mercúrio, o termo é intitulava Triboft. Nessa revista havia uma comédia, cuja
traduzido: "Encenação do sr. Adolfo de Faria". ação corria paralela com a exibição dos principais acon-
O significado do novo termo e sua ampla utili- tecimentos de 1890, uma comédia que, se fosse conve-
zação podem ser confirmados nos anúncios dos es- nientemente desenvolvida, poderia destacar-se do resto da
petáculos veiculados pela imprensa e em inúmeros peça. O ator Brandão, que agradou extraordinariamente

• 228
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

representando o papel de Eusébio, um dos primeiros perso- tempo depois, em 1900, ao escreverA Viúva Clark,
nagens da comédia, que ele tornou o primeiro, lamentava, que tem as mesmas características de A Capital
e com razão, que o Triboft estivesse condenado à vida efê- Federal, qualificou-a como burleta, termo tomado
mera das revistas de ano, e por isso não lhe fosse possível de empréstimo ao teatro italiano, que era sinónimo,
conservar um dos melhores papéis do seu repertório. E o no século XVIII, de comédia musicada.
artista durante largo tempo insistiu comigo para extrair Representada pela primeira vez em 9 de feve-
uma nova peça da peça velha. [...] Escrevi então essa comé- reiro de 1897 no Teatro Recreio Dramático no
dia, que é um trabalho, devo dizê-lo, quase inteiramente Rio de Janeiro, A Capital Federal foi recebida
novo, pois o que aproveitei do Triboft não ocupa a décima entusiasticamente pelo público e pela crítica,
parte do manuscrito. Ampliei cenas, inventei situações e transformando-se rapidamente num dos grandes
introduzi novas personagens importantes, entre os quais êxitos de Artur Azevedo e num dos maiores suces-
o de Lola, destinado à atriz Pepa, e o de Figueiredo, que sos de público no final do século XIX. Depois da
escrevi para o ater Colás. Como uma simples comédia saía temporada inicial no teatro carioca, o espetáculo
do gênero dos esperáculos atuais do Recreio Dramático, e foi apresentado em várias cidades brasileiras, em
isso não convinha nem ao empresário, nem ao autor, nem Portugal, voltando novamente ao Rio de Janeiro.
aos artistas, nem ao público, resolvi escrever uma peça Por onde passou, A CapitalFederal encantou as
espetaculosa, que deparasse aos nossos cenógrafos, como plateias com a história do mineiro Seu Eusébio,
deparou, mais uma ocasião de fazer boa figura, e recorri fazendeiro rico e caipira que vem com sua família
também ao indispensável condimento da música ligeira, para o Rio de Janeiro, trazendo também a mulata
sem, contudo, descer até o gênero conhecido pela carac- Benvinda, empregada da casa, para procurar Gou-
terística denominação de maxixe. [...] Clélia, Adelaide de veia, que pedira a mão de sua filha em casamento
Lacerda e Henrique Machado (sem falar de Brandão) têm e desaparecera. Chegando à cidade, Seu Eusébio
a seu cargo os personagens - agora muito mais comple- deslumbra-se com a exuberância e modernidade
xos - que com tanta distinção representaram no Tribofe, da "Capítá Federá" e acaba se envolvendo numa
e os demais artistas do Recreio ficaram bem aquinhoados, série de enrascadas, inclusive picantes, com a pros-
especialmente Pepa e Colás. tituta Lola. Além de contar com uma encenação
primorosa, bancada pelo empresário Silva Pinto,
o relato acabou por explicar como nasceu uma outro fator decisivo para o triunfo da peça foi o
nova forma dramática, híbrida, resultado da soma excelente naipe de intérpretes. Além de Brandão,
de características dos gêneros cómicos e musicados o popularíssimo, no papel de Seu Eusébio, a cena
então em voga: a burleta. Em A CapitalFederal contava com Pepa Ruiz na pele da voluptuosa
encontram-se traços da comédia de costumes, da Lola, Olímpia Amoedo interpretando a deliciosa
opereta, da revista de ano e até mesmo sugestões Benvinda, Colás vivendo o lançador de trigueiras,
cenográficas típicas da mágica. Figueiredo e Machado incumbindo-se do janota
Ressalte-se que Artur Azevedo não definiu A Ca- Gouveia. A crítica também não poupou elogios aos
pital Federal como burleta. Sabia que tinha escrito cenários e à música do espetáculo. O trecho abaixo,
uma peça diferente de todas as outras que assinara publicado em O País, de I I de fevereiro de 18 97,
antes. Não se tratava de uma comédia feita de acordo embora de autor não identificado, é representativo
com os moldes tradicionais; não era tampouco uma das dezenas de louvações recebidas em relação à
revista de ano, por não passar em revista os acon- cenografia e à parte musicada:
tecimentos do ano findo; e também não era uma
opereta, por ter mais diálogos do que música e uma Os cenários são brilhantíssimos. Cumpre especializar,
trama muito bem trabalhada. Na dúvida, qualificou porém, o que representa o elétríco passando por cima dos
sua peça como "comédia opereta" A comicidade Arcos, e que é verdadeiramente suntuoso trabalho de Car-
da comédia de costumes - base do enredo - e a rancini, o do Grande Hotel, devido ao pincel de Coliva, o
música alegre da opereta pareceram-lhe os aspectos do Belódromo, pintado por Canelas. A música, de que só
centrais da peça, sugere a denominação. Pouco três trechos são de Assis Pacheco e um é de Luiz Moreira,

• 229
Hist6ria do Teatro Brasileiro • volume 1

Foto de uma cena de O Mambembe, em montagem do Teatro dos Sete, em 1959.

foi composta por Nicolino Milano, um rapaz de muito Frazão, interpretada pelo Popularíssimo, explica o
talento, a quem está reservada brilhantíssima carreira. O significado da expressão:
grande concertante do final do primeiro ato fez um franco
sucesso bem merecido, porque é um trecho animado e Mambembe é a companhia nômade, errante, vagabunda,
cheio de fôlegos 10. organizada com todos os elementos de que um empresário
pobre possa lançar mão num momento dado, e que vai, de
A experiência prazerosa e meritória proporcio- cidade em cidade, de vila em vila, de povoação em povoa-
nada por A CapitalFederal incitou Artur Azevedo ção, dando espetáculos aqui e ali, onde encontre um teatro
a produzir mais três peças na mesma linha: A Viúua ou onde possa improvisá-lo".
Clark, O Mambembe e O Cordão, todas denomi-
nadas burletas. A primeira, representada em I900 Encenada pela primeira vez em 7 de dezembro
e da qual restam somente os dois primeiros atas de I904 no Teatro Apolo, no Rio de Janeiro, O
dos três originais, cumpriu uma curta e modesta Mambembe, com música do maestro Assis Pacheco
temporada. O Mambembe, escrita em colaboração e cenários assinadospor Marroig, Crispim do Ama-
com José Piza, e especialmente para o atar Brandão, ral, Afonso Silva,Timóteo da Costa e Emílio, ape-
é uma obra-prima do gênero e focaliza a história sar de ser muito bem recebida pela crítica, padeceu
de uma companhia "mambembe" de teatro, em com a falta de público. A pesquisadora Larissa de
suas andanças pelo interior do país. A personagem Oliveira Neves, refletindo sobre o fato, apresenta
uma série de circunstâncias que, conformando
10 Em Larissa de Oliveira Neves, As Comédias deArtur Azevedo:
Em Buscada História, tese de doutorado, 1EL/Unicamp, 2006, 11 Artur Azevedo, Teatro de Artur Azevedo, tomo v, Rio de
p. 125, Anexos. Janeiro: Funarte, 1995, p. 28 4.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

um determinado contexto, podem auxiliar na buscou justificar ambos os argumentos e deu a sua
compreensão de alguns dos motivos que levaram opinião sobre a verdadeira causa do abandono da
o público a fugir de O Mambembe. peça. Num primeiro artigo, publicado em A No-
tícia, de 8 de dezembro de 1904, observou que os
[A plateia] se dividia basicamente em dois grupos: o ensaios foram insuficientes para um espetáculo
"público" comum, pobre, analfabeto; e a "sociedade" in- tão complexo: "Releva dizer que o Mambembe foi
telectual e/ou economicamente privilegiada. A separação ensaiado e encenado em muito pouco tempo: um
dos espectadores entre ricos e pobres, literatos e analfa- mês, pouco mais ou menos". Uma semana depois,
betos, evidencia uma das particularidades da vida teatral no mesmo jornal, explicou:
da época. Artur Azevedo, em suas crônícas, dividia os
espectadores em dois grupos distintos, denominados por A peça agradou também ao público; mas tem sido, infeliz-
ele de "público" e "sociedade". Do "público" faziam parte mente, perseguida pelo mais implacável inimigo das nos-
os frequentadores regulares do teatro musicado e popular, sas empresas dramáticas: o mau tempo. Quando chove, o
cujos gêneros principais eram as revistas, as mágicas e as público do Rio de Janeiro não vai aos teatros, e tem toda
operetas. Na "sociedade", incluíam-se os espectadores da razão, porque nem estes são resguardados, nem o preço dos
elite econômica, presentes, principalmente, nas apresenta- carros, depois dos esperáculos, é acessível a todas as bolsas.
ções de companhias estrangeiras, nos festivais amadores e [...] Houve, no teatro, quem receasse que, tratando-se de
em raras encenações de peças "sérias" brasileiras por grupos um vocábulo desconhecido, esse título prejudicasse o êxito
profissionais". da peça; mas, que diabo! aí estava o exemplo daj\1ascote[na
Roça]. Ninguém sabia o que significava, mas isso não im-
Em vista dessas caractensncas, a estudiosa, pediu que a opereta fosse representada cem vezes seguidas.
prosseguindo em sua análise, elenca alguns proce-
dimentos que podiam conduzir os autores daquele Ao contrário deA CapitalFederal, que teve uma
período ao êxito: . longa e brilhante carreira, O Mambembe, ainda que
tivesse caído no gosto de quem o assistiu, perma-
A fim de obter um grande sucesso e atrair a população pobre neceu em cartaz por apenas um mês. De qualquer
e analfabeta, o texto dramático precisava ser simples. Os belos modo, ambas as peças confirmam definitivamente
cenários, a música saltitante, os ricos figurinos ajudavam a a burlera como um gênero especial de teatro ges-
deslumbrar os espectadores. O "público" compunha-se de tado no Brasil por Artur Azevedo. Tanto que o
pessoas humildes, trabalhadores especializados mas não for- dramaturgo a retoma, com maestria, em O Cordão,
malmente educados, que buscavam diversão após um dia de representada durante o Carnaval de 1908, no Rio
labor exaustivo. Desse modo, peças prolixas, recheadas de de Janeiro. Para criar sua última burleta, o autor
diálogos espirituosos, com referências literárias ou artísticas adorou o mesmo procedimento experimentado
eruditas, não obtinham seu agrado. O "público", analfabeto na fatura de A CapitalFederal, desenvolvendo-a a
e cansado, dificilmente entenderia as referências eruditas ou partir da revista de ano Comeu!
estaria disposto a prestar atenção a diálogos longos e monó- O Cordão examina o Carnaval do Rio de Ja-
tonos para seu nível de escolaridade". neiro através de seus cordões ou zé-pereiras, como
também eram conhecidos os grupos de foliões que
A crítica da época apontou dois fatores que saíam em desfile pelas ruas da cidade no período
levaram o "público" a não comparecer em grande carnavalesco. Na peça, Artur confronta persona-
número às apresentações de O Mambembe. Em gens tipicamente urbanas, instruídas e letradas,
primeiro lugar, o "público" não teria entendido representadas por Alfredo e Gastão, e outras da
o título da peça; em segundo, os ateres teriam se periferia, pobres e marginalizadas, espelhadas pelos
mostrado inseguros na caracterização das persona- participantes do evento popular.
gens, prejudicando o ritmo do espetáculo. Artur O contexto no qual a burlera subiu à cena é re-
presentativo das transformações pelas quais passou
12 L. de O. Neves, op. cit., P: 12.
o teatro no Rio de Janeiro do início do século xx,
13 Idem, P' 17.
História do Teatro Brasileiro • volume1

quando sofreu a concorrência de outras formas de Em relação às burletas anteriores, O Cordão


diversão, com destaque para o cinema: apresenta uma relevante novidade: a inserção de
personagens da periferia do Rio de Janeiro:
A novidade dos filmes cantantes, em 1908, nos quais nú-
meros musicais, ou espetáculos inteiros, com intérpretes Há a inserção de personagens "indesejáveis" da periferia
populares, eram registrados e depois dublados pelo próprio social urbana, inéditas até então no teatro brasileiro. E a
artista atrás das telas ao longo da exibição, introduziu o tea- maneira como ocorre essa introdução, simples e ao mesmo
tro musical, a música popular e os intérpretes populares no tempo verdadeira, demonstra a capacidade de observação
elenco das atrações cinematográficas. Alguns dos primeiros de Artur Azevedo em relação aos habitantes de sua cidade 1 s.
exercícios de divulgação de uma dramaturgia no cinema in-
cluíam revistas, operetas e espetáculos de teatro musicado, os Essas figuras "indesejáveis" correspondem às
chamados gêneros alegres. [...] Na passagem do final do sé- personagens centrais do núcleo do cordão, as quais,
culo XIX para o início do século xx, completando o circuito no desenrolar da peça, desconstruindo a visão pre-
Carnaval-festas-circo-teatro musicado, o fonógrafo e o ci- conceituosa da "sociedade" em relação a elas - a
nema inauguraram uma nova fase da cultura urbana popular de "malandros do Catumbi" - mostram que o
no país. Esse circuito revelava uma intensa intercomunicação, verdadeiro Carnaval carioca é o do povo da lira e
formando uma rede de personagens e práticas culturais que não o da elite, simbolizado pelas ricas sociedades
podiam circular em diversas instâncias. Canções lançadas carnavalescas da época, como Fenianos, Os Tenen-
nas revistas popularizavam-se no Carnaval; sendo frequentes tes do Diabo e Democráticos. O Cordão arremata
também o movimento inverso. Artistas de teatro e de circo com felicidade a tetralogia das burletas do autor
circulavam entre os palcos dos teatros, as festas populares e de O Dote e consagra o gênero como a sua grande
as rodas musicais, criando uma série de interseções, acompa- contribuição estética para a cena nacional:
nhadas também pelo público, que prestigiava, segundo sua
acessibilidade, a pluralidade de atrações':'. Se Artur Azevedo pinçou elementos dramáticos de sua obra
para compor a burleta, estabelecendo uma nova linguagem
Nesse cenário, até mesmo os tradicionais em- cénica, concluímos que, pela primeira vez, em toda a atívi-
presários teatrais vão perdendo espaço para os dade teatral do dramaturgo, ele propõe a sua própria estética,
empreendedores das novas modalidades de diver- pessoal e inédita, até aquele momento, na história do teatro
são. Para enfrentar a poderosa concorrência e, ao brasileiro. Artur Azevedo sintetiza na burleta todo o seu
mesmo tempo, para tentar se adequar às formas know-how dramatúrgico. Aqueles que não conhecem uma
de diversão dos novos tempos, a atriz e empresária única peça de seu repertório poderão ter uma ideia sobre
Cínira Polônio inaugurou, em janeiro de 1908, o o seu teatro em A Capital Federal, A Viúva Clark, O Mam-
chamado "teatro por sessões", cujo formato se ins- bembe ou O Cordão. Principalmente emA CapitalFederal e
pirava, evidentemente, na maneira de exibição dos O Mambembe, duas obras-primas da dramaturgia nacional",
filmes. Foi para a companhia dramática de Cinira
que Artur Azevedo escreveu O Cordão, que estreou A burleta de Artur Azevedo, síntese definitiva
no Teatro Carlos Gomes no dia 22 de fevereiro, do teatro musical brasileiro do período, e que no
apresentada em duas sessões,com uma hora e meia século xx passa a ser reconhecida sob a denomina-
de duração cada uma. Esse dado explica por que ção comédia musical, destaca-se também pelos seus
o dramaturgo estruturou a burleta em apenas um atributos literários. A linguagem é bem cuidada,
ato, com uma proposta cênica mais modesta em com destaque para o coloquialismo e para os fala-
relação às anteriores. Ressalte-se que o espetáculo res regionais que se contrapõem à norma da língua
mais curto foi bem recebido pelo público e pela portuguesa, provocando a comicidade necessária
crítica especializada. para o sucesso desse tipo de peça.

14 Fernando Antonio Mencarelli, A Voze a Partitura: Teatro 15 L. de O. Neves, op. cít., p. 221.
Musical; Indústria eDiversidade CulturalnoRiodeJaneiro (1868- 16 Rubens José Souza Brito, A Linguagem Teatralde Artur
1908), tese de doutorado, rrcn/Unicamp, 2003, P: 1-3. Azevedo, dissertação de mestrado, ECA-USP, 1989, P: 101.
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

o grande público e a crítica especializada 2. A CONTINUAÇÃO


puderam, em tempos mais recentes, aquilatar a DA COMÉDIA DE COSTUMES
excepcional teatralidade de O Mambembe a partir
da histórica montagem realizada pelo Teatro dos
Sete, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em o sucesso das operetas, das mágicas e das revistas
1959, com a música original de Assis Pacheco, sob de ano nos últimos decênios do século XIX não
direção e cenários de Gianni Ratto e um elenco que impediu que a comédia de costumes encontrasse
contava com Fernanda Montenegro, Ítalo Rossi, igualmente uma boa receptividade do público fre-
Sérgio Britto, Renato Consorte, Napoleão Moniz quentador de teatros. Criada por Martins Pena,
Freire (que também fez os figurinos da peça), Yo- continuada e consolidada pela geração realista,
landa Cardoso, Milton Carneiro, Zilka Salaberry, que a renovou com um tanto da sisudez da escola
Labanca, Yara Cortês, Waldir Maia, entre outros. fundada por Alexandre Dumas Filho, e visitada
Projeção similar obteve A CapitalFederal diri- com frequência pelo facundo Joaquim Manuel
gida por Flavio Rangel, em 1972, apresentada no de Macedo, a comédia de costumes teve continui-
Teatro Anchieta, em São Paulo, com cenários de dade principalmente nas obras de JoaquirnJosé da
Gianni Ratto, figurinos de Ninette van Vuchelen, FrançaJúnior e de Artur Nabantino Gonçalves de
coreografia de Márika Gidali, e interpretada por Azevedo. Com tratamento peculiar e roupagem
Suely Franco, Roberto Azevedo, Lutero Luiz, diferente, foi cultivada também pelo curioso es-
Laerte Morrone, Etty Fraser, Chico Martins, Eliana critor gaúcho Qorpo-Santo, que se tornou nacio-
Rocha, Neusa Borges, Carlos Koppa, Tamara Tax- nalmente conhecido apenas na década de 1960, em
man, Arnílton Monteiro e outros. montagens surpreendentemente modernas.
Ao final de uma vida dedicada às atividades
teatrais, e, entre elas,a luta pela construção do Tea-
tro lvlunicipal do Rio de Janeiro, Artur Azevedo França Junior
conseguiu, através de suas burletas, a resolução de
seu eterno conflito artístico: a necessidade de con- Joaquim José da França Júnior (1838-1890), ou
quistar, simultaneamente, o grande "público" e a simplesmente França Júnior, como ficou conhe-
"sociedade': incluída aí a crítica especializada. Ao cido na posteridade, nasceu no mesmo ano I S em
materializar esse fenômeno, raríssimo na história que Martins Pena dava ao palco O Juiz de Paz da
do teatro de qualquer país, Artur Azevedo des- Roça, considerada a peça-mater de nossa comédia
qualificou totalmente a acusação que lhe foi feita de costumes.
no auge de sua carreira artística: a de que teria sido Depois dos estudos iniciais, no Colégio Pedro
responsável pela "decadência' do teatro nacional. A II, dirigiu-se a São Paulo, para estudar Direito
posteridade lhe fezjustiça, reconhecendo que elefoi na Faculdade do Largo de São Francisco. Foi na
o nosso principal homem de teatro do século XIX, capital paulista que lhe desabrochou a vocação
"o eixo em torno do qual girou o teatro brasileiro?" teatral. Escreveu então algumas comédias. Destas,
entre 1873, ano em que chegou ao Rio de Janeiro, chegaram-nos duas: Tipos daAtualidade, também
vindo do Maranhão, até 1908, ano de sua morte.
Não foram poucas as inovações que trouxe para as 18 Algumas fontes o dão como nascido no Rio de Janeiro;
formas cômicas que cultivou, como não foi pequena outras, em Salvador, em 19.4.1838. A página da Fundação Bi-
blioteca Nacional cita o nascimento em Salvador; Galante de
a paixão que nutriu pelo teatro ao longo da vida. Sousa, no segundo volume de seu O Teatro no Brasil, afirma
que o escritor nasceu no Rio de Janeiro. No primeiro volume
do Teatro deFrançaJúnior(Rio deJaneiro: MEC/SNT,1980) há
a transcrição de um artigo de Artur Azevedo, de 1906, no qual
se lê que França Júnior nasceu na Bahia. No entanto, o filho de
Artur, Aluísio Azevedo Sobrinho, explica em nora de rodapé
que no dia seguinte à morte de FrançaJúnior, uma pequena bio-
grafia do comediógrafo foi publicada no Correio doPovo - e ele
17 Décio de Almeida Prado, História Concisa do Teatro Brasi- acredita ser de seu pai, pelo estilo -, na qual havia a informação
leiro,São Paulo: Edusp, 1999, p. 145. do nascimento no Rio deJaneiro.

+ 233
História do Teatro Brasileiro • volume 1

representada com o nome de O Barão de Cutia; em 27 de novembro de 1890, em Poços de Caldas,


e Meia Hora de Cinismo. A primeira estreou no Minas Gerais, onde estava acompanhado da esposa,
Teatro Ginásio Dramático, no Rio de Janeiro, em D. Clotilde, aos 52 anos de idade. O casalnão deixou
fevereiro de 1862 e obteve razoável receptividade filhos. Mais tarde, discretamente, como conta Artur
por parte da crítica e do público. Nessa altura, já Azevedo, a esposa fez trasladar o corpo para o Rio de
formado e instalado na cidade, França Júnior co- Janeiro, para repousar a seu lado, o que aconteceu.
meçou a colaborar com a imprensa, numa atividade Na introdução ao Teatro deFrançaJúnior, obra
que o acompanhou ao longo da vida. Escreveu de publicada em dois volumes como parte da coleção
início para o Bazar Volante, e no Correio Mercantil. "Clássicos do Teatro Brasileiro", Edwaldo Cafe-
Depois colaborou com a GazetaMercantil, a Ga- zeiro identifica três modalidades de comédia na
zeta de Notícias, com O Globo Ilustrado e com O obra de FrançaJúnior. São elas:
País, até sua morte. Assim como no teatro, França
Júnior fez de muitos de seus folhetins registros de I. "uma comédia de imitação clássica representativa de
costumes da sociedade brasileira, terreno em que uma trama de equívocos e armadilhas': como em Amor
também encontrou bastante sucesso. com Amor sePaga.
França Júnior foi secretário de governo do es- 2. O teatro musicado, "a burleta com suas cenas fantasio-
tado da Bahia. Na corte, foi adjunto da Promotoria sas e seus quadros apoteóticas", como em Direitopor
Pública, e curador da Vara de Órfãos, cargo que Linhas Tortas;
exerceu até a morte. 3. A comédia satírica, em que abordou os temas do tempo
França Júnior apreciava música, de que era ou- e de sempre: "o casamento por interesse; as estudanta-
vinte exímio, e pintura, aspecto pouco conhecido das (trotes, anedotas e farras); as manias (por cavalos,
de suas atividades. Foi discípulo de Johann Georg por estrangeiros); a donzela casadoira; os estereótipos
Grimm, pintor alemão que viveu muitos anos no (hipercorreção, sofisticação exagerada); a usura e o cré-
Brasil. Grimm fora aluno da Academia de Belas- dito"; é exemplo desse tipo de comédia sua primeira
-Artes de Munique. Também estudara em Berlim e peça, Meia Horade Cinismo:'?
Roma.Vindo ao Brasil, tomou-se professordepintura,
tendo lecionado na cadeira de Pintura de Paisagens, Assinala ainda Cafezeiro que as peças de França
Flores e Animais, na Academia Imperial de Belas- Júnior por vezes têm uma estrutura de coordenação
-Artes. Rompendo com os membros da Academia, de cenas, que vão se encadeando até um final que
fundou sua própria escola, voltada para a pintura ao pode ser tenso até a resolução, ou apoteótico, em
ar livre, de que foi um dos mestres no Brasil. Fun- que todas as personagens convergem para o palco.
dou o chamado "Grupo Grimm': que entrou para Outras há que apresentam fatos que "se entrecru-
a história das artes plásticas brasileiras. Dele, além zam e o final do texto se realiza no centro, isto é,
.de França Júnior, que se tornou paisagista (pintou, no ponto onde as linhas se cortam". Outras, no
entre outros, o quadro O Morro da Viúva), fizeram entanto, têm uma estrutura mais complexa de cru-
parte do grupo Domingos Garcia y Vasquez, Hipó- zamento de tramas e cenas, que pode ser descrita
lito Boaventura Caron, Antônio Parreiras e Giovani como "de encaixe".. Nestas, há uma linha principal,
Battisra Castagneto. Grimm retornou à Itália em como "ahistória de um ministério" ou de uma elei-
I 887, vindo a lá falecer ainda nesse ano. ção, na qual "seencaixam" outras cenas. Aponta Ca-
França Júnior não foi homem de política, mas fezeiro que muitas vezes há "encaixes" dentro dos
sim severo observador de suas mazelas, como apa- "encaixes". "Por exemplo': diz o crítico, "na recepção
rece em suas comédias Como seFaziaum Deputado do 'senhô moço dotô' [referência a Como seFazia
e CaiuoMinistério. Era amigo do príncipe D. Pedro um Deputado] encaixam-se a trama da sua eleição
Augusto e frequentava a família imperial. A procla- e do seu casamento e na própria eleição há encaixes
mação da República e o exílio do imperador, com de várias cenas ora burlescas ora dolorosas".
sua família, abalaram-no profundamente, o que deve
19 Introdução, em Teatro deFrançafúnior, tomo 1, Rio deJaneiro:
ter contribuído para sua morte logo depois. Faleceu Serviço Nacional de Teatro, 1980, sem numeração de página.

• 234
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Em rodas as modalidades, França Júnior não com vários pretendentes, e só se deixa levar pelo seu
esmoreceu na crítica divertida dos costumes bra- apaixonado Felipe quando este, de início um pobre
sileiros. Mas de quando em quando acrescenta repórter, "por acaso" ganha duzentos contos de réis
às cenas de bom humor certo tOque amargo, de na loteria. Até o amor de Felipe é caricato, pois este
desilusão com o país. Sua visada cômica abrange se apaixona pela jovem ao vê-la comer uma empada
os tipos que acha característicos da sociedade na confeitaria Castelões.
brasileira, quase sempre tendendo para o caricato Examinemos primeiro as comédias curtas do
ou o grotesco. Mesmo a ingenuidade não escapa autor que chegaram até nós.
desse daguerreótipo severo de nossa sociedade do A primeira peça de França Júnior, lvfeia Hora
XIX. As mulheres, por exemplo, ora são submissas de Cinismo, é um pequeno quadro em um ato, que
demais, ora tão empenhadas em seus propósitos se passa num quarto de estudante, em S. Paulo. Na
que chegam ao burlesco, como na controversa As estreia, em 1861, contou com pelo menos dois ar-
Doutoras, de que trataremos mais adiante. tistas de peso, Furtado Coelho e Eugênia Câmara,
Também aborda França Júnior a crítica dos que fazia um papel masculino, o do estudante
costumes políticos nacionais: o clientelismo como Trindade, morador do quarto. Desfilam perante a
meio de obtenção de votos, a falta de coerência e o plateia as vicissitudes da vida de estudante: falta
oportunismo dos partidos políticos, a inconstân- de dinheiro, correrias (Trindade é um calouro que
cia dos governos, que se expressa na pouca duração anda perseguido pelos veteranos), dívidas de jogo
dos ministérios. Critica ainda a ferocidade da luta e o assédio por credores, bebedeiras e aventuras.
política que, sem programas ideológicos definidos, O móvel da trama singela que emoldura a descri-
representa apenas um engalfinhar-se em busca dos ção da vida dos cinco estudantes em cena é duplo: a
cargos em disputa, aferrando-se o vencedor a eles e disposição de Trindade, o morador do quarto, de se
atraindo sobre si a fúria sem peia dos demais, que se mudar para evitar as trapalhadas e perseguições dos
manifesta através da imprensa ou diretamente em outros, e uma dívida de 300 mil réis do estudante
bate-bocas exaltados. Macedo para com um usurário, que vem cobrá-
Não deixa França Júnior de criticar os estran- -la. Conforme as cenas se sucedem, transparece
geiros, ricos ou remediados, que buscam a explo- o "cinismo" (na verdade, mais leviandade do que
ração dos brasileiros através de seus engenhos ou cinismo) com que os estudantes encaram tudo.
engenhocas divertidas, como o Mr, James de Caiu Entretanto, ao final, diante do credor enfure-
oMinistério I, que pretende construir um transporte cido que vem com um oficial de justiça, o estu-
para o alto do Corcovado movido a cachorros. Mas dante Nogueira dá o dinheiro da dívida a Macedo,
ao mesmo tempo França Júnior se vale dos mes- livrando-o da vergonha, provando assim que ainda
mos estrangeiros, com seu olhar independente, para subsistem bons sentimentos em meio à pândega.
apontar os problemas da política e da sociedade bra- Ao final, todos, meio tocados pelo vinho que be-
sileiras, como faz o mesmo Mr, James na cena XIV do beram, caem num cancã.
primeiro ato daquela peça, criticando as trapalhadas Essa pequena comédia despretensiosa contém
políticas de conservadores, liberais e até dos repu- em si os ingredientes que França Júnior desenvol-
blicanos que, segundo ele, calam a boca quando verá mais tarde em peças mais complexas. São eles
ganham um emprego público, ou disputam cargos uma visão desencantada da natureza humana e da
como os outros, enquanto a República não vem. sociedade e uma compreensão de que, no fim de
O amor apaixonado é, como diz toda a tradição contas, se nada de grandioso se deve esperar das
cómica desde a Antiguidade, algo para jovens. Mas ações humanas, algo se salva devido a sentimentos
nem mesmo ele escapa de rodo às contradições do simples, como a amizade e a generosidade, que de vez
tempo, e não raro se vê nas peças de FrançaJúnior em quando têm uma oportunidade de se manifestar.
a sua conjugação com a conveniência. A jovem Bea- Também os credores e as pândegas estudantis
triz, de Caiu olvfinistériol, que deveria ser a "ingê- compõem o tema e a moldura de Ingleses na Costa,
nua" da peça, na verdade é bem espertinha, jogando comédia em um ato que, na estreia, contou com a

+ 235
História do Teatro Brasileiro • volume 1

presença do conhecido cômico Vasques. A trama e a A música se faz presente também em O Defeito
cena se complicam um pouco em relação à primeira de Família, que estreou em 1870, com o mesmo
peça. Fazem parte dela, além de três estudantes, dos Vasques em papel de destaque, o capitão de cavala-
quais um está endividado sem poder pagar, e do ria Matias, de 5o anos, cuja filha, Josefina, de 18, é
credor que o persegue, o tio endinheirado de um casadoira. Matias, personagem rústica, fala errado;
outro, e duas moças de vida-airada. O nome da peça tem um criado alemão, que fala um português en-
se justifica porque um dos estudantes, Feliciano, viesado, e os diálogos de ambos servem para inten-
mais lido do que os outros, diz que Balzac chamava sificar os efeitos cômicos. Em meio à ação, como
de ingleses "a raça desapiedada" dos credores. Ao vai se tornar comum no teatro do autor, os ateres
vir visitar o sobrinho em S. Paulo, onde se passa a a interrompem para interpretar números musicais.
cena, o tio (Luís de Castro) encontra as duas mo- Josefina, que está noiva do jovem Artur, afilhado
ças no quarto do estudante e cai na pândega com do pai, recebe um homem às escondidas, sugerindo
elas, bebendo champanhe e vinho do Porto. Ao ser uma traição ao noivo, "problema" que também aco-
surpreendido pelo sobrinho, vê-se na contingência meteu à sua mãe, Gertrudes. Artur, que vem visitar a
de pagar as dívidas do amigo deste, para que aquele noiva, surpreende o intruso aos pés dela; e o mesmo,
não o denuncie à tia... E assim tudo se arranja no depois, sucede com Matias em relação a Gertrudes.
final bem humorado. O quiproquó é intensificado pelo criado alemão,
Amor comAmorsePaga também tem apenas um que decide "salvar" o jovem noivo de um "mau ca-
ato. Seu tema, como no caso dos estudantes, passa samento". Mas no fim tudo se esclarece: mãe e filha
pela leviandade humana, mas num outro diapasão, tinham um segredo em comum, sim, mas ele não
o das "relações perigosas". São personagens dois passa de um joanete nos pés. Muito à brasileira, to-
maridos aventureiros que namoram, sem saber, as dos concordam em guardar o segredo, para surpresa
mulheres um do outro, tendo por coadjuvante um do criado, que não entende nada.
criado esperto (Vicente, vivido pelo mesmo Vasques O estrangeiro, como tipo cómico, também com-
na estreia). Pelas artes do destino, são levados todos parece em O Tipo Brasileiro, em que o nativo da
para a mesma casa, onde Eduardo Coutinho corteja terra, Henrique (novamente Vasques), deve recor-
Adelaide, a mulher de Miguel. Este, por sua vez, lá rer à sua esperteza para vencer os preconceitos do
se refugiara porque fora confundido com um ladrão pai de sua amada, que só quer saber de casar a filha
ao cortejar Emília, a mulher de Coutinho. Emília com um inglês velhaco. É a luta do esperto contra
também vem à cena para saber da sorte de seu pre- o espertalhão. Enquanto o primeiro luta com as ar-
tendente a amante. Ao final tudo se esclarece: as mu- mas do convencimento, nada conquista; só quando
lheres se deixaram arrastar às fantasias (que não se se vale das armas do outro consegue vencê-lo, o que
consumam) por causa do abandono pelos maridos. também é propício às situações cômicas. O jovem
Foram apenas amores platônicos, e todos agradecem brasileiro tem de se disfarçar de estrangeiro (no
a Platão, confundido com um deus. França Júnior caso, um francês) para desmascarar o inglês, John
expõe nessa peça sua crítica ao que via como excessos Read, e vencer a bobice do pai.
do romantismo. A certa altura Adelaide, ao ver o ma- O inglês, recurso que França Júnior voltará a
rido, desmaia. Mas este lhe diz: "levante-se, minha utilizar, tem um projeto mirabolante: encanar
senhora, os desmaios estão já muito explorados pe- suco de caju pela cidade. Mas isso é suficiente
los romances modernos'?". Também pede a ela que para encantar o pai da moça, que detesta tudo o
não se ajoelhe para pedir perdão, pois "a posição é que é brasileiro. Henrique se disfarça de francês,
ridícula demais para uma heroína". Nessa comédia, fingindo que vai instalar no Brasil a indústria de
a música e a declamação intervêm: Vicente canta, os uma pomada miraculosa, que tudo cura. Graças
apaixoriados recitam versos. ao disfarce, consegue descobrir, pela confissão do
outro, que o inglês é devedor de larga soma em
Paris, e que só queria casar com a jovem (Henri-
20 E. Cafezeiro, op. cír., p. r07.
queta) por interesse pelo dote. O pai tudo ouve,
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

e desencantado com os "estrangeiros" (inclusive o Vasques) por cavalos, a tal ponto que quer casar
disfarçado) consente no casamento com Henrique, a filha Chiquinha com algum sócio do clube. O
que lhe dá, e ao público, esta moral: "Receba calado verdadeiro amor da jovem é Ernesto, que nunca
esta lição, e aprenda a respeitar a terra das bananas chegou perto de um cavalo na vida. Mas tudo se
e palmeiras, onde canta o sabiá". arranja: o rapaz acaba entrando para o clube, que
Maldita Parentela é do ano seguinte (187 I), e faz assim o papel de um Cupido equestre.
também tem um ato. Mas nesta o cenário e a ce- Dois Proveitos em um Saco tem por mote a fixa-
nografia são mais complexos do que nas anteriores. ção de um homem por Petrópolis, a cidade serrana
As personagens são onze, e ainda há figurantes, três onde ficava a residência de verão do imperador
criados, quatro crianças e outros convidados a,um Pedro II. Lá ele obriga a esposa a ficar durante os
baile familiar. Damião, o dono da festa, detesta a invernos frios e tristes; mas ela, graças a um sub-
parentela de sua mulher, e quer casar a filha, Ma- terfúgio que define a propalada esperteza das mu-
rianinha, jovem prendada, com um pretendente lheres, consegue livrar-se da maçada, prerextando
cuja única virtude, como ele mesmo descreve, é ser que teria em sua casa um sedutor que a deseja. Na
"dinheiroso". Chove a cântaros, o que enriquece os verdade, o pretenso sedutor é um viajante extra-
figurinos e a cena, com os trajes dos convidados viado e meio maluco que pretendia fugir das febres
numerosos que chegam. do Rio de Janeiro. Com seu expediente, a mulher
O tal do pretendente rico só fala em negócios, e livra-se dele e da prisão na cidade serrana.
aborrece amoça. Seu verdadeiro amor, Aurélio, não A Lotação dos Bondes tem por pretexto as con-
tem chance porque épobre e não conhece o pai. Mas fusões criadas por esse meio de transporte no Rio
no decorrer da movimentada festa descobre nela o de Janeiro. França Júnior não era muito amigo
seu progenitor, que é amigo de Damião. Tudo acaba de "novidades". E se vale de medida da polícia vi-
em casamento, e duplo, porque até o fastidioso rico, sando coibir o excesso de passageiros nos bondes
Guimarães, acaba encontrando um par à altura, a para separar marido e mulher, pai e filha, no cami-
também fastidiosa Hermenegilda, prima da dona da nho do centro para o Jardim Botânico, então um
casa. O jovem enamorado, Aurélio, obtém o consen- logradouro praticamente "fora da cidade". Mas a
timento do pai e do futuro sogro para o casamento. separação das famílias, além de criar os tradicionais
Este não só fica frustrado por ter perdido o genro quiproquós da ocasião, propicia ao jovem Camilo
para a parentela da mulher, como fica lamentando ficar quase a sós (ou pelo menos tanto quanto as
ter conseguido mais um parente. Um traço saliente conveniências permitem) com sua amada, a jovem
dessa comédia, também muito usado por FrançaJú- Elvira. Daí seguem-se as confusões, até que as famí-
nior em outras, é que todas as declarações amorosas lias se reúnam e tudo se esclareça,com as promessas
das personagens, mesmo do par amoroso, tendem de casamento e os adequados consentimentos.
ao ridículo, mostrando que o autor não apreciava a As comédias longas de França Júnior, de três
retórica romântica nem os trejeitos de salão. ou quatro aros, são um testemunho de como, na
Do autor, temos ainda outras três comédias segunda metade do século XIX, a cena da corte
curtas, em um ato: Entreipara o Clube ]ácome, de se torna mais complexa e rica do ponto de vista
1877, Dois Proveitos em um Saco, sobre cuja data técnico. As personagens, bem como os cenários
de autoria pairam dúvidas", eA Lotação dos Bon- externos, se multiplicam, e sua variação. Da rua,
.des, de 1885. O clube Jácome era um clube de da praça, passa-se ao cenário doméstico, ou vice-
equitação (a cujos membros a peça é dedicada), e -versa, Por outro lado, apresentam a mesma visão
já se vê que o mote da comédia é a paixão de um desencantada e severa, ainda que compreensiva, da
pai (Julião da Cunha, vivido na estreia pelo ator natureza humana e da sociedade brasileira. Não
faz vênia a qualquer tipo de progresso, a não ser
21 A comédia traz a data de 1873 para sua ação. Mas no pri-
no caso da abolição, que aparece em seu mundo
meiro volume do Teatro de FrançaJúnior, edição já citada, seu como uma generosidade (ainda que necessária)
organizador, Edwaldo Cafezeiro, dá a data da publicação, 1883,
com uma interrogação ao lado.
do senhor. Até o telefone, como se verá, uma das

+ 237
História do Teatro Brasileiro • volume 1

paixões do imperador Pedro II, termina merecendo rico; a viúva interesseira agora o tem como genro
alguma observação crítica. conveniente. O barão aborrece a todos; é o coringa
Tipos da Atualidade é citada como uma das co- que fica sem par. Gasparino, viúvo, mas ainda não
médias escritas por França Júnior ainda em seus suficientemente rico, decide conquistar D. Ana. A
tempos de estudante. Mas, como já assinalado, peça, curiosamente, termina num impasse: o barão
estreou no Rio de Janeiro em 1862. Os motivos vai embora, o par amoroso realiza seu sonho, mas
da peça são costumeiros: dois pretendentes, Car- Gasparino conquista a viúva. Mariquinha diz que
los e Gasparino, disputam a mão de uma jovem, não vai permitir essa loucura da mãe (os papéis,
Mariquinhas. Mas entre os três está a mãe, D. Ana, portanto, se invertem), mas Carlos diz que esse é o
viúva, a quem só interessa que a filha se case com destino do seu caráter, e assim cai o pano.
alguém rico. Carlos é um jovem doutor, de bom A peça alcançou muito sucesso, eatribui-se ao
carárer, mas pobre; Gasparino é enfatuado e passa papel do barão, de resto bastante tradicional nesse
por rico, quando na verdade acumula dívidas. Uma tipo de comédia e no teatro brasileiro. Tanto assim
de suas falas, logo no começo, o define, e também foi que em muitas representações posteriores ela
serve como um diagnóstico moral da sociedade se chamava O Barão de Cutia, homenageando a
que o acolhe: personagem que divertia a plateia com suas tro-
cas de linguagem, sua mania de falar da finada
GASPARINO - Um casamento rico, minha senhora, é na mulher e da finada jumenta com as mesmas frases,
minha opinião um emprego mais vantajoso do que e assim por diante. A peça fica devendo muito a
outros tantos que por aí há. Devemos acompanhar arranjos de bastidor, com as mortes convenientes
as ideias do século; longe vão estes tempos em que o de duas personagens (a viúva de Gasparino e o tio
cavaleiro de espada em punho combatia pela sua dama. de Carlos, que nem aparece), mas seu enredo algo
Já não há Romeu nem Julieta, e se ainda existe o amor original se apoia, na verdade, no juízo severo da
platôníco, como o concebeu o filósofo da Antiguidade, natureza humana e da sociedade que, pelo visto,
é tão somente na cabeça dessesloucos que se intitulam França Júnior acalentou desde jovem. A cena em
poetas". que Gasparino confessa impune e descaradamente
como provocou a morte da esposa idosa não deixa
O desenvolvimento da trama, no entanto, de ser interessante e forte, apesar do recurso um
guarda algumas surpresas. A primeira é a chegada tanto cediço do monólogo.
de um rico faZendeiro de São Paulo, o barão de Direito por Linhas Tortas, em quatro ates, de
Cutia, que encarna o tipo do homem de província, 1871, também conta com desenvolvimentos ines-
rude, rústico, algo importuno, mas que no fim re- perados de enredo. Nos seus quatro ates passeia
velasinceridade e honradez. Com suas trapalhadas, pela roça, no interior do Rio de Janeiro, por uma
disputa a mão da jovem, termina se envolvendo sem casa de família na corte, por um movimentado
querer com a mãe, e acaba no fim de tudo retor- baile de máscaras no Teatro Lírico e de volta à casa,
nando para São Paulo, vencido, sem casamento, onde a peça termina. Como Tipos da Atualidade,
mas "puro" como chegou. Só fala na sua jumenta e aliás, termina num impasse, só que muito mais
na sua esposa, ambas mortas e enterradas. _ profundo. A moral de Direito por Linhas Tortas
Na sequência da intriga, Gasparino casa-secom pode se resumir no conselho que o experiente co-
uma viúva que supõe mais rica do que é, e chega a mendador Miguel Peixoto dá ao jovem apaixonado
confessar para o público, num aparte, que aspirou Luís de Paiva, que morre de amores por Inacinha
provocar-lhe uma doença, para que morresse e lhe Arruda, filha do apatacado Fortunato Arruda e sua
deixasse a fortuna, o que termina por acontecer mulher, Leonarda. O singelo conselho é o de que
entre o segundo e o terceiro ato. Neste, Carlos ao se apaixonar pela filha, deve-se estudar a futura
aparece tendo herdado uma fortuna de um tio sogra, pois esta é aquela amanhã. Como convém
ao espírito de França Júnior, nessa vida e nessa
22 E. Cafezeiro, op. cit., p. 22.
sociedade brasileira nada muda, tudo se conserva.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

FrançaJúnior, em caricatura de Angelo Agostini, publicada emA Vida Fluminense,


por ocasião da estreia de Direito por Linhas Tortas, em 1870.

• 239
História do Teatro Brasileiro • volume1

E D. Leonarda é uma feroz senhora que manda e socapa, que fazem isso apenas para não perdê-los,
desmanda, e aos gritos; o marido, meio bobo, só e que no futuro voltarão à carga para reconquistar
quer saber de contar histórias que ninguém escuta. o terreno perdido. Ou seja, a comédia termina em
Logo no primeiro ato, que se passa durante festa no farsa. Felisberta também retorna e declara que vai
coreto do vilarejo em que se desenrola um divertido se casar com Santa Rita, que concorda. A felicidade
leilão, Luís conquista seu objetivo, entregando um sincera dos dois, ambos tipos populares (ele, aliás,
bilhete à jovem pelas artimanhas do leiloeiro, um vivido pelo cómico Vasques), contrasta com a farsa,
baiano criado e agregado da casa dos Arruda, que meio amarga, ainda que engraçada, vivida pelos
se chama Santa Rita Gostoso dos Anjos. seus patrões, o que também lembra o juízo severo
No segundo ato já o vemos casado, com filho, de FrançaJúnior sobre seus pares na escala social.
mas profundamente infeliz. A jovem de sua pai- Em r882 23, por insistência de Artur Azevedo,
xão revelou-se uma megera como a mãe. Ambas França Júnior dá à cena a comédia de grande su-
destratarn em público os maridos, não cuidam do cesso Como se Fazia um Deputado, com três ates,
lar, maltratam os escravos e criados, sobretudo Fe- muita correria, mais alguma música e poesia. Seus
lisberta, jovem mucama que cuida da "toalete" de três ates passeiam por uma casa de fazenda da roça,
Inacinha, e que é alvo da paixão de Santa Rita (que, no interior do Rio de Janeiro, a praça da vila em que
aliás, foi despedido por D. Leonarda). O comen- se passa uma eleição, e depois de retorno ao cenário
dador, voltando da Europa, diante do quadro de- do primeiro ato. O enredo conjuga a tradicional
solador, dá um conselho radical aos dois maridos: intriga amorosa da comédia com os quadros típicos
que finjam fugir, abandonando as mulheres, para dos arranjos eleitorais do tempo do império, que,
dar-lhes uma lição de moral. Ao mesmo tempo, aliás, continuaram pela República Velha.
Felisberta decide fugir com Santa Rita. O pano se Dois potentados da política do município,
fecha sobre uma casa aparentemente desfeita. um liberal (major Limoeiro) e um conservador
No terceiro ato, há uma nova reviravolta. Du- (tenente-coronel Chico Bento), decidem superar
rante o baile de máscaras no Teatro Lírico, fica evi- as contrariedades do passado e unir-se em torno
dente que os dois fujões gostaram da farsa, e caíram de um candidato a deputado, Henrique, sobrinho
de fato na pândega, para desespero do comendador, do primeiro, que se formou bacharel em direito e
que também está no baile, disfarçado de barão da retorna ao lugar do nascimento. Para completar a
Cova da Onça. Ao baile, movimentado e com negociação, os dois "coronéis" decidem que Hen-
vários figurantes, também vêm Felisberta e Santa rique deve se casar com Rosinha, filha de Chico
Rita, além de, disfarçadas, Inacinha e Leonarda. É Bento. Só falta interessar os jovens ...
claro que tal montagem se presta aos inevitáveis O rapaz logo se revela sem ideias próprias,
quiproquós, em que o ex-patrão tenta seduzir a ou seja, é o candidato perfeito; e de saída já vai
ex-criada, Luís se disfarça de mulher, e assim por conquistando a moça Rosinha, que se revela algo
diante. Ao final do ato, há um desmascaramento chucra, mas não palerma. O primeiro ato se de-
geral, para espanto e escarmento de todos. senrola assim entre música dos escravos, que têm
No quarto ato, ocorre o inevitável desfecho um relacionamento que se pode descrever como
da reconciliação de todos e todas, também sob o "cordial" com o paternalismo do major Limoeiro,
patrocínio do barão-comendador, mas com uma a festa da recepção do jovem advogado, os acertos
pitada de malícia e surpresa. Para "resolver" a situa- políticos e o namorico do rapaz com a moça.
ção, o comendador "traz" de volta os fujões, que na No segundo ato tem-se a eleição propriamente
verdade estão arrependidos, mas montam, com o dita, com pancadarias, falsostítulos eleitorais,capan-
amigo, uma farsa em que se mostram irredutíveis gas armados (Pé-de-Ferro, Rasteira-Certa e Arranca-
para forçar as mulheres a aceitá-los de cabeça baixa. -Queíxo), mortos que votam, pobres que vendem
Estas, então, montam uma contrafarsa, aceitando os votos. Domingos, fiel escravo de Limoeiro, que
a volta dos maridos e o novo papel de senhores do
23 A estreia ocorreu a 14 de abril de 1882, no Teatro Recreio
lar que eles querem impingir; mas dizem elas, à Dramático.

• 24°
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

portanto não poderia votar, vota com nome falso, convencionais para essetipo de personagem. É mais
e mais de uma vez; um mascate italiano, que por ali sonsa do que ingênua; mais fútil do que bonita;
passa, também entra na lista, e por aí vai. aprecia que lhe façam a corte por interesse,já que seu
No terceiro ato fica-se sabendo que o rapaz foi pai, o conselheiro Brito, passa por poderoso no Im-
eleito em primeira instância", e que vai tudo aparen- pério. Mas ainda assim ela, Beatriz, sabe reconhecer
temente às mil maravilhas. Sejalá o partido que esti- quando alguém lhe devota um amor sincero, ainda
ver no poder, Henrique a ele pertencerá, pois, como que caricato: é o caso do jovem caixeiro, depois re-
diz o major Limoeiro, não há "dois entes que mais se pórter, Filipe [sic]. É claro que ele levará a palma,
assemelhem que um liberal e um conservador. São bafejado ainda pela sorte, pois ao final da peça se
ambos filhos da mesma mãe, a Senhora Dona Con- revela que um bilhete de loteria esquecido no bolso
veniência, que tudo governa neste mundo. O que do casaco lhe dá um prêmio de 200 contos de réis,
não pensar assim deixe a política, vá ser sapateiro" 2.5 • último argumento que faltava para convencer sua
Mas o jovem resolve desistir da carreira política, amada Beatriz a lhe dar a mão.
aborrecido com o modo fraudulento de sua própria Caiu o Ministériol estreou em julho de r882,
eleição. A quem recorre então o esperto Limoeiro? em momento de grande instabilidade política. Os
À Rosinha, a quem seduz com as imagens da vida ministérios, em geral, nesse fim de regime monár-
na corte, da rua do Ouvidor, dos bailes, das joias quico, duravam um ano, no máximo, ou menos.
etc. Rosinha, que deveria ser a ingênua, revela-se Havia desafios de monta para o imperador; agitava-
a esperta, e cumpre à risca o papel que lhe sugere -se a questão abolicionista, crescia a contestação
o futuro sogro. Convence Henrique a aceitar a republicana, os militares envolviam-se em política,
deputação. Tudo termina em foguetório e festa, e a Igreja Católica andara às turras com o imperador
para culminá-la, de acordo com costume da época, por causa da condenação de dois bispos alguns anos
o major Limoeiro dá a carta de alforria a Domin- antes e a maçonaria também o criticava depois que
gos. Salvam-se todos, condenam-se todos, como é ele os anistiara por insistência de Caxias.
comum no teatro desencantado do autor. Esse clima de agitação política se espelha na peça,
Como Rosinha, a "heroína" da peça seguinte, que começa na rua do Ouvidor, com seu bulício de
Caiu oMinistério I, foge completamente aos padrões "grande cidade" A notícia de que seprepara novo mi-
nistério, e que o conselheiro Brito pode ser chamado
24 As eleições para o parlamento eram realizadas em dois tur-
nos, o primeiro díreto, em que eram escolhidos os membros de para liderá-lo, se espalha rapidamente e atrai mais
um colégio eleitoral. Estes, reunidos, escolhiam os depurados do ainda a atenção para sua filha Beatriz, que só quer sa-
parlamento nacional e a lista tríplice para os senadores em cada
estado, que ia ao imperador para a escolha final. A peça foi escrita ber de falar francês, frequentar bailes, ejogar olhares
sob esse regime eleitoral, mas estreou depois da reforma chamada sedutores para todo lado. Entre os alvos desses olha-
de "Lei Saraivá: que transformou o pleito numa eleição díreta. A
princípio, ela se chamava Como seFaz um Deputado,mas com a res estão Raul, um jovem que a corteja em busca de
reforma teve de se chamar Como seFazia... Quanto à reforma, ela favores do pai, e o inglês Mr, James, que quer montar
em nada melhorou o problema central do sistema de eleições do
Império, que era o da falta de representatividade. Como as insti- um transporte para o alto do Corcovado movido a
tuições eram muito centralizadas, e do governo dependia a nomea- cachorros, e quer uma licença especial do governo,
ção de um sem-número de cargos (até insperor de quarteirão), a
influência do ministério de planrão era enorme em tudo, dividida além de um financiamento. Filipe, que se apaixonou
apenas com os potentados locais, como são, na peça, Limoeiro e por ela ao vê-la comer uma empada, parece-lhe mais
Chico Bento. Como resultado disso, as eleições eram tudo, menos
representativas. Para garantir ou conseguir espaço, os partidos re- um importuno, embora ela vá reconhecer-lhe a sin-
corriam àviolência, e os pleitos eram conhecidos como "aseleições ceridade como predicado ao final.
do cacete".A reforma, fazendo o pleito díreto, reduziu a influência
do governo, mas impôs outra grave restrição. Pela constituição de Mr.James é dos melhores tipos criados por França
1824, podiam votar analfabetos e libertos (só os homens, é claro). Júnior. Tem algo de espertalhão e bobo ao mesmo
Em 1880 o eleitorado brasileiro ultrapassava a casa do milhão de
almas. Pela reforma, que cassou o voto dos analfabetos, ele viu-se tempo. Quer criar um transporte caricato, mas faz fi-
reduzido a cem mil. Criou-se, na expressão do historiador José nas observaçõese críticassobre a sociedade e a política
Murílo de Carvalho, "uma soberania de letrados" ou "uma oração
sem sujeito, uma democracia sem cidadãos". CEJosé Murílo de brasileiras, dominadas pelo favor e pelo clientelismo.
Carvalho, Eleições e Representação Nacional, D. Pedro II, São O segundo e o terceiro aros se passam na casa do
Paulo: Companhia das Letras, 2007, capítulo 23, p. 180-185.
conselheiro, onde Filipe acorre como repórter, para
25 E. Cafezeiro, op. cir., P: 159.

• 24 1
História do Teatro Brasileiro • volume 1

saber se ele vai conseguir formar o ministério, mas quem quiser julgar FrançaJúnior pelo metro do sé-
na verdade para ver Beatriz. Lá acorrem pedinchões culo XXI, convém considerar que, dos comediógra-
e os futuros novos ministros, um mais caricato do fos brasileiros, ele foi dos únicos (talvez o outro seja
que o outro. Mas Mr. James sentencia que esse Qorpo-Santo, de quem trataremos mais adiante) a
ministério não vai durar, porque não há nenhum colocar a questão do feminismo no palco com todas
baiano nele, o que de fato termina acontecendo. as suas palavras e veemência, ainda que para concluir
Por insistência da mulher, o conselheiro abarca que contrariava a natureza, conclusão compartilhada
a causa "cachorral" de Mr, James, que assim terá di- por muitos e muitas na época (e ainda hoje). Tinha
nheiro para ser um genro rico. Mas decide submeter ele essaagudeza de perceber como as novidades iam
o projeto ao parlamento e perde; o ministério cai alterando a paisagem daquele Brasil que deixava a
antes de subir, mas o conselheiro fica feliz. Perdeu, mesmice de quase meio século de monarquia para
mas ganhou: perdeu na política, ganhou a paz de mergulhar nas modernidades que, se não lhe altera-
espírito. E com o providencial bilhete o jovem Fi- vam o fundo, pelo menos lhe agitavam a superfície.
lipe "livra-o" também da filha dispendiosa. Mais Assim é, por exemplo, na cena I do segundo ato,
uma vez, vence a cordialidade brasileira, que tudo quando a criada Eulália, que acompanha tudo com
arranja para a felicidade geral dos bem aquinhoados. seus trejeitos engraçados, atende o telefone e, diante
A última comédia que temos de França.júnior, do ruído na linha, não consegue identificar se a cha-
de 1889, As Doutoras, é das mais controversas. mada é para a patroa ou o patrão: o instrumento
Vista de hoje, é uma peça "reacionária' sobre a "moderno': então grande novidade, intensifica o
condição das mulheres. Seu enredo gira em torno conflito latente. Ou quando o dr. Pereira explica o
da disputa que se põe entre marido e mulher, o que é a vacina contra a febre amarela para a criada, e
dr. e a dra. Pereira, ambos médicos formados, e quer injetá-la em seu braço: não deixou o comedió-
que querem exercer a profissão. Não dá certo: o grafo de "antecipar" a futura Revolta da Vacina, de
marido sente-se desonrado pela "concorrência" da 1904, durante o governo de Rodrigues Alves.
mulher, ela sente-se sufocada pela pressão daquele.
Há elementos próximos que complicam a situação:
o pai da dra. Luísa Pereira faz um papel de sonso Artur Azevedo
que estimula a independência da filha; a dra. (ou-
tra...) Carlota Aguiar, dessa vez em direito, prega Deu FrançaJúnior contribuição notável para con-
a independência das mulheres. O divórcio torna-se solidar a tradição da comédia de costumes. Quando
inevitáveL Mas em nome da mesma independência, ele morreu, em 1890, seu amigo Artur Azevedo
a dra. Carlota resolve assumir a causa do marido (1855-1908) já era o senhor quase absoluto dos
de Luísa. Aliás, resolve assumir o próprio ma- palcos da corte num gênero vizinho, o teatro de
rido, pois decide-se a seduzi-lo. Entretanto, o dr. revista, que puxava a fila extensa do teatro musi-
Martins, amigo da casa, que está apaixonado pela cado. Entretanto o próprio Azevedo também deu
dra. Carlota, decide abraçar a causa da mulher do sua contribuição para fixar a comédia de costumes
amigo. A confusão está completa, e lá se vão três propriamente dita, praticando-a extensamente.
aros. Entretanto, ao findar o terceiro, quando nada Como França Júnior, Artur Azevedo também
parece que vai salvar o casal, Luísa desmaia ao ler praticou a comédia curta, em um ato. Nascido em
uma carta de Carlota para seu marido, em que o São Luís do Maranhão, lá estreou sua primeira
convida para visitá-la a sós no escritório. Todos comédia do gênero, aliás a primeira de sua car-
acorrem: ela está grávida, a família está salva! reira de dramaturgo, escrita quando tinha quinze
O quarto ato é uma apoteose à feminilidade anos": Tinha duas personagens e um figurante, e
convencional. Luísa desistiu da carreira, dedica-se ao
filho e ao lar. Carlota casou-se com Martins, desistiu 26 Dados blo-bibliográficos sobre Artur Azevedo podem ser
da advocacia e da causa feminista, tendo uma filha consultados em: ArturAzevedo:Ensaiobio-bibLiográfico, de Ro-
berto Seidl, Rio de Janeiro: ABC, 1937; e Artur Azevedo e sua
a quem se dedica integralmente. Entretanto, para Época, de R. Magalhães Jr.

• 24 2
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Artur Azevedo em seu gabinete de trabalho.

chamava-se Amor por Anexins. Anos mais tarde Airida bem jovem e no Maranhão, Artur Aze-
a peça foi à cena no Rio de Janeiro, depois que o vedo escreveu o recitativo A Porta da Botica, em
autor para lá se mudou, em 1873. A comicidade que seu Aniceto, um "tipo da atualidade", fica à
é simples, e baseia-se na compulsão de um velho porta do seu estabelecimento fuxicando a vida
senhor, Isaías,por anexins. Não para de os dizer, e é alheia, em versos bem arranjados. Fala deste, fala
com eles que pretende conquistar a viúva Inês. Esta, daquele, do vizinho, do passante, do mundo in-
a princípio, se aborrece, e o repudia. Mas ao fim, teiro. No fim, descobre por uma carta que lhe cai
recebendo missiva de outro pretendente pelas mãos nas mãos, que alguém lhe namora a filha, que até já
de um carteiro (o figurante), descobre que o pre- tem um filho: é sua punição, por ter cuidado mais
tenso noivo a desdenhou por um casamento com da vida dos outros do que da sua. Mas como para
uma mulher rica. Desiludida, conforma-se com o autor tudo tem de se arranjar, o falador decide
os anexins de Isaías, e até diz-lhe alguns. A peça perdoar o par amoroso e casa os jovens.
revela um conformismo bonachão com a vida, que Uma Véspera de Reis, ainda que de coreogra-
nunca deixará de todo o teatro de Artur Azevedo. fia mais complexa, com música e dança ao final
Perguntada se ama Isaías, a viúva lhe responde: (quando o rancho de Reis adentra o palco) também
"Sossegue: o amor virá depois. Seja bom marido prima pela simplicidade do enredo, de todo previ-
e deixe o barco andar! "27 sível. Emília, jovem casamenteira (e namoradeira),
está apaixonada pelo jovem estudante de medicina
27 Teatro de Artur Azevedo, tomo I, Rio de Janeiro: Instituto
Nacional de Artes Cênicas, 1983, P: 77. (na Bahia, onde se passa a ação) Alberto. Mas o

+ 243
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-- - - --- - - - - ~ ~
... ~

Depois de alguma confusão tudo se esclarece, e reu e deixou tudo o que possuía para a afilhada
tanto os jovens como os compadres ficam felizes. Rosinha, menos os escravos, que alforria por tes-
Isso também é próprio de Artur Azevedo: querer tamento. Mas como a herdeira só pode entrar na
contentar a rodos, sempre que possíveL ~ase não posse dos bens com a condição de casar-se com o
há vilões em suas comédias, e tudo nelas se ajeita. primo Ramiro, tudo se resolve a contemo, pois D.
ComA Peledo Lobo, estreada em 1877, Artur Perpétua tem de se conformar com a decisão. Tudo
Azevedo foge ao enredo casamenteiro. Seu motivo se concilia, de acordo com os propósitos gerais do
é tão somente um casal que tenta sair para ir a um autor. O fazendeiro escravista sai de cena, depois
batizado, de que são padrinhos. Ocorre que o ma- de ver um membro de sua classe social a ele se
rido "vestiu a pele do lobo': isto é, aceitou ser sub- contrapor pelo gestO da alforria; e D. Perpétua é
delegado de polícia, de olho numa promoção para punida pela morte do escravo, pois antes recusara
éargo maior. Por isso não consegue sair de casa com a indenização, cujo valor agora será empregado
a mulher, pois um queixoso bastante importuno para dar ao morto um enterro decente. Lopes fe-
e demorado entra-lhe pela porta adentro e fica a cha a peça, que mais deveria se denominar, quem
importuná-lo, denunciando um supostO ladrão de sabe, tragicomédia, com uma lição de moral: "(A
suas galinhas e de seu galo. No fim, o denunciado Ramiro) - Disseste que o Liberato simbolizava a
também entra, e como é de briga, arma enorme escravatura; vês? Decididamente a morte é o único
confusão até ser preso. A ambição do subdelegado meio eficaz de ernancipação't".
é punida, pois para concluir chega-lhe a notícia de A Mascote na Roça é de 1882, e é paródia de
que outro foi nomeado para o cargo pretendido, e representação que se dava na corte, de uma peça
não só isso: ele foi demitido da subdelegacia. Mas intitulada A Mascotew. Colocar a cena na roça,
a punição cai-lhe bem: ele livra-se do cargo incô- abrasileirando-a, é recurso comum no teatro do
modo e consegue afinal sair para o batizado. Como XIX e também para Artur Azevedo, seja na adap-
de costume, tudo se concilia. tação ou até na tradução. Esse fora o caso de A Fi-
Em 188 I, Artur Azevedo aborda o tema da abo- lha deMaria Angu, adaptação de La Fillede mme.
lição, em peça de um ato dedicada a Joaquim Na- Angot, de Clairville, Siraudin e Koning, um dos
buco. Chama-se O Liberato, nome de um escravo primeiros sucessos do autor. Nesse caso, trata-se de
que não aparece em cena, pois está doente. É uma um quiproquó devido ao nome da peça. O major
estranha comédia, pois a personagem, ao final, Hilário está mal de vida: só lhe chegam notícias
acaba morrendo. Na peça confrontam-se um jovem ruins (nesse sentido, como se verá, além de paródia
abolicionista, Ramiro, e um fazendeiro escravista da outra peça, a comédia parodia o Livro deJó, da
e mais velho, Moreira. Disputam não apenas por Bíblia). Seu gado se perdeu, sua vaca foi picada de
suas ideias, mas também a mão de Rosinha, prima cobra, um escravo fugiu, e chega um enviado de
do segundo. Quem manda em Rosinha, ou assim seus credores a cobrar-lhe a dívida. Mas em meio às
acha, é sua mãe, D. Perpétua, dona do escravo, que trapalhadas, chega-lhe a escrava Forrunata, com um
recebeu por herança, e que trata a todos, inclusive bilhete de seu irmão, que diz lhe enviar um cesto
o marido, como seus escravos. Ramiro pretende de ovos e "uma mascote". Junto chega o coronel
dar a liberdade a Liberato, que logo no começo da Raposo, tipo mandão do lugar (vivido na estreia
peça sabe-se que está doente. Seu pai, o dr. Lopes,
concorda com o jovem e se dispõe a indenizar D. 28 Teatro deArtur Azevedo, tomo I, p. 664.
29 A Mascote deve ser tradução ou adaptação da opereta francesa
Perpétua, que é sua irmã, com quinhentos mil réis, La Mascotte, de Edmond Autran, com libreto de Alfred Duru
que ela recusa. Depois de muita discussão, em que e Henri Charles Chívot, Trata ela de uma camponesa, na Itália,
chamada Bettina, que traz boa sorte para quem com ela conviver,
fica clara a simpatia de Artur Azevedo pela causa contanto que permaneça virgem. A opereta estreou em Paris em
abolicionista, dá-se uma solução ex-machina. No 28 de dezembro de 1880, e teve imediato sucesso na França, nos
Estados Unidos, na Inglaterra e em outras partes do mundo,
momento em que D. Perpétua decide que vai dar inclusive no Brasil.

• 244
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

pelo famoso ator Xisto Bahia). Ambos acham que Ernesto, que o primeiro protegia, e sobretudo a
a mascote deva ser a escrava, e ficam disputando maledicência pública. Ao final, sobra um tanto de
sua posse, pois, de acordo com a peça que está em lição, pois diante da morte do irmão, sentencia D.
cartaz na corte, cuja notícia o enviado dos credores Severo que não se deve colocar "marmanjos" dentro
(Silvestre) traz, uma mascote feminina só pode tra- de casa... 30
zer boa sorte a seu possuidor. O coronel e o major Em 1893, Artur Azevedo publica Como Eu
põem Silvestre no papel de juiz do caso, pois este Me Diverti!, a que chama de "conto-comédia', em
diz que é "doutor" formado em advocacia. Com OÁlbum. Jorge, rapaz empregado do comércio e
mil e uma citações falsas ele engambela o coronel e noivo, passa a noite de Carnaval em estrepolias e
convence-o não só a indenizar o maj or pela escrava, brigas, por causa de uma prostituta. De manhã,
como a assinar as letras que ele deve. A partir daí de ressaca, dorme; a dona da casa onde ele mora
tudo de ruim acontece ao coronel, que se machuca, chama um médico, que nada mais é do que padri-
e recebe a notícia de que sua casa pegou fogo. E nho de sua noiva. Inteirado de tudo, ele diz que
tudo de bom acode ao major, que recebe a notícia vai impedir o casamento, fazendo o rapaz assim
de que seu gado não se perdeu, de que ganhou na perder, além da noiva, um dote fabuloso. Depois
loteria etc. O caso se explica: a "mascote" a que se entra o dono da casa de comércio onde o rapaz
referia a carta não era a escrava, mas um exemplar trabalha e diz que vai despedi-lo. Ao fim e ao cabo
da peça teatral, escondida no fundo do cesto de o rapaz acorda, estremunhado, e diz a frase título:
ovos. Fica assim uma mensagem subliminar de que "Como me diverti!" O que fica de moral é menos-
quem traz sorte ao Brasil é o teatro brasileiro... Mas a defesa dos costumes familiares, pois a posição
para que tudo acabe bem, a peça termina em apo- dos moralistas é exagerada, e mais a sugestão, de
teose cantada em que a figura principal é o coronel, acordo com o espírito conciliador de Azevedo, de
que assim conquista as graças da plateia. que, se alguém fizer estrepolias, que o faça bem,
Em 1884, foi à cena Uma Noite em Claro, na sem denunciar-se...
noite em benefício da atriz Isolina Monclar, É um Em 1895 vai à cena o entreato Entre o Vermute
pequeno quadro cênico em que por engano uma e a Sopa, pequeno quadro sobre as artimanhas, os
mulher casada e um homem desconhecido ficam caminhos e os descaminhos do amor. Amélia, viúva
trancados num quarto de hotel no Rio de Janeiro, há oito anos, tem um pretendente: Félix Pacheco,
enquanto o marido dela, sem saber de nada, dorme jovem funcionário de repartição. Conversa com sua
no quarto ao lado. O móvel da cena são as trapa- tia a respeito, e conta-lhe que, para ajudá-la a se
lhadas entre ambos, provocadas pela excitação e decidir, convocou o tio do rapaz, o doutor Pacheco,
pela hesitação do desconhecido ao se ver a sós com velho amigo da família, que retornou de uma de
uma mulher bonita num quarto de hotel. O pano
de fundo da pequena peça (que complementava 30 El Gran Galeotto, peça em verso do dramaturgo espanhol]osé
Echegaray (1833-1916), é de 1881. O "grande Galeorro" da peça
outra no esperáculo beneficente, A Morgadinha de é a maledicência pública sobre Ernesto e Teodora que, é verdade,
Vál-Flor, de Pinheiro Chagas) é a movimentação se amam, mas não traem concretamente o marido dela, D. Julián.
Mas o mal dizer da cidade cai sobre eles como uma maldição,
urbana que cresce na corte, e possibilita tais qui- provocando duelos mortais, a morte de D. Julián, a maldição de
proquós na vida e no teatro. D. Severo. No final, Ernesto se rende, dizendo que se a voxpopuli
empurrou Teodora para ele, ele vai aceitar o fado e fugir com ela,
Paródia é também o pequeno interrnezzo, em desonrando-a. O nome Galeotto tem origem curiosa. É uma re-
dois quadros, O Gran Galeoto, publicado junto ferência, em primeiro lugar; ao 52Canto do "Inferno" de Dante,
onde está o episódio de Paolo e Francesca. Os dois se apaixonam ao
com a revista de ano Cocota, levados ambos à cena ler um livro, que vem a ser o dos amores de Lancelore e Guinevere,
em 1885. Rearranjando com grande brevidade os do ciclo arturiano. O cavaleiro que aproxima estes dois chamava-
-se, na versão francesa-normanda, Gallehault (houve quem o jul-
acontecimentos do dramaEI Gran Galeotto, do es- gasse idêntico ao Galahad da busca do Graal, mas essa hipótese é
panhol José Echegaray, Artur Azevedo condensa contestada por muitos estudiosos), cuja tradução em Italiano era
Caleorco. E o episódio do ciclo arturiano era também conhecido
a disputa entre o marido supostamente traído, D. com o nome de "Livro de Caleotto" Por isso esse nome era citado
Julião (na versão brasileira), seu irado irmão, D. na Itália como sinônirno de "alcoviteiro" "Príncipe Caleotto" é
também o subtítulo do Decamerão, de Giovanni Boccaccío, numa
Severo, a encantadora e ingênua Teodora, o jovem alusão à mesma personagem.

• 245
História do Teatro Brasileiro • uolume 1

suas tantas viagens pelo mundo. Pede à tia que, Inédita ficou a farsa As Sobrecasacas, comédia
quando ele chegar, ela se retire, deixando-os a sós, o que o autor diz "adaptada à cena brasileira", de
que de fato acontece. Ela serve-lhe um cálice de ver- 1904. O quiproquó é a base da ação, mas não en-
mute, e faz-lhe a esperada indagação. O improvável tre pessoas, e sim entre as vestirnentas que levam
acontece: o tio a desilude quanto ao sobrinho, que aquele nome. Coutinho, pai pressuroso, quer casar
é fátuo e vaidoso.lvlas em compensação encanta-a a filha com alguém que ele vê como conveniente,
com sua filosofia de vida. Para adoçar mais a pílula, mas ela não, pois vem a ser rústico demais. Além
revela-se uma coincidência espantosa. O doutor disso, ela já deu seu coração a Aquiles, afilhado do
amara na juventude, mas sua amada, também de pai. Este tem uma mania: adora sobrecasacas. Para
nome Amélia, morrera no dia 2 de junho de 1864, agradá-lo, o rapaz Aquiles veste uma sobrecasaca
o mesmo em que a jovem viúva nascera! De modo que encontrou na rua, por acaso, mas que vem a
que quando a tia volta à cena para anunciar que a ser de Novembro, amigo da casa, que vem visitar
sopa do jantar está pronta, Amélia está comprome- Coutinho. Novembro, por engano, veste aso breca-
tida, não com o rapaz, mas com o sábio doutor. En- saca de Aquiles, que é velha e puída. Essa primeira
tre o vermute e a sopa, como diz o título, revelou-se troca de vestimentas é base para outras, que vão
algo que aparece com constância em quase todos os enredando as personagens até que se manifeste e se
escritos de Artur Azevedo: amar é coisa do destino. esclareçao amor do rapaz pela jovem, que se chama
Em 1897 volta ele à paródia, com Amor aoPelo, Miloca. Completa a cena uma criada portuguesa,
sátira em verso que tem por base a peça Pelo Amor!, Maria, que é "quem sabe das coisas", e termina,
de Coelho Neto. Há muitas palhaçadas, em que com sua sinceridade, por tornar público o amor
não faltam toques de metateatro, como um Bobo, do jovem par amoroso, que se realiza. Quanto ao
no castelo que é cenário da peça, começar a decla- outro pretendente, ele termina desgostando o pai
mar o monólogo "ser ou não ser" e depois dizer da moça por vestir a sobrecasaca errada. E assim
que começou a fala errada; ou então a entrada todas as conveniências ficam preservadas: o amor
do contrarregra em cena para expulsá-lo e fazer a sincero termina por receber a bênção paterna.
mutação devida. Novamente aparece essa filosofia Em 1907, um ano antes de morrer, Artur Aze-
bonacheirona de Azevedo, pois a peça trata de um vedo estava em plena atividade e criou ainda duas
conde farrista que quer enganar a esposaparecendo comédias curtas: O Oráculo e Entre a Missa eoAl-
doente. Esta descobre a trama, e promete espancá- moço. Na primeira, dedicada a Eduardo Vitorino,
-lo com uma vara de marmelo; a situação só se re- Artur Azevedo recorre ao tradicional expediente
solve quando se inverte. O conde toma-lhe a vara de esconder uma personagem para que ela escute
e passa a ameaçá-la; ela então o perdoa e elogia sua a conversa dos outros. Ela é Helena, jovem viúva;
disposição. Ele, em contrapartida, promete ser-lhe os outros são Nelson, seu amante, e Frederico Pon-
fiel, e, como convém, tudo acaba em maxixe. tes, solteirão e comendador. Nelson quer romper
Em 1901, vai à cena Uma Consulta, em um ato. a relação com Helena, mas não sabe como, por-
É uma cena leve, a que não faltam toques provo- que, no fundo, não tem motivos: ela é a amante
cantes. Uma viúva, tomada de palpitações e ner- ideal. Ideal demais, este parece ser o seu defeito.
vosismo, vai consultar um médico famoso; entra O comendador sugere ao amigo que monte uma
por engano no consultório de um advogado jovem farsa, que finja saber de algo incriminador sobre
e solteiro. Do quiproquó nasce uma promessa de ela, uma traição talvez. Ouvindo tudo, Helena
amor que, para o público, certamente se realizará. monta uma contrafarsa. Depois de sair à socapa,
Novamente o enredo atende ao princípio de Artur retorna a casa e finge ter, de fato, algo a ocultar, um
Azevedo, que é de que com jeito, à brasileira, tudo outro amante no passado. Tomado pelo ciúme (o
se arranja. Ao saber do engano a viúva, ainda jovem ingrediente que faltava), o jovem Nelson a pede em
e bonita, a princípio se escandaliza; mas depois casamento e ela consente: o tosquiador sai, assim,
convence-se das boas intenções do advogado, e tosquiado.. E o outro também, pois quando a sós
concorda em recebê-lo em sua casa. com o comendador, Helena lhe revela que ouviu
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

tudo e neutralizou seu estratagema. No fim, só uma encontra com uma cortesã que o ilude, e ainda o
personagem é punida: o criado que, algo mandrião tema do futuro genro que na verdade é um pân-
e amigo do ócio, agora vai ter uma dona de casa que dego, permanecerão no teatro de Azevedo, sendo
vai-lhe acabar com a paz. retomados depois na revista O Tribofe, de 1892
Na segunda, volta à cena, modificado, "o grande (sobre 1891) e na comédia-opereta dela derivada,
Caleotto": a maledicência pública. Um grupo de A CapitalFederal, de 1897.
senhoras, de volta da missa, se dedica a estraçalhar Em 1882 vai à cena A Casa de Orates, uma das
a vida e a reputação alheias. No caso, trata-se do mais divertidas do autor, e uma das tantas em que
dr. Arnaldo, cuja mulher é tomada de ciúmes. houve colaboração de Aluísio Azevedo. Um pai
Arnaldo, que está pelos arredores, entra na casa (comendador Manuel) tomado excessivamente
e expõe para elas o seu caso: a maledicência e as pelos ardores da ciência decide passar pelo crivo
desconfianças infundadas da mulher acabaram médico os pretendentes da filha (Júlia) que, é claro,
com seu casamento, e ele está para divorciar-se. E já tem preferido. A peça faz assim uma crítica ao
o objeto comum da maledicência e da desconfiança cientiíicismo que começava a dominar o pensa-
da esposa é uma das senhoras que ali estão. Depois mento da época, através do positivismo na filosofia
deste gesto de desagravo,Arnaldo sai, e as senhoras, e do naturalismo nas artes. É esperado e claro que
perplexas, são obrigadas a rever seu conceito sobre os encontros entre os pretendentes, os pais da moça
o caso e a personagem. É uma comédia curiosa, e o médico chamado, o dr. Fortes, darão origem a
para dizer o mínimo, pois revela certo toque de vários quiproquós e confusões, com cenas côrni-
amargor que é estranho às outras comédias curtas, cas derivadas dos apalpamentos, dos exercícios e
que primam sempre pela brejeirice. Esse amargor, das confusões de identidade. Os pretendentes são
ou gota de desilusão, Artur Azevedo reservava por o bacharel Pereirinha, um militar, o Capitão, e o
vezes para alguns de seus contos. primo da moça, Cazuza, que ela convence a entrar
Nas comédias longas, Artur Azevedo não re- na disputa para confundir os demais. Na confusão,
nunciou àquela brejeirice. Ao contrário, com muita ela foge com seu amado, Roberto. Mas todas essas
frequência estendeu-a por dois ou três ates, em personagens convergem para a Casa de Saúde do
prosa ou em verso. dr. Fortes, que na verdade é um rnanicômio, a Casa
Em verso foi sua peçaA]oia, levada à cena em de Orares, onde Roberto trabalha. Mas a confusão
1874, no Rio de Janeiro. O autor chamou-lhe é tanta que não se sabe qual é a verdadeira Casa de
drama; mas mais parece comédia. Segue um dos Orares, se a do doutor, ou a do comendador.
temas do tempo, ainda que seja tardio: as "cocotas', . A base das confusões é o cientiíicismo leigo.
ou cortesãs, e os estragos que causam à moralidade Todas as personagens acham que alguma outra
vigente. Consiste a comédia nas tramas da cocota está louca, e querem enfiá-la na Casa de Orares.
Valentina que quer apossar-se de brilhantes for- Para aumentar o quiproquó generalizado, entra
mosos que um joalheiro vende por seis contos de na Casa de Saúde uma ex-namorada do dr. For-
réis. Planeja que um de seus amantes, o ingênuo tes, que deseja que ele lhe arranje a vida. Tomada
Carvalho, fazendeiro do interior, lhos dê e pague. de ciúmes, a mulher do doutor confunde Júlia,
Arma-se uma tramóia entre ela, o joalheiro, e seu levada para lá por Roberto, com a ex-namorada
cáften, Gustavo. Mas tudo se atrapalha porque da do marido. Tudo leva tempo para se deslindar,
mesma terra de Carvalho vem o fazendeiro Sousa, pois Júlia passa a acreditar que essa ex-namorada
cuja filha se enamorou de Gustavo. Vindo à corte é mulher de seu amado Roberto, enquanto os pais
para tirar a limpo quem é, de fato, o futuro genro, dela acham que foi o dr. Fortes que a raptou. A
Sousa descobre tudo, e salva Carvalho da armadi- peça abusa um pouco desse enredamento de qui-
lha em que se meteu. Peça de jovem recém-chegado proquós, mas, no palco, é bem divertida. Ao fim,
à corte,A]oía tem recorte moralista que depois se como é de costume, tudo se arranja, conciliando
arrefecerá. Entretanto se assinale que seu motivo a vontade dos namorados com a vontade dos pais.
central, o de fazendeiro que vem para a corte e se Os outros pretendentes revelam-se doentes ou

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História do Teatro Brasileiro • volume 1

defeituosos (o Capitão tem uma perna de pau), (a autoridade do pai de família) com o direito ao
enquanto Roberto, que é anêmico, promete fazer amor (a felicidade da filha). Mas fica no ar a ideia
exercícios, fortalecer-se e assim dar muitos netos de que os homens são joguetes diante da sagacidade
ao comendador, que é o que ele quer. É curiosa a feminina, e da inevitabilidade do amor. Ao final,
participação, nessa comédia, de Aluísio, que, nos entrando com os trabalhadores para desmanchar o
seus romances, por vezes tecia loas ao mesmo armário, o marido conta para o amigo Manuel que
cientificismo que nela aparece caricato. a mulher, de brincadeira, tentou convencê-lo de que
AAlmanjarra, de r888, tem dois aros apenas. havia um homem escondido no armário... o que, no
Mas é original: do par amoroso, vemos apenas a fim de contas, é a pura verdade.
futura noiva, Isabel. O pai, é claro, quer casá-la o
De r898 é Badejo, uma das comédias longas, e
com outro, mais rico e mais velho. Mas do amor em verso, de maior sucesso de Artur Azevedo, tendo
contrariado nasce um fio de indiscrições que levam sido representada inclusive em Portugal (ainda que
a princípio o inamovível pai a consentir na von- com outro nome, A Garoupa)3 I • Um pai preocupado
tade da filha. Apresenta-lhe o acaso um salvador, (João Ramos), diante de dois pretendentes para a
de nome Ernesto, que impediu ser ele atropelado filha (Ambrosina), deseja fazê-la decidir por um
por um bonde. O pai (Manuel) pede-lhe conselho. deles, convidando-os para um almoço em que será
Ernesto diz que consinta na vontade da filha, caso servido um opulento badejo, entre outras iguarias. É
contrário, ela poderá tomar o amado por amante claro que os dois são inconvenientes, e que amoçase
no futuro. E conta-lhe que ele mesmo visita certa vê depois enamorada por seu irmão de leite, Lucas,
mulher casada, cujo casamento lhe fora negado, e que chega de surpresa de São Paulo, onde reside. O
que, no outro dia, ao ser surpreendido pelo marido, trabalho deste e da peça será o de desmascarar para
escondeu-se no grande armário (a almanjarra do o pai os outros dois pretendentes, tudo enquanto o
título) que eles têm na sala. Ora, esta mulher e badejo, fora de cena, é devorado, e em versos, cuja
seu marido são amigos da casa de Manuel, e lá vão finalidade é o aumento da comicidade. Diz Lucas,
visitá-los. A história do armário é repetida, agora por exemplo, ao final do primeiro ato:
sob outro ângulo. Ela (Rosália) diz a Isabel, quando
a sós, que aceite o casamento e depois traia o ma- Escolhe um deles? Pois sim!
rido. Assim se encerra o primeiro ato. Meu velho, pelo que vejo,
O segundo se passa em casa de Rosália. Ela se vê Perdes o tempo e o latim,
forçada a esconder de novo o ex-namorado, candi- Pra não dizer o badejo>.
dato a amante, no armário. Surpreendida pelo ma-
rido, ela lhe diz a verdade, isto é, que há um homem Dos pretendentes, um é um janota envaidecido, e
escondido no armário. Depois inventa que foi para o outro um comerciante aborrecido que só pensa em
testar a confiança dele, no que ele acredita. Isto é, o comércio. Ao deles desiludir-se, a jovem Ambrosina
marido enganado não crê na verdade e acredita na revela seu amor por Lucas, e vice-versa. Logo têm a
mentira. Enquanto o marido sai para buscar quem bênção da mãe, falta a do pai. Imagina Lucas um es-
desmonte e leve o armário, chegam Ribeiro e a fa- tratagema para livrar-se dos dois pelintras. Convence
mília. Ele é que surpreende o ex-namorado dentro logo o pai de que elesnão lhe servem como genros, e
do móvel. Compreensivamente, diz que não revelará que ele deve testá-los. Faz a um confessar (uma men-
a verdade ao amigo. Ernesto, arrependido, diz que tira) que é pobre; o truque funciona, o comerciante
vai embora para São Paulo; Rosália fica convencida se vai. Ao outro, o janota, o pai exige trabalho. Para
da temeridade e da inutilidade de sua aventura (que, espanto de todos, o janota topa: apaixonou-se deve-
sexualmente, para conveniência da comédia, não se ras ao ver a moça tocar bandolim, depois do almoço
realizou). Convencido pelas circunstâncias, o pai com o badejo (de que, aliás,muito sobrou). Chegou,
cede à realização da vontade da filha. Como sempre,
ou quase sempre, Artur Azevedo concilia (como é 31 Pelo menos na época, "badejo" era também termo de gíria,
em Portugal, para o sexo da mulher.
próprio desse tipo de cômico) a instituição familiar 32 Teatro deArtur Azevedo, tomo IV, p. 471.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

no entanto, ahorada verdade: Ambrosinachama-o, final do século XIX e começo do xx, em que certos
e diz-lhe que ama Lucas, seu irmão colaço. Ali onde aspectos da higiene dos tratamentos ginecológicos
a mentira não serviu, abre as portas a verdade. Desi- ainda engatinhavam. Ao final, há uma reconciliação
ludido, o indesejado se vai. Realiza-se a união feliz, geral: como pusera anúncio em jornal perguntando
com o pai dando aos dois uma reprimenda original: pela mãe de Elvira, Augusto tem agora em sua casa
por que não lhe disseram logo a verdade? Assim, não mais outras seis senhoras idosas que poderiam ser
teria gasto o badejo. mãe da sua esposa. Ele convida todas para almoçar:
Em 1906, Artur Azevedo escreveu, com Mo- em vez de quatro, tem agora dez sogras, entre as ver-
reira Sampaio, que lhe serviu de parceiro em muitas dadeiras e as possíveis, para a refeição. Fica no ar ou-
revistas de ano, a comédia em três atos O Genro de tra crítica sibilina de Azevedo: ao anúncio por uma
Muitas Sogras. O motivo central da intriga é, mais filha perdida, oriunda de amores à socapa, acudiram
uma vez, a contrariedade ao amor, que engendra muitas mulheres, sinal de que os costumes nem tão
quiproquós e confusões, ou seja, uma perda ou rígidos eram, na realidade.
perdas de identidade, que só serão sanadas com Em 1907, dá ele à cena a última de suas co-
a revelação dos sentimentos amorosos, sejam os médias longas: O Dote, dedicada a Júlia Lopes de
novos, sejam os antigos. Almeida. Tem por motivo central a vida perdulária
O protagonista é o ainda jovem (nem tão jo- das mulheres que se acham ricas porque trazem um
vem ...) Augusto de Almeida, que se casou três vezes. pecúlio ao casamento, ressoando velho tema do
Morreram-lhe as esposas, ficaram as sogras, e ele as teatro realista do tempo de Alencar. O retorno de
carrega como um condenado às galés. Uma é abor- um velho amigo, Rodrigo (nome da personagem
recida e furiosa, a outra é desvairada e romântica, a alencariana de O Crédito), faz com que o jovem
terceira, com quem se dá, é mais cordata e amorosa. marido Ângelo passe em revista sua vida. É feliz e
Mas decidido a ter filhos, Augusto decide casar-se infeliz: casou com quem almejava, a doce Henri-
mais uma vez. Fá-lo com uma enjeitada; mas ao queta. Mas a moça é volúvel, perdulária, e sempre
assim proceder, consegue na verdade não uma, mas lhe joga na cara que trouxe um enorme dote ao
duas novas sogras (ainda que uma delas seja das an- casamento. Compra chapéus, anéis a mancheias.
tigas, mas que se vem a descobrir que é a verdadeira Mas o marido não quer feri-la, dizendo que eles
mãe da enjeirada, Elvira). A outra é a mãe de criação não têm meios para tudo isso. Como muitas vezes
de Elvira, cuja casa é devorada num incêndio. Salva- acontece nas peças de Azevedo, a falta de comu-
-o dos apuros uma série de coincidências, como nicação é a insuspeita responsável pelo quiproquó
convém a esse tipo faceta de comédia. Seu amigo central, que perturba a vida das personagens. Para
Guilherme retorna ao Brasil depois de dezoito anos completar a cena, o pai da moça é, na definição
de vida na Europa: é ele o pai de Elvira, e vai en- do severo Rodrigo, "um idiota': e a mãe tem bom
tão se casar com a mãe da moça. Outra das sogras coração, mas é impotente.
encontra seu apaixonado num cultar ao extremo da A verdade, a surgir, lá pela abertura do segundo
língua portuguesa, o conselheiro Guedes. Casa-se ata, vai doer em todos. Na moça, que não poderá
ele com uma mulher a quem considera um dicio- mais gastar, mas, sobretudo, em Henrique, que vê
nário, pois conhece termos inusitados, mas que ele se esboroar seu sonho de vida familiar. Para com-
julga originais e castiços, como "sundeque":", Ainda pletar seu infortúnio, está nas mãos de um agiota,
outra: a mãe de criação de Elvira tinha seguro, logo que pode mandar prendê-lo>, O pai de Henriqueta
vai recuperar o valor da casa etc. está convencido de que se o jovem esposo está em
Mas apesar da leveza da comédia, ela se apoia em dificuldades financeiras, é porque gasta com mu-
tema áspero: a enorme mortalidade das mulheres ao lheres (outro tema do teatro realista). O divórcio
é inevitável, Ângelo vai morar em casa de Rodrigo.
33 Sundeque: deve significar "umbigada". MariaJosé, a sogra
impertinente, ameaça Felícia, a sonhadora e mãe de Elvira, com
um "sundeque" De "sundo", termo quimbundo que designa a 34 Ao tempo, as pessoaspodiam ser presas por dívidas, inclusive,
região externa do sexo feminino. a credores privados.

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História do Teatro Brasileiro + volume 1

Para tão angustiante situação, só há uma saída; esposa e a família e a um processo de interdição
ou melhor, uma entrada. Uma entrada em nova judicial que o fez muito penar. Em r868, foi en-
vida) de todo. Como acontecia na comédia de viado preso para o Rio de Janeiro, para exames de
costumes e no teatro de Artur Azevedo, trata-se de sua sanidade ou insanidade mental. Voltou reabi-
um filho, que trará juízo à mulher, compostura ao litado e livre.Mas em novo processo acabou sendo
avô, e tranquilidade ao pai. Assim acontece, e tudo interdito e perdendo o pátrio poder sobre a família.
se reconcilia na família agora feliz, embora pobre. Entretanto tinha posses;não conseguiram privá-
Pobre? Não, remediada, apenas. Mas fica a lição -lo de todo delas. Tornou-se dono de uma tipo-
sempre aproveitada pelo dramaturgo maranhense: grafia na capital, Porto Alegre, onde vivia. Ali, na
na sociedade empelicada de então, a moralidade década de r 870, passou a imprimir tudo o que
aceita é a da conveniência, e a da aparência; por escrevera: aforismos, poemas, receitas, bilhetes,
isso Henriqueta gasta o que não tem. Mas para a cópias de jornais que publicara antes, com o nome
sociedade nacional, a boa moralidade é a da sus- deAJustíça, os autos e laudos de seu processo de
rentabilidade das relações baseadas no amor e no interdição. Adorou a alcunha que hoje é seu cartão
comedimento de costumes. de visitas, dizendo que um monge do século XVIII,
Nesse tipo de comédia, Artur Azevedo não foi com esse nome, nele se encarnara.
tão brilhante como no teatro musicado, embora ela Tentou uma reforma ortográfica (uma das tan-
lhe tenha inspirado alguns de seus melhores mo- tas que houve no Brasil) para simplificar a escrita,
mentos. Mas, de todo modo, consolidou ele, com adorando para cada fonema uma única representa-
seu contemporâneo FrançaJúnior, uma tradição ção gráfica.Escreviaseu nome como Joze Joaqim de
que seria o melhor legado (ainda que nem sempre Qampos Leão, e sua alcunha como Qorpo-Santo.
reconhecido pelos críticos) do século XIX teatral Entretanto, nos seus livros, como trabalhava com
brasileiro para o xx. tipógrafos assalariados, nunca conseguiu impor
completamente sua ortografia. O resultado é uma
impressão confusa, que ora obedece a um sistema,
Qorpo-Santo ora a outro, ora ainda a ambos misturadamente. Cha-
mava-se sua obra, impressaem váriosfascículos que se
A visão da comédia de costumes brasileira do sé- tornaram raridade bibliográfica,Ensiqlopêdia ouSeis
culo XIX ficaria incompleta sem uma referência ao Mezes deRuma Enfermidade. Dela imprimiu pelo
"qazo" Qorpo-Santo (r829-r883). Dramaturgo do menos nove volumes, dos quais seis são hoje conhe-
século XIX, presença nas cenas dos séculos XX e XXI, cidos, em exemplaresúnicos pertencentes a acervos
Qorpo-Santo trouxe para o (seu) futuro algumas de colecionadores. Quando morreu, o escritor deixou
características daquele teatro do (nosso) passado. esposa,quatro .filhos e considerável cabedal de bens.
José Joaquim de Campos Leão, depois por al- Sabe-seque Qorpo-Santo desempenhou alguma
cunha autoassumida, o Qorpo-Santo, nasceu na atividade teatral em vida. No volume IV de sua En-
Vila do Triunfo, interior do Rio Grande do Sul. siqlopêdia publicou dezessete comédias de .sua
Tinha tudo para levar uma vida comum, talvez sem autoria (uma delas incompleta), escritas todas em
qualquer brilho. Desempenhou diversas funções poucos meses do r 2 semestre de r 866. Não se tem
públicas: foi eleitor especial,vereador, subdelegado conhecimento de representação de alguma delas
de polícia. Era Mestre da Maçonaria. Foi também ainda em vida do autor.
comerciário, caixeiro viajante e professor de algum Qorpo-Santo passou a figurar nos livros de
prestígio. Casou-se, teve filhos, era pai extremoso. reminiscências da cidade, como um dos tantos "ti-
Poderia muito bem servir de inspiração para algum pos curiosos" de sua história. Suas comédias foram
tipo da comédia de costumes. esquecidas, seus versos desprezados como "coisa de
Quis o destino que assim não fosse. Por volta louco", sem pé nem cabeça. Mas o tempo mudou,
dos 34 anos começou a manifestar indícios de per- e as vontades também. Num processo paulatino,
turbação mental. Isso o levou a conflitos com a mas persistente, as comédias de Qorpo-Santo
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

foram lidas e relidas, até chegar às suas primeiras completamente pelo avesso, por aquilo que ele e ela
representações conhecidas, em 1966, no Clube de prefeririam, na verdade, ocultar.
Cultura de Porto Alegre. O sucesso de público e Sua peça mais famosa é As Relações Naturais.
de crítica, tanto a de jornal como a acadêmica, foi Como o título sugere, sua linha de ação tem por
imediato e retumbante. motivo principal as relações sexuais, aquelas dentro
Qorpo-Santo foi "recuperado': como se dizia e aquelas fora do casamento, reunidas em imagens
então, e considerado um precursor do Teatro do perturbadoras e instigantes.
Absurdo, a vanguarda das vanguardas de então. O A ação começa com um escritor que está em
que fora "sem sentido" para os seus contemporâneos sua casa ... escrevendo a própria peça! O recurso
do XIX, era nonsense para seus novos contemporâneos não é propriamente incomum. Na peça aqui citada,
do século xx. Em 1968 houve alguns espetáculos com El Gran Galeotto, que inspirou quadro cómico do
suas peças no Rio de Janeiro, onde de novo o sucesso mesmo nome à pena de Artur Azevedo, se usa do
foi espetacular. Um dos espetáculos, a representação mesmo expediente, o que dá um tom onírico à ação
de sua peçaA> RelaçõesNaturais, com direção de Luís subsequente. Mas no caso de Qorpo-Santo o que
Carlos Maciel, foi proibido pela Censura Federal: foi a sublinha o expediente é o deboche, a ironia aberta.
consagração total, dadas as tonalidades de contestação Diz o escritor, que se chama Impertinente:
que marcavam o teatro daquela época em que o Brasil
estava sob ditadura militar de direita, que entrava em E será esta a comédia em quatro aros, a que denominarei -
seu período mais sombrio. Desprezado num século, As RelaçõesNaturais.
censurado no outro; Qorpo-Santo incorporou-se às (Levanta-se; aproxima-se de uma mesa; pega uma pena;
fileiras dos libertários brasileiros' 5. molha em tinta; e começa a escrever)
Desde essa época, dentre os dramaturgos brasi- São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na cidade de Porto
leiros do século XIX, Qorpo-Santo é, com Martins Alegre, capital da Província de São Pedro do Sul; e para
Pena, dos mais representados nos palcos brasileiros. muitos - Império do Brasil ... Já se vê pois que é isto uma
Já mereceu representação dramática na Europa e verdadeira comédia! (Atimndo com a pena, grita) Leve o
estudos acadêmicos nos Estados Unidos, sem falar diabo esta vida de escritor! É melhor ser cornediantel'T'
nas muitas teses e livros que inspirou no Brasil.
Algumas de suas peças tiveram muita repercussão. Na sequência, Impertinente tenta fugir da mu-
Outras menos, devido ao fato de que de quando em lher e aproximar-se de uma jovem de I 6 anos que
quando Qorpo-Santo manifestava mesmo alguma o repele como "velho e enjoado". Desconsolado, sai
dificuldade em concatenar intrigas e cenas, desco- de cena, e a peça propriamente dita tem começo.
sendo demais a estrutura da ação.lvIas é verdade que Como é comum no caso de Qorpo-Santo, os aros
ele tinha alguma vocação para o palco. Suas peças são são rapidíssimos. Esta tem quatro, mas seu tempo de
sempre inspiradoras, ainda mais porque, em vez de representação é o de uma comédia de ato único de
ver teoricamente o teatro como um texto encenado, autores como FrançaJúnior ou Azevedo.
concepção que predominava em seu tempo de vida, Num ritmo vertiginoso desfilam perante os espec-
ele vê o texto como mais um elemento cêníco dentre tadores cenas de uma casa de família, com marido,
outros, e frequentemente não o primeiro. Com isso, criado, mulher e três filhas. Mas ao mesmo tempo,
Qorpo-Santo deixou-nos também um espelhamento essas mesmas personagens são prostitutas de um
dos costumes de sua época. Mas sua comédia de bordel. A mãe de família é a caítina que explora as
costumes é muito "qurioza', para ficarmos com sua demais; suas filhas são as prostitutas de aluguel; e o
ortografia; é como se víssemos o palco e a sociedade pai de família o visitador. A mutação de um regis-
tro para o outro e de volta ao primeiro, e depois de
35 Sobre a vida, a obra, a bibliografia e a fortuna crítica de volta ao segundo, é mais fantástica do que quanta
Qorpo-Santo, ver FlávioAguiar, OsHomensPrecários: Inovação
e Convenção no Teatro deQplpo-Santo,Porto Alegre:A Nação/
mutação cênica com a cortina aberta que o teatro do
Instituto Estadual do Livro, 1975. E Qorpo-Santo, Teatro Com-
pleto,Rio deJaneiro: sNT/Funarte, 1980. Com estudo críticode
Guilhermino César. 36 Qorpo-Santo, Teatro Completo, p. 67.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

XIX tenha propiciado graçasa seusavançostécnicos. . militar mata o outro com a espada. É uma tragico-
Poder-se-iadizer diante de tal ousadia cênica: escrita média, no fundo; e mostra, ou quer mostrar, o que
por Qorpo-Santo, dirigida por Freud ou outro psi- vai errado quando não se respeitam as tradições
canalista da vanguardista Europa. familiares. Mas em 1966, na estreia da peça em
Ao final, há uma revolta das mulheres que que- Porto Alegre, nos primeiros anos da ditadura de
rem tomar o poder no lar, para transformá-lo de vez 1964, o militar dizia, brandindo o ferro para a
em bordeL Mas uma contrarrevolta, liderada pelo plateia: "o que não pude vencer, ou fazer triunfar
criado da casa (que faz uma "frente masculina" con- com a pena, razões, discursos, acabo de fazê-lo
tra as mulheres) termina por neutralizá-las e recon- com a espada!"37 - e o público caía em gargalha-
duzi-las ao caminho da submissão consentida.Mas das, lendo, na tirada, uma alusão ao golpe militar
o que fica na memória é o carnaval das mulheres e o que pusera fim à legalidade no Brasil.
carnaval cênico que Qorpo-Santo faz com as con- Qorpo-Santo, como no caso de Linda e Lindo,
vençõesmais caras do teatro de seu tempo.Mulheres costumava tirar partido do nome de seus persona-
fatais e ingênuas misturam-se e mostram ser na ver- gens. Chamam-se eles Espertalínio, Esterquilínia,
dade faces da mesma moeda; e tudo exposto numa Rocalipsa, Truque-truque, e assim por diante. É
linguagem díreta, sem meandros ou subterfúgios, frequente em seu teatro o nome de Malherbe. Tudo
nem qualquer pudor cênico. O porão e o sótão da issolhe dá, ao lado de traços do teatro do século XIX,
comédia de costumes vêm à sala onde normalmente um certo ar de farsa antiga, à maneira de Antônio
se passava a comédia, e com grande efeito teatral José, por exemplo.
para o desabrido século XX e agora o XXI. Uma das peças de Qorpo-Santo que melhor
Outras duas comédias de Qorpo-Santo, de tira partido dessas fusões de cena ou de sugestões
grande sucesso, são Mateus e Mateusa, e Eu Sou para tanto é Duas Páginas em Branco, em dois
Vida)' Eu não Sou Morte. Na primeira, um casal ates, que Qorpo-Santo considera como "aponta-
briga valentemente em cena, jogando-se impropé- mentos para uma comédia". Dois jovens amam-se
rios e prometendo mútuas traições sem qualquer de repente, sem mais nem menos; casam-se.1Yfas
peia. Jogam um no outro volumes com as leis e a sua casa passa por mudanças que atordoam o par
Constituição brasileira, dizendo que aquilo só vale amoroso; ora parece um bar com mesas de bilhar
para usar as folhas no banheiro. A comicidade deli- (que estão em cena); ora é tomada por ser um ho-
rante da cena aumenta porque o casal tem, juntos, tel, e não de boa reputação. O marido é preso; a
160 anos de idade. Ou seja, são dois velhos bem mulher recebe um tenente, que a confunde com
velhos a jogar um sobre o outro, ainda que de forma uma hoteleira. Perturbada, ela dispõe-se a "matar
cómica, todas as frustrações de suas vidas. A cena é a sua fome", o que é uma alusão nada difícil de
tão hilariante quanto desengonçada para o decoro se ler. O marido, liberto tão subitamente como
de realismo teatral do século XIX; mas cai bem no fora preso, retorna, expulsa o tenente, e a mulher
decoro carnavalizado do século xx e do XXI. garante que eles serão felizes,porque ele a satisfará
Eu Sou vida)'Eu não Sou Morte é peça muito completamente quanto ao sexo, e vice-versa. Ou
significativa sobre a leitura por que passaram as seja, tudo aquilo que a comédia de costumes expu-
peças de Qorpo-Santo na sua migração de um nha à socapa, sob os véus das convenções teatrais e
século para o outro. Estão em cena dois rapazes, morais do tempo, o teatro de Qorpo-Santo escan-
um deles militar, que disputam o amor de uma cara, numa retórica cênica exasperada que constrói
mulher. O militar casou-se com ela; o outro tem sua linguagem a partir dos impulsos e dos desejos
com ela uma filha. Quem tem direito sobre ela? e de sua repressão, ou não.
Qorpo-Santo toma o partido do militar, pois Em Um Credor da Fazenda Nacional, aborda
deste é o partido do direito. Mas põe na moça Qorpo-Santo o eterno tema das burocracias brasi-
o nome de Linda, e no outro rapaz o nome de leiras. Um credor tenta receber o que deve do erário
Lindo, o que os aproxima. Diante da impossibi-
lidade de ver respeitar seus direitos conjugais, o 37 Idem,P: 134.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

público; é claro que enfrenta as maiores dificul- tório fez brilhar no palco do Ginásio Dramático,
dades para, ao fim e ao cabo, não conseguir seu passa também a experimentar o gênero alegre,
intento e seu direito. A solução final é, ao mesmo com A Pera de Satanás e A Baronesa de Caiapó.
tempo, radical e lúdica: um outro credor põe fogo Percebendo a tendência que vinha se fortalecendo
nos papéis e na repartição, provocando as correrias na cena fluminense, ele passa a alternar peças de
características desse tipo de comédia. entretenimento com peças de cunho literário,
Além dessas cinco, que vêm sendo as mais como as de Alexandre Dumas Filho ou Émile
representadas de Qorpo-Santo, escreveu ele pelo Augier, em seu repertório.
menos mais doze comédias:", de que se valem os Outros homens de teatro, como Jacinto Hel-
diretores em variadas composições, não raro com- ler, que atrai o público para o Teatro Fênix com
pondo comédias originais com a junção de cenas paródias e operetas, tornam-se os primeiros em-
de diferentes peças. A seu modo, é verdade que, presários dessa geração a obter grandes sucessos
torcendo-lhe ou invertendo-lhe imagens e motivos, com as formas teatrais do teatro ligeiro. A voga
Qorpo-Santo conseguiu transformar o patrimônio das operetas, das mágicas e das revistas imprime
cultural da comédia de costumes num legado per- uma mudança de escala no panorama teatral
manente para as gerações futuras, não apenas sob o brasileiro com a ampliação do número de espe-
registro histórico. Ao contrário de ser testemunho táculos, de afluência do público, de companhias,
de uma limitação do gênero, é Índice de sua vitali- de casas de espetáculos, de produções teatrais e
dade e capacidade de mutação. de circulação de dinheiro em torno do que se
revelava novo negócio: uma indústria da cena.
São muitos os que se arriscam no novo mercado,
imigrantes e aventureiros, homens de teatro e
empresários, portugueses e brasileiros. A febre
das companhias durante o Encilhamento atinge
até mesmo as empresas teatrais no início dos
anos de 1890. Diretores de companhias teatrais
3. ARTISTAS, ENSAIADORES tornam-se empreendedores homens de negócio.
E EMPRESÁRIOS: O ECLETISMO Entre os ateres, cantores e toda a imensa gama
E AS COMPANHIAS MUSICAIS de profissionais que compunha uma companhia
teatral surgem grandes estrelas que atuam no Rio
de Janeiro, nas capitais de província e até mesmo
Depois da morte de João Caetano, em 1863, e em Portugal.
com o sucesso das operetas a partir de 1865, no A formação de uma cultura urbana de entreteni-
Alcazar Lyrique, e das paródias que se seguiram mento com espetáculos realizados por companhias
ao triunfo do Orfeu na Roça, de Vasques, em 1868, nacionais e internacionais intensifica-se a partir da
a década seguinte vê surgir uma nova geração década de 1870, tornando-se um negócio regido
de empresários, ensaiadores e ateres no cenário pelos mesmos princípios comerciais de outras in-
teatral brasileiro". Um momento que ganha sig- dústrias. Voltada para o público heterogêneo das
nificado especial é quando Furtado Coelho, ator concentrações urbanas, essa nova empresa teatral
e empresário ligado ao teatro realista, cujo reper- desconsiderava o teatro edificante e investia na
espetacularidade cênica, reunindo, na produção
38 CE Qorpo-Santo, Teatro Completo. São elas: Hoje Sou Um)' de suas peças, uma grande diversidade de sujeitos
EAmanhã Outro;UmAssovio; CertaEntidade emBuscade Ou-
tra;Lanterna deFogo; UmParto; A Separação deDoisEsposos; O e práticas constitutivas do cenário cultural. Os
Alarido Extremosoou o Pai Cuidadoso; Uma Pitada deRapé; O artistas e profissionais envolvidos tornaram essa
HospedeAtrevido ou O Brilhante Escondido; A Impossibilidade
da Santificação ou a Santificação Transformada; O Marinheiro nova "indústria" do teatro musical um campo de
Escritor; e Dous Irmãos. diálogos e confrontos culturais, propulsor de sua
39 O tema deste capítulo foi desenvolvido de forma mais extensa
em F.A. Mencarelli, A Vozea Partitura...
popularidade.

• 253
História do Teatro Brasileiro • volume 1

A Voz e o Dono: duas características importantes da atividade tea-


Indústria e Diversidade tral: a internacionalização da cidade e dos negócios
e o incremento da atividade teatral com sentido
No Relatório do Império de 1873 há um capítulo empresarial.
dedicado à vida teatral do Rio deJaneiro. Nesse ano A invasão estrangeira nos palcos, que atendia
a capital do Império tinha 10 teatros: 3 de grandes um público heterogêneo, mas tinha certamente
dimensões (Lírico Fluminense, D. Pedro II e S. Pe- nessa massa de negociantes e imigrantes estran-
dro de Alcântara), 2 menores (Ginásio e S. Luís), 3 geiros uma parcela significativa de seu público, foi
campestres ou populares (Alcazar, Fênix Dramática vista com muito maus olhos pelos contemporâneos
e Cassino Franco-Brésilien) e 2 salas de espetáculos que apostavam no desenvolvimento de um teatro
(S. Cristovão e Botafogo )40. Em outro trecho do nacional, com dramaturgia, temática e realização
relatório é mencionado ainda o Théâtre Lyrique nativas. Uma geração de escritores que se dedicou
Français". As peças de gênero ligeiro se concen- à dramaturgia como parte de seu projeto de cria-
travam nos teatros denominados populares pelo ção de uma literatura nacional foi aos poucos se
relatório oficial: no Alcazar, espetáculos oferecidos afastando dos palcos. Nas décadas finais do século
por companhias francesas, no Fênix, companhias XIX, a tensão criada por essa internacionalização
nacionais; e.no Cassino, ainda segundo o relatório, crescente vai ser mencionada em praticamente
por uma e.:~utra. todas as análises que se ocupam do teatro no Rio
de Janeiro, apontada sempre como uma das causas
Artistas líricos, franceses e italianos, ou dramáticos fran- do que teria sido a decadência do teatro nacional.
ceses,italianos e espanhóis, entre os quais têm figurado as Em célebre artigo de 187343, Machado de Assis
maiores celebridades europeias, aportam frequentes vezes faz um retrato desalentador do cenário teatral ca-
ao Rio de Janeiro, graças à facilidade e rapidez das comu- rioca, onde há o predomínio do cancã, da cantiga
nicações transatlânticas, e aparecem na cena dos teatros burlesca ou obscena, da mágica aparatosa, "tudo
desta cidade":". o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores".
Tratava-se da afirmação de gêneros que investiam
o relatório aponta ainda a existência de teatros em na espetacularidade e nos múltiplos textos da cena,
todas as capitais das províncias, "assim como em falando para outros sentidos que não o do juízo
muitas cidades e vilas".Aponta também a recente moral: a cenografia mirabolante das mágicas, a
criação do Conservatório Dramático (1871), afu- performance bem-humorada e transgressiva das
tura criação de um teatro de ópera, dos projetes de canções e das coreografias.
um teatro normal e de um curso de arte dramática, Artur Azevedo é uma personagem emblemática
por iniciativa do governo que "trata de organizar o do período. Sua trajetória intelectual e artística no
teatro brasileiro e erguê-lo ao nível da civilização Rio de Janeiro coincide com essa fase do teatro
do Império". O Relatório do Império de 1873 tra- brasileiro, tendo sido iniciada nos anos de 1870
zia um dad9 importante: contavam-se na cidade e terminada apenas com sua morte em 1908. Ele
8.943 casas-de negócio, sendo 1.680 nacionais e vive todas as ambivalências inerentes aos artistas
7.263 estrapgeiras. O relatório dizia ainda que, da cena no período e as formula em uma série de
comercialmente falando, a capital do Império era artigos e debates com seus contemporâneos que
a principal praça mercantil da América Meridio- nos permitem reconhecer o quanto essa geração
nal, perdendo na América do Norte apenas para a antecipou as questões em torno da produção cul-
cidade de Nova York. O relatório indica assim para tural massiva. O Alcazar e o Fênix disputaram o
direito de representar a paródia de Artur Azevedo
40 CE Teatros em O Império doBrasilna Exposição Universal de
1873 em VienadÂustria, Rio deJaneiro: TypographiaNacional,
inspirada em La Fille de mme.Angot.A Filb« de
r873, p. 342-343. Maria.rlngu. teve mais de cem apresentações conse-
41 Idem, p. 367.
42 Sobre a vinda de grandes artistas europeus ao Brasil, como 43 Machado de Assis, Notícia da Atual Literatura Brasileira: Ins-
Adelaide Rísrori ou Sarah Bernhardt, leia-se o capítulo seguinte. tinto de Nacionalidade, em]. R. Faria (org.), Do Teatro..., P: 532.

• 254
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

cutivas e rendeu alguns contos de réis para o então


novato escritor e tradutor Artur Azevedo. Apesar
de suas dúvidas e conflitos pessoais na relação com
os gêneros ligeiros, Artur Azevedo foi o amor mais
expressivo a se dedicar a paródias, operetas, revistas
de ano e burletas, e por isso foi alvo de pares como
Coelho Neto e Cardoso da Mora, que o acusa-
vam de ser um dos responsáveis pela decadência
do teatro nacional?". Artur se defendia argumen-
tando que quando chegou ao Rio, em 1873, vindo
do Maranhão, com 18 anos, as paródias e operetas
já tinham se firmado no cenário carioca. A Filha
de Maria Angu não fora, portanto, o início dessa
"decadência' como queriam seus críticos. No artigo
"Em Defesa: de 1904, Artur Azevedo lembra que
no ano de sua chegada ao Rio já se contavam várias
paródias encenadas, como a Baronesa de Caiapó,
paródia deA Grá-Duquesa de Gerolstein, encenada
por Furtado Coelho no Teatro S. Luís, para fazer
frente ao sucesso do Alcazar, e mais outras duas
paródias de Barba Azuf4 5•
No início da década de 1870, a Companhia Fê-
nix Dramática passa a ser dirigida porJacinto Heller,
tendo Vasques como seu grande ator cómico. A com-
panhia se firma junto ao público com seu repertório claramente que desejava a paródia, a opereta, a mágica, o
eclétíco. Sob a direção de Heller, a Fênixvai durar 23 riso, a gargalhada. Ele fez a vontade do público".
anos, até se dissolver em 1893, especializando-se em
operetas, mágicas e revistas. No mesmo artigo "Em o conflito atribuído por Artur a Heller, entre
Defesa: Artur Azevedo justifica o envolvimento de a intenção artística e a concessão ao público, pa-
Helller com o gênero ligeiro: rece dar o tom de toda uma geração de escritores,
atores, ensaiadores, empresários e artistas cênicos
Asua primeira intenção de empresário obedeceu a um pen- em geral. No entanto, os sucessos acompanharam
samento de arte; principiou explorando peças modernas, as montagens de operetas, mágicas e revistas da
descobrindo autores brasileiros, apresentando ao público companhia de Heller, primeiro no Teatro Fênix,
sucessivamente Pires de Almeida, Augusto de Castro, Joa- que a batizou, e depois no Teatro Santana, o antigo
quim Serra, FrançaJunior - mas fez como Furtado Coe- Cassino, para onde Heller a transferiu em 1882.
lho: capitulou diante do Alcazar: o Orfeu na Roça foi no Estabelecendo-se como a principal companhia de-
Fênix o que a Baronesa de Caiapótinha sido no S. Luís. Daí dicada aos gêneros musicais e ligeiros ao longo dos
por diante explorou o trólóló, tentando todavia voltar ao anos de 1870, a Fênix passou a enfrentar uma con-
teatro dramático, representando o Vámpiro,AsRecordações corrência mais intensa no início dos anos de 188 o
dalvIocidade e ourras peças. O público fugiu, e fez-lhe ver com o surgimento da companhia de Braga junior
e com a chegada de Sousa Bastos, em 1882. Em
1883, surgiu também a companhia de Dias Braga, a
44 CE F.A. Mencarelli, CenaAberta:A Absolvição de um Bilon- partir de uma dissidência interna na companhia de
tra e o Teatro deRevistadeArturAzevedo, Campinas: Editora da
Unicamp, 1999. BragaJunior. Furtado Coelho, Ismênia dos Santos,
45 Cf.Arrur Azevedo, Em Defesa, O País, 16 de maio de 1904, Guilherme da Silveira e Antônio de Sousa Martins
e Carta a Coelho Neto, A Notícia, 17-18 de fevereiro de 1898,
em]. R. Faria, IdéiasTeatrais..., P: 599-6°9. 46 Idem, p. 609.

• 2.55
História do Teatro Brasileiro • volume1

são alg~ns dos atores-empresários que também têm Na busca de alcançar todo o público, essas em-
suas histórias intimamente relacionadas ao longo presas teatrais forjaram seu caráter massivo com
desse período. Operetas, mágicas e revistas faziam íngrediences tão diversos quanto a heterogeneidade
centenários e enchiam os cofres das cornpanhiasv: de seus artistas e plateias: traziam para a cena di-
os empresários descobriram a eficácia popular da vas francesas e palhaços populares, a Marselhesa e
fórmula do teatro musicado. jongos, Apolo e a quituteíra negra Sabina. Não se
O sucesso das operetas, revistas e mágicas, tratava apenas de consumo exótico e aleatório de
os lucros auspiciosos e a descoberta desse novo curiosidades culturais. Construindo a cena com
negócio transformaram a cena teatral da cidade, as tensões que essa diversidade gerava nas ruas
atraindo aventureiros e imigrantes atrás de fama da cidade, dando voz e corpo a diferentes pontos
e fortuna. "Fazer a América' poderia ser um mote de vista, opiniões, comportamentos e valores, a
também para as levas de artistas e empresários que multiplicidade de sujeitos e práticas em jogo na
se arriscaram no ramo, por sobrevivência, alguns, constituição desse teatro o tornava um território
por ascensão social, outros, ou por reconhecimento privilegiado de ínteração cultural.
artístico. Acompanhando o ritmo de crescimento
da cidade, abriram-se novas casas de espetáculos,
companhias eram montadas (e desmontadas), um Diversidade de Vozes:
número cada vez maior de novos espetáculos era A Vólatilização das Fronteiras
incluído em cada temporada e a crescente afluência
do público fazia fortunas aparecerem do dia para a Os debates em torno da oposição entre o teatro edifi-
noite. Regidos pelas bilheterias, sem apoio público cante, formador, e o teatro para entretenimento eram
algum, os empresários conduziam essa guinada acalorados nos meios jornalísticos e artísticos, mas
para o teatro alegre. Dramaturgos, compositores, cada vez mais o motivo do apelo popular e dos ga-
maestros, ateres, instrumentistas, ensaiadores, nhos levavauma série de companhias a se identificar
cenógrafos, pontos, coristas e mais uma legião de como Companhias de Operetas, Revistas e Mágicas,
profissionais, de diversas nacionalidades e origens Para além dessaoposição dual, havia uma série de dis-
sociais, foram envolvidos nessa aventura. A interna- cussões entre os críticos e os criadores. Artur Azevedo
cionalização da cena local tinha seus desdobramen- vivia os conflitos de suas ambíguas posições diante
tos também além~mar: Paris-Lisboa-Rio de Janeiro do sucesso de suas paródias e revistas, pautando-se
formavam o circuito principal em que transitavam segundo o crítico francês Sarcey; que costumava di-
essesartistas e espetáculos que apostavam nas novas zer que a questão da qualidade não estava associada
fórmulas de divertimento urbano. ao gênero, não sendo por isso antagônicas arte e
O teatro como uma indústria, que Machado de diversão. Em meio a essas discussões e com a meta
Assis temia, vai prevalecer no cenário cultural da de alcançar o mais amplo espectro do público, as
cidade nas próximas décadas. A frase de Moreira companhias apostaram num repertório eclético.
Sampaio é a que melhor retrata o período: "o autor Mesmo as companhias que se especializaram
é o industrial que fabrica; o empresário é o nego- em operetas, mágicas e revistas, vez ou outra en-
ciante que vende; o público é o consumidor que cenavam dramas ou comédias. Quando não o
adquire"4 8 . A síntese proposta revela a consciência faziam com seu próprio elenco, abriam as portas
que alguns criadores tinham das características dos teatros que ocupavam para outras companhias
industriais que as companhias especializadas em e atrações, imprimindo às casas de espetáculo o
gêneros ligeiros, ou ecléticas, em atividade no final perfil eclético que ampliava sua penetração junto
do século XIX, tinham assumido. à população de espectadores. Conviviam pelas salas
em temporadas alternadas as comédias de França
47 Sobre o enriquecimento da Fêníx, ver Sílvia Cristina Martins
de Souza. As Noitesdo Ginásio: Teatro e Tensões Culturais na C011e junior, as operetas de Offenbach e os lundus das
(r8]2-r868). Campinas: Editora da Unícamp, 2002.p. 236. revistas. As zarzuelas encenadas por companhias
48 Moreira Sampaio, A Notícia. 17 de dezembro de 1894. em
F.A. k!encarelli, CenaAberta...• p. 92.
espanholas eram parte frequente das programações
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

dos teatros do Rio deJaneíro. Tinham sucesso.ga-


rantido junto ao público carioca.
Para Artur Azevedo, Dias Braga era o mais eclé-
tico dos empresários teatrais havidos e por haver:

No opulento repertório do seu teatro figuram todos os gê-


neros: a ópera, a tragédia, o melodrama, o drama de capa e
espada, o drama sacro, o drama Íntimo, a comédia clássica,
a alta comédia moderna, a comédia burlesca, o vaudeville,
a opereta, a mágica, a revista de ano, a paródia, a farsa ... Só
escapou a panromimalw

Com as experiências seguidas de enchentes e


vazantes, Dias Braga compreendeu que a plateia
do Rio era eclética e passou a investir em todos
os gêneros para agradar a todo tipo de gosto. A
companhia de Dias Braga é só um exemplo do que
ocorria na cidade. No final do século, os teatros do
Rio de Janeiro ofereciam um cardápio de peças bas-
tante variado para o público ascendente: dos dra-
mas lacrírnejantes e comédias ao circo e às revistas.
O ecletismo do repertório ou a "promiscuidade
dos gêneros': como dizia Artur Azevedo, era muitas
o ator e empresário Dias Braga.
vezes apontada nos debates pela imprensa como
uma das causas da chamada decadência do teatro O ecletismo da programação das casas de espetá-
nacional. Comentando um artigo de Luís de Castro culo era, no entanto, mais um esforço no sentido de
publicado no Diário do Comércio de São Paulo, em atrair os espectadores que também demonstravam in-
que o autor incluía mais uma vez a promiscuidade teressar-sepela grande variedade de gêneros, sendo o
dos gêneros como responsável pela decadência nos público tão eclético quanto a programação oferecida:
teatros, Artur Azevedo, concordando, acrescenta:
No Rio há apenas um círculo muito restrito que frequenta
Não pode ser tomado a sério o ator que hoje se apresenta os esperáculos e ele não é bastante grande para encher vários
em público representando uma xexé de mágica e amanhã teatros ao mesmo tempo e durante muito tempo. Encon-
um pai nobre de melodrama. Se esse artista não for do- tra-se sempre as mesmas pessoas, tanto no circo como na
tado de um talento excepcional fará rir rodas as vezes que ópera, na comédia como no drama. [oo.] A grande massa do
interpretar um papel dramático e produzirá na plateia uma público, comerciantes, industriais, operários, só frequenta
impressão de melancolia todas as vezes que o seu papel for o teatro aos sábados e aos domingos, para distrair-se um
cômico. O pobre Vasques arrancava gargalhadas ao público pouco 51.

todas as vezes que procurava alienar a sua extraordinária vis


comica, representando papéis dramáticos, tais como o dr. O público do circo, no entanto, seria ainda mais
Mateus, nas Lágrimas de Maria, e outros em que ele era amplo que o do teatro. Em um artigo de seu livro
simplesmente deplorável". de 19 I 6, Múcio da Paixão analisa a relação do pú-
blico com o circo e o teatro. Expondo impressões
pessoais, o autor acredita que "na vastíssima massa

49 Múcio da Paixão, Espírito Alheio, São Paulo: C. Teixeira & 51 Luís de Castro, LeBrésii vivant, Paris: Lib. Fischbacher, 1891,
c.,1916, p. 477-478. em Jean-YvesMérian, Aluísio Azevedo: Vida e Obra (1857-1913),
50 Artur Azevedo, A Notícia, 28 de fevereiro de 1895. Rio deJaneiro: Espaço e Tempo/Banco Sudamerís, 1988, p. 351-

+ 257
História do Teatro Brasileiro • volume 1

dos que gostam de se divertir à noite, pode-se fazer Tibúrcio afirmando que era capaz de dar a volta
esta divisão racional: dois terços vão para o circo, ao mundo a pé. Essa volta ao mundo se revelava
um terço vai para o teatro". Ainda segundo o autor, como um passeio pelo centro do Rio de Janeiro,
pode-se acreditar que metade do público do teatro particularmente pela rua do Ouvidor: "Terra de
também deve frequentar o circo: maravilhas! [...] Nação elétrica! [...] Ali não há es-
trangeiros: são todos cosmopolitas; naturalizaram-
Ao teatro vai o burguês proprietário e capitalista, o comer- -se todos! Tudo é cidadão da rua do Ouvidor l'v'.
ciante, o operário, o rapaz do comércio, o jornalista (por A cena cómica de Vasques trazia para o palco a
dever do ofício), e ao circo vão todos esses e mais todos diversidade cultural presente nas ruas. Essa diver-
os trabalhadores manuais, toda a massa trabalhadora que sidade, no entanto, já estava presente nos bastidores
constitui a maioria da população" 52. através da multiplicidade de nacionalidades e de
classes sociais das personagens que davam vida a
Mesmo restrito a uma camada menos abran- esse teatro. Ateres, cantores, bailarinos, diretores,
gente que aquela que frequentava o circo, o teatro compositores, músicos, cenógrafos teciam uma
era uma das principais atividades culturais da ci- complexa rede, fruto da internacionalização, da
dade e as companhias de teatro musical cada vez convivência de diferentes classes e extratos sociais;
mais monopolizavam o circuito. Fora do Rio, nas e promoviam um intenso campo de trocas e con-
províncias ~ suas capitais, havia um circuito que frontos de visões de mundo, de perspectivas sobre
levava as principais companhias estrangeiras pelo as principais questões em pauta na sociedade. A
sul do país, por São Paulo, Minas e pelo norte!'. Em composição variada das companhias, seu reper-
São Paulo, por exemplo, também se registra a pas- tório eclético, suas dimensões empresariais eram
sagem das companhias brasileiras de ópera cómica cenário propício para a expressão da diversidade
formadas por Sousa Bastos (1883,1884), Braga encontrada também nas ruas. Se essa indústria da
Junior (Companhia de Ópera Cómica, 1884), cena provocava por um lado a massificação do lazer,
Jacinto Heller (Companhia de Ópera Cómica, por outro possibilitava a circulação e a expressão
1885, 1889) e Guilherme da Silveira (Companhia da diversidade.
de Operetas, Dramas, Comédias, Revistas e Má- As fronteiras culturais e sociais também se
gicas do Teatro de Variedades Dramáticas do Rio, volatilizavam no palco, num jogo de afirmações e
1889). Em São Paulo foram encenadas, em 1897, confrontos de valores, em que personagens, drama-
A CapitalFederal e ORioNu. Sobre a última, a im- turgias, encenações e interpretações se cruzavam
prensa dá informações de seu enorme sucesso, com na produção de novos sentidos, numa operação
o teatro sempre cheio e por vezes bilhetes apenas própria a essa cena aberta e polissêmica das for-
nas mãos dos cambistas 54. mas de teatro musical. Os empresários criaram suas
Ao ecletismo de gêneros correspondia também companhias com uma mão de obra internacional
uma grande diversidade cultural, de nacionalida- que se deslocava e com os artistas locais que faziam
des, de falares, de linguajares do Rio de Janeiro de uso do teatro como forma de sobrevivência e pro-
final do século XIX, que aparece de forma emble- fissionalização. As companhias tinham na dupla de
mática na cena cómica Viagem ti Volta doMundo opostos formada pelos cómicos de expressão mais
a Pé, imortalizada pelo grande ator Vasques, e popular e pelas cantoras de operetas estrangeiras
divulgada nos cancioneiros. Nela, a personagem suas principais atrações. Acadêmicos na dramatur-
de nome Joaquim Veado desafia seu compadre gia, ambiciosos empresários no comando, talento-
sos cómicos populares e divettes internacionais no
52 M. da Paixão, Espírito Alheio, p. 325-331- elenco, maestros e compositores de óperas e jongos
53 Sábaro Magaldi; Maria Thereza Vargas, CemAnos de Teatro nas partituras e orquestras, e um público à altura de
em SãoPaulo) São Paulo: Senac, 2000; Regina Horta Duarte,
Noites Circenses: Espetáculos de Circo e Teatro em Minas Gerais
no Século XIX, Campinas: Editora da Unícamp, 1995. 55 Vasques, Viagem à Volta do Mundo a Pé, em Procópío Fer-
54 O Estado de S.Paulo, 27 de março de 1895, em S. Magaldi; reira, O Ator Vasques: O Homem e a Obra, São Paulo: Oficinas
M. T. Vargas, CemAnos de Teatro em SãoPaulo, P: 3o. de José Magalhães, 1939, p. 442.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

tamanha diversidade fez o teatro musical do século e percursos pessoais, frutos de eventos reais, ima-
XIX ser um dos mais férteis campos de expressão da ginação jornalística e invenção de personalidades
complexidade social brasileira da segunda metade artÍsticas por parte dos biografados ou dos biógra-
do século XIX. fos. Nomes e pseudónimos, famas e difamações,
As histórias de vida dessas personagens são su- essas histórias estão recortadas pelo imaginário da
ficientemente ricas e fascinantes para encher de- própria sociedade sobre seus artistas do palco. Foi
zenas de livros, para gerar centenas de trabalhos. assim que nos aproximamos delas 57 .
O panorama que emerge do cruzamento dessas Em meados dos anos de 1890, Artur Azevedo
histórias também é suficientemente rico para re- lança uma publicação denominada OÁlbum. Nela
conhecermos as múltiplas faces da sociedade bra- havia entre outras tantas seções uma que ganhava
sileira que procuravam encontrar voz nos palcos e destaque e que dava o nome à publicação. A cada
canções. A tarefa seria impossível, por imensa, se número, uma personagem célebre da sociedade ca-
não seguíssemos uma seleção quase natural que nos rioca, político, cientista, músico ou alguma perso-
levou a personagens emblemáticas da cena teatral. nalidade do teatro, ganhava um perfil extenso, com
Uma série de publicações com perfis biográficos dados biográficos e outras informações que faziam
de artistas e personalidades circulou em fins do uma espécie de balanço da produção artística e da
século XIX e início dó xx. Escritos por parceiros carreira do retratado:
de cena como Eduardo Vitorino, Sousa Bastos, ou
por memorialistas, jornalistas e historiadores, es- cada número trará, fora do texto, um retrato de pessoa no-
ses registros, apontamentos biográficos, memórias tável, constituindo assim OÁlbum, no fim de algum tempo,
e perfis somam-se aos poucos e valiosos trabalhos uma interessante galeria, na qual figurarão, em curiosa pro-
de estudiosos contemporâneos 56 e nos proporcio- miscuidade, todas as classes sociais.
nam um rico material sobre os percursos variados
e diversos das personagens do período. Mora os Ao lado dos perfis da elite letrada e politica-
estudos recentes, com farta exposição de documen- mente influente, de funcionários públicos, mé-
tação pesquisada, alguns trabalhos utilizados não dicos, jornalistas, artistas etc., havia uma série de
apresentavam as fontes documentais de seus dados. trajetórias pessoais diversas, como ex-coristas do
Com relação aos dados biográficos, podemos, no Alcazar e consagrados ateres cômicos de origem
entanto, tratá-los como crônicas contemporâ- humilde. Era comum na classe artística surgirem
neas que, menos do que viabilizar uma biografia, escritores, dramaturgos, compositores, maestros
possibilitam-nos conhecer o universo de histórias ou atores, de origem abastada ou não, que haviam
cruzado fronteiras de classes e que projetavam, em
56 Um dos principais trabalhos recentes que se dedica ao ~studo
da trajerória e do trabalho de uma atriz do período é o de Angela
suas criações, suas múltiplas referências culturais".
de Castro Reis, CiniraPolónio, a "Diuette" Carioca: Estudosobre Promiscuidade é um termo que pode traduzir
a Imagem Públicaeo Trabalho de uma Atriz no Teatro Brasileiro
na ViradadoSéculo XIX, Rio deJaneiro: Arquivo Nacional, 200 I. muito bem a percepção que os contemporâneos
OS memorialistas e historiadores utilizados para a pesquisa bio- tinham dessa dinâmica cultural, que envolvia maes-
gráfica são: Alfonso Ruy, Boémios eSeresteiros doPassado, Cidade
de Salvador: Livraria Progresso, 1954; Antônio Sousa Bastos,
tros negros formados na Itália e coristas francesas
Carteira doArtista:Apontamentosparaa Históriado Teatro Por- de revista representando mulatas dançando maxixe
tuguêse Brasileiro, Lisboa: Antiga Casa Bertrand, 1898; Bócio
de Abreu, Esses Populares tãoDesconhecidos, Rio deJaneiro: E.
em mágicas brasileiras. As classessociais, nessa mis-
Raposo Carneiro, 1963; Eduardo Vicroríno, ActoreseActrizes, tura que Artur Azevedo chamava de "promíscua':
Rio de Janeiro: A Noite, 1937;]. Galante de Sousa, O Teatro no
Brasil,v. 2; Lafayette Silva, RevistadoIHGB: Artistas de Outras
geravam uma cultura própria, retrato de uma época
Eras, v. 169, Rio dejaneíro: Imprensa Nacional, 1939; idem,Figu- de novas fisionomias e "volatilização social", como
rasde Teatro, Rio deJaneiro: Leite Ribeiro, 1928; idem, História
do Teatro Brasileiro, Rio deJaneiro: Ministério da Educação e
Saúde, 1938; Luís Edmundo, O Rio deJaneiro doMeu Tempo. Rio
deJaneiro: Xénon, 1987; Manoel Raymundo O::::..erino,Artistas 57 CE. Cadernos de Pesquisa em Teatro, Rio de Janeiro: Uni-
Baianos:Indicações Biográficas, Rio deJaneiro: Imprensa Nacio- -Rio, n. 2, 1996. Vida de Artista, coordenado por Maria Helena
nal, 1909; Mário Nunes, 40 Anosde Teatro, Rio deJaneiro: SNT, Werneck (Série Bibliografia).
1956, 4 Y.; Múcio da Paixão, EspíritoAlheio; idem, O Teatro no 58 CE. O.Atbum,Ed.Artur Azevedo, n. 1-55,jan 1893-jan 1895,
Brasil, Rio deJaneiro: Brasília, 1936. Rio deJaneiro (diretor Artur Azevedo, agente geral Paula Ney).

• 259
História do Teatro Brasileiro • volume 1

atesta a percepção de Artur Azevedo. Antevendo vendendo instrumentos. Nessa época escreveu suas
a importância de tais registras, completa: primeiras composições: modinhas, romanças, valsas
e lundus. Em 1855, ganhou medalha de ouro num
Parece-nos que na época de renovação que atravessamos, concurso do Conservatório e o prêmio de viagem
neste surgir constante de novas fisionomias, nesta volatili- à Europa. Distinguiu-se também como aluno do
zação social de velhas figuras do segundo império, umafo- Conservatório de Paris, onde deu início à sua car-
lha deste gênero terá mais tarde o seu valor documentário'>. reira como compositor. Foi bastante aplaudido em
suas primeiras composições de operetas e popula-
Estabelecendo uma ordem pessoal de hierarqui- rizou, na França e depois no Brasil, uma quadrilha
zação, os dois retratados nos primeiros números são chamadaLes Soirées Brésiliennes. Dedicando-se em
Carlos Gomes, o primeiro, e Machado de Assis, o Paris a composições ligeiras, Mesquita tinha dese-
segundo. Segue uma longa lista com nomes como jos de realizar trabalhos de maior fôlego. Recebe do
os de Ismênia dos Santos, Furtado Coelho, Eduardo Brasil, do dr. Simoni, um libreto e cria a partitura
Garrido, e outras personalidades do meio teatral e de sua primeira ópera: Vagabundo. A peça é logo
musical brasileiro e português. O perfil de Carlos encenada no Brasil pela Companhia de Ópera Na-
Gomes foi escrito por Cardoso de Menezes Filho, cional, então em atividade, e depois ainda por uma
músico, escritor e amigo do compositor, "desejando companhia italiana, sendo muito bem recebida pelo
inaugurar O Álbum com o retrato do mais ilustre público. "Entretanto': diz Artur Azevedo, "estava es-
entre os artistas brasileiros': escreve Artur Azevedo. crito que o nosso maestro nunca mais, até hoje, pro-
O mais ilustre de nossos artistas, o maestro consa- duziria outra obra de tanta importância artística'.
grado também revelava o trânsito que então havia De volta da Europa, Henrique de Mesquita,
entre as personagens e os gêneros que compunham "que parecia destinado a exercer no seu país as mais
o universo cultural do período. Recém-chegado a altas funções artísticas", diz Artur, foi tocar na
Milão, por obra de um prêmio de viagem à Itália orquestra do Alcazar. O empresário Arnaud, do
conquistado no Rio de Janeiro, envolveu-se com Alcazar, coloca em cena uma partitura criada por
várias produções de peso, entre elas a opereta Sesa Mesquita para um libreto da ópera-cómica francesa
Minga e a revista Nella Luna, ambas representadas UneNuit au Château. A peça fez sucesso na rua da
no teatro com grande aplauso entre 1866 e 1868. Vala e Artur registra que a ouviu ainda outra vez
Tinha então o jovem compositor entre 27 e 29 anos. cantada em português no Fênix, onde teve muitas
Em 1870, estrearia II Guarany no Scala. apresentações consecutivas. Em 1869, Henrique de
Trajetória realmente fascinante é a do maestro Mesquita sai do Alcazar e vai participar da aventura
e compositor Henrique de Mesquita'". Nascido no iniciada por Heller no Fênix, onde permanece lon-
Rio de Janeiro em 1836 (ou 183 o, segundo aEnci- gos anos como regente de orquestra, "ensaiador de
clopédia deMúsicaBrasileira), o mulato Henrique coros e primeiras partes".
de Mesquita revelou desde cedo grande vocação mu- Representando uma nova geração de maestros
sical, tornando-se ainda criança um exímio tocador e compositores, Assis Pacheco ganha perfil em O
de trompete, o que o levou a ingressar no Imperial Álbum. Contava então com 28 anos e iria ser um
Conservatório de Música, Enquanto estudava abriu parceiro de Artur Azevedo em várias montagens,
um negócio em sociedade com um amigo, Liceu e com destaque para O Tribofe, A Fantasia e A Ca-
Copistaria Musical, que oferecia cursos de música pital Federal". Paulista de uma família abastada do
e outros serviços no ramo, copiando partituras ou interior, nasceu em Itu, onde iniciou seus estudos
musicais, que completaria na Itália. Formou-se em
59 As fotos foram feitas nas oficinas da Companhia Fotográfica Direito em São Paulo. Foi advogado em Santos,
Brasileira, porJoão Gutierrez, copropríerário e gerente do esta- depois procurador fiscal da Fazenda e promotor
belecimento.
60 Artur Azevedo, "Henrique de Mesquita", em O Álbum, ano I,
n. 1{, abril de 1893,P' 1-2. Para o perfil de Henrique de Mesquita, 61 Artur Azevedo, "Assis Pacheco", em O Álbum, ano I, n. 9,
ver o verbete respectivo em Enciclopédia daMúsicaBrasileira. São fevereiro de 1893, p. I -2. Para o perfil de Assis Pacheco, ver o
Paulo: Arr, 1977, p. 477. verbete respectivo em Enciclopédia da1vfúsica Brasileira, p. 58 I.

• 260
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

público. Por sua vocação artística e boêmia foi seu lugar estaria reservado em qualquer publica-
deixando a beca pela pena e a música. Envolveu- ção em que ele próprio não fosse o díretor. Uma
-se com a imprensa, como colaborador em jornais das personalidades mais ativas no meio teatral da
de prestígio e fundador de pequenas gazetas. Es- cidade desde a década de 1870, quando chega do
treou como compositor com a ópera Moerna, em Maranhão, Artur é figura síntese desse inter-rela-
1891, que não foi bem recebida. Mudou-se para cionamento de referências culturais característico
o Rio e entusiasmou-se com o teatro musicado. do período. Acadêmico e revisteiro, Artur vivia
Aproximando-se de Artur Azevedo, escreveu re- de um emprego público, na mesma secretaria de
vistas (Itararé, Aquidabã), óperas (Flora, Estela) Machado de Assis, e de suas traduções, paródias,
e poemas sinfónicos, mantendo paralelamente operetas, comédias e revistas. A bem da verdade, vi-
a atividade jornalística. Dirigiu operetas, regeu via mais de suas revistas. Sempre bem relacionado,
concertos sinfônicos na Exposição Nacional, foi recebia ilustres políticos em seus espetáculos.
regente no Teatro Avenida em Lisboa (1908). De Entre os atores e atrizes que eram também
volta ao Brasil, continuou compondo para espetá- cantores, Leonor Rivero pode ser encontrada na
culos de Leopoldo Fróes. Muitos são os composi- galeria de ilustres apresentada por Artur Azevedo
tores, instrumentistas e maestros que tiveram perfis em O Álbum. Lançara-se em Mimi Bilontra, no
semelhantes aos de Henrique de Mesquita e Assis Alcazar Lyrique'". Filha de boa família andaluza,
Pacheco, transitando entre classes,mas também en- Leonor transferiu-se ainda muito jovem para o
tre inúmeros gêneros dramático-musicais, da ópera Brasil "por circunstâncias íntimas': segundo o perfil
à revista, concertos e aulas no Conservatório ou de O Álbum, escrito por Paulo Augusto. Estreou no
Instituto Nacional de Música. Alcazar, onde fez sucessos em inúmeros papéis, entre
Entre os autores, Moreira Sampaio é outra eles o de um "formoso" travesti da Giroflé-Giroflá.
dessas personagens emblemáticas dessa geração. Depois de passar por vários teatros do Rio, segue
Nascido em 1851, na Bahia, foi, ainda criança, para Paris: "partiu para a capital do mundo, cujas
para o Rio. Com bastante sacrifício formou-se mé- seduções a deslumbravam': diz Artur. Lá é lançada
dico em 1873 .Mas deixou a medicina e tornou-se por um famoso jornalista como Mimi Bambochc-',
empregado público, com um cargo na Biblioteca e passa a pertencer ao quadro de atrações das Folies
Nacional, sendo nomeado depois como oficial na Dramatiques e dos Bouffes-Parisiens. Com saudades
Secretaria do Império, onde ficou até se tornar di- do Brasil, volta em 1884, ingressando na primeira
retor do Asilo dos Meninos Desvalidos a partir do companhia de Sousa Bastos no Rio. Dividia-se en-
Governo ProvisórioMantinha sempre atividade na tre turnês pelas províncias do país e viagens a Paris,
imprensa, tendo fundado alguns periódicos. Mas onde mantinha casa e criados. Voltaria depois ao
seu grande talento era o de comediógrafo. Tendo Variedades, dando continuidade à personagem de
estreado no Cassino, foi parceiro de Artur numa Mimi Bamboche. Transitando entre as pequenas
série de peças marcantes (O Mandarim, Cocota, O cidades das províncias brasileiras, Rio e Paris, rea-
Carioca, O Bilontra, Mercúrio), atuando também lizando uma carreira ascendente do Alcazar carioca
como tradutor, autor de paródias, revistas. Montou aos cafés-concertos mais famosos da França, Leonor
uma série de espetáculos em que era o único autor
nos anos de 1890. Seu último espetáculo foi Inana. 62 "Nela [J.1imiBilontra] estrearam dois elementos preponderan-
Como muitos contemporâneos que se dedicaram tespara o gênero: a Leonor Rivero,que se evidenciara no repertório
do memorável Alcazar, e o Peixoto, possuidor de recursos côrnícos
à carreira teatral, morreu pobre. Em seu enterro, POStosem destaque nas várias companhias a que pertencera': CE.
Artur fez um discurso emocionado, dizendo que Lafayette Silva, Revistado JHGB: Artistasde OutrasEras, v. 169,
Rio deJaneiro: Imprensa Nacional, 1939, p. 41.
com o companheiro teria partilhado a luta de fa- 63 No cancioneiro de Aimée no Alcazar, publicado em r865,
zer emergir do "estrume da revista' a semente da aparecia uma canção com o título de "Les Mémoires de Mimi
Bamboche - ronde des barnbocheuses" com letra de E. Grangé
comédia nacional. e L. Thiboust, e música de S. Mangeanr. CE. Aimée, Recueilde
Certamente Artur Azevedo não incluiu o seu chansonnettes deMlle Aimée, étoileparisiennea l:AlcazarLyrique
deRio deJaneiro, Prerniere Partie Rio deJaneiro: Thevenet & C.,
próprio perfil na galeria de personalidades. Mas o
r865'P·7-8.

• 26r
História do Teatro Brasileiro + volume 1

Rivera escapara do destino das estrelas da noite que Quando começou, Xisto não tinha um conhe-
encerraram suas vidas como cafetinas ou madames cimento de música, notas e partituras; compunha
decadentes. Sempre muito aplaudida pelo público, e tocava violão intuitivamente'<. Cantando nos en-
era a estrela maior da companhia do Teatro Lucinda treatos dos espetáculos, criou fama entre o público
em 1895, quando foi publicado seu perfil na excelsa de Salvador, com sua voz de barítono. Na cidade,
galeria de O Álbum64 • Das fronteiras preestabeleci- suas modinhas faziam sucesso: Perdoaou Sê Cle-
das social e culturalmente, Rivero só não precisou mente e Quis Debalde. Os lundus ainda mais: Isto
transpor a de classe, diferentemente de outras é Bom, Pescador (com letra de Artur Azevedo), A
atrizes-cantoras do teatro musicado. Mulata (com letra de Mello Moraes), A Preta. Os
Entre os ilustres retratados por Artur Azevedo lundus eram obrigatórios nos teatros e discretos
está uma das personagens mais emblemáticas para nos salões, e as modinhas correntes em todos os
essanossa história. Xisto Bahia pode ser encontrado ambientes.
tanto nos trabalhos e memórias que se dedicam à Xisto chegou ao Rio em 1875 e logo firmou-se
história do teatro brasileiro, quanto naqueles vol- como grande cómico, divertindo a plateia flumi-
tados para a história da música popular brasileira. nense com sua mais famosa criação: o Bermudes de
O autor do lundu Isto é Bom foi considerado por Vêspera de Reis'", comédia de Artur Azevedo. Em
Artur Azevedo como "o ator nacional por excelên- 1878, inaugurou o Teatro da Paz em Belém com
cia". Mulato, filho de um major, Xisto nasceu em um grande elenco: João Colás, Joaquim Câmara,
1841 em Salvador. Nasceu e cresceu na Freguesia JoanaJanuáriaentreoutros; em 1879, trabalhou na
de Santo Antônio de Além do Carmo, pródiga em Bahia. Depois voltou para o Rio, onde se estabele-
cancioneiros, compositores e intérpretes no século ceu, trabalhando inicialmente para Furtado Coe-
XIX. Tornou-se amador teatral e excelente tocador lho e depois para Heller. Seu prestígio era grande,
de violão. Quando seu pai morreu em 1858, tentou reconhecido pelo Imperador. Em 1882 fez parte
o comércio para sobreviver, mas, fracassando, vol- da companhia dramática de Braga Junior; no ano
tou-se para o teatro. Seu cunhado Antônio Araújo seguinte ingressou na de Sousa Bastos, mas logo
era um mestre no teatro baiano. Ingressou como voltou à de Braga Junior no Príncipe Imperial.
corista em 18 59 na Cia. Lírica Clemente Mugnai, Em O Mandarim, revista de ano de 1883, de Ar-
que trabalhava no Teatro S. João. Saiu daí para a tur Azevedo e Moreira Sampaio, a caricatura que
companhia de seu cunhado, com a qual visita as Xisto fez de um barão do café, João José Fagundes
principais cidades da província. Em 1861 transferiu- de Rezende e Silva, na peça como Barão de Caíapó,
-se para a companhia do comendador Constantino além de motivar um dos primeiros sucessos do gê-
do Amaral Tavares, diretor do Teatro S.João, onde nero, antes da explosão de O Bilontra, provocou
fez sucesso com suas criações e nas chulas e lundus acirrada polêmica'".
dos entremezes que ele mesmo acompanhava com Na década de 1880, no entanto, mesmo consa-
o violão. Em 1864 foi para o Norte com a com- grado no Rio, Minas e São Paulo, Xisto começa a
panhia do empresário Couto Rocha, tendo como desiludir-se do teatro. Tinha fama, mas esta não se
parceiro Furtado Coelho. Ficou por lá durante dez traduzia em uma vida mais segura para ele e para a
anos. Diz a crônica corrente que, devido ao sucesso família. A carta que escreve em 1887 para 1homaz
fácil e à boêmia, a qualidade de seu trabalho regre- Espiúca é um dos documentos mais eloquentes da
dira, chegando ao fracasso em 1866 no Ceará. No época. Ídolo das plateias, reconhecido pela crítica,
Maranhão, Joaquim Serra como crítico e Joaquim Xisto está desencantado com o teatro, e manifesta
Augusto como diretor incentivaram-no ao estudo e sua desilusão na resposta ao amigo que abandonara o
ao trabalho aprimorado, recuperando seu prestígio.
65 A. Ruy, Boémios e Seresteiros doPassado, P: 17.
Xisto volta consagrado à Bahia em 1873 e ingressa
66 CE M. da Paixão, a Teatro no Brasil, P: 212-213.
na Companhia de Mágicas de Lopes Cardoso. 67 Roberto Ruíz, a Teatro deRevistanoBrasil, Rio de Janeiro:
Inacen, 1988,p. 20; Neyde Veneziano, NãoAdianta Chorar: Tea-
64 Paulo Augusto, "Leonor Rlvero",em aÁlbum, ano II, n. 53, trodeRevistaBrasileiro... Obal, Campinas: Editora da Unícarnp,
janeiro de 1895,P' r. 199 6,P·3 8.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

teatro para seguir aprofissão de dentista e o consulta que o tinham consagrado nas peças Uma Wspera
com o desejo de retornar à profissão de ator, ''Ao ler de Reis, o monólogo Capadócio, e a comédia Como
tua carta, fiquei absorto': começa Xisto, acrescen- se Fazia um Deputado. A viagem, no entanto, fra-
tando que se ainda fosse um jovem a perguntar se cassou por conta da Revolução da Armada. Depois
era bom entrar para o teatro, o mandaria "bugiar": disso, os teatros fechados pela revolta, já debilitado
por uma doença, Xisto recolhe-se em Caxambu,
Mas a ri? Isso torna-se gravemente sério! Raciocinemos. por conselho médico, no' final de 1893. Sua doença
Sabes o que é, ou por outra, o que está sendo atualmente se agrava e ele morre em 3o de outubro de 1894.
o teatro neste país, compreendidos os quatro POntos car- OÁlbum de Artur Azevedo forma uma extensa
deais? O teatro, isto é, a arre é uma traficância, um negó- e variada galeria de personagens cujas histórias,
cio de balcão, uma feira de novidades, em que a imprensa entrelaçando-se, revelam a complexidade da com-
faz de arlequim à porra da barraca, anunciando e pufiando posição do cenário teatral. As fronteiras volatiliza-
as sumidades, conforme a gorjeta dos contratadores. Essas das da sociedade em transformação acentuavam-se
novidades, ambicionadas a todo momento, são estrangei- na estrutura ela mesma volátil e polissêmica dos
ras. Tu és estrangeiro? Nã0 68• gêneros do teatro musical. Os sentidos impressos
à cena ganhavam inúmeros contornos, enquanto
Em seguida, Xisto critica a forma como todos as referências cultas ou populares, nacionais ou es-
os gêneros teatrais vinham sendo representados na trangeiras, de diferentes classes e posições sociais se
cidade, especialmente a opereta, e mostra seu des- cruzavam no convívio nas companhias e na criação
contentamento com o que chama de decomposição dos espetáculos que reuniam aristocratas, cantores
da arte do ator, "Não volte': insiste. de lundus, divettes alcazarinas, diplomatas, altos fun-
Durante toda a década de 1880 o ator empe- cionários públicos e cómicos de extração popular.
nhou-se na causa abolicionista, participando de
espetáculos realizados em prol da completa aboli-
ção dos escravos. Ainda em 1887 a Empresa Dias o Camarim e o Escritório:
Braga colocava Xisto Bahia na direção do Teatro Os Donos da Voz
Lucinda. Montou cinco revistas e mágicas. Mas
ele queria mudar de profissão. Deixou o palco O meio teatral das últimas décadas do século XIX
em 1891, quando conseguiu também um cargo envolvia, como vimos, um número expressivo de
de amanuense na penitenciária de Nirerói, com a empresários, com companhias especializadas em
ajuda do presidente do Estado do Rio~ Francisco gêneros ligeiros ou não. Entre os mais importan-
Portela. Foi demitido com a deposição do presi- tes, dividindo a cena com Heller, Braga Junior e
dente em 1892 e teve que voltar ao teatro. Retor- Sousa Bastos, com períodos de maior ou menor
nou com sucesso no Teatro Apolo, na companhia destaque, ao longo da segunda metade do século,
de Eduardo Garrido, ao lado de Vasques e das estão os já mencionados Dias Braga, Ismênia dos
baianas Isabel Porto e Clélia Araújo. Tinha feito Santos, Guilherme da Silveira e Celestino da Silva.
aquele que seria seu último trabalho, a mágica O Fi- Questões exclusivamente artísticas se misturavam
lho do Averno, de Garrido, quando, em 1893, Artur aos empreendimentos bem ou mal sucedidos e às
Azevedo publicou o seu retrato em O Álbum. Era mais diversas trajetórias pessoais. Ao lado das preo-
o reconhecimento e a consagração de seu talento. cupações com as criações artÍsticas, viviam todos
Para Artur, ele era o ator nacional por excelência. envoltos em questões comerciais como contratos,
Pelo perfil, ficamos sabendo também que Xisto assinados ou verbais, com ateres e dramaturgos,
fora convidado por Sousa Bastos para fazer em arrendamentos, aluguéis e reformas de teatros,
Lisboa, no Teatro das Novidades, as personagens acusações de plágio, dívidas. Furtado Coelho,
Dias Braga e Isrnênia dos Santos escavam, junta-
68 Carta de Xisto Bahia a Thomaz Espiúca, em Henrique mente com Heller, entre aqueles que fizeram uma
Marinho, O Teatro Brasileiro: Alguns Apontamentospara A Sua
História, Rio deJaneiro: Garnier, 1904, p. r ro.
sólida carreira teatral como atores, ensaiadores e,
História do Teatro Brasileiro + volume 1

depois, empresários no Brasil, atravessando várias lares, as pequenas companhias, os espetáculos de


companhias e tendências que tinham marcado o variedades, a praça de touros e o circo.
teatro brasileiro. Guilherme da Silveira e Celestino Jacinto Heller era filho de um comerciante
da Silva poderiam ser colocados ao lado de Braga de instrumentos musicais que, após falir em seu
Junior e Sousa Bastos, com espírito mais empreen- negócio, resolveu tornar-se ator e emigrar para o
dedor, empresarial, amando no Rio e em Lisboa, Brasil. Nascido no Porto em 1834, Heller deci-
onde afinal concluem suas carreiras, sendo os três diu tornar-se ator aos 15 anos, estreando no Rio
primeiros sócios de uma empresa teatral em Lisboa Grande do Sul e viajando com seu pai por toda a
na década de 189 o. província e por outras mais até ficar órfão. Depois
A longa duração do Teatro Fênix, sua influência disso recebeu convite de João Caetano e mudou-
determinante nos rumos das produções teatrais, sua -se para o Rio, integrando a companhia do grande
hegemonia como principal companhia na década ator no Teatro S. Pedro de Alcântara. Em seguida,
de 1870 e meados da década de 1880 fizeram de passou para o Ginásio Dramático, onde atuou ao
Heller um dos principais empresários do período. lado de ateres como Vasques e Furtado Coelho.
O interesse pelo mercado dominado por ele atraiu No final dos anos de 1860, trabalhou com Vasques
a concorrência. Heller, Sousa Bastos e Braga Junior no Teatro Fênix Dramática, do qual se tornou em-
serão os protagonistas de uma intensa concorrên- presário no início da década seguinte. Percebendo
cia no início dos anos de 188 o. Sousa Bastos ficou o apelo popular dos gêneros musicados, Heller
no Brasil até 1884, ano em que ele, Heller e Braga investiu em mágicas com grandes cenografias e
Junior vão se envolver num complicado processo de alto custo como Ali-Babá, Corça dos Bosques,
judicial, fruto de uma tentativa de formação de Loteria do Diabo; paródias como Orfeu na Roça,
cartel entre os empresários concorrentes. Se estas A Filha de Maria Angu e as operetas Boccacio,
eram as companhias de maior destaque na espe- Mascote, Mosqueteiros no Convento e Os Sinos de
cialidade companhias de óperas-cômicas, como se Corneville. Faziam parte de sua companhia Gui-
identificariam nos processos judiciais, havia ainda lherme de Aguiar, Vasques, Mattos, e as estrelas
a concorrência de Dias Braga no Recreio e os di- Rose Villiot, Delmary, entre outras. Com o fim do
vertimentos mais populares, como uma Empresa de Teatro Fênix, em 1893, Heller continuou dirigindo
Bonecos Automáticos no Teatro Filomena Borges, outras companhias e tentando repetir os sucessos
as corridas de touros e o Teatro Mecânico Recreio anteriores, mas não foi tão feliz 69 •
Juvenil, com uma companhia de 300 autómatos, a O empresário teatral, dramaturgo e jornalista
preços populares. português Sousa Bastos (1844-1911) iniciou suas
No início da década de 188 o, a situação do ce- atividades no Brasil em 1882, primeiramente com
nário teatral da cidade é exemplar do que se deu sua companhia portuguesa, posteriormente criando
ao longo do período que teve início na década de uma companhia no Brasil. Quando passou a traba-
1870 e se estendeu até a virada do século. Vemos lhar também no Brasil, intermitentemente, Sousa
o predomínio dos gêneros ligeiros, tendo à frente Bastos já era um dos principais empresários do ramo
sempre a companhia de Heller, acompanhado pe- em Lisboa. Suas investidas por aqui se estenderam
los concorrentes que disputavam o reconhecido por alguns anos, como empresário, diretor de com-
monopólio. Paralelamente, seguem as companhias panhias e ensaiador em diversos teatros brasileiros
operísricas e teatrais estrangeiras que costumavam e em inúmeras cidades, até uma última temporada
aportar aqui durante o verão europeu. Ateres e com óperas-cómicas em 190T Rio de Janeiro, São
atrizes empresários mantinham também as car- Paulo, Belém, Recife, Porto Alegre, Santos, Campi-
reiras das companhias que, mesmo investindo no nas, Pelotas, Rio Grande, Cachoeira, Florianópolis,
ecletismo, procuravam manter um repertório com Paranaguá, Antonina, Lapa, Curitiba, entre outras,
mais dramas e comédias, como Dias Braga, Ismênia
dos Santos, Furtado Coelho e Apolónia Pinto. Por 69 Sobre a dissolução da companhia que Heller mantinha em
1895 no Santana, ver Artur Azevedo, A Notícia, I I de julho
fim, temos a constância de espetáculos mais popu-
de 1895.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

foram as cidades por onde circulou com seus espe- Empresário teatral, mas também negociante, en-
táculos. Iniciou sua carreira de empresário no Brasil riqueceu rapidamente. Após a proclamação da
no Teatro S. Pedro de Alcântara. Sempre teve, no en- República, "Braga Junior foi atacado da febre de
tanto, suas ativídades principais em Portugal, como companhias e outros negócios que se tornaram epi-
empresário e ensaiador. Uma das personalidades dêmicos no Rio de Janeiro': fazendo grande fortuna
mais ativas e influentes da vida teatral portuguesa em poucos meses, e mudando-se definitivamente
no final do século XIX, segundo a historiografia para Portugal, onde se tornou visconde de S. Luís
portuguesa, foi o responsável por alguns dos maio- de Braga. Sousa Bastos lembra que o novo visconde
res sucessos nos palcos do teatro ligeiro no Brasil, enriqueceu "por meio de negócios de fundos e in-
lançando atores e alimentando o sistema que investia corporação de companhias">. Radicou-se a partir
nas grandes estrelas, criando-lhes grandes oportu- daí em Lisboa, tornando-se sócio-proprietário e
nidades nos espetáculos. Foi o responsável também empresário do Teatro D. Amélia. Em I882, em 4
pela vinda da primeira companhia portuguesa de de março, BragaJúnior estreara sua primeira com-
revistas ao Brasil. Seu maior sucesso, aqui e em Por- panhia, tendo Adolfo de Faria como ensaiador
tugal, foi com Tim-Timpor Tim-Tim, espetáculo de e diretor de cena, e ocupando o Teatro Recreio
revista no qual estrelava Pepa Ruiz, fazendo dezoito Dramático. Nesse período, a companhia encenou
papéis. Tim-Timpor Tim-Tim foi encenada pela pri- França junior, Artur Azevedo, Moreira Sampaio,
meira vez em I 892 no Rio, tendo, segundo palavras Cardoso de Menezes. Antes de completar dois
do próprio Sousa Bastos, um sucesso ainda maior no anos, no entanto, a companhia dividiu-se, indo
Brasil do que aquele que obtivera em Portugal. Al- uma parte com BragaJúnior para o Príncipe Impe-
cançou de pronto mais de cem apresentações, sendo rial formar uma empresa dedicada ao gênero alegre,
reencenada inúmeras vezes, até por três companhias e outra se estabelecendo como uma associação sob
simultâneas, e também por crianças, com enchen- direção de Dias Braga, no próprio Recreio?'. Uma
tes espantosas, dizia Sousa Bastos: "Em São Paulo das primeiras peças montadas pela companhia de
é a peça que tem sido mais representada, tanto na BragaJúnior foi a revista de ano O Mandarim, de
capital como nas cidades do interior. Tem grande nú- Artur Azevedo e Moreira Sampaio, sucesso em
mero de representações na Bahia, Pernambuco, Pará I884, com Martins, Xisto Bahia e Colás.
e Maranhão". Sousa Bastos tornou-se popular com Dias Braga começara sua vida como sapateiro:
as revistas de ano, mas escreveu também dramas, co- "principiou colocando tombas e acabou rico
médias, mágicas, operetas, monólogos, cançonetas e proprietário da Cidade Nova"?", Chegou a fazer
cenas cômicas. Empenhou-se em deixar o registro da fortuna no teatro. Ele era um empresário que ca-
história do teatro nos dois países, escrevendo obras minhava pela trilha estreita dos que tentavam con-
como a Carteira do Artista e o Dicionário do Teatro ciliar ideais artísticos e grandes negócios. Mesmo
Portuguez, nas quais biografou dezenas de ateres, sendo empresário, Dias Braga cultivava outras
músicos, cenógrafos, diretores, dramaturgos etc. ambições, como incentivador do teatro nacional,
Braga Júnior começou como ponto no Rio de como ensaiador e como ater, Artur Azevedo dizia:
Janeiro, uma ocupação com certo valor nas com-
panhias de então, pela função múltipla de suporte De todos os nossos empresários, é Dias Braga - e sempre
ao desenvolvimento do espetáculo, como deixas, foi assim - aquele em cujo espírito mais trabalha a ideia da
efeitos sonoros, comando de entradas e saídas em nacionalização do teatro. Ele por gostO não faria representar
geral etc. Nascido no Rio Grande do Sul, escolheu uma peça estrangeira. [...] Sabe que aquilo não vai lhe dar
a nacionalidade portuguesa de seu pai. No Rio de vintém, que o público fluminense não acredita que no Brasil
Janeiro foi sócio de uma empresa teatral no Teatro se possam escrever peças tão boas como as francesas; mas é o
Recreio Dramático. Em seguida adquiriu o espólio mesmo: entrega-se de corpo e alma ao trabalho dos ensaios
da empresa de Ester de Carvalho, e montou uma
70 Carteira doArtista..., P: 195.
companhia que percorreu o Brasil, ganhando di-
71 CE M. da Paixão,O Teatro noBrasil, P: 251.
nheiro com operetas como O Periquito eD.]uanita. 72 Idem, EspíritoAlheio, p. 473.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

com a paciência, o carinho, a solicitude que não dispensa aos A companhia que organizou no Recreio, em 1883, e
dramalhões com que espera encher a gaveta do bilheteiro. que durou quase trinta anos teve um dos mais belos
[...] Mas de todas as peças nacionais que Dias Bragafezrepre- conjuntos de ateres de seu tempo, na opinião de
sentar, só urna lhe deu algum resultado material: AsDoutoras, Eduardo Vitorino?'. Para Múcio da Paixão:
de FrançaJunior. Nenhuma das outras valeu a pena'".
Dias Braga fez fortuna no teatro, não como artista mas como
Corrigindo-se mais à frente, Artur Azevedo diz: industrial. A companhia que fundou no Recreio era uma as-
"Referi-me lá mais acima aos prejuízos que as pe- sociação, e quando começou a ganhar rios de dinheiro passou
ças nacionais causaram às algibeiras de Dias Braga. a ser empresa sua, o que lhe proporcionou a grata satisfação
Enganei-me: houve duas peças nacionais que o en- de amontoar não pequenos cabedais (coisa justa visto que
riqueceram: O Bendegó e O Sarilho". Justamente se tratava de um ex-sapateiro). Quando as coisas pioravam
duas revistas de ano. e começava-se a perder dinheiro, Dias Braga transformava
Mesmo aqueles que procuravam levantar a ban- a sua empresa em associação e assim os prejuízos eram por
deira do teatro nacional e resistir um pouco à onda todos partilhados irmamente. A mutação e a tramoia eram
dos sucessivos gêneros musicais e ligeiros, como sempre essa, de efeitos seguros para o felizardo empresário,
Dias Braga e Artur Azevedo, cediam ao inconteste e sempre negativos para os... artístas'".
veredicto do público depositado nas bilheterias dos
teatros. Artur Azevedo, defendendo-se de críticas Guilherme da Silveira foi outro ator português
recebidas através da imprensa sobre a produção de que se fez empresário teatral no Brasil. Segundo
uma nova revista, dizia: Sousa Bastos, alternou "noites de glória, noites de
entusiasmo, noites de desalento, noites de deses-
Quereria a Gazeta que eu levasse à empresa do Recreio Dra- pero, épocas prósperas, outras desgraçadas":". Con-
mático, em vez de outroJagunço, que produziu na primeira sagrado como ator em Portugal, no auge de uma
representação 4:782$, outro Badejo, que produziu na 2a (a carreira que tinha começado ainda jovem por pura
Ia foi em benefício) 380$000? Eu escrevo o Gavroche pela persistência, quando atuou em várias companhias
mesma razão por que os meus colegas da Gazeta escrevem sem nada cobrar, Guilherme da Silveira, nascido
o Engrossa. Albardamos o burro à vontade do dono. Ora em 1846, vem pela primeira vez ao Brasil em 1872,
aí está74 • para atuar na empresa do ator Valle. Seu sucesso
o manteve por aqui. Mas em 1884, cansado dos
o interesse do público pela revista se traduzia numa altos e baixos da carreira de empresário, volta para
renda mais de dez vezes superior à da comédia O Portugal, onde fica apenas por três anos. Em 1887
Badejo, em suas respectivas primeiras bilheterias. O está de novo no Rio de Janeiro para tentar fortuna.
conflito expresso por Artur entre o ideal e o possível Guilherme da Silveira tentou várias peças, que
trazia sempre a marca de uma preocupação com os apesar de lhe saírem bem não lhe davam dinheiro.
fins comerciais dos empresários em suas montagens Até que resolveu encenar A Grande Avenida, do
teatrais. Não poderia ser ele a convencer os empresá- escritor português Francisco Jacobetty: "uma ver-
rios a investir em fracassos de bilheteria. A bandeira dadeira mina para o empresário Dias Braga e para
da criação de um Teatro Municipal, à custa do poder Silveira, que recebia uma porcentagem da receita'.
público, justificava-se mais uma vez. Com o dinheiro, reformou o Teatro Variedades e
Dias Braga sempre se dedicou a montagens que finalmente deslanchou sua carreira de empresário
espantavam outros empresários. Pôs em cena O com sucessivas enchentes numa série de espetácu-
Bad10, AJoia, espetáculos que Artur Azevedo di- los: a mágica O Gato Preto, arranjada por Eduardo
zia terem sido um fiasco para o empresário.Montou Garrido; A Galinha dos Ovos de Ouro, de autoria
O Gran Galeoto, No Seio da Morte, traduzida espe- de Garrido; As Andorinhas, tradução de Garrido;
cialmente para Dias Braga pelo imperador Pedro II.
75 "Dias Bragá', AtoreseAtrizes, p. 31-37.
73 A Notícia, 22 de dezembro de 1898. 76 EspíritoAlheio, p. 478.
74 Idem, ibidem. 77 Carteira doArtista..., p. 66.

• 266
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Maclemoiselle Nitouche, tradução de Gervásio Lo- Os empresários-ateres, por sua vez, também se en-
bato e Urbano Duarte, entre outras. Em setembro volveram cada vez mais na empreitada de empresas
de 1890, inaugura o Teatro Apolo, que construiu teatrais movidas menos pelos seus projetes artísti-
no Rio de Janeiro. Pouco tempo depois, vende sua cos e mais pelo recado a decifrar dos borderâs. No
empresa e retira-se para Portugal. Lá, constrói uma comando das companhias perseguiam as transfor-
luxuosa casa e convida investidores e capitalistas mações sociais e culturais que buscavam tradução
brasileiros para construir o Teatro D. Amélia. nos palcos; no escritório, estavam colocados diante
Um dos empresários mais dinâmicos da época, o da administração de tensas relações de trabalho e
português Celestino Silva,começou como cambista competição de mercado; no camarim e na batuta
no Brasil. Sem dinheiro algum, sem ajuda de nin- do ensaiador, tentavam forjar a partitura cênica que
guém, realmente do nada, como gostava de lembrar conciliasse seus interesses artísticos e económicos
quando já tinha se transformado num afortunado com a demanda do público. Entre o escritório, o
industrial do ramo, seu primeiro grande sucesso camarim, o palco e a plateia, a partitura que se for-
foi como empresário na turnê brasileira da menina java era muito mais o resultado de um confronto
prodígio Gemma Cuniberti. Em seguida investiu em permanente de diferentes vozes do que uma pauta
outra criança revelação, a brasileira Julieta Santos. traçada pelos donos do negócio.
Foi quando sua fortuna começou. Tinha um grande Um novo movimento se dá ainda no ambiente
tino para o negócio do teatro. Ia todos os anos a Ma- das companhias teatrais no início dos anos de
dri, Paris, Lisboa, Milão, para conhecer as novidades. 1890. Braga Júnior foi o empresário que mais se
Escolhia as peças de acordo com o gOSto da plateia beneficiou com a onda de empresas, companhias
brasileira. E sabia escolher. Sua qualidade principal e ações que tomou conta do cenário econômico do
era fazer contratos teatrais, em qualquer modali- Rio durante o Encilhamento. Os tradicionais em-
dade. Conhecia bem o negócio e sabia defender seus presários do ramo teatral se envolveram com novos
interesses, mesmo judicialmente. Boa parte dessas investidores e um número crescente de empresas
informações quem nos dá é Eduardo Vitorino, que teatrais surgiu como sociedades que emitiam ações
foi seu sócio por alguns anos e conhecia bem sua per- de forma altamente especulativa, sem o capital cor-
sonalidade temperamental e polêrnica". Foi talvez respondente.
o mais atinado entre os empresários que passaram A maior parte dessas empresas foi formada se-
pelo Rio. Tendo feito sua fortuna, estabeleceu-se gundo o princípio das sociedades em comandita
em Portugal, passando alguns meses do ano no por ações, nas quais "ao lado dos sócios ilimitada e
Rio, e viajando constantemente entre Porto, Paris solidariamente responsáveis, há sócios que entram
e algumas cidades italianas. Uma vez em Portugal, apenas com capitais, não participando na gestão
estabeleceu-se como o empresário que trazia as prin- dos negócios, e cuja responsabilidade se restringe
cipais companhias estrangeiras em suas turnês pelo ao capital subscrito", na definicão do Aurélio. O
Brasil, de todos os gêneros, das líricas às equestres, sócio comanditário é o sócio apenas capitalista
sempre com lucros expressivos. na sociedade, que se restringe ao capital subscrito.
Entre todos os empresários, talvez Celestino Nessas novas empresas veremos, portanto, a dire-
da Silva representasse melhor a possibilidade de to ria, sempre envolvendo algum empresário do
ascensão social oferecida pelo novo ramo de ne- ramo - Braga Júnior, Celestino da Silva, Jacinto
gócio que o teatro se tornara com a voga dos mu- Heller, Eduardo Garrido -, e a relação dos sócios
sicais. Sua trajetória pessoal, de cambista a grande investidores cornanditários, que entraram apenas
industrial, indica o leque de oportunidades que o com o capital, como investidores. A forma jurí-
teatro das últimas décadas do século XIX oferecia dica muda em alguns casos para a da sociedade
para aqueles que o vissem como um investimento anónima, na qual o capital é dividido em ações do
comercial, como uma indústria do entretenimento. mesmo valor nominaL Quando, em 1891, chegou
ao fim a onda especulativa que tomou de assalto
78 "Celestino Silva': em AtoreseAtrizes, p. 177-180.
também o setor dos teatros, o perfil das novas
História do Teatro Brasileiro • volume 1

companhias teatrais e o panorama que se colocava muito rudimentar e muito maxixeira. Em cima da barraca
para elas tinham mudado completamente. um boneco, representando o ex-ater Martins, trazia na mão
Mesmo após o fim da febre empresarial dos anos um letreiro, dizendo: Vou Regenerar Isto.
I890-I89I continuam a aparecer empresas criadas
com o fim de explorar o teatro como um bom ne- o quadro sintetiza os elementos da fórmula que
gócio. Foram várias as empresas que surgiram nesse assegura o sucesso das companhias do gênero ale-
período dos primeiros anos da República. Formadas gre, ainda que sob o viés da crítica: o cómico, ou
em geral por membros da elite política, económica e antes, o baixo-cómico, representado pelo palhaço;
financeira, tinham alguns dos principais profissionais a dançarina seminua, que associava à figura das atri-
do ramo envolvidos nas empreitadas. Essa associação zes-cantoras e estrelas femininas das companhias
entre o teatro e o capital ganhou formas variadas, a imagem das coristas de cafés-concerto; a música
mais ou menos artísticas, ou puramente especulati- de apelo popular representada pela orquestra po-
vas. Para os empresários acostumados a assumir os bre e maxixeira. O teatro é criticado como uma
riscos das empreitadas teatrais, as parcerias poderiam espécie de barraca de saltimbancos, próximo dos
parecer atrativas. No entanto, eram frequentemente espetáculos de feira, e o ater Martins, relacionado
excluídos dos cargos de diretoria administrativa. à voga do teatro ligeiro, aparece arvorando-se em
Com exceção da companhia de Celestino da Silva, regenerador da cena apontada como decadente.
no Apolo, que gerenciava com grande habilidade seus A crítica estavaafinada com a visão das elites letra-
negócios, controlando-o mesmo de Portugal, a parce- das e o próprio Artur Azevedo concordava com ela:
ria com os capitalistas e investidores que se animaram
com empresas teatrais não foi exatamente um sucesso A crítica é acerba, mas justa. Não me parece que o teatro
para os profissionais do ramo. Braga Júnior transfor- no Rio de Janeiro seja na atualidade outra coisa senão isso,
mou sua Companhia BragaJunior em uma sociedade e a prova é que o público já manifesta visivelmente o nojo
anónima comandada por Celestino da Silva, que fez e a repulsão que essa choldra lhe causa.
do Apolo uma de suas mais constantes fontes de
renda no Brasil. Sousa Bastos voltou para uma nova Ora, a bem da verdade, não há bem uma repulsa do
temporada brasileira em I 892 com o enorme sucesso público ao humor burlesco, ao maxixe e às estrelas
que foi Tim-Timpor Tim-Tim. Em I 896, estreou Rio femininas das companhias. A tendência identifi-
Nu, que se tornou seu maior sucesso ao lado de Tim- cada na pequena queda no número das produções
-Tim, sendo sempre reprisadas". Heller, no entanto, e na afluência do público parece mais indicar o
assistiu ao fim do Teatro Fênix em I 893. quadro de diversificação da oferta de diversão ur-
bana, com os rnusic-halls, cafés-concerto, casas de
"chopp", salas de cinema, que também atraíam o
Os Donos da Cena: Estrelas e Cômicos público. Tanto não se pode falar em repulsa que
os mesmos ingredientes estarão compondo a pro-
No Carnaval de I896, o Club dos Democráticos gramação dos espetáculos em quase todas as suas
exibiu um carro de crítica em seu préstito intitu- variantes nas próximas décadas, como na espetacu-
lado O Teatro no Rio deJaneiro. A descrição é de larização das revistas, nos filmes cantantes ou nos
Artur Azevedo: music-halls de grande espetáculo.
Em sua carta a 1homaz Espiúca, de I 887, Xisto
Representava o carro uma espécie de barraca de saltimban- Bahia expõe também uma ácida crítica à forma
cos, onde um palhaço e uma dançarina seminua, que tinha como a arte teatral estava sendo conduzida. Em
[...] de quois'asseoir, dançavam ao som de uma orquestra todos os gêneros há depravação, diz Xisto: "o cô-
mico, esse... aí peco eu pelo desejo de satisfazer,
79 CE Artur Azevedo, A Notícia, 2 de dezembro de 1898. No como os mestres de cá, o gosto do público e por isso
Recreio Dramático, afirma Artur Azevedo, a peça era um prato de
resistência em 1897: "basta dizer que no último domingo a 162' chegamos a nos tornar canalhas". Palavras duras são
da afortunada revista de Moreira Sampaio realizou 2:500$000 também endereçadas às operetas:
de receita': Artur Azevedo, A Notícia, 21 de fevereiro de 1897.

+ 268
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Um gênero'de arte fácil e sem regras, onde a careta é uma Ainda que se referindo exclusivamente a uma
criação e o esgar trejeíroso e descompassado uma especiali- personagem específica da revista de ano, todo o
dade de mérito que toca às raias do gênio! Roma teve cor- comentário, mas especificamente o segundo item,
tesãs poderosíssimas para manter e dar brilho ao circo dos pode ser transposto para o ofício cotidiano dos cô-
Césares! O Brasil,isto é, o Rio deJaneiro, tem meretrizes ar- micos dentro dos espetáculos ligeiros. Observamos
ruadas e pífias, que mantêm e animam o teatro da opereta". que um repertório de técnicas e uma arte específica
estavam por trás das interpretações cômicas. Não se
Atrizes meretrizes e cômicos apresentados como tratava, portanto, de uma arte sem regras e espon-
bobos da corte eram para Xisto o retrato cruel do tânea, como fez acreditar o talentoso Xisto Bahia.
teatro a que se via obrigado a servir. Sua cruel au- A arte específica do cômico e do baixo cômico era
tocrítica, no entanto, pautava-se pela mesma visão vista pela classe artística como um campo em que
que alimentava literatos, compositores e críticos o ator se especializava, e que exigia uma aprendi-
que procuravam fazer da ribalta uma linha de- zagem tão apurada quanto a dos ateres trágicos.
marcatória para a expressão de uma arte julgada Visconti Coaracy, oculto pelo pseudônimo de
elevada. Xisto parece, nesse momento, partilhar Gryphus, reuniu e publicou, em 1884, uma série de
do juízo que colocava os cômicos do teatro ligeiro perfis cômicos de artistas e tipos teatrais, que havia
no mesmo lugar desqualificado que reservavam aparecido no periódico humorístico Mosquito":
aos artistas circenses e das barracas de feira. Era Ele ajuda-nos a conhecer a tipologia que definia
comum na imprensa usar-se a expressão barraca a atuação dos artistas. Entre os homens, os ateres
para criticar casas de espetáculo que não fariam se especializavam nos galãs, pais nobres, tiranos
jus à designação de teatro. Essa arte de feira, tão ou cômicos. Entre as mulheres, tínhamos as ingê-
menosprezada pelos artistas de elevação, não era nuas, damas galãs, damas centrais, damas caricatas
uma arte fácil e sem regras, fruto de um esgar es- e lacaias. Havia, no entanto, subdivisões, especia-
pontâneo, como Xisto a julgou, usando as lentes de lizações dentro da especialidade. O cômico, por
seus críticos para avaliar sua própria arte. Em defesa exemplo, podia ser subdividido em galã-cômico,
do acor cômico podem ser lembradas as palavras do centro-cómico e baixo-cómico. "Esta última figura
ator Brandão, oPopularíssimo, sobre as qualidades é a mais comum, e a que se reproduzem maior nú-
necessárias para o desempenho do papel do com- mero de exemplares': escreve Gryphus. Procurando
padre das revistas de ano: diferenciá-los, o autor escreve:

r. diversificar-se a todo o instante, segundo a cena episódica O galã-cômico faz-se; o centro cômico é feito; o baíxo-cô-
que comenta; 2. conhecer bem as formas de emissão de mico, porém, nem é feito nem se faz: nasce pronto. Quando
todo o gênero cómico, a fim de modelar e variar todas as sai do ventre materno, não é um vagido o que solta: faz
cenas; 3. dar uma vida constante a todas as cenas, especial- uma momice, um trejeito, uma careta que provoca o riso da
mente às mais fracas, preparando as mais fortes. Aí deve plateia. O galã-cômico e o centro fazem rir representando.
ter um feitio seu, sugestivo, àsvezes burlesco, contrabalan- O baíxo-cômico faz rir antes de começar a representar.
çando as condições e inverossimilhanças. Sem essa defesa o
ator cai irremediavelmente na monotonia. Nas numerosas O teatro pode existir sem qualquer das outras
revistas que interpretei, procurei obedecer a estas regras em figuras no seu elenco, diz Gryphus, mas não sem
minhas criações, com uma exceção apenas: no Tribofi. O o cômico. Reservando-lhe uma posição toda es-
saudoso Artur Azevedo escrevera para mim uma persona- pecial na companhia, que lhe garantia seu papel
gem real, o Seu Euzébio. Não era o compadre da revista: o indispensável, central, o autor indica aquilo que
verdadeiro compadre era o Tribofe que dava nome à peça, talvez seja o segredo do ator cômico, sua comuni-
papel feito pelo grande Vasques". cabilidade com a plateia:

80 Em H. Marinho, O Teatro Brasileiro, p. IIO-II3. 82 Gryphus, Galeria Theatral: Esboços e Caricaturas, Rio de
81 Em R. Ruiz, O Teatro deRevistano Brasil,p. r65-r66. Janeiro: Moreira, Maximiliano & c., r884.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

A nenhum dos outros artistas é lícito sair de seus papéis; ao Vasques resistiu, alegando que depois os críticos
artista cómico tudo é lícito. Ainda mais: se o côrnico não iriam atacá-lo, acusá-lo de palhaço:
sair do seu papel, arrisca-se a cair no desagrado e não ter as
palmas do costume. [...] No teatro o artista côrnico (sem Já te fiz uma vez e o resultado foi ser eu zurzido pela im-
comparação nem ideia de ofensa) goza das mesmas regalias prensa... não, Heller, tem paciência, se altero a minha
que eram atributo dos bobos nas cortes antigas. personagem, amanhã serei destratado pelos jornais, com
epítetos de palhaço, desacreditando o meu pobre nome de
o cómico é, portanto, "uma caricatura, uma más- ator, sem contar os meus inimigos de classe, que terão mais
cara de Carnava1"83. Nesse perfil traçado pelo autor um pretexto para o ataque".
talvez o único traço equívoco seja a associação da
arte do côrnico com um dom natural e espontâneo. Ainda assim, Heller pediu e Vasques salvou a mon-
A voz assumida por ele e a partitura criada e inter- tagem com seus recursos habituais: "não me digas
pretada recriavam seus papéis com uma liberdade mais nada, vou salvar a companhia, o ganha-pão
que lhe era característica, mas conquistada com o dos colegas, com sacrifício do meu nome". Todos
domínio de todo um repertório técnico disponibi- saíram dizendo que a peça seria um sucesso, que
lizado para a expressão de sua própria visão sobre iria ao centenário, e os críticos preparando suas
o palco. Uma arte de ator cultivada, transmitida e ressalvas ao Vasques, conta Brandão.
permanentemente recriada nos tablados populares Alguns procedimentos comuns à prática dos
ganhava espaço nobre nos palcos dos modernos gê- atores ampliavam o universo de informações
neros ligeiros, introduzindo uma voz dissonante, impresso nas montagens teatrais, ainda que nem
rebelde e própria na partitura estabelecida. sempre bem-vindos. Um deles era conhecido na
É o aror Brandão quem nos conta, em um dos época como "apepinar" - sinónimo de "colocar
trechos de suas memórias, registrado no livro de cacos" da gíria da época. Artur Azevedo, que
Procópio Ferreira sobre Vasques'", um caso que critica a sem cerimônia com que os artistas "ape-
ilustra bem a importância dos grandes cómicos nas pinavam" os espetáculos, explica que o hábito
companhias e de que forma os empresários conta- de introduzir ditos, suprimir cenas, ou deixar de
vam com seus desempenhos nos espetáculos. Aca- cantar números de música desagradava também
bava o primeiro ato de uma estreia da companhia alguns autores!'. Já, do ator côrnico, era isso que
de Heller. A peça era estrelada por Vasques, que se esperava, principalmente dos baixo-cómicos,
pressentia seu possível fracasso. Ao cair o pano para Vasques, Brandão e tantos outros fizeram fama
o primeiro intervalo, Heller corre para o saguão a e carreira improvisando em seus desempenhos.
fim de ouvir a opinião dos amigos e frequentadores. Essa recriação dos papéis e cenas no improviso
Todos foram unânimes em dizer para o empresário do palco ocupava lugar central nos espetáculos
que a peça não ia pegar. Heller desesperava-se com ligeiros e era o ápice de um procedimento carac-
os vinte contos de réis investidos na montagem. terístico dos gêneros que pressupunham a "com-
Todos concordavam que a montagem era rica, plementaridade em sua performance" 86. Muitos
mas a peça não ia bem. O empresário só pensava papéis eram escritos para os componentes fixos
em suas contas a pagar: a quinzena dos artistas e das companhias, prevendo sua apropriação, sua
os gastos com a encenação. Correu ao camarim e recriação segundo os recursos cómicos próprios.
pediu socorro ao Vasques, para que ele salvasse a Se o canto e as vozes preparadas vinham da Eu-
peça. Que alterasse seu papel, desse graça ao que ropa, acompanhadas de um élan de modernidade,
não funcionava: "Quero que salves a situação nos o humor tinha extrato local, com passagens pelas
outros atos: dá vida à peça, altera o teu papel, que
julguei ter mais graça. Em tais e tais situações o 85 A Notícia, 21 maio de 1896. Os comentários são a propósito
da encenação de Rio Nu.
teu espírito extraordinário poderá levantar a peça".
86 Sobre essacaracterística dos gêneros ligeiros ver Maria Filo-
mena Vilela Chiaradia, A Companhiade RevistaseBurletasdo
83 Idem,p.63-65. Teatro SãoJosé: A lvlenina dosOlhos dePaschoal Segreto, disser-
84 Procópío Ferreira, O Atol' Vasques..., p. 123-125. tação de mestrado, UniRia, 1997.

• 270
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

festas populares e as barracas de feira. Leia-se o As mais de cinquenta cenas cómicas escritas por
curioso parágrafo 12 do decreto de 21 de julho de ele atraíam grande concorrência das plateias, que
1897, que regulava a inspeção dos teatros e outras também aplaudiam números inovadores e ousa-
casas de espetáculo do Rio deJaneiro: dos. Quando ele morreu em 1892, as homenagens
também apontavam para aqueles que teriam sido
Os atores que alterarem o texto das peças, acrescentando ou seus pontos fracos, segundo alguns críticos, ou a
diminuindo palavras, que derem a estas sentido equívoco excelência de sua arte, segundo seu público:
por meio de inflexão da voz e gestos, ou nas pantomimas
e danças fizerem acenos e meneios indecentes, incorrerão A qualidade que lhe faltou sempre foi a sobriedade; de tem-
na multa de 10$ a 20$, e em quatro a oito dias de prisão. peramento irrequieto, de uma alegria enorme e comunica-
tiva, ele não podia resignar-se à monotonia de uma peça, e
Artur Azevedo comenta: "Se a polícia quiser dar desde que uma cena lhe parecesse enfadonha, ele recorria às
inteiro cumprimento a essa disposição, não haverá suas molas, preparava uma cara irresistivelmente cómica, ar-
espetáculos, porque os nossos artistas, salvo hon- rancava uma voz entre cavernosa e nasal e o efeito era pronto,
rosas exceções, passarão na cadeia a maior parte toda a plateia se agitava às gargalhadas. Faltava-lhe também a
da exístêncía?". ciência da caracterização que não fosse grotesca90.
Francisco Correia Vasques certamente estaria
entre esses artistas, se fosse vivo na ocasião. Ele Os recursos cómicos tradicionais de Vasques eram
representou, para a comédia brasileira da segunda ao mesmo tempo sua base disponível para seduzir
metade do século XIX, papel semelhante ao que as plateias e o alvo das críticas mais frequentes.
João Caetano tivera em meados do século: presença O amigo Guilherme de Aguiar, que Vasques
marcante e determinante para os rumos do estabe- pranteara, era especialista em tipos burlescos de
lecimento teatral na cidade. Paralelo que ele mesmo operetas e mágicas. Podia também realizar traba-
ajudou a estabelecer quando lutou para erguer uma lhos dramáticos nesses gêneros como em Sinos de
estátua em homenagem aJoão Caetano. Dono de Corneville e Frei Satanás, o que lhe garantia elo-
uma imensa popularidade, que o tornava íntimo gios mais generosos por parte de parceiros como
das plateias, era tratado sem formalismos como Eduardo Vitorino: "No Frei Satanás obteve um
"o Vasques". Sua trajetóría pessoal, da barraca do dos seus mais completos triunfos. Em toda a peça,
Telles à Companhia de Jacinto Heller, merece estu- esse grande ator dava uma tal impressão de arte
dos próprios que vêm sendo realizados". Logo após que dir-se-ia estar a representar uma notável obra
sua morte, em dezembro de 1892, Artur Azevedo dramática"?'. A crónica dos bastidores teatrais
registrou emA Notícia: registrou que Guilherme de Aguiar, que nascera
no Porto, começou sua vida como caixeiro numa
o falecimento de Vasques, o ater mais querido das nossas venda no Rio de Janeiro, para onde viera com 12
plateias, o artista que, com as suas qualidades que eram anos'", Sousa Bastos é quem conta: "Foi para o
muitas e os seus defeitos que não eram poucos, foi a encar- Brasil, como todos os anos embarcam milhares de
nação mais tópica do nosso teatro, teve na imprensa uma patrícios nossos, levando esperanças no futuro e
longa, piedosa e merecida cornemoração'". uma pequena caixa de pinho por mala":", Adoeceu
no Brasil, e, recolhido no hospital de uma ordem,
Seu prestígio como primeiro ator cómico brasileiro teria conhecido um atar de província, a quem seguiu
se estendia a Portugal, onde era comparado a Ta- após a recuperação de ambos, iniciando-se na arte
borda, seu amigo. do teatro. Tendo feito sucessonas províncias, acabou

87 Artur Azevedo, A Notícia, 28 de julho de r897.


90 Matéria de jornal não identificada, em s. Magaldi; M. T.
88 CE. Andrea Marzano, Cidade em Cena: O Ator Vasques) o
Vargas, Cem Anos de Teatro em São Paulo, P: 24.
Teatro e o Rio deJaneiro (1839-1892), Rio de Janeiro: Folha
Secai Faperj, 2008; Sílvia Cristina Martins de Souza, As Noites 91 "Peixoto",em Atores eAtrizes, P: 222-223.
do Ginásio... 92 M. da Paixão, Espírito Alheio, p. 423-43 8.
89 O Álbum, ano r, n. r, jan. r893, P: 3 93 Carteira do Artista..., p. 586.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

recebendo um convite para a companhia de Fur- cia também Colás'", em certos papéis. ~anto ao
tado Coelho. Integrou o Teatro Fênix por longos Brandão, diz Artur:
anos. Olavo' de Barros registrou: "Sabendo-se o
quanto Guilherme Pinto de Aguiar era inculto e esse tem um gênero a parte; é um ator burlesco por exce-
vendo-o representar, com perfeição e brilho, os lência, que faria grande figura encontrando aurores que lhe
mais variados papéis, é que se podia avaliar tudo fornecessem peças expressamente escritas para aproveitar o
quanto realiza o poder maravilhoso do instinto">'. seu jogo de cena exuberante, exagerado, quase funambulesco.
Em 1895, aRevista 1eatralorganizou uma espé- O que faz com que o não aceitem universalmente é o fato
cie de plebiscito para saber quem eram, na opinião de ele querer adaptar todos os seus papéis a sua natureza, em
do público, a primeira atriz de opereta e o primeiro vez de procurar subordinar a sua narureza aos seus papéis.
ator cômico. Feita alista e apurado o resultado, Rosa
Villiot e Martes foram apontados como os ganha- Concluindo, diz Artur: "o nosso primeiro ator
dores". Uma grande homenagem foi organizada no cômico são três: o Machado, o Mattos e o Peixoto,
Teatro Apolo, numa festa que durou quatro horas e, cujos nomes coloco alfabeticamente, para evitar
segundo Artur Azevedo, foi prestigiada pelo público dúvidas". Outros três grandes nomes estavam ex-
e por numerosos artistas de vários teatros. Metade do cluídos dessa lista. Vasques ocupara o posto de pri-
arrecadado na matinê foi destinada a uma associação meiro cômico indiscutivelmente até sua morte, em
de beneficência e a outra resultou em presentes para 1892. Xisto morrera seis meses antes e Guilherme
os homenageados. Artur Azevedo, comentando os de Aguiar, em 189 L Talvez por isso se justificasse
resultados, diz que nada tem a objetar no caso de um uma escolha por votos. Não havia então nenhuma
dos eleitos: "incontestavelmente é a Rosa Villiot a unanimidade.
nossa primeira atriz de opereta"9 6• Comparando-a A eleição que escolhera o melhor cômico em
às outras grandes estrelas da época, Artur se des- 1895 não incluíra o ator Brandão entre os melho-
mancha em elogios às inúmeras interpretações que res. Artur Azevedo justifica essa ausência por reco-
acompanhou de Villíot, ressaltando sua capacidade nhecer no ator um talento ainda mais acentuado
de dar vida a tipos regionais portugueses e brasileiros para o burlesco, constituindo um gênero à parte no
mesmo sendo francesa. grupo dos cômicos mais prestigiados.
Para Artur, no entanto, com o Mattos "a coisa Brandão, o Popularíssimo, alcunha que ele
é outra". Fica difícil, diz Artur, escolher o melhor próprio teria se dado, era João Augusto Soares
ator cómico entre Martes, Peixoto e Machado": Brandão, nascido em Açores, em 184599. Também
"Se me perguntarem qual deles é o primeiro, pode- chegou menino no Brasil, em 1856, tornando-se
rei conscientemente responder: qualquer dos três, comerciante. Passou anos em viagens pelas provín-
em ocasiões diversas, me tem parecido o primeiro, . cias com companhias mambembes, experiência
o segundo e o terceiro". Artur diz ainda que apre- que registrou em uma anunciada autobiografia,
As Memorias do Ator Brandão 100. Popularizou-se
94 Relembrando o Teatro do Passado: Guilherme de Aguiar: A
História de um Aror Instintivo (mimeo), Acervo Funarre/Cedoc 98 Nascido em São Luís, em 1856, Colás morreu na Casa dos
(Dossiê Guilherme de Aguiar). Artistas em 1920. Filho do maestro Francisco Libânio Colás e
95 CE.Artur Azevedo, A Notícia, 25 de abril de 1895. Carmela Lucci, Colás fora um bom galã cómico, diz Eduardo
96 Idem, ibidem. Vitorino. Fez inúmeros papéis nas companhias de Heller, Gui-
lherme da Silveira, Braga junior, Ismênia dos Santos e Dias Braga.
97 O ator Machádo, conhecido também como Machado Careca,
Tinha fama de ser disciplinado, estudioso e agradar a plateia. Diz
foi outro dos grirides cómicos do período, presente em uma série
Vitorino que quando o conheceu já em idade mais avançada, já
de companhíase.recorrentemente citado nas crônicas e artigos
tinha deixado os galãs e se dedicava aos centros cômicos e "so-
sobre o teatro cáfioca. O eleito Martes, "comendador Mattos',
bretudo" aos compadres das revistas.
como era chamado, era um ater burlesco por excelência. Nascido
em Lisboa em 1849, faleceu no Rio deJaneiro em 1916. António 99 Marco Santos, Popularíssimo: OAtar Brandão e Seu Tempo,
Joaquim de Marcos estreou no teatro em 1869 na Companhia do Rio deJaneiro: Edição do autor, 2007.
Teatro Trindade em Lisboa, com A GataBorralheira. Estreou no 100 CE.Cópia de matéria jornalística, sem identificação, repro-
Rio em 1877 no Teatro S. Pedro com a peçalvIadalena de Pinheiro duzindo capítulo de As Memoriasdo Atar Brandão (livro que
Chagas. O ator Peixoto também veio de Portugal destinado ao estava por ser lançado), em que o ater narra episódios ocorridos
comércio, mas apaixonado pelo teatro logo se engajou em uma em excursões pelo interior de Minas Gerais. Dossiê Brandão -
companhia. Estreou com 19 anos no Teatro S. Luís em 1874. Cedoc/Punarte.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

no Rio com a criação do "seu Euzébio" de A Ca- ópera, as francesas eram as preferidas nos gêneros
pital Federal. Artur inspirou-se nele para criar o alegres, desde o reinado de Aimée no Alcazar':".
empresário Brazão de O Mambembe, e o teve na Desde as alcazarinas difundiu-se a imagem da mu-
interpretação do papel em sua estreia em 1904 no lher sedutora que construía sua vida por conta de
Teatro Apolo. "O Popularíssírno" morreu na Capi- seus encantos de dama galante ou demi-mondaine.
tal Federal, em 16 de novembro de 192I. Essa figura feminina embaralhava as fronteiras da
Os cômicos disputavam o lugar central na com- moralidade e os padrões de comportamento. Atriz
panhia com as primeiras atrizes-cantoras. Pela falta e personagem muitas vezes se confundiam na cons-
de uma tradição própria e, portanto, de uma escola, trução de personagens-tipos frequentes nas opere-
o canto lírico que preparava as vozes também para a tas e revistas, que ia das elegantes e finas parisienses
opereta e a mágica estava em geral associado aos intér- até as sensuais mulatas maxixeiras. As perfonnances
pretes estrangeiros. Uma nova forma de canto tam- vocais e corporais das intérpretes associavam-se à
bém havia se difundido através dos cafés-concerto e imagem transgressora das personagens e àsinovações
variantes: a do cançonetista. Tendo uma voz menos rítmicas produzindo a popularidade das canções,
preparada segundo os critérios do canto lírico, a arte criando um repertório pessoal de tipos e recursos
do cançonetista estava associada à sua forma de dizer interpretativos, e assumindo um lugar privilegiado
a canção, de interpretá-la, imprimindo uma marca na companhia ao lado dos ateres cômicos.
especial. A novidade, no entanto, também chegava São emblemáticas as histórias de algumas
da Europa, via Paris e Lisboa, o que levava à valoriza- atrizes-cantoras que fizeram carreira no Rio de
ção dos espetáculos e atrações que importassem essa Janeiro. Blanche Grau era filha de um comerciante
arte. Atores e atrizes cantores eram em geral buscados francês, mas nascera na Rússia. Chegou no Rio
além-mar. É de Eduardo Vitorino a relação de artistas com a Companhia Francesa de Operetas e Ópe-
estrangeiros que aqui se destacaram: ras Líricas Maurice Grau, em 1882, vinda de uma
turnê pelos Estados Unidos. Foi contratada por
Houve um tempo e não muito remoto, em que as principais BragaJúnior no Príncipe Imperial, passou depois
figuras femininas dos elencos cariocas eram francesas, como para o Recreio. Trabalhou também com Dias
Jane Kaylus, Delmary, Delsol, Marion André, Rose Méryss Braga. O seu grande êxito em O Mandarim (1884)
e Rose Villiot; belgas como Christina Massart: russas como tornou-a popular na cidade. Era contratada por
Blanche Grau; gregas como Anna Manarezi; espanholas Jacinto Heller e o público não cessou de aplaudi-la
como Pepa Ruiz, Pepita Anglada, Helena Cavallier, Ma- até quando abandonou a cena em 1909103. Amélia
ria Alonso, Maria Maza, Leonor Rivera e Miola; italianas Lopiccolo nasceu em Roma 104, filha de bailarinos.
como Aurelia Lopiccolo, Junia Oliva, Aliverti, Concerta: Estreou fazendo parte de uma companhia infantil
e argentinas como Fantony e Blanche Barbe. O naipe mas- na Itália. Depois foi para Paris, onde se apresentou
culino estrangeiro foi sempre menos numeroso e tão pouco como cançonetista, percorrendo depois a França
numeroso que só me recordo dos tenores Eugenio Oyanguren, e a Espanha. Em 1887, estava em Buenos Aires
espanhol, e Pollero, argentino. Os atores portugueses aqui trabalhando no Café-Concerto Passatiempo. No
radicados não eram considerados estrangeiros'?'. ano seguinte, veio para o Rio contratada pelo
Eldorado, café-concerto que existia no Beco do
A constelação de estrelas era grande e variada. Império, estreando aqui em 1Qde junho. Em 1889,
A presença maciça feminina nesse elenco estava
associada a outros predicados das atrizes-cantoras. 102 Miécío Táti, O Mundo deMachadodeAssis, Rio de Janeiro:
SMe, I995,P. 15 6- 157.
A imagem de diva assumida por estas artistas ti-
103 Dossiê Blanche Grau - Cedoc/Funarre: Brício de Abreu,
nha na verdade sentidos que eram construídos no Obrigado, Blanche Grau, DiáriodaNoite, 19 de setembro de 195 I;
tablado, mas ultrapassavam suas dimensões. En- idem, Esses Populares tãoDesconhecidos; idem, Da Cidade Alegre
e Boêrnía de 1880 à Verustês do Lar Brasileiro de 1951: Blanche
quanto as divas italianas dominavam o cenário da Grau e Seus Vitoriosos 88 Anos, DiáriodaNoite, 17 de agoSto de
I951,No mesmo ano, em 19 de setembro de 1951, Brício de Abreu
publica um artigo comentando a recente morte da atríz,
101 "AureliaDelorme e RosinaBellegrandi~AtOres eAtrizes, p. 155. 104 CE. Dossiê Amélia Lopicolo - Cedoc/Funarte.

• 273
História do Teatro Brasileiro • volume 1

A atríz Pepa Ruiz e o empresário o atar Machado Careca, caracterizado provavelmente


português Sousa Bastos. como personagem de uma mágica.

Heller contratou-a, fazendo-a estrear com a peça corista de uma companhia de zarzuela. Em 1875,
D. Sebastiana, de Moreira Sampaio. Passou logo estreou fazendo pequenos papéis, em uma revista de
a ser desejada por diversas empresas. Em 1890 Sousa Bastos, no velho teatro da rua dos Condes. A
já estava contratada pela empresa Mattos, inter- sua estreia foi uma revelação que, aliada à sua beleza,
pretando a opereta Surcouf e outras operetas do animou Sousa Bastos a tomá-la sob sua direção e
antigo repertório. Em 1892 voltou a trabalhar com fazê-lasua futura estrela.Durante seis anos, o empre-
o Heller no Variedades e em 1896 com Adolfo de sário colocou Pepa Ruiz à frente de suas companhias
Faria no Apolo. Boa parte das carreiras começava entre Lisboa e Porto, não só nas revistas de ano, mas
no dia a dia das coristas. As estrelas eram feitas em todo o repertório de operetas, dramas, comédias,
ou descobertas pelos empresários, maestros ou ou- que Pepa interpretava com êxito sempre crescente.
tras personagens que encontravam características Em sua primeira estada no Brasil, o êxito de Pepa
especiais nas performances das atrizes. A italiana foi estupendo, começando a temporada brilhante-
Marieta Aliverti, por exemplo, foi uma dessas mente no Príncipe Imperial em 1882. Sousa Bastos
coristas que acabou transformando-se em estrela regressou com Pepa a Portugal para lançá-la na rua
na companhia de Heller, quando teve a chance de dos Condes como "rainha absoluta da revista" e con-
fazer uma substituição na operetaD.]uanita I 0 5 • seguiu seu intento. De 1885 a 1892 em constantes
Pepa Ruiz nasceu em Badajós, Espanha, em viagens entre Lisboa e Rio, Pepa glorificava-se. O
1859106. Em 1865 foi para Lisboa, com sua mãe, maior sucesso de sua carreira será em Tim-Tim por
Tim-Tim, em que representa 18 papéis e lança a
105 Cfrecorresem data deA Noite, Dossiê Jacinto Heller, Cedoc/ canção "!vlugunzá': em que representa uma baiana.
Funarte, Em 1893, ao chegar em Lisboa, depois de uma aus-
106 Cf. dados datilografados do Dossiê Pepa Ruíz, Cedoc/
Funarte.
piciosa reaparição no Teatro Trindade, quando tudo

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• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

previa a continuidade de seu reinado, Pepa separou- das companhias, mas também e principalmente
-se de Sousa Bastos e saiu da companhia. Ela volta estava concentrada nas interpretações que impri-
sozinha para o Rio, organiza urna grande companhia miam ao espetáculo as marcas de um humor po-
em março de 1895 e reaparece no teatro Eden Lavra- pular, no caso dos cómicos, e de uma performance
dio, com Machado Careca, Peixoto e outras figuras feminina vocal e corporal que estabelecia uma co-
de cartaz, reprisando o Tim-Tim. municação direta com o público, lançando canções
Pepa continuou com novas peças, e com seu que alcançariam grande popularidade. Ou seja, o
elenco foi trabalhar no Recreio, fazendo ali a espetáculo se assentava sobre vários elementos que
grande criação de Lola deA Capital Federal, assim compunham sua partitura cênica, mas no centro do
como novas operetas. Em 1897 atuou no Lucinda palco estavam as performances dos cômicos e das
sempre com a própria companhia. E em 1899 foi atrízes-cantoras. Canções, performances e os de-
para Lisboa, para montar no Teatro Avenida, em mais componentes da encenação produziam uma
sociedade com Cinira Polônio, a faustosa fantasia escritura cênica repleta de significados abertos a
A Viagem de Suzette, que foi à cena em março de interpretações. João Caetano, em suas LiçõesDra-
1900. O sucesso foi compensador, mas a atríz tinha máticas, de 1861, já dizia: ''Assim como a palavra é
pressa de voltar ao Brasil. Em setembro do mesmo a eloquência do homem, pode-se dizer que o gesto
ano ela reaparecia no Recreio comA Viagem de Su- é a eloquência do corpo"Io8. Se havia uma partitura
zette, Capitão Lobisomem, a revista Inana e outras proposta pelos empresários para a encenação, dra-
peças, inclusive o Tim-Tim, cujas representações matúrgica ou musical, a partitura que resultava no
no Brasil já ascendiam a mais de um milhar. Em espetáculo era aquela composta pelas intervenções
1910, a convite de Cristiano de Souza, organiza de todos os elementos que participavam de sua
um elenco regular de comédia e com ele percorre criação. Entre a intenção e o gesto colocavam-se as
todos os estados do Brasil, sendo homenageada até vozes dos intérpretes.
em lugares onde havia chegado apenas a notícia de
seus triunfos. Por fim, impossibilitada pela idade e
pela doença retirou-se da vida teatral, falecendo em
25 de setembro de 1925.
Cinira Polônio nasceu no Rio em 1857, mas era
filha de imigrantes italianos e considerada a mais
parisiense de nossas atrizes. Foi uma das grandes
figuras do palco musicado, mas sua carreira só 4- ARTISTAS DRAMÁTICOS
decolou mesmo no Brasil depois que voltou de ESTRANGEIROS NO BRASIL
uma longa temporada, de 12 anos, na Europa, em
1900. No auge de sua carreira no Brasil era a pri-
meira atriz da Companhia de Revistas e Burletas Nos últimos três decênios do século XIX, aden-
do Teatro S.José, fundada em 1911 por Paschoal trando o xx, o Brasil acolheu inúmeras companhias
Segreto. A condição feminina no palco e as carac- dramáticas estrangeiras, principalmente francesas,
terísticas de Cinira como empresária, compositora, italianas, portuguesas e espanholas. Convocadas no
maestrina, intercontinental e independente, foram verão europeu - por causa do recesso dos teatros -
estudadas por Angela Castro Reis num raro traba- as companhias viajantes arregimentavam, em volta
lho dedicado a um ator do períodov". de um grande nome já consagrado em seu país de
A importância desses artistas se expressava no origem, colegas de profissão dispostos a enfrentar a
poder de pressão que podiam exercer nos bastidores perigosa travessia do Atlântico e o risco de doenças
mortais, como a febre amarela. A rota incluía as capi-
107 CE Angela de Castro Reis, CiniraPolônio, a Divette Carioca:
tais latino-americanas (Rio de Janeiro, Montevidéu,
Estudo Sobrea Imagem Pública e o Trabalho de uma Atriz no
Teatro Brasileiro da Virada doSéculo XIX, Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 200 r. 108 LiçõesDramáticas, Rio deJaneiro: MEC, 1956, p. 25.

• 275
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Buenos Aires) e também cidades "menores" como caso dos ateres italianos, a rota intercontinental
São Paulo, Santiago ou Valparaíso, onde os artistas (já trilhada pelas companhias de ópera) significava
prometiam tirar do baú, junto com seus figurinos uma via de fuga à crise endêmica do sistema produ-
empoeirados, um pouco do glamour de Berlim, tivo nacional, após o fim das subvenções públicas
Paris e Londres. Dá gosto imaginar o impacto que aos teatros, em 1865. Na década de 188 o, cerca de
causava no povo o desembarque de grandes astros 40% das companhias italianas, com mais 10% das
e divas de passagem, com seu séquito de baús, ba- companhias dialetais, passam o verão em turnê pela
juladores e agentes. Eram cenas épicas, dignas de América Latina, em uma espécie de "emigração por
uma fanática torcida e inaugurando o moderno temporada" que não se daria em outra profissão e
star-systern, principalmente quando se tratava de cuja persistência revela a grande ilusão na raiz do
italianos ou franceses, mais prestigiados do que es- fenômeno. A travessia,para essesartistas, não signi-
panhóis e portugueses - os primeiros, restritos ao ficava somente a tentativa de passar para o outro
repertório de zarzuelas, e os segundos considerados lado do oceano como, principalmente, para uma
"da casa" pela identidade linguística. Seguia-se,con- "segunda vida" mais ditosa pela miragem da even-
tudo, a mais ordinária das cenas teatrais: grandes tual consagração internacional que significaria,
artistas à caça de público, buscando seduzi-lo a também, um provável reajuste do cachê na volta
qualquer custo e acirrando a competição pessoal à pátria. Nesse cenário cada vez mais provinciano,
para mais um aplauso, mais um claire-de-lune (em ao passo que se torna mais cosmopolita, a viagem
ausência de refietores). Reorganizava-se assim, pode vir a representar uma missão existencial essen-
nos trópicos, a concorrência doméstica, mas em cial: a missão da transição entre "velho" e "novo':
condições bem mais extremas do que na Europa, antigo e moderno naquelefin de siêcle em que um
pois um triunfo americano prometia lucros bem . mundo se esvai e outro surge. A metáfora é clara
mais expressivos do que um sucesso na pátria de nas palavras de Eleonora Duse, talvez a atriz mais
origem. A conquista do Eldorado foi uma obsessão representativa da cena italiana de todos os tempos
com seus equívocos, delírios e decepções. quando, antes de sua última turnê ao Brasil, em
A ideia da turnê intercontinental surgia da 1907, reconhece como sua única pátria "a travessia".
expectativa de uma recepção favorável - devido à
instalação de comunidades de emigrados nas me-
trópoles latino-americanas depois do estabeleci- Os Reis da Cena na Corte de D. Pedro II:
mento das linhas de navegação a vapor entre o Rio Ristori, Salvini e Pezzana
de Janeiro e os portos europeus, garantindo me-
lhores condições para a travessia - e não assustava Pioneira nesse fenômeno foi Adelaide Risrori, que
a classe teatral, tradicionalmente nômade. Assim da jovem Duse foi modelo e mestra. Não bonita,
como o Uruguai e a Argentina, o Brasil, desde o co- mas alta e aprumada, o olhar piedoso emoldurado
meço do século XIX, acolhia navegadores, missio- pela cabeleireira negra e a postura severa inspira-
nários, empresários e também verdadeiros exilados, vam o respeito devido a uma rainha. De fato, era
como no caso dos italianos fugidos à repressão dos no bre. Filha de uma família mambembe de artistas,
motins republicanos, oferecendo-lhes a realização aos vinte anos havia se casado (por recíproca pai-
do sonho de independência e progresso que per- xão) com o marquês Giuliano Capranica del Grillo,
manecia frustrado na pátria. Avançando no século, que ia tornar-se 'seu agente e secretário, mais do
centenas viraram milhares e finalmente milhões de que mecenas. Ristori tinha temperamento de líder.
emigrantes, de todas as classes e aptos para qual- Foi pioneira em tudo na cena italiana: a primeira
quer ofício: sapateiro, músico, vendedor, charlatão mulher empresária de sua própria companhia; a
e - por que não? - artista. Instrução e profissão primeira a evadir das estreitas margens territoriais,
eram só mais um recurso numa roleta em que tudo estéticas e econômicas do mercado peninsular,
valia e a aposta maior, a conquista da América, en- para triunfar com sua arte nas capitais europeias e,
cobria a derradeira tentativa de escapar à fome. No finalmente, nas capitais das nações civilizadas do
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

planeta; a primeira a enfrentar os temidos críticos com os louros masculinos de "Cristovão Colombo
de Paris - em r 8 56, quando eclipsou a grande tra- da Arte Dramática" I o 9. Risto ri foi, sem dúvida, a
gedienne mlie. Raquel- e a interpretar Shakespeare desbravadora teatral das Américas.
em inglês em Nova York e Londres; a primeira a em- A ideia arrojada - até mesmo para o tradicional
preender longas viagens e até uma viagem em volta nomadismo dos ateres italianos - de se apresentar
do mundo, em r 874-75, mesmo sofrendo enjoas. no novo mundo estimulava seu pioneirismo desde
Estas e outras informações edificantes e heroicas, fins da década de r850. Em r868, após fechar
impressas na biografia distribuída a jornais e tea- triunfalmente em Nova York uma turnê de quase
tros por onde passava, apresentavam Ristori como dois anos pelos Estados Unidos e Cuba, o agente
a maior atríz italiana de todos os tempos: uma de Risto ri embarca para o Rio de Janeiro, com a
rainha da cena - título até mais prestigiado que missão de viabilizar uma turnê para o ano seguinte.
o de marquesa - cuja verdadeira nobreza consistia A capital brasileira parecia maior e mais civilizada
na força moral de ter regenerado a arte dramática do que La Havana: com mais ouro, comércio, luxo
italiana de sua reputação de indecência, levando-a à e estrangeiros. E mais teatros: seis ativos entre os
consagração mundiaL Por força desse status, Ristori quais o S. Pedro de Alcântara que, apesar de bem
ia ser um dos principais motores da emancipação localizado, era desaconselhável, porque a segunda
feminina em seuofício em uma época em que ser ordem de camarotes era reservada para uso gratuito
atriz era assimilável ao exercício da prostituição, dos sócios proprietários. Teatros menores, como
por causa da vida cigana e da exibição do corpo no o Alcazar, não eram de se levar em conta, porque
palco. Excepcionalmente, a "rainha da cena" teve neles dançava-se o cancã. Acabou assinando con-
sua carreira internacional consagrada pela admi- trato com José Maria do Nascimento, administra-
ração de reis e governantes, os quais dificilmente dor do Teatro Lírico Fluminense, no Campo da
perderiam uma de suas apresentações de gala. É do Aclamação (atual Campo de Santana). Um teatro
privilegiado espaço do palco que Ristori, na Espa- muito amplo, com quatro fileiras de camarotes
nha, obtém a graça para um condenado à morte e mais de mil assentos na plateia. Risto ri embar-
(r 872) e, no Brasil, dedica à imperatriz Teresa Cris- cou em Lisboa em 28 de maio de r869. Com ela
tina Maria de Bourbon, natural de Nápoles, os seus e a família - marido e dois filhos - viajaram 3 r
"benefícios" (espetáculo cuja renda era revertida a pessoas, entre elenco, técnicos e comitiva, mais as
hospitais, instituições de caridade e outras obras, caixas com guarda-roupa, decorações, velas e tudo
preferencialmente para emigrados italianos). É do aquilo que seria preciso para montar um repertó-
palco que; em r869, dirige-se à tribuna imperial rio de trinta peças. No cais do Rio de Janeiro, na
declamando um poema em que celebra ideais ro- manhã do dia r 9 de junho, a atríz foi recepcionada
mânticos (orgulho patriótico, utopia monárquica, por uma delegação de notáveis da colônia italiana
elogio da moralidade) que lhe garantem a simpatia e pelo Ministro da Itália no Rio. Pela primeira vez
e o favor do imperador D. Pedro II, admirador e após a unificação italiana, uma artista consagrada
amigo com quem trocará confianças e conselhos no mundo inteiro como embaixadora cultural do
em mais de vinte anos de correspondência e rarís- novo Reinado visitava a América Latina.
simos rendez-uous em Roma, Paris, Baden-Baden, Em 28 de junho, quando caiu o pano sobre a
Cannes e Rio de Janeiro. A intimidade é permi- Medeia de Legouvé, peça escolhida como estreia
tida pela afinidade eletiva, privilégio raro em se de sua temporada, o palco foi invadido por estu-
tratando de uma mulher e, ainda por cima, atriz, dantes que se ajoelharam em volta da Rístori para
Igualmente, confiando na plena discrição do ca- adorá-la, diante da plateia em delírio e do imperador
marim da Rístori, o rei italiano Vittorio Emanuele aplaudindo de pé na tribuna. A bilheteria arre-
delega-lhe missões diplomáticas tão delicadas que cadou r 2 mil francos, cerca de dez vezes o valor
não confiaria aos seus políticos. Enfim, foi tamanho máximo alcançado pela atriz na própria pátria. As
o destaque da Ristori que até a ciumenta classe tea-
109 Francesco Ciottí, em Gerardo Guerrieri, Nove Saggi, Roma:
tral italiana a coroa, no aniversário de seus 80 anos, Bulzoni, 1993, p. 63·

• 277
Historia do Teatro Brasileiro • volume 1

homenagens ao gênio não pararam mais: fogos Entretanto, antes da atriz que corria o mund.o
de artifício, chuva de rosas, mimos valiosos que acumulando triunfos cumprir sua promessa de
ao final da temporada de dois meses somaram a retornar ao Brasil, o imperador deverá buscar sa-
fabulosa cifra de 60 mil francos. Numa noite, o tisfazer sua paixão teatral na Europa. Em outubro
médico italiano Luis Vicente de Simoni, assessor de 1871, hospedado no Hotel Royal Danieli, em
de leituras da imperatriz, a proclamou "exímia e in- Veneza, D. Pedro II remete a Risto ri uma men-
comparável rainha da cena trágica e dramática". Em sagem assinada "um sincero admirador" na qual
outra, o imperador ofereceu-lhe umasoirée de gala declara que não julgará cumprida sua missão até
que Ristori recorda como "a noite mais esplêndida "ter saboreado uma, ao menos uma, sua apresen-
de toda a minha carreira". Mas o mais valioso dom tação" (II.IO.I87I). Mas Ristori está em Odessa,
foi uma carta autógrafa que recebeu logo após a sua cumprindo uma longa turnê pela Rússia. O jeito
partida. Assinando-se deDi lei attaccatissimo ("seu é segui-la por carta, com curiosidade e pontuais
apegadíssimo") D. Pedro II já cobrava-lhe a pro- comentários políticos, como fizera pelas etapas da
messa de uma nova visita à corte e inaugurava, num turnê latino-americana de 1869 e fará pela viagem
estilo simples de italiano afrancesado, a intensa em volta ao mundo em 1874-1875, depois na Rús-
correspondência recheada de citações literárias e sia em 1877, na Escandinávia em 1880, na América
palpites políticos, saudades e votos de sucesso para do Norte em 1882. O gosto de D. Pedro II pelas
"aquela que representa para mim a beleza artística, viagens alimentava a febre cosmopolita do Segundo
sob qualquer ponto de vista" (5.10.1886) e cujo Reinado. Da Europa importava-se tudo que repre-
"talento sempre correspondeu plenamente à minha sentasse elegância e modernidade, dos bordados
paixão pelas belas-artes" (Ia. I. 1888): aos chapéus; e da Itália importava-se o bel canto,
especialidade que exaltava o prestígio do idioma e
À notícia da continuação dos seus merecidos triunfos o gênio dos seus artistas. Antes da construção do
posso acrescentar a sentença do altíssimo poeta: J.Ve- Imperial Teatro D. Pedro II, o governo sustentava
nhuma dor é maior do que lembrar-se dos tempos felizes as temporadas líricas (integralmente, como no caso
na miséria. E, com efeito, a arte dramática aqui não está do Teatro S. Januário, ou em parceria com socie-
muito distante disso. Esperamos com impaciência e sau- dades de ricos mecenas) porque "além do deleite
dade - a senhora já conhece esta palavra que o seu idioma público e de um orgulho nacional bem fundado,
inveja ao nosso - sua próxima visita, com a esperança de também a tranquilidade, a moral e a paz, os bons
vê-la comemorar aqui conosco a paz honrosa para o meu costumes, tudo reclama a proteção do governo em
Brasil, paz que há tantos anos veementemente desejo. favor de uma Companhia italiana"!". O imperador
Não esqueço sua visita ao meu museu, algumas leituras em pessoa financia, de 1857 até 1863, a Imperial
italianas, nem como sua mente ativa continua atenta às Academia de Música e Ópera Nacional, destinada a
manifestações do belo e à sorte de seus companheiros e formar cantores líricos nacionais e difundir a ópera
dos menos afortunados'!", nas classes populares. Sua predileção propiciava a
penetração no imaginário público da ideia de uma
A saudade também não abandonará a atriz. afinidade espiritual-idiomática entre "italianidade"
"Provei uma pena intensa de ter que dizer adeus e "lusofonia" que se exprimiria em termos de he-
àquela terra que hospeda tantas almas poéticas e roísmo, paixão e lirismo. A tarefa de emancipação
generosas e uma família real qual não se encontra e regeneração dos costumes assumida pela "rainha"
nenhuma igual, mesmo na Europa': escreveu em na cena italiana não resultava vazia no palco brasi-
seu diário I I I, meses mais tarde. leiro. Ao contrário, representava perfeitamente as
expectativas da corte quanto à função da cultura
110 CE Alessandra Vannucci, UmaAmizade Revelada. Corres-
pondênciaentreo Imperador Dom Pedro II eAdelaideRistori, a
MaiorAtriz deSeu Tempo. Rio deJaneiro: Fundação Biblioteca 112 Relatório de 22 de julho de 1835 do Ministério do Impé-
Nacional, 2004, p. 57. O "altíssimo poeta" é Dante Alighieri. rio, em M. Lucchesi, Mitologia das Platéias: A Ópera na Corte
111 A. Risrori, Ricordie studi artistici, Torino/Napoli: Roux, (1840-89), separata da revista Setembro, Rio de Janeiro, n. I,
J887,P·35· 19 86, P: 13·

• 27 8
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

na construção da identidade da nação (ao mesmo estético a mlle. Rachel - a grande atriz trágica
tempo cortesã e progressista, aristocrática e liberal). francesa que se recusara a interpretá-lo - é lançado
O teatro, segundo intelectuais influentes como Ma- novamente o desafio. Ristori sublinha o diferencial
chado de Assis, seria o mais eficiente instrumento de sua arte, em comparação com a "justa medida"
moralizador para reconquistar o consenso da bur- acadêmica da escola francesa, em suas memórias:
guesia aos palcos, desqualificados pelo escândalo das
pernas nuas das bailarinas do Alcazar Lírico. Ristori Nós duas perseguíamos caminhos opostos. Ela podia até
consagra-se na cena carioca com amplo e turbulento entusiasmar com seus levantes, embora acadêmicos, tão
repertório de heroínas nobres, preferencialmente bela era sua dicção e estatuária sua marcação. Nas mais
rainhas, mártires devotas a causas sociais, como o apaixonadas situações, a forma da atitude era regrada pelas
bem da pátria e a elevação moral: Medeia, de Ernest normas compassadas da tradicional escola francesa. Nós,
Legouvé; Pia de Tolomei, de Carla Marenco Judite ao contrário, não admitimos que nos pontos culminantes
e Isabelde Inglaterra, de Paolo Giacometti; Maria da paixão, nossa pessoa não se descomponha. Na escola
Stuart, de Schiller; Fedra, de Racine; Sóror Teresa, italiana, acreditamos que um dos principais objetivos da
de Luigi Camoletti; Mirra, de Vittorio Alfieri. interpretação seja o de recriar ao vivo e de verdade tudo
Busca o registro sublime, a dignidade da ação trá- que a natureza mostra":'.
gica, mesmo quando violenta. Na época da ascensão
aos palcos do homem comum da comédia burguesa O cronista P. A. 1., no Diário do Rio deJaneiro
e do drama realista, campeão das virtudes contem- de 2 de julho de 1869, comenta:
porâneas, Ristori, com suas excepcionais mulheres
do passado, visa a ressuscitar a tragédia: Com razão Rachel nunca quis apresentar a obra-prima.
Não sentiu jamais ela em seu coração, o mavioso, íntimo
A musa não morreu, nem podia morrer. Quando a davam e profundo sentimento, para poder dar vida a tão belos
por morra, atravessava a terra com as feições da imortal versos. Se Rachel excitava o terror exprimindo cólera, ira,
Risrorí. [...] Ninguém tem o direito de ignorar Ristori; é ciúme e vingança, Ristori lhe é muito superior excitando a
uma dessas figuras que se impõe à admiração dos povos, e piedade, exprimindo a dor, o desespero, as profundas má-
cujo nome, como uma larga auréola, vai além do teatro de goas do nosso coração'».
seus triunfos. [...] A imaginação pública criava uma Ristori
dotada de qualidades superiores; mas aqui a realidade foi A mistura de realeza,piedade e paixão, no sentido
além da imaginação. Estou que ninguém calculou ao certo mais cristão do que romântico, é um metro em que
encontrar tão peregrino gênio unido a tão acabada perfei- Rístori canaliza os modos da representação e a mon-
ção. [...] Poucasvezestem a natureza sido tão pródiga como tagem do enredo, em simbiose com a emotividade do
foi com esta sua ilustre filha. Não se contentou com o gênio melodrama, na época modelo hegemônico na comu-
que lhe deu, gênio superior entre os primeiros; deu-lhe uma nicação do imaginário social. Sua intuição visual de
figura maravilhosamente adaptada ao teatro; figura impo- protodiretora elege soluções plásticas enfáticas, de
nente, escultural, rosto severo, voz sonora e vibrante, que tableauvivant ou de coro lírico - como na primeira
possui todos os tons do sentimento, desde a indignação entrada de Medeia, avançando no palco com os
até a ternura. Depois, a fim de que a obra lhe ficasse de (seus) dois filhos no colo e uma ampla capa preta es-
todo completa, fê-la nascer na Itália, terra clássica da arte, voaçante em volta. Mas o verdadeiro trunfo da atriz
e cuja língua, harmoniosa entre todas, é um dos mais cabais eram a ampla variação dos efeitos de voz - uma voz
instrumentos da palavra humana">. comparada a um piano por Giuseppe Verdi - e sua
declamação, cujo requinte virou lenda. Nas turnês
Ao estrear no Rio de Janeiro como Medeia, pa- para o exterior, Ristori exibia-se também em recitais
pel violento que Ristori aceitara do autor Legouvé líricos, declamando trechos de melodramas:
em 1856, para sua estreia em Paris, em desafio
114 A. Ristori, Ricordie studi artistici, p. 40.
115 Em Antônio Feliciano de Castilho (org.), HomenagemaAde-
113 Machado de Assis, Do Teatro..., p. 490-49 r. laideRistori, Rio deJaneiro: Dupont & Mendonça, 1869, p. 57.

• 279
História do Teatro Brasileiro • volume1

Que uma cantora, qualquer que seja a sua nação, possa per- de uma zelosa estratégia de produção de consenso. A
correr o orbe inteiro e em todo ele festejada, facilmente própria atriz mobiliza o entusiasmo dos admirado-
se compreende: fala a língua universal. Mas para que sim- res organizando a circulação de biografias elogiosas,
plesmente declamando possa uma italiana fazer delirar de libretos bilíngues de seus títulos mais significativos
entusiasmo, chorar de emoção, estremecer de terror russos, e venda antecipada de assinaturas que prefiguram
alemães, ingleses e outros cuja língua não tem menor ana- verdadeiras campanhas promocionais. Não só. À
logia com a dela, é um talento como poucos pode criar a margem da perflnnance artística, vendem-se balas
natureza. Se pois ao simples nome da Ristorí os teatros se Ristori, perfumes Ristori e cosméticos Ristori, marco
enchem em países onde o povo não leva consigo a espe- do profissionalismo da empresa que, inventando
rança de compreender uma só palavra, como não sucederia a moderna propaganda, distribui o seu produto
o mesmo entre nós que falamos essa língua "na qual quando em escala industrial. O nome da artista, ao passo
imagina / com pouca corrupção crê que é latina': latina de que pertence ao Olímpio das divindades da arte,
que é filha primogênita a italiana?116 movimenta, por outro lado, acessíveis práticas de
compra-e-venda. É a "moda Ristori" que eletriza o
Em sua ambiciosa busca da consagração interna- meio teatral italiano a segui-la nas rotas americanas.
cional, na verdade, Rístorí não hesita em aprender Em 1873, organizando a quarta turnê internacio-
francês e inglês insistindo na conquista de detalhes nal de Ristori, segunda no Brasileprimeira "mundial"
fonéticos como se, ao invés de textos dramáticos, (com estreia no Rio de Janeiro e incluindo lugares
estivesse interpretando libretos de ópera. A "natural nunca dantes visitados por companhias europeias,
emoção" que Ristorí oferece ao espectador é, na como México, Austrália e Havaí), o marquês, marido
verdade, fruto de cuidadoso trabalho para a cons- de Ristorí e administrador da companhia, reúne uma
trução da personagem. Observa Machado: equipe de colaboradores e transforma a companhia,
de empresa familiar, em microrrealidade industrial.
Cada gesto, cada passo, cada movimento revela uma in- Encarrega o neto Giovannino Tessero de antecipar a
tenção plástica e dá sempre uma atitude artística. Ela com- companhia para fechar as pautas e contatar agentes
preende que, sem a atitude, a personagem seria incompleta; locais aos quais confiar as tarefas executivas. Os fes-
mas, como é artista de seu tempo, e criadora, compreende tejos, que haviam sido organizados espontaneamente
também que a atitude e a dicção no teatro devem despir- para o desembarque em 1869, agora são garantidos
-se de todo tom afetad~ ou nimiamente convencional'V. pelo apoio oficial da comunidade italiana que, em
troca de ingressos e favores do Marquês, ocupa-se
Do ponto de vista filosófico, escorado no alter-ego de esquentar a campanha de assinaturas. A atriz
Platão, Machado declara que a "natural moralidade" embarca em Bordeaux - principal porto francês de
da arte de Ristori é prova de que o teatro deve ser saída dos navios com destino à América do Sul -,
espelho do real, mas não reprodução mecânica e acompanhada por 24 artistas e oito pessoas de co-
sim vital manifestação de sua melhor parte humana mitiva, duzentas peças de bagagem, dezenove caixas
e social. O realismo não é mero exercício de estilo. de acessóriose cenários. A pompa traduz a dimensão
Quando nele palpita um espírito elevado e uma do investimento para que a "rainha da cena" afirme
vontade regeneradora, o realismo faz do teatro a incomensurável distância que a separa da "mes-
uma escola de vida e de integridade, que (no caso quinharia das companhias mambembes" (carta de
da Ristori) "se deve estudar, não imitar: imitá-la Tessero para o marquês, 5.11.1873). Também com-
seria cometimento impossível'T". Sua "monarquia prova a promessa, amplamente divulgada, de uma
teatral" amparada na excelência artística, na nobreza mise-en-scéne "muito mais esplendorosa do que em
de ânimo e no título aristocrático, que a faz digna do 1869".1Yfáximo zelo é dedicado àseleção do elenco
convívio com reis e imperadores é, na verdade, fruto de apoio, especialmente feminino, pois "aqui no
Rio - aponta Tessero - o que querem é aparência"
116 Idem, p. 62.
(idem). O elevado número de figurinos, desenhados
117 Ma.cha.do de Assis, Do Teatro ..., p. 492.
118 Idem, p. 494.
pela atriz com suas modistas parisienses, sugere um

• 280
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

ritmo de desfile.A exigência, feita ao teatro, para que Mesmo assim, a atriz não acolhe o palpite e apre-
as portas sejam "todas praticáveis': garante entradas senta um repertório quase igual ao de I 869 (com só
e saídas realistas: uma novidade que surpreende o um título novo - Lucrezia Borgia, de Victor Hugo)
público, acostumado aos relões pintados, como os correndo o risco de ser apontada como rainha...
que a companhia exibira em I 869. da velha cena. Apesar disso, Ris to ri continuará
Aportando no Rio de Janeiro em fins de maio, gozando da predileção exclusiva do imperador.
Rístori aloja-se num palacete no Carece, "longe do As críticas, no entanto, mostram que em 1874
centro e perto das montanhas, para respirar um ar foi Salvini quem suscitou as mais incontidas rea-
mais puro". O luxo custa 400 francos diários: "um ções na plateia e, inclusive, no próprio imperador
preço fabuloso como qualquer coisa nesta cidade, se que, após a estreia da Morte Civil, de Giacometti
é pra ficar numa boa situaçâo"?", registra um dos ata- (que também escrevia para Ristori), retira-se co-
res da companhia, Marco Piazza, alojado na pensão movido na sombra da tribuna enquanto o ator,
Universo, dirigida por uma família italiana, ao custo ovacionado pela plateia, recebe homenagens do
de "I 5 ou ro francos por dia". Os relatos revelam a presidente do Conservatório Dramático?", Salvini
conjuntura inflacionária da corte. Nos borderôs da apresentava os textos de Shakespeare em italiano
companhia, os valores relativos ao ordenado da or- e sem os cortes típicos das adaptações utilizadas
questra, ao gás da iluminação e ao aluguel do teatro até então por João Caetano; interpretava-os com
são bem mais altos do que em I 869 - mesmo consi- uma "beleza desconhecida em nosso teatro" - se-
derando que já então a companhia havia trazido da gundo Joaquim Nabuco':". Em março de I 87 5, em
Itália as velas para iluminação da cena e várias pipas Londres, Salvini arrancará de Ristori o trono de
de vinho, pelo fato desses produtos custarem uma "primeiro ator trágico do nosso tempo, maior que
fortuna no Rio. A temporada é instigada pela con- todos os seus contemporâneos'T". Também Gia-
corrência de Tommaso Salvini e Giacinta Pezzana, cinta Pezzana, que antecede Ristori no Rio em um
dois ateres jovens, já consagrados na Itália e lançados mês, com as mesmas peças, mas ingressos bem mais
à conquista do pódio internacional. A comparação baratos, recebe comparações elogiosas. De volta à
em números entre Ristori e Salvini ecoa de um a ou- Itália, aproveita a consagração latino-americana
tro lado do oceano. No Rio, a poltrona para assistir para ocupar o trono da "rainha"!". Seis anos mais
às representações de Ristori é bem mais cara que a . tarde, Pezzana voltará a pisar os palcos brasileiros
de Salvini. Mesmo assim, a temporada termina com interpretando Hamlet en travesti. Ristori, como
receita fabulosa: I02.500 francos de ouro ou seja, Salvini, não retornará ao Brasil
três vezes a receita de 1869, sem contar os mimos Ao longo de duas décadas, até o fim do século,
recebidos. Suas Majestades Imperiais não perdem acirra-se a concorrência para a partilha das praças
uma récita e, no dia do benefício, oferecem-lhe uma latino-americanas entre ateres italianos (Rossi,
cruz cravejada de brilhantes. Salvini, Emanuel, Novelli, Roncoroni, lvlaggi,
A paixão teatral do imperador é tão genuína Pasta etc., com as respectivas primedonne) e fran-
quanto sua paixão política. Suas dicas de repertó- ceses, com destaque para a disputa entre Novelli
rio revelam um espectador atento às tendências da e Coquelin (I888-1890), no repertório cómico,
cena internacional: e entre Eleonora Duse e Sarah Bernhardt (I 8 8 5-
I 886), no repertório dramático. Da competição
Creio que Shakespeare faria étimo sucesso, ao menos como
novidade para a maioria. Não falo por mim, pois a senhora 120 Arte Drammatica, 25 de julho der 874, ano III, n, 33. Em
Montevidéu, Salvini é acompanhado por cortejo de três mil pessoas
bem sabe de minha paixão para as obras-primas daquele (organizado pela Socíetà de Mutuo Soccorso degli Operai Iralíaní,
gênio e que jamais poderei esquecer sua Lady Macberh da qual é sócio); em Valparaísoé homenageado com o hino italiano.
121 Em L. Silva, História do Teatro Brasileiro, P: 366.
(15.9. 1873).
122 Arte Drammatica, 10 de abril de 1875, ano IV, n. 22, P: 4.
123 "Quando Rístori era Ristorí, com pouco dinheiro, mas ainda
Ristori, depois daquele tu qualquerJasão ficaria embasbacado.
119M. Píazza, Con Adelaide Ristori nel giro del mondo (r 874- Hoje é a Pezzana que embasbaca os públicos" comenta Arte
r875), Milano: Edizioni Italgeo, 1948, P: 3 r. Drammatica, em 3 I de outubro de 1875, ano IV, n, 52, P: 4.

• 281
Historia do Teatro Brasileiro • volume 1

A atriz Adelaide Ristorí. o ator Tommaso Salvíní, caracterizado como Otelo.

entre realismo italiano (ou naturalidade) e norma uma verdadeira amizade supre na memória aquilo que as
acadêmica fr;ncesa (ou regra) - expressa em su- palavras não expressam. Você será sempre para mim Me-
perlativos elogiosos e, principalmente, em cifras - deia, Maria Stuarda e a linda, nobre viúva de Manesses
tiram proveito os agentes locais, vinculando a essa Uudite]. Volto a admirar a galeria de suas fotografias e
disputa a negociação de cachês, a fixação do valor cultivo a viva esperança de coroar com sua presença essas
dos ingressos (sendo os franceses normalmente inesquecíveis lembranças.
mais caros) e a seleção do repertório (possivel-
mente idêntico ao do/da rival). A grande oferta Saudades e apreciação incondicional tornam-se
de artistas estrangeiros, entre conjuntos de ópera, uma só na esperança de um dia rever aquela amiga
opereta, revista, melodrama e, enfim, teatro dramá- distante, dama ausente, alma irmã que então é ce-
tico, entrincheira os proprietários dos teatros das lebrada pelo mundo afora em "merecidos triun-
capitais latino-americanas atrás de uma grade de fos" que lhe lembram o brilho de sua consagração
programação intensíssima que obriga os agentes a na corte carioca: "1vleu cunhado me resenhou Seu
aceitar os termos de contratos nem sempre vantajo- merecido triunfo em Lisboa - quanto o invejei!
sos: "Estes piolhentos artistas italianos estragaram Minha mágoa é sabê-la tão longe do Rio, cujas
os negócios por aqui. Se vendem por nada! Os em- lembranças devem ser-Lhe gratas': escreve o im-
presários parece que têm gosto': lamenta Tessero, perador em 26 de fevereiro de 1879125. E alguns
"e eu tentando, pelo que a dignidade permite, meses mais tarde: "Gosto de [Ernesto] Rossi
demonstrar-lhe que não há comparaçâo'T", principalmente no Rei Lear, mas Você deve crer
O oceano não separa maissenão os amigos - como que fiquei o tempo todo lembrando de outra re-
escreve o imperador em 14 de janeiro para a rainha presentação".
da cena que, aos seus olhos, não conhece rivais,pois:

124 Cartas para Capranica, 12 e 15 de novembro de 1873. Fundo 125 CE. A. Vannucci, Correspondência entreoImperador D. Pedro
Rlstori, MBA. II... , p. 137.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

o Herói dos Dois Mundos:


Ernesto Rossi

Embarcado em 1871 rumo ao Rio de Janeiro, com


estreia marcada e no bolso uma carta de recomen-
dação de Giuseppe Garibaldi, em que o herói dos
dois mundos o empossa como "sumo represen-
tante da arte e da civilização humana no Novo
Mundo'T", Ernesto Rossi sofre adversidades na
travessia oceânica e é obrigado a desembarcar no
Recife. A aventura (que merece uma saudosa nar-
ração em seu diário) exalta sua imaginação heroica
e inspira-lhe ótimos improvisos - como quando,
em vista da costa pernambucana, termina a decla-
mação do poema "As Últimas Horas de Cristovão
Colombo" com o grito de "Terra! Terra!" Parado
no porto, esperando o conserto da hélice do vapor
e já que - narra o ator - a companhia francesa de .,
operetas havia sido "dizimada pela febre amarela", - ·~Ã--S_
resolve dedicar-se a "uma obra de caridade". Or- O ator Ernesto Rossi no papel de Otelo.
ganiza duas sessões num barracão de Recife com
o mesmo repertório em italiano apresentado em
Gênova, antes da partida ( Oreste, de Alfieri; Cid,
de Corneille; e Sullivan, de Melesvílle, seguido a Pinacoteca Brasileira, assiste ao "graciosíssimo"
pelo scherzo cômico Baile de 1vfáscara). Sua en- Vasques em seu "teatro de variedades". A corte está
trega é recompensada por expressões de pública de Imo pelo falecimento da princesa Leopoldina. O
euforia, com lenços, chapéus e mantos lançados público escasseia,seja pela ausência das Majestades
ao palco: Imperiais,sejapelo atraso da temporada dramática do
próprio Rossi,sejapela divulgação,já afixada,da pró-
Havia de tudo no palco, até que - essa realmente me sur- xima companhia de ópera. No entanto, reage Rossi:
preendeu - um estudante montado em sua cadeira come- "seriaimpossível,neste paraíso, ter que experimentar
çou a apostrofar-me em versos cx-temporei É um hábito aspenas do inferno"I28. Em dois meses,estreita laços
brasileiro. Depois, ele invadiu o palco com um bando de com artistas locais (Furtado Coelho, "inteligente e
amigos mulatos, me levantaram e começaram a brincar de zeloso" promotor do Teatro S. Luís, e Ismênia dos
bola com o meu corpo, jogando-me para o alto! Meu Deus, Santos, com a qual o italiano contracena na comédia I
quanto que a glória custa!"? GelosiFortunati, de Giraud, comparando-a positiva-
mente a Ristori)">, Fica amigo de jornalistas influen-
Rossi é homenageado pelo povo aos gritos de tes como Salvadorde Mendonça, Francisco Otaviano
"Viva l'Iralia" na saída do porto rumo ao Rio de Ja- e o dr. de Castro, proprietário do Jornaldo Comércio,
neiro. Lá chega, na madrugada do dia 4 de maio de que se mobilizampara preencher a plateia. Numa ses-
1871. A cidade - "um paraíso" - o absorve: passeia são vespertina para a corte, antes da primeira viagem
pelas aleias de palmeiras do Jardim Botânico, sobe o imperial à Europa, Rossi declama trechos escolhidos
Corcovado, indigna-se com a insalubridade do cen- de Dante, Manzoni, Alfieri e Shakespeare, a pedido
tro, frequenta rodas de "dança dos escravos': visita 128 Idem, p. 38.
129 "A brava atríz brasileira, se não superava em habilidade a Ris-
126 C( Ernesto Rossi, Q!tarant'anni di vita artística, Firenze, v. torí, que naquele papel sempre brilhou, não se distanciava muito
I,1889,P. 230. dela. O público gostou tanto que tivemos que nos apresentar
127 Idem, v. III, P: 3 I. outras vezes".Idem, p. 59.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

de D. Pedro II. Recebe no teatro a visita dos príncipes ser homem e de sentir; e não inventa de fazer poses plásticas,
com a oportuna programação de Luís XI, tragédia como outros, para atingir o olho antes de ter tocado o coração.
histórica de Delavigne que representa a desfeita dos
Nemours, dos quais o último descendente é o conde O ator justifica sua excelência pelo estudo,
d'Eu - que aprecia a homenagem e não perde mais declara-se um "bom operário" e compartilha seu
nenhuma sessão. É diplomático, bem humorado, sucesso com a classe teatral, orgulhando-se em ser
paciente e persistente. Finalmente, estreia. comparado ao modelo de ator trágico brasileiro - o
Após o drama romântico Kean, de Alexandre bravissimo Giovanni Caetano:
Dumas, leva à cena os clássicos italianos de Alfieri,
Goldoni, Niccolini, Pellico e Giacometti mis- Nunca gostei de chamar o público para experiências. Sem-
turados com títulos como Frei Luís de Sousa, de pre me apaixonaram as obras dos grandes engenhos, porque
Almeida Garrett e Hamlet, Otelo, Romeu eJulieta, mergulhando nelas e estudando-as, o ater se instrui e apri-
Macbeth, antes conhecidas apenas por libretos de mora. A análise de caráter dos máximos autores é árdua, pois
ópera ou pelas adaptações de Ducis encenadas por na própria busca de perfeição corre o risco de uma demons-
João Caetano. A plateia carioca vai ao delírio. Em tração excessivade virtuosismo, que deixa de ser arte; para
17 de maio, o cronista deA Reforma afirma -ser a ~ ser arre, a interpretação precisa mostrar com simplicidade
companhia de Rossi "muito superior àquelas 'que e exatidão as intenções do autor com a personagem; depois,
recebemos até hoje". Em 25 de junho, é Machado precisa de uma natural colaboração de qualidades físicas e
de Assis que se manifesta na Semana Ilustrada: intelectuais, de forma que paixão e sentimento não se aban-
donem num descontrole transcendental'>.
Esta verdade deve dizer-se: Shakespeare está sendo uma
revelação para muita gente. O nosso João Caetano, que era Consegue assim a preciosa parceria da classear-
um gênio, representou três dessas tragédias, e conseguiu tística. Em 18 de maio, dia de descanso para Rossi,
dar-lhes brilhantemente a vida, que o sensaborão Ducis lhes o ator Vasques lhe faz homenagem no Teatro Fênix
havia tirado. Não lhe deram todo o poeta. Quem sabe o que com um espetáculo de variedades em que o imita
ele faria de todas as outras figuras que o poeta criou? Agora com tanto talento no papel de Otelo que Rossi
é que o público está conhecendo o poeta todo. Se as peças "ri a bandeiras dcspregadas"?». Segue um poema
que nos anunciam forem todas à cena, teremos visto, com encomiástico:
exceção de poucas, todas as obras-primas do grande drama-
turgo. O que não será Rossi no KingLear? O que não será A religião do Calvário / ensinou à cristandade / respeitar
no Mercador de Veneza: O que não será no Coriolano ?13 0
com vero culto / uma Sagrada Trindade. / A religião do
teatro / ao ator manda que sinta / veneração e respeito /
Pela troca pública de cartas entre Machado de pela trindade distinta / Ristori, Salvini e Rossi/ orgulho
Assis e Salvador de Mendonça, que contou ainda do mundo inteiro / são três talentos distintos / [mostrando
com a participação de Joaquim Serra e Francisco RossiJ mas um só deus verdadeiro'>'.
Otaviano'a', emerge a impressão da qualidade in-
comparável do trabalho do ator, "O ator italiano': Em 27 de junho, o mesmo Vasques mobiliza
escreve um deles, a classe para que fechem os teatros para prestigiar
o benefício de Rossi no Lírico Fluminense. Para a
é o ideal completo de ator dramático de que João Caetano ocasião, Rossi interpreta aros avulsos do Hamlet, do
nos fez vislumbrar o tipo: o que não estava realizado neste, Kean e do Oteloe é aclamado por Luís Guimarães Jr.
Rossi no-lo mostra com evidência. Não esquece jamais de como "constelação da glória, homem formado por
divina essência, igual aos astros, gênio, apóstolo dos

130Do Teatro...,p. 517-518. 132 Palestra dada no Teatro S. Luís a convite de Furtado Coelho.

131 Uma carta de 2.0 de junho de 1871 de Machado para Salvador Em E. Rossi, op. cít., v. III, p. 55.
de Mendonça, publicada no jornal A Reforma, elogia calorosa- 133 A peça chamava O Novo Otelo, de Joaquim Manuel de Ma-
mente o arar. Cf. J. Galante de Sousa, Bibliografia de Machado cedo. Em B. de Abreu, Esses Populares tãoDesconhecidos, p. 45.
deAJJir, Rio deJaneiro: MEC-INL, 1955, P.456-458. 134 Idem, p. 47.
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

céus': enfim "a mais vasta criação de Deus"I35. A festa Rossi agradece a homenagem e convida seus ad-
segue animada. A certa altura Rossi, no palco, recebe miradores a irem vê-lo no teatro.
um bebê oferecido pela mãe, pobre e negra, junto Antes da partida para a América Latina, convi-
com a carta de propriedade. O bebê, "reconhecendo- dado para dirigir em Viena uma companhia de teatro
-me como pai, pela coloração preta no meu rosto de trilíngue, o "comendador" Rossi (condecorado pelo
Otelo" o abraça e Rossi, "segurando-o bem alto na governo monárquico dos Savoia, instalado após a
minha frente" dá-lhe a liberdade e devolve-o aos bra- unificação italiana, em 1860, por sua trajetória com
ços da mãe, exclamando: "É seu! É seu! Procure fazer que promovia socialmente a figura do aror) já havia
dele um homernl'"> O golpe de teatro provoca na ressaltado a tarefa "educadora' assumida pelo palco
plateia um efeito que (observa Rossi ao leitor) "nem no âmbito da missão formativa/afirmativa da cons-
eu com a minha caneta nem você com sua fantasia ciência nacional. No contexto de afirmação nacional
conseguiríamos descrever". Entretanto, a cena havia que anima o Risorgimento italiano, as rurnês de atares
sido armada por Vasques que, em plena campanha como Rossi eram consideradas missões patrióticas.
abolicionista, pretendia arregimentar Rossi como A fortuna conquistada no exterior, repercutindo na
campeão do progresso e da democracia. pátria como sinal de justo reconhecimento do "gênio
Rossi deixa o Brasil como herói progressista, mas itálico': era exploradapela mídia no mote da exaltação
regressa, em junho de 1879, a pedido do imperador. da Itália como nação de grande, qualificada e unitária
O triunfo da temporada, dessa vez sem conturbação cultura. Assim, as reflexões artísticas de Rossi, ator he-
na viagem, é evidente desde a estreia em 26 de junho, roico, devem ser enquadradas por suas preocupações
com Otelo. Com teatro lotado, a bilheteria fechou políticas - como quando lamenta a barbárie mercená-
uma hora antes do início do espetáculo. ''A fina flor ria no Uruguai dos soldados italianos fugidos do reino
da sociedade fluminense estava ali reunida; os outros de Nápoles; e pede licença para perguntar:
teatros, assim como os passeios e os salões, ficaram
desertos': lia-se na Gazeta de Noticias'P, O "homen- por que o nosso governo não exerce mais cuidadosa vigi-
zarrão que uma noite era terrível como Otelo, outra lância sobre os acontecimentos daqueles países longínquos
meigo como Romeu" (assim o descreve Machado de onde se desenvolve parte notável de nossa vida nacional,
Assis, no conto Curta História, de 1886), fixou-se circula muito sangue nosso e se acumulam as maiores das
então inesquecível na memória do público flumi- nossas riquezas'ê",
nense. De 12 a 15 deagosto de 1879, a companhia
de Rossi apresentou-se em São Paulo: Observador atento, ele, que nunca mais retornará
às terras brasileiras, "tão deliciosas e hospitaleiras':
cidade surgida quase por milagre e povoada de italianos, mostra-se consciente das fantásticas perturbações
com um terreno fértil, um clima temperado, estradas es- que a projeção quimérica do grande negócio latino-
paçosas e limpas onde não se aninha febre amarela nem -americano provocariam no mercado artesanal da cena
qualquer outra dessas epidemias tropicaís'". italiana e europeia, ao longo dos anos de 1880 e 1890.

Na estação paulista da estrada de ferro, Rossi foi


acolhido por mais de duas mil pessoas, em sua o Delírio do Capocomico.
maioria emigrados, num cortejo de doze carrua- Dusc, Bernbardt; Emanuel e Novelli
gens embandeiradas, ao toque de caixa da Marcha
Real Italiana e dos "vivas" das delegações de estu- Porto de Gênova, dia 2 de abril de 188 5. Exulta
dantes e operários: enfim, com honras dignas de Polese, editor de EArte Drammatica:
um herói e não de um simples artista dramático.
EvvivaAdelaide Ristori! eu gritava enquanto acompanhava
135 Idem, P: 48. Eleonora Duse a bordo do vapor Italia, vendo aquela rnul-
136 E. Rossi, op. cit., v. III, P: 62-63.
137 CE Arte Drammatica, 26 de julho de 1879, ano VIII, n. 39.
138 E. Rossi, op. cir., v. III, p. 65-66. 139 Idem, v. III, p. 81.
História do Teatro Brasileiro • volume1

tídão de artistas dramáticos e líricos de partida. EvvivaRis-


tori e com ela Rossi e Salvini! Todos alegres os contratados
da companhia Duse & Cesare Rossi, afora Eleonora Duse
e o administrador Tebaldo Checchi. Duse se despedia da
filha; o marido não consegui ver, pois escavatrancado na
cabine estudando um imenso volume em alemão sobre a
América do Su1'40 •

1885 foi um ano duríssimo para Eleonora Duse,


a diva de 27 anos, cuja saúde frágil preocupava ad-
miradores e autores de toda a Europa: em março,
estreando em Roma a peça Teodora, de Victorien
Sardou (que já consagrara a voix dor de Sarah Ber-
nhardt), ela havia desmaiado debaixo dos suntuo-
sos panos da rainha de Bizâncio; para a segunda
representação, suprimia um ato; após a terceira,
suspendia as representações e entrava em descanso,
só levantando da cama no dia do embarque. Antes, EleonoraDuse em 1910.
porém, assessorada pelo marido Tebaldo Checchi,
zeloso administrador de sua imagem, a jovem atriz
havia visitado Ristori, que devia retirar-se das cenas lançava-se na aventura americana; mas, seja porque
poucas semanas mais tarde e a cuja herança artística as novas feições especulativas do negócio exigiam
Eleonora tributava então homenagens de aluna de- da diva uma exposição pública que a mulher Duse
vota. Do Palácio Capranica em Roma levava, além julgava avassaladora; seja em razão de desavenças e
da bênção da "rainha" e de sua foto com dedicatória, desgraças que amarguram a satisfação económica, a
também uma carta de apresentação para D. Pedro II. viagem torna-se para ela uma delirante desventura.
No encalço de Ristori, e com o cuidado de endere- Apoiando-se no veterano Cesare Rossi para
çar-lhe grata correspondência da viagem14 1, Eleonora sua primeira turnê no exterior, Duse ambicionava
firmar-se como capocomica de sua própria compa-
140 Arte Drammatica, 4 de abril de 1885. ano XIV, n. 23, P: 1. nhia, defendendo de qualquer intromissão - até
141 Do Rio de Janeiro. 25 de agostO de 1885: "Ilustre, minha
boa senhora - tenho aqui o seu retrato... um bom conselheiro, dos conselhos do marido Tebaldo Checchi - a
ideal, um nobre inspirador que me fortifica para e na minha independência que marca sua fase madura. Pelo
vida de artista e de mulher. Essa adoração toda - essa ternura
cotidiana - até então ignorada por você que a inspirava - hoje a
epistolário de Cesare Rossi emerge a barafunda
confesso... hoje, nessa distância de tempo e de espaço... de mulher de desentendimentos provocada pela crise pessoal
para mulher... obrigada por mim, para a arte - para o exemplo,
obrigada pelo ideal e pelo apoio concreto. Nessa distância - nesse
da atriz que, em Montevidéu, reage com palavras
belo país - tão longe do nosso belíssimo - você estava me espe- impacientes ao assédio dos jornalistas, estrategi-
rando. O imperador me recebeu na chegada... o que por mim só
não seria concedido - se não em virtude daquela sua carta. Sua
camente armado pelo marido-agente Checchi.
carta me deu o ardor de saber... apenas, apenas - responder às Irritada pela "vulgaridade" dos seus esforços para
indagações da Majestade Imperial (tão árduo para mim). Sorte
minha. ele falou rnuiro de você ... eu escutava com devoção... res-
entrar nos salões da burguesia uruguaia, intima-o
pondi com entusiasmo! Aquela sua carta também me sustentou a deixar "que seja eu a ganhar seus favores e os do
na luta dos primeiros dias - quando junro às palmas do público,
eu devia conseguir a aprovação do imperador! Ele me disse que
público, senão vão dizer que somente por sua causa
lhe escreveu ... lhe falou de mim marquesa... em sua carta ele as pessoas batem palmas"!", No Rio, após enfrentar
desaprovaria sua recomendação suas palavras... a confiança
que você deposítou em mim? Vou parar de escrever - preciso
uma árdua temporada de público, ameaça rescindir
ensaiar - olho para o retrato que me olha - e me diz trabalhe! o contrato com Cesare Rossi e separa-se do marido.
Não sei se consegui - ou ainda conseguirei - eu sei que trabalhei
e lureí para isso".Em 20 de agostO de 1885, D. Pedro havia escrito
O surto de febre amarela, que provoca a repentina
para Rístori dizendo ter "revigorado, aplaudindo [a Duse], as
minhas memórias de quem espero voltar a assistir". Ambas as 142 Carta de 27 de agosto de 1885. de Tebaldo Checchi para
cartas em Fundo Ristori, MBA. Francesco d'Arcais. Fundo Duse, Biblioteca del Burcardo [BB].

• 286
• o Teatrode Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Sarah Bernhardt. Forografia tirada por volta de 1890.

morte do jovem atar Arturo Diotti, exacerba o já Duse]. Um teatro grande... e eu débil e pequena... minha
precário estado neurótico da atriz - patologia in- voz... impossível que chegasse ao fundo da plateia... um mur-
clusive bastante apreciada à época, que com Duse se múrio contínuo, aborrecedor na sala e nos palcos. Minha
torna quase um estilo, um "jeito de diva" explorado cabeça - assim como a minha voz - não aguentava mais.
pela imprensa, que divulga os detalhes no intuito de Me vesti depressa, mais depressa fui para casa [o Hotel Vista
sublinhar sua extremada sensibilidade. O clima sufo- Alegre, em Santa Teresa]. Fechei-me no quartO: quanta tris-
cante contagia. Circulam anedotas escabrosas: após teza... que vazio! Dia seguinte, descanso: aqui.não se trabalha
acusar o marido de traição (com Irma Grammatica, mais do que três noites por semana. Os jornais sem nenhum
atriz mais jovem), Duse teria aproveitado uma cena juízo exato- só constatavam que eu teria um nãoseiquê,isso
de paixão da Femme de Claude, de Dumas Filho, os impressionava, mas de minha voz... não ouviram senão
para rasgar a blusa e mostrar os seios. Por sua vez, um escasso eco. Segunda [27 de junho]: Denise [de Dumas
Emma Grammatica (uma menina de dez anos, irmã Filho]. O teatro - aquela praça - praticamente vazio ... so-
da acusada) teria tentado o suicídio comendo frutas mente, um pouco mais de atenção. Minha pobre Denise,
tropicais e dormindo às claras - comportamentos simples e sem toilette, foi escutada... chorei e fiz chorar - até
que, murmura-se, haviam sido responsáveis pelo que pude, até quando eu quis ... a desafinação minha com
falecimento de Diotti. Sensibilizada por funestos o teatro começava a desaparecer, e lá naquele proscênío -
pressentimentos, pelo clima mórbido ao qual infame e bendito - eu rezei e pedi agraça de salvaraquele
atribui a súbita morte do colega e pelo cinismo do desgraçado [de Diotti doente]; salve-o e que eu seja derrotada
negócio que havia de continuar, Duse narra como como artista... Dois dias mais tarde, tudo havia se acabado
um calvário a temporada no Rio de Janeiro: [Diotti falece em 30 de junho] e nós recitávamos sem ele...
e a sua pequena Nennella triunfava... triunfava I43•
Tive que calar isso tudo - e tive - como empresa, como ar-
tista - que alcançar o sucesso - consegui... Enquanto o po- A crónica de sua irresistível ascensão é registrada
bre Diorti adoecia (cinco dias contra aquele morbo maldito) por Artur Azevedo, crítico do Diário de Noticias.
nós - sem ele (on remplace - que tristeza) fomos para cena.
Primeira noite [25 de junho]: Fedora [de Sardou], o teatro
143 Carta de 28 de agosto de 1885" para a amiga Matilde Serao.
repleto e um completo desastre da sua Nennella [apelido da
Em O. Signorelli, Eleonora Duse, Roma: Cassini, 195" 5", p. 6 r.
.J...Ll-Jl-Ul tu (,Cu J..C""''''v .lJIU.:H'';~'" v • VV';f'Io'''''''''.L
.l:LtJl-Ultu ttu ..J..CUl-fU JJlu.JJ-l-Cl-rv ~ vV"'",Tf"c,.. J.

Em 23 de junho, ele acolhe a diva estrangeira com nhos', dá a medida de seu valor "pela comoção que
um fio de desdém: provoca, pois no teatro todos choravam': descreve
Artur Azevedo. É com um obsessivo "estudo de
Dizem-nos dela maravilhas: efetivamente tenho visto sua naturalídade'v" ("olhos, olhos e mais olhos") que
fotografia em muitas caixas de fósforos, e lá, na pátria do Duse compensa a fragilidade de seus meios físicos
ideal, quando o retrato de um indivíduo entra no domínio em textos "escritos para uma artista de grandes
da indústria do fósforo, é porque vale muito. dons naturais como Sarah Bernhardt'":". Em 2 de
julho dá-se II Padrone delleFerriere (Le 1vlaítre de
Após a estreia de Fedora, limita-se a elogiar sua Forges) de Ohnet, famigerado dramalhâo em que,
elegância. Já uma semana mais tarde, após Diuor- no entanto, Duse "emocionou o público sem gritar,
çons, admite não lembrar "ter visto nunca, em teatro esbracejar,nem correr pela cená'I47; no dia seguinte,
algum, uma atriz que tanto me impressionasse e co- com a Odette de Sardou, a comoção estimula a pla-
movesse"; e na edição de r 2 de julho, dia de descanso teia a repetidos aplausos e lágrimas. Consagra-se o
para a companhia, dedica-lhe versos apaixonados mito de seu "poder supremo" sobre quem a vê em
que declara ter encontrado no chão do camarote: cena e se esquece de que está num teatro, tamanha
a naturalidade de seus desempenhos. Enquanto
Fui ver a Duse, que é tão bela / a interpretar a tal Denisa, isso, preocupada com a concorrência de sete com-
/ que eu lá no fundo de uma frisa / doido fiquei de amor panhias em cartaz na cidade, a atriz cede à pressão
por ela. / Com que legítimo talento / d'alma ao recôndito do marido e dedica-se às relações diplomáticas:
fala! / Ir ao S. Pedro, vê-la e amá-la / tudo foi obra de um no sábado, dia 4 de julho, vai ao Teatro Lucinda
momento / O que eu cá sinto pela Duse / que me extasia e ver Lucinda Simões no papel da Suzanne d'Ange
me comove / não há moral que mo reprove, nem promotor do Demi-monde - papel que a italiana, diante de
há que o acuse'v'. jornalistas, jura nunca mais interpretar em cidades
visitadas pela veterana atriz Íuso-brasileira'f",
A crítica parece não ter palavras para descrever No domingo, devidamente estimulados, todos
o temperamento vibrante da atriz: um articulista os jornais lamentam em tons apocalípticos a de-
anônimo da Gazeta de Notícias, em 29 de junho, serção do público da temporada de Duse. Nada
resume: é uma atriz enxuta; tem um modo especial acontece, ainda, naquela semana, quando Duse
de inclinar o tronco para trás e enrijecer o pescoço, apresenta seu repertório côrnico, com destaque
enquanto sua fisionomia toma uma expressão de para Goldoni, numa cidade mobilizada por José
desdém que impressiona". No Jornal do Comércio do Patrocínio e pelo Festival Abolicionista no Po-
lê-se a 3o de junho: liteama Fluminense. Somente a partir da segunda-
-feira, dia r 3, o público prestigia a temporada
ao mover-se, a primeira impressão que produz é de um fas- teatral, atraído talvez, naquela noite, pela inaugura-
cínio ao qual em vão tentaria se subtrair: é daqueles gênios ção do novo pano de boca pintado pelo cenógrafo
que, intolerantes de qualquer jugo, se livram de todos os italiano Carlo Rossi e representando João Caetano.
preceitos ordinários da arte; sua fisionomia móvel tem algo Mas, no dia seguinte, os jornais "não falam senão
entre o anjo e o demónio. dela, do seu triunfo: um delírio ... foram declama-
dos poemas nos entreatos e os artistas, pulando
Apesar da sedução que Duse exerce sobre os crí-
ticos, a plateia continua vazia. O intenso fluxo de 145 Jornal do Comércio, relatado por Arte Drammatica, 1 2 de
agosto de 1885, n. 39, p. 2
emotividade, subjugando os escassos espectadores 146 Gazeta deNotícias, relatado por ArteDrammatica, 6 de junho
com "posturas excêntricas, gestos caprichosos, de I 885, n, 3 2, p. 4-
inflexões inteiramente novas" e com a "influência 147 Gazeta de Notícias, relatado por Arte Drammatica, 1 2 de
agosto de 1885, n. 39, p. 3.
dos seus olhos, dos quais surgem lampejas estra- 148 A promessa, que Artur Azevedo acha um absurdo, não será
cumprida: já em I I de setembro, no auge de seus triunfos, Duse
apresenta Le Demi-monde no Rio, sabendo, talvez, que Lucinda
144 Em B. de Abreu, Esses Populares tãoDesconhecidos, p. 55. havia viajado para Portugal.

• 288
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

as cadeiras da orquestra, invadiram o palco para tão longe o reencontrava nos aferes, na expansividade
ajoelhar-se diante delà'I49.Em poucos dias, home- do povo naquela hora me colheu a saudade que sempre
nagear Duse torna-se um dever cívico. O número derrota os que estão longe de sua pátria, o assombro da
29, de 17 de julho, do jornal A Semana, editado distância... E me revi, pobre filha, quando nada esperava
por Valentim Magalhães, é inteiramente dedicado da minha arte, quando do meu ofício não ganhava tanta
à atriz, com depoimentos de artistas e intelectuais, satisfação espiritual, mas somente a vida ... Você que pode,
como Furtado Coelho, Vasques, Lucinda Simões, agradeça ao público de minha parte e diga que desde aquela
Artur Azevedo, Urbano Duarte, Aluísio Azevedo noite neste país lindo e distante... reencontrei o meu...
e Machado de Assis. Este último escreve: ''A Itália lindo... e distante. Creia-me grata'p.
é a Danaide antiga. Podemos pedir-lhe e exaurir-
-lhe os talentos, um por um; ela os inventará novos; Prestes a enfrentar sua longa carreira de capo-
ao lado de Salvini, Rossi; depois da Ristorí, Duse- comica como uma missão de independência (eco-
-Checchi: feições diversas, arte únicà'I5 0 • nôrnica, estilística) que irá empurrá-la "sempre
Na noite de 17 de julho, com o teatro lotado à frente" e sempre distante do "vil negócio" do
para vê-la em A Dama das Camélias (papel com mercado teatral italiano, a jovem Duse, em sua
que desafiará Sarah Bernhardt em Paris e que, no primeira viagem americana, percebe seu destino
Rio, havia sido carro-chefe de Lucinda Simões) de emigrante perpétua, ao mesmo tempo como
Duse enfim conquista, pela primeira vez também maldição e salvação. Faz da travessia uma pátria e
fora da Itália, as honras devidas a uma diva. En- um ritmo interior, metáfora da necessária transição
quanto joias e Rores cobrem o palco num frené- entre "velho" e "novo" que move o imaginário fin
tico crescendo de aclamações, um enfeitiçado Artur de siécle. A experiência traumática que domina a
Azevedo ousa compará-la a Rístori nos versos que turnê de 1885 produz, com o tempo, uma neurose
acompanham o galho de camélias especialmente típica não só em Duse, como em toda sua geração
trazido de São Paulo: de atores-viajantes: o pânico de morrer em terra
estrangeira, diante da necessidade humana de per-
Descamba aquele astro esplêndido / Rístori, o assombro, tencimento e sobrevivência. Pânico que dominará
o portento, / e surge no firmamento / formosa estrela de sua segunda visita ao Brasil- em 1907, já consa-
amor. / Entusiasmada, frenética, /agita-se a alma do povo grada como máxima atriz vivente - e que acaba
/ em seu nome, ao astro novo / venho trazer esta flor'!'. realizando-se como destino I53. Confessa, em 17
de setembro de 1885, antes do embarque de volta,
A emoção desse triunfo, que ecoa em festas pú- em carta ao agente italiano Polese, aquele que a
blicas, e o esforço das sucessivas sessões expõem havia acompanhado no dia da partida:
sua delicada saúde: ela sofre uma hernoptise e um
ataque de asma. Da cama, a 25 de julho, escreve Marco a data porque - escrevo com toda calma - houve
uma carta em tom de intimidade para Artur Aze- dias que acreditei... não arrastar este meu pobre eu... em-
vedo - cuja devoção pela jovem atriz já caíra no bora daqui... Em meu programa de forças eu pressenti so-
domínio público: mente a luta pessoal contra qualquer dificuldade... mas não
podia pressentir nem impedir uma desgraça independente
Desde aquela noite que jamais esquecerei... desejo escrever- da luta humana - isto é, a vida - que não depende de nós -
-lhe... Aquelas suas palavras... o entusiasmo do público... mas de Deus. Partimos, você se lembra aquele dia no porto
me faziam tão bem... e tão mal! Lembro que apertei forte as de Gênova? Partimos para uma especulação garantida pelo
suas mãos... não foi por fraqueza se então chorei. Ao ver-me nosso ofício. A saudade do nosso país... é verdade... mas a
no meio daquele tumulto, eu reencontrava o meu país... ideia da volta era tão consoladora, tão serena... não mais

152Idem, p. 61.
149 CE O País,de 18 de julho der 885, relatado por Arte Dram-
153Após uma vida de viagens, Duse falece em Píttsburgh, em
rnatica, 22 de agosto de 1885, n. 41, p. 2-3.
1924, suplicando para que não a deixassem morrer longe da Itália.
150 Do Teatro..., p. 575. Os biógrafos relatam que suas últimas palavras foram: "Vamos!
151 Em B. de Abreu, Esses Populares tãoDesconhecidos, p. 57. Devemos partir, partir!".
História do Teatro Brasileiro • volume 1

agora! A coragem, a força para o trabalho sumiram de Não há acessórios, apenas um sofá tão duro, e um tapete
mim dos meus colegas... porque perdemos um que era tão pequeno... Contudo tenho de que rir. Fiz espetáculos
digno Vir tão longe para aliviar a vida e perdê-la ... é bem ótimos e logo logo estaremos de partida'!'.
triste! Amanhã deixamos este país tão bonito... tão vene-
noso... Queria dizer mais coisas - mas há uma preguiça em No Rio, a diva protagoniza um escândalo digno
mim que não consigo expulsar. Este clima sufocante, essa dela. Numa mudança de cena da Adrienne Lecou-
beleza tropical me cansam os olhos e o espírito'>'. ureur, chicoteia uma atriz (1vlme. Noirmont, dita
"grande Berthe" em virtude de seus seios exube-
Em 26 de setembro, pela Arte Drammatica, a rantes) que à tarde lhe havia respondido com in-
atriz anuncia a decisão de interromper a sociedade solência. Conclusão: a Voix d'or é humilhada por
com Cesare Rossi para formar sua própria com- um delegado carioca que, para desespero da diva,
panhia. Em seu delírio tropical, Eleonora havia pretende interrogá-la sem c'onhecer uma palavra
consumado uma efêrnera paixão com o galã Flavio de francês! Escapa do castigo somente graças à in-
Andó, após a separação de Tebaldo Checchi, que tervenção de um cidadão influente. O episódio foi
permaneceu em Buenos Aires iniciando carreira narrado em detalhes por um panfleto assinado por
diplomática. Marie Colombier (uma atriz destinada às pontas)
Em r886, o Rio de Janeiro recebe mais uma atríz no qual ela relata "os mais memoráveis incidentes
de fama mundial: a celebrada Sarah Bernhardt, que da excursão artística feita pela ilustre Voixd.'or"15 6•
estreia a r Q de junho no Teatro S. Pedro, com Fé- Apesar dos contratempos, a temporada foi
dora, de Sardou. No repertório de viagem ela inclui um triunfo extraordinário. Sarah recebeu uma
várias peças que a plateia fluminense havia visto no louvação entusiasmada de Joaquim Nabuco, em
ano anterior, com Duse: Maítre de Forges, Dame artigo publicado no jornal O País. A certa altura,
aux Camélias) Frou-Frou, Teodora. Atraídas pelos enfatizou que a atriz, ao estrear no Rio de Janeiro,
mesmos papéis, seja por espírito de competição, "neste país, está em território intelectual de sua
seja por afinidade eletiva, as duas atrizes já concor- pátria. Em nenhum outro verificará melhor a exa-
riam então num desafio entre divas que mobilizará tidão do verso que tantas vezes ouviu em cena:
por duas décadas as cultas plateias de Londres, Pa- tout homme a deux pays) le sien etpuis la France".
ris, Nova York e das capitais da América Latina, Os nossos aplausos desde hoje dirão ao mundo
onde ambas vivem desventuras e retornam, a con- como foi recebida por nós a emissária da grande
tragosto, para estrelar com seus gênios excêntricos nação, de cuja glória fomos sempre um satélite
a ganância do star-system. Eis como Sarah descreve distante" 157. Mas a diva não parece se comover
sua primeira temporada no Rio deJaneiro: pela lendária animação da acolhida brasileira.
Nem mesmo o imperador escapa de seus ácidos
Que viagem esplêndida, que país maravilhoso! Mas a cada comentários:
alegria corresponde uma tristeza. O clima é terrível, a umi-
dade medonha. Todo mundo anda meio doente. O pobre Sua Majestade parece que é pobre demais para comprar
Berthier quase morreu de febre amarela eJarret [o agente] uma assinatura. Toda noite chega ao teatro numa carrua-
não está nada bem. Maurice [o filho] tem cuspido sangue. gem puxada por quatro mulas ofegantes. Que carruagem!
Dentro de dias partiremos para um lugarejo chamado São Tão absurda quanto seus guardas esfarrapados. Esses ga-
Paulo; dizem que lá faz muito frio. ~e ladrões sanguiná- lantes brasileiros parecem que estão sempre brincando.
rios há aqui! Ah, se a febre amarela os levasse! Segunda-
-feira apresentOPedra. Naturalmente, não entenderão nada. 155 Carta para Raoul Ponchon, do Rio de Janeiro, 27 de maio
A vida aqui é triste e feia - muito feia. Não que as pessoas de 1886, em A. Gold; R. Fitzdale, A Divina Sarah, São Paulo:
Cía, das Letras, 1991, P: 208-209.
não sejam encantadoras e meu sucesso enorme. Mas que
156 Les Voyages deSarahBernhardten Amérique, Paris: Marpon
teatro! Ratos e camundongos por toda parte. Luzes tão & Flammarion, [s.d.], p. 304.
fracas que cenas matutinas parecem ter lugar à meia-noite. °
Todo homem tem dois países, seu e depois a França. (N. da E.)
157Escritos eDiscursos Literários, São Paulo: Instituto Progresso,
154 ArteDrammatica, 17 de outubro de 1885, ano XIV, n. 49, p. r. 1949, p. 3 6-4°.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Brincam de construir casas, de abrir estradas, de apagar Apesar da gratidão, por ocasião de sua última
incêndios, de ser entusiásticos-". turnê latino-americana em 1905, Sarah impõe ao
empresário Ducci a exclusão do Brasil. Transita
Na viagem para Buenos Aires, quando falece o pelo porto do Rio, com destino a Buenos Aires,
empresário Jarret de febre amarela, vê-se obrigada entrincheirada em sua cabine, sem desembarcar
a tocar o barco. Pois bem: como Duse, fica conta- nem conceder entrevistas. Mais tarde, novamente
giada pelo delírio tropical- o delírio do capocomico. persuadida pela força do cachê, desiste da pir-
Parte à caça do milhão de francos (resultado bruto raça e se apresenta, no Politeama de São Paulo e
da bilheteria da rival italiana). Para conseguir, re- no Lírico do Rio, com um repertório romântico
nuncia ao luxo normalmente exibido em suas via- (La Dame aux camélias) Angelo, de Victor Hugo,
gens e que, com exceção de Ristorí, nenhuma atriz Hamlet na adaptação Schwebe-Merand) do qual
italiana poderia jamais permitir-se. Com essa me- ficam excluídos os títulos modernos que Rostand,
dida, o lucro aumenta: 320 mil francos após a tem- Wilde e d'Annunzio haviam lhe dedicado. Em I 5
porada de 25 sessões no Rio; 500 mil em 20 sessões de outubro, no Rio, ao interpretar o suicídio de
em Buenos Aires, com ingressos caríssimos e apesar Tosca, que se lança do Castelo Sant'Angelo, é vítima
do boicote dos jornais italianos, que a desqualifi- de acidente causado pela imperícia do contrarregra
cam como vulgar imitadora de Duse. Queixa-se e que esquecera de colocar os devidos colchões onde
jura não querer voltar nunca mais. Somente um ela devia cair. Bate violentamente o joelho direito já
fabuloso cachê de 3 mil francos por sessão, mais comprometido por contusão antiga. Traumatizada,
um terço da bilheteria, 1.000 francos por semana não permite ser visitada por médicos brasileiros
para as despesas de hospedagem e todas as viagens nem pelo médico de bordo do navio em que, com
pagas (contrato idêntico ao estipulado por Duse muita antecipação, embarca rumo a Nova York.
para a turnê russa), têm a força de convencê-la a Essa decisão custou-lhe caro: a lesão agravou-se,
fazer nova turnê ao Brasil. causando-lhe dores atrozes por dez anos, e em se-
Prevista pelo empresário Grau para 1892, a via- guida sua perna precisou ser amputada.
gem é adiada de mês em mês até junho de 1893, A relação idiossincrática da atriz com o Brasil re-
devido à crise financeira da recém-fundada Repú- vela - no avesso do glamour do estrelare - o estado
blica brasileira. A segunda permanência de Sarah de falência em que, no final do século XIX, encon-
no Rio é curta e desastrada: após suportar episódios trava-se o mercado europeu dos arares-empresários.
desgastantes, como o sumiço de sua mala pessoal Endividados pelos investimentos necessários aos
com as joias de cena, mais tarde encontradas no seus projetes estáveis (como o Théâtre de la Renais-
palco, a diva é "sequestrada" em seu navio na Baía sance para Sarah e a parceria com Gordon Craig e
da Guanabara e por pouco escapa de ser baleada, d'Annunzio para Duse) e resolvidos a não perder sua
durante a Revolta da Armada. Sua raiva, estam- independência, não lhes restava senão tentar sanar as
pada nas páginas do Figaro e comentada por Eça recorrentes crisesfinanceiras com mais uma travessia
de Queirós nos "Bilhetes de Paris" publicados pela oceânica. A favorável economia de turnê - quando
Gazeta de Noticias, soa ofensiva aos brasileiros. Sa- protegida por contrato do risco de dissipar os lucros
rah resolve pedir desculpas desmentindo os boatos em gastos desnecessários, porém exigidos pela para-
("calúnias indecentes") com um telegrama em que lela economia do estrelara, enriquecendo os agentes
declara sua "máxima admiração pelo Brasil, este locais - esbarrava, a partir da década de 1890, na
país feérico, e sua gratidão para com seu público desvalorização das moedas latino-americanas; de
de elite que duas vezes me entendeu tão bem e me modo que fabulosas receitas se convertiam em sal-
aclamou com tanto entusiasmo'T", dos mínimos e por vezes até em dívidas, uma vez
transferidas para o país de origem, sendo preferí-
158 Carta do Rio de Janeiro, [s.d.], em A. Gold; R. Fírzdale, op. vel reinvesti-las ou gastá-las in loco. A conjuntura
cit., P: 2.09.
159 Publicado pelojornaLdo Comércio em r6 de agosto der893. grama de Sarah numa das crónicas da série "A Semana". CE.Do
Machado de Assis não goStoUdo "féerico" e comentou o tele- Teatro ..., p. 602.-603.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

histórica da última década do século, por um lado, gens e decepções - do capocomico em turnê, enfa-
justifica a permanência (cada vez mais demorada ou tuado pelo fanatismo da plateia latino-americana,
em certos casos definitiva) na América do Sul de mas não a ponto de perder de vista a contabilidade:
artistas italianos acossados pela crise endêmica do
sistema produtivo da península, após a cessação das Aqui os negócios vão de bom para melhor, 8 mil liras
subvenções públicas. Por outro lado, explica o cres- por sessão, média acima dos Rossi-Duse, do Salvini e até
cente pavor dos viajantes em relação ao Brasil, então do Ernesto Rossi. Vi os borderôs. A companhia agradou,
flagelado por sucessivas epidemias de febre amarela porém... que besteira vir para a América com comple-
que afastam a burguesia endinheirada da capital. Os xos superabundantes, quando se tem um artista especial.
grandes teatros, depois do exílio do imperador, dei- Aqui, querem ver o esforço do artista e a cada noite um
xam de ser sala de visita do Rio de Janeiro até serem exploit... agora entendo, e muito bem, por que a Duse
abandonados pela plateia e esquecidos, ou excluídos, não conseguiu voltar rica para a Itália. Ah, se eu tivesse
nos roteiros de turnê das companhias estrangeiras. esquecido a modéstia e montado companhia somente
A transformação do Brasil, de paraíso com um para os meus trabalhos, estaria poupando 150 liras por
público fanático por teatro, para país maldito e até dia, com o mesmo sucesso de aplausos e de bilheteria!
"assassino': aparece com fartas anedotas na crónica [Montevidéu, 6 de agosto de 1887] Ai, que delito eu ter
das cinco viagens latino-americanas de Giovanni vindo para a América com essa companhia toda! Ai, se o
Emanuel (1887,1888,1891,1896 e 1899). Polese, empresário [Cesarino Ciacchi] tivesse falado claramente
editor da Arte Drammatica e agente de Emanuel, comigo: Emanuel, leva o mínimo indispensável! Deixa
o acompanha na primeira partida, em 1887, com para lá, Polese: o sistema da Rístorí e do Rossi é o bom
um auspicioso: para ganhar o dinheiro americano! Aqui não é preciso
mais que o mattatore e a mattatrice, com o puro necessário
vá, ó fortíssimo artista: que naqueles países distantes sai- para eles. [Navio entre Montevidéu e Rio deJaneiro, 23 de
bam que embora a nossa Itália seja humilhada por culpas junho de 1887] Outra noite fiz A Morte Civil e obtive um
alheias, ainda é a rainha da arre; vá e vença, mostrando que daqueles triunfos memoráveis. Após encher o proscênio
nessavelha Europa a arte se transforma, não morre. de Rores, se puseram a lançar ao palco... imagine! Cha-
péus, cartolas! Depois, me esperaram na praça para uma
Mas em 1899,datado último retomo do ator,o mesmo grande ovação [...] haviam iluminado todo o jardim com
Polese o acolhe - sobrevivente de uma barafunda de luz elétrica! Ao que dizem, ninguém antes de mim, nem
brigas, revoluções, epidemias e mortes - com estas homem nem mulher, havia recebido tamanha recepção.
palavras: "O desastre foi anunciado: eu mesmo, [Rio de Janeiro, 27 de julho de 1887] Aqui, viver como
pressagiador da desventura, lhe expus as condições um senhor (e não posso evitá-lo! oh raiva!) me custa o
daquele país e fiz o possível para impedi-lo. Não olho da cara! Os meus cómicos vivem em quartos de ho-
tivessejamais viajado !"160 O que havia acontecido? téis de segunda, bem tratados, e gastam bem menos. [São
Aquele doido do Emanuel, como o chamava Paulo, 8 de agosto de 1887]
Pezzana, havia dado os primeiros passos na com-
panhia de Risto ri e havia sido Hamlet, com a Duse A estreia de Otelo, com Emanuel rnattatore e
no papel de Ofélia, em 1879. Fazia concorrência Virginia Reiter, sua esposa, primadonna, se dá no
a Rossi, nos mesmos carros-chefes (a trilogia Teatro D. Pedro II, em 4 de julho de r887. Seguem
shakespeariana Hamlet-Otelo-Rci Lear, porém em Nero} Hamlet, O Casamento de Fígaro} Fedora, Frou-
tradução própria). Como Duse, Emanuel havia -Froú em benefício da senhora Reiter e, finalmente,
contraído o vírus de Ristori e desejava ser empre-: sua interpretação deA}(forte Civil, que causa "uma
sário e agente de sua própria companhia. Viveu a impressão extraordinária":
euforia e as aflições da independência e das viagens,
embarcando no universo delirante - entre mira- Naturalidade e arte se davam a mão produzindo o mais
correto, lógico e completo ensemble artístico a que assisti-
160 Arte Drammatica, 23 de abril de 1887, n. 25, P: r: e 19 de
mos até hoje. Esses intérpretes fundam uma nova escola:
agosto de 1899, n. 40, p. 3.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

desaparece o convencionalismo e o exagero, para dar mão melhor bilheteria jamais realizada no Brasil por um
à verossimilhança e à verdade. artista estrangeiro, somando 49 COntos de réis dos
[Emanuel] domina o público com os procedimentos analí- quais, tirando os cachês dos ateres, resulta um lucro de
ticos próprios de sua arte, nenhuma vez recorre aos grandes .t7 8.014 para o capocomico, sem contar os presentes.
artifícios com que outros excitam as plateias: ele sente a A travessia transoceânica torna-se então uma
personagem como se a tivesse encarnado'<'. corrida competitiva. O ano de 1888 é um contí-
nuo vaivém de companhias viajantes da Itália para
o amor pelo realismo reafirma a excelência da a América Latina, enquanto segue normal o fluxo
arte italiana. Não há comparação, dizem os críticos, de artistas de outras nacionalidades (refletindo a
entre a fantástica naturalidade de Emanuel e a disparidade numérica do fenômeno migratório,
"declamação cantada" do ater português Eduardo que registra, nos primeiros quatro meses de 1888, a
Brasão, que então se apresentava no Teatro S. Pedro chegada de 38.200 emigrantes ao porto de Santos,
com repertório parecido (Otelo e Hamlet, além do dos quais 35 mil são italianos). Em outubro, Polese
Kean de Dumas pai, seu carro-chefe). A estreia visita nove vezes o POrto de Gênova, acompanhando
triunfal de Emanuel é festejada por um coro unâ- comprimários que ele mesmo contratava com paga-
nime. Após o esperáculo, o ator saúda "a multidão mento bem mais alto do que o oferecido na Itália.
da janela" e é homenageado por um discurso de Os mattatori (Emanuel, e logo depois Roncoroni,
Luís de Castro, ao qual se seguem os brindes: Aleotti, Pasta, 1'faggi, Cuneo e Novelli, com as pri-
medonne Virginia Reiter, Clara della Guardia, Elisa
de Valentim Magalhães para Emanuel; de Emanuel para o Zangheri, Zaira Tozzi, bem recompensadas para
Brasil; de José do Patrocínio para Emanuel; de Artur Aze- evitar que desejem a independência) adiam cada
vedo para a Duse; de Emanuel para os grandes artistas que vez mais o dia do retorno. Consagra-se a convicção
o precederam em terra americana: Salvini, Rossi, Ristori, (amparada, diz Emanuel, no "uso Rístori") de que é
Pezzana, Tessero, Duse, Sarah Bernhardt, Brasão; de Ema- o grande artista quem enche as salas, não precisando
nuel para a sua Virgínia1 6 2 • de bons ateres secundários mas, sim, de um bom
empresário. De fato, quase todos os ateres da turnê
Disciplinado e fiel, o divo parece seguir cuidadosa- de 1887voltam à América Latina para tentar a sorte,
mente os passos de Rossi e ganha elogios por sua mesmo enfrentando revoluções, guerras e doenças
postura modesta: recebe os dons imperiais em nome tropicais, tudo para adquirir fama e fortuna.
da Arte Italiana; mantém-se afáveldiante do assalto dos Em 1890, é no favorável campo latino-americano
admiradores e respeitoso diante das galantarias das que Ermete N ovelli, excelente talento cómico, resolve
admiradoras; visita o túmulo de Diotti, o ator da com- enfrentar o repertório dramático. Na comédia, com-
panhia de Duse vitimado pela febre amarela, e manda pete com Coquelin ainé que, com seu prestígio de
entregar para a mãe do jovem uma rosa lá brotada; "inexcedível intérprete das obras-primas de Moliére
alforria dois escravospor ocasião de seu benefício. Em e das mais belas criações da dramarurgia francesá' I 64,
2 de setembro oferece espetáculo de gala, unindo-se havia pisado nos palcos cariocas dois anos antes. Eis
aos festejos pelo 65 2 aniversário da Independência; a estrela da Comédie Française ao chegar:
antes da partidapara Buenos Aires, uma semana mais
tarde, manda publicar uma carta de adeus aos brasi- Topei na rua com o famoso Coquelin. Mostrou-se penhora-
leiros na qual promete "conservar eterna lembrança díssimo com estarem dizendo que é o primeiro atar do século.
das muitas demonstrações de afeto e simpatia recebi- Contei-lhe que era sistema cá da terra, e que o mesmo se
das aqui no Rio, em S. Paulo, Campinas e Santos" 163• declarara, ano passado, ao festejadíssimo Emanuel. Pelo
Assim conduzida, sua temporada de 44 sessões dá a modo que sorriu, parece que já havia adivinhado'<.

161 Trechos de O PaíseJornaldo Comércio, em Arte Drammatica, 164 Carlos de Laer, Folhetim doJornaldo Comércio, Rio deJaneiro,
20 de agosto de 1887, n. 41, p. r. 17 de junho de 1888. De Molíêre, Coquelin representa Tártujfi, Les
162 N odeia em O País, reproduzida em Arte Drammatica, 3 de Précieuses ridicules eLe j\;fédécin malgrélui;maior projeção alcançam
setembro de 1887, n. 43, p. 4. peças como Le Surprises du diuorce eLa Dameaux camélias.
163 CE. Arte Drammatlca, 15 de outubro de 1887, n. 48, P: 2. 165 Idem, 27 de maio de1888.

• 293
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Menos perspicaz, o mesmo folhetinista fica a não tratemos a América de esfinge devoradora'v'".
perguntar-se por que a plateia fluminense "tão so- Em julho, no Teatro Lírico, Emanuel estreia três no-
lícita em festejar os grandes artistas italianos, não vas montagens shakespearianas (ReiLear, Romeu e
mostra igual vivacidade" para com os franceses'f", Julieta«Mercador de Veneza) que instigam a crítica a
enquanto descreve o "gelo no Teatro Imperial" e o reavaliar os superlativos atribuídos em 1890 a Maggí,
cancelamento de São Paulo da agenda de Coquelin, Rossi e Novelli no mesmo repertório. Por causa da
"porque a receita não deu para tanto". Coquelin revolução uruguaia, o atar não pode seguir caminho
havia exigido, como condição para realizar sua para Montevidéu via São Paulo e Rio Grande do Sul
breve temporada latino-americana, o fabuloso (onde também se anunciam motins); assim, quebra
cachê de 90 mil francos pré-pagos: não lhe inte- os contratos com os ateres e segue sozinho para
ressava entrar na concorrência dos italianos. Não Valparaíso. A decisão enfurece o agente Polese que
surpreende que, em tais condições, Novelli seja havia fechado os acordos. Reunida nova companhia
consagrado pela imprensa carioca "superior"I67 a com Cesare Rossi (ex:-capocomico de Eleonora Duse),
Coquelin e exaltado como "o Yorick moderno, o Emanuel volta ao Brasil em agosta de 1896 quando,
gênio eminentemente dramático de nossos tem- passando por São Paulo, esbarra na "caça aos italia-
pos, magistral no estudo e reprodução das paixões nos": uma verdadeira guerra racial que deixa dois ata-
extremas'T". Sua estreia no Teatro Lírico, em I 6 de res feridos e o agente Polese indignado, prometendo
julho de 189 o, com aA Morte Civil, é "um sucesso vingança e pedindo justiça ao governo brasileiro por
colossal". A temporada, contudo, interrompe-se via consular, pois o governo italiano já "não faz conta
abruptamente em 15 de agosto, quando a compa- nenhuma dos artistas, pobres histriões"?"; Mesmo
nhia regressa a Buenos Aires por causa do estado assim, Emanuel resolvehonrar os seus compromissos
sanitário declarado emergencial no BrasiL Vinte no Rio de Janeiro e encara a recusa da primadonna
e um atares, os quais haviam sido forçados por Riccardini como uma rebelião. Multa-a em 40 mil
cláusula contratual a seguir Novelli até o Rio de réis por ter faltado ao ensaio e, apesar da interven-
Janeiro, são obrigados a cumprir a quarentena na ção do cônsul italiano, exige que a atríz ceda seus
Ilha Grande. Apesar desse grave problema, Co- papéis para uma primadonna estreante, mas dotada
quelin, em sua segunda temporada brasileira, dá de outras qualidades: Nella Montagna, que Coelho
espetáculos no Teatro Lírico entre I I de agosto Neto descreve como "uma mulher alta e branca de
e 9 de setembro. neve em cuja alvura realçava o negror dos olhos e dos
Em 189 I, o Rio de Janeiro já tem o estigma de cabelos; uma divina carne, uma flor de volúpia, um
"infausta cidade" no imaginário coletívo, após o estimulante lúbrico dos sentidos"?'. Sobra mais um
falecimento, por febre amarela, de dois ateres da problema para o já furioso Polese, que deve indeni-
Companhia :Maggi,que imediatamente abandona a zar a atriz expulsa. Emanuel fica sem apoio daArte
cidade enquanto outras cancelam os seus compromis- Drammatica, que passa a desencorajar os atares dese-
sos brasileiros. Contudo, tratando-se do único país
169 No total de 26 companhias que visitaram o Brasil, com cerca
cuja moeda, retribuída em ouro, ainda vale os riscos de 6)0 pessoas, houve "só" sete mortos, contabiliza Arte Dram-
da travessia, aquele "doido" do Emanuel, que havia matica, em 20 de junho de 1891. Por outro lado, como informa
Emanuel aPolese em carta de 30 de janeiro de 1899, "não se pode
passado dois anos viajando pela América Latina em ir ao Brasil em dezembro, janeiro e fevereiro, mas no inverno não
busca de palcos virgens, faz questão de voltar, mesmo há perigo nenhum; a prova é que eu estive lá três vezes e nada
aconteceu".
que na contramão, ostentando tranquilidade e ini-
170 Arte Drammatica (24 de outubro de 1896, n. 49, p. 2-3; e
cialmente apoiado pelo agente Polese, que declara: 29 de agosto de 1896, n. )2, p 2) recolhe o testemunho do ater
"Não exageremos! Choremos nossos mortos, mas Amerigo Cuasrí, um dos feridos que conta ter sido assaltado,
ferido e roubado pela polícia nas ruas da cidade, esvaziada pe-
los conflitos. Tudo começou com a injúria feita por estudantes
brasileiros à bandeira italiana, fato que provocou a reação dos
atares, reprimida pela polícia. Vendo-se protegidos, os brasileiros
166 C. de Laer, Folhetim doJornal do Comércio, Rio de Janeiro, invadiram o teatro durante a representação de Otelo (em bene-
17 de junho de 1888. fício do Hospital Italiano), aos gritos de "Morte à Itália" e "Fora
.167 Arte Drammatica, 19 de julho de 1890, n. 38, P: 2. os artistas italianos':
168 Idem, 23 de agosto de 1890, n. 42, p. r. 171 L. Silva, Históriado Teatro Brasileiro, P: 380.

• 294
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

j ososde partir e a defender os que se recusam a seguir obrigadas a viajar para o interior à procura de
o capocomico em situações precárias. Apesar das pre- outras praças, ou porque ficavam sem espaço para
visões desfavoráveis, em maio de 1899 o artista volta atuar, ou porque, caso conseguissem algum, não
a embarcar rumo a Manaus. A sucessiva falta de no- tinham público suficiente para o pagamento das
tícias inquieta as famílias dos atores: doentes, ficam despesas. Rigorosamente, só permaneciam no Rio
impossibilitados de desembarcar. Um deles, pratica- de Janeiro as companhias dramáticas especializadas
mente fugindo de Emanuel (nessa altura conhecido no chamado teatro ligeiro - operetas, mágicas e
nos jornais italianos como Robespierre, Shylock etc.), revistas de ano - que sempre teve o seu público
com a ajuda do comandante do navio regressa "del- fiel. Assim, outra consequência perversa deu-se no
gado e amarelo" em junho: declara que em Manaus terreno do repertório. Enquanto os artistas euro-
não havia carne nem água potável e, sem dinheiro e peus representavam comédias julgadas refinadas,
com todo o necessário caríssimo, a companhia comia tragédias de Shakespeare e dramas modernos de
tartarugas'>. Em agosto, a notícia do falecimento de Dumas Filho ou Sudermann, os artistas brasileiros
dois atores da companhia estoura uma crise diplomá- encenavam peças ligeiras de produção nacional ou
tica. Polese acusa Emanuel de "especular com a vida portuguesa - sem contar as traduções do repertório
dos outros, de assassinar por dinheiro"!". Associado julgado de segunda categoria - dirigidas ao grande
ao pesadelo do tÚmulo esquecido em terra distante, público que queria se emocionar com o dramalhão
o Brasil do final do século é um Eldorado renegado: ou se divertir com a farsa e o teatro musicado.
"que país do ouro o que, se te custa a vida!"174 Ainda Os artistas portugueses, que jamais fizeram som-
em 1907, aArte Drammatica enfatiza aos seus sócios: bra aos italianos e franceses, foram os primeiros a
explorar a "praça' do Rio de Janeiro. Mas desde o
Não vão ao Brasil! É uma infâmia! Todas as companhias início do século XIX, até por causa da identidade
que lá foram, deixaram mortos. Levar ateres inconscientes linguística, o fenômeno mais comum foi a sua per-
ao massacre é delito! Não vão arriscar a vida por dinheiro! manência no território brasileiro. Não foram poucos
Lembrem-se, naquele país há perigo de morte-". os que não voltaram a Portugal e se consagraram
em nossos palcos, como Ludovina Soares da Costa,
nos temposde joão Caetano; Furtado Coelho, Ga-
Estrangeiros vs Nacionais briela da Cunha e Adelaide Amaral, que brilharam
no Teatro Ginásio Dramático; Lucinda Simões,
Nos últimos trinta anos do século XIX, o teatro grande intérprete realista dos anos de 1870 e 188 o.
brasileiro viveu uma situação paradoxal: por um Num capítulo dedicado aos principais artistas
lado, contou com o brilho de espetáculos realizados portugueses que estiveram no Brasil, o historiador
por grandes artistas italianos e franceses; por outro, do nosso teatro, Lafayette Silva, arrola nada menos
não viu surgir um grande intérprete para o drama que 37 nomes, revelando mais alguns dados curio-
I77.
ou a criação de uma dramaturgia com as mesmas SOS Por exemplo: a temporada da atriz Emília das
características daquela que era apresentada em Neves, em 1864-1865, durou oito meses! O ator
cena. Como observou Décio de Almeida Prado, cómico José Ricardo "atravessou o Atlântico treze
"a concorrência que os elencos estrangeiros, os vezes para trabalhar no Brasil': superando a marca
melhores do mundo latino, faziam aos nacionais de Eduardo Brasão, que fez sete viagens. A verdade
era devastadora'T". Quando os artistas europeus é que vários artistas e alguns empresários portu-
chegavam ao Rio de Janeiro, as companhias dra- gueses (como Sousa Bastos, que se notabilizou no
máticas que não tinham o seu próprio teatro eram Brasil e em Portugal como empresário ligado ao
teatro cômico e musicado) dividiram-se entre os
172 Arte Drammatica, 4 de março de 1899, n. 16, P: 4. dois lados do oceano, passando longas temporadas
173 Idem, 19 de agosto de 1899, n. 40, p. I. ora em um ora em outro país. Enquanto artistas
174 Idem, 23 de setembro de 1899, n. 45, P: 2.
175 Idem, 7 de setembro de 1907, n. 34, p. 4·
176 HistóriaConcisa do Teatro Brasileiro, P: 143. 177 Históriado Teatro Brasileiro, p. 315.

• 295
História do Teatro Brasileiro • volume 1

como Lucília Simões (filha de Lucinda), Cristiano brochasse, produziram o efeito diametralmente oposto. O
de Souza, Chabi Pinheiro e Eduardo Brasão busca- público não perdoa aos nossos aurores não serem Shakes-
vam um árduo reconhecimento com um repertório peares e Molíêres: não perdoa aos nossos atores não serem
de peças de algum valor literário, como as de Ibsen Rossis e Novellis; não perdoa às nossas atrizes não serem
e Émile Zola, outros, como o ator cómico Taborda, Ristorís, Sarahs e Duses l 78•
Palmira Bastos eJosé Ricardo, sintonizados com o
gosto popular da comédia rasgada e do teatro de
revista, encontravam imediata receptividade. Fa-
ziam sucesso também as companhias espanholas de
zarzuelas e as companhias francesas e italianas de 5. O NATURALISMO:
operetas, dando sequência aos êxitos desse gênero, DRAMATURGIA E ENCENAÇÕES
consagrado no Alcazar Lírico do Rio de Janeiro já
a partir de I 8 65, com a encenação do Orphée aux
enfers de Offenbach. Com bom humor, Décio de Almeida Prado es-
O enorme sucesso desse repertório diversifi- creveu que o teatro naturalista não prosperou no
cado era visto pela elite intelectual como sintoma Brasil porque depois de trinta anos dos dramalhões
da decadência do teatro no Brasil, implicando no do teatro romântico e de dez anos de peças sen-
desaparecimento dos chamados gêneros "sérios". O tenciosas, edificantes, do teatro realista, "o povo
fenómeno criou uma falsa percepção da produção queria descansar, rir, ver mulheres bonitas, ouvir
da cultura nacional como de um fato intimamente canções maliciosas e ditos picantes, tudo envolto
ligado à presença de artistas estrangeiros em nos- num enredo cuja principal exigência era não dar
sos palcos; percepção paradoxal que deverá fazer trabalho ao cérebro"?".
com que se norteie também a "renovação" da cena De fato, a hegemonia absoluta do teatro cómico
moderna brasileira, nas décadas de I940 e I950, e musicado nas últimas três décadas do século XIX
pelo imprescindível olhar estrangeiro. Entretanto, ofuscou de tal modo as poucas realizações de caráter
a exuberância da vida teatral no Rio de Janeiro e em naturalista que estas nunca foram levadas em conta
menor escala em São Paulo, nos últimos três decê- pelos nossos historiadores e críticos'!". Já em I9 I 6,
nios do século XIX, quando os brasileiros puderam na primeira edição da sua História da Literatura
desfrutar do que havia de melhor no teatro europeu, Brasileira, José Veríssimo observava que o natura-
foi tamanha que fez com que prevalecessem outros lismo "não produziu nada de distinto" no teatro
significados, implicados nas viagens dos grandes ar- e que escritores como Artur Azevedo, Valentim
tistas: a disputa de excelência entre a escola italiana Magalhães, Urbano Duarte, Moreira Sampaio, Fi-
e a francesa; a politização patriótica do repertório gueiredo Coimbra, Orlando Teixeira e outros, "sem
shakespeariano, franqueado do estigma melodra- maior dificuldade trocaram as suas boas intenções de
mático e apropriado pelo realismo; a ascensão e fazer literatura dramática (e alguns seriam capazes de
queda do mito do Eldorado americano, devido às fazê-la) pela resolução de fabricar com ingredientes
transformações históricas produzidas pelas crises próprios ou alheios, o teatro que achava fregueses:
sanitária, política e financeira do Brasil na virada do revistas de ano, arreglos, adaptações, paródias ou
século XIX para o XX. O balanço final feito por Ar- também traduções de peças esrrangeiras"I8I.
tur Azevedo, porém, apontou os prejuízos causados
ao teatro brasileiro pela maciça presença estrangeira 178 CE. Revistade Teatro, Sbat, n. 3 I2., nov/dez. 1959, p. 8.
179 A Evolução da Literatura Dramática, em Afrânio Coutinho
em nossos palcos. Em maio de I900 escreveu um (dir.), A LiteraturanoBrasil, 2. ed., v. 6, Rio de Janeiro: Sul Ame-
artigo para O País, no qual observou: ricana, 1971,P' 18.
180 Para maiores informações sobre o naturalismo teatral no Bra-
sil, ver João Roberto Faria, O Naturalismo, em IdéiasTeatrais: o
o Rio de Janeiro tem sido visitado por algumas sumidades Século XIX no Brasil, p. 187-261 e também p. 613-677, do qual
da arte dramática, universalmente consagradas; mas essas este capítulo é uma versão abreviada.
181 Históriada LiteraturaBrasileira, 5. ed., Rio de Janeiro: José
visitas, longe de concorrer para que o teatro nacional desa-
Olympio, 1969,P' 258.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

A pesquisa nos jornais da época revela, porém, Nos meses de abril, maio e junho de 1878, O
que as realizações de caráter naturalista não estive- Primo Basílio foi um dos assuntos predíleros da im-
ram de todo ausentes dos palcos brasileiros, seja por prensa do Rio de Janeiro. E ao lado dos artigos sérios
iniciativa de artistas locais, seja pelos espetáculos surgiram os inevitáveis poemetos satíricos, cartas
trazidos pelas companhias estrangeiras que nos vi- de leitores, pequenas paródias e charges nos jornais
sitavam regularmente. Além disso, essas realizações humorísticos, como O Besouro, dirigido na ocasião
foram comentadas na imprensa, provocando refle- por Bordallo Pinheiro. Até mesmo um "a-propósito"
xões, debates e polêmicas que envolveram os nossos cômico em um ato, assinado por um jornalista de
principais escritores e intelectuais do período. Ou prestígio, Ferreira de Araújo, foi encenado no dia
seja, a presença do naturalismo teatral nos palcos 27 de maio. Tudo ajudava na divulgação do livro,
brasileiros não foi tão desprezível, se considerada inclusive - ou principalmente - as críticas contrá-
por alguns prismas específicos, tais como as ence- rias, que condenavam as suas passagens mais picantes
nações e sua recepção pelos críticos teatrais e pelo e escandalosas. A cada acusação de imoralidade, no
público, o envolvimento de escritores e intelectuais entanto, multiplicavam-se os leitores, curiosos para
na produção de textos e espetáculos, e as discussões conferir o que se dizia nos jornais.
teóricas e críticas que nasceram nesse contexto. É evidente que o ator e empresário teatral Fur-
tado Coelho quis aproveitar a repercussão obtida
pelo romance para adaptá-lo à cena. Se os volumes
A Introdução do Naturalismo no Brasil se esgotavam nas livrarias, pareceu-lhe lógico su-
por que a adaptação atrairia muita gente ao Teatro
O primeiro espetáculo teatral baseado num texto Cassino. Além disso, Furtado Coelho e Lucinda Si-
de cunho naturalista estreou no dia 4 de julho de mões eram artistas de grande prestígio, experientes
1878: uma adaptação de O Primo Basílio, feita como intérpretes de peças realistas. E a adaptação
por Antônio Frederico Cardoso de Meneses e en- havia sido confiada a um jovem de reconhecido
cenada por Furtado Coelho, no Teatro Cassino. O talento artístico, bacharel em direito, folhetinista,
romance de Eça de Queirós havia chegado ao Brasil músico e, não bastassem esses atributos, filho do
três ou quatro meses antes, conseguindo enorme presidente do Conservatório Dramático, João
repercussão. A imprensa do Rio de Janeiro divi- Cardoso de Meneses. Pois nem a conjunção desses
diu-se entre opiniões favoráveis e contrárias e não fatores positivos ajudou a carreira da "peça realista
foram poucas as discussões sobre o livro no meio em cinco aros e nove quadros" - conforme se lê nos
intelectual. São bastante conhecidos os dois artigos anúncios dos jornais da época - que subiu à cena.
de 1vlachado de Assis, publicados no jornal O Cru- Ao cabo de cinco ou seis representações, saiu de
zeiro, nos quais atacou O Primo Basílio e a filiação cartaz, sem ter conseguido a aprovação da crítica
naturalista do escritor português. Em sua argumen- especializada ou do público.
tação cerrada, Machado, oculto pelo pseudônimo O fracasso parece ter ocorrido por conta da inex-
Eleazar, criticou veementemente o enredo folheti- periência de Cardoso de Meneses, que não conseguiu
nesco, a construção da personagem Luísa, que lhe vencer as dificuldades de se transpor um romance
pareceu um "títere': as descrições exageradamente como O Primo Basílio para o palco. O espetáculo
minuciosas, o mau gosto de certas passagens e o resultou monótono e não entusiasmou nem mesmo
erotismo desabusado da ação romanesca. Mas Eça os admiradores de Eça de Queirós. Na Gazeta de
de Queirós teve vários defensores. Na Gazeta de Notícias de 6 de julho de 1878, por exemplo, S. Sa-
Notícias, por exemplo, Henrique Chaves e Ataliba raiva voltou a elogiar o livro, reservando as críticas
de Gomensoro, sob os pseudônimos de S. Saraiva e unicamente à adaptação. A seu ver, desde o primeiro
Amenophís-Effendí, polemizaram com Machado,
escrevendo textos em defesa do romance". Século XIX, deJosé Leonardo do Nascimento (São Paulo: Unesp,
2008) e O PrimoBasílio e a Batalha Realista no Brasil, de Paulo
182 Sobre a polêrníca desencadeada pelo romance de Eça de Franchetti, EstudosdeLiteraturaBrasileira ePortuguesa, Caria:
Queirós no Brasil, ver: O PrimoBasíliona Imprensa Brasileira do Areliê, 2007, p. 171-191.

• 297
Historia do Teatro Brasileiro • volume 1

até o último quadro, "a ação da peça marca passo, com que havia tratado o romance. No mesmo jornal
não há uma comoção, não há uma crise, não há, en- O Cruzeiro, comentou em poucas linhas que não
fim, coisa alguma que interesse ao espectador". As ficou surpreso com o ocorrido, primeiramente por-
qualidades narrativas do romance desapareceram em que "em geral as obras geradas originalmente sob
cena e nem mesmo as passagens mais ousadas do uma forma, dificilmente toleram outra"; e depois
pontO de vista da sexualidade puderam ser aproveita- "porque as qualidades do livro do sr. Eça de Queirós
das, porque a censura interferiria. O folhetinista do e do talento deste, aliás fortes, são as mais avessas ao
Jornaldo Comércio, Carlos de Laet, escreveu no dia 7 teatro" 183. É uma pena que Machado não tenha apro-
de julho que a falta dessas passagens desagradou aos fundado essa segunda observação, que sugere uma
que foram ao teatro à procura de escândalo: certa impossibilidade de acomodar adequadamente
à cena todos os aspectos de um romance naturalista,
Esperavam ver à luz do proscênio todas as torpezas mal ideia que será partilhada nos anos seguintes por
veladas pela livre pena do romancista, mas que no drama muitos críticos e intelectuais. De qualquer modo,
seriam o caso de apitar pela força pública. Sonhavam uma concluía o escritor, com uma ponta de maldade, o
priapeia e acharam-se frente à frente com uma inofensiva mau êxito cênico de OPrimoBasílio não prejudicava
jeremiada; nitro em vez de cantáridas. nem o romance nem o realismo a que se vinculava:
"a obra original fica isenta do efeito teatral; e os rea-
De um modo geral, os folhetinistas criticaram listas podem continuar na doce convicção de que a
também as modificações introduzidas no enredo. última palavra da estética é suprimi-Ía'T".
Cardoso de Meneses criou uma personagem francesa Tudo indica que em I 878 o termo "naturalismo"
que não existe no livro e a fez falar francês o tempo não estava ainda em voga no Brasil. Assim como não
todo, solução ultrarrealista que foi considerada um aparece nos anúncios dos jornais, não é utilizado
despropósito. As restrições mais fortes dirigiram-se nos vários textos críticos que se ocuparam seja do
para o desfecho da peça. Se no livro Jorge fica mais romance, seja da peça teatral. Todos usaram de prefe-
preocupado com a saúde de Luísa do que em puni-la rência o termo "realismo" ou ainda "ultrarrealisrno"
pelo adultério, na peça Luísa cai fulminada à vista em seus textos, como se pode observar nos artigos
da carta reveladora de seu crime e Jorge joga para o de Machado de Assis. É certo, porém, que o escritor
lado um punhal, exclamando: "Nem Deus perdoa a brasileiro queria referir-se ao novo movimento lite-
mulher adúltera". S. Saraiva denominou esse desfe- rário francês, uma vez que Eça de Queirós é tratado
cho uma "deslealdade literária': uma vez que alterava como fiel discípulo de Émile Zola.
profundamente o caráter da personagem. Entre as O debate em torno do romance e da adaptação
críticas mais contundentes à adaptação de O Primo teatral teve algumas consequências imediatas, entre
Basílio destaca-se a que foi publicada no jornal hu- as quais a divulgação do naturalismo no Brasil e o in-
morístico OBesouro, no dia 13 de julho. Oculto pelo teresse crescente pela obra de Zola, até então conhe-
pseudônimo Santier, o jornalista definiu a adaptação cido apenas numa pequeníssima roda de escritores e
como um "desacato literário" e arrematou: intelectuais. Curiosamente, foi O PrimoBasílio que
abriu as nossas portas ao escritor francês, que logo
De um romance realista, cujo principal mérito está na ob- influenciaria toda uma geração de brasileiros. Já em
servação, no estudo, no desempenho dos caracteres, fez o 1879, segundo um estudioso do assunto, as livra-
dr. Meneses um reles melodrama insípido, sem ação, sem rias do Rio de Janeiro tinham à venda os romances
graça, sem verve. Se não fosse publicado o nome do autor, I:Assommoir, 'Ibérése Raquin, Le Ventre deParis, La
todos julgariam o drama, a comédia, a farsa, ou o que quer Fautede l'abée Mouret e Nana/":
que é, oriunda da pena de um idiota.

183 Machado de Assis, Do Teatro..., P: 562.


O fracasso de O Primo Basílio foi tão estron- 184 Idem, p. 563,
doso que Machado de Assis não sentiu necessidade 185Cf.Jean-Yves Mérian,AluísioAzevedo, Vida e Obra (r857-
I9I3), Rio deJaneiro: Espaço e Tempo/Banco Sudameris; Bra-
de voltar ao assunto com os termos contundentes
sília: INL, I988,p. 187.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Zola nos Palcos Brasileiros a passo; situei o drama no mesmo quarto úmido e escuro,
para nada perder de seu relevo, nem de sua fatalidade; es-
o sucesso de Zola como romancista não poderia colhi comparsas idiotas e inúteis, para realçar nas angús-
deixar de repercutir no teatro. Em junho de 188 o, o tias atrozes de meus heróis a banalidade da vida cotidiana;
ator e empresário Furtado Coelho, sempre à procura procurei trazer o tempo todo para o palco as atividades
de novidades, e agora à frente do Teatro Lucinda, corriqueiras das minhas personagens, de modo que elas não
manda anunciar nos jornais o esperáculo do dia 26: representem,mas vivam diante do públíco-".
Teresa Raquin, "amais notável peça do célebre escri-
tor Emílio Zola, chefe da escolanaturalista, tradução Nem os críticos nem o público aceitaram essas
do distinto poeta Carlos Ferreira". Nessa altura, o novidades. O desejo de introduzir a realidade no
nome de Zola e o movimento literário que lidera já teatro e fazer da cena o espelho fiel da vida não
são bem mais conhecidos em nosso meio intelectual. se realizou com Tbérêse Raquin, drama sombrio
E entre os jovens o "bando de ideias novas" - para que reproduz com poucas alterações a trama do
usar a feliz expressão de Sílvio Romero - que vem romance, centrada no assassinato de Camille pela
junto com o naturalismo tem grande aceitação. esposa 'Ihérese e seu amante Laurent,
Nesse clima, a versão brasileira de Tbérése Raquin No Brasil, Furtado Coelho não levou em conta o
faz relativo sucesso no Teatro Lucinda, atingindo fracasso da encenação francesa e montou Tbérêse Ra-
doze representações seguidas e algumas outras nos quin com capricho, apostando certamente que uma
meses seguintes. Claro que em termos de bilheteria peça de Zola despertaria a curiosidade do público.
esse número era pequeno, se comparado com certas Os elogios à montagem, ao seu desempenho e ao de
operetas ou peças aparatosas, que chegavam por ve- Lucinda Simões foram praticamente unânimes. Um
zes a uma centena de representações. Mas o caminho folhetinista que não gostou da peça chegou a afirmar
para outras obras de cunho naturalista estavaaberto. que a boa receptividade junto ao público era mérito
Como se sabe, foi o próprio Zola quem adaptou exclusivo da encenação. O realismo do cenário e
o romance Tberése Raquin para o teatro, em 1873. principalmente da caracterização das personagens
A encenação em Paris, no entanto, resultou num também não passou despercebido. O folhetinista
enorme fracasso, frustrando os planos do escritor, anônimo do jornal Pena eLápis observou, no dia 3
que pretendia alargar o raio de ação do movimento de julho de 188 o, que Lucinda Simões
naturalista. No prefácio que escreveu para a peça,
ele deixou claro que foi movido pela "vontade de compreendeu o papel de Teresa... compreendeu demais tal-
ajudar no teatro o enorme movimento de verdade e vez, porque chega a repugnar aos espectadores, principal-
de ciência experimental que desde o século passado mente àqueles que a conhecem como modelo de distinção,
se propaga e cresce em todos os aros da inteligên- espírito e elegante reserva.
cia humana'T", A seu ver, o movimento naturalista
logo se imporia ao teatro, acabando com as velhas Em suas memórias, a atriz conta como compôs a
convenções que impediam o drama de se tornar personagem adúltera e assassina:
um documento da realidade. Tbérése Raquin fora
uma primeira tentativa, já trazendo em seu bojo Fui para o camarim ao começar a sinfonia e atendendo ao
uma série de inovações: gênero do papel, não me arranjei. Desarranjei-me. Ajeitei
desgraciosamente o cabelo, carregando a fisionomia pelo
A ação não estava mais em uma história qualquer, mas nos penteado, sem auxílio de pintural 88.
combates interiores das personagens; não havia mais uma
lógica de fatos, mas uma lógica de sensações e de sentimen- Nos principais jornais do Rio de Janeiro, os co-
tos; e o desenlace tornava-se um resultado aritmético do mentários foram em geral mais favoráveis à monta-
problema POSto em cena. Assim, eu segui o romance passo
187 Idem, p. 10.
188 Memorias, Fatos eImpressões, Rio deJaneiro: Tip. Fluminense,
186 É. Zola, Tbeâtre, Paris: Charpemier, 1 878, p. 5. I9 2 2,p.I3 8.

• 299
História do Teatro Brasileiro • volume 1

gem da peça do que ao texto de Zola. O naturalismo da senhora Raquin no exato momento em que Lau-
era evidentemente um movimento literário novo e rent lembra a Thérêse que provocaram a queda de
ousado, que escandalizava muita gente com seus te- Camille no rio Sena é cena típica das velhas peças
mas, situações, personagens e linguagem mais solta. condenadas por Zola. E que dizer do desfecho, no
No dia 28 de junho, dois dias depois da estreia de qual a senhora Raquin, que ficara paralítica e muda
Tbérése Raquin, podia-se ler na seção "Gazetilha' ao saber do crime, se levanta e acusa os assassinos
do Jornal do Comércio que os romances naturalistas de seu filho?
"tornaram-se um perigo no seio das famílias" e que Tbérése Raquin "não é um mau drama", diz S.
adaptá-los ao teatro significava trazer para a cena Saraiva, mas também não é o novo drama natu-
"essaliteratura bastarda que nada respeita, que desce ralista, como queria o autor. Para o folhetinista,
à linguagem dos prostíbulos e abre-lhes as portas as dificuldades enfrentadas por Zola provinham
para que os transeuntes possam ver a gangrena que da impossibilidade de transplantar para o teatro
corrói a classemais abj eta" Nesse mesmo dia, na seção os processos narrativos do naturalismo. Assim, o
"Teatros E ..." da Gazeta de Notícias, a peça de Zola romancista era visto como um
era comentada com razoável simpatia. Não falta-
ram elogios aos dois primeiros aros e toda a segunda observador escrupuloso, que não perde o menor movi-
parte do terceiro ato foi considerada "excelente". A mento, a quem não escapa a mais pequena minúcia, como
observação mais rica do articulista dizia respeito ao se tivesseaplicado ao interior do homem um microscópio
desempenho de Lucinda Simões, que teria feito vi- fiel, que lhe transmitisse as alterações por que ele passa,
brar "a corda propriamente realista" do espetáculo, segundo as impressões que recebe.
Gostassem ou não os críticos, o drama realista só
poderia ser representado como o fez a atriz: Já no teatro os processos são outros. Não há necessi-
dade de tantas observações, mesmo em se tratando
Nem respiração ofegante nos momentos solenes, nem voz de teatro realista, mas apenas daquelas necessárias
entrecortada por soluços a compasso, nada do que ficou "para determinar um tipo ou o caráter de uma
da tradição do antigo dramalhão para os grandes lances; personagem". Exemplificando com personagens de
simplesmente a expressão do sentimento na voz, no rosto, Moliêre, como Harpagão e Tartufo, o folhetinista
no gesto, sentimento que se transmite ao espectador, sem conclui que a percepção que se tem de uma perso-
que o artista o previna com uma pausa que quer dizer: aí nagem no teatro é mais "instantânea': enquanto a
vai cena comovente. personagem de um romance se constrói mais len-
tamente, exigindo do leitor o acompanhamento
Entre os comentários suscitados pela peça, me- da descrição metódica e progressiva de seu caráter.
rece destaque o que foi publicado no "Folhetim" Por fim, outra observação relevante de S. Saraiva
da Gazeta de Notícias de r.2 de julho. Embora sem diz respeito à ação dramática de Thérêse Raquin. Se
assinatura, o jornal havia anunciado dias antes é certo que nos dois primeiros aros são observadas
que seria escrito por S. Saraiva - pseudônimo de as exigências do naturalismo, com a reprodução
Henrique Chaves, como se sabe -, que já havia par- da vida em família e com a criação de tipos como
ticipado da polêmica sobre O Primo Basílio. Seu Grivet e Míchaud, há que se considerar que a mo-
ponto de partida para fazer restrições à peça é a notonia tomaria conta da peça se não ocorressem
incoerência de Zola, que teria sido naturalista ape- fatos para despertar a atenção do espectador. É que
nas nos dois primeiros ates, servindo-se nos outros "o brilho da verdade no teatro': diz o folhetinista,
de convenções e jicelles dos velhos dramalhões. O "se não for encandecido pelo calor de uma situação
folhetinista tinha razão. No terceiro ato, na noite anormal, não reluz, fica baço, opaco".
de núpcias de Thérêse e Laurent, o retrato de Ca- As observações de S. Saraiva são importantes,
mille na alcova não só é um contrassenso como um porque prenunciam discussões do mesmo teor,
recurso fácil para o recrudescimento do remorso que ocorrerão no meio intelectual brasileiro nas
que corrói a alma das duas personagens; a entrada duas últimas décadas do século XIX. Como a

• 30 0
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

dramaturgia naturalista dependerá inicialmente de elogios aos desempenhos dos artistas, destacando
adaptações de romances, sofrerá restrições, tanto as cenas em que mais exibiam o seu talento, e à sua
na França quanto no Brasil, seja pelo inevitável própria realização em moldes naturalistas:
enfraquecimento no palco do argumento original,
seja pelas concessões aos recursos convencionais do Pelo que respeita o desempenho da obra, a interpretação
drama antigo e adulterações no enredo ou no cará- que lhe deu a companhia dirigida pelo sr. Guilherme da
ter das personagens. Silveira é, no conjunto, uma das mais notáveis que temos
Em 188 I, encorajada pelas notícias que vinham visto no Rio deJaneiro. Diálogos travados com vivacidade,
da França, a respeito do enorme sucesso das adap- cenário apropriado, uma exagerada minudência em todos
tações teatrais dos romances .LAssommoir e Nana, os acessórios; enfim todos os pormenores exigidos pelos
a atriz e empresária Ismênia dos Santos resolveu naturalistas os mais intransigentes foram no teatro S. Luís
encená-las no Rio de Janeiro. Com direção artística inteiramente respeitados.
do ator e ensaiador Guilherme da Silveira, ambas
tiveram praticamente o mesmo número de repre- No mesmo Jornal do Comércio, um dia depois,
sentações atingido por 'Iberése Raquin, entre doze o folhetinista Carlos de Laet não teve qualquer
e quinze, o que significa para a época uma acolhida condescendência para com a adaptação. Reservou
não desprezível. Além disso, foram amplamente duas linhas para recomendar o espetáculo, porque
discutidas na imprensa. o desempenho dos artistas e a encenação eram de
Lâssommoir estreou no dia 28 de abril de 188 I, boa qualidade, mas no restante do texto arrasou o
no Teatro S. Luís, na tradução do jornalista Ferreira trabalho de Busnach e Gastineau. Curiosamente,
de Araújo. Ismênia dos Santos interpretou o papel se por um lado o folhetinista demonstrava não ter
de Gervaise, Eugênio de Magalhães o de Coupeau nenhuma simpatia pelo naturalismo, por outro
e, muito jovem ainda, Apolônia Pinto encarregou- criticava justamente as concessões da adaptação, o
-se do papel de Virginie. "recuo" que era o espetáculo em relação às ousadias
Os artigos suscitados pela encenação brasileira do romance. Provocador, observou que a plateia sus-
permitem avaliar não só a recepção da crítica e do pendeu a respiração na famosa cena da lavanderia,
público ao espetáculo, como também o posicio- esperando ver em seu desfecho "a realização da
namento do meio intelectual em relação ao natu- suprema aspiração naturalista': mas logo depois se
ralismo. No Jornal do Comércio de 30 de março, decepcionou com a solução sugerida pelos adap-
por exemplo, o redaror da "Gazetilha" revela que o tadores. Em palavras mais claras, o drama não
romance.LAssommoir tinha "fama de imoralidade" leva a briga entre Gervaise e Virginie às últimas
e que isso poderia afastar as famílias do Teatro S. consequências, o que implicaria mostrar a nudez
Luís. Cumpria então o seu papel de jornalista, in- da segunda. No palco, as lavadeiras fazem um cír-
formando que o drama estava "escoímado de todas culo com as duas mulheres no meio, impedindo a
as fezes do livro" e que, por combater o vício do visão dos espectadores, e apenas as gargalhadas do
alcoolismo, era obra de "alta moralidade". De fato, empregado Charles sugerem o que se passa. Para
nem mesmo Zola negava o alcance moralizador o folhetinista, esse movimento no palco ocorre
da adaptação, aspecto que a aproximava das peças "exatarnente quando o naturalismo triunfante de-
que combatia, de Émile Augier ou Dumas Filho. O verá cravar a sua bandeira nas derrocadas ameias do
redator da "Cazerilha' observou também que o des- velho convencionalismo romântico".
fecho era bastante convencional, com a morte dos O que se percebe no texto provocativo de Car-
vilões, e que asficelles do velho teatro o surpreende- los de Laet é a cobrança de uma coerência talvez
ram, pois não esperava a sua utilização numa peça impossível para ~ época: a transposição para a cena
que chegava ao Brasil com o selo do naturalismo. De das passagens mais polêmicas do romance, justa-
qualquer modo, a encenação o agradou. Ainda que mente as que provocaram escândalos e acusações
o espetáculo produzisse no público "uma impres- de imoralidade a Zola e ao naturalismo. Mas se não
são estranha e desconhecida", recomendava-o com fosse assim, qual seria a novidade introduzida pelo

• 30 1
Historia do Teatro Brasileiro • volume 1

novo movimento literário no teatro? Nenhuma, Entretanto, se na divisão dos quadros não foram muito
responde o folhetinista. Ao expurgar o que havia de felizes os autores, se em mais de um pontO modificaram o
"sujo" e "indecente" no romance e ao introduzir as romance, forçoso é confessar que souberam aproveitar as suas
ficelles e os recursos melodramáticos no drama, os melhores situações, conservando os personagens, a lingua-
adaptadores teriam traído as ideias de Zola, reali- gem própria deles, transplantando para a cena o meio em que
zando um trabalho digno de Dennery, o conhecido viviam, dando assim uma certa uniformidade a toda a obra.
autor de melodramas.
De um modo geral, os críticos teatrais brasilei- Como se vê, o folhetinista da Gazeta de Noti-
ros fizeram apreciações corretas da adaptação de cias é ameno nas restrições. E se não rasga elogios
I:Assommoir, percebendo as suas limitações e con- ao drama propriamente dito, não os economiza
tradições em relação ao romance. Mas é claro que os quando aborda a encenação, que a seu ver foi
mais simpáticos ao naturalismo não foram tão enfá- realizada com muito cuidado, esmero e perfeição,
ticos em suas restrições. Assim, na Gazeta da Tarde pois ao invés de ser luxuosa ou vistosa, foi "real e
de 29 de abril, o articulista anônimo reconhecia que exata", Suas últimas considerações interessantes
o drama perdia a "carnação" do romance e ficavaape- aparecem no final do texto, quando, aproveitando
nas com o seu esqueleto. Mas, acrescentava, enfático, talvez os comentários que Zola fizera dos figurinos
era o "esqueleto de um gigante". Ao recomendar o utilizados no espetáculo do Ambigu, ressalta a im-
esperáculo, aproveitava a oportunidade para mani- portância das roupas de Gervaise, como índices da
festar sua simpatia em relação ao anticlericalismo sua situação pessoal e social.
que grassava nas gerações mais jovens: A boa receptividade do público a Eâssommoir
não lhe garantiu presença constante nos palcos do
o Assommoir é um drama para o povo. O povo deve ir Rio de Janeiro. Talvez por não ter correspondido à
vê-lo, uma, duas, três vezes. Para ele há mais a ganhar em ir expectativa de atrair multidões, a atriz e empresária
ver o Assommoirdo que em ir à igreja e ouvir os padres que Ismênia dos Santos não incorporou o drama no re-
nada ensinam e fazem do púlpito uma cadeira de retórica pertório da sua companhia, fazendo-o desaparecer
inchada. de cena nos anos que se seguiram. Apenas em julho
de 1890, época em que era muito comum a vinda de
Igualmente simpático ao naturalismo era o companhias teatrais estrangeiras ao Brasil, o drama
crítico teatral da Gazeta de Notícias. Em sua longa de Busnach e Gastineau pôde ser visto novamente
apreciação publicada no dia 3o de abril, começou no Rio de Janeiro. Com o título deA Taverna, foi re-
por considerações acerca das dificuldades que presentado sete vezes no Teatro Santana pela compa-
existem para se adaptar um romance ao teatro, seja nhia do Príncipe Real de Lisboa, que tinha à frente o
ele romântico ou realista. A necessidade de certos atar Álvaro [Filipe Ferreira] e a atríz Amélia Vieira,
arranjos, no caso de I:Assommoir, parecia-lhe parti- A estreia de Nana, no Rio de Janeiro, ocorreu
cularmente inevitável, por pertencer o romance "à no dia 19 de novembro de 188 I, no teatro Re-
escola, cuja feição e maior beleza estão na narrativa creio Dramático. Ismênia dos Santos, prevendo a
opulenta e variada, esquisita e ao mesmo tempo real': reação dos moralistas de plantão, mandou colocar
Como essa qualidade não poderia ser aproveitada nos anúncios dos jornais que a peça, "a mais com-
no palco, os adaptadores se viram obrigados a fazer pleta composição do inimitável mestre da escola
modificações no enredo e no caráter de algumas per- naturalista', estava "livre de todas as escabrosidades
sonagens, introduzindo o ódio e a vingança como do romance" e era, acima de tudo, "verdadeira e
sentimentos básicos da trama, ao lado da pintura do altamente moralizadora'.
vício da embriaguez. Para o folhetinista, a peça fa- De fato, apesar do assunto favorecer o contrá-
lhava um pouco na divisão dos quadros, mas prendia rio, não se pode dizer que a adaptação teatral de
a atenção do espectador, despertava o seu interesse, a Nana ultrapasse os limites da decência, a menos
despeito das infidelidades ao romance, e reproduzia que se fique imaginando o que a protagonista faz
a atmosfera construída por Zola: nos bastidores, entre um ato e outro. Além disso,

• 30 2
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Ismênia dos Santos. Fotografia tirada por volta de 1890.

sua trajetória é traçada no sentido de se enxergar mulher de costumes dissolutos. É uma lição de moral que
no desfecho uma punição para todos os pecados carece ser precedida de um longo curso de imoralidades.
que cometeu, aspecto moralista que evidente- Depois de iniciados em todas as abjeçães do vício é que
mente é uma contribuição de Busnach. :'Mesmo ficamos sabendo as consequências que dele derivam. É uma
assim, a peça põe em cena uma personagem que maneira um tanto problemática de moralizar: sobretudo se
é a antítese de lvIarguerite Cautier, a cortesã ro- a lição tem por auditório a família.
mântica idealizada por Alexandre Dumas Filho. "
Nana é voluntariosa, fútil, egoísta e indiferente Mesmo com todas as concessões, Nana cho-
aos sofrimentos que provoca nos homens por ela cou uma parcela do público do Rio deJaneiro. A
espoliados. Mostrá-la no palco, no seu esplendor prostituição em cena, sempre um assunto contro-
e na sua ruína, reproduz o que é básico no enredo vertido, embora de largo uso ao longo do século
do romance, mas lamentavelmente sem a riqueza XIX, confirmava para muita gente as associações
do estudo do temperamento da personagem e da que se faziam na imprensa entre naturalismo e
análise da parcela da sociedade parisiense contami- imoralidade. Outros folhetinistas abordaram o
nada pela prostituição elegante. mesmo problema, mas de forma a concordar com
Dois dias depois da estreia, o redator da "Ga- os termos colocados nos anúncios dos jornais.
zetilha" do Jornal do Comércio comentava o es- Ou seja: reafirmaram que a peça estava livre das
petáculo, chamando a atenção para o seu modo "escabrosídades" do romance e que encerrava uma
"problemático" de moralizar. Não lhe agradava a proveitosa lição de moral. Na Gazeta de Notícias
exposição prévia dos vícios da protagonista, em de 21 de novembro, o folhetinista anónimo não só
cenas que considerava imorais. Dizia, então: reconhecia a moralidade de Nana como ressaltava
os aspectos realistas da encenação, que punha no
Zola moraliza com a imoralidade; conduz-nos a um prostí- palco "uma série de cenas reais e infelizmente ver-
bulo para nos pôr diante dos olhos o triste epílogo de uma dadeiras". No jornal mais simpático ao naturalismo,

+ 3 03
História do Teatro Brasileiro • voLume 1

lia-se também que a montagem era luxuosa e que havia algum tempo. Mais fiel à índole da persona-
o desempenho dos artistas arrancou não poucos gem havia sido a atriz francesa Rose Chéri, que João
aplausos do público. Mas o destaque dado à cena Caetano viu em Paris. Seu desempenho, na cena do
da morte da protagonista revela a mistura de esti- espelho, era mais natural e mais verdadeiro:
los que devia presidir à representação desse tipo
de peça. O folhetinista e o público adoraram as Assestando o meu óculo, vi Rose Chérí levantar-se, e ficando
contorções de Ismênia dos Santos, com o rosto des- assentada à beira da cama, pegar pelo cabo em um pequeno
figurado pela varíola. A atriz "foi muito verdadeira espelho de forma oval, mirar-se nele, fazendo então aparecer
na expressão de horror ao avistar a sua sombra no nos lábios um frio sorriso, erguendo um pouco os olhos ao
espelho e depois na morte entre contorções horrí- céu, e levantando frouxamente os ombros, exprimindo as-
veis, caindo sobre o assoalho do quarto". sim com a maior verdade, neste simples gesto, a resignação
A gestualidade um tanto exagerada, típica do de sua alma com os efeitos progressivos da moléstia horrível
romantismo teatral, ainda fazia sucesso nos tempos que brevemente a faria sucumbir'?'.
naturalistas. Lembre-se, a propósito, que também
na representação de L:Assommoir o ator Eugênio Se a hipótese de que Busnach se inspirou na
de Magalhães havia recebido muitos aplausos ao cena de A Dama das Camélias não é despropo-
interpretar o delirium tremens de Coupeau. Mas no sitada, esclareça-se que as rubricas sugeridas por
caso de Nana, cabe observar que a cena do espelho ele para o desfecho de Nana destruíam qualquer
inexiste no romance. É bem provável que Busnach possibilidade de uma interpretação realista. Ao
tenha se inspirado numa conhecida passagem do se ver no espelho a protagonista deveria lançar
quinto ato deA Dama das Camélias, de Alexandre um grito de pavor e, arrastando-se para o centro
Dumas Filho. Nessa peça, à beira da morte, Mar- do palco, falar suas últimas palavras, agonizante
guerite Gautier "se levanta e olha no espelho': de e tomada pelo delírio. Ismênia dos Santos, com
acordo com a rubrica, e diz: "Como estou mudada! suas contorções, não fazia mais do que seguir as
No entanto o médico prometeu que vai me curar"189, rubricas tipicamente melodramáticas de Busnach.
continuando em seguida o seu monólogo. Pois esta Assim, ao lado das "cenas reais e infelizmente ver-
cena, escritapara ser representada com naturalidade, dadeiras': às quais se referiu o já citado folhetinista
possibilitou muitas intervenções à moda antiga, por da Gazeta de Notícias, os críticos não deixaram
parte de atrízes que procuravam impressionar o pú- de apontar os momentos do espetáculo em que o
blico. Vale a pena lembrar o testemunho do grande naturalismo era vencido pelos recursos do velho
aror João Caetano, que viu a atriz portuguesa Emí- teatro. No jornal O Globo,de 21 de novembro, um
lia das Neves interpretar o papel de Marguerite. Na articulista anônimo chegou a afirmar que apenas
cena do espelho, eis como ela procedeu: o romance Nana era "realista': acrescentando que
no drama predominavam "todas as convenções da
e encarando o espelho fez um movimento de horror e ges- escola romântica".
tos violentíssimos; o corpo lhe tremeu todo, caindo sobre' Para o folhetinista Carlos de Laet, do Jornal do
uma cadeira que lhe estava próxima, rompendo então o Comércio, em muitos aspectos as adaptações dos
público em estrepitosos aplausos, durante os quais a atriz romances de Zola lembravam os dramalhões do
tremia e pintava na fisionomia o mais vivo terror'?", velho Teatro S. Pedro de Alcântara. A combi-
nação de naturalismo e romantismo, que ele via
O ator brasileiro não gostou dessainterpretação, em Nana, deixava-o confuso acerca do modelo
observando que 1vlarguerite não podia horrorizar-se dramático reivindicado pelo novo movimento
com os estragosda moléstia que a vinha acometendo literário. Acertadamente, duvidava até mesmo
da existência de tal modelo, conforme escreveu
189Alexandre Dumas Filho, A Dama dasCamélias, tradução de a I I de dezembro:
Gilda de Mello e Souza, São Paulo: Brasiliense, 1965, p. 103.
J90 João Cectsno, LiçõesDramáticas, Rio deJaneíro: MEC,1956,
P·23· 191 Idem, P: 22.
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Não obstante os talentos da distinta atriz Ismênia, que, para Ai estava o programa para quem quisesse seguir.
maior glória do realismo, morria de bexigas todas as noites Como admitia o próprio Zola, ninguém ainda havia
em cena aberta, é claro que no espírito das plateias não se escrito o drama naturalista como ele o idealizara. A
estabeleceu ainda, com aquele drama, a noção nítida do consequência é que os críticos contrários ao novo
que é ou deva ser um drama zolesco. movimento literário consideraram as adaptações
dos romances I:Assommoir eNana como uma forma
A observação é justíssima. Apesar da difusão do de naturalismo possível no teatro, ou seja, dramas
naturalismo, que começava a conquistar as novas voltados para a representação de certos aspectos da
gerações, o fato concreto é que Zola não tinha até realidade, mas sem abdicar das convenções e artifí-
então oferecido um modelo de peça teatral que pu- cios ainda em uso nos palcos franceses ou brasilei-
desse servir de parâmetro aos críticos, ao público ros. Obviamente, esse ponto de vista negava que o
e aos dramaturgos eventualmente interessados em naturalismo pudesse vir a fazer uma revolução no
seguir o novo movimento literário. O que o escritor teatro. Assim, as dificuldades enfrentadas por Zola,
oferecera, até então, eram reflexões sobre o estado na França, eram também exportadas para os países
do teatro e ideias para modificá-lo. É de 1880 o em que havia escritores ou intelectuais simpáticos
texto "O Naturalismo no Teatro': uma espécie de às suas ideias literárias e teatrais.
manifesto no qual Zola aponta o caminho para a
renovação teatral:
A Questão do Naturalismo
Espero que se coloquem de pé no teatro homens de carne no Teatro
e osso, tomados da realidade e analisados cientificamente,
sem nenhuma mentira. Espero que nos libertem das perso- As encenações de TbérêseRaquin, I:Assommoir e
nagens fictÍcias, destes símbolos convencionais da virtude Nana contribuíram bastante para a popularização
e do vício que não têm nenhum valor como documentos do nome de Zola e para a divulgação do natura-
humanos. Espero que os meios determinem as personagens lismo no Brasil. Ao longo do decênio de 1880, o
e que as personagens ajam segundo a lógica dos fatos com- novo movimento literário consolidou-se entre nós
binada com a lógica de seu próprio temperamento. Espero e o debate foi intenso, envolvendo críticos, escrito-
que não haja mais escamoteação de nenhuma espécie, to- res e intelectuais importantes como Sílvio Romero,
ques de varinha mágica, mudando de um minuto a outro as Araripe Júnior e José Veríssimo, além de muitos
coisas e os seres. Espero que não nos contem mais histórias outros que hoje são menos lidos ou conhecidos,
inaceitáveis, que não prejudiquem mais observações JUStas como Urbano Duarte, Valentim Magalhães, Ader-
com incidentes romanescos, cujo efeito é destruir mesmo as bal de Carvalho ou Clóvis Bevilacqua. Os jornais e
boas partes de uma peça. Espero que abandonem as receitas as revistas literárias da época acolheram inúmeros
conhecidas, as fórmulas cansadas de servir, as lágrimas, os estudos a respeito dos romances naturalistas france-
risos fáceis. Espero que uma obra dramática, desembara- ses e brasileiros ou mesmo sobre o ideário estético do
çada das declamações, liberta das palavras enfáticas e dos movimento liderado por Zola. Em menor escala, ou
grandes sentimentos, tenha a alta moralidade do real, e seja no interior de textos mais amplos, discutiu-se tam-
a lição terrível de uma investigação sincera. Espero, enfim, bém a questão do naturalismo no teatro, como que
que a evolução feita no romance termine no teatro, que se dando prosseguimento às primeiras discussões pro-
retorne à própria origem da ciência e da arte modernas, ao vocadas pelas encenações das peças acima referidas.
estudo da natureza, à anatomia do homem, à pintura da Um dos primeiros intelectuais brasileiros a dis-
vida, num relatório exato, tanto mais original e vigoroso correr sobre o naturalismo foi o escritor e jornalista
que ninguém ainda ousou arriscá-lo no palco'>. Urbano Duarte, em artigo publicado na prestigiosa
Revista Brasileira, no número de julho/setembro
de I880 I 93• Difícil saber se ele já havia assistido
192 O RomanceExperimental eoNaturalismono Teatro, tradução
de Ítalo Caroni e CéliaBerrettini,SãoPaulo: Perspectiva, 1982, 193 Texto transcrito ernJoão Roberto Faria, Idéias Teatrais, p.
p.122- 123· 61 3-617.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

à representação de Tbérése Raquin, ocorrida exa- o diagnóstico de Urbano Duarte aponta dois
tamente em junho do mesmo ano. De qualquer grandes problemas enfrentados pelos escritores e
modo, seu texto, embora conciso, aborda tanto dramaturgos ligados ao naturalismo. O primeiro
as possibilidades do romance quanto do drama diz respeito à dificuldade de se aproveitar no tea-
naturalista. Inicialmente, Urbano Duarte explica tro o que havia de mais característico no romance
alguns princípios básicos do naturalismo literá- naturalista: a sua força narrativa e as descrições
rio, tratando de aspectos como o significado das minuciosas de espaços, personagens e ações. Essa
influências mesológicas ou a ideia de reprodução ideia, como se viu nos comentários dos críticos às
fiel da realidade nas obras literárias. A seu ver, a representações de Tbérése Raquin, I:Assommoir e
vitória do naturalismo era inevitável: Nana, tornava-se cada vez mais comum. O segundo
traz à tona a questão da imoralidade, que era identi-
o espírito científico do século fecundará a inteligência ficada com a abordagem fisiológica da sexualidade,
dos homens de letras, e dessa benéfica hernatose provirá a até certo ponto suportável na página impressa de
literatura naturalista, o reino da verdade escrita, o estudo um romance, mas impensável na representação tea-
racional, verídico, e sobretudo inteiro, do homem e da so- tral. Daí o limite entrevisto pelo articulista na obra
ciedade, com a explicação das causas e dos efeitos. de Dumas Filho, dramaturgo que praticava um
realismo aceitável, porque dentro de padrões que
A essaspalavras, segue-se uma restrição ao natu- não feriam a moral convencional, embora muitas
ralismo que foi comum enquanto esse movimento vezes tocando em assuntos controvertidos. Há que
literário durou. Também para Urbano Duartejá havia se considerar também que Dumas Filho e Émile
escritores que se excediam na abordagem da sexuali- Augier eram, por volta de 188 o, os dramaturgos
dade, confundindo-a com "erotismo e priapísrno', mais admirados nos meios literários e culturais
prejudicando assim a vitalidade de suas obras e franceses, representados sempre nos melhores
criando uma vertente de "ultrarrealismo desbra- teatros, pelos melhores artistas. No Brasil, apesar
gado, que se compraz em alcouces e podridões". da hegemonia do teatro cómico e musicado, suas
Infelizmente o articulista não dá os nomes de quem, peças nunca deixaram de ser representadas, princi-
a seu ver, cometia esse"crimeliterário".Talvez tivesse palmente por Furtado Coelho e Lucinda Simões,
em mente o próprio Zola, que acabara de lançar o com bom acolhimento da crítica e por vezes do
escandaloso romanceNana. Se na França as reações público. Assim, é ainda com o pensamento voltado
em certos círculos fora violenta e o escritor acusado para Dumas Filho e Augier que Urbano Duarte
de praticar pornografia, no Brasil muitos faziam o compreende o teatro, à semelhança de vários inte-
mesmo juízo. lectuais da época:
Passando a considerar o teatro, o ceticismo de
Urbano Duarte aumenta ainda mais, não só porque Uma peça teatral deve ser o desenvolvimento de uma tese
lhe parecia impossível e imoral reproduzir no palco social, mas um desenvolvimento vivo, relevante, incisivo,
as reconhecidas escabrosidades dos romances na- cheio de quadros reais e peripécias concomitantes do fato
turalistas, mas também porque o recurso da descri- principal, crivada de reflexões morais, rápidas como um
ção, uma das armas poderosas do naturalismo, não apotegma, e de sátiras finas e terríveis como a lâmina de
podia ser aproveitado no palco. De acordo com suas um estilete; não feito somente para mover o coração, mas
palavras, alguns romances vinham obtendo êxito no o espírito todo. Muitos dizem que as peças de Dumas Fi-
emprego dos processos narrativos naturalistas; lho são sem moralidade. Certo que elas não têm apoteose,
em que o anjo do bem suplanta o anjo do mal por entre
mas no teatro, em que o descritivo está quase banido e fogos de Bengala e alegria dos anjinhos. A moralidade
onde só é possível um pequeno número de quadros es- da obra jaz no centro mesmo da ação, a sua força provém
cabrosos, o gênero é dificílimo. Parece-nos mesmo que das próprias forças do vício, e se embalde procurardes em
a literatura dramática não pode ir além do ponto a que cena o representante da virtude, olhai para a plateia, porque
chegou Dumas Filho. ali encontrareis a indignação, é essa curiosidade de quem

• 306
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

quer conhecer a verdade sem rodeios em cena para poder escultor, devem partir da natureza, mas em suas obras há
deslindá-la na vida real. de palpitar um largo ideal civillzador'>.

o realismo à maneira de Dumas Filho e Au- Os termos utilizados por Sílvio Romero permi-
gier, que combina a descrição de costumes da vida tem alinhá-lo com Zola e o naturalismo, apesar das
social burguesa e a prescrição de valores morais, é últimas palavras do texto transcrito, que negam a
o máximo a que pode aspirar o teatro, na ótica de objetividade extrema daquele movimento literá-
Urbano Duarte. O naturalismo havia conseguido rio. De qualquer modo, o que importa assinalar é
radicalizar o retrato da vida social no romance, a diferença em relação às ideias de Urbano Duarte.
apreendendo-a por ângulos novos, muitas vezes Sílvio Romero parece acreditar na possibilidade de
polêmicos ou escandalosos, e sem a preocupação um teatro naturalista e, compreendendo perfeita-
de moralizar. Como transportar essas inovações mente qual seria o seu traço novo, não lhe reserva
para o teatro, se já o romance vinha sofrendo cons- um papel moralizador junto à sociedade.
tantes acusações de imoralidade? As dificuldades se O problema é que, na prática, as dificuldades
anunciavam enormes. E as primeiras adaptações dos para a realização teatral naturalista pareciam insu-
romances de Zola mostraram o quanto estavam dis- peráveis. Em junho de 1884, AraripeJúnior, outro
tantes do que pretendia o escritor no gênero teatral. grande crítico da época, toca no assumo, ao comen-
No Brasil, depois do texto de divulgação de tar, na Gazeta de Notícias, a encenação do drama
Urbano Duarte, surgiram estudos mais completos O Gran Galeoto, do espanholJoséEchegaray. Tudo
acerca das ideias de Zola. Em 1882, Sílvio Romero leva a crer que a discussão sobre o naturalismo no
publicou um livrinho intitulado ONaturalismo em teatro estava na ordem do dia, pois seu texto co-
Literatura, no qual discute especificamente as Oeu- meça com os seguintes parágrafos:
vres critiques do escritor francês, que tinham aca-
bado de ser editadas. Evidentemente a posição de Continuo a acreditar nas grandes dificuldades enfrentadas
Sílvio Romero é favorável ao naturalismo, que ele pelos dramaturgos da época para reduzirem a vida de todos
considera o verdadeiro movimento de oposição ao os dias, impalpável, complexa, múltipla, às proporções de
romantismo. Embora nem sempre concorde com um espetáculo. Consinta, portanto, que lance também o
Zola - suas ideias estão mais próximas de Taine e meu ramo de flores àqueles tradutores e atares que ousaram
Buc.kle-, defende-o das acusações de imoralidade, levar à cena o Gran Galeoto do ernérito Echegaray.
elogia alguns de seus romances e reivindica para a É, talvez, o problema mais difícil que tenham a resolver
literatura brasileira uma aproximação com o espí- os literatos do século - a aclimatação do realismo no teatro,
rito científico da época. Até então, afirma em seu uma questão tão árdua, tão difícil como a do abolicionismo
estilo nada refinado, o naturalismo em nosso país só entre nós.
havia revelado, "na poesia, no romance e no drama, Do mesmo modo que os liberais, nesta terra dos pal-
uns paspalhões mínimos de fazer dó". Era preciso mares, apenas sobem ao poder e fazem tête-à-tête com a
que a literatura se apoderasse da ciência, "para ter escravaria, tornam-se ultraconservadores, os realistas, entre
a nota do seu tempo". Sem distinguir o trabalho do as gambiarras, transformam-se em românticos.
romancista e do dramaturgo, Sílvio Romero define O próprio Zola não resistiu.
então o papel que devem desempenhar como artis- Mas quer me parecer que o defeito não está na estrutura
tas dos novos tempos: dos talentos, nem na incongruência do gosto público, senão
na impossibilidade de raccourcir o que de sua natureza é
o romancista e o dramatísta devem observar, não para longo, lento e profundamente subordinado à evolução.
formular teses, ou sentenças condenatórias, senão para Sabem todos quanto a vida é, nas suas aparências gerais,
compreender o jogo das paixões, como psicólogos e fisio- trivial e antidramática. Como, pois, trazer para a cena essa
logistas. Seu papel não é o dos moralistas impertinentes,
nem o dos anatomistas descritivos. Seu papel é levantar
194 O Naturalismo em Literatura, São Paulo: Tlp, da Província
uma obra de arte sobre os dados da observação. Como o
de São Paulo, 1882, p. 34-35.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

mesma trivialidade e torná-la capaz de interessar um público Há cérebros, acaso, que, depois de um dia consumido na
no rápido período de duas ou três horas votadas ao prazer?195 exploração da vida, depois de oito ou dez horas despendidas
num eretismo cruel de ambições, planos, ousadias, intrigas,
Araripe Júnior introduz um dado novo no de- maquinações, e que ainda por cúmulo terminou por uma
bate. Deixando de lado a questão da pretensa imo- leitura de Emílio Zola, entreahorado jantar e a saída para o
ralidade do naturalismo, enfatiza um dos objetivos regabofe noturno: há cérebro que tenha disposições que não
desse movimento literário - reproduzir a vida sejam para a GataBorralheira ou para a música de Suppé?
como ela é, com todos os seus momentos triviais
e antidramáticos - e conclui que o teatro não Para Araripe Júnior - o argumento não deixa
pode realizá-lo. A seu ver, é impossível condensar de ser curioso -, o próprio romance naturalista,
numa peça teatral, que ocupa duas ou três horas que pedia leitura atenta e trabalhosa, contribuía
na representação, os amplos painéis da existência para que as pessoas desejassem apenas divertir-se
humana que são criados no interior dos romances no teatro. Sim, porque além das atribulações do dia
naturalistas. Isso, por um lado. Por outro, mesmo a dia, todos saíam de casa já "saturados pela análise
que algum dramaturgo conseguisse realizar tal faça- demorada, paciente, refletida, do romance mo-
nha, o resultado seria entediante e não despertaria derno, do estudo de caráter, da novela fisiológica'.
o interesse de nenhuma plateia. Encontrar à noite, no teatro, os mesmos assuntos
Vale observar que Araripe Júnior enfoca as di- do romance e o mesmo tratamento sério, pesado,
ficuldades do naturalismo teatral por dois prismas minucioso, era exigir demais da plateia.
diversos, embora complementares. O primeiro diz Toda a argumentação de Araripe Júnior é uma
respeito à construção do texto dramático, que lhe espécie de introdução a rápidas considerações que
parece simplesmente irrealizável, na medida em vai tecer em seguida sobre a representação de O
que o próprio objeto do naturalismo, muito amplo, Gran Galeoto, drama no qual ele entrevê, em parte,
explodiria os limites do gênero. O que está por trás "uma conquista e um triunfo em favor do natura-
desse pensamento é a ideia comum na época de que lismo no teatro". Em parte, porque a seu ver Eche-
a peça teatral naturalista deveria necessariamente garay não deixou de colher certos procedimentos
derivar do romance ou ter as mesmas característi- dramáticos em Dumas Filho e Émile Augier. Já o
cas.Araripe Júnior talvez tivesse em mente as adap- aspecto moderno do drama estaria no tratamento
tações deEAssommoirou de Nana quando escreveu dado ao problema da calúnia, que teria sido enca-
que os escritores naturalistas tornavam-se român- rado tanto pelo lado moral quanto pelo lado das
ticos no teatro. Suas referências não poderiam ser influências fisiológicas.
outras, porque Zola, em 1884, não tinha ainda Não viria ao caso contestar Araripe Júnior, mas
achado um caminho novo para a dramaturgia. é um tanto estranho que ele tenha visto aspectos
O segundo prisma pelo qual Araripe Júnior fisiológicos no texto do dramaturgo espanhol. O
aborda as dificuldades do naturalismo teatral Gran Galeoto é uma peça de tese que deve mais a
refere-se à plateia da época. A vida em si já era Dumas Filho e Émile Augier do que a Zola, embora
dura demais, para que se quisesse ver nos palcos se possa considerar que o enredo dê guarida a um
uma reprodução do dia a dia. Mesmo as pessoas certo determinismo social. Uma esposa honesta e
inteligentes e bem formadas que conhecia, afirma um jovem acolhido em sua casa pelo marido são
logo adiante em seu texto, assistiam com prazer às vitimados pela calúnia que se espalha na cidade,
operetas e às mágicas. Quer dizer, o teatro parecia segundo a qual seriam amantes. A cada cena da
distanciar-se cada vez mais da literatura, afirmando- peça, quanto mais percebemos a inocência e as
-se como entretenimento para quem havia traba- virtudes de ambos, as situações dramáticas criadas
lhado duro durante o dia: os incriminam e a pressão do meio social aumenta.
Mas Echegaray não leva em conta os aspectos fisio-
lógicos. As personagens não são enfocadas no que
195 Araripe jr., Obra Crítica deAraripe]r., v. T, Rio de]aneiro:
diz respeito à hereditariedade ou em suas caracte-
MEC/CasadeRuíBarbosa, T958,P' 381.

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+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

rístícas corpóreas. Antes, obedecem a impulsos mo- complexidade da vida moderna, reproduzindo-a
rais, tanto o marido que se julga traído quanto os sem falsidade ou artificialismo. Assim, conclui:
jovens caluniados, todos preocupados em preservar
a honra pessoal - tema, aliás, de larga tradição no As fatalidades do meio cósmico e social, as condições étni-
teatro espanhol. cas,a patogenia de uma desordem orgânica e Outros muitos
Em 1884, no mesmo ano em que AraripeJúnior fatos, sobre que se apoia a ficção do romance naturalista,
escreveusobre asdificuldadesenfrentadas pelo natura- escapam aos meios comuns da exposição dramática, ou,
lismo no teatro, ClóvisBevilacquapublicou no Recife pelo menos, não podem tomar a força e desenvolvimento
um estudo intitulado O Teatro Brasileiro e asCondições desejáveis.
de suaExistência, no qual discorreu sobre o mesmo
assunto. Inicialmente, elecontrapõe a vitória do natu- À semelhança dos outros intelectuais brasileiros
ralismo no romance às derrotas que o movimento tem que refletiram sobre o naturalismo no teatro, Clóvis
tido no teatro, recorrendo a uma ideia de 1héodore de Bevilacqua entendia o drama naturalista como um
Banvillepara compreender tal fenômeno. Segundo o gênero que deviaapresentar as mesmas características
poeta francês, o público vai ao teatro para esquecer os dos romances que Zolavinha escrevendo, talvez por-
aborrecimentos do dia a dia e não para ver, no palco, que as adaptações de Tbérêse Raquin, EAssommoir e
personagens que vivemesses mesmos aborrecimentos. Nana induzissem a essepensamento. Ou seja,refletia-
Teria Araripe Júnior lido Banville? -se bastante sobre as dificuldades de aclimatação do
Mas não é só o público que vira as costas ao romance naturalista no palco, mas não sobre uma
drama naturalista. Clóvis Bevilacqua lembra que o dramaturgia que pudesse nascer fora do âmbito da
próprio Edmond de Goncourt não acreditava nas narrativa ou da obra de Zola. Afinal, esperava-sedele,
possibilidades do naturalismo teatral, por não ver e de nenhum outro escritor, um modelo dramático
como evitar as "convenções" no interior de uma para desencadear a revolução no teatro, modelo que
peça ou na sua representação. ''As qualidades de ele nunca chegou a escrever.Talvez essa expectativa
uma humanidade realmente verdadeira - segundo explique, pelo menos em parte, a pequena atenção
o escritor francês - o teatro as rejeita, pela sua na- que foi dada na época às peças de cunho naturalista
tureza, pela sua artificialidade, pela sua mentira" 196• de Henry Becque - Les Corbeaux é de 1882; La Pa-
Clóvis Bevilacqua concorda com Edmond de risienne é de 1885 -, escritas sem qualquer influência
Goncourt. Achava um tanto inglória a luta de dos romances do mestre de Médan.
Émile Zola, embora considerasse que o drama e a
comédia deviam ser, como o romance, "um estudo
de temperamentos, a exposição de algum caso de A Contribuição de Aluísio Azevedo
teratologia individual ou social; um pedaço de vida
dessas mil colmeias, várias na forma e nas catego- Nosso principal escritor naturalista acompanhou,
rias, em que se retalha a sociedade". de perto e de longe, boa parte dos debates, refle-
Se não procedesse dessa maneira, o dramaturgo xões e eventos teatrais até aqui relatados. Tendo
não dialogaria com o seu tempo. Por outro lado, chegado ao Rio de Janeiro em 1876, aos dezenove
como não conhecia ainda um drama naturalista anos, permaneceu na cidade até setembro de 1878,
escrito de acordo com os preceitos defendidos por voltando a São Luís do Maranhão por causa da
Zola, Clóvis Bevilacqua continua concordando morte do pai. Como caricaturista de jornais hu-
com Edmond de Goncourt e afirma que a forma morísticos fluminenses - O Mequetrefe, O Fígaro,
do drama fica prejudicada por não incorporar o A ComédiaPopular-, sempre esteve a par dos fatos
estilo do escritor, presente na narrativa, e por não políticos, literários e teatrais que alimentavam esses
apresentar a flexibilidade necessária para abarcar a periódicos. Assim, acompanhou de perto toda a
polêmica em torno de O Primo Basílio, aprovei-
196 Clóvis Bevilacqua, O Teatro Brasileiro e suas Condições tando consequentemente para posicionar-se entre
de Existência, Épocas e Individualidades, 2. ed., Rio de Janeiro:
os adeptos do novo movimento literário francês,
Garnier, [s.d.], p. lIG.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

que aqui chegava através de Portugal. A volta à se discutem todas as questões científicas e sociológicas, onde
terra natal privou-o de assistir às representações se anatomiza a sociedade, onde se desfibram os costumes,
de Thérése Raquin e I..:Assommoir, mas é certo que onde se dissecam os caracteres, esse público já não admite
recebia jornais da corte, mantendo-se atualizado trabalho algum teatral que não se proponha defender uma
em relação às novidades. tese, combater um preconceito, guerrear uma instituição,
Nos três anos que viveu em São Luís do Mara- pulverizar um vício, estudar e desenvolver uma ideia ou
nhão - setembro de 1878 a setembro de 188 I -, propagar uma seita. Isso é que é o fim da arte moderna, seja
Aluísio Azevedo desenvolveu um intenso trabalho com referência ao teatro, à pintura ou à escultura, a isso é
jornalístico, além, é claro, de escrever o romance que que S. Sa. se dedique com amor, com fé, com dignidade I 98•
o projetou nacionalmente como um dos iniciadores
do naturalismo no Brasil, OMulato. O que importa Embora Aluísio Azevedo utilize o termo "rea-
assinalar, por ora, é que o interesse do escritor pelo lismo': o teatro moderno a que ele se refere é o na-
teatro foi enorme nessa fase de sua vida. Ao lado turalista, como se percebe pelo vocabulário típico
de companheiros de geração, envolveu-se em várias daquele movimento literário. Por outro lado, a
iniciativas que visavam sobretudo a melhorar o nível ideia de que o teatro pode ser um espaço privile-
das atividades teatrais. Segundo um dos seus bió- giado para o debate de questões sociais é anterior ao
grafos, as razões que o levaram a batalhar por uma naturalismo e foi cultivada por dramaturgos como
verdadeira renovação no teatro foram "a ignorância Émile Augier e Alexandre Dumas Filho, na França,
na qual se encontravam os espectadores, a falta de e por escritores como José de Alencar e Machado
atores maranhenses e a moda das peças românticas". de Assis, no Brasil. Aluísio talvez não tivesse ainda
Ou seja, Aluísio tinha três preocupações: "favorecer um conhecimento perfeito das propostas de Zola
o surgimento de ateres maranhenses, educar o pú- para o teatro, entre elas a de superar exatamente o
blico, promover o teatro realista'":". tipo de realismo praticado por aqueles dois autores
As dificuldades de toda ordem que surgiram, franceses, que combinavam a descrição de aspectos
tais como o conservadorismo da burguesia mara- da realidade com a prescrição de valores morais da
nhense e a oposição do clero, impediram o desen- burguesia. Em outra crónica, aliás, ele coloca Du-
volvimento dos planos que incluíam até mesmo mas Filho e Victorien Sardou ao lado de Zola, os
a construção de um novo teatro. A Aluísio não três como representantes de um teatro moderno,
restou outra saída senão continuar a expor as suas voltado para a educação do povo. Apesar de uma ou
ideias nos jornais da cidade. Curiosamente, ou outra imprecisão, vale a pena transcrever suas pala-
coincidentemente, começou a desempenhar em vras, que foram escritas como resposta às invectivas
São Luís do Maranhão o mesmo papel que Zola de um padre, que não via no teatro nenhuma das
vinha desempenhando em Paris, nos jornais Bien qualidades apontadas pelo cronista:
Public e Voltaire. Assim, atacava o romantismo e os
dramalhões, o público e os empresários, reservando O teatro é o templo das artes, é um enorme atelier onde
espaço em suas crânicas para a propaganda realista. colaboram artistas e operários de todos os gêneros; a mise
Leia-se, por exemplo, o que escreveu em dezembro enscêne, a cenografia, a arquítetura, a orquestra, tudo isso
de 188 o a respeito de O Remorso e o Condenado ti representa o trabalho, o santo trabalho, abençoado por
Morte, peça de um jovem autor maranhense: Deus. Ali cansa o ator, desenvolve-se o poeta, sua o marce-
neiro, exibe-se a moda, pintam-se os costumes, aprende o
Desejamos que o sr. ArturJansen Tavares continue a culti- público a falar, a estar em sociedade e é a penas [sic] que V.
var o seu talento teatral, porém contamos que em breve S. Revma. não frequente as plateias e só conheça necessaria-
Sa. desprezará de todo o convencionalismo da tragédia pela mente o teatro antigo, porque então saberia que os dramas
utilidade do realismo. O público do teatro moderno, esse modernos de Dumas Filho e Emílio Zola, de Sardou etc. etc.,
público que está convencido que o palco é uma escola, onde ensinam os inexperientes a conhecer o mal, desmascaram
os hipócritas, como Molíêre os desmascarou no TartuJo,

197 Jean-Yves Mérian, AluísiodeAzevedo..., p. 174. 198 Idem, P: 176.

• 31 0
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

apresentam os perigos, os escolhos da sociedade em que Em 1884, sem a colaboração de ninguém, Aluí-
temos de andar, abrem os olhos dos moços e enchem-lhes sio fez a adaptação teatral de seu romance O Mu-
o coração de esperança, de força, de energia e de amor. lato. Impossível não ver nessa iniciativa o reflexo
Ora, aí tem V. Revma. o que é para nós o teatro, que V. das adaptações dos romances de Zola e um pouco
Revma. condena: uma escola, um órgão que se propõe e da atitude provocativa dos escritores naturalistas,
discute teses, um necrotério onde se anatomiza a história, que procuravam apresentar assuntos controverti-
onde se dissecam os reis e os papas e os homens célebres, dos ao público leitor. A cota de escândalo de O
onde se pulverizam as ideias e os fatos, onde se desfibram Mulato fora muito grande em São Luís do Mara-
os caracteres e as inteligências, enfim um lugar respeitável nhão e a edição de mil exemplares esgotara-se quase
onde se aprende a pensar e a viver ' 99 • que totalmente, por força da polêmica travada na
imprensa. A sociedade local sentiu-se ultrajada pela
Nessa crônica de setembro de 188 o, e em outras, descrição de costumes que trazia à tona a questão
Aluísio Azevedo explicita a sua crença no teatro da escravidão, o preconceito racial das famílias
utilitário, salientando sempre a função do escritor abastadas e a hipocrisia do clero, representado
como um observador crítico da sociedade. À se- por um cônego devasso e criminoso. Como pou-
melhança de Zola, porém, não escreveu nenhuma cos exemplares do romance chegaram ao Rio de
peça enquanto foi crítico teatral, limitando-se a Janeiro, onde críticos importantes a exemplo de
defender e expor as novas ideias nos jornais. Sua Araripe Júnior, Urbano Duarte e Valentim Ma-
prioridade, como se sabe, era escrever o romance galhães o comentaram com simpatia nos jornais,
O Mulato, que foi publicado em abril de 188 I em pouca gente na verdade conhecia a história do mu-
São Luís do Maranhão. O escândalo, a polêmica, lato Raimundo. Aluísio deve ter levado esse dado
as repercussões que se seguiram são fatos bastante em conta ao se decidir pela adaptação teatral. Era
conhecidos em nossa história literária. O que im- um meio de fazer a divulgação do romance - que
porta assinalar é que o sucesso do romance trouxe assim poderia chegar à segunda edição -, mas era
Aluísio de volta ao Rio de Janeiro, cidade que era o também um meio de ganhar dinheiro, em caso de
centro da vida cultural brasileira. Se ele frequentou sucesso, e de levar ao palco um pouco do natura-
o teatro logo após o desembarque, em setembro, lismo que o seduzia cada vez mais.
certamente assistiu aos espetáculos da companhia A estreia de O Mulato, drama em três atos,
de Furtado Coelho, que nessa época encenou, deu-se no dia 17 de outubro de 1884, no Teatro
entre outras peças, Divorciemo-nos, de Sardou, e Recreio Dramático. O papel de Raimundo coube
'Iberése Raquin, de Zola. Vale lembrar ainda que a Dias Braga e o de Ana Rosa a Helena Cavallier,
em novembro estreou a adaptação de Nana, pela atriz de bastante talento, segundo testemunhos
companhia de Ismênia dos Santos. da época. É uma pena que a adaptação não tenha
O envolvimento de Aluísio Azevedo com o tea- sido publicada e que do manuscrito deixado pelo
tro no Rio de Janeiro foi maior do que se pensa. escritor tenham restado poucas páginas, impossibi-
Entre 1882 e 1890, ele escreveu mais de uma de- litando uma análise mais rigorosa. Apenas os resu-
zena de peças, a maior parte delas em colaboração mos do enredo feitos pelos folhetinistas guardam
com o irmão Artur ou com o pintor e amigo Emílio a memória desse trabalho, revelando que há mais
Rouêde. Infelizmente quase toda essaprodução se semelhanças do que diferenças entre o romance e a
perdeu, com exceção das peças escritas em parceria adaptação. Quer dizer, no plano do enredo, Aluísio
com o irmão, justamente as que mais se distanciam aproveitou os fatos mais importantes da trajetória
do tipo de teatro que defendia nos jornais de São de Raimundo e os dramatizou em função do eixo
Luís do Maranhão. São elas a comédia Casa de principal do romance, o preconceito racial. Assim,
Orates, a opereta A Flor-de-Lis e as revistas de ano acompanhamos a chegada do protagonista a São
Fritzmack eA República. Luís do Maranhão e a sua paixão por Ana Rosa, a
descoberta de seu passado e a resignação diante do
199 Idem, P: 177- preconceito, a desistência do casamento em face da

• 3II
História do Teatro Brasileiro • volume 1

oposição da família da moça e a decisão de aban- programação de espetáculos cuja renda devia rever-
donar a cidade, o reencontro com Ana Rosa e, em ter na alforria de um escravo. Conta Coelho Neto,
consequência dos fatos que se seguem, a sua morte no romance A Conquista, que o abolicionismo tinha
no desfecho. Nem mesmo alguns trechos mais fortes na classe teatral muitos simpatizantes "fanáticos':
do romance deixaram de ser adaptados, como a con- como Dias Braga, Vasques, Guilherme de Aguiar,
versa que Ana Rosa mantém com o cônego, na qual Arêas, Galvão, Peixoto, Eugênio de Magalhães e vá-
o caráter hediondo da personagem é evidenciado, rios outros. Além disso, era no Teatro Recreio Dra-
assim como o anticlericalismo do escritor. É evidente mático que o povo se reunia aos domingos para ouvir
que a adaptação não pôde trazer para o palco a força os discursos inflamados dos políticos abolicionistas.
maior do livro, que repousa nos recursos de narração. Nesse clima, a adaptação teatral de O Mulato não
Mas a julgar pelos comentários, Aluísio conseguiu poderia deixar de adquirir uma conotação política.
pelo menos recriar na adaptação uma parcela da at- No mesmo Jornal do Comércio, no dia 19 de
mosfera sombria e da visão crítica contundente do outubro, o articulista anónimo da seção "Gaze-
original. A única alteração mais profunda do enredo tilha" havia abordado a peça por outro ângulo,
ocorreu no desfecho. No romance, Raimundo é as- condenando-a em bloco:
sassinado por Dias e, em seguida, há uma suspensão
temporal na narrativa, para que vejamos, seis anos Cenas de alcova em que assistimos ao lavar da cara e ao
depois, Ana Rosa casada com o assassino e feliz com calçar das botas, outras de fúria de amor em linguagem
os três filhinhos. Provavelmente levando em conta a romântica, aqui e ali algum egoísmo, uma ação levada a
dificuldade para representar no teatro a passagem do trancos e barrancos, eis o drama que o público aplaudiu. A
tempo, Aluísio optou por um desfecho convencio- maioria da imprensa provavelmente o aplaudirá também,
nal, mas ao mesmo tempo político. Em sua adapta- parte arrastada pela tendência da composição, parte por
ção, Raimundo é morto por Dias num rompante de obedecer à convenção que faz deste autor um dos melhores
ciúme, provocado pela revelação de que Ana Rosa esteios da literatura nacional.
estava grávida. O negro Benedito, escravo, saca de
um punhal e sai a correr para matar o assassino nos Vale registrar nessas palavras as descrições de cenas
bastidores, exclamando ao mulato: "Aqui ainda há típicas do naturalismo, que aparecem no interior
gente da tua raça!" E o protagonista, moribundo, do espetáculo ao lado de outras mais próximas do
em cena, ainda tem tempo de reforçar a "mensagem" romantismo, mistura que parece ter sido comum em
do drama, terminando-o com estaspalavras: "Cristo nossos palcos. O articulista faz referência também
sofreu muito, mas não era filho de uma escrava". à "tendência da composição': responsável pelos pos-
A peça agitava no palco a questão da escravidão síveis aplausos da imprensa, porém não explicita o
e do preconceito racial num momento em que a pensamento. Parece haver pelo menos duas possibi-
própria sociedade brasileira estava dividida entre lidades de interpretação: ou ele está falando de na-
o abolicionismo e a conservação do status quo. O turalismo ou de abolicionismo. Pois no mesmo dia
folhetinista do Jornal do Comércio, Carlos de Laet, em que essas palavras foram estampadas no Jornal
exprimiu o seu desagrado com o assunto posto em do Comércio, as matérias publicadas em O País e
cena, escrevendo, a 26 de outubro de 1884, que o na GazetadeNotícias enfatizavam respectivamente
drama era uma "má obra': porque "o caso figurado aspectos naturalistas e abolicionistas do espetáculo.
pelo sr. Aluísio seria na vida real uma exceção". O No primeiro jornal, o articulista salientou a
preconceito, a seu ver, não existia no Brasil, país em criação da personagem Ana Rosa, que aparecia
que alguns negros e mulatos eram estadistas e outros na peça como "um caso patológico, espécie de
recebidos nas melhores famílias. "Para que, pois, esse mulher de fogo, que não atende nem à razão, nem
tremendo fantasma do ódio de raça ?': perguntava. aos conselhos, nem a nada. Índole inflamável, que
O fato é que a ideia da abolição ganhava terreno na não sabe esperar; serpente voluptuosa que se perde
sociedade brasileira e o teatro se tornara uma das perdendo a quem ama". Apesar de alguns poucos
principais trincheiras dessa luta. Era comum a elogios, o comentário é em geral desfavorável,

• 31 2
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

porque os defeitos da peça estariam justamente em Se é verdade que os críticos dos principais jornais
seus aspectos naturalistas. O articulista pede então do Rio deJaneiro não se entusiasmaram com a en-
que Aluísio Azevedo continue a escrever dramas, cenação de O Mulato - os maiores elogios, mas sem
mas expurgados de certas características presentes nenhuma reflexão interessante, ficaram por conta
em O Mulato, como "umas certas frases ásperas da dos pequenos jornais e revistas literárias, como
vida comum, e umas expressões, por demais du- a Revista Ilustrada - registre-se que o público da
ras, que, sem darem cor à situação, como ele julga, estreia aplaudiu bastante o espetáculo. É o que afir-
apenas servem para molestar o ouvido". Identificar mam as matérias comentadas acima, que informam
o naturalismo como uma estética voltada para a es- que o teatro estava cheio e que o autor foi chamado
cabrosidade, a patologia, o mórbido, o pessimismo ao proscênio várias vezes nos finais dos ates. Um
ou a imoralidade era uma atitude comum tanto na ano depois, em 1885, Adolfo Caminha, depois de
imprensa francesa quanto na brasileira. Aqueles lamentar a inexistência de uma dramaturgia brasi-
que acreditavam, como o já citado folhetinista, leira de valor, lembrava o entusiasmo daquela noite
que "a obra de arte é tanto mais estimada quanto em termos que merecem transcrição:
for mais distinta e elegante': não poderiam mesmo
aceitar o traço grosso das produções naturalistas. o teatro encheu-se completamente, o povo aplaudiu a obra
Na Gazeta de Notícias, os elogios ao talento de com desusado entusiasmo; e é preciso não esquecer que
Aluísio Azevedo vieram acompanhados de restrições tratava-se de uma obra naturalista, gênero com que ainda
à peça, cujo principal defeito seria a passividade com não estávamos habituados. A imprensa, em sua quase to-
que Raimundo aceita o preconceito. Para o articu- talidade, teve francos elogios para o jovem romancista que,
lista, o realismo se realizaria mais concretamente se num rasgo de patriotismo audacioso, tentara reformar o
o protagonista se rebelasse e lutasse contra as hosti- teatro no Brasil fazendo representar um drama de costumes
lidades; afinal, ele havia sido educado na Europa e nacionais, verdadeiro e bem arquirerado>".
era tão pouco mulato que foi preciso que lhe disses-
sem. Todo o seu comportamento, enfim, é bastante Mas o sucesso da noite da estreia não se prolon-
criticado, sobretudo o sacrifício exageradamente gou muito. Depois de meia dúzia de representações
"cavalheiresco" do amor que dedicava a Ana Rosa. O Mulato saiu de cartaz, sendo substituído por O
Só no terceiro ato é que Raimundo reage, motivado Conde de lvIonte Cristo, segundo a informação de
pela necessidade de "reparar a faltá' que havia come- Adolfo Caminha. O dramalhão romântico ainda
tido, na verdade, graças à iniciativa da mocinha. O era um dos fortes adversários da dramaturgia na-
articulista ainda critica algumas passagens da peça, turalista no decênio de 1880.
como a cena da confissão, entre o cônego e Ana Nas duas peças que escreveu em seguida, Aluísio
Rosa, que lhe pareceu "repugnante". Por outro lado, contou com a colaboração de Emílio Rouêde, escritor
elogia enormemente o desfecho, que mesmo estando e pintor nascido na França e radicado no Brasil. A
"preparado': ainda assim apanhou o espectador de primeira, Vénenos que Curam, estreou em 15 de no-
surpresa. O comentário lembra as ideias do crítico vembro de 1885, no Teatro Lucinda; a segunda, O
Francisque Sarcey, que costumava definir o teatro Caboclo, em 6 de abril de 1886, no Teatro Santana.
como a "arte das preparações': na esteira de Dumas Vénenos que Curam - posteriormente reno-
Filho. Pois o desfecho estava de fato preparado de meada Lição para Maridos - é uma comédia de
antemão, uma vez que o negro Benedito mostrara-se costumes em quatro aros, muito parecida com as
o tempo todo simpático a Raimundo e antipático produções de FrançaJúnior. Não lhe falta humor,
ao caixeiro Dias. Além disso, o próprio Raimundo ritmo, bons diálogos, situações hilariantes e uma
a certa altura da peça lhe dera o punhal de presente. certa graça vaudevilesca. Obviamente essas carac-
A surpresa do gesto de Benedito, ao sair do palco terísticas a afastam do naturalismo, abandonado
para matar Dias, provém do fato de que a atenção talvez em função de um objetivo concreto: ganhar
do público dirigia-se naquele momento às últimas
palavras do moribundo protagonista. 200 AdolfoCaminha, CartasLiterárias, Riodejaneíro, 1895, p. 212.
Histâria do Teatro Brasileiro • volume 1

um pouco de dinheiro. Não se pode esquecer que chamando entusiasticamente os autores à cena, nos finais
Aluísio vivia modestamente do trabalho intelec- dos aros. A crítica distribuiu os mais levantados elogios en-
tual, desdobrando-se como autor de romances tre a peça e o desempenho. Todos disseram bem de uma e
naturalistas e folhetins românticos, ao mesmo outra coisa. Como se pode pois, explicar o afastamento do
tempo em que tentava a sorte no teatro, motivado público? Por que razão uma peça que agrada, que é aplaudida
provavelmente pelo sucesso do irmão. pelos espectadores e pela imprensa não leva gente ao teatro?
A comédia tem um enredo simples e, grave de-
feito, desfecho previsível. A ação gira em torno Em Venenos que Curam, Aluísio abdicou com-
de um barão que já não encontra nenhum tipo de pletamente das suas ideias naturalistas. Há apenas
prazer no casamento e, para desespero da esposa, uma curta referência ao temperamento do barão,
passa a maior parte de seu tempo com a prostituta "sanguíneo-nervoso", num diálogo em que esse
Clotilde. Fazê-lo voltar ao lar é o projeto de Carlos, dado significa apenas que é muito fácil para a pros-
o filho da desditosa mulher e enteado do marido tituta explorar a sua fortuna.
estroina. Por força de uma dessas coincidências Já com o drama em três atas O Caboclo, os autores
típicas do gênero côrnico, Clotilde estava interes- chegam mais perto do naturalismo, a começar pelo
sada justamente no jovem Carlos, que lhe fala do espaço social em que se passa a ação: uma fábrica de
sofrimento da mãe e a convence a ajudá-lo. A estra- cigarros, situada num arrabalde do Rio de Janeiro.
tégia é então traçada pela própria moça, que resolve Não é muito comum que operários sejam persona-
aplicar no amante um "veneno que curá'. Similia gens de peças teatrais no Brasil do século XIX. E
similibus, ela diz ao rapaz, quando se despedem. A não é um despropósito considerar que a sugestão
frase inteira, lema da medicina homeopática e de possa ter vindo da leitura de romances naturalistas
autoria do médico alemão Hahnemann, é similia franceses, como Germinie Lacerteux, dos irmãos
similibuscurantur, ou seja, o semelhante cura o se- Goncourt, ou L'Assommoir, de Zola. Não se pode
melhante. A partir daí, a comicidade vai estar cen- esquecer também que Aluísio já havia escrito Casa
trada num recurso infalível. Clotilde reproduz, no dePensão, em 1884, e que seisanos depois publicaria
relacionamento com o barão, os cuidados de esposa O Cortiço. Ou seja: tanto como romancista quanto
que ele tanto detestava, exagerando-os de tal modo dramaturgo, elecriavahistórias protagonizadas pelas
que ao final de três meses o vemos voltar para casa. camadas populares do Rio de Janeiro.
A crítica e o público receberam com simpatia a No caso de O Caboclo, porém, não são exata-
comédia de Aluísio e Rouêde. Os elogios se mul- mente as condições de vida dos operários que estão
tiplicaram na imprensa, embora com algumas res- no centro da ação dramática. Embora os vejamos no
trições ao desempenho dos artistas da companhia trabalho, o assunto principal da peça é a obsessão de
do atar Martins. Venenos que Curam atingiu doze Virgílio Gonçalves Dias, o patrão, e de Luís, o cabo-
representações seguidas, um número razoávelpara clo do título e seu afilhado, pelo teatro. O primeiro,
a época e para o gênero a que pertencia. A comé- que via no próprio nome uma predisposição para a
dia não tinha nem o atrativo da música e nem a arte, é autor de várias peças que são encenadas ali
licenciosidade das operetas. Mesmo assim, Artur mesmo na fábrica, com os operários improvisados
Azevedo considerou o número de representações em artistas; e o segundo é um dos seus "ateres" A
pequeno e aproveitou a sua coluna "De Palanque': primeira metade da peça é francamente cómica, uma
que publicava regularmente no Diário de Noticias, vez que a mulher de Virgílio, Quitéria, quer fazer
para lamentar que as boas comédias e dramas não a fábrica funcionar, enquanto o marido quer que
conseguissem ficar bastante tempo em cartaz. No os operários estudem os seus papéis no horário de
dia 18 de dezembro de 1885, escreveu: trabalho. O caboclo, por sua vez, está tão obcecado
pelo papel de Otelo, que está estudando, que não
A maior parte desses dramas tem caído por motivos que até percebe o adultério de sua esposa Luísa com Flávio,
hoje a inteligência mais pronta não conseguiu desvendar. um dos operários da fábrica. Está aberto o caminho
a público das primeiras representações aplaudiu a valer, para o drama. O desenlace se precipita quando

I
• o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

Virgílio faz os três representarem uma cena de sua passo dado pela nossa literatura dramática no an-
peça Demócrito para dois pilantras que se passam fractuoso terreno do naturalismo no teatro".
por empresários teatrais. O caboclo percebe a rea- Os críticos dos outros jornais, de um modo
ção de Luísa, observa os risos dos outros operários geral, gostaram da peça e registraram o sucesso da
e, desconfiado, arma uma situação para se certificar encenação junto ao público da estreia. O Teatro
do adultério. Nos preparativos para a representação Santana encontrava-se lotado, porque a grande
de Otelo, vestido a caráter, sufoca a mulher, também novidade estava na distribuição dos papéis. Vas-
já vestida de Desdêmona. ques, o ator côrnico mais popular de sua época,
A peça explora com bastante competência o meta- encarregara-se de interpretar o papel do caboclo,
teatro e há passagens felizes no sentido da reprodução que exigia declamações de trechos de Otelo e capa-
da realidade, como anotaram os críticos da época. No cidade para exprimir as tristezas e a infelicidade do
jornal literário A Semana, de Ia de abril de 1886, o protagonista. Pois o ator saiu-se bem da emprei-
articulista anónimo - talvez o escritor Valentim Ma- tada, fazendo por merecer os aplausos do público
galhães - elogiou O Caboclo nos seguintes termos: e os elogios da imprensa. Seu desempenho, na
parte dramática da peça, chegou a ser considerado
Há em toda a peça um largo sopro de verdade, e nalgumas "assombroso". Mais uma vez, porém, o sucesso da
cenas os aurores revelam as suas excelentes qualidades de estreia não se prolongou por muito tempo. O Ca-
observadores; principalmente no primeiro aro, na cena en- boclo não foi além de uma dúzia de representações'?'.
tre o caboclo e Luísa, e, no segundo, entre Luísa e Quitéria, O envolvimento de Aluísio Azevedo com o
que é realmente primorosa. teatro continuou por mais algum tempo. Ainda
em 1886 ele escreveu o dramaAAdúltera, também
De fato, são cenas que se desenrolam com extrema em parceria com Emílio Rouêde. Segundo a in-
naturalidade, reproduzindo, pelo diálogo e pela formação de um dos seus biógrafos, o manuscrito
gestualidade, o cotidiano de pessoas comuns do Rio dessa peça, que nunca foi encenada, se perdeu, de
de Janeiro. Talvez por isso o articulista deA Semana modo que é impossível conhecer o seu entrecho.
tenha visto em O Caboclo uma tentativa de teatro na- No ano seguinte, Aluísio escreveu sozinho a bur-
turalista. Ou pelo menos do naturalismo possível na letalVfacaquinhos no Sótão, representada no Teatro
ocasião, uma vez que ninguém sabia ao certo como Santana, com o ator Vasques desempenhando o
devia ser exaramente o drama desejado por Zola: papel principal. Trata-se, neste caso, de teatro mu-
sicado, ao gosto do grande público. Por fim, consta
o naturalismo no teatro é uma das maiores aspirações da ainda na pasta dos inéditos do escritor a tradução
literatura moderna, aspiração dificílima de realizar por estar de Le Roi s'arnuse, de Victor Hugo, trabalho feito
o teatro singularmente preso a convenções e porque as pla- em parceria com Olavo Bilac, mas que jamais foi
teias, ávidas de emoções violentas, de Boreios de linguagem publicado ou encenado.
e de tropas imaginosos e guindados, a que as habituou a As duas últimas produções de Aluísio para o
literatura romântica, recusam a aceitar como a mais ele- teatro, mais uma vez com a colaboração de Emílio
vada expressão da arte a calma realidade fria da verdade. Rouêde, foram as comédias Um Caso deAdultério,
Ora, como na comédia da vida o drama não é mais que um em três aros, e Em Flagrante, em um ato, ambas
acidente; quem quiser ser verdadeiro no teatro não pode representadas pela primeira vez no Teatro Lucinda,
fazer quatro ou cinco aros de cenas emocionais, cheias de no dia 26 de julho de 1890.
transporte e de explosões de paixões. Só a primeira mereceu comentários na imprensa,
que não chegou a um acordo sobre a solução para
Ou seja, é no meio da vida comum que o drama o adultério proposta pelos aurores. A peça tem um
irrompe, determinado por uma série de circunstân- enredo simples: Madalena, mulher do coronel
cias, como no caso de O Caboclo, peça em que há,
segundo ainda o articulista de A Semana, "muita 201 O Caboclo e Liçãopara Maridos encontram-se publicadas no
volume Teatro de Aluísio Azevedo e Emílio Rouêde, São Paulo:
verdade, muito boas situações, e que é um grande Martins Fomes, 2002.

• 315
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Roberto, tem como amante um dos frequentadores Peças} Adaptações


da casa, o dr. Aníbal. Outro frequentador, Máximo, e Espetáculos com Traços Naturalistas
não conseguindo os mesmos favores de Madalena,
denuncia-a ao coronel. Este, por sua vez, arma O debate entre os intelectuais e o exemplo de Aluí-
um flagrante, acompanhado de amigos, e expulsa sio Azevedo não contribuíram para a formação de
de casa não só o casal de amantes, mas também o um repertório de peças naturalistas entre nós. No
delator. Por fim, pede aos amigos que divulguem entanto, alguns autores colheram sugestões nas
a cena que presenciaram, como forma de punição ideias desse movimento literário para criar enredos
para as três personagens envolvidas no adultério. e personagens. Em 1886, o Visconde de Taunay
É uma pena que o manuscrito dessapeçase tenha publicou o drama Amélia Smith, no qual colocou
perdido, porque ela foi anunciada como "peça rea- em primeiro plano os problemas de saúde que um
listá' e comentada pelos folhetinistas como produto pai passa para o filho, levando-o à morte. Não deixa
do naturalismo. Na Gazeta deNotícias de 28 de julho, de ser curioso lembrar que alguns anos antes ele
por exemplo, lê-se que o público, "surpreendido a havia criticado duramente Zola e o naturalismo em
princípio, porque não lhe apresentavam os perso- alguns artigos publicados na imprensa e reunidos
nagens costumeiros desse gênero de peças, aceitou, no livro Estudos Críticos, de 1883202.
enfim, o caso que lhe contavam na nudez observada Amélia Smith é um drama curioso, pelo hibri-
de um estudo naturalista" Nesse jornal, aliás,a crítica dismo que apresenta. O primeiro ato pertence ao
foi favorável à peça, considerando sua tese audaciosa mais rigoroso realismo: em cena, marido e mulher,
e boa a sua construção literária e teatral. Igualmente acostumados ao luxo, conversam sobre os gastos
elogiado foi o espetáculo, que contou com as inter- excessivos que têm, vislumbrando, como solução
pretações de Furtado Coelho e Apolônia Pinto. para os problemas financeiros que enfrentam, o
Mas a imprensa não foi unânime no julgamento casamento da filha de 21 anos com um inglês de 42
de Um Caso deAdultério. No Diário deNotícias de e muito rico. A mocinha, Amélia, tem um jovem
28 de julho, o articulista a considera "uma com- pretendente, que é deixado de lado, pois também
posição medíocre" do ponto de vista literário e ela leva em conta a fortuna que lhe permitirá conti-
"insignificante" do ponto de vista teatral, já que nuar a mesma vida luxuosa. Os diálogos, os tipos, a
não traz nenhum ensinamento útil, nenhuma lição questão do dinheiro, tudo é apresentado com a na-
proveitosa. Seu aspecto naturalista não era prova de turalidade típica do drama realista, com a vantagem
valor, uma vez que "desde Zola, o naturalismo no de não haver um raisonneur passando lições morais.
teatro só tem dado resultados pouco animadores". O segundo ato ganha um colorido mais forte:
Como se vê, ainda em 1890 o naturalismo tem depois de cinco anos de casados, John e Amélia
muitos adversários no meio intelectual brasileiro. Smith vivem bem, mas lamentam não ter filhos. A
~anto ao público, mais uma vez não corres- mulher admira o marido e o respeita, sem contudo
pondeu às expectativas de Aluísio Azevedo. Ao amá-lo profundamente. A sombra do adultério
cabo de seis representações seguidas, Um Caso de começa a ameaçar o equilíbrio familiar: um dos
Adultério e a comediazinha Em Flagrante saíram amigos que frequentam a casa, Jorge de Castro, se
de cartaz. Foi a última decepção do escritor com apaixona por Amélia e ela, embora o rejeite, fica
o teatro, gênero que abandonou definitivamente. muito perturbada emocionalmente. As cenas re-
Nem mesmo as histórias do teatro brasileiro regis- produzem o cotidiano das famílias ricas, com suas
traram suas tentativas de levantar o nível do tea- reuniões e conversas entre homens de negócios e
tro que se praticava no final do século XIX. Peças entre as mulheres. Amélia condena a facilidade com
como O Mulato, O Caboclo e Um Caso deAdultério que algumas mulheres casadas traem os maridos e
merecem ser lembradas como exemplos de seu es- comenta com a amigaJúlia que fechou sua porta a
forço no sentido de atualizar o teatro brasileiro, uma delas. Pois essa mulher, Arminda, insiste em
fazendo-o dialogar com a tendência mais moderna
202O livro teve segunda edição em 193 I, pela editora Melhora-
da literatura de seu tempo. mentos, mas com outro título: Brasileiros eEstrangeiros.

• 3 16
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

ser recebida e acaba por protagonizar uma cena O filho não sobrevive e Amélia se consome
constrangedora, em que Amélia a faz compreen- em remorsos. Quer contar tudo ao marido, mas
der, na presença dos convidados da casa, por que o médico a impede, numa cena de forte emoção,
não quer mais a sua amizade. Chama a atenção o em que ela acaba por desmaiar. A peça parece de-
modo exaltado com que se dirige à adúltera: é que fender uma tese, relativa à hereditariedade, como
pouco antes Jorge a havia assediado e reiterado seu queriam os romances naturalistas. O menino es-
amor por ela. tava condenado de antemão à morte. Se a ciência
No terceiro ato, Amélia é amante de Jorge de Cas- é infalível, como parece demonstrar o que ocorre
tro. Amor cheio de remorsos e dúvidas, que a deixou em cena, como entender as últimas palavras do
grávida. Ele quer fugir, elapensa no desgosto deJohn médico, ao cair o pano? Ele diz: "Deus, ó Força
e nos pais. Ele argumenta que terão um filho e ela eternamente vigilante, tua lógica é inflexível!">"
parece ceder, quando a cena é invadidapor Arminda, O contrassenso é surpreendente, mas revela a
perseguida pelo marido que a quer matar. O drama- maneira pessoal com que nossos escritores dia-
lhão se instala de imediato. As falas do marido traído logaram com os movimentos literários que aqui
são um tanto piegas, mas ao sair ele se mata com um chegaram no século XIX, servindo-se deles com
tiro. O que o autor quer ilustrar são as consequências bastante liberdade.
funestas do adultério. Jorge e Amélia desistem de fu- Outro exemplo de apropriação parcial do na-
gir e o rapaz vai embora para a Europa. turalismo é a peça O Crime do Porto, de Antônio
O naturalismo pede passagem no quarto e úl- Soares de SousaJr. (185I-1893), encenada em
timo ato. Seis anos se passaram e a ação centra-se na junho de 1890 no teatro Variedades, no Rio de
doença grave que ameaça a vida do filho que John Janeiro. Autor conhecido pelas comédias, revistas
pensa ser seu. A principal personagem em cena é e mágicas que escreveu, baseou-se num fato real,
um médico, que não consegue entender a "singular fartamente comentado na imprensa da época: na
enfermidade" do menino: cidade do Porto, em Portugal, um médico comete
uma série de crimes por envenenamento para tor-
um desequilíbrio constante nas funções vitais, contínua nar-se o único herdeiro de uma grande fortuna.
superexcitação nervosa a par de invencível depressão de O drama mostra a personagem com sua mania de
forças [...). A causa de tão extraordinárias desordens tanto riquezas, no primeiro ato, e os crimes no segundo
mais escapa à minha investigação, quanto verifico a robus- e terceiro. No quarto há a cena do julgamento,
tez tradicional de todos os seus parentes e ascendenres'?'. que, segundo os jornais da época, na representa-
ção reproduziu-se no palco com todas as minúcias
Em certo momento o discurso científico do do que ocorre na vida reaL Finalmente, o quinto
médico é tão longo que o autor faz uma nota de ato se passa num hospício, onde a personagem
rodapé, sugerindo a sua supressão em uma repre- morre num acesso de loucura, dando margem a
sentação, caso o ator não consiga dar-lhe vivaci- explicações científicas e justificando a defesa do
dade. As explicações para a doença do menino, réu no julgamento.
enfim, surgem quando Amélia conta seu segredo Os críticos e o público não gostaram. A peça
ao médico. O leitor se lembrará que o próprio ficou pouco tempo em cartaz e os comentários em
Jorge de Castro havia contado um pouco da sua geral apontaram que o excesso de realismo no espe-
vida no segundo ato, dizendo, entre outras coisas: táculo foi contraproducente, deixando-o maçante
"Muito doentinho e franzino desde o berço, como e fazendo a plateia se desinteressar do enredo. A
aliás também fora meu pai, custei imensos esforços cena do julgamento foi especialmente criticada,
a minha mãe para resistir à debilidade dessa cons- assim como a discussão científica, como se vê pelos
tituição herdada'' 2 0 4. excertos seguintes, publicados no jornal O País de
14 de junho de 1890, em crítica sem assinatura:
203 Visconde de Taunay, Amélia Smith, São Paulo: Melhoramen-
tos, I930, P: I34-I3 5·
204 Idem, p. 90. 205 Idem.p, I53.

+ 317
História do Teatro Brasileiro + volume 1

o autor preocupou-se neste ato com a fidelidade na re- De qualquer modo, os adeptos do naturalismo
produção de um julgamento no plenário. Ora, é fácil de puderam comemorar ao menos uma vitória. A
compreender que tal intuito, ou torna a representação ex- adaptação do romance O Crime do PadreAmaro,
tremamente fastidiosa, se se consegue pô-lo em prática, ou de Eça de Queirós, feita pelo jornalista Augusto
torna-se inexequível, se ao escritor ocorre uma ou outra vez Fábregas, obteve enorme sucesso. Tudo indica que
a lembrança de que está fazendo uma peça para ser repre- o ator e empresário Furtado Coelho não se deixou
sentada. [...] impressionar pelo fracasso de O PrimoBasílio, doze
Passa-se o último aro num hospício de alienados. Como anos antes, ao apostar mais uma vez em uma obra
desde o princípio se reconhece, a intenção do autor é fazer do grande escritor português. Vime representações
do dr. Urbano uma vítima da loucura emocional, e esse ato seguidas, a partir de 25 de abril de 1890, data da
é consagrado quase exclusivamente à dissertação científica, estreia, e outras vinte ao longo dos meses seguintes
em que Garofallo e Lombrozo são citados com acerto e atestam o sucesso junto ao público.
proveito para a discussão, porém a contragosto da plateia Os críticos teatrais, porém, se dividiram. Para
que não se recreia com a ciência trazida, quase sem atavios, alguns, a adaptação era simplesmente detestável,
para as tábuas do palco 1 0 6 • por haver deturpado o romance de Eça de Queirós,
Na Gazeta de Noticias de 28 de abril, um indignado
Segundo os comentários críticos, apesar dos Olavo Bilac bradava:
momentos realistas da peça, o autor errou a mão ao
incluir cenas cómicas, personagens que aparecem Não espere o sr. Fábregas que fique impune o seu crime.
no primeiro ou segundo atos e desaparecem nos Não confie nos aplausos do público, e muito menos nos
demais, sem que se tenha notícia deles. Em re- elogios da crítica: o remorso, sombra implacável, pavo-
sumo, segundo ainda o mesmo articulista, "a peça roso espectro, há de colar-se-lhe aos passos e persegui-lo
O Crime do Porto é um completo desastre teatral". toda a vida.
É possível encontrar traços naturalistas em outras
peças escritas no período, como OMaridodeAngela, Olavo Bilac não aceitou, na verdade, as modifica-
do gaúcho Joaquim AlvesTorres1 0 7 ; O Sorvedouro, de ções necessárias para dar ao romance a teatralidade
j.M, Cardoso de Oliveira':", representada em francês, que originalmente ele não tinha. E isso foi conse-
com o título Le Goujfre, em Genebra, em fevereiro guido evidentemente com alterações no enredo e no
de 1901. Talvez haja outras, de autores ainda menos caráter das personagens. Só para dar uma ideia dessas
conhecidos, que uma pesquisa em velhos arquivos alterações, basta dizer que no desfecho da adapta-
fora do Rio de Janeiro possa desenterrar'?". ção o padre Amaro é morto com um tiro por João
Eduardo, o que anula alógica do enredo do romance
206Em Vanessa Cristina Monteiro, Retemperandoo Drama: e as intenções críticas do romancista português.
Convenção e Inovação segundo a Crítica Teatral dosAnos r890,
tese de doutorado, Unicamp- 1EL,2010, V. 2, p. 233. Em outras palavras, Augusto Fábregas fez con-
207 Joaquim Alves Torres (1853-1890) é mais conhecido como cessões, socorreu-sedejicelles, dobrou-se às convenções.
autor ligado ao teatro operário e anarquista. Três peças de sua
~em compreendeu, explicou e aceitou a teatrali-
autoria (O Ultraje, O Trabalho, A CiumentaVélha) foram reuni-
das em Teatro Social (Porto Alegre: 1EL,1989). É nesse volume dade assim construída foi o folhetinista e também
que consta a informação de que O Marido deÂngela é uma peça
escrita a partir das "regras do naturalismo", conciliadas com o
autor dramático Figueiredo Coimbra, no Diário
recurso a "lances dramáticos". de Noticias de 29 de abriL Respondendo inclusive
208 Pouco se sabe desseautor, que não é mencionado por J.Galante a Olavo Bilac, ele fez uma série de observações que
de Sousa no segundo volume de seu O Teatro noBrasil. O Sorve-
douro foi publicada em 1902 pela Garnier e é dedicada ajoaquim merecem transcrição, porque elucidam mais uma
Nabuco, o que faz supor que se trata de um homem ligado ao Ira- vez as dificuldades de adaptação do naturalismo
rnarati. O assunto abordado foi colhido em I:Assommoir, de Zola:
o alcoolismo nas camadas inferiores da sociedade. no teatro:
209 Vale lembrar que nas duas primeiras décadas do século xx
traços naturalistas podem ser encontrados em peças de vários
autores, entre eles Coelho Neto, Júlia Lopes de Almeida e o parai-
A minha opinião é que Fábregas não devia fazer a peça: a
bano Orris Soares (A Cisma, por exemplo, de 1915, desenvolve-se verdade rigorosa, a observação fiel dos processos realistas
a partir da tese de que a filha de uma mãe adúltera não escapará
ao mesmo destino).
são incompatíveis com as obras feitas para serem exibidas

+ 31 8
+ o Teatro de Entretenimento e as Tentativas Naturalistas

à luz da rampa. O escritor que tiver a pouco louvável ideia ler urna apreciação simpática à peça e que também
de extrair uma peça de romance naturalista, há de forço- justificava as alterações do enredo e do caráter das
samente, para contentar o público, falseá-lo na essência e personagens, considerando-as corno "exigências
na forma [... J. teatrais': expressão que poderia ser substituída por
Sabe Olavo Bilac que o efeito teatral é quase sempre "exigências da convenção".
tudo que há mais em contraposição à verdade. A gente na É possível colher nos folhetins da época muitas
vida real vê todos os dias o vício campear triunfante, e a outras manifestações de reconhecimento da neces-
virtude, ou o que é bom que lhe seja equivalente, oprimida sidade da convenção no teatro. Mas não é preciso
e desprezada. Zola e Queirós observam e descrevem a vida alongar desnecessariamente essas considerações,
como ela é, com um escrúpulo da máxima franqueza que urna vez que os argumentos repetem, de um modo
nada procura ocultar do que vê e do que sabe. Aparece o geral, o que está sintetizado nas palavras de Figuei-
escritor dramático e aproveita para o teatro as observações, redo Coimbra transcritas acima. O que parece mais
o processo artístico, as personagens, a ação, o mais possível, interessante é pôr em relevo a seguinte questão:
dos mestres, acomodando o conjunto aos moldes da con- se O Crime do Padre Amaro fez tanto sucesso de
venção teatral. Condene-se o escritor por ter feito a peça público, por que não surgiram outras adaptações
em que fatalmente devia profanar a obra de arte; mas não de romances naturalistas escritos em português
vamos a condená-lo porque ele a não fez antireatral, sempre no último decênio do século XIX? OU mais es-
de acordo com o romance [...]. pecificamente: por que os romances naturalistas
O naturalismo no teatro é assunto discutido e vencido brasileiros não foram adaptados ao teatro? Intriga
[...]. Mas para aqueles que ainda acham possível fazer litera- saber que praticamente todos os principais roman-
tura dramática pelos processos do naturalismo, há a apontar ces naturalistas franceses ganharam uma versão
o exemplo dessestriunfadores do teatro, Augier, Sardou, Du- teatral - de Zola, depois de EAssommoir e Nana,
mas, Meilhac e Paílleron, cujo trabalho artístico foi sempre foram adaptados: Pot-Bouille (1883), Renée - La
escravo da convenção, quando não só dependente daficelle. Curée - (1887),Le Ventre de Paris (1887), Germi-
nal (1888); dos irmãos Goncourt: SoeurPhiloméne
Para Figueiredo Coimbra, como se vê, a con- (1887), GerminieLacerteux (1 888), La FilIeElisa
venção é um elemento indispensável no teatro. Daí (1890), CharlesDemailly (1892); de Alphonse Dau-
sua defesa do desenlace imaginado por Augusto Fá- det: Le Nabab (1 880),]ack (1881), L'Évangéliste
bregas, como um lance "teatralmente necessário" (1885), Numa Roumestan (1887), Sapho (1892).
para a vitória da moral. Os espectadores, aliás, o Ora, se a França foi nosso modelo literário e tea-
aplaudiram "entusiasticamente". tral em todo o século XIX, por que o exemplo de
Váriosoutros folhetinistasse ocuparam de O Crime Aluísio Azevedo com O Mulato, em 1884, pro-
do Padre Amaro. Alguns, à semelhança de Bilac, vavelmente inspirado em Zola, não frutificou? O
condenaram a adaptação, como foi o caso de Artur que se constata é que nossos escritores naturalistas
Azevedo, que um dia antes do poeta, a 27 de abril, mantiveram-se afastados do teatro e que ninguém se
no Correio doPovo, não só considerou a adaptação interessou em adaptar osseus romances para a cena'".
"um verdadeiro sacrifício literário menos descul- É o caso de perguntar: não estaria aí uma dás causas
pável que o próprio crime do padre Amaro" como da fraqueza do naturalismo teatral no Brasil?
julgou o drama "francamente obsceno"2.Io.Jána Ga- Talvez a resposta a todas essas questões esteja
zeta deNotícias, no mesmo dia 27 de abril, podia-se no panorama do teatro brasileiro traçado nos ca-
pítulos anteriores. A hegemonia das peças cômicas
210 O artigo de Artur Azevedo provocou uma resposta de Au- e musicadas, a presença constante de companhias
gusto Fábregas, que o acusou de aproveitar-se da inimizade que
havia entre ambos para julgar desfavoravelmente a adaptação.
estrangeiras, a inexistência de um teatro amparado
Artur treplicou, reafirmando suas críticas e negando que tivesse
sido movido por sentimentos pessoais. Tudo isso está bem con-
tado e documentado no artigo "Eça de Queirós Teatralizado no 211 Galante de Sousa, no segundo volume de seu O Teatro no
Brasil",publicado sem assinatura na Revistade Teatro da Sbat, n. Brasil,menciona uma adaptação de Casa dePensão, romance de
324, de novembro/dezembro de 1961, e que deve ter sido escrito Aluísio de Azevedo, feita por Fernando Pinto de AlmeidaJúnior.
por Aluísio Azevedo Sobrinho, filho de Artur. Mas não há notícia de que tenha sido encenada.

+ 319
História do Teatro Brasileiro • volume1

pelo governo, o empresário preocupado com os lu- teatro e o resultado desastroso foi o aniquilamento
cros, o público sem interesse pelo teatro de cunho da dramaturgia com:valor literário. As tentativas
lÍterárÍo, tudo isso contribuiu não só para a derrota naturalistas de Aluísio Azevedo nem são levadas
específica do naturalismo teatral como para a der- em conta pelo historiador da literatura brasileira,
rocada de toda a arte dramática de cunho literário que não entrevê, no momento em que escreve,
no país. Vale lembrar também, no caso do natura- "nenhum sintoma de revivescência literária [...].
lismo, o que já foi dito anteriormente, ou seja, que Não há, pois, esperança de que o teatro possa se
Zola não conseguiu mesmo fornecer um modelo aproveitar de um renascimento literário, com
de drama para os adeptos de seu movimento no o qual não é absolutamente possível contar">".
Brasil. E mais: não tivemos iniciativas importantes O diagnóstico de Veríssimo é duro, mas verda-
fora do circuito do teatro comercial, como foi o deiro. Ao contrário do romantismo e principal-
caso do ThéâtreLibre de Antoine, em Paris, que mente do realismo, o naturalismo não produziu
não era submetido à censura e representava ape- entre nós uma dramaturgia inteiramente identifi-
nas para "assinantes': em não mais que dois ou três cada com às suas ideias teóricas, não se organizou
espetáculos por mês. Aliás, é importante assinalar como movimento, não teve um núcleo de ensaia-
que durante os anos em que o Théâtre Libre fun- dores e artistas, não se constituiu enfim como uma
cionou, entre 1887 e 1894, nenhuma das dezenas alternativa teatral e literária aos gêneros populares.
de peças ali encenadas - entre elas adaptações de Apenas nas duas primeiras décadas do século xx
romances e contos naturalistas, pequenas "tranches o naturalismo será referência para novos autores
de vie" e "comédias amargas" escritas sob inspiração dramáticos e encenadores, mas sem que isso tam-
de Henry Becque - foi apresentada nos teatros do bém tenha significado uma adesão irrestrita aos
Rio de Janeiro. Somem-se todos esses dados e a procedimentos dramáticos e teatrais sonhados
explicação para a fraqueza do naturalismo teatral por Émile Zola. Nem mesmo a revelação de Ib-
entre nós fica menos difícil de ser compreendida. sen - com a representação de OsEspectros por uma
Para se ter uma ideia de como os intelectuais companhia italiana em 1895 e de Casade Boneca,
brasileiros viam a situação do nosso teatro nesse de Ibsen, por Lucinda e Lucília Simões, em 1899 -
momento, basta ler o excelente balanço feito por e os espetáculos apresentados por André Antoine
José Veríssimo no livro EstudosBrasileiros: Segunda no Rio de Janeiro, em julho de 1903, motivaram
Série, publicado exatamente em 1894. Para ele, os o surgimento de um teatro naturalista expressivo
nossos escritores deixaram de se preocupar com o no Brasil.

212José Veríssímo, Estudos Brasileiros: Segunda Série (r889-


r893), Rio deJaneiro: Laemmert, 1894, P: 2.53-2.54-

• 32 0
v.
o Teatro no
Pré-Modernismo

r. A PERMANÊNCIA DO TEATRO abolicionista e republicana, a inauguração de no-


CÔMICO E" MUSICADO vas linhas de bonde e, em seguida, as reformas do
"Bota Abaixo': concorreram para a consolidação
das várias formas de diversão à disposição das pes-
Na primeira década do século xx, o Rio de Janeiro, soas. O grande número de teatros, cafés-concerto,
capital da recém-proclamada República, viveu uma circos, pavilhões e chopes-berrantes ofereciam a um
enorme transformação urbanística, sob o comando público ávido de entretenimento e novidade uma
do prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913). O gama das mais variadas de artistas e esperáculos.
então chamado "Bota Abaixo" implementou profun- Esta ainda incipiente indústria cultural fazia com
das modificações no traçado urbano da cidade, nos que os artistas e técnicos ligados ao chamado tea-
moldes da reforma promovida no século XIX em tro ligeir0 2 não somente passassem por uma efetiva
Paris.Adotando como slogan arrase "O Rio Civiliza- profissionalização como buscassem oferecer a esse
-se!': criado pelo jornalista Figueiredo Pimentel na público novas atrações.
coluna "Binóculo': da Gazeta de Noticias', essepro- Se era recorrente a ideia de que o final do século
cesso,modelado pelo cosmopolitismo parisiense,não XIX teria sido de "decadência" do teatro nacional,

previu a participação da população de baixa renda. tal ideia contrastava com a intensa movimentação
As partes nobres da cidade foram destinadas às elites existente nos teatros nesse período, em que se assis-
e as camadas populares da população foram "empur- tia ao aparecimento de novas formas culturais: "a
radas" para os subúrbios e para os morros. Botafogo, permanência e o desenvolvimento de uma tradição
Laranjeiras, Cacete, Glória e as novas grandes aveni- cómica, o envolvimento com a produção musical
das do centro da cidade representavam o Rio "civili- popular e a constituição de um incipiente mercado
zado"; a Cidade Nova, o Carumbi, a zona portuária,
os subúrbios e as favelas, o Rio "atrasado". 2 A produção teatral no início do século XX pode ser divi-
As transformações na paisagem urbana na ci- dida entre "teatro sério" e "teatro ligeiro". Destinado sobretudo
ao entretenimento e à diversão, este último não correspondia
dade incrementaram a indústria do entretenimento às expectativas da crítica da época, que ansiava por uma atívi-
que vinha ganhando força desde fins do Império. dade teatral vinculada aos movimentos literários naturalista e
realista, e desprezava a produção voltada para o então incipiente
O fortalecimento da imprensa após as campanhas mercado teatral brasileiro - que, segundo essa crítica, não teria
preocupações artísticas mais elevadas. CE. Maria Filomena Vilela
Chiaradia, A Companhia deRevistas eBurletas do Teatro SãoJosé:
1 Apud Brito Broca, A VidaLiterárianoBrasil: 1900, Rio de A Menina dosOlhos dePascboal Segreto, dissertação de mestrado,
Janeiro: MEC,Serviço de Documentação, 1956, p. 14· Uni-Rio, 1997, p. 19-24.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

cultural de massas"? são alguns dos fatores que po- mantinham relação ao menos com um tema geral,
dem ser associados à voga do teatro ligeiro. expresso no título da peça. Da virada do século até
Preferidos da plateia, os gêneros musicais perma- os anos de 1920, se ainda houve "muitas remonta-
neciam incólumes às discussões entre intelectuais gens dos êxitos do passado">, o que definiu o perfil
e artistas acerca da necessidade de se fundar um das revistas foi um forte relacionamento com as
teatro dito "sério" no país. A revista de ano, as bur- festas populares brasileiras, mais especificamente
letas, as mágicas, as operetas, as paródias e os vaude- o Carnaval:
viles atraíam multidões aos teatros, possibilitando a
criação de um rico mercado em que trabalhava um À jeunesse dorée brasileira caberia encontrar um teatro ca-
grande número de atores e atrizes, empresários, au- paz de traduzir a alma brasileira, com seus tipos, seus mula-
tores, ensaiadores, cenógrafos, assim como diversos tos, seus malandros, numa frenética mistura de ingredientes
outros profissionais relacionados às montagens dos bem temperados, sob o ritmo alucinante de nossa música
espetáculos. A cada temporada, subia à cena uma popular, e, ao mesmo tempo, estar em sintonia com o pro-
infinidade de peças, que ficavam pouco tempo em grama de reurbanização subordinado ao signo europeu de
cartaz - salvo evidentemente as exceções -, pois modernidade. Um teatro que, lidando com o que vinha de
era preciso atrair o público com novidades, como fora e à luz das regras portuguesas e francesas, iria utilizar
observou um estudioso do período: as raízes folclóricas e regionais, incluindo na cena a cultura
brasileira com os seus mais diferentes aspectos. Ao combi-
Ninguém fez ainda um levantamento aprofundado, minu- nar os elementos paradoxais de nossa sociedade, o teatro
cioso, a fim de descobrir quantas revistas de teatro foram à de revista encontrara a sua fórmula: misturar o Carnaval
cena nestes quase 130 anos de sua existência no Brasil. [...] popular com a magia féerica de um palco que, ao mesmo
Devem orçar por algumas dezenas de milhares as revistas, tempo, se comprometia a tratar do aqui e agora",
reuuettes, revisras-burleta, revistas-fantasia e pocket-shows
representadast. Eram intensas as relações estabelecidas entre
as revistas e o CarnavaL A festa popular apare-
Desse modo, os exemplos que aqui serão citados cia como tema dos espetáculos, nos quais eram
devem ser considerados como pequenas amostras aproveitadas em cena músicas que tivessem feito
de um universo infinitamente maior. grande sucesso durante o então chamado "tríduo
momesco": por vezes ocorria o inverso, com o lan-
çamento nos palcos de músicas que se tornariam
A Revista Carnavalesca os sucessos do Carnaval seguinte:

Nas primeiras décadas do século xx, a revista Até o advento da radiofonia, [o gênero foi] um verdadeiro
manteve lugar de destaque no Brasil entre os gê- veículo de divulgação do cancioneiro do povo, de seus
neros musicais. Introduzida no país em meados do ritmos mais expressivos e lançador de sucessos sem conta,
século anterior como revista de ano - espetáculo especialmente os carnavalescos, que saíam do palco dire-
que traçava um panorama crítico e bem-humorado tamente para a preferência das ruas/.
dos principais acontecimentos políticos, culturais
e sociais do ano que findava -, gradualmente per- A prática das revistas de Carnaval tornou-se
deu seu caráter retrospectivo, definindo-se como logo popular, com as peças seguindo, em geral,
um espetáculo musical estruturado em quadros um modelo constituído por
sucessivos e estanques, mas interdependentes, que

3 Fernando Antonio Mencarelli, CenaAberta:A Absolvição de


um Bilontra e o Teatro de Revista de Artur Azevedo, Campinas: 5 Neyde Veneziano, Não Adianta Chorar. Teatrode Revista
Editora da Unícarnp, 1999,P' 61. Brasileiro... Obal, Campinas: Editora da Unicamp, 1996'P.47.
4 Salvyano Cavalcanti de Paiva, VivaoRebolado!Vida eMorte 6 Idem, p. 50.
do Teatro de Revista Brasileiro, Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 7 Roberro Ruíz, O Teatro de Revista no Brasil:Das Origensà
1991'P·166. Primeira GuerraMundial, Rio de Janeiro: Inacen, 1988, p. 87.

• 32 2
• o Teatro no Pré-Modernismo

um prólogo em que Morno viria propor, como solução com dois compadres conduzindo o enredo, no qual
para os males do Rio de Janeiro, geralmente atacado pela rei Morno - disfarçado de Abdul-Hamid, árabe e
pindaibite, que se caísse na folia. A apoteose final deveria muçulmano - e Carnaval, que se apresentava como
ter atrízes representando as três sociedades carnavalescas". Zé Pereira, conduziam o habitual passeio pelo Rio
de Janeiro, em que desfilavam os acontecimentos
Tais agremiações, denominadas Os Fenianos (fun- do ano anterior. Apesar de retratar a festa como de-
dada em 1869), Os Tenentes do Diabo (fundada cadente e desanimada, Comeu! é uma das primeiras
em 1855) e Os Democratas (fundada em 1867), revistas que tem o Carnaval como assunto central,
assumiram o papel de destaque anteriormente al- destacando o que este representava sentimental-
cançado pelas atrizes da revista, cujos admiradores mente para os habitantes da cidade".
organizavam-se em partidos. Nesse momento, "as O Cordão, escrita por Artur Azevedo a pedido
torcidas na plateia não eram mais pelas vedetes, da atriz Cinira Polônio, que a representou com sua
mas por esses três clubes tão importantes para a companhia no Teatro Carlos Gomes em fevereiro
cidade?", cujos apelidos forneceram o título de uma de 1908, suscita dúvidas quanto ao gênero a que
das melhores e mais famosas revistas carnavales- pertence: alguns amores a classificam como "revista
cas, da autoria de Cardoso de Menezes, estreada carnavalesca', outros como "burleta escrita para o
na Companhia de Revistas e Burletas do Teatro Carnaval". Tendo a festa popular como tema, o es-
S.José em 1912: Gato) Baeta e Carapicu, na qual petáculo alcançou grande êxito, sendo remontado
o compadre Carioca encaminha para o concurso com frequência: quatro vezes em 1909, uma vez em
realizado pelos clubes os pretendentes à mão de Vi- 1910, duas vezes em 1918, duas vezes em 1921 e
tória, filha de História, estimulando-os a fazerem o uma vez em 192212.
melhor desfile - cujo prêmio será a mão de Vitória.
No mesmo ano, Gato) Baeta e Carapicu enfrentou
a concorrência de duas outras montagens alusivas ao Autores) fi.utores-Ensaiadore/) e
Carnaval: a revista-burleta O Carnaval, de Ataliba Ensaiadores
Reis e João Cláudio, que, encenada no Teatro Rio
Branco, obteve um grande êxito, alcançando 128 Ocupando o lugar que ficara vago com a morte de
representações; e a revista Zé Pereira, também da Artur Azevedo e seu parceiro Moreira Sampaio
autoria de Cardoso de Menezes e igualmente um (1851-1901), destacam-se, entre os inúmeros amo-
grande sucesso no Teatro S. José, onde alcançou res do teatro musicado surgidos nas duas primeiras
15 0 representações". décadas do século xx, Cardoso de Menezes ( 187 8-
O Carnaval foi tema também de duas das últi- 1958), Carlos Bettencourt (1888-1941), Raul Pe-
mas peças de Artur Azevedo (1855-1908), o mais derneiras (1874-1953) e Luiz Peixoto (1889-1973).
importante amor da segunda metade do século XIX, Todos pertenciam ou relacionavam-se com um
responsável pela consolidação das revistas, burletas, especial grupo de escritores, caricaturistas e compo-
paródias e operetas traduzidas do francês. Comeu! sitores, os chamados "humoristas boêmios", artistas
teve sua estreia no Teatro Lucinda, em 1902, e O e intelectuais cariocas que tiveram enorme atuação,
Cordão no Teatro Carlos Gomes, em 1908. por meio do riso, da descontração e da criatividade,
Comeu! - que tinha música de Abdon Mílanez na crítica da "modernidade" imposta pelo projeto
e intérpretes experientes como Pepa Ruiz, João Co- de cidade vigente, que tinha como modelo a cultura
lás, Medina de Souza e Estefânia Louro, entre mui- europeia".
toS outros - foi anunciada como "revista cômica de
acontecimentos, em três aros e 15 quadros"; man- 11 Idem,p.135-136.
tinha, no entanto, a estrutura das revistas de ano, 12 Angela Reis, Cinira Polônio, a Divette Carioca: Estudo da
ImagemPúblicaedo Trabalho de uma Atriz no Teatro Brasileiro
da Virada doSéculo XIX. Rio deJaneiro: Arquivo Nacional, 1999,
N. Veneziano, op. cir., P: 61. p. II9, 157·
Idem,p·5 0-53· 13 Mônica Pimenta Velloso,111odernismo no Rio deJaneiro:Tu-
10 S. C. de Paiva, op. cít., P: 159-161. runaseQ}tixotes, Rio deJaneiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Formado sobretudo por caricaturistas e homens seus inúmeros sucessos, destacam-se: Berliques e
da imprensa14, o grupo buscava novos canais de in- Berloques, "a grande revista de 190]': representada
tegração e expressão social, sendo nas ruas e não no Teatro Recreio, que firmou Raul Pederneiras
por meio de um movimento literário organizado como "um revistógrafo moderno, hábil e de "verve"
que essesintelectuais - opositores ao modelo de so- saborosa'": O Babaquara, que estreou no Pavilhão
ciedade que as elites tentavam impor - procuraram Internacional em 1912; O Rio Civiliza-se, cujo tí-
viver e explicar a história do Rio de Janeiro. Desse tulo utilizava o slogan que empolgava a imprensa
modo, retrataram em suas peças, textos cômicos, da época, estreada no Cine-Teatro Rio Branco em
caricaturas e músicas não apenas a cidade moderna, 1912; A Última do Dudu, que subiu à cena em
das luzes e de amplas avenidas, idealizada pela re- janeiro de 1915 no Teatro S. Pedro, primeira das
forma urbanística do início do século, mas o Rio de inúmeras peças surgidas no teatro musicado carioca
Janeiro cindido, esquecido e abandonado. que tiveram como tema o ex-presidente Hermes
Relacionando-se tanto com a cultura sofisticada da Fonseca (o Dudu do título, a quem atribuíam a
quanto com a cultura popular de sua época.", esses fama de ingênuo e azarado) 19 ; O Morro da Graça,
aurores retrataram uma sériede tipos das ruas do Rio, que brincava com a casa e o bairro em que o senador
não apenas no teatro musicado, ao qual muitos se de- Pinheiro Machado recebia seus correligionários";
dicaram, mas também em conferências humorísticas com música de Assis Pacheco e Armando Percival,
ilustradas. Luís Edmundo, grande cronista carioca, encenada em julho de 1915, no recém-inaugurado
descreve a turnê na qual Luiz Peixoto e Raul Peder- Teatro República.
neiras se apresentavam como conferencistas, apre- Frederico Cardoso de Menezes e Souza nasceu
sentando "récitas de bom humor e alegre espÍrito"16. no Catete, no Rio de Janeiro, e foi criado entre
Raul Pederneiras, nascido no Rio de Janeiro, artistas e intelectuais famosos, que frequentavam
formou-se em Direito nessa mesma cidade; foi a casa de seus pais. Seu pai, Antônio Frederico Car-
colaborador de vários periódicos cariocas e pau- dozo de Menezes e Souza, filho do barão de Para-
listas, presidente da Associação Brasileira de Im- napiacaba (grande erudito, autor de várias obras e
prensa, conselheiro da Sociedade Brasileira de traduções, e que gozava de grande influência junto
Autores Teatrais, delegado de polícia e membro a D. Pedro II), havia sido músico, escritor, poeta e
de várias agremiações literárias e científicas, além teatrólogo bastante popular no período de 1875 a
de caricaturista atuante em diversos periódicos 19 I o; sua mãe, Judith Ribas Cardozo de Menezes
humorísticos". Escreveu cerca de quarenta peças e Souza, era musicista, e tinha sido colaboradora de
teatrais, a maioria delas revistas e burletas. Dentre Artur Napoleão, compositor e importante editor
de partituras musicais na virada do século XIX.
14 Não é possível precisar quem exatarnente fazia parte do grupo Cardoso de Menezes tornou-se funcionário
ou não, já que esse, pelas características de seus membros, não
obedecia a uma filiação restrita. Mônica Velloso elenca entre os público em 1895, trabalhando na Alfândega e no
intelectuais boêmíos, além dos aurores já citados, os caricaturistas Tesouro Nacional, onde se aposentou. Estreando
Kalíxto.]. Carlos, os escritores Lima Barreto,João do Rio, Orestes
Barbosa, Emílio de Menezes, entre outros. CE idem, lbídem. como autor teatral com a burleta Comes eBebes, em
15 Atuando no campo cômico e estabelecendo canais de troca 19 I 2, na Companhia do Teatro S. José, tornou-se
de informação entre as camadas populares e as elites, esses aurores
atuavam como verdadeiros "mediadores" culturais. Segundo o mo-
um dos autores mais famosos do gênero ligeiro no
delo sugerido pelo historiador inglês Peter Burke, em seu estudo
sobre a cultura popular na Idade Moderna europeia, os mediadores
culturais amavam como intermediários entre a grande tradição - a 18 S. C. de Paiva, op. cit., p. 148.
alta cultura - e a pequena tradição - a cultura popular. François 19 A peça permaneceu dois meses em cartaz, tendo a crítica
Villon e François Rabelais, segundo o historiador inglês, "não eram elogiado a "verve" saborosa e a originalidade de Pederneiras ao
exemplos não sofisticados da cultura popular, mas sim mediadores tratar dos acontecimentos políticos. CE idem, p. 174.
sofisticados entre as duas tradições". A CulturaPopular na Idade
20 Segundo Mário Nunes, a "peça desse autor é uma espécie de
Moderna: Europa} I 500- I 800, São Paulo: Companhia das Letras, mascote. Registram-se enchentes [termo utilizado pela imprensa
1989, p. 9 I-I 03· da época para nomear um grande sucesso]. Grande é o valor do
16 De um Livro de Memárias, v. 3, Rio de Janeiro: Departa- humorista e o público muito ri e se diverte com suas piadas e
mento deImprensaNacional, 1958,P' 654. caricaturas. [...] Trocadilha com graça e escolheu bem os cola-
17 CEJ. Galante de Sousa, O Teatro no Brasil, Rio de Janeiro: boradores musicais" [...]. Em: 40 Anosde Téatro, Rio deJaneiro:
MEC(INL, 1960, v. 2, p. 403-404. MEC/SNT, 19 56, v. I, p. 84.

• 324
• o Teatro no Pré-Modernismo

Tornou-se funcionário da Saúde Pública, escre-


vendo suas peças nas horas vagas de trabalho. A
partir de 1909 empregou-se como repórter policial
no jornal O País, no qual tornou-se conhecido pelo
pseudônimo deAssombro. Seu primeiro grande su-
cesso como autor foi a burleta Forrobodó, escrita
com Luiz Peixoto, seu parceiro mais importante
antes de Cardoso de Menezes. Teve peças monta-
das por várias companhias de destaque do período,
como as de João de Deus e :Margarida Max, ambas
no Teatro Recreio; a Companhia Nacional de Ope-
retas e Melodramas do Teatro S. Pedro, da Empresa
Paschoal Segreto; a Companhia de Antônio de
Souza, no Teatro Carlos Gomes.
Luiz Peixoto, "o maior autor durante 60 anos,
desde 1911"2\ nasceu em Niterói, em 1889. Ini-
ciando ainda muito jovem sua carreiraartística como
caricaturista, teve a oportunidade de manter contato
diário com os grandes nomes da imprensa da época,
escritores e caricaturistas ligados ao jornalismo e ao
teatro musicado. Nessegrupo, que unia boêmia e arte,
encontrou Carlos Bettencourr, parceiro mais cons-
tante em sua primeira fase como autor teatral, com
Os dramaturgos Raul Pederneiras, quem estreou na revista Seiscentos eSeis, em 191123 •
João Phoca e Luiz Peixoto, em 1913. Apesar da pouca repercussão da primeira peça, es-
creveram no mesmo ano um dos maiores sucessos
Rio de Janeiro, celebrizando-se em especial como do teatro popular carioca, Forrobodó, que teve sua
autor de revistas carnavalescas. Seu maior sucesso estreia em 19 I 2.
foi a já citada Gato} Baeta e Carapicu, remontada Durante as duas primeiras décadas dos século
um sem-número de vezes. O autor teve o raro pri- xx, Luiz Peixoto dedicou-se, como autor teatral,
vilégio de "ver suas peças em cena por mais de cem quase que exclusivamente à produção de burletas,
apresentações consecutivas, o que era considerado, nas quais revelavagrande senso de humor e um olhar
para os padrões da época, e do teatro ligeiro, claro sensível e arguto sobre a sociedade brasileira, exa-
indicativo de qualidade":". Muitas de suas peças de minada em suas contradições. Em 19 I 6, lançou, no
maior êxito foram escritas com Carlos Bettencourt, Teatro S.]osé, com Carlos Bettencourt - com quem
sendo expressivoo número de originais da "felizpar- vinha triunfando no teatro musicado carioca desde
ceria" (formada ao longo de dez anos) apresentados o imenso sucesso de Forrobodó: Morroda Favela, na
no Teatro S.José: doze, em um total de 33 escritas qual inovavam mais uma vez, ao escolher como tema
pelos autores no âmbito da Companhia de Revistas para uma "burleta de cosmmes cariocas"uma favelae
e Burletas, empresariada por Paschoal Segreto. seus habitantes; e Dançade Velho, revista de motivos
Carlos Bettencourt nasceu no Rio de Janeiro; fi- carnavalescos em cinco atos, cinco quadros e uma
lho de médico, foi obrigado pelo pai a seguir a mesma apoteose, que, em cartaz no S. José, alcançou mais
carreira, mas cursou apenas um ano da faculdade. de cem representações consecutivas. Nesse mesmo

22 S. C. de Paiva, op. cit., P: 160.


21 M. F. V. Chiaradia, A Companhiade Revistase Burletasdo 23 Daniel Marques da Silva, «precisa Arte e Engenho até..." Um
Teatro SãoJosé..., p. 84. Todas as informações sobre Cardoso de Estudosobre a Composição doi'ersonagem-Tipoatravés das Burletas
Menezes e Carlos Bettencourt foram extraídas da dissertação de deLuiz Peixoto, dissertação de mestrado, Uni-Rio, 1997, P: 7-12.
mestrado dessa autora. Todas as informações sobre Luiz Peixoto foram retiradas dessa obra.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

ano, produziu, em parceria com Raul Pederneiras, de ter uma comédia de sua autoria premiada pela
O Gaúcho, que estreou no mesmo teatro. Academia Brasileira de Letras, nunca teve interesse
Em 1917, Luiz Peixoto escreveu Três Panca- em deixar de escrever gêneros considerados "ligei-
das, outra vez com Carlos Bettencourt; no ano ros", sobretudo revistas - na sua opinião, "um dos
seguinte, ainda com o mesmo parceiro, a burleta gêneros mais difíceis':".
Flor do Catumbi e, com Freire Júnior, Saco doAl- Nos anos de 1930 trabalhou como diretor ar-
feres, burleta encenada no Teatro S. José, na qual tístico do Cassino da Urca, sendo o responsável
mais uma vez os autores voltavam-se para a difícil direto pelo memorável sucesso desse estabeleci-
vida das camadas populares: mento na área de shows, onde figuras da música
popular brasileira e do teatro ligeiro alcançaram
o dom de observação dos jovens autores captava com um sucesso internacional - sendo o caso mais famoso
realismo lírico, uma certa cumplicidade sentimental, o o da cantora Carmem Miranda, que saiu dos espe-
comportamento de cidadãos marginalizados pela sociedade táculos do cassino para a Broadway e em seguida
de massa, urbana, como alfaiates, sapateiros rernendões, para Hollywood.
matutas explorados pelas ambições eleitorais, solteironas Luiz Peixoto foi um dos sócios fundadores da
amadas por poetas de terceira ordem e preteridas por mu- Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, associação
latinhas sestrosas e rnaxíxeíras, e chefetes políticos sem eira da qual participou em várias diretorias, sendo presi-
nem beira. Além de pôr no palco cenas das festividades dente no biênio 1950- I 95 I; dirigiu ainda a Escola
de S. João, a revista utilizava trocadilhos e pilhérias bem Dramática Martins Pena durante a década de 1960.
brasileiras". Os autores aqui citados retrataram, não apenas
no teatro como na caricatura, na poesia e em letras
Em 1919, Luiz Peixoto estreou, em parceria de músicas, tipos populares excluídos pelo processo
com Luís Edmundo, a burletaRepública deItapiru. de modernização criado para o Rio de Janeiro e
Além das burletas já citadas, escreveu neste período para todo o Brasil: mulatos pemósticos, tias baia-
mais quatro revistas teatrais: Seiscentos e Seis, de nas, prostitutas, valentões capoeiras, portugueses
19 I I, a primeira produção de sua fértil parceria ricos ou coronéis do interior enlouquecidos por
com Carlos Bettencourt; Abre Alas, de 1913; A mulatas que os maltratavam com seus requebros.
Roda Viva, de 1915, tendo, em ambas, por par- Seus ambientes eram os clubes carnavalescos, as
ceiro João Rego Barros; e Morreu o Neues, revista gafieiras, os cirquinhos, as quermesses, as pensões.
de 19 12, escrita em parceria com Raul Pederneiras. Além da importância desses autores como cro-
Trabalhando em inúmeras companhias, Luiz nistas de um Rio de Janeiro não oficial, é necessário
Peixoto foi autor, diretor de companhia, cenó- ressaltar uma das suas funções específicas na área
grafo, figurinista, ensaiador, letrista e mesmo ator teatral: a de comediógrafos que escreviam para
de conferências humorísticas. Em 1922, revolucio- a cena, em um movimento determinante para a
nou o teatro de revista trazendo mais bom gosto própria constituição dos gêneros ditos ligeiros. Um
ao coro de girlse aos figurinos, seguindo o modelo espetáculo de teatro popular musicado de então era
da companhia francesa Ba-ta-clan. Participou feito por uma extensa rede de colaboradores, desde
também, em 1927, junto com Heckel Tavares e a criação dramatúrgica até a exibição aos espectado-
também Álvaro e Eugênia Moreyra, da fundação res, cada qual tendo certa liberdade para emprestar
do Teatro de Brinquedo, considerado uma das ao texto dramático suas colaborações - sendo essas,
primeiras manifestações de renovação do teatro em certa medida, já esperadas pelo próprio autor.
dito "sério" em nosso país. A dicotomia entre os Como eram criados imediatamente para a cena,
chamados gêneros ligeiros e o "teatro sério" nunca com uma priorização do espetáculo, esses textos
preocupou Luiz Peixoto: em entrevista concedida
25 CE. Daniel Caetano, Luiz Peixoto já Escreveu Comédia,
ao Diário deNotícias, o autor assinalou que, apesar Diário deNotícias, Rio de Janeiro, 22 de maio de 1946. CE. Vic-
tor Hugo Adler Pereira, A lviusa Carrancuda: Teatro e Poderno
EstadoNovo, Rio deJaneiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998, P:
24 S. C. de Paiva, op. cit., P: 193· 160-161.
• o Teatro no Pré-Modernismo

podem ser entendidos como pretextos (pré-textos) das músicas e a composição das letras, e participavam
para o desempenho dos atores. ativamente dos ensaios - e não apenas os musicais.
Na medida em que suas obras eram elabora- Cardoso de Menezes, em relato sobre sua dinâmica
das não como obras literárias, mas como ponto de trabalho com Carlos Bettencourt, revela como
de partida para a realização dos espetáculos em ambos dividiam inúmeras tarefas, encarregando-se
cena - cujos códigos dominavam perfeitamente- o primeiro da parte artÍstica (distribuição dos pa-
Cardoso de Menezes, Carlos Bettencourt, Raul péis, ensaios de poemas e música, cenários e guarda-
Pederneiras e Luiz Peixoto podem, então, ser con- -roupa e relacionamento com os ateres) e o segundo
siderados "autores-ensaiadores'i'". O ensaiador era da parte financeira das montagens (o trato com os
responsável pela orientação geral dos espetáculos, empresários, o cuidado com os direitos amorais, os
tendo como atribuição principal traçar a "mecânica reclames nos jornais).
cênica", dispondo os móveis e acessórios necessários
à ação e fazendo os ateres circularem pelo palco de Assim, a relação dos amores com os demais profissionais
modo a obter o máximo de rendimento cómico integrantes da companhia era intensa e permanente: par-
ou dramático. A marcação em cena atendia à divi- ticipavam das decisões sobre a montagem do espetáculo
são e hierarquização das áreas do palco - sendo as ao mesmo tempo que decidiam sobre a distribuição dos
áreas do centro e do proscênio as mais nobres - e papéis, pois criavam suas personagens visando a cada in-
à hierarquização das personagens (áreas nobres térprete da companhia".
reservadas às personagens de maior projeção),
sendo passada aos atores através de um verdadeiro Se foram marca distintiva do teatro musicado
vocabulário, constituído de verbos como "passar" nas primeiras décadas do século xx, os "amores-
(cruzar a cena da direita para a esquerda) ou "des- -ensaiadores" coexistiram com ensaiadores espe-
cer" (caminhar em direção à ribalta) 27. cializados nessa função, como Eduardo Vitorino
Nas peças de Carlos Bettencourt e Cardoso de (1869-1949) e Eduardo Vieira (1869-1948), ambos
Menezes", a prática de uma escrita para a cena é evi- portugueses. Apesar da sua imensa importância
denciada pelas rubricas dos textos: "suasminuciosas para o teatro brasileiro de fins do século XIX e
indicações vão desde a detalhada descrição de cená- início do xx, não cabe aqui escrever sobre o pri-
rio até as marcações de movimentação do elenco e do meiro ", posto que jamais dedicou-se ao teatro
coro, revelando que seus amores escrevem as peças musicado. Já Eduardo Vieira, embora não exclu-
imaginando-as no palco e tentando colocar no corpo sivamente, teve papel de destaque como ensaiador
de seus textos todas as impressões que' deverão ser junto às companhias de revistas e de burletas, bem
concretizadas na cena":". Importantes também são como às de comédias de costumes.
as rubricas relativas ao trabalho dos ateres, nas quais Nascido em Lisboa, Eduardo Vieira começou
as movimentações e intenções das personagens são a vida como tipógrafo. Estreou no Teatro da rua
indicadas com precisão. No entanto, o que garantia dos Condes, vindo para o Brasil em torno de 1890,
a obediência às indicações expostas nas peças era o quando ingressou na companhia do empresário
completo envolvimento dos amores com os espetá- Dias Braga (1846- I 910); ensaiador de várias com-
culos, nos quais responsabilizavam-se pela seleção panhias, formou toda uma geração, tendo sido pro-
fessor> de ateres consagrados como Jaime Costa e
26 M. F. V. Chiaradia, Em Revista o Teatro Ligeiro: Os "Au-
tores-Ensaiadores" e o "Teatro por Sessões" na Companhia do
Teatro S. José, Sala Preta, São Paulo, n. 3, 2003, p. 153 - 163.
27 Décio de Almeida Prado, O Teatro Brasileiro Moderno, São 30 Idem, P: 158.
Paulo: Perspectiva, 1996, p. 16-17. 31 Sobre Eduardo Vitorino, ver: Sílvia Fernandes, Nota Sobre
28 A partir de pesquisa quantitativa, que estabelec~u Carlos Ber- Victorino, SalaPreta, São Paulo, n. 3, 2003, p. 174-181; Eduardo
rencourr e Cardoso de Menezes como os autores mais montados Victorino, Cem Annos de Theatro: A Mecânica Thearral e a Arte
pela companhia de Paschoal Segrero, M. F. V. Chiaradia elegeu de Encenação, fac-símile reproduzido em SalaPreta, São Paulo,
as peças dos dois autores como corpus para análise da atívídade n·3,2003,P·182-189·
dos autores-ensaiadores. CE. M. F. V. Chiaradia, A Companhia 32 Além de sua atuação didática no âmbito de companhias de
de RevistaseBurletasdo Teatro SãoJosé... teatro profissionais, Eduardo Vieira atuou como professor tam-
29 M. F. V. Chiaradia, Em Revista o Teatro Ligeiro..., p. 156. bém na Escola Dramática da Prefeitura do Distrito Federal (atual

• 3 27
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Eva 'Iodor'". Esta atribui a Eduardo Vieira imensa ginando um dos mais importantes espetáculos do
importância em sua trajetóría profissional: além de teatro musicado brasileiro de todos os tempos.
ensaiador e diretor da companhia Evae SeusArtistas A peça retrata frequentadores habituais do
(fundada em 1940, no Rio de Janeiro, pelo marido e Grêmio Recreativo Flor do Castigo do Corpo
empresário da atriz, o também diretor e autor Luiz da Cidade Nova, região compreendida entre as
Iglezias), o mestre português ensinou-lhe a "arte de atuais praça da Bandeira, praça XI, avenida Pre-
dizer">, em um processo de aprendizado definido sidente Vargas e bairro do Catumbi, que acolheu
pelo contato diário com a cena: "Não havia escola a população expulsa das habitações do centro do
de teatro, aprendia-se no palco. Eu adquiri tarimba Rio de Janeiro após as reformas promovidas pelo
na prática [...] foram catorze anos de aprendizado prefeito Pereira Passos. O primeiro ato, passado no
na tarimba, com Eduardo Vieira"!'. exterior da gafieira, inicia-se com um problema cor-
A atuação de Eduardo Vieira como ensaiador riqueiro, a denúncia de um roubo de frangos feita
e professor é um dos inúmeros exemplos do longo pelo moleque Sebastião, que apita para chamar o
intercâmbio entre os teatros brasileiro e português, guarda-noturno, corrupto e cortejador de mulhe-
e da extensão da influência lusitana em nossos pal- res. Na sequência, aparecem em cena o secretário
cos até meados do século xx (faceta fundamental da agremiação, que impede a entrada no baile de
e ainda pouco estudada de nosso teatro, verdadei- frequentadores cujas mensalidades estavam atra-
ramente luso-brasileiro em sua origem): sadas, e Siá Zeferina, porta-estandarte do Grêmio,
que se solidariza com os reclamantes e anuncia que
Portugal foi, com efeito, [...] o interlocutor mais constante só entra "se o pessoal todo entrá"; convocado para
do nosso teatro ["0] Se o diálogo teórico nos levava à Espa-
o resolver o impasse, Escandanhas, o 1 2 secretário,
nha, à Itália e à França, a conversa do dia a dia, entre atores cede à ameaça da mulata, deixando que todos par-
e autores, passava obrigatoriamente por Lisboa". ticipem do baile.
No segundo ato, passado no interior da ga-
neira, as personagens interrompem uma quadri-
A Importância de Forrobodó lha para apresentar-se a um dos visitantes (Bico
Doce, "redator-contínuo" doJornaldoBrasiii: Escan-
Dentre as peças que estrearam nas duas primeiras danhas da Purificação, barbeiro e poeta "nas horas
décadas do século xx, destaca-se Forrobodó, resul- vagas"; a mulata Zeferina, "perdição da colônia
tado da parceria Luiz Peixoto-Carlos Bettencourt. portuguesa domiciliada no Brasil": o guarda, "o
A burleta em três aros estreou em I I de junho de rnantenedô da ordem"; o português Barradas, pre-
1912 no Teatro S.José, graças a Chiquinha Gon- sidente do Grêmio. O 1 2 secretário é convocado a
zaga (1847-1935)37, autora da partitura, que, fazer um discurso de saudação ao convidado, mas
empenhando seu prestígio, elevadíssimo nesse acaba por ler um discurso fúnebre, utilizado an-
momento, forçou o empresário Paschoal Segreto teriormente no enterro do ex-tesoureiro do clube.
a encenar o segundo texto dos jovens aurores, ori- O guarda-noturno salva a situação, recitando um
poema para a "selerra" assistência. Após a convo-
cação do Maestro para animar a orquestra, o ato
Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena). CE]. Galante
de Sousa, O Teatro no Brasil, v. 2., p. 570. se encerra com todos cantando e saindo para um
33 Comoedia, Rio de Janeiro, junho 1946, ano I, n, I, P: IS. banquete no flyer.
34 A. Reis, A Tradição Vivaem Cena: Eva Todor na Companhia No terceiro ato, os frequentadores são surpreen-
Eva e SeusArtistas (1940-1963), tese de doutorado, Centro de
Letras e Artes, Uni-Rio, 2.004,P: 44. didos pela entrada de Lulu, o mulato valentão ("o
35 Transcrição feita por A. Reis de palestra proferida pela atriz pinta-brava'), que invade o recinto e apresenta sua
na Casa das Artes de Laranjeiras-CAL,Rio de Janeiro, em I I de
acompanhante, a francesa madame Petit-Pois. O
novembro de I99S.
36 D. de Almeida Prado, Teatro de Anchieta a Alencar, São comportamento escandaloso dos dois leva uma das
Paulo: Perspectiva, 1993, p. I r. personagens a propor um desafio de versos impro-
37 Edinna Diniz, Chiquinha Gonzaga, uma Históriade Vida,
Rio deJaneiro: Rosa dos Tempos, 1991, p. ISO.
visados, do qual todos participam. Em seguida, é
• o Teatro no Pré-Modernismo

realizado um leilão de prendas que resulta na dis- feitas pela maestrina, as partituras para canto e piano,
puta de Lulu com o guarda-noturno por um vidro vendidas aos milhares, do tango e da marcha carnavalesca
de perfume desejado por Zeferina e pela francesa. "Forrobodó", da polca "Não se Impressione" e da marcha
Antes de se retirar com sua acompanhante, levando "Escandanhas"39.
. o perfume sem por ele pagar, Lulu saca a navalha e
distribui golpes de capoeira, para terror de todos. O O sucesso de Forrobodó pode ser medido tam-
leilão prossegue com o sorteio de mais uma prenda, bém pela exploração imediata do tema em peças
ofertada pelo guarda-noturno: dois frangos assa- subsequentes, como Choro na Zona, de Pedro
dos. Acusado de ser o autor do furto das galinhas, Cabral; Nas Zonas, de Cinira Polónio, Nso Se
o guarda diz não tê-las roubado: apenas fizera "uma Impressione, de Cardoso de Menezes e Carlos
requisição". A peça se encerra com um maxixe fi- Bettencourt, Depoisdo Forrobodó, de Carlos Bet-
nal, cantado e dançado por todos: o "Forrobodó de tencourt, Morro da Favela e Flor do Catumbi, de
Maçada', tornado célebre graças ao sucesso da peça. Carlos Bettencourt e Luiz Peixoto; Saco doAljêres,
Mostrando, de maneira bem-humorada, as gafes de Luiz Peixote".
de elementos das classes populares ao tentar imitar
a classe alta - que por sua vez, imitava, por trejeitos,
os refinamentos europeus - Forrobodó inaugurou Paschoal Segreto e a Companhia
a utilização de uma linguagem popular nos palcos de Mágicas e Revistas do Teatro S. José
brasileiros, nos quais ainda se falava castiçamente
à portuguesa. O linguajar errado e repleto de gí- Chama a atenção o fato de que grande parte das
rias das personagens, que tentam parecer eruditas peças citadas até agora foram encenadas pela Com-
e sofisticadas embora sejam oriundas de uma região panhia de lvIágicas e Revistas do Teatro S. José,
pobre da cidade, trouxe para cena o "cario quês"; empresariada por Paschoal Segreto. Nascido em
além disso, expressões como "não se impressione" 21 de março de 1868 na Itália, Segreto chegou no
(constantemente repetida pelo guarda-noturno) Rio de Janeiro aos dezoito anos, começando a tra-
ganharam as ruas, popularizando-se como bordões balhar como distribuidor de jornais com seu irmão
populares. A peça também caracterizou tipos como Gaetano; proprietário de várias bancas de jornais
a mulata, o português, o mulato pernóstico, que, na cidade por volta de 1891, começou a diversificar
embora já habitassem as peças do gênero musicado, seus negócios, envolvendo-se inclusive com jogos.
consagraram-se a partir de Forrobodô'". A partir de 1896 seu nome aparece ligado ao ramo
No elenco, formado por Cecília Porto, Pepa das diversões, no qual assumiu papel tão destacado
Delgado, Asdrúbal Míranda, Franklin de Almeida, que se tornou conhecido como "Ministro das Di-
Machado, entre outros, destacavam-se Cinira Po- versões" da cidade. Empresário ousado e de espírito
lônio como madame Petit-Pois e Alfredo Silva empreendedor, que o levou a adorar iniciativas arro-
como o guarda-notumo. O enorme sucesso de jadas na condução de suas empresas, implementou
público e crítica de Forrobodó, que alcançou 1.500 grandes inovações nos cinematógrafos da cidade,
representações consecutivas e passou a fazer parte cujas exibições, até então esporádicas e itinerantes,
do repertório da Companhia do S. José, deveu-se passaram a ser regulares, configurando-se como uma
não apenas ao elenco e ao brilhante texto de Luiz atividade constante e lucrativa.
Peixoto e Carlos Bettencourt, como também às No teatro, Paschoal Segreto distinguiu-se de
músicas de Chiquinha Gonzaga: grandes empresários, cujas atividades haviam se
iniciado ainda no século anterior, como Dias
Da burleta convém lembrar não somente da sua repercussão Braga (1846-1910) e jacinto Heller (1834-1909):
nacional, que levou a muitas remontagens em tempora- se estes haviam sido ateres e ensaiadores, Segreto
das subsequentes, como a popularidade das composições jamais assumiu qualquer função artística em seus

39 S. C. de Paiva, VivaoRebolado!..., p. 159.


38 Cf ldem.p. 192eR.Ruiz,op.cit.,p. 15-16. 40 E. Diniz, ChiquinhaGonzaga..., p. 193.

• 329
História do Teatro Brasileiro • volume 1

empreendimentos; além disso, era proprietário das


casas em que apresentava seus espetáculos, ainda que
arrendasse, sempre que necessário, outros espaços.

Essa nova figura de empresário definiu claramente um


modo diferenciado de tratamento das produções espeta-
culares. [...] Determinadas produções teatrais começaram
a ser percebidas pelas empresas como frentes de atraente
mercado a ser explorado e oferecido a um público consu-
midor ávido por novidades e diversão".

ogrande número de companhias estrangeiras


que apartavam ao Rio de Janeiro e a ampla colô-
nia de atores e atrizes portugueses que habitavam
a cidade tornavam o mercado mais fechado para
os intérpretes brasileiros. Por volta de 1913, as
empresas que dominavam o teatro musicado da
cidade eram dirigidas por Paschoal Segreto e pelo
português José Loureiro; se o último empregava
apenas conterrâneos nos três teatros de sua proprie- o empresário Paschoal Segreto.
dade, o empresário italiano, ao contrário, mantinha
fechadas as portas de seus teatros às companhias
que não fossem aqui organizadas". Desse modo, muitas vezes num mesmo local, era característica
Segreto contribuiu para a sobrevivência da cena dos negócios da Empresa Paschoal Segreto.
teatral brasileira, emprestando-lhe contornos pe- No ramo específico do teatro, o empresário
culiares, em que se destaca a percepção do teatro lançava mão de várias estratégias de captação de pú-
como um negócio produtivo, competitivo e rentá- blico, como loterias - em que bilhetes numerados
vel, inserido em um amplo mercado de diversões. de ingresso aos espetáculos davam direito a prêmios
Dono de um grande número de casas de espetácu- no final das atrações, de acordo com sorteios ou re-
10s43, o empresário diversificava amplamente seus sultados de lutas - e bonificações -, em que cupons
empreendimentos: em 1901, no Parque Fluminense, adquiridos durante um espetáculo davam descontos
localizado no largo do ':Machado,havia pista de pa- de 50% nos seguintes. Em especial, Segreto aliava-
tinação, concertos executados pela banda da Polícia -se com a imprensa para lançar mão de propagandas
Militar, uma Companhia de Bonecos ':Mágicos, can- maciças para suas produções, anunciadas por "notas
çonetistas, animatógrafos, leões, ursos e cavalinhos. prévias" que estimulavam o interesse do público
A presença de diferentes gêneros de espetáculos, antes das estreias, "notas" e "matérias': sendo estas
veiculadas durante as temporadas, mantendo aceso
41 M. F. V. Chiaradia, A Companhia de RevistaseBurletasdo
o interesse acerca dos espetáculos - recurso funda-
Teatro SãoJosé... , p. 28. Todas as informações em seguida acerca mental para o sucesso alcançado pela empresa.
do empresário e suas ativídades, salvo indicação em contrário,
foram retiradas dessa obra.
Dentre tantas e lucrativas atividades no ramo
42 R. Ruiz, op. cír., p. I08. das diversões, a Companhia de Revistas e Burle-
43 A empresa foi proprietária das seguintes casas de diversão no tas do Teatro S. José, apelidada pela imprensa da
Rio deJaneiro: Parque Fluminense, PaschoalSegreto Chopps (depois
MaisonModerne], Moulin Rouge (depois Teatro Váriedades e São época de "a menina dos olhos de Paschoal Se-
José), Coliseu Teatro (depois Parque Novidades), Teatro HighLife greto", assumiu, como indica sua alcunha, lugar
Nacional(depois High Life e Follies Bergere), Folies Bresillénnes,
Teatro Carlos Gomes (depois segundo Moulin Rougee Cassino, privilegiado na trajetória do empresário italiano.
voltando à denominação original), TiroFederal, Cinematógllljo Existente durante quinze anos consecutivos, de
Brasileiro, Teatro Váriedades. Paschoal Segreto foi dono ainda de
casas de esperáculos em Perrópolis, Níteróí e São Paulo. 191 I a 1926, a companhia- amais importante do

• 33 0
+ o Teatro no Pré-Modernismo

gênero musicado nas primeiras décadas do século Nesse sistema, os ateres trabalhavam dura-
xx - propiciou a montagem de mais de duzentos mente, sem um dia sequer de descanso. Viviam em
originais, figurando como um espaço privilegiado atividade permanente, de domingo a domingo, en-
de manutenção e fertilização de gêneros do teatro saiando a montagem que sucederia a que estava em
ligeiro, notadamente revistas e burletas: cartaz", pois, em geral, as temporadas eram curtas,
salvo algum grande sucesso:
Os artistas e técnicos envolvidos nessas produções tiveram
no palco do Teatro S. José um espaço efetivo de experi- De 1912-1913 até 1920, a média mensal de revistas repre-
mentação para o exercício de suas habilidades artísticas: sentadas nos teatros cariocas andou em torno de 10, assegu-

representar, escrever, musicar, cantar, dançar, criar cenários rando mais de 100 por ano [...]. Se bem que várias revistas
e figurinos. Tratava-se de uma companhia rigorosamente atingissem recordes de permanência em cena, alcançando até
inserida nos mecanismos comerciais, que visava ao lucro, mais de 300 representações sucessivas,inúmeras nunca ultra-
sem nenhum compromisso aparente com transformações passaram urna semana e até menos em cartaz. O baixo custo
estéticas ou ambições de pesquisa cênica. Mas que, em con- das montagens compensavam os investimentos; peças de
trapartida, exigia um domínio absoluto da escrita teatral do grande sucesso cobriam perdas e garantiam lucros sobejos"48•
gênero cómico e popular musicadov'.
A velocidade com que os espetáculos se sucediam
fazia do ponto uma figura indispensável na estrutura
Os Atores teatral da época: escondido dentro de um buraco
no proscênio do palco, "soprava" as falas dos ato-
A consolidação do sistema de esperáculo por res e as marcações de cena e indicava os momentos
sessões fortaleceu ainda mais um certo perfil de exatos das luzes se acenderem ou do pano baixar
indústria cultural já presente no teatro popular novamente, garantindo assim o bom andamento
musicado do período, levando assim a uma cres- do espetáculov. A mudança constante de progra-
cente especialização dos profissionais envolvidos mação e o sistema de teatro por sessões afetavam de
em sua produção. Não apenas os ateres mas tam- modo muito drástico os atores, que frequentemente
bém autores, compositores, cenógrafos, músicos e ficavam afônicos pelo esforço de projetar suas vozes
bailarinos que se dedicaram aos gêneros populares em teatros de grande porte, e fisicamente esgotados
tornaram-se especialistas em suas áreas, valendo-se com as movimentações e coreografias - muitas vezes
de acervos técnicos codificados, colhidos na tradi- em ritmos acelerados ou vigorosos como o maxixe -
ção cômica e popular, continuamente reelaborados desenvolvidas nas grandes áreas dos palcos". Não
por meio do contare direto com o público, em uma eram incomuns espetáculos nos quais ateres e atrízes
aprendizagem substancialmente de palco. interpretavam inúmeras personagens - até doze ou
O estabelecimento do teatro por sessões -
novidade trazida de Portugal pela atriz Cinira 47 "Os artistas eram literalmente sovados em seu trabalho. (...] As
"tabelas" de serviço marcavam: àsdez da manhã, ensaio para maestro,
Polónio, em I908 - como prática corrente desde coristas e coreógrafo. Às duas da tarde, o chamado "poema - ou
o primeiro ano de vida da companhia foi determi- seja, o texto propriamente dito, para os artistas. Às quatro, junção
de texto e música. Um breve intervalo para o jantar e pronto: tudo
nante para caracterizar esteticamente as produções de novo! E isso quando não se &zia urgente, diante de um "porão"
do S. josé". Os espetáculos, de uma hora e quinze inesperado, ensaiar depois da última sessão, madrugada a dentro!"
R. Ruíz, op. cit., p. 109. Sobre as condições de encenação teatral na
minutos, aconteciam em três sessões diárias: às virada do século, ver também: A. Reis, Cinira Polónio..., p. 88-96.
I9hoo, 20h45 e 22h30; aos domingos havia mais 48 S. C. de Paiva, op. cít., p. 166-167.
um espetáculo às I yhoo, aos sábados e, por vezes, 49 D. de A. Prado, O Teatro Brasileiro Moderno (1930-1980),
p.I8.
às quintas-feiras, havia vesperais às I6ho0 46• 50 Tome-se como exemplo as dimensões do Teatro Carlos Gomes:
largura do proscênio, 10>40 m; altura do proscênio, 8 m; compri-
mento do palco, 10,50 rn; largura do palco, 22 m. O Almanaquedos
44 M. F.V. Chiaradia, Em Revista o Teatro Ligeiro..., p. 1)4.
Tbeatros, 1906. CEWalter Lima Torres Nero, Irfluence delaFrance
45 O sucesso da iniciativa do S.José levou à adoção desse sistema dansletbéâtre brésilien au xix: siêcle: l'exemple d'Arthur Azevedo,
pela maioria das casas de espetáculos do Rio de Janeiro na época. Paris: Uníversiré dela Sorbonne Nouvelle, Institue D' Erudes Thea-
46 S. C. de Paiva, op. cit., P: 157. trales, Paris III, Thêse pour le doctorar, 1996, p. 161.

+ 33 1
História do Teatro Brasileiro • volume 1

dezoito -, o que acarretava, só para trocas de figu- boa, tornou-se também empresária. De volta ao
rino, cansativos deslocamentos. Brasil, celebrizou-se não só como atriz e dona de
Um dos principais elementos de apelo ao companhia, mas também como compositora e
público, senão o principal, os ateres do teatro dramaturga. Famosa por sua beleza, elegância e
musicado estabeleciam forte empatia com os espec- inteligência, Cinira Polônio foi, durante alguns
tadores; fundamentalmente, a ideia de espetáculo anos, a principal figura dos espetáculos do Teatro
no gênero era resultante de um relacionamento S.José, tendo seu nome como um atrativo em todos
intenso entre o autor, a plateia e o ator - tendo os anúncios da companhia, mesmo quando não es-
este um papel importantíssimo no funcionamento tava no elenco da peça em cartaz. A importância da
da cena. Sousa Bastos (I844-I9II), importante au- atriz pode ser medida pela constatação de que Luiz
tor, empresário, ensaiador e jornalista português, Peixoto e Carlos Bettencourt precisaram encaixá-
refere-se com ,admiração ao trabalho do ator Al- -la no elenco de Forrobodó, ainda que a peça retra-
fredo de Carvalho, considerando suas intervenções tasse personagens não adequadas a seu tipo físico
como uma colaboração ao seu texto: e à imagem pública por ela cultivada: "Para que
entrasse na ação a Cinira, os autores arranjaram-
Possuía o valor supremo de ser um repentísta, um improvi- -lhe uma francesa chie, a madame Petit-Poís, que
sador impagável. [...]. Em todas as revistas em que tomava ela fazia magnificamente"p.
parte, Alfredo Carvalho colaborava com os autores, sem- Nascida em Badajós, na Espanha, em 1859, a ar-
pre distintamente, sempre com grande soma de espírito e quigraciosa Pepa Ruiz foi a primeira grande vedete do
sempre honrando-se a si, ao autor, aos colegas e ao público. teatro português, conquistando multidões com sua
Tenho o dever de lhe prestar essa homenagem, porque nas capacidade de ressaltar os duplos sentidos das canço-
revistas que para ele escrevi, e não foram poucas, a sua co- netas das revistas: "a Pepa sabia tirar todos os efeitos
laboração foi sempre valiosíssima". possíveis do que cantava e era bastante anunciar-se
que ela estava no elenco e que tinha a defender uma
Não obstante a posição destacada que os ateres dessascançonetas, para que os teatros se enchessern'P,
e atrizes tinham no teatro ligeiro, ainda são poucos Entre seus inúmeros sucessos, destaca-se a revista
os trabalhos que se dedicam não apenas a traçar Tim-Tim por Tim-Tim, de Sousa Bastos. O êxito
suas carreiras como principalmente têm como ob- inigualável do espetáculo em Portugal (cento e nove
jeto de estudo sua atividade em cena; desse modo, representações no Teatro da rua dos Condes, de Lis-
a extrema fragmentação de indicações permite ape- boa, um recorde na época, seguindo-se incontáveis
nas a rápida citação de alguns dos intérpretes que se reapresentações não só na cidade, como no Porto e em
destacaram no panorama do teatro musicado das outras províncias) repetiu-se no Brasil, onde Tim-Tim
primeiras décadas do século xx. estreou em 1892, no Teatro Lucinda: mais de cem
Cinira Polônio (1857- I 938) foi uma das artistas representações consecutivas e infinitas remontagens
mais famosas do teatro musicado brasileiro durante ao longo de décadas (e não apenas por Sousa Bastos,
as primeirasdécadas do século xx. Sua trajetória ini- havendo um momento em que a peça foi representada
ciou-se ainda no século XIX, quando se destacou em simultaneamente por três companhias diferentes).
operetas e em três revistas de ano escritas por Artur Grande parte da repercussão do espetáculo deveu-se
Azevedo e Moreira Sampaio: O Carioca eMercârio, à "presença infatigável, esfuziante, arrebatadora" da
ambas referentes ao ano de 1886; e O Homem, atriz, que interpretava dezoito personagens diferentes,
referente ao ano de 1887, baseada no romance ho- agradando especialmente à plateia brasileira o mo-
mônimo de Aluísio Azevedo, irmão de Artur. mento em que aparecia em cena vestida de baiana,
Sua carreira consolidou-se durante uma cantando o lundu "O lvlugunzá"54.
longa estada na Europa entre os anos de 1888 e
1900, quando, atuando especialmente em Lis- 52 Lafayette Silva, Históriado Teatro Brasileiro, Rio deJaneiro:
Ministério de Educação e Saúde, 1938, p. 142.
51 Antônio de Sousa Bascos, Recordações de Teatro, Lisboa: 53 R. Rulz. op. cit., p. 30-3 r.
Século, 1947,P' 15. 54 Idem, p. 170.

• 33 2
• o Teatro no Pré-Modernismo

Portugal, vindo com o pai para o Brasil com ape-

'. nas onze anos. Estreou como ator em companhias

. '~~:-""-,._,
~.~<
\" ~":<k1,
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mambembes pelo interior, mas logo se firmou no
Rio de Janeiro, trabalhando nas companhias de
Braga Júnior (r854-r9r8), Ismênia dos Santos
(r840-r9r8), Heller, Sousa Bastos, e outras. Foi
um dos ateres cómicos mais aclamados de sua
época".
João Augusto Soares Brandão (r845-r92r),
nascido na ilha de São Miguel, nos Açores, veio
para o Brasil em r8 56, estreando no Teatro de S.
Januário; em seguida dedicou-se ao mambembe,
percorrendo durante anos o interior do Brasil em
companhias secundárias. Ater côrnico mais popular
de sua época - notabilizando-se especialmente por
seu desempenho como compére nas revistas de ano -
foi por si mesmo cognominado "o Popularíssímo"
Desempenhou a personagem seu Eusébio, em O
Tribofe, revista de ano de r 89 r, de Artur Azevedo,
segundo quem o enorme sucesso da composição do
ator levou-o a lamentar que a peça estivesse conde-
A atríz Cinira Polonio. nada à vida efêmera das revistas de ano, não lhe sendo
possível conservar um dos melhores papéis do seu
Ligada indissoluvelmente ao Brasil, Pepa Ruiz repertório. A insistência de Brandão junto a Artur
permaneceu no Rio de Janeiro em longas tempo- Azevedo para que este extraísse uma nova peça da
radas: de r88r a r884, de r885 a r888 e de r894 peça velha resultou em A Capital Federal, burleta
até sua morte, em r923. Empresária, teve várias de r 897, a comédia nacional de maior êxito de seu
companhias em seu nome, estreando a primeira tempo e talvez de todos os tempos - na qual Brandão
em r 895; a extensão da popularidade da atriz no mais uma vez brilhou como o coronel caipira'".
teatro carioca é revelada pela personagem "Papa': Foi também empresário, diretor de companhias
imitação de Pepa Ruiz feita por Amélia Lopiccolo, e autor.Morreu em cena aberta, durante uma apre-
também em r 895, na revista Gragoatá, do maestro sentação no Circo Spinelli no Rio de Janeiro, em
Assis Pacheco. Fundou em r 897 sua segunda com- r6 de novembro de r921.
panhia, em sociedade com o ator Brandão, e em Dividindo com Brandão as atenções do público
r900 a terceira companhia, para o Teatro Recreio, e da crítica nas primeiras décadas do século xx, Al-
fazendo-a estrear, com êxito garantido, com Tim- fredo Silva (r 874- r 938) notabilizou-se em especial
-Tim por Tim-Tim. Apresentou em seguida uma no âmbito da companhia empresariada por Paschoal
remontagem da burletaA Capital Federal, de Ar- Segreto: "No Teatro S.José [em 191 1J, Alfredo Silva
tur Azevedo, que trazia no elenco, além da própria e Cinira Polônio aumentavam sua popularidade" 58.
Pepa novamente no papel da cocotte Lola, outros
dois ateres que haviam participado da montagem 56 D. de A. Prado, Seres, Coisas, Lugares: Do Teatro aoFutebol,
São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 29; J. Galante de
original, em r 897: Brandão, o Popularíssimo, como Sousa, O Teatro noBrasil, v. 2, p. 318; L. Silva, Históriado Teatro
seu Euzébio, e Machado como Gouveia». Brasileiro, p. 210.
João Machado Pinheiro e Costa (r 850- I 920), 57 D. de A. Prado, Do Tribofe à Capital Federal, em Arrhur
Azevedo, O Tribofe, Rio deJaneiro: Nova Fronteira/Fundação
conhecido como Machado Careca, nasceu em Casa de Rui Barbosa, 1986, p. 270-271.
58 S. C. de Paiva, op. cít., P: 156. Na mesma obra à p. 124, lê-
55 J. Galante de Sousa, O Teatro no Brasil, v. 2, P: 468-469; R. -se: "No dealbar de 1900, o público aplaudia [...] um ator que
Ruiz, op. cít., p. 176. começava a atingir o reconhecimento do público na condição

• 333
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Antigos parceiros", a dupla dividiu a cena nesse cinema e da televisão, o teatro não chegava a ser
teatro emA Mulher Soldado (I9II), adaptação de uma realidade numa São Paulo de menos de trinta
Laura Corina do vaudevile Os 28 diasde Clarinha; mil habitantes. O espetáculo importado, do Rio
em Comes eBebes, Zé Pereira e Colégio de Senhori- ou da Europa, constituía a norma"64. Apenas em
tas, da autoria de Cardoso de Menezes, e Forrobodó, 1948 (ano "que se tornou, na opinião unânime da
da dupla Luiz Peixoto-Carlos Bettencourt - todas crítica, o marco divisor do teatro paulista'v'), tal
apresentadas em 19 I 2. panorama foi transformado, com a fundação do
No repertório apresentado pela Companhia de Teatro Brasileiro de Comédias (TBC) e a criação
Revistas e Burletas do Teatro S. José, destacou-se da escola de Arte Dramática de São Paulo (E AD ).
o desempenho do ator como o guarda-notumo de Do mesmo modo,
Forrobodó, tão marcante "que o teve de repetir [o
tipo] dezenas de vezes, quase obrigatoriamente, em nos primeiros anos do século xx, Salvador continuou a viver
outras peças, de outros autores'P". O impacto da a suaexistência pacata de Província do século XIX, raramente
presença de Alfredo Silva em cena pode ser medido perturbada por algum acontecimento extraordinário. [... ] A
por comentários de autores dedicados ao tema do vida política, social, económica e artística do país estava no
teatro musicado'", que destacam de forma recor- Rio de Janeiro, a capital federal, o que não impedia que os
rente sua atuação côrnica e imensa popularidade. baianos chiques sonhassem ser gauleses'",

• • Na capital baiana, foram também as visitas das


companhias cariocas e europeias que movimenta-
A ênfase dada aqui ao teatro musicado produzido ram a cena teatral no início do século xx.
na cidade do Rio de Janeiro explica-se pelo fato Carioca e brasileiro, o teatro musicado foi estig-
de que, "a partir do século XIX, o teatro brasileiro matizado e relegado a uma espécie de esquecimento
era, na verdade, brasileiro apenas no nome, pois durante grande parte do século xx, Seus autores,
na realidade era carioca'?". Tal situação estendeu- atares e compositores eram relembrados primordial-
-se até meados do século XX, com "os espetáculos mente por atuações em outros campos, ou classifica-
originando-se sempre no Rio de Janeiro, foco de dos como "menores" - considerados artistas dotados
irradiação de toda a atividade teatral brasileira'f-, de uma "natural" comicidade, profissionais que de-
Depoimentos de vários autores confirmam a sempenhavam seu ofício com "espontaneidade" -,
percepção de outras cidades (como por exemplo, sendo desse modo inseridos em um nicho quase
São Paulo ou Salvador) não como produtoras, mas "folclórico" e deixados à margem de análises mais
como consumidoras de produções teatrais cario- rigorosas. Por apresentar uma cena intensamente
cas ou estrangeiras: "Em 1875, mesmo antes do comprometida com sua contemporaneidade -
mesmo que paulatinamente tenha abandonado o
de histríão singular: Alfredo Silva. Ele dividiria com Brandão a
celebridade nas primeiras duas décadas do novo século". esquema da revista de ano, sendo ocupada por outras
59 Cinira Polônío e Alfredo Silva já haviam trabalhado juntos formas do gênero, como as revistas carnavalescas e as
em CáeLá, de Tito Martins e B. de Gouveia (1904) eBerliques
eBerloques, de Raul Pederneiras (1907), apresentadas no Teatro
burletas - por ser de forte apelo popular e,portanto,
Recreio Dramático; e em As Doutoras, de França]únior (1908), de consequentes preocupações com a bilheteria; es-
apresentada noTeatro da Exposição Nacional. Cf. A. Reis, Cinira
Polônio••., p. 151-161. A amizade entre ambos pode ser medida
crito por dramaturgos mais interessados na cena do
pela carta enviada a Alfredo Silva (em data imprecisa, após 1913) que na literatura dramática, esse teatro despertou
na qual a atríznarra suas precárias condições em Paris, e, com
imediato e contínuo descrédito por determinada
medo de morrer, pede sua intermediação junto aos colegas, so-
licitando sua ajuda para voltar ao BrasiL Cf. L. Silva, Figuras de parcela da intelectualidade.
Teatro, Rio de]aneiro: Freitas Bastos, 1928, p. 227.
60 R. Ruíz, op. cit., p. 93.
61 Ver,entre outros: N. Veneziano, NãoAdiantaChorar...; R. Ruíz, 64 Sábato Magaldi e Maria Thereza Vargas, CemAnosde Teatro
op. cit.: S. C. de Paiva, op. cito em SãoPaulo (1875-1974), São Paulo: Senac, 2000, p. I I.
62 Tania Brandão, A Máquina deRepetirea Fábrica deEstrelas: 65 Idem, p. 210.
Teatro dosSete, Rio deJaneiro: 7 Letras, 2002, p. 29. 66 Aninha Franco, O Tean'onaBahiaatravésdalmprensa:SécuLo
63 D. de A. Prado, O Teatro Brasileiro Moderno, P: 19. xx, Salvador: Fundação Culruraldo Estado da Bahia, 1991, p. 13.

• 334
• o Teatro no Pré-Modernismo

Mais recentemente, no entanto, e sobretudo a do período.lv10vimento das imagens (o cinema),


partir da década de 198 o, os gêneros ligeirosvêm des- movimento dos motores (o automóvel e a indus-
pertando a atenção e ocasionando novos estudos que trialização), movimento da sociedade (a eclosão das
"recolocam em pauta gêneros teatrais, autores, ateres, reivindicações femininas e operárias), movimento
linguagens cênícas, textos e espetáculos de diferentes político (o desaparecimento do Império e os anos
períodos, realizando em conjunto um movimento iniciais da República Velha), movimento da arte
de revisão desse capítulo da historiografia teatral (a quase simultaneidade do realismo, naturalismo,
brasileira?". Acima de tudo, os últimos estudos têm parnasianismo e simbolismo, com as primeiras in-
trazido à tona as heranças deixadas pelo teatro mu- cursões da vanguarda moderna), movimento da
sicado, reconhecendo-o, ao lado da chanchada e da linguagem (contaminada pelo francês e em busca
comédia de costumes, "não apenas como precursor de identidade), movimento cênico (o teatro ligeiro
mas como fonte de inspiração, cópia e citação': cujo pedindo uma nova geografia do palco e da ceno-
legado "é encontrado em cada dobra do tecido que grafia, e a música ocupando o lugar da palavra).
veste nossas teorias contemporâneas"68- no teatro e As mudanças ocorrem em todos os setores da
em outras áreas da cultura brasileira, como o cinema, vida privada e pública do país. A economia apoia-se
a televisão e a música popular. 69 na agricultura cafeeira, com exportação intensa dos
estoques de café que, regulados pelo Governo Fede-
ral, sofrem os desequilíbrios da retenção/destruição
dos estoques para melhoria do preço. A instabilidade
decorrente tem reflexos no tecido social, criando a
desigualdade e fomentando reivindicações.O desen-
volvimento industrial traz consigo o crescimento do
operariado e, dada a alta oferta de mão de obra, o
2. UMA DRAMATURGIA barateamento da força de trabalho e o sucateamento
ECLÉTICA das condições de vida nas cidades.
Mas esse mesmo desenvolvimento criará uma
categoria social de gente abastada, com poder de
Tratar do teatro das duas primeiras décadas do sé- compra e desejo de novidades, que impulsionará
culo XX é reviver uma época em que a diversidade as realizações artísticas voltadas para atender o
de estilos, línguas, tipos e encenações povoava o gosto da elite, ávida pelos atributos de ostentação
palco e requeria da plateia constante adequação, e distinção sociaL
dada a defasagem estabelecida entre as novas cor- O teatro, dirigindo com frequência o olhar para
rentes em vigor na Europa e sua chegada ao Brasil, as realidades do mundo exterior, fará o retrato dessa
por meio das companhias dramáticas estrangei- sociedade, bem como a denúncia de suas mazelas, de-
ras. Aliás, movimento pode ser a palavra-chave feitos e incoerências. As cidades,em seu crescimento,
favorecerão o surgimento de peças e encenações des-
67 F.A. Mencarelli, Teatro Musicado: Capítulo em Revisão, em tinadas tanto para as plateias populares quanto para
Anais do II Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-graduação em
o público considerado refinado e exigente.
Artes Cénicas, Salvador, 2001, P: 341.
68 Mauro Meiches e Sílvia Fernandes, Sobreo Trabalho doAtar, Integrado a essa turbulência, aceitando-a ou
São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 7, 4 0 . fazendo dela a oportunidade para rebeldia e avan-
69 "Daniel Filho, um dos homens que ajudou a moldar a progra-
mação televisiva cotidiana do país, escreveu recentemente que a lin-
ços, o teatro dos tempos pré-modernistas encarna
guagem da televisão brasileira nasceu herdeira do rádio e do teatro a diversidade do período. A passagem do século
de revista, o que lhe dá uma face toda própria diante, por exemplo,
XIX ao XX tem como principal homem de teatro
da televisão americana, que se baseou no cinema. Ele mesmo advindo
do teatro de revista, reconhece na programação recheada de musicais Artur Azevedo, atestando a permanência do teatro
e programas humorísticos uma origem pautada no rico teatro musi-
cal que floresceu no país. Um país que tem uma televisão onípresente
ligeiro, das formas do teatro cómico e musicado
e uma produção de música urbana e popular tão relevante não pode que contemplam as expectativas do público menos
deixar de ver o rico passado do teatro musical que fez parte desta
sofisticado, graças aos preços baixos dos bilhetes,
história" F.A. Mencarelli, op. cit., p. 344·

• 335
História do Teatro Brasileiro • volume 1

possíveis pela modalidade de espetáculos imple- tro como espaço de demonstração e comprovação
mentada por Cinira Polônio em 1908: o teatro de teses sociais está na raiz deA Muralha, de Coe-
por sessões. Como visto no capítulo anterior, lho Neto ouA Herança, deJúlia Lopes de Almeida.
vários dramaturgos, artistas e empresários foram Do mesmo modo, o "teatro da paixão",de linhagem
bem-sucedidos na empreitada de oferecer entrete- francesa, cujos expoentes são Henri Bataille, Porto
nimento às classesmédia e baixa da população. Por Riche e Bernstein, influencia Flores de Sombra, de
outro lado, para muitos intelectuais e escritores, Cláudio de Souza, Berenice, de Roberto Gomes,
o teatro ligeiro era sinônimo da "decadência" do A BelaMadarne Várgas, de João do Rio, e Neve ao
teatro brasileiro, que vinha se acentuando desde Sol, de Coelho Neto. Teatro que, por meio da ação
as últimas décadas do século XIX. Era preciso su- dramática tensa, executa uma "cirurgia na socie-
perar esse estado de coisas. Escrever "teatro sério': dade burguesa"?", expondo os órgãos apodrecidos
inspirado principalmente na melhor dramaturgia pela corrupção e egoísmo, pela hipocrisia e ambi-
francesa do momento parecia o caminho natural. ção, destacando o coração, devorado por paixões
Edmond Rostand, Eugêne Brieux, Henri Bataille, inconfessáveis que conduzem sempre à dor mais
Henry Bernstein, Maurice Donnay eram drama- funda e ao desespero.
turgos de sucesso, encenados no Brasil por com- Em Iode outubro de 19 I 2, Roberto Gomes
panhias estrangeiras, ao lado de outros autores profere, na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro,
importantes que faziam sucesso em Paris, como a conferência ''Arte e Gosto Artístico no Brasil': em
Ibsen, Maeterlinck, Sudermann, D'Annunzio, Por que expressa o ecletismo vigente:
que não torná-los modelos para a dramaturgia
brasileira? Como vedes, manifestam-se hoje livremente e fraternizam
Ao lado desse cosmopolitismo, um outro Brasil as tendências mais diversas. Restos de romantismo, surtos de
emerge com força: distante da capital federal, o in- naturalismo, reflexos de pré-rafaelismo, audácias de impres-
terior brasileiro, mais recatado, agressivoe violento, sionistas, que têm a faculdade de ver todas as coisas verdes,
desprovido dos benefícios do progresso industrial escarlates ou roxas, e de que nós não devemos rir, porque
e tecnológico, mostra sua cara de atraso, fome e todo excesso contém sem dúvida uma parcela de verdade?'.
abandono. O parisismo convive com as tragédias
de Canudos e do Contestado. O automóvel con- Tratar da dramaturgia do período pré-moder-
flita com o carro de boi e o caipira de pés descalços. nista implica, pois, considerar o ambiente estético
Pessoas e personagens, Antônio Conselheiro, Jeca complexo em que as peças estão imersas, e o lugar
Tatu, Policarpo Quaresma, o barâode Belfort, artístico de onde retiram sua significação.É uma dra-
Coelho Neto (o "último heleno") e o dândijoão do maturgia de contundência e de valor documental
Rio são uma pequena amostra da realidade plural e porque denuncia a violência e a hipocrisia das rela-
contraditória do período. ções pessoais na sociedade da época: os vencedores
O teatro vive e representa semelhantes contrastes, são os fortes, e por trás de suas vitórias não há glória
trazendo à cena, ao lado das formas musicadas,tanto nem honra. Os seres que povoam esseuniverso pos-
a dicção francesa em dramas e comédias quanto o suem no coração e na cabeça abismos de corrupção,
acento nacional nas comédias de costumes que terão a dirigir os aros e paixões.
forte presença nos palcos cariocas a partir de 1915, As personagens femininas, por exemplo, são ge-
com a criação do Teatro Trianon - assunto que será ralmente volúveis e ambiciosas, heroínas à beira do
abordado em outro capítulo deste livro. abismo, sucumbindo à tentação da carne por amor,
O teatro, como arte de profunda interação com tédio ou ambição. As personagens masculinas, por
o presente (seja pelos assuntos e diálogos, ou pela sua vez, personificam o protótipo do burguês bem-
presença real do público no teatro), não deixa de
70 Marta Morais da Costa, A Dramaturgia de Roberto Gomes,
registrar o embate das tendências artísticas. Nessa da Casa Fechada à Abertura Modernista, Revista Letras, Curitiba,
altura, ainda têm vigência no Brasil os contornos UFPR, n. 60, 2003, p. 266.
71 Apud Wilson Martins, Históriada Inteligência Brasileira, v.
naturalistas de Zola e Ibsen, cuja concepção de tea- 5. São Paulo: Culrrlx/Edusp, 1978, p. 522.
• o Teatro no Pre-Modernismo

-sucedido ou do aspirante a essa posição. Ao endeu- (1862-1934), Oscar Lopes (1882-1938) e Afonso
sar o dinheiro e a fama, não medem a moralidade Arinos (1868-1918).
de suas ações e conseguem, com cinismo, atingir os
objetívos traçados, deixando atrás de si um rastro
de destruição, descrença e dor. O "teatro da paixão" João do Rio
expõe sem hesitação as situações mais cruas, como
o suborno, o adultério, a chantagem e a morte. As No discurso de recepção na Academia Brasileira
peças retratam impiedosamente a mesquinhez, o de Letras, em 12 de agosto de 1910, Coelho Neto
vazio, o tédio e a hipocrisia da sociedade que prepa- saudou João do Rio (como se sabe, pseudônimo
rou a Primeira Grande Guerra. Nelas, o troco miúdo de Paulo Barreto) como aquele que "no pouco que
do cotidiano confronta-se com a moeda de ouro do tem vivido, não perde um instante, de cada minuto
amor e, por vezes, a corrói, destrói ou subjuga. de sua curta vida [...] tem o futuro consigo">. A
Essa dramaturgia, provocadora de fortes emo- saudação contém, em suas entusiasmadas palavras,
ções no público, se contrapõe à dramaturgia de o dom de reunir três elementos presentes na obra
sutilezas preconizada por Maurice Maeterlinck, dramática do autor: a ação, o dinamismo, a pressa
cuja obra-prima Pélleas et Melisande tem sua pri- do futuro. Polemísta, jornalista, cronista, contista
meira montagem no Rio de Janeiro em 7 de agosto e dramaturgo, em qualquer dessas funções predo-
de 19 I 8. Segundo o dramaturgo belga, a dor ver- mina a observação da realidade. Sua obra retrata a
dadeira não encontra vazão na palavra, limitada sociedade, os cosrumes e o submundo recalcado da
e desgastada pelo cotidiano, e, sim, no silêncio. capital do país, o Rio de Janeiro.
Os amantes, enredados e impotentes, sofrem, e. O texto teatral de João do Rio é construído
são aniquilados pelo destino. Dominados por um pelo diálogo de vozes diversificadas, sem abdicar,
amor impossível, encontram na morte a saída e no entanto, da presença de um narrador mundano,
alívio para a dor. Para ela caminham em silêncio; sarcástico e crítico. Por vezes, esse narrador encon-
a palavra, desgastada e limitada por narureza, não tra no barão de Belfort, personagem constante de
consegue expressar o desespero. A linguagem da co- suas crônicas em jornal e livro, o raisonneur; espécie
municação trivial e cotidiana é banida. Maeterlinck de duplo do cronista mundano.
privilegia a musicalidade do verso, a sugestão da Em 1906,João do Rio escreve a revista A Folia)
metáfora, a ambiguidade da parábola. As perso- mais tarde intitulada Chie- Chie, em parceria com
nagens tornam-se visões e sonhos. o jornalista J. Brito. Depois apresenta Última
É em torno dessas tendências ligadas às tradições Noite (inicialmente denominada Clotilde), drama
naturalistas e antinaturalistas que podemos agluti- estreado em 8 de março de 1907, no Recreio Dra-
nar os dramarurgos que fizeram o "teatro sério" do mático, com vigorosa interpretação de Lucília
pré-modernismo brasileiro, como veremos a seguir. Peres. Na peça, adora como modelo o espetáculo
popular do grand-guignol, e usa com propriedade
o ritmo cênico a fim de criar a tensão dramática e
A Dramaturgia a preparação para o efeito trágico.
de Base Realista) Histórica Em 1912, esrreiaABelaMadame Várgas, baseada
e osDramas da Paixão em fato real, ocorrido no Rio dejaneiro, em 1907, em
que a viúva Clymene Bezerrilha foi pívô de um assassi-
Nesse conjunto estão reunidos dramarurgos e peças nato, ao ser disputada por dois jovens estudantes. Ela
que trataram de maneira preferencial aspectos da foi gravemente ferida; e o assassino, absolvido.
realidade social próxima, com um olhar realista Em 1915, nova estreia: Eva) drama em três ates.
e crítico, cujo conflito dramático esteve apoiado No mesmo ano, a Companhia Cristiano de Souza
sobre o amor e o casamento. São eles: João do Rio
(r881-1921), Coelho Neto (1863-1934), Cláudio
72 Apud Raimundo Magalhães Jr., A Vida Vértiginosa deJoão
de Souza (1876-1954), Júlia Lopes de Almeida
do Rio, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, P: 129.

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História do Teatro Brasileiro + volume 1

encena três peças em um ato: O Encontro, QuePena o ladrão, apelidado Gentleman, tem a fala e a
Ser SóLadrão! e Não É Adão. aparência de um cavalheiro, embora inicialmente
Representante de um estilo de vida, de escrita seja mostrado revistando gavetas e cômodas, de
e de interesses afinados com o decadentismo do forma nada cavalheiresca. Há uma inversão car-
período entresséculos e com o dandismo nascido navalesca nesse ladrão de ópera. Em verdade, a
nas metrópoles modernas, João do Rio "expande situação de assalto não está ali para apontar ou de-
as marcas de gênero, ultrapassando as distinções, nunciar a violência urbana do Rio de Janeiro. Ela
fazendo uma crônica ter características de conto e serve para reproduzir no palco a "vida encantadora
este, marcações teatrais":". A atração representada das ruas" e as observações coletadas pelo flâneur
pela rua e pelo ritmo da vida do início do século João do Rio. Ladrões e prostitutas emparelhavam
impulsiona o artista a descrever "os aspectos da mi- em suas crônicas com trabalhadores, mendigos e
séria, dos becos sórdidos, dos livres acampamentos gigolôs, habitantes do "arraial da sordidez alegre':
da miséria">'. Embora sua dramaturgia mantenha como o cronista denominou o morro de Santo An-
liames com o restante de sua obra ficcional e jor- tônio, espaço privilegiado de suas incursões pela
nalística, não atinge o grau de crueza das crônicas periferia da sociedade burguesa.
e dos contos. Opôs-se ao simbolismo e preferiu o Gentleman usa como forma de persuasão a
tratamento realista, sem, contudo, abrir mão da fala. A dramaturgia do início do século xx tem
ironia e das frases de efeito: essa característica de conversa, de reunião social, de
personagens sempre dispostas a se revelar e a revelar
A chateza sonhadora do simbolismo, o refúgio dos desequi- os dramas dos homens e do mundo por meio das
librados e daqueles que são incapazes de ciência e de estudo, palavras trocadas em encontros fortuitos ou inten-
o ar tresloucado desses Manfredos estragados, crescendo cionais. É o teatro da sala de visitas, verborrágico
numa demonstração palpável da fraqueza mental do Brasil, e estático - o chamado "teatro de frases", que João
tomam o ar postiço dos homens falsos, irritam-nos como do Rio cultivou com visível prazer.
fantoches, quando o progresso social necessita suprimi-los Enquanto mulher e prostituta, Adriana não tem
à força, diante de urna realidade pungente, de urna arte sã. o direito de transgredir a imagem de marginalidade
Areaçãofar-se-á [...], essenaturalismo gloriosoporque luta social para assemelhar-se às demais mulheres. É e
paravencer, será certamente a forma única da arre no Brasil75• continua sendo a prostituta, execrada pela socie-
dade pudica.
Essa relação entre dramaturgia e jornalismo Já a peça Encontro, identificada por João do Rio
apresenta nuances nas peças em um ato, Que Pena como "um ato sobre uma triste saudade...': estreou
Ser SóLadrão!,Encontro e Chá das Cinco. em 6 de setembro de 19 I 5. Mais tarde integrou, em
Na primeira delas, o cenário é o quarto da pros- forma de conto, o volume A Mulher e osEspelhos
titutaAdriana, invadido por um ladrão em busca de (I9 I 9) com ligeiras variações. Este pequeno ato re-
dinheiro ou joias. Quando é surpreendido, devolve vela característicasdo teatro crepuscular das primeiras
o dinheiro em sinal de compaixão (era a quantia décadas do século xx, contaminado pelo simbolismo.
destinada a pagar o aluguel do quarto), recusa-se a A ação transcorre em Poços de Caldas, durante
ceder à sedução dela e vai para casa, onde o espe- uma temporada com poucos banhistas. Cantaro-
ram a mulher e o filho. A prostituta, rejeitada, fica a lando à janela e fazendo crochê, a prostituta Adélia
suspirar e a lamentar ter sido ele apenas um ladrão. da Pinta, assim chamada devido a uma pinta que
tem no rosto, vê passar as horas enquanto espera, no
final da tarde, a chegada do coronel que a sustenta.
73 Orna Messer Levin, As Figurações do Dândi: Um Estudo Carlos Guimarães, que passava pela rua, se aproxima
sobrea Obra deJoão do Rio, Campinas: Editora da Unicamp,
em busca de informações, movido por uma estranha
199 6, p. 194·
74 Renato Cordeiro Gomes,João do Rio: Vielasdo Vício, Ruas impressão de reconhecimento. Após algumas per-
da Graça, Rio deJaneiro: Relume Dumará, 199 6, p. 45. guntas, descobre na mulher uma antiga paixão de
75 João do Rio, apudJoão Roberto Faria, IdéiasTeatrais: O Século
adolescência. Seguem-se confidências. Embebidos
XIX no Brasil,São Paulo: Perspectíva/Fapesp, 200 I, p. 239-24°.
• o Teatro no Pré-Modernismo

no passado, declaram seu mútuo amor. Sucedem-se Tem pena! Para eu sonhar comigo sempre da mesma ma-
carinhos cada vez mais intensos, só não culminando neira, para lembrar a única boa coisa da existência, para
numa relação mais íntima porque Adélia se recusa, poder fechar os olhos e pensar no melhor momento da
declarando não querer presenciar a morte de seu so- minha desgraçada vida, quando era menina... [...] Carlos,
nho de amor juvenil. O corpo, segundo ela, mataria meu bem, meu amor... Ninguém tem mais vontade do que
a lembrança do passado. Separam-se ao finaL eu. Mas seria a morte, o fim da minha alma.
A narrativa dramática desenvolve o tema do
reencontro de amantes e se subdivide em partes: Há na personagem feminina uma tensão interior
às falas iniciais sobre a cidade, doenças e interesses de que o homem parece destituído. Nas memórias
pessoais seguem-se o reconhecimento, a evocação recuperadas em cena sobressai o sabor agridoce da
das boas e más lembranças do amor vivido 23 anos juventude perdida e resgatada momentaneamente.
antes, a tentativa de reaproximação e a separação. A Nos diálogos congregam-se as reticências do evocá-
peça termina com a nova solidão da protagonista, vel não expresso, as lembranças das qualidades de-
agravada pelo que acabou de viver: "Foi mentira .. voradas pelo tempo, que move a narrativa rumo ao
dize que foi mentira. Eu vi a minha vida, eu vi! [ ] .depois e depois. São declarações e atitudes, beleza e
era melhor não ter visto, era melhor, era melhor !"76 beijos, braços, cabelos, mão e boca, bengalas e fugas.
A mulher que cantarolava tristemente ao iniciar a Em Qjte Pena Ser Só Ladrão! e Encontro o dis-
peça chega ao final soluçando. curso teatral deJoão do Rio mostra-se complemen-
Esse reencontro de amantes já havia se cons- tar à sua obra ficcional e jornalística. O dândi na
tituído em assunto de Ao Declinar do Dia, de pele do bandido e a sonhadora na carne da prosti-
Roberto Gomes, escrita em 1909 e representada tuta representam interfaces da sociedade múltipla
em I 9 I o. A mesma situação dramática foi tratada dos anos iniciais do século xx. João Ribeiro, no
também por Goulart de Andrade na peça Assun- necrológio de João do Rio, faz jus à figura do es-
ção (1909-1910) e, posteriormente, no romance critor ao invocar o passar do tempo para uma mais
homônimo publicado em 19 1 5. justa avaliação: ''Ainda não está elaborada a crítica
Encontro, além de criar uma distância temporal dos seus trabalhos e não será tarefa banal, atenta a
maior na separação entre os amantes, transforma variedade da produção do escritor. [...] A verdade é
o que poderia ser um adultério (as protagonistas que não se confundia na vulgaridade comum; tinha
de Ao Declinar do Dia e Assunção eram casadas) qualquer coisa de insólito ou singular'?".
numa relação menos afrontosa à moral burguesa, Mais conhecidos são dois outros textos: A Bela
em razão de Adélia ser uma prostituta. Madame Várgas, cuja estreia ocorreu em 22 de outu-
Carlos lamenta o tempo que passa - sofre de ciá- bro de 1912 no Teatro Municipal do Rio deJaneiro,
tica e arrasta uma das pernas: "Eu já sou quase velho. e Eva, que estreou em 13 de julho de 1915 no Teatro
Tenho quarenta anos".Para ele, Adélia representa a Cassino Antártica, em São Paulo, representada
possibilidade de recuperação dos anos perdidos, o pela Companhia Adelina Abranches e bem recebida
reencontro com o que fora: jovem filho de um se- pela crítica. Eva tem a marca da elegância do am-
nador, fogoso e aventureiro. Adélia, porém, defende biente, do decoro nos diálogos, na sutíleza do sen-
um sonho, um estado de felicidade para sempre per- timento amoroso e no desprendimento do gesto
dido. Para ela, a pureza juvenil é irrecuperável: do protagonista, o engenheiro Jorge. O enredo
se desenvolve na fazenda de café do comendador
Isso que tu queres é de todos, pobre de mim. Mas se eu for Souza Prates, no interior de São Paulo. Ante a alta
para ti o que sou para todos, por quem hei de esperar, em sociedade reunida, encena-se a história de um amor
quem hei de pensar? Carlos, tudo o que quiseres, ouviste. sincero, que contraria os prognósticos das fúteis
Tudo. Compreende! Mas sê bom para uma desgraçada. pessoas presentes e destoa do comportamento frí-
volo da jovem Eva, objeto do amor de Jorge.
76 João do Rio, Teatro defoãodoRio, São Paulo: Martins Fomes,
2002, p. 244. As demais citações de peças do autor são tiradas
desta edição. 77 Apud R. Magalhães Jr., op. cít., P: 382.

• 339
História do Teatro Brasileiro • volume 1

o desaparecimento do milionário colar de péro-


las de Adalgisa, esposa de Souza Prates, recai sobre
Eva, que põe à prova o amor do rapaz, pedindo-lhe
que assuma o delito. Ele concorda, mas antes que
sua confissão se torne pública, o delegado anuncia
que o ladrão era o jardineiro!
A peça tem um segundo plano muito rico se
encarado sob o aspecto da representação da so-
ciedade. Os criados (obrigados a falar francês), o
jardineiro e demais empregados exercem o papel
de contraponto à burguesia em festa, representam
o mundo do trabalho, ligado à discussão de salários
e benefícios. Não por acaso, há uma greve dos em-
pregados prestes a desencadear-se na propriedade,
'motivada pela reivindicação de melhores salários.
O roubo do colar pelo jardineiro demonstra o
quanto a ideologia se sobrepõe à pintura dos tipos
e costumes. É menos comovente e chocante que ele
seja preso em cena e não qualquer um dos convi-
dados de Souza Prates. Entre os muitos diálogos, a
fala espirituosa, muitos relatos e pouca ação sobre o
palco. Personagens nada mais fazem do que serem o
coro de apoiadores aos reclamos amorosos deJorge.
Eva é apresentada no início da peça como a des- João do Rio aos vinte e sete anos.
truidora de corações: "onde vai, todos a amam': diz
a senhora Azambuja, secundada por Guiomar: "E
ela não ama ninguém!" Jorge, o pretendente, por inverossímil seriedade para que os outros seria-
seu lado admite desconhecer os jogos amorosos: mente não se convençam de que não há perigo em
"Sinto que estou sendo ridículo. É humilhante. continuarem patifes". Em seu papel de raisonneur,
Não sirvo para sociedade tão frívola. Levam tudo Belfort usa um discurso moralista o tempo todo,
em troça. Sou um simples. Sou um matemático". evidenciando esse tipo de teatro que se dedica a
Para ele,"Amor é revelação e é eternidade para as al- esmiuçar as faces da paixão amorosa. Segundo
mas sem mentira. [...] Por que me dominou assim? Orna Messer Levin, a peça é
[...] Já não sou um homem, sou uma pobre coisa".
O mesmo pode ser comprovado emA Bela Ma- bem arquítetada com conflitos imprevistos que fazem cres-
dame Vargas. O barão de Belfort resume a filosofia cer a tensão na mesma proporção em que o sentimento
da peça: forte de fatalidade exaspera as personagens. O triângulo
amoroso erigido sobre a oposição de caráter das persona-
Quem sabe? Não há ninguém bom nem mau completa- gens masculinas, reforça a sensação de fragilidade vertigi-
mente. As pessoas são como as ações. Tomam o aspecto nosa vivida pela heroína!"
do momento. Há ações que encaradas sob o prisma da ri-
gorosa moral parecem pouco apreciáveis e que, entretanto, Apesar da fina observação de tipos e das relações
se pensarmos bem, sem moral, chegam a ser desculpáveis. interpessoais na sociedade da belle époque, João do
Rio pouco acrescentou à dramaturgia brasileira em
José, como Jorge em Eva, é na classificação do termos de ousadia formal. O conhecimento das
barão de Belfort: "Bom, nobre, sério, escanda-
78 Introdução: A Elegância nos Palcos, ern joão do Rio, op. cit.,
losamente sério. Só não me atrevo a rir da sua p. XXXII.

• 340
• o Teatro no Pré-Modernismo

técnicas da narrativa dramática confere qualidade


ao texto e segurança na obtenção dos efeitos no
espectador, mas são peças construídas na fronteira
entre o drama da paixão e o melodrama, entre a psi-
cologia de salão e o estudo de caracteres, entre a
crítica social e a crônica mundana. Sua dramaturgia
Herta com o realismo do teatro psicológico francês,
namora alguns aspectos do simbolismo, mas se casa
para toda a vida com o hibridismo de linhas do
período pré-modernista, do tempo de espera da
real reviravolta formal que se anunciava.

Coelho Neto

Coelho Neto domina a cena literária do Brasil no


período que compreende o final do século XIX e a
Semana de Arte Moderna de 1922. Sua obra dra-
mática vai da comédia de costumes ao teatro com
finalidade moral e didática. Com Olavo Bilac,forma
o par de representantes incontestes da literatura ins-
titucionalizada. Por isso, são festejados e imitados.
Impõem à literatura brasileira o cunho retórico,
aristocrata e refinado de sua produção literária. o romancista e dramaturgo Coelho Nero.
No teatro, a obra de Coelho Neto apoia-se na
observação do real, demonstrada pela presença cora-
josa de assuntos polêmicos, resultantes de mudanças por causa de dívidas relacionadas ao luxo pessoal,
sociaisainda incipientes,masjá Ragradaspelo drama- às aparências de riqueza. Assim, o cinema, as tec-
turgo. Assim acontece em especial com as comédias, nologias de transporte e comunicação, o papel da
como a mudança de sexo de Eufêmia em O Patinho mulher na família, os desafios de relacionamentos
Torto, a nova sociedade de consumo em Quebranto} amorosos dentro e fora do casamento, tudo isso
as sessões espíritas em OsRaios X a crítica às con- Coelho Neto deixou registrado em suas peças, cô-
quistas tecnológicas do cinema e do telefone em O micas ou sérias. Por outro lado, é possível ver em
Pedido. Em O Relicário, o conflito se resolve no ter- sua concepção de palco um espaço para a discussão
reiro de candomblé do Pai Ambrósio; em O Diabo de ideias, para a defesa de pontos de vista conserva-
no Corpo, a gravidez extraconjugal de Valentina, dores, a propensão para sobrevalorizar personagens
disfarçada em exorcismo, é perdoada por Anatólio, que, sob a capa do bom senso, mais acentuavam a
o pai, que proclama: "O casamento é uma carta de ideologia burguesa, de tons nacionalistas e caráter
fiança, tu pagaste adiantado, é a mesma coisa"?". A tradicional.
moral adapta-se aos novos tempos, mais liberais. Em O Relicário, de r899, encontra-se arepresen-
A classe média e seus sonhos de consumo estão ração da miscigenação da sociedade carioca - por
representados em peças como A Muralha e Que- extensão, brasileira - no elenco das personagens:
branto. São famílias à beira da ruína financeira uma descendente dos índios, uma espanhola
(Lola) e afrodescendentes (Tomásia, Pai Ambrósio)
79 Henrique Maximiano Coelho Neto, Teatro de Coelho Neto,
convivendo com suas idiossincrasias de crenças e
seleção e estabelecimento de texto de Claudia Braga, Rio de Ja- linguagem, num ambiente de contravenções e desen-
neiro: MEc/Funarte, 1998, tomo l, p. 175. As citações das outras
peças do autor serão tiradas desse volume e também do tomo II.
contros, regidos pela violência e pela sensualidade.

• 34 1
História do Teatro Brasileiro + volume 1

o
melhor exemplo é, sem dúvida, a obra-prima Mais do que uma comédia de costumes, sobres-
do dramaturgo, Q!tebranto} comédia em três atos, sai na peça uma atmosfera de melancolia e decadên-
representada pela primeira vez em 21 de agosto de cia.representada por Fortuna e Clara.
1908, escrita especialmente para o Teatro da Expo- A Muralha, de 1905, peça em três ates, foi repre-
sição Nacional": Nessa peça, a hipocrisia, as apa- sentada primeiramente em espanhol, pela Compa-
rências, a futilidade, as vaidades e as traições fazem nhia Arellano, em Montevidéu e no Rio de Janeiro;
submergir, num primeiro momento, o seringalista e em italiano, pela Companhia Clara Della Guardia,
Castrioto Fortuna, de 63 anos, adulado por todos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Na peça, uma
(àexceção da velha Clara) por conta dos oitocentos mulher casada, Estela, é oferecida como mercadoria
contos de réis que amealhou ao longo de uma vida sexual ao rico comendador Narciso pela própria
de trabalho no Amazonas. Fortuna é submetido a sogra, Camíla, em troca de pagamento de dívidas
um intenso tratamento de inserção na sociedade originadas pelo desejo de ostentação da família.
burguesa e predatória do Rio deJaneiro. Para tanto, Nem o marido nem o pai socorrem Estela em sua
obriga-se a realizar exercícios físicos extenuantes, a luta pela preservação da dignidade. Só lhe resta,
viver noitadas com muita bebida e mulheres, a usar então, abandonar o lar e desafiar a moral vigente. A
roupas e botas caríssimas, que nunca o deixam à peça, no objetivo de expor amoral da honestidade,
vontade. Sob a orientação do interesseiro Josino, da dignidade, dos valores éticos ante a avassaladora
gasta com generosidade os frutos de anos de tra- corrupção dos costumes trazida pelo capital e pela
balho. O banho de modernização do velho serin- dissolução dos comportamentos, exagera no tom
gueiro, porém, serve apenas para a realização de panfletário das falas, exemplificando bem o que Al-
um objetivo imediato: pagar as dívidas da família fredo Bosi denominou "sensualidade verbal': para
da jovem Dora, por quem Fortuna se sente atraído. caracterizar a escrita de Coelho Neto'".
Evidentemente ela não o ama, mas vê nele o ho- O drama feminino tem outra versão em Neoe
mem que pode sustentá-la e a suas vontades, além ao Sol, peça em quatro atos, não representada em
de lhe dar um nome honrado, capaz de encobrir vida do autor. Nela, a viúva Fausta é apaixonada
o caso que mantém com o primo Josino. Ao final pelo artista Alberto que, por sua vez, ama a filha
do 32 ato, descoberto o golpe de que seria vítima, dela, Germana. O trio assim formado reproduz
Fortuna declara aDora: padrões do drama burguês cujos modelos são
importados da França, em especial do dramaturgo
Sou um velho, a senhora é uma criança. É verdade que me Henri Becque.
quis fazer mal, mas o que passou, passou. Seja feliz. É moça, Essemesmo intuito moralizador o levou a escre-
bonita, bem educada, que mais? Pode ser ainda muito feliz. ver pequenos textos de cunho didático e de caráter
[...] a senhora brincou comigo, foi o que foi. Agora é preciso infantil e escolar, reunidos sob o título Teatrinbo,
pensar seriamente em si. Olhe, de mim não tem o que recear: Fazem parte desse conjunto peças como As Estações
o seu segredo está na mesma sepultura em que enterrei o meu (1898), texto em que se encontra o conhecido so-
amor: um é mortalha do outro. Agora... que mais? neto "Ser mãe", eA Cigarra ea Formiga, provérbio
em um ato.
Embalado pela ilusão da juventude, Fortuna é Outras peças de Coelho Neto compõem o
trazido à consciência do ridículo da situação pela conjunto de sua obra dramática. Ao Mar (1900)
avó de Dora, Clara, que abre seus olhos para as ar- centra-se no diálogo entre mãe e filha, após a morte
timanhas de josíno e demais personagens. O clima do pai. A mocinha insinua a existência de adultério
do final da peça, em que Fortuna reassume seu ca- entre a mãe e o médico, mas o final fica em aberto,
ráter, dignidade e comportamento provinciano, é pois a acusação não se confirma nem é desmentida.
de uma beleza teatral inconteste. Ironia (1898), peça de alta carga dramática, apre-
senta o conflito de uma atriz dividida entre o filho

80 Sobre o Teatro da Exposição Nacional, ver o capítulo Inicia- 81 Alfredo Bosi, História Concisa da LiteraturaBrasileira, São
tivas e Realizações Teatrais no Rio de Janeiro. Paulo: Cultríx, 1981, p. 223.

+ 34 2
• o Teatro no Pré-Modernismo

moribundo e a estreia de uma comédia, em que é ascendência e praticidade, reflete os aspectos nega-
a protagonista. Ela escolhe o palco. A Mulber, co- tivos da sociedade dominada pela ânsia do poder e
média em um ato, apresenta Leonor, uma mulher da ascensão social. Ama o luxo e a ostentação, tem
estudiosa e entediada, que acredita na ciência e se critérios morais dúbios, procura, acima de tudo, o
refere com entusiasmo aos conhecimentos sobre a seu interesse pessoal, que ela justifica como sendo
célula e a locomotiva e se exercita com o florete, que o interesse do grupo. Por outro lado, Estela possui
lhe dá corpo de atleta, inibindo-a de ir decotada ao predicados considerados positivos à época, pois acre-
Teatro Lírico. Ela se contrapõe à simplória Maria, dita no casamento, na família, na conduta honesta e
que pauta sua conduta pela experiência cotidiana sincera. Ao perceber a derrocada da moral patriarcal,
e pelo bom senso. A mensagem final vem na vez ainda assim a defende: "o marido fora do lar é um
da velha Teresa: "não contrariemos as leis naturais", homem entre os homens [...] e entre as mulheres.
pois Leonor é uma "sabichona ridícula". Fim de De portas a dentro é o esposo. O compromisso do
Raça (1900) é uma comédia sobre um casamento marido não tolhe a liberdade ao homem". Mas não
arranjado a fim de garantir a continuidade da linha- tarda, desiludida, a abandonar a casa.
gem da família Piranhas. Nuuem, sainete em um O Dinheiro repete essa estrutura e essa solução:
ato, conta a história de Ângela, que, julgando-se há o abandono do lar pela esposa - que havia sido
traída, abandona o marido e corre buscar abrigo "vendida" pelo próprio marido -, para evitar a de-
junto à mãe, no momento em que esta contava à sonra e a degradação morais.
irmã mais nova uma bela história de amor envol- Em Neue ao Sol encontra-se novamente a pre-
vendo um príncipe encantado. O mal-entendido sença do dinheiro em confronto com a família e a
se resolve devido ao comportamento astuto do relação amorosa. Nessa peça, Alberto casa-se com
sogro, encenando a expulsão do genro. A filha sai Fausta por causa do dinheiro dela. Percebe-se, en-
em defesa do marido, tudo se esclarece e o casal tão, que a denúncia não se prende exclusivamente
se reaproxima. O Relicário, comédia em três ates, à venda da mulher, mas de qualquer ser humano,
representada em 24 de março de 1899, no Teatro porque Coelho Neto demonstra que a degradação
Lucinda, apoia-se num quiproquó cómico envol- do ser humano é causada pela corrupção trazidapelo
vendo cenas de candomblé, desencontros, trocas dinheiro, tese cara ao teatro realista.
de identidade e crítica social. Não apenas as mulheres casadas são postas à
Dois motivos, correlacionados, servem de base venda, mas, numa tradição do teatro côrnico -
para a crítica social de seu teatro: o dinheiro e a Plauto, Moliere - a mão da donzela é oferecida
mulher tomada como objeto de troca. Exemplifi- àquele que pagar mais: Sapatos deDefunto e Diabo
cam essa postura o drama A Muralha, O Dinheiro no Corpo continuam essa tradição. Em síntese, a
eNeue ao Sol. condenação do dinheiro como fator de degradação
A personagem feminina no teatro de Coelho do homem, a crença na honestidade, na pureza do
Neto concentra o entrechoque de valores sociais, amor, no trabalho, no natural e simples, demons-
mantidos por uma sociedade patriarcal e domi- tram um apego a valores em vias de desapareci-
nadora, e aqueles apresentados pela sociedade mento. Esse saudosismo e essas crenças em valores
burguesa e pelo trabalho, em que o vislumbre de humanos naturais e duráveis afastam Coelho Neto
liberdade acarreta uma nova moral. Encarnando a da ideologia naturalista e cientificísta do final do sé-
transformação da sociedade à sua volta, as perso- culo. Por outro lado, a idealização dos sentimentos
nagens femininas acompanham o desenvolvimento de honra e amor, tão frequente no período român-
do capitalismo: o valor do dinheiro como padrão- tico, parece demonstrar que a obra de Coelho Neto
-patrão do comportamento social, o sistema de atualizou, no início do século passado, uma série
trocas e a possível liberdade através do trabalho. de tendências do teatro brasileiro, não apenas no
Em A Muralha, o par Carnila-Estela reúne quali- que diz respeito ao aspecto temático, mas também
ficações opostas que fatalmente as coloca em con- ao aspecto formal. Por essas razões, Coelho Neto
fronto direto. Camila, a sogra, apoiada na idade, representa sua época, embora não tenha alterado "a

• 343
História do Teatro Brasileiro • volume 1

perspectiva histórica de nosso teatro': como afirma desenvolve-se o tão constante "drama da paixão" da
Sábato Magaldi". dramaturgia dos tempos pré-modernistas.
Há personagens côrnícas, como Ernesto, o dândi,
fofoqueiro e servil; Teresa, a criada da casa de Baby;
Cláudio de Souza e Pedro, o mordomo sebastianista, que defende os
valores de uma sociedade que se extingue:
o dramaturgo é mais conhecido como autor de co-
médias de costumes, até porque seu maior êxito é a Atente para as raparigas de hoje! Mal acabam de lhes sair os
comédia em três aros Flores deSombra} que estreou dentes da muda, untam-se de pomadas, cobrem-se de polvi-
em São Paulo em 19 I 6, pela companhia dramática lhos cheirosos, e sentam-se nos salões, nos braços das poltro-
de Leopoldo Fróes, sendo no ano seguinte represen- nas, como garotos, e remangam as saias, que já de curtas não
tadano Teatro Trianon, no Rio deJaneiro. Mas elefoi têm o que remangar, e cruzam as pernas - (olhando para o
também autor de um drama na linha do "teatro da céu demãospostas) - as pernas, meu senhor! - e acendem o
paixão':BonecosArticulados, com lances de amores in- cigarro com tal desembaraço que estão a calhar todas as in-
confessados e acusação à hipocrisia e à futilidadesocial. conveniências que lhes queiram dizer os peralvilhos. [...] Sou
O drama em três atos, O Turbilhão, foi apre- velho, servi senhores de outro tempo. Falava-se às senhoras
sentado no Teatro Municipal em 23 de agosto de como a santas. Aquilo eram vestidos! Uma grande armação
1919, no Rio de Janeiro, pela Companhia Maria de arame, a enorme roda de donaires, e tufos, e mais tufos,
Mattos e Mendonça de Carvalho. que punham os homens distantes. Ouça: as antigas senhoras
O Ministro Silva Reis e sua esposa levam para em cada um daqueles tufos pareciam ainda guardarem um
a cidade, provavelmente o Rio de Janeiro, a filha pouco do incenso de sua primeira comunhão!
de um amigo do interior do estado, Baby. Em sua
estada na cidade, ela conhece o engenheiro Clo- Dois outros criados, o francês Baptiste (que se
doaldo, um homem simples e honesto. Casam-se revolta com a declamação em francês macarrónico
e vivem tranquilamente, em especial porque ela pelas senhoras) e José, socialista, dão a nota po-
protege o marido a fim deque ele possa desenvolver lítica ao texto. Quando veem suas reivindicações
seus projetes científicos. Com o apoio do Ministro, negadas, ameaçam uma greve e diz Baptiste: "Não
as pesquisas avançam. Mas Silva Reis apaixona-se somos escravos: somos iguais. E somos sindicados.
por Baby, e não resiste em confessar esse amor. Po- Boicotaremos a casa e não terão mais criados". O
rém, Baby e Clodoaldo reafirmam a importância texto mostra-se política e historicamente atua-
do casamento e acionam juntos o aparelho que lizado quando Ernesto, ao comentar a pressão
finaliza com sucesso a experiência científica. No dos criados, que veem atendidas suas exigências,
desfecho, há a aclamação do cientista. afirma a chegada de um novo tempo: "É o bolche-
Drama de amor que necessita exposição, vin- viquismo l"
gança e reconciliação, seu conflito se desenvolve À medida que o conflito amoroso se intensifica,
no seio de uma sociedade burguesa, voltada a festas, desaparece o quadro social para que as cenas se con-
mexericos, vaidade e muita frivolidade. Silva Reis, centrem nos distúrbios da paixão. Em camada mais
no entanto, ao declarar seu amor a Baby, profere subterrânea, uma outra oposição é tratada: a que
uma frase que dignifica um pouco os jogos amoro- contrapõe a vida do interior, tida como mais sin-
sos dos protagonistas: "Ninguém encomenda amo- cera e calma, e o turbilhão da cidade, que envolve
res e, menos ainda, amores que são sofreres"83 Mais as personagens e lhes tira a naturalidade e a inde-
uma vez, dentro do quadro de futilidade social, pendência. Nesse aspecto, há mudança significativa
na personagem Clodoaldo, antes um matemático
enrustido e tímido, que depois se converte no que
82 S. Magaldí, Panorama do Teatro Brasileiro, São Paulo: Difel,
19 62, p. 16 5· ele denomina "uma energia útil!"
83 Cláudio de Souza, O Turbilhão, Rio de Janeiro: Pimenta de Outro aspecto relevante desse drama é o fato
Mello, 1920, p. 83. As demais citações da peça são tiradas dessa
edição.
de o protagonista ser um cientista e durante a peça

• 344
• o Teatro no Pré-Modernismo

mostrar-se seriamente ligado à pesquisa, a POntO submete-se a trabalhos domésticos na casa que fora
de usar termos específicos e referir-se a fatos cien- sua, agora governada pela sogra, Clementina. Sem
tíficos do momento. O próprio cenário da peça clemência, ela submete Elisa a situações vexatórias.
no 22. e 32. aros coloca no palco máquinas, luzes e Quando a moça descobre que a única herança de
laboratório. Ao final do 22. ato, uma ousadia cênica: seu casamento é a tuberculose, que avança rapida-
mente em seu corpo, resolve declarar uma indepen-
CLODOALDO (à porta do laboratório) - Baby, Baby, dência suicida e, mesmo doente, abandona a casa
vem ver... É a vitória, compreendes? (corre a cortina) Vê! numa noite de tempestade, defendendo a liberdade
(a plateia .fica às escuras. Vê-se o laboratório fracamente que pode vir a lhe ser fatal.
alumiado pelos fogos de dois pequenos fornos. Pereira e Júlia Lopes de Almeida, romancista, contista,
Castro trabalham ao fundo com uma máquina elétrica). conferencista e dramaturga, prima pela construção
Vamos, rapazes! (uma luz de um azul intenso, vinda do de personagens e conflitos que envolvem aspectos
laboratório, projeta-se sobre o palco e a plateia). Minha pessoais e sociais. Em A Herança, Clementina
querida, é a nossa vitória! é a encarnação do espírito pragmático e desu-
mano, aperfeiçoado pela corrosão efetuada pelo
A ciência vem temperar a paixão e render ho- dinheiro em seu caráter, Zela pela saúde da filha
menagem aos avanços tecnológicos que ganham e da sobrinha, mas não faz o mesmo com a nora
projeção no século xx, como em Albatroz, o drama viúva. Deseja a herança do filho, que obrigou a
de Oscar Lopes, de 1909. casar com separação de bens, explora o trabalho
Cláudio de Souza é autor de extensa obra dra- de.Elisa, em troca de casa, roupa e comida. Consi-
mática. Entre outras peças, escreveu: Eu Arranjo dera as atitudes da nora "malignidades de mulher':
Tudo (1915), OutonoePrimavera (1918),AJangada "dissimulaçâo'f". Ao saber da gravidade do estado
(1920), As Sensitivas (1920), A Renúncia (1921), de Elisa ("Um dos pulmões já quase perdido e o
Uma Tarde de Maio (1921), A Escola da Mentira outro muito avançado"), comenta: "E agora? Que
(1923) eAArte deSeduzir (1927). Sempre encenado aborrecimento l" A situação torna-se tensa até que
pelos bons artistas de seu tempo, o registro cómico Elisa declara: "Basta de humilhações! Não posso
ganhou sua preferência, fator fundamental para o mais!" E abandona a casa. Suas últimas palavras
prestígio que conquistou no meio teatral. expressam a dor e a desesperança: "por aquela porta
por onde entrei com meu marido num dia de céu
azul, sairei sozinha num dia de tempestade. Vim
Júlia Lopes de Almeida para a felicidade que não encontrei, vou para o im-
previsto, que talvez me socorra! [...] Eu volto para
No panorama do teatro nacional, Júlia Lopes de o meu [lugar] com a minha herança!"
Almeida desenvolve personagens femininas e situa- Outra peça da autora é o drama em três atas
ções sociopsíquicas que já demonstravam a altera- Quem não Perdoa, encenado em 12.. de outubro de
ção do papel social da mulher no início do século I 9 I 2, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Tam-
xx. Em especial, duas de suas peças vão se dedicar bém trata de relações conjugais em que lida, esposa
à discussão dos conflitos nascidos em decorrência fiel do adúltero Gustavo, descobre-se apaixonada por
das mudanças nos costumes. Manuel, amigo do casal. Sua mãe, Elvira, resume o
A primeira delas, A Herança, drama em um ato, modo como a sociedade pensa os dramas conjugais:
foi representada no dia 12 de agosto de 1908, na "Na vida de uma mulher solteira, por maior que seja
estreia do Teatro da Exposição Nacional, na Praia o sofrimento, há sempre a esperança. Na da casada,
Vermelha, no Rio de Janeiro. O conflito central é quando não haja felicidade há apenas resignação"!'.
vivido por Elisa, jovem viúva que, por amor, aban-
donou os estudos a fim de casar-se com um rapaz 84 A Herança, Rio de Janeiro: Tip. do Jornal do Comércio,
de posses. Com a morte do marido, causada pela 1909, p. 23. As demais citações da peça provêm dessa edição.
85 Idem, Teatro: Quem nãoPerdoa, DoidosdeAmor, NosJardins
tuberculose, vê-se desamparada. Para sobreviver, de Saul, Porto: Renascença Portuguesa, 1917, p. 39.

• 345
História do Teatro Brasileiro • volume1

o rapaz abandona o Brasil e vai para a Europa. Ao Mesa tosca, com utensílios diversos. - Desenhos, cartões,
se despedirem, Ilda é surpreendida pelo marido que algarismos. - Tamboretes. -1vlotor, quase ao centro".
a mata incontinenti, julgando maculada sua honra.
Quatorze anos depois, ao sair da prisão é saudado O engenheiro e inventor Júlio Frederico vive
como herói pelos amigos. Elvira, mãe de.Ilda, no um grande desafio: construir o Albatroz, avião
entanto, torna a si a vingança e assassina Gustavo. capaz de resistir ao vento, voar com segurança e
O assunto não está de todo resolvido pela vin- realizar um sonho:
gança, de vez que uma das amigas de Gustavo, infiel
como ele,o defende com as seguintes palavras:"Gus- Sentir que me elevo da Terra docemente, suavemente, e
tavo não é o primeiro marido que matou a mulher me dirijo no ar à mercê de minha vontade... Ter a noção
no Rio deJaneiro e que é absolvido! Há vários aí nas de estar acima do Planeta, tendo burlado a lei da gravi-
mesmas condições e muito considerados". dade, dominando as montanhas e os mares, as florestas,
Júlia Lopes de Almeida tratou do novo papel movendo-me na direção que eu desejar...
social da mulher, mas o fez com timidez estética,
permanecendo em soluções dramatúrgicas com- Júlio é casado com Marta, que o ama e lhe é
portadas. Mesmo assim, seus contemporâneos fiel. Ele sai a testar o avião, sofre um acidente e fica
a tinham em alta conta. No volume em que está temporariamente cego. O motor do avião é con-
impressa A Herança, Artur Azevedo qualifica a sertado pelo mecânico Edgard, e Sancho, o amigo
peça como "uma página tão fina, tão delicada, tão espanhol, consegue voar com o Albatroz e credita
comovedora, que só poderia sair de uma pena de os méritos ao amigo Júlio.
mulher". E Olavo Bilac acrescenta que se trata de Júlio recebe uma carta, atribuída a Marta, em que
"um ato curto e rápido, em que vibra um talento esta declara amor a Sancho. O texto falso é Iruto do
criador de primeira grandeza'?". despeito, do ciúme e do ódio de Edgard. Ao ouvir
a leitura feita pelo próprio Edgard, Júlio demonstra
intenso ciúme e acusa a esposa de falsidade. Ameaça
Oscar Lopes matá-la com um revólver.Sancho aparece, luta com
Júlio, a arma dispara e o engenheiro morre. Sancho
Foi intensa e variada a atividade de Oscar Lopes considera-se assassino, Marta olha para Edgard,
como dramaturgo, poeta, romancista e jornalista. compreende toda a trama e a peça termina com ela
São poucos os textos teatrais em sua obra, mas sus- declarando: "Eu direi toda a verdade".
citam algumas constatações relevantes. O drama da paixão realiza-se uma vez mais e
O drama em três aros, Albatroz, que estreou com ingredientes de alta tragicidade, como a fu-
em 28 de setembro de 1909, no Teatro Recreio são do ciúme profissional com o passional. Júlio,
Dramático, com Lucília Peres e Antônio Ramos fragilizado pela cegueira real, vive a cegueira men-
nos papéis principais, alia ao drama da paixão tal, decorrente da desconfiança e da interpretação
uma ambientação futurista para a época: a avia- equivocada dos fatos. É verdade que o ciúme é
ção. O cenário do 1 2 . ato descreve um ambiente intensamente alimentado pela inveja e cupidez de
moderno, indicando a valorização da tecnologia Edgard, lago pré-moderno, que se vale inclusive do
e dos motores: auxílio espúrio da forjada carta de amor.
Embora cenário e ambiemação rondem questões
Ato I - CENÁRIO - Um hangar. Larga porta para o campo contemporâneas de tecnologia e velocidade, o tra-
florido. À esquerda, fundo, vindo em diagonal para a porta, tarnento assumido pelo diálogo teatral se dá numa
um prolongamento da oficina, no qual está guardado o aero- perspectiva sentimental de sabor amigo. O que
plano. Apenas se vêparte dele.- Uma secretária de gavetas.- salva a peça do amontoado de lugares-comuns da

87 Oscar Lopes, Teatro: Albatroz, OsImpunes, A Confissão. Rio


86 Os comentários de Artur Azevedo e Olavo Bilac estão trans- deJaneiro: Garnier, 19 II, p. 3. As demais citações encontram-se
critos no volume deA Herança. nessa edição.
• o Teatro no Pré-Modernismo

dramaturgia melodramática é a presença constante No 32. ato, Maurício recebe a visita de Maria na
do Albatroz. Exemplo de tecnologia e da moderni- garçonniere. Ela lhe confessa um amor que vinha
dade, tem função simbólica. Não voa com a alma da infância: "tinha qualquer coisa de misterioso".
pequena de Júlio Frederico; alcança os ares com a Maurício recusa-a: "Tu és uma linda e ingênua
generosidade e sensibilidade de Sancro Rubilla. O criança. Nós nos amaremos sempre, embora re-
sonho de Ícaro, porém, morreu na ação de lago. gresses à casa. Teu sacrifício é grande demais para
Os Impunes, peça em três atos, estreou em 6 mim". Chega também Alzira, que encontra o véu
de junho de 19 I o no Teatro Municipal do Rio de de Maria, e Maurício lhe faz um discurso cínico:
Janeiro. A narrativa dramática apresenta o protago-
nistaMaurício d1\vila, instalado emsuagarçonniere) Neste pedaço de gaze, Alzira, está o melhor da nossa recor-
lugar de encontros amorosos. Entre suas amantes, dação... Em sua trama unida estão as nossas almas presas. E
está Alzira, mãe de Maria. No segundo ato, temos a minha é para sempre que está enclausurada... Gaze fina e
as conversas de salão em que mulheres e homens ingratamente tratada... Fina, Hutuante, diáfana, incorpó-
se põem a conversar sobre assuntos da vida social, rea como um raio de luar, de luar arroxeado ... Gaze que és
como os efeitos da benemerência e as qualidades da como um luar, luar que és bem a saudade ...
arte. Há falas que esclarecem o leitor e o espectador
sobre os diferentes tipos de festas e espetáculos rea- Alzira diz a Maria quando se encontram: "tran-
lizados no Rio deJaneiro para angariar fundos para quiliza-te... Não disputarei teu amante. Mauricio,
os pobres, como, por exemplo, esta do dr. Bernardes: fica à vontade... Maria, minha filha, não me con-
sideres tua rival: sou apenas a tua mãe". Aos gritos
Para isso, preparam uma festa no mês de abril, um desses de "Marnãe.; mamãe..." abraçam-se. Maurício
festivaisgraciosos,cheios de atrativos - pleinsd'attraits - com recebe, ainda, a visita de um velho, que é pai da
danças ao ar livre, carroussel, teatro de marionetes - uma es- vítima de um crime passional e que fora abrigada
pécie do nosso João Minhoca ouJean Minhoca, como di- nagarçonniere. Vem agradecer a Maurício: "Se não
riam os francesesse conhecessem a nossa expressão- e mais: fosse seu bom coração, meu senhor, meu filho teria
corridas livres - courses libres, ensac, aux oeufi; tômbola de morrido. Foi o senhor que salvou meu filho". O
prendas, um cotillon campestre e até um grande relvado des- leitor reconhece em todas essassituações um estado
tinado às crianças, com jogos infantis multiformes. de indigência dramatúrgica, um acentuado pendor
para o melodrama mais artificial.
A conversa mistura boas ações e frases do dr. Outra peça do autor, A Confissão, é comédia em
Bernardes, no papel do raisonneur. Predomina, um ato, cuja estreia aconteceu em 28 de setembro
porém, a crítica social às ações de benemerência de 1909 no Teatro Recreio Dramático, no Rio
da personagem mme. Bernardes, feitas pelo marido de Janeiro, com Lucília Peres e Marzullo. Trata-
com forte uso da ironia: -se de uma comédia simples, em que o diálogo é
elemento essenciaL Retrata um amor de salão, sem
Ela tem um tino extraordinário para essas coisas. Quem contradições nem reviravoltas. É um jogo de dizer a
a quiser ver feliz é dizer-lhe: olha, aconteceu um grande verdade, provocado pelas perguntas e confissão ex-
desastre - um incêndio numa fábrica, um terremoto nos traída à força. Nela, a malícia feminina predomina.
Estados Unidos ou um descarrilamento de trem de ferro, A mais elogiada das peças de Oscar Lopes foi
com morros e feridos, viúvas inconsoláveis, órfãos abando- Os Cabotinos, estreada em 13 de abril de 19 I 3, no
nados - anda, vai fazer um festival de caridade. Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Mário Nunes
elogiou "o sopro de energia, de vitalidade, entu-
Maurício chega à reunião e, sentindo-se ob- siasmando o público e a crítica'?". O drama de
servado por Maria, inicia o jogo da sedução, Oscar Lopes tem seu terceiro ato ambientado nos
dizendo-se leitor de mãos: "Nas tuas mãos, talvez bastidores de um grande teatro, e onde se ouvem
eu pudesse ler o teu destino; mas nos teus olhos é
o meu que leio". Maria sai, comovida. 88 Op. cír., p. 47.

• 347
História do Teatro Brasileiro • volume1

os aplausos do público. Peça rnetateatral, segundo têm firmeza de caráter, e são adeptos da revolta
Claudia Braga, iminente contra Portugal. Essa oposição divide os
grupos de personagens em bons e maus, oprimidos
não parece seguir uma forma preestabelecida, o que confere e opressores, heróis e vilões, libertários e conquis-
à peça sua maior qualidade. Ao construir seu drama com os tadores. Há um tom romântico fora de época na
pés calcados na realidade que o cercava, com propriedade fala final do contratador algemado: 'M! Capitão!
e conhecimento, Oscar Lopes conseguiu escrever não só Eu bendigo estas cadeias! Elas simbolizam para
dramaturgia, como dramaturgiaséria e de boa qualídade'". mim agora a unidade perpétua e indissolúvel das
capitanias! Elas hão de representar a solidariedade
Trata-se, portanto, de uma dramaturgia de altos dos brasileiros na repulsa de todas as agressões e na
e baixos, mas que revela certo conhecimento do au- defesa da liberdade com que sonhei!"
tor a respeito da linguagem dramática e do diálogo.
Deve-se valorizar a mão segura com que a ação se desen-
volve, de um clima fUtil e mundano para a tragédia pessoal e
Afonso Arinos política do protagonista, num ambiente repleto de traições,
lágrimas e gritos de revolta. Bem aponta a crítica para a cons-
Não faltou à dramaturgia do período pré-moder- trução bipolar das conspirações: "uma contra Felisberto, o
nista o drama histórico. Afonso Arinos explora um patriarca dos Brandt; a outra, a consciência do próprio Fe-
fato histórico do período colonial em Minas Ge- lisberto da necessidade de independência do Brasil, apoiado
rais, e escreve O Contratador deDiamantes (1917), que está no amor pela terra e no apoio popular"?'.
representado em 18 de maio de 1919, no Teatro
Municipal de São Paulo. O entrelaçamento desses níveis e o desenvol-
A ação dramática decorre em Tijuco, de 1752 a vimento dos conflitos conferem a esse texto um
1753. O contratador é Felisberto Caldeira Brandt, colorido dramatúrgico que, um tanto deslocado no
cuja sobrinha, Cotinha, desdenha a corte que lhe faz tempo, mesmo assim mantém o interesse do leitor.
o ouvidor José Pinto Morais Bacellar.Entrelaçam-se É na presença constante e intensa da cultura popu-
o conflito amoroso e o conflito político. A peça tem lar brasileira que reside o ponto de contato da peça
um início mundano, começando com um baile no com o período pré-modernista, em que se estava
salão da Casa de Contrato. Ao 1 2 • ato, mais leve, re- gestando o nacionalismo modernista. A persona-
cheado de elementos da cultura popular (fandango, gem Sampaio registra em suas palavras a trajetória
batuques, lundus), namoricos, frasesde efeito e mui- da valorização da cultura nacional: "Sou da terra,
tos salamaleques de salão, seguem mais dois aros e sou pelos da terra. Quero dizer: nasci no Reino,
um quadro final que assinalam a queda política do mas vim para cá fedelho. [...] Olhe cá: fale-me em
contratador, preso e depois expulso da capitania, fandango ao som de xique-xiques de prata, fale-me
tendo perdido todos os seus bens, a família e amigos. em batuques de rachar, fale-me em lundu chorado"
Felisberto prevê sua desgraça já ao final do primeiro Também merecem registro os diferentes estratos de
ato e, mais ainda, faz uma previsão histórica: 'M! linguagem dos comerciantes, os comportamentos
Um dia os filhos da colônia oprimida hão de fazer existentes na então Colônia de Portugal, além do
dela uma nova e grande pátria!"90 congado dançado em cena.
A peça tem objetivo claro: demonizar os portu- O drama histórico combina, portanto, a narrativa
gueses reinóis, sua ambição, sexualidade possessiva, do fracasso do herói Caldeira Brandt, ao mesmo
orgulho e desejo de vingança, prepotência e violên- tempo em que abre caminho para o anúncio de
cia. Já os portugueses aculturados e abrasileirados novos tempos. A perspectiva histórica é ingênua,

89 Em Busca da Modernidade: Teatro Brasileiro na Primeira


República, São Paulo: Perspectiva, 200 3, p. 43. 91 Edwaldo Cafezeiro; Carmem Gadelha, História do Teatro
90 O Contratador deDiamantes, Rio deJaneiro: SNT, 1973, p. Brasileiro: De Anchietaa NelsonRodrigues, Rio de Janeiro: Fu-
21. As próximas citações da peça provêm dessa edição. narte/trrnj, 1996, p. 353.

• 34 8
+ o Teatro no Pré-Modernismo

contribuindo para um certo quê didático e pouco por um brasileiro. Foi a acusação divulgada nas pá-
teatral da peça. ginas da Revista da Semana, por Rosalina Coelho
Lisboa e no jornalA Rua, por Alberto de Queiroz.
Foi nesse contexto que Roberto Gomes exerceu
A Presença dos Princípios sua atividade intelectual. Como jornalista, ele escre-
do Teatro Simbolista veu, desde 1909, na Gazeta de Notícias, primeira-
mente com o pseudônimo de Bemol e, a partir de
No conjunto dos dramaturgos, a seguir relacio- agosto de 191 I, com o próprio nome, nas críticas
nados, podemos encontrar exemplos da estética da seção "Crônica Musical". Também foi articulista,
simbolista em personagens, situações e concepção crítico musical e teatral emANotícia e O Imparcial.
cêníca, predominando sobre a perspectiva crítica e Sua dramaturgia compreende nove peças: LePa-
social presente na categoria anterior. São eles: Ro- pillon (1897-1898),AoDeclinardoDia... (1910), O
berto Gomes (1882- 1922), Goulart de Andrade Canto sem Palavras (1912),ABela Tarde (1915), O
(1881-1936), Lima Campos (1872-1929), Graça Sonho de uma Noite deLuar (1916),Berenice (19 17-
Aranha (1868-193 I), Paulo Gonçalves (1897- 1918), OJardim Silencioso (1918),A CasaFechada
1927) e Emiliano Pernetta (1866-1921). (1919) e Inocência (1915-1921). Quatro delas foram
vertidas para o francês: Ao Declinar do Dia..., Bere-
nice,A Casa Fechada e Inocência. A única comédia
Roberto Gomes de sua obra, Le Papillon, nunca foi traduzida para o
português. Trata-se de um texto escrito najuventude,
Roberto Gomes foi um autor de fina sensibilidade com um enredo fraco e sem originalidade. O próprio
poética, afinado com a tendência francesa de uma autor renega esse texto, indicando Ao Declinar do
dramaturgia interiorizada, de rninúcias, de sugesti- Dia... como o início de sua obra dramática.
vidade e de contida eloquência. A influência mais Trata-se de um teatro impregnado por uma
forte e duradoura provém da França, a que estava decadentista e refinada visão do mundo e dos
ligado por laços sanguíneos (sua mãe era francesa), homens, expressa poeticamente. Há nessas peças
educacionais (sua formação escolar se deu naquele uma evidente preocupação com a psicologia em
país) e cultural (a língua serviu de forte amarra para detrimento da peripécia ou da sociologia. A sen-
as ideias que foi cultivando sobre a arte teatral, a sação deixa em segundo plano a ação, o silêncio se
partir da leitura de teóricos e dramaturgos, como sobrepõe ao ruído e, até mesmo, à fala. A noite e
Maurice Maeterlinck e Henri Bataille). Como re- o crepúsculo são mais sugestivos e densos do que
sultado, sua dramaturgia apresenta tênue parentesco a luz do dia. Seu teatro recebe com frequência a
com o teatro brasileiro da época, apesar do autor classificação de simbolista que, segundo Eudinyr
aqui ter nascido e vivido a quase totalidade de seus Fraga, caracterizou-se no teatro pela inexistên-
quarenta anos. Em Roberto Gomes, a profunda cia da intriga tradicional, substituída por uma
nostalgia e a contínua sensação de exílio foram mais ambientação difusa e uma atmosfera de tensão;
do que a conduta da moda denominada parisismo. por personagens apenas delineadas, imprecisas e
A atividade dramática do autor, entre os anos indeterminadas; pela existência de dois planos de
de 1910 e 1921, esteve, portanto, marcada pelas expressão e compreensão: o visível e o interno; o
contradições de seu tempo. A estreia de sua peçaAo uso de linguagem poética, sugestiva, ambígua e de
Declinar do Dia...) em 19 I o, não foi bem-sucedida. profunda visualidade; a feição lírica de caracteres
Dois anos depois, porém, a primeira representação e situações, amortecendo a linguagem dramática".
de O Canto sem Palavras foi bem recebida pelo pú- Por outro lado, acreditando na alta importância
blico e pela crítica. do sentimento, do sofrimento e da solidão para a com-
Em 1923, quando da estreia de Berenice, a im- preensão do ser humano, Roberto Gomes enveredou
prensa afirmou que a pouca afluência do público
92 CE. OSimbolismo no Teatro Brasileiro, SãoPaulo:Are & Tec,
carioca deveu-se ao fato de a peça ter sido escrita
199 2 .

+ 349
Historia do Teatro Brasileiro • volume1

pela forma francesa do "teatro da paixão", de Henri de volta, na companhia de Herrnínia. Enquanto
Bataille, Porto Riche e Bernstein. Esse realismo do isso, Queridinha prepara-se para o casamento, sem
«teatro da paixão", no entanto, foi atenuado pela desconfiar da paixão que despertara no tutor.
influência de outra dramaturgia, a de Maeterlinck. A peça é um drama sobre a descoberta e poste-
Roberto Gomes tentou - e por vezes conseguiu rior perda do amor, sobre o sofrimento e a amar-
com êxito - amalgamar a crueza do bisturi francês gura, sobre o desespero calado e solitário, enfim,
com a lira poética belga. sobre uma paixão crepuscular, numa atmosfera de
Henri Bataille afirmava que "o amor é o grito de delicadezas e renúncia.
revolta contra o vazio da vida"?'. Fiel a essepreceito A Bela Tarde) de 1915, registra, em instantâneos
e ao tratamento maeterlinckiano dessa temática, de leve humor e sutileza, o cotidiano de uma família
o teatro de Roberto Gomes está construído sobre o classemédia no Rio de Janeiro do começo do século.
tema exclusivo do amor. É em torno dele que giram Papai diverte-se em cuidar das plantas e ler seu jornal
as personagens, seus desejos, lutas e, frequente- diário.Mamãe, típica figura matriarcal conservadora,
mente, sua derrota. cuida do bordado e da educação da filha, Nicota, en-
Em Ao Declinar do Dia ..., de 1910, Laura está quanto exerce o disse me disse de toda a vizinhança
casada com Viriato, mas seu casamento já apre- com igual afinco e rara sensibilidade. O tio, cinquen-
senta grande desgaste. Ambos vivem a solidão a tão, é a personagem mais rica da peça: seu ceticismo
dois. O marido da protagonista está muito doente e amargura são reflexos da sensibilidade ferida, de
e, acamado, permanece no leito. Ao crepúsculo, a sentimentos amorosos espezinhados. Abandonado
chegada de um visitante inesperado, Jorge, antigo por aquela que poderia ter sido seu derradeiro amor,
amor da moça, traz à cena todo o romance vivido sente chegar o crepúsculo da vida com a amargura
no passado. Ante a possibilidade da viuvez, como dos derrotados e na solidão dos vencidos.
se as amarras sociais se afrouxassem e a lembrança O Sonho deuma Noite de Luar, do ano seguinte,
dos momentos anteriores se tornasse imperiosa, os apresenta Cristiano, um artista, já maduro, que dia-
dois beijam-se. Ouve-se um baque surdo. Viriato loga em cenas de pura ilusão com Edel, a quem amara
está morto no corredor frente ao quarto. Na im- quando tinham ambos quinze anos. Na noite em que
possibilidade de definir se o beijo apressara a morte volta tarde para casa, depois de um compromisso so-
do marido, Laura recusa o amor de Jorge, que parte cial, recebe a visita de uma mulher que, ao primeiro
definitivamente para longe da felicidade. A impo- olhar não reconhece. É Edel, madura, que lhe propõe
tência de Laura diante da morte do marido e a im- retomar o amor da juventude. Ele não aceita, pois
possibilidade de definir sua causa exata conduzem sonha com um amor mais perfeito. O texto termina
ao sofrimento e à percepção do quanto é frágil e quando a Edel real vai embora, enquanto Cristiano
efêmera a felicidade humana. permanece enlevado com a ilusão da presença do
O CantosemPalavras mostra o drama de Maurí- amor adolescente, recuperado pelo sonho.
cio, que, aos 58 anos, se apaixona por Queridinha, A ação dramática de Berenice inicia-se com a
sua afilhada, ainda adolescente com dezessere anos, protagonista cercada de admiradores, prontos a sa-
filha da mulher a quem amara na juventude e que, crificar tudo por ela, que a todos afasta. Seu coração
ao morrer, incumbira-o da tutela da criança. Ante prepara-se para viver, provavelmente, a última pai-
a confissão da moça de que está apaixonada por xão de sua vida, Flávio Orlando, pianista talentoso
Cipriano e o pedido de permissão para casar-se, e pobre. Por ele, ela ignora diferenças sociais e de
Maurício revolta-se e se recusa a autorizar o enlace. idade. O texto dedica-se a estudar a trajetória dessa
Em cena, aparece Hermínia, amante de Maurício, paixão rumo ao abandono e ao suicídio da prota-
que abre seus olhos para a paixão por Queridinha. gonista. Berenice, apesar dos exageros ao gosto da
Sem confessar-se, sofrendo, ele decide abandonar época, é um texto marcante do "teatro da paixão"
o Brasil e parte em viagem para a Europa, sem data na dramaturgia brasileira.
OJardim Silencioso} de 19 I 8} é um texto de alta
93 Écríts surte théátre, Paris, Georges Crês, 1917, p. 192.
poeticidade a respeito dos desencontros humanos.

• 35°
• o Teatro no Pré-j\1odernis!J!~/

, - - - - - --;;?/ - - - - A peça retrata uma cidade do interior, abalada


pela notíc~a de que uma de suas figuras mais conhe-
II
I
cidas e honestas, Maria das Dores, fora surpreen-
dida em flagrante adultério pelo marido, Matias.
Os habitantes da cidade nada sabem de concreto a
respeito do fato e, com curiosidade, reúnem-se em
frente da casa fechada de Maria das Dores à espera
dos acontecimentos. Enquanto isso, tecem conjec-
turas e exprimem opiniões contrárias à adúltera,
aguardando a chegada do barbeiro Geraldino,
que afirmava ter visto tudo. Mas as informações que
ele presta ao chegar estão distorcidas pelo sadismo,
morbidez e inveja. Ao final da peça, a dúvida sobre
/
o que realmente aconteceu persiste. A única certeza
é a partida de.lvIariadas Dores no trem das dezoito
horas, abandonando, por exigência do marido, o
lar e os filhos.
O realismo do enredo e da observação factual e
psíquica das personagens é substituído pela técnica
polifônica do pontode vista. O leitor vê-se, pouco
a pouco; envolvido pela ação dramática de tal
forma que, de repente, descobre-se tão participante
o dramaturgo Roberto Gomes. quanto as personagens, integrando-se ao desenro-
lar da trama, elaborando também hipóteses para
compor a cena central da descoberta do adultério.
A multiplicidade de pontos de vista altera o
enredo tradicional, a tal ponto que o adultério de
É a descoberta da traição feminina, causada, so- Maria das Dores, suposto foco temático principal,
bretudo, pela solidão. O marido descobre a infi- é obscurecido .
pela curiosidade (tantoI do leitor
delidade no dia em que sua esposa, atrasada para quanto das personagens) e pela revelação, através
a comemoração do aniversário de casamento, é da fala e dos comportamentos, de naturezas inte-
assassinada pelo amante. As informações vão che- riores insuspeitadas. As personagens que cercam a
gando aos poucos ao público e ao protagonista, até c,asada adúltera observam a dor alheia. E é exata-
a revelação final. A peça gira em torno de uma prota- mente essa observação que desencadeia confidên-
gonista que não aparece em cena: ela é toda silêncio. cias e revelações e que motiva a exteriorização das
Inocência} adaptação da obra homônima do mágoas recalcadas, do sadismo, da compaixão, dos
Visconde de Taunày, foi resultado de um trabalho preconceitos, da inveja e da maledicência. Por isso, '.-
de longo fôlego: sua composição aconteceu entre as personagens periféricas acabam por constituir-se
1915 e 19 2 1. Roberto Gomes enfatiza no texto ,no centro do espetáculo.
dramático o tom trágico e fatalista do amor de I O leitor observa e analisa a situação proposta
Cirino e Inocência, cercado de cenas de grande como um enigma, de que ignora a solução, e até mal
sutíleza, mistério e destinação trágica. conhece os elementos que o formam. O incidente
Apesar das constâncias temáticas, de personagens da noite da descoberta do adultério só é conhecido
e de ambiência dramática, é A Casa Fechada} texto através da versão pessoal de uma testemunha
finalizado em 23 de julho de 19 19, conforme atesta ocasional. As personagens díretamente envolvidas
o manuscrito original, que apresenta a mais elabo- no fato são apenas seres de palavras: não estão pre-
rada e avançada concepção dramatúrgica do autor. sentes em cena: Matias, o marido, e, muito menos o

• 351
_História.~!eatro Brasileiro • volume 1

_.
-~ " , -~.
-
Outro anônimo. Maria das Dores é construída por damente, um\h\?ra, necessária pàra que as persona-
vozes contraditórias e se tem dela apenas uma visão gens possam d1egar à cena, falar de modo a expor
fugaz ao final do drama, quando passa, ~ilenciosa, \'0ver,dades
pouco a pouco suas es iinteriores
. e preparar
rumo à estação de trem. a passagem de lvlaira das Dores. Arranjado dessa
Mas nem essa visão contribui para elucidar a forma, o tempo da açã~dramática equivale ao tempo
verdadeira história do adultério. Apenas ao final da da encenação, numa siàbiose intensihcadora dos
peça é que o leitor compreende que.o tema central sentidos e verossimilhanç}.do texto.
do texto não é o adultério, mas a dor de estar vivo. O conjunto dessas qualidades faz, com todos
A vida; com acasos e tragédias, é que constitui o os méritos, sobressair a POSiÇãÔ~\Roberto Gomes
enigma. E no afã de decifrá-lo, é o próprio homem- entre os dramaturgos de sua épOca\\
que acaba se revelando e se descobrindo. As perso-
nagens e o leitor chegam à conclusão de que o ser \.
,';\
humano é frágil e ignorante: "Deus é que sabe ... Goulart de Andrade /
Deus é que sabe..."94, afirma o Mendigo. O erro está
dentro das pessoas que "não sabem ver". Dramaturgo de tendência simbolista, busca em
Os seres esbatidos como sombras silenciosas e situações fora da normalidade a ocasião para apre-
imóveis constituem, juntamente com o crepúsculo, sentar tipos e diálogos repletos de zonas de sombras.
uma das imagens mais apreciadas e frequentes no As intrigas em suas peças apresentam-se estranhas,
teatro de Roberto Gomes. Esses seres de sombra, ou tratam de situações anômalas, que permitem in-
geralmente humildes e sábios, dispensam a retó- dagar a respeito das motivações humanas. Goulart
rica vazia e vibrante: pouco falam mas expressam de Andrade é considerado "o mais decadente dos
muito. O Mendigo, o Acendedor de Lampiões e decadentistas do teatro brasíleiro'v'.
Maria das Dores só precisam passar ou murmurar O drama em versos O Ciúme Depois da Morte
para deixar fundamente gravada no espectador/lei- (1909) aborda os ciúmes de um homem pelo ma-
tor uma amarga compreensão da vida, do homem, rido já falecido de sua esposa. Quando ela abre mão
da sociedade e de seus valores. de toda a sua riqueza, fazem as pazes. Em Renúncia
O espaço é outro componente importante da (1909) observa-se um incipiente complexo de
peça, que resulta num uso particular do palco. De- Édipo e a suspeita de incesto. Cláudio, filho de
saparecem os tão frequentes espaços de intimidade. vinte anos de Ester, quer se casar com a viúva Laura,
Seu teatro vai à rua e deixa a cidade gra'nde para de 36 anos. A mãe convence a outra a desistir e
internar-se na comunidade interiorana. Entre os declara que não permitirá que o filho se una a outra
habitantes, prefere escolher os tipos que não sejam mulher. Em Sonata ao Luar (1909) o pai quer a
regionais para não sugerir apenas uma cor local ro- filha para si, mas renuncia a esse amor e permite
mântica ou pitoresca. Persegue com interesse o ser o casamento da jovem, enquanto se ouve z.Mon-
humano camuflado atrás de profissões e, ppr isso, dscheinsonate, de Beethoven. A peça]esus estreou
\
aparentemente sem individualidade. Poucos têm em 20 de junho de 1919, no Teatro Fênix do Rio
um nome próprio, são seres coletivos: o Bo~icário, de Janeiro. Nela, reconta-se a história da traição de
a Agente de Correio, o Pescador etc. A açã9 vai se Judas, movido pelos ciúmes que sente de Madalena,
encarregar de provar que as máscaras profissionais apaixonada porjesus. É um texto pesado e prolixo.
são insuficientes para esconder o ser humano im- Em 1910, o dramaturgo experimenta a narra-
perfeito e problemático. tiva histórica e escreve Os Inconfidentes} sobre a
\
O tempo em que decorre a ação dramática está conjuração mineira de 1789. Em Numa Nuvem,
limitado pela chegada do trem à estação. Portanto, um duque de sessenta anos quer se casar com uma
o conflito apresenta-se concentrado em, apro~ma- moça cega, que tem apenas dezoito anos.Mas per-
mite que ela se case com um moço ourives. Ao final,
94 Roberto Gomes, Teatro deRobertoGomes, Estabelecimento
de texto e introdução crítica de Marta Morais da Costa, Rio de
Janeiro: Inacen, 1983, p. 347. ' 95 E. Cafezeiro; C. Gadelha, op. cit.,p. 363.

• 35 2
+ o Teatro no Pré-Modernismo

revela-se que o desejo de casar com a jovem estava lados estavam com a razão: a igualdade da "situação
relacionado à vontade de ter uma descendência. O dramática" não significa plágio, ainda mais quando
desfecho amortece um pouco a situação tensa da o tratamento dado pelos textos é tão divergente.
relação entre um velho e uma jovem.
O drama Assunção estreou no Teatro Municipal
do Rio de Janeiro em 23 de outubro de 1920. No Lima Campos
entanto, já havia sido publicado na revista Revista
Souza Cruz entre julho e agosto de 1909 e lida pelo A revista Kosmos editou em dezembro de 1907
autor na casa de Rodrigues Barbosa em setembro uma "novela oral em um ato" intitulada Flor Obs-
de 1910. A peça em três aros apresenta um caso de cura, do jornalista César Lima Campos. A peça foi
amor fora do matrimônio e do sacrifício de um dos encenada em 28 de novembro de 19 I 2 no Teatro
cônjuges. Sílvio, casado com Clara, está dominado Municipal do Rio de Janeiro. Num cenário realista
por violenta paixão por Marta, também casada e que de sala de visitas, desenrola-se um drama silencioso
o ama com igual ardor. Ele se mostra disposto a tudo que afetará uma família de mulheres. Breda, jovem
sacrificar por seu amor. Chega mesmo a convidar viúva, mãe da menina Leda e da jovem Gina, leva
Marta a visitar sua casa e, quando estão a sós no escri- uma vida frívola, com ausências frequentes. A velha
tório, beijam-se. Clara, que chegara à porta sem ser governanta Hortência, que vive há mais de trinta
pressentida, tudo vê e se cala. A cada dia que passa, anos na casa, tendo cuidado de Breda desde o nas-
Clara fica mais doente, até que, desenganada pelo cimento, ao fazer a limpeza da sala descobre entre
médico e no final de suas forças, confessa a Sílvio as dobras do tecido de uma poltrona uma carta, que
que conhece toda a verdade sobre Marta. Ele, arre- a deixa alterada e trêmula.
pendido e lisonjeado pela dedicação e sacrifício da Somente através de diálogos e da sucessão de ce-
esposa, exige que Marta desapareça de sua vida. Ela nas o leitor e o espectador serão informados sobre os
sai, mas afirma que voltará depois de tudo acabar. A dizeres desse papel. Hortência assume de pronto a
peça encerra-se com os gemidos de morte de Clara. defesa da honra da família e expulsa Galba Ribeiro,
Ao Declinar doDia..., de Roberto Gomes, escrita o provável amante de Breda, na ausência dela. A cena
em 1910 e lida por André Brulé em 1917, possui capital da peça é o dialogo entre as duas mulheres, no
algumas coincidências em relação ao tema e às qual, de forma clara, o "escândalo e o impudor apon-
situações dramáticas de Assunção. Oscar Guanaba- tados pela maldade e pela hipocrisia de todos">,
rino, crítico teatral de muita severidade, afirmou ter causados pela conduta vergonhosa da viúva, irão
havido plágio por parte de Roberto Gomes, quando atingir as duas filhas. Como reação, Breda expulsa a
na verdade houve apenas semelhança na escolha da governanta da casa. Quando ela sai, leva apenas um
situação dramática e na solução do conflito psicoló- embrulho na valise e uma sombrinha, "abalada pelas
gico. A sequência da intriga é a mesma, mas a peça convulsões violentas de choro silencioso".
de Roberto Gomes apresenta maior profundidade Nesse pequeno texto, delicado e sugestivo, é pos-
psicológica, menor sentimentalismo e, sobretudo, sívellocalizar aspectos da temática e do tratamento
uma atmosfera de solidão, tristeza e dúvida. A deci- estético que se encontram em várias peças do pe-
são de separação dos amantes é assumida com base ríodo. Trata-se da família, da moral burguesa, do
na suposição de que o marido teria visto a cena do amor e suas nuances, do sofrimento e dor vividos
beijo. Já na peçaAssunção) tudo fica esclarecido no intensamente e em silêncio. Na contraluz da ação
palco, uma vez que o espectador vê a cena pelos dramática, há referências a um edifício que está
olhos de Clara. Em Ao Declinar do Dia ..., a pers- sendo construído nas redondezas para abrigar um
pectiva é a dos amantes. Essa distinção permite a asilo de velhos e que terá na fachada as estátuas da
Roberto Gomes explorar o drama da dúvida, ao Caridade, da Dor e da Fé. Quando Horrêncía, ao
passo que na peça de Goulart de Andrade sobressai final da peça, entrega-se ao desespero silencioso,
o sacrifício por amor. A polêmica esvaziou-se logo
96 Lima Campos, Flor Obscura, Kosmos, Rio de Janeiro, n. 12,
porque as duas peças tinham qualidades e os dois dez. 1907. As demais citações da peça são tiradas dessa edição.

+ 353
História do Teatro Brasileiro • volume1

uma vizinha anuncia ''Anda a ver depressa, Gina... rar, pelo talo, entre dois dedos".A cena tem intensa
A estátua da Dor está subindo': acompanhada pela carga de sensualidade, no limite tênue entre o que é
melopeia tristonha dos trabalhadores da obra, além dito e o que fica sugerido no subtexto dos diálogos.
de gritos festivos e palmas. É uma cena construída com delicadeza, mas sem
A fusão dos planos cênicos e, simultaneamente, esconder um substrato de sexualidade latente.
a contradição que expressam configuram um dos Esse mundo quase exclusivamente feminino
processos caros ao simbolismo, o da correspondên- (das sete personagens, apenas uma é homem) foge
cia entre as várias linguagens do teatro. Os sons, da frivolidade e superficialidade (à época atribuídas
gestos, a postura corporal, o cenário, as palavras, o às mulheres), para ganhar com o relacionamento
sentido da ação dramática fundem-se numa única conflituoso entre elas e com a realidade a sua volta.
imagem, somando significação e efeitos. A metáfora da flor obscura cria analogias di-
A protagonista da peça é a "v~lha criada, tradi- versas: a relação amorosa da viúva, as flores mur-
ção doméstica, alma simples, fisionomia cansada chas do ambiente lançadas ao lixo, as flores diante
e bondosa". Nessas qualificações do rol de perso- dos retratos de pais e avós (a tradição da honra),
nag~ns é possível descobrir a presença do pensa- a dor que se instala progressiva e silenciosamente.
rnento de Maeterlinck em Le Trésor des humbles Há, enfim, uma forte impregnação de um modo
(O Tesouro dos Humildes), obra em que são exal- simbolista de explicar os sentimentos e as relações
tados o silêncio e a vida simples como formas de pessoais.
ascensão à sabedoria. A intensidade dramática da
situação amorosa de Breda e dos respingos de imo-
ralidade que podem recair sobre a casadoira Gina Graça Aranha
ou a inocente menina Leda, de apenas cinco anos,
sustenta-se em reticências, sugestões, cartas não li- O simbolismo francês encontrou em Lugné-Poe
das mas subentendidas, por gestos interrompidos, e no Théâtre de 1'0euvre dois elementos de per-
por expressõesfaciais de dor, de ironia, de surpresa. manência e difusão, pois as ideias mais avançadas
Apesar das sutilezas do tratamento psicoemo- dessa estética ali puderam concretizar-se. Portanto,
cional das personagens, as rubricas que descrevem a encenação de Malazarte, de Graça Aranha, em
o cenário ou que indicam gestos, reações, sons e 191 I, nesse teatro parisiense, constitui fato mar-
movimentos ao longo dos diálogos são precisas,mi- cante para a dramaturgia brasileira, embora a peça
nuciosas e abundantes, muito ao gosto do realismo seja, em termos estéticos, de difícil classificação.
mais estreito. Atento aos ventos de renovação vividos pelo teatro
A peça exemplifica bem a convivência de esté- na França, Graça Aranha constrói uma personagem
ticas diferentes nos tempos pré-modernistas. Há aparentemente fundamentada no folclore, mas que
uma concepção bastante coerente e intensificadora recebe tratamento mítico e universalista: um espí-
da utilização dos acessórios de cena. Um exemplo rito dionisíaco.
de grande riqueza de sugestões é a presença de Recebido com reservas, o texto é assim consi-
uma pequena cesta de jambos vermelhos, presente derado por Carlos Morais:
da vizinha do andar superior. Quando Galba Ri-
beiro, sedutor, faz um galanteio ousado à jovem De quando em vez, escorre nele certo lirismo fresco, es-
Gina na ausência da mãe, tanto o fruto quanto sua tremecido de ebriez e sensualidade. Em conjunto, porém,
cor metaforizam esse momento de sensualidade: é livro híbrido, em que as personagens possuem apenas a
"GALBA - Oh! Lindos jambos vermelhos, Gina, tênue vida própria que lhes concedem as ideias, enquanto
não vá confundi-los com a boca e, por engano, estas, por seu turno, não têm bastante força impressiva para
morder os lábios em vez do fruto. Evite, sobretudo se imporem'".
comê-los diante de um espelho". Ela, em ingênua
insinuação de feminilidade, enquanto conversa
com ele, "brinca com um dos frutos, a fazê-lo gí- 97 Apud, W. Martins, op. cit., V. 5, p. 473.

• 354
• o Teatro no Pré-Modernismo

Malazarte vive de trapaças e mentiras, seduz Malazarte, em decorrência desses atributos, é


Dionísia, a cujo nome associa desejo e prazer sem associado à "poesia da raça': ao curupíra, aos cantos
o empecilho da lei e da ordem. É personagem que e contos populares, ao carão, à pele do jurupari e
expõe seu modo de pensar às claras: outras personagens e outras narrativas que nos che-
gam pela tradição oraL Invadem a cena esses seres
É esseo meu quinhão. POStO em face de gente triste, enferma e míticos, a ponto de a mãe-d'água atrair e matar
pusilânime e ser responsávelpelo seu destino! Por toda parte, Almina, a noiva de Eduardo. Abate-se um clima
essa maldição dos covardes que precisam responsabilizar al- fúnebre sobre a casa do rapaz que, revoltado, recusa
guém pelas misérias que lhes veio [sic] da própria Natureza... até sua crença em Deus e na Natureza:
A minha presença é funesta! Sou eu que altero as coisas e
torno em maldades os benefícios que eles esperavam para a Tudo morre vertiginosamente. É uma corrida fantástica
sua vida mesquinha. Sou eu que faço nascer o sofrimento e para a morte. No entanto, tudo se transforma e essas penas
a expiação. Eu sou a praga! Sou a personagem sinistra que douradas [do canário morto] vão se mudar em palhetas de
tudo incita como um flagelo formidável. Se o solos abrasa, luz, como o canto se misturou à vibração sonora do Uni-
eu sou o sol; se o vento os derruba, eu sou o vento; se o raio verso [...]. A Natureza é poderosa, é a força que destrói, que
os fulmina, eu sou o raio; se o mar os traga, eu sou o mar... separa, que transforma mas não restitui. Eu a odeio... [...]
Ah! miseráveis, que eles olhem para si mesmos e vejam se são Viver é tremer e nada é mais trágico do que a não confor-
dignos de viver. O próprio mal, que trazem em si, revolta-se e midade com as outras coisas.
98
os destrói [...] A alegria é o bem, a tristeza é o ma1 •

1vlalazarte, por seu turno, é personagem am-


o protagonista se define por uma filosofia de bígua. Para a "gente triste, enferma e pusilânime"
alegria criadora e dinâmica, oposta ao pessimismo e que precisa responsabilizar alguém pelas misérias
"terror cósmico': objeto de reflexões de Graça Ara- que sofrem diz ser "apersonagem sinistra que tudo
nha e que, na conferência ''A Emoção Estética na incita como um flagelo abominável. Por outro lado,
Arte Moderna", de 1922, ele denominará "alegria para os que se alegram nele, "os fortes, os grandes,
do espírito': resultante da "unidade com o Todo": os que nada temem ou sabem que tudo é fatal-
mente belo, e fazem do mundo um encanto e um
Louvemos aqueles poetas que se libertam por seus próprios prodígio [...] toda a minha energia, o meu sangue,
meios e cuja forma de ascensão lhes é intrínseca. Muitos a minha alma é para lhes dar a alegria e a beleza".
deles se deixaram vencer pela morbidez nostálgica ou pela Cresce a revolta de Eduardo ante a possibilidade
amargura da farsa, mas num certo instante o toque da reve- de perder seus bens por força das leis.A partir daí, a
lação lhes chegou e ei-los livres, alegres, senhores da matéria peça se limita a um diálogo demonstrativo da opo-
universal que tornam em matéria pcética'". sição entre os princípios do direito e a necessidade
libertária da Natureza e do Universo, em que a arte,
Malazarte, portanto, é símbolo do comportamento a filosofia e a religião representam a "consciência
estético e metáfora dos artistas do modernismo. do infinito, a vida suprema acima dos códigos e dos
Militina, a criada da casa, não hesita em qualifi- gestos de terror, e que faz do mundo uma maravi-
car Malazarre de "espírito mau': "demônio [que] ri lha" (2 2 ato). Eduardo contrapõe-se em sua tristeza
a todo instante, dança, canta, mente, furta, seduz as e desilusãoa Malazarre que proclama o dionisíaco da
mulheres, enfeitiça todo mundo". A que Eduardo vida. Nessa representação da alegria, a personagem
contesta: "É a vida, a força, o entusiasmo [...] é a popular é secundada por Dionísia, imagem mítica
vida esplêndida, é uma expressão maravilhosa da da divindade, do desejo, da libido e do inconsciente.
própria Natureza". O final privilegia uma estrutura triangular, em
que Eduardo, Malazarte e Dionísia representam a
98 Malazarte, Rio deJaneiro: Briguiet, 19II, P: 54. As próximas situação e caráter de Pierrô, Arlequim e Colombina.
citações da peça encontram-se nessa edição. Wilson Martins aponta a semelhança comPeer Gynt,
99 Apud Cilberro Mendonça Teles, Vânguarda EuropeiaeMo-
dernismoBrasileiro, 3. ed., Petrópolis: Vozes, 1976, p. 224.
de Ibsen, dada a origem popular e inclinação à

• 355
mentira de Malazarte, A comparação faz sentido a deixar a Paixão sair. "Sonho e Razão andam em
até certo ponto pelo valor alegórico que as duas perpétuo equilíbrio". O Sonho diz para a Razão: "
personagens assumem, deixando em segundo plano
a profunda disparidade em termos de linguagem Eu lhe proporcionarei um passeio celeste diariamente; ar-
dramática e efeitos teatrais. Cabe ao texto de Graça rebato-a entre as minhas asas,mergulharemos nas ondas de
Aranha muito mais o epíteto de retórico do que de ouro daViaLácteae todo orvalhadosde estrelas, depois desse
dramático. banho maravilhoso, sairemosa brincarpelasestradasplanetá-
O 22. ato apresenta ideias caras ao autor e ex- rias,numa corridadoidapara segurara caudade um cometa...
pandidas no romance Canaã (1912). Além da
presença desse diálogo intensamente ideológico, há Ao final da peça, aparece uma Desconhecida, que
um conjunto de falas narrativas, com alguns casos é a Saudade.
célebres de Malazarte, como a história do urubu, Em As Mulheres não Q!teren~Almas, cuja estreia
das três ferramentas, da quadrilha de ladrões que, ocorreu em 12 de maio de 1925, no Teatro Coliseu
acentuando o caráter macunaímico, sobrecarregam Santista, temos novamente uma peça alegórica, na
o texto e marcam a indecisão que se estabelece entre qual a ação acontece durante o Carnaval carioca.
uma narrativa simbolista, a de crítica aos costumes e Três moças, Isa, Ada e Eva, fantasiadas, contrace-
a folclórica, o que resulta em hibridismo mal reali- nam com o Mascarado, o Velho e o Rapaz. Além
zado dramaturgicamente. Essasituação hesitante da deles,aparecerão o Operário e o Criado, este último
peça prenuncia a posição eclética de Graça Aranha o raisonneur da peça. Ela discute a volubilidade femi-
na estética modernista posterior.Mas não elimina os nina, a possibilidade do amor perfeito e o mistério
problemas de dramaturgia que a peça revela. do Mascarado, que se recusa a tirar o disfarce. É re-
cheada de diálogos próximos da poesia. Já no início
o Mascarado afirma: "E não vos esqueçais que é um
Paulo Gonçalves sonho o que isto evoca. Sonho que o autor sonhou
num Carnaval carioca': Mesmo assim, em busca do
As Noivas} comédia romântica em três atos, repre- amor, ele se propõe a dedicar-se a Eva. Confessa-
sentada pela primeira vez em 1923 pela Companhia -se solitário e incapaz de despertar um afeto. É uma
Iracema de Alencar, no Teatro Royal em São Paulo, personagem estranha e deslocada do ambiente de
narra a história de três moças, uma delas noiva, e alegria do Carnaval, razão pela qual vê a sociedade
quatro rapazes, num clima de "simplicidade bu- com um olhar desiludido: "Aqui não se movem
cólica': num pequeno vilarejo em Sergipe, onde é entes; ondeiam larvas". O Mascarado, afinal, revela
ambientada a ação dramática. O noivo do início da ser o boneco da vitrine da loja em que as moças tra-
peça desaparece. As outras moças namoram dois balham, mas dotado de coração, tristeza e solidão.
dos rapazes, que viajam a São Paulo, a cidade "dra- Em Núpciasde D. João Tenârio, Paulo Gonçal-
gão cor-de-rosa': para trabalhar. Lá descobrem que ves cede à tentação de escrever mais uma versão
o noivo de Cecília vai casar com outra mulher. A sobre o mito de Don Juan. É uma longa peça em
peça termina com Cecília mandando o enxoval de quatro atos, de ação lenta, em versos e situada na
presente para a nova noiva, e chorando a solidão'?". Espanha. Já Quando asFogueiras seApagam é uma
A Comédia do Coração estreou em 12 de agosto comédia-bailado, de dez cenas em versos. Retrata as
de 1925, no Teatro Apolo, de São Paulo. Alegria, brincadeiras da festa de SãoJoão no Brasil. No meio
Paixão, Dor, Razão, Desconhecida, Sonho, Medo, delas,um triângulo amoroso se forma entre Carlota,
Ciúme e Ódio são as alegorias. O Sonho afirma: Jango e Celeste. Esta última, apaixonada pelo rapaz,
"Eu sou um cavaleiroandante!" Os sentimentos são termina a peça sozinha. O Juramento} peça de um .
estereotipados. A Razão quer matar a Paixão, mas e
ato, em versos sem data de composição, apresenta
apenas a prende. O Sonho tentá convencer a Razão um diálogo entre duas personagens, o padre Monso
e Vergílio. O assunto é o retorno do rapaz à cidade,
100 Paulo Gonçalves, Poesia e Teatro, São Paulo: Edições Cultura,
I943, v. 2.
após seis anos de afastamento, para reencontrar
+ o Teatro no Pré-Modernismo

Matilde, seu antigo amor. Ele retorna no exato dia Nicolau dos Santos, por exemplo. Além do mais,
do casamento dela com outro. Convencido pelo Curitiba possuía uma das raras fábricas de pianos
padre a não prejudicar a vida de Matilde, Vergílio existentesno Brasil,a Essenfelder, fundada em 1898.
renuncia ao amor da moça e vai embora. Outra Compositores produziram óperas e operetas, como
peça em versos de Paulo Gonçalves é r 830, uma Papilio innocentia eA Vóvozinha, ambas com libreto
comédia em três aros, encenada no Teatro Apolo em de Emiliano Perneta. O público aplaudia os conter-
18 de abril de 1923. É uma comédia de costumes, râneos e os itinerantes com igual ardor, levado por
em que a cidade de São Paulo e seus habitantes são diferente motivação: o bairrismo com ou sem quali-
apresentados em enredo de muitos quiproquós e dade, com ou sem inovações. Ouvia-se muito Cho-
amores. As personagens são estudantes, escravos, pin, Liszt, Schuman, Mendelssohn, Verdi e Puccini,
capitão-do-mato, paulistas descendentes de heróis quase nada de Wagner: um motivo de Tannhauser;
sertanistas. Há referências a cavalhadas, ao teatro, em 190 I, e trechos do Navio Fantasma) de Mestres
e reprodução de cantigas populares. É um misto de Cantores) do Lohengrin e da trilogia dos Niebelungos
comédia sentimental com o registro histórico da num concerto wagneriano em novembro de 19 I 3.
sociedade e dos costumes de 183 o. Dentre os brasileiros ouvia-sesó Carlos Gomes, Iti-
Em O Cofre, encenado em 8 de maio de 1923 berê da Cunha e Nepomuceno. Em janeiro de 1914
no Teatro Apolo, em São Paulo, assistimos ao mo- foi executadapela primeira vezuma obra de Debussy.
nólogo do Namorado invocando Cupido. A ação Podemos afirmar que o teatro brasileiro em
gira em torno de um cofre que contém as cartas Curitiba só começou a ser levado a sério a partir
da namorada. Quando Cupido joga fora a chave de 19 I 6, com o cinedrama de Paulo Assunção':",
desse cofre, o Namorado entende que ela tem outro a visita de companhias dramáticas e o incidente
amor, e que está tudo acabado. da preterição de Papilioinnocentia. Falar em teatro
Pode-se concluir que se trata de um conjunto nacional envolveu sempre uma boa dose de "pa-
de peças em que a desilusão e a infelicidade são ranaísmo", porque a questão só vinha à baila com
uma constante. A maior parte dos protagonistas vigor quando estava em jogo o sucesso ou a recusa
termina solitariamente na última cena. Além de uma peça de autor paranaense, ou a encenação de
do mais, o dramaturgo busca uma interpretação persistentes amadores.
da realidade por meio de alegorias (sejam senti- A peça é o libreto da ópera Papilio innocentia,
mentos, seja um boneco, seja o mito). Em r830) composta em 1914 e baseada no romance Inocên-
D. Joana aconselha a filha: ''A juventude engana, cia) de Afonso Taunay. A família do autor proibiu
minha filha; a mocidade ilude". E em O Cofre, o o uso do título do romance e Emiliano Perneta
Namorado se pergunta ao ver Cupido: "por acaso, batizou a ópera com o nome científico da borbo-
não terei enlouquecido?" Essa é a tônica do teatro leta, descoberta pelo protagonista, o entomólogo
de Paulo Gonçalves: a desilusão, o fracasso, o So- Meyer, A música é de autoria do compositor e
nho vencendo a Razão, mas perdendo a esperança. maestro austríaco Léo Kessler, radicado em Curi-
tiba. Jamais foi levada à cena integralmente. Teve
apenas uma apresentação informal a um grupo
Emiliano Perneta
101 Curitiba usou a natureza urbana para falar do antigo em
moldes contemporâneos, numa experiência única e ímpar. Foi
A música em Curitiba teve sempre um lugar es- a encenação do cinedrama Bennot, de Paulo Assumpção, em 6
de janeiro de 19 I 6. O cenário era o campo do Paraná Esportes
pecial; o piano, o violino, a Haura e o violoncelo Clube e o programa incluía um corso de carruagens, batalha de
sonorizaram o ar das ruas. Professores anunciavam Rores, o cinedrama e uma incrível perseguição policial de auto-
móvel pelas ruas da cidade. Além dos ateres, o esperáculo COntou
sua disposição pedagógica nos jornais, maestros e com a participação de cantores líricos, escoteiros, bombeiros, a
instrumentistas itinerantes se deixavam ficar na ci- banda da polícia. A elite curitibana prestigiou o esperáculo em
tarde de gala; a lista das autoridades, famílias e principalmente
dade, amiúde eram organizados concertos e alguns senhoritas presentes ocupou grande espaço nas reportagens dos
compositores ousaram revelar sua criação musical- jornais. Quem queria ver e ser visto não faltou ao esperáculo,
que uniu cinema, teatro, música, fotografia, ginástica acrobática,
Augusto Stresser, Romualdo Suriani e Benedito numa performance multiardstica.

+ 357
História do Teatro Brasileiro • volume 1

de intelectuais e músicos na Sociedade Alemã de 3. O TEATRO FILODRAMÁTICO,


Cantores, em Curitiba. O libreto, em versos dá um OPERÁRIO E ANAR~ISTA
tratamento trágico ao assunto. A linguagem pro-
cura atender ao ambiente sertanejo e não hesita em
utilizar expressões orais, até com a variante interio- À margem do teatro profissional e das iniciativas
rana: "Que falta de inducação !"102 Ou ainda: José: governamentais, distantes do luxo do Teatro Mu-
"Venha o cobre, venha o cobre / ~e eu cá, mon- nicipal do Rio deJaneiro (1909) e do Teatro Muni-
siú, sou assim: / Filho do ganha dinheiro/ Neto cipal de São Paulo (19II), operários brasileiros e
do paga-melogo / Venha o cobre, venha o cobre / estrangeiros aqui apertados fizeram da atividade
Venha tim-tim por rim-rim" A música acompanha teatral, embora amadora, um hábito cultivado em
essa variedade: há um maxixe carioca (no 1 2 e 2 2 pequenos grêmios e associações. Os espetáculos
aros), o coro dos escravos no 2 Q. ato e um fandango, propiciavam entretenimento aos trabalhadores,
cantado e dançado ao final da peça. mas também promoviam a comunhão e a difusão
O amor impossível de Cirino e Inocência é de ideias ainda inéditas no cotidiano das cidades.
expresso em palavras simples e imagens singelas: Imigrantes italianos (em maior número), espanhóis
e portugueses organizavam seus espetáculos, na
CIRINO - É sua a minha existência. maioria das vezes, junto aos bairros que habita-
INOCÊNCIA - E tudo que é meu, é seu. vam, formando um público especial, permitindo
CIRINO (abraçando Inocência) - "Sou seu, sou seu, flor às manifestações teatrais ocasião plena de confra-
querida! ternização, fosse qual fosse o gênero apresentado.
INOCÊNCIA (abraçando Ciríno) - Quanto lhe quero e O teatro era encarado em seu aspecto lúdico,
lhe quis! aglutinador, evocativo de terras distantes, mas
CIRINO E INOCÊNCIA (abraçados) - "Amor,eu daria a vida também como cúmplice de ideologias, celebração
/ Para que fosses feliz! de uma mesma fé. Acrescente-se ainda que em suas
várias modalidades as manifestações cênicas dos
Após O assassinato do rapaz por Manecão, tal filodramáticos, operários e anarquistas revestem-
como no romance, o pai desabafa: "Salva a honra, -se de condições especiais: foram criadas especifi-
finalmente / ~e alívio a minha alma sente, / No camente para públicos determinados, com pleno
fundo do coração!" (Para Manecão) Se ainda a quer conhecimento do que iam assistir, respondendo,
agora, case / com ela..." Ao que Inocência retruca, na maioria das vezes, em uníssono, às palavras
na fala final da ópera: "Comigo? Nunca!" pronunciadas pelos atores, também eles muito
O amor que termina em tragédia, a simplici- cônscios do que diziam em cena. Modestas mui-
dade da vida do interior e a delicadeza das falas e tas vezes, incrementadas outras, essas várias faces
sentimentos atraem a atenção dos dramaturgos de não deixaram, contudo, de inscreverem-se em ca-
tendência simbolista: Emiliano Perneta e Roberto pítulos exemplares da história do teatro brasileiro,
Gomes buscaram em Taunay e em Inocência o en- vivificando-o pela prática constante, tornando-o
redo para desenvolver a perspectiva da sugestão e um hábito, chamando a nossa atenção sobre textos
dos interditos. que não conhecíamos, incentivando talentos que se
agregariam ao panorama de nossas artes.

Os Filodramáticos

Osfilodrammatici (usemos o termo, a fim de deixar


bem clara a vigorosa presença italiana nos palcos
amadores) atestavam que os que aqui chegavam em
102 Papilio Innocentia, Rio deJaneiro: GRD, 1966, p. 23. Todas
citações são tiradas dessa edição.
busca de trabalho não traziam apenas braços para
• o Teatro no Pré-Modernismo

a lavoura e a indústria nascente, mas também sua funcionava em teatro próprio, "na rua do Ouvidor,
cultura, transmitida ou cultivada, em suas músicas, próximo aos armazéns e tabernas" I 04.lviais ao sul,
danças, ideais e, sobretudo, em seu património dra- em Porto Alegre, noticia-se em I 877 a existência
mático a ser reproduzido em festas nos modestos de uma Società di Beneficenza, fundada por um
palcos da América. Os núcleos italianos estabele- grupo de operários. Athos Damasceno, em Palco}
cidos no Brasil formavam pequenas Itálias, com Salão e Picadeiro, cita as encenações de Non ce- e
jornais próprios, associações de auxílio e recreação, loso...-e Arnaldo, de Damasceno Vieira, traduzida
e os tão citados grupos teatrais, espalhando o vigor para o italiano. E aponta o sucesso da Filodramática
dá italianità e o não menor espírito combativo, ali- Felice Cavallottí, que em 1895 apresentou, sempre
mentado pela lembrança de lutas ainda recentes na língua pátria, Ilfiglio delgiustiziato, Caino, Un
pela unificação da pátria. Na maioria dos casos, a matrimonio perpunizione e La monaldesca.
vinda não era motivo de festejos. À frase esperan- Mas foi em São Paulo que as atividades dos
çosa "andiamo in 'Merica" antepunha-se a resposta grupos amadores italianos mais se distinguiram
dramática à pergunta: <: cosa ti hafatto emigrare?" e mereceram registro. A explicação é por demais
/ "- Lafame". As duas frases impulsionariam a vida conhecida: foi São Paulo que recebeu o maior
e a arte que pretendiam, modestamente, agregar contingente de imigrantes vindos da Itália. Entre
ao seu cotidiano, amenizando-lhes a saudade e o 1877 e 1914 chegaram ao estado de São Paulo
temor das terras desconhecidas. 1.728.620 candidatos ao trabalho, sendo 845.816
Embora mais ativas em São Paulo, as organi- italianos. Número bem maior do que o dos espa-
zações teatrais espalharam-se pelo país entre os nhóis (293.916) e o dos portugueses (260.533)10 5•
diversos núcleos de imigrantes. A pouca informa- O historiador Aureliano Leite (1886- 1976)
ção sobre a existência de espetáculos no interior reproduz as impressões de um mineiro ao visitar
e nas capitais de outros estados, longe do Rio de São Paulo em 1902:
Janeiro e de São Paulo, impede-nos de conhecê-los
melhor, mas é possível perceber, através de parcos Os meus ouvidos e os meus olhos guardam cenas ines-
exemplos, o quanto as imigrações (principalmente quecíveis. Não sei se a Itália o seria menos em São Paulo.
a italiana) tornaram-se presentes, de uma forma ou No bonde, no teatro, na rua, na igreja falava-se mais o
de outra, na vida das pequenas ou grandes comuni- idioma de Dante que o de Camões. Os maiores e os mais
dades. Nota publicada no jornalA ProvínciadeSão numerosos comerciantes e industriais eram italianos. Os
Paulo, em 7 de setembro de 1879, comprova essa operários eram italianos"?".
participação. A breve notícia torna público que,
em Campinas (SP), alguns moços pertencentes à Sendo assim tão grande o contingente migratório,
colónia italiana fundaram uma sociedade dramá- a diversidade de pensamento também era rica. Es-
tica, cuja finalidade era contribuir para a libertação perançosos com o "andiamoin 'Merica", ou tragica-
dos cativos. Tal sociedade "propõe-se a alforriar os mente impelidos pela fome, ou ainda, perseguidos
escravos casados com mulheres libertas". Em no- pelas atividades políticas, para cávieram monarquis-
tícia vinda de Poços de Caldas (lvfG), inteiramo- tas, republicanos, garibaldinos, anarquistas, católi-
-nos de que naquela cidade, em 1897, foi criado cos, socialistas, humanistas. Ao formarem grupos
o Circolo Ricreatívo-Dramático Italiano Gustavo de teatro, os nomes escolhidos evidenciavam suas
Modena.Mais além, na cidade de Paracatu (lviG), tendências e a que público serviam: Errnete No-
informa-nos Affonso Ávila, construiu-se em 1888 velli, Dante Alighieri, Paolo Giacometti, Gustavo
o Teatro Filodramático, no largo do Rosário, com Mod.ena, Gabrielle D' Annunzio, Guglielmo
planta de Victor de Paula'?'. No município de Para-
104 Maria Thereza B. Lacerda, Subsídiosparaa Históriado Teatro
naguá (PR), a Sociedade Filodramática, em 1850, noParaná, Curitiba: Instituto Histórico e Geográfico e Etnográ-
fico Paranaense/Lapa, Prefeitura Municipal, 198 o, p. 55.
103Manso Ávila, O Teatro emMinas Gerais: Século XVIII e XIX, 105 Franco Cenní, Italianosno Brasil, São Paulo: Livraria Mar-
Ouro Preto: Prefeitura Municipal de Ouro Preto/Secretaria tins, [s.d.], p. 172.
Municipal de Turismo e Cultura, 1978, p. 35. 106 Idem, p. 262-263.

• 359
Históriado Teatro Brasileiro • volume1

Marconi, Vittorio Alfieri, Paolo Ferrari, Romeiros de um Avô, passar a se chamar, com agrado geral,
do Progresso, Eleonora Duse, L'avvenire, Amore de II nonno infastidito.
aIlArte, Germinal, li Faro, Filhos dos Liberais, Melhor exemplo da vitalidade e importância
Emílio Zola, Pietro lvlascagni, Speranza, Belo dos amadores italianos em São Paulo é a notícia
Sexo, e tantos outros. O que faziam era relembrar publicada nos jornais de junho de 1908, na qual
ao público alguns de seus conterrâneos e mento- há informações sobre a criação de uma escola dra-
res - revolucionários, atores, poetas - e, através de mática, localizada na ladeira de Santa lfigênia, n. 2,
títulos simbólicos, sinalizar a tendência de cada um dirigida unicamente aos filodramáticos:
dos elencos: fidelidade à "arte pela arte': o gosto
pela literatura e a lealdade aos ideais políticos. Pagando uma taxa mensal pequeníssima, os inscritos teriam
Qual foi a dramaturgia escolhida para formar estas grandes vantagens: carreira dramática, festa artística,
o repertório dos filodramáticos nessesanos todos de com a qual obteriam a restituição de toda a anuidade,
atividades? Comprometidos com a divulgação de bilhetes-convites que também poderiam ser vendidos, prê-
autores que dessem prazer ao público e propicias- mios especiais segundo os méritos, e frequência aos bailes
sem interpretações "impressionantes': não hesita- após as representações'?".
vam entre textos românticos, melodramáticos e
realistas (que se diziam modernos), inclinando-se, A criação de uma escola de teatro, no começo
muitas vezes, para o que o historiador Gino Sa- do século, leva-nos a crer que o movimento teatral
viotti chamava de "obras exageradas e artificiosas': criado pelos imigrantes fazia-senotar pela sua conti-
de tendências ainda incertas. Os hispânicos ape- nuidade,frente ao praticamente nulo movimento que
gavam-se aJoão José, escrita por Joaquim Dicenta se pudesse chamar genuinamente paulista. O que se
(1863 -19 17), poeta, jornalista anticlerical, com le- representava em SãoPaulotinha sua origem no Rio de
ves princípios anarquistas; os portugueses, quando Janeiro - principalmente depois da criaçãoda estrada
se sentiam no dever de chamar alguma atenção de ferro, em I ~77, ligando as duas cidades -, ou era
para a questão social, lembravam-se (e passavam a importado dos grandes centros europeus.
lembrança aos brasileiros) de Gaspar, o Serralheiro, O Dante Alighieri, o Paolo Giacometti e o
do dramaturgo e ator lisboeta, Baptista Machado Teatro Nasi (no bairro do Cambuci) mereceram
(I 847-1901).lvlas, para os não engajados, a prefe- sempre a atenção do noticiário, em jornais paulis-
rência voltava-se para comprovados sucessos ita- tas, certamente por terem acolhido a tecelã Faus-
lianos: Statua di carne, de Teobaldo Cicconi, "ou a tina Polloni - Itália Fausta (1885?-195I) - no
ultrafestejadaLa morte civile, de Paolo Giacometti início de carreira. No entanto, o mais conceituado
(1816-1882), cuja personagem-chave - fugitiva e interessante grupo italiano foi o Amore all'Arte,
das masmorras, procurando a filha e a antiga com- com sede no bairro do Brás, em São Paulo, desde
panheira, com tonitruantes perorações - era um 1901. Sua escolha de repertório não era, de forma
"tiro" certo, como então se dizia, para atrair lágri- alguma, aleatória. Inclinava-se para o realismo,
mas e aplausos. Na falta de um texto que julgassem olhando com certo orgulho os autores ligados a
à altura para festejar determinados momentos, os uma linha de repertório que julgavam moderno
filodrammatici traduziam consagrados e apela- e útil à formação cultural de seu público. Textos
tivos títulos franceses. Era o caso de: II padrone de Gerólamo Rovetta, Silvio Zambaldi e o já
delleferriere, baseado em Le Maitre deforges) de ibseniano Roberto Bracco (1862-1943) reve-
Georges Ohnet (1848-1918) ou do frequentíssimo zavam-se, revelando o quanto eram apreciados
I due sergenti, baseado em Les Deux sergents, de pelos organizadores. Ao completarem 23 anos
D'Aubigny, vertido por Roti, texto apresentado, de existência, os associados do Amore all' Arte
até bem pouco tempo, com plena aceitação, nos montaram La porta chiusa, do autor e crítico tea-
teatrinhos de paróquia. Até mesmo o sulista Pedro tral Marco Praga (1862-1929), pouco conhecido
Augusto Gomes Cardim (1864- I 932) pôde ver,
107 Míroel Silveira, A Contribuição Italiana ao Teatro Brasi-
sem se zangar, o monólogo de sua autoria, Zangas
leiro:1895-1964. São Paulo: Quíron: Brasília, INL, 1976. p. 99.
• o Teatro no Pré-Modernismo

em São Paulo. Foi justamente nessa comemoração À medida que brasileiros e italianos integravam-
que o jornalista Francisco Pettinati, dirigindo- -se, grande parte dos grupos que representavam em
-se aos presentes, em breve discurso, a partir do língua original ia desaparecendo. Mas não foi o
histórico do grupo, nos dá, através de sua precisa caso do Muse Italiche, nem do Dopolavoro, cujo vi-
descrição, uma ideia do verdadeiro significado de gor de uma tradição os manteve em atividade até os
um grupo de filodramáticos: anos 1950. Diga-se de passagem que foi a Società
Muse Italiche quem patrocinou, em 193 o, a vinda
o Circolo Filodrammattico Amore all'Arte era formado por a São Paulo do teórico-encenador Anton Giulio
operários e artesãos. Sua fundação obedecia a uma imperiosa Bragaglia (1890-1960) que, durante uma confe-
necessidade do espírito italiano que não sabe nem pode vi- rência, deixou a assistência perplexa, ao declarar:
ver sem o alimento artístico. Toda região, toda vila italiana "o cinema desenvolve-se em 300 quilómetros por
se orgulha de sua ou de suas associações filodramáticas, que hora, o teatro vai a velocidade mínima de 3o qui-
não têm apenas finalidade recreativa, mas são também po- lómetros, com paradas forçadas nos semáforos"I09.
deroso faror educativo. Era lógico, portanto, que também Foi também no Muse Italiche, dirigido pela
em São Paulo, onde já era densíssima a população de nossos atriz Giorgina Andaló, que Lélia Abramo (19 I 1-
emigrados, surgissem sociedades filodramáticas [...]. Gente 2004) estreou no teatro, em um pequeno papeL ''A
simples e modesta, contentou-se com os poucos aplausos personagem - recorda a atriz - entrava em cena,
que lhe vinham da massa operária, sem queixar-se da sorte dizia três ou quatro frases sem grande importân-
[...] nem se preocupar se o seu trabalho era ou não reconhe- cia e desaparecia" E acrescenta, em suas Memorias.
cido [...]. Saindo do tumulto das fábricas, das oficinas e dos "Os ateres do Muse Italiche eram bem organiza-
escritórios depois de uma longa e interminável jornada de dos, disciplinados, dedicados. Aprendi muito com
trabalho, vós sentíeis a necessidade de vos reunirdes e de eles"!". Devido a problemas internos o grupo se
embelezar vossa alma com a poesia eterna do teatro, con- dividiu. Alguns dos artistas, entre eles Lélia, for-
tinuando a dar vida ao espírito da vossa raça, renovando a maram uma nova organização, I Guitti. A atriz
grandeza que tornou imortais os atares italianos. Muito belo sugeriu que o irmão e crítico teatral Arhos Abramo
tudo isso. Belo, principalmente, se voltarmos nossos pen- (1918-1968) fosse o diretor, Como ele propôs a
samentos para os amigos que fizeram nascer esse Circolo: encenação de autores italianos contemporâneos,
quando os transatlânticos, depois da fadiga oceânica, despe- o primeiro espetáculo do 1 Guitti foi Ispezione, de
javam o dolorido carname de nossa gente no cais de Santos, Ugo Betti, com cenário de Lívio Abramo (1903-
quando o exército do trabalho, o coração cheio de amargura 1992). Amaram Ângelo Valentini, Lia Dogliani
e de esperança, emergia da Serra envolta nas neblinas do (pseudónimo de Lélia), Póla Astri, Mário Leo-
Trópico e vinha acampar às margens do Tamanduareí, e de- nardi, Beatriz Romano Tragtemberg, Sílvio Bruni,
pois percorria atalhos abertos pelos bandeirantes em busca Alberto Bonnini, Ernesto Pettínati, Mário Pirri e
de florestas para derrubar, ferrovias para serpentear, cidades Vlado Erzi, um jovem iugoslavo que falava bem
para edificar; quando surgiu, enfim, a resplendente aurora o italiano por ter vivido algum tempo na Itália.
da nossa colonização, vós obscuros e humildes soldados do Pode-se dizer que 1 Guitti, o último dos mais
trabalho, arremessáveis ao solo do Ideal a semente desta rosa importantesfilodrammatici, encerrou bravamente
fragrante que é o Amare all'Arte"Io8. o ciclo iniciado com a imigração. Deixou-nos Lélia
Abramo e Beatriz Tragtemberg, assim como ante-
E o jornalista insere na breve história do teatro riormente, procedendo da mesma origem, nasce-
em São Paulo nomes para nós desconhecidos: Ugo ram para o teatro paulista e brasileiro, Faustina
Rizzi, "velho e incorrigível idealista", Rízette e Fi- Polloni (Itália Pausta) e Giovanni Vianello (Nino
netti, "almas das representações': e Egisto Corsi e N ello, 1895- I 970). Antagónicos em suas criações,
Elvira Camilli Lattari, respectivamente, intérprete
e diretor da festejada La porta chiusa. 109 Apud S. Magaldi; M. T. Vargas,op. cít., p. 12I.
no Lélia Abramo, Vida e Arte: Memorias de Lélia Abramo.
Campinas/São Paulo: Editora da Unicamp/Fundação Perseu
108 Apud, idem, p. 199-201. Abramo, 1997, P: 139-14°.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Itália destacou-se na tragédia e Nino na comédia, Estamos agora diante de uma nova face dos filo-
acrescentando ao gênero cômico uma comicidade dramáticos e das mais vigorosas e ativas: um teatro
especialíssima, um tanto patética, própria da graça comprometido com a instrução e utilizado como
italo-paulista, cultivada até hoje pelos ateres pro- arma poderosa das lutas libertárias.
fissionais de origem itálica. Em ambos, na essência Na exposição desse teatro, dois mundos se
de suas artes, persiste o movimento filodramático confrontam: o presente, naquele instante cruel e
e dons comuns à sua gente. Itália Fausta sofreu desumano para o trabalhador, e o mundo futuro
a influência do ater-ensaiador Enrico Cuneo, em que ser livre significa poder cultivar todas as
que a orientou para os grandes clássicos em seu possibilidades de uma existência plena. O mundo
Teatro Popolare, na rua do Gasômetro, em São a ser refeito é bem o mundo que em dias festivos,
Paulo ( Giulietta eRomeo e Amleto constaram das em datas memoráveis, os espectadores comovidos
primeiras atuações da atriz). Itália Fausta desen- ouviam, na descrição poética do texto de Pietro
volveu e aprimorou ao longo de sua carreira uma Gori: "Lá está, em direção ao sol nascente [...] / O
vocação intrínseca para a tragédia, tornando- país feliz. A terra pertence a todos [...] / como o
-se a nossa única atriz verdadeiramente trágica ar, a luz" I I I Uma sociedade sem chefes, responsável,
(pelo porte, pela voz, pela veneração às grandes livre e justa. \
trágicas italianas), ainda que o teatro brasileiro Esse país não é o Brasil, certamente, nem qual-
não tenha possibilitado o desenvolvimento de tal quer outro. Italianos, espanhóis e portugueses,
gênero. Nino Nello, no intenso convívio com a ativístas anarquistas em suas terras de origem, en-
colônia, amoldou-se ao tipo italiano, engraçado, contraram aqui terreno propício para suas lutas.
mas de certa forma triste, lutando contra uma No campo, era a presença dos proprietários de
marginalidade imposta e, certamente, injusta. In- terra, acostumados com o escravismo e, nas cidades,
terpretou textos bastante simples, mas com total amparados por todas as espécies de autoridades,
aquiescência de seu público: O IlustrePescecane, de os promotores da indústria, não menos dispos-
Luís Leandro; O Cortiço de Cicillo, de Alfredo Vi- tos a reduzir o operariado (homens, mulheres e
viani; Um Baile no Canindé, também de Viviani; crianças) a meras peças de uma engrenagem, cuja
Italiano com Muita Honra, de Júlio Soares. Mas finalidade era o enriquecimento rápido e desu-
seu espetáculo predileto, levado até o final de sua mano. Coube, nos primórdios das lutas sociais,
trajetória cênica foi o texto de João Batista Pereira ao movimento anarquista no Brasil, amparado
de Almeida (1900-1988), Filho de Sapateiro} Sa- por vozes estrangeiras e brasileiras, a luta contra
pateiro Deve Ser. a exploração imposta por um sistema injusto. Para
que isso fosse alcançado, foi necessário um traba-
lho sistemático de conscientização voltado para a
o Teatro Anarquista classe trabalhadora. Saber e instrução impunham-
-se, para que cada indivíduo aprendesse a pensar,
Edgar Rodrigues, no livro O AnarquismonaEscola} e enxergar com olhos instruídos seus parceiros e
no Teatro) na Poesia, reproduz uma nota publicada entendesse perfeitamente que, através da união de
pelo jornal Eco Operário, do Rio Grande do Sul, todos, solidários e informados, teriam condições de
em setembro de 1897, na qual se lê que o Grêmio exigir e ver implantadas formas justas de vida. Dis-
Lírico-Dramático Saca-Rolheiro levou à cena "a cussões diárias e palestras deveriam ser alicerçadas
peça libertária" Gaspar, o Serralheiro, de Baptista por periódicos combativos e esclarecedores que,
Machado, "entusiástica produção operária cheia em linguagem simples, formassem e informassem
de senões, mas de efeito soberbo para as classes". toda a classe trabalhadora. Um meio mais forte e
Pouco depois se noticia a representação, no mesmo direto veio juntar-se aos jornais, livros e palestras:
ano, do drama Canudos, de Rodolfo Gomes, e de o teatro social, como o chamavam. Impressionando
is de maio, de Pietro Gori (1865-191 I), a cargo da
União Operária do Rio Grande do Sul. m Primeiro deMaio, cópia datilografada. Arquivo Multimeios
do Centro Cultural São Paulo.
• o Teatro no Pré-Modernismo

ouvido e visão, o teatro anarquista estava apto a se prende ao povo oprimido, recomendamos que sugiram
constituir numa força, tanto ou mais eficaz que a aos conhecidos e homens de boa vontade a leitura ou a
imprensa. Presente nas chamadas "veladas" (reu- representação destas obras dramáticas. Continuamos dessa
niões, na maioria das vezes, aos sábados à noite), o forma a obra revolucionária que é o objetivo primeiro de
teatro foi sempre um breve intervalo à penosa se- toda nossa ação: arrancar o homem do embrutecimento
mana de trabalho. A programação, constantemente servil, no qual vem se debarendo-".
anunciada na imprensa libertária, dá-nos uma ideia
do que foram essesencontros, como, por exemplo, Alguns dos textos reproduzidos no II Teatro Po-
a "velada" anunciada em O Amigo do Povo, a ser polareforam encenados, pelo que se sabe, no Rio de
realizada em 30 de julho de I904, no Liceu Espa- Janeiro e em São Paulo. Um delesé Triste Carnevale,
nhol, em São Paulo, evidentemente organizada por cujo autor nunca é citado; mas que aparece com
filodramáticos espanhóis: certa continuidade nos noticiários, nas primeiras
décadas do século xx. A peça aborda de uma só
Fin defiesta) ato dramático de Palmiro Lidio. vez: o desemprego, a miséria e, no final, o crime e
Hambre, cena de Romulo Ogidi. a punição injustas, frutos sem dúvida das iniqui-
Acabose, comédia em um ato. dades sofridas. Nela, o mundo contrário ao sofri-
Conferência: Ristori fala sobre "A sociedade moribunda" mento é representado pelos sons alegresdo Carnaval
Baile. (diversão para os ricos), fazendo uma espécie de
contraponto ao desemprego e à pobreza mostrada
Um outro exemplo, um pouco diverso, e talvez em uma habitação pobre, na qual se assiste à morte
mais agressivo: lenta de uma criança, vítima da fome, e ao deses-
pero do pai, que o leva a cometer um crime, única
Festaanticlerical(em benefícioda propaganda anticlerical): possibilidade de obter dinheiro para a compra de
I - Galileu Galilei. alimento. Preso, é evidente que a prisão, provocada
2 - Várias conferências em italiano e português. por ato devido à pobreza extrema, deve ser vista
3 - Quermesse. como o verdadeiro crime. O sofrimento mostrado
4 - Baile familiar. em cena deve motivar os espectadores a lutar pela
construção de um mundo diferente do que foi apre-
Intercalavam-se na noitada nítidos atos lúdicos sentado, certamente com toda veemência empre-
de transformação: a dramaticidade que com certeza gada pelos ateres. Responsabilità, datada de I904,
penetrava fundo nos sentimentos, sem contudo escrita pelo militante anarquista francês Jean Grave
amortecer o desejo de luta; o riso para um justo des- (I8 54- I 9 39), obedece às mesmas características
canso; a conferência instrutiva, esclarecendo aspec- de Triste Carnevale. O naturalismo, prescrito por
tos que deveriam ser reforçados na mente operária; Émile Zola (I840-I902), mestre querido dos liber-
e, finalmente, a quermesse e o baile, como diversão. tários, está presente em determinada cena, quando,
Dois volumes de uma antologia (II Teatro Popo- entre as agruras mostradas no texto, duas crianças
lare), com peças rigorosamente anarquistas, escri- famimas brincam de vender e comprar pão. O me-
tas em outros países, mas vertidas para o italiano nino é um padeiro gentil e a menina uma senhora
(observe-se novamente aqui a predominância da rica, que terá pão fresco e dourado, e quem sabe
Itália e o internacionalismo libertário) tornaram-se mesmo uma bela torta. É a mesma representação da
obrigatórias, no final do século XIX e nos primei- miséria, vivida em uma pequena família operária,
ros vinte anos do século seguinte. Seu organizador, causada pelo desemprego. Os fatos prosseguem
Luigi Molinarí, quase que as impõe como portado- num crescendo, deixando claro que tudo se sucede
ras de verdades absolutas: por ser Renaud, o pai, um anarquista. Acusado de
fazer parte de uma "associação de malfeitores'; sua
Recomendamos vivamente aos leitores conscientes e que
112 I/ Teatro Popa/are. Milano: Tip. Della Universirà Popolare,
ainda sentem o vínculo da solidariedade humana que lhes
1907. p. 2.
situação se agrava quando a polícia encontra em UMA voz - Liberdade, liberdade
sua casa um maço de cartas e um cofre suspeito. Quem a tem lhe chama sua
Renaud é preso, injustamente, o que vem piorar Eu só tenho a liberdade
ainda mais a situação, levando a esposa a matar os De morar em plena rua.
dois filhos e se suicidar, por não aguentar mais a
miséria em que vivem. Sabendo da tragédia, ao sair .CORO - São tão puxados

da prisão, Renaud fere levemente o juiz que o con- Os aluguéis,


denou, único responsável pelo trágico desfecho. A Oh! Inquilinos
sequência de provações assusta.Mas era necessário Não pagueis!
que imagens fortes se sucedessem, para tornarem Oh! ~e ladroeira
vigorosas, no terceiro e quarto atos, as investidas A do senhorio
proferidas pelo réu, fazendo sua própria defesa, em Fazei, inquilinos,
longas tiradas, contra o poder absurdo e cego de Greve em todo o RioIIJ.
uma justiça alheia à dor dos mais pobres e sempre
omissa em relação aos seus problemas. Jean Grave Os operários estão cônscios de seus direitos. "Fo-
quer demonstrar à plateia que as leis repetem velhas ram eles- os patrões -, porventura que construíram
formas, criadas pelos poderosos, e os juízes repetem as moradias?" - "Não! Fomos nós os trabalhadores':
sentenças que desabam sobre os desafortunados, diz, em certo momento uma das personagens. Então,
responsabilizando-os por todos os males, quando, por que não empregar a resistência? Afinal, greves
na verdade, os verdadeiros culpados são os deten- já eram meios empregados no Rio de Janeiro. Mas
tores do poder. "Injustiça e poder interligam-se" é não seria um bom caminho para o riso. A vingança
a frase costumeira nos protestos anarquistas. acontecerá, no entanto, de outra forma, não menos
Embora admiradores de Émile Zola, é para o branda quanto à ação, colocando o vilão em situação
melodrama, puro e simples, que os autores sérios constrangedora e empregando, para tanto, velhos
se inclinam quando querem pintar em determi- procedimentos comuns às farsas: um casal aparece
nadas cenas, com cores carregadas, os infortúnios de repente e ajuda os rapazes não só a evitar o paga-
da classe trabalhadora. Assim, parece-nos que os mento da dívida mas também a diminuir o aluguel
libertários não se acanham em juntar estilos, em dos cómodos, pondo em uso os velhos hábitos dos
proveito de maior participação e reação da plateia. quiproquós e travestirnentos, tão caros aos come-
Romantismo, melodrama, realismo e naturalismo diógrafos. Em O Pecado de Simonia, outro texto
convivem, por décadas, sem nenhum conflito. de grande sucesso, Neno Vasco ataca díretamente
Contrastando com as obras dramáticas italianas o clero, ávido de dinheiro, e, fiel aos bons textos
ou francesas e mais próximos à compreensão dos anarquistas, aproveita para ir contra o militarismo
brasileiros estão dois textos do português Gregório e discorrer sobre o amor livre. Mas o tema central é,
Nazianzeno Moreira de Vasconcelos (Neno Vasco, certamente, desmascarar o padre tentando se apossar
1878-1920), advogado e jornalista que aqui per- do bilhete lotérico de uma viúva, prometendo-lhe
maneceu de 1901 a 1911. Greve de Inquilinos e O missas pela alma do marido.
Pecado de Simonia, de sua autoria, se aproximam Textos diretos e curtos incluem-se na faixa das
muito das farsas portuguesas, fazendo lembrar o finalidades didáticas imediatas. É o caso de OsDois
nosso comediógrafo Martins Pena. O problema Ladrões, cujos protagonistas são Alexandre Magno
da moradia, tão presente no Rio de Janeiro, é o as- e um Ladrão:
sunto de Greve de Inquilinos, cuja ação se passa em
um "quarto pobre" de moços solteiros que têm di- LADRÃO - Alexandre, sou vosso prisioneiro. Tenho pois
ficuldades de atender às demandas do senhorio. O que ouvir o que vos apraz dizer-me e sofrer o castigo que
início, um canto alegre, anuncia a farsa e predispõe vos aprouver infligir-me. Mas o meu espírito é livre; e se
a plateia ao riso. No decorrer da ação, o ridículo
113 Greve de Inquilinos, Lisboa: Secção Editorial deA Batalha,
estará a serviço da crítica e da conscientização:
19 23. p. 5·
• o Teatro no Pré-Modernismo

quiser responder às vossas censuras responderei como Rio de Janeiro do que as peças italianas, mais apre-
homem livre. ciadas pelo público de São Paulo, por razões óbvias.
ALEXANDRE - Fala livremente. Ainda que se louve pela imprensa o aparecimento
LADRÃO - Quero responder a vossa pergunta com outra de alguns textos nacionais, percebe-se, pelos noti-
pergunta. Como é que tendes passado a vida? ciários, que as obras brasileiras não despertaram a
ALEXANDRE - Como um herói. Pergunta à fama e ela to mesma atenção que as estrangeiras, escritas por
dirá. Tenho sido o mais bravo entre os bravos, e mais no- Pietro Gori, Gigi Damiani (1877- I 948) ou mesmo
bre dos soberanos e o mais poderoso dos conquistadores. pelo divertido Neno Vasco. Avatar, por exemplo, de
LADRÃO - Não vos falou a fama também de mim? Houve Marcelo Gama (1878-1915), poeta e jornalista rio-
jamais um capitão tão ousado à frente de tão valente -grandense, não mereceu a acolhida que poderia ter
tropa? ... Mas não goSto de me gabar. Demais, vós sabeis tido, apesar de seguir fielmente os temas impostos
que não foi fácil prender-me. pela dramaturgia social dos anarquistas: denúncia
ALEXAND RE - Mas afinal quem és tu senão um ladrão, um contra a injustiça praticada contra os inferiores, os
ladrão desprezível e sem probidade? males do militarismo e a defesa do amor livre.
LADRÃO - E que é então um conquistador? Não tendes Duas personalidades interessantíssimas, militan-
vós percorrido a terra como um gênio mau, destruidor tes anarquistas, ligaram-se à dramaturgia: o filólogo
dos belos frutos do trabalho e da paz ... saqueando, asso- José Oiticica (1882- I 957) e o prático em farmácia
lando e matando, sem lei, nem justiça, só para satisfazer Avelino Fóscolo (1864-1944). Oiticica, como po-
uma sede insaciável de domínio? Tudo o que fiz numa lernista, foi sem dúvida maior do que como drama-
só comarca com uma centena de homens, vós o tendes turgo. Dele, conhecem-se seis peças: Pedra queRola,
feito com centenas de milhares de regiões inteiras. Se Q!1-em osSalva) Azalan, Pó dePerlimpimpim, Não
espoliei simples particulares, vós arruinastes reis e prín- é Crime e Ser ou não Ser. As duas primeiras foram
cipes; se queimei algumas aldeias, vós levastes a desgraça montadas por Itália Fausta, cujos ideais se aproxi-
ao seio dos mais florescentes reinos e às mais ricas cida- mavam do pensamento do autor. Pedra que Rola
des. Onde está pois a diferença? Nisto: o nascimento não foi evidentemente escrita para operários. Sua
vos fez rei, e a mim um simples particular: deu-vos o finalidade é, certamente, conseguir chegar às classes
poder; e se diferimos um do outro é só porque sois um mais altas. Não cairíamos em erro se cogitássemos
ladrão mais poderoso do que eu II 4• que o autor, leitor de K.ropotkin (1842-1921), se-
guia talvez o teórico quando este deixou escrito:
A lista de dramaturgos brasileiros e portugueses "não se produziria nenhuma revolução, pacífica ou
(que vamos conhecendo de tempos em tempos) não violenta, enquanto as novas ideias e o novo ideal
é pequena. Em 1903, A Lanterna anuncia O Dever, não tivessem penetrado profundamente na própria
texto de Joaquim Alves Torres (1853-1890), afir- classe cujos privilégios econômicos e políticos esta-
mando ser ele melhor do queEletra, de Perez Galdós, vam ameaçados'?". Assim, emPedra que Rola, um
levado por profissionais dois anos antes, aplaudidís- vasto diálogo entre as personagensJorge e Maurício
simo pelo seu anticlericalismo. Edwaldo Cafezeiro introduz a doutrina anarquista e faz ver ao público
e Carmen Gadelha, na Históriado Teatro Brasileiro, presente que o que estão assistindo são males de um
enumeram autores, cujos textos foram levados no mundo aser modificado: "oshomens deveriam estar
Rio deJaneiro e em outros centros: Carrasco Guerra, organizados de tal modo que todos se considerassem
Câmara Reys, Antônio Martins dos Santos, Manuel cooperadores da felicidade de cada um"II6. O texto
Laranjeira, Santos Barbosa, Zenon de Almeida, Ar- incorre em um realismo com visível influência da
tur Guimarães, Mota.Assunção, Isaltino dos Santos, peça de tese da dramaturgia francesa do final do sé-
Batista Diniz, Neno Vasco, José Oiticica, Marcelo culo XIX e início do xx. entre perorações libertárias,
Gama. As peças escritas por brasileiros, ou por por-
tugueses aqui radicados, foram mais bem aceitas no 115 Apud Flávio Luízeto, O Recurso da Ficção: Um Capítulo da
História do Anarquismo no Brasil, em Antônio Arnoni Prado
114 Aikin e Barbaulr, OsDoisLadrões. Impresso emA Terra Livre (org.), LibertáriosnoBrasil, São Paulo: Brasiliense, 1986, P: 14I.
de 18 de maio de 1907. Texto datilografado, P: 1-2. 116 José Oiticica, PedraqueRola. Cópia em xerox. P: 3.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

surgem paixões proibidas e um iminente adultério. uma prisioneira da magia. Um quarto texto, até
~anto aAzalan, cuja ação transcorre em Fernando então desconhecido de Oiticica pela originalidade
de Noronha, apesar de não ter atingido aquilo que do tema, promete-nos um dramaturgo corajoso. A
se poderia exigir de uma boa peça, não deixa de des- peça resumida em Trincheira) Palco eLetras, de An-
pertar interesse, por ser dos textos conhecidos do tônio Arnoni Prado, traz um título explícito - Não
autor, aquele que aborda mais diretamente a dou- é Crime- e alude a um "menage ti trois", sugerindo
trina anarquista e as dificuldades da "nova ideia" de ao homem o direito de amar livremente, sem culpa,
ser entendida pelo povo: "Toda terra é um grande, duas mulheres com a mesma intensidade.
um vastÍssimo presídio, onde se torturam muitos Acrescente-se que a presença permanente de
milhões de vítimas para nutrir, fartar uma pequena José Oiticica em palestras e reuniões libertárias
porção de homens insaciávei(II7. Fernando de No- nos leva a pensar que o professor-polernista tenha
ronha (onde cumpre pena a principal personagem) escrito improvisos dramáticos diretamente para
é, pois, a diminuta síntese do vastíssimo cárcere onde as reuniões trabalhistas, tornando mais claras as
se agrupa a multidão dos deserdados. Sérgio, o pro- exposições do dia. Infelizmente, segundo Edgar
tagonista, está só. Seus companheiros representam a Rodrigues, esses esquetes de ocasião teriam sido
fraqueza do Nordeste: a mocinha ingênua, filha do escritos a lápis, às vezes em papel de embrulho,
díreror do presídio, que, apaixonada, aproxima-se do encontrado no momento, e que, pela fragilidade,
presidiário querendo aprender francês; o corrupto; vieram consequentemente a desaparecer.
o espoliado; e, como antagonista, a figura mítica de Não dispondo de tanta cultura quanto Oiticica,
Dionísio (teria Oiticica atentado para o nome i), Avelino Fóscolo, jornalista e escritor, não deixa por
enfeitado de miçangas, pulseiras, medalhas de lata, isso de ser uma pessoa admirável na militância anar-
aguardando poder cumprir a exigência da Princesa quista. Mineiro, nascido em Sabará, descendia do
l\tlagalona, que o tornaria rico e senhor da ilha se dramaturgo italiano Ugo Fóscolo (r778-r827). Ór-
atirasse ao mar uma jovem inocente, gritando a fão aos onze anos, conheceu de perto a ignomínia da
palavra mágica "azalan". Sérgio, detido por fabricar escravidão quando foi trabalhar nas minas de Morro
dinheiro falso a fim de comprar as primeiras terras, Velho. Tentando fugir dessa situação, engaja-se numa
suprir as primeiras despesas do cultivo, e armas para trupe de "quadros vivos" dirigida pelo americano Kel-
os evenruais combates, justifica-se: ler. Algum tempo depois, "escritura-se': como se dizia
na época, numa companhia teatral porruguesa, sob
Todo dinheiro é falso, é o instrumento que têm os ricos não as ordens de Antônio Fernal. Vem daí, certamente,
produtores de riqueza para arrancar dos trabalhadores as ri- seu encanto pelo teatro. Muda-se para Paraopeba e
quezas produzidas por eles. Sendo assim, que faríamos nós? trabalha na farmácia do sogro. Inteligente, cultor das
Usávamos do mesmo processo para arrancar das mãos dos ciências, grande leitor, enviava seus escritos para a
usurpadores as riquezas por eles roubadas. Para eles o nosso imprensa e manteve por dois anos, a duras penas, seu
dinheiro é falso porque lhes faz mal, e o deles verdadeiro por- próprio jornal,A NovaEra, em que investia contra os
que lhes faz bem; mas tanto um como outro são falsos" 8 • abusos dos proprietários da região. Emprestava livros e
jornais à população, e não foi difícil para ele perceber
A personagem foge, com a ajuda de um detento e, de na manifestação teatral não somente a diversão, mas
certa forma, com o auxílio da ingênua apaixonada, um excelente meio para mostrar às camadas populares
que atira em quem tenta impedi-lo. Não por ideo- o quanto eram injustiçadas. No palco, "construído por
logia, mas por amor. Sua última fala faz de Dionísio mutirão [...] a plateia, silenciosa e atenta, assistia a es-
um vitorioso: "Dionísio! Dionísio! Eu quero mor- petáculos como Gaspar, oSerralheiro, OInglêsMaqui-
rer". Uma voz se ouve, fora de cena: "Azalan" Com nista,A Grilheta, ODiaboModerno e O Semeador"»,
a palavra mágica, está encerrado o drama, tornando sendo as duas últimas escritas por Avelino.
a fracassada companheira não uma anarquista, mas
119 Regina HortaDuarte, A Imagem Rebelde:A TrajetóriaLibeltária
117]. Oiticica, Azalan, cópiaxerografada,p. 18. deAvelino Fóscolo, Campinas:Pomes/ Editora daUnícarnp, 1991, p.
118 Idem, p. 20. 79- 80.
/
• o Teatro no Pre-Mo dernismo

o Semeador, escrita no começO/~Ç) século, foi Que alegria, olé


encenada, pelo que sabemos, em'Santos, pela So- Pelo franco bem-estar;
ciedade Lira de Apolo, em outG.l:íro de 1920, e em Trabalhamos, olaré,
São Paulo, em novembro d0~2, no Salão Celso P.arao fruto partilhar.
· no F
Gareia, ' ldos Si
estiva / , A- açao
apateIros. - se passa
L/ I . ..
numa f:azen da, seme Il'laje a multas, cUJo SIstema A volta do pai e as intrigas do cunhado vão pôr
de trabalho - be/~nhecido pelo autor - não se tudo a perder. Como é muito comum nas peças
difer.enciava e,nad;1a:~ele que havia qnte~ da anarquistas, o protagonista é sempre um herói soli-
abolição. A .I1eça tem 1UICI0 com os preparatlvos tário. Esboça-se uma figura de mulher que o vai en-
para a chegada d{Júlio, filho do proprietário. tendendo no decorrer da ação ("há em suas palavras
Vindo J!Euro/a, já ficamos sabendo que traz algo de misterioso e novo que não compreendo") e
novas <Z'oncep'~es para tocar o trabalho agrícola e aos poucos vê-se tocada pela "ideia nova' propalada
tambim umlÃovo. ideário de vida. A conversa enrre e posta em ação pelo parceiro ("seremos livres no
do~ fazen.ckiros, enquamo aguardam a chegada do seio de uma humanidade escrava'). Mas é justa-
;t~.paz, a,r:sta os velhos conceitos contra os quais mente essa companheira, neta de escrava, amiga
o moe/,'.~t;ra que Iutar: "Esses rapazo Ias com as
I
de infância com quem Júlio pretende se casar, que
//
tais inovações são capazes de botar o mundo de vai desencadear dentro da trama, em torno do novo
pernas par, o ar"I20. Mas é no diálogo com Laura, conceito de trabalho já em andamento, a batalha
sua compmheira de infância, que Júlio terá ocasião comandada pelos mais velhos - da desigualdade e
II/ de ir aos poucos explanando suas ideias: "Não há do preconceito -, fazendo vir à tona todo o sistema
senhor sem subalterno: todos somos iguais. Ne- escravocrata. Palavras e ameaças ainda próximas ao
nhun4'/superioridade nos dão dotes físicos que antigo regime, tais como "tronco': "vara ao lombo':
herJmos ou dotes morais adquiridos graças ao "relho" contrastam com a fazenda comunitária,
trar~lho acumulado por outrem". transformada pela compra de máquinas, pela jor-

bem possível que um espectador atemo per- nada de cinco horas de trabalho e pela inexistência
ciba, ao levantar o pano para o 22. ato, um detalhe de salário. Na certa, essas conquistas afetaram os
lovo no cenário. Diz a rubrica: "o mesmo cenário ânimos dos outros familiares, também proprietá-
id o primeiro ato, mas a fazenda tem um jardim rios de terras. Em defesa de suas teorias e a fim de

ln a frente". A própria luz deveria ser diferente e


' o jardim testemunha a mudança de ambiente. A
l cor deve simbolizar a alegria presidindo a jornada
diária, agora de cinco horas apenas!
garantir a liberdade de um companheiro, Júlio não
hesita em fazer uso de uma arma. Sai vencedor. Os
vilões se afastam e a peça termina, com tiradas a
gosto dos libertários: "É a noite que desaparece, é
Cantos e danças dos camponeses iniciam o ato: o passado que se amedronta; deixá-los. Na âmbula

I
do oriente surge a aurora de um novo dia e os pri-
CORO meiros homens livres podem respirar desafogados
Tudo vive alegremente, sobre a terra livre - a mãe comum".
h'
Já não é pena trabalhar. Esse texto com tênue aparência regionalista,
J Sim, senhor! mas procurando, certamente, seguir os passos do
Todo o mundo está contente, naturalismo cultivado por Fóscolo, traz um sig-
Não há briga ou mal-estar. nificado especial. Regina Horta Duarte, em seu
Sim, senhor! excelente levantamento sobre a vida do militante,
Elô! elá! nos adverte que, ao escrevê-lo, Avelino Fóscolo
Essa prisão, fazenda, também seguia diretrízes, não só do teórico Pedro
Hoje é bela vivenda. Krcporkín, para quem os militantes não pode-
riam deixar de lado as populações rurais, quantO
120 Avelino Fóscolo, O Semeador, emM. T. Vargas (org.),Antolo- do ativista Jean Grave, quando chamava a atenção
gia do Teatro Anarquista, São Paulo: \'71YíF Martins Fontes, 2008,
P: 10. As demais citações são tiradas dessa edição.
sobre a preocupação que deveriam ter os militantes
História do Teatro Brasileiro • volume 1

libertários com os camponeses. Era um ponto a ser Libertário's;,drama em três aros e O ÚltimoQuadro,
observado com rigor a fim de que se evitasse que também um~rar,n~ Pedro Catallo, outro sapateiro,
"a revolução ao rebentar, encontre no aldeão um homem de teatro (foi também diretor e centrar-
inimigo que a combata"!". I por mente,
regra) e, 1'\ o d "
ramaturgo-operano que
A dramaturgia anarquista não pertenceu apenas mais conseguiu se~.Rroximar da recomendação
aos seus mentores. A arte entendida como "meio de de seus maiores. Sabi~er'necessário desenvolver
fraternidade entre os homens" em princípio deveria práticas artísticas entre àco~ponentesda própria
ser também dos trabalhadores. Pôr em prática o ato classe,traduziu textos de Fi6~nci~ Sanchez (lVossos
artístico era para os anarquistas um direito. Uma Filhos e OsMortos] e nos de~?u de ~ua autoria: O
ideia que surgisse, que viesse a inspirar um poema, Herói e o Viandante ("peça si~bólic~rle combate
uma música, um texto de teatro, tudo deveria ser Lr dri. (escri
a\ guerra") ,jYJ.a \ ho'1 e em por-
escrita em esp\n,.c
acolhido e incorporado às reuniões dos sábados. tug~ês, ~obre a heroica resistê~ci~\osmili~ianos
Desses autores operários, muito se esperou, uma antifascistas no ftont de Madri), Como Rolà'uma
vez que seus textos teriam o dever de trazer para a Vida, seu último trabalho, A lnsensaid~ encenada
cena, sobretudo, fatos de suas vivências, tornando em 195o), O Coração é um Labirinto, e;ll~e.r::tada em
o espetáculo mais compreensível e enriquecedor 1947 e UmaMulher Difirente, também ;~cenada '
\'
para os espectadores. Um alfaiate, dois sapateiros, em 1947. De todos os seus textos, os que tlesp~rtam
um garçom, entre certamente outros, mereceram mais curiosidade são os três últimos, nos quais a
\ '
menções especiais no noticiário jornalístico: Felipe mulher se sobressai como personagem. E ela serrr-
Morales (1863-1925), espanhol radicado no Bra- pre a mais. d ediica d a e a mais. I'UCIida ao t~ar
\ deci
eci-
sil; Felipe Gil, Matino Spagnolo e Pedro Catallo sões. Essa "mulher diferente" do texto aci~: é uma
(1900-1963). Morales, "sapateiro infatigável, tra- libertária que se entregou conscientement<\~enas
\ balhando em seu banquinho, até os últimos dias de fisicamente, ao seu patrão, a fim de obter à\iber-
\
vidà'I2\ aponta em seu texto Os Conspiradores um dade do pai, preso por uma trama maquiav .ca,
problema grave: o comportamento das autoridades urdida pelo próprio patrão para poder conqui á-

que preparavam falsos complôs a fim de denegri- -la. Elena ergue-se contra a hipocrisia da socieda ,
rem a classe trabalhadora e intelectuais militantes, é insultada porque se nega a casar oficialmente
justificando assim prisões e deportações. Marino assim legitimar o filho que teve. Deixa bem claro
Spagnolo, vidreiro, alfaiate, era muito querido seu comportamento: ~\,

no Be1enzinho, bairro de São Paulo onde residia.


Seus amigos brincavam: "Ecco Marino... ':Marino? Mas as pessoas conservam muito ainda da luta brutal dos
Quello no eMarino: esottornarino'T". Foi ele tempos primitivos. No matrimônio, essa luta renova-se.
quem escreveu um dos textos anarquistas mais di- Não se procura a cooperação, quer-se o domínio; não se
fundidos, encenado a partir de 1922: A Bandeira mantém o respeito, professa-se a indiferença. E, nessa porfia
Proletária (lenço que serviu para estancar o sangue desastrosa, cada cônjuge emprega as armas favoritas para
de um companheiro ferido mortalmente). A peça garantir-se a hegemonia do lar n 4•
de Spagnolo pode ser tomada como exemplo de
texto de instrução, onde bebida, jogo, exploração Fugindo ao realismo, procurando caminhar por
da mulher estão claramente descritos e combati- uma trilha poética, nos deparamos com o Primeiro
dos em cena. Felipe Gil, o garçom, um dos autores de Maio, texto que atravessou com sucesso todo
mais representados no Rio de Janeiro, escreveu Os o período da presença anarquista em nosso país.
Jayme Cuberos (1927-1998), militante perten-
121 R. H. Duarte, op. cit., p. 66. cente ao Centro de Cultura Social de São Paulo,
122 Mariânge1a Alves de Lima e Maria Thereza Vargas, Teatro costumava dizer que o texto de Pietro Gori equi-
Operário na Cidadede SãoPaulo, São Paulo: Secretaria Munici-
pal de Cultura, Departamento de Informação e Documentação valia, para os libertários, ao espetáculo A Paixãode
Artística, Centro de Pesquisa de Arte Brasileira, 1980, p. 70.
°
123 Jacob Penteado, Beleneinbo, 19 I (Retratode uma Época), 124 Pedro Carallo, Urna Mulher Diferente, em Antologia do
São Paulo: Marrins, 1962, p. 149. Teatro Anarquista,p. 285-286.
• o Teatro no Pré-Modernismo

Cristo para os cristãos. Com isso definia uma espé- Desavisado, dando provas de que na cidade de
cie de celebração permitida pelo texto. Escrita em São Paulo existiam dois palcos distintos, sem qual-
verso, confiando no "além das palavras", era como quer ligação entre eles, Antônio de Alcântara Ma-
que um oratório, no qual se antevia o mundo fu- chado (1901-193 5), sempre criticando o teatro que
turo pelo qual lutavam: terra muito especial, que se fazia em 193 o, escreve: "Abrasileiremos o teatro
desconhecia guerras, onde as mulheres não eram brasileiro. Melhor: apaulistanizemo-lo [...] Traga
escravas, as crianças educadas longe de dogmas e para o palco a luta do operário, a vitória do operá-
tendo por única lei a liberdade. rio, a desgraça do operário, traga a oficina inteira'T".
Dedicando-se ao levantamento do teatro anar-
quistano Brasil, Edgar Rodrigues aponta-nos grupos
no Maranhão e no Pará e registra 63 agremiações Teatro Operário
dedicando-se ao teatro social, no período de 1897
a 1967. Esses grupos tiveram seus ensaiadores que, o que vimos na exposição acima reflete bem a
mais uma vez, a história oficial não registrou: Lírio presença da classe trabalhadora em grupos teatrais
Rezende, Mariano Ferrer, Pedro Camilo (em época amadores. Muito mais do que observamos em ou-
mais recente) e Furtado de Medeiros. Mariano Fer- tras profissões, a atuação do operário-intérprete
rer, espanhol, operário gráfico, organizou o Grupo foi vigorosa e constante, tanto nas horas em que o
Dramático Teatro Livre, em 1903, no Rio de Janeiro, palco serviu ao entretenimento como nas horas em
o primeiro a aparecer na imprensa e a impulsionar que foi transformado em instrumento de conhe-
outros que iam surgindo; Furtado de Medeiros, cimento e de luta. Cabe a pergunta: por que essa
atuando também na capital da República, é assim' disposição para a cena, mais do que as observadas
lembrado por Rodrigues: "um português dos Aço- em outras categorias? Vontade de se livrar durante
res, que não era anarquista, mas contribuiu muito algumas poucas horas do trabalho quase sempre
para o teatro social dos libertários, incentivando a árduo? Alívio de um cansaço mental devido à aten-
fundação de grupos e ensinando a arte de represen- ção constante que certos ofícios exigem? Decisão
tar aos operários"?'. Embora dedicados, mas pouco firme de espanar tudo isso, em horas dedicadas a
vaidosos e ambiciosos, alguns intérpretes, gráficos, uma atívídade unicamente sua e de seus compa-
costureiras, operários e operárias de fábrica, sapa- nheiros, corpo e inteligência fugindo da infernal
teiros e marmorístas, contribuíram com seu talento diluição de sua pessoa, em meio às máquinas e
para disseminar e reforçar ideias contidas nos dramas materiais de certa forma agressivos? Transmudar-
\.
ou nas sátiras. Entre outros podem ser lembrados: -se em "barão': "bandido", "santo': "algoz", "milio-
-,

'<
" "Davina Fraga, Augusto Aníbal, Elvira Boni e Luiz
Magrassi, O jornal La Battaglia, impresso em São
':Paulo, em 3ode setembro de 1905, comentando a
nário" torna-se fascinante para os que vivem uma
vida restrita a pequenos encantos? Ou, muito pelo
contrário, identificar-se com a personagem a seu
~,..... \
peçt~os Conspiradores, de Felipe Morales, refere-se cargo e poder declarar bem alto para a assistência os
ao et'e~co: "Durante a representação os atores recebe- seus próprios sentimentos? Há, mesmo nos grupos
ram aplàusos. Digna de nomear-se foi a Camilli, no mais próximos no tempo, engajados ou não, certa
papel da am~te, tendo sido uma grande intérprete". semelhança com o que vimos acima com os operá-
Em meio ~l:greves, deportações, prisões, mudan- rios libertários do começo do século xx. Cansados,
ças sociais, proiBições ógorosas, o teatro anarquista mal alimentados, vinham para os ensaios, depois de
no Brasil foi sobre0~do, morrendo e tornando a horas estafantes, movidos, é evidente, pelo amor ao
renascer até fins dos anoi'de 1960. Assim, o Grupo teatro, ou pela compreensão de sua utilidade. O
de Teatro do Centro de duiUra Social de São Paulo certo é que a presença do trabalhador como ater,
ainda pôde anunciar, em dez~~,~o de 1967, em seu entre nós, tem uma longa história e as razões pela
teatrinho de Arena, O Guerreiro, Cie~aldir Kopeszky. sua constância devem ser muitas.

~I,
125 E. Rodrigues, Nacionalismo e Culta," Rio de janeiro: 126 Cavaquinho eSaxofone (Solos), Rio dejaneírorjosé Olyrnpio,
1940, p. 437·
Laernmert, 1972., p. 72.. "
História do Teatro Brasileiro • volume 1
-,
Anotações dispersas, humildemente entremea- Pouco se conhece dos grupos comprometidos
das à história das artes cênicas, têm o poder de com ideologias, que cêrtarnente fizeram suas apre-
aguçar nossa imaginação: quanta coisa aconteceu sentações nos anos posteriores a 193 o, obrigados
e não chegou ao nosso conhecimento? Quanta ao anonimato pela censura. Com a queda do Es- ':-;';'. I

coisa ainda acontece, talvez em menor número, nos tado Novo, em 1945, e nos anos subsequentes, a
palcos de paróquia distantes, em salões modestos, questão social reaviva~e com a presença do Par-
em pátios de fábrica, que também desconhecemos? tido Comunista, do Partido.Socialista e da Igreja,
Da mesma forma, voltando a séculos passados, pe- incentivando os operários. J:. classe trabalhadora
quenos faróis nos apontam realizações curiosas: é alvo de atenções e, consequentemente, há um re-
José Teixeira Neves, no ensaio sobre o teatro no vigoramento dos grupos operários junto às fábricas
Arraial do Tijuco (Diamantina), menciona um e às paróquias.lvfas os grupos tendem ao entreteni-
"conjunto dramático" das operárias da Fábrica de mento ou à formação cultural. Diretores e mesmo
Fiação e Tecidos que funcionava em dias de festa ateres mais qualificados, ligados a processos mais
"no tempo de Felício dos Santos"!". E, já no co- modernos de atuaçâo, se oferecem para orientá-los.
meço do século, alude ainda Teixeira Neves a "um De certa forma substituem os velhos ensaiadores?
subir de pano" para o drama O Capital eo Trabalho, geralmente portugueses ou italianos, cultores de
comemorando o aniversário da União Operária Be- uma arte teatral afeita ao riso fácil ou à emoção
neficente. Na região sul, conforme registra Athos barata, fiéis a um repertório recebido com sucesso:
Damasceno Ferreira, em 1894 constituiu-se em A Filhado Mar, A Herança do Náuftago, O Filho
Porto Alegre a sociedade dramática particular Os Pródigo, O Ultimo Adeus ou O Preso da Cela n"-.8.
Boêrnios, "constituída de gente humilde, operários, Bem diferentes foram as apresentações de muitos
artífices, serviçais e pequenos funcionários desa- dos elencos formados por trabalhadores nas décadas
fiando a guerra civil': apresentando-se com O Vé- de 1960,1970 e 198013°. Responderam às exigências
terano da Liberdade e OsImpalpáveis, de Joaquim de uma época. Nesses espetáculos os operários foram
Alves Torres?". Em Teresina, no Piauí, além de os verdadeiros ateres, e os orientadores seus parceiros
passeatas e discursos, o 12. de maio de 1905 foi co- nas criações. Entre discussões, depoimentos e exer-
memorado com uma representação, à noite, de Os cícios idealizavam seus próprios textos, refletindo
DoisRenegados. A apoteose - acrescente-se - con- problemas e reivindicações de suas comunidades.
tou com a participação da operária da Companhia São exemplares, nesse sentido, os trabalhos de Tin
da Viação, Carlota Monteiro, na caracterização do Urbinati e seus companheiros, junto ao Sindicato .1 ...'
"anjo da arte"?", O primeiro grupo formado por dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, em .
operários, na ex-capital da República foi o Grupo São Paulo, e de Maria Helena Kühner, no morro da ,
de Teatro Dramático Livre, em 1903. A peça de Mangueira, no Rio de Janeiro. ./
estreia, Primeiro deMaio, de Pietro Gori, escolhida É certo que, por várias décadas, os operários?
pelos ateres e pelo ensaiador, o gráfico Mariano entregaram sua sensibilidade, seu aprendizado, syás
Ferrer, denota o caráter de sério comprometimento histórias de vida à criação de espetáculos de/&tu-
dos operários com problemas que os afligiam. Cer- reza diversa. Deitaram raízes? Se hoje são poucos e
tamente uma adesão do teatro amador ao grave mo- desconhecidos, é que, praticamente, ·intégraram-se
mento pelo qual passava a cidade do Rio de Janeiro: às realizações comunitárias, em bai;fos distantes, ao
a greve geral iniciada pelos têxteis, acompanhada lado de auxiliares de escritório.Iiixineiras, oflice-boys
pelos gráficos, chapeleiros e estivadores. e estudantes. As metas variadas, na certa, devem per-
manecer as mesmas: lazer; amor à arte, instrução.
//
127 Teatro de Província, Revista do Livro, [s.d.], p. 144 e 152.
CCópia xerografada.)
128 Palco, SalãoePicadeiro emPortoAlegreno Século XIX, Porto
Alegre: Globo, 1956, p. 275.
129 A. Tito FUho,PraçaAquidabã, SemNúmero, Rio de]aneiro: 130
/:
Ver o capítul6 O Teatro da Militância, em Historiado Teatro
Artenova, 1975, p. 64· Brasileiro, v. r;I
/'
• 37°
• o Teatro no Pré-Modernismo

4. INICIATIVAS E REALIZAÇÕES liberais - na capital da República, as datas de aber-


TEATRAIS NO RIO DE JANEIRO tura e encerramento: 15.7.1908 e 7.9.1908 (datas
que não se cumprem). O governo federal estabelece
as normas, propõe-se a construir os pavilhões dos
A vida teatral no Rio de Janeiro da belleépoque foi estados e a subvencionar o transporte das merca-
bastante intensa, por razões que não são difíceis dorias a serem apresentadas ao público. O convite
de apontar: o apelo popular das revistas e burletas, é endereçado aos governos dos estados e do distrito
levando multidões aos teatros que as apresentavam federal, às associações comerciais agrícolas e indus-
em duas ou três sessões corridas; as representações triais, aos que exercem a indústria agrícola, a fabril
de peças brasileiras de autores que surgiram no e a pecuária. Entre os convidados, estão os que se
período, como Roberto Gomes ou João do Rio, dedicam às artes liberais, quer sejam nacionais ou
dando novo alento ao drama e à alta comédia; o estrangeiros domiciliados no país.
florescimento da comédia de costumes no Teatro Além de elemento de integração dos estados,
Trianon - demonstração de que o gênero cómico o governo federal pretende que o evento amplie a
podia sobreviver sem a música; o carisma de ateres visibilidade do progresso do país junto ao capital
e atrizes como Brandão, o Popularíssimo, ou Pepa estrangeiro. A Exposição mostra-se como uma ex-
Ruiz; a presença maciça de companhias dramáticas celente oportunidade para a divulgação do vigor
e líricas estrangeiras nos teatros da cidade. da economia nacionaL
Nesse ambiente, não admira que uma série de ini- Dos estados da federação,Minas Gerais,São Paulo,
ciativas tenham sido tomadas - por órgãos oficiais, Paraná e Santa Catarina ocupam pavilhões inde-
empresários ou escritores - com objetívos diversos, pendentes. A prefeitura do distrito federal recebe
mas convergentes: incentivar a dramaturgia nacional, um prédio à parte. Portugal é a única nação estran-
divulgando e promovendo a obra dos nossos aurores; geira convidada a ocupar um espaço. João do Rio,
dotar a cidade de um edifício teatral semelhante aos em crónica publicada na coluna "Cinematógrafo" -
que existiam em Paris; criar uma escola de teatro O Pavilhão de Portugal na Exposição - descreve
para formar artistas dramáticos; exibir teatro clás- a vernissage no anexo do pavilhão português em
sico ao ar livre para uma plateia numerosa; fundar minúcias: "quatro halls imensos e duas salas cheias
uma associação para garantir o~ direitos aurorais dos de quadros, de azulejos, de objetos artísticos, deco-
dramaturgos. Tais iniciativas e realizações merecem radas e arranjadas com um sentimento de gosto, de
registro histórico, pois estão ligadas a artistas, escri- luxo e de arte" I 3I. O cronista refere-se ao espanto de
tores, críticos e intelectuais que foram protagonistas quem esperava, dos portugueses, apenas produtos
da cena teatral carioca nos tempos pré-modernistas. naturais e industriais.
A inauguração solene da Exposição Nacional
acontece a I I de agosto de 1908. A imprensa dá
o Teatro da Exposição ampla cobertura à solenidade e continua a presti-
giar os eventos especiais e fatos do dia a dia após a
A revista Renascença reproduz o decreto n Q 6·545, abertura. A revista Kosmos, que vinha publicando
de 4 de julho de 1907, que aprova as bases para fotos das obras nas diferentes fases da construção,
a organização da Exposição Nacional de 1908. O acompanhadas ou não de comentários ligeiros, no
evento tem como motivo declarado a comemoração exemplar datado de julho de 1908 faz referências
pelo centenário da abertura dos portos do Brasil ao ao inesperado aparecimento da pequenina cidade
comércio internacional. O presidente da República, de palacetes nas areias da Urca. Publica, nos nú-
Monso Augusto Moreira Pena, e o ministro de In- meros seguintes, fotos diversas do público e das
dústria, Viação e Obras Públicas, Miguel Calmon edificações. A Gazeta de Noticias estampa fotos
du Pin e Almeida, assinam o artigo único. de página inteira dos pavilhões e figuras públicas.
Constam das bases organizadoras da Exposição
131 João do Rio. O Pavilhão de Portugal na Exposição, Cinema-
Nacional - agrícola, industrial, pastoril e de artes tógrafô. Porto: Lello & Irmão, 1909, P: 341-348.

• 37 1
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Apresenta reportagens longas sobre a política e a de Oliveira, Estefânia Louro, Julieta Pinto, Emí-
economia dos estados, em vários números. O País lia Pinho, Natalina Serra, Cristina Lins, Ferreira
abre as matérias sobre a Exposição Nacional com de Souza, Antônio Ramos, Alfredo Silva, Mário
vinhetas feitas para a ocasião. O Jornaldo Comércio Arozo, Cândido Nazaré,João de Deus, F. Marzulo,
documenta em detalhes a grandiosidade do evento J. Figueiredo, Antônio Fonseca e Faria. São nomea-
inaugural e, nos números subsequentes, opina so- dos, ainda: Bruno Nunes, o ponto; Álvaro Peres,
bre os estados e os pavilhões respectivos levantados o ensaiador; Anísio Fernandes, o maquinista; Ce-
na praia Vermelha, entre a Urca e o Pão de Açúcar. cílio Lopes, o contrarregra; Marroig e Santos, os
Emite comentários e notas sobre os espetáculos cenógrafos.
diários na coluna teatral. A primeira récita no Teatro da Exposição acon-
No exemplar editado no dia da solenidade oficial, tece a 12 de agosto, no dia seguinte à inauguração
o Jornal do Comércio antecipa o festival de luzes e solene da mostra. No jornal OPaís, de 13 de agosto)
elogia os organizadores do projeto. Refere-se à porta na coluna "Teatros e Música': um folhetinista anô-
monumental composta por oito mil lâmpadas elétri- nimo escreve um longo artigo a respeito do papel
cas coloridas. Descreve os edifícios redesenhados por exercido por Martins Pena no teatro brasileiro, dis-
pequenas lâmpadas e os jardins iluminados por lâm- corre sobre outras obras do mesmo autor e resume
padas de cores variadas. O espetáculo das luzes será o enredo da peça encenada pela Companhia Dra-
intensificado, o editorial avisa, pelos navios das duas mática Nacional, O Noviço. Em seguida, lembra a
divisões de guerra, que, de fora da barra, lançarão apresentação anterior, "há exatos 63 anos e 3 dias':
os holofotes por cima da esplanada. No Palácio das levada no Teatro S. Pedro de Alcântara, em 10 de
Indústrias, distingue a fonte luminosa formada por agosto de I 845. A parte final do artigo é dedicada
uma cascata, jorrando água de treze bocas superiores ao leverdu rideau:Não Consultes Medico, de NIa-
sobre sete bacias, sucessivamente, e de quatro sereias chado de Assis. O articulista resume o enredo e
moldadas em cimento. salienta a técnica dramática do escritor. A intenção
No quesito diversões, o Jornal do Comércio do texto jornalístico coincide com a proposta do
anuncia a temporada de peças brasileiras a serem Teatro da Exposição: informar e educar.
encenadas pela Companhia Dramática Nacional Os elogios às peças encenadas e aos autores na-
organizada por Artur Azevedo e a presença da cionais e a observação sobre a boa receptividade do
Companhia Vitale de Operetas Italianas. Em ou- público não significam aplauso sem restrições. Ao
tro prédio, que reúne a função de teatro e bar, são mesmo articulista do jornal O País, parece que o tea-
programados espetáculos de uma companhia de tro, enquanto arte brasileira a ser incentivada, não
variedades sob o comando de Pascoal Segreto. O merecera o destaque devido entre as demais atrações:
editorial noticia concertos sinfõriicos, sessões de
filmes vindos de Paris, Londres e Berlim e as varia- Outras representações se darão ali, e por certo muito mais
das opções oferecidas pelo parque de diversões. E numerosas, mas virão apenas alegrar e divertir os frequen-
sobre o Teatro da Exposição, não escapa ao jornal tadores como simples diversões. Sem querermos apreciar
o objetivo ambicioso dos organizadores: o critério com que foi ideada e realizada a Exposição, não
podemos deixar de registrar o fato, por demais eloquente
Como é sabido, organizou-se para dar espetáculos no como sintoma, de que a empresa de simples diversões ou de
Teatro da Exposição Nacional, uma companhia dramá- espetáculos de uma arte estrangeira menos valiosa, mereceu
tica, especialmente encarregada de exibir um repertório patrocínio muito mais eficaz, muito mais substancioso e
escolhido de peças de autores nacionais, e que constituiria garantido que a louvável tentativa do teatro brasileiro, que
uma espécie de exposição contemporânea e retrospectiva deu ontem brilhante resultado.
da literatura dramática nacional.
Durante a temporada, além das peças da estreia,
Por fim, o jornallista os nomes do elenco: Lucí- são encenadas: As Doutoras, de FrançaJúnior; Deus
lia Peres, Cinira Polónio, Gabriela Montaní, Luiza eaNatureza, de Artur Rocha; Quebranto, de Coelho

• 37 2
• o Teatro no Pré-Modernismo

Neto; O Defunto, de Filinto de Almeida; OsIrmãos Os comentários a respeito do Teatro da Exposi-


das Almas, de Martins Pena; As Asas de um Anjo, ção aparecem, na imprensa, meses antes da abertura
de José de Alencar; Sonata ao Luar, de Goulart de do evento. Em "Cinematógrafo': coluna dominical
Andrade; A Herança, de Júlia Lopes de Almeida; da Gazeta de Notícias assinada por Joe (o mais fa-
A Nuvem, de Coelho Neto; Vida e Morte, de Artur moso dos vários pseudônimos de João do Rio), o
Azevedo; Vende-se, de Flávio D' Ornel, História de cronista não acredita que as encenações programa-
uma1'vloçaRica, de Pinheiro Guimarães; UmDuelo das atinjam o objetivo de seus organizadores - o de
no Leme, de José Piza; O Dote, de Artur Azevedo. que venham a ser, de fato, propulsoras da desejada
NoJornaldo Comércio, no dia 30 de outubro, são regeneração do teatro brasileiro'». As exigências
anunciadas as apresentações de CartaAnônima, de contratuais, de início veiculadas, parecem-lhe ab-
Figueiredo Coimbra; Eterno Romance e Desencon- surdas: montagem de três peças históricas e vinte
tro, ambas de Carmen Dolores'>. O editorial desse espetáculos por mês, sendo quinze o número de
dia, data de encerramento da Exposição, faz duas peças nacionais. Faz restrições ao repertório anun-
sugestões para o aproveitamento das instalações: ex- ciado.Nacolunapublicadaem 19 de abril de 1908,
posição permanente ou construção de universidade. ele indaga: "Poderás tu compreender uma família
Os concertos sinfônicos sob a direção dos maes- indo à Exposição para ficar no teatro das oito e meia
tros Alberto Nepomuceno e Francisco Braga são às doze ouvindo O Noviço, o Fantasma Branco ou
programados para dias alternados da semana (3i!.·, outra pérola velha da nossa teatralidade?" Em 3 de
5i!.· e sábado), às 16h30. No dia 13 de agosto, é maio, ainda em "Cinematógrafo': faz considera-
aberto com prelúdio de Debussy, L'Apres-midi ções sobre o prazo. Considera-o muito curto para
d'un ftune. A proposta da direção musical é mos- que seja feito um bom trabalho. Explica-se: "Uma
trar o desempenho dos músicos e educar o público. peça para ir regularmente precisa de vinte ensaios,
Pretende-se distribuir programas explicativos com pelo menos. Há peças de enorme responsabilidade,
trechos musicais comentados e informações a res- peças em versos... Imaginem! Essas coisas fazem-
peito dos compositores menos conhecidos. -se com o tempo, pensadas, refletídas, e não assim".
No exemplar do dia 16 de agosto, do jornal ci- O bserva que o público da Exposição não é plateia
tado, sob o título "Espetáculos e Diversões", lê-se que suporte três horas de drama. No seu modo de
sobre a primeira apresentação da companhia lírica entender, para a educação dos visitantes, uma re-
e as demais atrações: constituição histórica das nossas danças teria um
melhor resultado. Apresentações de dança cucumbi,
No Teatro da Exposição trabalhará ainda hoje a Companhia do jongo africano, do sapateado, do cateretê e do
Vítale, Serão realizados dois esperáculos: um, em rnatinée, maxixe atrairiam muito mais a atenção da assistên-
com a opereta O Véndedor de Pássaros, e o outro, à noite, cia variada e levariam ao desejo de frequentar outros
com a opereta em três aros La belle stiratrice [A Bela En- espetáculos que tivessem o jeito do país. No dia 19
gomadeira]. de julho, o colunista faz considerações sobre o pre-
No Teatro Variedades serão realizados, também, dois juízo financeiro do empresário Mesquita, em razão
grandiosos esperáculos pela esplêndida troupe que ali traba- do adiamento da data de abertura da Exposição,
lha. O rinque de patinação, o cinematógrafo da exposição inicialmente prevista para 15 de julho. Aproveita o
e o cinema brasileiro funcionarão de dia e de noite. mote, para discutir a impossibilidade de se manter
uma companhia nacional de teatro sem a existência
Nos dias em que o Teatro João Caetano não está de planejamento a médio e longo prazo.
reservado para as duas companhias citadas, torna- A Exposição Nacional é um sucesso de público,
-se palco para um conjunto espanhol de zarzuelas apesar dos contratempos eventuais, e as encenações
dirigido por Carlos Silvani.
133 Lembre-se de que na virada do século XIX para o XX os inte-
lectuais acreditavam que o teatro brasileiro estava em decadência,
132 Em nenhuma outra fonte encontramos referências às peças refém do sucesso das revistas, burletas e outras formas cómicas e
de Figueiredo Coimbra e Carmen Dolores. musicadas.

• 373
História do Teatro Brasileiro • volume 1

no Teatro João Caetano são aplaudidas. As falhas objetivo outro que promover a desejada regenera-
encontradas por alguns comentaristas teatrais, a ção do teatro brasileiro, buscar-sé-ia direcionar o
afluência progressiva do público na direção do Tea- interesse da plateia para boas peças e encenações
tro de Variedades e as palmas entusiasmadas para adequadas. Os atores nacionais seriam valorizados
a companhia espanhola não encobrem os méritos e os escritores, motivados, escreveriam com assidui-
dos organizadores. De positivo, fica o trabalho de dade para o palco.
Artur Azevedo com a formação de uma companhia Entre os projetes arquitetônicos apresentados,
dramática de ateres nacionais e a valorização de um aberta a concorrência pública em I 5 de outubro
repertório brasileiro. A popularidade maior alcan- de 1903, são premiados dois: o de ''Áquila': pseu-
çada pelos outros tipos de esperáculo não invalidou dônimo usado por Francisco de Oliveira Passos,
a tentativa do teatro declamado. primeiro colocado, e o de "Isadora', do francês Al-
Quanto à Exposição Nacional, antes, durante e bert Guilbert. Da comissão técnica responsável pela
após o encerramento das atividades, ela movimen- análise das propostas constam os seguintes nomes:
tou políticos, elementos representativos de vários Lauro Müller, Paulo de Frontin, Chagas Dória, Ro-
setores econômicos e artísticos dos Estados, a ci- dolfo Bernadelli, Del Vechio, Morales de Los Rios,
dade e a imprensa do Rio de Janeiro. Carlos Maul, Artur Azevedo, Andrade Pinto, Carlos Hargreaves
por exemplo, manifestou sua euforia em relação ao e Araripe Júnior. O resultado não agrada de todo.
Teatro da Exposição e à capacidade de realizações Artur Azevedo publica artigo em maio de 1904,
do país. No volume O Rio da BelaÉpoca I 34, no ca- na revista Kosmos, em que demonstra a sua contrarie-
pítulo dedicado à Exposição Nacional, ele registra a dade. Sente pesar pelo não aproveitamento do Tea-
boa frequência às encenações e os aplausos dirigidos tro S. Pedro e reclama da grandiosidade do projeto
aos ateres nacionais e reconhece no repertório es- vencedor. Prevê que o teatro será tomado pelas
colhido por Artur Azevedo os nomes ilustres do companhias de ópera e pelos artistas estrangeiros:
teatro brasileiro. Se elogia a iniciativa como um
todo, mostra-se por outro lado preocupado com A publicação do edital, chamando concorrência para a
os rumos da nação, terminando por comparar a construção do teatro, foi mais uma desilusão, e a maior, que
situação do Brasil com a da França: recebi na campanha em que me tenho empenhado contra a
indiferença, a má vontade, o sofisma, a inércia, a injustiça,
como na Paris de 1900, aqui também nem tudo são flores, e o pessimismo de tanta gente.
música e contentamento, ao redor dessa Exposição Nacio- O Rio de Janeiro ficará dotado de um belo teatro para
nal de 1908 ... A política ferve nos subterrâneos. Afonso as temporadas líricas; por esse lado, a prefeitura prestará
Pena está no governo há menos de dois anos, e já se cuida um grande serviço, porque, realmente, a cidade há muito
da sua sucessão'». tempo reclama um teatro de canto compatível com a sua
civilização, e com o gosto, aliás mal dirigido, que aqui se
vai desenvolvendo pela boa música.
Teatro Municipal do Rio deJaneiro
As obras de fundação do Teatro Municipal do
Incluída no projeto da reforma urbana idealizada Rio de Janeiro têm início em janeiro de 1905, sob
pelo presidente Francisco de Paula Rodrigues Al- o mandato de Francisco Pereira Passos. A constru-
ves, a construção de uma casa oficial de espetáculos ção atravessa a legislatura de Francisco :NI. de Souza
é reclamada, com insistência, por nomes ligados Aguiar e a casa é inaugurada a 14 de julho de 19°9,
ao meio teatral. Para alguns, como Artur Azevedo, na legislatura de Inocêncio Serzedelo Corrêa.
a existência de um teatro criado e subvencionado Ao longo da construção do teatro e após a inau-
pelo poder público seria o pressupostO básico para guração, diversos artistas contribuem e tornam-se
o desenvolvimento da dramaturgia nacionaL Sem responsáveis pela imponência da fachada e requinte
do interior do prédio. Destacam-se - entre már-
134 2. ed., Rio deJaneiro: São José, 19 68, P: 49.
135 Idem, íbidem
mores, cerâmica esmaltada, quadros em mosaicos,

• 374
• o Teatro no Pré-Modernismo

madeiras nobres, luminárias de bronze dourado, es- posse do Teatro Municipal" O apelo à autoridade
pelhos, o lustre francês de cristal bisotado, veludos, é direto: "O dr. Serzedelo Corrêa, que não se deixa
o raro ônix verde do corrimão da escadaria e as ro- levar pelas cantigas dos empresários de arribação e
tundas laterais decoradas por Rodolfo Amoedo - de decrepitudes aposentadas, certo fará entrar nos
as pinturas de Eliseu D'Angelo Visconti no plafimd eixos a lei vigente ou promoverá os meios necessá-
da sala de espetáculos, proscênio, e o pano de boca rios para que outra lei se faça, a fim de evitar tais
que retrata ''A Influência das Artes na Civilização". abusos e a queda do teatro nas mãos gananciosas dos
Em 19 I 6, oito pinturas murais com cenas de dan- especuladores, auxiliados pelos críticos iluminados".
ças típicas de vários países, desse mesmo artista, O mesmo exemplar oferece aos leitores duas fo-
são acrescentadas ao conjunto. No subsolo, o bar tos: a plateia da primeira noite e outra que reúne
Assírio ostenta detalhes persas e bizantinos. Com Coelho Neto e os artistas brasileiros responsáveis
colunas encimadas por touros alados e o uso de ce- pela interpretação da peça Bonança. Sobre a ceri-
râmica copiada de original existente no museu do mônia, nada mais é documentado.
Louvre, reproduz um palácio da civilização antiga. Em 8 de agostO, uma caricatura da atriz Réjane
Entre os trabalhos externos do prédio, sobressaem a sai na coluna teatral. Nenhuma fotografia e ausên-
Música e a Poesia,esculturas de Rodolfo Bernadelli. cia de notícias a respeito das encenações levadas
A inauguração do Teatro Municipal torna-se pela companhia francesa mostram o descaso estu-
motivo de polêmica acirrada. De início, para a dado, por parte da Revista da Semana) em relação
grande noite da estreia, cogita-se o nome de Nina à primeira temporada da nova casa de espetáculos.
Sanzi, atriz mineira educada na Europa e integrante Na história do Teatro Municipal do Rio de Ja-
da Companhia Lírica Italiana. Em seguida, arti- neiro, a noite inaugural é acontecimento singular.
cula-se a apresentação da Companhia Dramática Nas publicações posteriores à data, os comentários
do Teatro Réjane de Paris. A reação de ateres e inte- dividem-se entre referências ligeiras à parte artÍstica
lectuais ligados ao meio, de modo geral, é contrária do espetáculo, quase ignorada por alguns, críticas
às duas indicações. Sentem-se preteridos e exigem direcionadas a este ou àquele fato e a descrição
programa e ateres brasileiros. minuciosa do grande acontecimento social. O
Nos periódicos, artigos assinados ou escritos por discurso de Olavo Bilac merece destaque e é publi-
colaboradores anónimos reproduzem mágoas e ran- cado, na íntegra, nos periódicos Gazeta de Notícias,
cores em vista das primeiras indicações. A Revista O País e Jornal do Comércio.
da Semana é um dos semanários no qual se per- O luxo do prédio, o progresso que ele representa
cebe a defesa do caráter nacional da solenidade de e a elegância dos convidados são elementos coloca-
inauguração e da temporada em seguida. Insatisfeita dos em relevo pela imprensa.
com o contrato efetuado entre os organizadores e O convite estampado no jornal O País, do dia
a companhia dramática francesa escolhida para a 14 de julho de 1909, é sucinto quanto à nomea-
temporada oficial, a revista não abre espaço em suas ção dos artistas. O programa, que se encontra no
páginas para a solenidade de inauguração e muito Museu dos Teatros do Rio de Janeiro, é igual ao
menos para a atriz Réjane. Curtos comentários reproduzido por Edgard de Brito Chaves Júnior
depreciativos, assinados por João Cena, são publi- em Memorias e Glórias de um Teatro. O impresso
cados nos números subsequentes à data inaugural. informa ao público:
Na coluna dos teatros, ao lado da inscrição "Teatro
Municipal," tornam-se costumeiras as frases: "Fe- Primeira parte: Hino Nacional, discurso oficial pelo sr.
chado... para a lei vigente" e "Continua fechado ... Olavo Bilac,
para a lei vigente". Na edição de 25 de julho, o "Insônia", poema sinfônico do maestro Francisco Braga:
semanário estampa a fachada do prédio do teatro texto do dr. Escragnolle Dória;
e sob o título "Inauguração do Teatro Municipal",
faz o aparte: "Espera-se que a nova ordem de coi- Segunda parte: "Noturno" da ópera Condor de Carlos Go-
sas mude na Prefeitura o aspectO legítimo dessa mes, Bonança- Peça em um ato de Coelho Neto, desern-

• 375
Historia do Teatro Brasileiro • volume 1

penhada pelos artistas nacionais da Companhia Dramática e desajeitada dos intérpretes de Bonança, embora
Artur Azevedo. Dlstribulção - Lúcio, sr. A. Ramos; pa- ressalte o "trabalho literário de muito merecimento
dre Anselmo, sr. C. Nazaré; Amadeu, sr. João de Deus; teatral': de Coelho Neto. Sobre Moema, não acha
Adelaide, sra. Luiza de Oliveira; Darniana, sra. Gabriela apropriado julgar os artistas amadores com o rigor
Montani; Leonora, sra. Lucília Peres. Ação em São Luís do empregado na apreciação dos profissionais italianos
Maranhão - Atualidade - Encenação do sr. Álvaro Peres; das grandes companhias líricas.
Completo na descrição da cerimônia, porém
Terceira parte: Moema - ópera lírica em um ato de Del- algo reticente em relação à grandiosidade do em-
gado de Carvalho, cantada por artistas do Centro Lírico preendimento, mostra-se o editorial do Jornal do
Brasileiro. Distribuição - Moema, sra. Laura Malta; Paulo, Comércio, de 15 de julho. O artigo reproduz o
sr. Américo Rodrigues; japír, sr. Oswaldo Braga; Tapir, sr. elogio estético. É minucioso quanto aos detalhes
Mário Pinheiro; Época- r600. artísticos da casa de espetáculos, mas também dá
conta do aspecto cruel do projeto de modernização
A parte musical será executada por uma orquestra de 64 de Rodrigues Alves, quando aponta o contraste en-
professores, sob a regência do maestro Francisco Braga. O tre a multidão excluída e a elite europeizada:
cenário da óperaivIoema foi pintado pelo artista Crispim
do Amaral. Começa às 8 xl»: Inaugurou-se ontem o suntuoso monumento com que a
prodigalidade municipal dotou a cidade. O edifício colossal
No dia seguinte à festa solene, de modo quase e soberbo parecia uma imensa mole de granito, mármore,
unânime, a imprensa carioca bate palmas para a ouro, bronze e vidros, resplandecendo à luz branca que
cerimônia luxuosa, elogia a modernidade da obra jorrava do seu bojo numa fulguração que deslumbrava.
e a civilização que ela parece espelhar. O tom dos A multidão olhava para o teatro como tomada de assom-
noticiários segue bem de perto o transmitido pelo bro ante aquela grandeza, fruto de uma megalomania e
jornalA Tribuna, de 15 de julho de 1909: abria alas para os que lá dentro iam assistir ao espetáculo
de inauguração.
A noite de ontem foi de grande, de intenso júbilo para a
alma carioca, alguma coisa de uma noite verdadeiramente Em 18 de julho de 1909, na coluna dominical
de gala, associada à grande data que a França e o mundo publicada na Gazeta de Notícias, João do Rio re-
comemoram, a inauguração do belo e opulento Teatro gistra a impressão deixada pelo teatro, na noite de
Municipal, com muito poucos rivais nas grandes capitais gala. A primeira frase revela o fascínio do cronista:
europeias. [...] Tudo ali falava do nosso progresso, do nosso "O grande teatro. De longe todo ele arde e cintila
adiantamento, da nossa cultura espiritual, da civilizaçãodos como uma joia colossal". Dentro do prédio, rende-
nossos costumes, do apuro do nosso gostO. -se à maestria da composição em torno das luzes,
cores e acessórios. No final da crônica primorosa, o
Entre as vozes que desafinam, no coro de admi- observador atento da cidade e admirador de Oscar
ração que toma conta da imprensa, destaca-se a de Wilde reproduz o diálogo entre dois convidados e
Oscar Guanabarino. Na página 2 do jornal O País) deixa, para o leitor, a apreciação dúbia:
do dia 16 de julho de 1909, ele faz crítica severa à
qualidade artística do esperáculo. Reclama do poema - Hás de convir que é luxo demais! - diz-me encantado
sinfônico Insônia, que surge desacompanhado do um homem.
texto anunciado, de Escragnolle Dória. "Prolixo e - Luxo demais! Só o supérfluo é realmente importante
nebuloso" e "taciturno demais" são as adjetivaçães na vida. Esse supérfluo tem de fato moralmente mais utili-
empregadas pelo crítico teatral para a solenidade. dade do que uma porção de coisas úteis.
Quanto à execuçãodo "Noturno': da ópera de Carlos
Gomes, teria sido prejudicada pelo posicionamento João do Rio escreverá sobre o Teatro Municipal
da orquestra abaixo do nível da plateia. Guanabarino um texto mais objetivo, em 1913, quando da elabo-
lamenta, de igual modo, a interpretação arrastada ração do álbum comemorativo.A obra de divulgação
• o Teatro no Pré-Modernismo

não abre espaço para considerações ambíguas. A dos artistas estrangeiros na noite de inauguração não
encadernação luxuosa combina verde e dourado, emitem comentários.
apresenta o brasão de armas do Rio de Janeiro em A 3o de agosto tem início a temporada de Nina
relevo e anuncia o requinte das folhas internas. Sanzi com a peçaLa cena delle beJfe, drama de Sem
Fotos, plantas dos pavimentos e artigos são emol- Benelli. Em 1910, a temporada oficial é entregue
durados por gravuras emblemáticas e/ou barras ao empresário português Da Rosa. Em 19 12 e 1913
delicadas em grafite com detalhes em vermelho. acontecem as duas temporadas nacionais organizadas
Os textos impressos em duas colunas simétricas pelo empresário Eduardo Vitorino. No ano de 19 I 3,
podem ser lidos em português e francês. As fotos apresentam-se para o público o corpo de baile do
estampadas em página inteira mostram detalhes da Teatro Constanzi, de Roma, e o dançarino Nijinski.
arquitetura, da decoração e dos rnaquinários. A dança de Isadora Duncan e a temporada do ator
Quanto à festa de inauguração do teatro, após Lucien Guitry recebem aplausos da plateia do Mu-
a leitura das muitas apreciações jornalísticas, pelo nicipal, em 19 I 6. Nesse ano, os chamados artistas de
que dizem e pelo que deixam de comentar a res- salão da belleépoquecarioca representam no palco do
peito das obras nacionais apresentadas, músicos teatro a peça Um Chá das Cinco, deJoão do Rio. Nos
e artistas, a conclusão é clara: sucesso da plateia anos posteriores, o teatro continua a receber ateres e
bem-vestida e ornamentada com joias faiscantes, atrizes do teatro declamado francês, do teatro lírico,
atordoada pela imponência do prédio, e um palco músicos, maestros e dançarinos.
ainda não preparado para a grandiosidade exposta. A história do Teatro Municipal do Rio de Ja-
Encerrado o evento comemorativo, tem início neiro acaba por dar razão aos temores demonstra-
a temporada da companhia dramática francesa. dos por Artur Azevedo em 1904: seu palco não
A atriz Réjane, que alguns dos seus contemporâ- foi usado com a frequência devida pelos elencos
neos comparam a Sarah Bernhardt, brilha no Mu- nacionais, sobretudo os dramáticos. No seu tempo,
nicipaL A companhia apresenta 26 espetáculos, Coelho Neto está entre os que mais reclamam da si-
de 15 de julho a 22 de agosto. São apresentadas tuação. Em crónica para o jornalA Noite, em março
as peças: Le Refuge e Suzeraine, de Dario Nicco- de 1920, ele afirma: ''Autores e ateres nacionais não
demi; Lolotte, de Meílhac e Halévy; La Course du deveriam ser vistos como intrusos numa casa cons-
flambeau, de Hervieu; Zazá, de Pierre Berton e truída para eles". E acrescenta:
Charles Simon; Qy-iperdgagne, de Capus e Veber;
Le Roi, de Flers, Caillavet e Arêne: Le Souris eLe As companhias brasileiras que se contentem, como as crian-
Monde ou l'on s'ennuie, de Pailleron; Asile de nuit, ças, com o quintal, que brinquem por aí à vontade, porque
de Marc Maurey: Israel, de Bernstein; La Femrne uma casa como aquela, em que soçobraram tantos milhares
nue, de Bataille; La Passerelle, de Gressac e Crois- de contos, não é para uma Júlia Lopes, para um Goulart
ser, Raflles e Paris - New York, de Croisset e Arene, de Andrade, para um Roberto Gomes, para um Cristiano
La Parisienne, de H. Becque; Madame sans-gêne, de Souza, para um Pinto da Rocha, para um Oscar Lopes,
de Sardou e Moreau: Sapho, de Daudet eLaDame para um Bastos Tigre, para um Renato Vianna, nem para
aux camélias, de Dumas Filho. Lucílias, Irálías Fauscas, Fróes, Ferreiras de Souza, Simões
Cabe anotar que, nos dias 28 de julho e 2 de Barbosas etc. etc. Aquilo é para as visitas.
agosto, o palco do teatro será ocupado por Anatole
France. O conferencista falará sobre Le Positivisme
et la paix du monde e Le Christianisme avant et A Escola Dramática Municipal
aprésJesus. O periódico O País reproduz na íntegra, do Rio de Janeiro
já traduzidas, as duas conferências.
Em Iode agosto, é encenada a comédia O Dote O Almanaque Brasileiro Garnier editado em 19 I I
pela Companhia Dramática formada por Artur Aze- noticia a cerimônia de inauguração da Escola Dra-
vedo. Sobre o espetáculo, os articulistas que tanto mática Municipal, ocorrida a 15 de abril de 19 10.
se incomodaram com a possibilidade da presença Na presença do presidente da República, dr. Nilo

• 377
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Peçanha, e do prefeito do Distrito, dr. Serzedelo No âmbito da questão teatral, os resultados


Correa, o "díreror e professor de estética': Coelho apresentados pela Escola Dramática são colocados
Neto, faz um discurso esperançoso, apoiado nos em discussão nos anos seguintes.
seus ideais estéticos e na inscrição de 13 8 alunos Em 19 14, após as duas temporadas nacionais or-
para disputar as trinta vagas estipuladas. ganizadas por Eduardo Vitorino no Teatro Munici-
O objetivo do orador é ambicioso. Ele pretende pal, continua a campanha jornalística por um teatro
uma formação ampla dos ateres a seus cuidados e que seja representativo da cultura do país. Fala-se
planeja um currículo que prestigie teoria e prática. em "vergonha nacional" e são discutidas propostas
De acordo com seus propósitos, os alunos serão objetivas como a criação de uma lei que regule direi-
encaminhados no sentido de bem reproduzir as tos e deveres na relação entre empresários e artistas.
emoções humanas, tanto na comédia quanto na Há um fortalecimento da figura de Coelho
tragédia. Tornar-se-ão intérpretes da poesia dramá- Neto, no cenário que se ressente da ausência firme
tica brasileira, há "tanto tempo e humilhantemente de Artur Azevedo. Isso, apesar do fraco desempe-
açacanhada pelo códice obsceno". Aprenderão nho da Escola Dramática, no sentido de alavancar
prosódia e terão todas as condições para apurar o o teatro nacional. Alguns incentivam o escritor e o
vernáculo, já que assistidos por professores com- aconselham a manter a rígida orientação do currí-
petentes. Serão educados na arte da representação, culo; o tempo mostraria os bons resultados do tra-
balho: ateres e atrizes com desempenho adequado,
movendo-se com elegância, ouvindo com discrição, ata- autores brasileiros entusiasmados e o crescimento
lhando com propósiro, dialogando com distinção, sabendo de um público educado pela conjugação dos dois
estar em rodas as atitudes, sem comprometer a graça, com fatores. Outros criticam e acham que a escola não
o jeito canhestro do pastrano, nem afetar, até o ridículo, a corresponde às expectativas e apontam como fa-
posição e o jeito. lha maior a imobilidade ou falta de alternância de
metodologia na procura de melhores resultados.
1Ylas não é só isso. Para uma completa formação Mário Nunes, em 40 Anos de Teatro, reproduz a
artística de seus alunos, a escola dará ideias gerais defesa de João Barbosa, do corpo docente da escola,
do belo e ensinará a história do teatro, "desde os frente às críticas negativas:
grandes dias dionisíacos até ao referver da vida
intensa' do século em curso. Falta-nos uma escola, diziam; agora, apesar de se ensinar na
Segundo Ênio Carvalho, no livro História e nossa pelos mesmos processos de rodas as suas congêneres,
Formação do .Ator, o primeiro plano de ensino da diz-se: a escola está errada. Ótima ou péssima ela aí está e já
Escola Dramática inclui: prosódia (José Oiticica): este ano dá uma turma de diplomados. Três anos de curso fize-
arte de dizer (no início, Coelho Neto). E ainda: ram essesrapazes e senhoras; dois de arre de representar com
exercícios, atitudes e esgrima; literatura dramática os distintos professores: Augusto de Melo, Cristiano de Sousa
e história; arte de representar e psicologia das pai- e Eduardo Vicrorino; o último guiado pelo obscuro signatá-
xões; português. rio das presentes linhas. Esrou intimamente convencido de
Nas provas finais da primeira turma da escola que não há uma só criatura de bom senso e que conheça um
são apresentadas as peças O Oráculo, de Artur pouco de teatro, crente de que saiam dali verdadeiras águias,
Azevedo e Numa Nuuern, de Goulart de An- capazes de, por si só, reerguerem o teatro nacional. O que
drade. Catorze alunos prestam os exames finais. eles almejam e com justa razão é o aproveítamento daqueles
Em 19 14, a escola é anexada ao Teatro Munici- que se querem dedicar ao teatro como jusro prêmio dos seus
pal. O ano letivo é reestruturado e o quadro de esforços e do trabalho de três anos de escola'>,
matérias fica distribuído do seguinte modo: dois
primeiros anos: a arte de representar, professores: No prosseguimento dadefesa,João Barbosaaponta
Augusto de Melo, Cristiano de Souza e Eduardo algumas deficiências da vida teatral brasileira na
Celestino. O terceiro ano fica a cargo do professor
João Barbosa. 136 Apud M. Nunes, 40 Anos de Teatro, v. I, P: 55
+ o Teatro no Pré-Modernismo

qual, muitas vezes, triunfa a ignorância e a incom- É possível que a Escola Dramática não dê Sarahs e Zacones
petência. Ele não cita nominalmente, mas afirma a em profusão. É possível que tudo acabe amanhã. Mas não
existência de "ateres que não sabem ler, incapazes há de se negar que a obra de Neto é um ciclópico esforço
de conversar em português corrente", "despidos em prol da arte dramática e, mesmo, o único meio de na-
da menor cultura') que acabam como primeiras cionalizar o nosso teatro.
figuras das companhias e, em paralelo, a presença
de autores despreparados e peças fracas, mas pres- Na coluna "Pall-1'vIall- Rio" de 5 de outubro de
tigiados por empresários. 1915, já no jornal O País) o mesmo comentarista
Eduardo Vitorino, no volumeAtores e.rltrizes'ê", admira o esforço de Coelho Neto, reconhece o
emite comentários elogiosos às aulas de Coelho valor do homem de teatro, mas não acredita que
Neto. Admira o "encanto" com que o professor a Escola Dramática seja solução para a cena nacio-
discorre sobre Aristófanes, Ésquilo, Sófocles, nal. Para João do Rio, o público presente às provas
Shakespeare, Moliêre, Lope de Vega, Calderón, Gil deixaria o teatro nacional deserto, "se houvesse
Vicente, Almeida Garrett, Antônio José, Goldoni, teatro nacional". A "assistência mundana: na sua
Martins Pena eJosé de Alencar. argumentação, vai ao Municipal levado pela pre-
Em 1915, os que apoiam a Escola Dramática in- sença de Coelho Neto e não para reconhecer e in-
vestem no prestÍgio pessoal do díreror da Escola para centivar novos valores. Em 7 de julho de 19 I 6, na
atrair simpatias. As provas finais, públicas, são reves- mesma coluna, ele mostra seu desencanto final com
tidas de solenidade. Convida-se a imprensa especia- a Escola Dramática, vista como "anomalia' num
lizada, formadores de opinião e nomes da sociedade país sem teatro oficial. Para que ela serviria? Como
para prestigiar o feito marcado para o dia 3o de julho, saber se ela estaria cumprindo com a função de for-
no Teatro Municipal. Em parte, a estratégia produz mar ateres e atrizes? Essa e outras questões repro-
bons resultados. No dia do exame, a sala está repleta. duzem as dúvidas de alguns dos contemporâneos.
As colunas teatrais dos jornais comentam as encena- As opiniões são conflitantes e retomam a questão
ções e são destacados alguns novos atores e atrizes. por demais discutida da existência ou não de um
Carmen Fernandes é aplaudida pelo "temperamento teatro nacional. ~anto à Escola Dramática, nos
trágico";Ema Póla,pela serenidade e competência em anos que se seguem, o desânimo é cada vez maior.
reproduzir os "sentimentos afetivos": Elisa Garrido é No exemplar do Jornal do Brasil publicado a
reconhecida pelas "qualidades cómicas", Francisco 3 de março de 1920, um comentarista anônimo
Vieira Cardoso é aplaudido como ator de comédia, enxerga a escola como uma pilhéria, prejudicial ao
seguro em cena. São destacados em papéis cômicos teatro e à própria comunidade. Refere-se a ela como
os arores A.lvlarzulo e Pacheco Filho. uma das "abachareladas escolas, em que conspícuos
O mais notável ater que se forma nesse ano cavalheiros, que nada entendem de teatro, ensinam
chama-se João Álvaro de J esus Quental Ferreira. as coisas mais esquisitas sobre assuntos vários': que
Ele será reconhecido e ficará famoso com o nome os alunos não conseguem digerir. Atinge com a
artístico que adotou: Procópio Ferreira. crítica os objetivos expostos por Coelho Neto no
Nos primeiros anos da escola, elogios e críticas discurso de inauguração, afirmando duramente:
variam de acordo com a diferença entre o esperado
e o obtido. Pouco antes da cerimônia de inaugura- ~em para ali entra, cedendo à vocação depressa se desi-
ção, na Gazeta de Notícias de 24 de abril de 1910, lude, vicia o ouvido com a declamação gongórica e ridícula
o cronista de "Cinematógrafo" acredita nos benefí- dos professores de prosódia e de arte de dizer, fica tonto
cios que a escola poderá trazer para os ateres e para com as preleções preciosas sobre o teatro grego, estarrece-se
o teatro brasileiro. Teatro que, um dia, se o trabalho diante do esforço desordenado teórico-prático dos docen-
for consistente e contínuo, ele adverte, terá condi- tes de arte de representar.
ções de ser realidade. Não há otimismo exagerado:
A opinião é radical: em tantos anos de escola, nada
de útil fora produzido.
137 Rio de Janeiro: A Noite, 1937, P: 202.

+ 379
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Em 40 Anos de Teatro, às páginas 2 I 7 e 2 18 do como o Escravo. Informa que 1)0 figurantes for-
primeiro volume, Mário Nunes reproduz a entre- marão o coro das Coéforas, carpideiras, mulheres
vista feita com Coelho Neto, no mês de agosto do do povo, guardas, escravos e cidadãos.
mesmo ano de 1920. No exemplar do dia seguinte, pequena nota
"O homem da eterna esperança" mostra-se informativa expõe a capacidade do anfiteatro a ser
desanimado e desiludido com os rumos do teatro montado no Campo de Santana: "70 camarotes,
nacional. Continua a acreditar em atores brasilei- 1.000 lugares distintos, 1.000 cadeiras, 1.000 ga-

ros - "Temo-los e dos melhores" - e confirma a lerias, havendo espaço para lugares em pé para 10
existência de público que "vai a tudo". Na sua opi- mil espectadores". Em 4 de janeiro, o jornal prevê
nião, os verdadeiros culpados são os empresários a conclusão dos trabalhos de instalação do teatro,
que apenas exploram o teatro e não se ocupam luzes e palco, para os próximos dias. Participa o
também com a arte pela arte. Ele diz não condenar acréscimo de benfeitorias, como a instalação de
o lucro, mas a falta de inteligência dos empresários: camarotes de cada um dos lados do anfiteatro,
"Arte é luxo e o luxo caro". "Por que não expor o para pessoas de alta representação social a serem
melhor produto na vitrina?" Sobre a Escola Dra- convidadas para os espetáculos.
mática, lamenta a injustiça do não reconhecimento E assim,em notas sucessivas, a coluna "Gazeta Tea-
do trabalho do seu corpo docente e as injúrias so- tral" refere-seao ensaio geralno Teatro Municipal, aos
fridas: "Ali estuda-se sem rumor, ali fazem-se con- figurinos, atores, atrizes, repertório e ao encontro do
ferências como as melhores que correm mundo e poeta Carlos Maul com Alexandre de Azevedo, no
publicadas nos Les Annales, ali criam-se artistas, qual os dois discutem a adaptação deAntígona.
muitos dos quais trabalham em nossos teatros com A estreia programada para o dia 22 é adiada de-
aplausos do público, que os estima".Fala das dificul- vido à chuva forte de verão. Os comentários sobre
dades enfrentadas para a produção de encenações a estreia saem no dia 24. A coluna "Última Hora"
adequadas. Queixa-se da verba por conta da qual do dia 24, também na Gazeta de Notícias, descreve
tudo corre, "desde o papel e a tinta até a vassoura". o acontecimento:
Cita cifras e termina por dizer que elas são mais
eloquentes do que palavras. Havia realmente público. A concorrência era boa e, se não
Os dez anos de existência da instituição são houve o entusiasmo esperado, nem por isso Orestes deixou
comemorados com um sarau. O público aplaude de agradar. Está bem declamada, tem movimento, foi en-
as peças: Música de Antecâmara, sainete de João saiada com carinho, com um grande dispêndio de esforço,
Luso; A Morte do Pierrot, de Júlio César da Silva; principalmente porque os artistas e os coros não estavam
A Ameaça, sainete de João Luso; A Ironia, comédia acostumados a tragédias gregas.
de Coelho Neto.
Em seguida, o colaborador anónimo repara na
cabeleira loura de Alexandre de Azevedo, que dera
o Teatro da Natureza ao ator uma "aparência de Cristo de litogravura', e
elogia-lhe a segura declamação, apesar do esqueci-
Entre as notícias costumeiras sobre ateres, atrizes e mento, aqui e ali, de algumas palavras. Tal falha é
peças encenadas, a coluna teatral da Gazeta de No- desculpada pela emoção da estreia. Itália Fausta,
tícias, de 2 de janeiro de 19 I 6, anuncia os ensaios a Electra, é elogiada: tem físico para as tragédias
de Orestes, adaptação da Oréstia de Ésquilo, peça gregas e gestos que impressionam agradavelmente.
a ser representada no Teatro da Natureza. Cita o O colunista não gosta da pronúncia da atriz, mas
nome de Itália Fausta como Electra e faz referên- observa que nem por isso ela deixara de emocio-
cia à distribuição dos demais papéis: Clítemnestra, nar os espectadores ao pedir vingança contra os
Apolônía Pinto; Corifeu, Ema de Souza; Orestes, assassinos do pai. Os demais artistas merecem
Alexandre Azevedo; Egisto, Ferreira de Souza; Pi- aplausos por estarem à vontade no tablado, que o
geu, Marzulo: Pílades, Luís Soares eJorge Alberto cenógrafo Jaime Silva aproximara ao gênero com as
• o Teatro no Pré-Modernismo

colunas, as estátuas e o palácio ao fundo. Quanto à País, refere-se ao evento como um paradoxo. O Tea-
orquestra de 78 professores, regida por Luiz Mo- tro da Natureza fora aprovado por um público con-
reira, comportara-se bem. Já a música, anunciada siderado ignorante em questão de Arte: "O nosso
como relíquia encontrada no museu da Torre do público sentiu, vibrou, rebentou numa verdadeira
Tombo, soara ao crítico como sinfonia húngara. apoteose". Embora a maioria dos espectadores não
O balanço final é positivo: "um grande trabalho, soubesse quem foi Ésquilo, soubera reconhecer uma
uma tentativa honesta de arte, até agora não posta obra de arte. Segundo o autor, a emoção perante o
em prática no Rio. O Teatro da Natureza merece artístico desacreditara a opinião generalizada no
o apoio do público". meio intelectual de que, no Brasil, "só se deve fazer
Para a estreia, o jornal O País publica o reclamo teatro ordinário, porque o público não quer senão o
abaixo: teatro dos inúmeros Fonsecas-Moreiras".
Marta Metzler, em seu livro, O Teatro da Natu-
TEATRO DA NATUREZA reza I 38, relaciona as condições favoráveis para que o
JARDIM DO CAMPO DE SANTANA projeto da montagem de clássicos gregos em praça
Iniciadva de Alexandre de Azevedo - Direção de Cristiano de Souza pública fosse bem-sucedido na cidade do Rio de
Administração do Ciclo Teatral, sob a gerência de Luiz Galhardo. Janeiro: parte da intelectualidade alimentava o
HOJE - SÁBADO, 22 DE JANEIRO, ÀS 8r.; DA NOITE - HOJE gosto pela civilização helênica; os homens de teatro
Inauguração desses esperáculos - Primeira récita de assinatura queriam mudanças no cenário teatral e os organi-
Primeira representação da célebre tragédia grega, em versos, de Ésquilo, zadores receberam autorização oficial para montar
Tradução do dr. Coelho de Carvalho o anfiteatro em local apropriado.
ORESTES De um modo geral, a iniciativa brasileira de Ale-
Peça ornada de coros, com música coordenada sobre motivos gregos. xandre deAzevedo, que em I9 I I montara o Teatro
ELECTRA, ITÁLIA FAUSTA - ORESTES, ALEXANDRE DE da Natureza no Jardim da Estrela, em Portugal, é
AZEVEDO elogiada pela imprensa brasileira da época. De iní-
A ação passa-se em Argos entre o velho palácio de Pélops e túmulo de cio, o público prestigia as apresentações.
Agamêmnon. Para que não se faça ideia por demais otimista
Encenação de Alexandre de Azevedo - Orquestra de 80 professores - a respeito do alcance da iniciativa, resta explorar a
Direção Musical de Luiz Moreira - Maestro de coros, Francisco razão do seu curto ciclo de vida. O comentarista
Nunes - 100 coristas de ambos os sexos. da coluna "Última Hora" publica um artigo, "O
A montagem é feita com o maior rigor de reconstituição e propriedade. Teatro da Natureza em Crise': na Gazeta de Notí-
cias de 27 de fevereiro de I9 I 6, no qual acrescenta
Preços: Camarotes, 30$; Distintas, 5$; Plateia, 3$; Galerias, 2$; Entradas, um outro motivo para a suspensão dos espetáculos,
ISOOO. Além do mau tempo, responsável pelo adiamento
Bilhetes à venda na confeitaria Castelões, no Café Primavera, e no da primeira apresentação, a falta de público e con-
Restaurante Sradt Munchen. dições financeiras insuficientes teriam provocado
Das 3 horas em diante, nas bilheterias junto aos portões do jardim: o fim da empreitada. Na reprodução do diálogo
camarotes dlstíntos, no portão em frente ao Quartel General; plateia e entre o articulista e um ator da companhia, o leitor
galerias no portão fronteiro ao Corpo de Bombeiros; toma conhecimento do sucessivo esvaziamento da
entradas gerais nos dois portões. Os autos e carros com famílias que se plateia:
destinem ao esperáculo têm entrada no Jardim, para poderem deixar

os espectadores junco ao local do teatro. Os carros e automóveis nestas - Ah! O prejuízo tem sido completo. Ninguém mais vai
condições têm entrada pelo portão da rua do Hospício, devendo sair ao parque da praça da República. Os banquinhos de pinho
pela rua do Areal. Amanhã, DOMINGO, 23 de janeiro - Segunda vivem vazios de espectadores.
representação do grandioso espetáculo ORESTES. Era uma desolação! A empresa foi diminuindo a des-
pesa. Chegou a dispensar, s6 de uma vez, mais de trinta
José Antônio José (João do Rio) na coluna "Pall-
-1'IfallRio': de 25 de janeiro de I9I6, do jornal O 138 São Paulo: Perspectiva, 2006.
História do Teatro Brasileiro • volume1

I-A8ptdo de um lreeh«da plaUa e galerias, vendo-se á direíla


a mullidão que envolvia o reetnto, 2-0 maesirc Luit Morei-
ra 1t[jtnc1o a 61Jmphonia ,'o "GuQ1anu". 3-Aspecll) da mul-
tidão á eS1TJ?rJI1 do proacenin,

Foto do Teatro da Natureza publicada na Revista da Semana de I5 de abril de I9I6.

coristas. lvlas a receita era cada vez mais curta. Os sócios chama a atenção, ainda, para o alto custo do es-
do Teatro da Natureza já tinham pensado até em fazer uma petáculo apresentado. O que, sem dúvida, condi-
feira franca. Reina um desânimo danado. Aquilo, pode-se cionaria a continuidade do projeto à existência de
dizer, acabou. público pagante regular.
Ao contrário do comentarista da Gazeta, Gua-
No jornal O País, na coluna "Artes e Artistas': nabarino não encontra restrições no desempenho
no dia seguinte à estreia, Oscar Guanabarino, de- de Itália Fausta, "trágica na verdadeira acepção do
pois de discorrer sobre o teatro grego e de se dizer termo, e dotada de uma voz resistente, que domi-
surpreendido diante do "êxito verdadeiramente ar- nara toda a praça da República". Já em relação à
tístico" do espetáculo apresentado, quase antecipa música, Guanabarino concorda com o colega da
o pronunciamento acima do ato r, feito pouco mais Gazeta e escreve que, se o público aceitara a autoria
de um mês após a estreia. Para Guanabarino, o in- grega da música, ele, como profissional da crítica,
teresse que levara os espectadores a comparecer em não poderia fazer o mesmo. No final, faz um ba-
massa à encenação de Orestes teria causas imediatas. lanço positivo:
Primeiro, a novidade do espetáculo ao ar livre. Em
seguida, a curiosidade por uma representação fora O efeito do conjunto da tragédia, com a sua grande massa
dos moldes teatrais em voga: uma tragédia grega de coros; o espetáculo grandioso da encenação com a va-
traçada muitos séculos antes de Cristo. O crítico riedade de cores das túnicas; a movimentação cênica, o
• o Teatro no Pré-Modernismo

assumo lembrando a história épica dos guerreiros helêní- Rusticana, espetáculo extraído por Lopes Teixeira
cos, com a alusão a vultos gigamescos e trágicos - tudo da ópera de lvlascagni e do conto de nica; Bodas de
aquilo - novo e deslumbrante, não nos deixou pensar na Lia, com versos de Pedroso Rodrigues; O lvJártir
realidade do teatro, impondo-se como fantástico sonho ou do Calvário, de Eduardo Garrido, melodrama iden-
pesadelo sofrido em plena vigília. [...] tificado por Alexandre de Azevedo como "tragédia
Mas o caminho está desbravado e os resultados não de época".
mais poderão ser negativos. Corram todos, de todos os ar- Quanto às encenações de Cavalleria rusticana e
rabaldes e subúrbios, dos estados mesmo, para ver aquele Bodas de Lia, o comentarista da Gazeta Teatral re-
esplendor. E não parem os empresários; é preciso seguir e fere-se aos elogios exagerados feitos pelo Correioda
preparar outros muitos, outros espetáculos como esse de iVJanhã às "duas pecinhas representadas no engra-
amem, que nos deixou maravilhados. çado Teatro da Natureza". Fala da improbidade de
se querer coroar Alexandre Azevedo como cantor
A realização brasileira do Teatro da Natureza, lírico; cantor de "Siciliana': em italiano, da ópera
como proposta estética, difere da série de espetá- Cavalleria Rusticana. Mesmo porque, ele explica,
culos que aconteciam em alguns países europeus. não fora o ator quem cantara, mas um homem por
Marta Metzler, no livro citado, investiga o que detrás do paineL O crítico do Correio da Manhã
se passava na Europa e constata a existência de fizera elogios à capacidade musical de Alexandre de
um movimento muito difundido naquele con- Azevedo, sem atentar para o recurso empregado.
tinente de se montar encenações ao ar livre. O Através das apreciações críticas dos jornais cita-
mesmo ocorria nos Estados Unidos da América, dos, visualiza-se a adaptação feita por Carlos Maul.
na mesma época, com a proposta de retomada dos' A estrutura privilegia a passagem em que Antígona,
espaços cênicos característicos da Grécia antiga e por querer o enterro do irmão, é condenada. O rei
da Inglaterra elisabetana. Segundo a pesquisadora, de Tebas enlouquece e Antígona comete o suicí-
tais movimentos pretendiam valorizar a dimensão dio em cena. Segundo descrição da coluna "Última
hierática do teatro, em oposição ao estrelato e à Hora': após a morte de Antígona, carpideiras co-
comédia de costumes. Procurava-se pôr em pri- bertas de negro cercam o corpo da princesa. An-
meiro plano o aspecto social do teatro, no sentido ciões e cidadãos, escravos e soldados voltam para
de reunir a colerividade, sem distinções de classes. o coro finaL O comentarista anônimo reclama
Pelo que foi publicado nos jornais cariocas da da música de Assis Pacheco, feita para quase cada
época, é possível perceber que, tanto nos detalhes um dos recitativos: "Os versos declamados eram
da montagem do anfiteatro no campo de Santana lamentavelmente abafados pela música que, desta
quanto na diferenciação de preços dos ingressos vez foi regida pelo maestro Francisco Nunes. Para
estipulados no reclamo, a preocupação democrá- que essa música? Para se evitar que o ponto seja
tica não aconteceu no Rio de Janeiro. Além disso, escutado pelo público ?"
como Marta Metzler observa, na Europa, o Teatro O autor comenta que somente Itália Fausta sabia
da Natureza, em espaço aberto e sem assentos, as falas e que a atriz tivera desempenho magistral. Já
aparece como movimento integrado a mais duas Alexandre de Azevedo, apesar de ser "fremente" na
estruturas: o Teatro Arquitetural, grande estrutura cena em que amaldiçoa o pai, não mostrara saber
de pedra ou concreto, e o Teatro de Jardim, que bem os versos. Apesar das observações considera-
alia alguns artifícios arquitetônicos à natureza. As das negativas - "Ao arranjo de Antígona falta tea-
semelhanças entre o Teatro da Natureza europeu e tralidade. Os coros evoluem como na Oréstia e o sr.
o brasileiro ficam por conta da retirada de cena da Alexandre de Azevedo fez um Orestes fardado de
sala fechada e do interesse pelo repertório clássico. centurião romano." - o espetáculo teria mostrado
No Campo de Santana são encenadas adaptações acertos. Na opinião do comentarista, havia versos
de tragédias: Orestes e Édipo, em versos de Coelho bonitos, alguns papéis eram bem desenhados e o
de Carvalho, eAntígona, adaptação em versos de Car- aplauso do público, merecido. Os senões parecem
los Maul. Em seguida, são representadas: Cavalleria não ter comprometido a impressão do conjunto.
Histôria do Teatro Brasileiro • volume 1

Carlos Maul, no volume O Rio da BelaÉpoca, -vestídos, bem-sabidos para o público mundano que
no capítulo dedicado ao Teatro da Natureza, mos- deseja passar duas horas no Trianon".
tra o caminho da adaptação livre:

Racine, no prefácio de Fedra afirma: "Embora eu tenha A Sociedade Brasileira


seguido um roteiro um pouco diferente do de Eurípedes de Autores Teatrais
para conduzir a ação, não deixei de enriquecer a minha
peça de tudo o que me pareceu o mais deslumbrante na Manifestações isoladas em defesa dos direitos au-
sua" Essa foi a regra que ~e serviu de norma. Suprimi o torais aconteceram no Rio de Janeiro, já nos pri-
que se diluiria na transposição se permanecesse, conser- meiros anos do século xx. Em 1903, Chiquinha
vei o sentido profundo das lutas da alma que transpiram Gonzaga mostrou publicamente a sua indignação
a atitude da criatura frágil perseguida, simultaneamente, ao mover processo contra uma editora. Na Ale-
pela fatalidade inexorável e pela crueldade real gerada na manha, em viagem a passeio, ela encontrara várias
inflexibilidade das leis, emprestei-lhe as músicas verbais composições suas gravadas e editadas pela Casa
necessárias à ressonância na consciência coletíva'". Edison sem a sua autorização. Os lucros ficavam
com Fred Figner. Segundo Edinha Diniz, na bio-
Quando se avalia a iniciativa de Alexandre de grafia Chiquinha Gonzaga. UmaHistóriade Vida,
Azevedo, algumas conclusões podem ser enuncia- a escritora e compositora ganhou o processo. Nos
das. O Teatro da Natureza, de 19 I 6, agita o am- jornais da época, escritores, jornalistas e compo-
biente teatral do Rio de Janeiro e ocupa espaço nos sitores, embora timidamente, manifestaram-se a
jornais. Traz para perto do público os clássicos em favor de medidas contra o abuso de empresários.
adaptações feitas por autores nacionais. Consagra Citavam a manipulação indevida dos textos dra-
Itália Fausta como a "grande trágica brasileira'. O máticos e o descontrole sobre os direitos autorais.
público prestigia e aplaude as récitas, pelo menos Reclamavam da censura política e da censura exer-
as primeiras. De todo modo, é grande a repercussão cida pelos próprios companheiros de profissão.
do evento em contraponto à sua curta duração. A remuneração dos autores de textos dramá-
Procedimentos tais como prazo reduzido para ticos e dos compositores provinha da venda de
os ensaios e a presença do ponto indicam a conti- suas obras a um editor. Poucos conseguiam uma
nuidade de práticas habituais na cena brasileira e negociação razoável, pelo menos. No teatro, para
não alterações significativas. Os comentários críti- alguns nomes preferidos do público, o pagamento
cos sugerem uma confusão por parte dos atores e da estava condicionado ao retorno da bilheteria.
crítica jornalística entre tragédia e drama. Não era raro, porém, os empresários se sentirem
Ao contrário do que acontecia na Europa, em desobrigados de qualquer compromisso material
que está associado a um ideário, o Teatro da Natu- com o autor. Privar da intimidade dos artistas, ter
reza no Campo de Santana é mais um episódio na uma obra representada, o nome nos reclamos das
vida teatral da capital da República. A 20 de abril, bilheterias, nos jornais, e ser parabenizado pelos
encerram-se as atividades de Alexandre de Azevedo amigos já estaria de bom tamanho, segundo alguns.
em relação à montagem de clássicos gregos. Logo a Quanto à censura, a própria Chiquinha Gonzaga
seguir, ele reforma o teatro Trianon e organiza uma já sentira a sua força. Em 1893, o governo federal
companhia de comédias. Na coluna "Pall-1vIall Rio': mandou apreender e inutilizar a edição da canço-
publicada na Gazeta de I I de maio de I 9 I 6, são neta AperteoBotão.
transcritos os objetivos do ator/empresário: "O O respeito pelo autor foi uma das preocupações
meu desejo é continuar a tradição dos primeiros de João do Rio. O cronista reclamava dos ataques
tempos de Cristiano: peças ligeiras, novas inteira- sofridos pelo texto dramático e das encenações
mente para o Rio, espetáculos bem montados, bem- levadas sem o conhecimento do autor. Suas crôni-
cas apontam momentos específicos, reveladores da
139 Op. cít., p. ror. gravidade do problema.
• o Teatro no Pré-Modernismo

Em 1908, por exemplo, o público lotava as salas em Portugal, o sr. Melo Barreto. Gavault pensa que não há
dos cinematógrafos em todas as sessõese o lucro dos nada a acrescentar à peça. Mas o Carlos Leal vem para a rua
empresários suplantava as expectativas. Para fazer do Espírito Santo, no Rio de Janeiro, e resolve continuar o
frente aos cinematógrafos, a atriz portuguesa Ci- enredo daivleninado Chocolate!
nira Polônio introduziu o teatro por sessões. As É ou não espantoso?
peças curtas, quase sempre mutilações dos textos
dramáticos originais, caíram no gosto popular. Na mesma coluna, em 8 de julho de 1913, ele
Sobre o assunto, em 19II,]oão do Rio escreveu se mostrou a favor da criação de uma sociedade de
no jornal O Comércio de S. Paulo: direitos autorais para os autores de teatro e discutiu
a política de M. Clauzel, representante da Socie-
E os nossos ateres, vendo que não podiam levar o sacrifício dade dos Autores Dramáticos de Paris, que abriu
a morrer de fome, foram entrando para os cinematógrafos, a agências em vários países:
princípio como intermédio, depois como vozes por detrás do
pano, e finalmente expulsando o aparelho e representando Todas as peças de 1913 em diante, que aqui forem representa-
com uma rapidez de trem expresso, borracheiras indizíveis. das, pagarão direitos à agência da S.A. D. de Paris, e essaagên-
Essas tristes coisas para a arre dramática e esse recurso ho- cia pode cobrar o direito de todos os sócios das outras filiais,
nesto para os cômicos passariam desapercebidos, se não fosse cobrando a respectiva comissão. O advogado da filial do Rio
a imitação. Mas se há dez mil cinematógrafos, porque dois é o dr. Souza Bandeira, que não é autor dramático mas o mais
na Avenida começaram a dar dinheiro, era natural que logo parisiense dos nossoshomens de sociedade. M. Chauzel fez
surgissem os teatros por sessões com "arreglos" de peças, uma conferência, retirou-se, e os aurores dramáticos nomea-
desde que um ou dois deram lucros. Surgiram tantos, que ram uma comissão para organizar os estaturas da filial, com-
não ficou um velho comparsa desempregado [...]. O que posta dos srs. Barbosa Rodrigues, crítico musical e dramático
eles faziam não chega a ser nada, sendo um crime de código doJornal; do sr.Roberto Gomes, autor do Canto semPalavras;
e um atentado artístico. Pegar em peças de autores mortos do sr. E. Victorino, empresário teatral e do sr. C. Bíttencour,
ou ausentes, amassá-las em almôndegas de uma hora e não autor de Forrobodó e de outras piecettes de êxito ruidoso.
indagar a quem os direitos deveriam ser pagos é um crime Agora, pergunto eu, isto é, atrevo-me a perguntar: Os
punível. Fazer do Rapaz de Saias ou do Rio Nu, peças em autores dramáticos nacionais aliam-se à S. A. D. de Paris?
quarto de hora é um atentado que dispensa qualificativo. Com que lucro? Para que a agência daqui, receba os seus di-
reitos de autor, levando uma comissão pelo serviço? Quais
Em 1.2 de julho de 1913, na coluna ''À Margem as vantagens?
do Dia...",]oão do Rio repreendeu os empresários
sem escrúpulos. A referência tinha alvo preciso: a Em 19 I 6, o Congresso Nacional aprovou o
modificação do texto dramático segundo as conve- projeto do Código Civil Brasileiro. A lei de nú-
niências financeiras. Para mostrar o absurdo de tal mero 3.07 I dispunha sobre a propriedadeliterária
comportamento, o autor citou anúncio do teatro e artística, fortalecendo os direitos autorais. Na
Carlos Gomes: prática, crescia a insatisfação entre os autores.
Raul Pederneiras e Viriato Corrêa, no Jornal do
Ontem, ao ler os anúncios de teatro, encontramos dois Brasil e no jornalA Rua respectivamente, reclama-
desses atestados. O primeiro é no Carlos Gomes, onde o vam das condições em vigor. O segundo, em dis-
ator Leal tem uma companhia que representa o AguentaAí. curso pronunciado em 193 I e publicado, em 1967,
No fim, o anúncio diz: - A seguir O Chocolate da Menina. por ocasião do cinquentenário da Sbat, na Revista
Não é paródia àivlenina do Chocolate, é sim a continuação de Teatro, em edição comemorativa, relembrou os
do seu entrecho! passos que levaram à criação da entidade:
A continuação do seu entrecho! É bico ou cabeça. Um
homem de letras, o sr. Paul Gavault, célebre em todo o A muita gente se tem atribuído a convocação da reunião
mundo, escreve uma deliciosa fantasia, que tem a infelicidade que deu em resultado a Sociedade Brasileira de Autores
de ser traduzida em cassange pelo Deibler das peças francesas Teatrais. Mas, se a memória não me trai, quem fez a convo-
História do Teatro Brasileiro • volume 1

cação pelos jornais foi o nosso companheiro Raul Pedernei- dezessete horas, presentes os abaixo-assinados, foi instalada
ras. Pelo menos foi ele quem me avisou, quem me pediu que a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, moldada nas
não deixasse de comparecer à reunião. Lembro-me bem. bases gerais que fazem parte integrante desta ata, send.o
Na avenida Central à porta doJornaldoBrasil, à tarde, três aclamada a diretoria provisória, incumbida de organizar os
dias antes do nosso dia inaugural. Não me recordo se ele respectivos estatutos. Eu, Viriato Corrêa, secretário ad-hoc,
me disse que havia convocado ou que haviam convocado. lavrei a presente ata que vai assinada por todos os presentes.

o fato é que o encontro com a finalidade de Na segunda reunião, a 4 de outubro, 32 auto-


criação de uma sociedade de autores dramáticos res compareceram. Entre os novos, Coelho Neto
aconteceu, sem muito preparo, num dia de chuva, e João do Rio. Foram aprovados dois capítulos
na sala da diretoria da Associação Brasileira de dos estatutos: "Organização e Fins da Sociedade"
Imprensa. Viriato Corrêa falou do improviso e "Dos Sócios".Viriato Corrêa relatou, no depoi-
dos primeiros tempos. Na hora de redigir a ata, mento citado anteriormente, que a ata da segunda
por exemplo, estavam desprevenidos. Ninguém sessãofoi lavrada não mais em meia folha de papel,
se lembrara de levar um caderno ou uma folha mas num Livro de Atas, comprado por ele, João
de papel almaço. Tiveram que se contentar com Gonzaga e Avelino de Andrade. Falou do entu-
um pedaço de papel de máquina encontrado na siasmo e do desprendimento dos associados: "Não
sala. Nada havia sido combinado: "Não havíamos havia ainda tesouraria para cobrar mensalidades,
escolhido, sequer, um chefe, uma cabeça que nos autorizar e pagar despesas. Quando alguma des-
guiasse". Ainda de acordo com o depoimento de pesa havia, pagava-a quem era obrigado a fazê-la.
Viriato, uma das primeiras pessoas a chegar à reu- Fiz algumas. O nosso saudoso Cândido Costa fez
nião foi Oscar Guanabarino. Quando viram o res- muitas. Muitas fez o inesquecível Paulo Barreto
peitado crítico musical e também aplaudido autor (João do Rio). Creio que todos, ou quase todos
de teatro, sem a menor combinação, aclamaram-no daquela leva, as fizeram com prazer e com orgulho".
presidente provisório da Sociedade. Segundo o relatório de João do Rio, transcrito
No dia 27 de setembro de 1917, a primeira pela Revista de Teatro já citada, a primeira eleição
reunião contou com treze participantes. Compa- realizou-se no dia 20 de outubro, "sendo aclamado
receram na Associação Brasileira de Imprensa, no presidente honorário o sócio efetivo Oscar Gua-
edifício do Liceu de Artes e Ofícios: Oscar Guana- nabarino, que havia presidido a todas as reuniões".
barino, Viriato Corrêa, Gastão Tojeiro, Francisca A posse da díretoria eleita aconteceu no dia 27.
Gonzaga, Euricles de Matos, Avelino de Andrade, Assumiram: João do Rio, presidente; Raul Peder-
Bastos Tigre, Aarão Reis, Alvarenga Fonseca, Raul neiras, vice: Viriato Corrêa e Avelino de Andrade,
Pederneiras, Oduvaldo Vianna, Antônio Quinei- secretários; Bastos Tigre, tesoureiro; Agenor de
liano e Rafael Gaspar da Silva(J. Praxedes).Embora Carvoliva, arquivista; Oduvaldo Vianna, procu-
ausentes da reunião, foram representados por pro- rador. Da comissão fiscal participavam: Chiqui-
curação: José Nunes, Adalberto de Carvalho, Raul nha Gonzaga, Julião Machado, Heitor Beltrão,
Martins, Carlos Cavaco, Domingos Roque, Luiz Alvarenga Fonseca, Paulo Araújo, Artur Cintra e
Peixoto, Paulino Sacramento e Mauro de Almeida. Cândido Costa.
A sociedade foi instalada, portanto, com 21 sócios. No discurso de posse, João do Rio foi claro a
Elegeu-se uma díretoria provisória (Viriato respeito do objetivo da sociedade: ''A Sbat é uma
Corrêa, Gastão Tojeiro, Chiquinha Gonzaga, associação de classe, sem intuitos literários, sem
Eurycles de Mattos), sendo aclamado presidente, pretensões românticas, sem fins retóricos. O seu
Oscar Guanabarino. Viriato Corrêa resumiu o en- único desejo é realizar o respeito à profissão de
contro em poucas linhas: escritor de teatro".
Em decorrência da tabela de cobrança de di-
Aos vinte e sete dias de setembro de mil novecentos e de- reitos autorais, o relacionamento entre autores e
zessete, na sede da Associação Brasileira de Imprensa, às empresários ficou complicado. As diretrizes da
• o Teatro no Pré-Modernismo

Sbat foram consideradas absurdas por alguns em- nístrativo e reconduziu João do Rio à presidência.
presários, como Paschoal Segreto. Gomes Cardim, Em um dos seus relatórios, o presidente se mani-
autor e diretor da Companhia Dramática Nacional festou a respeito do impasse:
e alguns dramaturgos, como Gastão Tojeiro, recua-
ram. Leopoldo Fróes, ator, díretor, mas também Logo no começo da fundação da Sociedade, após o traba-
empresário, criou uma lista negra de autores filia- lho dos estatutos foi discutida a tabela de direitos autorais,
dos à Sbat. José Loureiro e Cristiano de Souza o tendo sido aceita, por grande maioria, a de porcentagem
apoiaram. Fomentada pelos empresários, a Associa- sobre a receita dos espetáculos. Alguns sócios, contrários
ção dos Autores Dramáticos Brasileiros - AADB - à tabela proporcional, vencedora, deram-se o desprazer da
foi criada em 8 de março de 1918 e presidida por sua retirada. O motivo, porém, de tal dissídio e afastamento
Azeredo Coutinho. desapareceu, desde que, por interesses práticos da Socie-
As discussões se estenderam na imprensa e fora dade, foi mais tarde adorada uma segunda tabela - dando
deIa.João do Rio, sob o pseudônimo "MáscaraNe- aos sócios o direito de opção, em seus contratos, entre a
grá: passou a assinar a coluna "Notas de Teatro" em retribuição fixa e a porcentagem sobre a renda dos espetá-
O Rio-jornal: Atacou a AADB, a lisura de alguns culos. Por isso, aguardamos a reconciliação desses dignos
empresários ligados a ela e estimulou os autores da confrades com a Sociedade.
Sbat a resistirem, apesar dos boicotes e agressões.
Em 4 de abril, escreveu: "Se vocês resistirem, man- Em dezembro de 1919, no entamo,João do Rio
tendo a liga com a sociedade dos autores de vários deixou o cargo. Artur Pinto da Rocha assumiu a
países, é certo que vencerão [...]. Proponham ações presidência da Sbat.
judiciárias, com as respectivas procurações". Uma nova fase teve início e a Sociedade Bra-
A culminância do conRito se deu durante uma sileira dos Autores Teatrais passou a dar mais
apresentação de Leopoldo Fróes no Trianon, a 17 atenção para a vida social e política da entidade.
de abril de 1918. O ator, além de campanha difa- As tabelas referentes aos direitos autorais ficaram
matória empreendida contra João do Rio e Viriato para segundo plano e as discussões transferiram o
Corrêa, inserira no texto alusões e ofensas aos desafe- foco para os problemas teatrais, de um modo geral.
toSna ocasião. Segtmdo relato de alguns jornalistas, A Sociedade concorrente (AADB) fechou as portas
um grupo liderado por Oduvaldo Vianna, perto do e cresceu o número de associados da Sbat. Nesse
palco, provocara o artista com comentários e garga- momento, duas pessoas desempenharam papéis
lhadas. Em resposta, Leopoldo Fróes teria iniciado fundamentais: internamente, Cândido Costa; fora
um discurso injurioso, que foi interrompido por da entidade, o delegado auxiliar dr. Armando Vidal
uma estrondosa vaia. A confusão se instaurou e a Ribeiro, que trabalhou na elaboração das leis prote-
pancadaria só terminou com a chegada da polícia. toras e empenhou-se junto aos políticos influentes
Os principais envolvidos foram levados para a dele- para que fossem validadas. Por sua influência, o
gacia. De acordo com Magalhães Júnior, Leopoldo senador Merello Júnior apresentou ao Senado um
Fróes, responsabilizado pelo delegado de plantão, projeto, logo aprovado. Convertido em lei pela
declarou que agira impensadamente. A Batalha do Câmara, foi sancionado pelo Presidente Epitácio
Trianon ocupou a imprensa por alguns dias. Pessoa a 4 de agosto de 1920. O decreto de número
Depois do episódio, embora menos contunden- 4.092 reconhecia a Sociedade Brasileira de Auto-
tes, continuaram os ataques e as deserções de ambos res Teatrais como entidade de utilidade pública e,
os lados. João do Rio abandonou as reuniões da como tal, capaz de representar seus associados em
Sbat, no que foi seguido por alguns dos implicados todos os processos referentes à propriedade literária
na disputa. Uma assembleia no dia 22 de maio de e artística no âmbito civil e/ou criminal e ainda,
19 19 reconheceu as renúncias e aprovou uma nova junto às empresas teatrais, para cobranças das cotas
tabela de cobrança dos direitos autorais pela qual ou porcentagens dos direitos de autor.
poderiam optar os associados. Alguns dias depois, Na presidência da Sbat, alternaram-se períodos
uma Assembleia Geral elegeu novo quadro admi- de orientação mais acadêmica com períodos de
História do Teatro Brasileiro • volume 1

realizações práticas. Com Bastos Tigre na presi- continuou; diminuiu razoavelmente nos anos da
dência, em 1928, o decreto de número 5.492, de 16 Primeira Guerra Mundial, mas atingiu também
de julho, regularizou a organização das empresas algumas capitais das regiões Norte e Nordeste elo
de diversões e a locação de serviços teatrais, com- país. Manaus e Belém receberam principalmente as
pletando e garantindo o direito do autor sobre sua companhias líricas, que se aventuraram em busca
obra (Lei Getúlio Vargas). das boas remunerações propiciadas pelos lucros da
A sede da Sbat está localizada no centro do Rio comercialização da borracha.
de Janeiro, na rua Almirante Barroso, número 97,
desde 1939. Em suas estantes estão reunidos ma-
nuscritos e traduções, rico arquivo da história do Panorama Cultural
teatro brasileiro. Na antiga sala de reuniões, está a
foto de Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a Chi- Para se elaborar um panorama do que foi o movi-
quinha Gonzaga, uma das fundadoras e primeira mento das companhias dramáticas e dos artistas
associada. expoentes da cena teatral estrangeira, entre 1900
Por toda a história da entidade, por seus mo- e 1920, em visita ao Brasil, vale a pena esboçar
mentos de glória e/ou de penúria, vale a pena re- antes um breve diagnóstico da situação cultural
cordar a necessidade e o ideal dos que a criaram. e social do país no período que precede a instau-
Como escreveu Carlos Drumonnd de Andrade, no ração do modernismo artístico e cultural com a
Correio da Manhâ, de 27 de setembro de 1967: Semana de Arte Moderna em 1922. No ano das
"Tanta coisa cabe na imagem de uma sociedade de comemorações do centenário da independência do
trabalhadores intelectuais que, na aparência, fun- Brasil, não só a República Velha começava a ficar
ciona apenas para arrecadar dinheiro, e na realidade para trás - fato que só passa a ser definitivamente
é peça indispensável à valorização do ofício literário consumado com a Revolução de 193 o -, mas, em
e ao esforço criativo brasileiro". termos artísticos, também o espírito conservador
provinciano que limitava a iniciativa artística aos
modelos estéticos acadêmicos.
O Brasil entrou no século xx com o regime
republicano recém-instaurado. Depois da fase co-
lonial, marcada pelos ciclos da cana e do ouro, o
período monárquico conheceu a prosperidade com
o cultivo do café, prática agrícola baseada na mão
5. ARTISTAS E COMPANHIAS de obra escrava que produziu riqueza e sustentou
DRAMÁTICAS ESTRANGEIRAS a elite econômica e o regime monarquista. Foi
NO BRASIL durante o Império, sobretudo no reinado de D.
Pedro II, quando o país já estava pacificado inter-
namente e os lucros com o café davam riqueza a
A presença das companhias dramáticas estrangei- seus produtores, que se formou um segmento que
ras no Brasil - em especial as italianas, francesas se poderia chamar de aristocrático. Junto com a
e portuguesas - tornou-se sistemática a partir de burguesia de comerciantes bem-sucedidos, esseseg-
1869, com a vinda da grande atriz trágica italiana mento foi responsável pelo florescimento da vida
Adelaide Ristori. Seu exemplo foi seguido e nos de- cultural da elite, tanto no Rio de Janeiro quanto
cênios seguintes os principais artistas europeus se nas principais capitais das províncias.
apresentaram no Rio de Janeiro, São Paulo e even- Os ciclos econômicos- canade açúcar, mineração,
tualmente em outras cidades, conforme se viu no pecuária, algodão, café,borracha - e a consequente
capítulo em que foram estudadas as turnês realiza- acumulação de capital legaram ao país um conjunto
das entre 1869 e 1900. Nas duas primeiras décadas arquitetônico de edifícios teatrais que se sobressaem
do século xx o fluxo das companhias estrangeiras pela sua condição monumental. Ocupando um local

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• o Teatro no Pré-Modernismo

de destaque na paisagem urbana das cidades, essas raiar do século xx a França era o país símbolo da
salas de espetáculos foram o lugar privilegiado do modernidade política, já que era uma das únicas
lazer, frequentadas essencialmente pela elite que repúblicas (também era a Suíça) em uma Europa
delas se apropriou para festejar-se socialmente. Os monarquista, além de possuir uma forte tradição
teatros eram locais de convivência, onde as pes- nas letras e nas artes. Não por acaso um eminente
soas podiam demonstrar lastro cultural, verem e membro da elite brasileira, Joaquim Nabuco, afir-
serem vistas, onde os burgueses e os aristocratas mava que se o sentimento em nós era brasileiro, a
ostentavam seus sucessos financeiros re:B.etidos nos imaginação era europeia, e por europeia entendia-
trajes e nas joias de suas esposas e filhas. O espaço -se francesa. A Europa em geral e a França em par-
destinado aos espectadores, portanto um espaço de ticular eram o parâmetro para as artes e a cultura
sociabilidade, transformou-se numa espécie de sala erudita no Brasil. Além disso, o século XIX teste-
de visitas, onde políticos conferenciavam, negócios munhou, no caso francês, uma forte emigração de-
eram fechados e casamentos eram arranjados entre vido a diferentes fatores: a crise agrícola de 1846, as
um ato e outro de uma peça. diferentes revoluções e quedas de governo, como as
No caso do Rio de Janeiro, com as reformas de 183o, 1848, 1870, sem falar nas guerras. Somava-
urbanas promovidas pelo prefeito Pereira Passos, -se a isso a influência do clero, que incentivava a
a cidade foi ganhando tímidos ares europeus, com vinda de imigrantes católicos para o Novo Mundo,
a abertura de lojas de comércio, clubes recreativos, sobretudo depois de proclamada a República na
colégios, teatros e cinematógrafos. Centro político França, em 1870. O ensino naquele país tornou-se
e financeiro do país, o Rio de Janeiro congregava leigo e de orientação republicana, o que fez com
representantes dos governos estaduais, negociantes, que muitas congregações religiosas - entre elas
representações diplomáticas e membros da elite eco- Sion, Santa Úrsula e Sacré Coeur - viessem a se
nômica e intelectual. A sede do governo era o centro instalar em países das Américas, preparando assim
mais importante de convivência social do país, com os filhos da elite, que passaram a assimilar a lín-
seus centros de lazer, confeitarias, casas de chá e gua, os modos e a cultura francesa como um todo.
sobretudo teatros. A respeito dos espectadores que Dentro do contexto do colonialismo, a França não
prestigiavam as companhias dramáticas estrangeiras ocupava apenas territórios para exploração econô-
em turnê pelo Brasil, Mário Nunes observou: mica, tinha também consciência da importância
da difusão de sua língua e cultura, e dentro desse
o público das temporadas estrangeiras, fornecia-o a elite espírito foi criada a Aliança Francesa, que chegou
social, apelidada ironicamente, no começo do século por ao Brasil em 1886. O Rio de Janeiro 'contava ainda
João do Rio - os 300 de Gedeão. Era sempre o mesmo. com uma Escola para Moças, citada no Iaiá Garcia,
Constituíam-no as camadas mais cultas da nossa sociedade, de Machado de .Assis, por muito tempo a única
figuras de representação nas letras, nas ciências, na política e escola leiga na cidade, e que também pertencia a
nas finanças - gente viajada e de dinheiro. Para que se man- uma família francesa, os Rouanet.
tivesse, crescesse e se avolumasse, concorria a obrigação em O mito do progresso, simbolizado pelas reformas
que se achava de frequentar rodos os conjuntos ilustres que urbanas de Paris, também chegou a estas paragens.
nos visitavam, de drama, comédia, bailados e ópera lírica'P. Era preciso romper com o passado português, insa-
lubre, atrasado, e realizar transformações que apro-
A elite que frequentava as casas de espetáculos ximassem o Rio de Janeiro do mundo civilizado.
entrou no século XX procurando estar em sintonia As ruelas sujas e mal ventiladas teriam que dar.
com o que se pretendia moderno, civilizado e por lugar a avenidas largas, pavimentadas; os sobrados .
conseguinte europeu. E quando se pensava na Eu- acanhados deveriam dar lugar a prédios altos, de
ropa, a referência era a França e não mais Portugal, cinco ou seis andares, com fachadas decoradas que
tão ligado ao passado colonial e monarquista. No lembrassem os boulevards de Paris. Relembrando
sua estada no Brasil em 1924, Aurélien Lugné-
140 Op. cír., v. I, p. 3 1-32.
-Poe, ater e diretor de teatro francês, precursor do
História do Teatro Brasileiro • volume 1

simbolismo na cena europeia, assim caracterizou as


transformações pelas quais passou o Rio deJaneiro:

Um viajante, desembarcando hoje [1926] no Rio de Ja-


neiro, não pode imaginar o que era a cidade há trinta anos
atrás. Onde estão as favelas? ... A mata virgem e tropical pa-
rece ter recuado. As baratas desapareceram; os pardais, ao
contrário, piam como em Paris ou em Lisboa. As pitorescas
montanhas foram arrasadas. Em todos os lugares, avenidas
imensas, cais suntuosos. E se, na feérica baía, não apare-
cessem o Pão de Açúcar, o Corcovado, a Tijuca, poder-se-
-Ia acreditar que estaríamos em qualquer canto do litoral
mediterrâneo. E esta transformação do Rio é a mesma em
São Paulo, na Bahia, em Pernambuco, em toda a nação.'!'

Evidentemente esta é a visão de um viajante li-


mitado por sua agenda ligada à atividade que veio
desempenhar. E, naturalmente travando cantata
com a terra que o acolhia, esteve restrito ao con-
vívio e à visita dos centros urbanos que se moder-
nizavam, em especial Rio de Janeiro e São Paulo.
E como pensar um centro urbano sem um edifício
teatral digno, grandioso, condizente com os novos
tempos, e à altura dos ideais republicanos? A resposta O ato r francês Coquelin, em foto de 1907.
a essanecessidade foi a construção do Teatro Muni-
cipal do Rio de Janeiro e de tantos outros pelo Brasil um velho português, sr. Celestino':", que Sarah Bernhardt,
aforaI 4 2 • Porém, antes da inauguração desseverdadeiro Réjane, Coquelin, Duse, Suzanne Desprês, Guitry conhe-
monumento à República vale lembrar a importância ceram o sucesso do velho Brasil. Paradas noturnas, fanfar-
de uma outra casade espetáculos, o Teatro Lírico, que ras, carruagens, cortejos de estudantes etc 144 •
equivale no Rio de Janeiro aos teatros Politeama ou
o Sant'Ana na capital paulista. O Lírico esteve asso- A excelência dessa acústica, celebrada não so-
ciado a praticamente todas as turnês das companhias mente pelo artista francês, mas por inúmeros
estrangeiras,antes das atividades do Teatro ':Municipal visitantes, e sobretudo por aqueles ligados à pro-
do Rio de Janeiro, inaugurado em 1909. Lugné-Poe dução lírica, estava associada ao fato de que grande
escreveusobre o Lírico, chamando a atenção para sua parte da arquitetura do Lírico era composta por
avantajada dimensão e sua célebre acústica: elementos em madeira, inclusive a estrutura de
sustentação do palco, o que acarretou uma imensa
Quem não se lembra do antigo Teatro Lírico (apelidado de caixa de ressonância dada às grandes proporções
Barracão: laBarraquei, imensa sala de madeira onde foram do espaço vazio do porão do teatro, sob o palco.
acolhidas, outrora, todas as grandes trupes estrangeiras? A Sabe-se que quanto mais vazio, oco, for o porão
excelência da sua acústica era tão notória quanto os seus de um palco revestido de madeira, maior será essa
quatro metros de proscênio. Foi nessa sala, sob a direção de caixa de ressonância que faz, no dizer dos artistas
líricos, "correr a voz".

141 Au Brésíl, em Feuilleton du Temps, 6 de setembro de 1926. 143 Lugné-Poe deve estar se referindo provavelmente ao empre-
142 Para dar alguns exemplos: Teatro Amazonas em Manaus sário teatral português Celestino Silva que foi proprietário do
(1896); Teatro Alberto Maranhão, em Natal (1904); Teatro Teatro Apolo na rua do Lavradio, onde ainda hoje se encontra a
Deodoro, em Maceió (1910); Teatro José de Alencar, em Forta- Escola Celestino Silva.
leza (1910); Teatro Municipal de São Paulo (1911). 144 Idem, Ibídern.

• 39 0
• o Teatro no Pré-Modernismo

Em 1900, o Rio deJaneiro contava com onze crescente e dos segmentos dos profissionais liberais
teatros, sendo quatro deles pequeninos e de pouca e estudantes. Para a alta classe, a língua italiana es-
expressão'<. Os maiores eram o Teatro Lírico e o S. tava associada ao bel canto, portanto à cena lírica,
Pedro, onde hoje se situa o Teatro João Caetano, e ao passo que o idioma francês estava por sua vez
comportavam em média cerca de 1.300 espectado- identificado à literatura e à cena dramática.
res cada um. O Lírico, no entanto, de propriedade Como explicar a existência dessas companhias
particular, foi o principal palco das companhias estrangeiras no Brasil? Seguramente observando-se
teatrais estrangeiras - dramáticas e líricas - que os valores comportamentais, morais e éticos veicu-
visitaram o Rio deJaneiro no final do século XIX e lados pelo repertório apresentado, que orientava
início do xx. Essa casa de espetácuios, onde Enrico assim o gosto da elite local, reafirmando constan-
Caruso fez questão de se apresentar em 1903 com o temente sua posição receptiva ao universo cultural
Rigoleto, foi, desde sua inauguração em 1870, até a de origem europeia.
construção do Teatro Municipal, o edifício teatral Em seu livro, Roger Bastíde chama a atenção
de referência na cidade, o que acolheu os artistas para três aspectos que, segundo ele, estariam di-
mais ilustres da América do Norte e da Europa. retamente ligados ao processo de intensificação
das turnês de companhias estrangeiras pelo Brasil.
Em primeiro lugar, o gosto por espetáculos pro-
Companhia Dramática: venientes do exterior estaria associado à supressão
A Empresa em Turnê do regime escravocrata; o segundo aspecto estaria
ligado ao crescimento do processo migratório;
Nos dois primeiros decênios do século XX, foi como consequência deste, um último aspectO
visivelmente marcante a presença de companhias seria o surgimento de novos segmentos sociais no
estrangeiras no Brasil, circulando pelas principais interior da sociedade brasíleíra'v. Pensando nos ar-
cidades do litoral do país, a caminho da região gumentos de Bastide, poderíamos admitir mais três
do rio da Prata ou voltando de lá. Sobressaíram- vetores de natureza cultural que colaborariam no
-se as companhias dramáticas e líricas francesas entendimento da questão. Primeiramente, a adoção
e italianas; as companhias dramáticas e de zar- pelos membros da elite brasileira da língua fran-
zuelas espanholas; e as companhias lusitanas de cesa como segunda língua. Idioma dos negócios e
vários gêneros. Em menor número, registram-se da diplomacia, verifica-se que por detrás do valor
os conjuntos dramáticos e líricos de origem alemã simbólico da língua francesa estava uma tradição
em visita às recentes colônias instaladas no sul do histórica e cultural, a qual os membros dirigentes
país. O anúncio das companhias por gêneros era da então jovem república brasileira procuravam
um recurso natural, ligado a uma prática de entrete- assimilar, reafirmando cada vez mais os seus laços
nimento e lazer. Quando o anúncio da companhia ao difundi-la. Como foi dito, a Aliança Francesa
não estava associado ao gênero, via-se em destaque foi fundada no Rio de Janeiro em 1886, apenas
o nome de um grande artista que puxava a divulga- três anos após o surgimento dessa instituição na
ção do repertório da companhia. França. Um segundo vetor seria o espírito latino
As companhias francesas e italianas eram objeto que, em termos estritamente teatrais, encontra-se
de verdadeiro culto por parte da elite brasileira, nas matrizes da estrutura da comédia, gênero que
que se alimentava preferencialmente da cultura se desenvolve, se transforma e se influencia mu-
europeia. Apesar do grande analfabetismo nas ca- tuamente na França, Itália e Espanha e, por conse-
madas sociais desprivilegiadas, as línguas francesa guinte, no Brasil através de PortugaL Finalmente,
e italiana estavam presentes entre os diletantes, me- um terceiro vetor estaria associado à atração e ao
lômanos e habitués do teatro, membros das famí- interesse de ver no palco ateres de grande carisma
lias oriundas das oligarquias, da burguesia urbana e magnetismo pessoaL Esses artistas integram a

145 D. de A. Prado, História Concisa do Teatro Brasileiro, São


Paulo: Edusp, 1999, p. 169. 146 Art et Société, Paris: Payor, 1977, p. 99.

• 39 1
História do Teatro Brasileiro • volume 1

galeria de atores e atrizes "monstros sagrados" do não, os cenários eram confeccionados por enco-
teatro, como se referia a elesJacques Copeau. Com menda a artesãos locais nas próprias cidades visi-
atuações extraordinárias, fizeram carreira de reco- tadas, aproveitando-se o material cenográfico e a
nhecido sucesso pelos diversos teatros europeus mobília já existentes nos teatros, sobretudo em
em que se apresentaram no período pré-moderno. praças como o Rio de Janeiro e São Paulo, que
A empresa teatral em turnê estava associada a dispunham de mão de obra especializada. Em li-
uma rígida classificação segundo os gêneros: com- nhas gerais, trabalhando-se com telões pintados,
panhia de operetas, de zarzuelas; companhia dra- estes figuravam espaços exteriores e interiores
mática ou lírica, de comédias ou dramas, seguida conforme a necessidade da ação dramática; a de-
do nome de um artista notável que a distinguia. Por coração subdividia-se ainda em três categorias:
exemplo, Companhia Dramática Italiana Errnette clássica, para textos de Molíêre, Racine, Corneille,
Novelli. Havia ainda a classificação "companhia de Beaumarchais, ou até mesmo Shakespeare; his-
variedades': quando se tratava de uma artista como tórica, sobretudo para Victor Hugo, Alexandre
Loíe Füller, ou ainda simplesmente o anúncio do Dumas pai e filho, Edmond Rostand, Victorien
"transformista Aldo", uma atração especial dentro Sardou; atualidade, para peças de Henry Becque,
da programação oferecida por uma companhia de Henri Bataille, Henry Bernstein, Georges de
variedades. Outras vezes, o nome destacado era o Porto-Riche, Georges Courteline, entre outros.
do empresário ou do diretor da empresa, como no O repertório teatral das companhias dramáticas
caso da Companhia Lírica Italiana Sansone ou em turnê pelo Brasil, durante o período da Belle
como acontecia com as companhias do conhecido Epoque, constituiu-se preferencialmente de peças
empresário português Sousa Bastos. que retratavam a atualidade ou que se valiam de
Em geral, as turnês que passavam pelo Brasil, algum referencial histórico. Com exceção dos clás-
seja na segunda metade do século XIX, seja nas sicos, os autores citados acima foram largamente
duas primeiras décadas do XX, ou mesmo até os encenados no Brasil, depois de aprovados pelo pú-
anos 1940, estavam fortemente calcadas na explo- blico europeu. A produção dramática da época, no
ração de um repertório de sucesso consagrado nas caso das peças voltadas para a atualidade, procurou
grandes capitais europeias, particularmente Paris. sempre transpor para a cena, por meio de um estilo
Associado a esse repertório estava a figura de uma que mesclava o realismo ao romanesco, as tensões
vedete, masculina ou feminina, sendo que no caso oriundas da vida em família e em sociedade.
francês esse ator ou atriz era por vezes societário da Como se constatará mais abaixo, à medida que a
Comédie Française. Tal artista, um alto dignitário prática teatral assimila novas condutas éticas e estéti-
representante da Casa de Moliêre, não desprezava cas, o repertório das companhias em turnê se distan-
a possibilidade de uma renda extra com as viagens cia cada vez mais das matrizes do neoclassicismo e do
transatlânticas. E a empresa teatral que o convi- romantismo, vencidos pelo realismo/naturalismo.
dava, por sua vez, passava a desfrutar de um crédito Quanto ao período escolhido para se visitar a
a mais junto ao público local, pois ao repertório a América Latina, e consequentemente o Brasil, as
ser encenado ligava-se uma figura notável. empresas se organizavam para chegar pelo mês
Com apresentações nas quais era fundamen- de abril, permanecendo no hemisfério sul do
tal a participação do ponto, o restante do elenco mês de maio até outubro, isto é, durante o verão
muitas vezes era circunstancial e de segundo no hemisfério norte. Nesse período de quase seis
escalão; os papéis menores eram ensaiados ao meses, as companhias teatrais ou líricas podiam
longo da própria travessia do Atlântico. Estando já ter se apresentado em alguma capital do Norte
os figurinos a cargo dos próprios intérpretes, os ou Nordeste do país, antes de aportar no Rio de
cenários, quando transportados, configuravam- Janeiro ou em Santos em direção a São Paulo. Após
-se numa espécie de base sobre a qual era possível esse percurso, dirigiam-se ao sul, passando por
adaptá-los ao extenso repertório e aos variados cidades como Porto Alegre e Pelo tas, a caminho
locais das ações dramáticas de cada peça. Quando da Argentina e do Uruguai, região do rio da Prata,

• 39 2
+ o Teatro no Pré-Modernismo

localidades muito exploradas, sobretudo pelas com- turgos franceses representados na América Latina.
panhias espanholas que não perdiam muito tempo Quando do término de sua excursão pelo Brasil, no
se apresentando nas cidades brasileiras. No caso de momento de ser realizada uma prestação de contas
agenda disponível em teatros no Rio de Janeiro, com o seu empresário, o fundador do Théâtre Libre
São Paulo, Pelotas ou Porto Alegre, ao retornar afirma ter tido algumas dificuldades:
da Argentina e Uruguai as companhias apresen-
tavam-se novamente, anunciando espetáculos em Antes da minha partida, eu tinha tomado conhecimento
benefício, realizando reprises, récitas de "adeus" ou de que todas essas turnês de artistas franceses no Brasil e na
"despedida", antes de zarpar de volta à Europa. Argentina, levando o néctar do repertório, nuncapagava
Para ser bem-sucedida num empreendimento um tostãofurado dedireito autoraL. A propriedade literária
de longo prazo e, consequentemente, de alto custo não é minimamente protegida nesses exóticos rincões. E
e risco, a turnê possuía um organizador na Europa, eu fui espontaneamente até a Comissão dos Aurores [em
normalmente em Lisboa, Paris ou Roma, e um em- Paris] para chamar-lhes a atenção para esse assunto. Eu
presário ou concessionário luso-brasileiro nas cida- declarei a eles que não aceitava ir até lá [América do Sul]
des brasileiras, uma espécie de gestor económico para ganhar dinheiro com peças que não reportavam nada
do teatro, entre diretor artístico e administrativo. àqueles que as escreviam. E para todos os efeitos, eu levei
O primeiro encarregava-se de escolher, negociar Braga comigo diante da Comissão para obrigá-lo a tomar
e coordenar a vinda da trupe e ao segundo cabia providências justas. Devido a uma grande pressão de minha
preparar a acolhida local- teatro, imprensa, hos- parte, fiz com que ele concordasse em remunerar, ainda que
pedagem, deslocamento etc., sendo normalmente bem pouco, os autores, o que abriu um precedente para
ele mesmo o arrendatário de um ou mais teatros o futuro. Na hora de acertarmos as contas, ainda houve
na cidade. André Antoine no seu livro-diário, em alguns obstáculos e meu empresário se mordia mais do que
1902, relatou o início dos entendimentos, com um nunca, pois ele percebeu muito bem que de agora em diante
ano de antecedência, junto ao empresário portu- a coisa vai pegar'49.
guês que ia se encarregar da produção de sua turnê
prevista para junho/julho de 1903: Para se ter uma ideia do dinheiro envolvido nas
atividades teatrais do período, vale a pena passar
o visconde de Braga':", um grande empresário português, os olhos nos periódicos em que eram anunciados
e ao mesmo tempo diretor de vários teatros na América do os reclames das companhias em turnê, acompa-
Sul, me propôs, para o ano que vem, uma turnê do Teatro nhados dos valores dos ingressos. Por exemplo,
Antoine até lá. É a consagração suprema e talvez dê para ga- em O Estado de S. Paulo, de 14 de julho de 1909,
nhar algum dinheiro. Eu espero que a coisa possa se realizar, encontram-se vários anúncios de companhias
sobretudo sendo prevista com um ano de anrecedêncía-". teatrais, com grande destaque para três deles, por
conta de seu tamanho e da diferença nos valores
Uma vez que a Sbat foi criada somente em 1917, dos ingressos. Uma companhia alemã de opere-
a possibilidade de lucro era estimulada pela falta de tas anunciava que em breve estaria apresentando
fiscalização dos direitos dos autores estrangeiros, o espetáculos no Teatro Politeama e os preços dos
que beneficiava os empresários e as primeiras figuras ingressos seriam os seguintes: frisa 25$000; ca-
da companhia. A esse respeito, o mesmo Antoine marote 20$000; cadeira de Iii 5$000 e cadeira de
relata que teria tido problemas por discordar da falta 2 11 4$000. Na noite do dia 14, no mesmo Teatro
de pagamento de direitos amorais para os drama- Politeama ia se apresentar o legendário Charles
Le Bargy, integrante da Comédie Française, na
147 Segundo]. Galante de Sousa (op, cír.,v. II, P: 129-130), trata-
-se de Luís de Braga]únior, conhecido também pela alcunha de sua tradicional atuação em Le Marquis de Priola,
visconde de S. Luís de Braga, nascido no Rio Grande do Sul em com a empresa teatral cobrando, segundo os anún-
1854. Ele teria sido pontO e depois empresário teatral. Tendo
embarcado para Portugal por lá foi empresário e proprietário cios, os seguintes valores: frisa 60$000; camarote
do Teatro D. Amélia, vindo a falecer em 1918.
148 André Antoine,.i\tles- souuenirssurl'Odéonetle 'IbéâtreAntoine,
Paris: Bernard Grasset, 1928, P: 200. 149 Idem, p. 220.

+ 393
História do Teatro Brasileiro • volume 1

35$000; cadeira de 1ª 12$000; cadeira de 2ª6$000. cinematográficas nas décadas iniciais do século xx.
O interessante é que naquela mesma noite ia se Exemplo dessa condição de protagonista teatral
apresentar no Teatro Sant'Ana o não menos ilus- que passa ao cinema por conta de seu prestígio e
tre ator italiano Ruggero Ruggeri, acompanhado talento é o ator francês Charles Le Bargy. Em 1908,
de Alda Borelli, e para vê-los o espectador deveria quando foi inaugurada a Sociedade do Filme de
desembolsar os seguintes valores: frisa 40$000; Arte na França, esse societário da Comédie Fran-
camarote 30$000; cadeira 8$000; balcão Ii! fila çaise não só atuou na adaptação cinematográfica de
8$000; e demais filas 6$000; galeria 3$000 e geral L'rlssassinat du duc de Guise, cujo roteiro de cunho
2$000. Tais valores demonstram que cada artista histórico era do acadêmico Henri Lavedan, com par-
e companhia possuíam um preço relativo a sua titura musical de Camille Saint-Saéns, mas também
notoriedade, o que acabava gerando um ambiente a dirigiu. As peças teatrais logo adaptadas à forma
competitivo bastante acirrado entre a classe artís- do roteiro cinematográfico - como A Dama das
tica e os empresários. Camélias, Ruy Elas e lvlacbeth - foram também as
A questão económica que envolve as turnês não mais representadas pelos "monstros sagrados" do
se limitava aos percalços da relação autor-tradutor- período, nas excursões pelos palcos da Europa e
-empresário, como se nota pela experiência relatada Américas. Entre os artistas italianos destaca-se na
por Antoine com o visconde de Braga. Os valores cena teatral e no estúdio de filmagem a atriz Lydia
dos bilhetes sugerem um montante significativo de Borelli, aquela que melhor encarnaria o divismo
lucro, sobretudo no caso de lotação completa, e a daprima donna italiana, amando pela primeira vez
situação dos direitos aurorais precisava ser normali- no cinema em 1913, no filme Ma l'amore mio non
zada por uma legislação específica. O uso indevido rnuore, realização de Mario Caserini.
da propriedade intelectual alheia era só a ponta de Circulando pelo Brasil tivemos artistas dramáti-
uma prática complexa, composta por diversos mean- cos franceses, italianos, espanhóis e evidentemente
dros. A intensificação da vida artística foi definiti- portugueses. Entre os artistas franceses foram ha-
vamente marcada pelo viés comercial das relações bitués de nossos teatros artistas como: Sarah Ber-
económicas que acarretaram a profissionalização nhardt (1886,1893 e 1905); CoquelinAiné, (1888,
dos artistas. Esses fatos geraram uma discussão no 1890,1905,1907). GabrielleRéjane (1902 e 1909),
âmbito do direito auroral e o resultado concreto foi Suzanne Desprês (1903, na companhia dramática de
a publicação de uma série de manuais e livretos, do Antoine, e 1906); André Antoine (1903); Charles
gênero Código do Teatro na Europa. França e Itália Le Bargy (1909), lvIartha Régnier (1910, 1913),
passaram a balizar as relações contratuais, definindo Lucien Guitry (19II, 1912, 1916), Lambert fils
os direitos e deveres de artistas líricos e dramáticos, (1909), Albert Brasseur (1910), Maurice de Feraudy
empresários, diretores de orquestras, diretores de (19 08,19 29), Félix Huguenet (1913, 1915, 1918
teatros, agentes teatrais, advogados, e público't", e 1920), André Brulé (1914, 1917, 1918, 1930),
Germaine Dermoz (1919), Henri Bourget (1919).
Entre os italianos, destacaram-se: Jacinta Pez-
A Trupe e o Seu Protagonista zana (1882 e 1909), EleonoraDuse (1885,1907),
Clara Della Guardia (1899,1901,1903,1904,1909,
Os grandes expoentes da cena estrangeira, sobre- 1912 e 1913), Ermette Novelli (1890,1912), Tina
tudo francesa e italiana, são igualmente os artistas di Lorenzo (1906, 1908, 1913), Ruggero Ruggeri
que protagonizaram as primeiras experiências com Lídia Borelli (1909), Ema Gramática (1909),
Ermette Zacconi (1913,1924), Gustavo Salvini
150 Trata-se de uma séria extensa de publicações de cunho le-
(1907), Giovanni Grasso (1910), lvIartaAbba
gislativo dedicadas a organizar aspectos comerciais da prática (1927)I51. A Espanha mandou-nos poucos bons
teatral: N. Tabanelli,I1 codice deIteatro, 1901; Constanr, Codes de
tbéâtres, 1882; Buereau, Le TlJéâtre etla legislation, 1898; Dubox
e Goujon,L'Engagementtheatral, 1899, entre outros. Uma pes- 151 Dados colhidos em Lafayerre Silva,História do Teatro Brasileiro;
quisa mais detalhada em arquivos e bibliotecas brasileiras talvez idem, Artistas de Outras Eras, Revista doInstituto Histórico e Geo-
revele obras similares às estrangeiras. gr4fico Brasileiro, Rio dejaneíro, 1934, v. 169, p. 3-196; M. Nunes,

• 394
• o Teatro no Pré-Modernismo

artistas: Maria Guerrero-Diaz (1908) e Ernesto Vil- A atriz francesa


ches (1920). E entre os portugueses, apesar de eles Suzanne Despres,
não serem considerados aqui como estrangeiros, não na peçaPoil
de carrote,
poderíamos deixar de lembrar o nome de Eduardo de Jules Renard.
°
Brasão, célebre trágico português que inúmeras
temporadas realizou no Brasil. Algum mais?
No caso dos artistas e companhias francesas
que visitaram o Brasil no período de 1900 até 1922
pode-se claramente observar que são originários de
três ambientes artísticos-teatrais: o Teatro de Boule-
vard, herdeiro do Teatro de Feira; o Teatro Francês,
incluindo-se aí a Comédie Française e o Teatro do
Odéon; e o teatro moderno, que nasce com a criação
do Théâtre Libre por André Antoine e com as expe-
riências de Lugné-Poe e Firmin Gémier. Esse terceiro
ambiente cultural e artístico organizou-se em reação
aos dois primeiros, principalmente no campo da in-
terpretação. Seu trabalho será decisivo para a forma-
ção e desenvolvimento da noção de teatro de arte.
Já no tocante aos artistas italianos, percebe-se
que as trupes dos séculos XIX e primeira metade do
XX são organizadas segundo a cultura teatral her-
dada da Commedia dell/lrte, mas no lugar do ator
especializado em atuar com as tradicionais máscaras
encontram-se agora atores especializadosem persona-
gens-tipo. De um modo geral, o empresário é o capoco-
mico, ator que fica à frente do grupo e na liderança da
excursão. Como no sistema francês, verifica-seque as
companhias dramáticas eram baseadas num expoente
da cena do tipo "monstro sagrado': Os demais artistas
eram contratados de acordo com o physique du rôle
e, à semelhança do que ocorria no teatro. brasileiro,
assim distribuídos: primadonna,primoattore, uecchio,
ingenua, brillante, madrenobile etc.
Se até a década de 1920, a trupe estrangeira em
turnê se configura ao redor de um grande ator ou
de uma grande atriz, a partir dos anos seguintes isso
tende a mudar. Aos poucos, começa frutificar a ideia
que havia sido apresentada por Antoine em 1890,
quarido explicou como era a organização artística e
comercial de sua companhia, o Théâtre Libre:

o Tbéâtre Libre será constituído por uma trupe de 3 5 ar-


tistas de ambos os sexos, que receberão pagamentos anuais

40 Anosde Teatro, v. I;ScellaPacheco Werneck, Cinquenta Anosde


Teatro Francês no Teatro MunicipaldoRio deJaneiro (1909-1959),
Rio deJaneiro: Museu dos Teatros, 1975.

• 395
História do Teatro Brasileiro • volume 1
• o Teatro no Pré-Modernisrno

e desfrutarão de participações nos lucros. Os artistas in- exigia que ao menos uma obra brasileira constasse
terpretarão todos os tipos de personagens indicados pela do repertório dessas cornpanhias'"!'.
direção. - Os papéis principais serão interpretados alter- É claro que a iniciativa da prefeitura do Rio de
nadamente dentro da mesma peça por vários artistas. Os Janeiro fomentou certa relação entre os artistas es-
nomes desses artistas não aparecerão nunca nos cartazes trangeiros em visita e os autores nacionais, mas isso
públicos, os quais deverão comer simplesmente a hora do não modificou em nada o panorama teatral local,
espetáculo, a obra em cartaz e o autor dessa obra'!'. nem resultou na difusão da nossa dramaturgia fora
do Brasil. No máximo, a iniciativa trouxe satisfação
Evidentemente, a proposta de um teatro de aos autores contemplados pelas companhias estran-
equipe, sem estrelismo e sob o comando de um dire- geiras. Foi o caso de Artur Azevedo, que teve uma
tor demoraria alguns anos para ser assimilada junto de suas peças representadas antes mesmo da im-
à gente de teatro, vindo a se consolidar de fato na plementação da exigência da prefeitura. Em 1907,
prática do dia a dia, ao longo do tempo. O que se a companhia dramática italiana liderada por Tina
verifica é que Antoine formulou o modelo de um de Lorenzo representou junto com o seu repertório
teatro de arte que se edificará de fato na segunda a peça O Dote, que havia estreado apenas um ano
metade do século xx, como reação enérgica contra antes pela companhia de Dias Braga.
o culto do ater-vedete e seus privilégios. A partir de Também Clara Del1a Guardia representou tex-
então, o trabalho coletivo passou ao primeiro plano tos de Artur Azevedo e de outros autores nacionais.
e o espetáculo tornou-se o resultado de uma ideia Alguns outros exemplos desse expediente podem
central de encenação, esteticamente articulada. ser lembrados, a título de curiosidade apenas: em
A companhia dramática estrangeira e seu pro- 1917, a Companhia Dramática liderada por An-
tagonista, nos moldes tradicionais, estreitam suas dré Brulé, fez a leitura de Au Déclin du jour, de
relações com a cidade e com a comunidade teatral Roberto Gomes; em 1921 foi a vez da Companhia
do período, de duas maneiras principais. A pri- Dramática do Théâtre l'Athénée, de Paris, repre-
meira é a associação da imagem pública da grande sentar O 1vlilhafre, de Cláudio de Souza, com o
atriz da companhia dramática a um produto anun- título Oiseau de rapine; Coelho Neto com sua peça
ciado nos reclames de periódicos dirigidos às fa- L'Intrus (O Intruso) foi levado à cena em 1922 pela
mílias. Garota propaganda avant la lettre, a atriz Companhia Dramática do Théâtre du Vaudeveille,
Réjane figurou no anúncio do sabão Aristolíno na de Paris, tendo como primeiras figuras do grupo
revista O 1vlalho do ano de 1909. Claro está, a as- Germaine Dermoz e Victor Francen; em 1923,
sociação de um nome público de prestígio da cena Roberto Gomes teve uma peça representada pela
estrangeira ao produto nacional deve ter efeito Companhia do Théâtre de la Porte Saint Martin,
imediato sobre as vendas. A segunda maneira de de Paris, sem o nome de um grande artista que se
estreitar os laços com a cidade visitada era montar destacasse; em 1924João do Rio teve a peça Que
peças de autores brasileiros. Pena Ser só ladrão (Rien qu'un voleur! Qp-el ma-
Após a construção do Teatro Municipal do Rio lheur...) encenada pela companhia dirigida por
de Janeiro, em 1909, observa-se, no conjunto de Lugné-Poe; em 1925,]oão do Rio teve a sua Bela
peças representadas pelas companhias estrangeiras, 1vladame Várgas posta em cena pela Companhia
sobretudo no repertório das trupes francesas, que Dramática Victor Francen.
uma relação de reciprocidade acabou por se estabe- As representações dessas peças, contando com
lecer. Lugné-Poe, o diretor do Théâtre de l'oeuvre, o apoio do ponto, refletiam a preocupação das au-
explica na sua crónica sobre o teatro brasileiro que toridades em valorizar dramaturgos nacionais, que
era "tão difícil manter as salas sem repertório e sem assim teriam o aval das companhias estrangeiras. A
companhia nacional que a prefeitura do Rio, por representação de uma peça brasileira por uma trupe
exemplo, ao acolher trupes de língua estrangeira, italiana ou francesa refletia um reconhecimento e

152 A. Antoine, Le Tbéâtre libre, Paris/Genebra: Slatkine, 1979,


p. II2. 153 Lugné-Poe, Feuilleton du Temps.

• 397
História do TeatroBrasileiro • volume 1

um prestígio diferenciado em relação às trupes A imprensa brasileira consagrava um espaço


luso-brasileiras. Mas o fato é que essas representa- generoso nas suas folhas para as arívidades teatrais,
ções serviram apenas para acirrar os ânimos entre notadamente no período da presença de companhias
os autores brasileiros, que ficaram disputando entre estrangeiras. Os empresários mantinham relações
si a "honra" de serem levados à cena e os eventuais cordiais com a imprensa, e o movimento de chegada
benefícios econômicos. Prestígio para o dramaturgo e partida das companhias, bem como a cobertura dos
nacional, reconhecimento e incentivo ao valor local, espetáculos eram objeto de textos de escritores brasi-
pura demagogia para atender a uma cordialidade, a leiros de renome comoJoão do Rio, Artur Azevedo,
verdade é que o expediente criado pelas autorida- Oswald de Andrade, entre muitos outros.
des não serviu sequer para que as peças brasileiras O mês de março de 1900 iniciou-se com uma
fossem incluídas no repertório das companhias verdadeira catástrofe de repercussão mundial no
dramáticas estrangeiras. E a Europa continuou a âmbito das artes cênicas: o incêndio do prédio da
ignorar nossa dramaturgia. Comédie Française. Artur Azevedo, atento ao mo-
vimento teatral parisiense, lamentou enormemente
o acontecido que chocou a todos, em sua coluna
o Olhar da Crónica Teatral "O Teatro", no jornal A Notícia. Esse fato, aliado
aos festejos da Exposição Internacional de 1900,
Os vestígios da passagem pelo Brasil dos notáveis parece ter inibido a presença de artistas estrangei-
artistas europeus acima relacionados repousam ros no Brasil.
na crônica diária dos periódicos dos tempos pré- JáJoão do Rio, em 1904, comentando em se-
-modernistas, quando não havia ainda uma crítica tembro o término da temporada estrangeira na
teatral profissional e sistêrnica. A avaliação do espe- capital federal, ao deixar transparecer a preferência
táculo era ainda muito subjetíva, de cunho impres- pelos artistas de fora, em detrimento dos valores lo-
sionista e empírico, com tendência à descrição e cais, chamava a atenção para o fato de que naquele
um juízo de valor baseado no gosto do cronista em ano muitos artistas não tinham vindo ao Brasil:
relação à conformidade entre o gênero da peça -
burle ta, opereta, revista, peça de atualidade etc - e o mês último foi para o teatro o fim da season, da e§pção
a caracterização da cena. A ideia de uma cena con- em que chegam as companhias estrangeiras, da estação em
ceitual, ou mesmo de um projeto de encenação, que o carioca de luva de pelica e peitilho reluzente aplaude
como se pensa hoje, não era uma prática comum as notabilidades de além-mar com a ilusão de que ainda
nas primeiras décadas do século xx: ao contrário, há arte dramática no Rio, e é assediado por inumeráveis
naqueles tempos a cena era tributária de uma leitura cartões de benefício, e paga tudo achando o inverno um
conformada às convenções de gêneros específicos. regalo superior.
Um exemplo interessante desse anacronismo se deu Os empresários haviam anunciado pelos jornais a
na ocasião em que Antoine apresentou-se com sua tournée de artistas célebres e, à última hora, tudo mais ou
trupe no Rio de Janeiro. A compreensão que Artur menos gorado, a season, que se predizia magnífica, quase
Azevedo teve dos espetáculos revelou seu apego falhou. Zaccone, decididamente aterrorizado com a serô-
a uma visão passadista e conservadora: diante da dia propaganda dos argentinos contra a endemia da febre
experiência que Antoine oferecia com suas mon- amarela, não quis vir senão por um contrato fabuloso que
tagens baseadas em textos que procuravam fugir era quase o preço da sua preciosa vida; o grande Noveílí,
ao esquematismo da piêce bienfaite, ele irritou-se e ora em Buenos Aires, é quase certo não vir; e Coqueline
atacou o encenador francês em suas crónicas'>', Réjane, a princípio anunciados, não passaram de um blujfS5.

154 Sobre as divergênciasentre Antoine e Artur Azevedo que A ausência das companhias estrangeiras em 1904
geraram uma polêmica na imprensa carioca em 1903, podem-
-se consultar os seguintes estudos: Flora Süssekind, Crítica a pode, portanto, ser justificada em parte pelo alarde
Vapor,a Crônica Teatral na Virada do Século, Papéis Colados,
Rio deJaneiro: UFR], 1993 e]. R. Faria,Antoine no Rio,Idéías
Teatrais... 155 O Mês no Teatro,em Kosmos, n. 29, set, 1904.
• o Teatro no Pré-Modernisrno

da epidemia de febre amarela que fortemente com- palavras de Oswald de Andrade, sobre a atuação de
prometeu a cidade do Rio de janeiro, p0rto e pOJ:ta Grasso, expressões que são comumente empregadas
de entrada para muitas trupes. para caracterizar a figura do "monstro sagrado":
O jovem Oswald de Andrade, um dos futuros "potência mágica de expressão': "arrebata, domina
animadores da Semana de Arte Moderna, na sua e assusta". O inusitado é o equilíbrio constatado
coluna "Teatros e Salões" do jornal Diário Popu- pelo cronista entre Grasso, a vedete da companhia
lar da capital paulista, tecia a crónica e comentava e os demais artistas da trupe - "foram todos de uma
a atividade teatral de São Paulo. Em nota de 14 vibratilidade incomparável".
de maio de 1909, ele anuncia a vinda, em julho, Essa adequação do conjunto é importante de
do ator Charles Le Bargy, societário da Comédie ser destacada como um dos elementos da paulatina
Française. Não se tratava, porém, de todo o elenco transformação da prática teatral em turnê por parte
da Comédie, que só veio de fato ao Brasil trinta das companhias estrangeiras. Compare-se o caso
anos mais tarde, em 1939. Mas era um grande do conjunto equilibrado da companhia italiana de
acontecimento para a vida cultural da cidade. Grasso, em 1910, com o deslize relatado por Artur
Em 1910, ainda no Diário Popular, Oswald de Azevedo quando da primeira viagem de Sarah Ber-
Andrade celebra a presença em São Paulo do ator nhardt ao Brasil em 1886. Durante a representação
italiano Giovanni Grasso, que após passagem pelo de Fédora, de Victoríen Sardou, o colega de cena de
Rio de Janeiro, encontrava-se com sua companhia Sarah Bernhardt foi o ater Philippe Garnier, que
dramática no Teatro Politeama. A primeira peça re- atuava no papel de Loris Ipanhof O julgamento
presentada intitulava-se Feudalismo, de Guimara, e inicial de Artur Azevedo sobre esse ato r, em texto
era no dizer de Oswald "uma tragédia curta na evo- publicado no Diário de Notícias de 3 de junho de
lução do seu assunto, um caso passional intenso da 1886, foi o seguinte:
realidade, maravilhoso como observação, robusto
como drama de ensinamento social"I56 . O impacto Francamente: a impressão geral, produzida anteontem
da atuação de Grasso e o trabalho de conjunto da por esseartista, foi a mais desfavorávelpossível. No fim do
trupe são assim descritos pelo modernista: segundo ato, aguardávamos todos o terceiro, convencidos
de que o sr. Garnier cachaitsonjeu, reservando-se para um
A arte dele é de uma potência mágica de expressão. Sur- geral em copas, como se costuma dizer. Enganávamo-nos!
preende e arrebata, domina e assusta. Na cena final, o teatro O ex-pensionista da Casa de Molíêre disse com extrema
despertou num delírio fremente, comunicativo, arrebatador. correção a longa narrativa do assassinato de Wladimiroj
As outras figuras da troupe acompanham o grande artista mas infelizmente não passou disso. [...]
nas expansões livres das maneiras, na intensidade brutal dos Não lhe achamos sentimento, nem expressão, nem
sentimentos que interpretam. E toda a cena palpita, sofre, mesmo distinção de maneiras. O sr. Garnier (que a mui-
se move numa visão ardente de vida. O modo de sentir da tos pareceu mais Serafim]osé Alves que Garnier) diz:]e
companhia siciliana é a mais robusta e a mais viva manifes- t'adorel como quem diz: Ora bolas! Essas incorreções sur-
tação de arte teatral que se possa imaginar. Destacaremos, preenderam, desagradavelmente, mesmo aqueles que mais
portanto, os nomes de Marinella Bragaglia, J. Campagna, ou menos habituados estão com a declamação francesa.
Rosa Spadaro, G. Camapagna, Viscuso, Ângelo Musco e
Florio. Foram todos de uma vibratilidade Incomparável'v. Essa descrição de Artur Azevedo explicita o des-
compasso em termos de atuação entre a primeira
A praça de São Paulo concorria com a presença figura, masculina ou feminina da companhia, e os
ímpar de espectadores íralo-brasileiros que prova- demais artistas integrantes da trupe. Isso revelava
velmente correspondiam ao anúncio de compa- também que o espetáculo baseado no trabalho de
nhias que representavam na língua pátria. Há nas conjunto dos artistas não havia chegado ainda às
trupes dos grandes astros e que havia necessidade
156 Telefonema, 2.. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, absoluta de adequação do pbysique du rôle ao tipo
197 6, P· 8.
representado. Quanto ao segundo aspecto, vale
157 Idem,p. 9.

• 399
História do Teatro Brasileiro • volume 1

lembrar que muito do sucesso da atriz Réjane todas as minuciosidades, identificar-se maravilhosamente
deveu-se à facilidade com que encarnou tipos que com uma vida tão diversa da sua! Quem anteontem pode-
possibilitavam estabelecer uma relação direta de ria descobrir onde acabava a Réjane e principiava a Zazá?
empatia com o público.
Gabrielle Réju, mais conhecida artisticamente Se a observação de Artur Azevedo chama a atenção
por Réjane, foi um dos expoentes da cena fran- para a atuação da atriz, que fica entre a persona-
cesa, e sua trajetória artística denota igualmente gem-tipo (emploi) e o exercício da composição,
a complexidade do papel social desempenhado em outra crónica, estampada no mesmo jornal
pelos grandes intérpretes. Originária de uma fa- três semanas depois, a 24 de julho, o mesmo não
mília ligada ao mundo do teatro, ela se destacou acontece, apesar de ser mantido o mesmo tipo fe-
inicialmente por suas atuações no teatro de boule- minino. Agora nosso cronista destaca os figurinos:
vard, representando comédias e vaudeviles, como "agrande atriz só vê naqueles quatro aros o papel de
Madame sans-gêne (1893), de Sardou. Influenciada Sylvie: o resto pouco lhe importa... Demais, seria
pelo trabalho desenvolvido pelo 1héâtre Libre doloroso não mostrar aquela esplêndida coleção de
de Antoine, chegou até a representar com este a toilletes, cada qual mais digna de atenção". Apesar
Amoureuse, de Porto Riche, em 189 I e a Parisienne, de se manter no mesmo tipo feminino, o foco está
de Becque, em 1893. Alternando papéis de diferen- deslocado para a exuberância do guarda-roupa da
tes correntes estéticas, ela foi a atriz que na França atriz que desfila diante do público. Isto é, em pri-
interpretou pela primeira vez a Nora de Casa de meiro lugar está a figura da atriz-vedete que busca
Boneca, de Ibsen, em 1894. Em 1906 ela fundou ilustrar através de um comportamento ficcional a
o Théâtre Réjane, onde representou pela primeira sua condição de atriz social, modelo de comporta-
vez em Paris O Pássaro Azul, de Maeterlinck. mento feminino. Percebendo-a como atriz social,
Apesar dessa ousadia na escolha de um repertório encarnando comportamentos ficcionais que fun-
que acompanhava as tendências e as experiências cionam na trama da vida como paradigmas com-
estéticas mais significativas do teatro europeu na portamentais, Artur Azevedo sugere à atriz - na
virada do século, o repertório oferecido pela atriz crónica publicada emA Notícia, de 25 de setembro
aos brasileiros em 1902 teve sua tônica num certo de 1902, que se liberte do tipo aqui apresentado
conservadorismo associado a um tipo feminino para se afirmar num repertório mais artístico:
bastante divulgado, que seguramente deveria
agradar muitíssimo às plateias brasileiras: o papel Entretanto, se um conselho meu pudesse chegar tão alto, eu
da dama galante tendendo para o tipo cortesã':". diria à eminente atríz que de agora em diante abandonasse
Tida pela crónica teatral brasileira como a a sua curiosíssima coleção de cocotes, adúlteras e sernivir-
herdeira de Sarah Bernhardt e despontando como gens. A vitoriosa interpretação da Calmedu Flambeau veio
a atriz que encarnaria o espírito da Belle Époque, mostrar claramente que lhe estão reservados mais gloriosos
Réjane teve Artur Azevedo como testemunha destinos. A ilustre e brilhante plêiade de novos dramatur-
ocular de sua passagem pelo Brasil. Vejamos seu gos franceses lhe proporcionará, sem dúvida, o ensejo de
comentário, datado de 3 de julho de 1902 e publi- grandes criações modernas, que a elevarão ao apogeu da
cado emA Noticia: arte do teatro".

que delícia é ver uma artista excepcional meter-se assim na No tocante ao sucesso de Réjane, ao menos
pele de uma personagem, confundir-se com ela, estudar-lhe parte dele se explica pelo estatuto social da mulher
francesa que naquela época se instalou no Brasil-
158 O repertório de Réjane em 1902 era composto pelas seguintes
florista, costureira, chapeleira, modista -, corres-
peças: Zazd, de Pierre Berton: ida cousine, de Henri Meilhac; pondendo às expectativas do público masculino.
Sapho, de Alphonse Daudet; La Course du flambeau, de Paul
Hervieu; La Passerelle, de Gressac e Croiset; Le Demi-MondeeLa
A mulher francesa povoava o imaginário erotizado
Dameaux camélias, de Alexandre Dumas Filho; Sylvie et la curieuse dos espectadores, de modo que os tipos femininos
d'amour; de Abel Hermant: Diuorçons, de Victorien Sardou e La
Petitemarquise} de Henri Meilhac e Ludovic Halévy.
encarnados por Réjane, os quais estavam na base

• 40 0
+ o Teatro no Pré-Modernismo

de seu sucesso no Brasil, constituíam uma espécie se repetem entre as vinte peças de 1909 são apenas
de transposição para a cena teatral de um desejo cinco, os autores são na sua totalidade os mesmos
recalcado pelas estruturas arcaicas da sociedade nas duas temporadas. Essa associação autor-ator está
conservadora. na base da manutenção da condição artística e social
Em 1909 Réjane volta ao Brasil. Sua compa- do primeiro ator ou da primeira atriz da companhia.
nhia, a do Théâtre Réjane, foi convidada pela pre- Isto é, escreve-sesob medida para se exaltar as quali-
feitura da cidade do Rio de Janeiro para inaugurar dades inerentes do artista, numa situação dramática
a mais nova sala de espetáculos do país: o Teatro ficcional em que, entretanto, o artista será sempre
Municipal. As companhias líricas e dramáticas ele, acima da personagem.
estrangeiras, que antes se apresentavam no palco Voltando à crónica de 1926 de Lugné-Poe, vale
do Teatro Lírico, serão deslocadas para o novo destacar sua reflexão sobre os artistas e companhias
teatro nos anos seguintes, com um diferencial im- dramáticas francesas em turnê pelo Brasil, reflexão
portante: as temporadas serão oficiais, isto é, terão que em certa medida também é válida para os con-
a participação efetiva da prefeitura da cidade na correntes italianos:
promoção, seleção e acolhida dos artistas. Miranda
Neto, ao fazer a apresentação da brochura come- Quanto às turnês francesas, elas vão se tornando cada vez
morativa dos cinquenta anos de presença do teatro mais raras. Dario Nicodemi, com o excelente Vergani, pôde,
francês no palco do Municipal, refere-se à estreia graças ao apoio italiano, realizar excelentes excursões; ou
de Réjane nos seguintes termos: por outra, ele viaja com um material considerável de cená-
rios, é o costume italiano; já as trupes francesas, por sua vez
Quando o pano se abriu para o terceiro ato de Le Refuge, vêm ... com seus ateres. Seu repertório é considerado bas-
de Dario Nicodemi, na noite da estreia, havia um grande tante ultrapassado. Nossos artistas se adaptam dificilmente
jarrão de prata no fundo do cenário. Um jarrão que tinha à vidanômade. [...] Eles não são os responsáveis pelos defei-
história. Os estudantes cariocas, que choraram de emoção tos da nossa organização teatral. Um conjunto composto
quando Réjane encarnou Margarida Gautier no velho por uma quinzena de bons atores acompanhando uma ou
Teatro Lírico, quiseram que ela levasse alguma coisa mais duas vedetes não pode ser julgado admirável num repertó-
além do eco dos aplausos. Foram, reunidos ao seu camarote, rio improvisado, escolhido quase sempre por gente que não
quando a grande atriz embarcou de volta para a França. conhece nada sobre o país e que contratam esses artistas
Muitos anos depois o coração dos cariocas, simbolizado no para um trabalho improvisado, numa paisagem tão bela
dom estudantil, vibrava de novo com a grande Réjane que que nenhum viajante, por nada deste mundo, deixaria de
aos cinquenta anos era ainda o fulgor e a graça, a chama e a ir até lá trabalhar'<.
vida que dela tinham feito o ídolo de Paris. Abriam-se com
chave de ouro as temporadas do Municipal" 59• Essejuízo de um homem de teatro como Lugné-
-Poe não estava muito longe da avaliação de outro
Essa descrição nos dá uma ideia da medida do francês, desta vez um brasilianista. Georges Rae-
culto à vedete, ao "monstro sagrado" da cena, que ders afirmava, peremptoriamente, em artigo de
antecipa, índiretamente, o valor simbólico inerente 195816\ que "entre 1840 e 1886 nenhumacompa-
ao astro ou à estrela que estará na base da relação de
identificação - espectador/ídolo - explorada pelo hac e Halévy; La CoU?'Se duflambeau, de Paul Hervieu; Zazá,
de Pierre Berron e Charles Simon; Qui perd gagne, de Capus
cinema. Para a temporada de 1909, na inauguração e Veber; Suzeraine, de Dario Niccodemi; Le Roi, de Caillavet,
do palco mais importante do país naquele momento, Flers e Arêne, Le Souris,de Edouard PailIeron; Asile de nult, de
Marc Maurey; Israel, de Henry Bernstein; La Femme nue, de
a celebrada atríz reúne um repertório bastante seme- Henri Bataille: La Passerelle, de Gressac e Croisser: Raifies de
lhante ao da excursão de 190216°. Se os títulos que Hornung e Presley; Paris-Neto York, de Croisset et Arêne, La
Parisienne, de Henry Becque; Madame sans-géne, de Sardou e
159 Miranda Neto, apud S. P.Werneck, CinquentaAnosde Teatro
Moreau; Le Monde oul'ons'ennuie, de Edouard Pailleron; Sapho,
de Alphonse Daudet; La Dame aux camélias, Dumas Filho.
Francês no Teatro MunicipaldoRio deJaneiro (1909- I 959), Rio
deJaneiro: Museus dos Teatros, 1975, p. 2. 161 Lugné-Poe, op. cito

160 O repertório de Réjane em 1909 era compostO pelas se- 162 Le 'Ihéâtre français au Brésil,em Culture Françalse, Paris, ano
guinres peças: Le Refuge, de Dario Niccodemi; Lolotte, de Meil- VII, n. 4, 1958, p. 37·

+ 40 1
História do Teatro Brasileiro • volume 1

nhia dramática digna de nota teria vindo ao Brasil': atividades locais. A certeza da continuidade das
sendo, portanto, o marco inicial das turnês a vinda temporadas, que são alternadas entre companhias
de Sarah Bernhardt em 1886. Para Raeders, a elite líricas e dramáticas, inibe o incentivo local e o
brasileira ia ao teatro para assistir a certos "exer- desenvolvimento de valores nacionais, bem como
cícios familiares" dos expoentes da cena francesa, investimentos do Estado no setor artístico. Não
isto é: sem razão, veremos Artur Azevedo trabalhando
incessantemente, tanto pela construção de um
Sarah Bernhardt, alinhando as velas em torno do cadáver Teatro Nacional como pela formação de uma
emLa Tosca ou agonizando no último ato deLa Dameaux companhia oficial que pudesse ter como base uma
camélias; Le Bargy, no Marquis de Priola (suas gravatas, escola para os ateres brasileiros.
seus coletes ...); Coquelin ainé, na sua tirada do nariz do O projeto de construção do prédio do Teatro
Cyrano de Bergerac. O nome das costureiras que tinham Municipal, objeto de obstinada campanha por
vestido as atrizes figurava nas páginas dos programas; os parte do autor de O JvIambembe, deveria contem-
vestidos estavam à venda, e por vezes as atrizes também. plar um espaço específico para esse corpo fixo, que
Tratava-se, assim, das piores e mais pobres empresas co- nunca foi sistematizado, acontecendo exatamente
merciais, ou melhor dizendo de reuniões mundanas em o contrário: a construção de uma sala de espctácu-
que era chiese mostrar sob os seus mais belos atrativos, as los com a dimensão, pompa e luxo apropriados às
damas com suas joias mais brllhanres'<. companhias estrangeiras, isto é, um espaço à altura
da sua arte e prestígio. Também para a sociedade
As turnês estrangeiras e a atuação de artistas local, a velha elite imperial dos tempos do Lírico e
célebres parecem testemunhar um processo de mu- a burguesia ascendente, o prédio era um templo a
tação nas convenções teatrais. Isto é, o espectador serviço da sua celebração social.
brasileiro também ia ao teatro para poder assistir Portanto, dentro da eletrizante aventura das
a grandes momentos das representações, como turnês há que se ressaltar duas características dis-
sugere Raeders, ao chamar atenção para o ponto tintas: a esterilidade e a fecundidade em relação à
alto da atuação de Le Bargy, Sarah Bernhardt ou paisagem local. Até meados do século xx a turnê
Coquelin. Durante longo tempo o espetáculo estrangeira pelo Brasil não intervém de maneira
sobreviveu graças à atuação desses expoentes. En- significativa na comunidade teatral - técnicos e
tretanto, o equilíbrio na atuaçâo do conjunto dos artistas -, estimulando ou provocando a produ-
ateres também começa a ser perseguido, como se ção local. Evidentemente, todo discurso paralelo,
depreende das experiências de Antoine. sobretudo no tocante às paródias, às caricaturas, e
Assim, entre 1900 e 1920, e mesmo até mais outros meios de sátira, não está excluído, mas esses
ou menos 1941 e 1942, as companhias dramáticas exercícios de intertextualidade não configuram
estrangeiras em visita ao Brasil vão se notabili- uma transformação efetiva no âmago da prática
zar pela permanência de um modelo de trupe e teatral, sendo apenas comentários que a tangen-
de prática artística que poderíamos classificar ciam. A prática teatral brasileira só será afetada, e
como pré-modernos. As turnês das companhias por conseguinte provocada a reagir esteticamente,
estrangeiras europeias no Brasil dependiam dos pelas turnês que se sucedem após 1941- I 942, data
ateres e atrizes vedetes, ou "monstros sagrados" da passagem da trupe liderada por Louis Jouvet.
da cena, os quais nós poderíamos hoje comparar Poderíamos denominá-las turnês históricas por
aos cantores de ópera ou de rock. Intermediadas não deixar indiferente o ambiente cultural local
por um empresário luso-brasileiro ou português, e principalmente a comunidade teatral que a
essas companhias tinham como objetívo lucrar o acolheu, agindo como formadora de opinião no
máximo, em uma flagrante iniciativa de espírito âmbito das relações culturais e diplomáticas entre
colonizador, que subjugava o florescimento das as nações.

163 Idem, p. 38-39 .

• 40 2
VI.
a Teatro Profissional
dos Anos de 1920 aos Anos de 195 0

I. A RETOMADA sociedade naquele momento, as comédias, paralela-


DA COMÉDIA DE COSTUMES
mente à afirmação nacionalista, perseveraram na ri-
sonha tradição da crítica dos costumes iniciada nos
primórdios do Império, caracterizando-se como o
Estudar a dramaturgia da belle époque brasileira sig- gênero da crítica social por excelência, e tendo, no
nifica, em primeiro lugar, esbarrar com o relativo Brasil, diversos e felizes cultores.
desconhecimento das obras ali encenadas, produ- Foi, portanto, pelo viés da observação mais dis-
zido, sobretudo, a partir das proposições apresen- tanciada provocada pelo riso que os dramaturgos
tadas pelo movimento modernista de 1922, que brasileiros captaram, cada qual a seu tempo, os si-
relegava ao esquecimento toda a produção literária nais identificadores de determinados tipos que lhes
e dramática que lhe era imediatamente anterior ou eram contemporâneos e, através da ironia, da sátira,
mesmo contemporânea. do deboche, divertiram seus espectadores com a
Não é justo, entretanto, o olvido a que foram fina crítica de seus próprios costumes. Conheci-
submetidas tanto as obras como os escritores do mento técnico, fluência nos diálogos, habilidade
período. Com relação ao teatro, a leitura das pe- na construção dos textos, intimidade com a car-
ças - sobretudo as comédias - faz surgir a nossos pintaria teatral foram qualidades comuns à maioria
olhos o desenho crítico e divertido de um Brasil até dos escritores cómicos de nossa dramaturgia até os
então pouco conhecido, com um movimento artís- dias atuais, o que se explicaria, basicamente, pela
tico atuante e um conjunto de obras que demonstra inegável tradição côrnica de nosso teatro.
a continuidade de uma produção dramatúrgica pre- Entre as diferentes formas utilizadaspor nossa dra-
dominantemente cómica, popular, cujo objetivo é maturgia cómica, as mais populares foram, no teatro
a tentativa de decifrar, compreender e, sobretudo, musicado, as revistas de ano, as burletas, as operetas;
explicar o Brasil. e no teatro declamado as comédias de costumes. As
Quanto ao contexto dessa produção, os primei- primeiras tiveram em Artur Azevedo seu maior re-
ros anos do século xx caracterizam-se, principal- presentante; as segundas, iniciadas por Martins Pena,
mente, pela rapidez das mudanças sociais ocorridas, e continuadas por Macedo, Alencar e França Júnior,
cujo reflexo se observa na cena. Nesse sentido, cada entre outros, têm sido, ao longo de toda a nossa his-
gênero dramático encenado no país correspondeu tória teatral, a trilha por onde desfilaram com maior
a uma forma específica do espelhamento teatral: se felicidade os tipos característicos de nossa sociedade,
os dramas abordavam os conflitos vivenciados pela para as plateias brasileiras de todas as épocas.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Porque "Rir é oMelhor obedecendo, assim, aos mais tradicionais pressu-


Remedio" postos da comédia. O que não se lhe perdoou, por-
tanto, foi que o espelho, a imitação a que se tivesse
Se a trilha era a do riso, o caminho, entretanto, não proposto fosse da vida e dos costumes das plateias
foi só de flores. Embora bem aceita pelo público populares, e não do Brasil ideal que se queria in-
em geral, a dramaturgia brasileira sofreu sempre ventar. Desde Martins Pena, nossa comédia pôs
acerbas críticas da parte de nossa intelectualidade. em cena, preferencialmente, os roceiros, não os
O que fez, então, com que nosso teatro fosse conti- fazendeiros; os meirinhos, não os juizes togados; os
nuadamente apontado como superficial ou inócuo suburbanos, não os cosmopolitas; as "caíxeirinhas',
por seus analistas? É que nossa dramaturgia era não o high society. Assim, o ostracismo a que o gê-
voltada, sobremaneira, ao riso. nero foi relegado por nossa crítica explica-se mais
E por que esse desprezo pelo riso? Por seu apelo pelo preconceito com o gênero, ou melhor, com os
popular? Por seu confessado objetivo de agradar? modelos sobre os quais se debruçava, que por uma
Possivelmente, por tudo isso ao mesmo tempo, eventual falta de qualidades teatrais.
pois, assim como as artes trágicas, para Sócrates, E por que a opção preferencial pelas plateias po-
aquelas incluíam-se entre as "artes aduladoras, que pulares? Inserem-seaqui duas questões que explicam
não representavam o útil, mas apenas o agradável"I; ejustificam a escolha de nossos comediógrafos: uma
nossas comédias de costumes, para nossos intelec- delas é que, provavelmente, não conseguiriam con-
tuais, não possuíam nenhuma utilidade, sendo pro- quistar as plateias chies, cujo "europeísmo" era quase
duzidas com o fito único de agradar, e, o que é pior, atávico, se o ponto de vista de suas comédias não
agradar a um tipo de plateia que, aparentemente, fosse o daquele Brasil ainda a ser inventado. Aliás,
não exigia da cena mais que a pura diversão. mesmo que o fizessem, esbarrariam no preconceito
Quanto ao objerívo de agradar, este é, desde (também atávico) dos intelectuais contra qualquer
as primeiras observações aristotélicas sobre o tea- peculiaridade especificamente nacional em nossos
tro - e passando por Brecht em seu Pequeno Or- palcos, preconceito esse, de certa forma, explicado
ganam -, um dos objetivos dessa arte. Por outro no seguinte comentário de Raimundo Magalhães Jr:
lado, em relação à utilidade, desde Aristófanes,
um dos propósitos confessados da comédia foi o A aversão dos intelectuais de então pelo nosso teatro ou
de chamar atenção das plateias sobre os desvios, pelas medidas em seu favor era, em alguns, como em An-
os erros nos quais incorriam grupos sociais, vistos tônio Torres, o resultado de um preconceito de raça, de um
como um todo, ou determinadas figuras daquela complexo de timidez, de uma desconfiança na capacidade
sociedade. Sendo assim, para alcançar o objetivo de de nossa gente, de um espírito por assim dizer colonial,
correção desses eventuais desvios, a comédia, ne- muito embora tivesse rompantes de um jacobinismo uni-
cessariamente, deveria ser, como afirmava Cícero, lateral, dirigido quase tão somente contra os portugueses'.
"uma imitação da vida, um espelho dos costumes e
uma imagem da verdade'? tendendo a uma ligação O comentário ressalta exatamente os pontos-
direta e imediata com a plateia. -chave de nosso esnobismo intelectual: nossa elite
Em nosso caso específico, a comédia de costu- não nos perdoava sermos todos, de fato, miscige-
mes brasileira se propôs, ao longo de sua história, nados e não arianos, colonizados e não coloniza-
tanto ao objetivo de fazer rir, de agradar, quanto ao dores. Sendo assim, seujacobinismo voltava-se para
de corrigir, através da exposição ao ridículo, dife- a origem de nossas mazelas - o colonizador portu-
rentes desvios de conduta, também peculiares a gru- guês - e jamais para o mito, sobretudo francês, de
pos ou indivíduos que lhe fossem contemporâneos, civilização europeia.
Por outro lado, com relação ao preconceito
1 Friedrich Nietzsche, O Nascimento da Tragédia ouHelenismo
e Pessimismo, trad. de J. Guinsburg, São Paulo: Cia. das Letras, enfrentado pelo teatro nacional em geral, há que
I99 2,P·87·
2 Apud Vilma Arêas, Iniciação ti Comédia, Rio de Janeiro: 3 As ~Mil e Uma VidasdeLeopoldo Frâes, Rio de janeiro: Civi-
Zahar, I990,P. 18. lização Brasileira, 1966, p. II3.
• o Teatro ProfissionaldosAnos de I920 aosAnos de I950
Ora, se em seu próprio berço europeu, ponto de
se considerar, ainda, o ponto de vista disseminado origem das transfOrmações queviriam a caracterizar
pelos modernistas, de que até e durante a década o teatro moderno os encenadores, ainda em 195 o,
de 1920 nosso teatro dramático teria permanecido encontravam resistências, na França e na Alema-
"numa pasmaceira sem nome, vazio, sem público, nha, parafazerem triunfar asconcepções herdadasde
sem autores e sem ouvir falar da revolução estética Appia) Craige Copeau, é de fato injusto que aos ar-
na virada do século, com figuras como Stanislavski, tistas nacionais se tivesse tão amplamente cobrado
Gordon Craig, Appia e outros'", Tal ponto de vista, um tributo à "modernidade': que nem mesmo a
embora incorreto em vários pontos, foi bastante festejada sociedade europeia estava preparada para
difundido, levando a uma efetiva "má vontade" assimilar.
com relação à produção da época. A primeira das A segunda questão é inerente ao próprio gênero
inexatidões aí encontradas é com relação à "pasma- cómico, cujas intenções de crítica comportamental
ceira" apontada em relação ao teatro. Havia, sim, um são confessas e que, segundo Henri Bergson, exata-
enorme movimento teatral, embora não no sentido mente por isso, "é a única de todas as artes que tem
da literatura, mas no da teatralidade. É também ine- por alvo o geral'", e não o individual. Ou seja, se
xato mencionar o "vazio" teatral- já que se observa um dos objetivos da comédia é a correção de nossos
no período uma considerável produção e encenação inumeráveis desvios, é de sua natureza não apenas
de peças brasileiras -, mas mais falsa ainda é a evoca- tratar as personagens que retrata como tipos não
ção de uma eventual falta de público 5 ou de autores. individualizados - mas cujas características tornem
Essa avaliação do momento equivoca-se, por fim, ao facilmente identificáveis seu grupo de origem com
exigir uma atualidade ante as vanguardas estéticas seus erros coletivos ou particulares - como buscar
que tampouco a Europa apresentara em seu tempo. alcançar o maior número possível de espectadores,
A se considerar as afirmações de Jean-Jacques de modo a efetuar a intentada correção no maior
Roubine, as inovações propostas, por exemplo, número possível de desviados.
pelo suíço Adolphe Appia, no ensaio "La Mise en Para Bergson, "um defeito que se sinta ridículo,
scêne du drame wagnéricn", de 1895, apenas "nos procura modificar-se, pelo menos exteriormente" e
anos 1950-1960 viria(m) a ser a inspiração do a função da comédia seria a de apontar esse ridículo
novo Bayreuth". Nesse mesmo sentido, o estudioso de modo a, através do riso, promover a correção
afirma ainda que, assim como ocorreu no Brasil, do defeito:

a condenação daspráticasdominantesda épocapor alguns A comicidadeé aqueleaspectoda pessoapelo qual elapa-


intelectuaisdo teatronão teriasidopor si sósuficiente, por receuma coisa,esse aspectodosacontecimentos humanos
maisveemente que fosse, para fazersurgir as transforma- que imita, por sua rigidez de um tipo particularíssimo,o
çõesqueviriama caracterizar o teatro moderno.Seriamais mecanismopuro e simples, o automatismo,enfim,o mo-
exato, sem dúvida,dizer que essas transformações se con- vimento sem a vida. Exprime, pois, uma imperfeição in-
cretizaram de modo bemgradual, aliás, seconsiderarmos as dividual ou coletiva que exigeimediata correção. O riso
resistências que Vilar e \Vieland Wagnerencontraram, na é essaprópria correção. O riso é cerro gesro social, que
décadade 195 o, respectivamente na Françae na Alemanha, ressaltae reprime certo desvio especial dos homens e dos
antesde fazerem triunfarasconcepções herdadasdeAppia, acontecirnentos".
Craig e Copeau'',
Assim, o que se exprimiu em nossos palcos
foram justamente nossos desvios coletivos, es-
sencialmente cómicos, que suscitavam o riso -
4 V. Arêas, op. cit., P: 92 também coletivo - a propósito de características
5 O Teatro Trianon, inaugurado em 191 5, tinhacapacidade bastante peculiares (e risíveis) de nossa sociedade
para mais de mil espectadores. Considerando-se que era um
teatro particular, tal capacidade estava emconsonância comas e de determinados tipos que a ela pertenciam.
dimensões domercado aseratendido.
6 A Linguagem da Encenação Teatral (1880- I 9 8 o), trad. de 7 O Riso, RiodeJaneiro: Zahar, 19 83, p. 79.
YanMichalski, RiodeJaneiro: Zahar, 1982, p. 22. Idem.pyo.
História do Teatro Brasileiro • volume1

Para representar com a necessária eficácia as pecu- dentes, cujas obras eram, de modo geral, êxitos de
liaridades a serem ressaltadas e corrigidas, a forma bilheteria, explica, por sua vez, a maior facilidade
preferencial diante da qual se rendeu nosso riso de encenação encontrada pelos autores côrnicos,
foi a da comédia de costumes, que tem suas raízes nas primeiras décadas do século xx. Devido à re-
fincadas na Grécia Clássica, especificamente na conhecida popularidade do gênero, era muito mais
Comédia Nova, que insere características cotidia- viável para um empresário da época considerar a
nas no modelo clássico aristofanesco. possibilidade de programar, em seu teatro ou com-
Segundo John Gassner, a Comédia Nova seria panhia, a encenação de comédias nacionais do que
marcada pela "repetição de rapazes apaixonados a encenação de dramas. Por outro lado, num círculo
por moças, pais perturbados pelo comportamento de trocas, o fato de terem suas comédias encenadas
dos filhos, servos intrigantes que assistem a um ou fará também com que os dramaturgos nacionais pos-
outro lado e parentes perdidos há muito tempo"? sam cada vez mais aprimorar sua carpintaria a partir
e, além disso, pelo amor romântico, inexistente no das reações do público, ou mesmo de sua própria
teatro cómico até então. Assim, para esse autor, visão dos efeitos e defeitos do texto no palco.

o amor romântico, por muito tempo mantido fora do tea-


tro cómico, foi acrescentado ao estoque de situações dra- (La Vie en Roser
máticas e em breve passou a dominar o riso teatral, como
tem feito até os nossos dias. Acima de tudo, a comédia prin- Como se observa, é, portanto, da própria natureza
cipiou a empregar a arte da caracterização. As modernas da comédia, por seus objetivos primeiros, visar
peças de caracteres e comédias de costumes nasceram na antes ao geral que ao individual, para alcançar a
segunda metade do século IV a. C.10 pintura de tipos necessária à correção dos eventuais
drflitos sociais. Para possibilitar a identificação da
Outra inovação é que as personagens passaram a plateia com os tipos retratados, é fundamental, en-
possuir motivações mais individuais que suas ante- tão, que esses tipos guardem grande semelhança
cessoras da Comédia Antiga, além de comportar-se com personagens facilmente reconhecíveis da co-
"com uma plausibilidade que até então não preo- munidade e, sendo assim, o "desenho" da perso-
cupara os escritores de comédia"II. Será esse, com nagem teatral deverá se fazer, necessariamente, a
variações e adaptações, o formato geral de nossa partir dos traços mais externos ou, se preferirmos,
comédia, desde Martins Pena até o período aqui superficiais de seu modelo.
analisado. Ou seja, enquanto um autor, digamos, "trágico':
Ao iniciarem suas carreiras durante a Primeira assinala i ndívidualidades, o autor cómico assinala
República, Coelho Neto, Gastão Tojeíro, Cláudio semelhanças; o gênero de observação a ser utilizado
de Souza, Abadie Faria Rosa, Oduvaldo Vianna, na comédia será, portanto, o da realidade imediata,
Viriato Corrêa, Armando Gonzaga, Paulo de Ma- exterior, ou, como dirá explicitamente Bergson:
galhães e tantos outros contavam atrás de si com
uma real tradição no terreno da composição de co- É sobre outros homens que essa observação se exercerá.
médias, que, somada ao acentuado gosto popular .Mas, porisso mesmo, a observação assumirá um caráter
pela comicidade, auxiliará o aspecto de continui- de generalidade [...]. Porque, instalando-se na superfície,
dade das produções do gênero. não atingirá mais que o envoltório das pessoas, aquilo por
O legado de boa qualidade estrutural e a tra- onde várias delas se tocam e tornam-se capazes de se asse-
dicional abordagem temática de questões mais melhar. Não irá além disso. E mesmo que o pudesse, não o
cotidianas, deixados pelos comediógrafos prece- quereria, porque não teria nada a ganhar. Penetrar muito
fundo na personalidade, relacionar o efeito exterior a cau-
9 Mestresdo Teatro I, trad. de Alberto Guzik e J. Guinsburg. sas muito Íntimas, seria prejudicar e finalmente sacrificar
São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1974, p. 105.
o que o efeito tinha de risível. É preciso, para que sejamos
10 Idem, p. 10G.
U Idem, ibidem.
tentados a rir dele, que lhe localizemos a causa numa região

• 406
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

intermediária da alma. Por conseguinte, é necessário que o às necessidades dos não poucos espetáculos musi-
efeito nos surja no máximo corno meio, corno exprimindo cados ali apresentados.
urna humanidade mediana". Reinando isolado como o principal teatro do
Rio, desde sua fundação até os anos de 193 o, o
Isto posto, podemos concluir que a artificiali- Trianon foi disputado por todos os grandes ateres
dade das tramas, a superficialidade da observação, a e grandes companhias do período, e palco da apre-
trivialidade no tratamento dos temas, enfim, todos sentação das peças mais representativas do período.
os argumentos continuamente usados como mu- Por isso, não foi apenas um espaço privilegiado de
nição pelos detratores das comédias de costumes, trabalho, mas também o símbolo de toda uma ge-
tão ao gosto da época, não apenas são algumas das ração de autores e ateres, significando inclusive um
definições da Comédia Nova, surgida na Grécia, modo de fazer teatro de toda uma época.
como encontram-se na raiz da própria comicidade. Esse "modo de fazer" consistia, de maneira ge-
Tais características, presentes em nossa produção ral, na formação de uma companhia em torno de
cômica, não refletem, portanto, em absoluto, uma um grande nome - como Leopoldo Fróes, Abi-
eventual superficialidade inerente a nossos come- gaillvIaia, Jaime Costa ou, finalmente, Procópio
diógrafos, mas especificidades do gênero por eles Ferreira - que servia como polo de atração para
utilizado, dentro da mais pura tradição cômica. seus espetáculos, encenados por ateres especializa-
dos em papéis menores, cujas características eram
predeterminadas. Assim, cada companhia contava,
Um Gênero) um Teatro) uma "Geração" sempre, com determinados tipos de ateres:

Seria natural que o grande número de produções Entre os homens, por exemplo, um galã, um centro cô-
de comédias no Brasil significasse que sua quali- mico, um centro dramático, sem compurar os numerosos
dade fosse desigual, pois alia a esse dado o advento "característicos", encarregados de conferir pitoresco às
do cinema, que fez surgir entre nós o "teatro por chamadas pontas. Entre as atrízes, no mínimo, urna in-
sessões" - forma encontrada por nossos ateres e gênua, uma dama-galã (mulher já em plena posse de sua
autores para concorrer com a profusão de repre- feminilidade), urna caricata (as solteironas espevitadas) e
sentações possibilitadas pela cinematografia - e isso urna dama-central, que viveria no palco as mães dedicadas
de fato aconteceu. Assim, pela alta rotatividade de ou as avós resmungonas e compassivas".
peças a que se obrigavam as companhias nacionais,
e pelo excesso de representações diárias e semanais, Tendo essa conformação de elenco em vista, os
tornou-se quase incontornável certo descuido com autores do período escreveram suas comédias, em
a própria encenação dos espetáculos, grande parte para o Trianon. No palco desse teatro
Quase, Pois em meio ao delírio em que se trans- desfilaram os principais ateres e atrizes, pelas com-
formou a vida teatral nessa disputa insana, um panhias mais importantes do país, e foram apresen-
espaço se destacou especialmente, pelo cuidado tados os temas mais em voga no mamemo. Eis como
de suas produções, pelas possibilidades abertas a Paulo de Magalhães, um dos comediógrafos que
autores e ateres. começou sua carreira no Trianon e que seria muito
Inaugurado em 1915, no centro do Rio de Ja- encenado nos anos de 193 o e 40, resume a impor-
neiro, o Teatro Trianon foi construído para acolher tância desse teatro na vida cultural do Rio de Janeiro:
democraticamente o imenso publico da época. Seus
cerca de I 500 lugares distribuíam-se em plateia, o Trianon é a base histórica da comé.dia brasileira [...].
galeria, balcão simples e balcão nobre; e sua caixa Ali. triunfaram corno aurores: Cláudio de Souza, Flores
cênica possuía, além do amplo palco, o fosso de de Sombra; Abadie Faria Rosa, Longe dosOlbos, Gastão
orquestra ainda em voga nos teatros, para atender Tojeiro, Onde Canta o Sabiá; Oduvaldo Vianna, Manbâs

13 Décio de Almeida Prado, O Teatro Brasileiro Moderno, São


12 H. Bergson, op. cit., P: 87 Paulo: Perspectiva, 1988, p. 15.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

deSol; Viriato Corrêa, Bombonzinho; Armando Gonzaga,


Obras doPorto, comédia que sugere aquela que será
Calaa Boca) Etelvina; Paulo de Magalhães, O Interventor;
a maior característicade sua vasta obra: o flagrante, a
Henrique Pongetti, História de Carlitos eJoracy Camargo,
observação do fato imediato e sua exposição ao riso
O BobodoRei. Procópio Ferreira - o maior ator brasileiro de
coletivo. O tema de suas comédia s era sempre o
todos os tempos -, Leopoldo Fróes, Manuel Durães, Jaime
acontec imento mais recente, o "defeito" mais em
Costa, Apolônia Pinto, Lucília Peres, Abigail Maia, Belmira
voga, mais próximo da plateia - como a idolatria aos
de Almeida, Iracema de Alencar, Conchita de Morais, Elza
astros de cinema (Os Rivaisde George TiVálsh,As {(Fãl'
Gomes, Hortênsi a Santos, Ítala Ferreira, Regina Maura (hoje
deRobertTaylor), ou a guerra em curso ( OsAliados,
depurada Conceiçã o Neves) e Dulcina de Moraes firmaram
As Sogras dos Aliados...) -, tudo, enfim, que lhe per-
seus nomes artísticos no Trianon. A "Geração Trianon" criou
mitisse dirigir aos espectadores um espelho irónico
e deu continuid ade à comédia nacional e fez o trabalho pio-
em que vissem a imagem de seu próprio ridículo.
neiro de acostuma r o público a frequenta r os teatros'<.
Tojeiro escreveu, em geral, comédia s e vau de-
viles, e, sempre representado ao longo das décadas
de I920 e I930, suas peças eram garantia de su-
Uma Imitação da Vida} cesso para as compan hias e de boas risadas para o
um Espelho dos Costumes público . Entre seus textos mais conheci dos e en-
cenados no período, podemo s citar O SimpáticoJe-
Em sua aparent e trivialid ade, diversos foram os remias e OndeCantaoSabiá, ambos representados
desvios apontad os em nossas comédias durante as no Teatro Trianon , a partir de 28 de fevereiro de
primeira s décadas do século XX; entre eles, um dos I9I8 e de 9 de junho de I92I, respectivamente.
maiores foi, como se verá adiante, nossa falta de Numa época em que começa m a surgir os
sentime nto naciona lista. Inúmera s peças citam o grandes astros do teatro brasilei ro profissi onal
culto das aparências, outras criticam grupos e/ou (Procópio estrearia em I9 I 9), o protago nista de O
situações específicas. Mas uma das características SimpáticoJeremias - não por acaso, a persona gem-
do gênero, sempre present e nas obras da época, é -título - é interpre tado por Leopold o Fróes, papel
a punição desses defeitos ou desvios, das extrava- que o ator manteve em seu repertór io ao longo de
gâncias e excessos com a exposição das falhas ao toda a carreira. Jeremias é o criado que solucion a
ridículo. Enfim, nossas comédia s de costumes re- os conflitos que envolvem as outras persona gens,
trataram , de fato, os tipos, valores e modos de vida no mais puro estilo Comédi a Nova. A linhage m da
que merecia m ser observados e corrigidos, alguns qual descende é a mesma do Arlequi m ou do Sca-
dos quais comenta remos agora. pin, de Moliêre, figuras que se tornara m clássicas
Artur Azevedo, que em suas revistas de ano já na arquitet ura cómica.
deixara um imenso painel da vida carioca na virada Também espelho dos costumes da época é Eu
do século, também nas comédias de costumes con- Arranjo Tudo, de Cláudio de Souza, que narra as
tinua, como se viu em outro capítulo, a "pintar" o peripécias de Bernardo, um "faz-tudo" que confunde
retrato de seus contemp orâneos e suas idiossincra- todas as tarefas que lhe encome ndam mas, apesar
sias, com muita graça e conheci mento do ofício. disso, consegue sempre solucionar os problemas que
O mesmo se pode dizer de Coelho Neto, atento vão surgindo. A comédia estreou no Teatro Trianon,
observa dor dos desvios sociais que pune, inevita- em 22 de novemb ro de I9 I 5, e seu protago nista
velmente, com o ridículo inerente ao gênero. também se liga à tradição cômica do criado trapalhão
Entre os dramatu rgos que se afirmara m entre e inteligente, desenvolvida pela Commedia dell:Arte.
os anos I9IO-I9 30, Gastão Tojeiro - um dos mais No desenrolar da peça, são comentados diversos
prolíficos comediógrafos da Geração Tríanon, au- costumes da época, principalmente da gente de tea-
tor de cerca de cem peças - é o primeiro nome a tro - a protago nista é uma atríz famosa às vésperas
ser lembrad o, porque estreou já em I904 comAs da apresentação de seu benefício I 5• Entre os hábitos

14 Paulo de Magalhães, Antes queEu Me Esqueça: Memorias 15 Esperáculo cuja renda revertia inteira ou parcialme nte para
de
Copacabana, Rio de]aneiro : Tupy, I967, p. 23· o arar em questão. Segundo Miroe1 Silveira, o benefício era uma

• 408
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

dos bastidores, aparecem o aluguel das claques para Entre suaspeças que apontam o culto das aparên-
os aplausos finais e a rivalidade entre duas atrizes, cias como uma das principais características da belle
presente constantemente em nossa história teatral. époque tropical a serem apresentadas sob seu aspecto
Outro costume bem brasileiro, que não escapa à risível, temos a já citada O Ministro do Supremo,
exposição crítica do autor, é o da mania dos títulos, primeiro sucesso do comediógrafo de que temos
a respeito da qual o protagonista afirma perempto- notícia, cuja ação transcorre em torno do desejo de
riamente não ser "doutor" nem "coronel": "Sou o ascensão social de Ananias, sua mulher Genoveva e
único homem no Brasil que não tem título. Sou... a filha mais nova, Nini. Ao longo dos anos de 1920,
sou... só... 'seu' Bernardo!":" Armando Gonzaga foi dos comediógrafos mais re-
O vício do jogo, ainda permitido no Brasil na presentados, incrementando o cômico em vaudeviles
época da estreia, também passa pelo crivo da comé- como Calaa Boca) Etelvina (1925) ou retratando
dia. O segundo ato é ambientado no foyer de um os costumes, como em És Tu) Malaquias? (1927).
cassino, onde Bernardo observa os jogadores que Como se observa, portanto, os temas abordados
entram e saem das salas tentando sempre recuperar nas comédias comprovam o propósito efetivo de
o que perderam. descrição crítica dos tipos, situações e questões
O jogo, sobretudo o jogo do bicho, é, aliás, de seu tempo, na mais tradicional linhagem cô-
assunto recorrente nas obras do período. Entre as mica. E quanto à sua possível inconsistência nos
comédias que se referem a esse costume podemos "anos loucos" do pós-guerra - período frequente-
citar Deu oPavão, deJoão Pinho e OBicheiro, deA. mente apontado como frívolo -, pela especifici-
Elias da Silva, entre outras. Ambas foram encena- dade de tratar-se de um momento único na história
das em 1913, em São Paulo, no Bijou Salão. Sobre da humanidade, Miroel Silveira apresenta uma
a frequência de aparição do tema, pode-se mesmo razão inteiramente plausível para a possível opção
concluir, como afirma Miroel Silveira, que o jogo, de "desvinculamento" feita pelos amores da época:
"na ocasião deve ter empolgado os apostadores
tanto ou mais que hoje, a julgar pelo número de Queria-se uma vida urgente, cheia de sensações (jáque tí-
obras que a ele fazem referência":" nhamos escapado da hecatombe bélica mundial), vida onde
Entre os diversos comediógrafos do período a emoção, a reflexão, quase não cabiam. O dia seguinte não
destacaríamos também Armando Gonzaga, autor, pertencia a ninguém - era preciso aproveitar.
entre outras peças, de O Ministro do Supremo - A influência desse estado de espírito, que progressiva-
estreia no Trianon, a 5 de dezembro de 1921 - e mente se tornou dominante nos anos seguintes, vincou
de A Flor dosMaridos - estreia no Recreio, a 3 de fundamente nosso teatro, impondo-lhe o gosto pelas co-
março de 1922. Tanto quanto as de Gastão Tojeiro, médias cada vez mais ligeiras e inconsequentes, desligadas
as comédias de Gonzaga são estruturalmente bem quase sempre de raízes sociais, utilizando esquemas de tipos
armadas, com diálogos rápidos e fluentes, demons- padronizados - o marido bílontra, a esposa ciumenta, a
trando intimidade com a carpintaria teatral e,princi- empregada sestrosa, a vizinha faladeira etc. - funcionando
palmente, com o filão cômico. Os quadros sociais com o objetivo único de fazer rir, a qualquer preço",
pintados por esse autor são envolvidos por fina
ironia crítica incidindo, particularmente, sobre os Assim, podemos afirmar que o chamado "des-
comportamentos marcados pela hipocrisia ou pela compromisso': além de ser ma característica da
excessiva ambição. comédia, foi também uma forma de escamotear as
tensões provenientes das modificações ocorridas
"peculiaridade dos costumes teatrais da época, servindo para que
o ator, geralmente mal remunerado, além de louros e homenagens
no panorama mundial e a possibilidade de novos
obtivesseurna renda extra,vendendo para lucro próprio os bilhe- conflitos, o que não deixaria de caracterizar, nova-
tes que o empresário lhe entregava". A Contribuição Italiana ao
mente, o tipo de dramaturgia adorado, como um
Teatro Brasileiro: 1895-1964. São Paulo/Brasília: ~ron/INL,
I97 6,P·75· reflexo daquela sociedade, àquele momento.
16 Cláudio de Souza, Eu ArranjoTudo,Rio deJaneiro: Pimenta
de Melo, I920,P' 15.
17 Op. cit., P: 177. 18 Idem, P: 213-214.

• 4 09
História do Teatro Brasileiro • volume 1

De modo geral, portanto, a comédia de costu- fundamentos históricos no plano político (uma
mes brasileira cumpriu o seu papel, buscando cor- nação jovem tentando afirmar sua independência
rigir os desvios apresentados por nossa sociedade, frente às potências) e ligava-se, no plano literário,
e os comediógrafos nacionais foram efetivamente a um movimento pós-romântico mais amplo"?".
irônicos, críticos, enfim, precisos na caricatura dos De fato encontramos, em inúmeras obras do
tipos de seu tempo. período, referências diretas ou indiretas à questão
Poucas coisas são tão humanas quanto a sen- do nacionalismo. Em algumas delas, são apontados
sação ou o medo do ridículo, e é exatamente esse, os excessivos estrangeirismos utilizados no voca-
como vimos, o material básico da comédia. Nossa bulário brasileiro, em outras a valorização do país
sociedade, com seu culto da aparência, com sua é o tema do texto teatral e, finalmente, diversas
incondicional admiração pelo estrangeiro, prestou- peças abordam uma polêmica questão de nossa
-se demais a uma avaliação cômica. Lado a lado construção enquanto nação: o confronto entre a
com a consciência do aspecto burlesco de nossas tradição, representada pela estrutura agropastoril,
misérias, entretanto, transparecia geralmente em e os avanços trazidos pela modernização industrial.
nossas comédias uma compreensão quase fraterna
por parte dos autores, do ridículo a que se expu-
nham aqueles que os cercavam. Talvez tenha sido "Minha Pátria é Minha Língua))
exatamente essa humanidade, presente na comédia,
o principal fator a determinar que o gênero sempre A dificuldade de reconhecimento e absorção dos
levasse aos teatros, as sociedades por ela retratadas, valores nacionais, enquanto valores culturais, pelas
mesmo com a consciência de que o que lhes seria elites urbanas - que ainda buscavam identificar-se
oferecido seria a possibilidade de rir de si próprias. com os modelos europeus - e pela massa popula-
cional para quem essapreocupação, de certa forma,
inexistia, se deu entre outros fatores, por meio dalin-
"Brasil, Mostra a Sua Cara" guagem. Para essaselites, era fundamental demarcar
seu distanciamento do brasileiro comum, símbolo,
Se o espírito brasileiro de nossa dramaturgia já se ma- para elas, do atraso do país. E entre as possibilidades
nifestara em Martins Pena e nos autores que deram de demonstração dessa "sofisticação" à europeia o
continuidade à comédia de costumes, como França uso de palavras e expressões francesas entremeadas
Júnior e Artur Azevedo, nos anos deI9 I 0- I 93o ve- ao português foi uma das mais comuns.
mos surgir o país como o tema privilegiado do texto Nas artes, entretanto, o nacionalismo exacer-
teatral, e mostrado em geral como objeto de desprezo bava-se em todos os níveis. Percebe-se nas obras
por parte de sua elite urbana, sempre encantada com literárias, por exemplo, o claro objetivo de mostrar
modelos europeus. O ponto de vista da dramaturgia que as diferenças que apresentávamos enquanto so-
do período, no entanto, ultrapassa a simples crítica ciedade, em muitos casos, eram tão somente dife-
ao exagerado estrangeirismo no comportamento renças e não um estigma de nossa inferioridade ante
autóctone, passando a uma postura de valorização o mundo europeu. Segundo Wilson Martins, "a
do "produto nacional" em todas as instâncias. literatura brasileira da época deseja ser fortemente
Para Miro e! Silveira, essa tendência nacionalista brasileira e fortemente literária; ao 'conhecimento
se dividiria em três vertentes básicas: "a da tipifi- da terra, ao aproveitamento dos temas brasileiros,
cação do italiano imigrante [caso específico da acrescenta-se o postulado do conhecimento lin-
dramaturgia paulista], a da reação nacional regio- guístico e da riqueza idiomática?" .
nalista em torno do linguajar, da música e das per- Considerando que o movimento dramatúrgico
sonagens caipiras; e finalmente a da reação nacional se dá a partir da reflexão a propósito de questões
urbana"I9; ainda segundo Míroel, a reação "tinha
20 Idem, p. 121.
21 História da Inteligência Brasileira, 2. ed., v. 5 (1897-1914),
19 Idem, p. 117. São Paulo: T. A. Queiroz, 1996, P: 225.

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• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

que lhe são contemporâneas, é natural que a reação notas explicando o uso dos vocábulos nacionais,
sistemática de apologia do que era nacional fosse a razão de sua escolha e significado, bem como
transposta para o palco e se fizesse, entre outros justificativas para a utilização de alguns vocábulos
fatores, através da defesa da própria língua portu- estrangeiros cuja tradução não seria possíveL
guesa. Inicia-se assim, na dramaturgia, uma clara
campanha de defesa da língua pátria e, consequen-
temente, de crítica à excessiva utilização do francês "Brasil. Meu Brasil Brasileiro)
nas conversas em sociedade.
Já em peças do século XIX, como O Demónio Se a defesa do que é brasileiro, pela linguagem, é
Familiar (18 57) ou A Capital Federal (1897), visível nas peças acima assinaladas, pouco tempo
Alencar e Artur Azevedo ridicularizavam persona- depois, mas com igual intensidade, começam a
gens com a mania esnobe de usar termos franceses surgir obras em que se enaltece o próprio país, em
sem necessidade, em conversas banais. Outro autor textos que desde o título indicam o "retrato" do
que expressa sua avaliação nada lisonjeira da vida país que visam a abordar, como Na Roça (19 I 3),
na capital, pela crítica aos que inseriam o francês de Belmiro Braga, Nossa Terra (1917), de Abadie
em seu vocabulário, é Coelho Neto. EmQ.F-ebranto Faria Rosa,juriti (19 19) e Nossa Gente (1920), de
(1908), o autor enseja demonstrar que a degenera- Viriato Corrêa, Terra Natal (1920), de Oduvaldo
ção moral da alta sociedade carioca era diretamente Vianna ou Onde Canta o Sabiá (1921), de Gastão
proporcional à sua francofilia linguística. Na casa Tojeiro, nos quais se percebe claramente a neces-
onde se desenvolve a ação, a única moradora que sidade sentida pelos dramaturgos - principalmente
não aparece moralmente corrompida é dona Clara, depois da Primeira Guerra lvlundial- de descrever
cujos costumes são ainda "os de antigamente" e a terra brasileira, seu povo e costumes para as pla-
que, portanto, desaprova a algaravia das conversas: teias de então. Esse nacionalismo, que era colocado
"É isso, até a língua. Já a gente não sabe que língua
fala, é uma misturada que ninguém entende". ora em termos de regionalismo, ora de costumes urbanos
O bserva-se, na realidade, que a má compreensão e suburbanos, explica-se talvez pela dificuldade de comu-
da língua francesa é recurso cómico infalível em vá- nicações entre a Europa e o Brasil, por força da guerra de
rias comédias de costumes do século XIX, que per- 14, beneficiando-nos com um relativo isolamento, fecundo
maneceu nas primeiras décadas do xx. Cláudio de para o crescer de nossa indústria e para uma "olhada para
Souza, em Floresde Sombra, faz um dos empregados dentro': na descoberta e valorização do que era nosso'".
da fazenda responder à questão de um francês, inte-
ressado em saber se na fazenda tinha "sauoayes", da se- Ocorre que, tanto quanto os produtos industria-
guinte maneira: "Eu respondi que nossas terras eram lizados, as produções teatrais só eram valorizadas,
muito boas, que não davam só vagem; que davam por nossas "elites': até a guerra, se importadas. E
batatas, que davam milho, café, mandioca, tudo !"23 tanto quanto as outras importações, no entanto, as
Em Eu Arranjo Tudo (1915), do mesmo autor, companhias italianas e francesas tiveram interrom-
a defesa do que é nacional passa também pela ques- pidas suas excursões anuais ao Brasil em consequên-
tão da língua, ainda que subsidiaríamente, Logo na cia da eclosão do conflito. Essa ausência propiciou
primeira cena do primeiro ato, uma personagem às companhias nacionais dois fatores fundamentais
que diz "bouquet" é corrigido: "Diga ramalhete, de estímulo: bons teatros disponíveis nos meses mais
que é português">. E bastante interessantes são as disputados para temporadas teatrais e um público
rubricas do autor para os eventuais ateres ou ensaia- relativamente ocioso e, porranto, passível de ser
dores: ao longo de todo o texto da comédia existem conquistado pelas obras brasileiras, de temática na-
cional, o que vai, de fato, gradativamente acontecer.
22 Em Henrique M. Coelho Neto, Teatro Completo, Rio de
Janeiro: Funarre, 1998,P' 223.
23 Rio deJaneiro: Pimemade Mello, 1919,P.17.
24 Op. cít., P: I L 25 M. Silveira, op. cit., P: 121

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História do Teatro Brasileiro • volume 1

Na dramaturgia, com relação aos dois tipos de na- Onde Canta o Sabiá, de Gastão Tojeiro - cuja
cionalismo apontados por Miroel Silveira,observa-se trama gira em torno do antagonismo entre a franco-
que as obras regionalistas caracterizavam-se, entre filia de Elvídio e o nacionalismo de N air - insere-se
outras coisas, por serem ambientadas no interior do numa linha mais urbana desse movimento, sendo
país, tematizando situações também tipicamente ambientada numa casa de classe média de subúrbio
interioranas. (ao lado da linha do trem). Não faltam na peça nem
Entre as mais encenadas no período, Na Roça - re- a instalação próxima de um "circo de cavalinhos':
presentada em São Paulo no Bijou Salão, em 19I 3 - é nem o canto nativista de um sabiá (daí o título), ave
ambientada numa fazenda deJuiz de Fora, e traz para de estimação da protagonista, o que já dá mostra
o palco diversos costumes do interior do país, entre do tom de suas posições, reafirmadas, por exemplo,
eles o hábito das quermesses e festas de arraial. São com a frase: "brasileiros como o senhor, que têm
também retratados na peça os imigrantes (neste caso, prazer em falar mal de sua terra, achando que lá
os portugueses) que para aqui vêm, se estabelecem e fora tudo é melhor, podiam ir embora de uma vez,
criam raízes. Outra característica do regionalismo da que nenhuma falta fazem'?",
época, do qual Na Roçaé um dos exemplos, é que os A par da certeza da necessidade de valorização
textos tratam de costumes do interior, buscando sua da nação como um todo, a questão nacionalista
representação sem qualquer referência ou compara- traz em seu bojo, todavia, uma ambiguidade que
ção com a cidade grande ou a capital. vai se refletir no "espelho" dramatúrgico: a polari-
Também muito representada,juriti - estreia no zação, aparentemente incontornável, entre a visão
Teatro S. Pedro em 16 de julho de 1919 - traz para estabelecida que se tinha do Brasil como um país
a cena, entre outros costumes, as acirradas rivalida- inarredavelmente associado à tradição agrária, e
des políticas dos "coronéis" e o "bumba meu boi". o anseio por um país moderno, cujo processo de
Apesar de passar-se entre festas populares, cantos industrialização se avolumava, impondo novos
e danças, lembrando as comédias de Martins Pena, padrões de comportamento e relacionamento.
a peça de Viriato Corrêa, entretanto, já não exibe
mais o encanto dos interioranos ante os apelos da
capitalMuito pelo contrário, na única referência à (~u Võu pra
população da "cidade grande': juriti, a personagem Maracançalb«, Eu n«
central, expressa a nova mentalidade que se esta-
belecia, afirmando (na 9 il • cena do primeiro ato): Assim, a oposição campo-cidade, presente em boa
parte da literatura ocidental, aparece de variadas
A gente ama é o que tem vida, o que tem coragem, o que formas na dramaturgia brasileira. Poder-se-ia dizer
tem saúde, o que tem força. Não sei bem o que é. Mas é que transparece, ao longo de quase um século, a
uma coisa que os senhores da cidade não têm. Vocemecês alteração de um ponto de vista que, da admiração
[síc] lá são homens? Se apanham uma queda, adoecem, se inquestionável à corte ou à capital federal (a partir
apanham um chuvisco, vão para a cama. Nós aqui nos rimos de 1889), vai-se transformando em uma postura
da gente da cidade", quase oposta, nas primeiras décadas do século xx.
Nesse movimento, inúmeros textos apontam o
Assim, como se vê, o processo de valorização do confronto entre os dois "Brasis', traduzindo aquele
país que se estabelece vai abandonando a visão de que era um dos maiores impasses pelos quais passou
que a capital federal, por seu cosmopolitismo, era a sociedade brasileira da época: o da afirmação de
o espelho onde se deveria refletir a imagem do país. nossa identidade. A persistente presença das refe-
A reação nacionalista, entretanto, não se restringe rências às tradições do país e, principalmente,
às peças regionais. à sua população campesina, como objeto a ser
valorizado, expõe a dificuldade de absorção das
26 Apud Claudia Braga, Em Buscada Brasilidade: Teatro Bra-
sileirona Primeira República,São Paulo: Perspectiva, 2003, p.
12-13. 27 Rio deJaneiro: MEC/SNT, 1973, p. 29·

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+ o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 19)0

mudanças que se avizinhavam e assustavam o seus desvarios. Nossa Gente não tem, entretanto,
grosso da população. o ritmo quase revisteiro e bem humorado da peça
Nessa linha, uma das obras que melhor ilustra a anterior, traçando um retrato muito mais impie-
oposição campo-cidade éA CapitalFederal, de Ar- doso das personagens urbanas.
tur Azevedo, encenada pela primeira vez em 1897 e A peça constitui-se de dois núcleos básicos: a
frequentemente reapresentada nos anos seguintes. família do campo (tradicional) e o grupo da cidade
Dessa peça, pode-se dizer que a personagem prin- (cosmopolita). O confronto que se desenvolve
cipal é a própria cidade do Rio de Janeiro, cujos durante a comédia é direto e apresentado logo
habitantes e costumes causam transtornos terríveis no início do texto, com a afirmação do citadino
numa família interiorana. Gonzaga, de que "evidentemente um homem
Um pouco mais adiante, mas com o mesmo educado não pode viver no Brasil?", contra a qual
pontO de vista, estreia, em 22 de dezembro de a contestação vem, não por acaso, de um inglês,
19 I 6, no Teatro Boa Vista, em São Paulo, um dos John, de quem partirá o primeiro comentário a
maiores sucessos de crítica e de público da época: propósito do disparatado comportamento nacio-
Flores de Sombra, de Cláudio de Souza, cujo enredo nal - "Brasileira não conhece sua paiz! Brasileira
também trata do confronto entre os valores tradi- não faz caso de Brasil"30
cionais e a "modernidade" dos costumes represen- A semelhança de Nossa Gente com A Capital
tada pelos citadinos. Sua açâo, porém, se passa em Federal explica-se pela similaridade das situações
uma fazenda paulista, para onde está regressando, expostas em ambas as peças. Tanto em uma quanto
depois de anos de estudo na cidade, Henrique, o na outra, as personagens do interior, caracterizadas
filho único de dona Cristina. pela ingenuidade e honradez, envolvem-se com a
Após inúmeros "desencontros" entre os valores corrupção de costumes dos tipos da cidade grande.
cultivados pela mãe e as transformações operadas A leitura que se faz das peças, todavia, pode não
no filho - entre eles a substituição do respeitável ser a mesma. Textualmente, a fala final de Eusébio
retrato de seu pai, que enfeitava a sala, por um nu sugere que o "verdadeiro" Brasil está no campo.
artístico - a confrontação da civilidade com os tra- Para Wilson Martins, entretanto,
dicionais valores do campo revela-se desfavorável
para a primeira. Assim, Henrique volta para suas é curioso assinalar que, contrariamente à sua tese implí-
"flores de sombra" (a mãe e uma namorada de in- cita e à moralidade expressa no último quadro, a comédia
fância), que ali o esperavam e enfeitarão sua futura musical de Artur Azevedo consagrava não apenas a ficção
vida de fazendeiro". republicana da "Capital Federal" contra a antiga metáfora
Outro exemplo dessa vertente do nacionalismo monarquista da "Corte'; corno, ainda, confirmava o sentido
presente na dramaturgia da época é Nossa Gente, urbano da nova realidade brasileira contra o sentido rural
de Viriato Corrêa, que estreou no Trianon, em de suas tradições!',
19 de julho de 1920 e narra as dificuldades en-
frentadas por uma família interiorana, em sua E aí se estabelece entre ambas a maior dife-
convivência com a (sempre...) corrompida socie- rença: se a conclusão deA Capital Federalpermite
dade carioca. Nessa comédia, cujo enredo lembra interpretações diversas, a crítica à "modernidade"
bastante o de A Capital Federal, a família do in- inserida em Nossa Gente não deixa margem a dú-
terior também se esfacela temporariamente para, vidas. Através de Alberto, o dono da casa em que
tal e qual no texto de Artur Azevedo, reunir-se se passa a ação, o resultado do confronto é de
no final com a volta dos fujões, arrependidos de clara propensão à manutenção de um imaginário
no qual "o verdadeiro Brasil é lá" [grifo nosso],
28 Para se ter uma ideia do sucesso de Flores deSombra, peça que e não a cidade, onde se vive a "macaquear o que é
deflagra a revalorização dos costumes nacionais do interior entre
os comediógrafos do período, basta dizer que teve cinquenta re-
29 Rio deJaneiro: Braz Lauria, 1920, P: 12.
presentações em São Paulo e mais de trezentas no Rio deJaneiro,
no Teatro Trianon - números realmente expressivos para uma 30 Idem, P: 4I.
peça não que tinha o atratívo da música. 31 A Históriada Inteligência Brasileira, v. 5,P: 2.
História do Teatro Brasileiro + volume 1

Y
dos outros, dentro do artifício, a fingir o que não fi.mélia é que Era
sentimos"!". a Mulher de Verdade"
Conforme se observa, portamo, ao defrontar-se
a sociedade da Primeira República com a opção en- Como observamos, o início do século xx é mar-
tre o Brasil do passado e suas perspectivas futuras, cado por profundas transformações políticas,
a escolha recaía, quase unanimemente, na ideia de económicas e sociais, que se vão refletir em todos
país já estabelecida. os âmbitos das relações humanas, e, consequen-
Essa escolha encontra explicações sobretudo na temente, na dramaturgia, que ternatizará tais
nova conjuntura econâmica que ali se fundava: a transformações, redesenhando sua imagem em
constante defesa do Brasil agrário, em detrimento estágios diversos.
do país moderno que se avizinhava, pode ser com- Entre as modificações vividas pela sociedade
preendida como temor perame as transformações brasileira no período, encontra-se a alteração do
ocasionadas pela industrialização, cujas consequên- papel da mulher na família e na sociedade, que apa-
cias eram, de certa forma, imprevisíveis. rece como tema dramatúrgico desde o Império, em
Tais transformações, entretanto, mostravam-se A Emancipação das Mulheres (1852), de Antônio
inadiáveis. O início da Primeira Guerra Mundial, de Castro Lopes; ouAs Doutoras (1887), de França
provocando a interrupção de fornecimento de Júnior, cominuando a ser explorado na República,
manufaturados europeus para o Brasil, obriga- em peças como AlvIulher (1907), de Coelho Neto;
-nos, na prática, a acelerar um processo industrial A Herança (1908), de Júlia Lopes de Almeida; As
que até então avançava a passos relativamente Suftagistas (1916) de Domingos de Castro Lopes;
lentos. Os meios de produção de massa evidente- e JVo Tempo Antigo (19 I 8) de Antônio Guimarães.
mente modificam, em sua estrutura, o sistema de O ponto de vista a respeito do assunto, entretanto,
troca comercial e as relações de mercado. Com a altera-se sobremaneira.
ainda arraigada tradição familiar na política e nos Se emA Emancipação das Mulheres, as últimas
negócios, a sociedade vê esvair-se a ingenuidade, falas definem essa "emancipação" como "um sonho
ou o primitivismo até aí existente nas trocas de irrealizável e mesmo uma utopia ridícula'v', sendo
serviços e que dará lugar aos movimentos operá- o sonho de conquista de um novo status abortado
rios (como, por exemplo, a greve geral de 1917, no berço, em As Doutoras - cujo desenlace, entre-
em São Paulo), para os quais não está preparada, tanto, não difere muito do da peça anterior - já
e contra os quais tenta opor os valores e costumes temos as duas protagonistas diplomadas (uma
da tradição agrária. é médica, outra advogada), o que representa um
D iame da necessidade de afirmar para si própria início de assimilação das transformações que se
uma "identidade" brasileira e, impossibilitada de avizinhavam...
poder fazê-lo já a partir da pujança industrial, a O discurso subjacente a ambos os textos do sé-
sociedade volta-se para o campo onde, até então, culo XIX é, como se pode observar, o de que a co-
supunha-se estar os pilares, não só económicos, mas munidade, de cunho dominantemente masculino,
familiares do país. Assim, dividida entre a angustia excluía a mulher de uma efetiva participação na
freme às possíveis consequências desse "salto" para sociedade, forçando sua permanência em espaços
um outro Brasil e a necessidade de estabelecer a tão desenhados e planejados pela arquitetura mascu-
buscada brasilidade, a sociedade, pelo que se observa lina, ou seja, adequando-se a uma vida que não era
através da dramaturgia da época, opta por reforçar propriamente a sua. Como frutos de sua época, os
os bastiões que haviam sustentado o país durame textos endossam e difundem o discurso que ridicu-
todo o Império e que ainda cominuarão a mantê-lo lariza a mulher como partÍcipe da estrutura social,
nesse início de República: a estrutura agropastoril. reforçando a imagem de seu caráter sentimental.

33 Antônio de Castro Lopes, Teatro, tomo II, Rio deJaneiro:


32 V. Corrêa, Nossa Gente, p. 140. Tip. do Imperial Instituto Artístico, 1864, P: 295.

+ 4 14
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 195 0

No século xx, entretanto, outros enfoques se- E a Cena se Transforma


rão dados ao tema, que aparece em várias comédias
do período, abordado de diferentes perspectivas. Finalmente, resta salientar o papel desempenhado
Assim, em sintonia com as discussões em voga pelas comédias de costumes de Oduvaldo Vianna,
naquele momento, J.Vo Tempo Antigo - estreia no que se firmou no cenário teatral com TerraNatal-
Trianon, em 17 de julho de 1918 -, "alta comé- estreada no Teatro Trianon em 5 de maio de 1920.
dia" de Antônio Guimarães, apresenta defensores Escrita no momento em que o nacionalismo vinha
e detratores das conquistas femininas. A peça trans- motivando outros dramaturgos, como visto há
corre na casa de um religioso, que cria sua sobrinha pouco, a comédia bate na tecla da sátira ao costume
órfã, Maria Izabel, a quem dá uma educação liberal de se considerar maravilhoso só o que é estrangeiro.
o bastante para suscitar, de uma amiga, o comen- A valorização do campo e das pessoas simples do
tário de que ele "faria melhor não a deixando ler interior alimenta o enredo, centrado na transfor-
tanto". Ao que a moça, fazendo jus às novas aragens mação do americanizado Oscar em brasileiro que
de comportamento, retruca: "Isso! [para ser] a mu- ama sua terra. Como escreveu]. Galante de Sousa,
lher ignorante, a mulher manequim, feita para [o] a peça é uma espécie de
prazer e [a] vaidade do homem">'.
Outra comédia em que é tematizada a situação hino à grandeza e às possibilidades do Brasil, simbolizadas
da mulher é A Flor dos Maridos - representada naquele homem rústico que entrava numa das cenas para
no Recreio, em março de 1922 -, de Armando anunciar que a máquina do engenho voltara a funcionar,
Gonzaga, que apresenta diferentes posições so- consertada por um operário da fazenda, a despeito da opi-
bre o controvertido "crime pela honra', do qual, nião do engenheiro contratado nos Estados Unidos".
de modo geral, os maridos saíam impunes. Nesta
peça, durante uma festa, discute-se a conflituosa Ao longo dos anos de 1920 e 1930, Oduvaldo
questão, e também Armando Gonzaga alinha-se escreveu e encenou, ou fez representar, dezenas de
pela transformação dos costumes estabelecidos, to- comédias -Manhãs de Sol (1921),A Vida É um
mando o cuidado de inserir a situação num texto Sonho (1922), Última Ilusão (1923), Um Tostãozi-
teatral. Se uma personagem masculina afirma que nho de Felicidade e O Vendedorde Ilusões (193 I) -,
"pouco me importa que, em teatro, os maridos preferindo por vezes a forma curta do sainete, gê-
matem mulheres. [...] O que não quero é que se nero com o qual acreditava poder competir com
pregue a necessidade da mulher matar o homem': o cinema. Também nos sainetes fez a descrição
a resposta imediata que lhe é apresentada, de uma e a crítica dos costumes, como em O Castagnaro
mulher, é que "ou os cônjuges têm direito de matar da Festa (1927), na qual pôs em cena os tipos de
o infiel, sem distinção de sexos, ou então não têm imigrantes que habitavam São Paulo: italianos,
direito a coisa nenhuma". mascates árabes, alemães, portugueses, todos com
Assim, atuando como reflexo da sociedade seus sotaques e modos característicos.
que a cercava, as comédias não apenas operam Vale lembrar também que Oduvaldo foi um
a crítica humorística daquela sociedade, como empresário arrojado, e que esteve à frente de várias
discutem, como se vê, as lentas transformações companhias, sempre disposto a valorizar o repertó-
do código social não escrito, o que mais uma vez rio nacional e, mais importante, impor a prosódia
demonstra sua ligação imediata e atenta com o brasileira nos palcos ainda dominados pelo sotaque
vivido e/ou experimentado pela coletividade por lusitano.
elas refletida. Na virada dos anos de 1920 para 1930, em-
bora a comédia de costumes continue a ter bom
público, outras preocupações começam a atingir
os homens de teatro. A peça de tese ou o chamado

34 Rio deJaneiro: CasaA. Moura, [s.d.], p. 83·


35 Rio deJaneiro: Uni-Rio, [s.d.], p. 10 (cópia datilografada), 36 O Teatro noBrasil, v. I, Rio deJaneiro: MEC/INL, 1960,P' 242

• 4 15
História do Teatro Brasileiro • volume 1

teatro social, que terá em Joracy Camargo um dos enorme sucesso obtido pelo espetáculo, Amor..., in-
seus principais autores, como se verá no capítulo serida no esquema comercial do teatro da época-,
seguinte, ganha espaço nos palcos, assim como a não chegou a promover uma revolução no sentido
comédia ou o drama históricos. Nesse momento, de apontar um caminho novo para o teatro brasi-
também Oduvaldo começa a escrever comédias leiro. A peça é engenhosa, mas nem mesmo o autor
para defender ideias, dando destaque ao papel da deu continuidade ao seu aspecto experimental, de
mulher na sociedade, em termos progressistas, modo que as grandes mudanças estruturais no
como em Mas que Mulher! (1932), e à questão nosso fazer teatral amadurecerão apenas na década
do divórcio. Esse é o tema da peça mais lembrada seguinte.
do autor, não pelo que ela discute, mas pela forma
como o faz.
Amor. .., encenada pela companhia Dulcina- ({O Trem que Chega
-Odilon em 1933 consagrou a atriz Dulcina de é o Mesmo Trem da Partida"
Moraes no papel da ciumenta Lainha e chamou a
atenção para as novas possibilidades de escrita dra- Como vimos, a partir do imenso leque de trans-
mática e da encenação em nossos palcos. Quanto formações por que passamos, as primeiras décadas
ao tema, embora não consiga exatamente fugir do século XX caracterizaram o estabelecimento do
de uma representação um tanto forçada da vida a país enquanto unidade independente. Da mesma
dois - a mulher infernizando a vida do marido com forma, a dramaturgia da época, acompanhando a
seu ciúme doentio -, a peça inova ao estimular o sociedade que a cerca, inicia sua "proclamação de
divórcio, para que o casamento deixe de ser "um independência" e começa, pouco a pouco, a en-
negócio comercial, abençoado pela Igreja"37. contrar sua própria face, sua própria identidade,
Quanto à forma, o autor ousa bem mais. Na produzindo obras que contribuíram efetívamenre
escrita, ao invés dos três atos em que habitualmente para a construção e estabelecimento de nossa his-
se dividiam as comédias da época, Oduvaldo divide tória dramatúrgica própria.
seu texto em 38 quadros, apresentados num cenário Com relação ao gênero aqui comentado, cons-
fragmentado, que permitia uma representação si- tata-seque o conjunto de comédias produzidas com-
multânea, como descreve Décio de Almeida Prado: põem um vasto quadro da sociedade brasileira dos
primeiros anos do século, tanto pelos temas aborda-
o cenário dividia-se no sentido vertical e horizontal, dando dos, quanto pelos tipos desenhados. O nacionalismo
origem a cinco áreas de representação e permitindo ao es- que começavaa se fortalecer, as mudanças compor-
pectador, por exemplo, acompanhar uma ligação relefôníca tamentais, as transformações do pensamento e da
em suas diversas fases: primeiro, alguém fazendo a chamada, cena, tudo por que passou a sociedade da época, lá
a seguir, a telefonista atendendo, e, por fim, a campainha está, nas obras do período, formando o painel repre-
começando a tilintar no outro extremo do palco". sentativo de todos os aspectos de nossa sociedade e
de suas formas de se representar.
Além dessa inovação do espaço cênico, inspi- Assim, embora não trazendo inovações revo-
rada no cinema, também na iluminação Oduvaldo lucionárias, embora não buscando mais que ser o
experimenta, inserindo cortes de luz, até então reflexo crítico de seu tempo, a comédia de costumes
nunca utilizados em nossos palcos, para marcar foi a continuidade de um movimento teatral ativo,
transições de cena. atraente para as plateias de então, e o degrau onde
Apesar dessa tentativa de "livrar o teatro das se puderam apoiar as buscas de novas formas e es-
restrições costumeiras de espaço e tempo"39 e do tilos dramáticos nos anos que se seguiram.

37 Oduvaldo Vianna, Comédias, São Paulo: WMF Martins Fon-


tes, 2008, p. 502.
38 O Teatro Brasileiro .lvJoderno, p. 25-26.
39 Idem, p. 25.

• 4 16
+ o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 19)0

2. A DRAMATURGIA mais forte e autorizada do que qualquer outra': ou


distanciar-se do fato por se distinguir "desdenhosa
e aristocraticamente" do gOStO comum. Neste caso,
o estudo da dramaturgia produzida entre os anos prevalece o julgamento segundo o qual a peça "não
de 193 o e 195 o oferece uma oportunidade singu- conseguiu ultrapassar a linha que separa [...] as
lar de retornar a textos e espetáculos de autores que obras populares das obras de arte". A questão da
habitam o passado do teatro brasileiro. Ao mesmo celebridade de uma peça seria, ainda, problemática
tempo, torna possível dialogar com certas conside- porque instaura a dúvida quanto à sua permanência
rações críticas estabelecidas como verdades histó- no quadro de referência do cânone ("o êxito de um
ricas. Entre estas, destaca-se o julgamento expresso momento irá ou não se transformar no êxito de
pela visão historiográfica de Décio de Almeida todos os momentos ?").
Prado quando identifica, nessas décadas, certo De modo geral, predomina o desalento na
"gênero de teatro despretensioso artisticamente e apreensão do crítico-historiador sobre a década
de êxito comercial seguro". O diagnóstico do crítico de 193 o. É a época do atraso, do provincianismo,
é pautado por dois sentimentos - a decepção e o da falta de ambições artísticas. Não havíamos ou-
desconforto. Ele mostra-se decepcionado porque vido falar em encenador, não .secogitava a presença
está à espera de algo que não se vê. Assim, por do cenógrafo e o repertório repetia fórmulas das
exemplo, ao comentar Essa Mulher éMinha, de R. "pecinhas de costumes nacionais". Em contraste,
Magalhães Júnior, o crítico prescreve: a década seguinte é o tempo da evolução necessá-
ria, quando finalmente "progredimos muito e em
Retomar o pitoresco das vidinhas humildes dos subúrbios ritmo que tende a se acelerar". Entre o passado eo
ou das cidades do interior, injetando no texto uma dose futuro, desenvolve-se um teatro que estabelece uma
maior de veracidade psicológica e, na representação, todo forte ligação com as demandas do tempo presente,
o cuidado que se costuma reservar às grandes obras. Eis sejam elas as propostas pelas políticas do Estado
uma fórmula que poderia dar ao nosso teatro algumas Novo, sejam elas derivadas do motor da máquina
comédias de graça simples e verdadeira, embora sem a teatral ativada por inúmeras e poderosas compa-
profundidade de um Life with Father, por exemplo. nhias em atividade nessa época.
Se quisermos, então, criar novas vias de acesso
As qualidades insatisfatórias resultavam da preva- ao teatro feito entre os anos de 1930 e 1950, não
lência do teatral (situações forçadamente cómicas) podemos cair na tentação de repetir a hipótese
sobre o psicológico e o social, além do faro de tornar segundo a qual sua produção, tendo percorrido
vulto a força do criador sobre a criatura. Se a ênfase caminho oposto ao da literatura, está relegada a um
recai na criatura, como o crítico considera correto, confortável confinamento na história do teatro bra-
o riso viria "não diretarnente do ator" como se via sileiro. E se a saída para compreender o êxito seria
nos palcos de então, "mas da personagem, nascendo situar a peça na época em que foi escrita, também
da perspicácia posta na sua composição'w. não basta valorizar a capacidade da dramaturgia
Algumas vezes, a decepção é substituída pelo de se antenar com as ideias "que andavam pelo ar".
desconforto, quando a atividade da crítica exige Reposicionar essa dramaturgia na história do teatro
enfrentar a celebridade de uma peça (a sua imensa brasileiro, como um lugar propício e adequado, e
popularidade, sua tradução, sua adaptação para o não apenas de consolação, constituirá uma postura
cinema). Ao crítico, nesses casos, estariam reserva- crítica restauradora, por meio da qual os textos e
dos alguns riscos: ver seu julgamento silenciado, os espetáculos do período seriam percebidos no
já que "um êxito falaria por si mesmo, com voz horizonte de certa dramaturgia caudaráría, de um
modo de produção em que o autor se situa como
40 Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno, 2. ed., São Paulo: intelectual extremamente astucioso, trabalhando a
Perspectiva, 2001. As citações referem-se às críticas de EssaMu- arte teatral nos limites do conceito de práticas coti-
lherElvlinha, de R. Magalhães Jr., p. 79-8 I e DeuslhePague, de
Joracy Camargo, p. 45-51. dianas, entendido como propõe Míchelde Certeau:
História do Teatro Brasileiro • volume 1

um conjunto de "procedimentos" ou "esquemas de de achado precioso com promessa de inesgotabili-


operações e manipulações técnicas"!'. dade. Autores-míneradores seriam, então, aqueles
Para autores de teatro das décadas de 1 9 3o, 40 e que descobrem e processam estruturas drarnatúrgi-
50, corno Viriato Corrêa, Emani Fornari, Raimundo cas - personagens, temáticas, fórmulas de enredo,
Magalhães Júnior eJoracy Camargo, escrever textos desenhos cênicos que, urna vez apresentados ao
dramáticos faz parte de um cotidiano ocupado público, passam a admitir variações, desde que
por tarefas intelectuais, tais corno a atividade combinem a novidade com a repetição, de modo a
jornalística em periódicos de grande circulação, a serem percebidas, ao mesmo tempo, corno o novo e
participação em sociedades literárias e entidades o familiar. Os filões constituem formas arquivadas
de classe, o envolvimento com projetes de incentivo no imaginário popular que podem ser acionadas
ao ensino do teatro, a organização de companhias, a pela habilidade técnica de um escritor. Há, dessa
edição de suas obras. Também sob as normas da "ló- maneira, quem saiba a tal ponto fazer funcionar a
gicada prática': são comuns movimentos de migração fórmula, que se pode romper a relação do filão com
entre a literatura e o teatro, o teatro e o cinema, o tea- a jazida inicial e cria-se a ilusão de que se está diante
tro e o rádio, multiplicando e refazendo objetos de urna criação original de quem assina a obra.
para veículos diferentes, o que acarreta ampliação Considerando o conceito de filão mais fértil do
significativa de público. Fazer proliferar, repetir, que o de autor e obra para se mapear parte substan-
reprocessar são ações de que a inteligência lança cial da dramaturgia brasileira entre os anos de 193 °
mão para atender às demandas de produção e cir- e 1950, procura-se um caminho para a leitura de
culação de mercadorias. Assim, por exemplo, Viriato teÀ'1:OS teatrais deixando, propositadamente de lado
Corrêa (1884- 1967) foi jornalista de grandes diários o julgamento que, por um lado, aponta para a inca-
e de revistas, escreveu romances e contos, livros de pacidade do teatro de anunciar a grande revolução
história do Brasil para o grande público, literatura estética do teatro moderno europeu, e por outro, des-
infantil e peças de teatro, tendo sido eleito em 1938 preza a sua repelente camada conservadora baseada
para a Academia Brasileira de Letras. na manipulação dos gêneros populares. De modo
Trafegar entre tantos espaços de trabalho exige diferente, olha-se para esses textos procurando per-
que o amor teatral disponha-se a desenvolver urna ceber a extrema capacidade de se relacionarem com
tecnicidade de tipo particular, baseada em estraté- o presente da cena brasileira e de testarem modos de
gias que permitem explicar "algumas propriedades" funcionamento altamente produtivos, no sentido da
de "urna lógica da prática":". Sob a proreção dessa repetibilidade técnica. Assim, o engate no contexto
lógica da prática, abriga-se a produtiva exploração presente da sociedade, ou das correntes políticas e
de certos filões dramatúrgicos derivados de gêne- filosóficas em circulação, não está localizado exa-
ros de grande sucesso popular, corno os folhetins, tamente no conteúdo das falas que as personagens
o rádio-teatro e o cinema, e da imediaticidade do proferem em cena, mas na atualização permanente,
consumo por companhias de grandes ateres, que embora em grau astuciosamente controlado, das
detêm violenta capacidade de "devorar" textos". condições de produção e apresentação do trabalho
Destacamos, de imediato, alguns filões dra- teatral disponíveis. As peças, escritas para atender às
matúrgicos, recuperando o sentido dicionarizado demandas de repertório das companhias, em pouco
("Filão 2. Veio; Veio 2. Parte da mina onde se acha tempo chegavam às estantes em brochuras, num
o minera!"), cujo senso comum identifica a noção circuito de divulgação bastante eficaz, estimulado,
nos casos de Viriato Corrêa, Joracy Camargo e R.
41 A Invençãodo Cotidiano. Artes de Fazer. 2. ed., Perrópolís:
lvfagalhãesJúnior, pela ambição da posteridade que
Vozes, 1994, p. 109. todos experimentam corno membros da Academia
42 Idem, p. 120. Certeau transporta esses dois conceitos de Brasileira de Letras.
trabalhos de Pierre Bourdíeu.
43 A expressão é de Sérgio Viotti, referindo-se a companhias
Ao organizar esseconsiderável acervo de drama-
das primeiras décadas do século XX no Brasil, que substituíam turgia, alguns filões e suas variantes são descritos
semanalmente a peça em cartaz. Em Dulcina e o Teatro de Seu
Tempo, Rio deJaneiro: Lacerda, 2000, p. 55.
a partir de urna leitura serial no interior da obra

• 418
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

de um só autor. Outros filões, diferentemente, fre- necessidade de descrever os textos, atentando para
quentam textos de diferentes autores. No primeiro os recursos de comunicação imediata do ator com
caso, localiza-se um conjunto de peças de Joracy o público, que passamos a incluir na formação do
Camargo, que investe no potencial dramatúrgico código de comunicabilidade teatral do filão.
da personagem do nobrevagabundofilosofante) sa- Em O Bobo do Rei45) um milionário deprimido
bendo que outros filões também se constroem em traz para junto de si um habitante do Morro do
torno de trajetórias descendentes de personagens Querosene, mestre em fazer graças, por sugestão
que fazem da derrocada virtuosa ou da renúncia à de amigo, que lhe deseja melhorar o humor para
riqueza um grande trunfo de exemplaridade. usufruir de facilidades em futuros negócios. Aris-
No segundo caso, selecionando, transversal- tides, que logo se assenhora do lugar de "bobo do
mente, é possível reunir peças de Viriato Corrêa, rei': entra em cena e o código de comunicabilidade
Ernani Fornari, Joracy Camargo e R. Magalhães teatral já começa a funcionar pelo contraste entre
Júnior, que apresentam personagens e episódios o ambiente de riqueza e austeridade e a figura da
históricos, insistindo em variações dos filões, a his- personagem:
tória nospalácios e a histórianassalasde visitas, nos
quais se constrói uma forma peculiar de tornar espa- Aristides é o tipo do vagabundo esfarrapado, sempre de
cialmente íntimos os enredos da história brasileira. mãos nos bolsos e cigarro no canto da boca. - Olha com
indiferença para o luxo da sala e logo procura um lugar para
cuspir - como não encontra, resolve sair, mas para voltar
o Filão do Nobre Vágabundo ímediatamente'".

Comecemos com textos de Joracy Camargo que O segundo recurso dramatúrgico se estabelece pelo
remetem ao filão do nobre vagabundo filosofante. contraponteio do diálogo em perguntas e respostas.
A série tem início em 193 I com O Bobo do Rei e De início, o jogo é travado entre o homem rico e o
inclui, em sequência cronológica, DeuslhePague, de vagabundo, quando, então, o maltrapilho revela-
1932; O NetodeDeus,de 1933; Maria Cachucha, de -se rapaz inteligente e culto, colocando a sua verve
1940; e O Sindicato dosj'vIendigos, de 1942. Todas a serviço de verdades elementares, imediatamente
pertencem ao acervo que recebeu denominações tais reconhecidas como sentenças de "um grande
como "dramaturgia para ateres" (Sábato Magaldi), filósofo"47. São de fato verdades transfiguradoras
"teatro de comunicação sensível" (Mariãngela Alves porque provocam o desejo do milionário de adorar
de Lima)", Na perspectiva dos críticos, é possível uma nova família - o vagabundo e a irmã. Já in-
entender que Joracy Camargo foi o autor de Pro- cluído na esfera dos milionários, de roupas troca-
cópio Ferreira, assim como Fornari foi o autor de das e ouvidos atentos, o ex-mendigo percebe que
Eva Tudor e Dulcina de Moraes. Essa autoria de está metido numa trama de interesses, passando a
encomenda estabelece fortes laços de parceria en- "trabalhar" para regenerar os maus amigos do ho-
tre autor e ator, como se o atOr fornecesse um pré- mem rico. O jogo tem seguimento em sucessivas
-código para o autor desenvolver na trama, fixando rodadas de interrogações e assertivas, cujo objetivo
modos de atuar e papéis que se tornam praticamente é desafiar e alterar a convicção preconceituosa das
intercambiáveis. De tal forma, as personagens ficam personagens identificadas como burguesas. Ainda
impregnadas pelo modo de atuaçâo que parecem compõe, como terceiro elemento, o código de co-
finar-se com os intérpretes que as inspiraram. As- municabilidade, a história passada do vagabundo
sim, embora circule em livro, o texto cai no gueto filósofo que confere à sua sabedoria o aval da
do irrepetível, extremamente vulnerável a novas
45 Rio de janeiro: Minerva, 1937. A peça estreou em maio de
temporalidades. Tais pontuações redirecionam a 193 I, no Teatro Trianon, com a Companhia Procópio Ferreira.
E foi filmada em 1937 pela Sonofilms,segundo consta na folha
de rosto da publicação.
44 Sábato Magaldi, Panoramado Teatro Brasileiro, São Paulo:
Dífel, 1962; Mariângela Alves de Lima, Dionysos, 25. Rio de 46 Idem, p. 13.
Janeiro: SNT, ser. 1980. 47 Idem, P: 22.

• 4 19
Historia do Teatro Brasileiro • volume 1

experiência da derrocada, inscrita no corpo e na a recepção do público para a alta rentabilidade do


alma, mas corajosamente superada. filão - "Um mendigo! Um homem diferente de to-
Em Deus lhe Pague4 8, o filão permanece agora dos que procuram ser iguais aos seus semelhantes!
com apuro de certos recursos, já experimentados Como tudo isso é novo na minha vida!":'?
em cena na montagem do Trianon, e a introdução Entre os sucessos de Deus lhe Pague e de Maria
de uma inesperada solução narrativa, para trazer Cachucha, O Neto deDeus} de 193 3, constitui uma
à cena os acontecimentos passados e os aconteci- espécie de atalho mal desenhado na estrada aberta
mentos localizados em espaço diferente do cenário pelo filão. Querendo apostar na figura do milioná-
principal - a porta de uma igreja. Por um lado, rio excêntrico com visão messiânica, o texto retoma
constata-se que o mendigo, trabalhador cujo pro- a rodinha de personagens marginais: "Lázaro, o
jeto de invento industrial fora roubado pelo patrão maluco; Francisco, o velho mendigo; ':Maria Ca-
inescrupuloso, não precisa de interlocutores diretos chucha, a mendiga andrajosa e ridícula, pintada
a quem deve convencer para fazer andar o enredo. com exagero, e Cicatriz, tipo de criminoso lorn-
Desse modo, basta apenas uma personagem que brosiano, com uma cicatriz no rosto">. Embora o
ouve e indaga em cena, fazendo as vezes dos inúme- texto ronde a paródia de referências bíblicas - por
ros ouvidos sentados na plateia. Uma personagem, exemplo ao introduzir uma Madalena, que se con-
portanto, que minimiza a mediação da contracena, verte em seguidora do Neto de Deus, e ao tornar
projetando-se sua apresentação diretamente para Neto um suspeito de charlatanice, perseguido pela
o espectador. polícia -, não chega a concretizar o procedimento
A atualização do filão é ainda mais evidente de intertextualidade. Tudo se dilui num desfecho
quando leva à multiplicação da personagem prin- romântico e profano, quando Neto desposa Mada-
cipal e, em consequência, potencializa a exibição lena e dá aos agregados a liberdade de viverem sem
interpretativa do ator. Se na peça anterior a narrativa a redoma da fala doutrinária do pretenso Messias,
reflui para o passado através da rememoração de O autor forja personagens e testa o seu rendimento
Aristides, que lembra de sua infância, da experiên- em cena - a capacidade de surpreender e simulta-
cia da orfandade e do acolhimento do bom por- neamente agradar ao público, deixando para mais
tuguês, dono do armazém, aqui a narratividade adiante o apuro das falas, a conformação de uma
inclui, além do refluxo temporal, o deslocamento verossimilhança inusitada na dramática realista,
espacial. A dramaturgia cria uma zona nova de aquela que menos atualiza laços miméticos e mais
ação, em plano posterior ao proscênio - ocupado investe na recorrência, na imitação de modelos
com sequências em que o mendigo torna-se o jo- consagrados do universo teatral.
vem operário e, em outra cena, torna-se um velho Diferentemente do rascunho claudicante ante-
e rico, casado com uma bela mulher, assediada por rior, Maria Cachucha, de 1940, tira todo o partido
Péricles, moço mais jovem e elegante. Se o operário da extrema familiaridade que·o filão do mendigo
é a imagem do homem ingênuo, surpreendido pela filosofante já conquistara junto às plateias e aos lei-
maldade, o velho e rico esposo detém a segurança tores das sucessivasedições da peçaDeuslhePague.
de quem está blefando e joga as cartas numa aposta Há, no entanto, uma espécie de recuo na estrutura
sobre a fidelidade da esposa, favorecendo finan- dramatúrgica, concentrando a ação num espaço
ceiramente seu rival para comprovar as verdades único, com uma temporalidade sem quebras e re-
que propaga ao longo dos três atos. A revelação da cuos. O espaço cêníco, um salão de um jovem rico
identidade misteriosa do mendigo à mulher sela a e infeliz, torna-se o laboratório de observação em-
decisão final de Nancy, que parece também ecoar pírica de um caso médico ("Esse ambiente de luxo
seria o melhor hospício para Maria Cachucha"!'},
48 Joracy Camargo, DeuslhePague. Protagonizada por Procó- onde se cria um círculo de disputa amorosa. Paulo
pio Ferreira, a peça estreou no Teatro Boa Vista, em São Paulo,
em 1932. O texto foi apresentado em temporadas nas décadas
49 Idem, P: 147.
de 193°,40 e )0, no Brasil, e em Portugal, em 193), perfazendo
3.621 apresentações. ErnJalusa Barcelos, Procópio Ferreira. O 50 O Neto deDeus, Rio de Janeiro: Valverde, 194), p. 3 ).
ivJágico daE.;pressão, Rio deJaneiro: Funarte, 1999, P: 24. 51 Maria Cachucha, Rio deJaneiro: SNT/MEC,1974, P: 23.

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• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

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Joracy Camargo em 1940.

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História do Teatro Brasileiro • volume 1

e seus amigos trazem para o convívio uma perso- Sindicato dosMendigos": é o último exemplar
nagem exótica -!vIaria Cachucha, uma senhora de do filão. Nesse texto o autor experimenta algumas
cerca de cinquenta anos que vive como mendiga variações mais oportunamente ousadas.Mendigos
nas ruas sob os apupos de moleques, mergulhada encontram-se, não mais para encantar ou redimir
no delírio de continuar a ser uma dama da alta so- os milionários em suas mansões. Em uma casa de
ciedade. O código de comunicabilidade baseado cómodos, funciona uma espécie de instituição, que
no alto contraste - casa rica e gente entediada vs acolhe, organiza e protege os mendigos. As rubricas
corpos andrajosos e convicções firmes dos mendi- iniciais de cada ato inovam na concepção da cena,
gos - reaparece com a força do filão. que agora pode se organizar diferentemente da
Cachucha tem dois pretendentes eternos - um marcação de entra e sai do cenário de gabinete,
milionário e um mendigo, pai de sua filha Virgínia, de forma a incluir todas as personagens em áreas de
criada num colégio interno com as esmolas que os atuação diferenciadas, sem perder de vista a ideia
dois angariam nas ruas. Todo o enredo se constrói de coletivo de mendigos, todos eles marginais a
na expectativa da escolha amorosa, tema que serve menos que, embora pratiquem truques costumeiros
de pano de fundo para a defesado casamento contra para angariar a piedade do próximo, são doutrina-
o celibato. Dessa feita, a defesa de princípios morais dos para: dividir os ganhos e manterem-se unidos
desloca-separa o chão da comédia romântica dupli- em torno de uma liderança, disputada entre o Lu-
cada, ainda, com a disputa entre os dois jovens ricos sitano e o Presidente do Sindicato.
pelo amor de Virgínia, disposta na trama como filha A novidade aqui é a presença de boas e sim-
bastarda do mendigo. Assim, o filão do mendigo ples cenas de comédia, como as pequenas brigas
filosofante está aqui mais economicamente tra- e implicâncias entre os mendigos, que se chamam
duzido na perforinance do mendigo Francisco de Marmita, Cachacinha, Periquito, Passarinho, reu-
Assis, que atravessa os três aros da peça lutando nidos em seu singelo cotidiano pontuado ora de
com as armas da argumentação, para não perder ironia, ora de ingenuidade. No entanto, esse novo
Maria Cachucha para o milionário. Um mendigo enfoque, digamos mais social sobre a personagem
convicto e inabalável como o da peça anterior, em- que sustenta o filão, combina-se com uma estra-
bora amenizado pela ausência das assertivasde teor tégia de controle de risco - o reaparecimento de
antiburguês que conferiam ao sucesso de Deuslhe personagens de Deus lhePague: o mendigo prin-
Pague a inclusão no rol das peças filosóficas, torna- cipal retorna na pele do Presidente do Sindicato,
-se acentuadamente patético em sua expectativa de novamente senhor do ideário da boa mendicância;
fazer a mendiga renunciar à oferta do conforto que Maria entra em cena como mulher de juca, desa-
o antigo milionário lhe oferece. parecida depois de enlouquecer; Nancy volta à
Há um clima de cruel teatro de títeres pre- história sem função clara, misturando a imagem
sente em todo o filão e que no texto de Maria de mãe dos pobres com a de fútil esposa que vive
Cachucha encontra-se muito bem atualizado. As das mesadas auferidas na mendicância. Interessante
personagens exóticas são bonecos de papel, cujos é observar, então, que o texto, ao não apresentar
fios estão nas mãos dos poderosos. No entanto, um final esperado pela face melodramática do
com a sua única arma - o discurso das verdades filão - o reconhecimento pelo Presidente de sua
banais -, adquirem humanidade pungente, colo- primeira mulher, o encontro face a face entre as
rida e acentuada pela variedade de argumentos e duas mulheres, que estão envolvidas na vida do
de tons utilizados na enunciação de suas falas. A mendigo da peça anterior - aponta para a pers-
personagem Francisco de Assis ao final perde ína- pectiva de continuidade da história, recurso tipi-
pelavelmente Maria Cachucha, sua companheira camente folhetinesco e de alta rentabilidade. Além
de dura e poética vida nas ruas da cidade. Mas
52 Sindicato dosJ.Vfendigos, Rio dejaneíro, Dom Casmurro, n. 7,
o traçado ficcional sem reviravoltas, que marca 1945. Estreia em 5 de agosto de 1942 no Teatro Santana, em São
a fixidez do filão, está pronto para, com extrema Paulo, com a CompanhiaJoracy Camargo. No Rio deJaneiro, a
estreia é em 23 de julho de 1943, com a CompanhiaJaime Costa,
eficácia, funcionar sem riscos. no Teatro Rival.

• 42 2
• o TeatroProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

disso, observa-se a autonomia da personagem do nheiros de botequim, ao fim do 2 2 Ato, Fernando


mendigo em relação a seu criador original, o ater sintetiza, doutrinário: ''A luta... exige um adversá-
Procópio Ferreira. Interpretado pelo autor Joracy rio ... e como a vida não é inimiga de ninguém...
Camargo na temporada da peça em São Paulo devemos concluir que não se deve lutar... contra
e, depois, por Jaime Costa, no Rio de Janeiro, o a vida... (pausa - Fernando vai adormecendo)".
mendigo está pronto para reproduzir, a despeito de A "filosofia da cachaçà', ridicularizada pela
frágil e, neste caso, caric~ta faceta de líder político, plateia dos apreciadores do copo de aguardente,
uma das figuras mais emblemáticas do individua- segue produzindo bifes para a personagem destilar
lismo moderno: o renunciante, e abrir mais uma via sua incapacidade de agir e o ator exibir sua perfor-
de permanência do rico filão no teatro brasileiro. mance de diseur:
O fracassado virtuoso é personagem que cons-
titui o centro de desdobramento do filão anterior Já vê que sou mais feliz que o senhor, pois tenho essa cer-
com um novo componente: o elogio do sofrimento teza. Enganam-se os que pensam que sofro com as injustiças
e da fé, como uma espécie de passaporte para a dos homens. São ingênuos aqueles que se revoltam contra o
extremada virtude, e encontra em Anastácio», de sofrimento. Não sabem que viemos ao mundo para sofrer.
1936, o seu pomo alto. O texto é construído em
três ates e seis quadros, no decorrer dos quais a O fim do abismo é uma nova prisão pela suspeita
personagem principal, Fernando, desce a riban- de um roubo de castiçais de prata de uma igreja do
ceira da sociedade, espacialmente indicada pelos centro da cidade. O desenho da cena é construído
ambientes em que se desenrola a ação: salão lu- num crescendo: os frequentadores do botequim
xuoso, quarto pobre de pensão, "interior de uma aguardam a revelação da verdadeira identidade de
moderna penitenciária" e, finalmente, "interior de Anastácio; a "música de órgão tubular': vinda do
um botequim sórdido, do tipo universal': onde, rádio, vai aumentando, enquanto a polícia indaga
além de todo o mobiliário típico, há "um piano e prende. A personagem sai de cena lúcida e exul-
velho, desdentado, encostado à parede do fundo". tante com a sua miséria:
A peça mostra a traj etória de um filho de imigrante,
que enriquecera através do trabalho no comércio FERNANDO (a música aumentando) - Mas ainda não é
até tornar-se banqueiro, passando a presidiário e tudo! Ainda não sou e cada vez mais serei o Anastácio!
pianista de botequim; abandonado pela esposa, O Anastácio pode ser preso! O Anastácio pode ser enxo-
completamente sozinho após a morte da única valhado! O Anastácio pode ser injustiçado! O Anastácio
irmã, assim se apresenta o calvário da personagem. tem o seu destino! O destino do seu nome que, depois de
A figura, cujo nome - Anastácio - homenageia um tudo, será sempre o mesmo: o Anastácio! Sou o Anastácio!
amigo bêbado, é demonstração de um princípio O que perdeu quase tudo! Mas não perdeu tudo! Perdi
muito caro ao melodrama - "vale quanto sofre".Se, agora a liberdade! Perdi talvez os últimos amigos! Posso,
a princípio, Fernando poderia ter parentesco com o até, ter perdido o juízo! Mas não perdi a fé! Não perdi a fé!
maj or Policarpo Quaresma, 'de Lima Barreto - por Não perdi a fé! (O Investigadorpuxa-o parajàra dopalco
ter investido, ancorado em crença nacionalista, o e caiopano).
capital do banco herdado do pai em um projeto
desastrado de plantio de algodão, e pela confiança Na capa da edição em livro da peça, Procópio
nas instituições judiciárias -, as semelhanças se des- Ferreira, com o figurino de presidiário e atrás das gra-
fazem logo, porque a personagem é movida pela des, ostenta um largo sorriso. A capa contrasta com a
resignação religiosa e não por qualquer ideal utó- iconografia (seisimagens) retratando cenas decisivas
pico. Depois de um longo discurso para os compa- do enredo - da plena harmonia familiar à derrocada
solitária da personagem. A combinação resulta em
53 Joracy Camargo, Anastácio,São Paulo: Edições Cultura Bra-
precioso ícone da satisfação do intérprete, que se
sileira, 1937. Estreia: I I de dezembro de 1936 no Teatro Boa lança na alta escala do patético e provoca o deleite
Vista, em São Paulo, com a Companhia Procópio Ferreira. As
demais citações são tiradas dessa edição.
da plateia. Na relação entre texto e atuação, cria-se

• 4 23
História do Teatro Brasileiro • volume 1

quase um duplo enredo: a decadência e o niilismo da astucioso, antiguerreiro, amigo do homem pelo bom
personagem Fernando correm paralelos ao irrefreá- senso e pela resistência física, trabalhará sempre para
vel ajuste do ator à materialidade visual e oral (que todos os cavalos do mundo. Portanto eu sou o Burro,
a figura lhe permite compor). Na crítica que publica um burro contente e feliz, conformado em levar pela
sobre o espetáculo, R.lvfagalhãesJúnior avalia que a vida afora a carga que me compete 56.
personagem Anastácio não existe no sentido físico.
Trata-se de um "símbolo, representando um espírito, o duelo entre o orgulho preconceituoso e a
refletindo uma mentalidade, uma educação">'. As- humildade generosa encontra companhia com
sim, a produção da corporeidade - dar plasticidade situações típicas de enredos folhetinescos - amor
ao pessimismo (figurino transfigurador, cabelos go- proibido entre jovens; casamentos por enco-
malinados e desalinhados, face serena, horrorizada, menda desfeitos à última hora, depois do desmas-
desalentada ou sofregamente confiante) - constitui caramento do pretendente; vultoso cheque sem
uma trama irresistível. Arrastada pela entrega estoica fundo recuperado e queimado; provação radical,
ao sofrimento da personagem, a plateia caminha no através de greve de fome, e regeneração final do
sentido oposto. Não se deixa exatamente enveredar preconceituoso, que, além de aceitar o casamento
no "vale de lá~rimas': mas segue encantada a "nova, da filha com moço pobre, repara a injustiça da dis-
e para muitos, imprevista encarnação de Procópío"!'. criminação contra o irmão bastardo, aceitando-o,
Obedecendo àlógica multiplicadora do mesmo finalmente, no seio da família.
renovado, o enredo da virtuosa derrocada propõe A comunicabilidade baseada na visão compade-
o seu avesso - a ruína atinge o orgulhoso a quem cida do sofrimento extremado, como emAnastácio,
só resta aceitar alguma forma de ajuda para sair da encontra novo enfoque, porque o sofredor ao che-
penúria em que se encontra. A equação surpreende gar ao palco duplicado, apoiando-se na contradição
porque introduz o seu oposto - o rico generoso, re- entre riqueza material e miséria afetiva, submete-se
processamento do milionário excêntrico das peças a humilhações que, curiosamente, por efeito das
analisadas acima. Em O Burro, encenada em 1940, surpresas do enredo, tomam o caráter de jogos ob-
Joracy Camargo cria dois antagonistas que são irmãos. sessivos de aposta para vencer a força da injustiça.
Luís Antônio ,'desbarata a fortuna que herdou dos Constrói-se, assim, um movimento sinuoso de vai
pais; Antônio Luís, que sé autodenomina "Burro': e volta, com expedientes de quebra de braço entre
o filho bastardo mas reconh~cido em testamento, as vontades dos dois protagonistas, que suspende as
faz prosperar pelo trabalho diuturno igual legado, enervantes falas iniciais, sábias e moralizantes, da
tornando-se o benfeitor da família, embora não personagem Burro.
seja aceito pelo irmão arruinado: Tematizando aqui e acolá a decadência social e
económica brasilelrav.joracy Camargo fica longe
BURRO - Não resolvi ser o burro. Descobri que sou o Burro. da reflexão sobre o elemento trágico, organica-
Não me queiram mal por isso. Bem sei que o irmão re- mente entranhado no perfil das personagens que
pudia essa noção que tenho de mim mesmo. Mas está rumam em díreção ao abismo. Também está longe
errado. Um burro pode ser irmão, por parte de mãe, de de adotar a contrapontística, dramaticamente ren-
um soberbo cavalo de raça! (Eugénia ri) Por que ri? Pode tável entre leviandade ingênua e perversidade bem
essecavalo de raça negar seu parentesco com ° burro? urdida. O mal ronda as personagens, mas todos
EUGÊNIA - Não.
BURRO - Entretanto, exteriormente, um em nada se parece 56 Rio de Janeiro: Valverde, 1945. Estreia: 17 de outubro de
com o outro. O cavalo, graças ao seu pedigree, terá todos 1940, no Teatro Carlos Gomes de Porta Alegre, com a Compa-
nhia Proc6pio Ferreira. Em 1941 e 1942, a peça foi apresentada
os direitos de família, prerrogativas raciais, faculdade de em excursão da Companhia de Comédias de Joracy Camargo.
eternizar-se na mais extensa reprodução. O burro não. As demais citações são tiradas dessa edição.
57 Na bibliografia sobre o autor é frequente identificá-lo como
O burro morrerá em si mesmo. Inteligente, velhaco,
autor de teatro social ou de teatro de tese, categorias que este
estudo relativiza, quando descreve o manejo de ferramentas do
54 R. Magalhães jr., Diárioda Noite, 22 de dezembro de 1936. melodrama e a utilização do diálogo como recurso para a exibição
55 Galeão Courinho,A Gazeta} 30 de dezembro de 1936. de dotes de discardo atar principal.
• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

parecem imunes à sua força. Desfilam paródias de rior, Na avaliação de Décio de Almeida Prado faltOu,
andrajos em figurinos bem talhados, como no filão principalmente, ao drama histórico romântico o
do mendigo filosofante: bonecos humanos deixam- lastro de "uma história do Brasil devidamente tra-
-se arrastar apoteoticamente para fora do palco, balhadapela imaginação, prontapara ser transposta
como a personagem Fernando emAnastácio} ou são para o palco"59. O teatro que se escreveu no século
irremediavelmente regidas pelo jogo de entra e sai XIX pretendia fazer ecoar a memória da separação
de figuras no proscênio. O sofrimento tormentoso da Coroa Portuguesa, recentemente conquistada,
nunca espreita verdadeiramente o irremediável. A estabelecendo alguns modelos de referência para a
força do mal não atinge as personagens porque elas construção danação brasileira, sejam elesencarnados
se estabelecem no centro da cena, como se, nesse em figuras históricas - Calabar, Tiradentes, Tomás
lugar, a aura de proteção contra um embate mais Antônio Gonzaga, - ou representados por figuras
duro de sentimentos e ideias contraditórios fosse ficcionais, como o jesuíta dr. Samuel, que fomenta
vedada. Essa aura de proteção concede ao ator um uma organização clandestina para libertar o país de
lugar paradoxal- é o centro hegemônico da exposi- Portugal, e a personagem negra Rafael Proença, mili-
ção teatral e, ao mesmo tempo, um exilado de certa tar de baixa patente com feitos em guerras separatis-
humanidade ficcional, mais dura, mais complexa. tas", que promove premonitório ato de conciliação
com Aires de Saldanha, filho de oficial português,
durante os episódios que cercam a proclamação da
A História nos Salões Independência. Essa dramaturgia é tão correta nos
e Salas de Visitai" propósitos políticos que "se os autores interrogam
o passado, é antes de mais nada, para esclarecer o
Frequentes na obra de inúmeros autores dramáti- presente e projetar o futuro do Brasil"?', no entanto,
cos, as incursões no teatro histórico agrupam-se não ocupou com regularidade os palcos. As peças de
em dois distintos filões dramatúrgicos, já assinala- Agrário Menezes e Paulo Eiró foram escritas para
dos anteriormente: a história nos salões e palácios concorrer a concursos patrocinados pelos Conser-
e a história na sala de visitas. Se procedermos a um vatórios do Rio de Janeiro e de São Paulo e tiveram
recorte no gênero histórico entre os anos de 193 o e montagens esparsas. OJesuíta, de José de Alencar,
1940 poderíamos dizer que se trata de uma tendên- retumbante fracasso de público e de crítica, embora
cia forte, sucedânea do drama histórico romântico. tenha sido encomenda de João Caetano, nunca foi
Irresistível como espetáculo que supõe cenários e encenada pelo ilustre ator, Apenas o texto de Castro
figurinos de época, caracterização caprichada dos Alves ficou na memória da historiografia do espetá-
ateres, enredo moldado ao gosto melodramático, culo brasileiro, em grande parte pela profunda imer-
o teatro histórico esteve vivamente interessado são no ideário romântico das revoluções pelo excesso
em contribuir para a construção imaginária de dos versos, pelo "odor melodramático" 62.e, em parte,
um passado heroico, que fortalecesse os laços da pela interpretação da atríz Eugênia Câmara, no papel
identidade nacional, destacando-se como uma das da heroína Maria Doroteia.
formas de adesão mais produtivas das artes às po- A partir de 193 8, quando os teatros abrem
líticas do Estado Novo. suas cortinas para figuras históricas como o conde
Esse enraizamento no solo de um projeto polí- Maurício de Nassau, Joaquim José da Silva Xavier,
tico nacional e, mais ainda, nas convenções teatrais o Tiradentes, a marquesa de Santos, além de D.
vigentes, assegura as condições de apresentação aos
exemplares do teatro histórico de meados do século 59 O DramaRomântico Brasileiro, São Paulo: Perspectiva, 1996,
xx, de que o gênero não pôde dispor no século ante- p.144·
60 As personagens citadas referem-se respectivamente às peças
Calabar, de Agrário Menezes; Gonzaga oua Revolução deMinas,
de Castro Alves; OJesuíta, de José de Alencar, e SangueLimpo,
58 A pesquisa sobre teatro histórico entre as décadas de 1930
de Paulo Eiró, acuradamente analisadas na obra de Prado, citada.
e 1950, de que resultam as páginas a seguir, recebeu bolsa da
Fundação Carlos Chagas Filhos de apoio à Pesquisa - Faperj, 61 O Drama RomânticoBrasileiro, p. 146.
do Programa Cientistas de Nosso Estado, em 2001. 62 CE.idem, P: 171-176.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Pedro r, D.João VI e CarlotaJoaquina, as prerro- Embora se informe que é espaço duplo - de


gativas do melodrama não foram descartadas, mas trabalho e intimidade - essa duplicidade se reduz
o palco tem novo horizonte. Ao se referir ao boom porque, desde a primeira cena, o que temos é uma
histórico, o historiador Décio de Almeida Prado é visão privada da história do país. O espectador
enfático: teatro cuja encenação era de "encher os é levado a compartilhar com as personagens em
olhos e não apenas os ouvidos dos espectadores". cena, o estado de invasão consentida no território
A fórmula parece revelar uma ambição desca- político-sentimental do Império. Assim, figuras pe-
bida - copiar a pompa e o esplendor do cinema riféricas - D ornitília e parentela (a mãe, o irmão, a
americano. O historiador sintetiza: "SeHollywood irmã, a sobrinha) - expulsam do palco figuras de
tinha seus épicos, por que não deveríamos ter os galardão, como José Bonifácio, e ocupam toda a
nossos ?"63 Ao cotejarmos a iconografia de alguns cena, onde passeiam a ilusão de que, ali desfilando,
dos esperáculos com os respectivos textos, verifica- estariam muito próximas do poder.
mos que a dramaturgia tira partido da localização O núcleo do enredo sãoosmovimentos de avanço
restrita, de enredos de forte colorido sentimental, e recuo na relaçãoamorosa de D. Pedro r e a amante.
além de usufruir de notável diálogo de tempora- Essas oscilaçõesincluem desde as andanças da mar-
lidades entre o passado e o presente. Compõe-se quesa de Santos no palácio, ainda quando a impera-
nessas peças encenadas um curioso fluxo temporal, triz Leopoldinalá vivia,até sua decepção logo após a
que atravessa o corpo do ator, quando este simul- morte da esposa do imperador, quando, sentindo-se
taneamente se traveste da personagem histórica desprezada por D. Pedro, aceita a aproximação de
e lhe empresta seu nome, como uma segunda seu ex-amante.A cena de ciúme não tem consequên-
assinatura'<. A memória da expectação fabrica cias trágicas porque o tiro dado apenas atinge um
uma imagem nova, desencavando o passado das painel pintado na parede do palácio, retratando a
páginas amarelecidas dos compêndios escolares e cena em que Otelo assassinaDesdêmona. O mesmo
tornando-o vivo, presentificado, na voz e nos gestos ciúme provoca a expulsão da marquesa e determina,
pulsantes das notáveis estrelas das companhias de mais tarde, sua volta triunfal ao palácio, até o exí-
primeiros atores e empresários. lio final da personagem, preterida pelo acordo de
Em A Marquesa de Santos, de Viriato Corrêa, casamento firmado na Europa entre D. Pedro e a
o filão, que denominamos "a história no salão dos princesa Amélia de Beauharnais.
palácios",tem uma estreia promissora. No cenário O foco de atenção está centrado na figura ro-
projetado pelo autor indica-se: mântica de Domitília, interpretada por Dulcina de
Moraes, e descrita desta forma na rubrica: "mulher
Sala do Palácio Imperial da Boa Vista. É gabinete em que elegante, fina, sedutora, ardente, amorosa, 26 anos".
o Imperador D. Pedro I trabalha e recebe os íntimos. É O par amoroso sustenta com atitudes impetuosas,
todo de ouro, marfim e seda. Duas portas à direita, duas à desmedidas e apaixonadas as inúmeras reviravoltas
esquerda e uma longa porta ao fundo, envidraçada, rodas da trama, igualando-se, também, num fundo de
dando para ourras salas. Rica mesa de trabalho ao centro honradez patriótica. É assim que, informado por
do 2 11plano. Móveis antigos. Um cravo. Nas paredes papel Domítília, D. Pedro barra uma conspiração pala-
a óleo. Um deles é Otelo assassinando Desdêmona, painel ciana para desviar a rota do navio de exilados polí-
esse que, no final do 2 11Aro, vai ser ferido à bala. Castiçais ticos brasileiros, entre elesJosé Bonifácio, do porro
de prata, lustres de cristal etc. de Havre para Lisboa, onde seria feito prisioneiro
É cenário firme para rodos os atos'". da Coroa Portuguesa. É, também, deixando falar o
brio nacionalista que a marquesa resolve afastar-se
63 O Teatro Brasileiro Moderno, p. 34.
64 Na edição do texto da peça, está registrada a advertência: Companhia Dulcina-Odilon em 4 de março de 1938, no Teatro
"Marquesa de Santos é exclusividade da Companhia Dulcina- Santana, em São Paulo. A temporada carioca teve início em 30
-Odilon, sendo proibida asua representação no teatro, no cinema de março de 1938. No espetáculo havia um lundu cantado pela
e no rádio por profissionais ou amadores". personagem marquesa de Santos, interpretada por Dulcina de
65 Viriato Corrêa, A Marquesa de Santos. Rio de Janeiro: Moraes. Há registras de uma remontagem da peça, em 1945, no
Getúlio lvI. Costa, 1938, P: 9. A estreia da peça se deu com a Teatro Ginástico.
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 19 SO

do palácio. A sequência final do último ato é exem- da Independência, dispostos em estrita ordem cro-
plar da lógica de arroubos e maquinações, que deixa nológica ("Véspera da Independência': ''A Demissão
o público hipnotizado pelos lances folhetinescos e, de José Bonifácio': "D. Pedro IV': "Rei de Portugal':
ao mesmo tempo, reconfortado pela ilusão de estar "Abdicação', ''A Epopeia': ''Alvlorte do Herói"). Es-
participando de um ato de divertimento cívico. ses episódios são entremeados por quadros que co-
O entendimento de que o gênero teatro histó- locam a personagem de D. Pedro I na sua dimensão
rico responde a demandas fundamentais do con- cotidiana, na qual tanto se aloja o dia a dia da política
texto teatral nos primeiros anos de implantação do em um Estado em formação, passando por inúmeras
Estado Novo, determina a sua profícua continui- revoltas locais após a separação de Portugal, como
dade. De um lado, a drarnarurgía sob medida para se situa o dia a dia da vida conjugal de um inquieto
reforçar o carisma dos primeiros ateres e a estrutura namorador, às voltas com um casamento abalado,
das companhias, baseada na hierarquia e na fixação uma viuvez e um novo matrimônio.
de papéis que visavam a assegurar o retorno de bilhe- Nesse arranjo cruzado de diversos materiais dra-
teria. De outro, espetáculos projetados para manter matúrgicos, destacam-se as personagens do impera-
abertas as portas do balcão de subsídios do Serviço dor e da imperatriz Leopoldina, que praticamente
Nacional de Teatro. O SNT não fica imune ao apelo se sobrepõem à personagem marquesa de Santos, o
didático-propagandístico de peças que fazem uma foco principal da primeira montagem histórica da
revisão da história brasileira, de maneira a reconci- companhia. Criam-se cenas de confronto, de grande
liar a população com seu passado, refazendo posi- efeito, porque depois de um embate em tom elevado
tivamente o imaginário de crença nos governantes vem a queda no vale de lágrimas. Personagens fortes
brasileiros e nos seus heróis principais. que se tornam abruptamente frágeisparece ser a equa-
Explica-se, assim, o fato de as principais com- ção de fácil comunicabilidade. É assim na sequência
panhias não prescindirem desse importante trunfo em que Dornitília, já denominadaviscondessa de San-
em seus repertórios. Aproveitam-se os sucessos em tos chega ao palácio trazendo a filha bastarda do im-
renovadas montagens, mas também se encenam perador, agraciada com o título de duquesa de Goiás,
variantes do mesmo núcleo de enredo, cujo foco, nos braços, para ser apresentada à dona Leopoldina
no entanto, passa a ser outra personagem histó- e aos filhos legítimos do imperador. Depois de se
rica. Sob essa lógica, entende-se por que depois mostrar altiva e elegantemente irónica, a imperatriz
de duas montagens de A Marquesa de Santos, de 'aspira num largo hausto, os punhos contraídos,
Viriato Corrêa - em 1938 e em 1945 -, a Com- como quem resiste a um impulso profundo. Em
panhia Dulcina-Odilon retorne ao gênero, em seguida as lágrimas brotam-lhe da face. Atira-se a
1954, com O Imperador Galante, de R. Magalhães uma poltrona, soluçando. E o pano cai"66.
Júnior. Nessa peça a cobertura histórica atravessa A mesma lógica do desabamemo sentimental
doze anos, "desde a sessão do Conselho de Estado, está em outras cenas, como a da briga conjugal en-
a 2 de setembro de 1822, no Rio de Janeiro, até carniçada, em que dona Leopoldina ameaça deixar
a morte de D. Pedro, em Queluz, Portugal a 24 o palácio e D. Pedro a agride, voltando à cena arre-
de setembro de 1834". A perspectiva palaciana, de pendido para desculpar-se. Também no momento
onde são narrados os primeiros tempos de cons- decisivo, no final do segundo ato, em que, tortu-
tituição do Império, combina a ótica privada, em rado pelo remorso após a morte da imperatriz, ao
que se situam o casamento e as relações amorosas enfremar a marquesa de Samos para desfazer um
do imperador, com uma outra visada, comprome- banquete em honra da filha bastarda, mostra sinais
tida com a rememoração de eventos de dimensão de descontrole crescente. A teatralidade predomi-
pública, que as lições escolares exigem. nante parece dizer que sem esses arrebatamentos
Como, então, dar conta da tarefa de conciliar o não se fazem soberanos humanos:
fardo da história com a leveza da diversão sentimen-
tal? A condução da narrativa passa a ser feita por
66 R. Magalhães J r., O Imperador Galante. Rio de Janeiro: Val-
imagens de episódios decisivos no processo político verde, 1946, p. 52. As demais citações são tiradas dessa edição.
História do Teatro Brasileiro + volume1

D. PEDRO (forte) - Cala-te, mulher! Vai-te (está bufando, uma figura impopular. Em vez de avançar na narra-
os olhos quase vidrados, meio fora de si). tiva comentada da delicada conjuntura política, o
MAR~ESA DE SANTOS - Está bem. Irei. Irei mas hás de vir dramaturgo dá vazão aos arroubos do imperador,
um dia, de rastros, pedir-me que volte para o teu lado ... que, em primeira pessoa, decide, unilateralmente
e nesse dia, sei muito bem o que hei de te dizer... louco ! e de forma exaltada, os destinos do país: "Se os
(sai arrebatadamente). brasileiros podem passar sem mim, se eu não sirvo
D. PEDRO (fica um momento indeciso, como que estate- para nada, que passem! Vou-me embora. É isso, se
lado. Depois, estremece todo, como se uma crise o aba- me esquentarem o sangue, vou-me embora! Fico
lasse, e começa a chorar, infantilmente. Vai ao retrato livre para derrubar o Miguel do trono" O quadro
de Leopoldina, e envolve-o num olhar de súplica) - evolui no sentido da busca de apoio da esposa
Leopoldina! Perdoa-me, Leopoldina..., lá de onde dona Amélia, e da reabilitação de José Bonifácio,
estás ... eu não sabia! Eu não sabia! (e a crise aumenta nomeado tutor do futuro imperador. Cria-se, as-
ao paroxismo, enquanto ele dobra a cabeça, entre as sim, uma aura de sabedoria e justiça em torno da
mãos, e O pano cai frouxamente). figura do imperador que, paradoxalmente, quando
termina sua trajetória, parece conciliado e amadu-
o dramaturgo apura a sua opção de carregar nas recido para as funções. O tom de julgamento da
tintas para tornar D. Pedro uma personagem ade- História sai da fala de dona Amélia:
quada para o primeiro ator Odilon, que pode, as-
sim, desmanchar-se em lágrimas num ato, para, no PARANAGUÂ - O José Bonifácio vai ser o tutor do príncipe
seguinte, livrar-se resolutamente da nova amante, D. Pedro de Alcântara?
Clémence, esposa de negociante que atende ao pa- D. PEDRO - Sim, o Bonifácio. Ê um patriota. Ê um homem
lácio, e a seguir cair perdido de amores pela nova de honra. Ê um homem capaz de guiar bem o meu filho.
noiva da nobreza europeia, simplesmente ao lhe A mim, não, que já me conheceu com todos os defeitos
ver o retrato. À medida que parece predominar a que possuo. Fui injusto com ele. Demiti-o. Prendi-o.
história da vida privada do imperador, esfumaça- Desterrei-o. Tudo isso porque não quis participar dos
-se a história política, principalmente quando as meus erros. O meu último ato será um ato de reparação.
referências dizem respeito ao distante Portugal, o Mostrarei que não levo ressentimento dos brasileiros e
que se depreende deste breve diálogo: proclamarei publicamente o bom conceito em que hoje
tenho o Bonifácio. ~e acham os senhores? Que acham?
CHALAÇA - Majestade! Majestade! Uma grande notícia PARANAGUÂ - Acho que Vossa Majestade procede com
para Vossa Majestade! muita nobreza.
D. PEDRO - ~e dizes? O Miguel renunciou ao trono? LOPES GAMA...., Ê um gesto de muita dignidade. (Ambos
Fugiu? Foi derrubado por alguma revolução? se dirigem à porta como que deixando a cena, depois
JOÃo DA ROCHA PINTO - Não é nada disso. Ê que Vossa de breve curvatura).
Majestade acaba de ficar noivo! D. PEDRO - E tu, querida Amélia, que pensas tu?
DONA AMÉLIA - ~e nunca, nunca, meu Pedro, nunca
Diante dessa opção de comunicabilidade mais foste tão imperador como agora!
rentável, o episódio da abdicação, quase ao final
da peça, tem uma estruturação dramatúrgica de O recorrente processo de humanização da fi-
grande eficácia e demonstra que R. Magalhães Jú- gura histórica, para promover uma reconciliação
nior tenta retomar o controle da matéria histórica do imaginário nacional com suas referências prin-
com a alta temperatura da person,agem que vinha cipais, já tinha sido praticado por R. Magalhães
construindo ao longo dos dois primeiros aros. No Júnior ao estrear no gênero em 1939, com o texto
Salão do Paço são transmitidas ao imperador as no- de Carlota Joaquina) encenado pela Companhia
tícias de que um movimento político, com apoio Jaime Costa. O ater-empresário, logo após o su-
de militares e da população, exige a demissão do cesso de CarlotaJoaquina, apresenta em 1940, O
Ministério e a avaliação de que D. Pedro tornou-se Chalaça, de Raul Pedrosa. Reeditado o sucesso' de
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

D .João em 1948, Jaime Costa reaparece num papel elenco, um modo de interpretar que ultrapassasse
histórico em Vila Rica} também de R. Magalhães a tipologia em direção a certa humanização realista
Júnior, em 1953. Em 1948, a peça CarlotaJoaquina das personagens, indicando uma tendência de ex-
volta aos palcos cariocas, nove anos depois da es- pectativa de afastamento do desempenho habitual
treia e de mais de 500 apresentações. Jaime Costa em papéis determinados previamente pela estru-
(1897-1967), que se consagrara no papel de D. tura hierarquizada das companhias.
João VI, durante a temporada de 1939 67, continua A boa equação a que devem chegar esses dois
à frente de um novo elenco. sistemas pode ser ilustrada pela comparação das
CarlotaJoaquina avança, na esteira do filão inau- imagens da máscara de caracterização de Jaime
gurado por Viriato Corrêa, tirando partido de duas Costa, como D. João VI, com a descrição da linha
modelizações que imprimem alta comunicabili- de interpretação adorada. Apesar da cara gomada,
dade ao gênero histórico. Uma primeira modeli- o ator declara não tirar partido da comicidade:
zação age diretamente sobre as fontes utilizadas na
estrutura do enredo. Trata-se de combinar drama o papel de D.João VI, pelo que ele exigiu de mim na sua
histórico à Hugo e Dumas e variantes de gêneros composição foi o degrau mais difícil da minha escalada.
populares (o melodrama e a comédia de boulevard). [...] Humanizar a figura de D. João V1 foi, para mim, um
Nos exemplares literários franceses, sabe-se que prêmio, porque, sobre ser o mais complexo papel entre
centenas de papéis que tenho vivido, é justamente o mais
os confliros remetem à ordem do individual; não se expli- sério, dadas as dificuldades que tive de vencer. Estudei com
cam sociologicamente, nem têm ambição alguma de escla- dedicação a figura do rei português, e se valem o desejo de
recer as relações sociais ou o componente ideológico de acertar e o esforço, estou cerco de que fui ao encontro do
uma época. [...] A história só tem interesse na medida em desejo do autor 69•
que funciona como pano de fundo sobre o qual se projetam
as emoções e os conflitos de ordem individual e familiar". Enquanto a crítica da época explica o acerto do
trabalho de Jaime Costa no tipo do "velho sobe-
Numa absorção desmedida desseprincípio, a drama- rano" como tendo sido fruto do estudo minucioso
turgia reduz a luta de Carlota pela posse da Provín- de um papel, não poupa a interpretação forjada
cia Cisplatina a uma disputa ressentida entre dois pela atriz Ítala Ferreira:
cônjuges, que vivem um casamento tumultuado
pelos casos de adultério da princesa. Carlota Joaquina teve em Ítala Ferreira uma intérprete
No polo dos gêneros populares, tira-se partido apenas desembaraçada. Não foi todavia fiel o tipo que nos
da trama de traições e suspeitas de adultério e crime, deu a atriz, visto que foi notória a disparidade entre a figura
acentuando-se, como desaguadouro das sequências, que vimos no palco e a princesa que chegou ao Brasil [...].
em moto contínuo que lhe são anteriores, 0- final Carlota era feia, idosa e geralmente mal pronta, ao passo
exemplar da peça (D. João VI, no texto de R. :Maga- que Ítala se mostrou exatamente o inverso do que dizem as
lhãesJúnior, queima os autos do processo que incri- crónicas da época. Além disso muito lhe prejudicou, ainda,
mina Carlota Joaquina pelo assassinatode Gertrudes o trabalho, o tom declamatório da sua fala, vício de origem
Carneiro Leão, esposa do seu último amante). que traz da revista?".
Uma outra modelização delineia a expectativa
de atuação dos ateres. Em CarlotaJoaquina} exige- A perspectiva de humanização do tipo, que su-
-se, inusitadamente, para os primeiros nomes do põe marcas de uma complexidade realista que se
apresenta, nesse momento, através das telas do ci-
67 Na primeira temporada da peça, em 1939, no Teatro Rival, a
peça Carlotafoaquina teve 205 apresentações, sob o "patrocínio nema, cruza-se na mise-en-scéne com a não desejada
e controle" do SNT. A segunda temporada, em 1948, foi realizada
no Teatro Glória.
68 Patrice Pavis, Rumbo al Descubrimiento da América y dei 69 Revista Carioca, [s.d.], Arquivo Cedoc/Funarre, DossiêJaime
Drama Histórico. Repertorio. Revista de Teatro. México, Que- Costa.
réraro : Universidade Autónoma de Querétaro, n. 32, diecembre 70 RevistaA Noite, 2 maio 1939, Arquivo Cedoc/Funarce, Dossiê
1994, p. 19 (tradução minha). Jaime Costa.
História do Teatro Brasileiro • volume 1 .

caricatura do teatro de revista. Duas linguagens sete quadros': as exigências de encantar os olhos dos
atravessam o corpo dos ateres de um mesmo espe- espectadores e de solenizar o passado com cenografia
táculo, por um lado estabelecendo uma adequação e figurino de época são atendidas pela escolha dos
convincente do gesto e do discurso e, por outro, espaços: salão da chácara Cruzeiro, em Vila Rica
introduzindo um componente familiar ao espec- (onde se desenrolam as reuniões preparatórias do
tador, embora inconveniente, estranho à interpre- movimento); sala de audiência do palácio dos vice-
tação concebida pelo primeiro ator da companhia. -reis no Rio de Janeiro; sala pobre no sótão da rua
Através de duas referências díspares - o cinema e dos Latoeiros no Rio de Janeiro, onde Tiradentes é
a revista - maneja-se, de diferentes maneiras, o preso; antessala da casa de Inácio José de Alvarenga,
tempo passado. Os ateres, com seu corpo (e sua em Vila Rica, onde durante a comemoração do ani-
voz) têm a responsabilidade pelas conexões que versário da filha do inconfidente, se dá a notícia do
asseguraram o coritato entre o enunciado histó- fracasso do movimento (a ocupação de Vila Rica
rico e o discurso através do qual ele é apresentado. pelas tropas do vice-rei, a prisão de Tiradentes e a
Ao mesmo tempo, representam, isto é, imitam e iminência da prisão de todos os conspiradores); sala
substituem as personagens históricas. Nesse sen- do tribunal em que os inconfidentes são julgados.
tido atualizam e reforçam iconicamente a ilusão Quando se consulta a iconografia existente so-
do acontecimento histórico, único, irrepetível. A bre o espetáculo, logo se percebe que tanto o sótão,
criação de Jaime Costa impregna de tal maneira o no qual o chefe dos inconfidentes é preso, quanto
imaginário histórico brasileiro, que carrega o refe- a sala do tribunal, onde se desenrola a cena final de
rencial histórico para a sua própria, concreta e atual condenação do alferes,prometem um realismo que,
interpretação, tornando a situação de enunciação toscamente realizado, contrasta com o esplendor
teatral uma nova fonte documental. imaginativo utilizado na concepção dos salões dos
Se de um lado ficam "os originais das peças so- conspiradores em Vila Rica. Nesse caso, as genero-
brepostos à mesa do ponto"?", de outro ficam as sas rubricas indicam:
latas com os rolos de filmes, já que filmes brasilei-
ros começam a abrir-se como mercado de trabalho Grande e belo salão em estilo colonial na chácara Cruzeiro
para os ateres de teatro, deles exigindo ora varia- em Vila Rica. Portas à direita e à esquerda. Uma outra
ção maior nos papéis (paralelamente ao sucesso de porta ao fundo de comprimento menor que as outras,
Carlota Joaquina, Jaime Costa aparecia nas telas dando para o jardim. Por ela, quem vem da rua, entra no
em Football em Família, um dos filmes reputados salão depois de descer uma pequena escada de pedra com
detestáveis pela crítica da época), ora simplesmente banco à esquerda e à direita. Nas paredes - retratos de fi-
assegurando a manutenção da composição de um dalgos e fidalgas. Móveis de época. Ao centro uma grande
tipo de sucesso. ':Mas a influência da tela grande não mesa. Noite. Velas acesas em castiçais de prata.
se faz sentir apenas na interpretação dos ateres. Ao subir o pano, Francisco de Paula Freire de Andrade,
Também vem do cinema americano a expectativa cônego Luiz Vieira da Silva, padres Carlos Correia de To-
de um espetáculo dotado de nova estética visual. ledo e Melo, José da Silva e Oliveira Rolim, sargento-mor
Passa-se a exigir um investimento na elegância, no Luiz Vaz de Toledo e Piza e Inácio José de Alvarenga con-
luxo, no bom acabamento visual do espetáculo, isto versam animadamente. A pêndula acabou de dar dez horas.
é, no figurino e na cenografia. Elevando o padrão (Ato I, ~adro r)
visual do teatro declamado, atingem-se dois alvos: [...]
competir com o cinema e, também, criar alternativas Antessala da casa de Inácio José de Alvarenga, em Vila
sérias para aféerie das revistas da praça Tiradentes. Rica. Portas à direita e à esquerda, grande arco ao fundo
A peça Tiradentes, de Viriato Corrêa, confirma dando para o salão onde se dança. Luxo. Noite. Velasacesas
esse apelo hollywoodiano de luxo utilizado pelo em castiçais de prata.
nosso teatro. Na "comédia histórica de três aros e Ouve-se, com o pano ainda em baixo, a orquestra to-
cando um minueto. Ao subir o pano continua a ouvir-se
71 RevistaCarioca, 1933, Arquivo Cedoc/Funarte. Dossiê Jaime
Costa. a música. Gonzaga dança com Marília e Alvarenga com

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• o Teatro Profissional dosAno'.,o aosAnosde 195 0
lI
Isabel. Sente-se que há dançaiem outras salas. No primeiro pelo tempo da conspiração das elites letradas e pela
plano, à esque~~a, os pa~'Vi/ei.ra daSilva e Carlos de lentidão ociosa d~onversas de salão,que adquirem,
Toledo jogam gamão. Céssa a musica, Os pares saem. (Ato na perspectiva g{personagem, o significado de inter-
I!,/~ádro III, cen."ç,. . /' ./ valo, de tempoperdido, em face da premência da de-

7 .
As imagens do espetáculo apresentado no Tea-
Bagraçã6-difmovimeIlto político. O rosto, carregado
pela g()ínábrailca, emoldurado pela peruca presa em
I '
tro Alhaníbra indicam como é possível criar alusão rabo de cavalo; ou pela peruca descabelada, epela mal
ao fausto dos abastados mineiros em um palco de posta bar~ápostiça,aparec,e nas fotografias posadas,
pouca profundidade e cenário de gabinete. O arco como de costume na época,'encimando um corpo em
do fundo frontal, as escadas, numa cena; mais uma postura de vigor resoluto, sejanahora da conspiração,
vez o arco frontal ao fundo, atrás do qual uma cor- seja no mome~ da inesperada prisão. O adjetivo
tina em brocado luminoso sugere a extensão do am- "ardente" refrido à personagem na rubrica inicial,
biente para novos salões. Essa espacialização básica tem seu/j.éSenvolvimento propício, astuciosamente
sempre sugere dois planos. No entanto, ocupa-se o
combinado com painel dos abastados inconhden-
principalmente o primeiro, o do proscênio, ora por teso Criá~se assi~ um jeito amaneirado de contar a
um só conjunto de personagens que concentra a . história, omitindo na narrativa a crueldade da traição,
ação principal, ora por dois conjuntos, à esquerda o horror da forca, a abjeção do esquartejamento do
e à direita. A cenasó ganha profundidade nas festas /alferesJoaquim José da Silva Xavier.
e reuniões, quando ambos os planos - proscênio e I Quando o palco está dimensionado para re-

fundo do palco - ficam ocupados. A proximidade ceber salões de palácios não só fica reduzído.qa]- .
da plateia cria a fantasia da aproximação de tern-" -'~ance crítico dos acontecimentos históricos, mas
I
poralidades e favorece o deslumbramento com o também se constrói o ponto de vista segundo o
figurino, mais austero na cena da conspiração ~ qual a História se desenrola longe de onde estamos
extremamente luxuoso e cortesão (vestidos com situados. De onde estamos só podemos ouvir sons
crinolina, cetim' e sedas, rendas, veludos reborda- e ver sinais do movimento, acompanhar o que se
dos e as obrigatórias perucas brancas para homens passa como numa tela pintada de um ponto de boa
e mulheres) na cena da festa, interrompida pela visibilidade - uma janela de residência posta em,
notícia da prisão do líder da Inconfidência. uma parte al~a da cidade. Se, por um lado, sacia-se
Os comentários sobre amenidades da vida o desejo de partilhar da intimidade dos podere-
mundana na cidade de Vila Rica, como os arrulhos sos, situando o espectador como um observador
românticos e os esforços casamenteiros das damas, privilegiado do processo de tomada de decisões,
contrastam tanto com as falas dos cidadãos que pre- por outro reitera-se uma atitude de expectativa,
param a revolta quanto com as falas de Tiradentes, segundo a qual a história virá até nós de um jeito
verdadeiramente o homem em campo na revolta em ou de outro, sem que precisemos participar de seu
andamento. A conversa do salão expulsa da narrativa desenrolar. A peça Mauricio de Nassau (1954),
histórica o dia a dia de lutas do militante, em longas de Viriato Corrêa, pratica malabarismos cênicos
viagens pelas montanhas mineiras e serras Humi- curiosos para garantir a pintura alegre da coloniza-
nenses. Assim, na galeria de estampas históricas que ção holandesa no Brasil?3. A rubrica inicial fornece
privilegiam o interior de prédios de diferentes tipos a síntese da perspectiva de onde se irá narrar:
como espaço cênico, a personagem Tiradentes pa-
rece sempre estar fora do lugar, tolhida em seus gestos 164 1

Recanto do belo parque do palácio de Friburgo no Re-


72 Viriato Corrêa, Tiradentes. Rio de Janeiro: Ministério da
cife, no tempo da ocupação holandesa. É um maravilhoso
Educação/sNT, 1941, P: 15 e P: 101. Com música de VillaLobos,
a peça foi montada pela Companhia Brasileira de Comédia, sob pavilhão. Trepadeiras, árvores, plantas ornamentais etc.
a díreção de Delorges Caminha. Temporadas: Rio de Janeiro,
[s.d.]: São Paulo: 20 de junho a 6 de julho de 1939, no Teatro
Santana; Teatro Municipal do Rio deJaneiro: 16 de novembro 73 A Biblioteca do Cedoc-Funarre possui uma versão datilogra-
de 1939 - Récita Cívica sob o patrocínio do SNTdo Ministério fada da peça, datada de 1954. Não foram encontradas informações
da Educação e Saúde. sobre eventuais mont~gens. As citaçõesforam tiradas dessaversão.

• 431
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., .'tónádo Teatro Brasileiro • volume 1

Ambiente acentuadamente troPi~Entradas à esquerda P elos holandeses. N~~do


'<'.~
primeiro ato, o clima
e ao fundo uma varanda que dá par'.! um terraço. Para a ameno da festa no palácio' começa a se desfazer,
varanda quem vem de fora entra pelo ~~io, pela esquerda, quando uma figura que participar~à'-~ência
pela direita. Ao fundo abre-se magníficopanora.ma do par- pernambucana à l~asão entra em cena. FraIT~o
que. Móveis e ornamentos de jardim. Rebelo, o Rebelinho.:- "Brasileiro. Rude. Mestr~~
Antes de ser aberro o velário, ouve-se dfinaltle uma mar- de campo do antigo Arraial do BomJesus" -, é
/- ' \
cha executada por banda m~itar. Aberto o,\elário ~ músi~a convidado por João Fernandes Vieira para a festa
continua por alguns segundos e para. As per)onagens estao dos jardins. Embora impere a cordialidade entre
I \
quase todas ao fundo jun~ó da varanda e do terraço, voltados antigos adversários, é impossível calar as críticas de
para o parque, como se vendo o povo que por ele transita. Símoa, senhora da nobreza de Olinda, às práticas de
Estão em cena Felípa, Cosrna, Simoa, Àna Paes, Carlos de exploração comercial instaladas no Recife:
Tourion, Bartolomeu de Vasconcelos, Ma~~la e Ge~ebra.
'- -\.
SIMOA - Deixa-me falar. É um velho amigo e eu preciso
Através das primeiras cenas fica-se sab~ndo que pô-lo a par de tudo. É dinheiro, unicamente dinheiro,
o conde M~urício de Nassau abre oparque duas ve- que essa gente quer. Arrancam-nos tudo, os engenhos,
zes por semana ao povo e, assim, a admiração pelos os escravos, os olhos da cara. Não sou eu quem afirma
belos jardins do palácio, tomados pela população isso, é o próprio conde. Ele diz a quem queira ouvir que
da cidade, é o mote para se apresentar o contraditó-> os holandeses amam a fortuna mais que a própria vida.
rio sentimento de aceitação e rejeição que se nutre
pelogovernante holandês, visto por uns como ben- É impossível, também, estancar as lembranças
/fêit;r, :por outros como um invasor, igual ao por- 'das lutas da resistência pernambucana à invasão,
tuguês e ao espanhol. Na varanda se pratica, ainda, quando Rebelinho reconhece Brasília, a filha de
a bisbilhotice sobre o triângulo amoroso :MaurícÍo seu companheiro, o sargento-mor Terêncio Uchoa,
de Nassau ("Governador de Pernambuco"), Brasí- morto em seus braços de ferimento provocado pelo
lia ("Linda brasileira da nobreza de Olinda") e Ana fogo inimigo. As falas da personagem introduzem na
Paes ("Bela mulher. Rica Proprietária"), que lança a cena histórica um novo tom. A bisbilhotice, o enlevo
peça na vertente do nacionalismo amoroso, tão sa- amoroso dão lugar às fanfarras do feito heróico:
bidamente posto em funcionamento pela literatura
do século XIX em toda a América Latina. A bisbi- REBELlNHO - Sim, fomos nós do Arraial que mostramos
lhotice vai além, no entanto, do enredo romântico, ao holandês o brio do Brasil. Cinco anos de lutas sem
e serve à intriga da peça porque apresenta o caráter armas, sem roupa, sem dinheiro, às vezes sem alimento,
sedutor de Nassau, além da esfera feminina, como contra o poder da Holanda!
irresistível dom para fazer política. VIEIRA - Não é brincadeira!
O recurso de iniciar a peça nesse lugar interme- REBELINHO - Não é brincadeira. Durante dois anos não
diário entre o espaço público e o espaço restrito cria demos à canalha licença de gozar a nossa terra. Tinham
condições para fazer dezoito personagens transita- eles tomado Olinda, tinham tomado Recife, mas só
rem no palco, além de damas e lacaios, que entram eram senhores do pedacinho da terra das duas cidades.
e saem de cena em ritmo vertiginoso, já que estão O holandês botava a cabeça fora da porta! Pum! Não
sempre vindo ou indo para os jardins. Essa novidade podia apanhar uma caça. Não podia colher um fruto.
na carpintaria do gênero histórico talvez tenha difi- Pum! Pum!
cultado a empreitada de montagem da peça, mas re-
presenta um avanço modernizador no gênero. Com Na última cena do .primeiro ato, a peça ganha
a justificativa de que se abrem os jardins palacianos estilo de "contação de causo': quando a personagem
para recreação popular, fica franqueado o espaço narra a tentativa de emboscar um almirante holan-
para personagens de inserções diferenciadas no dês. No meio da entusiasmada narração, entram o
episódio político conviverem e externarern suas di- comandante da Guarda do Governador, acompa-
ferentes percepções sobre a conquista do Nordeste nhado de uma senhora holandesa, e Nassau. Os dois

• 43 2
·..;·!'R·.·

· o TeatroProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 19)0

primeiros consideram a situação ofensiva,mas Nas- patriotas brasileiros" Vidal de Negreiros, Felipe
sau ouvea intervenção de Brasília,aceita as desculpas Camarão, Rebelinho e Henrique Dias, a última
de Rebelinho e cumprimenta o bravo militante: tentativa de convencer o conde a permanecer no
Brasil é frustrada. Nem Nassau desiste do projeto
BRASíLIA - (mais junto de Rebelinho, em atitude de maior de partir, nem Brasília aceita acompanhar Nassau
defesa) Conde, já não se pode, no Brasil, ouvir a voz de em sua volta à Europa. Tudo, finalmente, se com-
um brasileiro? bina à expectativa do imaginário nacionalista, que
REBELINHO - (movendo-se para sair) Senhor conde ... a peça deseja reforçar desde o início do terceiro
NASSAU - (fazendo-o parar com um gesto) Um bravo ato, quando traz para sonorizar a cena "o canto dos
respeita-se sempre, mesmo quando é nosso inimigo. negros ao som de atabaques, adufes, ganzás,cheque-
(Pequenina pausa. Avança). Dê-me a sua mão. requê, ilu e outros' instrumentos africanos" e Nassau
incumbe a sua amada de cantar "Tapuia': declaração
Instala-se, a partir do desfecho do primeiro ato, de amor de um negrinho por uma índia.
um desenrolar de ação mais complexo. Diferente do Quando o primeiro plano não é ocupado por
início da peça, quando o presente da ação enchia- personagens-cromo, é o espaço da sala de visitas
-se com um momento de trégua e festejos ou com de uma família que reverbera os acontecimentos
o rememorar de outros tempos, no segundo ato da História. Iaiá Boneca e Sinhá Moça Chorou, de
acerta-se o passo da temporalidade, procurando-se Ernani Fornari, e 1vIocinha, de Joracy Camargo>',
localizar o presente da ação cênica no presente da são amostras eloquentes de um conjunto de peças
história. A composição dramatúrgica ainda guarda em que se situa no cotidiano a perspectiva através
a mesma lógica espacial - a festa lá fora, a festa cá da qual um episódio histórico passa a ser narrado.
dentro, neste caso um banquete em homenagem Nesse caso, a história privada é atravessada por
a Vidal de Negreiros, que vem com delegação di- grandes acontecimentos fixados nos compêndios
plomática de D. João IV, mas, na verdade, pretende escolares,e as pequenas vidas podem ter seus rumos
organizar com lideranças pernambucanas o movi- alterados, suaveou gravemente, em consequência de
mento para expulsar Nassau. fatos que, embora distantes, batem à porta da casa,
A dramaturgia precisa apreender duas linhas de provocando reviravoltase novos arranjos no dia a dia
enredo, a conspiração e a defesa do conde, apresen- das famílias. Através dessa dramaturgia, a ideia de
tado, desde o início da peça, como um benfeitor nação toma contornos mais nítidos, não só porque
progressista. O cruzamento desses temas se faz pela se alargam as margens de localização dos agentes da
atuação de Brasília, que, invocando o amor à terra história, mas também porque se instala uma simul-
e o amor a Nassau, defende a autonomia do país taneidade temporal inclusiva, entre o passado mais
tanto contra o jugo dos holandeses, quanto dos distante e o presente mais próximo, das personagens
portugueses, propondo a independência e tendo e, por extensão espacial, dos integrantes da plateia.
o holandês como futuro imperador do Brasil. Re- Iaiá Boneca traz na folha de rosto, junto à rela-
jeitada a hipótese pelo dirigente estrangeiro, em ção de personagens e respectivos ateres, a seguinte
cena de alta temperatura romântica, não só pela indicação: "ação em um engenho nas cercanias do
renúncia amorosa, mas também pela ética do com- Rio deJaneiro, no ano de I 840, durante a campanha
promisso, o tema da partida do conde está lançado da Maioridade de D. Pedro n"75. O cotidiano da
e será o núcleo do último ato.
Embora, na cena, cresçam Vozes analisando a 74 O boomdo teatro histórico leva o tarimbado Joracy Camargo
saída de Maurício de Nassau da chefia do governo a experimentar também este filão e moldá-lo à especialidade de
papéis de Eva Todor. Análise dessa peça foi realizada por Angela
holandês, como tendo sido uma mudança na gestão Reis no artigo "Scoie Mocinba, deJoracy Camargo, encenada por
do negócio imperialista, essavertente didática perde Eva e seus artistas': publicado em O Percevejo. n. 1o/I I. Teatro
Brasileiro nos Anos 40. Rio de Janeiro: Departamento de Teoria
em efeito para o primeiro plano onde acontece a do Teatro; Programa de Pós-Graduação em Teatro da Uni-Rio,
despedida do casal apaixonado. Composta em se- 2001/2002,p.188-200.
75 Emani Fornari, IaiáBoneca. RevisraDom Casmurro, n. 13, 18
quência de folhetim, tendo ao fundo "os grandes abro1942. Estreia: 4 de novembro de 1938, no Teatro Ginástico,

• 433
História do Teatro Brasileiro • volume 1

fazenda é tecido com três fios distintos: o romance, humanamente, e não como animais. Quase todos os
a escravidão e a política imperial;Cuja atualidade meus negros estão alforriados, no entanto, vai falar-lhes
percorre o desenrolar do movimento para antecipar em me abandonar!
a maioridade do menino-imperador e pôr fim aos VIGÁRIO - Ora, a fuga é o menos que pode acontecer, sr.

nove anos de Regência. O romance envolve as três Conselheiro. O pior é a defesa passiva do negro que não
netas do conselheiro - Alina, a doce e melancólica foge.Essaé que é uma vingança implacávele sutil: escraviza
moça coxa;Boneca, a adolescente sapeca e ardilosa; os donos a;eushábitos, à sua gíria, impõe-lhes as suas reli-
e Dedé, a mais velha das moças solteiras, severa e giões (escandalizado) - e até seus amores, sr. Conselheiro!
amarga. No cenário da casa-grande, o círculo dos CONSELHEIRO - É a triste realidade. V. Reverendíssima
pretendentes é apresentado aparentemente com bem sabe por que D. Bebera fez aquilo à tal cabrochí-
sinais trocados - Arnaldo estaria interessado em nha. (Vigário confirma, tristemente).
Alina, mas custa a se declarar porque suspeita que a VADICO - OE.efoi, compadre?

moça continue apaixonada pelo antigo pretendente CONSELHEIRO - Pois não sabe que a mulher do major

Waldemar, o jovem médico que retorna dos estu- espatifou todos os dentes de uma escrava com o salto
dos na Europa. Depois de amenizar a deficiência da botina?
de Alina com a feitura de um aparelho ortopédico, VADICO - Mas por que, Santo Deus?

Waldemar pede a mão de Boneca em casamente:. CONSELHEIRO - Ora, porque, porque! Ciúmes...

Vadico, o terceiro pretendente, desiste na última VADICO - Virgem Santíssima!

cena da proposta de casamento à malvada Dedé.


Como a casa-grande está reduzida em cena a O diálogo é interrompido com a contraprova
dois ambientes de ócio e de encontros sociais - o de que o bom clima entre senhor e escravos reina
salão da biblioteca e uma luxuosa sala de visita - na fazenda. O feitor ("mulato de meia-idade, mal
os escravos domésticos, Bá Merenciana e seu filho encarado"), introduzido em cena por Dedé, fala
Cristina, trazem os dilemas do regime social para em nome dos escravos, pedindo licença para fa-
o cotidiano. Gravitam em torno de raiá Boneca e zer batucada no terreiro e queimar fogueira, para
parecem receber em casa o tratamento cordial, que festejar a chegada do dr. Waldemar. Permissão
o conselheiro dispensa a todos os seus escravos da concedida, o Conselheiro aproveita para interpe-
fazenda. No entanto, uma sequência, no início do lar o feitor a respeito de severo castigo aplicado
segundo ato, indica que a complexidade das relações ao negro Cristina e de desaprovar a amizade
entre senhores e escravosestá além das brincadeiras com um capitão-da-mato com quem foi visto
da raiá com seu boneco de piche. Entre as notícias, bebendo cachaça na mercearia do Zé do Jaleco.
"asnovidades': repartidas regularmente pelo trio for- O castigo imposto a Cristino, revelado através do
mado pelo conselheiro, o vigário eVadico,compadre diálogo com o feitor, decorrera das diabruras do
do primeiro, anuncia-se a fuga de dois escravosda moleque - colocar carrapicho na roupa de Dedé
fazenda do vizinho major Saturnino: para vingar-se de suas maldades (a última delas, a
narrativa da queda de Alina de uma árvore, por
VIGÁRIO - Cáspite, que o major Saturníno anda em va- conta de brincadeira de Boneca que retirou a es-
zante de sorte! Já é o sexto negro que lhe foge este mês. cada para fazê-la prometer que reataria o namoro
OE.eprejuízo! com o moço Waldemar). Cristina, um autêntico
VADICO - A novecentos míl-réís por peça, cinco contos descendente da personagem alencariano Pedro,
e quatrocentos. Eram todos da "nação" arda, dos me- de O Demónio Familiar, chega a protagonizar al-
lhores! gumas cenas do 32 ato quando, por fidelidade a
CONSELHEIRO - O culpado é o próprio major. Só há ne- Boneca, quebra o aparelho ortopédico destinado
gro fujão onde há maus tratos. Por que é que nunca a Alina porque, percebendo o interesse de raiá
fugiram escravos da minha senzala? Porque os trato pelo doutor, teme que Waldemar reate o noivado
com a moça coxa depois de curada, desfazendo o
Rio deJaneiro,produção da Companhia Brasileira de Comédia, de
DelorgesCaminha.As demaiscitaçõesseguemessaedição.
sonho romântico de suaprotetora. Depois de feito o

• 434
+ o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

estrago, o escravo foge, o que acaba ocasionando a Sinhá Moça Cboroü" tem como motivo cen-
contratação dos serviços do capitão-do-mato pelo tral a Guerra dos Farrapos (1834-1839), muito
conselheiro. Tudo é perdoado no 42. e último ato, mais do que um pano de fundo para a história
quando o conselheiro retorna à fazenda eufórico de amor entre Flor, filha de juiz de paz, defen-
com a maioridade do menino-imperador: sor do movimento separatista, e o alferes Felipe,
combatente perfilado com as tropas monarquis-
BONECA (frenética) - Mas como foi, vovô, como foi, hein? tas. Em seis quadros e três datas e locais - casa
Conte-nos! Estávamos tão ansiosos! da família em Porto Alegre, 1834; Estância em
VIGÁRIO - Nem imagina, raiá. A população da corte está Camaquã, 1839; novamente casa da família em
toda na rua, aos pínores e aos gritos, soltando rojões Porto Alegre, 1845 - desenrola-se a trama em que
e buscapés, o evento político estará habilmente incorporado à
VADICO - Que cena empolgante, Waldemar! ... Então narrativa amorosa. Já no 12. ato é tempo de clarear
você, seu Arnaldo, que é meio poeta, se visse aquele as posições políticas. Na sala de estar, Leocádio,
espetáculol o pai de Flor; Santa, a avó falastrona; o primo
ARNALDO - Bem o imagino, seu Vadico. Anésio e a criada, "pretinha forra", traçam o painel
WALDEMAR - Mas o menino D. Pedro já jurou, padrinho? de divergências puxado pelos ciúmes do primo,
CONSELHEIRO - Se jurou? Ah, nem me fales! Ainda estou pretendente natural, mas preterido, e pela verve
vibrando de emoção. Foi pena vocês não terem podido da avó, que protesta contra o descaso com o qual
ir ver. Quando S. M., seguido do povo, entrou no Paço a província é tratada pela Regência. Os contrastes
do Senado ajoelhou-se, volveu aos céus os olhos muito entre a fidelidade ao governo do alferes Felipe -
azuis e prestou o juramento, as lágrimas desataram-me, moço por quem Flor caiu de amores em visita à
de duas em duas. E não só eu chorava. A assistência corte - e a posição separatista parecem contor-
em peso soluçava, ria, gritava, aplaudia e abraçava-se, nados, mas na véspera do casamento o pai e o
como enlouquecida. Um delírio, meus filhos, um de- primo de Flor engajam-se em manifestação contra
lírio ... (enxuga os olhos) - E que lindo estava o nosso o governo central e Felipe é obrigado a dar ordem
ímperadorzinho, hein, sr. Vigário? de prisão ao juiz Leocádio. Está determinada a
impossibilidade do casamento; o ato de fidelidade
A combinação de privatização e sentimentali- à hierarquia militar é contraposto à ameaça de
zação das tensões sociais e políticas, diluídas pela Flor de matar Felipe para impedir a prisão do
proximidade dos afetos domésticos e deslocadas pai. Desarmada pela avó, Flor entra em estado de
pela narração de quem presenciou os fatos polí- grande choque. Instada a desabafar, cunha a frase
ticos na corte e, depois os narra para a pequena que dá mote ao título da peça: "Não posso, vovó,
audiência da casa-grande, instaura um código de não posso 1. .. Eu não sei chorar".
comunicabilidade infalível. O público fica con- Com a Guerra dos Farrapos em curso, a ação
fortavelmente instalado no patamar da memó- se desloca para uma estância nas coxilhas, onde as
ria a seu dispor. Tudo está muito perto de seus mulheres da família Correias se abrigam, ficando
olhos no palco, mas muito longe no tempo. Esse aos cuidados de Ana, irmã de Bento Gonçalves.
cruzamento constrói uma imaginação histórica Nesse ato, a amargura de Flor, ainda profunda-
impregnada de enternecimento. Tudo acaba bem mente ressentida com o desfecho de seu romance
na história e na História. Imperador no trono, com o alferes, mas agora noiva do primo Anésio,
perdão ao escravo fujão, anúncio dos casamentos contrasta com a alegria de Manuela, sua prima e
das netas do conselheiro. A magnitude das atitu-
des do conselheiro, neste caso, reflete uma espécie 76 Idem, Sinbd Moç« Chorou,São Paulo: Martins, [s.d.]. Estreia:
de juízo histórico perfeito, que aposta na justiça 3 de outubro de 1940, no Teatro Serrador, Rio deJaneiro; Produ-
ção da Companhia Dulcina-Odílon. A peça foi incorporada ao
individual e na festa doméstica, réplicas acessíveis repertório da companhia, que a levou a São Paulo (1940), a Porto
das instituições públicas e dos sentimentos que Alegre (1942) e a Lisboa (1951). Há registres de montagens do
texto de Fornari em 1953, com a Sociedade Paranaense de Teatro,
alimentam a nação. e em 1954, com a Companhia Nydia Licla-Sérgic Cardoso.

+ 435
História do Teatro Brasileiro • volume 1

melhor amiga, visivelmente apaixonada por Gari- de IaiáBoneca, favorece o mergulho nos fortes senti-
baldí.Mas o recurso de aproximar a ação do campo mentos de quem se entende participante de um mo-
de batalha rende frutos imediatos para a dramatur- mento da História, entranhando-se no tempo como
gia da peça: as mulheres passam a ser as primeiras se não houvesse futuro, mas apenas o pcrtencimento
ouvintes dos relatos da guerra, em que Garibaldi a um fluxo de crenças, que corre acima das peripé-
é o herói mais valoroso, e se tornam participantes cias da política. Trabalhando com personagens de
dos acontecimentos quando eles se estendem aos várias configurações, uns mais tipificados, como a
limites da estância. Num tradicional entrecho de exagerada e sábia avó Santa e os impagáveis negros
folhetim, o alferes, ferido, busca socorro. Flor de- da criadagem, outros de maior sutileza psicológica
saba ao reconhecê-lo e, conturbada, num instante como Manuela ou compostos nos extremos, como
declara-lhe seu amor para, em seguida, instada a protagonista Flor, Fornari parece estar apostando
pelos deveres de "farrapa': entregá-lo ao primo. num mix de gêneros, como se estivesse ensaiando
No último quadro, a ação retorna à casa da fa- uma composição que, manejando as prerrogativas do
mília Correias em Porto Alegre, na qual vive apenas filão a história na salade visitas, preservasse a comé-
o casal de escravos Balbina e Prudêncio, pois Flor dia de costumes do século XIX e enveredasse, embora
retirou-se para um convento. Abre-se a primeira timidamente, pelas pesquisas da tragédia moderna,
cena com a chegada de Flor, que vem à cidade para afinando-se com o gosto do teatro sério, que a crítica
um encontro com Manuela, a boa e solidária prima, ardentemente aguarda para a inauguração do teatro
abrigada na casa de outros parentes em Pelo tas. Na moderno brasileiro na década de 1940.
verdade, Manuela introduz a chegada de Anésio
para mais uma tentativa de acerto de casamento,
que revolve fatos do passado e revela a injustiça co-
metida por Flor no episódio da prisão de seu pai.
Embora a tentativa de reaproximação dos primos
tenha sido em vão, Flor retorna à sua antiga casa, de-
sistindo da vida conventual, abrindo-se a necessária
brecha para o final feliz. Quando o alferes reaparece 3. O TEATRO DE REVISTA
curado, Flor é vencida pela surpresa. Finalmente,
depois de seis ates, capitula. Atirando-se aos pés Minhassenhoras, meussenhores.
Osautores mandam dizer quea exemplo
de Felipe, chora de soluçar na cena final, testemu-
doquesefaz em Paris, Londres, New York,
nhada pelos escravos Balbina e Prudêncio, todos às BuenosAires, Riodefaneiro etc; a revista que
lágrimas porque, finalmente, antes de cair o pano, idesassistir é quase todacopiada. Mandam
dizer mais que,apesardisso, receberão
"Sinhá moça chorô... Sinhá moça chorô!" osseusdireitos autorais como toda
Introduzida no repertório da Companhia Dul- agentequefaz revistas Isto é oprólogo...
cina-Odilon, a peça fez 150 representações no Rio oprólogo dasinceridade, boanoite.

de Janeiro e setenta em São Paulo. A crítica de Mário Trecho da revista Rio-Paris,


de Geisa Bôscoli e Paulo Magalhães,
Nunes ressalta a variedade de estados e sentimentos
19 27.
da personagem ao longo da peça, como uma chave
de facilitação do trabalho da atriz, que alterna "ce-
nas tranquilas de dramática doçura com os instantes No Rio deJaneiro da belle époque, com o esgotamento
trágicos, ou com os que a ira a transmuda, sabendo do modelo da revista de ano, os autores passaram a
transmitir ao público, em todos os casos, a emoção se valer da estrutura "clássica" das revistas francesas e
que empolga'?". Ao lado dos cenários e dos figurinos portuguesas, que era a seguinte: prólogo de abertura,
impecáveis a dramaturgia histórica de Fornari em alternância de esquetes, quadros musicais e números
Sinbâ Moça, diferentemente do enlevo encantatório de cortina e, finalizando, uma apoteose. A esse arca-
bouço acrescentavam-se assuntos locais, personagens
77 S. Víottí, op. cít, p. 246-247. brasileiras e música popular. Aqui, como em Paris, já
• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 19 SO

não havia enredo, nem compere78, nem outros com- ingredientes bem temperados e no ritmo popular de
ponentes da revista de ano. Por isso, falava-se haver nossa música. Buscava-se um teatro capaz de estar em
um "teatro de revista no Brasil", mas não se ousava sintonia com o programa de reurbanização, subordi-
falar em "revista brasiieira''?". nado ao signo europeu da modernidade. Pretendia-se
Pode-se dizer que o teatro de revista, como a um teatro que, lidando com o que vinha de fora e à
própria cidade do Rio de Janeiro - transformada luz das novas regras francesas, incorporasse na cena
pelas reformas urbanas do prefeito Pereira Passos, a cultura brasileira em seus mais diferentes aspectos.
entre 1902 e 1906 - buscava sua identidade e sua O Brasil e sua arte necessitavam descobrir o arrojado
forma. Entre o lixo dos cortiços demolidos e dos caminho para a modernização.
quiosques queimados, brotava uma nova capital
destinada a ser majestosa e sedutora. Dos textos
antigos, não mais cabíveis a uma plateia ávida de Os Anos de 1920
elegância, mundanismos e cenários art-nouueaux,
deveria emergir um teatro musical que se colocasse O início da década de 1920 foi marcado por agi-
em sintonia com a desejada e sonhada moderni- tações e transições políticas. Em 1922 morreu
dade. A sociedade brasileira da época apresentava o presidente Epitácio Pessoa e Artur Bernardes
profundo paradoxo entre o anseio de modernização candidatou-se à presidência do país. Em fevereiro
e o rebuliço dos cordões carnavalescos, maxixes, vio- de 1920 morreu, também, Paschoal Segreto, o
lões e serestas, que teimavam em resistir, a despeito dinâmico empresário italiano responsável pela
da visível europeização. Portanto, uma fusão entre o popularização e emancipação do teatro de revista
novo e o velho fazia-se necessária e urgente. Como na praça Tiradenres do Rio de janeiro".
realizar essa liga é que era a grande questão. Pois foi exatarnente durante os anos de 1920 que
Em Paris, o sucesso dos espetáculos musicais o teatro de revista encontrou e divulgou sua fórmula
desviava-se para a fórmula mais moderna do rnusic- tipicamente brasileira. Naquela época, a população do
-hall americano, que privilegiava o espetáculo com Rio deJaneiro crescia,impulsionadapela industrializa-
mais músicas, mais coreografias, mais cenários e ção.A ligação entre teatro de revistae a música popular
efeitos especiais. A velha revista de ano, calcada na estreitava-secada vez mais, pois o teatro exerciao papel
graça simplista do texto, na inteligência das alusões de divulgador da música popular, já que o rádio só seria
e dos duplossentidos, havia sucumbido junto com instalado e popularizado tempos depois. Nos palcos do
o século XIX. A belle époque respirava boemia, ca- teatro de revista é que eram lançados os futuros suces-
barets, café-concertos e music-balls. Esse~ gêneros, sos musicais. Atraído pelos atares-cantores, o público
então mesclados à revista, exigiam componentes lotava os teatros sempre querendo saber e ouvir as novi-
indispensáveis: majestosos cenários, belas mulheres dades. Foi então que se concretizou a fórmula diferente
e diversão sem qualquer comprometimento. Era o e única de fazer revistas. Consolidou-se uma grande
mundo das vedetes, dos cloums, dos cançonetistas, invenção brasileira: a Revista Carnavalesca.
dos ritmos e dos dançarinos, que se encontrava nas Esparsas tentativas de revistas carnavalescas em
casas parisienses conhecidas como Eldorado, Alca- outras partes do mundo já haviam acontecido. O
zar, Ba-ta-clan, Folies Bergêre e, pouco mais tarde, espírito e a substância vinham sendo preparados
como Moulin Rouge, Casino de Paris e Olympia. desde Artur Azevedo. Afastando-se do modismo
Do lado de cá, o Brasil tentava encontrar a sua fór- da revista fragmentada e sem enredo, a carnavalesca
mula para o teatro musicado. Buscava-se um modelo brasileira ressuscitou o antigo fio condutor" e o
capaz de traduzir a alma brasileira, com seus tipos,
seus mulatos, seus malandros, na frenética mistura de 80 Sobre o assunto consultar Maria Filomena Vilela Chiaradia, A
Companhia deRevistas eBurletas do Teatro SãoJosé: A Menina dos
Olhos dePaschoalSeg7'eto, dissertação de mestrado, Uni-Rio, 1997,
78 Compêre é a denominação utilizada para definir uma persona- 81 Enredo frágil que costura os quadros para que não pareçam
gem que exerce a função de apresentadora e comentarista da revista, desconexos. Na verdade, os quadros eram independentes e com-
ao mesmo tempo em que fazia a ligação entre os quadros. preendidos por si só, mas com o auxílio do "fio condutor" e sua
79 Até hoje se diz "revista à portuguesa" "revista à francesa" etc. rênue história, o esperáculo ganhava em interesse e unidade.

• 437
História do Teatro Brasileiro • volume 1

compére" (colocando-o, quase sempre, como o rei fos. O teatro de revista atingiu, então, a sua maio-
Morno), para lançar a marchinha do Carnaval que ridade. Mas nem todos os autores se mostravam
se aproximava. Esse tipo de revista, como aquelas talentosos, pois não é fácil fazer rir com elegância.
antigas revues defin-danée 83) tinha uma natureza Muitas vezes ainda era mais fácil recorrer a velhas
circunstancial, isto é, obrigatoriamente estreava em piadas, nem sempre sacudidas da poeira. Ao lado
determinado período do ano: aquele que antecipava das novas revistas de Carnaval persistiam, ainda, as
o Carnaval. Geralmente o prólogo dessas revistas produções de "novas" revistas, inspiradas e rouba-
mostrava problemas no Rio de Janeiro, como falta das dos velhos figurinos europeus.
d'água, falta de dinheiro, falta de novidades, falta A década de 1920, fertilíssima e marcante, re-
de vergonha por parte dos políticos. Procurava-se o gistrou, nessa miscelânea, um pouco de tudo: com-
rei Morno, depois se arranjava um coup de théâtre8 4 panhias estrangeiras, revistas tradicionais, revistas
para desencadear uma perseguição ou busca. No fi- cariocas inspiradas em modelos de fora, e novas
nal feliz, reencontrava-se aquilo que jamais poderia revistas chamadas "carnavalescas". O movimento
faltar ao espírito brasileiro: a alegria do Carnaval. A era intenso e expressivo. Mas impreciso.
apoteose, obviamente, encerrava o espetáculo com Entre os que sabiam escrever textos para o teatro
a composição carnavalesca a ser lançada naquele de revista estavam aqueles que percebiam na tradi-
ano. Nesse momento, entravam em cena as famosas ção a fonte das riquezas dramatúrgico-revisteíras,
alegorias dos clubes carnavalescos"; cujas torcidas ao mesmo tempo que forneciam aos espectadores,
se reuniam, assidua e costumeiramente, na plateia. através de signos facilmente identificáveis e conhe-
A descoberta do filão carnavalesco foi mais do cidos, um prisma crítico e protegido da novidade
que uma invenção de revista musical, já repleta de superficial. Entre esses autores estavam Carlos
sambas e marchinhas de Carnaval. Criaram-se tam- Bettencourt, Cardoso de Menezes e Luiz Peixoto,
bém uma linha de dramaturgia específica, uma ence- incontestavelmente os três mais competentes e
nação característica, e uma aruação diferenciada. O criativos revistógrafos, depois de Artur Azevedo
público certo e crescente deixou-se seduzir pelo novo e Moreira Sampaio.
teatro, que atingia a estrutura tipicamente brasileira,
ao associar a charge política ao Carnaval, no mesmo
espetáculo. O processo de abrasileiramento que ins- Um Exemplo Antológico
talou a "carnavalesca" foi relativamente rápido. da Eficácia Carnavalesca

Inaugurando a fértil década de 1920, a dupla Car-


A "Carnaualesca" los Bettencourt e Cardoso de Menezes aproveitou
ou ':A. Invenção Brasileira" o retumbante sucesso da marchinha de Sinhô, "O
Pé de Anjo': e colocou em cena a moderna revista
Durante as três primeiras décadas do século xx, em dois aros", com o mesmo nome. Aconteceu,
centenas de revistas, dentro da fórmula carnava- então, um dos maiores fenômenos de bilheteria no
lesca, foram produzidas. A febre tomou conta do Teatro S. José, do' Rio de Janeiro. O Pé de Anjo foi
Brasil e brotaram, por toda parte, novos revistógra- uma espécie de CapitalFederal carnavalesca.
O Pé deAnjo se afastou do modelo convencio-
82 A versão brasileira do compére francês era chamada, eviden-
temente, de "compadre". nal de revista carnavalesca, aquele em que Morno
~3 ~ traduçã~ literal é "revista de fim de ano': versão da nossa era sempre o compére. O prólogo, inusitadamente,
revista de ano.
começava no campo. O cenário era a fazenda do
84 "Golpe teatral" ou situação quase absurda que coloca as
personagens em ação imediatamente. casal Pereira e Filomena, com a filha e mais dois
85 "Alegoria"é uma convenção do teatro de revista oriunda das an- empregados: um português chamado José e um ca-
tigas composições medievais. Trata-se de um recurso através do qual
uma abstração se personifica ou se materializa em personagem. No
rioca chamado Rafael. Esse último, um entusiasta
caso, os principais clubes carnavalescosdo Rio de janeiro (Tenentes
do Diabo, Fenianos e Democráticos) eram representados por uma 86 As revistas anteriores eram apresentadas em três aros, com
vedete que trazia a faixa e as cores do clube. A plateia delirava. intervalos entre eles.
• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

o dramaturgo Carlos Bettencourt, Alfredo Silva e Henriqueta Brieba em PédeAnjo, encenação da


Companhia São José.

defensor do Carnaval carioca. O abrir do pano mel, Lopes (um tipo que se considera azarado) e os
era acompanhado por nostálgica canção caipira dois compéres (José e Pereira) arranjavam-se entre
contrapondo-se à melodia de O PédeAnjo, sempre as camas de cima e as de baixo. Para complicar o
cantarolada porJosé (conhecido como "pé de anjo" enredo ocorria o roubo de um relógio, ainda dentro
por causa do tamanho do pé). A outra diferença do trem. Na chegada ao Rio deJaneiro surgia a pri-
é que a ação se passava no período pós-Carnaval. meira cena alegórica: os dois comperes eram aborda-
Para resolver a questão da não circunstancialidade, dos pelasJ oías, no característico non-sense revisteiro,
isto é, para levar uma revista carnavalesca fora do e todos cantavam e dialogavam em absoluto clima
tempo, os autores, genialmente, aproveitaram a de normalidade, como se fossem personagens de
novíssima moda da mi-carême'". uma história realista. Na capital, apareciam também
Para assistir ao novo"Carnaval da Quaresma?", a Epidemia e seu pai, o Mosquito, assistia-seao Fox-
as personagens partiram de Queluz, com destino -trote, aos manifestos de um grevista e, na apoteose
ao Rio de Janeiro, de trem. Foram todos em vagão do primeiro ato, entrava um Coro de Abat-jours - a
leito! A cena inicial do vagão-dormitório é anto- luz da moda nos anos de 1920. Para não fugir con- à

lógica. Roceiros, trapaceiros, um casal em lua de venção das revistas de enredo'", o casal caipira em
lua de mel, Cazuza e Rosinha, perdia-se ao deixar o
87 A expressão francesa significa "meia quaresma" Alguns jorna-
listas adaptaram naquele ano a ideia francesa ao Rio de Janeiro. A trem, era roubado, confundido com ladrões e ia pa-
alegação foi que os foliões ficavam muito tempo tendo de esperar rar na delegacia apesar de ser, continuamente, pro-
pelo sábado de Aleluia. E criaram um Carnaval brasileiro no meio
da Quaresma, a mi-carême. A evolução do termo convergiu para curado por seus amigos. O segundo ato abria com
a atual expressão "mícarera",
88 A mi-carêrne, ou Carnaval da Meia-Quaresma, foi promovida 89 As revistas que utilizavam o fio condutor eram também cha-
pelo Banco do Brasil,no Rio deJaneiro.Aconteceu enrre I 920 e 1922. madas "revistas de enredo" como rotularam também os franceses.

• 439
História do Teatro Brasileiro • volume 1

o Coro das Ofertas, na Casa de Modas Au bijou de Olelê...! Olalá...!


la ville, de propriedade de José, o português do pé
grande. Chegava Pereira, interessado em comprar Não se pode deixar de aferir a antológica Olelê...!
um presente para a esposa Filomena. As novidades Olalá...!, cuja estreia se deu em 3 de fevereiro de
da loja se ofereciam cantando e dançando. Como 1922, no Teatro S. José (na praça Tiradentes). A
última tentativa para encontrar o casal de roceiros dupla Carlos Bettencourt e Cardoso de Menezes
perdido, os dois compêres vão ao Jornal do Brasil era responsável pela autoria do texto que, definiti-
para colocar um anúncio. O próprio jornal (em vamente, projetou a revista na direção do período
forma de alegoria) os recebe musicalmente. Após dourado das carnavalescas, período esse que se pro-
inúmeras peripécias, relativas à atualidade, dava-se longaria durante toda a década de 193 o.
o reencontro com o casal. Em seguida, vinha a apo- Seguindo o bom figurino da invenção brasileira,
teose com os grandes convidados: os Blocos Carna- OleU...! Olalá...! era, novamente, uma revista de
valescos, saudados aos gritos de "Viva o Jornaldo enredo com perseguições, correrias e uma cena fi-
Brasil! Viva e Mi-Carémei", A própria..2VIi-Carême nal de reconhecimento. Em meio à ação revisteira,
entrava em cena para puxar, no final do espetáculo, na qual nenhum quadro está solto ou perdido em
a marcha que dá o título à peça. relação ao eixo central, havia fortes menções polí-
A estrutura brasileira carnavalesca seguia, por- ticas, atualidades, críticas sociais, tudo mesclado a
tanto, o modelo da "revista de ano de enredo': mas grandiosas cenas de fantasia e às músicas de Freire
agora essa estrutura estava reduzida a dois aros Júnior e Bento Mossurunga.
apenas - o que era, também, uma novidade. A escolha do tema era alusiva. Tratava-se do
Fazer uma revista de enredo era completamente desaparecimento de Morno, como se o Brasil, em
diferente das revistas importadas da época, pois to- meio àqueles difíceis episódios políticos, tivesse se
das estavam chegando no formato de "virar página" deixado tomar pela tristeza. No prólogo, um telão
sem que as alternâncias fossem alinhavadas pelo fio de fundo mostrava telegramas de vários países com
condutor. O ponto mais alto de O PédeAnjo era, os seguintes dizeres:
portanto, a história, embora houvesse inúmeras ce-
nas espetaculares e feéricas, como a dos Abat-jours, EUROPA - Morno, o Rei do Carnaval, depois da Grande Guerra,
na qual os autores pediam "muitos efeitos de luzes desapareceu. Os seus adeptos afirmam que ele morreu...
e cores". Também o gr~nde repertório musical bri- ÁSIA - Morno, o Rei da Folia, não foi encontrado aqui...
lhava. Pontuando a ação, como um presente aos ÁFRICA - Não é exato que o Rei da Pândega tenha fixado
ouvidos, a marchinha "O Pé de Anjo" se repetia. residência nesta parte do mundo.
Morno e Carnaval não apareciam personificados OCEANIA - Não há notícias de Morno.
como era habitual na revista carnavalesca. Mas a AMÉRICA DO NORTE - O Rei da Troça não está aqui. O
genialidade dos autores sublinhava morfologica- decreto proibindo o consumo de bebidas alcoólicas
mente o signo carnavalesco, com a união dos dois seria o seu maior espantalho.
compadres cujos nomes, justapostos, remetiam AMÉRICA DO SUL - Consta que o Carnaval morreu devido à
ao grande folião. Um se chamava Zé; o outro, crise.Dizem que SuaMajestade foi vítima de 'píndahybire'..
Pereira?", Nota importante: Onde estará o Rei Morno? O Carna-
val terá morrido? Estará no Rio de Janeiro ? Um prêmio
de )00 contos a quem o encontrar."

90 A expressão "Zé Pereira" já existia em Portugal antes mesmo


de chegar ao Brasil, e significavao tocador de bombo ou zabumba Em seguida ao prólogo, vinha o quadro pri-
e, por extensão, o conjunto de bombos, tambores e gaitas de fole.
Era também o nome que davam aos conjuntos, verdadeiramente meiro ambientado na mansão de Lelê e Lalá'", um
infernais, de um grande número de-bombos, tambores, que, no
norte de Portugal, à frente das procissões, incitava a gente do
campo a incorporar-se à festa. No Brasil, considera-se também a 91 Cardoso de menezes; Carlo Bettencourt, Olelé...! Olalá...!,
expressão como uma corruprela do nome de seu famoso anima- Rio de Janeiro, [s.n.], 1921-1922, p. 2. (Cópiaxerografada.)
dorJosé Nogueira deAzevedo Paredes que, já em 1848, iniciara 92 Essaspersonagens foram interpretadas pelos arores Alfredo
as barulhentas brincadeiras. Silva e Cecília Porto,

• 440

-
• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

bondoso casal cuja E1ha,alegre e foliona, chamava- havia sido proibida pela censura. A revista, ence-
-se Mimi. O patrão anunciava férias coletivas aos nada às vésperas das eleições, desafiava as autorida-
empregados, que sempre se dirigiam aos senhores des, pois a marchinha, executada no clarinete sem a
utilizando carinhosamente as interjeições "Oh! letra, era identificada pelo público, cujo estribilho,
Lelê!" e "Oh! Lalá!" Um amigo da família contava calcado na alusão falava do palácio de Lelê, onde
das folias do Rio de Janeiro e explicava que, diante José, ex-jardineiro, "haveria de nunca mais pôr os
da carestia e das dificuldades, melhor é sambar e pés': referindo-se ao Palácio do Cacete.
brincar no Carnaval. Esse grande amigo chamava- Alegorias também não faltaram. Entrava, por
-se Carioca e sua divisa era rir efolgar. exemplo, um Coro de Ventarolas, que era a última
A história é desencadeada no momento em novidade carnavalesca para aliviar o calor. Blocos
que os pais de Mimi decidem passar o Carnaval carnavalescosalegorizados surgiam aqui e ali. Havia,
em Petrópolís, para fugirem da bagunça. Mas, também, uma boa mulata chamada Erotildes, que
diante da insistência de Mimi, a família permanece falava um francês arrepiante, aprendido entre o
no Rio de Janeiro. O português José, sabedor da morro e o cais. O senhor Lelê, seduzido pela mu-
recompensa dos quinhentos contos, demitia-se lata e desengavetando os galanteios mais melados e
do cargo de jardineiro da casa e saía à procura de obsoletos, acabava por lhe fazer a grande revelação.
Momo. A família e Carioca saíam para passear e Convém conferir a deliciosa cena final de reconhe-
pandegar pela cidade. Começava assim a ação re- cimento, bem ao estilo Artur Azevedo:
visteira "de movimento". A perseguição, herdada
das revistas de ano, dava-se através do português LELÊ - Mulata, meus quindins! Não foi o Carnaval que

José que, escarafunchando cada pedacinho do Rio me virou a cabeça. Foste tu! Para te provar que a minha
de Janeiro, ia tomando por Momo qualquer folião paixão é sincera, vou te confiar um segredo!
que encontrasse. Mas não era ele o compére, pois a EROTILDES - Jura que não vai mentir? Palavra de honra

ligação dos quadros não se sustentava através dele. que o senhor fala a verdade?
A participação do jardineiro era relativamente pe- LELÊ - Juro! Tens em tua presença o Rei do Carnaval, o

quena dentro do enredo. Rei da Troça, o Rei Morno! Enfim o Rei da Pândega!
Não há mais compadres em revistas a partir de EROTILDES - QE..e me diz!? O senhor, seu Lelê? Então

I922. Em Olelé...! Olalá... !, há "chefes de quadros': Dona Lalá e Mimi quem são?
um procedimento mais moderno que substituía um LELÊ - Lalá é a cidade do Rio de Janeiro, com quem vivo
compadre por vários compadres, cada qual em seu há muitos anos. Mimi, minha filha, é a.Mi-Carêrne lll'"
quadro, sem direito a fazer ligação entre eles ou a
coringar pela revista. De acordo com o quadro ou Após reconciliar-se com Lalá, que não era dada
cenário, os chefes podiam ser Lelê, em sua mansão; aos ciúmes, o casal abria os salões de seu palácio
Carioca, na sua loja de pianos; José, em seu barzi- para oferecer, na apoteose final, um grande baile
nho de suco de frutas, no centro da cidade. carnavalesco. Olelé...! Olalá...! somada à maioria
O segundo ato abria no estabelecimento de das revistas da época, pretendia, como a mulata
José, então transformado em produtor de refrescos Erotildes, "suavizar as mágoas da humanidade".
e caldo de cana. O cenário mostrava uma enorme
moenda com grande roda, capaz de produzir co-
nhecidas melodias carnavalescas sempre que era o Histórico Ano de 1922
movimentada. A rubrica nos informa que havia
um clarinetista fora de cena para executar os tre- Em I922, comemorava-se o Centenário da In-
chos das marchinhas populares. E a mais popular dependência. Dentre os eventos comemorativos
naquele momento era a marcha "Aí, Seu Me", de registravam-se a Exposição Internacional e a inau-
Freire Júnior, que mexia com o apelido do candi- guração do Rádio no Brasil (em setembro) o qual,
dato à presidência da República, o mineiro Artur
Bernardes, conhecido como Seu Mé. A marcha 93 Idem,P: 16-17.

• 44 1
História do Teatro Brasileiro • volume 1

uma década depois, iria concorrer com o teatro de Tiradentes fervia dentro e fora do período àe Car-
revista, no que tange à divulgação e aos lançamen- navaL O teatro de revista brasileiro iniciava a traje-
tos da música brasileira. Com o centenário, crescia tória na direção do grande show. Fertilíssima, essa
o orgulho patriótico. A busca permanente do novo, década definiu a cara do teatro de revista brasileiro
acrescida à questão da identidade nacional, defla- e patenteou a bem-sucedida fusão entre música e
grou, em São Paulo, um dos movimentos mais sig- teatro. E enquanto o rádio não se alastrava, foi esse
nificativos do pensamento brasileiro: a Semana de teatro que revelou os autores e intérpretes mais me-
Arte Moderna. Esses fatos se refletiriam na Revista, moráveis da música popular brasileira. Composito-
como via de duas mãos, contaminando e deixando- res até hoje reverenciados iniciaram suas carreiras
-se contaminar pelas novas posturas e pensamentos na cenarevisteira.José Barbosa da Silva (o Sinhô),
nacionalistas. Freire Júnior, Eduardo Souto, Henrique Vogeler,
Ainda no ano de 1922, chegou ao Brasil a com- Lamartine Babo, Hakel Tavares e Ar)' Barroso, to-
panhia francesa Ba-ta-clan, que, salvaguardando o dos compondo e lançando melodias nesse festivo
espírito europeu no Teatro de Revista, despertou palco nacionaL
nossos autores para o luxo desmedido da feérie 94• À música brasileira eram reservados o maior
A Ba-ta-clan aportava no Rio de Janeiro com espaço e respeito. Os dengues e as brejeirices das
coreografias bem ensaiadas, figurinos elegantes, cantoras e vedetes contrapunham-se ao roman-
efeitos de luzes e de cenários mutantes. As novas tismo das vozes masculinas, sob medida para nos-
girls que substituíam as antigas coristas" eram ex- sas melodias. A mistura de ritmos carnavalescos
celentes bailarinas e mostravam as pernas, antes com modinhas, choros, maxixes e até trechos de
não colocadas à mostra. O público gostou das músicas clássicas era embaralhada e dava espaço
novidades e aplaudiu o esmero da produção. Os também para ritmos americanos, recém-chegados
novos conceitos estéticos impuseram espetáculos com os filmes.
bem cuidados visualmente e renovadas exigências Em 1924, nossos palcos registraram grande
quanto à participação feminina. A revista brasi- invasão de ritmos americanos. Aportaram aqui
leira, em permanente evolução, assimilou os novos ragtimes, [ox-trots, charlestons e sbirnrnies. O
conceitos, dando mais um passo no longo caminho repertório musical era extremamente eclético,
que percorreria até a ostentação cênica. Com esse articulando-se sem qualquer unidade sistemática.
novo figurino, alçavam-se novos voos: combinava- O objetívo, como sempre, era o de agradar e diver-
-se luxo com brasileirismos. Nosso teatro não abriu tir o público, através da atualidade": Lembre-se,
mão dos textos espirituosos nem da crítica política. porém, que no teatro de revista brasileiro dos anos
Mas, de agora em diante, o espírito brasileiro seria de 1920, os americanos não foram levados a sério.
também emoldurado pela fantasia primorosa. Car- Nada resultava perfeito: nem as coreografias, nem
naval com sátira política somada ao luxo tornou-se a harmonia, nem o inglês de nossos cantores. O
o modelo brasileiro de teatro de revista. tom era aquele mais apropriado possível ao teatro
de revista: o tom do escracho. Carnavalizaram-se
os números, juntaram-se o processo de dessacra-
Definindo a Cara da Revista lização e a deturpação, riu-se dos ritmos aliení-
genas impostos pela indústria cinematográfica.
A década de 1920, evidentemente, foi mais que de- Caricatas e côrnicos, nas cenas de coreografias
rivação ou consequência dos fatos de 1922. A praça americanas, propositadamente nunca acertavam
f
o passo, valendo-se do velho recurso da crítica
94 Termo francês que vem defte que quer dizer "fadá'. O termo oriunda do burlesco.
passou a designar um gênero de espetáculos mágicos e deslum-
brantes.
95 A Ba-ta-dan chamava as coristas degirls. Entregirl e corista
havia diferenças profissionais de postura e de técnicas. A função 96 Sobre a "atualídade" ver Neyde Veneziano, O Teatro de Re-
revisteira também era outra, pois de umagirl se esperava mais vista no Brasil: Dramaturgia e Convenções. Campinas: Pomes/
sensualidade que a simples brejeirice da corista. Editora da Unícamp, 1991, p. 65

• 44 2
r-
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

Novidades não Faltavam

Em 1923, Luiz Peixoto regressou da Europa, tra-


zendo na bagagem algumas novidades que, soma-
das às influências bataclânicas, modificaram nosso
panorama, do ponto de vista do texto e da cena.
Luiz Peixoto, em seus espetáculos, orientava os
cenógrafos, os coreógrafos, a concepção de ilumi-
nação e figurino.
A primeira inovação feita nos textos de revistas
deu-se nos prólogos, os quais, nas revistas antigas,
se passavam em estranhos e exóticos locais que,
geralmente, eram moradas de deuses. Foram eli-
minados as personagens extraterrestres, celestiais
ou infernais, deuses ou semideuses, que vinham
à terra passar em revista os acontecimentos da
cidade. A função do prólogo, daqui por diante,
será apresentar toda a companhia, respeitando a
ordem de entrada de acordo com a hierarquia do
elenco, devendo ficar para o final a apresentação
da grande vedete ou do grande cómico, segundo
sua importância, pois, no teatro de revista havia
hierarquia rígida nas marcações e nas filas do coro.
Ainda sob o signo europeu futurista da época, e
entusiasmado pela fantasia da Ba-ta-clan, Luiz Pei-
o dramaturgo Luiz Peíxoro.
xoto introduziu quadros mais rápidos para acelerar
o ritmo da revista.
No contexto do espetáculo, buscou mulheres A Revista Ditando lvloda
bonitas, exuberantes, saudáveis e bem treinadas na
dança. Suas montagens eram sempre "Novidade! O tema principal do teatro de revista é sempre a
Revistas, em tudo) Ba-ta-clan', nas palavras do crí- atualidade. Estar em sintonia com a atualidade é,
tico Mário Nunes". também, o primeiro compromisso do teatro de
Foi nesse clima que Luiz Peixoto e Luiz Ro- revista. Por isso é que às novidades está sempre
cha, em 1926, no Teatro Recreio, criaram a "pas- reservado um quadro, uma música, um esquete.
sarela") uma espécie de meia-lua que se estendia Telefones, ventarolas, abat-jours, descobertas
até o meio da plateia. Consequentemente, estava científicas, automóveis, gramofones, elixires da
institucionalizada, no Brasil, a famosa "fila do juventude, tudo era assunto cabível nesse teatro
gargarejo", para deliciar os machões da época que de ritmos futuristas, em compasso com seu tempo.
até pagavam um preço mais alto pela poltrona. Em 1924, a revista A la garçonne, de Marques
O sistema foi inaugurado com a revista Tururn- Porto e Afonso de Carvalho e músicas de Sá
bamba, de Luiz Rocha, da qual Luiz Peixoto era Pereira, considerada um dos dez maiores êxitos
o diretor artístico'". de todos os tempos, estreou no Teatro Recreio.
A mulher, como tema, estava também na ordem
do dia naqueles tempos de grande movimentação
97 40 Anos de Teatro, v. 2, Rio deJaneiro: SNT, 1956, P: 9 8. urbana, em que constantemente se discutia sobre
98 A Passarela foi um sistema inventado em um dos teatros da o direito de voto feminino. O título da revista
Broadway nova-iorquina, na pr6pria década de 1920, a fim de
permitir ao cantor Aljolson cantar mais perto dos espectadores. fora extraído do romance de Victor 1vfargueritte,

• 443
História do Teatro Brasileiro • volume 1

traduzido no Brasil como A Emancipada. A la A partir daí, com um modusfaciendi adequado


garçonne, entre os diversos assuntos tomados da aos novos propósitos do gênero, o teatro de revista
atualidade, abordou a questão da emancipação brasileiro lançou-se na era do profissionalismo,
feminina. Mas a revista ficou famosa, também, transformando-se em produto organizado para
porque a estrela Margarida Max e suas coristas ser vendido e consumido. Bons autores continua-
cortaram os cabelos muito curtos e lançaram a vam sendo índispensáveís.Mas, agora, eles estavam
moda do novo penteado. O espetáculo viajou por liberados das peripécias cerebrais para se urdir um
várias cidades do Brasil e as moças das capitais e enredo, ou para encontrar uma situação-chave de-
do interior, por muito tempo, ado taram o modelo sencadeadora da ação revisteira. A parte textual da
de cabelo bem aparado à altura da nuca com franja revista exigia habilidade e eficiência na confecção
generosa. Até os anos de 1950, esse corte era co- de esquetes, rábulas e monólogos. A atualidade,
nhecido como ti lagarçonne, podendo-se ter uma a crítica política, a sátira e o humor continuavam
ideia da repercussão e da influência do teatro de sendo temas centrais. Enquanto houvesse bom tea-
revista sobre a sociedade de então. tro de revista, tais ingredientes não abandonariam
Antes deA lagarçonne) o nu artístico resumia-se nossos palcos.
somente em se colocar as pernas de fora. No qua- Em 1929, mais uma novidade foi acrescentada
dro "Sol Indiscreto","a deliciosa banhista Manoela à encenação das revistas: a passarela baixa, utili-
Mateus"?", como a definiu Mário Nunes, tirou a zada pela primeira vez na Guerraao Mosquito 101 ,
parte de cima do maiô e exibiu os seios numa cena de Marques Porto e Luiz Peixoto, um dos maiores
de praia. Documentos e artigos da época definiram acontecimentos da década. O novo recurso ceno-
A la garçonne como símbolo da revista moderna. gráfico servia à estrela Margarida Max, oferecendo-
O conceito de modernidade no teatro de revista -lhe a possibilidade de contato mais íntimo com seu
estava, também, ligado àquele espírito bataclânico público. Também nessa revista o humor nonsense
que havia a todos conquistado. ganhou grande destaque através de uma cômica e
irreverente "conferência': proferida pelo ator Pinto
Filho sobre a guerra aos mosquitos declarada pela
Transformações Estruturais Saúde Pública do Rio de Janeiro. Essa conferência
simulada foi, mais tarde, gravada em disco e con-
Definido, nos anos deI920, o formato da nova re- seguiu ser campeã de vendas.
vista brasileira, a estrutura assim ficou constituída: Foi também em Guerra aoMosquito que estreou
O "Prólogo" ou "Quadro de Abertura': geral- a dupla Jararaca e Ratinho. A carreira da dupla
mente precedido por uma ouverture orquestrada, continuaria em várias revistas, até que os dois idea-
abria o espetáculo apresentando, de formafeérica, lizassem Casa de Caboclo, título de uma espécie de
toda a companhia. As cenas ~eguintes alternavam- companhia caipira especializada em temas e perso-
-se entre vários "quadros de comédias" (quadros nagens sertanejas, apresentando-se, inicialmente,
de rua ou esqueres), "números de cortinas" e "qua- no Cine-Teatro Parisiense para, em 193 I, passar ao
dros de fantasia': Finalizando os atos, sempre em saguão do Teatro S.José, sob o apadrinhamento do
número de dois, uma "apoteose" na qual, como revistógrafo Duque. Uma plateia numerosa e mais
no prólogo, participava toda a companhia. A popular passou a delirar com os temas regionais
apoteose do segundo ato poderia ser mais rápida, e caipiras.
porém mais ufanista e significativa do que a do
primeiro, incitando os espectadores aos aplausos
a cada aparição de mais um artista da constelação
revísteíra':".
101 "Guerra ao Mosquito!" era a frase que as telefonistas diziam
quando se lhes pediam uma ligação (nessa época as ligações eram
99 M. Nunes, 40 Anos de Teatro, v. 2, P: 136 feitas através das telefonistas), intensificando a campanha popu-
100CE. N. Veneziano, O Teatro deRevistanoBrasil..., em que há lar para evitar o desenvolvimento da febre amarela, pois um surto
um escudo pormenorizado sobre a estrurura revisteira. havia irrompido no Rio de Janeiro, em 1929.

• 444
• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

A atríz Margarida Max.

• 445
História do Teatro Brasileiro • volume 1

[ardel [ercolis, sob o Impulso do teatro de revista, agora nitidamente dirigido a


Parisiense dos Anos Loucos uma classe social mais exigente e de maior poder
aquisitivo.
o teatro de revista, a exemplo do café-concerto':", Para escrever a revista de estreia em novo for-
muitas vezes se confundia com as salas ou locais mato, foram convidados dois autores de prestígio
onde se davam os espetáculos. No Rio deJaneiro, no meio intelectual: Humberto de Campos e
a praça Tiradentes (e adjacências) concentrava a Oscar Lopes, que apareceram com seus pseudô-
maioria das salas que exibiam (quase que exclusi- nimos Conselheiro XX e Barão de O'ele, respecti-
vamente) o gênero para um amplo público oriundo vamente'?'. Jardel havia prometido ao público um
de diferentes classessociais. Pode-se dizer que praça texto com mais "qualidade" e um espetáculo des-
Tíradentes e teatro de revista eram sinônimos. No lumbrante. Para tanto, cortinas mais ágeis, novas
entanto, ainda que tentassem se modernizar, os tea- músicas e diferentes quadros cheios de novidades
tros da "praça" teimavam em conservar a estética foram escritos. O cenógrafo Luís de Barros - ci-
popular e tradicional da velha revista consolidada neasta e artista plástico também recém-chegado da
durante décadas. Europa - concebeu a cenografia audaciosa, fugindo
Em 1925 surgiu um outro nome nesse pano- da repetição ingênua dos telões de fundo utilizados
rama, capaz de desviar a velha estética revisteira nas revistas da praça Tiradentes. Era quase uma exi-
para voos mais modernos e arriscados. O nome é gência dos novos tempos.
jardel lércolís'?', um arrojado e irreverente empre- Na segunda experiência da Companhia, Jércolis
sário que voou com a revista para outro bairro do contratou a velha dupla de autores, Carlos Betten-
Rio de Janeiro, a Cinelândia, inaugurando ali uma court e Cardoso de Menezes, que escreveu Fla-Flu.
linguagem mais elaborada e uma grande carreira A crítica, ávida de modernidade, não recebeu com
de sucessos. simpatia o lançamento, pois os autores deram a
Foi na esteira dos loucos anos de 1920, em meio impressão de que aquele velho estilo popularesco
aos rastros deixados pela visita da Ba-ta-clan, que da praça Tiradentes seria retomado. Logo após a
nasceu a companhia brasileira de Jardel Jércolis estreia, contudo, Jércolis deu ritmo ao espetáculo
(batizada com nome semelhante ao da francesa). ao fazer cortes no texto e no espetáculo. O público
Chamava-se Tro-lo-ló, Por trás dela, além de Jardel, aplaudiu e os jornais aprovaram. Animado, Jardel
estava Patrocínio Filho, filho do abolicionistaJosé Jércolis contratou, também, os autores Bastos Ti-
do Patrocínio e conhecido no meio artÍstico como gre e Goulart de Andrade para que investissem no
o "Zecà'. Recém-chegados da Europa, os dois em- novo formato. Deram-se as estreias de Stá na Hora,
presários fundaram a Companhia Tro-lo-ló, mais de Goulart de Andrade'?' e músicas de Heckel
um importante signo de mudança neste percurso Tavares 10 6 ; Zig-Za~ de Bastos Tigre e músicas de
do teatro musicado. Mas, às vésperas da estreia, Antônio Lago; Plus Ultra, novamente de Goulart
Jardel e Zeca se desentenderam. Jércolis seguiu so- de Andrade, com músicas de Heckel Tavares; Brica
zinho, administrando e dirigindo artisticamente a Brac, da dupla Bastos Tigre e Antônio Lago; e Zás
companhia. Todas as ideias de mudanças de mar- Trás, de Luís Carlos Júnior e Victor de Carvalho,
keting e de estética partiram dele. com músicas de Juan Moreno.
O primeiro espetáculo da Tro-lo-Ió chamou- Como era de se prever, aos poucos, as novas e
-se Fora do Sério e inaugurou, em 1925, o Teatro velhas estéticasforam se contaminando. A Tro-lo-ló,
Glória do Rio de Janeiro, transformando então o
bairro da Cinelândia em outro importante reduto 104 Esses eram os pseudônimos que ambos utilizavam em seus
artigos escritos para a revisraA Maçã.
102 O gênero café-concerto somente poderia se dar em casas 105 Goulart de Andrade, como Humberto de Campos, também
apropriadas chamadas de café-concerto, com palco, mesinhas e trazia o prestígio da Academia Brasileira de Letras e escrevia com
bebidas servidas aos consumidores. Desse modo, a classificação o pseudônimo de Zé Expedito.
da casa se confundia com o gênero que a casa abrigava. Café- 106 Heckel Tavares, músico de formação erudita, trouxe requin-
-concerto se apresentava em cafés-concerro. tes pata a otquestra da Tro-lo-Ió, como a inclusão do oboé, por
103 JardelJércolis, pai deJardel Filho. exemplo.
• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

Cena de TrazaNota, de JardelJércolis e Luiz Iglezías,


em produção da Companhia Tro-Io-ló. Teatro Carlos Gomes, 1932.

rendendo-se à força do hábito, foi se apresentar no Para substituir as antigas coristas, que Jércolis
reduto da praça, onde as companhias já montavam chamava de gírIs, vieram dançarinas estrangeiras.
espetáculos mais caprichados, influenciadas que Efeitos ousados iam à cena. A exibição das pernas
estavam pela onda da nova companhia. nuas das gírIs representava mais uma das grandes
Luiz de Barros,considerado a grande revelaçãoda atrações. Na revista Bríca Bracsurgiu o esboço do
cenografia brasileira,abandonou a 'Iro-lo-ló durante que seria, mais tarde, o strip-tease no Brasil. As girIs
a temporada deZig Zage criou uma companhia pró- entravam pela plateia e, aos poucos, tiravam a roupa
pria e de nome semelhante, a Ra-ta-plan (que viria a a fim de vestirem os figurinos da revista, à frente do
encenar espetáculos nos mesmos moldes da 'Iro-lo- público. Claro que permaneciam de combinação.
-Ió). Para o seu lugar,Jardel convidou Ângelo Lazary, Mas a letra da canção era muito maliciosa e extre-
um dos melhores e mais experientes cenógrafos do mamente ingênua para nossos dias:
Rio deJaneiro da época, mantendo o estilo e o acaba-
mento visual. Os espetáculos nada sofreram. Já- Já-Já...
A iluminação passou a ser elemento integrante Já são mais de sete e meia
da linguagem teatral, pois Jércolis a conduzia com Dez minutos temos só
técnica e sensibilidade, transfigurando cenários, A plateia já está cheia
fazendo magia com diferentes intensidades, cores Pois é um fato o Tro-lo-ló.
e sombras. E essa foi outra de suas grandes con-
tribuições à história do espetáculo no Brasil,até É correr mais que depressa
então sem técnicos ou encenadores que levassem É correr com todo afã
iluminação a sério. Pois a peça

• 447
História do Teatro Brasileiro • volume1

Não começa sublinhava a forte tendência de se construir uma


Sem tirarmos peça a peça identidade nacional mestiça, pois os espetáculos
Prá vestir à bataclan valorizavam a cultura negra mostrando-a como
O chapéu saquemos fora um dos símbolos nacionais. No mesmo período,
Zás traz a cultura negra tida como exótica fazia grande su-
E o vestido sem demora cesso em Paris, onde os produtos culturais africanos
Toca a retirar juntavam-se ao jazz, com músicos, cantores e vedetes
traz zás norte-americanos engrossando os elencos de shows
Vamos as meias agora e revistas musicais. O maior exemplo dessa geração
Com cuidado descalçar foi a americanaJosephine Baker que, aos dezenove
Que se a malha rebenta anos, estreou na ReoueNegre, em Paris, e se trans-
É violenta formaria na grande estrela do Follie Bérgeres.
A despesa de outro par. No Brasil, já havia coristas negras no teatro de re-
A combinação galante vista durante a década de 1920. O próprio Teatro S.
Zás traz José apresentava dez coristas negras conhecidas como
Retiramos num instante the black girls ao lado de outras 36 (brancas). No
Com requintes de pudor entanto, era muito comum a apresentação de arares
Zás traz brancos pintados de negro, ressaltando em grosseiras
Quem do nu não for amante caricaturas o tipo tão popular à nossa história.
Feche os olhos por favor... A Companhia Negra de Revistas mostrou-se
como um excelenteponto de partidapara se repensar
Cumpre agora que vistamos a questão do negro e, principalmente, a questão do
Eia vamos ator negro no teatro. Mais tarde, houve a Companhia
Nosso número a rigor Mulata Brasileira, também nos mesmos moldes.
TudoPreto foi a revista de estreia da Compa-
Da cortina para a frente nhia Negra, organizada por De Chocolat. A crô-
Depressinha vamos nós nica e o público não se decepcionaram. A revista
De semblante sorridente fez estrondoso sucesso e a peça associou-se ao or-
Sem olhar para os coiós. gulho racial, com quadros como "Cristo Nasceu
na Bahia" e uma apoteose à "Mãe Negra" em que
Pelo número primeiro brilhavam as vedetes negras Rosa Negra e Jandira
A revista mostra o que é Aimoré, que mais tarde se casaria com Pixinguinha.
Pois com graça A CompanhiaNegra de Revistas durou um ano -
Que se faça de julho de 1926 a julho de 1927. Tudo Preto,
Este número brejeiro alguns meses depois passou a se chamar Preto e
Bem ligeiro salte o pé"? Branco, 'pela inclusão de alguns ateres brancos no
elenco. Foi seguida pela montagem de Café Tor-
rado. Apresentaram-se, também em São Paulo e no
A Revista Negra interior do estado.
Pixinguinha foi regente contratado da Com-
Na segunda metade do ano de 1926 surgiu a Com- panhia Negra desde a sua fundação e permaneceu
panhia Negra de Revistas, com músicos e artistas nela até as apresentações em São Paulo. Em 1926,
negros do Rio de Janeiro e de São Paulo. Mais do a grande atração da companhia era Grande Othelo,
que uma experiência típica ou curiosa, a iniciativa que fugiu de Uberlândia (sua cidade natal) com um
grupo de teatro mambembe, fazendo sua estreia
107 Em Delson Antunes, O Homemdo Tro-lo-lõtfardelfércolis eo profissional na Companhia Negra (durante a tem-
Teatro deRevistaBrasileiro I 925- 1944, dissertação de mestrado,
Uni-Rio, 1996, p. 28.
porada paulista) aos seis anos de idade. A crítica o

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• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

classificou como um verdadeiro assombro. Grande técnicas é possível se constatar todo o cuidado com
Orhelo foi para o Rio e ficou na companhia durante o espetáculo. Havia coreógrafo, diretor de cena, di-
cinco meses. Durante esses meses, foi a principal retor geral, dupla côrnica, figurinista, iluminador.
atração, mudando para sempre o tipo característico As novidades foram muitas. Refletiram-se nos
do neguinho travesso na revista brasileira. espetáculos, nos elencos, nos textos e no brilho. Mas
ainda assim, com todas as alterações, continuava o
procedimento popular do reaproveitamento: reutiliza-
Novidades e Váriedades vam-sefragmentos, músicas,piadas, esquetes,cenários,
figurinos. Para júbilo da plateia, atrizes e comediantes
Nos primeiros espetáculos da Tro-lo-ló, ainda se brasileiros também continuaram improvisando e es-
percebia certa unidade no texto ou, pelo menos, banjando facécias políticas. E os compositores bra-
um tênue fio condutor. Os ventos da modernidade sileiros, com embaraço e singularidade, souberam
que vieram da Europa desviaram, formalmente, a usar os novos formatos a favor da nossa música,
revista de Jércolis para o espetáculo de variedades. mantendo o ritmo e reinventando a ginga que, por
Com a Tro-lo-ló a revista brasileira entra na era alguns momentos, pareceu ameaçada pelo jazz.
do "esperáculo de virar página" modelo no qual Dentre as inovações que Jércolis introduziu no
(como no cabaret) cada quadro existe por si e não panorama revisteiro está a reforma do sistema das
em função dos outros e do qual (como no circo) velhas orquestras que acompanhavam os espetáculos
não se precisa assistir ao número do engolidor de de revista. O cuidado de Jércolis com a orquestra
facas para que se entendam os movimentos da foi uma de suas marcas, transformadas em grandes
bailarina. É este o momento em que a figura do atrações. Compostas por músicos competentes, essas
compére vai ser banida dos palcos brasileiros, para orquestras foram alvo de frequentes elogios. Heckel
dar lugar aos vários "chefes de quadros" que, sem Tavares, maestro de formação erudita, introduziu
costurarem a revista de ponta a ponta, passaram a novos instrumentos jamais utilizados em orquestras
exercer a função do antigo compadre, protagoni- de revista. Em 1928, já se pode constatar a presença
zando, cada um, seu episódio ou esquete respectivo. de Sinhô no grupo de criação musical. Jércolis foi
As revistas de J ércolis lançaram modas, jargões também quem trouxe o jazz para os palcos brasilei-
populares e sucessos musicais. A fórmula apontou, ros, com arranjos sofisticados. E criou a Syncopated
definitivamente, para o "teatro de variedades"} tão Jazz Tro-lo-ló Orquestra. A novidade enriqueceu e
ao gosto dos futuristas I 0 8 • A variedade era, portanto, diversificou as possibilidades melódicas dos espetá-
essencial. Os textos eram inteligentes, divertidos e culos. Sucediam-se ritmos variados, como tangos
apimentados, carregados de double-sens e humor. argentinos, cbarlestons, fados portugueses, polcas
Os temas passavam pelo consumo da cocaína, pelo russas, bailados gitanos. Alternavam-se quadros de
rádio, pelo automóvel, chegavam aos abusos dos ópera com cenas populares de morro e de favela.
governantes, eram suavizados pela exaltação da A preocupação com a boa música do espetáculo
mulher brasileira e dos valores nacionais, em que foi constante na carreira de Jércolis. Em 1932, na
se misturavam negros, brancos e índios. Companhia de Grandes Espetáculos Modernos, a
Na história do teatro musical brasileiro, Jardel orquestra, regida por Jércolis, trazia o nome de Jazz
Jércolis é considerado o precursor das grandes Symphonic. Entre 1934 e 1944, na Companhiajar-
montagens. Ele ajudou a consolidar a nova revista, del Jércolis, tocava aJ ércolis Syncopated Hot-Band,
reflexo do movimento modernista que crescia no uma nova orquestra composta por doze músicos.
país, sob a influência das experiências artÍsticas da Pelo elenco de ateres, comediantes, cantores
vanguarda europeia do início do século. Pelas fichas e compositores da companhia, pode-se avaliar o
grau de produção daqueles especáculos. Fizeram
108 Filippo Tommaso Marinettí lançou, em 1909, o "Manifesto
Futurista". O futurismo exaltava a máquina, a velocidade, a ele-
parte de seu cast: Aracy Cortes, Sílvio Caldas, La-
tricidade e os tempos modernos. Para Marínetti, o teatro de va- martine Babo, Noel Rosa, Assis Valente, Custódio
riedades era o gênero que representava a síntese da modernidade,
Mesquita, Francisco Alves, Ary Barroso, Margot
por ser veloz e sem dogmas.

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História do Teatro Brasileiro • volume 1

Louro, Dercy Gonçalves, Grande Otelo, Oscarito trabalho com a Companhia de Grandes Espetácu-
e Mesquitinha. A mulata Aracy Cortes, que vinha los Modernos, até 1934. Depois, formou a Com-
em ascensão desde o início da década de 1920, era panhiaJardelJércolis. Esteve em cartaz até 1944.
figura importante na companhia. Aracy sintetizou o Ao lado de Luiz Peixoto, Jardel arriscou-se
ideal dessarevista tro-Io-ló direcionada àsvariedades ainda mais nas renovações cênicas para o teatro
e ao music-ball. Ela cantava, dançava, tinha um tipo de revista. Talvez porque ambos tivessem expe-
brasileiro e sensual, era côrnica, caricata e ótima atriz. rimentado diversas funções teatrais, o que lhes
Seus números de plateia entusiasmavam, graçasa sua garantia conhecer por dentro o "edifício revista'.
espontaneidade e ao jeito brejeiro de dizer o texto. Luiz Peixoto era poeta, letrista, autor, cenógrafo
Em sintonia com seu tempo, pouco a pouco, e encenador'!". Apesar de não ter as habilidades
JardelJércolis foi modificando, inclusive, a duração de um dramaturgo, Jardel mostrou-se à nossa his-
dos espetáculos que ficavamcadavez mais curtos. No tória de forma também eclética. Era dançarino e
início, por exemplo, Fora doSério durava duas horas. empresário, dirigia, iluminava, regia orquestras,
Após as temporadas na Argentina e Chile, em 1929, cantava e também maxixava. O último espetáculo
a mesma peça durava pouco mais de uma hora. da Companhia Jardel Jércolis foi Hoje Tem Mar-
E a "filosofia revísteira', que norteou a produ- melada} de Luiz Peixoto eJércolís, levado à cena em
ção teatral da época, esteve bem documentada nos 1943.Jércolis morreu em 1944 num vagão de trem.
próprios textos. Um ótimo exemplo está na revista Nos seus cartazes, o nome das vedetes brilhava
PÓ deArroz} de GeisaBâscoli (1927). Após o pró- em primeiro lugar.
logo, havia a significativa cortina, cuja letra ilustra,
eficazmente, os princípios que norteavam aquela
cena musical moderna: Walter Pinto

No Teatro de Revista, Somente em 1940 é que entraria em cena o outro


o seu fator principal nome importante nas transformações do teatro
é que uma mulher, de revista que já se transformara em significativa
uma mulher, indústria de diversões. O nome era Walter Pinto,
se dispa, conhecido como o maior empresário que o teatro
quando o corpo é escultural'?", de revista já teve.
JardelJércolis havia trocado Portugal por Paris.
Houve grande disputa entre as companhias de O luxo dos cenários e figurinos era sempre anun-
teatro de revista. Se o empresário Manuel Pinto, ciado comme ti Paris. Walter Pinto trocou, defini-
por exemplo, anunciava vinte gírls em seus elen- tivamente, a estética de Paris pela da Broadway.
cos,JardelJércolis contra-atacava com um número Nunca entrou em cena, mas pensou nela como se
ainda maior. Com a competição entre os produto- fosse seu próprio palácio de sonhos.
res, ganhou o espetáculo. O estilo Jardel havia con- Nos cartazes, destacava-se em primeiro lugar o
taminado a praça Tiradentes e colocado o teatro de nome Walter Pinto. Aos poucos, seu rosto come-
revista na rota da fteríe. çou a se revelar no material de propaganda. Mais
A Tro-lo-ló desfez os últimos laços que atavam a tarde, com bigodinho sorridente, a figura magricela
revista brasileira ao modelo português, adaptando- começou a aparecer emoldurada por uma grande
-a, definitivamente, ao estilo francês de espetáculo estrela. Sua foto ficava sempre acima das vedetes.
e texto, embora nunca tenhamos abandonado a
verve brasileira.
Existiu de 1925 a 1932, quando a crise dissolveu
o grupo. Em seguida, JardelJércolis retomou seu 110 A denominação "encenador" não existia na época. Chamava-
-se o diretor de "ensaiador". Ainda que não existisse a expressão,
percebe-se que a encenação no Brasil está nascendo justamente
109 Em D. Antunes, op. cít., p. 34. nesse período, tomando forma e criando linguagens próprias.

• 45 0
• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

o Teatro Recreio (1941-1942), que também ultrapassou o cente-


na Era Walter Pinto nário. Naquele ano, a Companhia Walter Pinto
começou a se apresentar em São Paulo. Tico-Tico
Foi em 3 I de dezembro de 1940, com a revista Disso noFubá (1944), de Alfredo Breda e Walter Pinto,
é que Eu Gosto!, de Walter Pinto e Miguel Orrico, foi um dos maiores sucessos de bilheteria. A revista,
que se inaugurou a fase do deslumbramento no Tea- anunciada como "hino da brasílídade', apresentava
tro Recreio. Oscarito e Aracy Cortes encabeçaram o o chorinho clássico de Zequinha de Abreu que se
elenco da primeira revista que a Companhia Walter tornou internacional.
Pinto apresentou. Disso équeEu Gosto! lançou mais
um novo estilo de revista. Dali para a frente, a "filo-
sofia revisteira" pregaria que "no espetáculo, o fator o Espetáculo Espetacular
mais importante era o que se mostrava'i Mas, como e o Grande Produtor
sempre, durante algum tempo, este novo formato
ainda conviveu com o antigo em que o mais impor- o espírito empreendedor de Walter fez com que,
tante "era o que se dizia" (ou cantava). imediatamente, seu Teatro Recreio passasse a atrair
No Teatro Recreio, à época dos empresários José as camadas mais diversas da população. Para tanto,
Loureiro e Antônio Neves, já se havia apresentado reformou o teatro que se tornou a primeira sala de
mais de trezentas revistas. Depois, o teatro passou às espetáculos a ter cadeiras estofadas, chamadas desu-
mãos de Manoel Pinto. Com sua morte, o Recreio fi- per-pulmans.lvfas tratou de deixar, também, o balcão
cou com o filho Álvaro Pinto. Um desastre de avião, e as galerias, de onde se podia assistir aos esperáculos
porém, tirou-lhe a vida. Walter Pinto, seu irmão mais por um preço bem mais barato. Sua trajetória acabou
novo, com apenas 27 anos, assumiu a responsabili- por mudar o conceito de temporadas. Antes, muitas
dade da empresa teatral. Estávamos em 1940. companhias montavam 12 ou 24 peças por ano. De-
Como empresário e grande homem de negócios, pois do modelo Walter Pinto, duas, no máximo três
Walter Pinto primeiro organizou comercialmente por ano resultavam na medida do sucesso.
sua empresa. Dividiu-a em setores de produção. No palco, a forma suplantou de vez a ingenui-
Havia o diretor da cenografia, o diretor da carpin- dade e a improvisação. As coreografias, que che-
taria, o diretor musical, o coreógrafo, o professor de gavam a contar com quarenta girls, tinham de ser
dança, o professor de canto, o professor de postura, o rigorosamente precisas. Cortinas de veludo, cená-
iluminador. E chamou para trabalhar diretamente a rios suntuosos, plumas, iluminação flérica, ao som
seu lado grandes nomes como o dramaturgo e poeta da orquestra que tocava retumbante, faziam parte
Luiz Peixoto e o compositor Ary Barroso. Esse úl- da grande ilusão oferecida pelo exigente Walter.
timo começou a trabalhar com Walter em 1941, Cascatas não faltavam. Havia cascatas de fumaça,
com OsQuindins delaiá, de J.lvfaia e Walter Pinto, cascatas de espuma, cascatas de água, cascatas de
espetáculo que foi ao centenário I I I e que marcou mulheres...
o retorno de Aracy Cortes ao Recreio, após um Com Walter Pinto, as vedetes conquistaram o
tempo de afastamento. Seguiram-se Pode Ser ou público e superaram, em popularidade, os cômicos.
Tá Difícil?, de Almeida Cabral e Clio Novelino, Cantavam, improvisavam com desembaraço, diri-
com Oscarito e Aracy, e Vócê já Foi Bahia.?"? a giam-se com naturalidade à plateia, sabiam dizer
piadas e eram sensuais. Era o tempo das notáveis
lu' "Ir ao centenário" era uma expressão usada pelos jornalistas Otília Amorim, :Margarida Max, Aracy Cortes,
e significava, evidentemente, fazer mais de cem apresentações. Ir seguidas, mais tarde, por Mara Rúbia e Virgínia
ao centenário era, na época, fato muito raro. A Companhia]ardel
jércolis, em tempos de crise (1931), chegou a fazer esperáculos Lane. Naqueles tempos, automóveis e arranha-céus
que duraram apenas quatro dias em cartaz. já se multiplicavam no Rio de Janeiro.
112 Título de um samba de Dorival Caymmi. É, também, o
título brasileiro do famoso filme de animação de \Valt Dísney,
Para sublimar a exuberância de suas vedetes,
TbeTbree Caballeros, de 1944, em que aparece pela primeira vez Walter Pinto criou a escada-gigante. Girls e vede-
a personagem Zé Carioca e no qual Aurora Miranda interpreta
"Os Quindins de raiá".
tes, para surgirem no topo, deveriam entrar nele

• 451
u: .(_:. ,/~ T_ _~ 7:I_ •• :l_:_~ • •. ~l.. __ •
u: .(_:. ,/~ T_ _~ 7:I_ •• :l_:_~ • • •~l••__ •

Apoteose da peça CantaBrasil, montada pela Companhia \'Valter Pinto em 1945.


A cena alude à tomada do Monte Castelo pelo exército brasileiro na Itália, durante a II Guerra Mundial.

através dos camarins do primeiro andar. Depois, política já fazia desviar o foco de atenção para a
para descer os degraus, um a um, teriam de fazê- malícia e a sensualidade, como o faria também na
-lo com elegância, sem jamais olhar para o chão. década de 1960.
Conta-se que Walter Pinto as obrigava a descer, em
média, trinta vezes por dia, até que conseguissem
fazê-lo com graciosidade, sorrindo e de cabeça Reinando com lvIalandragem
erguida, condições básicas para se fazer parte do Durante a Era Vargas
elenco. No corpo de baile Il 3 , havia dançarinos
franceses, poloneses, portugueses, argentinos. A malandragem e o escracho comentavam fatos
Todos trabalhando sob rígida disciplina. No meio do dia a dia e continuavam muito vivas, apesar das
de todo esse cuidado com os aspectos visuais, sur- ameaças constantes do Dlp Il 4. Aliás, uma das pri-
giam cômicos como Oscarito, Mesquítínha, Dercy meiras proibições do DIP foi a de explorar a figura
Gonçalves, que também compunham o casto Por- do ditador, mesmo em charges ou caricaturas que
que, mesmo debaixo de todas aquelas luzes, o lhe fossem favoráveis. O DIP, que fora criado exclu-
estilo da comicidade brasileira continuava firme sivamente para guardar a imagem do ditador com
e irreverente. Historicamente, burlar a censura e suas plataformas populistas e políticas, pouco res-
os poderosos são convenções do teatro popular e, tringiu a ação dos revistógrafos brasileiros. Estava
em especial, dos gêneros cômicos. São estratégias claro que ser criticado nos palcos da revista poderia
da dramaturgia enfrentando o cotidiano e as in-
justiças sociais. A grande irreverência da revista
ainda era uma de suas maiores forças. A censura 114 O DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, foi criado
em dezembro de 1939, por um decreto do presidente Getúlio
Vargas, com o objetivo de difundir a ideologia do Estado Novo
113 O corpo de baileera formado pelas girls e pelos boys. (1937-1945). Ao DIP cabia a censura de artes e diversões.

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• o Teatro Profissional dosAnos de 19.20 aosAnos de 19 5o

ser muito temeroso e, paradoxalmente, aceitável, Walter Pinto reinou com sua milionária com-
pois levava à consagração e à fama. panhia durante vinte anos (1940-1960). Destes,
Contudo, dois fatores impediram os autores cinco anos foram durante o período ditatorial
cariocas de atacarem díretamente os feitos do go- da Era Vargas (1937- I 94 5) IIS e, posteriormente,
verno. O primeiro era gerado pela simpatia que o durante mais quatro anos, quando Getúlio se fez
presidente angariara na classe teatral. Os profissio- presidente legalmente, pelo voto do povo. Como a
nais de teatro no Brasil deviam a Getúlio Vargas revista reflete e revista os fatos do presente, as mar-
a legalização da profissão II 5. Essa gratidão, muitas cas dos comportamentos, da política e da ideologia
vezes, refletiu-se no palco, como nos informa Luiz que pareciam harmonizar o Brasil, espelhavam-se
Iglézias: no palco iluminado. A ideologia governamental
fazia o povo acreditar que este é o melhor país que
Por isso, o nosso profissional de teatro deve muito a Getúlio há. Era cômodo, ufanista, cívico e, sobretudo, útil
Vargas. Em compensação, Getúlio Vargas deve ao nosso tea- ao populismo. O barracão de zinco reluzia lírico e
tro uma grande parte de sua popularidade e da estima que lhe prateado. Carnaval, mulher e malandragem eram
dedica o nosso povo. Nunca um chefe de governo foi tão fo- as imagens que caracterizaram o Brasil do Estado
calizado em palcos teatrais, como o triunfador da Revolução Novo. O malandro, o virador, especializado em pe-
de I 93o. A figura de Getúlio Vargas apareceu, sempre, como quenos golpes, sempre se saía bem e era exaltado.
atração principal de todas as revistas que se representaram e Ele e a mulata fortaleceram-se como símbolos da
da maneira mais simpática encarnada nos tipos mais popu- pátria naquelas revistas e protagonizaram um uni-
lares da massa, uma vez vestido de gaúcho, outra vez vestido verso de purpurinas, totalmente as avessas.
de operário, de caçador, de revolucionário, de lavrador, de O malandro já era cantado no palco e nos dis-
professor, de galo e até de mo torneira de bonde!1l6 cos há algumas décadas. Do seu figurino revisteiro
fazem parte a camisa listrada, o sapato em duas
o segundo motivo que, possivelmente, suavi- cores, o chapéu tipo palheta. Apesar da conotação
zara as caricaturas satíricas feitas ao chefe da nação, imediata ser a de um vagabundo, ocioso, morador
era um receio natural que dominava alguns revís- das favelas, negro, mulato ou branco, a malandra-
tógrafos diante do regime radical e totalitário. Du- gem transformou-se, nessa época, em sinônimo
rante o governo do presidente Vargas, que durou de esperteza. Uma esperteza que se tornaria um
até 1945, Pedro Dias, magnificamente maquilado signo mais abrangente ao representar o caráter do
por Luiz Peixoto II 7, caricaturava Getúlio Vargas brasileiro médio. E o presidente Getúlio Vargas,
dentro das limitações que o regime permitia. O pelas rasteiras que pregara em correligionários e
governante, que gostava do teatro de revista, sor- adversários políticos, passou a ser considerado um
ria complacente e acenava para o público do alto grande malandro, isto é, um esperto. Essa figura
de seu camarote, no Teatro Recreio. No palco, a fi- obrigatória em revistas brasileiras que assumiu ca-
gura populista como personagem limitava-se, com ráter emblemático ligado ao Carnaval fortaleceu-se
o charuto aceso, a acenar com a mão direita. Para o nas revistas dessa época.
público, ficava subentendido que o poder resistiria. Quando, em 1942, o Brasil entrou na Guerra, o
conflito mundial converteu-se em mote de quadros e
115 A regulamentação da profissão foi publicada como Decreto- apoteoses nas peças: .Alerta,Brasil! (1942), de Cus-
-Lei, no Diário OficiaL de 18 de julho de 1928. Antes da lei,
atores, atrízes e técnicos eram considerados gentesemprofissão e
tódio Mesquita e Miguel Orrico, com Mesquitinha
desclassificados socialmente. As condições de trabalho nas com-
panhias teatrais eram desumanas e as empresas não concediam
118 A chamada "Era Vargas" começa com a Revolução de 193 o e
descanso semanal aos artistas. No processo vertiginoso das mon-
termina com a deposição de Getúlio Vargas, em 1945. É marcada
tagens que se sucediam, enquanto apresentavam um espetáculo à
pelo aumento gradual da intervenção do Estado na economia e na
noite (àsvezes com duas ou mais sessões), ensaiavam a peça que
organização da sociedade e também pelo crescente autoritarismo
iria substituir a que estava em cartaz.
e centralização do poder. Divide-se em três fases distintas: Go-
116 O Teatrodalvfinha ru: RiodeJaneiro: Valverde,1945,p. 139. verno Provis6rio (1930-1934), Governo Constitucional (1934-
117 Luiz Peixoto, além de dramaturgo e autor da burletaForro- 1937) e Estado Novo ou Governo Ditatorial (1937-1945). Em
bodâ, era um homem completo de teatro. Além disso, foi exce- 1950, Getúlio volta à presidência da República, eleito pelo povo.
lente letrista de músicas famosas. Fica na Presidência até 24 de agostOde 1954, quando se suicida.

• 453
História do Teatro Brasileiro • volume1

e Aracy; e Rei Morno na Guerra (1943), de Freire do Rio deJaneiro como centro de nossa atenção por-
Jr. e músicas de Assis Valente, com Dercy Gonçal- que foi na capital da República que o movimento se
ves, Pedro Dias, Mancel Vieira e 150 passistas da tornou significativo.Em termos numéricos, o teatro
Escola de Samba de Mangueira, sob a direção de de revistafoi o gênero mais expressivoque o Brasiljá
Otávio Rangel. teve. E não se podem desprezar os números.
Uma leitura mais atenta das revistas da Era Em 1946, Durra foi eleito presidente e Renata
Vargas vai nos colocar diante de certas saídas Fronzi já estava em cena no Recreio como a nova
encontradas pelos autores, através de alusões, as vedete. Naquele ano, Walter D1\.vila também im-
quais, com certeza, estariam, em últim~ análise, pressionava a plateia com seu novo estilo de humor.
criticando comportamentos governamentais e Em 1947, Colé Santana se firmou como grande
sociais institucionalizados, como aquele emitido comediante, Dercy Gonçalves formou sua própria
pela voz presidencial, que se tornou célebre: "Deixa companhia. O produtor e diretor Chianca de Gar-
estar para ver como é que ficá'. cia também cresceu com suas produções. A revista
Três décadas mais tarde, a figura do malandro havia se consolidado como arte de massa.
perderia seu encanto. Seu lugar no teatro seria No final do período, a primazia das noites ca-
ocupado pelo marginal, fruto do desemprego, da riocas era disputada entre as vedetes Mara Rubia e
má educação que recebeu em criança, da parca ali- Virgínia Lane. Em 195o, Virgínia Lane recebeu do
mentação que teve, do barraco em que nasceu e da presidente Vargas o título de ''A Vedete do Brasil"
mãe que o abandonou. Mas ainda não chegara a vez e foi com Getúlio Vargas que a estrela manteve um
do Teatro de Arena nem do teatro de resistência. discreto caso de amor durante 1 5 anos, sendo a 1~
As pessoas ainda tinham fé. Ainda acreditavam dama da República dos bastidores.
que Deus poderia mesmo ser brasileiro. O mito A censura era rígida em relação às palavras, mas
da Carta de Caminha, de que na nossa terra "em os textos sabiam insinuar pornografias e, repletos
se plantando tudo dá': ainda absolvia a indolência de sentidos duplos, ficavam abertos à malícia dos
e a preguiça macunaímicas. espectadores. O nu (somente) estático, feito pelas
"modelos': era permitido durante o período aqui
estudado.
Espetáculo e Produção Se Confundiram A história do teatro Recreio terminou em 1963,
quando foi desapropriado e destruído. Durante os
Terminada a Guerra, em 1945, a praça Tiradentes vinte e três anos em que lá esteve, Walter Pinto fez
fervia em dias de glória. A vedete Mara Rúbia, em com que a revista subisse tantos degraus na escada-
início de carreira, era a nova sensação. O Bonde da ria daflerie que a precipitou no abismo inevitável.
Laite foi uma das revistas de maior sucessoem 1945. Era dar mais um passo à frente e... cair.
Escreveram-na Luiz Peixoto e Geisa Bôscoli.Enca-
beçavam o elenco Mara Rúbia e Dercy Gonçalves.
Também de 1945 foi Canta Brasil, de Luiz Peixoto A Representatividade de Toda
e Geisa Bôscoli, uma revista cheia de inovações téc- Representação
nicas, ao estilo de Walter Pinto, que gostava de pôr
em cena as fantasias mais fantásticas. O teatro de revista no Brasil pode ser visto como
Mas nem só de Walter Pinto vivia a revista. Era um gênero de teatro musical que detinha, no país,
um vaivém dos ateres entre teatros e companhias. mecanismos próprios de construção de texto e
Aracy Cortes, Dercy Gonçalves, Beatriz Costa e espetáculo. Pode ser entendido como divulgador
Oscarito, entre tantos, montaram e desmontaram dos êxitos da música popular brasileira, oferecendo
suas próprias companhias. um painel surpreendente de composições e com-
ElegemosJércoliseWalter Pinto para representar positores que, até hoje, cantam no imaginário co-
os anos de 1920 a 1950 porque tratamos de um tea- letivo. Pode ser tomado, também, como o gênero'
tro empresarial.Da mesma forma, elegemosa cidade que melhor exprimiu a ideia que o Brasil tinha de

• 454
• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

si nas primeiras décadas do século xx. Numerosos usurpação, uma tirania. E aí o astro se transforma
podem ser os pontos de vista. Ainda mais quando em uma figura pejorativa. É curioso observar que em
se trata de um teatro polissêmico, na sua essência e astronomia astro é "nome comum a todos os corpos
no seu formato, no seu conteúdo e na sua estética. celestes,com ou sem luz própria', conforme se lê no
Podemos observá-lo, inclusive, como empresa de Dicionário Houaiss. Em teatro, no nosso idioma,
arte e diversão de massa e, também, dizer que é um ainda que o termo estrela seja por vezes mais usado
dos elementos responsáveis no processo da forma- para as mulheres, as duas palavras se confundem:
ção da nossa identidade cultural. astro e estrela podem ser empregados para definir
O teatro de revista não se inscreve mais em ateres e atrizes, sem distinção de gênero. Podem tra-
nosso presente teatral. As marcações simples, todas duzir, no entanto, ao longo da história, densidades
em linha reta, de frente para a plateia, respeitando diferenciadas, muito embora revelem sempre uma
as convenções e hierarquias caíram de moda. Nesse orientação obstinada para construir o próprio per-
mundo em que se televíve, chamamos ingênuo o curso e delimitar a sua órbita.
humor verbal. Remetemos ao plano do nevoeiro As duas palavras são úteis para pensar a histó-
esse teatro que cumpriu exemplarmente seu papel ria do palco recente, em particular a dinâmica que
modificador durante décadas. caracterizou a primeira metade do século xx na
Quando se tenta reconstruir a história, depa- cena brasileira. Astro e estrela encerram referências
ramo-nos com marcos e bandeiras considerados a um lugar e a uma constituição interior, falam de
definitivos. Pascoal Carlos :Magno tirou o ponto, hierarquia e de energia ou luz própria. Na primeira
dizem. A encenação no Brasil surgiu de um po- palavra, destaca-se o poder de comandar uma
lonês, acredita-se. Não se prestou muita atenção, constelação, uma trama de subordinação essencial
mas bem antes Jardel já ousava apresentar espetá- para que o astro possa existir. Na segunda palavra,
culos sem ponto. E Luiz Peixoto (que também fez associável ou não a uma função de comando, duas
teatro sem ponto), provavelmente foi o introdutor qualidades estão presentes: elevação e irradiação. E
da "encenação" no Brasil. E Artur Azevedo? Este dois dicionarístas do teatro, por sua especialidade -
já pensava e descrevia o texto-espetacular em suas ao menos em parte, com relação ao segundo, po-
revistas. E assim segue o teatro brasileiro. Porque dem ajudar a reflexão. O primeiro texto é o verbete
não há invenção sem construção. Tijolo a tijolo. "estrela" de Sousa Bastos:

É a denominação que se dá a um artista, nem sempre de


grande valor, mas que obteve muita influência no conceito
do público. Apesar de se dar a classificação de estrela a um
ator ou a uma atriz, são estas que quase sempre assim se
intitulam, tendo as exigências inerentes. As estrelas ordi-
nariamente são medíocres e arruínam as empresas com suas
4. os GRANDES ASTROS intoleráveis pretensões. As estrelas, além de todo o prejuízo
que dão ao empresário, ainda comunicam aos colegas a in-
subordinação, desmoralizando o teatro. Mais tarde ou mais
Astro: a palavra é forte. Muitas das várias acepções cedo o público desengana-se de que a estrela nada vale;
que se encontram nos dicionários indicam situações mas quando o empresário o percebe, já está arruinado-",
soberanas, polarizações hierárquicas, órbitas espeta-
culares. Do universo à sociedade humana, o campo É clara, na visão do autor, a ressonância de uma
das artes da representação em destaque, não há como de suas outras ocupações eventuais, a de empre-
ignorar que astro sinaliza o reconhecimento de um sário, ponto de vista que interessa, ao menos por
limite último. Por vezes a designação não tem va- enquanto, deixar de lado. Mais adiante será inte-
lor positivo - além de indicar a grandeza em alta
119 A. de Sousa Bastos, Dicionário do Teatro Português, Lisboa:
escala, indica também um transbordamento, uma Imprensa Libanio da Silva, 1908, p. 60.

• 455
História do Teatro Brasileiro • volume 1

ressante considerar os termos de sua azeda restri- Segundo Aurore Evain, o aparecimento da
ção. Por ora, o que importa sublinhar é a condição categoria de atriz profissional foi a última etapa
estabelecida de saída para a definição de estrela: a enfrentada pelo teatro, na Europa, para se tornar
essencial aclamação pelo público, ainda que outros uma prática social reconhecida, de mercado, autô-
pontos de vista possam considerar que a voz geral, noma. De acordo com as suas pesquisas, houve, em
que aclama, está enganada e que logo descobrirá o particular no século XVI e até o século XVII, uma
erro em que incorre. Detalhes descartáveis, afinal: polêmica a propósito do aparecimento das atrizes
o que conta é o clamor do povo, retumbante em profissionais na Europa. A polêmica em torno da
algum momento, em grau suficiente para construir atriz era, antes de qualquer coisa, uma polêmica a
uma reputação. propósito da "mulher em representação"; objeto
Outro verbete, assinado pelo brasileiro Otávio de atração cujo poder erótico resultava da exposi-
Rangel, traz uma definição bem diferente e reveste ção pública do seu corpo. Essa condição situa uma
a estrela de uma aura positiva absoluta: aproximação entre a prostituta e a atriz: em meio
ao panorama cultural da época, de uma teatralidade
A figura maior de um elenco de qualquer gênero de peças. ambígua e de múltiplas possibilidades, eram muitas
Deve ter real valor artístico, destacada erudição, cultura as brechas que permitiam a infiltração feminina: ''A
social apurada; físico modelar e largo tirocínio da sua arte. atriz se definiu gradativamente por sua faculdade
Além dessas condições essenciais, deve estar de posse, de se inserir através dessas brechas e de suplantar
indispensavelmente, da simpatia pública e bem assim da numerosos obstáculos e interditos"!".
unanimidade de louvores por parte da crítica do país 120. Essas observações são importantes porque
permitem dar conta da afirmação do teatro no
A partir dessas duas definições, seguindo-se a Ocidente como uma construção ditada pela pre-
busca de aproximações entre os seus dizeres, talvez sença do ator, quer dizer, personalidades ímpares,
se possa definir o astro, a estrela do teatro, por sua homens e mulheres, que erigiram o seu espaço de
capacidade de arrebatar o público, gerada por uma expressão como espaço de representação e viabi-
habilidade de expressão e de comunicação. Um lizaram a sua sobrevivência e a sobrevivência de
corpo em forma, capaz de dizer algo a respeito de sua arte como realidade autónoma, independente,
seu tempo para aqueles que, ao redor, se propõem capaz de acontecer sem o sustentáculo de classes
a serem ouvintes, é aclamado como porta-voz da dirigentes, instituições, figuras de poder e relevo
sensibilidade da época. Há, portanto, um uso do político, econômico e cultural: emanciparam-se
corpo e a aceitação do corpo do outro. Há uma dessas exigências externas, digamos. E o fizeram
individualidade especial, única, peculiar, que luta com o uso público de seus corpos, vitrines para a
para ser reconhecida enquanto tal e é consagrada exposição do jogo sensorial e ideal contemporâneo,
precisamente por essa qualificação. em uma comunicação direta, pessoa a pessoa, trans-
A dinâmica integra a história do nascimento do gressora, mediada pela carne. No teatro europeu e
teatro do Ocidente. ~er dizer, após o medievo, no teatro norte-americano, esse caminho aconte-
no instante da inauguração da Idade Moderna, a ceu em estado de tensão, pois as individualidades
emancipação do teatro frente aos grandes senhores, foram sedimentadas em relação a forças sociais que
aos mecenas, a sua afirmação como fato de mer- pleiteavam - ou mesmo realizavam - a tutela desses
cado, se deu graças ao aparecimento e à aclamação artistas; a cada avanço das personalidades aconte-
de grandes individualidades, capazes de transfor- cia alguma mutação institucional, nem que fosse a
mar o métier em necessidade social. Falar em métier solidificação de vertentes de mercado.
não é opção gratuita, nem falta de vocábulo - o Existiu, portanto, uma trajetória singular, capaz
que se quer é aproveitar uma outra ressonância, a de gerar astros e estrelas fora dos poderes sociais
referência à prostituição. correntes, fora das carreiras artÍsticas e intelectuais

121 A. Evain,D1pparitiondesactrices profissionelles em Europe.


120 Têcnica Teatral, Rio deJaneiro:Artes GráficasInca, 1949, p. 97. Paris:L'Harmactan, 2001, P.23.
• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 195 0

tradicionais e do espírito; criou-se uma prática, um Astros e Estrelas no Brasil


fazer, um modo de produção, mas um modo de
produção muito específico, devotado à reprodu- No caso brasileiro, em que o mecenato e a ação ins-
ção efêmera do mundo, para a obtenção de prazer, titucional dos diferentes poderes sociais - Estado,
sensações, emoções, alegrias, enfim manifestações Igreja, Escolas, Agremiações, Notáveis, Ricos... -
passageiras do imediato, como se acontecesse uma não reconheceram, após a independência política
rebelião do corpo. Dentro dessa esfera de gratui- frente a Portugal, a necessidade de estímulo à prática
dade, parece lógica a aproximação entre atrizes e do teatro, é possível vislumbrar, em estado bruto, o
prostitutas; há, de certa forma, a configuração de esforço solitário e o poder pessoal de mobilização
um interdito social, ainda que as duas categorias necessários aos artistas para afirmar (ou impor) a
estivessem separadas, depois de certo tempo. A sua profissão, a sua arte e o encanto de suas perso-
aproximação, no Brasil, em um matiz histórico nalidades. A construção do espaço social do teatro
muito lógico, sobreviveu até bem avançado o sé- lhes coube, mais do que a qualquer outro elemento
culo XX e contaminou o contorno da profissão, da sociedade; não surgiu a necessidade, portanto,
em particular nos segmentos em que o corpo da de emancipar-se de qualquer instância social de
atriz era veículo importante para a comunicação proposição ou apoio à arte. Também não se insta-
com a plateia. lou uma trajetória de atrito entre personalidades e
Importa reconhecer, então, o aparecimento instituições, a partir do nascimento e da projeção
de criaturas criadoras de dimensão exemplar - e de grandes astros. Ao contrário, até o alheamento
talvez por isso elas pudessem figurar no texto de das forças sociais diante da gênese e da produção
Sousa Bastos como eficientes "criadoras de caso" do teatro contribuiu para ampliar o preconceito,
e de problemas para a ordem ideal da empresa. herdado da Europa, contra o universo da arte, fa-
De certa forma, trata-se da dinâmica de uma era; zendo cristalizar a discriminação contra os artistas
acreditava-se que o indivíduo movia o mundo, era em manifestações várias de repulsa. Ainda que os
o sujeito do universo e ele começava a se despojar artistas se tornassem célebres, aclamados e ricos, o
de camisas de força e mordaças que o continham até seu lugar na vida social era demarcado com claras
então. Nessas circunstâncias, era natural que o ator tintas de exclusão até datas avançadas do século xx.
se projetasse como o grande mago dos palcos, o polo A sua condição de monstros, figuras que po-
humano capaz de irradiar as sensações importantes dem ser supostas como entidades que ultrapassam
para a vida social de seu tempo. E o teatro da época o humano corrente, continha algo da realidade
passou a se construir ao redor de vedetes, mons- vivida, na qual se obrigavam a portar a marca da
tros sagrados, seres especiais aos quais se atribuía diferença frente à vida normal e precisavam se su-
um valor espetacular. A dinâmica foi o segredo do jeitar ao exercício de múltiplas funções. Portanto,
século XIX e talvez se possa cogitar que tenha sido o a construção desse espaço social do teatro, emanci-
último grande momento pleno do sujeito ocidental, pado e autónomo, foi obra realizada pelos grandes
muito embora, a princípio, o seu caráter tenha sido atores do século XIX, ao lado de atores-comparsas,
local, pois a primeira grande vedete de dimensão autores, ensaiadores, artesãos e operários da cena,
mundial só teria surgido mesmo no final do século, críticos, enfim, homens de teatro. Foi, em resumo,
com a aclamação de Sarah Bernhardt. A prática se produção de uma classe, mas o grupo adquiriu
estendeu ao século XX em diferentes países; aponta, feição e impôs o seu direito à expressão a partir da
contudo, para uma forma de estrelato e de artista liderança dos grandes intérpretes. Para fundamen-
bem definida, astros e estrelas heroicos, uma espé- tar um pouco mais esse argumento, vale destacar
cie de criatura criadora criada por si, diferente dos que os únicos integrantes da classe que passaram a
grandes nomes modernos e posteriores, frutos de sobreviver exclusivamente de seu ofício, no século
um sistema de arte dotado de forte eficiência, que XIX, foram os ateres, os primeiros ateres em par-
tem um papel impactante para a consagração - ou ticular, mesmo que esta vida nem sempre fosse um
não - dos talentos naturais que surgem. exercício de prodigalidade.

• 457
História do Teatro Brasileiro • voLume 1

É preciso sublinhar a existência de uma dinâ- mentes de identificação intensa com a arte da cena.
mica diferente da europeia, pois não houve como Nos serões das famílias, os salões podiam se insi-
ponto de partida a tutela de personalidades ou nuar como espelhos, atualizados segundo a moda
instituições, mecenato, enfim. Houve sim um pacto da estação. O reconhecimento foi decisivo para
entre atores e público, uma trajetória iniciada a instauração da era dos astros, ainda que não se
com João Caetano em nosso período romântico. possa contar com pesquisas históricas definidoras
O século XIX foi o momento de construção desse do perfil das plateias brasileiras, para afinal neutra-
pacto. A época dos grandes astros foi iniciada no lizar um velho truísmo que teima em sustentar que
século xx e foi uma resultante dessa construção. os frequent-adoresdos teatros na época eram apenas
Na impossibilidade de estender a análise, é possível as camadas populares.
recorrer à edição de Serenatas e Saraus, de Mello Na prática, a era dos astros apresenta um sig-
Moraes Filho, para fechar o ponto de vista pro- nificado simples: a mesma rotina unindo diversas
posto. Na apresentação do volume dedicado aos biografias estelares. Um ator - como o sol, no
recitativos, diálogos e monólogos, cançonetas, ce- sistema solar, ou o homem, no centro da vida na
nas dramáticas e cenas côrnicas, o estudioso observa Terra - ca~regava nos ombros o segredo da magia
que os textos reunidos são parte de um acervo social da cena; era o primeiro ater, imposto aos contem-
construído durante a segunda metade do século porâneos por sua personalidade, impositivo por sua
XIX, em particular após a chegada ao Rio de Ja- capacidade de comunicação e domínio do público.
neiro, em r 856, de Furtado Coelho, ator que teria A qualificação envolvia a mais ampla maestria em
difundido o gosto social, doméstico, pelos recitati- sua arte: além de sujeito da cena e em cena, senhor
vos e representações. O autor procurou, portanto, de uma forma de expressão encantadora que a
recolher em sua obra aquilo que o teatro propusera plateia adorava acompanhar, o astro era líder de
e o público incorporara, fragmentos.lvlas não eram sua categoria, artífice de sua companhia, mago da
quaisquer fragmentos - bilheteria, empresário e forjador do próprio ofício.
Em resumo, o astro era aquele que construía a arte
fragmentos esses que, uma vez vitoriados no palco, trasla- de que sobrevivia e para a qual vivia, singrando
daram-se para os salões, onde são apreciados com as toadas um canal que o século XIX construiu e que só se
geralmente sabidas de cor, não obstante grande numero revelou estável nos finais da centúria, quando um
de edições impressas por aí se encontrarem à venda nos sistema de relações entre o palco e a sociedade se
estabelecimentos especiaís'". apresentou amadurecido. Os astros se projetaram
como os eixos de sustentação desse sistema.
O texto localiza a existência de uma prática Diversos foram os seus nomes. Após a etapa
expressiva que unia palco, plateia, salões e saraus, heroica do século XIX - em que uma sensibilidade
uma prática voltada para a manifestação e o livre brasileira foi moldada porJoão Caetano, Estela Se-
exercício da habilidade pessoal histriônica. Por- zefreda, Gabriela da Cunha, Eugênia Câmara, Ade-
tanto existiam modelos e seguidores, originais laide do Amaral, Furtado Coelho, Lucinda Simões,
e cópias. A fala, o verso ou o canto do primeiro Ismênia dos Santos, Vasques, Dias Braga, Martins,
ator eram formas de demonstração de sua rara Rosa Villiot, intérpretes em que ainda o pacto se
habilidade; bem-sucedidas, eram aclamadas e, ad- construía e em que ainda havia oscilação, busca do
miradas, tornavam-se as peças de um diálogo que encontro com a plateia - um rol de personalidades
ultrapassava o jogo palco-plateia, viabilizavam a ímparespode ser citado. Os nomes de inquestionável
difusão diletante do teatro nos salões. Assim, em projeção, que precisam ser qualificados como astros
especial após o reconhecimento da genialidade de e estrelas,personalidades únicas dotadas de luz pró-
João Caetano, afinal um ícone nacional inconteste, pria, são Itália Fausta (r880?-r9 5r), Leopoldo Fróes
foi possível introduzir nas práticas sociais instru- (r882-r93 2), Procópio Ferreira (r 898-r979),Jaime
Costa (r897-r967) e Dulcina de Moraes (r9II-
122 Em SerenataseSaraus, Rio de Janeiro: H. Garnier, 1902, p.
6-7.
r996); eles constituem o centro deste capítulo.
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

Ao seu lado, há um elenco notável de artistas, empresário Luiz Iglezias, situação que a impediu de
alguns também, no todo ou em algum momento de existir como astro no sentido fixado aqui.
suas carreiras, ligados ao teatro de texto ou decla- E essa constatação impõe um limite claro para
mado, mas a maioria ligada ao teatro de revista ou a abordagem dos diferentes ateres citados e para a
ligeiro, quer dizer, ao palco da opereta, da burleta, fixação de uma lista de astros. Alguns artistas foram
da farsa; subgêneros cómicos designados como estrelas de primeira grandeza, absolutas, foram gê-
menores por certa tradição. Devem ser lembrados nios de sua arte. No entanto, nem sempre consegui-
em particular os nomes de Cinira Polónio, Iracema ram desfrutar de uma condição indiscutível de astro,
de Alencar, Abigail Maia, Machado Careca, Colás, alguém ao redor do qual tudo acontecia, por diversas
Lucília Peres, Apolónia Pinto, Alda Garrido, Mar- razões - desde as mais diversas limitações de ordem
garida Max, Otília Amorim, Aracy Cortes, Osca- pessoal, até as possibilidades económicas do mer-
rito, Dercy Gonçalves, Grande Otelo. Há também cado e, em especial, porque no teatro de revista e em
uma notável personalidade que atravessou o século certos segmentos do teatro ligeiro, em particular nos
XX com encanto absoluto, percorreu diversos gê- musicais, era impensável a continuidade de trabalho
neros, ainda que tenha construído o seu reinado fora do patrocínio de um "empresário de forà: capi-
sobretudo a partir do teatro musical, liderou e talista, verdadeiro dono da empresa e da companhia.
nomeou companhias e permanece em atividade É interessante, portanto, estabelecer uma diferença
na televisão - a encantadora Eva Todor (1919/), sutil entre astro e estrela, figurando-se o primeiro
senhora de uma expressão facial e de uma presença como ponto mais alto e inquestionável do teatro de
em cena notáveis. O seu caso não será objeto deste uma época, em que brilhavam também personalida-
texto por uma razão simples - estrela deslum- des outras, absolutas, estrelas irresistíveis, mas sem a
brante, Eva Todor se projetou sempre a partir de mesma projeção institucional contínua, ou por que
uma plataforma de segurança objetiva, a figura do não conseguiram estabilizar companhias submeti-
das ao seu poder ou por que não foram abençoados
pelos deuses do teatro, em falta de nome melhor,
o atar Grande Otelo, quando menino, em 1926, na com a necessária dose de autonomia e de afirmação.
Companhia Sebastião Arruda. Algumas nuanças devem ser propostas. Todos
",""",--.,.,.---.,...--.,
os nomes que enumeramos como astros do teatro
de convenção brasileiro típico da primeira metade
do século xx foram astros do teatro declamado,
ainda que tenham circulado no palco do teatro mu-
sicado, segundo a nomenclatura da época. Tradu-
zem uma arte do ator identificável como a arte do
primeiro ater, que não precisava abranger a arte (ou
as artes) do musical. Se não foram sempre galãs, in-
gênuas, damas-galãs, damas centrais, centros, foram
característicos ao ponto de indicar a transformação
do emploi mais nobre para o(a) caricarota), uma
inclinação da alta comédia para a baixa comédia.
A rigor, tudo é permitido ao primeiro ator, ele é
quem determina a "forma de estar em cena", desde
que se mantenha fiel às grandes tradições.
A expressão"forma de estar em cena" não é aleató-
ria - antes de falar em interpretação ou atuação, estu-
dar essesintérpretes é reconhecer uma forma pessoal
de criação ou expressão, uma forma de representar que
é uma assinatura assumida e reconhecida. O astro é

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História do Teatro Brasileiro • volume1

sempre ele mesmo, fazendo talou qual papeL A . uma aura de preconceito, social e teatral, o que os
leitura de Eduardo Vitarino é demonstração elo- distanciava do estrelare absoluto e da liderança.
quente dessa arte; o pequeno volume que escreveu, Como observou Décio de Almeida Prado, esse
Para SerAtor, é um modesto inventário de técnicas artista desavergonhado e livre não fora uma forma
e de recomendações de treinamento, cujo ponto de anterior da arte do atar e da comédia brasileira,
partida é a arte de dizer. De sua leitura e do estudo como Pro cópia Ferreira tentou afirmar, no singelo
dos casos mais destacados é possível deduzir que o livro dedicado à definição de sua arte. Segundo o
universo do primeiro ator era a grandeza da expres- olhar de Pro cópia, teria ocorrido uma progressão
são sentimental e eloquente da palavra, a partir de histórica, um encadeamento; a partir de Vasques,
uma embocadura pessoal. surgira o ator cómico, que resvalara a seguir para
Há também uma outra leitura esclarecedora, os abusos do cômico de opereta, para recuperar-se
a dos textos de Procópia Ferreira dedicados à sua afinal com sua geração, quer dizer, com ele próprio,
arte. Essas afirmações permitem definir a arte dos Procópio. A história surge em seu texto como uma
grandes astros como um meio de apresentar a fala ferramenta para situar-se, a si próprio e a sua arte,
no corpo. Atares cómicos e atares dramáticos se em um lugar bastante favoráveL O modo de olhar
aproximam, vistas de um ângulo determinado - é deixa de ver, inclusive, como Décio de Almeida
possível falar em uma identidade de procedimento, Prado assinalou, que Vasques fora o primeiro da
como se o texto escrito comandasse a expressão fí- lista dos histriônicos de ocasião, enfeitiçados pelo
sica ao ponto do corpo impregnar-se de palavras, público. Na verdade, o que parece importante no-
ser comandado por elas. O físico se torna o lugar tar é que a arte do ator cómico se fazia a partir
de uma literalidade. A atitude em cena lembra as de um jogo peculiar, uma relação profundamente
questões da estatuária, a implantação física no ce- fundada na sensibilidade do tempo: ela só pode ser
nário obedece a critérios plásticos e o movimento entendida como uma bissetriz, a linha de mediação
nem sempre se afirma como valor destacado: o que entre os extremos representados pelo atar trágico-
se move é o verbo, pródigo em emoções. O tema da -dramático e o atar caricato das revistas e operetas.
recitação não está longe dessa escola. Procópia Ferreira fecha o seu livro com uma série
A esseprocedimento, na mesma época, no espaço de tiradas, hábito corrente em seu tempo, situado
do cómico, se poderia contrapor a arte dos caricatos com precisão por Décio de Almeida Prado. O pro-
propriamente ditos, os baixos cómicos completos cedimento aponta para um continente mais amplo,
e acabados, cuja arte consistia na apresentação do relativo ao domínio da palavra. Um dos passatempos
corpo na fala, em lugar da fala no corpo. A duali- prediletos de Procópia Ferreira,segundo depoimento
dade é perceptível também nos textos de Pro cópia de sua filha Maria, era fazer sessões de declamação:
Ferreira, quando diferencia o ator côrnico, que seria
o nobre intérprete do autor, do ator que faz graça, não tinha nada de programado. Quase sempre na hora da
transbordante mestre do improviso, preocupado sobremesa. Ele aproveitava que rodos nós estávamos sen-
em afastar o tédio da plateia. tados [...] e começava a recitar os seus poetas predileros:
A distância que separa essesdois palas da arte da Catulo da Paixão Cearense, Augusto dos Anjos, Menotti
comédia é muito evidente nos filmes que chegaram del Picchia, Mário Quintaria etc. 1 2 3
a ser rodados nos anos 195 o, se acompanharmos os
desempenhos de Pro cópia Ferreira ou Jaime Costa Uma das frases de efeito de Pro cópia Ferreira
em comparação com as performances de Oscarito, reunidas sob o título "Da Arte': na parte final do
Grande Otelo e Dercy Gonçalves. As cenas contri- livro A Arte de Fazer Graça, pode ser usada para
buem ainda para a percepção do papel de segundo situar com mais detalhe não só o seu perfil de ator
grau dos caricatos - a sua agilidade para o uso do como também para delinear a dinâmica teatral
corpo, da expressão facial exagerada, dos jogos de característica de toda uma época. A frase é simples,
palavras e de sentido, de trejeitos e maneirismos
123 ApudJalusa Barcellos, Procâpio Ferreira: O 1.vfágico da Ex-
gestuais, que faziam com que fossem olhados sob pressão, Rio deJaneiro: Funarte, 1999. P: 20.
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

mas eloquente - "O gesto, no teatro, é como um in- meus detalhes são às vezes as minhas lembranças, as minhas
trodutor diplomático da palavra'">. O que se traduz saudades, as minhas esperanças e afirmações.
aqui é um tipo de interpretação em que a palavra - A arte é a alma.
como já se observou - comanda a reação corporal, Tecer a sua teia, fio por fio, com todas as suas aspirações,
usa o corpo e a expressão física; a movimentação do as rebeliões e as tristezas e bordá-la de graça e maestria. Dar
corpo do ator está submetida a uma diretríz objetiva, uma alma a um autómato, transmitir-lhe sua própria alma.
resultante do sentido fixado pelo verbo. Representar não é para mim exercitar um ofício, é viver.
Uma comparação é inevitável: em um pequeno
caderno de anotações de dimensões semelhantes a O original não tem data, mas deve ser anterior
um volume in-oitavo, caderneta pessoal da atriz Itá- a 1924, data do folheto referido, que lhe foi co-
lia Fausta, sem data, mas cuja informação manus- lado por cima, em um canto interno da página;
crita mais remota é uma referência ao ano de 1920, a seguir, foram anotados dois poemas em italiano
há um extenso elenco manuscrito de versos, frases, ("Inganno': de Amália Guglielmetti, "Lacrime si-
sonetos, poesias, discursos e anotações pessoais, Ienziose', de Ada Negri), colados dois recortes de
ao lado de incontáveis recortes de jornais diversos, jornal sem data e, ao final, copiada a "Ode ao 2 de
alguns ilegíveis,por vezes colados uns sobre outros, Julho': de Castro Alves, acompanhada da menção
contendo principalmente versos. Em geral os textos de que foi declamada na festa cívicade 2 de julho de
manuscritos foram transcritos de próprio punho 1920, no Passeio Público do Rio. Poucas são as

pela atriz, mas existe alguma variação de letra, referências a datas em todo o caderno; as únicas
precisa o bastante para indicar que outras pessoas existentes abrangem os anos de 1920,1921 e 1924.
escreveram textos em honra à artista, como uma Portanto, trata-se de documento da fase de maior
homenagem íntima e pessoal. projeção da atriz, época em que se tornara a grande
Um dos primeiros textos é um folheto impresso, trágica do teatro brasileiro, intérprete reconhecida
"O Avião da Raça': "versos de Ruy Chianca expres- por sua intensidade em cena na demonstração de
samente escritos para serem recitados pela eminente sentimentos e em razão do volume e das sutílezas de
atriz brasileira, Itália Fausto [sic] na festa dedicada sua voz. A sua concepção do trabalho de interpreta-
pela sua companhia na noite de 23 de maio de 1924 ção fazia com que usasse a técnica para localizar os
ao glorioso Raid Aéreo Lisboa-Macau', segundo motores últimos da ação dramática, a alma da cena
inscrição na capa. No interior do folheto, um "So- enfim, um procedimento distante da recitação me-
neto" de tom exacerbado, laudatório, dá bem a ideia cânica derivada da arte de bem dizer francesa, que
dos limites da prática de recitação retumbante, que era o encanto da época, mas que era apenas uma
seria esperada de quem se propusesse a enfrentar coleção de pequenos truques mecânicos, exteriores.
tais estrofes. Seria preciso fazer com que as palavras Em seus períodos de formação profissional, Pro-
conclamassem os ouvintes a uma batalha acirrada, cópia Ferreira e Jaime Costa integraram a compa-
ainda que essa batalha fosse só a vida, uma vida em nhia liderada por Itália Fausta; estiveram, portanto,
que palpitaria "a Raça de Camões 1" sob sua influência direta. Assim, o conceito e a téc-
O texto seguinte, manuscrito, é uma espécie de nica teatral professados se aproximavam, dialogavam
desabafo, exemplar raro no conjunto: entre si - é natural que em seus escritos Pro cópia
Ferreira faça referências insistentes ao ator trágico.
"O coração não funciona" O mais curioso a observar é que o ator cómico fala
Nada a ninguém. de uma arte brasileira - tópico que não será possível
Faço os papéis de dama galã... e chega. analisar em detalhe aqui - quando se movia em um
Agarrada à esperança da glória com unhas e dentes teatro de forte influência portuguesa, impregnado
procuro dar às minhas interpretações toda a minha pai- de conceitos franceses, por vezes ele próprio recor-
xão, toda a minha inteligência, toda a minha ambição. Os rendo a um repertório em que predominavam os
argentinos, sob a liderança de uma primeira atriz
italiana. Porque Itália Fausta foi brasileira por opção.
124 A Arte deFazerGraça, P: 186.
História do Teatro Brasileiro • volume1

Itália Fausta da época. O sucessoda empreitada funcionou em


algum sentido: fez com que Itália Fausta se tornasse
Na verdade, são muitos os mistérios que ainda en- a grande trágica do teatro brasileiro.
volvem a figura de Itália Fausta. O primeiro deles O perfil foi explorado, de certa forma, na car-
é a sua nacionalidade. Ao que tudo indica Itália reira profissional reiniciada a seguir, com a fun-
Fausta ou Itália Fausta Polloni - as duas variantes dação em 1917 da Companhia Dramática de S.
de seu nome constam em sua documentação - Paulo sob a direção de Gomes Cardim, e uma linha
nasceu na Itália por volta de 188 o. Teria vindo ondulante de repertório, na verdade mais inclinada
para São Paulo no final da infância ou início da ao dramalhão, ao drama e ao melodrama do que ao
adolescência e na cidade logo se projetou no teatro trágico. A estreia foi no Teatro Boa Vista, no dia
amador italiano, com participações que a torna- 16 de março de 19 17, com A Labareda, de Henry
ram famosa nas sociedades dramáticas. Em 1906 Kistemaeckers. Logo a companhia mudou-se para
foi convidada a ingressar na Companhia Lucinda o Rio de Janeiro, o grande centro do teatro pro-
Simões-Cristiano de Souza, atores portugueses fissional da época, e a estreia em julho no Teatro
que construíram sólidas carreiras no Brasil e que República foi um sucesso, segundo os jornais, e
estavam em temporada em São Paulo. Em excursão levou à definição de um símbolo - o espetáculo
pelo país com a companhia, de Porto Alegre a Be- apresentado foiA Ré Misteriosa, de Alfred Bisson,
lém, iniciou sua trajetória profissional. A estreante que se tornou o espetáculo-ícone de Itália Fausta, o
passou então por um treinamento de fogo - saí- seu cavalo-de-batalha. Uma característica peculiar
ram do conjunto as atrizes Lucília Peres e Gui- ao astro é a existência de um texto que se torna o
lhermina Rocha, cujos papéis passaram para a sua seu veículo privilegiado de expressão, a sua marca
responsabilidade. O repertório - e a formação de registrada, uma encenação a ser levada pela vida
um ator era feita então através do repertório rea- como o seu grande trunfo, o veículo eficiente para
lizado - foi extenso e significativo, destacando-se: domar as plateias ou o suporte ideal para a cons-
PapáLebonnard, de Jean Aicard; Amor de Perdi- trução de sua lenda pessoal.
ção, de Camillo Castello Branco; Morgadinba de A partir de 1918, a empresa passou a ter nova de-
Val-Flor, de Pinheiro Chagas; MonsieurAlphonse, nominação - Companhia Dramática Nacional. E
de Dumas Filho; Fogueira de SãoJoão, de Suder- sobreviveu sob diferentes denominações até 1932,
mann; Fédora, de Sardou; O Amigo dasMulheres, ano da morte de seu maior incentivador, Gomes
de Dumas Filho; Tosca, de Sardou; A Lagartixa, de Cardim. Um dos traços distintivos do conjunto
Feydeau; Romance de um Moço Pobre, de Feuillet; era o hábito de excursionar pelo país, talvez uma
Demi-Monde, de Dumas Filho. situação natural e necessária para uma atriz que es-
Após a excursão pelo país, Itália Fausta voltou treou na profissão percorrendo o território e cuja
a São Paulo com o objetivo de estudar, para se nacionalidade foi durante certo tempo flutuante.
aprimorar; parece certo afirmar que frequentou As linhas gerais do repertório da companhia, ao
o Conservatório Dramático Musical, dirigido por longo de sua existência, traduziram essas coordena-
Gomes Cardim, e que ele a aconselhou a ir estu- das. Foram destaques, além das peças em que Itália
dar na Itália. Durante alguns anos a atriz esteve na Fausta trabalhou desde a sua estreia, vários originais
Europa - estudou na Itália, trabalhou como atriz que conferiram ao conjunto lugar de projeção na
em Portugal. No regresso ao Brasil, participou ao vida teatral das primeiras décadas do século, uma
lado de Alexandre Azevedo e Cristiano de Souza, mistura que reunia ao apelo comercial algum ver-
no Rio de Janeiro, do Teatro da Natureza, iniciativa niz cultural e um agudo sentido de momento, de
que procurou explorar a voga europeia do teatro oportunidade: A Segunda Mulher, de Pinero; A
ao ar livre em um palco no campo de Santana e Castelã, de Alfred Capus; A Caipirinha, de Cesário
elevar o nível do repertório médio brasileiro com lviottaJr.;Al11archalVupcial eA Virgem Louca, de
a inclusão de tragédias, muito embora elas tivessem Henri Bataille; Tereza Raquin, de Zola; OPedido, de
sido encenadas em adaptações inclinadas ao gosto Coelho Neto; O Sacrifício, de Carlos Góes; Perdão
+ o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 195 o

A atriz Itália Fausta.


História do Teatro Brasileiro • volume 1

queMata, de Oscar Guanabarino; A Gioconda, de Falta-lhe, porém, a flexibilidade do corpo e a delicadeza fe-
D'Annunzio, Alma Forte, de Nicodemi;Assunção, de minina indispensável às figuras da alta comédia. A própria
Goulart de Andrade; O Dilema, de Pinto da Rocha; voz estentórea lhe prejudica a representação das cenas em
OsFantasmas e Na Voragem, de Renato Vianna; A que não há drama e onde se requer a sutíleza e a graça da
Estátua, de Pinto da Rocha; O GrandeIndustrial, expressão oral. Isso, entretanto, não deve causar esmore-
de Georges Ohnet; O Processo deiVlary Duggan, de cimento à distinta artista; o drama e a tragédia, que já lhe
Bayard Veiller; Era uma Véz, de Brício de Abreu; proporcionaram tantas oportunidades para receber fartos
Salomé, de Renato Vianna; Quem osSalva, de José aplausos, podem ainda conceder-lhe muito mais.v"
Oiticica; Suprema Conquista, de Menotti del Pi-
chia; Cinzas Vivas, de Gastão Tojeiro; A Prancha, A observação a respeito da surpreendente
de Veiga Miranda: Antígona, de Sófocles; Orestes, potência vocal da atriz figura nos mais diversos
de Ésquilo, estas últimas em adaptações. O bserve- testemunhos contemporâneos, em geral sob uma
-se que as comédias eram encenadas para contentar avaliação positiva, diferente da nota irânica assi-
a plateia e aumentar a projeção da empresa, mas nada pelo empresário. Esse teria sido o ponto fun-
não contavam com a participação da atriz, que tra- damental de estruturação dos seus desempenhos;
tava de preservar o seu emploi. em paralelo, a atriz possuía fortes dons naturais
Ainda que a orientação da companhia fosse a para a liderança e muita inquietude. A condição
sua sobrevivência no mercado, subordinada, por- de astro transparece nas estratégias escolhidas
tanto, a uma visão comercial precisa, é inegável para conquistar projeção social e para o exercício
que existia alguma ambição, existia uma visão do de liderança cultural frente à classe. Deve ser des-
teatro como a busca de reconhecimento para uma tacado, nesse arsenal de truques, um procedimento
arte a que se dava a alma. "Representar é viver" - importante, em particular para alguém que não
escrevera Itália Fausta em sua caderneta. Assim, era podia afastar por completo a desconfiança a res-
natural ousar, ser aclamada por interpretar alguns peito de sua nacionalidade: a busca da valorização
dos papéis que projetaram Eleonora Duse e Sarah daquelesprecisamente que o astro ofuscava, o autor
Bernhardt. Alguns textos do seu repertório foram dramático. E a companhia Itália Fausta colocou
sucessos históricos graças às atuações de Lucinda em destaque alguns dramaturgos, lançando-os ou
Simões, Lucília Peres e Ismênia dos Santos. projetando-os - Renato Vianna, Pinto da Rocha,
O mais curioso é constatar que a sua consa- Goulart de Andrade, Roberto Gomes, José Oiti-
gração não se deu sem polêmicas - e até bastante cica, Oscar Guanabarino, Carlos Góes, Danton
fortes. A esserespeito, deve ser registrado o comen- Vampré, Heitor Modesto, Veiga Miranda.
tário do autor, empresário e ensaiador teatral por- Não é exagero afirmar que a inquietude e a
tuguês que se radicou no Brasil, Eduardo Vitorino. ambição cultural talvez tenham sido motores
Em um pequeno texto dedicado à arte da atriz Dul- importantes da vida da atriz. Por isso, dissolvida
cina de Moraes, parte de uma obra em que reuniu a sua companhia, nos anos de 193 o, ainda que te-
observações sobre ateres e atrizes e na qual não há, nha integrado a empresa de Jaime Costa, bastante
para a estranheza do leitor, um texto sequer sobre convencional e conservadora, foi cortejada pelos
Itália Fausta, o celebrado artista assinalou: setores que pretendiam mudar o teatro brasileiro
(tais como Renato Vianna, os frequentadores da
Como conceber a representação da Nora, da Casa deBoneca, Associação de Artistas Brasileiros, localizada no
de Ibsen, por uma atriz de figura imponente e voz altisso- antigo Palace Hotel, na avenida Rio Branco, e o
nante como as da festejada atriz Itália Fausta? casal Eugênia e Álvaro Moreyra) e acabou na díre-
E não vá pensar-se que temos em pouca conta o talento ção do espetáculo Romeu eJulieta, de Shakespeare,
desta atriz: ao contrário, a nosso ver e sem ideia de me- da fundação do Teatro do Estudante do Brasil, em
lindrar, a senhora Itália Fausta é uma atríz essencialmente 1938, a convite de Paschoal Carlos Magno.
popular, que dispõe de nobilíssimas qualidades emotivas e
125 "Dulcina de Morais", Actorese Actrizes, Rio de Janeiro: A
de um vigoroso órgão vocal para os grandes lances trágicos.
Noite, 1937,P' 129.
+ o Teatro ProfissionaldosAnos de I920 aosAnos de I950

Ao mesmo tempo, nos anos de 1940, Itália


Fausta organizou uma nova companhia com seu
sobrinho Sandro Polônio, para percorrer o inte-
rior e explorar em especial o antigo sucesso A Ré
Misteriosa, que os jovens amigos modernos eram
proibidos de ver; fez aparições na praça Tiradentes,
em montagens durante a Semana Santa do previ-
sível O Mártir do Calvário, de Eduardo Garrido,
pela Empresa Pinto; ingressou na aventura final
de remanescentes do grupo Os Comediantes, que
tentaram sem sucesso profissionalizar o conjunto.
E não parou aí: participou ainda do nascimento
daquela que viria a ser a Companhia Maria Della
Costa, o Teatro Popular de Arte. Em 1948, Sandro
Polônio, a convite de Nelson Rodrigues, organizou
um conjunto para encenar a arquicensurada Anjo
Negro, no Teatro Fênix, sob a direção de Ziembinski,
e o empreendimento gerou a formação da primeira
companhia profissional moderna carioca. No em-
preendimento, Itália Fausta se projetou como atriz
e diretora e chegou a participar da mudança do
grupo para São Paulo, depois de uma excursão pelo
país com a nova concepção de teatro. Ao regressar
ao Rio, faleceu.

Leopoldo Fróes
Leopoldo Fróes em uma cena deA QjJerida Vovó,
De certa forma, há quase uma oposição simétrica de Antônio Guimarães, no Trianon.
em relação ao grande nome contemporâneo de Itá-
lia Fausta, um astro cujas atitudes foram de outra
natureza, a começar mesmo pela história pessoal. teatro longe dos olhos família e da severidade do
Leopoldo Constantino Fróes da Cruz nasceu em projeto paterno, em Portugal, em 1902.
Niterói em uma família proeminente. O seu pai, O início da carreira não foi nem simples, nem
advogado notável, professor de direito comercial, fácil. Tentou o drama, vagou por companhias biso-
membro da Constituinte de 189I, deputado fede- nhas, aderiu ao gênero alegre, das mágicas e revis-
ral, vereador e presidente da Câmara de Niterói, tas, e acabou logo depois se dedicando às operetas.
planejou desde cedo fazer com que ele fosse o seu Ingressou na Companhia Taveira, ao lado da atriz
sucessor. Ainda que o jovem fosse rebelde e avesso Dolores Rentini, e veio ao Brasil em excursão pela
às formalidades da carreira que lhe foi destinada, o primeira vez. O ator não retornou a Portugal com
pai conseguiu fazer com que estudasse direito. ':Mas a empresa; optou por organizar uma companhia
o constrangimento só serviu para dotar o teatro própria, a Companhia Fróes-Cruz, que estreou
de um Doutor, título que Leopoldo Fróes sempre em 1908. Em 1909 voltou a Portugal, país em que
gostou de usar - após diversas tentativas infrutífe- se sentia muito integrado; finalmente organizou
ras de seu pai para que enveredasse por um destino uma nova companhia para viajar por Portugal e
sério, Leopoldo Fróes, iniciado nos palcos graças ao pelo Brasil. Em 19 I I, no Nordeste, a empresa foi
amadorismo fluminense, tornou-se profissional de varrida pela febre amarela, que vitimou a própria
História do Teatro Brasileiro • volume 1

Dolores Rentini. O regresso mais uma vez a Portu- Cláudio de Souza marcou o nascimento fulgurante
gal viabilizou a organização de uma nova empresa; do primeiro astro brasileiro do século xx, primeiro
com o conjunto modesto percorreu o interior, mas atar que logo se tornou modelo para dois jovens in-
em 1914 estava de volta no Brasil. Aqui, graças à térpretes ambiciosos e talentosos, Pro cópia Ferreira
atriz Lucília Peres, com quem iniciou um romance, e Jaime Costa. Esse último integrou a companhia
deixou de ser ator de opereta para estrear como galã de Leopoldo Fróes em 1921, com enorme sucesso,
emA Mulher do Outro, de Bourdet, na Companhia quando o Dourar uniu-se ao tenor português Al-
Eduardo Vitorino, papel que marcou o início de sua meida Cruz para apresentar operetas no Teatro
carreira brasileira de astro inconteste; começava a Recreio, e acabou seguindo-o na formação que or-
surgir o mais elegante e admirado galã de seu tempo. ganizou em seguida, para comemorar o centenário
A opção pelo teatro cômico e dramático não foi, da Independência, com a montagem da comédia O
no entanto, absoluta ou definitiva - já no final do Modesto Filomeno, de Gastão Tojeiro.
ano Paschoal Segreto convidara-o para retornar às Não há dúvida de que, se Itália Fausta infundiu
operetas e o ator acabou aceitando o convite: por nos iniciantes a ideia de devoção ao palco e a preo-
um curto período, viajou para São Paulo como en- cupação com alguma densidade cultural, o modelo
saiador da Companhia S.José. O regresso ao Rio de imediato foi outro. Significou a busca da sedução,
Janeiro levou à criação da Companhia Lucília Peres- graças à elegância e à altivez do porte, a exploração
-Leopoldo Fróes, em 1915, uma trajetória de sucesso do charme do tempo, a promoção do encantamento,
iniciada com a inauguração de um novo teatro, o do diálogo com o universo do público e com a época,
Pathé, com a comédialvlulheresNervosas, de Lum e o flerte deliberado com a ideia da vida como fonte
Touchet, e a encenação de 21 peças em sete meses e inesgotável de prazer, a maestria na bilheteria. O seu
meio, de maio a dezembro. Entre as peças apresenta- grande promotor foi o dourar Fróes.
das estava A Dama das Camélias, original em que a O próprio tema da relação informal com a dra-
estrela da companhia, com suas formas exuberantes, maturgia e com os autores, de certa forma a falta
procurou convencer a plateia de que morria, no final, de cerimônia no trato com os textos, o amor aos
de tuberculose. Foi, porém, uma empresa de traje- cacos, a crença na habilidade inquestionável do atar
tória curta: Leopoldo Fróes tornara-se um nome de para completar o pensamento e o desejo do dra-
bilheteria, se projetara como galã cómico, mas as dis- maturgo, a paixão pelo improviso e a pretensão de
puras do casal de ateres pelos papéis titulares eram escrever foram práticas que se configuraram como
acaloradas e difíceis de resolver, com a proposição de tradições, em grande parte por influência de Leo-
originais em que um anulava o outro. poldo Fróes. A sua linha de repertório foi sempre
Em São Paulo, para inaugurar um novo teatro, o mediana, escolhida e pensada como veículo para
Bela Vista, Fróes decidiu montar Flores de Sombra, o seu brilho pessoal, distante de qualquer desafio;
de Cláudio de Souza. O primeiro papel masculino esta condição lhe garantia, digamos, domínio ime-
era seu e o papel que reservou para Lucília Peres era, diato da cena, quer dizer, projeção previsível e dis-
quando muito, complementar. O segundo papel pensa de estudo e ensaios. Ainda que o ator tenha
feminino, de ingênua, foi destinado à atriz Amália marcado época, ainda que tenha assinado sucessos
Capitani. A situação fez com que a veterana Lucí- estrondosos como Soldo Sertão, de Viriato Corrêa,
lia rompesse com a relação afetiva, abandonasse a e O SimpáticoJeremias e O EleganteDoutorzinho,
companhia e tentasse iniciar um novo conjunto, de Gastão Tojeíro, no Teatro Trianon, em 1918,
enquanto o atar inaugurava a Companhia Leopoldo a radicalidade do seu modo de expressão fez com
Fróes, que sobreviveu até 1928 com pequenas mu- que não tivesse a necessidade de criar um cavalo-
danças de denominação, mas sempre como o veículo -de-batalha, pois o público ia mesmo ver Leopoldo
de expressão do galã, mesmo quando em 1927-1928 Fróes, em qualquer cartaz que fosse, e o atar estavalá,
dividiu a titulação com o astro português Chaby Pi- sempre pronto para corresponder ao desejo dos fãs.
nheiro. Enquanto a atriz entrava em declínio, o seu Seguramente essa figura de impacto foi cons-
amor de outrora disparava nos cartazes. A peça de truída com trabalho febril em cena; sua dedicação ao

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• o Teatro Profissional dos Anos de I920 aosAnos de I950

palco era fervorosa, muito embora não trabalhasse o que acontecia nos palcos europeus, no mínimo
nunca tanto quanto a sua própria companhia, pois o teatro comercial, o teatro francês de boulevard
era avesso aos ensaios. A listagem das montagens de mais cuidado. Afinal o ator cultivava os mesmos
que participou é extensa, como apontam seus bió- hábitos culturais da classe elevada em que nasceu,
grafos e Mário Nunes em 40 Anosde Teatro; mas não e a sintonia atualizada com a vida europeia era em
é eloquente por si, porque Fróes foi principalmente seu meio um fato natural.
uma, digamos, performance, ou uma maneira de es- Nesse sentido, parte da crise ou da estagna-
tar em cena. Esse arrebatamento se traduziu em duas ção localizada por diversos analistas do teatro
atitudes reveladoras: a luta decidida pela criação da brasileiro na década de 1920, em que se costuma
Casa dos Artistas, instituição de amparo para a ca- situar a exaustão de uma velha forma de fazer tea-
tegoria - de que certamente não necessitariapor sua tro, poderia ser vista como emanação do eclipse
fortuna pessoal e teatral-, e a guerra contra a funda- progressivo do líder, registro dos efeitos de sua
ção daSbat, em 1917. O ator se indignou a tal ponto redenção incondicional ao padrão gasto domi-
com o movimento dos autores que chegou mesmo a nante e da sua recusa em ousar mudar. A versão
organizar uma associação alternativa e o grêmio que tem a sua lógica, mas guarda muitos pontos para
inaugurou por pouco não provocou a liquidação da controvérsia, pois a década foi para Itália Fausta
associação dos dramaturgos. O impulso com certeza um momento de grande brilho. E foi também o
contribuiu para que o ator cogitasse escrever peças, período de afirmação dos sucessores de Leopoldo
carreira iniciada sem hesitação -logo no começo da Fróes, os astros herdeiros de sua arte, Procópio
década de 1920, a sua companhia apresentou três Ferreira e Jaime Costa.
originais de sua autoria, O OutroAmor, Senhorita
Gasolina e Mimosa.
Aos poucos, no entanto, o galã entrava em declí- Procópio Ferreira
nio, pois os papéis sedutores que gostava de repre-
sentar não aceitavam bem a ação do tempo sobre o Para Procópio Ferreira, a consagração começou em
charme do ator. Ao longo da década de 1920, sua 19 19, na comédia sertaneja de Viriato Corrêa,Juriti.
imagem começou a ficar ofuscada, situação que fez Por sorte, a época era de retomada do teatro brasi-
com que se retirasse do país em 1928, para trabalhos leiro, recuperação da comédia de costumes, de sala
na Europa, recuperação da saúde, tentativa de cons- de visitas, materializada no triunfo do Teatro Tria-
trução de uma carreira cinematográfica. Ele acabou nono E a condição de astro que começa a ser cons-
não regressando da aventura, morreu no exterior. De truída é perceptível na fragilidade desse primeiro
todos os astros, a trajetória de Fróes foi a mais fugaz; desempenho que consagrou o atar, uma proposta de
marcou também a proposição de um estilo de vida atuação fraca no papel, mas histórica em cena graças
luxuoso e perdulário, devotado à busca do prazer à dedicação do intérprete. Ao lado de Vicente Ce-
mundano, inédito no país, cuja aura repercutiu nas lestino e AbigaillvIaia, ele conseguiu se destacar no
ambições de Procópio Ferreira. papel do Moleque Fogueteiro, uma aparição insig-
No entender de Alcântara Machado, um dos nificante, se olhada com rigor e sem a nota de gênio
raros críticos ácidos - e corajosos - do ator pode- do jovem ator, O que surgia ali era uma capacidade
roso, a sua influência foi nefasta, pois a sua cultura, rara, um faro para identificar a pulsão do tempo, a
a sua fortuna pessoal e o seu carisma poderiam ter vontade e a atmosfera que cunhou o mito Trianon,
sido meios eficientes para a proposição de uma ainda pouco estudado. Procópio nascia; despontava
revolução teatral copernicana na cena carioca. Ou como um astro de colorido bem definido, parte ex-
poderiam, ao menos,ter alavancado uma mudança pressiva de uma época. Do evento, não resultou um
sensível do repertório praticado no palco do seu edifício teatral brasileiro, nem como obra de pedra
tempo, que Fróes procurou sempre manter em e tijolo, nem como associação de letras - o saldo foi
uma linha fácil, abaixo da mediana. E não há dú- o lançamento de um grande ator, peça estratégica
vida de que o requintado Doutor conhecia bem para a história da interpretação brasileira.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

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• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

Como bem assinalouDécio de Almeida Prado-", do ator com os textos, que será nota definidora da
Procópio Ferreira de certa forma criou o seu pró- carreira de Procópio.
prio emploi; optava por papéis jovens e côrnicos, Vale lembrar que esse desenho não foi um mero
mas não tinha beleza para ser o galã cômico nem fruto de uma direção exterior, acidental - o ator
idade para ser o centro cómico: por seu talento, começou a atuar como profissional aos dezoito
foi poupado de se dedicar aos velhos secundários anos, na companhia que a estrela Lucília Peres
(vegetes), lugar em que a maioria dos jovens co- fundou após o rompimento com Leopoldo Fróes.
meçava a carreira; afirmou-se então com o que A convivência com a atriz celebrada se prolongou
se pode designar galã cômico caricato, através da durante a temporada de 1917, no Teatro Carlos
construção de vários tipos engraçados, dos mole- Gomes. Ele esteve em cartaz então em textos bem
cotes aos rapazes casadoiros enfatuados. Em 1924, variados, como Amigo,Mulher eMarido, de Flers e
no entanto, uma nova era foi iniciada - Procópio Caillavet, eA Cabana doPaiTomás, de Harriet Bee-
Ferreira fundou a sua própria companhia, uma das cher Stowe, peça em que fez o Moleque Beija-Flor.
mais longevas do teatro brasileiro, pois conseguiu No ano seguinte, ingressou na companhia li-
mantê-la por toda a sua vida. A estreia aconteceu derada por Itália Fausta (1918) e esteve de novo
em São Paulo, sob a díreção do veterano ator por- às voltas com um repertório eclético notável, pois
tuguês Cristiano de Souza, no Teatro Royal, com a companhia apresentou Amor de Perdição, A
o texto Dick, de Max Dearly; seguiram-se Coita- Labareda, Ré Misteriosa, Malquerida, Antígona,
dinhasdasMulheres, de Raul Casariego, e O Sobri- Fédora, peças estáveis no repertório da atriz. A
nho do Homem, de José Leon Pagano. No fim do etapa seguinte obedeceu a um contorno muito es-
ano a nova empresa estreava no Rio de Janeiro, no pecial-Ievou-o para o teatro musical, ao encontro
Teatro Trianon, com O Tio Solteiro, de Benjamin de Vicente Celestino, seguido por um mergulho
de Garay. E nesse início de traj etória, os cartazes na dramaturgia brasileira do momento; propiciou
oferecidos pela companhia apresentam um tom um passeio por alguns autores históricos: Artur
muito particular: todos os autores estreados são Azevedo, França Júnior, Martins Pena, Moliêre,
estrangeiros, um inglês e três argentinos. Antônio José da Silva, o Judeu. O perfil geral do
Assim, ainda que Procópio Ferreira - nome repertório de sua carreira surgiu, portamo, a partir
artÍstico de João Álvaro Quental Ferreira - tenha de fortes vivências de texto, múltiplas e desafiado-
começado a sua trajerória estrelar apostando na ca- ras. E obedecerá a estas linhas: autores estrangeiros
racterização e na presteza da presença em cena, em comerciais, autores brasileiros do momento, al-
uma concepção de tipo nacional muito acentuada guns clássicos, em uma combinação que guarda
e nítida, uma ascensão rápida lhe permitiu chegar diferença em relação a Leopoldo Fróes, um tom
aos ditos papéis centrais adequados aos chefes de abaixo, e ao rival de sua vida, Jaime Costa, um tanto
companhia, nos quais as duas qualidades preci- mais nacionalista. Destaque-se o fato curioso - em
savam ser administradas por um outro recurso, 1919, ao aceitar o convite de Paschoal Segreto para
o domínio inconteste do uso da palavra e de seus participar em uma nova companhia de operetas,
efeitos, valores correntes nos bem articulados tex- integrou o conjunto que será responsável também
tos comerciais, estrangeiros, escolhidos. Afinal o pela projeção, em 1920, deJaime Costa.
díretor que orientava esse início era um ator muito À diferença de Leopoldo Fróes, o amor ao im-
experiente no enfrentarnento das preferências do proviso e ao caco, como já se observou, não dis-
mercado, qualidade que não era possível atribuir tanciaram Procópio Ferreira do texto; também
aos verborrágicos autores nacionais. A condição não era seu hábito ensaiar com a companhia, que
vai impor (ou solicitar...) a contribuição inteligente devia sempre se preparar para recebê-lo, na estreia,
após os ensaios necessários em que ele próprio era
126 Proc6pio Ferreira: Um Pouco da Prática e um Pouco da
substituído por uma cadeira ou pelo ensaiador. A
Teoria, em Peças, Pessoas, Personagns: O Teatro Brasileiro de mecânica fora adorada por Fróes, que tornou-a
Procópio Ferreira a CacildaBecker, São Paulo: Companhia das
conhecida. Mas Procópio estudava as peças que
Letras, 1993, p. 5I-52'
História do Teatro Brasileiro • volume 1

encenava, ao contrário do que se dizia do Doutor. lutou contra as mudanças propostas pelas novas
E chegava mesmo, segundo o folclore, a estudar gerações, com ataques públicos em panfletos, fo-
o suficiente para retirar dos outros atores as falas lhetos, cartazetes ou declarações bombásticas à
que considerasse mais interessantes e que, por isso, imprensa, desferidos abertamente contra o diretor
deviam ser ditas por ele. O texto se tornava seu, de Ziembinski, o Teatro dos Doze e a atriz Henriette
certa maneira. O jogo fez com que, em um reper- Morineau. Mas a luta passou, como se fosse mais
tório imenso, ao que tudo indica de cerca de meio um de seus conhecidos rompantes temperamen-
milheiro de títulos, o ator construísse um espetá- tais: Jaime Costa ousou encenar com sucesso A
culo-ícone para toda a vida, o seu cavalo-de-batalha Morte do Caixeiro Viajante, em 1951, encantou
eterno, Deus lhePague, de J oracy Camargo, estreia plateias como Doolittle na versão brasileira de.l\1y
de 1932, no Teatro Boa Vista, em São Paulo. Fair Lady, em 1962, no Teatro Carlos Gomes, ao
Ao mesmo tempo, preocupado sempre em se lado de Paulo Autran e Bibi Ferreira, e estava em
refinar e se informar, Procópio se manteve a par cena junto aos jovens mais radicais da cena brasi-
do que acontecia nos grandes centros teatrais e se leira, em 1967, quando faleceu. No dizer de Décio
preocupou em montar textos de sucesso do mo- de Almeida Prado, ele não morreu no palco, mas
mento, adequados ao seu perfil, e clássicos. Ence- teve uma morte teatral, pois estava em cartaz em
nou Goldoni e Moliere, mesmo que sob a sua ótica Se Correr o Bicho Pega) seFicar o Bicho Come, de
atoral e autoral peculiar. Se não foi o primeiro, foi Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar, no Tea-
um dos primeiros grandes ateres a tentar experi- tro Opinião, no Rio de Janeiro. Por bem pouco
mentar a novidade da díreção teatral e, em 1948, se escapou de morrer em cena, no pleno exercício do
submeteu ao domínio do jovem Ruggero Jacobbi, ofício de ater,
aparentemente sem qualquer resultado relevante. A sua trajetóría, de astro a comparsa do teatro
Questiona-se mesmo seJacobbi, intelectual teatral moderno mais inquieto, não foi linear, nem sim-
de primeira grandeza, chegava a ser etetivamente ples. Jaime Costa ingressou na carreira artística
um diretor, no sentido mais forte do termo, em após uma iniciação amadora, em 1920, no grupo
especial em sua juventude, condição que reduz o Salles Ribeiro; a sua capacidade de trabalho e o seu
alcance da associação entre os dois. perfil de líder fizeram com que bem cedo se tornasse
De qualquer maneira, a aproximação com o ita- empresário de sua própria companhia, organizada
liano inquieto não repercutiu com intensidade em com rigor nos moldes mais tradicionais, segundo
nenhuma das duas figuras de artista. Foi uma incli- todas as hierarquias e convenções, obedecendo aos
nação muito tímida, pois logo Procópio Ferreira des- emplois correntes. O que não o impediu de fazer uma
pontou como um cruzado decidido contra os novos campanha contra a claque - o costume de organizar
e as suas propostas de mudanças artísticas, cerrando (e pagar!) um grupo de espectadores para rir, vibrar
fileiras a favor do velho teatro. Na trincheira que e aplaudir o esperáculo -, instituição que baniu de
construiu, se encerrou até o final da carreira, decisão seu teatro. Nos seus programas, tornou-se rotina
que fez com que o seu teatro perdesse terreno nos incluir um quadro com a observação: "este teatro
grandes centros, caminhasse para a periferia e sub- não tem claque". Assim, percebe-se em sua trajetó-
metesse o fulgor do astro a um implacável declínio. ria uma oscilação permanente entre a incorporação
das tradições e convenções e a proposição de mu-
danças, ou seja, a busca da liderança e do destaque,
Jaime Costa meios necessários para erigir-se como astro. Sob
esse aspecto, importa destacar as suas investidas
Outra foi a atitude de Jaime Costa, fato surpreen- na área da dramaturgia; ainda que não se tenha
dente se for considerado o seu apelido na classe notícia extensa de textos de sua autoria exclusiva
teatral - rei da Bronca - e se for examinada a sua (ele foi sempre, aliás, um grande incentivador do
atuação contra os novos, contra o teatro moderno, autor nacional, organizou diversos concursos para
bem menos diplomática, conciliadora ou sutil. Ele lançar novos dramaturgos e figura em um texto

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• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

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Jaime Costa, na montagem bem-sucedida de PapaLebonard, no Teatro Glória.

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História do Teatro Brasileiro • volume 1

como coautor), Jaime Costa assinou traduções Eugene O'Neill no Brasil, com a montagem de
de originais estrangeiros em cuja fatura interferiu, Anna Christie. Tais escolhas, no entanto, nunca o
o que não era um procedimento estranho na sua impediram de se proclamar o ator de sua época mais
geração, como se comentará adiante. dedicado ao autor nacional, situação que parece pro-
Vale destacar, com relação ao tema, que houve vável em uma primeira avaliação de seu repertório,
sempre uma postura muito bem definida do ator ainda que possa ser bem controverso esse conceito
a propósito do poder do intérprete. Após a sua de dedicação. Ao que tudo indica, entre os grandes
iniciação amadora, Jaime Costa se candidatou a astros, parece ter sido Jaime Costa o intérprete de
uma vaga como barítono no teatro profissional, no repertório brasileiro mais extenso, ainda que nem
Teatro S. Pedro (atualJoão Caetano) - conquistada o seu repertório, nem o repertório de sua geração
graças à beleza de sua voz - para trabalhar como estejam claramente estabelecidos até o momento.
ator de opereta, mas iniciou a carreira na empresa A circunstância, no entanto, não o impediu
como o Bom Ladrão no mistério O Mártir do de se envolver em brigas clamorosas a respeito da
Calvário, de Eduardo Garrido, cartaz rotineiro no autoria de textos. A primeira foi com a Sbat. Foi
período da Semana Santa. Logo a seguir, enfrentou provocada por uma declaração sua, em uma entre-
o desafio de substituir Vicente Celestino na opereta vista radiofônica, em que se afirmou colaborador
O Fado, de Felipe Duarte - a sua voz, no entanto, eventual, mas necessário, ainda que sem autoriza-
não alcançava o tom da partitura preparada pelo ção expressa para tanto, dos autores das comédias
criador do papeL Diante de sua própria falha em que encenava. Alguns dramaturgos ficaram revol-
cena, durante o espetáculo, o jovem esbravejou tados com a ousadia, levaram a queixa para a Sbat e
afirmando que a música estava errada. A calma se a instituição acabou proibindo-lhe, por um tempo,
instalou graças à intervenção de Villa-Lobos, inte- a montagem de originais dos seus associados, brasi-
grante da orquestra, e a apresentação prosseguiu leiros e estrangeiros. A situação ecoa, sem dúvida,
com o jovem cantando em tom transposto. A sua ainda que tardiamente, gestos de Leopoldo Fróes
reação irreverente diante do próprio erro foi um e Procópio Ferreira.
sucesso, ganhou a aclamação da plateia e a sorte Em longa matériapublicada no Jornal do Bra-
de uma carreira em ascensão permanente: ingres- sil em 1943, da coleção de recortes do Acervo de
sou na companhia de operetas de Leopoldo Fróes, Jaime Costa, assinada por "Talma", constam, sob
liderança a que permaneceu ligado depois que o um tom de louvação exacerbada, trechos sabo-
conjunto se dissolveu e deu lugar a uma compa- rosos sobre a polêmica. E reveladores da perso-
nhia de comédias. Sob a tutela de Fróes e a seguir nalidade do ator. Sob o subtítulo "Colaborador
de Oduvaldo Vianna, este no Trianon, passou do Eficiente dos Autores", o comentarista retoma
teatro musical para a comédia, que se tornou en- ideias já defendidas por Procópio Ferreira e leva-
tão o seu gênero de eleição, sempre sob uma aura -as um tanto adiante com um tom precioso para
inquieta e turbulenta. o tema:
Na verdade, a capacidade de Jaime Costa para
suscitar polêmica sempre foi notável, Em 1925 Toda peça de teatro representável, isto é, boa, comporta
organizou uma companhia com os atores Átila de colaboração. Para melhor ou para pior, está claro. Con-
Moraes (pai de Dulcina de Moraes) e Belmira de forme o colaborador... Tão s6 essa qualidade de comportar
Almeida e alcançou projeção por encenar Pirandello colaboração recomenda uma peça, porque, neste caso, tem
(Assim É Se lhe Parece) pela primeira vez no país e ela o mérito de sugerir, o que já é uma grande coisa. As írre-
em português, em tradução de Abadie Faria Rosa, presentáveis não sugerem coisa nenhuma e ficam na gaveta
um medalhão da singela comédia de costumes da dos seus aurores! Precisamente quando as peças são mais
época. O feito foi reprisado em 1927, em home- bem feitas e têm real valor é que suscitam a colaboração do
nagem a Pirandello, que estava em visita ao Rio de intérprete, colaboração essa natural e espontânea e, muitas
Janeiro com sua companhia. Também procurou vezes, repentísta. Verdade é que tal colaboração não pode
sempre destacar que lançou, em 1937, o escritor partir de alguns dos nossos artistas, porque esses não são

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• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 19 SO

intérpretes e, sim, simples executantes, de sensibilidade aos ensaiadores, que não seria uma rotina na vida
pavorosamente blindada [...]. do "artista brasileiro, quando chega à categoria de
Feliz, pois, do autor que encontra para seus originais primeira figura': o libelo conclui com um chamado
um intérprete - um intérprete na verdadeira acepção do à paz - "Reconciliem-se já e já a Sbat eJaime Costa,
termo - à altura de Jaime Costa! que assim o artista e os autores terão cumprido um
Com efeito, o genial criador de D. João VI, de Carlota dever sagrado, qual seja a cooperação para o alevan-
-foaquina, sente de verdade as personagens que lhe são dadas tamento cada vez mais do Teatro Nacional!"
à interpretação, e, daí, vir-lhe do fundo de seus papéis a su- A paz foi selada, mas não durou muito tempo.
gestão inspirada pelo próprio autor e que a este escapara por Em agosto de 1945 há uma nova briga com a Sbat,
uma circunstância qualquer. Tal coisa, que se dá sempre, é que cassou o título de sócio honorário do aror -
habilmente aproveitada porJaime Costa, que, dessa maneira, a láurea fora concedida pela Sbat não só porque
acrescenta aos originais que apresenta uma colaboração sua, em 1928 ele escreveu Maldito Tango, em parceria
que, longe de desmerecer as peças representadas, atesta ao com Brasil Gérson, mas pelo fato de a instituição
contrário, o seu valor, por isso que, como já afirmamos, só reconhecê-lo como grande amigo do autor nacio-
as que de fato prestam são susceptíveis de colaboração. E nal. O estopim para o novo rompimento foram as
Jaime Costa tem sido um colaborador eficiente dos nossos suas declarações públicas, contrárias à possibilidade
autores, sem que isso possa, a qualquer título, desmerecê-los. de que os autores pudessem representar os ateres,
Cerra ocasião mesmo, Jaime Costa exibiu-nos farta e copiosa nas discussões então travadas entre o governo e os
documentação em que ele prova, írretorquivelmente, sua co- empresários para fixar condições de assinatura de
laboração em originais de real sucesso; colaboração essa,aliás, contratos. Com a sua reação inflamada, ele pro-
feita com a indispensável licença do auroroEm alguns desses vocou um plebiscito na classe e o resultado foi a
originais constam cenas inteiras idealizadas e realizadas pelo favor dos ateres como representantes legítimos
nosso grande comediante! da categoria, em lugar dos autores. Estes, então, se
aborreceram muito com o resultado. A briga rendeu
Ainda que não se possa afirmar a identidade muitas manchetes e colunas nos jornais. Jaime Costa
precisa do autor do artigo, o advogado de aluguel chegou a afirmar que Joracy Camargo - autor mais
de Jaime Costa reproduz argumentos que sem ligado a Procópio - estava jogando com a classe
dúvida traduziam com rigor o seu ponto de vista teatral, à qual nunca dera atenção, e jogava porque
pessoal, no mínimo um grau adiante da elegância pretendia ser candidato a deputado. E de política
procurada por Procópio Ferreira para tratar o tema o ator entendia bastante - apoiou Getúlio Vargas
no texto do livro A Arte deFazerGraça. Na mesma durante a Era Vargas, tornou-se seu amigo pessoal,
matéria de defesa, o articulista extremoso comenta escreveu acrósticos, versos, telegramas, bilhetes, car-
o sucesso do momento do ator, cartaz do Teatro tas e telegramas ao presidente e ditador amigo e foi
Rival, Nossa Gente éAssim, de Melo Nóbrega, autor forte apoio, quando de sua candidatura ao governo
que ele estava lançando para contornar a interdição constitucional. Em 1949 Jaime Costa voltou a fazer
pela Sbat, e defende a amplidão do talento de Jaime parte da Sbat, na categoria de sócio efetivo.
Costa ao destacar que a cenografia era de sua auto- Mas não faltaram outras situações tumultua-
ria. São incontáveis os méritos do artista, segundo das. A mais importante foi ainda no perímetro das
o autor. Além de episódios nobres de defesa e apoio discussões de autoria, área de atrito por si só reve-
aos dramaturgos nacionais - seria o ator brasileiro ladora da dimensão desses grandes mitos. Não há
mais dedicado à categoria, insiste-se -, o texto co- dúvida de que nos anos de 1940 o ator realmente
menta ainda a qualidade dos atores que Jaime Costa se tornara um grande astro. CarlotaJoaquina, de R.
convidava para os seus elencos, o seu destemor ao 1tIagalhães jr., sucesso retumbante que estreara em
confronto em cena, a sua aclamação em todo o 1939 no Teatro Rival, tornou-se o seu espetáculo-
país - que deveria ensejar um plebiscito para que -ícone. Ainda assim, em 1949, Jaime Costa acabou
lhe fosse concedido "o título de primeiro ater da se envolvendo em uma briga com R. Magalhães Jr.,
Cena Nacional". Depois de elogiar a sua submissão em virtude de um outro sucesso assinado pelo autor,

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História do Teatro Brasileiro • volume1

A Família Lero-Lero .Mais uma vez em declarações conquistar o público". Ainda assim, ele conseguia
a uma estação de rádio, Jaime Costa afirmou-se alçar-se a alturas maiores, com o próprio D. João VI,
coautor do texto, versão que R. Magalhães jr, se "uma criação no estilo do nosso velho teatro mas
apressou em refutar. Os ânimos exaltados fizeram cheia de sabor e de pitoresco" Para o crítico, de-
com que o dramaturgo retirasse a sua autorização cano da crítica moderna, não faltavam defeitos
para o ator encenar todos os seus textos. A situação no ator-
não arruinou o astro: ele manteve o seu espetáculo-
-ícone pessoal, quer dizer, persistiu com o seu D. Não s6 não sabia frequentemente as falas, como respirava
João VI de tanto sucesso em cena. O artifício foi mal, encavalava as sílabas, tumultuava o ritmo da frase,
- -- - ------ srmpies:-umnovo textO, A Rainha Carlota, de Leda caía na declamação quando desejava ser eloquente. Mas
Maria de Albuquerque, Leonor Porto e Elza Pinto essas imprecisões técnicas imperdoáveis em qualquer ou-
Osborne, estreou no Teatro Glória em 195 o e o D. tro, desapareciam diante da sua presença e da sua força de
João VI continuou a ser a grande atração. comunicação.
No ano seguinte Jaime Costa iniciou sua im-
pressionante mudança de sentido de carreira, que E O fecho do parágrafo tem impacto: "Ele não
o levou a ser reconhecido e respeitado pelas novas necessitava fazer nada para ser simpático ao pú-
gerações. A sua atuação em A Morte do Caixeiro blico: era simpático como o Brasil é gigante - pela
Viajante, de Arrhur Miller, sob a direção de Esther própria natureza"?".
Leão, que fora líder do Teatro do Estudante do O reconhecimento das novas gerações, ainda
Brasil, com cenário de Santa Rosa, lhe rendeu o que no leito de morte e crivado de senões, não
prêmio de melhor ator de 1951, concedido pela é para menosprezar - talvez ele tenha sido um
Associação Brasileira de Críticos de Teatro (AB CT) motor importante para o velho ator, E é para des-
e uniu antigos e modernos em uma só voz de re- tacar o fato de que o velho intérprete - nascido no
conhecimento, O jovem Sábato Magaldí, em sua subúrbio do Méier sob o nome Jaime Rodrigues
coluna no Diário Carioca, viu na montagem "um Costa, no dia 27 de dezembro de 1897, filho de
dos momentos decisivos e mais importantes da pequeno comerciante, que iniciara carreira no
cena brasileira". Ela foi considerada o melhor es- amadorismo pelas mãos de um barbeiro, com o
petáculo de 195 I e os prêmios foram atribuídos emploi de cínico em uma montagem de Um Erro
pelos críticos; entre eles, formavam nomes que, Judicial, em 1920, que combatera com furor o
durante muito tempo, olharam com desprezo a ator revelação do Teatro dos Doze, Sérgio Car-
trajetória de Jaime Costa e de sua companhia. Para doso, afirmando que ele deveria começar como
os que falavam em nome de um teatro exigente, figurante em sua empresa antes de sonhar em ser
era preciso condenar o ator por ser um caçador de titular em uma empresa própria - tenha sido re-
chanchadas e comediazinhas de fácil apelo popular, cebido em triunfo em São Paulo na Companhia
por se dedicar à exploração comercial do riso atra- Nydia Lícia-Sérgio Cardoso.
vés de um teatro medíocre. Surge, então, uma nova Ele foi convidado para ser o protagonista de
dimensão para o astro, transcendental, pois ele se O Comício, de Abílio Pereira de Almeida, estreia
tornou capaz de construir um desempenho que se de 1957, acolhido com elogio na tabela do Teatro
inscreveu na história do teatro nacionaL E criou Bela Vista quando se apresentOu para os ensaios,
um novo espetáculo-ícone, agora moderno, já que saudado por toda a companhia como astro de
o ator vestiu o figurino da peça e cumpriu diversas primeira grandeza, por iniciativa do líder do
temporadas pelo país à frente de sua companhia na conjunto e díreror da encenação, Sérgio Cardoso,
pele de Willie Loman. que contracenou com ele no espetáculo. Ganhou
Para Décio de Almeida Prado, Jaime Costa uma placa de bronze na casa e declarou aos jornais
foi - no seu entender, à diferença de Procópio que aquela homenagem, entre tantas placas que
Ferreira - um modelo de ator que "nunca se aper-
127"Jaime Costa", em Exercício Findo, São Paulo: Perspectiva,
feiçoou" e que "nunca precisou se aperfeiçoar para 1987, p. 15 6.

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• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

recebera por todos os cantos do país, era a que sensibilidade é uma realidade flutuante, é etérea,
tocava a sua alma mais profundamente - vinha e as gerações se sucedem.
de artistas. No mesmo ano, a censura paulista Para o atar, que constrói um canal de comuni-
proibiu a CompanhiaJaime Costa de apresentar cação com o seu tempo, as novas gerações signifi-
a encenação da peça Perdoa-mePor me Traíres, de cam novos desafios e é possível, por vezes, chegar
Nelson Rodrigues, interditada por razões religio- a um momento em que a sintonia não possa mais
sas. Uma novidade importante da proposta era a acontecer. É o drama do velho ator, mais agudo ou
adoção da díreçâo, que foi assinada pelo próprio pungente quando a biografia coincide com gran-
Jaime Costa. O gigante do passado se movia em des mudanças de estilo ou de linguagem. Assim,
outra direção. um aspecta decisivo da história dos grandes astros
A aproximação entre os continentes teatrais brasileiros é o tema da juventude, pois elesviveram
fora iniciada por interferência de Bibi Ferreira, no limiar de uma época em que se pretendeu mu-
que decidiu montar, em 19 53, A CeiadosCardeais, dar o teatro de forma decidida, mudar inclusive a
de Júlio Dantas, com elenco luso-brasileiro e mis- definição de atar. Não foi por acaso que um dos
turando gerações. A primeira versão do espetá- primeiros grupos amadores, dentre os que escolhe-
culo reuniu Jaime Costa, o atar português Villaret ram mudar o palco brasileiro, decidiu optar pelo
e Sérgio Cardoso, entre outros. Em uma versão nome comediantes, alusão a uma acepção francesa
seguinte, Procópio Ferreira entrou no lugar do em que o ator era uma parte da encenação, uma
ator português. Portanto, uma nova porta de co- parte plástica, moldável, diferente a cada proposta
municação fora aberta em cena eJaime Costa não de montagem, em lugar de ser sempre igual a si
hesitou em usá-la, ao contrário de Procópio Fer- mesmo. Para a juventude, o astro, senhor de sua
reira, que tinha uma filha moderna, até aderia às identidade e de seus meios expressivos pessoais,
propostas, mas permanecia enclausurado em suas inconfundíveis, era um canastrão, um ser inferior,
velhas convicções. Segundo depoimento da atriz sobrevivência de um outro tempo.
Nydia Lícia, em entrevista inédita à autora, Jaime
Costa incorporou-se com extrema facilidade na
jovem companhia, aceitou muito bem a díreção e Dulcina de Moraes
a contracena proposta pelos jovens e encantou-se
com o trabalho junto ao elenco moderno. E o tema da juventude adquire consistência maior
A palavra jovem parece ter um alcance es- na história de Dulcina de Moraes, a última perso-
tratégico quando se pretende pensar questões nalidade que é preciso focalizar quando o tema é o
relativas aos atares, às personagens e às interpre- estudo dos primeiros ateres absolutos, os grandes
tações. Se partirmos de uma afirmação de Robert astros da primeira metade do século xx, no teatro
Abirached, "o teatro se define através da relação brasileiro. Dulcina tem encantos especiais por duas
triangular que ele aciona entre a personagem, o razões diferentes. A primeira é o fato de seu nasci-
atOr e o espectador"; se a personagem só encontra mento: ela simplesmente nasceu no teatro, em uma
a materialidade na cena, como o autor sustenta família de teatro e não precisou enfrentar a fúria
um pouco mais adiante, a cena, no entanto, é um dos pais, como Leopoldo Fróes e Procópio Ferreira,
lugar de exposição, só tem sentido por causa do ou as agruras do amadorismo e da dificuldade de
olhar que a constrói; o aror em cena é a perso- chegar ao meio artístico profissional, como Jaime
nagem, mas é a personagem que o público vê. Costa e Itália Fausta, para se tornar atriz.
Portanto, só sabemos o que foi um ater a partir Dulcina de Moraes Azevedo nasceu no dia 8
das impressões que ele conseguiu produzir em seu de fevereiro de 1908, em Valença, filha dos atares
público. Nesse sentido, cada geração tem os seus Átila de Moraes e Conchita de Moraes. Tornou-se
arrebatamentos e os seus magos, os que sabem - atriz ainda na adolescência, ao ingressar na Com-
ou aprendem a - instaurar esses estados de enlevo. panhia Leopoldo Fróes - da qual participava seu
O problema é que a marcha do mundo não para, a pai - no emploi de ingênua. A peça de estreia como

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História do Teatro Brasileiro • volume1

protagonista foi Lua Cheia, em 1925, de André A primeira vez que a vi em cena, [...] trajava um lindo ves-
Birabeau, apresentada no Teatro Carlos Gomes. tido que denunciava, sem as condenar, formas sedutoras,
No mesmo ano, Leopoldo Fróes decidiu partir desenvolvidas e bem lançadas, que estavam em contradi-
em excursão para o Uruguai e a Argentina; foi a ção com a figurinha franzina que a personagem exigia. De
primeira vez que uma companhia brasileira se apre- resto, não só física como artisticamente, essa galante atriz
sentou no exterior. Para a jovem atriz - um pouco não parece indicada para desempenhar papéis de mocinhas
como acontecera com Itália Fausta - a viagem foi ingênuas, embora alegres, buliçosas, brincalhonas':".
um treinamento intensivo, um teste de fogo, apro- Para o observador, era inadmissível que a atriz
priado para forçar o seu amadurecimento técnico estivesse em tal emploi:
e profissional. Após nova temporada no Brasil, a
última, Leopoldo Fróes dissolveu a companhia e Ora, para se meter na pele dessas ingênuas, Dulcina de
seguiu para a Europa, onde morreu. Moraes faz boquinhas, momices e inflexiona com 'voz de
Algum tempo depois do fim da empresa de cabeça'; enfim, reproduz uma série de pequenos defeitos,
Fróes, Átila de Moraes organizou uma compa- pouco agradáveis ao público e que, como expressão de arte,
nhia familiar, reunindo todos os talentos da casa, não significam coisaalguma'v.
formação que durou até o final de 1928 e que
atuou no interior. De volta ao Rio, a jovem atriz Logo adiante, ele sugere que ela explore as qualida-
ingressou em diferentes elencos, trabalhou com des admiráveis que tem para amar como dama-galã,
Jaime Costa, Mesquitinha, no Trianon e na Com- "para o que se convencionou chamar, em gíria de
panhia do Teatro S.José, esta de Paschoal Segreto. teatro, papel de coquette".
Neste último conjunto, conheceu o jovem Odilon Ainda que a atriz tenha deixado de lado as ingê-
Azevedo, advogado e ator, com quem se casou em nuas, coisa que lhe seria imposta de qualquer ma-
193 r. Após algum tempo atuando em formações neira com o passar do tempo, é verdade que até o
familiares, formou-se a Companhia Odilon Aze- final de sua carreira conservou característicasindica-
vedo, consagrada pelo público sob a denominação tivas de um desejoforte de impressionar o público a
singela de Companhia Dulcina-Odilon. O novo partir de um filtro ingênuo, através da mímica facial
conjunto estreou no Rio em 1934, com a encena- carregada, do uso dos olhos, certo maneirismo de
ção de Amor, de Oduvaldo Vianna, na inauguração gestos, uma voz com notáveis estridências, alguma
do Teatro Rival. Foi um sucesso memorável, pro- afetação e - sempre - uma preocupação aguda com
longando a aclamação que o espetáculo recebeu no o bem vestir. Dulcina de Moraes tornou-se em par-
ano anterior, em São Paulo, ocasião em que o texto ticular um mito para o público feminino; era um
fora lançado. símbolo de elegância e um espelho para a mulher
Assim como Dulcina tem a característica pecu- que sepretendia sedutora. Uma boa parte de sua pla-
liar de ter nascido no teatro, por pertencer a uma teia era formada por mulheres que se preocupavam
família teatral, assim a companhia se estruturou em ir ao teatro para ver as roupas que elaapresentaria
como um conjunto familiar, que absorveu todos em cena. Portanto, a sua carreira não foi marcada,
os talentos domésticos. Nesse espaço sentimental até certa altura ao menos, antes de se tornar astro
e profissional, a atriz encontrou uma atmosfera fa- de primeira grandeza, por ousadias de repertório.
vorável para a construção de sua expressão. Curio- Para Décio de Almeida Prado, que a contemplava
samente, Dulcina de Moraes persistiu muito tempo como titular de companhia e a partir do lugar que
como ingênua, uma especialização que mantinha .ele atribuía a Ziembinsk:i, ela foi importante "pelo
uma lógica muito reveladora, sintonizada com a âmbito comercial dos seus empreendimentos, que
condição de estar em família, diferente da situação atingiram pela primeira vez o grande público" Quer
de Itália Fausta, por exemplo, que logo se tornaria dizer,produções cuidadas, bem resolvidas,de textos
dama-galã. A situação provocou estranheza no comerciais, boulevards, sem maiores pretensões; tal-
mestre de cena Eduardo Vitorino, que comentou
128 Op. cít., p. 130.
em seu livro Atores eAtrizes o desconforto: 129 Idem, ibídern.

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• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

vez se possa mesmo falar em um estilo Dulcina. E a


configuração do astro aconteceu aqui como trabalho
efetivo em cena, dedicação árdua de uma operária ao
seu ofício, longe de rompantes de gênio ou traços
cortantes da personalidade.
Em certo momento, contudo, a linha de reper-
tório foi alterada, uma mudança começou. Para
Sérgio Viorti, ela não foi consequência de um
contágio, o resultado da percepção das propostas
do movimento dos amadores ao redor, desejosos
de derrubar o velho teatro de convenções que ela
vestira tão bem. Essa versão despontou em relatos
dos empreendedores da primeira modernidade,
lideranças do grupo Os Comediantes, tais como
Gustavo Dória e Luiza Barreto Leite, e parece
mesmo uma versão frágil do processo histórico. A
visão dos novos tende a delinear uma visão tutelada
dos ateres consagrados, que nem sempre pode ser
considerada como uma abordagem coerente, pois
a rigor os velhos estavam no poder.
Na realidade, parece mais lógico considerar
os efeitos da viagem cultural inventariada pelo
biógrafo. Em 1937, ela viajou com o marido Odi-
lon Azevedo para os Estados Unidos, a fim de se
informar sobre a marcha do palco naquele país. E
ficou surpresa com o dinamismo do teatro norte-
-americano, sua densidade cultural. Ao regressar,
começou a planejar mudanças, mas se viu presa
às algemas que atavam todos os grandes astros da
época, a imposição de fazer sucesso de bilheteria para
sobreviver, situação que obrigava a todos a perseguir
o goStopopular mais imediato. Ou o que considera-
vam como o gostO popular de sua época. Consciente
do papel que o Estado poderia desempenhar para
adensar os debates teatrais, depois do que conhecera
na América do Norte, animada pelos estímulos do
diretor francês jouvet, que excursionou pelo Brasil
em 1942, Dulcina formulou uma proposta com
Odilon, solicitando apoio ao governo. A resposta
do ministro demorou aser apresentada, mas, quando
aconteceu, foi decisiva para a organização de uma
temporada, que ficou conhecida como a temporada
cultural de 1944, no Teatro Municipal. O governo
financiou a Companhia Dulcina-Odilon e, em lugar
do repertório habitual de Dulcina de Moraes, a com-
panhia apresentou César e Cleópatra e SantaJoana,
Dulcina de Moares como Fredaine,
de Bernard Shaw, eAnfitrião 38, de Giraudoux. em FredaineVáiCasar, de André Picard (I93 5).

• 477
História do Teatro Brasileiro • volume1

A escolha sofisticada não significou, no entanto, dros nomes representativos de diferentes gerações.
a renúncia a urna propaganda apelativa, voltada para Eram professores da escola personalidades moder-
a tentativa de atração do grande público. Uma re- nas e antigas - Adolfo Celi, Dulcina de Moraes,
portagem publicada na revista CenaMuda, de 1944, Henriette Morineau, Joracy Camargo, Maria Clara
na página ao lado da seção "Modas de Hollywood': Machado, Estudaram e se formaram na escola, que
anunciava Dulcina em Cleópatra. Na verdade, era seria transferida para Brasília no início dos anos
apenas um pequeno box, legenda para duas fotos 1970, Jacqueline Laurence, Ivan Albuquerque,
grandes em que a atriz aparecia vestida com os Rubens Corrêa e Yan Michalski. Quer dizer, ato-
figurinos da peça. O texto insistia na semelhança res, diretores e até mesmo um crítico, figuras que
da atriz com a estrela Claudette Colbert, pois "um iriam se dedicar a um outro palco, completamente
dos mais interessantes trabalhos de sua carreira" diferente daquele em que ela aprendeu a sua arte.
fora justamente a famosa filha de Ptolomeu. Aliás, Uma outra iniciativa curiosa de Dulcina de Mo-
dentre os gra,ndes,astros, ainda que Jaime Costa e raes deve ser lembrada - não parece justo que ela
Procópio Ferreiratenham atuado um bocado no se inscreva na memória teatral coletiva brasileira
cinema, nenhumafigura buscou tanto a associação apenas por seu espetáculo-ícorie, Chuva, de John
com o glamour das telas como Dulcina de Moraes. Colton e Randolph Clernents, sucesso de 1947
Mas não foram as temporadas culturais ou a que ela revisitou algumas vezes e que foi objeto de
tentativa de apropriação do charme do cinema uma crítica delicada e ácida de Décio de Almeida
que concederam à atriz um perfil diferenciado com Prado, em 1953. Ele louvou o desempenho da atriz
nitidez, um perfil único, digamos, com relação aos e a memória da montagem, mas insistiu em suas
demais astros. A grande diferença imposta por cores esmaecidas, sua velhice, enfim, em função das
Dulcina foi a sua relação com a posteridade, a sua tantas novidades avançadas que os jovens (sempre
ambição de construir um teatro brasileiro, em bases eles) trouxeram para o teatro em curto período de
mais densas e mais nítidas do que as condições de tempo, sete anos, na passagem dos anos 1940 para
trabalho que encontrou e pôde desfrutar. Assim, a década seguinte.
Dulcina de Moraes foi a única da constelação de A outra iniciativa que é preciso destacar é
grandes intérpretes que construiu e manteve um um verdadeiro concerto de sensibilidade teatral
teatro, o Teatro Regina, hoje Dulcina, no centro promovido pela atriz. Fiel ao seu desejo de unir
do Rio de Janeiro, uma obra legítima de doação à a categoria, Dulcina idealizou e realizou, através
cidade e ao público. da FBT, o primeiro espetáculo Poeira de Estrelas,
Também foi a única que se preocupou ,com a de uma série de quatro, no Teatro Municipal, para
formação das novas gerações, com os jovens. Bus- angariar fundos para seus projetes. Nunca tantos
cou enfrentar o problema, tentou encontrar uma artistas brasileiros, de capacidades expressivas tão
solução para a velha crise do teatro que se arrastava variadas, estiveram juntos no mesmo palco; a dire-
ao redor da classe teatral desde - pelo menos, em ção era de Adolfo Celi e lá estavam Adolfo Celi, Ai-
um cálculo otimista - os anos 1940. Ela acalentou mée, Alda Garrido, Fregolente, Dulcina, Elísio de
alguns sonhos que, no seu entender, poderiam con- Albuquerque, Graça Melo, Heloísa Helena, Hen-
tribuir para reverter o quadro. Um grande sonho riette Morineau, Iracema de Alencar, Jaime Costa,
foi a união da classe teatral, que tentou em vão ] oracy Camargo, Laura Suarez, Luís Cataldo, Ludy
efetivar na Associação Brasileira de Teatro, fun- Veloso, Luís Tito, lvlagalhães Graça, Maria Della
dada também para "botar o teatro no mapa dos Costa, Maria Sampaio, Maurício Barroso, Nicete
interesses e da preocupação do brasileiro". Bruno, Odilon, Oscarito, Paulo Autran, Paulo
O único sonho que vingou foi a Fundação Goulart, Rodolfo Mayer, Sérgio Britto, Sérgio
Brasileira de Teatro, que começou a funcionar em Cardoso, Silveira Sampaio, Teófilo de Vasconcelos,
1955. No ano seguinte surgiu uma entidade filiada Tônia Carrero e Ziembinski. Foram apresentados
à FBT que seria o seu principal fruto, a Academia textos assinados por Joracy Camargo, Rubem
de Teatro, uma escola que congregava nos seus qua- Braga, Adolfo Celi, Lúcia Benedetti, e revividas
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 19)0

personagens criadas pelos diferentes atares em para o XX no Brasil, nota-se que o termo diretor
suas carreiras. esteve associado ao de diretor do edifício teatral,
O nome não poderia ser melhor, não poderia o administrador do teatro que comandava os
ser mais adequado: poeira de estrelas. Em um mo- negócios do ponto de vista da economia, com o
menta em que o declínio dos grandes astros era termo encenador, por sua vez, sendo empregado
inexorável, em um teatro luxuoso que os vira tantas pouquíssimas vezes. Quando, já no século XIX ou
vezes brilhar através da exibição de sua força de ex- nas primeiras décadas do xx, a crónica jornalística
pressão, seu carisma, sua capacidade de caracteriza- brasileira dedicava-se, nos seus folhetins, ao comen-
ção, nada podia ser mais eloquente para afirmar o tário dos espetáculos, empregava ou o termo fran-
teatro e unir a classe teatral do que um espetáculo cês - metteur en scéne- ou o português - ensaiador.
coletivo, espécie de evocação remota das antigas Atualrnente, pode-se considerar, em linhas
festas artÍsticas em benefício, sob o nome poeira gerais, que o que distingue os três vocábulos não
de estrelas: registro poético eficiente para falar de são somente nuanças de ordem semântica, mas sim
um instante em que astros morriam, mas um teatro conceituais, do ponto de vista dos procedimentos
novo estava nascendo. artísticos e poéticos empregados na realização de
um espetáculo. No primeiro caso, o trabalho do
diretor está associado ao princípio de moderniza-
ção da cena teatral. Espécie de porta-voz do autor,
ele trabalha na busca de um viés interpretativo da
obra dramática, atribuindo-lhe, subjetivamente,
um sentido e efetivando o que modernamente
costuma-se chamar de leitura ou visão de um de-
5. os ENSAIADORES terminado texto; desse modo, o diretor chama a
E AS ENCENAÇÕES si a autoria da transposição cênica. O trabalho do
encenador, por sua vez, está vinculado ao ambiente
criativo contemporâneo, com o estabelecimento de
A língua portuguesa possui três vocábulos que deno- composições cênicas de caráter híbrido, distantes
minam a atividade ou a função do coordenador do da escritura dramática convencional, por abrir es-
espetáculo teatral: ensaiar, dirigir e encenar. Porém, paço para criações concentradas num esforço de
há nuanças relativas aos procedimentos artÍsticos afirmação da própria escrita cênica como manifes-
e poéticos no tocante ao trabalho cênico em cada tação de teatralidade.
um desses vocábulos, cujo fim é sempre o mesmo: Já o trabalho de coordenação artística e material
colocar.em cena uma obra teatral, acompanhada desempenhado pelo ensaiador no teatro brasileiro,
de música ou não. Modernamente, duas palavras, ao longo de mais de um século, está intimamente
aparentemente sinónimas, definem o artista que se associado a uma tradição luso-brasileira. Por sua
encarrega da coordenação material e criação artística vez, essa tradição associa-se às vertentes italiana e
de um espetáculo: encenador e diretor teatral. A pri- francesa, com vantajosa influência da última so-
meira palavra parece adequar-se melhor à tradução bre a primeira. Essa cultura teatral, que poderia ser
díreta do seu correspondente francês metteur en caracterizada como pré-moderna, de fundo latino
scéne, aquele que coloca em cena, que, portanto, se ou mediterrâneo, legou ao ofício de ensaiador
responsabiliza pela montagem de uma peça dramá- luso-brasileiro procedimentos e etapas de traba-
tica; já a segunda suscita uma visão mais impositiva, lho específicos visando à encenação tanto de uma
talvez pelo seu próprio significado, não deixando po- obra dramática quanto de uma peça musicada: a
rém de ser menos propositiva em relação à primeira. distribuição dos papéis; a decoração do espaço; a
Acompanhando a história do esperáculo desde marcação dos ateres: a confecção dos roteiros para
a segunda metade do século XVIII no continente o ponto, contrarregra e demais técnicos; a supervi-
europeu, chegando-se até a virada do século XIX são do figurino e sua adequação histórica.

• 479
História do Teatro Brasileiro • volume1

Observando-se a divisão do trabalho teatral no público': que fielmente passaria a acompanhar a sua
Brasil, desde o início do século XX até os anos de carreira. Em suma, o autor dramático escrevia na
1940 e 1950, verifica-sea recorrência de quatro im- perspectiva de alimentar tanto a engrenagem eco-
portantes agentes da prática teatral que fomentam nôrnica, que o empresário necessitava administrar
a engrenagem artística e comercial da produção na- e manter, quanto o tipo que deveria ser eternizado
cional: o autor dramático, o ator, o empresário e o pelo astro da temporada.
ensaiador. O autor dramático, como é da natureza A dupla de autores Cardoso de Menezes e Car-
do seu trabalho, era o fornecedor de uma formula- los Bettencourt dominou a produção de textos dra-
ção intelectual em forma de peça teatral, um cria- máticos no teatro ligeiro, sobretudo ao escreverem
dor de ficções. Os textos deviam obedecer a uma e encenarem o gênero revista, durante as décadas de
rigorosa classificaçãoem termos de gênero, a fim de 1920 e 1930. Essa dupla exemplifica a condição do
possibilitar uma comunicação direta entre o autor, autor-ensaiador do seu próprio manuscrito. Isto é,
os práticos envolvidos na montagem e o público. o trabalho teatral de transposição do texto ao palco
Foi seguindo esse princípio que existiram autores encontrava sua realização pelas mãos do próprio
especializados ou mais bem-sucedidos, pois domi- idealizador da dramaturgia. Essa prática tão cor-
navam com maior desempenho a carpintaria teatral riqueira é uma das mais antigas na cultura teatral
de um determinado tipo de texto dramático. Dentro ocidental, podendo se constatar claramente, no
dessa estrutura de trabalho, o autor dramático era caso brasileiro, a sua associação com o dito teatro
quem abastecia com sua matéria-prima o ator e/ comercial ou de entretenimento. No caso da nossa
ou o empresário. Era muito comum que um autor dupla de autores, foi Cardoso de Menezes quem,
trabalhasse a pedido de um ator ou empresário, sob em suas palavras de homenagem ao falecido amigo
encomenda. e parceiro Carlos Bettencourt, após mais de vinte
Exemplos dessas colaborações não faltam. Lem- e cinco anos de trabalho em conjunto, descreveu a
bre-se a afinidade do empresário Paschoal Segreto divisão das tarefas entre os dois, o empresário e o
com seus autores-ensaiadores, em particular a du- conjunto de ateres:
pla Carlos Bcttencourr e Cardoso de Menezes'!" .
Ou a estreita parceria entre Joracy Camargo e o Na nossa parceria, o Carlinhos incumbia-se de tratar com
astro Procópio Ferreira I 3 I • Ou ainda o trabalho em os empresários, dos direitos autorais, sempre maiores que
sociedade, na chamada geração Trianon, dos atores os da tabela desta nossa Sociedade, das festas de aurores,
AbigaillVlaia e Leopoldo Fróes com o dramaturgo reclames nos jornais, tudo enfim que dissesse respeito às
Viriato Corrêa e os empresários Staffa eViggiani'!'. finanças, enquanto eu me encarregava da distribuição dos
Nesse período, uma boa parceria era muito saudá- "papéis", ensaios de poema e música, cenários e guarda-
vel na tentativa de se estabelecer uma permanência -roupa, acomodação de brigas e ciumadas entre artistas,
artística tanto de cunho geral, no âmbito do sim- em consequência de "papéis" melhores e maiores'U.
bólico (temas, situações, personagens etc.), quanto
particular, relativa à figura social do astro ou da es- É óbvio que essa divisão de trabalho entre os
trela diante do público. Já o ator, com a ajuda de um dois parceiros ocorria após a redação do manus-
empresário, quando ele mesmo não acumulava essa crito, sendo o momento descrito acima aquele de-
função, a partir do material fornecido pelo autor dicado ao levantamento da cena e sua adequação
trabalhava para atrair o espectador e formar o "seu ao palco. Fica evidente na descrição de Cardoso de
Menezes como o ensaiador, no caso aqui a dupla,
130 Sobre a estreita colaboração entre os autores-ensaiadores
dedicados ao gênero revista com os empresários ver: M. F. V.
se debruçava tanto sobre as questões de ordem
Chiaradia, A Companhia deRevistas do Teatro SãoJosé... material quanto sobre as questões artísticas. Natu-
131 Sobre o astro Procópio Ferreira, ver Décio de Almeida Prado, ralmente, como o ator e o empresário sobreviviam
Procâplo Ferreira: A Graça do Velho Teatro, São Paulo: Brasiliense,
, 1984. de uma produção intelectual que necessitava ser
132 Sobre as relações dos empresários entre si e com Leopoldo
Fróes ver Raimundo Magalhães jr., As Mil e uma VidasdeLeo- 133 Sessão de Homenagem a Carlos Bettencourt, Boletim da
poldoFrões, Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 1966. Sbat, setembro de 1941, n. 207, p. 14.
+ o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 195 o

executada sobre o palco, eles fomentavam a engre- mente, a modernização de nosso teatro não se fez
nagem necessária à profissionalização do trabalho ao mesmo tempo nos principais centros culturais
entre os demais integrantes da prática teatraL E do país. Esteve e ainda está fortemente dependente
para que essa associação entre autor e ator ou entre das transformações das mentalidades dos agentes
autor e empresário fosse bem-sucedida, trabalhava- mais influentes na elaboração da cena teatraIltu-
-se sob o condicionamento do sucesso de bilheteria. tores, diretores, ateres e empresários. /
Era então para a transposição de um texto ao palco Durante as décadas de 1920 a 1950, convivem-
que entrava em cena a figura do ensaiador teatral, ora no acirramento das diferenças, ora na reivin-
I
contratado pela companhia ou pela empresa para dicação de semelhanças - experiências estéticas
/
executar o texto. de vanguarda ou modernistas, cuja periodicidade
/
era esparsa, e um teatro comercial, servido por
procedimentos recorrentes que, assumindo riscos
Um Legado bem Português: financeiros significativos, forjava uma sólida base
Uma Técnica que se Ensina para a profissionalização dos integrantes da prática
teatral que consolidava o espetáculo como entrete-
Parte do que se convencionou chamar de "velho nimento. Esse teatro de procedimentos recorrentes
teatro" refere-se ao período imediatamente ante- era detentor de fortes vínculos corporativos e era
rior àquele em que no Brasil se deram as primei- ele quem ainda guardava traços de uma prática
ras tentativas modernizadoras. O "velho teatro" luso-brasileira. O empresário teatral Luiz Iglezias,
englobava, na verdade, uma ideia de teatro ainda em suas memórias editadas em 1945, chama a
presa aos procedimentos, às técnicas e, sobretudo, atenção para o extenso número de colaboradores
à prática e à cultura teatral fortemente marcadas e trabalhadores envolvidos nessa indústria do di-
por traços lusos. Como se sabe, a instauração da vertimento no Brasil:
modernidade teatral, entre nós, deu-se paulati-
namente, de forma descontínua, mambembando Uma "caixa" de teatro é uma caixa de segredos vedada
por onde o terreno cultural fosse mais fértil, tanto aos olhos do público, que só conhece os ateres e as atri-
do ponto de vista da concepção da escrita cênica e zes quando estes se movimentam dentro do cenário. Ela
dramática quanto dos meios de produção e frui- oculta um pequeno exército de trabalhadores tão responsá-
ção dos espetáculos, Alguns dos procedimentos veispelo bom andamento de um espetáculo como qualquer
modernos no período, incrementados por grupos artista134.
de amadores ou companhias semiprofissionais
que viriam a se projetar como pioneiros da mo- É muito significativo, do ponto de vista da
dernidade ou renovadores da atividade teatral no organização teatral, verificar como esse "exército
Brasil foram os seguintes: primeiras tentativas de de trabalhadores" se colocou diante da divisão do
representação sem a presença do ponto; ensaios de trabalho entre os profissionais do espetáculo; a es-
mesa mais elaborados segundo uma leitura mais pecificidade de seus ofícios indica a dimensão da
cuidada dos textos teatrais; distribuição do texto complexidade da própria vida teatral no período.
teatral na íntegra para todos os ateres do elenco, Na esteira da importante associação de classe que
independentemente do tamanho de sua parte no foi a Sbat - Sociedade Brasileira de Autores Tea-
espetáculo; discussão pormenorizada em relação trais -, idealizada por nossos autores dramáticos,
ao figurino e ao cenário no tocante à concepção em 1917, no intuito de arrecadar o que lhes seria
do espetáculo; emprego da iluminação como valor devido por suas criações intelectuais, surgiram, na
constituinte da linguagem cênica (isto é, a ilumi- década de 1920, associações das mais variadas cate-
nação estaria a serviço da criação de atmosferas e gorias de trabalhadores do teatro, contemplando os
climas dramáticos advindos do texto, reforçando diversos ramos de atividades vinculadas à indústria
princípios de realidade ou sugerindo ambientes);
supressão da luz artificial da ribalta etc. Evidente- 134 O Teatro daMinha Vida, p. 189.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

do entretenimento: União dos carpinteiros tea- do ensaiador: distribuição dos papéis; a prova da
trais; União dos eletricístas teatrais; União dos con- peça; o ensaio de marcação; o apuro da peça; en-
trarregras; União dos pontos teatrais; Centro das saios de figuração: coros, comparsas; ensaio geral;
coristas teatrais do Brasil; Associação beneficente os intervalos. Essas últimas etapas, fixadas por
dos porteiros teatrais e anexos do Rio de Janeiro. Augusto de Mello em seu opúsculo, objetívando
Naturalmente, nesse período há um fulgurante a montagem de um espetáculo, ecoaram no mí-
destaque para a cidade do Rio de Janeiro, como nimo por mais de setenta anos, influenciando o
pelo de diversão e centro cultural do país, devido pensamento e a prática teatral brasileira, pois os
à sua tradição histórica e sua condição de distrito mesmos termos e noções são retomados paripassu
federal da República. por ensaiadores brasileiros.
No tocante aos traços portugueses propria- Além da obra de Augusto de Mello, outro opús-
mente ditos, sobreviviam ainda vários aspectos dos culo, editado também em Portugal e datado de 1915,
quais o mais famoso e demorado a ser banido de merece ser lembrado. Reeditado em 1950, O Livro
cena foi a própria prosódia empregada pelos ato- do Ensaiador, escrito por A. Walgôde, descreve
res. É, portanto, no contexto de uma prática teatral em síntese as mesmas noções, e prevê as mesmas
ainda luso-brasileira que o trabalho do ensaiador etapas e os mesmos procedimentos em termos das
dramático ou teatral deve ser considerado no Bra- técnicas a serem aplicadas a uma montagem teatral.
sil. O que se observa sobre o ofício do ensaiador Já no Brasil, em 1922, tem-se a publicação, em
é que a sua prática, percebida por meio da leitura três partes, durante os meses de outubro, novembro
de obras específicas sobre o assunto, postulava: a e dezembro, na revista Ilustração Brasileira, de um
sistematização de uma técnica teatral; a construção texto emblemático do ensaiador Eduardo Vitorino,
de uma metodologia de trabalho na coordenação "Cem anos de teatro. A mecânica Teatral e a Arte
artÍstica e material do espetáculo teatral; a vulgari- de Encenação". Esse texto seminal nos possibilita
zação de um vocabulário específico, o que definiria verificar o alto nível de consciência e responsabili-
um ofício bem determinado. dade acerca do ofício de ensaiador, tendo em vista o
Os manuais de ensaiadores ou obras afins nos grau de detalhamento técnico e a erudição histórica
revelam claramente a mentalidade e a organização e estética demonstrada por esse autor-".
do olhar criativo do ensaiador sobre o palco, e, No ano de 1948, tentando, possivelmente,
por conseguinte, o seu pensamento artístico sobre preencher a lacuna existente em termos bibliográ-
a cena. A leitura dessas obras permite verificar que ficos acerca do trabalho teatral do ensaiador no
os ensaiadores detinham um conhecimento e uma Brasil, Otávio Rangel, autor dramático, funcio-
técnica bastante eficazes para a sobrevivência do nário do SNT e ensaiador profissional, pretendeu
"velho teatro': que insistia em não desaparecer em sistematizar num pequeno livro, Técnica Teatral,
meio às experiências mais radicais do teatro mo- os procedimentos de trabalho do ensaiador. Tão
derno. Algumas obras-mestras sobre o assunto po- extensa e complexa parecia ser a tarefa que seis anos
dem ser lembradas. Em primeiro lugar, o Manual mais tarde, em 1954, uma complementação ao pri-
do Ensaiador Dramático, de autoria de Augusto de meiro título se deu com a edição de um segundo
Mello, ato r, ensaiador e professor da Escola Dramá- trabalho intitulado Escola Teatral de Ensaiadores.
tica do Conservatório de Lisboa, que foi editado Essas duas publicações se complementam e sinteti-
em 1890 no Porto e no Rio de Janeiro. Esse ma- zam todas as noções, procedimentos e nomenclatu-
nual parece ser o que melhor descreve o trabalho ras empregados pelo dito "velho teatro" no Brasil.
do ensaiador e deixa transparecer uma mentalidade Cerca de dez anos após o lançamento do primeiro
específica sobre o teatro. A obra se divide em quatro livro de Otávio Rangel, em 1958, portanto em pleno
capítulos: I. A atividade do ensaiador e a mise-en- processo de modernização do teatro brasileiro, o
-scêne, 2. O teatro antigo e a rnise-en- scêne: 3. O
teatro moderno e a mise-en-scene: 4. As etapas que 135 O texto de Eduardo Vitorino foi reproduzido na revista Sala
Preta, n. 3, São Paulo: Departamento de Artes Cênicas da uSP-
constituíam propriamente dito o trabalho teatral -ECA, 2003, p. 182-189.
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 19)0

consagrado autor dramático e prestigiado ensaia- Manual do Marinheiro; entre muitos outros con-
dor, Paulo de Magalhães, editava, sob os auspícios sultados na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro.
do Serviço Nacional do Teatro, um opúsculo que No caso específico do Manual do Ensaiador
se intitulava Como se Ensaia uma Peça: Aula de Dramático, trata-se de uma obra cujo conteúdo
Técnica Teatral. Conforme o próprio autor indi- reitera a necessidade de: conhecimento profundo
cava nas páginas introdutórias, tratava-se de uma dos gêneros dramáticos; domínio total das capaci-
resposta à solicitação constante e geral por parte de dades técnicas do palco e da caixa cênica; ciência
amadores e teatristas de todas as partes do Brasil das noções artísticas e técnicas, assim como da no-
que perguntavam: "como montar uma peça de tea- menclatura; um conjunto de conhecimentos do
tro?" Nesse simpático livrinho, o autor e ensaiador ofício do ensaiador; uma tecnologia teatral. Como
retoma sumariamente os mesmos procedimentos, os manuais foram fortemente influenciados pelo
técnicas, regras, noções e sobretudo vocabulário já espírita enciclopédico, e seguiam o mesmo princí-
desenvolvido por seus predecessores. pio classificatório, eles promoviam uma subdivisão
Por fim, a leitura hoje desses manuais, opúsculos dos textos dramáticos, abrindo-se um espectro de
e assemelhados confirma que seus autores acredi- possibilidades balizadas pela tradicional oposição
tavam ser possível: primeiro, formular um método entre tragédia e comédia; ao mesmo tempo, lista-
eficaz, estabelecido por regras claras e objetivas vam e nomeavam todos os elementos conhecidos
quanto ao domínio da encenação de um texto sobre que integravam os mecanismos da caixa cênica e do
o palco; segundo, acreditavam ser possível comuni- palco frontal em forma de glossários.
car um conhecimento de forma organizada, isto é, Durante os anos de 1920 a 1950, apesar do pau-
transmitir às gerações futuras um conteúdo espe- latino processo de modernização da cena nacional,
cífico, um conjunto de procedimentos de trabalho, concomitante às transformações do perfil intelec-
regras e noções particulares, uma tecnologia teatral. tual do coordenador artístico de uma montagem
Esse conhecimento sobre o fazer e o pensar teatral, teatral, verifica-se a permanência daquele mesmo
consequentemente, estabeleceria os contornos da quarteto que reivindicava grande dose de profis-
formação do ensaiador. sionalismo para se manter na carreira. Além de res-
Entretanto, a formação legada pelos manuais peitar a hierarquia do ofício teatral, ser profissional
reflete o carátervulgarizador que está na base dessas de teatro era antes de tudo ser conhecedor das suas
mesmas obras, cujo princípio advém daEnciclopé- atribuições, dos seus deveres e dos seus direitos para
dia no século XVIII. Se a Enciclopédia de Diderot com a execução da peça, os lucros da bilheteria e os
e D'Alembert nomeava e classificava o conheci- aplausos da plateia. Desde os primórdios do nosso
mento, no século seguinte tem-se a proliferação de teatro, muito peculiarmente dentro de nossa cul-
manuais que promoviam a difusão desse mesmo tura e prática teatral, o autor, o atar, o empresário e
conhecimento e a sua consequente aplicabilidade o ensaiador estão permanentemente associados no
nos diversos campos profissionais de uma socie- fomento à montagem teatral. Embora por vezes as
dade burguesa dedicada, sobretudo, ao comércio funções pudessem se acumular numa única figura,
e à indústria. Procurando abarcar todas as áreas como autor-ensaiador ou ater-empresário ou ainda
do saber, com o objetivo de auxiliar na realização, ater-ensaiador, essesagentes foram acompanhando
no fazer, na execução de uma tarefa específica, os a transformação da natureza de suas funções, pouco
manuais redigidos em diferentes idiomas e muitas a pouco, dentro do processo de criação e produção
vezes traduzidos em tantas outras línguas, cobriam da nova prática e do novo pensamento teatral. E
indiscriminadamente as áreas mais variadas, indo se as condições do autor, do atar e do empresário
do lazer até as tarefas mais complexas, como dei- se transformaram mediante uma nova realidade
xam entrever os títulos que seguem: Manual do cultural, moderna, parece-nos que o mesmo não
Pintor; Manual do Cantor;Manual do Engenheiro; sucedeu com a função do ensaiador.
lvIanual do Fogueteiro; Manual da Eloquência; a próprio termo ensaiador ficou fortemente
Manual de lvIemorização; lvIanual de Perspectiva; vinculado à noção do "velho teatro", incompatível
História do Teatro Brasileiro + volume 1

com os tempos modernos, associado ao atraso es- Art. 5l1. - O cargo de ensaiador poderá ser exercido por
tético e artístico do qual seria o responsável por um artista da companhia quando não houver quem o de-
presidir os trabalhos de encenação. A função foi sempenhe devidamente, com gratificação pecuniária por
inclusive pouco a pouco depreciada, consequente- esse serviço, cumprindo-lhe: marcar, ensaiar e apurar as
mente marginalizada e por fim esquecida pela pró- peças, fornecer roteiros aos contrarregras, ao pintor e ao
pria história devido à modernização da cena teatral aderecista para as montagens das peças, e determinar as
que reivindicava para o coordenador do espetáculo tabelas de serviços de cena, referentes às peças, de acordo
uma nova designação e uma nova concepção do com as necessidades do trabalho e instruções do díreror
espetáculo: diretor teatral ou simplesmente ence- técnico, devendo manter sempre nestes serviços a ordem e
nador teatral. Isso para não dizermos palavra sobre a disciplina precisas't",
a função do ponto, que, como todos sabemos, era
incompatível com os procedimentos de atualização As atribuições do cargo acima descritas são
do teatro brasileiro, tendo, portanto, desaparecido exatamente as mesmas verificadas nos manuais
de nossos espetáculos e levado consigo a enorme já citados anteriormente. Nesse sentido, além de
concha localizada no centro do palco, sinal da sua reconhecido o ofício foi institucionalizado, ainda
presença em cena. que por pouco tempo. O Serviço Nacional de Tea-
Num olhar panorâmico sobre a prática teatral tro, que fora criado no final do ano de 1937, por
brasileira, ao longo desse período de 1920 até 1950, meio do Decreto-Lei n 2 92, de 21 de dezembro de
o que se observa é o início do processo de declínio 1937, em 1941 teve redigido um estatuto para asua
da condição empresarial, isto é, a condição comer- primeira companhia teatral subvencionada pelo
cial da produção teatral condicionada à bilheteria, governo federal, a Comédia Brasileira. Essa com-
tão cara a mais de uma geração de autores, artistas panhia, que durou de 1940 até 1945, disciplinando
e técnicos. É necessário lembrar essefato, uma vez as suas atividades e funções, no tocante às atribui-
que a função do ensaiador fora a mola mestra da ções do ensaiador, previa os seguintes deveres desse
companhia dramática, isto é, de uma estrutura artista para com a Comissão Administrativa:
artístico-comercial que a prática teatral brasileira
delineara desde as últimas décadas do século XIX e § xli. - Marcar e ensaiar as peças que para essefim lhe forem
que sobrevive até o final dos anos de 1950. apresentadas pela Comissão Administrativa, comunicando
ao díretor de cena as horas de ensaio para ser exarado em
tabela;
Um Ofício § 2l1._ Começar o ensaio um quartO de hora após a marcada
que se Institucionalizou na tabela, comunicando as faltas ao diretor de cena para
efeito de penalidade;
Porém, antes de desaparecer do palco brasileiro, § 32 - Entregar logo que estiver marcada a peça os diversos
visto o descompasso de sua mentalidade com o roteiros das diversas seções ao díretor de cena;
processo de modernização do teatro nacional, a § 42 - Não marcar o ensaio sem ter pleno conhecimento
função do ensaiador recebeu um reconhecimento que todos os trabalhos se acham concluídos;
institucional. Em 1923, dentre as inúmeras tentati- § 5l1. - Exigir a presença do contrarregra sempre que julgar
vas de estabelecimento pela sociedade organizada, necessária;
representada neste caso pela Casa dos Artistas, para § 6l1. - Exigir que o POntO se coloque no local próprio desde
a constituição de uma companhia dramática estável que principiem os ensaios de apuro;
subvencionada pelo governo federal, foi redigido § 7l1. - Para o exercício de suas funções, enrender-se-á, uni-
um longo projeto de lei que dispunha sobre as camente, com a Comissão Administrativa'?".
atribuições dos integrantes da futura companhia.
Entre os artigos, o de número cinco tratava especi-
ficamente das obrigações gerais referentes ao cargo 136 Yan Michalski; Rosyane Trotta, Teatro eEstado,São Paulo!
Rio deJaneiro: Hucírec/Ibac, 1992, P: Ir.
de ensaiador: 137 Idem, p. 23-24.
• o Teatro Profissional dosAnos de 1920 aosAnos de 1950

Reconhecido institucionalmente, o ofício do nhia. Para os demais artistas, não havia garantia
ensaiador teatral, como se pode ver pela legislação de permanência ou estabilidade no emprego; ao
da época, passa a ter um respaldo além daquele até contrário, os ateres oscilavam, buscando trabalho
então encontrado somente nos relatos jornalísti- onde houvesse melhor remuneração ou onde se
cos ou nas próprias obras dos ensaiadores que se abrisse a chance de um lugar de destaque dentro
expressavam sobre a função. Porém, essa situação da hierarquia da companhia, desempenhando um
não se manteve, visto que a segunda iniciativa de papel de presumível repercussão junto à plateia.
criação e manutenção de uma companhia dramá- A relação entre os ateres e o ensaiador era
tica estável subvencionada pelo governo federal - orientada pelo respeito à hierarquia das funções
a Companhia Dramática Nacional - se deu em desempenhadas por todos os integrantes da com-
1953-1954, quando o termo ensaiador já não era panhia e determinada sobretudo pelo respeito ao
mais empregado e em seu lugar já se firmava a mo- texto e à tabela de serviços. Havia uma dependên-
derna denominação de diretor teatral. cia de todos os envolvidos com o trabalho teatral,
Institucionalmente, com a CDN, a designação de do empresário ao ponto, passando pelas coristas,
diretor era acompanhada pela nova ideia de que o no tocante ao gênero dos textos a serem represen-
estilo de encenação era o reflexo de uma visão do tados. Nem mesmo o público poderia ficar fora
diretor sobre um determinado texto; além disso, desse quadro, pois era a ele que visavam os artistas
como a figura do ensaiador estava condicionada ao de teatro, sabendo que dele dependiam o sucesso
teatro comercial, a tendência dominante quanto à ou o fracasso artístico e económico da empresa
encenação passa a ser aquela vinculada ao alto nível teatral. No palco desse teatro de convenções des-
literário das peças e ao seu valor teatral como obra filava uma galeria de personagens-tipo, espécies de
esteticamente vinculada aos padrões modernos de máscaras sociais que, ao refletirem a atualidade ou
encenação. Houve assim uma mudança radical no contextos históricos dos mais diversos, forjavam
foco da cena. Porém, para se compreender plena- matrizes comportamentais pré-definidas. Tais ma-
mente e livre de preconceitos a atuação do ensaia- trizes determinavam a criação ficcional do texto
dor dramático e suas encenações, vale a pena levar pelo autor dramático, condicionando, por sua
em conta dois aspectos de sua prática: o trabalho vez, a atuação dos papéis assim concebidos para
com o ator e o texto e o trabalho com o espaço e os artistas da companhia. Nota-se um movimento
as encenações. de fluxo e refluxo permanente entre a escrita dra-
mática e a criação cênica dos papéis, intermediada
pelo ensaiador teatral.
o Trabalho do Ensaiador Essa galeria de tipos de papel, na sua origem, re-
e a Prática do Ensaio: monta aos primórdios do próprio teatro, às másca-
O Ator e o Texto ras. Porém, sem cometer o exagero de retroceder às
origens da arte de 'Ihespís, pode-se observar que uma
o trabalho do ensaiador com os ateres pode ser das primeiras tentativas modernas de sistematização
entendido dentro de uma estrutura de companhia de códigos comportamentais se deu na França pós-
dramática privada, em que ele é convidado para -revolucionária. Entre tantas medidas visando à
montar uma determinada peça, com um conjunto reestruturação do funcionamento da Comédie
de artistas muitas vezes selecionado previamente Française, uma das mais marcantes diz respeito di-
pelo empresário, dono da companhia. A noção de retamente à classificação dos emplois dos ateres in-
trupe teatral, nesse caso, deve ser percebida do ponto tegrantes da trupe parisiense, em função da
de vista capitalista, isto é, quando se prioriza a consti- personagem a ser representada. Essa nova classifica-
tuição de um repertório, esse é entendido como po- ção dos emplois se notabilizou pelo famoso decreto
tencialmente comercial. Ao mesmo tempo, pensa-se de Moscou, assim denominado por ter sido assinado
na bilheteria e no reconhecimento artístico que o por Napoleão no meio de sua campanha expansio-
repertório pode dar ao astro principal da compa- nista em direção à Rússia. Dessa forma, depois de
História do Teatro Brasileiro + volume 1

18 I 2, no teatro estatal francês os papéis ficaram emploi pode ser entendida como uma "síntese dos
distribuídos segundo personagens-tipo dos dois traços físicos, morais, intelectuais e sociais" que
gêneros.1Yfasculinos:Amoroso; Segundo amoroso; advém tanto da personagem quanto do ator, O
Jovem primeiro; Primeiro papel jovem; Grande jo- teatro moderno destruirá essa noção, propondo
vem primeiro papel; Grande primeiro papel; Baixo uma dramaturgia que investiga e problematiza mais
cómico: Segundo cômico; Primeiro cómico: Pri- verticalmente a gênese das personagens, vistas à luz
meiro cômico caricato; Capa; Financista; Velho ri- de categorias psicológicas e sociológicas. No caso
dículo; Ventre dourado; Pais nobres; Raisonneurs. brasileiro, essa novidade pode ser conferida em
Femininos: Ingênua; Amorosa; Jovem primeira; peças de Nelson Rodrigues e Jorge Andrade, para
Grandes jovens primeiras; Jovem primeira papel; citar dois autores que ignoraram a noção do emploi
Grande primeira papel; Segunda coquete; Grande nos anos de1940 e 1950.
coquete; Segunda soubrette; Soubrette; Mãe nobre; No tocante às práticas teatrais pré-modernas no
Papéis marcados; Duegnes Amas ou Característicasv". Brasil, a classificação dos tipos de papéis obedeceu
Essa classificação dos emplois, aqui traduzida às necessidades das nossas peças e sofreu algumas
ao pé da letra, estava baseada principalmente no adaptações, porém sem fugir demasiadamente ao
próprio repertório da Comédie Française, formado que fora estabelecido para o teatro francês. Sin-
então por peças clássicas francesas e históricas. De tetizando as classificações adoradas pelos autores
uma maneira geral, como Patrice Pavis define o de manuais e obras do gênero, pode-se chegar à
termo em seu Dicionário do Teatro, a noção de seguinte tipologia para os ateres:

TIPOS DE PAPEL CARACTERÍSTICAS DO TIPO

Homem jovem de modos viris, variando-se as características dependendo do gênero: amoroso, dramá-
Galã tico, cínico, cômico-rímldo, típico etc.

Central ou Centro Homem de meia-idade ainda fascinante e disposto. As mesmas variações descritas para o Galã podem
lhe ser atribuídas.

Vegete ou Vegeto Homem já mais velho. Pode ser o Velho Gaiteiro ou Velho Ridículo. Pode equivaler-se em termos de
idade com a Caricata.

Baixo Cômico Figura típica, caricatural ou não. Associado aos recursos do baixo cômico ou às características de certos
tipos sociais. Criados, copeiros, cozinheiros, vendedores ambulantes, quitandeiros, carvoeiros, mata-
ou -rnosquito, soldado, marinheiro, fuzileiro, recebedores, rnotorneíros, motoristas, trocadores, olheiros,
mulatos pernósticos etc.
Característico

Astro Figura masculina de maior destaque na companhia dramática e na empresa teatral.

Utilidade Ator ou atríz que atua em qualquer papel secundário.

Figurante Aquele que fica em cena sem falar, "figurando" apenas tipos masculinos e femininos diversos.

Os tipos de papel, como se pode perceber, são Tanto podem pender para o cômico como podem
fixos, conformados segundo as idades para o galã se manter numa linha característica, identificados
(de 20 a 30 anos), o centro (de 30 a 50 anos) e o a uma profissão ou segmento social.
vegete (de 50 anos em diante). Já os tipos carac- A exemplo do papel do galã, que deve repre-
terísticos não são pensados em função da idade. sentar os primeiros papéis morais que inspiram
simpatia ou interesse, correspondendo ao jeune
premier da classificação francesa, observa-se mais
138 CE Léon Moussinac, Traitéde la Mise en scêne,Paris: Librai-
rie Centrale des Beaux Arrs, 1948.
claramente como o caráter do tipo se mantém
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

permanente - amoroso, dramático, cmico, cô- previsto pelo ensaiador e o ator em função do texto
mico, tímido, típico etc. - ao passo que os "estados dramático.
emocionais" devem variar segundo o jogo cênico Eis agora o quadro da tipologia feminina:

TIPOS DE PAPEL CARACTERÍSTICAS DO TIPO

Ingênua Menina moça, podendo ser tímida, romântica, sonhadora etc. É a jovem casadoira.
Dama Galã ou Galante Mulher jovem, figura romântica e tentadora que desperta a atenção dos homens pela sua beleza e
natural sensualidade.

Dama Central Mulher já madura e distinta. A mãe de família por excelência.


Caricata Mulher de modos ridículo e caricatural, normalmente associada à figura da Velha Grisalha.
Soubrette ou Empregada Figura graciosa, é a criadinha normalmente faceira, denominada ainda de "mídínette" galante.
Corista Mulher que arua nos coros em grupo cantando e/ou dançando.
Estrela A figura feminina de maior destaque na companhia, equivalendo-se ao astro na tipologia masculina.
Primeira figura feminina no teatro musicado, sobretudo no gênero revista. Seus predicados são a graça
Vedete e a beleza física associadas ao domínio vocal.

Na organização dos tipos femininos segue-se a tipo da mulher que pode ser caracterizada como
mesma lógica em torno das idades e da funcionali- intrigante, mas igualmente como uma bondosa aia
dade dos papéis segundo a organização ficcional do de uma peça histórica. Variação da mesma função
autor dramático. Ingênua (de 15 a 20 anos); dama dramática se verifica numa criada indiscreta, ou
galante (de 20 a 3o anos); dama central (de 3o aos na empregada fofoqueira, tão explorada hoje pela
50 anos); dama caricata (dos 50 anos em diante). teledramaturgia, tendo sido a matriz decalcada do
Verifica-se assim que o autor dramático organiza teatro. Seja como confidente, ou como aos poucos
seu material ficcional com base nos quadros de se metamorfoseou na dramaturgia brasileira no
artistas das companhias, seguindo uma distribui- tipo da mulata pernóstica, tal papel se caracteriza
ção de papéis que contempla pares de casais de muito mais pelo desempenho da sua função dra-
idades diferenciadas, constituindo assim gerações mática no texto do que pela caracterização de sua
distintas umas das outras. Essa variante temporal idade. Lembre-se também que por vezes a atriz ou
auxiliava na composição da trama, na oposição o ator envelhecem, mas continuam especialistas
de modos e costumes recorrentes na dramaturgia naqueles tipos de papel, explorando por anos uma
do período. Assim como nos tipos masculinos, o atuação que não se vinculava logicamente à idade
princípio é o mesmo na delimitação de uma matriz da personagemv".
comportamental associada a uma idade. Note-se Definida essa tipologia convencional, que era
o exemplo do papel da dama galante eternizando, aplicada tanto à dramaturgia nacional quanto es-
normalmente, o tipo da mulher elegante ou fatal, trangeira traduzida, o trabalho teatral do ensaiador
sedutora, que se demonstra independente, deten- com os ateres e o texto era mediado por uma plani-
tora de sensuais predicados, não identificada com ficação de diversos ensaios, que eram anunciados na
a mãe de família, muitas das vezes opondo-se a tabela de serviço do teatro, com finalidades distin-
esta, por se configurar como a amante tentadora tas e com periodicidade variada. Os objetívos dos
ou a prostituta de luxo. Já no aspecto funcional
desses papéis, ressalte-se o tipo da soubrette que, 139 Nesse sentido, o caso exemplar é o da atríz Eva Todor. Ver
podendo abarcar idades variadas, alcança igual- Ângela de Castro Reis, A Tradição em Cena:Eva Todorna Com-
panhiaEva eseusArtistas (1940-1963), tese de doutorado, PPGT
mente uma multiplicidade de facetas em torno do da Uni-Rio, 2004.
História do Teatro Brasileiro • volume 1

ensaios, ontem como hoje, continuam em linhas A observação do laureado autor e sócio da Sbat,
gerais os mesmos: aprendizagem e memorização apesar de possuir certa lógica ao chamar a atenção
do texto teatral e adequação do jogo cênico dos sobre a vaidade que incendeia as rivalidades entre
ateres em busca de uma formalização acordada artistas, não deixa de nos fazer sorrir sobre o pen-
entre ateres e diretor, Advém daí uma perenidade samento geral que norteava o "velho teatro".
que é relativamente questionável, mas necessária Já na etapa do ensaio de apuro é que se cons-
para a manutenção do próprio espetáculo, ao longo truía a aruação propriamente dita dos atores. A
das suas apresentações. Já os ensaios presididos pelo intervenção dos ensaiadores nesse momento era
ensaiador se configuravam por serem etapas com capital para a eficácia do texto, modulando as vozes
objerivos bastante precisos. Como se verá a seguir, e as atitudes, descobrindo maneiras de dizer e de
esses ensaios denotam um processo metodológico agir, arranjando os tempos dramáticos e cómicos,
gradativo, que outrora fora adorado como uma definindo os estados, buscando a sinceridade da re-
regra para a montagem do espetáculo. Apesar da presentação e a verdade da situação, sem perder de
finalidade de cada tipo de ensaio ser diversa, sua vista o texto representado. Como postula Otávio
necessidade variava ainda segundo o gênero (teatro Rangel, a repetição no ensaio de apuro era funda-
dramático ou musical) e a complexidade do texto. mental para o efeito da cena.
A partir da leitura dos manuais, podem-se observar
as seguintes modalidades de ensaio após a distribui- Paciente e rigoroso deve ser, sem exceção de artista, o en-
ção dos papéis: ensaio de leitura; ensaio de marca- saio de apuro. Repita-se uma cena, uma frase, um vocábulo,
ção; ensaio de retificação; ensaio de apuro; ensaio uma atitude, um jogo fisionômico, se necessário for, dez,
de junção; ensaio à italiana; ensaio geral. Porém, doze, quinze vezes e só se satisfaça o Ensaiador quando a sã
segundo Otávio Rangel, a modalidade de ensaios consciência os julgar exaros e em harmonia com a intenção
preliminares englobaria os supracitados: leitura, do Autor'!'.
marcação e retificação. Isso quer dizer que após al-
gumas poucas leituras iniciais do texto na íntegra O ensaio de apuro era norteado pelo respeito
pelo elenco, logo se passava aos ensaios de marcação, à palavra do autor e pela busca do melhor modo
ainda com o papel na mão, para em seguida, após a de interpretação dos papéis, levando-se em conta
retificação das marcas em função dos diálogos e dos o gênero de peça a ser encenada e aprimorando a
cenários, se alcançar o ensaio de apuro. Não deixa expressividade vocal e gestual do artista.
de ser curioso observar como Paulo de Magalhães Por sua vez, a modalidade do ensaio de junção
relativiza a importância da primeira leitura do texto era unicamente necessária para os gêneros musi-
com todo o elenco reunido. A seu ver, isso pode até cados: operetas, fantasias, revistas, mágicas, pas-
ser prejudicial para o espetáculo: torais, vaudeviles e burletas. Tratava-se da junção
das partes cantadas e coreografadas com as partes
É sempre útil mas não imprescindível, como julgam al- dramáticas propriamente ditas, semelhante aos
guns ensaiadores, uma primeira leitura de conjunto da procedimentos que ainda hoje imperam em nossos
peça pelos artistas, antes do ensaio de marcação. É útil teatros no tocante aos ensaios das óperas. Havia
porque os intérpretes, a tal leitura, podem formar ideia ainda a modalidade do ensaio à italiana, em que
de conjunto do original a ser encenado mas, psicologi- o elenco de atares ou cantores repetia suas partes;
camente, muitas vezes, é prejudicial tal leitura conjunta, sentados diante do ensaiador ou do maestro, com
porque, certos artistas, vendo seus "papéis" diminutos e a máxima concentração. Se necessário, quando
fracos em relação aos outros, desinteressam-se e produ- falhava a memória, o elenco consultava espora-
zem menos nos ensaios subsequentes, prejudicando um dicamente seu texto, sua partitura ou ainda pedia
"papel" que, apesar de pequeno, pode ser influente na ação auxílio ao ponto. Ao término dessas etapas, os
geral do espetáculo-". ateres realizavam o ensaio geral, que era corrido,

140 Paulo de Magalhães, Como seEnsaiaumaPeça:Aula deTécnica 141 Escola Teatral deEnsaiadores, Rio de janeiro: Talmagráfica,
Teatral, Rio deJaneiro: MEC-SNT, 1958, p. 16-17. 1954,P· 129·
• o TeatroProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 19 SO

isto é, sem interrupções, e que devia dar uma exata de adequação da atuação em favor de um sentido
noção de como seria a estreia do espetáculo. Nos artístico orientado pelo próprio ensaiador, segundo
ensaios anteriores de junção e apuro, os figurinos a embocadura do papel e a lógica comportamental
e os cenários eram definidos, o que fazia com que expressa no texto dramático sobre a personagem.
o ensaio geral fosse uma auant-premiére para o en- Na sequência do seu depoimento, Lourdes Mayer
saiador que, sentado na plateia, assistia ao ensaio dá um bom exemplo de uma das etapas do trabalho
sem tomar parte diretarnente na sua execução. do ensaiador com o ator, E são curiosas as coinci-
Já no tocante ao trabalho cotidiano de prepa- dências dos termos empregados pela atríz, com as
ração da atuação dos ateres, em seu depoimento a etapas descritas tanto no Manual do Ensaiador
atríz Lourdes Mayer, esposa do ator Rodolfo Mayer, Dramático, que é do final do século XIX, quanto
ambos integrantes do elenco da primeira compa- nos capítulos de Otávio Rangel ou nos tópicos de
nhia estatal, a Comédia Brasileira, que funcionou Paulo de Magalhães, que escreveram suas obras no
de 1940 a 1945, descreve a maneira como segue o período em que se deu o processo de modernização
corpo a corpo entre ater e ensaiador: do teatro nacional. Isso demonstra como era forte a
noção das convenções e a sua permanência ao longo
A gente morria de medo dos ensaiadores. Quando eles não da primeira metade do século xx,
gostavam do teu trabalho... Eles te ensinavam, te ensina-
vam, e você não chegava lá. Eles iam para o fundo do palco, Eles [os ensaiadores] levantavam o primeiro ato no sentido
com as mãozinhas pra trás, e começavam a cantarolar, A de marcação. Não existia ensaio de mesa. Você recebia o seu
atriz daqui queria morrer. Eles eram muito exigentes, mas papel e no dia seguinte fazia a marcação. Um dia depois
grandes dírerores'v. eles já botavam na tabela [de serviço]: "Sem papel na mão".
Aí vinha o que fazia você morrer: apuro do primeiro ato.
Ensinar e exigir dentro das convenções. Ao que Era o que se chamava de picadeiros. Você ia para o teatro
parece os ensaiadores foram importantes educado- tremendo. Mas era fantástico. Era rato o ator e a atríz que
res e formadores de ateres, segundo a mentalidade não acabassem num acesso de choro I44 •
artística que possuíam. Se existia algo a ser ensinado
era a técnica, a lógica vocal e corporal de adequação A própria expressão, corriqueiramente em-
do ator ao tipo de papel a ser representado por ele pregada pelos ateres, reiterada aqui por Lourdes
nas situações dramáticas desenvolvidas pelos drama- Mayer, "levantar um ato': dá a dimensão de que
turgos. Luiz Iglezias, empresário que teve durante o ensaiador é dependente de um teatro ancorado
algum tempo em sua companhia a presença do numa situação dramática, devotado à palavra do
renomado ensaiador Eduardo Vieira, ao passar em autor que só ganha sua eficácia quando de pé,
revista sua traj etória artística, no início da década de levantada da página, e sustentada pela voz e pelo
1940, enfatiza a importância desse profissional da corpo dos atores. Porém, a ausência de uma leitura
cena para a formação do atar. Sem a sua orientação, de mesa deve ser compreendida pelo fato de que
o ator não veria os seus próprios defeitos: um trabalho teatral sedimentado na convenção não
necessita desse tipo de procedimento, visto que o
e quando esses defeitos não são corrigidos por alguém que ator já conhecia de antemão o gênero do texto a
possa percebê-los, transformam-se em lamentáveis caco e- ser montado, e consequentemente já estava fami-
tes, vícios de pronúncia, vícios de interpretação, corroendo liarizado com o tipo de papel que ia interpretar.
sempre grandes talentos artísticos e derrubando carreiras As intrigas poderiam variar, os efeitos cómicos e
brilhantes':", dramáticos também, mas não as situações que se
mantinham recorrentes. A coerência da encenação
o
trabalho do ensaiador com os atares estavavol- estava condicionada à própria convenção teatral su-
tado para uma permanente atualização, uma busca gerida pela peça. Portanto, o trabalho do ensaiador

142 Y. Michalski; R. Trorra, Teatro e Estado, p. 57.


143 L. Iglezias, O Teatro da Minha Vida, p, 192. 144 Y. Michalski; R. Trotra, Teatro e Estado, P: 57.
História do Teatro Brasileiro • volume1

define-se como textocêntrico, sendo a verossimi- Esse trabalho de minuciosa dedicação aos atores
lhança da representação assegurada pelo resultado aproxima o ensaiador do que hoje existe dentro da
da adequação exata de uma forma de atuação ao prática teatral brasileira como o diretor ou o pre-
gênero em que a peça foi escrita. O fato de não parador de ateres. Evidentemente, a concepção de
haver a prática dos "ensaios de mesa': ensaios nos procedimentos em relação ao atar hoje é diversa,
quais modernamente o elenco ouve a leitura de porém o princípio desse trabalho personalizado
todo o texto feita pelo próprio díretor, seguida de por parte do ensaiador parece ser o mesmo, como
suas considerações sobre seu projeto de encena- se pode observar. Percebe-se assim que o trabalho
ção, reflete uma diferença entre as mentalidades. do ensaiador como coordenador do espetáculo tea-
A "marcação" do texto no dia seguinte, à qual se tral não negligenciava a atuação dos atares, mas ao
refere Lourdes Mayer, resulta da própria tradição contrário, valorizava-a.
do teatro por sessões, pois se o ator recebia ainda O autor-ensaiador Paulo de Magalhães é enfá-
somente a sua parte, designada na peça, acompa- tico na questão da apuração da atuação ao observar
nhada unicamente das deixas correspondentes, o caráter formativo desempenhado pelo ensaiador.
era aí que entrava em ação o maior colaborador do Ele afirma:
ensaiador durante os ensaios e dos atores durante
as representações: o ponto. Ensina-lhe [ao ato r] também gestos mais próprios, ajuda-o
O depoimento de Lourdes Mayer enfatiza ainda a descobrir detalhes e matizes na sua interpretação, con-
o caráter minucioso do trabalho do ensaiador com tagia-o com o próprio entusiasmo e com a própria fé na
os atores. Ela dá inclusive uma ideia de quanto po- sua força criadora. E se consegue que cada qual trabalhe o
deria ser personalizado o tratamento do ator no melhor que pode, fatalmente, terá conseguido "apurar", de
que dizia respeito à procura da eficácia na atuação fato, a peça que resultará num espetáculo feliz e de êxito':".
de seu papel:
De fato é natural que a ideia de ensinar e for-
E tinha uma coisa: se você e um outro ator não estavam mar estivesseassociada ao trabalho dos ensaiadores.
bem, eles marcavam um ensaio para os dois e o resto do Em muitos casos, foram eles que ensinaram jovens
elenco era dispensado. Não tinha essa de você estar levando aspirantes à carreira de atores, repassando-lhes as
um picadeiro e os outros lá no fundo de ti-ti-ti. Eram só os regras de comportamento e decoro e as convenções
dois - mas até ficar como eles, os ensaiadores, queriam. Era capazes de adequar o jogo teatral em função do
muito exausrívo'v". texto a ser representado. As mesmas concepções
dos ensaiadores podem ser encontradas nos títu-
Ainda sobre o trabalho do ensaiador em apurar a los das disciplinas da Escola Dramática Municipal
peça aperfeiçoando a marcação e a atuação do ator, do Rio de Janeiro, criada em 1911, mas somente
levando-o eventualmente ao "picadeiro': Paulo de oficializada em 1922.
Magalhães, sintetizava assim esse mesmo procedi- Com uma orientação formativa inspirada no
mento, cujo fim era a busca por uma sinceridade ideal do Conservatório Dramático, cujo para-
da atuaçâo do ator: digma era o francês, aos aspirantes à carreira de
ator, que se formavam em três anos de estudos, era
Se um artista está menos seguro no seu papel vem o pica- oferecido o seguinte currículo. No primeiro e no
deiro. Picadeiro é o ato do ensaiador, insistindo com o artista segundo ano eram dadas as seguintes disciplinas:
em cada "falà', fazendo-o repetir cada inflexão tantas vezes português; prosódia; francês; arte de dizer; his-
quantas sejam necessárias para que ela saia feliz e autêntica. tória da literatura dramática; arte de representar.
Quanto maior for o picadeiro que um ensaiador "dá" num No terceiro e último ano: fisiologia das paixões;
artista, assim prova o seu interesse para que o intérprete con- arte de representar; estética teatral; exercícios de
siga o máximo de resultado no seu trabalho histríôníco-". corpo livre; atitude e esgrima; dança; indumen-

145 Idem, p. 57.


146 P. de Magalhães, ComoSeEnsaia uma Peça..., p. 2.3. 147 Idem, p. 2.3-2.4.

• 49 0
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de 1950

tária. Ao contrário do que, por exemplo, preconi- convenção de que à esquerda do ponto, portanto
zavam Constantín Stanislávski eJacques Copeau, segundo o olhar do espectador sentado na plateia,
que renovavam, no mesmo período, a pedagogia corresponderia a direita do ator, com o palco di-
do ator, orientando-a para a formação de um ar- vidido entre: Esquerda, Centro, Direita e Fundo.
tista integral, focada primeiramente no próprio Seguindo-se essa primeira divisão do palco advém
autoconhecimento do ator, a formação na Escola uma segunda, que contempla uma subdivisão da
Dramática dirigida por Coelho Neto estava forte- geografia do palco: F. E. (Fundo Esquerda); F. M,
mente ancorada na preparação de um artista cuja (Fundo Meio ou Central); F. D. (Fundo Direita);
prontidão corporal e vocal associava-se à tipologia E. A. (Esquerda Alta); E. M, (Esquerda Meio ou
do emploi. Não sem razão, a disciplina-eixo do Centro); E. B. (Esquerda Baixa); C. A (Centro
curso era a "Arte de Representar", mantida du- Alto); C. (Centro); C. B. (Centro Baixo); D. A.
rante os três anos da formação, sob a batuta de (Direita Alta); Di M. (Direita Meio Centro); D.
professores que eram ensaiadores profissionais B. (Direita Baixa).
de renomada reputação e com larga atuação re-
conhecida no meio artístico da cidade, tais como
Eduardo Vieira e joão Barbosa Dey Burns.
A nuança é considerável. A disciplina chamava-
-se "Arte de Representar" e não "Arte de Interpre-
tar". Isso leva a pensar sobre quanto do caráter
subjetivo da criação do ator não ficava prejudicado
pelo fato de seu condicionamento estar orientado
para sua adequação a um papel, como já se sabe pré-
-codificado segundo uma tradição ou um modelo, Dominar as expressões faciais,por sua vez, requeria
cujo guardião era o próprio ensaiador. Nas duas uma capacidade de simular estados como medo,
principais escolas oficiais do país, a Escola Dramá- terror, alegria, cólera, ódio, tristeza, amor, dor,
tica Municipal do Rio de Janeiro e o Conservató- raiva, entre outros. Nesse sentido, ao folhearmos
rio Dramático Municipal de São Paulo, o livro de periódicos ou jornais da época, é muito comum
orientação à disciplina "Arte da Representar" era encontrarmos como um vestígio dessa ideia de
de autoria de um outro não menos célebre ensaiador variação da máscara facial, as fotografias dos ateres
luso-brasileiro, Eduardo Vitorino. retratados em poses e expressões características de
A obra em questão, Compêndio de Arte de suas atuações. Um dos exemplos mais marcantes
Representar, data de 1912. No mínimo, três con- desse fenômeno pode ser colhido no Anuário Tea-
teúdos descritos em suas páginas deviam ser bem tral Argentino Brasileiro, de 1926. Uma propa-
assimilados pelos aspirantes de outrora à carreira ganda do já celebrado e então jovem ator Procópio
de ator: compreender bem as regras da marcação Ferreira continha os seguintes dizeres: "Procópio,
cênica; dominar as expressões faciais; identifi- que nas suas máscaras de cada noite exterioriza
car o tipo de temperamento das personagens. tanto sentimento, espelha, aqui, na sua máscara de
Compreender as regras da marcação significava, todo o ano, expressões sugestivas". Segue-se ao
apreender os códigos da movimentação sobre o texto uma série de fotografias de expressões de
palco dividido em áreas de atuação por meio de Pro cópia Ferreira manifestando dídatícamente o
linhas imaginárias que acompanhariam as ordens ódio, o asco, o horror, o tédio, a curiosidade, a dú-
de bastidores horizontalmente e a caixa do ponto vida, a credulidade, a raiva, a ironia, a hipocrisia, a
verticalmente, à maneira de uma folha ou uma tela concentração, a alegria, a imbecilidade etc.
onde o artista primeiro quadricula para depois Por fim, o último ponto preconizado por Vito-
preenchê-la com traços que retletem a dimensão rino em seu opúsculo é a habilidade do aluno em
das figuras. Dessa maneira, o palco era esquadri- reconhecer o tipo de temperamento de sua perso-
nhado e as diversas áreas orientadas segundo a nagem por meio das situações previstas no texto,

• 49 1
História do Teatro Brasileiro • volume 1

a fim de classificá-la como: sanguíneo; bilioso; de Leopoldo Fróes, chega a afirmar, em mais de uma
linfático; nervoso concentrado ou melancólico; passagem sobre o célebre galã, que elepouco se inte-
nervoso exaltado etc. Na combinação desses tipos ressavaem ensaiar com o conjunto de atores de sua
comportamentais seguia-se a justa adequação da companhia, fiando-se no ponto para poder dizer a
mímica, da atitude, do gesto relativo ao estado sua parte, uma vez que esta não vinha memorizada
descrito na situação da peça. de casa. Ou ainda que o grande ator lançava mão de
Pode-se deduzir assim que o trabalho do ensaia- cacos, ditos espirituosos e piadas que procuravam
dor teatral com o ator nesse período era essencial suprir, através da graça e do cômico, sua deficiência
e enfatizava um treinamento - ou seria um ades- em relação ao texto. Isso era verificável sobretudo
tramento? -, na tentativa de que o ator dominasse nas primeiras apresentações, onde a ausência do
um conjunto de ações exteriores ressaltado-as nas texto decorado era mais flagrante.
expressõesfisionômicas, que, subordinadas ao texto Pascoal Carlos Magno também chamou a aten-
dramático, fossem capazes de explicitar as variações ção sobre a autoridade artística e o caráter formativo
referentes aos diversos estados de um determi- inerentes ao trabalho do ensaiador. O animador do
nado tipo de papeL O caráter do tipo de papel, Teatro do Estudante, numa crítica teatral de 1947,
apesar de imutável em função da convenção, era publicada no Correio da-Manhã, sobre a montagem
atravessado por uma possibilidade de matizes, que delvlocinha pela Companhia de Eva Todor no Tea-
expressariam uma variação desse mesmo caráter por tro Serrador, após haver comentado detalhadamente
meio de estados dramáticos. Atuar adequadamente o trabalho dos intérpretes, debruçando-se sobre de-
seria a capacidade do ator de modular os estados talhes de cena e nuanças advindas da sua visão da
em função do caráter predeterminado. Apesar de montagem, concentra seu comentário no desempe-
ser vital para a montagem teatral, muitos artistas nho de André Villon: "[Ele] tem todas as qualida-
não viam necessidade da presença de um ensaiador des para ser o galã que está faltando à nossa cena.
para orientá-los na expressão dos diversos estados Voz, físico, inteligência. Há, porém, qualquer coisa
de um caráter ficcional. Foi pensando o contrário de frustrado no resultado de seus esforços. Falta-
que Luiz Iglezias, homem de teatro de inegável im- -lhe firmeza nas pernas compridas". Na sequência,
portância durante o período, autor e empresário acrescenta "recado" ao ensaiador da companhia no
dos mais sagazes, em algumas ocasiões até mesmo intuito de aprimorar ashabilidades de André Villon:
ensaiador, chamou a atenção sobre a necessidade
da presença desse profissional: Faço deste canto de coluna um apelo ao meu grande amigo,
professor Eduardo Vieira: quer colocar o sr. André Villon
Um bom espetáculo depende de um bom ensaiador. Não no "picadeiro"? Obrigue-o a trabalhar. Obrigue-o a matar
temos ensaiadores? Temos. A1está Eduardo Vieira, respon- complexos, inibições, fazendo-o movimentar-se com mais
sável por muitos artistas, que, hoje, ocupam a cabeça dos agilidade, aprendendo, por exemplo, a lição dos belos gestos
cartazes de várias companhias. A1estão Eduardo Víctorino, das mãos do senhor Armando Rosas. O professor Eduardo
Olavo de Barros, Otávio Rangel, Simões Coelho e outros Vieira é responsável pelo nosso teatro ter ganhado uma atriz,
nacionais e estrangeiros, competentes, capazes de apontar em marcha para o alto, que é a senhora Eva Todor. Por que
os erros e os defeitos lamentáveis de muitos "astros" brasi- não dá ao Brasil o galã que lhe falta: o senhor André Villon?149
leiros. Temos ensaiadores. Mas também temos artistas que
não querem ser ensaíados-". O comentário de Pascoal Carlos Magno dá
a dimensão do trabalho teatral do ensaiador, ao
É muito comum encontrar comentários sobre os adequar o tipo físico sugerido pelo papel ao tipo
grandes astros do "velho teatro" nacional, que negli- físico do ato r, reforçando a noção de uma atuaçâo
genciavam o período de ensaios,por mais curto que calcada numa galeria de tipos de papéis bem defi-
fosse. R. Magalhães Júnior, por exemplo, biógrafo nidos, consolidando uma convenção tácita entre

149Pascoal CarlosMagno,EvaeElzaGomesTriunfamem"Moei-
148 L. IgJezias, O Tearo da .MinhaVida, p. 193. nha"no Serrador" Correio daManhã, II de marçode 1947, P: II.

• 49 2
0
• o Teatro ProfissionaldosAnos de 1920 aosAnos de
195

asdo próp rio


o dom ínio das capacidades expressiv
o e plate ia. Além dess e trab alho de adequação é orna mentação,
palc meio da sua decoração, sua
de açõe s exte riore s, alia- se um se- palco por
de tipos por meio propriedade,
estét ica do ator, sua potencialidade em sugerir; ou sua
gun do que é da orde m da educ ação telões pintados,
o" ou "ir para através de objetos tridimensionais e
A próp ria expressão "fazer o pica deir previsto na
definir com exatidão o local da ação
deir o" trad uz a natu reza prim eira da noçã o de palc o, o espaço
o pica uadr ado pelos limites do
eten do à repe tição e ao refazer até o peça. Enq
de ensa io, rem nância entre um realismo histórico
, até que se atin ja o gest o exat o, a alimentava a alter
pon to desejado decorati-
realismo de bulevar que aprisionava
o com port a- e um
atitu de correta, a expressão sincera, vam ente a atualidade, repr esen tand o amb ientes de
men to conveniente e convincente. de interior, espaços fantá stico s ou alegó-
ro pré- mo- exterior e
Hoj e, esses proc edim ento s do teat smodalidades de amb ienta ções
m ser cons ider ados ultra pass ados, ricos etc. Todas essa
dern o não deve ação segu ndo
os com para tivo s eram cond icio nada s pelos locais da
pois não se pod e aval iá-lo s em term vez,
do texto teatral, as quais, por sua
. Os prin cí- as rubricas
aos proc edim ento s do teat ro mod erno ndiam a uma tipologia de luga res ficci onai s
que mov iam o trab alho do ensa iador permane- correspo refe rent es à
pios te, como as indicações
natu ralm ente não são men os com plexos mui to recorren de
cem, pois sala de visita ou ao famoso gabinete
al, Esses proc e- indefectível
do que os do mod erno dire ror teatr ectivamente o lugar do feminino e do
hoje na pro- trabalho, resp
dim ento s pré- mod erno s são aplicados esentação espacial da sociedade
do que se faz masculino na repr
dução em escala industrial, a exemplo atin gir o seu objetivo, isto é, esta-
dos trab alho s para grav ação de uma burguesa. Para
na cond ução o, o ensaiador coordenava o
proc edim ento s de trab alho difer entes belecer a sua encenaçã
novela. Eram issionais envolvidosna montagem:
e resp ond iam a trabalho dos prof
da diversidade do que tem os hoje, radores - especialmente no to-
rgia uma rea- cenógrafos ou deco
um con text o cult ural de ond e eme ções em telões pint ados -, maq ui-
teatr al espe cífic a, con stru ída por meio das cante às composi
lida de , eletricista, costureira, alfaiate,
es larg ame nte vulg ariza das, inclu sive para nista, díre tor de cena
convençõ gra etc.
o, ond e se deve pon to, contrarre
além dos limi tes do próp rio teatr a por uma realidade visual, exposta sobre
cia do trabalho A busc
sobr etud o incl uir o público. A eficá pelo distinto público, deveria ser
nação de um o palco e apreciada
teatr al do ensaiador, em relação à ence à luz da perm anen te subo rdin a-
teatr al, repo usav a na lógic a estab elecida entre criada e executada
texto a do texto e seu corr espo nden te
conseguinte, a ção do palco à lógic
o títul o da peça, seu gênero e, por divisão entr e
gênero como, por exemplo, a genérica
sua transposição ao palco: ou alta e baixa
peças da atualidade e peças históricas
gel preconiza:
comédia. Nesse sentido, Otávio Ran

o Trabalho do Ensaiador: Con quan to os fund amen cos técni


cos e a intra nsig ênci a
O Espaço e a Encenação is e rejam eles todo s os
prec eitua i da ação sejam inam ovíve
segu ranç a o ensa iador ,
iador com o es- gêne ros, com o já deve sabe r com
Para se ente nder o trabalho do ensa mag na impo rtânc ia a
es contemporâ- há, neste caso, outra s ques tões de
paço, é necessário se afastar das noçõ sejam : cond icion ar à
o como signo exigi rem meti culo sa exacídâo, quais
neas sobre a elaboração do espaço cênic dos artis tas, o moti vo
o teatral. Tod o reali dade da époc a a repre senta ção
inserido na ling uage m da encenaçã de guar da roup a, a ilum i-
ço cênico, sendo arqu ítetô nico dos cenários, o tipo
palco natu ralm ente sugere um espa perte nces , das mobí lias,
ção delim itada pelo pró- naçã o dos ambi entes , o mod elo dos
por definição a área de atua dos orna tos capil ares
todo espaço cênico do calçado, dos apetr echo s milit ares,
prio jogo dos ateres. Porém, nem ment e da inter venç ão
o para alcançar e, sobr etud o, cuid ar muit o parti cular
necessariamente precisa de um palc das desp ertam semp re
no contexto do das massas que bem ensaiadas e movi
a sua realidade teatral. Entr etan to,
ço pou co ou um inter esse marcanre'r",
trab alho do ensaiador, a pala vra espa
e obras afins. O
quase nun ca aparece nos manuais
ânci a na encenação Escola Teatral deEnsaiadores, p. 9 r
que está em jogo e possui relev 150

• 493

---------
História do Teatro Brasile
iro • volume 1
o tra bal ho do ens aia dor
em relação à rea lid ade
visual e à car act eri zaç ão esp aci aliz ado com lóg
da enc ena ção dep end ia ica , bas ean do- se no me
in- pri ncí pio sm o
tei ram ent e de um pen de qua dri cul açã o do esp
sam ent o qu e se baseav aço do pal co pre -
po ten cia lid ade s do pal a nas visto po r nos sos ensaia
co fro nta l, her dei ro da dores, ou seja, o me sm
cen a ced im o pro -
àita lia na do Re nas cim ent ent o me nci on ado aci ma
o. Esp aço de eleição par , qu e era nec ess ári o
o ens aia do r des env olv a ser com pre
er os ma is div ers os efe end ido pel os ate res , sob
ito s re as divisões do
cên ico s e est abe lec er pal co em Esq uer da, Me
um a tip olo gia de enc ena io, Di rei ta e Fu ndo .
con for me o gên ero , ção
sua nat ure za ou sob era
nu nca for am que stio nad nia Assim com
o os áugures dividiam,
as. Pa ra o ens aia dor , não com seu bastão, o céu
hav ia ou tra con fig ura ção em diversos campos, o
espacial que não fosse a ate r pod e div idir me nta
do lme nte o
pal co fro nta l, lug ar po palco em diversas áreas,
r exc elê nci a do ilu sio nis que, par a fins de experim
mo serão represe entação,
cap az de atr air a ate nçã ntadas no pap el por mei
o do esp ect ado r. o de superfícies rorn-
Assim, o pal co fro nta l boides. O chão do pal co
deveria ser enc ara do ain se tran sfo rma rá num a
da espécie de
com o um qu adr o a ser tab uleiro de damas e então
pre enc hid o po r figuras o ata r pod erá est uda r que
qu e quer ocupar, casas
nat ura lm ent e ser iam rep ano tar esse pad rão e fica
resentadas pelos ateres. r seguro de que, nas
visão do pal co com o um Essa passagens de
gra nde inte nsi dad e emoci
qua dro é um a for te rem onal, não cor rerá de
nis cên cia da inf luê nci i- um lado par a
a dir era de pad rõe s apl out ro de for ma não artí
stica, mas con jug ará
icados o belo e o sign
à pin tur a e qu e est ão ago ificarivo I s 1 •
ra a ser viç o da expressão
cên ica . Nã o foi po r aca
so qu e a dem arc açã o
áreas de atu açã o, essa das Go eth e est á se ref eri ndo
geo gra fia qu e def ini a ao pri ncí pio da ma r-
sic ion am ent o dos ate res o po - cação, que tem po
sob re o pal co, em pre gav r obj eti vo ass egu rar um a per ma -
os ter mo s da com pos içã a nên cia , um a coe
o pic tór ica . Po rém , no rên cia em rel açã o à enc ena ção de
do tea tro , a tela, isto é, caso cad a esp etá cul
o pai nel pin tad o tal qua o; e est á igu alm ent e for
l a um a mo vim ent açã ma liz and o
fac had a de um pal áci o o de des loc am ent os ver
tom bo u po r terra, sob oss íme is
ran do qu e ref lita m
tão som ent e os ter mo os est ado s das per son
s de ou tro ra par a des ign age ns e as ne-
marcação de cen a sob re ar a. ces sid ade s da açã
o pal co. Ev ide nte me nte o. A ob rig ato rie dad e
ess na fixação
con hec im ent o não era e das ma rca s tem po
um a pre rro gat iva do ens r fim a pró pri a ma nu ten
aia- ção do
do r brasileiro; tratava-s esp etá cul o. Esse pro ced
e do pro ces so de sistem im ent o é fun dam ent al
atiza- bre tud o ao se con so-
ção do pró pri o olh ar oci sid era r as sub stit uiç ões
den tal edu cad o seg und de ate res
regras da pin tur a. Ne sse o as ao lon go de tem por
sen tid o, Ed uar do Vit ori ada s e tur nês .
con cor dar ia, pos siv elm no Qu and o Otá vio Ra nge
ent e sem saber, com o vel l enu me ra o qu e é nec es-
Go eth e qu e apr ego ava ho sário par a o ens aia
essas me sm as ideias, com dor exe cut ar com pro pri eda de
o ma rca çõe s de um a peç as
se po de con sta tar com a, pod e-s e res sal tar a nec
a lei tur a de suas Regras es-
Atores, escritas no final do pa ra sid ade de se
séc ulo XV III. A reg ra de
nú me ro 83 exp lici ta exa
tam ent e com o o tea tro
ass um ind o os pri ncí pio foi extrair uma "pl ant a baix
s de com pos içã o da pin a" da cena e nela localiz
ar as entra-
A reg ra é cla ríss ima : "O tur a. das e saídas em relação ao exte
pal co deve ser enc ara rior e às demais dependênc
do internas, se trat ar de ias
com o um qua dro sem figu sala, salão, gabinete erc.
ras, que serão criadas pel , ou se o cená-
pró pri o ato r" I 51. Or a, o o rio for abe rto em "romp
pal co fro nta l teve ref orç imentos", tom ará por bas
ada e par a as
a sua ide ia de qua dro ou mesmas os "planos" em
de jan ela dev ido à rup tur que a cena se div idir "!..
do espaço ent re pal co a
e pla tei a, ali ada à pre sen
da mo ldu ra de cen a ou ça Esse par ece ser o cer
qua lqu er ou tro sub stit ne do ent end im ent o
uti vo espaço pel o ens do
arq uir etô nic o que a sim aia dor , a pla nta baixa.
ulasse. Ai nd a Go eth e, Ele deve ser
na regra de núm ero 87, ago ra cap az de ela bo rar
mo str a sua pre ocu paç ão no pap el essa pla nta bai
com con son ânc ia com a des xa em
a beleza e a expressão do cri ção do tex to did asc
mo vim ent o que deveri álic o
a ser e a lóg ica do diá
log o. Na bu sca pel a con
151 Regra paraAtore str uçã o
s, trad. e prefácio de Fátima
Janeiro: 7 Letras, 200 6, p. Saadi, Rio de 152 Idem, p. 84.
8+
153 Escola Teatral deEnsaiado
res, p. 32.
• 494

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o aosAnos de 195 o
+ o Teatro Profissional dosAnos de 192
ção
am ent o básico da encena
res se ma is ade qu ada - à música. Po rém o and mi nu cio sa
da rea lid ade visual que
exp o se vê pel a
aqu ela peç a, era def ini do po r ele, com
me nte este ou aquele gên
ero, est a ou s o po nto aco a- mp
est ar aos des criç ão. Se du ran te os ensaio
az ain da de "pr a du ran te os
o ens aia do r devia ser cap res e ain da os sustentav
tic ula r ate nçã o: se ele gantes, nh ava os ata de me mória, nas
ambientes internos par and o de seus lapsos
rno e tap eça rias esperáculos, qu ção
dotá-los de móveis, obj
eto s de ado deixava de exe r a fun
rce
cen a com req uin - representações ele não de ma -
-os pel a aiador na tentati va
con dig nos , dis trib uin do os de fiel colaborador do ens
sa pro pri eda de, sem mente acordado: a
tad o bo m gosto e rig oro o das nut enç ão daquilo que fora previa
fac ilit ar a cir cul açã íod o dos
am on toa r no int uit o de da e afinada durante o per
ica r-lh es o mo bil iár io e encenação, ma rca
figuras; se mo des tos , apl ensaios presididos pelo
ensaiador'P.
is em con cor dân cia com as con diç ões rm ali zam o tra bal ho do en-
tud o o ma Nas ob ras que no
sociais det erm ina das pel
o autor'">' . ça de ensaios ded i-
nu ais e si- sai ado r não se verifica a presen
Verifica-se, com a lei tur
a desses ma da ilu mi naç ão, o
crí tica cad os exc lusivamente aos efeitos
ato da cró nic a e da um pen sam ent o qu e art
i-
milares, e me sm o no rel e do que ate sta a ausência de
cul o não som ent ere nci ado
teatral, um a visão do esp
etá egrante dif
e esse elemento como int
ta da me rca do ria do ent ret eni me nto , culass sua s con siderações sob re a
po nto de vis a ver par a cada encenação. Em
essária pa ra se dar ngel faz um
mas da ma ter ial ida de nec gênero revista, Otávio Ra
, po r me io dos ace ssó rios. Ao mo nta gem do go da iluminação
um a realidade visual arc ado rápido com ent ári
o sobre o empre
nta l, dem :
se enfatizar o enq uad ram
ent o fro fico qu and o afi a que
rm
teia , com o a úni ca nesse gên ero em especí
co e pla
pel a dic oto mi a ent re pal ão
esp aci al ace itável, alia-se a essaquest stit uí out ro ser or de alta
im-
configuração ion ali- A dis trib uiç ão das luz es con
de cena ou da ope rac dor tem que traç ar
o pro ble ma da direção o êxi to do qua l o Ens aia
pri am ent e dito , que se fazia por tân cia , par a me nte , de
dade do espetáculo pro e executá-lo inte lige nte
ita s vez es coo rde nad a um pla nej am ent o pré vio ma nei ra
e mu
de dentro da caixa cênica
de
em pen ha no Tea tro e,
Otá vio Ra nge l: vez que a ilum ina ção des
o salien ta el prí mo rdi al'v .
pelo pró pri o po nto , com frisant e na Rev ista , um pap

cer tos ruí-


É ain da de seu mis ter [do
pon to] a execução de naç ão fosse pre pa rad a
um ges to ou É pro váv el qu e a ilu mi -
dos ime dia tos que com
ple tem a vio lên cia de aios gerais seg un do pa
pa ra ser ins eri da no s ens
da pla teia . -
este ja em cen a, à vis ta ion ado s pel a pró pri a im
ven ham de obj ero que drõ es art íst ico s con dic
toq ue de de
lo de um a bof eta da; um do per íod o em ter mo s
Exe mp lifi que mo s: o esta po siç ão da tec no log ia
par a cab ina
ente, o apa rat o ded ica do
a seu car go os sina is
tele fon e etc. Tem tam bém ilu mi no técnica. Basicam
cor tine íro
luz ; os que pre vin em o com po sto po r gru po s
elétríca nas alte raç ões da à ilu mi naç ão do pal co era
tina s e cer- as
e abr ir ou fec har as cor me ro var iav a seg un do
do mo me nto em que dev de gam bia rra s, cujo nú
bai xar ou -
dad os à var and a par a ica. As gam bia rra s con
sis
rar o vel ário ; os que são dim ens ões da caixa cên
o de boc a nos ao
sub ir os relões e com
odi ns e des cer o pan lâm pad as qu e ilu mi nav
e tia m de um a fileira de
s revistas, dos
estes, com o nas ope reta esc on did as dos olh os
finais dos aros, qua ndo pal co do alt o, fic and o
iles , não de- o
má gic as ou me lod ram
as, bur lera s ou vau dev bam bol ina s. Ac om pan han do
espectadores pelas
, está afe re con -
sica l, o que, em tal caso tin ha- se a rib alt a que
pen dam de situ açã o mu pri ncí pio da gam bia rra
pad as qu e ilu mi nav a os
ao ma estr o reg ent e'!' . sistia nu ma fileira de lâm
da no proscênio,
, o po nto ata res de baixo par a cima. Localiza
to aos ateres s lum ino sos que não inc
ide m na
Al ém de apo nta r o tex eri or a rib alt a em ite raio
o do esp etá cul o do int on ado s pa ra o
coordenava o and am ent sos - pla tei a, mas ao con trá rio
são dir eci
ira ent re os doi s uni ver
de sua concha, na fronte -
ficç ão; pla teia e palco - qua ndo o espetá to teatral não se esgotam
aí. Em A Vida
realidade e
ord ina do J.?6 As atribuições do poniro, ate r e pom o teat ral Má rio Ulle
s
e não estive sse sub Intima do Teatro Bra sile o
culo não era um musical sec und and
relata seu trabalho
o mui tas vez es auto res e ensaiadores
ar com pan hia s e
o de arti stas par a form
na seleção e con trat açã as.
e artí stic
154 Idem, ibid em. out ras tarefas técnicas 1'23.
caç ão e Teatral deEnsaiadores, p.
eiro : Min isté rio de Edu 157 O. Rangel, Escola
155 Técnica Teatral, Rio de Jan
Saúde, 1948, p. 7'2-73. + 495

-
~-------
História do Teatro Brasile
iro • volume 1
pal co, ilu mi nan do os
ate res qu and o estes "to
vam a cena", isto é, vin ma - pot enc ial ida des
ham ao cen tro , pró xim dessa cai xa de ilu sõe s
e surpresas,
boc a de cen a, def ron te o à sob ret udo ao se enc
à cúp ula do po nto . Alg uns ena r as operetas, revista
s, mági-
pan elõ es ou tangões, mo cas e out ros gêneros de
del os de grandes refleto for te ape lo visual.
era m col oca dos nas cox res, O trabalho do ensaiador
ias, e dali dir eci ona dos , her dei ro de um a cul tur
par a e de um a prá tic a tea a
den tro do pal co pa ra tral por tug ues as, era com
aux ilia r no jog o de luz ple xo e
fam oso s spot-lights já era . Os seu ofício na coo
m em pre gad os na ilu mi rde naç ão artística do esp
na- um dos mo tor es etáculo foi
ção dos ate res e do cen qu e col oco u em ma rch
ári o associados aos rec a a pró pri a
pio nei ros no em pre go urs os vid a tea tra l do
da res istê nci a elétrica, per íod o, apesar da des
o que con tin uid ade
fav ore cia o arr anj o de em relação à con stit uiç
cer tos efeitos. Ha via ain ão e dis sol uçã o de com
da nhi as dramáticas. pa-
as luz es dit as "ca mb ian En tre o dec lam ado e o
tes " qu e con sis tia m nu mu sic ado ,
var ied ade de reí ier ore s ma o eru dit o e o pop
qu e irra dia vam rai os de ula r, o ens aia dor deveri
luz seu ofício auxilia a per pet uar
col ori dos po r me io de do pel o po nto , à esc uta
um ele me nto tra nsp are da con ven -
de cor sob re a fon te lum nte ção ine ren te ao jog o cên
ino sa. To da essa eng enh ico.
elérrica era coo rde nad oca Ar tist a criativo e enérgi
a a pa rti r do "pi ano de co, o ens aia dor se reve-
que era o qu adr o qu e abr luz ': lav a, na coo rde naç ão do esp
iga va o con jun to das cha etá cul o, sub ord ina do
ves com uta do ras da ilu - a um a ord em abs olu tam
mi naç ão do pal co. ent e tex toc ênt ric a. Er
tam bém um dis cip lin a
ado r do ele nco de ate
coristas, figurantes e dem res ,
ais artistas e téc nic os del
dep end ent es art isti cam e
A Lição de um Ofício ent e. Ele exercia um a aut
rid ade art ísti ca e for ma o-
tiv a jun to aos ate res , a
se manifestava pri nci pal qua l
Co nve nçã o par ece ser me nte graças a um juí zo
a palavra-chave par a a de
pre ens ão do qu e foi o com - valores hum ani sta s. Su
ofí cio do ensaiador. Co bmisso à hie rar qui a art
mo em ter mo s de esc ística,
se viu, foi um tra bal ho olh as estéticas, sua noç ão do
tea tra l con str uíd o com nov o
no im pér io de um a lóg base só existiria a par
ica específica, com pro tir de um mo del o com pro
me - fór mu la pré -de fin vad o, um a
tid a com um ob jet o art ida , dev ido ao seu tem per
ísti co e a sua sub ord ina am ent o
ao êxito ou fracasso com ção con ser vad or. De
ercial. De qua lqu er for esp írit o enc icl opé dic o,
ma , o ens aia -
o "velho tea tro " dei xou do r era um adm ira do
o leg ado de um gra nde r da Hi stó ria , tin ha gra
im- apr eço à tradição nd e
pul so de pro fiss ion aliz e per pet uav a as regras que
açã o dos seus int egr ant faz iam
adm ini stra do po r empre es e, sob rev ive r a pró pri
sários competentes, tev a convenção. Esse per fil
e sua per fei tam ent e ref lete
legitimação apr ova da pel a tra jet óri a daq uel e qu
o ben epl áci to do púb lico e foi talv ez o
Os ma nua is, os livros de . ens aia dor mais im po rta
me mó ria s e obras afins nte que o Brasil já tev
sua era pré -m ode rna , Ed e na
que apr ese nta m os pro uar do Vit ori no. Esse me str
ced im ent os, as nor ma s e
gras, as especificações e e re- do "velho teatro
sugestões - aqu i relatad ': aos set ent a e nov e ano
as e um ano ant es de s, em 194 8,
avaliadas -, tin ham po r falecer, ain da enc ont rav
objetivo assegurar os me a mo tiv a-
ma ter iais e art ísti cos , cap ios , ção bas tan te par a org ani
azes de alc anç ar um tip zar um lon go e mi nuc ios
o Dicionário de Idéias o
de rea liza ção cên ica pad Afins, que, ape sar de con
ron iza da qu e ref leti a tem -
espírito de um a épo ca. o pla r a área do teatro
Em palavras mais precis , eng lob a vin te e cin co
as: con hec im ent o sub áre as do
um a cena com for tes con div idi das em inú me ros
tor no s realistas, ten den verbetes.
a um realismo ide ali zad do Ideias afins com o quê
o; um rea lism o de bul ? Co m um a con cep ção
eva r mi úrg ica de mu nd de-
em que os ato res não toc o, que nat ura lm ent e dev
ava m no cenário, mas era eri a ser
enq uad rad os po r ele; um m rep ert ori ada e enu nci ada
a realidade visual que ain , par a só em seg uid a po
da ser tra nsp ost a ao pal der
era decorativa, e que tam co po r meio de um a articulaç
bém não per dia de vista ão
as poética, ain da que
me dia da pel a força da con
venção.

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Colaboradores
do Volume I

ALESSANDRA VANNUCCI é pesquisadora, dramaturga e diretora. Formou-se na Universidade de Bolonha (Itália), doutorou-
-se em Estudos de Literatura pela Puc-Rio e é professora adjunta de teoria teatral na Universidade Federal de Ouro
Preto. Seus ensaios e livros, entre os quais Crítica da Razão Teatral (Perspectiva, 2005) UmaAmizade Revelada
(, Biblioteca Nacional, 2004), Brasile in scena (Bulzoni, 2004) Un baritono ai Tropici (Diabasis, 2008), seguem a
rota de ideias e artistas viajantes entre Itália e América Latina. Escreveu onze peças, que foram encenadas, realizou
alguns curtas-metragens e diversas montagens teatrais, entre elas Ruzante! (2003), A Descoberta dasAméricas (2005),
ArlequimnoInfirno (2007) e Náuji-tzgos (2009).

ANGELA REIS formou-se em Interpretação pela Uni-Rio (Universidade do Rio de Janeiro). É mestre em teatro pela mesma
universidade desde 1999, quando defendeu a dissertação CiniraPolónio) a Divette Carioca: Estudo da Imagem
Pública e do Trabalho de uma Atriz no Teatro Brasileiro da Virada do Século XIX. Premiada no Concurso de
Monografias do Arquivo Nacional em dezembro do mesmo ano, a dissertação foi publicada em 2001. Em 2004,
obteve o grau de doutora em Teatro pela Uni-Rio, com a tese A Tradição Viva em Cena: Eva Todor na Companhia
Eva e SeusArtistas (194°-1963), publicada em 2007 graças ao segundo lugar alcançado no Concurso Nacional
de Monografias - Prêmio Gerd Bomheim (Categoria Teatro no Brasil), instituído pela Prefeitura Municipal de
Porto Alegre. Desde maio de 2004 é docente da Escola de Teatro da UFBA, onde ministra disciplinas na graduação
e no Programa de Pós-Graduação em Artes Cénicas - Escola de Teatro/Escola de Dança.

CLAUDIA BRAGA é livre-docente em Fundamentos Teóricos das Artes pela Unicamp (2006), doutora em Artes pela trsr
(1999), com pós-doutorados realizados na UFR d'Études Ibériques et Latino-Americaines da Universidade de
Paris III, Sorbonne Nouvelle (2002-2003), e na Universidade de Lyon II (2006-2007). É professora do programa
de pós-graduação em artes da Unicamp e do Departamento de Letras, Artes e Cultura da Universidade Federal
de São João Del-Reí. Em 2002/2003, lecionou como professora convidada do Curso de Littérature Brésilienne
na Universidade Lille III - Charles de Gaulle, França. É responsável pela coordenação do Grupo de Estudos e
Pesquisa em Teatro Brasileiro - Geteb, que vem contando com o apoio da Capes, do CNPq e da Fapemig para o
desenvolvimento de suas atívidades e coordenadora do grupo Doutores por um Triz, em atívídades desde 2001
em São João Dei-Rei, na área de saúde. Entre suas principais publicações destacam-se a organização do livro
BarbaraHeliodora: Escritos sobre o Teatro (Perspectiva, 2007), a tradução da obra O Melodrama, de Jean-Marie
1homasseau (Perspectiva, 2005), e os livros Em Buscada Brasilidade: Teatro Brasileiro na Primeira República
(Perspectiva, 2003), Teatro de Coelho Neto, tomos I e II, (Funarte, 1998 e 2001).
Historia do Teatro Brasileiro • volume 1

DANIEL :MARQUES é díretor teatral formado pela Uni-Rio, em 1989, dedicando-se especialmente à dramacurgia brasi-
leira em seus espetáculos. É mestre em Teatro pela mesma universidade, onde defendeu, em março de 1998, a
dissertação: Precisa Arte eEngenho até...: UmEstudosobre oPersonagem-Tipo através dasBurletasdeLuiz Peixoto.
Também na Uni-Rio fez seu doutorado, concluído em novembro de 2004, com a tese O Palhaço Negro queDançou
a Cbulapara oMarechal deFerro: Benjamim de Oliveira ea Consolidação do Circo-teatro no Brasil,Mecanismos
e EstratégiasArtísticas como Forma de Integração Socialna Belle Époque Carioca. Desde 2005 é professor da
Escola de Teatro e do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, desde
novembro de 2008 exerce o cargo de díretor da Escola de Teatro.

DÉCIO DEALMEIDA PRADO (1917-2000) iniciou sua vida intelectual nas páginas da revista Clima, ao lado de intelectuais
como Antonio Candido e Paulo Emílio Salles Gomes, em 1941. Em 1943, juntamente com Lourival Gomes
Machado, criou o Grupo Universitário de Teatro. Tornou-se crítico teatral do jornal OEstado de S. Pauloem 1946,
atívidade que desempenhou até 1968. Nesse mesmo jornal dirigiu, entre 1956 e 1967, o "Suplemento Literário".
Foi várias vezes presidente da Comissão Estadual de Teatro e presidente da Associação Paulista de Críticos Teatrais.
Foi professor de filosofia em alguns colégios de São Paulo e de história do teatro na Escola de Arte Dramática, de
1948 a 1963. Em 1966 ingressou na Universidade de São Paulo como professor de história do teatro brasileiro
junto à área de literatura brasileira do Curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas,
onde se aposentou em 1982. Seus principais livros são: Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno (Martins,
1956; Perspectiva, 2. ed., 2001), Teatro em Progresso (Martins, 1964; Perspectiva, 2. ed., 2002),joão Caetano
(Perspectiva, 1972 ),João Caetano e a Arte do Atar (Ática, 1984), Exercício Findo (Perspectiva, 1987), O Teatro
Brasileiro lvIoderno (Perspectiva, 1988), Teatro deAnchietaa Alencar (Perspectiva, 1993), O Drama Romântico
Brasileiro (Perspectiva, 1996), Peças) Pessoas) Personagens (Companhia das Letras, 1993), Seres) Coisas) Lugares
(Companhia das Letras, 1997) e História Concisa do Teatro Brasileiro (Edusp, 1999).

ELIZABETH R AZEVEDO é professora de teatro brasileiro e história do teatro na USP-ECAdesde 2003. Bacharel em
história pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, obteve grau de
mestre em Artes na USP-ECA em 1995, com uma dissertação sobre o teatro na cidade de São Paulo no século
XIX - Um Palco Sob asArcadas, publicada em 2000 pela Annablume/Fapesp. Amando como pesquisadora,
participou do projeto da Enciclopédia de Teatro Brasileiro Contemporâneo, do Instituto Itaú Cultural e, em
1997, foi contemplada com uma bolsa de estudos Vitae de Artes para realização de pesquisa sobre o grupo
de teatro amador paulistano Teatro Lotte Sieuers. Em 2002, doutorou-se em Artes, pela USP-ECA, com a tese
Recursos Estilísticosna Dramaturgia deJorgeAndrade. Atualrnente, realiza pesquisa sobre a companhia de
comédias, revistas e burletas de Sebastião Arruda e o teatro em São Paulo nas primeiras décadas do século
xx. Paralelamente, tem amado na área de documentação do teatro paulista coordenando o Laboratório de
Informação e Memória do CAC-ECA, desde 2004. Em 2005, participou como coordenadora de pesquisa do
projeto de Conservação de Figurinos do Teatro Municipal de São Paulo.

FERNANDO ANTONIO MENCARELLI é pesquisador e diretor teatral. Doutor e mestre pela Unícamp, na área de História
Social da Cultura, com trabalhos sobre a história do teatro brasileiro, é professor na graduação e pós-graduação
da Escola de Belas-Artes da UFMG,na área de Artes Cénicas, coordenador do Programa de Pós-graduação em
Artes da Escola de Belas Artes da UFMG e bolsista de Produtividade em Pesquisa do cNPq. Foi presidente da
Abrace (Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas) de 2006 a 2008 e membro do
Conselho Curador da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte de 2004 a 2008. É membro da equipe
de organização do Encontro Mundial de Artes Cênicas (Ecum) desde 1998 e consultor pedagógico do Galpão
Cine-Horto. Publicou os livros CenaAberta:aAbsolvição de um Bilontraeo Teatro deRevistadeArthurAzevedo
(Unícamp, 1999) e Corpos Artísticos doPalácio dasArtes (Secretaria de Estado da Cultura/MG, 2006). Foi editor
assistente do Caderno Letras do jornal Folhade S. Paulo.
• Colaboradores do Volume I

Faculdad e de Filosofia, Letras e Ciências Humana s


FLÁVIO AGUIAR trabalhou como docente de literatura brasileira na
o como pesquisa dor do program a de pós-
da uSP de 1973 a 2006, quando se aposento u. Continu a vinculad
doutorad o e dissertaç ões de mestrado . Foi professo r
-graduaç ão, no qual orientou mais de quarenta teses de
Argentin a, Canadá, Alemanh a, Costa do
convidad o ou conferen cista em universid ades no Brasil, Uruguai,
FFLCH-USP. Tem mais de vinte livros pu-
Marfim e Cuba. Foi fundado r e diretor do Centro Angel Rama da
obras de crítica literária, ficção e poesia.
blicados, entre os de autoria própria, organiza dos ou antologia s. São
do Livro: em 1984, na categoria "Ensaio", com
Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira
Anita (Boiternp o,
A Comédia Nacional no Teatro deJoséde Alencar (Ática, 1984); em 2000, com o romance
da Latinoamericana: Enciclopédia
1999); e em 2007, coletivam ente, como organiza dor da parte de literatura
categoria de "Ciência s Humanas ",
Contemporânea sobrea América Latina e o Caribe (Boíternp o, 2006), na
re em Berlim, na Alemanh a, onde é
que também ganhou o prêmio de Melhor Livro do Ano. Reside atualmen
correspo ndente para publicaçõ es brasileiras.

pela Universid ade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro,


FRANCISCO josá PEREIRA DAS NEVES VIEIRA é graduado em história
Média e Historiog rafia. Fez o mestrado na
onde lecionou durante seis anos nas cadeiras de História da Idade
Universi dade Federal Fluminen se (1999).
Universi dade Federal do Rio de Janeiro (1992) e o doutorad o na
entre 1983 e 1990, participo u de obras
Pesquisad or do Instituto de Documen tação da Fundação Getúlio Vargas
e DicionárioHist6rico-Biográfico Brasileiro
coletivas como: Dicionáriode Ciências Sociais (FGV/Un esco, 1985)
TV Globo, onde trabalha atualrnen te e faz
(CpdOC,1984). Em 1990 ingressou no Centro de Documen tação da
u das novelas Esplendor, de Ana Maria Morerzh on
pesquisas para o jornalismo. Como pesquisador de texto, participo
(1999/20 00), Porto dosMilagres, de Agnaldo Silva (2001/2) e Coração
deEstudante, de Emanuel Jacobina (2002).
da Globonew s, e das peças teatrais Tartufo
Foi o consultor histórico da série premiada 1808, a Corte no Brasil,
nte, de Odulvad o Viana Filho, (Rio
(Rio de Janeiro, díreção de Walter Lima Torres, 2000) e Coração deEstuda
sobre a história do Teatro Lírico, do Rio de
de Janeiro, díreção de Dudu Sandroní , 2007)' Participa de pesquisa
Lopes.
Janeiro, juntamen te com a pesquisa dora e museólog a Marcha Vieira

a Brasileira no Curso de Letras na Unívates em


!VETE SUSANA KIST foi professor a de Teoria da Literatur a e Literatur
Letras pela PUC-RS, em 1992, e realizou
Lajeado, RS, durante os anos de 1976 a 2006. Fez o doutorad o em
ade de Lisboa, Portugal, 1998-199 9, e estágio
estágio de pesquisa no Centro de Estudos de Teatro da Universid
ade do Texas em Austin, EUA, 2003. É autora
de pesquisa no Centro de Estudos Latino-A mericano s da Universid
, 2000), e Gonçalves de Magalhães eo Teatro
dos livros Melodrama: O Gênero eSua Permanência (Ateliê Editorial
do PrimeiroRomantismo (Univares e Sulina, 1993).

na Universi dade de São Paulo. É pesquisa dor do


JoÁo ROBERTO FARIA é professo r titular de literatur a brasileira
IEA-USP) e coorden ador da coleção
cNPq, membro do Nupebr af (Núcleo de Pesquisa França-B rasil-
a qual preparo u os volumes Teatro de
"Drama turgos do Brasil': da editora wrnf Martins Fontes, para
Azevedo (2002), Teatro de Aluisio Azevedo e Emílio Rouêde (2002), Teatro de Machad o de
.Álvares de
(2006). É autor dos seguintes
Assis (2003 ),José de Alencar: Dramas (2005) e Antologia do Teatro Realista
oBrasil: 1855-186 5 (Perspec tivai
livros:José deAlencareo Teatro (Perspect íva/Edus p, 1987), O Teatro Realistan
O Século XIX no Brasil (Perspect íva/Fapes p,
Edusp, 1993), O Teatro na Estante (Atelíê, 1998) e Idéias Teatrais:
pela Associação Paulista de Críticos
2001 - "Prêmio Especial" no setor Teatro "Os Melhores de 2001", atribuído
de Arte). Em colaboraç ão com Flávio Aguiar e Vilma Arêas, publicou
Déciode Almeida Prado: Um Homem de
laAlves de Lima, coordeno u o Dicionáriodo
Teatro (Edusp/F apesp, 1997); e junto com]. Guinsbu rge Mariange
Teatro Brasileiro: Temas, Formase Conceitos (Perspecríva/Sesc, 2006; segunda edição revista e ampliada , 2009).
de Machado de Assis (Perspectiva),
Em 2008 organizo u o volume Do Teatro: Textos Críticos eEscritos Diversos,
no qual reuniu a produção crítica do escritor sobre teatro.

• 499
História do Teatro Brasileiro • volume 1

LUIZ FERNANDO RAMOS possui graduação em Ciências Sociais pela


Universid ade de São Paulo (1980), graduaçã o em
Jornalism o pela Faculdad e de Comunic ação Social Cásper Líbero (1980),
mestrado em Artes Cênicas pela Uni-
versidade de São Paulo (1989) e doutorad o em Literatur a Brasileira
pela Universid ade de São Paulo (1997). É
professor do Departam ento de Artes Cênicas da ECA-USP desde 1998,
lecionand o as disciplinas de crítica e teoria
do teatro. Pesquisa dor do CNPq, coordena o Gide - Grupo de Investiga
ção do Desempe nho Espetacular, e o Pro-
grama de Pós-Grad uação em Artes Cênicas da uSP. É encenador, dramatur
go, crítico de teatro e documen rarista.
Realizou pesquisas em torno da produção teatral de Gordon Craig,
Samuel Beckett, Tadeusz Kantor, José Celso
Martinez Corrêa e Martins Pena. Foi president e da Abrace - Associaçã
o Brasileira de Pesquisa e Pós-Grad uação
em Artes Cênicas, e é autor de vários capítulos de livros, ensaios publicad
os em revistas e de O Partode Godote
OutrasEncenações Imaginárias: A Rubricacomo Poética da Cena (Hucitec, 1999).

MARIA HELENA WERNECK é professor a do Departam ento de Teoria do Teatro


e do Program a de Pós-Grad uação em
Artes Cênicas da Universi dade Federal do Estado do Rio deJaneir
o (Uni-Rio ). Pesquisa dora do CNPq, inves-
tigou o teatro histórico dos anos de 1930 e obras de amores brasileiro
s e portugue ses das décadas de 60 e 70.
Atualme nte analisa obras e processos de dramatur gia do teatro contemp
orâneo. É autora do livro O Homem
Encadernado:A EscritadasBiografias deMachado deAssis (UER], 2 ed. 2008)
e organiza dora, com MariaJoão
Brilhante , do livro Texto eImagem.Estudosde Teatro (7 Letras, 2009).
Entre suas publicaçõ es figuram ensaios
como "Espaço Teatral. A Literatur a e as Imagens em Cena" na coletânea
Espécies deEspaço: Territorialidades,
Literatura eMidia (UF.MG, 2008); "Realismo e Palavra Brutal: Harold Pínter
no Brasil" (Sinaisde Cena,Lisboa:
APCTj crrr-Unív , de Lisboa, junho 2008); "Depois da Barca, Cenas
de Outros Infernos nas Dramatu rgias de
Oduvald o Vianna Filho eJosé Cardoso Pires" (revista Semear, n. 8.
Rio de Janeiro: Cátedra Pe. António Vieira
de Estudos Portugue ses, 2003). Entre 2008 e 2010 coordeno u Projeto
de Coopera ção Internaci onal entre a
Uni-Rio, a uSP e a Universi dade de Lisboa.

MARIA THEREZA VARGAS é pesquisa dora e historiad ora do teatro brasileiro


. Formou- se em dramacur gía e crítica pela
Escola de Arte Dramátic a (EAD),em São Paulo. Nos anos 1950, colaboro
u com a edição dos primeiro s Cadernos
de Teatro do grupo carioca O Tablado e participo u do Seminári o de Drarnaru
rgia do Teatro de Arena. Entre
1975 e 1997 foi pesquisa dora do Idart, órgão de pesquisa ligado à Secretari
a Municipa l de Cultura de São Paulo.
Suas principai s publicaçõ es são: O Teatro Operário na Cidadede São
Paulo: Teatro Anarquista (em conjunto
com Mariange la Alves de Lima, SMC, 1980); Circo: Espetáculo de Periferia,
(SMC, 1981); Da Rua ao Palco: O
Teatro da AcademiadeDireito deSãoPaulo no Século XIX (SMC, 1982); UmaAtri
z: Cacilda Becker(juntame nte
com Nanci Fernande s, Perspectiva, 1983); FrediKleemann:Foto em
Cena (em conjunto com Tânia Marcond es,
SMC-SP, 1991); Giramundo: O Percurso de uma Atriz: Myrian Muniz
(Hucitec, 1998), CemAnos de Teatro em
SãoPaulo (em conjunto com Sábato Magaldi, Senac, 2000), Sônia Oiticica:
UmaAtr iz Rodrigueana? (Irnesp,
2005) e Antologiado TeatroAnarquista (Martins Fontes, 2009).

MARTA MORAIS DACOSTA é professor a sêníor da Universidade Federal


do Paraná. Mestre e doutora pela Universid ade de
São Paulo, é pesquisa dora na área de teatro e suas principai s publicaçõ
es são: a edição crítica do Teatro
Completo
de Roberto Gomes (Funarre, 1982), Entreatos: O Teatro em Curitiba de I98I
a I995, com Ignacio Doto Neto
(Fundaçã o Cultural de Curitíba, 2000), Palcos eJornais: Representações
do Teatro em Curitibaentre I900 e I93 o
(UFPR, 2009), artigos em antologia s e obras coletivas, como em Décio
deAlmeida Prado: UmHomem de Teatro
(Edusp, 1997) e Olhares ePerguntas sobre Ler eEscrever (Florecultura,
2002). Articulis ta em periódicos, é membro
do Conselho Estadual de Cultura (PR) e da Cátedra Unesco de Leitura:
rue-Rio.

NEYDE VENEZIANO é dírerora de teatro e pesquisad ora do CNPq. Fez


mestrado, doutorad o e livre-docência em Teatro na
USP-ECA. Em 2000 e 200 I, realizou na Itália seu pós-dout oramento ,
trabalhan do com Dario Fo. Como diretora,
encenou trinta esperáculos. Dentre eles, destacam-se Revistando o Teatro de
Revista, (1988/89 ); Ariecchino, de

• 500
• Colaboradores do VolumeI

Dario Fo, em São Paulo, Campinas e Portugal (1989/90/2005); Piolim, com os Parlapatões (1996); .,. E o Céu
UniuDois Corações, drama circense, (2005); UmDia (quase) IgualaosOutros, de Dario Fo, com Débora Duboc
(2009). Suas principais publicações são: O Teatro de Revistano Brasil: Dramaturgia e Convenções (Pontes/Ed.
Unícamp, 1991), NãoAdianta Chorar: Teatro deRevistaBrasileiro) Oba!(Unicamp, 1996),A CenadeDario Fo:
O Exercício da Imaginação (Códex, 2002) eDe Pernaspara oAr! Teatro deRevistaem SãoPaulo (Imesp, 2006).
Arualmente é professora orientadora credenciada no Instituto de Artes da Unicamp.

NÍOBE ABREU PEIXOTO é bacharel em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1972), com espe-
cialização em Literatura Infanto-Juvenil (Lato Senso) e em Literatura Brasileira (Lato Senso) pela Universidade
Federal Fluminense em 1993 e1994. Fez o mestrado e o doutorado em Literatura Brasileira na FFLCH-USP, em
1998 e 2003, com bolsa Fapesp. Suas principais publicações são :João CabraleoPoema Dramático: Auto doFrade.
Poemapara Vozes (Annablurne/Fapesp.zoo I); Crónicas Efémeras: João do Rio na Revista da Semana (Areliê/
Giordano, 2001);]oão do Rio e o Palco: Página Teatral, v. I (Edusp, 2009) eJoão do Rio e o Palco: Momentos
Críticos, v. II (Edusp, 2009).

RUBENS JOSÉ SOUZA BRITO (1951-2008) formou-se em Artes Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, onde também fez o mestrado (A Linguagem Teatralde Artur Azevedo, 1989)
e o doutorado (DosPeões ao Rei: O Teatro Épico-Dramático de Luís Alberto de Abreu, 1999). Foi professor
do Departamento de Artes Cênicas do Instituto de Artes da Unícamp, com livre-docência na área de Fun-
damentos Teóricos das Artes. Especialista na linguagem do teatro de rua, amou em diversas peças, como A
Vida do GrandeD. Quixote deLa Mancba edo Gordo SanchoPança, encenada em 1976 pelo Grupo de Teatro
Mambembe de São Paulo.

TANIA BRANDÃO é bacharel e licenciada em história (UFR], 1973 e 1974), doutora em História Social pelo IFCS -
Isntituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFR] e livre-docente em Direção Teatral pela Uni-Rio. Lecionou
na Escola de Teatro Martins Pena (1982-1992) e na Escola de Teatro da Uni-Rio (1989-2002), onde atua
como orientadora na pós-graduação e da qual foi diretora (2000-2002). A partir de 1982, tornou-se crítica de
teatro, assinando colunas especializadas em diversas revistas e jornais; atualrnente é crítica teatral do jornal O
Globo - fórum mensal de crítica. Desde 2005 é uma das curadoras do Festival de Teatro de Curitiba e integra
o júri do Prêmio Shell de Teatro, edição do Rio de Janeiro. Entre os livros, capítulos de livros, ensaios e artigos
que publicou nos últimos anos, destacam-se: Teatro de Revista noBrasil (ed. especial de O Percevejo, Uni-Rio,
2006), colaboração no Dicionáriodo Teatro Brasileiro (Perspectiva, 2006), "Um Teatro se Improvisa: O Teatro
Carioca de 1943 a 1968" (em Brasil Palco e Paixão: Um Século de Teatro, Aprazível, 2004), A Maquina de
Repetirea Fábrica deEstrelas: O Teatro dosSete (S ete Letras, 2002) e UmaEmpresa eSeusSegredos: Companhia
Maria Della Costa (Perspectiva, 2009).

VILMA ARÊAs é escritora e ensaísta; livre-docente de literatura portuguesa pela Universidade Federal Fluminense; pro-
fessora titular de literatura brasileira pela Unicamp. Entre suas principais publicações destacam-se: Na Tapera de
Santa Cruz:Leitura deMartins Pena (Martins Fontes, 1987); A Terceira Perna (ficção, Brasiliense, 1992, prêmio
Jabuti); Clarice Lispector coma Ponta dosDedos (Cia. das Letras, 2005, prêmio APCA na categoria Ensaio); "A
Comédia Segundo Augusto Abelaira", capítulo de ParaLer AugustoAbelaira (Portugal, Universidade de Aveiro,
2009); posfácio a Caro Micbele, de Natalia Ginzburg (Cosac Naify, zo ro).

WALTER LIMA TORRES NETO é ator e diretor formado em Artes Cênicas pela Uni-Rio (1989). Ex-professor do Curso de
Direção Teatral da Escola da Comunicação da UFR], atualrnente é professor associado na Universidade Federal
do Paraná, onde atua na área de Estudos Teatrais e de Estudos da Dramaturgia no Curso de Graduação e no
Programa de Pós-Graduação em Letras. Defendeu seu doutorado em Artes do Espetáculo na Uníversíré da la

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História do Teatro Brasileiro • volume 1

Sorbonne N ouvelle - Paris III (I 996), dedicando-se a demonstrar a Influência daFrança no Teatro Brasileiro do
Século XIx: O Exemplo deArthurAzevedo. No seu DEA (Diplome d'Êtudes Approfondies) investigou A Turnêdo
-Ó: :Telitr((bçti:ísifouiJetaoBrasilem 1941-1942. Atualmente dedica-se aos estudos da cultura e da prática teatral: pro-
cedi~ert~0S'em~I1talidades;-atuando como consultor de projetes na área de Artes Cênicas, cE. <hrtp.r /escudos
teatrais. blogspot.com/> .

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