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Ponto 2 – Diversidade cultural na América Antiga: dos caçadores-

coletores às civilizações

Falar sobre a diversidade cultural existente na América Antiga


implica, em primeiro lugar, considerar a existência de uma História Antiga
no continente americano. O historiador e arqueólogo Paulo Seda é um
grande defensor da investigação e do ensino de uma “História Antiga da
América”. Na sua visão, a História Antiga da América em muito deve à
Arqueologia e à História Indígena, principais meios para se conhecer a
história dos povos que ocuparam o continente não a partir da chegada do
colonizador, mas sim do momento em que estes iniciaram a ocupação, o
povoamento e a exploração do continente. Ademais, para Seda, fazer
uma “História Antiga da América” não significaria transpor para cá o
conceito de Antiguidade, mas sim romper com conceitos como “pré-
história da América” e “América pré-colombiana”, que carregam consigo
uma forte conotação cronológica e ideológica ao interpretarem as
experiências anteriores à chegada dos europeus como um período
obscuro que antecedeu a civilização europeia cristã. Na contramão,
deve-se compreender que um processo histórico já se desenvolvia nesse
continente antes da chegada do europeu e que os primeiros povos foram
fundamentais em nossa formação histórica.
Falar sobre a diversidade cultural existente na América Antiga
implica, em segundo lugar, rechaçar a ideia de que é possível conceber-
se povos ou culturas “sem” História ou “antes” da História. Pensadores
como J. Hours, em uma clara demonstração de etnocentrismo,
supuseram a existência de sociedades que não possuem preocupação
com o passado, justificando tal desinteresse com base na inexistência da
instituição do Estado e, consequentemente, das atividades políticas.
Contudo, antropólogos como Pierre Clastres questionam a adoção do
Estado como parâmetro para definir que as “sociedades primitivas” são
estáticas, não possuem história ou não podem ter sua história
reconstituída. Segundo Clastres, o Estado é manifestação acabada da
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divisão da sociedade entre os que exercem o poder e os que o suportam,
significando assim a morte da sociedade primitiva. Isso porque cada
comunidade primitiva quer permanecer sob o signo da sua própria lei
(autonomia), mantendo a indivisibilidade. A recusa do Estado é a recusa
da ex-onomia, da lei exterior e da submissão, inscrita na própria estrutura
da sociedade primitiva.
Marshall Sahlings ressalta a importância de reconhecer que a
história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas
sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas,
assim como de pensar que os esquemas culturais são ordenados
historicamente porque os significados são reavaliados quando realizados
na prática. Em suas palavras, a “estrutura” – as relações simbólicas de
ordem cultural – é um objeto histórico, de modo que as culturas diversas
possuem modos próprios de produção histórica. Assim sendo,
reconhecer que as sociedades primitivas não são estáticas ou a-
históricas significa reconhecer sua diferente historicidade, que deve ser
buscada na sua própria estrutura social ou ordem cultural. Na medida em
que valorizam a continuidade ou a permanência de padrões de longa
duração e que as mudanças não integram seu comportamento
consciente, podem ser encaradas como tradicionais ou conservadoras,
pois é desta maneira que se identificam entre si como grupo.
Conforme destaca o historiador Alexandre Belmonte, a afirmação
da “História da América Antiga” como disciplina autônoma deve
desvincular-se de uma hermenêutica que utiliza o paradigma cronológico
e do surgimento da escrita para distinguir “pré-história” de “história” e
para classificar as sociedades em antigas ou modernas. Visto que
diferentes sociedades utilizam diferentes paradigmas para contar a sua
própria história, a construção de uma história antiga americana
pressupõe criticar a periodização clássica da história e pensar a América
em seus próprios termos e de acordo com sua própria dinâmica. A
aplicação do conceito de “pré-história” é ainda mais discriminadora na

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América, pois não só se colocam à margem aqueles povos que não
desenvolveram a escrita, mas também as escritas nativas, que são
comparadas a um marco de escrita específica: a do europeu ocidental.
Logo, torna-se imperante ampliar o conceito de documento histórico,
unindo as contribuições da arqueologia às informações históricas e às
interpretações sobre a cosmovisão e a cosmovivência desses povos.
Cosmovivência é o conceito empregado pelo intelectual aymara Simón
Yampara para referir-se à relação de seus pares com o tempo,
atravessada pelo respeito à tradição, aos ensinamentos do passado e
aos mitos que explicam a realidade. É a vivência de um tempo plural,
dinâmico e cíclico, que não foi apagada de todo do modo de ser dos
nativos na contemporaneidade.
Falar sobre a diversidade cultural existente na América Antiga
implica, em terceiro lugar, considerar os limites do uso da palavra “índio”,
que, a despeito de ter nascido por um erro histórico de Cristóvão
Colombo, reduziu as diferentes formas de organização social e cultural
das populações americanas a uma única categoria ampla e
homogeneizadora.
Segundo o antropólogo Guillermo Batalla, as sociedades e
culturas denominadas “indígenas” apresentam um espectro de variação
tão amplo, que nenhuma definição que leve em consideração suas
características internas é capaz de incorporá-las a um todo sem colocar
em risco sua integridade heurística. Dessa forma, a categoria “índio”
constituiria uma categoria supraétnica, que não denota nenhum conteúdo
específico dos grupos que abarca, mas sim uma relação particular entre
eles e outros setores do sistema social global.
Na visão de Batalla, a categoria “índio” estaria necessariamente
relacionada à condição de colonizado e à relação colonial, na medida em
que a estrutura de domínio colonial impôs um termo diferenciado para
identificar de maneira uniforme os colonizados. Ou seja: a categoria
colonial foi aplicada indiscriminadamente a toda população aborígene,

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sem levar em conta as profundas diferenças que separavam os povos e
as identidades preexistentes. Em suma, o índio revela-se como um dos
polos de uma relação dialética, não existindo por si mesmo, mas sim
como parte de uma dicotomia contraditória cuja superação significa a
desaparição do próprio índio. Na relação de domínio colonial existem
somente dois polos antagônicos, excludentes e necessários: o
dominador e o dominado, o superior e o inferior, o vencedor e o vencido,
a verdade e o erro. A categoria “índio” difere-se da “etnia” na medida em
que esta faz referência à trajetória histórica e às características
distintivas de cada um dos grupos e não à sua posição dentro das
sociedades globais das quais fazem parte.
Em uma perspectiva distinta, a historiadora Maria Regina
Celestino considera importante pensar como a categoria “índio”, ao ser
imposta pelas autoridades dominantes, acabou sendo, em muitos casos,
apropriada pelos mais variados povos nativos do continente a nível de
estratégia política, de acordo com os possíveis ganhos aí associados.
Celestino ressalta que a categoria em questão serviu à ação política
tanto dos classificadores como dos classificados, na medida em que o
fato social de ser índio serviu de base para diferentes formas tanto de
resistência como de acomodação. Dessa forma, sugere que, em fez de
ser simplesmente descartada, essa categoria seja analisada
historicamente, levando-se em conta a pluralidade de seus significados e
as alterações para os diferentes atores, conforme a dinâmica dos
processos históricos.
Falar sobre a diversidade cultural existente na América Antiga
implica, em quarto lugar, pensar como se pode explicar a diversidade
cultural dos povos americanos se estes têm todos a mesma origem e
descendem dos primeiros grupos humanos que penetraram no
continente: caçadores-coletores nômades que subsistiam à base de
plantas e animais selvagens. Segundo a arqueóloga Betty Meggers, os
humanos que chegaram aos Andes durante o final do Pleistoceno

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conviveram com a megafauna, mas, com as transformações geológicas
ocorridas na passagem para o Holoceno, como o frio intenso típico do
final da última era glacial e a extinção da megafauna, foram obrigados a
se adaptar às novas condições impostas pelo meio. Alguns milhares de
anos seriam ainda necessários para que domesticassem plantas e
chegassem a estabelecer um sistema de subsistência baseado na
agricultura. Dessa forma, na América, as experiências de “primitividade”
e nomadismo estão mais próximas do ponto de vista cronológico, na
medida em que a presença humana é sabidamente mais antiga na
África, Ásia e Europa.
Meggers ressalta que o meio exerceu enorme influência em
momentos cruciais do passado remoto. O fim da última Era Glacial foi
fundamental para que o paleoíndio pudesse caçar, de forma mais
autônoma, animais menores do que os da megafauna. O
aperfeiçoamento dos objetos líticos cortantes, como lâminas e pontas de
projétil lascadas e polidas, produziu artefatos mais precisos e a
domesticação de plantas criou uma economia produtiva que, livrando os
homens de uma subsistência aleatória, gerou, nas palavras do
historiador Nicolás Sánchez-Albornoz, uma crescente explosão
demográfica. O cultivo agrícola assentou o homem no território,
permitindo-lhe moradia fixa e agrupando-o segundo formas sociais e
políticas mais complexas. Serão três os complexos agrícolas que se
desenvolveram no continente: o andino, onde predominam os tubérculos,
o mesoamericano, onde predomina o milho, e a bacia do Amazonas até
a costa atlântica, onde predomina a mandioca.
Segundo o antropólogo Carlos Fausto, muitos dos modelos sobre
a pré-história e a história do continente americano foram forjados a partir
de uma oposição entre as “terras altas” e as “terras baixas”. De um lado,
estariam os Andes, onde ergueram-se sociedades politicamente
centralizadas, estratificadas e urbanas, que dominavam a metalurgia, a
agricultura e a domesticação de animais; de outro, todo o resto a leste

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(principalmente a floresta tropical), onde as sociedades foram
caracterizadas como “sem religião, sem justiça e sem estado”. Essa
tipologia evolucionista, realizada à sombra do estado, dominou a
discussão sobre a paisagem etnográfica do momento da conquista.
O mais influente modelo continental foi proposto pelo antropólogo
Julian Steward, na década de 1940, que propôs organizar a diversidade
das culturas do continente em quatro tipologias, fundadas na associação
entre ecologia, modo de produção e organização sociopolítica e
hierarquizadas em função do nível de complexidade. No estrato inferior,
estariam os chamados “povos marginais”, um conjunto heterogêneo de
sociedades definidas por possuírem uma tecnologia de subsistência
muito rudimentar e por carecerem de instituições políticas. Seriam
predominantemente caçadores-coletores nômades, vivendo em
pequenos bandos, concentrados no Cone Sul, Chaco e Brasil Central.
Acima dos marginais, teríamos as tribos da floresta tropical, que viveriam
em aldeias mais permanentes, porém dispersas no território. Estas
congregariam um número maior de pessoas do que os bandos
marginais, graças à agricultura de queima e coivara e à exploração de
recursos aquáticos, mas careceriam de instituições propriamente
políticas. O princípio organizacional continuaria a ser o parentesco e o
igualitarismo. Sociedades desse tipo estariam dispersas pela maior parte
do continente, ocupando quase toda a Amazônia, a costa do Brasil e das
Guianas e os Andes meridionais.
Na região circuncaribenha e nos Andes setentrionais apareceria
um outro tipo de formação social, caracterizada por um desenvolvimento
inicial de centralização política e religiosa, estratificação em classes e
intensificação econômica. Embora apresentassem tecnologia e cultura
material semelhantes à das tribos da floresta tropical, a organização
dessas sociedades baseava-se em classes sociais e especialização
ocupacional. O poder e a religião institucionalizavam-se, levando ao

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aparecimento de chefes supremos, sacerdotes, templos e ídolos. Isto é,
o igualitarismo da floresta cedia lugar à hierarquia e ao poder.
Por fim, no topo da classificação encontramos a civilização que se
desenvolveu nos Andes Centrais e na costa do Pacífico, caracterizada
por elementos que a transformavam em exceção frente às outras
sociedades do continente: populações densas, sistemas intensivos de
produção agrícola, criação extensiva de animais, aparelho estatal
desenvolvido com formas sofisticadas de administração pública e
extração de tributos, estratificação social, especialização e
desenvolvimento de técnicas como a metalurgia.
A classificação quadripartite dos povos da América do Sul está na
base de uma tipologia geral dos estágios de desenvolvimento
sociopolítico, proposta pelo antropólogo Elman Service em 1962. Adepto
da abordagem materialista cultural, Service apresentou uma tipologia das
organizações sociais que correspondiam às estratégias de adaptação
econômica ao ambiente. Para o antropólogo, os seres humanos se
organizam nos estágios de “bando, tribo, cacicado e estado”,
consagrando uma sequencia evolutiva até hoje influente na arqueologia e
que classifica o Império Inca como o ápice do desenvolvimento no
continente, caracterizando os povos das “terras baixas” pela carência e
pela negativa. Com isso, restringiram-se os problemas a serem
enfrentados pela arqueologia a perguntas básicas: será que todos os
povos das terras baixas, de fato, não tinham aquilo que os incas tinham?
E por que não tinham? Será que só existiram sociedades estratificadas e
hierarquizadas de tipo cacicado em torno do mar do Caribe e no norte
dos Andes?
A título de conclusão, é importante destacar não existem culturas
melhores nem piores, mais ou menos importantes, nem povos mais ou
menos capazes, ideias essas que só possuem sentido se compararmos
as sociedades do ponto de vista da tecnologia e da monumentalidade.
Existem sim diferentes culturas/adaptações e não há como fazer juízo de

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valor entre elas. Portanto, se não há nada que justifique falar de História
da América pela conquista, tampouco se justifica começar esta história
com as chamadas grandes civilizações, excluindo-se dela as ditas
“sociedades primitivas” ou anteriores aos “grandes impérios”. Isso porque
estas últimas civilizações, que entraram em contato direto com os
espanhóis, foram em grande parte herdeiras das culturas que lhes
antecederam.

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