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2 MONTESQUIEU.
Del'espritdeslois. Livres II, III. Paris;
3 MARX, Karl. [1852]Le18 Flammarion,1979.
Brumairede Louis Bonaparte, Paris:
Editions Sociales, 1969, p. 19.
12 PIERREANSART
ultrapassando seus próprios limites, e encontrar a energia social necessária à
ação histórica. Ao contrário, as classes vinculadas afetivamente às suas tradi-
ções políticas, como os camponeses franceses ao longo dos anos 1848-1850,
são demovidas de se engajarem na ação revolucionária e agem, efetivamente,
contra seus próprios interesses.
Marx faz das paixões políticas e, mais amplamente, das sensibilida-
des políticas, um fenômeno decisivo ao desenrolar da história. Evidentemente
esses fenômenos estão em relação e inter-relação com toda a conjuntura his-
tórica, com as relações de classe e o desenvolvimento da luta de classes. Mas é
importante nos determos especificamente nessa questão, pois as intensidades
emocionais podem se constituir, em certas circunstâncias, na dimensão essen-
cial dos enfrentamentos. Isso pode ser percebido no caso de uma classe do-
minante, internamente dividida, que tenha como único elemento de coesão o
"mesmo ódio"4contra as classes revoltadas. A razão central da insistência com
que Marx analisa as sensibilidades políticas e suas mudanças reside na relação
por ele estabelecida entre os níveis de intensidade emocional e aquilo que de-
signa por «energia revolucionária "5•,portanto, nas possibilidades de ação coleti-
va. É quando as paixões políticas estão exasperadas que é possível se produzir
uma verdadeira revolução e é pela manutençãodesse nível passional que se
pode dar continuidade à obra de destruição do antigo regime. Dessa forma,
uma revolução proletária apenas será possível se a classe operária alcançar, em
um momento da sua história e de acordo com as circunstâncias, uma intensi-
dade suficiente de paixão revolucionária.
Sob essa perspectiva, é preciso destacar que Marx não faz da sensibi-
lidade política uma mera consequência das condições materiais, como pode-
ríamos pensar. Ao contrário, ele diz que todas as condições materiais podem
estar reunidas sem que surja uma verdadeira paixão revolucionária. Em 1870,
ele indica claramente a propósito dos operários ingleses: "Os ingleses possuem
toda a matéria necessária à revolução social. O que lhes falta é...a paixão revo-
lucionária "6. Acrescenta que falta também a esses operários "o espírito genera-
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A insistência de Marx ou de Tocqueville em compreender os senti-
mentos dominantes de uma conjuntura faz entender que a afetividade coleti-
va não é apenas uma dimensão da vida cotidiana e um aspecto da vivência in-
dividual, mas uma dimensão da realidade histórica. Interrogando-se sobre as
consequências do "fervor",que intervém para fomentar as indignações, Marx
expõe claramente que os vínculos afetivos participam da história: não se pode
concluir a análise de uma situação política sem considerar os sentimentos e
as paixões em que se apoiam, permanentemente, as relações, os conflitos, os
compromissos políticos.
Três conjuntos de relações são particularmente agenciados na afetivi-
dade coletiva e individual: as relações com o poder e com as normas impostas;
as relações internas e externas ao grupo de pertença; os modelos de identidade.
1) Max Weber faz do poder carismático aquele em que a imposição
da vontade dominante realiza-se através de vínculos coletivos com o chefe;
a obediência é marcada por uma emotividade positiva em relação ao chefe,
que encarna uma sacralidade. Mas, os dois outros tipos de poder definidos
por Weber comportam também uma configuração afetiva particular e ten-
sões emocionais próprias. O poder tradicional mantém-se graças aos múlti-
plos elos com os usos, os ritos, as tradições próprias ao grupo, relacionados a
diferentes lugares de poder; são conhecidos os esforços realizados por esses
sistemas para preservar o respeito aos ritos, ao culto do passado, esforços
para conjurar os esquecimentos.Da mesma forma, pode-se dizer que no
poder democrático ou legalizado uma dimensão essencial é a do respeito
à lei: são igualmente conhecidosos esforçose as lutas empreendidas para
cultivar os respeitos, as reiteraçõesda ideologia democrática para conven-
cer cada um da validade, legitimidade e excelência das leis. Nos três tipos
ideais de dominação política, externos ao mero efeito de medo exercido por
um poder terrorista, intervêm a aceitação dos sujeitados, sua tolerância e
aquiescência, as nuances de sua resistência ou resignação. Não é surpreen-
dente encontrar em toda sociedade política apelos visando à manutenção
de sentimentos positivos em relação aos poderes, quer se trate de exaltar um
príncipe sobre-humano que encarna o divino ou de explicar, com excesso de
racionalização,a cientificidade das burocracias modernas. No redespertar,
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diferenciações sutis entre as classes ou, por exemplo, entre os grupos étni-
cos. Conforme demonstrado pelos raros estudos que conseguiram romper o
muro de palavras bem comportadas em relação à temática das relações inte-
rétnicas, as sensibilidades difusas, geralmente desprovidas de expressão, po-
dem subsistir, cultivando, de maneira latente, as distâncias entre os grupos.'4
Esses estudos são relevantes, pois evidenciam, para além das instituições e
leis escritas, a existência de um nível oculto do vivido, fomentando sensibili-
dades particulares carregadas de ressentimento e agressividade. Revelam-se,
então, sentimentos escondidos, «temores secretos" —como escreveu Marx —
que possuem sua lógica própria e dos quais importa compreender o funcio-
namento e as consequências possíveis.
3) Por fim, nas sensibilidades políticas exprime-setudo o que diz
respeito à identidade, à imagem de si —imagem envaidecida ou destrutiva,
cristalizada ou inconsistente.Aqui, também, a gama de nuances é conside-
rável e rica entre a identidade gloriosa, megalomaníaca,e a consciência da
indignidade através das identidades fraturadas, hesitantes e atravessadas de
contradições.Ora, as imagens políticas de si dependem, em grande medida,
da afetividade e não se limitam, em sua gênese e dinamismo, a seus aspectos
cognitivos. A análise freudiana da identificação afirma que nossas identidades
políticas mantêm relação tanto com nosso passado infantil como com nossos
equilíbrios ou contradições psíquicas. Não apenas nossas identidades não nos
são emocionalmente indiferentes, como nelas se produzem algumas de nos-
sas tensões intrapsíquicas para aí se resolverem ou se agravarem. Ao mesmo
tempo, no campo das sensibilidades sociopolíticas, representam-se as relações
dinâmicas entre as imagens de si e as imagens do outro, pois as qualidades de
autorrepresentação convivem com as valorizações e desvalorizações do outro.
As imagens de si, as autorrepresentações
políticas,têm efeitos nos
comportamentos coletivos, mesmo que as pesquisas quantitativas não consi-
gam apreendê-los. Os historiadores compreendem melhor, no campo das men-
talidades, como o orgulho de uma minoria pode fundamentar uma ação de do-
15 IBN KHALDUN.Discourssurl'histoireuniverselle.
Beyrouth: Comission Libanaise Pour La Traduc-
tion -Deschefs-d'Oeuvres, 1968. v. l, L. l, chap.
2, La civilisation bédouine.
16 HEGEL, C.W.F.Conscience desoi.
In: . La phénoménologiedel"esprit, IV. Paris: Vrin, 1971.
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não é um dado, mas o resultado de múltiplas mensagens, de apelos, ínter-
pelaçóes e dramatizações que vêm alimentar ou modificar diariamente os
sentimentos coletívos, As pesquisas sobre a influência e persuasão políticas
nos deixam atentos para o fato de que as confianças e desconfianças, as ad-
mirações e ódios, são objeto de um trabalho permanente e multiforme de
renovação e inculcação,
Propomo-nos a estudar neste livro esse trabalho de produção de sen-
timentos políticos em suas diferentes dimensões: seus autores, seus dísposítí-
vos, suas consequências,
Localizar os agentes produtoresde mensagens emocionais constituí
nossa primeira tarefa. Nas democracias parlamentares, os homens políticos,
os jornalistas de opinião, os intelectuais engajados, os candidatos às diversas
eleições, são suficientemente visíveis para que possamos designar a categoria
dos produtores de bens simbólicos emocionais. Veremos rapidamente que
essa lista apenas tem sentido se vinculada aos aparelhos sociais, ao sistema
político, aos partidos que criam os palanques, os lugares de incitação, de onde
são enunciadas as mensagens apaixonadas. E, como também veremos, esses
lugares de emissão são objeto de uma disputa permanente,seja pelo reforço
das posições, seja pela criação de novos lugares de enunciação.
Os meios de persuasão emocional são, em primeiro lugar, os discur-
sos, falados ou escritos, difundidos pela mídia audiovisual, e as publicações.
Comumente, é através da linguagem, das palavras e das figuras de estilo que
o homem político transmite suas mensagens estimulantes,suas indignações
e seus apelos de apoio. Mas, muitos outros precisam ser inventariados, como,
por exemplo, os meios iconográficos—eles também objetos produzidos e di-
fundidos. Percebe-se rapidamente que as mensagens, discursivas e iconográ-
ficas, não são tão arbitrárias como parecem, que elas obedecem a normas ex-
plícitas e implícitas que nos importa analisar. As normas implícitas, informais,
serão aqui enfatizadas mais do que quaisquer outras, pois essas mensagens
participam da face encoberta da vida política.
Há sempre dúvidas sobre a eficácia dos apelos emocionais, pois pou-
cos procedimentos objetivos permitem perceber exatamente até que ponto, e
com quais consequências, as mensagens emocionam, até que ponto as mensa-
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e das individuais,
00/ 0111/0 os para a
os meios para se compreender
e culturais de um fluxo emocional coletivo, Uma
emoçáo coletiva pode ser repensada apenas se colocarmos em rejac,áovárias
perspectivas de sociológica e psicológica,
l)tovisorlameote, no exemplo do meeting político,
considerando=osob esses três pontos de vista, Tratasse,corno sabido, de um
lugar exemplar de circulação dos atetos políticos,
0 estudo da organizaçáo do meetingdiz respeito, antes de mais nada,
ciência política, entendida como o conjunto de conhecimentos que diz res-
peito ao sistema politico em toda sua complexidade, histórica, estrutural e dí-
namica, O meetingé organizado por um partido, decidido por uma instancia
precisa na hierarquia interna do partido; ele acontece em uma fase determi-
nada dos ciclos eleitorais e é, em sua organização, condicionado pelo sistema
politico e as leis que o regem, Em seu desenrolar vão intervir os depositários
reconhecidos da legitimidade do partido e, também, as rivalidades que o atra-
vessam e as lutas para conquistar,nessa ocasião,um acréscimo de prestígio,
Todos os aspectos objetivos são indispensáveis para a compreensão das gran-
des linhas dessa cena particular, que remete, em suas determinações gerais, ao
sistema político como um todo e à conjuntura,
Mas o meetingé, simultaneamente, um lugar eminente de trocas
simbólicas, um lugar de signos e de trocas de signos. As significações ideo-
lógicas são lembradas antecipadamente pelas siglas que convocam os ade-
tentes, pelos slogans que ordenam o palanque, pelos emblemas aí colocados,
Os momentos culminantes do meetingsão marcados por discursos, palavras,
raciocínios e imagens que provocam o interesse, o tédio, o riso, a indignação.
O observador percebe que a sala se apaixona ou se fadiga, explode em risos
ou vocifera e é pela recepção das significações, nesse círculo de signos, que
nascem e se exprimem as emoções,Antes das palavras, as alusões e cono-
taçóes evocam elementos diversificados da cultura dos participantes, lem-
bram fragmentos do passado, reanimam os sistemas de referência através
dos quais surgem as emoções,Analisar os sentimentos e emoções impõe,
PIERRE ANSART
cos, significa-se, assim, o lugar do sujeito como receptor,reprodutor ou produ-
tor, como «sujeito" político.
O exemplo do meetingpode ainda nos servir para destacar o tipo de
interações e trocas realizadas; seu desenrolar evidencia a existência de um tipo
particular de comunicação entre os oradores e o público. Um a um, os oradores
que se sucedem propõem criar com seus ouvintes uma relação de simpatia,
de conivência, de entendimento. Propõem despertar o entusiasmo ou, ao me-
nos, o interesse; provocar a estima e as marcas de adesão. Durante o discurso, o
orador busca criar uma relação de escuta, visando reforçar simpatias e antipa-
tias. Ele terá maior êxito se manifestar seu entusiasmo e se fizer portador das
paixões comuns. Uma comunicação particular se estabelece entre o orador e
o público, um círculo de interações no qual o público é convidado a partilhar
seus
os sentimentos expostos, a encontrar no tom do orador, nas nuances de
sentimentos, a imagem legitimada de seus próprios sentimentos.
o
Sabemos que essa comunicação provisória não é arbitrária e que
orador não poderia impor ao público sentimentos que possam ser experimen-
enga-
tados como ofensivos. O meeting reúne, com frequência, participantes
assegura o
jados numa mesma causa e a relativa homogeneidade de opinião
mais é do que
seu desenvolvimento pacífico. O meeting,frequentemente, nada
seja, a comu-
uma ocasião de reiterar os vínculos e as rejeições políticas. Ou
anteriormente
nicação provisória não faz senão reativar sentimentos políticos
constituídos, uma estrutura socioafetiva formada previamente.
a ser retido.
A hipótese de "estruturassocioafetivas" parece-nos algo
meio social dados, de
Ela acentua a relativa estabilidade, em um período e
intragrupais e de
sentimentos políticos comuns, que participam de relações
eventuais mobilizações ou desmobilizações.
conflito, os
Além disso, deve-se pesquisar se, em certas condições de
em relação
afetos de grupos rivais não entram em relação e, eventualmente,
escrita, onde
dialética. Vemos isso sem ambiguidade nas comunidades sem
se opõem. Na comu-
os afetos legítimos dos grupos em tensão se articulam e
das mulheres, sua
nidade indígena descrita por Pierre Clastres, a humildade
orgulho dos homens.
atitude depressiva, responde de forma complementar ao
morte respondem os cânticos
Às melopeias femininas sobre o sofrimento e a
A GESTÃODAS PAIXÕESPOLíTlCAS 23
enaltecendo o sucesso na caça e sua superioridade
orgulhosos dos homens in
se os sentimentos coletivos,
dividual.n Tudo se passa como veiculando
normas
repartissem em uma oposição complementar: a
de comportamento, se uns
de si; a outros, a postura depressiva. Os
orgulho e a exaltação narcísica
um sistema de complementaridade que alicerça
legítimos distribuem-se em
grupos. a
distribuição desigual dos dois
17 CLASTRES, Pierre.Lasociétécontrel'État.
Paris: Ed. de Minuit,1974, p.96-99.
24 PIERRE AHSART
piraçóes e os vínculos dos dirigentes entram em conflito com as deferências
e os vínculos tradicionais, A ação dos modernizadores (Mustafa Kemal Ata-
türck, por exemplo) '8se realiza no interior de interaçóes passionais intensas,
em que as iniciativas concretas ou simbólicas dos dirigentes agridem afetos
antigos, provocando efeitos e contra efeitos, levando aqui à resistência e aco-
lá à adesão, quando o consenso afetivo era o buscado, Porque não há cer-
tezas se as mensagens convocando à adesão serão ouvidas, como podemos
ver nas preliminares de algumas revoluções. Em um período de tensão, uma
iniciativa política visando à adesão/submissão pode provocar uma emoção
imediata de recusa que conduz à rebelião.
Salta aos olhos, pois, a importância de nos desembaraçarmos do
preconceito racionalista que lança ao absurdo do "irracional" tudo aquilo que
diz respeito à emotividade política. Segundo este preconceito amplamente
difundido, pode-se distinguir com total clareza os comportamentos racionais
e as sensibilidades, dissociar na vida política o que depende da razão e o que
se considera afeto e desrazão. Como sabemos, a irracionalidade é comumente
atribuída às classes dominadas, como se a razão fosse o atributo das nações ou
classes ditas superiores e a emotividade, o das nações ou classes dominadas.
A hipótese da qual partimos postula, ao contrário, a universalidade
dos fenômenos de sensibilidade política e insiste na pluralidade, na notável
diversidade destes fenômenos. Postulamos que o político, sendo da ordem da
vida e da morte, sendo também do campo do incerto e da persuasão no interior
do incerto, convoca necessariamente, em graus diversos, os valores e a adesão
afetiva aos valores.
Assim, seria oportuno, para se compreender o caráter dos afetos polí-
ticos, a produção de signos emocionais, sua ci rculação e consumo, afastar pro-
visoriamente os exemplos excepcionais (stalinismo, hitlerismo) e considerar
os amores políticos comuns, os apelos cotidianos às devoções e às ansiedades.
Mais do que retomar a análise de situações excepcionais (violência política,
terrorismo),nas quais as paixões políticas ganham um destaque que as tor-
18 Mustafa Kemal Atatürk (Salônica, 1881- Istambul, 1938)foi oficial do exército turco e um dos
arquitetos da República da Turquia, em 1923,da qual foi o primeiro presidente. (N.T.)
A CESTÃODAS PAIXÕESPOLÍTICAS 25
es traçes
a paztit se
a censàderaçàodos e és bestilidàdes
Além
do exereciodo e no
Se
anfiites nas decnxracias pluralistas Ax\ese pensar o
des
não efetua, pode ser o caso nos
do pcderaqui
terroristas mas pela
o stçcrte de mensagens
incitativas mobiliado—
e de múltiplasmensagens
Aqui. também, um preconceito
apaziguadorascu euforizantes
tendea nsar o papel das emoçõese a evitar sua análise
as comunidades tradicionais seriam
gundo um —quema consagrado,
por vínculos afetivos enquanto nosas sociedades se
19
26
significaçÕes dos sentimentos vis-à-visdos poderes e de sua gestão (Cap. III);
a natureza dos meios que lhes servem de suporte (Cap. IV). Na continuidade,
analisaremos uma sucessão de lugares sociais e situações históricas diferen-
ciadas: a seita, o partido, o totalitarismo, a situação revolucionária (Cap. V, VI,
VII e VIII). Para terminar, a questão das significações particulares das sensibili-
dades políticas nos regimes de democracia pluralista (Cap.lX).