Você está na página 1de 322

ISSN 0102-2571

Nº 38 Nº 38 Nº 38
2018 2018 2018

Neste número
Ana Vilacy Galucio
António Miguel Lopes de Sousa
Camila Fernandes
Cristian Pio Ávila
Cristiana Barreto
Daiane Pereira
Denny Moore
Eliane Cristina Pinto Moreira
Elisabeth Costa
Fernando Canto
Hein van der Voort
Helena Pinto Lima
Hugues de Varine
Luciano Moura Maciel
Marcelo Brito
Marcia Bezerra
Márcio Couto Henrique
Marcondes Lima da Costa
Mariana Petry Cabral
Milton Hatoum
Roseane Costa Norat
Sérgio Paz Magalhães

O Patrimônio do Norte:
Outros Olhares para a Gestão
Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional

Iphan | Brasília | 2018


Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional nº 38 / 2018
ISSN 0102-2571

O Patrimônio do Norte:
Outros Olhares para a Gestão
Organização: Maria Dorotéa de Lima
Presidente da República do Brasil Revista do Patrimônio n° 38 Fotos
Michel Temer Capa: Igreja de Santo Alexandre, atual
Organização Museu de Arte Sacra, Belém (PA), 1966
(ca.). Foto: Marcel Gautherot/Acervo
Ministro de Estado da Cultura Maria Dorotéa de Lima
Instituto Moreira Salles.
Sérgio Sá Leitão Caixa: Cúpula do Teatro Amazonas,
Coordenação Editorial Manaus (AM), 2012. Foto: Chico Lima.
Presidente do Instituto do Patrimônio André Vilaron Folha de rosto: Capacete, etnia Palikur,
Histórico e Artístico Nacional 2007. Coletor Márcio Meira, presidente
Kátia Bogéa Pesquisa Iconográfica da Funai (2007-2012). Coleção
André Lippmann etnográfica da Reserva Técnica Curt
Nimuendaju/Acervo Museu Paraense
Diretores do Iphan Mádia do Prado Pereira
Emílio Goeldi. Foto: Fábio Jacob.
Andrey Rosenthal Schlee Márcio Vianna 2ª folha de rosto: Muiraquitã. Adorno
Hermano Queiroz Oscar Liberal zoomorfo. Acervo: Galeria Fidanza/Museu
Marcelo Brito de Arte Sacra/Coleção de Muiraquitãs do
Marcos José Silva Rêgo Edição e Copidesque Governo do Estado do Pará.
Robson Antônio de Almeida Caroline Soudant Urna funerária antropomorfa, cultura
Maracá, Amapá. Coletor Aureliano Lima
Guedes, 1896. Acervo Arqueológico do
Superintendente do Iphan no Acre Revisão e Preparação dos Textos
Museu paraense Emílio Goeldi. Foto:
Jorge Mardini Sobrinho Gilka Lemos César Barreto.
Página de créditos: Erythrina. Aquarela.
Superintendente do Iphan no Amapá Direção de Arte e Diagramação Expedição Alexandre Rodrigues Ferreira
Haroldo da Silva Oliveira Cristiane Dias (a partir do projeto (1783 a 1792). Acervo: Fundação
gráfico de Victor Burton) Biblioteca Nacional, Brasil.
Superintendente do Iphan no Amazonas
A equipe da Revista do Patrimônio
Karla Bitar Produção Editorial
agradece aos servidores do Iphan
Isabella Atayde Henrique que se empenharam para que a
Superintendente do Iphan no Pará nossa publicação fosse produzida da
Cyro Holando de Almeida Lins Edição de Imagens melhor forma possível. Bem como às
André Lippmann parcerias estabelecidas com fotógrafos
Superintendente do Iphan em Rondônia André Vilaron e instituições, públicas e privadas, às
Delma Batista do Carmo Siqueira Cristiane Dias respectivas equipes e todas as pessoas
que com dedicação contribuíram para a
Márcio Vianna
realização deste número da Revista do
Superintendente do Iphan em Roraima Oscar Liberal Patrimônio.
Katyanne Bermeo Mutran
Apoio - Divisão de Editoração e A Revista do Patrimônio é publicada
Superintendente do Iphan no Tocantins Publicações - Iphan pelo Instituto do Patrimônio Histórico
Marcos Zimmermann Amarildo Machado Martins e Artístico Nacional, do Ministério da
Luciano Barbosa da Silva Amorim Cultura, desde 1937. Os artigos são
autorais e não refletem necessariamente
Silvana Lobato Silva Marra
a posição do Iphan e da organizadora
deste número, Maria Dorotéa de Lima.

Instituto do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional
SEPS 713/913, Bloco D, Edifício Iphan.
70.390-135 - Brasília (DF)
Revista do patrimônio Nº 38/2018
Kátia Bogéa EIXO IV: DILEMAS PARA O
Apresentação 07 FORTALECIMENTO DA GESTÃO

Apresentação da Vale 11 Milton Hatoum


Estádios novos, miséria antiga 169
EIXO III: ESTRATÉGIAS DE PROMOCÃO
PARA VALORIZAÇÃO E DIFUSÃO António Miguel Lopes de Sousa
Entre a cidade ideal e a cidade real: 173
Milton Hatoum desafios à gestão da preservação.
Adeus aos quintais e à memória urbana 19 Uma leitura sobre a elaboração da
norma de preservação para Belém (PA)
Hugues deVarine
O patrimônio brasileiro está bem vivo. 25 AnaVilacy Galucio, Denny Moore,
Um testemunho subjetivo Hein van derVoort
O patrimônio linguístico do Brasil: 195
Elisabeth Costa novas perspectivas e abordagens no
No Norte, do Norte, do Brasil 37 planejamento e gestão de uma política
da diversidade linguística
Eliane Cristina Pinto Moreira,
Luciano Moura Maciel Marcelo Brito, Sérgio Paz Magalhães
Protocolos comunitários: 63 Os desafios do reconhecimento e da 223
resistência e autodeterminação gestão do patrimônio cultural da
no acesso à biodiversidade Região Norte e o caso da candidatura
do Conjunto de Fortificações Brasileiras
Marcia Bezerra a patrimônio mundial
Com os cacos no bolso: 85
o colecionamento de artefatos Mariana Petry Cabral, Daiane Pereira,
arqueológicos na Amazônia brasileira Marcia Bezerra
Patrimônio arqueológico da Amazônia: 247
Fernando Canto a pesquisa, a gestão e as pessoas
Amapá: patrimônio cultural e identidade 103
Márcio Couto Henrique
Roseane Costa Norat, Participação e exclusão popular 271
Marcondes Lima da Costa no Círio de Nazaré
As fortificações da Amazônia: 125
novas fronteiras e desafios Cristian Pio Ávila
Patrimônio imaterial – estabilidade, 291
Helena Pinto Lima, Cristiana Barreto, crise e seus trânsitos. Más e boas
Camila Fernandes contribuições do Amazonas
Museus no século 21: ações pela 145
salvaguarda e socialização do acervo
arqueológico do Museu Goeldi
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

6
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão
Káti a Bogéa
Ap r es en t aç ão

Em várias oportunidades tenho afirmado Constituição Federal como os bens de


que o que caracteriza o patrimônio cultural natureza material e imaterial, tomados
brasileiro é a diversidade. individualmente ou em conjunto, portadores
A Declaração Universal dos Direitos de referência à identidade, à ação, à memória
Humanos, documento balizador para a dos diferentes grupos formadores da
construção e implementação de qualquer sociedade brasileira, nos quais se incluem as
política pública – e que completa 60 anos formas de expressão; os modos de criar, fazer
em 2018 –, assevera que todo ser humano, e viver; as criações científicas, artísticas e
sem distinção de qualquer espécie, seja de tecnológicas; as obras, objetos, documentos,
raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião edificações; conjuntos urbanos e sítios
política ou de outra natureza, origem de valor histórico, paisagístico, artístico,
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou arqueológico, paleontológico, ecológico
qualquer outra condição, tem capacidade e científico.
para gozar direitos fundamentais, como o A reunião do Conselho Consultivo
direito à vida, à liberdade e à segurança. do Patrimônio Cultural, realizada
A mesma Declaração assegura em setembro de 2018, me parece um
igualmente que todo ser humano tem o excelente exemplo de como o Iphan vem
direito de participar livremente da vida enfrentando a diversidade cultural da Nação
cultural da comunidade, de fruir das artes e os desafios propostos pela Declaração
e de participar do progresso científico e de Universal dos Direitos Humanos. Nesse
seus benefícios. encontro, registramos a Literatura de
Philodendron burle-marxii
Ao longo dos últimos 81 anos, o Cordel, a Procissão do Senhor dos Passos (Humaitá, Amazonas).
Aquarela de Margaret
Instituto do Patrimônio Histórico e de Florianópolis (SC) e o Sistema Agrícola Mee, 1964
Acervo: Sítio Burle Marx.
Artístico Nacional – Iphan vem cumprindo Tradicional das Comunidades Quilombolas
com sua missão, garantindo a preservação do Vale do Ribeira (SP/PR); e tombamos Mercado Municipal
Adolpho Lisboa,
e a salvaguarda do que chamamos de o Acervo de Arthur Bispo do Rosário, o Manaus (AM), 2018
Foto: Márcio Vianna/
patrimônio cultural, consagrado na Terreiro Ilê Obá Ogunté Sítio Pai Adão, do Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

8
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão
Recife (PE), e o Terreiro Tumba Junsara, de

Apresentação
Salvador (BA). Significa que, em uma única

a c i o n a l
reunião, reconhecemos bens de natureza
imaterial e material, bens de manifestação

K á t i a B og é a
nacional ou local, bens identificados com

N r t í s t i c o
celebrações de diferentes religiões e bens
referenciais para grupos sociais distintos.

A
Esta Revista do Patrimônio nº 38,

e
lançada em conjunto com a edição anterior,

i s t ó r i c o
também é dedicada ao patrimônio cultural
da Região Norte e tem como tema as

H
estratégias de promoção e gestão desse

a t r i m ô n i o
patrimônio. Cabe agora encarar outro
desafio, o do sempre difícil “dia seguinte”.

P
Aquele que se desdobra a partir dos atos

d o
de reconhecimento. Os desafios do pós-

e v i s t a
registro e pós-tombamento, da gestão
dos bens acautelados e das inúmeras

R
ações de salvaguarda e preservação que
devemos encaminhar. No entanto, se o que
caracteriza o patrimônio cultural brasileiro
é a diversidade, diversa e muito enraizada
deve ser nossa atuação, necessariamente
discutida e pactuada com a sociedade civil
e cotidianamente compartilhada com as 9

demais esferas de governo, no sentido de


protegê-lo e valorizá-lo.
Ao reconhecer sua diversidade, o Iphan
aposta na construção de um Brasil mais
solidário, com a certeza de que o patrimônio
cultural é o que nos une.

Colhereira. Aquarela.
Expedição Alexandre
Rodrigues Ferreira
(1783 a 1792)
Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.

Jovem karajá produzindo


boneca,
Ilha do Bananal (TO), 1953
Foto: Marcel Gautherot/
Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

10
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão

Neg. vidro, [1901?].


Mercado Ver-o-Peso.

Foto: Arquivo Guilherme de La


Penha/Coleção Fotográfica/MPEG.
Museu Paraense Emílio Goeldi
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão
a c i o n a l
N
Apresent ação da V ale

r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
O patrimônio cultural é a identidade de
um povo, é sua memória, é sua evolução.

P
Pensando nisso, a Vale patrocina projetos

d o
que valorizam o patrimônio material e

e v i s t a
imaterial, com o objetivo de preservar a

R
história dos lugares e das pessoas. É uma
forma de manter vivos seus saberes e fazeres.

Estamos presentes no Norte do Brasil há


mais de 30 anos e nos orgulhamos de reforçar
a importância cultural dessa região.
11
Queremos compartilhar valor com a
sociedade por meio da divulgação da cultura
e do conhecimento. Por isso, convidamos
o leitor a conhecer um pouco mais sobre a
riqueza e a diversidade cultural da Região
Norte do Brasil.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

12
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão

Casulo humano
(rito mortuário),

Foto: Claudia Andujar.


da série A Casa, 1976
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
13

O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

14
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão

O Invisível, 1976
Foto: Claudia Andujar.
Sem título, da série
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
15

O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

16
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão
Foto: Claudia Andujar.
Catrimani 6, 1971-1972
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
17

O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

18
Milton Hatoum Adeus aos quintais e à memória urbana
Milton Hatoum

a c i o n a l
A deus aos quintais e à memória urbana

N
Ar t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
Para Thiago de Mello

Ha t r i m ô n i o
Em Recife e Manaus – metrópoles do Em 1927, quando o autor de
Norte e Nordeste – o quintal das casas está Macunaíma passou por Belém, hospedou-
sendo substituído por um piso de cimento se no Grande Hotel, em cuja varanda

P
ou lajotas. Em Boa Viagem, bairro recifense, chupitou, extasiado, um sorvete de bacuri.

d o
e v i s t a
uma muralha de edifícios projeta uma extensa Esse imponente edifício neoclássico da
área de sombra na praia, de modo que os capital paraense – uma joia arquitetônica

R
banhistas têm que se contentar com estreitas do Brasil – também foi demolido durante o
línguas de sol. No país tropical, luz e sombra governo militar. Um prédio feio de doer os
projetam-se em lugares trocados. olhos substituiu o Grande Hotel no coração
Ainda mais grave é o caso de Manaus, de Belém, essa bela cidade evocada em
onde o apagamento da memória urbana poemas de Manuel Bandeira e Max Martins.
parece irreversível. Na década de 1970, um Quase toda a arquitetura histórica das
coronel do Exército, nomeado prefeito, nossas cidades foi devastada. O centro 19
mandou derrubar mangueiras centenárias que de São Luís, pobre e abandonado, é uma
sombreavam ruas e calçadas. Como se isso promessa de ruínas. Vários casarões e edifícios
não bastasse, esse prefeito, talvez possuído de Santos, erguidos durante o fausto da
pelo espírito demolidor do barão Haussmann, economia cafeeira, foram demolidos. Até a
destruiu praças da cidade para abrir avenidas. belíssima paisagem em relevo do Rio está
O mais irônico, tristemente irônico, é que sendo barrada por edifícios altíssimos. Na
a imensa maioria dos prefeitos e vereadores cidade de São Paulo, pouca coisa restou
da era democrática não pensa na relação da história urbana. E em vários bairros
da natureza com a cidade. Hoje, em certas paulistanos de classe média há inúmeros
horas do dia, é quase impossível caminhar edifícios e calçadas sem uma única árvore.
em Manaus. Não há árvores, e as calçadas são O desprezo à natureza e à memória
estreitas e esburacadas. Até mesmo os feios das nossas cidades se acentuou a partir da Grande Hotel. In: Álbum do
Pará, 1939. Organização de
oitizeiros, que Mário de Andrade detestava, década de 1960, quando a industrialização Hildebrando Rodrigues
Acervo: Fundação Biblioteca
têm seus dias contados. e o adensamento urbano adquiriram um Nacional, Brasil.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

20
Milton Hatoum Adeus aos quintais e à memória urbana
ritmo acelerado e caótico. Essa urbanização Talvez alguns políticos e donos de

Adeus aos quintais e à memória urbana


selvagem destruiu edifícios históricos de empreiteiras sintam ódio ao nosso passado:

a c i o n a l
quase todas as cidades brasileiras. Penso ódio inconsciente, mesmo assim verdadeiro;
que isso alterou para sempre nossa relação ou talvez não sintam nada, e toda essa
com a natureza e com a própria história das barbárie seja apenas uma mistura de

N
r t í s t i c o
cidades. Paradoxalmente, proliferam bairros ganância, ignorância e desfaçatez.
pobres e favelas com nomes de Jardim, como Outro dia uma amiga me contou que

A
se essa palavra atenuasse a feiura da paisagem havia sonhado com o futuro das nossas

e
e a vergonhosa arquitetura dos conjuntos de metrópoles e florestas.

Milton Hatoum
i s t ó r i c o
habitação popular. “Foi um pesadelo”, ela disse. “As cidades
Poucos monumentos e áreas históricos e florestas inexistiam ou eram invisíveis. A

H
sobreviveram à voracidade dos construtores visão do futuro era um monstro bicéfalo:

a t r i m ô n i o
de caixotes verticais com fachadas de vidro eclipse solar e deserto.”
fumê: uma arquitetura de fisionomia

P
funérea, tão medonha que é melhor olhar

d o
para as nuvens, ou fechar os olhos e sonhar

e v i s t a
com Buenos Aires.

R
21

Anúncio publicado
no Álbum do Pará,
1939. Organização de
Hildebrando Rodrigues
Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.

Centro histórico
de Manaus (AM), 2018
Foto: Márcio Vianna/
Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

22
Milton Hatoum Adeus aos quintais e à memória urbana
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

Foto: Eveline Oliveira.


Ilha de Marajó (PA), 2018
praia de Água Boa,
O banho dos búfalos,
23

Milton Hatoum Adeus aos quintais e à memória urbana


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

24
H u g u e s d e Va r i n e O p a t r i m ô n i o b r a s i l e i r o e s t á b e m v i vo. U m t e s t e m u n h o s u b j e t i vo
Hugues de Var ine

a c i o n a l
O patrimônio brasileiro está bem vivo .

Um testemunho subjetivo *1

N
A
Hr t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Meu primeiro encontro com o patrimônio expressar uma opinião e, ainda menos, para
brasileiro e com o Instituto do Patrimônio dar um parecer sobre elas.
Histórico e Artístico Nacional – Iphan, Entre 1992 e 2013, participei de forma

P
aconteceu em 1967, em campo, quando tive frequente e intensiva de projetos de campo,

d o
e v i s t a
a honra de ser acompanhado e guiado pelo reuniões, treinamentos e publicações no
próprio Rodrigo Melo Franco de Andrade Brasil. Eu aprendi muito, tenho muitos

R
numa visita a Ouro Preto e Sabará (MG). Eu amigos com quem ainda mantenho contato e
era, então, o diretor do Conselho Internacional sigo o que está acontecendo em tantas regiões
de Museus – Icom e estava cumprindo minha brasileiras, mas infelizmente de longe, por
primeira missão na América Latina. Um causa da minha idade.
segundo encontro ocorreu em 2008, quando Ao longo desses anos, acompanhei princi-
eu começava a trabalhar com o Ecomuseu palmente projetos e programas ligados ao tema
da Serra de Ouro Preto, em conexão com dos ecomuseus ou museus comunitários. No 25
o projeto Parque Arqueológico do Morro sistema brasileiro, pode-se pensar que eles per-
da Queimada, conduzido na ocasião pelo tencem ao mundo dos museus e, por essa ra-
representante local do Iphan. zão, ao Instituto Brasileiro de Museus – Ibram,
Foi, portanto, com uma certa distância mas na verdade fazem parte da Associação
que acompanhei as políticas e ações do Iphan Brasileira de Ecomuseus e Museus Comunitá-
ao longo de todos esses anos, motivo pelo rios – Abremc, atualmente presidida por Maria
qual sinto-me pouco capacitado para Terezinha Resende Martins, que é coordena-
dora do Ecomuseu da Amazônia em Belém
* Depois que este artigo foi escrito e enviado à organizadora
da revista, tomei conhecimento da Portaria nº 137, de 2016, e representante oficial da Abremc no Comitê
com a qual o Iphan estabelece e divulga definições, princípios
e práticas, isto é, um repertório bastante completo a respeito Gestor do Sistema Brasileiro de Museus. Rodrigo Melo Franco de
Andrade, segundo da
da educação patrimonial, aplicada a partir de uma concepção esquerda para a direita,
que integra verdadeiramente o patrimônio natural e cultural,
Mas o presente testemunho me permite em frente ao pórtico da
material e imaterial, em sua estreita relação com os territórios Academia Nacional de
voltar para essa atribuição única do mundo Belas Artes no Jardim
e as comunidades. Essa portaria torna preciso o conceito e a
Botânico,
missão das Casas do Patrimônio, que estão muito próximas da dos museus. O ecomuseu, ou o museu da Rio de Janeiro (RJ), s/d
ecomuseologia. Eu saúdo esse notável esforço, que confirma o Reprodução: Eduardo Mello/
papel inovador do Iphan em matéria de políticas patrimoniais. comunidade, não é um museu no sentido Acervo Iphan.
usual da palavra, nem no Brasil nem em A
O p a t r i m ô n i o b r a s i l e i r o e s t á b e m v i vo. U m t e s t e m u n h o s u b j e t i vo

mobilização dos
outros lugares (v. a definição internacional do jovens na memória e no
a c i o n a l

Icom). Ele não é centrado em uma coleção pat r i m ô n i o v i v o


de objetos ou documentos, mas mobiliza a
comunidade e seu patrimônio para contribuir
N

Geralmente, é muito difícil fazer com


r t í s t i c o

para o desenvolvimento sustentável de seu que os jovens se interessem pelo patrimônio


território. Ou seja, representa a totalidade
universal e até mesmo pelo patrimônio de
A

do patrimônio vivo tal como é vivenciado


sua própria comunidade. Sua vida cultural
e

e reconhecido pela própria comunidade


i s t ó r i c o

concentra-se no momento presente e a


local, que deve inventariá-lo, acompanhar
diferença entre gerações os afasta de coisas
sua evolução, os costumes à sua volta,
H

que são de interesse dos seus pais ou avós.


valorizando-o para desenvolver uma maior
a t r i m ô n i o

Mas o trabalho desenvolvido em escolas


consciência do patrimônio e o bem comum
de níveis diferentes – seja na Fundação
H u g u e s d e Va r i n e

da comunidade e também para acolher novos


Escola Bosque Professor Eidorfe Moreira,
P

residentes e visitantes de outros lugares.


d o

Esse patrimônio vivo é, portanto, cons- em Caratateua, Belém , com o Ecomuseu


e v i s t a

tituído de elementos materiais e imateriais, da Amazônia, seja no Ponto de Memória


localizado em uma escola do bairro Terra
R

da paisagem e qualidade de vida, natureza e


cultura, tais como os conhecemos e os trans- Firme, também em Belém, no Ecomuseu de
formamos ou até mesmo criamos. É aqui que Maranguape (CE), que está em constante
se adentra o campo de ação do Iphan. interação com uma escola em seu distrito
Em todo o Brasil, durante minhas visitas e de Cachoeira, ou ainda na comunidade
estadias, encontrei líderes de equipes, projetos Jenipapo Kanindé de Aquiraz (CE), que
que criavam programas, métodos de trabalho utiliza o patrimônio tradicional para a
26
e soluções para os problemas resultantes do pedagogia – demonstra que considerar os
desenvolvimento dos territórios. Eu
jovens, crianças, adolescentes e jovens adul-
descrevi os sítios onde trabalhei e as práticas
tos como herdeiros e atores do patrimônio
das quais participei em um capítulo inteiro
local promove sua conscientização do pa-
do meu último livro1.
trimônio em geral e os capacita para uma
Já que esta edição da Revista do
participação ativa no desenvolvimento de
Patrimônio é especificamente dedicada ao
seus respectivos territórios.
Norte, vou concentrar meu testemunho
A lição que eu guardo é a seguinte: a
nos lugares que acompanhei à distância por
uma década, especialmente em Belém e questão não é somente visitar um museu
em Fortaleza. Eu só quero apresentar aqui ou uma exposição com um grupo de
algumas coisas que aprendi. jovens para lhes mostrar coisas, uma
paisagem, um lugar ou uma exposição.
1. L’écomusée, singulier et pluriel. Paris: Ed. L’Harmattan, 2017, Temos de envolver os jovens na gestão
296 p., mais especificamente no capítulo 7 – “Patrimoine et
communautés au Brésil” (p. 141-172). diária do museu, nas escolhas de atividades
O p a t r i m ô n i o b r a s i l e i r o e s t á b e m v i vo. U m t e s t e m u n h o s u b j e t i vo
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

H u g u e s d e Va r i n e
P
d o
e v i s t a
R
e linguagens, permitir que sintam que Educação pat r i m o n i a l , 27
o patrimônio lhes pertence e que são um grande desafio
parcialmente responsáveis por ele. Fui
orientado na exposição permanente do Eu descobri o conceito, métodos e prá-
Ecomuseu de Maranguape e na exposição ticas de educação patrimonial “ao estilo
do museu Jenipapo Kanindé por jovens brasileiro” no Museu Imperial de Petrópolis,
de cada comunidade. Já na aldeia de graças à equipe formada por Maria de Lour-
Mari-Mari da Ilha de Mosqueiro, foram des Parreiras Horta e Evelina Grunberg. E eu
as crianças da escola que estabeleceram encontrei essa prática notável nos outros sítios
o primeiro inventário participativo e o em que trabalhei. Parece-me certo que são
primeiro mapeamento do patrimônio do os museus – especialmente os museus locais,
lugar onde vivem. Seria interessante estudar estabelecidos em territórios e comunidades –
esses casos, bem como outros que eu não Projeto educação e
as ferramentas mais eficazes para tal exercício. patrimônio compartilhado:
Brasil e Holanda, no Forte
conheço e avaliar sua eficácia em longo Na verdade, eles são chamados ou não de das Cinco Pontas,
Recife (PE), 2018
prazo na educação patrimonial dos jovens. ecomuseus; o fato é que se comunicam com Foto: Aline Bonfim.
membros da comunidade, os capacitam, dão Controlar
O p a t r i m ô n i o b r a s i l e i r o e s t á b e m v i vo. U m t e s t e m u n h o s u b j e t i vo

a evolução do
a eles os meios para gerir seu patrimônio cole- ambiente urbano e rural
a c i o n a l

tivo como um capital cultural, social, ambien-


tal e econômico, essencial para seu futuro e Em todos os lugares, inclusive no
N

o de seus filhos. E essa educação patrimonial Nordeste do Brasil, o desenvolvimento dos


r t í s t i c o

não diz respeito apenas aos elementos do lugares implica em um controle da mudança
patrimônio oficialmente reconhecidos e pro- social, cultural, tecnológica e econômica. Eu
A

tegidos ou aos monumentos e sítios arqueo- pude constatar a eficácia das intervenções de
e
i s t ó r i c o

lógicos. Ela leva em conta tudo o que o Icom ações e programas de educação patrimonial
e o Conselho Internacional de Monumentos para destacar certos aspectos do patrimônio
e Sítios – Icomos chamam de “paisagem
H

imaterial em diversos locais, como o bairro


a t r i m ô n i o

cultural”, quem vive e se transforma com a Grande Bom Jardim, em Fortaleza, ou a


atividade humana. Eu aprendi esse conceito Ilha de Cotijuba, em Belém. No primeiro
H u g u e s d e Va r i n e

no Brasil e observei o fenômeno em campo. caso, o objetivo era promover as tradições


P
d o

Espero que o manual de Horta e Grunberg espirituais e artísticas da comunidade, apesar


e v i s t a

e outros textos sobre a experiência brasileira das dificuldades materiais e econômicas.


sejam publicados em outros idiomas, prin- No segundo, a invasão do território pelo
R

cipalmente em inglês, já que muitos países aumento dos fluxos turísticos crescentes seria
poderiam se inspirar nessa obra. associada e compensada por iniciativas de

28

Peças em cerâmica feitas


por Antônia Mesquita,
Comunidade do Poção,
Ilha de Cotijuba (PA), 2017
Foto: Julio Raiol.
desenvolvimento endógeno, de autoconsumo e também não têm o hábito de trabalhar

O p a t r i m ô n i o b r a s i l e i r o e s t á b e m v i vo. U m t e s t e m u n h o s u b j e t i vo
e de produção artesanal. Também observei a coletivamente dentro de sua comunidade.

a c i o n a l
eficácia da mobilização comunitária em uma Eu estava particularmente interessado na
aldeia indígena e dentro de um engenho, alta prioridade dada no Programa Ecomuseu
no Ceará. Este último era um verdadeiro da Amazônia para a capacitação de pessoas

N
r t í s t i c o
monumento da história agroindustrial que aceitavam assumir responsabilidades em
brasileira e a responsabilidade por sua nível associativo, escolar, agrícola, turístico.

A
valorização, assumida pela população do A combinação de sessões de treinamento

e
entorno, me impressionou. e trabalho prático, liderado por técnicos

i s t ó r i c o
Parece-me que mesmo que nem competentes, utilizando como insumo o
sempre seja possível encontrar fórmulas patrimônio, tanto material quanto imaterial,

H
institucionais como ecomuseus ou Pontos de permitiu um processo de aprendizagem e

a t r i m ô n i o
Memória, as ações de educação patrimonial liberação de capacidades individuais e de

H u g u e s d e Va r i n e
conduzidas no seio das comunidades locais, dinâmicas coletivas.

P
a partir das realidades e do contexto de seus O IV Encontro Internacional de Ecomu-

d o
territórios, são uma forma de manter vivo seus e Museus Comunitários, realizado em

e v i s t a
um patrimônio, talvez modesto, mas que Belém em 2012, abordou especificamente esse

R
carrega um significado importante para tema. Tornou possível formular melhor a apli-
manter o controle das mudanças. Eu tenho cação da capacitação patrimonial e enfatizar
frequentemente feito a conexão entre essa seu paralelismo, por um lado, com o ensino
forma de ação comunitária e os métodos de Paulo Freire; por outro lado, com a capaci-
de (conscientização) Paulo Freire que, aliás, tação, que é um dos requisitos das abordagens
foram originalmente desenvolvidos no participativas para o desenvolvimento de co-
Nordeste do Brasil. munidades e territórios.
29

A c a pa c i ta ç ã o n e c e s s á r i a Interdisciplinaridade em
d o s at o r e s e m c a m p o ações

Todos os que atuam na área sabem que As ações patrimoniais que eu observei
os habitantes de um território – acostumados ou das quais participei envolviam muitas
a ser, bem ou mal, administrados por disciplinas acadêmicas e técnicas variadas
autoridades eleitas e por serviços públicos ou de conhecimento profissional. Na
– não estão realmente prontos para assumir maioria dos casos, os gerentes, funcionários
sua parcela de responsabilidade pelo ou voluntários não eram originalmente
desenvolvimento de seu território ou sobre a treinados em gestão, estudos de conservação
gestão do patrimônio comum. Eles não têm ou patrimônio. Na verdade, eles não eram
confiança em si mesmos (autoestima), nem nem museólogos, nem arquitetos, nem
informação ou conhecimento da linguagem historiadores e nem antropólogos. Eles
e dos métodos usados nas questões públicas tinham, e acho que ainda têm, qualificações
relativamente distantes dessas disciplinas. economia familiar, mas também de história,
São principalmente professores, agentes de arqueologia e, claro, da área de museologia.
desenvolvimento, pessoas motivadas pelo O envolvimento do patrimônio em todas
amor que têm por sua terra. as suas formas, como recurso essencial para o
Essa falta de especialização científica e desenvolvimento econômico, social, cultural
técnica na área do patrimônio exige que re- e local, também exige que sejam considera-
corram a todas as habilidades necessárias, seja das áreas de especialização aparentemente
integrando equipes de campo, seja dirigin- distantes do patrimônio, tais como as que
do-se à universidade local para encontrá-las dizem respeito a questões econômicas, técni-
em um centro de pesquisa, por exemplo, no cas de produção e marketing, comunicação,
Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, ecologia e meio ambiente, que envolvem
Produção de peça em
cerâmica pela artesã ou em ONGs de aconselhamento. Assim, agentes ou consultores externos, ou criam
Antônia Mesquita, na
Comunidade do Poção, na encontramos colaboradores da agricultura, da interações com programas e dinâmicas como
Ilha de Cotijuba (PA), 2017
Foto: João Huffner. sociologia, da antropologia, do turismo, da as da Agenda 21 locais.
Somente quando ganham experiência instituições educacionais, mas também

O p a t r i m ô n i o b r a s i l e i r o e s t á b e m v i vo. U m t e s t e m u n h o s u b j e t i vo
de campo, e uma clara consciência de suas associações locais, muitas vezes com

a c i o n a l
lacunas de treinamento, é que os promotores preocupações patrimoniais, as organizações
de ecomuseus ou museus comunitários vão à religiosas (igrejas, terreiros) e étnicas

N
universidade para adquirir os diplomas e os (comunidades indígenas, quilombolas),

r t í s t i c o
complementos de qualificação profissional de cooperativas agrícolas e de pesca.
que sentem necessidade. Isso pode ser feito informalmente, em

A
projetos concretos, mais raramente por meio

e
A

i s t ó r i c o
d i v e r s i d a d e d e pa r c e r i a s de contribuições financeiras e de modo
crescente por meio das redes sociais: estou
Assim como a interdisciplinaridade impressionado com o lugar ocupado pelo

Ha t r i m ô n i o
exige o uso de diferentes e múltiplas patrimônio nas comunicações da Internet
competências, a integração do patrimônio no Brasil. Isso leva em consideração, por

H u g u e s d e Va r i n e
como um “bem comum” nas políticas exemplo, a forma de criar grupos específicos

P
locais e nas redes de atores é essencial e no Facebook, que permite mobilizar o

d o
e v i s t a
leva a mobilizar os mais variados parceiros, conhecimento intangível, ou para fazer
públicos e privados. Entre eles, claro, estão as redes funcionarem como o grupo que

R
as autoridades locais (prefeitos, secretarias reúne os museus indígenas em busca de sua
de cultura, de educação, de turismo, de própria museologia. Recentemente consegui
urbanismo etc.), as universidades, museus, acompanhar de longe a intensa mobilização,

31

Laboratório no prédio
hoje denominado Emília
Snetlhage, no Parque
Zoobotânico do Museu
Paraense Emílio Goeldi,
onde atualmente funciona
a Diretoria do MPEG.
Neg. vidro, [1904?]
Foto: Arquivo Guilherme de
La Penha/Coleção Fotográfica/
MPEG.
Mas, sobre as mulheres, é importante
O p a t r i m ô n i o b r a s i l e i r o e s t á b e m v i vo. U m t e s t e m u n h o s u b j e t i vo

mencionar, desde que elas foram convidadas


a c i o n a l

a integrar várias formas de capacitação (para


atividades artesanais, para o desenvolvimen-
to e promoção do carimbó, para a criação e
N
r t í s t i c o

animação de associações ou grupos etc.), tor-


naram-se verdadeiras líderes da comunidade
A

e são capazes de explorar todo o potencial da


e

memória e do patrimônio local nas dinâmicas


i s t ó r i c o

de desenvolvimento de seus territórios.


Finalmente, tenho notado muitas
H

vezes o papel de algumas personalidades


a t r i m ô n i o

extremamente fortes, que treinam


H u g u e s d e Va r i n e

suas comunidades em processos de


P

desenvolvimento global, em que o


d o

patrimônio é um fator chave para assegurar


e v i s t a

a continuidade e sustentabilidade dos


R

programas sociais, culturais e econômicos.


Eu vi exemplos que seriam interessantes
na Ilha de Marajó, para o resgate do museu agrupar, comparar e avaliar no bairro Gran-
local, criado há quase cinquenta anos pelo de Bom Jardim, em Fortaleza, no Terreiro
padre Giovanni Gallo, e no sentido de São Jorge Filho da Goméia, em Lauro de
que continuem os esforços de melhoria do Freitas (BA) e em outras regiões como a
patrimônio desse território, tarefa iniciada Cidade Estrutural (DF) ou o Ecomuseu do
32 pelo referido padre, que foi muito além das Cerrado, que leva o nome de sua fundadora,
paredes do museu. Laís Aderne.

O pa p e l d a s m u l h e r e s Consciência pa r a o
d e s e n v o lv i m e n t o
Por todos os lugares onde passei no Bra-
sil, principalmente no Nordeste, o papel das De toda a minha experiência brasileira,
mulheres, desde o período de escola até a incluindo visitas de trabalho que eu pude
terceira idade, sempre foi essencial em maté- fazer na Região Norte do país, restou
ria de patrimônio. Isso obviamente por causa evidente que a educação patrimonial e o
de seu papel de transmissão das memórias e uso de recursos do patrimônio cultural, a
vastos conhecimentos, como demonstrado memória individual e coletiva, tradições
pelas “rodas de conversa” que muitas vezes imateriais, paisagem e meio ambiente,
Museu do Marajó,
Cachoeira do Arari, são a base de muitas atividades da educação constituem claramente uma plataforma de
Ilha de Marajó (PA), 2014
Foto: Eric Royer Stoner. sobre patrimônio. conhecimento, de sabedorias, de iniciativas
locais, de fortalecimento da identidade, longo prazo. Eu encontrei no Brasil, não
da comunidade e da autoestima. E é capaz somente nos discursos, mas também e
de assegurar a participação democrática principalmente nas práticas dos meus
das comunidades no desenvolvimento dos colegas envolvidos no patrimônio e no
territórios, sobretudo em áreas geralmente desenvolvimento local, a energia de Paulo
consideradas como desfavorecidas ou Freire e o princípio fundamental da
marginais em relação aos centros de poder e conscientização. O patrimônio vivo, que
de economia. foi vivenciado, e conscientemente
Isso é particularmente verdadeiro reconhecido e valorizado, torna-se uma
Grupo de Carimbó
em comunidades indígenas ou de forte fonte de libertação da criatividade e da Sereias do Mar, de
Vila Silva, formado por
identidade étnica ou religiosa, cujos responsabilidade coletiva, de controle de produtoras rurais e
fazedoras de cultura da
componentes patrimoniais são essenciais gestão e participação crítica nas políticas e região da água doce de
Marapanim (PA), 2017
para o progresso econômico e social de programas de desenvolvimento. Foto: Pierre Azevedo.
Igreja de Santo Alexandre, Belém (PA), 1948
Foto: Pierre Verger/Acervo Fundação Pierre Verger.
A Fundação Pierre Verger foi criada pelo fotógrafo e etnólogo Pierre Verger, em 1988. Tem como objetivo divulgar o trabalho – fotográfico e escrito – de seu fundador, bem como reforçar a ligação
histórica entre África e Brasil. É uma instituição privada, sem fins lucrativos, que funciona na casa em que Pierre Verger viveu em Salvador, Bahia. Detentora dos direitos autorais, organiza exposições,
publicações da obra de Pierre Verger, libera uso de fotografias para diversos trabalhos de terceiros, organiza atividades e oficinas gratuitas para o público em geral e, principalmente, para a comunidade
do bairro Engenho Velho de Brotas, onde fica sua sede. www.pierreverger.org | Facebook: /FundacaoPierreVerger | Instagram:/fundacaopierreverger
Igreja de São Sebastião e Monumento à Abertura dos Portos, Praça São Sebastião, Manaus (AM), 1950 (ca.)
Foto: Marcel Gautherot/Acervo Instituto Moreira Salles.
Elisabeth Costa

a c i o n a l
N o N orte , do N orte , do B rasil

N
A
Hr t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Fernando Lébeis, contador de histórias, cobra em miriti com dimensões oportunas
folclorista, musicólogo, conta que esteve em para uma base expositiva, confeccionada
Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, dando em Abaetetuba, à margem direita do rio

P
um curso, quando ouviu falar de uma obra de Maratauíra, afluente do rio Tocantins, a

d o
reparos da rua principal da cidade, feita e refeita

e v i s t a
59 quilômetros de Belém, capital do Pará.
inúmeras vezes. Por mais que fosse consertada, Ali, famílias de artesãos2 aproveitavam a

R
sempre arrebentava de novo e a prefeitura atri- palmeira de miriti (Mauritia flexuosa L.),
buía o desgaste rápido à composição geológica também conhecida como buriti do brejo,
do solo. Os moradores, por sua vez, explicaram uma palmeira da família arecáceas que cresce
a ele que uma cobra grande vivia debaixo da em áreas alagadiças, abundante na região de
rua e, enquanto ela não saísse dali, não haveria várzea. O miriti é de grande importância
como resolver o problema. na manutenção de água pura e permanente
A cobra-grande é um ser mitológico da em locais alagadiços. De caule com cerca 37
Amazônia1. Ao rastejar pela terra, os sulcos
de 50 centímetros de diâmetro, a palmeira
que deixa à sua passagem transformam-se em
pode atingir 30 metros de altura e, na
igarapés. Também conhecida como boiúna ou
fase adulta, possui de vinte a trinta folhas
cobra-norato, ela habita a parte mais funda
abertas, dispostas em forma de leque. Trata-
do rio e assusta os pescadores com seus olhos,
se de uma palmeira de grande relevância
que iluminam como tochas. Ela talvez tenha Girandeiro com artesanato
sociocultural na vida de muitas populações de miriti, na romaria fluvial
se estendido até Passo Fundo, no Rio Grande do Círio de Nazaré,
tradicionais e indígenas, podendo ser Belém (PA), 2004
do Sul, ou talvez haja uma outra, que prescin- Foto: Francisco Moreira da
utilizada para usos culinários e artesanais. Costa/Acervo CNFCP/Iphan.
de das águas de rios e se aloje nas entranhas
da terra.
2. A interlocução do CNFCP com os artesãos de Abaetetuba é de
A exposição de longa duração do Centro longa data. Foi uma das comunidades artesanais contempladas no
Programa de Apoio a Comunidades Artesanais – Paca (Nota 1).
Nacional de Folclore e Cultura Popular – Teve a oportunidade de participar de duas exposições temporárias
no Programa Sala do Artista Popular – SAP (Nota 3), a SAP
CNFCP, inaugurada em 2016, exibe uma 37 – O brinquedo no Círio de Belém, em 1987, e a SAP 102 – O
brinquedo que vem do Norte, em 2002, e constitui um dos 65
polos artesanais do Programa de Promoção do Artesanato de
1. Cf. Tesauro de Folclore e Cultura Popular, do CNFCP. Tradição Cultural – Promoart (Nota 4).
Na confecção dos brinquedos, a polpa de do CNFCP, por peças contemporâneas
No Nor te, do Nor te, do Brasil

miriti é cortada com perícia, esculpindo confeccionadas por comunidades tradicionais,


a c i o n a l

a peça, que em seguida é lixada, selada e populações ribeirinhas e quilombolas. Fizeram,


pintada. As sobras do miriti utilizado no então, parte da exposição as miniaturas da
fauna amazônica confeccionadas em balata
N

entalhe podem ser reutilizadas como adubo


r t í s t i c o

ou ainda na produção de papel reciclado. por artesãos de Monte Alegre, situada na


Da polpa macia do miriti se faziam ex- margem esquerda do rio Amazonas, a dois
Elisabeth Costa
A

votos para os romeiros que tomavam as ruas dias e meio de barco desde Belém. Alguns dos
e

de Belém por ocasião da Celebração do Círio precursores desse artesanato em Monte Alegre
i s t ó r i c o

de Nossa Senhora de Nazaré, no segundo mudaram-se para Belém e para Santarém,


domingo do mês de outubro. Antes restrito onde continuam produzindo suas peças e
H

repassam a atividade para filhos, sobrinhos e


a t r i m ô n i o

ao ciclo festivo, o repertório de brinquedos


de miriti se ampliou: pássaros, botos, parentes4. Dos anos 1930 a 1970, a balata,
jacarés, peixes, cobras, pombos, tartarugas, a seiva da balateira (Manilkara bidentata),
P

além de casas, barcos e cenas cotidianas, árvore da família das sapotáceas que atinge de
d o

encantam visitantes, turistas e colecionadores. 30 a 40 metros de altura, com o tronco de 6


e v i s t a

O homem do brinquedo ou girandeiro metros de circunferência, era matéria-prima


R

perambula pelas ruas da cidade, exibindo os extremamente valorizada para fins industriais
brinquedos coloridos em girândolas, suporte no mercado internacional.
de madeira em forma de cruz. Os balateiros faziam expedições às florestas
Das ruas de Belém, as girândolas para, por meio de cortes em forma de espinha
viajaram bem mais para o Norte e para o de peixe ao longo do tronco da balateira,
Sul. Uma delas, encomendada aos artesãos extrair a seiva ou látex, uma goma elástica
de Abaetetuba, foi exibida na exposição e dúctil. Ali permaneciam no inverno (de
38
sobre a Amazônia realizada, em 2017, pelo janeiro a junho), quando o acesso aos balatais
Museu de Antropologia da University of era possível e a árvore produzia mais látex.
British Columbia, em Vancouver, no Canadá. Com o esvaziamento comercial da destinação
Outras, em miniatura, foram entregues, na à indústria, novos usos e sentidos foram
cerimônia de premiação realizada no Rio incorporados ao aproveitamento de porções
de Janeiro, a vencedores do Prêmio Manuel de balata cozidas em banho-maria, lavadas
Diégues Junior3, conferido pelo CNFCP. em água fria corrente e amassadas com os pés
A exposição em Vancouver estava centrada até se obter matéria elástica e maleável, da
nas coleções da bacia amazônica do próprio qual surgem miniaturas com temas da fauna

museu e foi complementada, com mediação local (macacos, peixes-boi, tatus, cobras,
antas, araras, jabutis), figuras humanas (como
3. Criado em 1997, no âmbito da Mostra Internacional de Filmes catador de açaí, vaqueiro, tocador de carimbó,
Etnográficos, o Prêmio Manuel Diégues Junior confere prêmios
nas seguintes categorias: a) importância do tema para a área; b)
desenvolvimento da pesquisa/roteiro; c) concepção/realização de 4. Essa comunidade artesanal constitui um dos polos do
documentários sobre folclore e cultura popular, selecionados por Promoart e foi contemplada pela exposição temporária SAP 131
uma comissão julgadora dentre aqueles inscritos para a mostra. – Balata: Amazônia em miniatura, realizada em 2006.
No Nor te, do Nor te, do Brasil
Na c i o n a l
r t í s t i c o

Elisabeth Costa
A
H
P
Re
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
d o
e v i s t a
39

Pão (Pedro Rodrigues


Ferreira), na extração
da balata,
Monte Alegre (PA), 2005
Foto: Francisco Moreira da
Costa/Acervo CNFCP/Iphan.
pescador, índio) e representações de símbolos arqueológicas8, como a índia pé na boca e o
No Nor te, do Nor te, do Brasil

mágicos, como uiara5, jurupari6, muiraquitã e, konduri, uma espécie de urna.


a c i o n a l

mais uma vez, a cobra-grande. Na história dos quilombolas de


O muiraquitã, um amuleto de sorte, Oriximiná, o extrativismo da castanha-do-
pará faz parte da rotina e da subsistência
N

geralmente de cor verde, em forma de


r t í s t i c o

sapo, mas às vezes em forma de cobra e das famílias desde a constituição das
tartaruga, faz igualmente parte do repertório comunidades. A mesma exposição sobre
Elisabeth Costa
A

a Amazônia, no Museu de Antropologia


das peças em cerâmica, em Oriximiná, no
e

da University of Columbia, exibiu peças


i s t ó r i c o

oeste do estado do Pará, nas margens dos


artesanais confeccionadas com o ouriço da
rios Trombetas e Erepecuru. As peças são
castanha. Alguns castanhais se encontram
H

confeccionadas por populações quilombolas,


afastados dos locais de residência e exigem um
a t r i m ô n i o

organizadas em 35 comunidades ribeirinhas,


grande deslocamento. Os homens acampam
ligadas por uma extensa rede de parentesco7.
por longos períodos na mata para coleta,
Em geral, os artesãos trabalham com o barro
P

transporte, quebra dos ouriços e seleção das


d o

obtido numa olaria de Oriximiná, pois só castanhas, que são transportadas em paneiros
e v i s t a

conseguem retirar os vários tipos – o amarelo, e carregadas nas costas por longas distâncias
o preto, o branco e o cor de abacate – dos pela floresta. Frutos da castanheira-do-pará
R

igarapés e das cabeceiras de rios quando (Bertholletia excelsa), árvore que pode atingir
a maré está baixa, podendo então fazer a até 50 metros de altura, com um tronco de 4
mistura desejada de barros. metros de circunferência, os ouriços chegam
A essa mistura é adicionada a casca do a medir de 8 a 15 centímetros de diâmetro e
caripé, árvore da flora amazônica da família pesam, em média, quase um quilo. Quando
das licânias (Licania scraba), que é socada amadurecem (de dezembro a março), eles
40
e queimada. As cinzas da casca do caripé despencam do alto das árvores, sendo
são utilizadas secularmente por populações apanhados no chão. De casca dura, lenhosa,
indígenas e ribeirinhas para avolumar e dar de coloração castanho-escuro e superfície
resistência às peças em cerâmica. Tigelas, espessa, resultam em interessantes peças
travessas, panelas, bilhas e vasos se somam artesanais. O ideal é que os ouriços fiquem
secando pelo período de um ano, para que
a miniaturas da fauna e réplicas de peças
seja mais fácil retirar a casca que os cobre
5. Uiara, iara ou mãe d’água é um ser mitológico metade mulher, sem danificá-los. Depois de retirada a casca,
metade peixe que enfeitiça os homens, atraindo-os para o fundo há também uma entrecasca que é preciso
das águas.

6. O jurupari é um ser mitológico da região amazônica, filho


eliminar. Após a limpeza, é feito um corte,
de uma índia virgem, que veio mandado pelo sol para reformar seguido por um processo de lixamento, em
os costumes da terra, restituindo aos homens o poder, que se
encontrava em mãos das mulheres. É a representação do poder
masculino, legislador, evidenciando o caráter de dominação
patriarcal de algumas tribos amazônicas. 8. As réplicas de peças arqueológicas são resultado do Projeto
Educação Ambiental e Patrimonial – Peap, desenvolvido em
7. Exposição temporária no Programa Sala do Artista Popular parceria pelo Museu Paraense Emílio Goeldi e pela Mineração
SAP 191 – Do barro e da castanha: as artes dos quilombolas de Rio do Norte, a partir da descoberta de sítios arqueológicos na
Oriximiná, realizada em 2018. região do Porto Trombetas.
função do tipo de objeto desejado: caixinhas, cinquenta artesãos, não estão ligadas por

No Nor te, do Nor te, do Brasil


pulseiras, colares, anéis, porta-envelopes ou transporte público. Situadas nas margens

a c i o n a l
porta-guardanapos, entre outros. do rio Tapajós, distam cerca de sete horas
Os artesãos aliaram seus conhecimentos de barco, partindo de Santarém. Não há
transporte todos os dias, o que não só

N
tradicionais da lida com a castanha, cipós

r t í s t i c o
e sementes nativas à criação de peças dificulta o envio das peças aos centros
artesanais com matérias-primas sustentáveis urbanos para comercialização como também

Elisabeth Costa
A
da floresta. Contudo, especialmente prejudica a comunicação entre os artesãos.

e
devido às dificuldades encontradas para a A região não dispõe de luz elétrica e não

i s t ó r i c o
comercialização, a continuidade da produção há serviço telefônico. Uma encomenda que
foi escasseando e são poucos os que ainda se chegue ao ponto de comercialização mantido

H
na cidade de Santarém pode levar de três

a t r i m ô n i o
dedicam ao artesanato do ouriço da castanha.
A fauna amazônica também inspira a quatro dias para alcançar os artesãos. E
os bancos em madeira produzidos por o transporte para a entrega das peças está

P
cinco comunidades artesanais às margens sujeito aos mesmos entraves.

d o
dos rios Tapajós e Arapiuns . Os artesãos
9 Para além da produção de conhecimento

e v i s t a
aproveitam árvores caídas, encontradas sobre o bem cultural, fica evidente que

R
nas matas da Reserva Extrativista Tapajós- seu reconhecimento e valorização muitas
Arapiuns, situada entre Aveiros e Santarém. vezes extrapolam o âmbito cultural, na
As toras de madeiras mortas são entalhadas, medida em que o bem se insere em outros
produzindo móveis rústicos que preservam circuitos, seja no comércio, na produção
a textura e as ranhuras das madeiras. Os agrícola, no controle sanitário ou nas
bancos de madeira com assento em formato medidas de proteção ao meio ambiente, que
de tartaruga, martim-pescador, paca, cutia, costumam abarcar áreas de atuação de outras
41
jacaré, macaco, preguiça e outros animais instituições, cada qual submetida a uma

da fauna amazônica, além do boto10, já legislação específica.


A capacidade produtiva das comunidades
fizeram parte do catálogo de produtos de
artesanais varia de acordo com o tipo de pro-
uma cadeia de lojas na Região Sudeste do
dução artesanal, as matérias-primas utilizadas,
país. As encomendadas foram descontinuadas
as formas de uso e de acesso a essas matérias-
depois de dois atrasos na entrega das peças,
-primas. Algumas produções são sazonais,
contrariando os padrões de atendimento ao
dependendo de condições climáticas ou de
consumidor que a loja adota. No entanto,
épocas oportunas para extração e aproveita-
essas comunidades, que reúnem cerca de
mento de recursos naturais de modo susten-
9. Uma das comunidades artesanais do Paca, um dos polos do
tável. Nesse sentido, o incremento da capaci-
Promoart, com exposição temporária no Programa Sala do Artista dade produtiva esbarra não só no respeito ao
Popular, SAP 125 – Forma e imaginário da Amazônia, realizada
em 2005. tempo ou ritmo de produção, como também
10. Ser mitológico da Amazônia que assume a forma ora de um na disponibilidade de recursos naturais, de-
boto, ora de um moço bonito que seduz as mulheres e a quem é
atribuída a paternidade dos filhos de pais desconhecidos. mandando planos de manejo e de cultivo.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

42
Elisabeth Costa No Nor te, do Nor te, do Brasil
As onze associações envolvidas no do capim dourado foi regulamentada,

No Nor te, do Nor te, do Brasil


artesanato em capim dourado na região limitando-se ao período de 20 de setembro a

a c i o n a l
do Jalapão11, no estado do Tocantins, se 30 de novembro, desde que as hastes estejam
distribuem por diversos municípios situados completamente secas e/ou maduras. É
a grande distância uns dos outros. O acesso exigido também que a coleta ocorra de forma

Nr t í s t i c o
a esses municípios é difícil, por estradas não seletiva ou falhada, isto é, deixando-se alguns
pavimentadas, só transitáveis por veículos exemplares intocados, numa relação de cinco

Elisabeth Costa
A
de tração nas quatro rodas. Essas localidades para um. As flores, onde se armazenam as

e
também não são servidas por transporte sementes, devem ser retiradas e lançadas ao

i s t ó r i c o
regular. A comunicação entre os artesãos é solo, no mesmo local.
bastante prejudicada e a mobilização social O conhecimento das comunidades

H
em torno de um plano de trabalho comum sobre as práticas de manejo do capim

a t r i m ô n i o
fica aquém do necessário. dourado contou com efetiva colaboração
A região do Jalapão concentra a maior dos órgãos responsáveis pela preservação

P
reserva de cerrado do país, onde floresce ambiental e há marcos legais adequados

d o
a planta nativa capim dourado ou capim para a preservação dessa matéria-prima. A

e v i s t a
de vereda, uma sempre viva da família das preocupação dos artesãos, hoje, diz mais
eriocauláceas (Syngonanthus nitens). O tom respeito à fiscalização, pois alegam que a

R
dourado empresta brilho e textura singulares matéria-prima é transportada para outras
às peças de uso doméstico e acessórios regiões onde a confecção de peças em capim
femininos: jarros, potes, descansos de pratos, dourado é submetida a processos semi-
bolsas, chapéus, brincos, pulseiras. A técnica industrializados, em dissonância com o modo
consiste na costura de hastes do capim de fazer cuja reputação lhe proporcionou o
dourado com linha feita a partir da seda de certificado de Indicação Geográfica, conferido
buriti (Mauritia flexuosa), palmeira que cresce pelo Instituto Nacional de Propriedade 43

nas veredas e matas ciliares. De acordo com Industrial – Inpi, em 2011, que o distingue
os relatos, o uso de capim dourado é uma econômica e simbolicamente como um valor
herança indígena do povo Xerente, repassada, de procedência da região do Jalapão.
há mais de 80 anos, aos moradores da região. Os saberes ancestrais da atividade extra-
A legislação sobre o manejo do capim tiva e dos padrões ornamentais por parte das
dourado, na região do Jalapão, decorreu de populações que ocupam a vasta região do
demandas das próprias comunidades, que Norte do Brasil foram assimilados por famí-
pediram apoio aos órgãos ambientais do lias e coletividades na confecção de objetos
estado com o intuito de evitar a retirada do em que se reconhecem simbolicamente as
capim in natura e garantir a sustentabilidade trocas culturais, o conhecimento compartilha-
das espécies nativas. A atividade de coleta do e o entrelaçamento de tradições diversas. Maria de Nazaré
dos Santos Almeida
trabalhando com o
Apesar dessa aglutinação, ou justamente por ouriço da castanha na
comunidade do Juari,
causa dela, o valor agregado aos bens culturais Oriximiná (PA), 2005
11. A SAP 145 – Capim dourado: costuras e trançados do Jalapão, Foto: Raquel Dias Teixeira/
realizada em 2008, contemplou este outro polo Promoart.
mescla o local e o global de tal modo que Acervo CNFCP/Iphan.
No Nor te, do Nor te, do Brasil
a c i o n a l
N
r t í s t i c o

Elisabeth Costa
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

44 uma longa história de significados sedimenta- se dedica ao reaproveitamento de madeira


dos se converte em recurso efetivo e eficaz de morta, transformando o que seria descartado
valorização e preservação. em peças entalhadas, com técnicas de marche-
O município de Novo Airão, 180 quilôme- taria. O outro trabalha com fibras de arumã.
tros a noroeste de Manaus, está localizado na Depois de tingido com resinas da floresta, o
margem direita do rio Negro, em frente a Ana- arumã é trançado, confeccionando peças de-
vilhanas, um dos maiores arquipélagos fluviais corativas e utilitárias.
Zeleni Ribeiro Barbosa
da Silva costurando
do mundo, formado por cerca de quatrocentas A tradição do entalhe em madeira com
uma mandala de capim
dourado com seda do olho
ilhas entremeadas por lagos, canais e pelos detalhes da fauna amazônica aproveita ma-
do buriti, no povoado de
Mumbuca, município de
igarapés das margens do rio Negro. deiras mortas, refugos de serrarias, troncos
Mateiros, no
Jalapão (TO), 2008
Dois núcleos de artesanato12 trabalham ocados ou galhos de árvores encontrados
Foto: Francisco Moreira da
Costa/Acervo CNFCP/Iphan. com matéria-prima de extração vegetal. Um nos arredores para esculpir tatus, tartarugas,
jabutis, capivaras, tucanos, araras, botos e
12. A exposição temporária SAP 157 – Trançados e entalhes de peixes, como pirarucu, tucunaré, aruanã.
Novo Airão, realizada em 2010, contemplou mais esse polo do
Promoart.
Merece destaque o sapo cantor, feito em mar-
chetaria, cujos entalhes em relevo nas costas maduros devem ser cortados pela metade.

No Nor te, do Nor te, do Brasil


emitem sons suaves ao serem friccionados por O período indicado no plano de manejo

a c i o n a l
uma pequena haste de madeira. para a reposição do arumã é de 3 anos e
A dureza e densidade da madeira por isso, na coleta seguinte, procuram-se
definem o tipo de peça a ser esculpida, pois touceiras em outros igarapés, deixando os

Nr t í s t i c o
interferem no processo de acabamento. As já colhidos em descanso. O cipó também é
madeiras mais duras permitem um entalhe manejado. Retira-se o maduro, somente na

Elisabeth Costa
A
mais fino, enquanto que as mais macias não quantidade necessária. O cipó verde, depois

e
proporcionam tamanha precisão. de trabalhado, muda de coloração e fica

i s t ó r i c o
Já na confecção de cestarias e esteiras, no arroxeado; o maduro, não.
outro núcleo artesanal em Novo Airão, estão Depois de colhidos, os talos de arumã,

H
presentes os saberes dos povos indígenas amarrados em feixes, ficam submersos em

a t r i m ô n i o
no trançado da fibra obtida da tala de água, trocada de dois em dois dias, para
arumã. O arumã (Ischnosiphon polyphyllus) então serem raspados e preparados de acordo

P
é uma planta herbácea que cresce em com a cor que vão receber. As tinturas e

d o
locais alagados como as matas de igapó. resinas vegetais para fixação da cor nas fibras

e v i s t a
As touceiras são compostas por talos em são retiradas de árvores e arbustos da flora
diferentes estágios de vida e sua extração local. O verniz da goiaba-de-anta (Bellucia

R
segue o plano de manejo ambiental em áreas dichotoma) ajuda a fixar a tinta.
delimitadas pelas Unidades de Conservação. Após a pintura, o talo é cortado em tiras,
É preciso primeiro limpar o igarapé, que são deixadas para secar ao sol por cerca
retirando troncos e galhos caídos para liberar de duas horas. A largura da tira depende
a passagem da canoa. A coleta ocorre no da peça a ser produzida: cesta, jarro,
período da seca, de agosto a abril, quando balaio, peneira, abano, bolsa, chapéu ou
os igapós não estão mais alagados. Os talos jogo americano, entre outras. A peça mais 45

Sapo cururu em madeira,


Novo Airão (AM). Coleção
da Sala do Artista Popular
do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular,
Rio de Janeiro (RJ)
Foto: Ana Luiza de Abreu/
Acervo CNFCP/Iphan, 2008.
característica é o tupé, uma esteira trançada e o maracá, com técnicas de incisão para
No Nor te, do Nor te, do Brasil

com fibras de diferentes tonalidades, os grafismos internos e de excisão para os


a c i o n a l

formando desenhos que recebem nomes grafismos externos. A região é cortada por
como caminho de bicho, caracol, escama de igarapés e pelos rios Paracuri e Livramento.
buriti, malha de jiboia. As jazidas dos barreiros são encontradas nos
N
r t í s t i c o

O uso de recursos respeitando os leitos e nas margens desses rios e é pelas


ciclos de renovação da natureza também águas que se faz o transporte do barro, em
Elisabeth Costa
A

se encontra na confecção de trançados canoas. É também na região que se extraem


e

e cestaria, no município de Santarém, os pigmentos minerais, de coloração branca e


i s t ó r i c o

à margem direita do rio Arapiuns. Os vermelha, empregados na pintura das peças.


artesãos das coletividades de Vila Coroca, Os barreirenses se embrenham em áreas
H

São Miguel, Nova Sociedade e Tucumã 13


de difícil acesso e se dedicam à extração,
a t r i m ô n i o

dominam o manejo e aproveitamento da beneficiamento e distribuição do barro para


espinhosa palmeira tucumã (Astrocaryum os artesãos. Detêm um amplo conhecimento
P

tucuma), que atinge até 15 metros de altura. da região e da fauna e flora locais, além de um
d o

Das folhas se retira a fibra para a confecção saber relevante que lhes permite distinguir os
e v i s t a

de cestos, chapéus, abanos. diferentes tipos de barro apropriados para a


R

O tingimento é feito com plantas da flora confecção das peças: o barro seco e o barro
amazônica maceradas e fervidas em água, na “liguento”. A mistura dos dois resulta em
qual se mergulha o ramo de fibra da palmeira. excelente material para a modelagem.
O preto, do jenipapo, fruto do jenipapeiro A variada produção de vasos, urnas,
(Genipa americana), árvore que chega a atin- alguidares, cofres em forma de tartaruga e
gir 20 metros de altura; do piquiá (Caryocar galos, jogos de café e de feijoada, carrancas,
villosum), fruto da árvore de mesmo nome, estatuetas e assim por diante, materializa o
46
um matiz do tom natural da fibra; o amarelo diálogo entre tradições diversas e inovações
intenso resulta da mangarataia (Curcuma recentes. No estilo marajoara, característico
longa), também conhecida como açafrão da da quarta fase arqueológica da Ilha de
terra; um tom marrom avermelhado, do ar- Marajó, a cerâmica é pintada nas cores
busto crajiru (Arrabidea chica); da capiranga, preta, vermelha e branca, com relevos e
também conhecida como pimenta dedo-de- incisões, geralmente reproduzindo animais
-moça, obtém-se a cor lilás. com aspecto humano. O repertório de peças
O estilo da produção de cerâmica no inclui estatuetas, pratos, jarros, tigelas, urnas
Casa feita em trançado de
distrito de Icoaraci , a 18 quilômetros de
14 funerárias e cobertas pudicas triangulares ou
babaçu, na região do rio
Arapiuns (PA), 2004 Belém, consiste na junção de vários outros, tangas. A decoração busca representações da
Foto: Francisco Moreira da
Costa/Acervo CNFCP/Iphan. principalmente o marajoara, o tapajônico fauna amazônica, além de figuras híbridas
de homem e animal. No estilo tapajônico,
13. Polo Promoart, com a exposição temporária SAP 121 – característico dos grupos indígenas da região
Trançados de Arapiuns, realizada em 2005.
do rio Tapajós, as peças exibem representações
14. Mais um polo do Promoart, além da exposição temporária
SAP 115 – Icoaraci: cerâmica do Pará, realizada em 2003. da fauna amazônica, figuras nuas, de fartos
seios e, mais uma vez, muiraquitãs. A tradição dos maiores núcleos produtores de cuias no
No Nor te, do Nor te, do Brasil

maracá, cerâmica arqueológica do vale do estado. Diversas comunidades ribeirinhas,


a c i o n a l

rio Maracá, no estado do Amapá, inspira especialmente da várzea do Amazonas,


jarros e urnas em forma de efígie, pintados dedicam-se a esse artesanato. Cinco delas,
em amarelo, vermelho e cinza, com desenhos
N

situadas na região do Aritapera, distante 5


r t í s t i c o

geométricos e figuras antropomorfas e horas de barco, partindo de Santarém, foram


zoomorfas. Mais recentemente, os artesãos selecionadas para implantação do Projeto
Elisabeth Costa
A

desenvolveram um estilo icoaraciense próprio, Cuias de Santarém15 em função de sua


e

denominado cerâmica do Paracuri, decorado


i s t ó r i c o

expressiva produção: o Centro do Aritapera,


com motivos florais, montanhas, sol e lua. Enseada do Aritapera, Surubim-Açu, Cabeça
O misto de tradições e inovações emerge d’ Onça e Carapanatuba.
H

da dinâmica das relações sociais, evocando


a t r i m ô n i o

O aproveitamento dos frutos da cuieira


modos de vida e visões de mundo que se (Crescentia cujete), árvore que atinge até
enraízam no tempo e dialogam até hoje. 12 metros de altura, envolve uma série
P

Para muitas pessoas, uma continuidade de processos complexos que requerem o


d o

histórica fundamentada na preservação da


e v i s t a

domínio de técnicas de matriz indígena, as


tradição coibiria inovações e transformações,
quais têm sido preservadas particularmente
R

exigindo a permanência de formas e


nas comunidades tradicionais e têm sido
sentidos. No entanto, a noção de referência
transmitidas de geração a geração.
cultural reconhece que a tradição é o que
O processo se inicia com a retirada dos
permanece ao longo do tempo, integrando
frutos da cuieira. Depois de partidos ao meio,
transformações e adaptações para continuar
com auxílio de uma pequena serra, são postos
fazendo sentido para os grupos
para amolecer dentro d’água, facilitando a
sociais que a praticam.
48 raspagem da casca com escamas do pirarucu,
Tais referências decorrem
para deixar a cuia bem lisa, tanto por dentro
de processos históricos de
como por fora. As peças são lavadas, secas
relacionamento com o meio
ao sol e, depois, tingidas com o cumatê,
ambiente, do manejo de
uma tintura natural, obtida da casca da
recursos naturais e das práticas
árvore conhecida como cumatezeiro (Myrcia
de sociabilidade e de repasse
atramentifera), rica em tanino, encontrada
de conhecimento.
nas matas da região. Para extrair a tintura,
A confecção de cuias no
baixo Amazonas alia técnicas põe-se a casca de molho em água, levada
indígenas de pigmentação e
15. No âmbito do Programa Artesanato Solidário, o Projeto
padrões europeus e tapajônicos Cuias de Santarém, realizado de 2001 a 2003, tinha por objetivo
promover a valorização do artesanato tradicional de cuias do Pará,
de ornamentação. O município criar melhores condições para sua produção e comercialização.
de Santarém, situado na região No âmbito do Projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular
(Nota 2), entre 2003 e 2006, foi realizado o inventário desse bem
oeste do Pará, no encontro dos cultural. Em 2009, o núcleo artesanal do Aritapera foi integrado ao
Promoart e, em 2015, o Modo de Fazer Cuias no Baixo Amazonas
rios Tapajós e Amazonas, é um foi registrado pelo Iphan como patrimônio cultural do Brasil.
No Nor te, do Nor te, do Brasil
Na c i o n a l
r t í s t i c o

Elisabeth Costa
A
H
P
Re
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
d o
e v i s t a
para aquecer ao sol. A água tingida é passada, obtidas por meio da incisão de flores, estrelas, 49

diversas vezes, em ambos os lados das cuias bandeiras e rosáceas. A partir de pesquisas em
secas, com o auxílio de um pincel feito de acervos de museus nacionais e internacionais,
penas de galinha amarradas. O processo é foi possível recompor um rico repertório
repetido até que a cuia adquira uma coloração iconográfico, compilado em uma apostila
vermelho escura. Por fim, as peças são levadas com reproduções de desenhos tradicionais
a um estrado chamado cama ou puçanga, e de padrões gráficos de origem europeia e
Barreiro em
para o preparo final. As cuias são, enfim, tapajônica. A arte de burilar a casca do fruto Icoaraci (PA), 2003
Foto: Francisco Moreira da
Costa/Acervo CNFCP/Iphan.
pintadas ou ornamentadas com incisos. da cuieira, com desenhos, pinturas, riscos
Na época da implantação do Projeto e incisões, gera um valor agregado a mais,
Urna marajorara de
Cuias de Santarém, eram produzidas, pois também incorpora sentidos e valores cerâmica, Icoaraci (PA).
Exposição Icoaraci:
primordialmente, cuias pretas com pouca ou associados a um modo de vida e a uma visão cerâmica do Pará,
realizada no Museu do
nenhuma decoração, vendidas a preços baixos de mundo. Os grafismos que ornamentam Folclore Edison Carneiro,
2003/2004,
para atravessadores, muito embora as artesãs as cuias do baixo Amazonas são, assim, Rio de Janeiro (RJ)
Foto: Francisco Moreira da
Costa/Acervo CNFCP/
se lembrassem de antigas ornamentações referência cultural daquela região. Iphan, 2005.
No Nor te, do Nor te, do Brasil
a c i o n a l
N
r t í s t i c o

Elisabeth Costa
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

As cuias fazem parte do cotidiano de que atravessa vários estados da Região Norte.
diversas maneiras. Transformam-se em jarras, As variedades de sua composição indicam
moringas, servem para medir, servir ou dosar as redes de trocas econômicas e simbólicas
farinhas, líquidos e sementes. Dentre esses que agregaram contribuições ameríndias e
usos cotidianos, a cuia constitui o recipiente coloniais, locais e migrantes, rurais e urbanas.
ideal para saborear o tacacá . 16
A goma e o tucupi, ingredientes do taca-
50 O consumo do tacacá, um dos mais cá, são obtidos por meio do processamento
vinculados à identidade paraense, se faz da mandioca brava amarela, que é descas-
dentro de um ritual que inclui seu preparo cada, lavada e ralada. A massa resultante é
e montagem, a forma como é servido, o diluída em água e, em seguida, fortemente
momento do dia em que é saboreado e os comprimida, para se extrair a parte líquida,
encontros sociais aliados a essa prática. Os conhecida como manipueira. A manipueira é
saberes envolvidos nos modos de preparar, posta para descansar de um dia para o outro,
servir e consumir vêm sendo transmitidos de quando ela fermenta naturalmente, definindo
geração a geração e, guardadas as variações o grau de acidez, e separa a massa do tucupi
Vendedora de Tacacá.
regionais, os modos de cultivo, preparo e da água e do amido, que decanta. A massa do
Óleo sobre tela de
Antonieta Santos Feio, 1937 consumo têm se mantido ao longo do tempo tucupi é então fervida para a neutralização de
Acervo: Museu de Arte
de Belém. e ao longo de uma grande extensão territorial toxinas e, durante esse cozimento, são adicio-
nados sal, chicória e alfavaca como temperos.
16. O inventário do Ofício das Tacacazeiras foi desenvolvido no O tucupi propriamente dito, resultante desse
âmbito do Projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular,
em 2003. processo, é o principal ingrediente do tacacá
e sua composição – mais grosso ou mais ralo, É importante enfatizar a relação

No Nor te, do Nor te, do Brasil


mais ou menos ácido – confere um sabor pe- entre a biodiversidade da mandioca e os

a c i o n a l
culiar como marca distintiva. Para completar modos artesanais de preparo da farinha. A
o alimento, acrescentam-se camarão seco ou multiplicidade de sabores, texturas e cores
de farinha se deve às diferentes variedades

N
peixe, temperos e o jambu (Spilanthes oleracea

r t í s t i c o
L.), também conhecido como agrião-do-pará, produzidas, que, por sua vez, foram
uma planta herbácea de flores amareladas, garantidas graças à permanência das técnicas

Elisabeth Costa
A
encontrada nas várzeas de igarapés ou em de cultivo e dos modos de fazer tradicionais.

e
locais de grande umidade. Tem propriedades Em decorrência do inventário da

i s t ó r i c o
analgésicas, que provocam um leve adormeci- farinha, a exposição Mandioca – saberes
mento na boca, diuréticas e digestivas. e sabores da terra18 buscou mostrar, em

H
linguagem museográfica, que o cultivo da

a t r i m ô n i o
O tacacá integra o sistema culinário
da mandioca, em torno do qual se articula mandioca e sua transformação em alimento
um conjunto de práticas e representações compreendem um conjunto de práticas,

P
simbólicas que foi objeto de inventário no relações sociais, cosmologias e representações

d o
âmbito do Projeto Celebrações e Saberes da simbólicas significativas no modo de vida

e v i s t a
Cultura Popular. O campo da pesquisa para das comunidades produtoras. Na mesma

R
esse inventário estava inicialmente restrito ocasião19, o seminário Museus, Patrimônio
ao Pará, onde poderiam ser encontrados e Saberes Tradicionais reuniu pesquisadores
todos os elementos que compõem o de vários campos de estudo, que discutiram,
chamado complexo da mandioca e da a partir de diferentes perspectivas, a
farinha, que reúne desde a seleção das constituição de narrativas relacionadas à
múltiplas variedades, as técnicas de cultivo, alimentação como referência cultural.
os utensílios criados para sua produção, a Três outras exposições resultaram do
51
diversidade dos modos de prepará-la, os interesse despertado pelos festejos do Círio
diferentes circuitos de comercialização, os de Nossa Senhora de Nazaré e do complexo
usos culinários e os modos de consumo cultural do boi. A exposição Círio foi reali-
até os saberes, práticas, relações sociais e zada na Galeria Mestre Vitalino/Museu de
representações simbólicas envolvidos. Folclore Edison Carneiro – MFEC, no pe-
No entanto, à medida que o trabalho de ríodo de outubro de 2005 a janeiro de 2006.
campo foi avançando, o universo da pesquisa A exposição Festa na floresta: o boi-bumbá de

foi ampliado. Para apreender a diversidade Parintins, apresentada na mesma galeria em


dezembro de 2001, depois de ter itinerado
de modos de fazer, tecnologias utilizadas,
por três unidades do Sesc no estado do Rio
diferentes usos culinários, decidiu-se
de Janeiro, entre 2000 e 2001. Já a exposi-
investigar dois estados em cada região17.

18. Exposição realizada na Galeria Mestre Vitalino, no período de


17. Selecionaram-se no Norte, além do Pará, o estado do Acre; no maio a julho de 2006.
sul, Paraná e Santa Catarina; no Nordeste, Bahia e Pernambuco;
no Centro-Oeste, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e, no 19. Seminário realizado no auditório do CNFCP, em 25 e 26 de
Sudeste, Rio de Janeiro e Minas Gerais. maio de 2006.
ção Ritual amazônico ocorreu no prédio da tadas para cumprimentar o público. Diabos e
No Nor te, do Nor te, do Brasil

Organização das Nações Unidas – ONU, em buchudos, cobertos por vestes longas e capas,
a c i o n a l

Nova York, no período de 17 a 28 de abril de fazem parte dos assombrados, assustando e


2000, levando fotos de Loris Machado, com zombando do público. A exposição O reinado
N

base em pesquisa de Maria Laura Cavalcanti 20


do riso, realizada na Galeria Mestre Vitalino,
r t í s t i c o

sobre o boi-bumbá de Parintins. no período de agosto a novembro de 2012,


As celebrações relacionadas ao complexo exibiu as peças Boi, Cabeçudo e Pierrô, do
Elisabeth Costa
A

do boi que acontecem em diversas regiões do acervo do MFEC, confeccionadas por Zé do


e

Lody (José Chagas Zeferim), em São Caetano


i s t ó r i c o

país estão longe de ser homogêneas. Talvez


uma das mais peculiares se encontre no mu- de Odivelas, entre 1971 e 1980.
nicípio de São Caetano de Odivelas, banhado Dentre as poucas comunidades indígenas
H
a t r i m ô n i o

pelos rios Mojuim e Barreto, que deságuam contempladas nos projetos e programas
no Atlântico, na região do Salgado Paraense. do CNFCP21, o Programa Sala do Artista
Ao final da brincadeira, o boi Tinga, o mais Popular realizou três exposições temporárias
P

antigo de São Caetano de Odivelas, não sobre os saberes e fazeres dos Huni Kuin, dos
d o

morre, mas foge pelas ruas da cidade, per- Ashaninka e dos Ticuna.
e v i s t a

seguido pelos brincantes, até desaparecer da Os Huni Kuin vivem na Amazônia, no


R

vista de todos e reaparecer, incólume, no ano estado do Acre, e são mais conhecidos pela
seguinte. Além do mais, ele é vestido por dois designação de Kaxinawá, dada pelos brancos.
brincantes que lhe emprestam quatro pernas, Para os Huni Kuin, kene22 significa desenho,
o que também o diferencia dos bois mais co- resultado dos traços inspirados nos desenhos
nhecidos de São Luís (MA) e Parintins (AM), do corpo da cobra jiboia. Um de seus mitos
com apenas duas pernas. De acordo com a explica que os Huni kuin vieram da jiboia
opinião local, “boi de duas pernas é galinha”. encantada Yube, uma mulher da tribo que
52
O boi Tinga tampouco é acompanhado pelos se transformou em cobra por ocasião de
personagens mais conhecidos. Sai em cortejo um dilúvio. O kene é uma expressão gráfica
pela cidade junto a mascarados – pierrôs, exclusiva das mulheres. Foram registrados
cabeçudos e buchudos inteiramente cobertos 25 kene, em conformidade com o corpo da
por fantasias coloridas. O cabeçudo exprime jiboia adulta que mede 25 palmos e exibe
o apelo cômico das formas descomunais. Seu em cada palmo um desenho diferente. Esses
visual grotesco é composto pela cabeça des- kene primordiais se casam entre si e formam
proporcional e pelos braços falsos, que pen- outros, como uma família. Como tudo
dem da cintura do brincante. No encontro de na natureza tem um espírito, um yuxim,
dois ou mais cabeçudos, uma briga é simula- quando uma mulher trabalha com um kene
da, na qual batem as cabeças, em encenações
21. O Promoart contemplou cinco polos artesanais indígenas
cômicas. Inclinam-se em reverências desajei- – Wajãpi (AP), Maxacali (MG), Guarani (RJ), Asurini (PA),
Kuikuro (MT) –, sob a coordenação do Museu do Índio.

20. Antropóloga, coordenadora de pesquisa do CNFCP entre 22. Exposição temporária SAP 78 – Kene – a arte dos
1983 e 1990. Huni Kuin, realizada em 1999.
ela trabalha com vários espíritos: o das Os cestos são confeccionados com

No Nor te, do Nor te, do Brasil


águas, o do fogo, o da folha para tingir o cipó; os abanos, com palha de murumuru

a c i o n a l
algodão, o da palha para tecer. O professor (Astrocaryum murumuru); as malas, com tala
Josimar Samuel Tui, da aldeia de Japinim, de cana brava; os estojos, com bambu e palha
de milho para a tampa; os adereços, com

N
às margens do rio Breu, associa o kene à

r t í s t i c o
escrita, à qual os Huni Kuin tiveram acesso sementes, casca de castanha, frutos silvestres,
recente. Portanto, modernamente, o kene penas e ossos de aves e pequenos animais.

Elisabeth Costa
A
está redesenhado nos livros didáticos das O colar de muitas voltas, adorno

e
especificamente masculino, foi ensinado a

i s t ó r i c o
escolas indígenas.
Assim como na pintura que ornamenta uma mulher ashaninka pela cobra bico-de-
os corpos, à base de jenipapo e de urucum, jaca, uma entidade da floresta.

H
Por sua vez, os Ticuna24 ocupam a região

a t r i m ô n i o
fruto do urucuzeiro (Bixa orellana), que
chega a atingir 6 metros de altura, o kene amazônica nas fronteiras entre Brasil, Peru
está presente no algodão das redes, chapéus, e Colômbia. Entre suas expressões culturais,

P
mantas, confeccionados a partir de um amplo a que chama mais atenção são as máscaras

d o
conhecimento que envolve desde o plantio, rituais, de aparência monumental, forte

e v i s t a
colheita, secagem, descaroçamento, batição e colorido e formas diversas. Confeccionam

R
tingimento do algodão até a arte da tecelagem também redes, bolsas, cestos, colares, com
propriamente dita. destaque para as esculturas em madeira,
Em terras acreanas também vivem os principalmente a muirapiranga (Brosimum
Ashaninka23, na região de fronteira entre paraense), de cor avermelhada. As esculturas
Brasil e Peru, na bacia dos rios Juruá e Purus. se inspiram na fauna da região, desde
Seus utensílios e adornos, instrumentos besouros, gafanhotos e escorpiões até antas,
musicais e indumentárias são confeccionados tartarugas, botos, cobras e onças.
53
As esculturas em forma de onça constituem
com matéria-prima proveniente da fauna e
o tema preferido do escultor José Alcântara25,
flora locais, ou de cultivo local.
que busca sua matéria-prima nos desmata-
A chusma, uma espécie de bata ou túnica,
mentos do entorno de Manaus. Seleciona no
é a vestimenta tradicional, parte importante
tronco alguns volumes e já no corte começa
da identidade ashaninka. É tecida em tear
a definir o formato da escultura. Com enxós,
de origem andina, com fios tingidos com
entalhadeiras e formões, imprime formatos,
corantes naturais, extraídos da floresta. O
incisões e relevos na madeira. O acabamento é
plantio do algodão, a coleta, o processamento
feito com diferentes lixas, pintura e, por vezes,
da matéria-prima, o tingimento dos fios e,
pirogravação. Esculpe pirarucus, ariranhas,
finalmente, a tecelagem cabem às mulheres,
jacarés, mas a onça é o seu tema preferido.
que produzem também capuzes, bolsas,
tipoias para carregar os bebês.
24. Exposição temporária SAP 65 — Esculturas ticuna, realizada
em 1996.

23. Exposição temporária SAP 83 – Ashaninka, realizada em 25. Exposição temporária SAP 73 – Bichos da floresta amazônica:
2000. esculturas de José Alcântara, realizada em 1997.
No Nor te, do Nor te, do Brasil
a c i o n a l
N
r t í s t i c o

Elisabeth Costa
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

54

Mulher indígena da etnia


Huni Kuin, no bairro
Kaxinawá, na cidade de
Jordão (AC), 2016
Foto: Talita Oliveira/
Nokun Txai – Nossos Txais.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
55

Elisabeth Costa No Nor te, do Nor te, do Brasil


Exposição Permanente do
Museu de Folclore Edison
Carneiro, Rio de Janeiro (RJ)
Foto: Francisco Moreira da Costa/
Acervo CNFCP/Iphan, 2005.
José Alcântara leva quase seis meses para os habitantes das florestas acreanas, pois

No Nor te, do Nor te, do Brasil


esculpir uma onça em tamanho natural; para acredita-se que devora os caçadores nas matas.

a c i o n a l
onças menores, com cerca de 50 a 60 centí- A Mulher Galho27, escultura feita a partir
metros, leva por volta de um mês. A exposi- de um galho de árvore, sugere uma mulher em
movimento de corrida, fugindo, segundo o

N
ção de longa duração do CNFCP exibe uma

r t í s t i c o
onça de 54 centímetros de altura, 20 centíme- artista, da destruição da floresta. Em uma peça
tros de largura e 1,40 metro de comprimento, feita a partir de um cipó espiralado, o artista

Elisabeth Costa
A
esculpida pelo artista em um bloco único de esculpe a Cobra Grande ou Cobra Norato.

e
Sendo assim, começando e terminan-

i s t ó r i c o
madeira, que carrega na boca um filhote.
O escultor Gesileu Salvatore26, natural de do esse relato ao abrigo da cobra-grande,
Xapuri, no interior do estado do Acre, viaja não abrimos mão da dimensão simbólica

H
expressa em mitos, ditados, canções, poe-

a t r i m ô n i o
por matas e rios, principalmente ao longo do
rio Acre, buscando a matéria-prima de suas mas e esculturas de artistas populares. Cada
esculturas: pedaços de troncos, nós caídos das peça artesanal, cada objeto, cada expressão

P
copas das árvores, galhos ressecados, raízes cultural de indivíduos e grupos encerra as

d o
mortas. Ao trabalhar a peça de madeira, usa cosmologias, o conhecimento acumulado

e v i s t a
o serrote nos primeiros cortes e uma serrinha por gerações e as representações simbólicas

R
para cortes mais delicados. Retira a casca da significativas de seu modo de vida.
madeira com um formão e começa a esculpir Ao trabalharmos com patrimônio,
a peça, aproveitando a forma dada pela lidamos com significados e valores. Nesse
própria natureza. O acabamento é feito com sentido, uma interpretação da própria
lixa e aplicação de resina de castanheira, óleo região amazônica como um território que é
de copaíba e andiroba, álcool de cereais e óleo apropriado pelas práticas sociais e que, por
de bálsamo, para proteger a madeira. sua vez, se projeta e se imiscui nas relações
57
Em uma de suas obras mais conhecidas, sociais. Pode também ser uma perspectiva

intitulada Mapinguari e o seringueiro, Gesileu pertinente que permite a incorporação, na


produção de sentidos, não só da fauna e
entalhou, numa prancha de mogno, a
da flora, por meio da construção de laços
história do seringueiro que foi caçado por
afetivos, da sensação de pertencimento
mapinguari, um ser mitológico com corpo
associada a vivências, mas também dos rios,
coberto de pelos, semelhante a um grande
igarapés, trilhas e clareiras, ao lado das ruas,
macaco e com apenas um olho, centralizado
praças, feiras e mercados, no desenrolar das
na testa. Dizem também que a boca do
práticas sociais que são o fundamento das
mapinguari termina na barriga e que o
manifestações e expressões culturais. Por
odor que ele exala na mata é insuportável.
esse prisma, a vasta região do Norte do país,
Sua pele é igual ao couro de jacaré e os
vivida e habitada por populações indígenas,
pés são idênticos a mãos de pilão. Apavora
ribeirinhas, quilombolas, urbanas, migrantes
26. Exposição temporária SAP 127 – Gesileu Salvatore: escultor da
floresta, realizada em 2005. 27. Acervo do MFEC.
e estrangeiras, de diversas procedências, desde diversificadas. Cada exposição, acompanhada por
No Nor te, do Nor te, do Brasil

catálogo e peças gráficas de caráter etnográfico,


a época colonial, fica impregnada de valores
resulta de pesquisa de campo e registro fotográfico e
a c i o n a l

associados a uma forte relação com o meio conta com a presença, na inauguração, dos artistas e
natural e de valores associados a modos de artesãos que são os protagonistas das práticas, saberes
e expressões artísticas da mostra. Ao longo de mais de
vida e de pensar em forte conformidade com
N

35 anos de existência, com mais de 190 exposições, o


r t í s t i c o

as matrizes de comunidades tradicionais, programa consolidou-se e ampliou-se, contemplando


preservadas, reelaboradas e desenvolvidas um número crescente de estados brasileiros. Por meio
da Associação de Amigos do MFEC, foi possível
Elisabeth Costa
A

coletivamente no afluxo de uma enorme a manutenção de um ponto de comercialização


e

sociodiversidade. Um paradigma da riqueza e


i s t ó r i c o

permanente da Sala do Artista Popular, franqueado a


da diversidade brasileiras. todos aqueles que já participaram do Programa.
H

Exposições temporárias do programa que contemplaram


N o ta s
a t r i m ô n i o

a Região Norte:
SAP 37 — O brinquedo no Círio de Belém, pesquisa e
N o ta 1 . P a c a
texto de Ricardo Gomes Lima, 1987.
P

O Programa de Apoio a Comunidades Artesanais é fruto


SAP 65 — Esculturas ticuna, pesquisa e texto de Jussara
d o

da parceria da Associação de Amigos com o CNFCP.


Gruber, 1996.
e v i s t a

Com base nesse programa e em sua concepção, foram


SAP 73 — Bichos da floresta amazônica: esculturas de José
iniciadas as negociações com o então Conselho da
Alcântara, pesquisa e texto de Raul Lody, 1997.
Comunidade Solidária para constituir a parceria que deu
R

origem ao Programa Artesanato e Geração de Renda, SAP 78 — Kene – a arte dos Huni Kuin, texto de Dedê
designado posteriormente Artesanato Solidário. Entre as Maia (org.), José Mateus Itsairu, Edson Medeiros Ixã,
24 comunidades artesanais contempladas pelo programa, Josimar Samuel Tui, 1999.
encontram-se os artesãos de Abaetetuba e Santarém, SAP 83 — Ashaninka, pesquisa e texto de Dedê Maia,
no Pará: Projeto Brinquedos de Miriti – Abaetetuba e 2000.
Projeto Cuias de Santarém – Santarém.
SAP 102 — O brinquedo que vem do norte, pesquisa e
N o ta 2 . C e l e b r a ç õ e s e Saberes texto de Lucina Carvalho e Ricardo Lima, 2002.

O Projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular SAP 108 — Cuias de Santarém, pesquisa e texto de
58 Luciana Carvalho, 2003.
desenvolvido pelo CNFCP e pela Associação de Amigos
do MFEC, com o patrocínio da Secretaria de Patrimônio, SAP 115 — Icoaraci: cerâmica do Pará, pesquisa e texto
Museus e Artes Plásticas do Ministério da Cultura, no de Marzane Pinto e Ricardo Lima, 2003.
âmbito do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, SAP 121 — Trançados de Arapiuns, pesquisa e texto de
foi uma experiência piloto, iniciada em 2001, no sentido Luciana Carvalho, 2005.
de produzir conhecimento sobre as possibilidades,
SAP 125 — Forma e imaginário da Amazônia, pesquisa e
alcance e eficácia do decreto para registro de bens
texto de Luciana Carvalho, 2005.
culturais de natureza imaterial. Com base na experiência
e no acervo da instituição, foram realizadas pesquisas SAP 127 — Gesileu Salvatore: escultor da floresta, pesquisa
e inventários no sentido de atualizar e sistematizar e texto de Luciana Carvalho, 2005.
informações relativas aos seguintes temas: o complexo SAP 131 — Balata: Amazônia em miniatura, pesquisa e
cultural do boi; o artesanato em barro; a musicalidade texto de Luciana Carvalho, 2006.
das violas e percussões; os sistemas culinários a partir da SAP 145 — Capim dourado: costuras e trançados do
farinha de mandioca e do feijão. Jalapão, pesquisa e texto de Carla Belas, 2008.
N o ta 3 . S a l a do A r t i s ta P o p u l a r – S A P SAP 157 — Trançados e entalhes de Novo Airão, pesquisa
O Programa Sala do Artista Popular foi criado em e texto de Tatiana Freire Ferreira, 2010.
1983 com o objetivo de contribuir para a difusão da SAP 191 — Do barro e da castanha: as artes dos
arte popular por meio de mostras que apresentam quilombolas de Oriximiná, pesquisa e texto de Raquel
expressões artísticas e técnicas artesanais tradicionais Dias Teixeira, 2018.
N o ta 4 . P r o m o a r t caricaturas em São Caetano de Odivelas. Dissertação de

No Nor te, do Nor te, do Brasil


Implantado em 2009, o Programa de Promoção do Mestrado em Artes Cênicas. Programa de Pós-graduação
Artesanato de Tradição Cultural – Promoart atendeu 65 em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia.

a c i o n a l
polos de artesanato, contemplando 71 municípios em 24 Salvador, 2004.
estados brasileiros. Atingiu 150 comunidades artesanais, TORRES, Maria Helena (org.). O mais é o tempo que
beneficiando um total de 4.178 artesãos. Os cinco polos

N
ensina: Sala do Artista Popular 30 anos. Rio de Janeiro:
indígenas, por sua vez, englobavam uma população de

r t í s t i c o
Iphan/CNFCP, 2014.
4.023 indivíduos. As ações do programa se distribuem
ao longo de três eixos: a) apoio à produção; b) apoio

Elisabeth Costa
à comercialização; c) apoio à divulgação e difusão. A
C at á l o g o s

A
execução deste programa somou-se à experiência acu-
de exposição

e
i s t ó r i c o
mulada nos demais programas do CNFCP – SAP, Paca e
Celebrações e Saberes da Cultura Popular –, delineando BELAS, Carla Arouca. Capim dourado: costuras e
de forma mais nítida as bases para uma política ampla de trançados do Jalapão, 2008.

H
apoio ao artesanato tradicional, voltada especificamente CARVALHO, Luciana G. de. Cuias de Santarém. Rio de

a t r i m ô n i o
para os múltiplos saberes e fazeres artesanais que consti- Janeiro: Funarte/CNFCP, 2003.
tuem referência cultural nas suas localidades.
______. Trançados do Arapiuns. Rio de Janeiro: Iphan/
Polos do Promoart na Região Norte:
CNFCP, 2004.

P
Novo Airão (AM) – Trançado de fibras e entalhe em
______. Forma e imaginário da Amazônia. Rio de

d o
madeira
Janeiro: Iphan/CNFCP, 2005.

e v i s t a
Abaetetuba (PA) – Brinquedos de miriti
______. Gesileu Salvatore: escultor da floresta. Rio de
Belém (PA) – Cerâmica de Icoaraci
Janeiro: Iphan/CNFCP, 2005.

R
Monte Alegre, Belém (PA) – Figuras de balata
______. Balata: Amazônia em miniatura. Rio de Janeiro:
Santarém (PA) – Trançados de Arapiuns
Iphan/CFNCP, 2006.
Santarém (PA) – Cuias de Aritapera
CARVALHO, Luciana G. de; LIMA, Ricardo Gomes. O
Belterra, Santarém (PA) – Mobiliário dos rios Tapajós e
brinquedo que vem do norte – Miriti: a palmeira que dá
Arapiuns
brinquedo. Rio de Janeiro: Funarte/CNFCP, 2002.
Mateiros, São Félix, Ponte Alta, Novo Acordo, Itacajá
(TO) – Trançados de capim dourado do Jalapão. COSTA, Maria Elisabeth; REIS, Daniel. O reinado do
riso. Rio de Janeiro: Iphan/CNFCP, 2012.
FERREIRA, Tatiana de Sá Freire. Trançados e entalhes de 59
Bibliografia Novo Airão. Rio de Janeiro: Iphan/CNFCP, 2010.

BEZERRA, Aída; COSTA, Renato (orgs.). Almanaque GRUBER, Jussara. Esculturas ticuna. Rio de Janeiro:
Pitinga. Rio de Janeiro: Iphan/CNFCP, 2011. Funarte/CNFCP, 1996.

CARVALHO, Luciana G. de (org.). O artesanato de cuias LIMA, Ricardo Gomes. O brinquedo no Círio de Belém.
em perspectiva: Santarém. Iphan/CNFCP, 2011. Rio de Janeiro: Funarte/INF, 1987.
CARVALHO, Luciana G. de (org.). Tessume de histórias: LIMA, Ricardo Gomes; PINTO, Marzane. Icoaraci:
os trançados do Arapiuns. Rio de Janeiro: Iphan/CNFCP, cerâmica do Pará. Rio de Janeiro: Funarte/CNFCP, 2003.
2011.
LODY, Raul. Bichos da floresta amazônica: esculturas de
CARVALHO, Luciana G. de (org. e texto), Memórias de José Alcântara. Rio de Janeiro: CNFCP, 1997.
trabalho – balateiros de Monte Alegre. Rio de Janeiro:
Iphan/CNFCP, 2011. MAIA, Dedê. Ashaninka. Rio de Janeiro: CNFCP, 2000.

CNFCP. Tesauro de Folclore e Cultura Popular. MAIA, Dedê (org.). ITSAIRU, José Mateus; IXÃ, Edson
Medeiros; TUI, Josimar Samuel (textos). Kene – a arte
FERNANDES, José Guilherme dos Santos, O boi de
máscaras: festa, trabalho e memória na cultura popular do dos Huni Kui. Rio de Janeiro: CNFCP, 1999.
Boi Tinga de São Caetano de Odivelas, Pará. Belém: Ed. TEIXEIRA, Raquel Dias. Do barro e da castanha: as artes
da UFPA, 2007. dos quilombolas de Oriximiná. Rio de Janeiro: Iphan/
SILVA, Sílvia Sueli Santos da, Boi Tinga: um cortejo de CNFCP, 2018.
Rua de pedestres e
chegada de embarcações
em Belém (PA)
Foto: José Medeiros/
Acervo Instituto Moreira Salles.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

62
Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação
no acesso à biodiver sidade
Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel

a c i o n a l
P rotocolos comunitários : resistência e

autodeterminação no acesso à biodiversidade 1

N
A
Hr t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Introdução Apoiada numa lógica que privilegia
predominantemente o setor industrial,
Neste artigo procuramos demonstrar a essa lei estabeleceu diversas isenções à

Pd o
importância dos protocolos comunitários obrigatoriedade de respeito aos direitos

e v i s t a
como mecanismo de resistência e
de consulta prévia, consentimento prévio
autodeterminação dos povos indígenas

R
informado (ou fundamentado), direitos
diante das violações de direitos humanos
constantes na Lei nº 13.123, de 20 de de repartição de benefícios e direitos de

maio de 20152. A análise é feita a partir do participação, dentre tantos outros.


cenário do Direito Internacional Ambiental e A legislação mencionada veio a substituir
Direito Internacional dos Direitos Humanos, a Medida Provisória nº 2.186-16, de 23 de
evidenciando as incongruências na lei agosto de 2001, que vigorou por cerca de
brasileira, e destaca experiências concretas de 63
quinze anos (se considerarmos sua primeira
protocolos comunitários.
edição) e possuía diversos problemas passíveis
A Lei nº 13.123/2015, regulamentada
pelo Decreto nº 8.872, de 10 de outubro de de críticas, todavia, ainda assim, assegurava

2016, representou uma grande perda para os alguns dos direitos agora suprimidos pela
povos indígenas, comunidades tradicionais e nova legislação.
agricultores familiares. Entre tantas perdas, porém, é possível
vislumbrar aspectos positivos (ainda que
1. Trabalho apresentado ao Espaço de Discussão ED 4 –
Povos e comunidades tradicionais, questão agrária e conflitos raros) nessa recente legislação. Um deles foi o
socioambientais do 7º Seminário Direitos, Pesquisa e Movimentos
Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 27
a 30 de abril de 2018.
reconhecimento dos protocolos comunitários
2. A Lei nº 13.123/2015 “(...) dispõe sobre o acesso como instrumento jurídico de efetivação de
ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao
conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de direitos de povos e comunidades tradicionais.
benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade Sem título,
(...)”. Regulamenta o direito ao meio ambiente ecologicamente Os protocolos comunitários já estavam urucum amarelo,
Frans Krajcberg, s/d
equilibrado e o direito a repartição dos benefícios econômicos Coleção Frans Krajcberg,
decorrentes do acesso aos conhecimentos tradicionais. previstos internacionalmente no Protocolo Nova Viçosa (BA).
de Nagoya3 e, embora o Brasil não tenha que permitem que cada povo ou comunidade
ratificado esse instrumento internacional, estabeleça suas regras para a relação com
criou um diálogo com seu conteúdo ao terceiros interessados no acesso ao patrimônio
64
reconhecer os protocolos comunitários no genético e uso de sua biodiversidade.
texto da Lei n.º 13.123/2015. Para desenvolver essa análise, adotamos o
Cabe-nos questionar se os protocolos método dialético, compreendido como um
comunitários podem servir de instrumento à conjunto de processos em que há uma tese,
conformação de uma estratégia de resistência uma antítese e uma síntese. A tese é formada
às violações de direitos humanos decorrentes pela exposição das normas internacionais
da negativa de direitos consubstanciada nessa sobre a diversidade biológica, sua preservação
nova legislação. Acreditamos que sim, em face e proteção aos conhecimentos tradicionais
Fim de queimada no
do direito de autodeterminação e pluralismo dos povos e comunidades tradicionais. A
rio Negro (AM),
Frans Krajcberg, 1978 jurídico reconhecido aos povos em questão antítese é representada pelos retrocessos da
Coleção Frans Krajcberg,
Nova Viçosa (BA). nos instrumentos jurídicos internacionais, Lei nº 13.123/2015 e sua janela de “diálogo
possível” com o Protocolo de Nagoya, para
3. Acordo criado na 10ª Conferência das Partes da Convenção
obtenção do consentimento prévio dos povos
sobre Diversidade Biológica (COP-10), realizada em outubro locais. A síntese estaria nos mecanismos
de 2010, em Nagoya, no Japão. Entrou em vigor em outubro
de 2014.
de resistência dos povos e comunidades conferência, foi assinada a Convenção sobre

no acesso à biodiver sidade


Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação
tradicionais, com a formulação de protocolos a Diversidade Biológica – CDB, instrumento

a c i o n a l
comunitários4, documentos que foram jurídico internacional aberto para a assinatura
reconhecidos pela lei discutida na antítese em 5 de junho de 1992, firmado por 178
como “norma procedimental das populações países, incluindo o Brasil, e ratificado em 3

N
r t í s t i c o
indígenas , comunidades tradicionais ou
5
de fevereiro de 1994, mediante o Decreto
agricultores tradicionais” (inciso VII, do art. Legislativo n° 2.

A
2º da Lei nº 13.123/2015). Por intermédio desse instrumento,

e
Neste artigo abordaremos os protocolos obteve-se um consenso normativo

i s t ó r i c o
comunitários para acesso e uso do internacional acerca do valor intrínseco da
patrimônio genético da biodiversidade e diversidade biológica e da necessidade de sua

H
dos conhecimentos tradicionais associados conservação para a manutenção dos sistemas

a t r i m ô n i o
desde sua previsão no Protocolo de Nagoya necessários à vida da biosfera, constituindo

Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel


até sua inclusão na Lei nº 13.123/2015. Em a biodiversidade um valor comum à

P
seguida, analisaremos como os protocolos humanidade (Maciel, 2012; Dourado, 2014).

d o
comunitários podem representar um Os objetivos da CDB são a utilização

e v i s t a
instrumento de efetivação dos direitos à sustentável dos componentes da diversidade
autodeterminação e ao pluralismo jurídico

R
biológica e a repartição justa e equitativa
dos povos e comunidades tradicionais. dos benefícios provenientes da utilização
Finalmente, vamos apreciar as experiências dos recursos genéticos, mediante o acesso
de uso desse instrumento no Brasil e refletir adequado aos recursos genéticos e à
sobre seus potenciais e desafios. transferência de tecnologias.
Dentre os objetivos da CDB, o acesso e
Contextualização repartição justa e equitativa de benefícios –
65
Access and Benefit-sharing, em inglês, gerando
O debate sobre a proteção dos a sigla ABS – canalizou esforços para a
recursos genéticos da biodiversidade e dos composição de um protocolo que previsse
conhecimentos tradicionais teve como o marco jurídico internacional em que essas
importante marco a 2ª Conferência das atividades deveriam ser desempenhadas. Em
Nações Unidas para o Meio Ambiente e 29 de outubro de 2010, na décima reunião
Desenvolvimento, denominada Eco/92, da Conferência das Partes sobre a Diversidade
realizada entre os dias 3 e 14 de junho Biológica (COP-10), celebrada em Nagoya,
de 1992 no Rio de Janeiro. Durante a no Japão, foi instituído o Protocolo de
Nagoya. Assinado pelo Brasil em 2010, o
4. Neste artigo são apresentados alguns protocolos comunitários:
Protocolo Comunitário das Raizeiras do Cerrado, Protocolo
Protocolo ainda não foi, porém, ratificado
Munduruku, Protocolo Comunitário do Arquipélago do pelo Congresso Nacional.
Bailique, Protocolo da Comunidade Quilombola de Abacatal.

5. Este é um dos graves equívocos da lei: adotar a formulação


Contudo, Santilli (2015:263) informa
“populações indígenas” quando deveria ter observado a que o Brasil desempenhou papel importante
terminologia estabelecida pela convenção 169 da OIT, que
consagrou “povos indígenas”. nas negociações internacionais do protocolo,
ressaltando que sua entrada em vigor no tradicionais em seus territórios e em combater
no acesso à biodiver sidade
Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação

cenário jurídico internacional foi uma a biopirataria; os últimos, motivados pela


a c i o n a l

conquista dos países megadiversos, ou seja, os concepção de que existe um mercado para
mais ricos em biodiversidade. Entre os países recursos genéticos capazes de alimentar uma
nova economia, baseada no conhecimento e
N

que já ratificaram o protocolo, encontram-se


r t í s t i c o

Indonésia, Índia, África do Sul, Madagascar, nas biotecnologias.


Quênia, Egito, Síria, Guatemala, Peru, Ao tratar do conhecimento tradicional
A

Dinamarca, Espanha e Suíça. associado a recursos genéticos (artigo 12), o


e

Protocolo de Nagoya reconheceu as normas


i s t ó r i c o

O objetivo do Protocolo de Nagoya,


explicitado em seu artigo 1º, “é a repartição costumeiras como balizas que devem ser
justa e equitativa dos benefícios derivados da consideradas, ressaltando os protocolos
H

e procedimentos comunitários como


a t r i m ô n i o

utilização dos recursos genéticos, mediante,


inclusive, o acesso adequado aos recursos instrumentos que devem ser apoiados pelo
Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel

genéticos e à transferência adequada de poder público (Brasil, 2014: 20):


P

tecnologias pertinentes (...)6”, segundo termos


d o

Artigo 12 - Conhecimento tradicional


mutuamente acordados. Na compreensão
e v i s t a

associado a recursos genéticos


de Santilli (2015:264), o protocolo visa 1. No cumprimento das obrigações oriundas
R

expandir a concretude e a efetividade das do presente Protocolo, as Partes, de acordo


com a lei nacional, levarão em consideração leis
normas da CDB que asseguram a repartição
consuetudinárias, protocolos e procedimentos
justa e equitativa dos benefícios derivados da
comunitários das comunidades indígenas e locais,
utilização da biodiversidade. quando apropriado, em relação ao conhecimento
O Protocolo de Nagoya prevê que a tradicional associado a recursos genéticos.
repartição de benefícios só será possível com a (...)
66 prévia obtenção do consentimento informado 3. As Partes empenhar-se-ão em apoiar, confor-
da parte provedora dos recursos, cabendo me o caso, o desenvolvimento, pelas comunidades

aos países signatários o estabelecimento indígenas e locais, incluindo mulheres dessas comu-
nidades, de: (a) protocolos comunitários relativos
de mecanismos para o envolvimento de
ao acesso a conhecimento tradicional associado a
comunidades indígenas e locais para o acesso
recursos genéticos e à repartição justa e equitativa
aos recursos genéticos, quando o direito de dos benefícios derivados da utilização de tal conhe-
conceder o acesso a tais recursos lhes tenha cimento;
sido estabelecido. (...). (BRASIL, 2014: 20)
No entender de Aubertin e Filoche
A importância dos protocolos e
(2011:52), o Protocolo de Nagoya
procedimentos comunitários é reforçada pelo
representou certo consenso entre os países do
texto de Nagoya ao tratar da obrigação das
Sul e do Norte – os primeiros, interessados
partes de tomar medidas para disseminar a
em agregar valor aos conhecimentos
conscientização acerca da importância dos
recursos genéticos e dos conhecimentos
6. Disponível em <https://www.cbd.int/abs/doc/protocol/
Nagoya_Protocol_Portuguese.pdf>. tradicionais (ibid.: 28):
Artigo 21 - Aumento da conscientização desenvolvimento na medida em que afete sua

no acesso à biodiver sidade


Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação
Cada Parte tomará medidas para elevar a vida, crenças, instituições, bem-estar espiritual
conscientização a respeito da importância dos e as terras que ocupam ou usam para outros

a c i o n a l
recursos genéticos e do conhecimento tradicional fins, e de controlar, na maior medida possível,
associado a recursos genéticos, bem como de seu próprio desenvolvimento econômico, social

N
outras questões relacionadas a acesso e repartição e cultural. Além disso, eles participarão da

r t í s t i c o
de benefícios. Essas medidas podem incluir, entre formulação, implementação e avaliação de planos
outras: e programas de desenvolvimento nacional e

A
(...) regional que possam afetá-los diretamente8.

e
i) conscientização acerca dos protocolos e

i s t ó r i c o
procedimentos de comunidades indígenas e locais. Dessa feita, é possível reconhecer
no cenário jurídico internacional o

H
Esse instrumento internacional estabelecimento do direito de decidir sobre

a t r i m ô n i o
estabeleceu, assim, importantes previsões o tema conforme regras consuetudinárias,

Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel


para o reconhecimento dos protocolos e estabelecidas em protocolos e procedimentos
procedimentos comunitários enquanto comunitários para acesso e uso dos

P
d o
norma jurídica emanada não do Estado, recursos genéticos da biodiversidade e

e v i s t a
mas dos povos indígenas, comunidades dos conhecimentos tradicionais, que
e agricultores tradicionais, em perfeita devem ser observadas. Ressalte-se que,

R
consonância com o direito ao pluralismo ainda que o Protocolo de Nagoya não
jurídico previsto na Convenção nº 169 da tenha sido incorporado ao ordenamento
Organização Internacional do Trabalho – jurídico brasileiro, a obrigatoriedade de
OIT em seu artigo 8º, item 1: “Na aplicação observância dos protocolos e procedimentos
da legislação nacional aos povos interessados, comunitários faz-se presente perante a
seus costumes ou leis consuetudinárias Convenção nº 169 da OIT, que estabelece
deverão ser levados na devida consideração”7. os fundamentos desse direito. 67
O direito de decidir, mediante suas A previsão sobre os protocolos
próprias regras, sobre o acesso e uso comunitários constante do Protocolo
dos recursos da biodiversidade e dos de Nagoya foi, assim, absorvida – ainda
conhecimentos tradicionais, assegurado que por linhas tortas, já que o protocolo
aos povos e comunidades tradicionais, não foi ratificado no Brasil – pela Lei
possui escopo também no direito de nº 13.123/2015, que os menciona
autodeterminação previsto no artigo 7º da expressamente como mecanismo
Convenção nº 169 da OIT, que ressalta o de obtenção do consentimento
direito de escolha, controle e participação: prévio fundamentado. Podemos identificar
Os povos interessados terão o direito de aí uma “janela de diálogo” com o espírito
definir suas próprias prioridades no processo de do Protocolo de Nagoya, que pode e deve
ser apropriado pelos povos indígenas,

7. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/
arquivos/Convencao_169_OIT.pdf>. 8. Idem.
comunidades tradicionais e agricultores desconformidade com a Convenção nº 169
no acesso à biodiver sidade
Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação

tradicionais a fim de consolidá-lo como um da OIT e com a Declaração da Organização


a c i o n a l

dos instrumentos de pluralismo jurídico das Nações Unidas sobre os Direitos dos
e autodeterminação. Esse é um caminho Povos Indígenas de 2007;
a ser construído em busca da afirmação b) a elaboração do Projeto de Lei nº
N
r t í s t i c o

desses direitos. Se aqui temos um ponto 7.735/2014 (Lei nº 13.123/15) sem a partici-
parcialmente positivo da lei, a verdade é pação e representação de povos indígenas e de
A

que os aspectos negativos preponderam em povos e comunidades tradicionais;


e

seu texto. c) o artigo 8º - j da CDB


i s t ó r i c o

Sales (2014) evidencia vários pontos menciona que as comunidades locais


críticos da Lei nº 13.123/2015 que diferem e populações indígenas são os titulares
H

do Protocolo de Nagoya e da Convenção da dos conhecimentos tradicionais e do


a t r i m ô n i o

Diversidade Biológica: patrimônio genético; a Lei nº 13.123/2015


Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel

a) utilização do termo “populações aduz que “as populações indígenas,


P

indígenas”, em vez de “povos indígenas”, em comunidades e agricultores tradicionais


d o
e v i s t a
R

68

Sem título, detalhe de


folha begônia,
Frans Krajcberg, 1985
Coleção Frans Krajcberg,
Nova Viçosa (BA).
são detentores do conhecimento tradicional e agricultores tradicionais estabelecerem

no acesso à biodiver sidade


Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação
associado acessado”; suas próprias regras para a obtenção do

a c i o n a l
d) a repartição de benefícios da nova lei é consentimento prévio informado.
limitada à exploração econômica de produto O Decreto nº 8.77210, de 11 de
ou processo oriundo de acesso; diversamente, maio de 2016, que regulamenta a Lei nº

N
r t í s t i c o
o artigo 15, alínea 7 da CDB versa sobre 13.123/2015, disciplinou expressamente
exploração econômica ou de “outra natureza”; a possibilidade de a população indígena,

A
e) a comprovação do consentimento comunidade ou agricultor tradicional

e
prévio informado por meio de instrumentos negarem o consentimento ao acesso ao

i s t ó r i c o
não cumulativos, ou seja, poderá haver seu conhecimento tradicional associado
consentimento prévio considerado pela lei de origem identificável (artigos 13 e 14).

H
como “informado”, bastando a obtenção Entretanto, deixou as partes livres para

a t r i m ô n i o
de um desses instrumentos: assinatura do negociar seus termos e condições, em

Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel


termo de consentimento prévio, registro uma perspectiva liberal de igualdade das

P
audiovisual, parecer do órgão oficial partes, “igualdade formal Kantiana”11,

d o
competente e adesão, na forma prevista, de desconsiderando-se as diferenças reais entre

e v i s t a
protocolo comunitário. sujeitos distintos, quais sejam: empresas e
Os protocolos comunitários foram indústrias de um lado e povos indígenas e

R
definidos na nova lei como “norma comunidades tradicionais de outro.
procedimental das populações indígenas9, Justifica-se assim a crítica de Bensusan
comunidades tradicionais ou agricultores (2016) no sentido de que deveria haver um
tradicionais que estabelece, segundo seus usos, “instrumento de comprovação de obtenção
costumes e tradições, os mecanismos para o de consentimento prévio”, para possibilitar
acesso ao conhecimento tradicional associado uma fiscalização do Estado e uma
e a repartição de benefícios” (artigo 2º, inciso transparência social do processo de obtenção 69

VII da Lei nº 13.123/2015). Os protocolos desse consentimento, considerando que os


comunitários devem ser reconhecidos conhecimentos tradicionais e o patrimônio
como fruto direto do pluralismo jurídico genético transcendem o interesse das partes
e, portanto, norma válida e vinculante de envolvidas, pois constituem matéria afeta
observância obrigatória. São fonte de onde ao interesse geral do corpo social. Bensusan
emanam normas para o consentimento prévio sugere ainda que o decreto regulamentador
informado, deixando claro que este deve poderia estabelecer mecanismos – por
ser obtido “segundo os seus usos, costumes exemplo, um relatório – para aferir se
e tradições ou protocolos comunitários”
(artigo 2º, inciso VI da Lei n.º 13.123/2015),
10. Disponível em <https://www.legisweb.com.br/
consagrando, em definitivo, o direito de legislacao/?id=320395>.
povos indígenas, comunidades tradicionais 11. Em estudo sobre igualdade, Jiménez Perona diferencia
a igualdade prevista em Immanuel Kant, vinculada com a
igualdade formal, ou seja, perante a lei, do modelo alternativo
proposto por Rousseau, de igualdade econômica e política,
9. Ver nota 5. denominada igualdade material.
o consentimento prévio informado foi e comunidades tradicionais foram
no acesso à biodiver sidade
Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação

obtido de forma adequada, propondo um consolidados pela Convenção nº 169 da


a c i o n a l

novo item denominado “demonstração do OIT. Esse tratado internacional de direitos


processo de obtenção do consentimento humanos constitui um marco jurídico capaz
prévio informado”. de romper os paradigmas integracionistas
N
r t í s t i c o

Embora a nova lei faça referência (Almeida, 2010:15) e consolidar direitos


unicamente aos protocolos comunitários decorrentes dessa garantia, como a
A

como veículo para o acesso e uso do autoidentificação de grupos sociais distintos


e

conhecimento tradicional (artigo 9º, § 1º, de outros setores da sociedade nacional.


i s t ó r i c o

inciso IV), o fato é que a Convenção nº 169 Além disso, torna imprescindível a consulta
da OIT obriga a uma interpretação mais prévia e, consequentemente, a observância
H

ampla e extensiva, que deve também alcançar das normas internas dos grupos sociais
a t r i m ô n i o

o acesso aos recursos genéticos ou patrimônio (Almeida, Nakazomo et al., 2010).


Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel

genético (na terminologia adotada pela lei) É possível afirmar que a consulta prévia
P

existente em territórios tradicionais, ou que como processo e o consentimento prévio


d o

possuam conhecimento tradicional intrínseco, informado (ou fundamentado) – como um


e v i s t a

posto que os direitos à autodeterminação dos resultados possíveis – são instrumentos de


e pluralismo jurídico dirigem o conteúdo concretização dos direitos à autodeterminação
R

interpretativo dessa norma. e pluralismo jurídico ao assegurar o direito


Sendo assim, é preciso afirmar a de escolha e participação diferenciada
necessidade de que exista um diálogo entre desses grupos sociais no que se refere as
a Lei nº 13.123/2015, a Convenção nº 169 suas prioridades de desenvolvimento, com
da OIT e o Protocolo de Nagoya, espaço no o direito à observância de suas normas
qual os protocolos comunitários devem ser consuetudinárias (artigos 7º e 8º da
70 interpretados como forma de participação, Convenção nº 169 da OIT).
autodeterminação e, inclusive, resistência O direito à consulta prévia, segundo
legítima dos povos indígenas, comunidades e Dourado (2013:41), significa a manifestação
agricultores tradicionais, nos procedimentos efetiva dos grupos sociais. Não é um
de acesso e repartição de benefícios. direito passivo, sendo a qualidade dessa
Convém lembrar que o respeito aos manifestação imprescindível, pois pode
protocolos e procedimentos comunitários variar entre consentimento manipulado
também possui fundamento na Constituição pelos agentes oficias de poder e dominação e
Federal de 1988, tendo em vista a proteção uma atuação realmente decisiva no processo
especial garantida ao pluralismo político de criação de normas. Infere Leite (2010:19)
(artigo1°, inciso V) e aos direitos culturais que esses parâmetros normativos de consulta
alusivos à identidade de grupos sociais e seus e participação efetiva com informação
modos de criar, fazer e viver (artigo 216). visam à garantia do respeito ao princípio
Os direitos à autodeterminação da autodeterminação dos povos previsto na
e ao pluralismo jurídico dos povos Convenção nº169 da OIT.
Autodeterminação 2007). De acordo com esses artigos, o direito

no acesso à biodiver sidade


Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação
e
pluralismo jurídico à autodeterminação visa garantir a livre

a c i o n a l
c o m o f e r r a m e n ta s pa r a a determinação política e a autônoma busca
resistência, existência e pelo desenvolvimento econômico, social e
cultural, combinado com o direito dos povos

N
coexistência de povos e

r t í s t i c o
comunidades tradicionais a desenvolver suas estruturas institucionais
e seus próprios costumes, tradições,

A
A autodeterminação de que trata a Con- procedimentos, espiritualidade e sistemas

e
venção nº 169 da OIT refere-se ao respeito jurídicos, em conformidade com as normas

i s t ó r i c o
e observância dos direitos consuetudinários internacionais de direitos humanos.
internos dos povos indígenas, comunidades Para Díaz-Polanco (1996:157-164),

H
o direito à autodeterminação significa o

a t r i m ô n i o
e agricultores tradicionais. Ela deve ser com-
preendida em face do Estado brasileiro, para direito à livre determinação, possibilitando

Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel


que este considere e respeite as normas cons- aos povos indígenas e aos grupos sociais o

P
truídas no contexto interno dos grupos sociais direito de escolha dos caminhos concretos

d o
como forma de observar o pluralismo político, pelos sujeitos envolvidos, que vão desde a

e v i s t a
jurídico e a diversidade social e cultural dos po- conformação de entes autônomos sob um
marco estatal preexistente até a independência

R
vos que compõem um Brasil pluricultural.
Estreitamente vinculados, o reconhecimen- e a constituição de um Estado próprio.
to da autodeterminação e o pluralismo jurídico No entender de Sanchez (2009:78),
constituem um fio condutor essencial para a a autodeterminação implica respeito ao
afirmação dos direitos de povos e comunidades autogoverno dos povos como forma de
tradicionais à sua permanência em sociedades garantir a autonomia, a base territorial,
pluriétnicas e multiculturais. São, por isso, ou seja, a garantia dos territórios aos
grupos sociais para possibilitar meios de 71
ferramentas de resistência, no sentido de fazer
frente aos abusos e violações de direitos; de produção material (agricultura, caça, pesca,
existência, entendida como direito de perma- empreendimentos, cooperativas etc.) e
necer e não ser suprimido ou subjugado; e de reprodução cultural, social, espiritual e
coexistência, aqui entendida como o direito de simbólica. Nessa perspectiva, o território
efetiva inclusão e compartilhamento do espaço seria autônomo com competências políticas,
público e acesso a direitos. jurisdicionais, administrativas, econômicas,
O direito à autodeterminação, do ponto culturais, simbólicas, cosmológicas e
de vista jurídico, pode ser conceituado ecológicas próprias, com direito dos povos
pela combinação dos artigos 3º e 34 da indígenas e comunidades tradicionais à
Declaração das Nações Unidas sobre os participação e representação política na vida
Direitos dos Povos Indígenas12 (ONU, nacional (ibid.:69-76).
À autodeterminação vincula-se
imediatamente o direito ao pluralismo
12. Disponível em <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/
documents/DRIPS_pt.pdf>.
jurídico, o qual se constitui em um direito
humano que se contrapõe à teoria monista Segundo Dias & Laureano (2014:4),
no acesso à biodiver sidade
Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação

do direito, que considera válidas apenas os “protocolos comunitários podem ser


a c i o n a l

as normas jurídicas emanadas do Estado, conceituados como instrumentos que contêm


desconhecendo a existência histórica de formas acordos elaborados por comunidades locais,
plurais de manifestação jurídica, distintas do sobre assuntos relevantes ao seu modo
N
r t í s t i c o

ordenamento oficial (Wolkmer, 2001). de vida, visando à garantia dos direitos


O pluralismo jurídico é compreendido consuetudinários”. Os autores acrescentam
A

nesse contexto como variedade de práticas que “os direitos consuetudinários são
e

normativas em um mesmo espaço social fundamentados na tradição, e são expressos


i s t ó r i c o

e político da ordenação estatal, o que não por valores, princípios e regras, cosmovisões
significa negá-la ou minimizá-la, mas e práticas que são passados de geração em
H

reconhecer que essa é apenas uma das geração, em um movimento vivo e contínuo”.
a t r i m ô n i o

muitas formas jurídicas que podem existir Considerando o arcabouço jurídico


Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel

na sociedade (Wolkmer, 2001; Wolkmer formado pela Convenção nº 169 da OIT,


P

& Fagundes, 2013). Nesse sentido, a a CDB, a Constituição Federal e a Lei nº


d o

pluralidade envolve a existência de ordens 13.123/2015, só é possível compreender os


e v i s t a

jurídicas distintas de diferentes forças sociais protocolos e procedimentos comunitários


e manifestações legais plurais, reconhecidas como instrumentos de efetivação dos direitos
R

e incorporadas pelo Estado como à autodeterminação, pluralismo jurídico e


norma jurídica. consulta prévia que emanem, efetivamente,
O pluralismo jurídico como projeto das práticas e costumes consagrados e
emancipador deve legitimar os sujeitos reconhecidos como válidos pelos povos e
sociais; democratizar e descentralizar espaços comunidades tradicionais e que são acionados
públicos de participação; empreender a defesa para uso e reivindicação nas relações sociais
72 pedagógica de uma ética de solidariedade; com o Estado e com agentes privados.
consolidar os processos conducentes a uma Os protocolos e procedimentos
racionalidade emancipatória (Wolkmer, comunitários não são cabíveis apenas perante
2003:11). situações de acesso e uso dos recursos
Nessa perspectiva, os protocolos da biodiversidade e dos conhecimentos
comunitários emanados dos grupos tradicionais. Eles podem ser utilizados
concretamente designados, além de outros em todo tipo de situação que afete a vida
que possam se autoidentificar como de povos e comunidades tradicionais que
portadores de referência à identidade, à ação e queiram expor ao terceiro (Estado ou
à memória da sociedade brasileira, constituem particular) as regras vigentes para qualquer
instrumentos jurídicos fundamentais para atividade que lhes diga respeito. Têm
a efetivação da autodeterminação e do sido empregados por esses povos como
pluralismo jurídico como direitos humanos ferramenta de resistência a atos abusivos e/
dos povos indígenas, comunidades e ou ilegais praticados contra seus direitos em
agricultores tradicionais. searas diversas, incluindo desde protocolos
comunitários para consulta prévia no âmbito Brasil: o Protocolo de São Luís, o Protocolo
do licenciamento ambiental de grandes Comunitário Biocultural das Raizeiras do
empreendimentos como hidrelétricas, Cerrado, o Protocolo de Consulta Montanha
73
até protocolos para o acesso a certos e Mangabal, o Protocolo Comunitário do
conhecimentos tradicionais. Povo Munduruku, o Protocolo Comunitário
do Arquipélago de Bailique e o Protocolo de
Protocolos comunitários Consulta dos Quilombolas de Abacatal/Aurá.
e mobilizações pela O Protocolo de São Luís, formalizado em
defesa dos direitos 2011, decorreu de uma experiência de acesso
coletivos no Brasil aos conhecimentos tradicionais associados
envolvendo as quebradeiras de coco babaçu13 Comunidade da Santa
Luzia do Buiuçuzinho,
É interessante observar que diversos e uma empresa de cosméticos. Após intensas às margens do
lago de Coari (AM), 2007
grupos específicos integrantes de povos e discussões, as duas partes subscreveram Foto: AC Junior.

comunidades tradicionais têm se utilizado dos


protocolos comunitários como ferramenta 13. As quebradeiras de coco babaçu se autodefinem socialmente
para reivindicar a observância de seus direitos. pelas atividades comuns de extrativismo de coco babaçu,
constituindo um grupo de mulheres oriundas de um campesinato
A seguir, vamos examinar alguns exemplos formado por descendentes de africanos escravizados, indígenas
destribalizados e nordestinos deslocados (Porro, 2002), estando
representativos dessas experiências no presentes nos estados do Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins.
um Contrato de Repartição de Benefícios, o Protocolo de São Luís. Esse documento
no acesso à biodiver sidade
Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação

decorrentes do acesso pela empresa à farinha trata de dispositivos para a composição de


a c i o n a l

do mesocarpo de babaçu, bem como um instrumentos legais sobre a regulamentação


Termo de Anuência Prévia. da então vigente Medida Provisória n° 2.186-
O acesso teve início em 2005, quando 16/2001.
N
r t í s t i c o

a empresa contatou a Cooperativa de Explica Dourado (2014:70) que o


Produtores Agroextrativistas do Município de Protocolo de São Luís pode ser considerado
A

Esperantinópolis – Coopaesp e a Associação “um protocolo comunitário”, de acordo


e

em Áreas de Assentamento no Estado do com o artigo12 do Protocolo de Nagoya,


i s t ó r i c o

Maranhão – Assema, em razão de ter obtido que trata do conhecimento tradicional


resultados de interesse comercial com o uso associado a recursos genéticos. Ao apresentar
H

da farinha do mesocarpo de babaçu e de um conjunto de normas sobre o acesso


a t r i m ô n i o

pretender lançar cosméticos contendo esse e a utilização do patrimônio genético, o


Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel

recurso da sociobiodiversidade. Protocolo de São Luís destaca que a legislação


P

Na oportunidade, a empresa informou sobre a biodiversidade em relação aos


d o

à Coopaesp sobre direitos de repartição de conhecimentos tradicionais só faz sentido se


e v i s t a

benefícios previstos na Medida Provisória nº estiver coadunada com garantias de acesso


2.186-16, de 23 de agosto de 2001, norma à terra e com o uso dos recursos naturais;
R

que antecedeu a atual Lei nº 13.123/2015, preconiza a ampla necessidade de informação


prevendo novos direitos às comunidades dos aspectos em jogo e de participação do
tradicionais. Informou também que Conselho de Gestão Nacional do Patrimônio
haveria necessidade de regularização. Após Genético – CGen.
intensas discussões intracomunitárias e Outra experiência importante foi a
com órgãos públicos, como o Ministério construção do Protocolo Comunitário
74 Público Federal, foram assinados o Termo Biocultural das Raizeiras do Cerrado14,
de Anuência Prévia – TAP e o Contrato expressiva da luta pelo direito
de Utilização e Repartição de Benefícios consuetudinário de praticar a medicina
– Curb, este último em janeiro de 2007 tradicional. Esse protocolo comunitário
(Maciel, 2012). O Curb estabeleceu cláusulas tem como objetivo ser um “instrumento
de repartição de benefícios com base na político para a conquista de uma legislação
receita líquida advinda da comercialização que garanta o direito consuetudinário de
de produtos que contivessem a farinha do quem faz o uso tradicional e sustentável
mesocarpo de babaçu, bem como a criação da biodiversidade brasileira para sua saúde
do Fundo Socioambiental das Comunidades comunitária” (Dias & Laureano, 2014).
Extrativistas do Babaçu (ibid.).
Do aprendizado dessa relação jurídica 14. Segundo informa a obra organizada por Dias & Laureano
(2014), o bioma cerrado se estende por cerca de 204 milhões de
e da mencionada negociação, no I hectares, ¼ do território nacional, e possui uma rica sociobio-
diversidade, contendo 30% da biodiversidade brasileira. Nele se
Seminário dos Conhecimentos Tradicionais observa um mosaico de vários tipos de vegetação, desde campos
até florestas, com uma flora nativa que inclui aproximadamente
realizado em São Luís, em 2011, criou-se 12 mil espécies catalogadas, sendo 44% endêmicas.
Sua elaboração originou-se da realização de e) metodologia de pesquisa popular, em

no acesso à biodiver sidade


Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação
doze encontros regionais e dois encontros que os próprios membros da comunidade

a c i o n a l
nacionais entre as raizeiras do cerrado, nos realizam estudos de campo e registram
quais foram realizadas capacitações sobre coletivamente os conhecimentos tradicionais.
políticas públicas e tratados internacionais Em síntese, as raizeiras do cerrado

N
r t í s t i c o
relacionados ao tema “Biodiversidade e reivindicam a liberdade para a continuidade
Conhecimentos Tradicionais”. de suas práticas, já que pela visão monista do

A
No protocolo consta o necessário direito a comercialização de remédios caseiros

e
reconhecimento da autoidentidade de quem sofre muitas vezes restrições impostas pelos

i s t ó r i c o
pratica medicina tradicional no cerrado, sistemas de vigilância sanitária. Contudo,
agentes sociais que fazem remédios caseiros a prática das comunidades tradicionais do

H
pelo processamento das plantas, obedecendo cerrado constitui um bem cultural imaterial

a t r i m ô n i o
a critérios de boas práticas populares, da protegido pela Constituição Federal de 1988

Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel


coleta da planta ao preparo do remédio (artigo 215) e por práticas jurídicas legítimas

P
conforme as várias espécies de cura possíveis. voltadas à proteção de diretos culturais.

d o
Entre os praticantes da medicina tradicional Igualmente interessante é a experiência

e v i s t a
estão raizeiras, curandeiros, remedeiros, do Protocolo de Consulta Montanha e
parteiras, agentes de pastoral etc. Dada essa Mangabal, elaborado pelos beiradeiros

R
multiplicidade, a autoidentidade fundamenta- do Projeto Agroextrativista Montanha e
se no compartilhamento de experiências Mangabal, a partir de um encontro realizado
comuns de cura por meio da biodiversidade e na cidade de Machado, Pará, em 26 e 27 de
dos conhecimentos tradicionais (ibid.). setembro de 201415.
A identidade social construída pelo grupo Segundo Torres (2008), as comunidades
está associada à comercialização dos remédios tradicionais de Montanha e Mangabal
caseiros vendidos a um preço justo ou doados a reúnem um povo beiradeiro que vive às 75

quem não pode pagar, envolvendo, em ambos margens do rio Tapajós16 e compartilha uma
os casos, uma preparação espiritual. Outros história de resistência à escravização por
aspectos importantes desse protocolo são: dívida do aviamento, no período da borracha,
a) transmissão do conhecimento para e de ocupação do seu território por uma
novas gerações;
b) relações sociais em rede denominada 15. Para mais informações, consultar a Proposta da Criação do
Protocolo de Consulta de Montanha e Mangabal. Disponível
Articulação Pacari; em <http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2014/arquivos/
Protocolo%20de%20Consulta%20Montanha%20e%20
c) dinâmica do reconhecimento da Mangabal_Set_2014.pdf>.
eficácia e qualidade pelos usuários em uma 16. O rio Tapajós nasce no Mato Grosso, banha parte do estado
relação de mútua confiança; do Pará e deságua no rio Amazonas, percorrendo uma extensão de
810 km. Os povos indígenas da região do Tapajós e o Greenpeace
d) critérios para a escolha das plantas, têm denunciado o projeto para a construção da Hidrelétrica de
Tapajós, considerando a probabilidade de repetição dos danos
preferindo-se espécies usadas para tratar ambientais, étnicos, culturais e sociais que ocorreram com a
implementação da Hidrelétrica de Belo Monte. Disponível
doenças mais comuns, específicas da mulher, em <www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150928_
greenpeace_tapajos> e <noticias.terra.com.br> Notícias › Ciência
doenças endêmicas, entre outras; › Sustentabilidade>. Acessado em 25/5/2016.
Sem título, vitória-régia, empresa paranaense. Essa empresa possuía do-se consultar os moradores mais antigos, os
Frans Krajcberg, s/d
Coleção Frans Krajcberg,
Nova Viçosa (BA). um título de terra questionado judicialmente jovens, os professores, os filhos do beiradão
pelo Ministério Federal, que, em 2006, que vivem nas cidades. Cabe ao governo, de
ingressou com ação civil pública para obter acordo com o documento, procurar a comuni-
seu cancelamento e garantir às comunidades dade com antecedência mínima de três sema-
tradicionais de Montanha e Mangabal os nas, para acertarem juntos as datas e facilitar
direitos aos seus territórios tradicionais. a comunicação com as famílias, avisando a
No protocolo comunitário, o povo de associação pelo rádio e usando a linguagem
Montanha e Mangabal insurge-se primei- do dia a dia beiradeiro, com a participação do
ramente contra o plano governamental de Ministério Público Federal.
construir barragens no rio Tapajós sem sequer Chama atenção, no protocolo, o destaque
consultar o grupo. Exige o cumprimento à não aceitação da presença de Polícia Militar,
da consulta prévia, de “todos juntos”, com Federal, Força Nacional de Segurança Pública,
reuniões na comunidade e em Itaituba, deven- Agência Brasileira de Inteligência ou Polícia
Rodoviária Federal, pois, no entendimento O protocolo visa estabelecer regras para a

no acesso à biodiver sidade


Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação
desse grupo, isso constituiria fonte de pressão. obtenção da consulta prévia, dispondo, como

a c i o n a l
O protocolo também não permite a obtenção primeiro princípio normativo, que a consulta
de imagens sem a autorização por escrito da antecede a decisão, ou seja, o governo não
comunidade, devendo o governo filmar as reu- deve consultar a comunidade quando já tiver

N
r t í s t i c o
niões e emitir cópias completas das gravações. uma decisão tomada sobre um empreendi-
Conforme o protocolo17, as reuniões se mento, a consulta precisa ser feita antes de

A
dividem em quatro categorias: tudo. Os Munduruku propugnam pela garan-

e
a) Reunião sobre o plano de consulta – co- tia do direito de consulta a todos enquanto

i s t ó r i c o
munidade e governo se reúnem visando chegar uma unidade, deixando assente no documen-
a um acordo sobre o plano de consulta. to que nenhuma de suas associações repre-

H
b) Reunião informativa – comunidade e senta o povo e que suas decisões coletivas são

a t r i m ô n i o
governo se reúnem para tirar as dúvidas em tomadas em assembleias gerais convocadas

Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel


três locais: Vilinha e Machado, ambas no Pro- pelos caciques. Estabelecem que as consultas

P
jeto Agroextrativista Montanha e Mangabal, e devem ser feitas na língua munduruku, com

d o
na sede de Itaituba. tradutores de confiança do povo, e que as

e v i s t a
c) Reuniões internas – os beiradeiros dis- reuniões sejam coordenadas por eles.
cutem com a presença dos Munduruku, povo Em seu documento os Munduruku reque-

R
indígena aliado, devendo realizar o número rem a observância do “princípio da paciên-
de reuniões que julgarem necessário para ter o cia”, fundamental para que o povo possa de-
domínio completo da informação. cidir com calma e no seu tempo, sem pressão
d) Reunião de negociação – após obtenção do governo ou de agentes privados. Suas reu-
das informações suficientes, os beiradeiros niões, como as dos beiradeiros do rio Tapajós,
apresentam sua proposta ao governo, que deve seus parceiros, também se dividem em quatro
ouvi-los e dar sua resposta, levando em conta a categorias: reunião sobre o plano de consul- 77

ancestralidade da comunidade. ta; reunião informativa; reuniões internas;


Merece destaque, também, o Protocolo reunião de negociação. Nessa quarta etapa, o
Comunitário do Povo Munduruku, um ins- governo deve ouvir e dar uma resposta à pro-
trumento jurídico de resistência contra os posta dos Munduruku, não podendo haver
empreendimentos hidrelétricos e outros que “chantagem” com os direitos já conquistados
atingem os povos indígenas, alteram o curso (Protocolo de Consulta Munduruku, 2014).
do rio, matam os peixes, inundam aldeias, afe- Outra experiência destacada é a constru-
tam os aspectos espirituais e cosmológicos dos ção do Protocolo Comunitário do arquipé-
povos indígenas da região do Tapajós18. lago de Bailique19, que objetiva o empode-

17. Disponível em <http://fase.org.br/wp-content/ 19. O arquipélago de Bailique é um conjunto de ilhas no


uploads/2016/01/PROTOCOLO-MONTANHA-E- estado do Amapá, com 1,7 mil quilômetros quadrados de área,
MANGABAL.pdf>. incluindo água e terras emersas. Sua população soma 7 mil
habitantes, distribuídos por oito ilhas, com 32 comunidades. A
18. Disponível em <https://fase.org.br/wp-content/ fartura de peixes e açaí se reflete na fisionomia saudável do povo.
uploads/2016/01/munduruku-final-2.pdf>. Acessado em Disponível em <http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Blog/mar-
30/9/2018. doce-mar-do-bailique/blog/40178/>. Acesso em 30/9/2018.
ramento da comunidade para dialogar com que sofre fortes influências das políticas
no acesso à biodiver sidade
Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação

o poder público e privado sobre situações urbanas de mobilidade, implantação de


a c i o n a l

relacionadas à conservação da biodiversidade, projetos de moradia, extração de minerais


uso sustentável e repartição dos benefícios para a construção civil e, até mesmo, da
advindos do acesso aos conhecimentos tradi- proximidade com um aterro sanitário que
N
r t í s t i c o

cionais e patrimônio genético. operava irregularmente.


Priorizando o fortalecimento das O protocolo do Abacatal situa a
A

organizações sociais e a conservação da questão no contexto da resistência cultural,


e

biodiversidade, o protocolo instituiu um além de aportar importantes bases para a


i s t ó r i c o

comitê composto de parteiras, benzedeiras compreensão dos processos e valores em


e curandeiras para discutir a identidade da disputa. Nele, se lê: “Para nós, a terra que
H

comunidade, uso dos recursos naturais, a nos dá morada e alimento é nossa mãe.
a t r i m ô n i o

governança, representatividade, registro e Os igarapés, a floresta e todos os animais


Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel

catalogação dos conhecimentos tradicionais, com os quais compartilhamos nossa


P

modos de manejo dos recursos naturais, entre história não são mercadorias, para nós são
d o

outros assuntos20. O protocolo comunitário partes que não podem ser separadas”. O
e v i s t a

tem caráter aberto e cada especificidade documento também expressa a indignação


de acesso e uso do patrimônio genético da comunidade com as ações que até então
R

da biodiversidade e dos conhecimentos impactaram seu território, ressaltando:


tradicionais pode gerar um novo protocolo.
Vivíamos em paz, mas eis que chega o
Assim, ele carrega as experiências anteriores,
“progresso”, a urbanização que exclui, e com
que vão se acumulando e possibilitando o isso sofremos toda sorte de mazelas e de ameaças
aperfeiçoamento das normas internas dos à nossa comunidade. Nossas terras já foram
povos indígenas, comunidades e agricultores invadidas, vendidas e nossas casas derrubadas.
78 tradicionais e a adaptação às novas situações Lutamos, resistimos, vencemos. Agora nossos
que surgem. igarapés e o ar que respiramos estão poluídos pelo
Mais recentemente, no Pará, foi aterro sanitário (que para nós é um lixão) e pelo
despejo de esgotos de condomínios. Na estrada
aprovado pela Comunidade Quilombola
que dá acesso à nossa comunidade retiram aterro e
do Abacatal, na Região Metropolitana
depositam lixo às suas margens. Estamos resistindo
de Belém, o Protocolo de Consulta
e não iremos ser derrotados.
Quilombolas de Abacatal/Aurá21, fruto das
constantes pressões sofridas pelo território Nesse protocolo constam a definição dos
quilombola do Abacatal, localizado em região passos a serem dados, a referência aos que
devem ser consultados e as hipóteses em que
20. Para mais informações, ver Protocolo Comunitário de a consulta é cabível. Para os quilombolas
Bailique. Disponível em <http://www.amazoniacosmetico.
com.br/arquivos/PROTOCOLO_COMUNITARIO_DO_ do Abacatal, mulheres, homens, crianças,
BAILIQUE_Ana_Margarida_Bailique.pdf >. Acessado em
30/9/2018.
adolescentes, jovens, idosos, agricultores,
21. Disponível em <http://www.mppa.mp.br/upload/ universitários, pessoas com deficiência,
PROTOABACATALarquFINAL2709%20(1)_compressed.pdf>,
acessado em 5/10/2018.
grupos culturais, grupos religiosos, famílias
do Sítio Bom Jesus e ribeirinhos do igarapé e de repartição de benefícios, quanto por

no acesso à biodiver sidade


Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação
Uriboquinha, que estejam dentro do território não trazer a lume princípios de direitos

a c i o n a l
tradicional, devem fazer parte da consulta. mais abrangentes, como autodeterminação
e pluralismo. Uma importante estratégia
Conclusão nesse campo pode ser a exigibilidade das

N
r t í s t i c o
normas previstas internacionalmente pela
Os protocolos comunitários constituem via dos protocolos comunitários, criando

A
uma estratégia fundamental de resistência e um ambiente de resistência e afirmação da

e
afirmação dos direitos consuetudinários dos autodeterminação.

i s t ó r i c o
povos indígenas, comunidades e agricultores Em outras palavras, propomos que,
tradicionais, posto que possibilitam o pela via dos protocolos comunitários e com

H
empoderamento social e individual dos fundamento nos tratados internacionais

a t r i m ô n i o
sujeitos que constroem a ação coletiva e se de direitos humanos, os povos indígenas,

Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel


capacitam junto aos parceiros para obter comunidades tradicionais e agricultores

P
informações necessárias ao debate. tradicionais exijam a consulta prévia e a

d o
Vale ressaltar que os protocolos repartição de benefícios, mesmo nas hipóteses

e v i s t a
comunitários podem ser um instrumento em que tenham sido negadas pela Lei nº
destinado ao enfrentamento das múltiplas 13.123/2015, tomando por base o direito à

R
isenções de consulta prévia e repartição de autodeterminação e ao pluralismo jurídico.
benefícios previstas na Lei nº 13.123/2015. Assim, como expressão rica de pluralismo
Isto porque, mesmo nas hipóteses em jurídico e autodeterminação, os protocolos
que essa lei irregularmente buscou afastar comunitários precisam ser reconhecidos
a obrigatoriedade da consulta prévia, os como normas jurídicas com, no mínimo, o
protocolos podem prever a necessidade mesmo status normativo das leis ordinárias,
desse tipo de consulta por representarem por representarem a mais pura expressão 79

direito costumeiro e consuetudinário e a fala jurídica sistematizada dos povos


fundamentado em tratados internacionais indígenas, comunidades e agricultores
de direitos humanos, como a Convenção tradicionais. De sua juridicidade afloram,
sobre a Diversidade Biológica, o Protocolo portanto, a democracia direta, direitos
de Nagoya, assinado e com importante diretos de participação, equidade,
participação do Brasil nas etapas de reconhecimento do outro enquanto
negociação, a Convenção nº 169 da OIT sujeito, ou seja, alteridade, o que confere
e a Declaração das Nações Unidas sobre os aos protocolos uma riqueza jurídica,
Direitos dos Povos Indígenas. organizacional e cultural fundamental para
De fato, a Lei nº 13.123/2015 está repensarmos o direito estatal, suas hierarquias
eivada de inadequações, por desconsiderar os e dogmatismo, refletirmos sobre o modelo de
tratados internacionais de direitos humanos democracia representativa e reconhecermos
supramencionados, tanto ao estabelecer formas diretas de participação, formulação
as hipóteses de isenção de consulta prévia do direito e democracia.
Referências Bailique. Ministério do Meio Ambiente. IEF-AP.
Disponível em <http://www.amazoniacosmetico.com.
br/arquivos/PROTOCOLO_COMUNITARIO_DO_
AUBERTIN, Catherine; FILOCHE, Geoffroy. The BAILIQUE_Ana_Margarida_Bailique.pdf >. Acessado
Nagoya Protocol on the use of genetic resources: one em 7/6/2016.
embodiment of an endless discussion. Sustentabilidade
80 BENSUSAN, Nurit. Guia de apoio à análise da minuta
em Debate, n. 1, v. 2, Brasília, p. 51-64, jan-jun.2011.
do decreto de regulamentação da Lei n. 13.123/2015.
ALMEIDA, Alfredo W. B. “Conhecimentos tradicionais:
Instituto Socioambiental, 2016.
uma nova agenda de temas e problemas. Conflitos entre
o poder das normas e a força das mobilizações pelos BRASIL. Secretariado da Convenção sobre Diversidade
direitos territoriais”. In: ALMEIDA, Alfredo W. B. et al. Biológica e Ministério do Meio Ambiente – MMA.
(orgs). Conhecimentos tradicionais e territórios na Pan- Protocolo de Nagoia sobre acesso a recursos genéticos e
Amazônia. Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da repartição justa e equitativa dos benefícios derivados de
Amazônia/UEA Edições, 2010. sua utilização à Convenção sobre Diversidade Biológica.
Brasília: MMA, 2014. 42 p. Disponível em <https://
ALMEIDA, Alfredo W. B.; NAKAZOMO, Érika et
www.cbd.int/abs/doc/protocol/Nagoya_Protocol_
al. “Mapeamento social como instrumento de gestão
Portuguese.pdf>.
territorial contra o desmatamento e a devastação.
Processos de capacitação de povos e comunidades CLARK, Nathália. Mar, doce mar do Bailique.
tradicionais”. In: ALMEIDA, Alfredo W. B. et al. (orgs). Greenpeace. 2012. Disponível em <http://www.
Conhecimentos tradicionais e territórios na Pan-Amazônia. greenpeace.org/brasil/pt/Blog/mar-doce-mar-do-bailique/
Manaus: Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia/ blog/40178/>. Acessado em 07/6/2016>.
UEA Edições, 2010. DIAS, Jaqueline E.; LAUREANO, Lourdes C. (orgs.)
Orla do rio Tapajós
durante o período BAILIQUE, A. M. Protocolo Comunitário do Bailique. Protocolo comunitário biocultural das raizeiras do
da vazante, Grupo de Trabalho Amazônico – GTA. Conselho cerrado: direito consuetudinário de praticar a medicina
Santarém (PA), 2013
Foto: Chico Lima. Comunitário do Bailique. Colônia de Pescadores do tradicional. Turmalina: Articulação Pacari, 2014.
Disponível em: <http://www.pacari.org.br/wp-content/ prévia, livre e bem informada: um direito dos povos

no acesso à biodiver sidade


Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação
uploads/2012/04/Protocolo_Comunitario_Biocultural_ indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia”,
Raizeiras_Cerrado.pdf>. Acessado em 8/6/2016. 2014. Disponível em <https://fase.org.br/wp-content/

a c i o n a l
uploads/2016/01/munduruku-final-2.pdf. Acessado em
DÍAZ-POLANCO, Héctor. Autonomía regional: la
30/9/2018.
autodeterminación de los pueblos indios. México: Siglo
XXI Editores, 1996. PROTOCOLO DE CONSULTA QUILOMBOLAS

N
r t í s t i c o
DE ABACATAL/AURÁ. Associação de Moradores
DOURADO, Sheilla B. Proteção dos conhecimentos
e Produtores de Abacatal e Aurá – AMPQUA.
tradicionais na Pan-Amazônia: o debate dos debates. Tese
Disponível em <http://www.mppa.mp.br/upload/
de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Direito

A
PROTOABACATALarquFINAL2709%20(1)_
da UFPA. Belém, 2014.

e
compressed.pdf>, acessado em 5/10/2018.

i s t ó r i c o
______. “Direito à participação e direito de consulta”.
PORRO, Noemi Miyasaka. Rupture and resistance:
In: ALMEIDA, Alfredo W. B.; DOURADO, Sheilla B.;
gender relations and life trajectories in the babaçu palm
LOPES, Danilo C. S.; SILVA, Eduardo F. (orgs.). Consulta
forests of Brazil. Tese de Doutorado. Programa de Pós-

H
e participação: a crítica à metáfora da teia de aranha.
graduação da Faculdade de Filosofia da Universidade da

a t r i m ô n i o
Manaus: UEA Edições; PPGSA/PPGAS-UFAM, 2013.
Flórida. Flórida, 2002.
JIMÉNEZ PERONA, Angeles. “Igualdad”. In:

Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel


SALES, Lúcia. PARECER JURÍDICO 017/INBRAPI/PL
AMORÓS PUENTE, Celia. 10 palabras clave sobre
7735/2014. Terra Indígena Serrinha, Ronda Alta (RS),
mujer. Navarra: Verbo Divina, 1995, p. 119-149.

P
2014.

d o
LEITE, Ilka Boaventura. “Humanidades insurgentes:
SÁNCHEZ, Consuelo. “Autonomia, Estados pluriétnicos

e v i s t a
conflitos e criminalização dos quilombos”. In:
e plurinacionais”. In: VERDUM, Ricardo (org.). Povos
ALMEIDA, Alfredo W. B. et al. (orgs). Territórios
indígenas: constituições e reformas políticas na América

R
quilombolas e conflitos. Manaus: Projeto Nova Cartografia
Latina. Brasília: Instituto de Estudos Socioeconômicos,
Social da Amazônia/UEA Edições, 2010.
2009. Disponível em: <file:///C:/Users/ICJ/Downloads/
MACIEL, Luciano M. As quebradeiras de coco babaçu LIVRO+PDF+-+07-AGO-09+Povos+Indigenas.pdf>.
e o mercado: dilema entre proteção do conhecimento Acessado em 7/6/2016.
tradicional e sujeição jurídica. Dissertação de Mestrado.
SANTILLI, Juliana. Biodiversidade e os conhecimentos
Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da
tradicionais associados: um novo regime de proteção.
UEA. Manaus, 2012.
Revista de Direito Ambiental, v. 80, ano 20, p. 259-285.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. São Paulo, Ed. RT, out-dez.2015.
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos 81
TORRES, Mauricio Gonsalves. A beiradeira e o grilador:
Indígenas, 2007. Disponível em <http://www.un.org/esa/
ocupação no oeste do Pará. Dissertação de Mestrado.
socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>. Acessado em
Programa de Pós-graduação da USP, 2008. Disponível
7/6/2016.
em <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/
PROTOCOLO DE CONSULTA MONTANHA E tde-27112008-132446/pt-br.php>. Acessado em
MANGABAL. Documento elaborado pelos beiradeiros 25/5/2016.
do Projeto Agroextrativista Montanha e Mangabal,
WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico:
reunidos no Machado, em 26 e 27 de setembro de
nuevo marco emancipatorio en América Latina. Revista
2014. Associação das Comunidades Montanha e
do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais –
Mangabal, 2014. Disponível em: <http://www.prpa.
Clacso, 2003.
mpf.mp.br/news/2014/arquivos/Protocolo%20de%20
Consulta%20Montanha%20e%20Mangabal_Set_2014. _________. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma
pdf> e <http://fase.org.br/wp-content/uploads/2016/01/ nova cultura do direito. 3 ed. São Paulo: Alfa Omega,
PROTOCOLO-MONTANHA-E-MANGABAL.pdf>. 2001.
Acessado em 25/5/2016 e 7/6/2016.
WOLKMER, Antonio Carlos. FAGUNDES, Lucas
PROTOCOLO DE CONSULTA MUNDURUKU. Machado. Para um novo paradigma de Estado
Documento elaborado pelo Movimento Munduruku Plurinacional na América Latina. Revista NEJ -
Ipereg Ayu, associações Da’uk, Pusuru, Wuyxaximã, Eletrônica, n. 2, v. 18, p. 329-342, mai-ago.2013.
Kerepo e Pahyhyp, Ministério Público Federal e Disponível em <http://www.univali.br/periodicos>.
organizações da sociedade civil. Projeto “Consulta Acessado em 26/6/2016.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

82
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão

Rio Branco (AC), 2018


Foto: Oscar Liberal/Acervo Iphan.
Casas no centro histórico de
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
83

O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

84
Marcia Bezer ra Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira
Marcia Bezer ra

a c i o n a l
C om os cacos no bolso :

o colecionamento de artefatos 1 arqueológicos

N
r t í s t i c o
na A mazônia brasileira *

A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Uma tarde, repentinamente, Edmundo ergueu O trecho que compõe a epígrafe que
a cabeça à saída do bosque e decidiu procurar os
escolhi para abrir este artigo foi retirado do
aterros indígenas existentes na fazenda.
(...) romance Três casas e um rio, publicado pelo

P
Vestiu sua roupa colonial, sem reparar que, escritor Dalcídio Jurandir em 1958. O livro

d o
aos cantos da cozinha, poeirentas urnas indígenas

e v i s t a
guardavam milho, selins e arreios velhos, galinhas faz parte da coleção Ciclo do Extremo-Norte,
da velha Marciana chocando. Regressou à noite que retrata os deleites e as agruras de Alfredo,

R
com uns cacos de barro no bolso e um infinito
mau humor. personagem que sai de Cachoeira do Arari,
(...) município localizado na região dos campos,
E logo passou a pescar, remando em cascos
pelos igarapés, caçando em ilhas distantes, topando
na porção leste da Ilha do Marajó, para Be-
com novos cacos de cerâmico, ora descalço, vestido lém, no estado do Pará. Como em outros
a vaqueiro, ora dentro das roupas de explorador
livros do romancista marajoara, as paisagens
inglês
(...). amazônicas são descritas tendo o imaginário
Dalcídio Jurandir2 “como tessitura do enredo” (Furtado, 2018). 85
São paisagens prenhes de encantamentos,
grávidas do passado (Ingold, 1993:153) e
do presente porque, em sua constituição, se
emaranham temporalidades que transbordam
[de] pessoas, seres e coisas. Em seus roman-
ces, a vida é marcada por um eterno retorno
ao passado imaginado e evocado pela mate-
rialidade (in)formada pelas “narrativas recon-
*Texto editado e revisado pela autora.
tadas por personagens” (Furtado, op. cit.).
1. Reconheço que há uma distinção conceitual entre “artefato”,
“objeto”, “coisa” e as demais categorias que se referem à Igaçabas, machadinhas e ossos também são
materialidade (outro conceito igualmente complexo). Optei pela
ideia de “coisa” tal como proposta por Ingold (2012:29). Contudo,
personagens da literatura de Jurandir, que,
por uma questão de forma, usarei também a categoria “artefato” animados por visagens, estabelecem pontes
como termo equivalente escolhido por sua filiação ao campo da Vaso antropomorfo
Santarém. Coletor Curt
arqueologia, mas nem por isso menos passível de crítica. entre mundos. Sua presença recorrente nos Nimuendaju, Acervo Museu
Paraense Emílio Goeldi
2. Jurandir [1958] 2018:302-303. livros do autor sugere a importância da mate- Foto: César Barreto.
rialidade arqueológica no cotidiano de popu- 2) a convivência familiar e os usos
86
lações que, há séculos, constroem e habitam mundanos de artefatos arqueológicos - “sem
as paisagens amazônicas. reparar que, aos cantos da cozinha, poeirentas
A imanência e a intimidade das relações urnas indígenas guardavam milho, selins e
contemporâneas entre as pessoas e as coisas arreios velhos”;
do passado são reveladas na literatura, 3) a coleta de artefatos - “Regressou à
assim como nas pesquisas acadêmicas noite com uns cacos de barro no bolso”;
desenvolvidas na região. O trecho do livro 4) o encontro fortuito de artefatos
aqui citado traduz um pouco do dia a dia de abundantes na superfície - “topando com
moradores do entorno de sítios arqueológicos novos cacos de cerâmico”;
Cachoeira do Arari, na Amazônia, em especial ao descrever, 5) a construção da ideia de explorador
Ilha de Marajó (PA), 2014
Foto: Eric Royer Stoner. por intermédio de Edmundo, as seguintes estrangeiro, frequentemente, amalgamada
situações: com a figura do arqueólogo - “ora dentro das
Machado polido
identificado por
1) a procura por sítios nas próprias terras roupas de explorador inglês”.
fiscalização em sítio
impactado, Rondônia, 2012 - “decidiu procurar os aterros indígenas Vários pesquisadores têm observado essas
Foto: Danilo Curado/
Acervo Iphan. existentes na fazenda”; práticas em distintos contextos amazônicos.
Entre outros, podemos citar Cabral & cerâmica, louça, lâminas de machado e urnas,

Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira


Saldanha (2009), Martins, Silva & Portal envolvendo, em geral, quatro momentos: a)

a c i o n a l
(2010), Bezerra (2011, 2012a, 2015b, 2017), busca, b) coleta, c) guarda e d) interpretação.
Gomes (2011), Ravagnani (2011), Silva, Esses quatro atos não ocorrem

N
Bespalez & Stuchi (2011), Moraes (2012), necessariamente juntos, pois, como nos

r t í s t i c o
Schaan & Marques (2012), Troufflard romances de Dalcídio Jurandir, nem sempre
(2012), Barreto (2013), Lima, Moraes & a busca por artefatos acontece de forma

A
Parente (2013), Cabral (2014 e 2016), planejada. A coleta pode ser resultante de

e
i s t ó r i c o
Carneiro (2014), Gomes, Costa & Santos achado fortuito, o que é muito frequente na
(2014), Leite (2014), Machado (2014), Amazônia. A guarda do material, por sua

H
Rocha, Beletti, Py-Daniel, Moraes & Oliveira vez, pode ser transitória, durar poucas horas

a t r i m ô n i o
(2014), Silva (2016), Lima, Andrade & Silva ou dias, como no caso de crianças que usam
(2017), Bianchezzi (2018) e Maurity (2018). os artefatos em suas brincadeiras e depois
De forma pontual, todos eles indicam, por os descartam, sobretudo em locais onde são

P
d o
meio de inúmeros exemplos, que a fruição abundantes na superfície. Ou no caso de

e v i s t a
com o passado é gerada na experiência adultos que coletam artefatos dos quais se
sensível de tornar próprios fragmentos de desfazem, com brevidade, por considerá-los

Marcia Bezer ra
87
provocadores de visagens, tanto durante a Sob a ótica do Estado brasileiro3, os
Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira

vigília como por meio de sonhos. bens arqueológicos são reconhecidos como
a c i o n a l

A agência das coisas do passado sobre as constitutivos do patrimônio cultural da


pessoas do presente, na Amazônia, expõe a União. A Constituição de 19884 define
em seu capítulo II, artigo 20, inciso X que
N

profundidade dos nexos que caracterizam a


r t í s t i c o

dinâmica cotidiana no que se refere aos bens são bens da União “as cavidades naturais
arqueológicos. Não “dar ouvidos” a práticas subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-
A

oriundas de outros sistemas de pensamento históricos”. Mais adiante, no capítulo III,


e

seção II, artigo 216, parágrafo 4°, determina


i s t ó r i c o

é ignorar e contradizer nossos próprios


argumentos sobre a relevância do que que “Os danos e ameaças ao patrimônio
denominamos “patrimônio” para as pessoas cultural serão punidos, na forma da lei”.
H

Do mesmo modo, a Lei n° 3.924, de 26 de


a t r i m ô n i o

que constituem diversas “comunidades de


julho de 19615, ao dispor sobre o patrimônio
origem” desses materiais. Hilbert (2006:100),
arqueológico, decreta, no artigo 1°: “Os
ao fazer uma pertinente crítica à Educação
P

monumentos arqueológicos ou pré-históricos


d o

Patrimonial, expressa essa contradição:


de qualquer natureza existentes no território
e v i s t a

Primeiro, os arqueólogos procuram convencer nacional e todos os elementos que neles se


as pessoas da importância dos inestimáveis valores encontram ficam sob a guarda e a proteção do
R

da cultura material arqueológica que está na Poder Público (...)”. Em seu parágrafo único,
sua propriedade. Depois distribuem cartilhas estabelece que “A propriedade da superfície,
Marcia Bezer ra

em linguagens infantis, elaboram programas


regida pelo direito comum, não inclui a
de educação patrimonial sem sentido para a
das jazidas arqueológicas ou pré-históricas,
comunidade local, até a ameaçam com multas
nem a dos objetos nelas incorporados (...)”.
e prisão em caso de desobediência às leis, e
Sua destruição ou mutilação é considerada,
88
depois, quando finalmente os moradores do
sítio arqueológico dão sinal de ter incorporado o
conforme ordenado no artigo 5°, crime
discurso dos educadores patrimoniais, esses objetos contra o Patrimônio Nacional, passível de
tão valiosos e importantes são levados embora punição prevista em lei.
pelos arqueólogos. A Lei n° 3.924/1961 reconhece a
ocorrência de achados fortuitos. O capítulo
Foge aos propósitos deste artigo discutir a IV, intitulado “Das Descobertas Fortuitas”,
Educação Patrimonial, campo ao qual já me trata do descobrimento e da guarda dos
dediquei em publicações anteriores (Bezerra, bens arqueológicos. Em seu artigo 17
2006, 2010, 2015 e Silveira & Bezerra 2007),
mas as reflexões de Hilbert se alinham com 3. Iphan (2018). Legislação sobre o patrimônio arqueológico:
Lei nº 3.924, de 26 de julho de 1961, Portaria n° 07, de 1º de
as minhas inquietações sobre a relação entre a dezembro de 1988, e Instrução Normativa n° 001, de 25 de
março de 2015. Disponível em <http://www.iphan.gov.br>.
gênese das “coleções domésticas” de artefatos Acessado em julho de 2018.
arqueológicos (Bezerra, 2011:58) reunidos 4. Disponível em: <http://www2.planalto.gov.br/conheca-a-
presidencia/acervo/constituicao-federal>. Acessado em julho
por moradores de localidades amazônicas e a de 2018.

perspectiva do Estado sobre elas. 5. Iphan (2006).


afirma que a posse e a salvaguarda desse que, independentemente de sua natureza,
patrimônio “constituem, em princípio, pertence à União. A noção de propriedade
direito imanente ao Estado”. Para efeito privada não se aplica aos locais em que há
da discussão aqui desenvolvida, destaco o vestígios da presença humana no passado. O 89

parágrafo único do artigo 18, que diz: “O sítio arqueológico é caracterizado por uma
proprietário ou ocupante do imóvel onde se materialidade subterrânea que, no entanto,
tiver verificado o achado, é responsável pela transborda para a superfície, invadindo a
conservação provisória da coisa descoberta, vida cotidiana no presente. No horizonte
até pronunciamento e deliberação da patrimonial do Estado, não há distinção
Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico entre as coisas enterradas pelo tempo,
Nacional” (grifo meu). O não cumprimento aquelas que estão “longe dos olhos”, e as
dessa determinação, de acordo com o artigo coisas que se espraiam pelas bordas dos sítios
19, acarreta a “apreensão sumária do achado”. e seus arredores, tornando-se visíveis. No
Esses dispositivos legais tipificam não apenas caso dos achados fortuitos, o responsável
os bens arqueológicos, mas também as pela propriedade na qual foi registrada
pessoas e as relações estabelecidas entre eles. a ocorrência tem o dever de zelar pela Afloramento de material
depois da chuva,
Os sítios e os objetos neles recuperados conservação do(s) objeto(s) encontrado(s) Vila de Joanes,
Marajó (PA), 2009
constituem o patrimônio arqueológico até que o órgão fiscalizador se manifeste Foto: Marcia Bezerra.
Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

Marcia Bezer ra

sobre o episódio. Pode parecer que nessa provisória é compulsória, não representando
situação a conservação do bem, ainda que um mecanismo de cogestão em si, mas um
provisória, seja, em princípio, compartilhada dever imputado ao indivíduo em relação ao
90 com alguém que não pertence aos “coletivos patrimônio do Estado. No entanto, pode-se
de especialistas” (arqueólogos e/ou gestores). vislumbrar aí um caminho que equacione,
Porém, a questão não é tão simples. Perante da melhor forma, a brecha existente entre a
a lei, qualquer atitude de apropriação de lei e a sua aplicação prática, particularmente
bens arqueológicos que não tenha sido em regiões onde as pessoas “moram nos sítios
autorizada pelo Estado – que só dá anuência a [arqueológicos]” e onde os “achados fortuitos”
Caco de cerâmica
arqueológica, profissionais com determinadas qualificações 6
fazem parte do dia a dia.
Primavera (PA), 2011
Foto: Marcia Bezerra. – é passível de punição. A conservação Cabe esclarecer que não apoio quaisquer
atos que caracterizem, de fato, a plena
6. Sobre a qualificação profissional para efeito de autorização
de pesquisas arqueológicas no país, ver: Ofício Circular n° 001, destruição do patrimônio arqueológico, mas a
de 22 de fevereiro de 2013-Presi/Iphan e Instrução Normativa
nº 001, de 25 de março de 2015. Disponível em: <http:// minha experiência de pesquisa na Amazônia,
www.iphan.gov.br>. Acessado em julho 2018. Sobre a recém-
regulamentada profissão de arqueólogo no Brasil, ver: Lei n°
assim como a de vários colegas, como aqueles
13.653, de 18 de abril de 2018, publicada no DOU em 19 de citados anteriormente, vem mostrando
abril de 2018. Disponível em: <http://www.sabnet.com.br>.
Acessado em julho 2018. A discussão acerca dos parâmetros que as percepções e, sobretudo, as atitudes
dispostos nesses documentos é de extrema relevância, mas escapa
aos objetivos deste artigo. das pessoas em relação aos sítios e artefatos
arqueológicos na região merecem um olhar de coleções depositadas em instituições

Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira


mais atento por parte de pesquisadores como o Museu Paraense Emílio Goeldi, a

a c i o n a l
e gestores. Há nuances que precisam ser Universidade Federal do Pará e o Instituto
mapeadas, reconhecidas e tomadas como de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do
referência para se pensar a gestão do Estado do Amapá, entre outras. No Pará, há

N
r t í s t i c o
patrimônio arqueológico amazônico (ver 2.337 sítios cadastrados, incluindo-se, entre
Schaan, 2009). eles, sambaquis, tesos, geoglifos, megalitos,

A
A busca por artefatos no subterrâneo (por conjuntos de polidores fixos, abrigos e

e
meio de escavações não autorizadas) e na cavernas com arte rupestre, ruínas de fortes,

i s t ó r i c o
superfície (de forma intencional ou acidental) fortalezas, engenhos, igrejas e camboas etc.9.
é considerada ação de vandalismo, mutilação Cerca de 10% dos sítios cadastrados no Pará

H
e destruição. Muito embora eu admita que estão dispersos pelos municípios do Marajó.

a t r i m ô n i o
as intervenções realizadas nos sítios com o Considerando o crescimento urbano da
intuito de extrair artefatos, para uso próprio região, as possibilidades de encontro entre

P
ou para a venda, causem impactos irreversíveis moradores, sítios e artefatos arqueológicos são

d o
ao patrimônio, penso que não se pode dizer inequívocas e notáveis10.

e v i s t a
o mesmo da prática de coletar artefatos Há cidades como Santarém, no baixo

R
encontrados nas superfícies dos sítios como Amazonas, que estão assentadas sobre grandes
resultado de buscas intencionais ou não. aldeamentos pré-coloniais, como indica o
Reitero que não estou propondo a aprovação nome do bairro “Aldeia”, que ocupa uma

Marcia Bezer ra
de medidas imprudentes com relação à coleta área significativa do espaço urbano. No
de artefatos, mas chamo a atenção para a próprio campus da Universidade Federal do
necessidade de se pensar sobre essa prática – Oeste do Pará – UFOPA, onde funciona o
porque é uma prática consolidada em muitos Bacharelado em Arqueologia, há vestígios
91
lugares – como um fenômeno complexo da ocupação humana no passado. Como
a ser entendido em todos os seus aspectos. diz Eduardo Neves (2015:80), o campus da
Nesse sentido, o contexto amazônico é um UFOPA é “(...) um caso peculiar, em que
caso emblemático pela natureza das intensas tudo o que os cientistas precisam fazer é sair
relações estabelecidas, cotidianamente, entre as de seus departamentos e, literalmente, pisar
pessoas e as coisas do passado (Bezerra, 2017). no solo forrado de fragmentos cerâmicos de
Os estados que compõem a Região Norte7
concentram cerca de 20% do patrimônio 9. Para um quadro da ocupação humana no período pré-colonial,
ver: McEwan, Barreto & Neves (2001); Pereira & Guapindaia
arqueológico cadastrado no país, com (2010); Schaan (2011); Barreto, Lima & Betancourt (2016).
mais de 5 mil sítios arqueológicos8, além 10. Ressalto a importância de se discutir a criação de medidas
que reconheçam e assegurem as perspectivas e os direitos de
inúmeros coletivos indígenas sobre o patrimônio arqueológico
7. Para efeito desse levantamento foram considerados apenas situado em suas terras. Considerando os múltiplos matizes que
os estados da Região Norte, e não o conjunto dos estados da envolvem essas relações e a vasta e densa produção acadêmica
Amazônia Legal. de colegas que desenvolvem pesquisas em terras indígenas na
Amazônia (Green, Green & Neves, 2003; Silva, 2011; Silva,
8. Fonte: Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos – CNSA/ Bespalez & Stuchi, 2011; Rocha et al., 2013; Cabral, 2014 e
Iphan. Disponível em <http://www.iphan.gov.br>. Acessado em 2016; Caromano, Cascon & Murrieta, 2016; Garcia, 2017, entre
julho de 2018. outros), o tema não será tratado neste texto (ver Bezerra, 2012b).
Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

Marcia Bezer ra

92

Vaso zoomorfo Santarém.


Coletor Curt Nimuendaju.
Acervo: Museu Paraense
Emílio Goeldi
Foto: César Barreto.

Estatueta chocalho
marajoara antropo/
falomorfa. Doação:
Comunidade Santana do
Arari, 2004. Acervo Museu
Paraense Emílio Goeldi
Foto: César Barreto.
povos ancestrais (...)”. Nimuendaju dizia de coisas enterradas no que ela chama de

Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira


que Santarém era uma “mina inesgotável de “terra falsa”.

a c i o n a l
cerâmica” (Amoroso, 2001:177). As lâminas de machado, conhecidas
Esse contato ordinário, estreito e também por coriscos, pedras de corisco ou
espontâneo com a materialidade arqueológica pedras de raio, provocam a curiosidade,

N
r t í s t i c o
não é prerrogativa dos professores e o espanto e o medo, mas também as
estudantes da UFOPA. Em inúmeras reminiscências e a saudade. Como mostrei

A
localidades amazônicas as pessoas “já se em publicações anteriores (Bezerra, 2015b

e
acostumaram com os cacos” (itálico no e 2017), essas coisas podem servir para

i s t ó r i c o
original), como relatado por Gomes, Costa e contar histórias aos filhos, evocar lembranças
Santos (2014: 405) em referência ao convívio da infância ou recordar histórias narradas

H
de moradores da Comunidade Bom Jesus do pelos pais. Podem ser guardadas como

a t r i m ô n i o
Baré e da Comunidade Kalafate, em Amanã, herança familiar e, juntar-se à memorabilia,
no Amazonas. Em outros lugares, como no misturadas com fotografias, documentos etc.,

P
município de Parintins, também no estado ou ser descartadas para evitar que sua agência

d o
do Amazonas, os moradores andam “olhando sobre as pessoas ocasione doenças e outros

e v i s t a
para o chão” de forma atenta, à procura dos infortúnios. Almeida & Sprandel (2006)
descrevem o uso de fragmentos de cerâmica

R
objetos dispersos pelas superfícies de sítios de
terra preta, como mostra Bianchezzi (2018:6). arqueológica para decorar casas de pescadores
Em trabalhos anteriores (Bezerra, 2011 no Marajó.

Marcia Bezer ra
e 2017), tratei das biografias de pessoas e É muito comum encontrar caixas
coisas que se emaranham na Vila de Joanes, de sapato repletas de material
no Marajó. Citei a fala de D. Maria: “Desde arqueológico na Amazônia
que eu me entendo, a ruína sempre esteve (Bezerra, 2011; Bianchezzi,
2018), uma situação 93
lá”, referindo-se ao sítio de Joanes11. Esse
emaranhado ganha substância nos casos em também recorrente em
que as pessoas verdadeiramente moram nos contextos longínquos.
sítios. Retomo neste texto a narrativa de D. Colwell-Chanthaphonh
Maria, agricultora e moradora de Água Azul, (2004:575), ao conduzir
Rurópolis, na beira da Transamazônica, no pesquisa etnográfica no
Pará. O quintal de sua casa é pontilhado de sudeste do Arizona,
fragmentos de cerâmica que, num cantinho Estados Unidos,
ao pé de uma árvore, convivem lado a lado afirma ser difícil
com as ferramentas de trabalho utilizadas no entrar em
roçado. Sua existência é conectada às visagens uma casa
que se manifestam em seus sonhos, falando da região
e não
11. Sítio arqueológico Joanes (PA-JO-46), formado por encontrar
remanescentes de ocupações pré-coloniais e históricas (ver Lopes,
1999; Bezerra, 2011 e Schaan & Marques 2012). artefatos.
Ele menciona as caixas de sapato em que os creio ser prematuro utilizar a categoria
Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira

moradores guardam fragmentos de cerâmica. de “escavadores por subsistência” sem a


a c i o n a l

Uma das moradoras disse dar tanto valor realização de pesquisas sistemáticas nos
para as peças que as guarda em sua caixa contextos em que se observa, segundo alguns
de joias. Mais adiante (ibid.:591), o autor
N

autores, a comercialização de artefatos


r t í s t i c o

reproduz a fala de um morador da região (Schaan, 2009). Lima, Moraes & Parente
referindo-se à coleta: “virou uma coisa de (2013) mostram que na região de Valéria,
A

família” (trad. minha). Parintins, ponto de parada de luxuosos


e

Colwell-Chanthaphonh argumenta que


i s t ó r i c o

cruzeiros internacionais no Amazonas, os


há uma distinção entre coletores como esses – moradores relatam que a venda de peças
que não escavam os sítios, não têm a intenção ocorre há mais de 30 anos. Esses autores
H

de vender os artefatos e apenas querem


a t r i m ô n i o

também reconhecem que há uma distinção


formar suas “pequenas e pessoais” coleções entre coletores (ibid.:69):
que são muito “estimadas” (ibid.:573) – e
(...) o que diferencia o comércio esporádico
P

coletores que buscam ganho financeiro.


d o

voltado aos turistas e a venda feita a mercadores


Da mesma forma, ele os diferencia dos
e v i s t a

de peças arqueológicas – estes sim os verdadei-


chamados subsistence diggers (escavadores por
ros traficantes – é a intencionalidade investida
R

subsistência, trad. minha). Essa categoria é


nas duas práticas e o modo como os agentes da
usada para descrever uma pessoa que “(...) transação se colocam frente à legislação vigente e
usa o produto da venda de artefatos para
Marcia Bezer ra

frente ao patrimônio cultural em questão. É válido


apoiar seu estilo de vida tradicional de pontuar que estas duas formas de evasão de mate-
subsistência” (Staley, 1993:348, trad. minha). riais arqueológicos dos sítios da região apresentam
A comercialização dos bens arqueológicos, distinções bastante pronunciadas quanto ao tipo
nesses casos, visa prover o sustento de e quantidade de vestígio comercializado. No caso
94 da venda de “souvenirs” para turistas, as peças
populações em situação de vulnerabilidade.
Hollowell, em artigo seminal, discute vendidas são geralmente de pequenas dimensões, e
o volume de material vendido é pouco significati-
os argumentos morais da “escavação por
vo. Já os negociadores de peças possuem interesse
subsistência” a partir de pesquisa desenvolvida
em vasos inteiros, com decoração esteticamente
na Ilha St. Lawrence, território do Alaska,
relevante e, de forma geral, um grande número de
onde ouviu de um morador: “Nossos peças é comercializado.
ancestrais deixaram essas coisas para que
pudéssemos sobreviver numa economia Os autores desenvolveram um projeto
de mercado” (Hollowell, 2006:143, trad. comunitário em Valéria que resultou, entre
minha). Ainda segundo a mesma autora, a outros aspectos, na constatação de que
coleta de artefatos “faz parte do tecido social não é possível encaixar as práticas que ali
de St. Lawrence” (op.cit.). ocorrem dentro da categoria “tráfico” por não
A venda de material arqueológico haver, por parte das pessoas, “a consciência
na Amazônia constitui um desafio para da ilegalidade da negociação” (ibid.:73).
a gestão do patrimônio. No entanto, Conforme destacam, aplicar as sanções
previstas em lei para o que se considera Os casos de coleta de artefatos na

Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira


“tráfico” é um equívoco que poderia impactar Amazônia são incontáveis. Nem todos

a c i o n a l
as relações sociais e o cotidiano em Valéria. resultam na formação de coleções duradouras,
Na zona rural de Manaus, no estado como já destacado no início deste texto. Em
do Amazonas, Lima, Andrade & Silva alguns casos, a guarda do material tem outros

N
r t í s t i c o
(2017) observaram que a intensa prática de objetivos, como observado por Maurity (2018)
coleta de artefatos deu origem a coleções em um terreiro de Tambor de Mina, em

A
muito estimadas pelos moradores. Ao Belém, onde uma lâmina de machado polida

e
longo do trabalho de campo, os conflitos tem uma agência importante no processo de

i s t ó r i c o
relativos ao pertencimento dos artefatos seu assentamento.
arqueológicos mostraram-se acirrados, Em outras situações, a formação da cole-

H
levando o Iphan e o Ministério Público a ção é o objetivo da coleta, como observado

a t r i m ô n i o
acompanhar a situação. Para os autores, de forma particular por Ravagnani (2011) ao
o importante é refletir sobre “Quem tem discutir as coleções de moedas encontradas por

P
direito à coleção arqueológica?” (ibid.:117). crianças na Vila de Joanes, Marajó (Bezerra,

d o
A pergunta pode ser estendida a diversos 2011). Mas também há coleções resultantes de

e v i s t a
contextos na Amazônia, onde disputas achados fortuitos nas roças, nos quintais e nas
em torno do patrimônio arqueológico são ruas de terra, depois das chuvas. É o caso da

R
frequentes, como testemunhado por Schaan coleção da professora Vera, que reuniu os frag-
& Marques (2012) na Vila de Joanes, mentos encontrados em seu quintal durante a

Marcia Bezer ra
Marajó, e por Leite (2014) no Laranjal construção da casa, no Marajó, e os guardou
do Maracá, no Amapá, e muitas vezes em uma caixa de sapatos, tal como fazem
envolvem coleções de artefatos reunidas os moradores do Arizona mencionados por
por moradores. Colwell-Chanthaphonh (2004).
95

Criança coleciona artefatos


na Vila de Joanes,
Marajó (PA), 2009
Foto: Marcia Bezerra.
Crianças coletam peças para guardar quilombolas, um ramo de flores enfeita um
Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira

e brincar, escolhem os objetos mais vaso de grés12 (Moraes, 2012).


a c i o n a l

“enfeitadinhos” e “riscadinhos” (alusão à Márcio Amaral Lima (Lima, 2017:76)


técnica de decoração da cerâmica) e narram os assinala que o hábito de coletar artefatos
assombros que habitam os sítios arqueológicos
N

na Amazônia é antigo. Ele próprio, que


r t í s t i c o

(Silveira & Bezerra, 2012). Em várias ocasiões é arqueólogo, vinculado ao Laboratório


é a prática da coleta, mais do que o objeto dela, de Arqueologia do Instituto do
A

que importa. Em localidades do Marajó, onde Desenvolvimento Sustentável Mamirauá,


e

a prática faz parte da vida social, os fragmentos


i s t ó r i c o

declara que o seu interesse pela arqueologia


que se revelam nas superfícies depois das surgiu quando era jovem:
chuvas convidam à brincadeira de encontrar
H

Meu interesse e curiosidade em torno de


as coisas do passado, que são selecionadas por
a t r i m ô n i o

“caretinhas” toma início com os relatos dos


razões estéticas, mas também pela antiguidade
avós maternos e posteriormente avó paterna
ou raridade que o responsável pela coleta
acerca de sítios arqueológicos e terras pretas em
P

atribui a elas.
d o

Lago Grande de Vila Franca, Rio Arapiuns, Rio


A relação de proximidade com a
e v i s t a

Tapajós e Belterra. Contribuiu para manter o


materialidade arqueológica tem uma história meu interesse a parca literatura disponível e uma
R

de longa duração na Amazônia. Leite lâmina de machado oriunda do sítio 8° BEC, que
(2014:129) cita relato de Peter Hilbert, pertencia a um primo que a descartou em uma
de 1955, ao falar do Igarapé do Limão, lixeira doméstica.
Marcia Bezer ra

Amapá: “(...) um caboclo curioso entrou


O “ajuntamento de cacos”13, como
na gruta e retirou a maioria das cabeças
mostrei a partir de alguns exemplos,
em forma de cone truncando as urnas
para mais tarde servir delas como cuia de pode se misturar a uma coleção de coisas
96 biográficas, afetivas e formar o que van
farinha”. Os pesquisadores norte-americanos
Betty Meggers e Clifford Evans, em 1957, Velthem (2007) chama de “família de
mencionaram o uso de urnas funerárias como objetos”. A ideia desenvolvida pela autora
recipiente para armazenar água (Meggers & a partir de pesquisa realizada com famílias
Evans, 1957:48). de produtores de farinha no Acre, contribui
Segundo Rove (1952:2), um padre para a compreensão das coisas do passado a
alemão teria dito para Nimuendaju que “as partir do seu deslocamento da arena pública
crianças em Santarém brincam com peças de do patrimônio para o domínio da vida
cerâmica antiga as quais chamam de ‘caretas’ privada. Hilbert (2006:99) argumenta que
e que foram encontradas na própria cidade
12. Trata-se de recipiente de cerâmica de origem europeia
(trad. minha)”.Há também o caso de uma utilizado para armazenamento de líquidos e encontrado em sítios
mulher que usava urnas como panela de históricos no Brasil.

cozinha e para plantar flores no Amapá (ver 13. Em alusão ao documentário O ajuntador de cacos: a história
de Giovanni Gallo e o seu Marajó. Paulo Miranda (dir.), Lux
Silva, 2016). Em São Domingos do Capim, Amazônia Filmes, 2010. O filme conta a história do padre
italiano que viveu no Marajó por mais de 30 anos e fundou o
no Pará, em uma escola de comunidades Museu do Marajó.
“os objetos não podem ser fixados dentro um lócus privilegiado para se compreender a

Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira


de uma única rede de significados, espaços e dimensão e a importância do patrimônio no

a c i o n a l
tempos” e que, “Ao retirar cultura material da mundo contemporâneo. Afinal, se essas prá-
circulação cultural e social, pelo processo de ticas fazem parte da história de longa duração
tombamento, ela cai num buraco”. Por isso, de ocupação da região amazônica, se estão tão

N
r t í s t i c o
para ele, nós arqueólogos estamos sempre emaranhadas no cotidiano e até na literatura,
“negociando com ilusões”. podemos nos perguntar se não são elas tam-

A
A concretude do engajamento material bém uma outra forma de patrimônio...

e
com o passado e a longa permanência das

i s t ó r i c o
narrativas visagentas sobre o patrimônio Referências
arqueológico no imaginário amazônico

H
ALMEIDA, A. W. B.; SPRANDEL, M. A. Palafitas do
sugerem que certas práticas, entre elas as

a t r i m ô n i o
Jenipapo na Ilha de Marajó: a construção da terra, o uso
de coleta e colecionamento de artefatos, comum das águas e o conflito. Novos Cadernos NAEA, n.
alimentam e, ao mesmo tempo, ordenam a 1, v. 9, Belém, p. 25-75, 2006.

P
experiência constante de lidar com paisagens AMOROSO, M. R. Nimuendajú às voltas com a história.

d o
Revista de Antropologia, n. 2, v. 44, USP, p. 173-186, 2001.
de outrora que se impõem no presente e se

e v i s t a
BARRETO, C. Corpo, comunicação e conhecimento:
apresentam como parte da vida cotidiana. reflexões para a socialização da herança arqueológica na
Ouso dizer que elas se constituem como

R
Amazônia. Revista de Arqueologia, n. 1, v. 26, p. 112-128,
2013.
elementos estruturantes da noção de
BARRETO, C.; LIMA, H.; BETANCOURT, C. (orgs.).
tempo e de espaço de distintos sistemas de

Marcia Bezer ra
Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova
pensamento na Amazônia. Há uma matriz de síntese. Belém: Iphan, MPEG, 2016.
emoções disparadas pelas coisas do passado BEZERRA, M. “Educação [bem] patrimonial na escola”.
que, de forma recursiva, “vazam”, para usar In: Najjar, J.; Camargo, S. (orgs). Educação se faz (na)
política. Niterói: EdUFF, 2006, p. 79-97.
termos de Ingold (2012), (d)essas mesmas
______. “‘Nossa herança comum’: considerações sobre
emoções e que precisam contaminar a 97
a educação patrimonial na arqueologia amazônica”. In:
forma de se fazer arqueologia e gerenciar o PEREIRA, E.; GUAPINDAIA, V. (orgs.). Arqueologia
amazônica. Belém: MPEG, v. 2, 2010, p. 1021-1036.
patrimônio arqueológico na Amazônia.
______. ‘As moedas dos índios’: um estudo de caso
O Estado brasileiro dispõe de uma legis- sobre os significados do patrimônio arqueológico para
lação abrangente que há décadas orienta o os moradores da Vila de Joanes, Ilha de Marajó, Brasil.
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, n.1, v. 6.
gerenciamento do patrimônio arqueológico
Ciências Humanas, Belém, p. 57-70, 2011.
no país. Reconheço os inúmeros avanços
______. Signifying heritage in Amazon: a public
promovidos pelos órgãos responsáveis pela archaeology project at Vila de Joanes, Marajó Island,
gestão dos bens arqueológicos, mas insisto na Brazil. Chungara, n. 3, v. 44, p. 363-373, 2012a.

necessidade de discutir a prática de coleta e ______. ‘Sempre quando passa alguma coisa, deixa rastro’:
um breve ensaio sobre patrimônio arqueológico e povos
colecionamento de artefatos em outros ter- indígenas. Revista de Arqueologia, n. 1, v. 24, p. 74-85,
mos. Em que pese o inquestionável zelo pela 2012b.
preservação do patrimônio, entendo que a ______. At that edge: archaeology, heritage education,
and human rights in the Brazilian Amazon. International
condenação desses atos, a priori, afasta a pos-
Journal of Historical Archaeology, n. 4, v. 19, p. 822-831,
sibilidade de que sejam vislumbrados como 2015a.
______. “Touching the past: the senses of things for Costa. Arqueologia comunitária na Reserva Amanã:
Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira

local communities in Amazon, Brazil”. In: PELLINI, J. história, alteridade e patrimônio arqueológico. Amazônica
R.; ZARANKÍN, A.; SALERNO, M. A. (orgs.). Coming – Revista de Antropologia, n. 2, v. 6. Dossiê: Arqueólogos
a c i o n a l

to senses: topics in sensory archaeology. Cambridge: e Comunidades Locais na Amazônia, organizado por M.
Cambridge Scholars Publishing, p. 105-118, 2015b. Bezerra e M. Cabral, p. 385-417, 2014.
______. Teto e afeto: sobre as pessoas, as coisas e a GREEN, L. F.; GREEN, D. R.; NEVES, E.G.
N

arqueologia na Amazônia. Belém: GK Noronha, 2017. Indigenous knowledge and archaeological science.
r t í s t i c o

BIANCHEZZI, C. Fascinação e encantamento: Journal of Social Archaeology, n. 3, v. 3, p. 365-397, 2003.


colecionismo de objetos arqueológicos na região de HILBERT, K. Qual o compromisso social do arqueólogo
A

Parintins (AM). 2018. (não publicado). Gentilmente brasileiro? Revista de Arqueologia, n. 1, v. 19, p. 89-101,
e

cedido pela autora. 2006.


i s t ó r i c o

CABRAL, M. P. No tempo das pedras moles: arqueologia HOLLOWELL, J. “When artifacts are commodities”.
e simetria na floresta. Tese de Doutorado. Programa de In: VITELLI, K.; COLWELL-CHANTHAPHONH,
Pós-graduação em Antropologia, UFPA. Belém, 2014. C. (orgs.). Archaeological ethics. 2 ed. Lanham: Altamira
H

______. Entre passado e presente: arqueologia e coletivos Press, p. 135-147, 2006.


a t r i m ô n i o

humanos na Amazônia. Teoria & Sociedade, v. 24, p. INGOLD, T. The temporality of the landscape. World
76-91, 2016. Archaeology, n. 2, v. 25, p. 152-174, 1993.
CABRAL, M. P.; SALDANHA, J. D. de M. Sobre a ______. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados
P

fluidez do concreto: refletindo sobre pessoas e objetos criativos num mundo de materiais. Horizontes
d o

em alguns projetos de arqueologia no estado do Amapá, Antropológicos, n. 37, v. 18, p. 25-44, 2012.
e v i s t a

Brasil. MÉTIS: história & cultura, n. 16, v. 8, p. 217-228,


IPHAN. Coletânea de leis sobre preservação do patrimônio.
jul.-dez.2009.
Rio de Janeiro: Iphan, 2006.
R

CARNEIRO, G. C. Educação patrimonial e arqueologia:


IPHAN. Patrimônio arqueológico. 2018. Disponível
alguns aspectos desta interface. Amazônica – Revista
em <http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/315>.
de Antropologia, n.2, v. 6. Dossiê: Arqueólogos e
Acessado em junho de 2018.
Marcia Bezer ra

Comunidades Locais na Amazônia, organizado por M.


Bezerra e M. Cabral, p. 442-458, 2014. JURANDIR, D. Três casas e um rio. 4 ed. Bragança: Pará.
CAROMANO, C. F.; CASCON, L. M. A.; grafo Editora, [1958] 2018.
MURRIETA, R. S. S. A Roça Asurini e o Fogo Bonito LEITE, L. F. S. Pedaços de pote, bonecos de barro e
de Aí. Habitus, v. 14, p. 131-140, 2016. encantados em Laranjal do Maracá, Mazagão, Amapá:
COLWELL-CHANTHAPHONH, C. Those perspectivas para uma arqueologia pública na Amazônia.
98 Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em
obscure objects of desire: collecting cultures and the
archaeological landscape in the San Pedro Valley of Antropologia, UFPA. Belém, 2014.
Arizona. Journal of Contemporary Ethnography, n. 5, v. 33, LIMA, A. M. A. Contextualização espacial, histórica
p. 571-601, 2004. e tecnológica dos muiraquitãs amazônicos. TCC.
FURTADO, M. T. “Três Casas e Um Rio e as travessias Bacharelado em Arqueologia, Instituto de Ciências da
de Alfredo. Travessias de Dalcídio Jurandir?”. In: Sociedade, UFOPA. Santarém, 2017.
JURANDIR, D. Três casas e um rio. 4 ed. Bragança: Pará. LIMA, H. P.; ANDRADE, E. B.; SILVA, C. A. Gestão
grafo Editora, [1958] 2018. do patrimônio arqueológico na Amazônia: desafios da
GARCIA, L. L. W. G. Paisagens do médio-baixo Xingu: curadoria compartilhada nas redes do Tupé, Manaus,
arqueologia, temporalidade e historicidade. Tese de Amazônia. Revista de Arqueologia Pública, n. 2, v. 11, p.
Doutorado. Programa de Pós-graduação em Arqueologia, 114-137, 2017.
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2017. LIMA, H. P.; MORAES, B. M.; PARENTE, M.
GOMES, D. M. C. “Archaeology and caboclo T. V. “Tráfico” de material arqueológico, turismo
populations in Amazonia: regimes of historical e comunidades ribeirinhas: experiências de uma
transformation and the dilemmas of self-representation”. arqueologia participativa em Parintins, Amazonas. Revista
In: GNECCO, C.; AYALA, P. (orgs.) Indigenous people de Arqueologia Pública, n. 8, p. 61-77, 2013.
and archaeology in Latin America. Walnut Creek: Left LOPES, P. R. C. A colonização portuguesa da Ilha de
Coast Press, p. 295-314, 2011. Marajó: espaço e contexto arqueológico-histórico na
GOMES, J.; COSTA, R. B.; SANTOS, B. L. S. da Missão Religiosa de Joanes. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-graduação em História, PUC-RS. Porto Bezerra e M. Cabral, p. 358-384, 2014.

Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira


Alegre, 1999. SCHAAN, D. P. Marajó: arqueologia, iconografia,
MACHADO, J. S. Ilha Caviana: sobre as suas história e patrimônio. Textos selecionados. Erechim:

a c i o n a l
paisagens, tempos e transformações. Amazônica – Revista Habilis, 2009.
de Antropologia, n. 2, v. 6. Dossiê: Arqueólogos e
______. Sacred geographies of ancient Amazonia: historical
Comunidades Locais na Amazônia, organizado por M.

N
ecology of social complexity. Walnut Creek, CA, Left
Bezerra e M. Cabral, p. 283-313, 2014.

r t í s t i c o
Coast Press, 2012.
MARTINS, C. P.; SILVA, W. F. V.; PORTAL, V. L. M.
SCHAAN, D. P.; MARQUES, F. L. T. Por que não um
“Viagens ao passado da ilha: vestígios arqueológicos
filho de Joanes? Arqueologia e comunidades locais em

A
em vozes e percepções de marajoaras”. In: SCHAAN,
Joanes, Ilha de Marajó. Revista de Arqueologia, n. 1, v. 25,

e
D. P.; MARTINS, C. P. (orgs.). Muito além dos campos:
p. 106-123, 2012.

i s t ó r i c o
arqueologia e história na Amazônia marajoara. Belém:
GK Noronha, p. 139-145, 2010. SILVA, D. F. Sobre as “pedras famosas de Calçoene”:
reflexões a partir da arqueologia etnográfica na
MAURITY, G.P. As lâminas de machado: possíveis

H
Amazônia. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
funções, usos e ressignificações: uma contribuição aos

a t r i m ô n i o
graduação em Antropologia, UFPA. Belém, 2016.
estudos do material lítico do Sítio PA-AT-337: S11D
47/48 - Capela, Serra dos Carajás, Pará, Brasil. In: Anais SILVA, F. A. O Patrimônio arqueológico em terras
do 56° Congresso Internacional de Americanistas, Espanha, indígenas: algumas considerações sobre o tema no
2018. (no prelo) Brasil. In: FERREIRA, L. M.; FERREIRA, M. L. M.;

P
d o
McEWAN, C.; BARRETO, C.; NEVES, E. Unknown ROTMAN, M. B. (orgs.). Patrimônio cultural no Brasil
e na Argentina: estudos de caso. São Paulo: Annablume,

e v i s t a
Amazon: culture in nature in ancient Brazil. Londres:
The Bristish Museum Press, 2001. 2011, p. 193-219.
SILVA, F. A.; BESPALEZ, E.; STUCHI, F. Arqueologia

R
MEGGERS, B.; EVANS, C. Archaeological
investigations at the mouth of the Amazon. Bulletin of colaborativa na Amazônia: Terra Indígena Koatinemu,
the Bureau of American Ethnology, v. 167, p. 1-664 1957. rio Xingu, Pará. Amazônica - Revista de Antropologia, n.
1, v. 3, p. 32-59, 2011.

Marcia Bezer ra
MORAES, I. P. Do tempo dos pretos d’antes aos povos
do Aproaga: patrimônio arqueológico e territorialidade SILVEIRA, F. L. A.; BEZERRA, M. “Educação
quilombola no vale do rio Capim (PA). Dissertação de patrimonial: perspectivas e dilemas”. In: LIMA FILHO,
Mestrado. Programa de Pós-graduação em Antropologia, M. F.; ECKERT, C.; BELTRÃO, J. (orgs.). Antropologia e
UFPA. Belém, 2012. patrimônio cultural: diálogos e desafios contemporâneos.
NEVES, E.G. Santarém: a cidade de todos os tempos. Blumenau: Nova Letra, p. 81-97, 2007.
99
National Geographic, p. 78-90, dez.2015. SILVEIRA, F. L. A.; BEZERRA, M. “Paisagens
NIMUENDAJÚ, C. The Tapajó. Tradução e edição de fantásticas na Amazônia: entre as ruínas, as coisas
John Howland Rove. The Kroeber Anthropological Society e as memórias na Vila de Joanes, Ilha do Marajó”.
Papers, n. 6, p. 1-26, 1952. In: MAUÉS, H.; MACIEL, M. E. (orgs.). Diálogos
antropológicos: diversidades, patrimônios, memórias.
PEREIRA, E.; GUAPINDAIA, V. (orgs.). Arqueologia
amazônica. 2 v. Belém: MPEG/Iphan/Secult, 2010. Belém: L & A Editoria, pp. 119-150.

RAVAGNANI, L. R. O passado, o sítio e a escola: as STALEY, D.P. St Lawrence Island’s Subsistence Diggers:
relações entre a comunidade escolar e o sítio histórico de a New Perspective on Human Effects on Archaeological
Joanes (PA-JO-46). Monografia/TCC. Bacharelado em Sites. Journal of Field Archaeology 20: 347-355, 1993.
Ciências Sociais. Faculdade de Ciências Sociais, UFPA. TROUFFLARD, J. “O que nos dizem as coleções
Belém, 2011. da relação entre moradores e vestígios arqueológicos
ROCHA, B. C. et al. Arqueologia pelas gentes. Revista de na região de Santarém, Pará?” In: SCHAAN, D. P.
Arqueologia, n. 1, v. 26, p. 130-140, 2013. (org.) Arqueologia, Patrimônio e Multiculturalismo na
Beira da Estrada: pesquisando ao longo das Rodovias
ROCHA, B. C.; BELETTI, J.; PY-DANIEL, A. R.;
MORAES, C. P.; OLIVEIRA, V. H. Na margem Transamazônica e Santarém-Cuiabá, Pará, Belém: GK
e à margem: arqueologia amazônica em territórios Noronha, pp.59-73, 2012.
tradicionalmente ocupados. Amazônica – Revista van VELTHEM, L. H. Farinha, casas de farinha e
de Antropologia, n. 2, v. 6. Dossiê: Arqueólogos e objetos familiares em Cruzeiro do Sul (Acre). Revista de
comunidades locais na Amazônia, organizado por M. Antropologia, USP, 50 (2): 605-631, 2007.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

100
Marcia Bezer ra Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira

Brazil, 1860

Nacional, Brasil.
Acervo: Fundação Biblioteca
In: Travels in the north of
de James Wells Champney.
Santarém. Desenho a lápis
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
101

Marcia Bezer ra Com os cacos no bolso: o colecionamento de ar tefatos arqueológicos na Amazônia brasileira
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

102
Fe r n a n d o C a n t o Amapá: patrimônio cultural e identidade
Fer nando Canto

a c i o n a l
A mapá : patrimônio cultural e identidade

N
A
Hr t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Este artigo pretende enfocar diversos fevereiro de 17581. Depois disso ocorreram
aspectos da cultura amapaense nos quais outras mais significativas no decorrer do
a importância do seu patrimônio cultural desenvolvimento do Amapá, como na

P
pode ser produto de reflexões a partir dos

d o
instalação do Território Federal (1944), na
elementos simbólicos nela contidos, e de sua

e v i s t a
exploração das minas de manganês pela
dinamicidade, capazes de se mostrarem reais Indústria e Comércio de Minérios S.A. –

R
entre o novo e o velho, entre o que havia e o Icomi (1952), na transformação do Amapá
que não há mais e, sobretudo, do que pode
em Estado Federativo (1988) e durante a
ser descortinado através de novos olhares.
permanência da Área de Livre Comércio
Todo o dinamismo que se revela socialmente
de Macapá e Santana – ALCMS (década
implica transformações e o surgimento de
de 1990). Nesses momentos, a origem dos
novas identidades. Dessa forma, necessário se
migrantes era, em sua maioria, constituída
faz informar sobre a gênese de ocupação no
103
processo de colonização e povoamento que
1. A saga da emigração madeirense começa no século 15, quando
asseguraram o território geográfico do Amapá suas ilhas já tinham uma densidade demográfica considerável,
situação que já vinha sendo dinamizada pelo duque D. Fernando
para o Brasil, às margens do maior rio do na segunda metade desse século. Para que a população crescesse
e não faltasse mão de obra, criou um imposto anual a ser
mundo, localizado na linha equatorial. pago em trigo, para todos os homens solteiros, estimulando
A primeira migração para a povoação de assim a consumação de casamentos (Santos, 1999). Daí, com
o excesso populacional das ilhas é que se inicia a diáspora
Macapá ocorreu em 1752, seis anos antes madeirense, aliada a fatores de subsistência econômica, visto
as ilhas vulcânicas não terem muito espaço para a agricultura
de ser fundada a Vila de São José, em 4 de diversificada. Além disso, a odisseia emigratória dos povos dos
arquipélagos da Madeira e dos Açores constituía-se em excelente
oportunidade de ascensão social dos nobres de segunda linha
que não possuíam meios materiais para permanecer no pico da
pirâmide social. Mas foi só com os alistamentos, a partir de 1747, Cocos nucifera (coco).
que se iniciou a vinda desses povos para o Brasil, principalmente Aquarela de José Joaquim
para a região Meridional, quando se instalaram na Ilha do Freire. Expedição Alexandre
Desterro, hoje Florianópolis, e no Rio Grande do Sul. O sucesso Rodrigues Ferreira
(1783 a 1792)
político-diplomático da assinatura do Tratado de Madri (1750), Acervo: Fundação Biblioteca
que definia as fronteiras do Brasil, “exigia gente para proceder à Nacional, Brasil.
demarcação dos limites e para reforçar a defesa de toda a enorme
região amazônica” (Silva, 2000). Foram propostos, então, três
remédios: o “descimento dos índios do sertão”, a introdução de
Fortaleza de São José,
escravos negros e o envio de povoadores, principalmente casais Macapá (AP), 2016
dos Açores e da Madeira, segundo autor acima citado. Foto: Floriano Lima.
Marabaixo4, o Batuque5 e a Folia6 , além das
Amapá: patrimônio cultural e identidade

manifestações religiosas de matriz africana


a c i o n a l

como o Candomblé, o Tambor de Mina e a


Umbanda e da herança cultural do povo de
Mazagão Velho, oriundo do Marrocos, que
N
r t í s t i c o

possui em torno de vinte festas anuais no seu


ciclo santoral.
A
e

Alguns aspectos urbanos


i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o

O turismo tem tirado proveito do


H

fato de Macapá ser a “capital brasileira do


a t r i m ô n i o

meio do mundo”. Essa condição prática


do desenvolvimento econômico promove
P

o Marco Zero do Equador como um dos


d o

pontos mais visitados e importantes da


e v i s t a

de paraenses, maranhenses, piauienses e cidade, ao lado da Fortaleza de São José


de Macapá. Aliás, a “passagem” da linha
R

cearenses, nessa ordem de importância


numérica (Censo 2010, IBGE). imaginária transcende a vinculação a um
Esses fatos têm caráter próprio no simples monumento ou à cidade, fazendo-
âmbito das histórias de conquistas e
estabelecimentos importantes para a
4. O Marabaixo, hoje, é a maior expressão da cultura popular do
solidificação da economia amapaense. estado do Amapá, embora também aconteça de forma apagada
Os descendentes de escravos que na festa do Çairé de Alter do Chão, no Município de Santarém
(PA) e em Marabitanas (AM). É um ritual em que os aspectos
104
foram trazidos para Macapá desde a época religiosos propriamente ditos não têm mais a ênfase do passado,
mas continua vivo e enraizado entre os que o praticam. O
da construção da Fortaleza de São José reconhecimento como expressão cultural autêntica se deu a partir
de um processo de valorização, promovido pelos setores públicos,
Criança no Cortejo da lutam hoje pela valorização de sua cultura, o que motivou a elevação da autoestima dos envolvidos e sua
Murta. Associação Cultural divulgação dentro e fora do estado.
Raimundo Ladislau, representada pelas manifestações de
Macapá (AP), 2013 5. Ao Batuque estão atreladas várias manifestações de caráter
Foto: Pedro Gontijo. caráter popular como o Zimba2, o Sairé3, o religioso, ao lado de danças e cânticos preservados até hoje por
moradores do Curiaú, Mazagão Velho e Igarapé do Lago (AP).
É uma dança de roda em que os dançarinos giram em volta dos
2. O Zimba é um batuque que ocorre nas festividades do Divino tocadores, respondendo o estribilho do “ladrão”, que é a música
Espírito Santo na localidade de Cunani, no litoral amapaense. É cantada por um solista. Porém, nos lugares aqui citados ele se
dançado por pescadores e lavradores do local. Muito semelhante realiza com características próprias.
na dança ao Batuque, suas músicas são acompanhadas por
grandes tambores denominados curimbós, confeccionados de 6. A Folia é de origem portuguesa. Ela encerra o ritual com
troncos de árvores e couro de animais. antigos cantos devocionais. Antigamente consistia num
agrupamento de homens que saía a colher donativos com um
3. O Sairé ou Sahiré era uma manifestação religiosa que acontecia porta-estandarte ou alferes-da-bandeira à frente do cortejo.
em Mazagão Velho e Carvão. Consistia em uma procissão em No Curiaú, depois de encerrada a ladainha, o mestre-sala toca
que se lavava o sairé – uma cruz feita com três arcos de madeira uma campa e é acompanhado por vários instrumentos. Os
enfeitada de algodão, entoando músicas cantadas em nheengatu tambores são feitos de madeira leve e cobertos com couro de
em homenagem ao Divino Espírito Santo. Ainda sobrevive em animais silvestres. Há pandeiros; reco-recos feitos de taboca
Santarém (PA), para onde foi levado por mazaganenses. A grafia talhada, na qual se esfrega um pedaço de madeira; querequexés,
usada pelos santarenos hoje obedece a uma regra idiomática, que são cilindros confeccionados de galhos de imbaúba onde
Çairé. Em Mazagão, há um movimento para reincorporar essa são colocados grãos de cereais ou semente de tento; violas e
tradição ao quadro de manifestações folclóricas locais. cavaquinho.
se cada vez mais presente no imaginário
coletivo dos amapaenses. Apesar das
influências da globalização que apresenta na
contemporaneidade, um farfalhar de opções e
de outros valores foram incorporados ao seu
novo estilo de vida sociocultural da cidade.
A inserção de grandes empreendimentos
urbanos, como shopping centers, condomínios
fechados e o desenvolvimento imobiliário,
bem como o crescimento populacional e
novos aparatos urbanos mudaram a paisagem
da cidade e fizeram Macapá se igualar às
cidades brasileiras de porte médio. Na capital,
hoje, os consumidores das benesses são os
altos funcionários públicos, espécie de tipo
de casta que se formou com a chamada
economia do contracheque, caracterizada pela
expansão do movimento financeiro no estado
após os pagamentos salariais dos servidores
públicos nos três níveis de governo (Chelala,
2008). O comércio local vive às custas
do montante financeiro despejado nesses
períodos, além das despesas governamentais
na indústria da construção civil, nos
serviços e no comércio propriamente
dito. Mas a novidade também exacerbou
consideravelmente a violência urbana nos
últimos anos, acompanhando o crescimento
econômico e populacional do estado.

Os indígenas

No Amapá existem aproximadamente 5 antropóloga Dominique Gallois. A pesquisa Equinócio da Primavera,


no monumento Marco Zero
mil indígenas morando em aldeias e não há e o texto de sua autoria compuseram o dossiê do Equador. O fenômeno
foi recebido com rapel,
pelo Corpo de Bombeiros,
dados sobre os que moram nas cidades. Aqui para o registro da Arte Kusiwa – Pintura Cor- em Macapá (AP),
setembro de 2013
temos os povos que vivem na região do Vale poral e Arte Gráfica Wajãpi (Iphan, 2008), Foto: Gabriel Penha.

do Uaçá: Karipuna, Galibi, Galibi-Marwor- e informam que esse povo é constituído de


no, Palikur e os Wajãpi, grafia usada pela 670 pessoas, distribuídas entre 48 aldeias.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

106
Fe r n a n d o C a n t o Amapá: patrimônio cultural e identidade

Wajãpi (AP), 2009


Foto: Heitor Reali/Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
107

Fe r n a n d o C a n t o Amapá: patrimônio cultural e identidade


São “remanescentes de um povo outrora Os indígenas também são objeto de crítica
Amapá: patrimônio cultural e identidade

muito mais numeroso, subdividido em vários dos habitantes da cidade porque recebem
a c i o n a l

grupos independentes e cuja população total algum tipo de bolsa do governo federal,
foi estimada em cerca de seis mil pessoas no cotas para ingressar na universidade e outros
começo do século XIX”. Segundo Gallois, benefícios. Quando passeiam pela cidade
N
r t í s t i c o

essa etnia tem origem em um complexo cul- e supostamente se incorporam à sociedade


tural maior, de tradição e língua tupi-guarani, nacional, com seus novos trajes e cortes de
A

representados hoje por diversos povos e distri- cabelos, sofrem, sim, um tipo de racismo,
e

buídos em outros estados brasileiros e países dadas as manifestações depreciativas que


i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o

adjacentes. Eles viviam ao sul do rio Ama- recebem ao passar nas ruas. Há um equívoco
zonas até o século 17, em região próxima da brasileiro nessa relação, um equívoco nada
H

área ocupada hoje pelos Asurini e os Araweté, inocente, pois os urbanos querem medir a
a t r i m ô n i o

todos falantes de variantes dessa mesma famí- indianidade pela presença de sinais culturais
lia linguística. Os Wajãpi do Amapá ficaram “tradicionais”, como bem observa Manuela
P

isolados da convivência com os não indígenas Carneiro da Cunha (Cunha, 2016:47).


d o

até a década de 1970, por terem se adaptado A autora ainda informa que o conceito
e v i s t a

ecologicamente à região de serras do noroeste de racismo sempre existirá, por ser fundado
R

amapaense, contrariamente aos Wajãpi da na categoria das manifestações depreciativas


Guiana Francesa e os do Oiapoque que vivem que infelizmente ainda perduram. Para ela, as
na margem de rios. sociedades indígenas se adéquam na definição
Os indígenas que vêm a Macapá, para plausível que reintroduz a história dos índios
tratamento de saúde ou para cuidar de outros tanto como processo quanto como memória.
assuntos de suas aldeias, se hospedam em Ao evidenciar esse conceito é necessário
casas mantidas pela Fundação Nacional reforçá-lo, dizendo que as sociedades
108
do Índio ou por instituições indígenas e/ indígenas são aquelas que conservam, então,
ou religiosas. Há alguns anos, eles andavam a sua memória de um elo com as sociedades
pela cidade com ornamentos e tangas de ancestrais (pré-colombianas). Ela diz que
tecido vermelho em grupos, chamando a “índio é quem elas (as sociedades indígenas)
atenção dos transeuntes. Hoje, muitos jovens dizem que é” (ibid.:48).
indígenas se vestem como os citadinos, Uma das heranças indígenas mais
usando acessórios e cortes de cabelo da moda, significativas é a forma de cultivo e uso de
em sua estada na capital. Andam sempre a pé, plantas e ervas curativas no Amapá. Falar
acompanhados de suas famílias. As mulheres nelas e das suas capacidades mágicas é tratar
carregam seus filhos pequenos ao lado do das pajelanças e de misticismo que existe
corpo, apoiados em tipoias. Mas ainda nessa relação com a ancestralidade, algo
são vistos com curiosidade pela população muito presente tanto na cidade como no
macapaense. Da mesma forma reagiram os interior, na melhor tradição amazônica, em
seus ancestrais, ao verem pela primeira vez a que o amapaense procura nelas uma solução
Fortaleza de São José de Macapá. para seus problemas corporais e mentais.
Os chamados sacacas e pajés7 estão sempre de São José, a Igreja de São José e o prédio

Amapá: patrimônio cultural e identidade


à disposição para efetuarem tais processos da antiga Intendência Municipal de Macapá.

a c i o n a l
quando são chamados. Outros explicam o porquê do “já teve” como
uma alusão a Athayde Teive, governador

N
lusitano da Província do Grão-Pará, que veio
Terra do já teve

r t í s t i c o
a Macapá, em junho de 1764, para lançar a
pedra fundamental da Fortaleza de São José
Quando um prédio antigo é demolido

A
(Baena, 1969).
para que outro mais moderno seja construído

e
Poderia estender essa espécie de

i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o
em seu lugar, ou quando se referem às “coisas
etnografia dos amapaenses e categorizá-
boas do passado”, os amapaenses dizem (em
los como seres sentimentais que veem a

H
tom de lamento) que Macapá é a “terra do

a t r i m ô n i o
história passar de forma lenta, mas que estão
já teve”, porque não tem mais nada. Tratam,
sempre dispostos a realizar as festas dos seus
assim, como um verdadeiro atentado às
santos e até incorporar-lhes inovações, se
coisas do passado, a destruição sistemática,

P
forem necessárias. Reclamam sempre das

d o
em nome do progresso, das construções
mudanças, valorizando mais o passado e,

e v i s t a
coloniais ou neocoloniais de Macapá e
dessa forma, quem sabe também a memória
Mazagão, das quais só restaram a Fortaleza

R
coletiva. Brincam sempre uns com os
outros, criticando o emprego de palavras em
7. Sacacas e pajés são curandeiros, conhecedores de ervas mágicas
e plantas que curam. Ainda hoje são muito procurados para a desuso ou fatos que ocorreram num passado Fortaleza de São José,
cura de doenças físicas e psicológicas e quebrantos infantis, que Macapá (AP), 2013
são resolvidos através de massagens e benzeduras. longínquo, caracterizando-os como “do Foto: Pedro Gontijo.

109
tempo em que a Fortaleza era de madeira”, frequentarem tão inconveniente e assustador
Amapá: patrimônio cultural e identidade

pois toda comunidade possui uma rede de espetáculo dessa dansa, oriunda dos Cafres”.
a c i o n a l

códigos e significados (Geertz, 1979) capaz (“Mar-Abaixo”. Jornal Pinsonia, Macapá, 25


de fazer as pessoas ali reunidas encontrarem jun.1898).
interesses comuns e aproximação pelo modo Portanto, não é de hoje que o Marabaixo
N
r t í s t i c o

de agir, falar, se comportar ou vestir, por é discriminado. Aliás, as manifestações


exemplo, gerando processos identitários culturais de origem africana sempre foram
A

que marcam os moradores em alguns vistas como ilegais ao longo da história do


e

momentos, em alguns cenários. E ainda que Brasil. Do samba à religião, seus promotores
i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o

a identidade seja múltipla e ocasione tensões, foram vítimas de denúncias que os boletins
esses processos são dotados de significados de ocorrências policiais e os processos
H

e sentidos próprios. No caso do Marabaixo, judiciais enquadravam como vadiagem,


a t r i m ô n i o

as pessoas mais velhas também reclamam prática de falsa medicina, curandeirismo


das novidades, sobretudo do aceleramento e charlatanismo, entre outras acusações,
P

dos toques das caixas, que parece “ferir” a muitas vezes punidas com prisões e invasões
d o

tradição, de forma muito chocante para elas. de terreiros.


e v i s t a

Porém, no decorrer das festas, acabam por Há anos se relatam episódios de


R

aceitar tais mudanças. confronto entre a Igreja católica (e seus


prepostos eclesiásticos e seculares) e
O Marabaixo e o os agentes populares do sagrado, que,
preconceito religioso por serem afrodescendentes, mestiços
e principalmente pobres, foram e são
Mas nem tudo foram flores para o discriminados, visto o ranço estereotipado
Marabaixo conseguir se firmar e sobreviver de que são “gente ignorante e supersticiosa”.
110
como patrimônio cultural ancestral. As É do século 19 a influência do
obrigações ritualísticas eram confundidas evolucionismo que tomava como modelo
com erotismo e prostituição explícita aos de religião “superior” o monoteísmo cristão
olhos daqueles não pertencentes ao grupo, e via as religiões de transe como formas
conforme texto do Pinsonia, primeiro jornal “primitivas “ou “atrasadas” de culto. Nesse
impresso do Amapá. tempo, “religião” opunha-se a “magia” da
Nele, um articulista anônimo ataca o mesma forma que as igrejas (instituições
Marabaixo, dizendo-se aliviado porque organizadas de religião) opunham-se às
“afinal desapareceo o infernal folguedo, a “seitas” (dissidências não institucionalizadas
dança diabola do Mar-Abaixo”. Assevera ou organizadas de culto).
adiante “Que o Mar-Abaixo é indecente, é o Discursos de difamação do Marabaixo,
foco das misérias, o centro da libertinagem, como o transcrito acima, e a favor de sua
Salão de Marabaixo.
a causa segura da prostituição”. E finaliza extinção ocorreram seguidamente.
Associação Cultural
Raimundo Ladislau, conclamando “Que os paes de famílias, Com a chegada do Pontifício Instituto
Macapá (AP), 2013
Foto: Pedro Gontijo. não devem consentir as suas filhas e esposas das Missões Estrangeiras em Macapá (1948),
Amapá: patrimônio cultural e identidade
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

o Marabaixo sofreu um período de queda, algo que desvirtuava aquela celebração de


mas beneficiou-se da resistência tenaz de homenagem aos santos. Nesse caso eram os
Julião Ramos, líder negro da comunidade batuques e os atos profanos, que eram vistos
do Laguinho e principal festeiro do Divino até há pouco tempo como degeneração por

112
Espírito Santo e Santíssima Trindade, que causa da liberação da cachaça, das libações,
não o deixou morrer. do erotismo das danças e pela intensidade
Nesse período os padres diziam que o Ma- dos batuques, cujos tambores provocariam
rabaixo era macumba, que era coisa ruim, e incorporações – uma lembrança religiosa das
combatiam seus hábitos e crenças, tidos como etnias africanas, mas, aos olhos ocidentais,
hediondos e pecaminosos, do mesmo jeito “coisa do diabo”.
que seus antecessores o fizeram no tempo da E evidentemente não dá para
catequização dos índios. Mas o bispo dessa confundir Marabaixo com Umbanda
época, D. Aristides Piróvano, considerava (ou com Macumba). Umbanda é
Mestre Julião “um amigo” (Canto, 1998). religião afrodescendente e não ritual das
As manifestações religiosas populares manifestações culturais da população
sempre foram malvistas pelos missionários afrodescendente. E seus deuses são deuses

Levantamento de
estrangeiros. Eram consideradas profanas, como os de qualquer religião. Ninguém
Mastro, Marabaixo
Berço da Favela,
pois ao lado dos seus rituais “celebrados” pode condenar suas práticas ritualísticas
Macapá (AP), 2013
Foto: Eduardo Costa. pelos agentes laicos do sagrado, havia sempre irresponsavelmente.
As “barreira” constituída pelo rio Amazonas8.

Amapá: patrimônio cultural e identidade


comunicações na
c u lt u r a a m a pa e n s e As comunicações mudaram o mundo

a c i o n a l
amapaense, que aos poucos foi recebendo
Nas comunicações, o rádio ocupa um mais influência externa e absorvendo mo-

N
lugar de destaque para informar a população dismos, adaptando-se cultural e socialmente

r t í s t i c o
sobre os acontecimentos cotidianos, aos novos valores que se impuseram na sua
esportivos, policiais, culturais e políticos, cultura, devido, talvez, ao forte impacto dos

A
notadamente pela manhã, quando, além do eventos econômicos que o tornaram elemen-

e
i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o
noticiário, ocorrem entrevistas com atores to-alvo de decisões políticas socioambientais.
sociais significativos para o Amapá. Apesar

H
do crescimento das redes sociais, da Internet,

a t r i m ô n i o
dos jornais impressos e das opções televisivas
atuais, os programas de rádio se destacam

P
muito mais pelas análises políticas e dos

d o
apresentadores, que se dedicam a levar aos 8. Em junho de 2007, uma expedição integrada por

e v i s t a
pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
ouvintes as ações de seus patrocinadores – Inpe, da Agência Nacional de Águas – ANA, do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e do Instituto
comerciais (normalmente políticos com

R
Geográfico Militar do Peru determinou o local exato da nascente
do rio Amazonas, localizada no rio Apurimac, na Cordilheira dos
mandatos) em nome do interesse coletivo, Andes, ao sul do Peru. Conforme o Atlas Geográfico Mundial,
o Amazonas media 6.515 quilômetros. Com a nova medição
do que pela simples ação de comunicar os (2007), passou a ter 6.992,06 quilômetros, portanto, 139,91
quilômetros mais longo do que o Nilo. Em 1500, o navegador
fatos e propagandear os eventos de qualquer espanhol Vicente Yañez Pinzón batizou-o de Río Santa María
del Mar Dulce; 42 anos depois, o também espanhol Francisco
natureza. Hoje podemos pensar que o Orellana o renomeou como Amazonas. O colosso marrom, que
até Manaus leva o nome de Solimões e, depois de receber as
quadro noticioso, manipulado ou não, é águas do rio Negro, passa a chamar-se Amazonas, tem mais de
mil afluentes, constituindo-se na espinha dorsal da maior bacia
um reflexo, uma herança inconteste dos hidrográfica da Terra, formada por 7 mil rios, 25 mil quilômetros 113
programas radiofônicos da Rádio Difusora navegáveis. Da nascente até 1,9 mil quilômetros, o Amazonas
desce 5.119 metros; desse ponto até o Atlântico, a queda é de
de Macapá, que foi ao ar pela primeira vez apenas 60 metros. Suas águas correm a uma velocidade média
de 2,5 quilômetros por hora, chegando a 8 quilômetros, em
em 14 de setembro de 1946, fundada pelo Óbidos, cidade paraense a mil quilômetros do mar e ponto da
garganta mais estreita do Amazonas, com 1,8 quilômetro de
primeiro governador do Território Federal largura e 50 metros de profundidade. A descarga média é de 180
mil metros cúbicos de água por segundo, um quinto, ou 16% da
do Amapá, e que continua na ativa desde água doce despejada nos oceanos do mundo. Em maio, sobe para
220 mil metros cúbicos por segundo e, em novembro, cai para
essa época e pertence ao governo do estado. 100 mil metros cúbicos por segundo; 65% do fluxo vaza pelo
Canal do Norte, que despeja até 160 mil metros cúbicos de água
Outra rádio que teve grande audiência foi a por segundo. A boca do rio, escancarando-se do arquipélago do
Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede em torno de 240
Educadora São José, pertencente à Diocese quilômetros, e sua água túrgida penetra cerca de 320 quilômetros
no mar, atingindo o Caribe nas cheias. Se mais de um terço de
de Macapá, que enfrentou graves problemas todas as espécies do planeta vive na Hileia, a bacia é berço de
mais de 2,1 mil espécies de peixes, 900 a mais do que as dos
com a censura federal até seu fechamento rios da Europa. Só a bacia do rio Negro, afluente da margem
definitivo ainda no período da ditadura esquerda do Amazonas, contém mais água doce do que a Europa.
Em 2011, pesquisadores do Observatório Nacional anunciaram
militar. As comunicações foram importantes, evidências de um rio subterrâneo numa profundidade de 4
quilômetros abaixo do Amazonas, com 6 mil quilômetros de
sobretudo, para diminuir o grau de comprimento, batizado de Hamza, em homenagem a um dos
pesquisadores, o indiano Valiya Hamza (Fonte: Inpe/Blog RAY
isolamento, atribuído principalmente à CUNHA, postado em 19/5/2015, 09h34 am).  
Amapá: patrimônio cultural e identidade
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

Seres de luz noite é o mesmo que o do dia, ao meio-


dia o amapaense fica sem sombra, devido
É preciso reconhecer, por novos olhares, à incidência direta dos raios solares. Daí
114 as memórias, crenças, lágrimas e sonhos se dizer que a essa hora o homem fica
daqueles que viveram tantas temporalidades “a-sombrado”, ou seja, sem sombra, o que
e permitiram que a história fosse contada lhe dá a condição de um ser não-natural,
de acordo com seus saberes, artes e versos, sobrenatural, translúcido e estranho, que
criados além do lirismo individual, mas habita um mundo amazônico cheio de “(i)
com o desejo vivaz de ensinar o que viram realidades”, características de uma região
para que o coletivo pudesse vir à tona nesses histórica e economicamente espoliada, mas
rios de águas barrentas. Esses rios são as onde o mito e as crenças renascem e se
próprias identidades amapaenses. São o perpetuam dentro da cultura. O significado
seu patrimônio cultural. São o que são, à de a-sombrado é o inverso de assombrado,
luz de suas crenças. Crenças de um futuro dos dicionários da língua portuguesa.
menos pessimista e mais sujeito a reflexões O amapaense é um ser de luz. É por
provocadas pela energia e a intensidade da ocasião do equinócio da primavera que as cores
Parque Arqueológico
de Calçoene (AP), 2009
luz do sol equatorial sobre suas cabeças. ficam mais vivas no Amapá. A claridade reina
Foto: Heitor Reali/
Acervo Iphan. Aliás, nos equinócios, quando o arco da irradiando mistérios sobre a cidade de Macapá
em mais um dia equinocial, iridescente no Festas e mais festas fazem parte do

Amapá: patrimônio cultural e identidade


meio do planeta, na Amazônia brasileira. calendário religioso e cultural nas localidades

a c i o n a l
O sol que ilumina a todos, que traz a luz e mais longínquas do estado em relação
rompe trevas está presente no imaginário de à capital, Macapá. Na vila de Mazagão
muitas religiões, até porque as cosmogonias Velho, fundada em 1771, e especialmente

N
r t í s t i c o
geralmente se relacionam com as divindades construída para receber os portugueses
da natureza. Atividades como a celebração que vieram expulsos de Marrocos pelos

A
druídica do solstício de verão em Stonehenge muçulmanos, em função de conflitos

e
(Inglaterra) podem ser consideradas como uma religiosos ocorridos em 1769 na Mazagão

i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o
sobrevivência da ideia do poder mágico, da africana (hoje El Jadida), o ciclo de festas
força que se pode armazenar em “acumuladores de santos é grande. Mazagão Velho é uma

H
materiais”, como os monumentos megalíticos vila festeira. Esse ciclo abrange dezessete

a t r i m ô n i o
ali existentes. Da mesma forma, as grandes festas anuais, sendo que a mais importante
pedras encontradas em círculo, no município é a de São Tiago, realizada há mais de 240

P
de Calçoene, também podem ser consideradas anos ininterruptamente, nos dias 24 e 25 de

d o
locais de observação do sol e de acumulação de julho. Nessa data as ruas de Mazagão Velho

e v i s t a
energia deixados por povos indígenas. se transformam num grande palco, onde os
atores são membros da comunidade. Eles

R
A F e s ta de São Tiago, representam as personagens da celebração
o u t r a s f e s ta s e t r a g é d i a s da vitória dos cristãos sobre os muçulmanos.
A Festa de São Tiago não é apenas uma
A festa é uma das razões da existência do cavalhada que simula a luta entre mouros e
amapaense. Sem ela nada seria útil. A festa é cristãos. É, antes, uma representação eivada
uma celebração, um encontro, mas também de significados no contexto do imaginário
uma revolta em seu território político, um coletivo e elemento importante sobre o qual 115

ritual e um processo social. Sem dúvida ela se organizam as relações sociais e econômicas.
não teria sentido se não fosse o de fazer re- É uma prática em que convergem os mais
lações, experimentar as novidades, reavivar diversos e cotidianos interesses. Nesse período
tradições e formar alianças comerciais e fa- vem gente de toda a redondeza para negociar,
miliares através do escambo de mercadorias, rezar, dançar, namorar, casar. A celebração
da comercialização de produtos e promessas é composta por várias cerimônias e rituais,
de casamentos. No interior, sobremaneira, a todos com cenas e dramaturgia diferentes.
cultura envolve e gera emoções diversificadas, O seu encadeamento constrói uma história,
pois os interesses comuns e coletivos se mistu- uma epopeia, produto de ações heroicas que,
ram aos particulares e estes dão sentido à vida juntas, revelam a tradição local de reverência
em comunidade, numa ritualização constan- ao santo, por meio de ritual religioso e
te, que obviamente muda devido à dinâmica representação teatral nas ruas da vila. Essas
social e à incorporação de novos valores em cenas iniciam no dia 16 de julho, quando os
seus ritos e fazeres (Duvignaud, 1983). moradores despertam com a alvorada de fogos
Amapá: patrimônio cultural e identidade
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

de artifício e do som secular dos sinos. Nesse a Caminhada com Cristo, bem como das
dia o “Arauto” sai às ruas no meio da tarde, grandes e tradicionais celebrações das
anunciando a trasladação da imagem de São religiões de matriz africana, como a Festa de
Tiago, para que à noite comecem as novenas, Iemanjá, realizada à beira do rio Amazonas
com ladainhas cantadas em latim, herdadas no dia 2 de fevereiro.
116
de tempos imemoriais, na igreja onde estão Também é tradição do Amapá comemorar
postas as imagens vindas da costa africana o dia 13 de setembro, dia da criação do
em 1771, trazidas pelas primeiras famílias Território Federal do Amapá, com paradas
de colonizadores. São imagens quinhentistas escolares, mesmo depois da criação do estado
e raras, muitas das quais desapareceram ou em 8 de outubro de 1988, pois faz parte da
foram furtadas. memória amapaense.
A Festa de São José, em homenagem A festa é um iniciar da vida, um recomeço
ao padroeiro de Macapá e do estado, do homem na sua realidade a ser vencida
realizada em 19 de março de cada ano, diariamente. Isso significa que nenhum povo
já foi a principal festa religiosa. Hoje foi é sempre alegre ou feliz, porque em algum
suplantada pela de Nossa Senhora de momento também vive suas tragédias. Uma
Festa de São Tiago
em Mazagão Velho
Nazaré, padroeira da vizinha Belém do muito marcante no estado foi o desastre
(AP), em que a
tradicional celebração Pará e da região Amazônica. Ao lado dessa da embarcação “Novo Amapá”, ocorrido
de mais de dois
séculos é transmitida manifestação, cresce também a religião em 1981 no rio Cajari, quando cerca de
às crianças, 2013
Foto: Gabriel Penha. evangélica pentecostal e seus eventos, como seiscentas pessoas pereceram nas suas águas
escuras. O trauma dessa experiência, que foi O Amapá ainda vive uma transição entre a

Amapá: patrimônio cultural e identidade


o maior desastre naval da região, até hoje sociedade tradicional e a moderna. Ainda que

a c i o n a l
sensibiliza o povo amapaense. não haja conflitos excruciantes, percebe-se a
Se muitas vezes as lembranças aniquilam inserção agressiva de valores do capitalismo e
o ser humano, o tempo sem lembranças a presença do Outro revolve outras histórias

N
r t í s t i c o
também pode ter o mesmo efeito, daí a e aludem a uma “aculturação”. É necessário
importância do estudo sobre a identidade e dizer que a substituição e a adaptação social

A
a memória na vida coletiva, pois “a memória de valores externos se deram pelo chamado

e
é a identidade em ação” (Candau, 2014:18). desenvolvimento moderno, pelo avanço

i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o
Talvez a tragédia não possa ser medida. Maior tecnológico e pela mídia eletrônica rápida,
ou menor, sempre ela será uma tragédia, que levou a mudanças radicais dos hábitos e

H
eivada ou não de acontecimentos sangrentos costumes locais, em que pese a preservação

a t r i m ô n i o
oriundos de acidentes e crimes, eventos que arraigada desses últimos em lugares mais
permeiam qualquer sociedade. tradicionais da capital, Macapá, pois as

P
tradições, como sabemos, são criadas, “porque

d o
A expressão “ a m a pa l i d a d e ” existe um processo contínuo de reelaboração

e v i s t a
do patrimônio cultural dos grupos sociais, a

R
O termo amapalidade já vigorava no partir dos valores próprios. Em decorrência,
tempo do início do Território Federal do os mecanismos de diferenciação cultural são
Amapá. No entanto, em 2003, o governo mais complexos do que se supõe à primeira
estadual voltou a usá-lo, objetivando com isso vista” (Braz, 2003:22).
sustentar uma condição identitária que desper- Entretanto, o Museu Fortaleza de São
tasse nos habitantes o reconhecimento formal José de Macapá, que poderia guardar e
das coisas amapaenses e uma espécie de agre- proteger as imagens ou memórias históricas,
117
gação de valor ao sentido de pertencimento. O só tem mesmo em seu espaço algumas telas
termo não se popularizou, mas ficou claramen- do pintor Raimundo Braga de Almeida,
te instituído nas pessoas um compromisso com conhecido como R. Peixe, adquiridas há anos
a memória e com a identidade local, espécie pelo governo estadual. Não há arquivo, nem
de reflexão tardia do valor das coisas realizadas biblioteca, sequer um prospecto informativo
pelos pioneiros, dando a dimensão heroica de sobre a história do monumento, muito
que necessitava para reconstruir e promover menos guias treinados que possam apresentar
essa moral cívica e memorial da terra, já que o monumento aos visitantes. Os usos e contra
os museus dão pouca ênfase e vivem agônicos, usos são constantes e diversificados.
funcionando precariamente. O Amapá tem O pescador e o barqueiro, que singram a
oficialmente um Arquivo Público, embora não imensidão das águas do Amazonas, sumindo
funcione a contento, considerando sua im- em seus pequenos barcos no vaivém das
portância para a pesquisa histórica e social do ilhas ao litoral e vice-versa, também são
estado que as instituições de ensino superior vistos como verdadeiros ícones da tradição
tentam ali realizar. amazônica, bem como os apanhadores de
açaí (produto imprescindível na alimentação memória dos acontecimentos antes e pós-
Amapá: patrimônio cultural e identidade

nativa), o garimpeiro, o vaqueiro, a 1964 ainda assusta como um lugar sangrento


a c i o n a l

dançadeira do Marabaixo, a parteira da de um tempo de práticas e perigos advindos


floresta e a curandeira/benzedeira, valorizadas da noite escura da ditadura militar que durou
tanto no campo como na cidade, em razão da 21 anos, com seus episódios e relatos9.
N
r t í s t i c o

falta de profissionais especializados. Em seu ensaio sobre a criação da Fortaleza


É preciso dizer que esses símbolos e ícones de São José de Macapá, segundo a narrativa
A

são apenas pontos de partida, para que possa- mítica dos Wajãpi do Amapá, a antropóloga
e

mos designar a amapalidade enquanto parte Dominique Gallois analisa os relatos que
i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o

da identidade amapaense. É necessário, ainda, eles fizeram quando conheceram de perto a


afirmar que este item não trata meramente de fortificação. Os índios rememoram o mito de
H

expor o pitoresco, o curioso, o heroico, o “fol-


a t r i m ô n i o

clórico”, mas dotar essas referências culturais 9. Com o consentimento da gerência do Museu da Fortaleza
de São José de Macapá e da Guarda Territorial que ali se
inclusivas e peculiares aos amapaenses, sem aquartelava, realizamos um pernoite em suas dependências após
termos sido informados que um famoso programa de televisão
P

a conotação ideológica que muitas vezes leva (Programa Fantástico – TV Globo, de 19 de agosto de 2012)
d o

teria verificado se procedia a “existência” de fantasmas naquele


ao conflito, a partir da observação da vivência
e v i s t a

espaço. Na noite do dia 7 de abril de 2016 permanecemos


diária com os elementos constitutivos dessa acordados observando e fotografando tudo o que se passava
nas instalações do prédio, onde duas vigilantes também faziam
R

memória que fornece elementos à construção suas rondas, e um soldado, que estava destacado para nos
acompanhar, dormia profundamente. A solicitação foi feita
da identidade local. considerando a Antropologia das Emoções, disciplina que
“pretende discutir a relação entre indivíduo e sociedade sob
Há, ainda, a fabricação de um tecido o prisma das emoções”. Tomadas tanto pelo senso comum
ocidental quanto por algumas teorias clássicas como baseadas
social invisível, onde todos os elementos em uma “realidade” psicobiológica, as emoções foram durante
que citamos, como paisagens, costumes muito tempo tratadas como experiências universais ou então
profundamente individuais, escapando assim ao crivo dos
e personagens, são expressões literárias e domínios social e cultural. Até por isso, este foi um tema pouco
presente nas teorias clássicas nas ciências sociais e só nas últimas
popularmente ditas e ouvidas por meio de décadas ganhou a atenção da antropologia principalmente. Nesta
118 disciplina se discutem as questões teóricas colocadas em foco
linguagens, imagens e leituras discursivas pelas análises das emoções nos poucos autores clássicos que as
abordaram – Durkheim, Mauss, Simmel e Elias –, bem como em
diversificadas como elementos que vêm trabalhos mais recentes, pondo em foco a relação entre emoção,
caracterizar a identidade. Esta, por ser uma sensorialidade e corpo, assim como as experiências emotivas nas
sociedades ocidentais modernas (Rezende & Coelho, 2010).
construção social, ocorre em uma relação
Na realidade, nada vimos ou ouvimos de estranho, a não ser o
dialógica com o Outro. E por estarem murmúrio das águas do rio entrando com a maré pelas galerias
subterrâneas, o barulho da chuva e a forte ventania que passa
indissoluvelmente ligados à memória, não se pelos prédios internos assoviando. Entretanto, esses barulhos
lembram mesmo passos e gritos de pessoas, se assemelham ao
diluem, pois sem lembranças o sujeito social arrastar de correntes e há constantes sombras se mexendo entre
os espaços do monumento como se fossem seres em desespero,
fica sem referência. tentando se comunicar. Ficamos lá até o amanhecer, debaixo de
Posto isto, creio que os acontecimentos uma forte chuva, duvidando, refletindo como nossos sentidos
podem nos enganar e construir ilusões. Daí que essas tensões
da história perpassam pela memória coletiva, arraigadas no imaginário popular causam, a nosso ver, uma
espécie de auréola que dá ao monumento uma condição anímica.
quando, por exemplo, a Fortaleza de São José Nesse processo não é de se desprezar que mesmo não se “vendo”
nada estranho, a cada som vindo como um grito lancinante
de Macapá é vista pela população amapaense do fundo da cisterna e das velhas masmorras, a cada imagem
como um ícone da amapalidade, mas também projetada nos paredões e escadarias, mesmo que fossem do vento
e das luzes que dançavam intermitentemente, parecia, sim,
como um antigo e tenebroso lugar de estarem projetados ali dois séculos e meio de sofrimento das
almas e dos corpos de centenas de trabalhadores braçais obrigados
dominação dos homens; como prisão, cuja a trabalhar de sol a sol em nome da conquista lusitana.
Mairi, que representa a própria fortaleza, e Considerações

Amapá: patrimônio cultural e identidade


finais
Ianejar é o seu herói.

a c i o n a l
Sua origem se deu quando Ianejar decidiu Ao colocar estas reflexões, não poderia
queimar a floresta porque havia muita gente deixar de dizer que, tal como o espinheiro
na face da terra. Então ele manda construir

N
forte, tradução da palavra tucuju10 do

r t í s t i c o
uma casa de argila (Mairi) para abrigar nheengatu, ou tal como a árvore palmácea
todos os Wajãpi. Eles entram e ali esperam. da pupunha que tem espinhos no caule,

A
Suportam um grande cataclismo de fogo. a história amapaense tem de ser escrita,

e
Muitas crianças morrem. Depois ele manda

i s t ó r i c o
para colhermos os frutos sem nos ferir. Se

Fe r n a n d o C a n t o
um dilúvio. Crianças morrem de frio, mas os escritores escrevem para construir sua
Ianejar as faz viver novamente, soprando própria identidade, que também é reflexo de

H
nelas. O dilúvio cessa e Mairi se encosta na

a t r i m ô n i o
um jogo de espelhos existente na realidade
margem do Paraná (ou rio grande) e Ianejar e em sua imaginação, é necessário um certo
vai embora pelo buraco do final da terra. Em distanciamento do objeto para atribuir-lhe

P
Mairi, os Wajãpi recriam a sua humanidade, a um sentido, embora se mergulhe no conceito

d o
verdadeira. Só depois os brancos chegam, de

e v i s t a
da identidade como “celebração móvel” (Hall,
navio, para se apossar da fortaleza (a Mairi,
1997), ou seja, tudo é dinâmico na sociedade,

R
dos Wajãpi).
pois esta molda a identidade a partir da
Dominique Gallois, ao estabelecer
memória e a torna um processo.
conceitos de temporalidade para explicar os
O Amapá passou e vem passando
mitos de Mairi e Ianejar dos índios Wajãpi,
por diversos momentos de crise. Antes
enfoca que nessa narrativa há dois tempos que
da transformação em estado federativo,
fornecem argumentos complementares para a
todos os governadores eram nomeados.
interpretação da realidade: o tempo mítico e
Todos eles, na tentativa de dar um ar de 119
o tempo histórico. Ela ainda informa que essa
modernidade à capital, foram fazendo
distinção configura “argumentos construídos
inúmeras transformações estruturais, ao
a partir de conceitos de temporalidade
sabor da vontade de quem não foi eleito
próprios a cada um desses modos de estar no
pelos amapaenses, ainda que munidos de
tempo” (Gallois, 1994:24/5).
“boas intenções”. Assim, fizeram intervenções
Assim, como já dissemos antes, a memória
em prédios públicos, demolindo-os ou
é a identidade em movimento, em ação plena
transformando-os à guisa de reforma,
e permanente. Logo, a amapalidade carece
prejudicando inclusive o maior patrimônio
também de reflexão sobre uma memória
arquitetônico local, a Fortaleza de São José
que potencialmente liberte e se exponha, a
de Macapá, que também é o único tombado
fim de reconstruir no presente e no futuro
pelo Iphan. Mais tarde a cidade cresceu e
suas representações imanentes à identidade,
foram erigidos novos e bonitos prédios, para
pois sem a memória coletiva nada subsiste e
os sujeitos são aniquilados, sobretudo pelo
10. Eram também assim chamados os indígenas que habitaram as
“deslembramento” e pelo silenciamento. terras do Amapá durante a colonização da Amazônia.
Amapá: patrimônio cultural e identidade
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

receber o estado que viria a ser instituído racterística da modernidade tardia, fenômeno
pela Constituição Federal de 1988. Ao lado devido aos efeitos da globalização que atuam
disso também foram nomeando todos eles, no contexto local de forma a mudar a homo-
120 bem como as ruas e praças que se abriam geneidade cultural da comunidade.
na paisagem urbana. E assim Macapá foi Dessa forma pode-se esperar no Amapá
mudando até quase se tornar irreconhecível. por todo tipo de mudanças, inclusive sociais e
Não há dúvida de que muita coisa mudou de movimentos políticos, pois o mercado glo-
para melhor, adequando-se às “exigências do bal pode levar ao distanciamento da identida-
progresso”, embora a cidade tenha pagado um de ou, de forma alternativa, a uma resistência
preço irreparável com o advento de invasões que pode fortalecer e reafirmar sua identidade
nas áreas de ressaca e várzea, por populações ou levar ao surgimento de nova posição de
migrantes e desfavorecidas, em situações identidade (Woodward, 2008). O tempo
bastante conflituosas. passa, os homens passam, mas a memória
Nesse cenário está em jogo não apenas a continua. A memória é um deciframento que
questão patrimonial da cultura, mas a própria transita por gerações. De acordo com Pierre
identidade local, seja simbólica ou social, que, Nora (1993), todos procuramos decifrar o
Festa do Çairé de marcada pela diferença, entra em crise (Gi- que somos num tempo de transformação e de
Alter do Chão (PA), 2000
Foto: Tamara Saré.
ddens, 2001). Crise de identidade que é ca- continuidade. A crise de identidade por qual
passa o Brasil, e consequentemente o Amapá, CANTO, Fernando. A água benta e o Diabo. Macapá:

Amapá: patrimônio cultural e identidade


Fundecap, 1998.
certamente estimula e mescla a memória co-
CHELALA, Charles. A magnitude do Estado na

a c i o n a l
letiva e individual num processo de retroali-
socioeconomia amapaense. São Paulo: Publit, 2008.
mentação, de perdas, de descobertas, de coisas
CUNHA, Manuela Carneiro da. “Identidade étnica”. In:
que as pessoas lembram ou esquecem. Mas

N
SALLUM JÚNIOR, Brasílio et al. (orgs.). Identidades.

r t í s t i c o
nenhuma mudança apagará tão rapidamente São Paulo: Edusp, 2016.
a memória coletiva, pois, segundo o destaque DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1983.

A
de Ecléa Bosi (1995), é possível afirmar que

e
GALLOIS, Dominique Tilkin. Mairi revisitada: a
somente fica aquilo que significa.

i s t ó r i c o

Fe r n a n d o C a n t o
reintegração da Fortaleza de Macapá na tradição oral dos
Hoje, longe dos tempos da colônia, Waiãpi. São Paulo: NHII/USP/FAPESP, 1994.
quando da concepção e da construção da GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de

H
Fortaleza de São José de Macapá, e dos

a t r i m ô n i o
Janeiro: Zahar, 1979.
tempos obscuros pelos quais todo o país GIDDENS, Anthony. “O futuro da Antropologia”. In:
passou, deve-se guardar o foco dos novos Em defesa da sociologia: ensaios, interpretações e tréplicas.
São Paulo: Unesp, 2001.

P
olhares para o reconhecimento do patrimônio

d o
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
cultural do Amapá e falar da identidade de

e v i s t a
Rio de Janeiro: DP&A, 1997.
seu povo, que a tem visivelmente multiplicada IBGE. Censo 2010. Disponível em <http://censo2010.

R
em outras por diversos fatores culturais e ibge.gov.br>. Acessado em 24/1/2015.
econômicos. Nessa multiplicidade contínua e IPHAN. Arte Kusiwa – Pintura corporal e arte gráfica
essencial vivem-se novas formas de entender Wajãpi. Pesquisa e textos de Dominique Tilkin Gallois.
Rio de Janeiro: Iphan, 2008.
a sociedade amapaense, na expectativa de que
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática
as tradições sejam transmitidas, procurando
dos lugares. Projeto História, v. 10, São Paulo, dez.1993.
caminhos sob as cores de sua bandeira, de PEREIRA, Nunes. O sahiré e o marabaixo: tradições da
seus valores intelectuais e práticos e de suas Amazônia. Recife: Fundaj/Ed. Massangana, 1989. 
121
“identidades possíveis” (Hall, 1997:14.). REZENDE, Cláudia Barcellos; COELHO, Maria
Esses novos olhares, então, no conjunto de Cláudia Pereira. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro:
Ed. FGV, 2010.
seu patrimônio cultural, são o espírito de sua
SANTOS, Maria Licínia Fernandes dos. Os madeirenses
época, o seu zeitgeist.
na colonização do Brasil. Funchal, Ilha da Madeira:
Centro de Estudos de História do Atlântico/Secretaria
Referências Regional do Turismo e Cultura, 1999.
SILVA, José Manoel Azevedo e. “Açorianos e madeirenses
BAENA, Antonio. Compêndio das eras da província do no povoamento e colonização da Amazónia, no tempo de
Grão-Pará. Belém: Editora da UFPA, 1969. marquês de Pombal”. In: As Ilhas e o Brasil. Actas do VI
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. Colóquio Internacional de História das Ilhas Atlânticas.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Funchal, Ilha da Madeira: Centro de Estudos de História
BRAZ, Isabelle Peixoto da Silva. “Índios no Ceará: do Atlântico/Secretaria Regional do Turismo e Cultura,
cultura, política e identidade”. In: CARVALHO, Gilmar 2000.
de (org.). Bonito pra chover: ensaios sobre a cultura WOODWARD, Kathryn. “Identidade e diferença: uma
cearense. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003. introdução teórica e conceitual”. In: SILVA, Tomaz
CANDAU, Jöel. Memória e identidade. São Paulo: Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos
Contexto, 2014. estudos culturais. 8 ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2008.
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

Fordlândia (PA), 1948


Foto: Pierre Verger/Acervo
Fundação Pierre Verger.

122

Trabalhador em
Fordlândia (PA), 1948
Foto: Pierre Verger/Acervo
Fundação Pierre Verger.
Fundação Pierre Verger.
Foto: Pierre Verger/Acervo
Belém (PA), 1948
afro-paraense,
Transe em culto
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
123

O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

124
Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios
Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa

a c i o n a l
As fortificações da A mazônia :
novas fronteiras e desafios 1

N
A
Hr t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Introdução Por vezes, no entanto, a escolha se
mostrava inadequada, seja porque as ilhas
A ocupação da Amazônia, a partir da e caminhos naturais de rios e igarapés

Pd o
colonização europeia, tem nas fortificações permitiam driblar a vigilância, passar ao largo

e v i s t a
militares a representação material da dos fortes sem ser atingido pelas bocas de
ocupação e das fronteiras que se expandiram fogo, seja porque a força dos rios cuidava de

R
no novo continente. As que resistiram e erodir o terreno em que se estabeleciam ou as
chegaram aos nossos dias são marcos do inundações invadiam suas praças.
colossal trabalho de se estabelecer numa Esses terrenos podiam ser falésias de
região em que a floresta impõe tanto os promontórios rochosos de perfil laterítico ou
desafios e dificuldades para a permanência, mesmo ilhas transitórias, que desapareciam
os deslocamentos, o acesso aos materiais com o tempo levando consigo as estruturas
construtivos, à mão de obra, quanto os erguidas pelos colonizadores. Outras tantas 125
rigores do intemperismo tropical. estruturas foram demolidas no processo de
Esses monumentos testemunham consolidação urbana, na ocupação de zonas
a consolidação dos limites territoriais
rurais distantes de centros urbanos ou mesmo
brasileiros, bem como a experiência
foram alvo de sinistros. Apesar das inúmeras
construtiva dos colonizadores, os quais
fortificações desaparecidas, ainda restam
observavam, na escolha do sítio físico, se
aquelas dispersas no território da maior bacia
permitiam a vigilância estratégica e detinham
hidrográfica do planeta, a Amazônica.
condições para soerguer as estruturas de
O grau de conservação das fortificações
espessas muralhas, ainda que também tenham
remanescentes ali é variável. Há fortificações
desenvolvido técnicas para construção em
monumentais preservadas e até bem cuidadas,
terrenos alagadiços.
assim como as que estão em ruínas, porém
1. Agradecimentos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento com perspectivas de consolidação, ou aquelas
Científico e Tecnológico – CNPQ, Petrobras, Secretaria de Políticas
Muralha do Forte de
para as Mulheres e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Ao cujos vestígios foram consolidados, embora Gurupá (PA), 2018
GMGA/PPGG/IG e à FAU/ITEC/UFPA. Ao Arquivo Nacional e Foto: Fernando Mesquita/
Arquivo Histórico do Exército. sua significância para a comunidade ainda Acervo Iphan.
seja outro desafio a superar. Existem ainda As fortificações
As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios

da
aquelas em que os restos de suas estruturas Amazônia
a c i o n a l

são gradativamente sorvidos pela floresta


ou em que as próprias bases sofreram e A ocupação europeia no país consolida-se
continuam padecendo com a erosão fluvial.
N

a partir do litoral, onde as estruturas de defesa


r t í s t i c o

Certamente há um potencial significativo tiveram papel fundamental na permanência


para o empreendimento de pesquisas dos colonos, inicialmente nas capitanias
A

arqueológicas que venham a contribuir hereditárias e seus primeiros sistemas


e

no sentido de identificar outras estruturas


i s t ó r i c o

defensivos. Porém, não apenas os portugueses


desaparecidas, corroborando para que a tentariam se estabelecer nas terras do novo
memória, expressa na vasta iconografia e mundo: franceses, ingleses, holandeses e até
H

relatos históricos, também se concretize em


a t r i m ô n i o

irlandeses também ergueram seus fortins ou


marcos visuais tangíveis ou mesmo imateriais,
Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa

estruturas defensivas no litoral e avançaram


por meio das inúmeras possibilidades virtuais no território do Grão-Pará.
P

deste novo milênio, os quais podem e devem Na história militar da Amazônia,


d o

ser valorizados adotando-se estratégias Ferreira (2004) destaca três períodos: o


e v i s t a

compatíveis com a realidade e contextos em primeiro, do final do século 16 até meados


R

que se inserem. do 17, caracterizado pela disputa territorial,


A conservação desses monumentos exige, em especial contra ingleses e holandeses;
portanto, atenção, tanto pelos seus aspectos o segundo, de meados do século 17 até
físicos e usos apropriados como também princípios do 18, corresponde à adoção de
pelos cuidados quanto ao intemperismo e ações para consolidar a posse do território,
seus impactos, a que estão permanentemente manutenção das áreas conquistadas e a
expostos. Estes podem gerar danos expansão portuguesa nas terras do Cabo
126
progressivos e irreversíveis se não forem, em Norte; e o terceiro, chamado de período
tempo hábil, adequadamente cessados. pombalino, em que a facilitação do comércio,
Considerando a importância histórica, aliada ao surgimento das povoações,
arquitetônica, cultural, social e econômica caracterizou uma profunda mudança na
das fortificações da Amazônia, a abordagem política de ocupação territorial.
deste trabalho desenvolve-se no sentindo Derenji (2001) aponta que a ocupação
de refletir sobre a trajetória de ocupação a portuguesa no período pombalino levaria a
partir da colonização europeia e sua expansão um sistema articulado, criando-se uma rede de
na região, dos desafios de se estabelecer defesa externa, a partir das cidades de Macapá
nas cercanias, da capacidade de adaptação e Belém, e outra interna, que contaria mais de
dos construtores aos materiais e técnicas quarenta povoações e alguns fortes.
disponíveis e de novos olhares sobre essas O estabelecimento das fortificações na
estruturas que permitam seu reconhecimento Amazônia pelos portugueses refletia não
e preservação diante de desafios de acesso, apenas a necessidade de proteção, devido
conservação e gestão. à resistência dos índios nativos da região
e das investidas de outros europeus, como a seguir, observando também aspectos de seus
também a expansão geográfica, que levaria os materiais construtivos e especificidades do
conquistadores a ampliarem as fronteiras de sítio de implantação.
sua possessão, aliada à exigência de fiscalizar a
coleta e comércio de especiarias. Holandeses, ingleses e
Vianna (1905) destaca que essas obras franceses na Amazônia
serviam para atenuar as investidas indígenas brasileira
e impedir a invasão dos vizinhos, além de
permitir o domínio de pontos dos rios cuja Os colonizadores, ao se estabelecerem
topografia facilitava a ação do fisco, fosse na região, erguiam estruturas defensivas,
como simples postos de registros, fosse como incialmente em materiais mais perecíveis,
pequenos redutos. como paliçadas e taipas, que depois eram
Reerguidas e aprimoradas pelos destruídas em conflitos ou abandonadas no
portugueses com materiais mais resistentes, as 127
meio da floresta.
fortificações espalharam-se pela região, algumas Alcântara & Alcântara (1978) indicam
vezes, nos mesmos locais das precedentes, que, a partir de 1596, ingleses e holandeses
reconhecendo-se, nesse caso, a propriedade atingiram o delta amazônico e iniciaram
da escolha do sítio físico pelos antecessores. a montagem de benfeitorias e pequenos
Ainda assim, essa ocupação indica um número estabelecimentos militares.
bem maior de estruturas desaparecidas, se Segundo Vianna (1905), em 1610 os
comparadas às estruturas remanescentes. holandeses já viviam em feitorias e postos
Vários documentos e estudos historiam fortificados na margem esquerda do rio
essas fortificações2, as quais serão apresentadas Amazonas, entre o rio Jary e Macapá, região
The Fort. (A Fortaleza
dominada pelos índios Tucujus. O forte de Nossa Senhora
das Mercês da Barra
2. Souza, 1885; Vianna, 1905; Garrido, 1940; Reis, 1956;
Barreto, 1958; Ferreira, 1970; Alcântara & Alcântara, 1978; holandês de Mandiutuba foi atacado em de Belém). Aguada
e guache de James
Nunes, 1983; Telles, 1984; Nunes, 1985; Santiago & Oliveira, 1625, mas sua localização não é precisa, Wells Champney. In:
1994; Castro, 1999; Teixeira & Valla, 1999; Derenji, 2001; Album Travels in the
Baena, 2004; Ferreira, 2004; Oliveira, 2006; Magalhães, 2006; possivelmente na margem direita do rio north of Brazil, 1860
Acervo: Fundação
Marques, 2006; Oliveira, 2008; Albuquerque & Lucena, 2010; Biblioteca Nacional,
Cruxen, 2011; Costa, 2015; Norat e Costa, 2016a,b. Amazonas, próximo à Gurupá (Vianna, 1905) Brasil.
ou do rio Maxipana, que corre para o rio Perto de Macapá, de origem inglesa,
As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios

Xingu, perto da vila de Veiros (Baena, 1969). eram ainda a Casa Forte do Rio Felipe
a c i o n a l

Também holandeses são os fortes Orange (1620) e o Forte do Torrego (II) (1629);
e Nassau (entre 1599 e 1600), na margem o Forte North, Pattacue ou Forte do
esquerda do rio Xingu, servindo para guarda Rio Felipe (1629) (Castro, 1999). O
N
r t í s t i c o

das plantações, e Muturu e Mariocay, Forte Cumaú, no rio Matapi (1632),


fortificações de faxina perto da foz do originalmente construído pelos ingleses
A

Xingu entre os rios Pery e Acarahy, sendo os e depois reconstruído pelos portugueses
e

holandeses expulsos pelo capitão Sebastião (1688) como Forte Santo Antônio de
i s t ó r i c o

de Lucena após combate em 1641, na Ilha Macapá, tomado pelos franceses em 1697
de Gurupá, no Pará. Na embocadura do rio (Vianna, 1905; Castro, 1999).
H

Maricary, proximidades da foz do Araguari, Os fortes franceses do Araguary e Camau


a t r i m ô n i o

localizava-se o forte Maricary ou Maiacaré ou Massapá, no Amapá, foram condenados


Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa

de 1633(?), no Amapá, na margem direita à demolição pelo tratado provisional de 4


P

do Amazonas (Castro, 1999; Albuquerque, de março de 1700, celebrado em Lisboa por


d o

2008; Barreto, 2010). portugueses e franceses para neutralizar a


e v i s t a

Vianna (1905) aponta que os holandeses Guiana Brasileira (Amapá) (Vianna, 1905).
R

tinham um posto fortificado entre os rios Deste relato, vê-se a importância de atentar
Mayacaré e o Cassiporé, na embocadura para a ocupação da região, cuja documentação
do primeiro. Em 1660, para proteger os aponta os vários desafios enfrentados pelos
missionários franciscanos que seguiam em primeiros colonizadores europeus.
missão todos os anos nesse sítio, foi erguido
um forte sobre o rio Araguari, porém, de As fortificações
efêmera duração, castigado pelas inundações e portuguesas remanescentes
128
a pororoca. Em 1688, os portugueses já teriam e d e s a pa r e c i d a s
outro forte no rio Batabouto, afluente da
margem esquerda do Araguari (Vianna, 1905). A consolidação portuguesa na
De origem inglesa, no Amapá, existiram Amazônia tem como ponto de partida o
o Forte do Torrego (I), Torego, Foherégeo, estabelecimento do Forte do Presépio, de
Tauregue ou Maracapu (1612), em frente à 1616, marco da fundação da cidade de
Ilha de Santana. Castro (1999:138) informa Belém (PA). Inicialmente uma casa forte de
que desde 1609 o comerciante irlandês madeira, alvo de combates com os índios
Philip Purcell e compatriotas montaram uma Tupinambás, esse forte foi substituído
colônia para o plantio de tabaco, no atual rio por uma fortaleza de taipa, arruinada
Preto ou Maracapuru, a qual foi combatida anos depois. A cidade ficaria, por anos,
por Pedro Teixeira, que em 1625 exterminou desguarnecida, devido à destruição das
a povoação holandesa de Mandiutuba no estruturas prévias, até ser construída outra
Xingu, estendendo a expulsão aos colonos regular, chamada de Castelo do Senhor
irlandeses e ingleses das proximidades. Santo Cristo (Vianna, 1905; Baena, 2004).
Após os combates da revolta da - O Baluarte Nossa Senhora das Mercês
Cabanagem (1835-1840), Jeronymo ou Forte de São Pedro Nolasco (1665),
Francisco Coelho deu início às obras de cordiforme, foi alvo de combates durante
reconstrução do forte em 1850, cumprindo a Cabanagem e teve sua demolição
ordem imperial, quando se fez um novo autorizada em 1842. Após anos
portão, quartéis para a guarda, uma ponte desaparecido, encoberto pelo aterro para
sobre o fosso e uma muralha de cantaria para criação do porto de Belém, pesquisas
129
evitar a ação destruidora do rio (Vianna, arqueológicas permitiram a descoberta de
1905). Na atualidade, é um forte preservado suas fundações, que hoje estão consolidadas
e adequado para funcionar como espaço e integradas ao conjunto turístico
museológico (Museu do Forte do Presépio), gastronômico da Estação das Docas.
integrado ao complexo Feliz Lusitânia, cuja
- A Fortaleza de Nossa Senhora das Mercês
área foi alvo de intervenções urbanísticas
da Barra (1686), de formato circular e
associadas à restauração de grandes obras da
envolta pelas águas da baía do Guajará,
arquitetura civil e religiosa do primeiro sítio
foi utilizada como depósito de inflamáveis
de ocupação da cidade.
na década de 1940 e sucumbiu por
Mas a cidade de Belém teria outras
estruturas em terra e na Baía do Guajará3, consequência de uma explosão ocasionada
descritas a seguir: por curto circuito, após descarga elétrica de
um raio, em 9 de maio de 1947.
Forte do Presépio,
de 1616, marco da
3. Souza, 1885; Vianna, 1905; Garrido, 1940; Reis, 1956; - O Reduto de São José e a Bateria de fundação de Belém (PA)
Ferreira, 1970; Baena, 2004; Ferreira, 2004; Meira Filho, 2015; Foto: André Vilaron/
Norat & Costa, 2016a. Santo Antônio, levantadas no flanco do Acervo Iphan, 2018.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

130
Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios

de Belém.
Acervo: Museu de Arte
Alfredo Norfini, 1940
ao trem. Aquarela de
Assalto dos Cabanos
convento dos capuchos de Santo Antônio. pelos frades mercedários. Em 1833, tal

As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios


Essas estruturas foram unidas em 1807 por estrutura já não existia.

a c i o n a l
meio de um semibaluarte e uma muralha - As baterias de Campanha, do Arsenal
em ângulo reentrante, porém, em 1832, e do Carmo, situadas na direção do rio

N
estavam ambas arruinadas e, para permitir Guamá, tiveram curta duração durante o

r t í s t i c o
a chegada das ruas Estrela e Piedade até o século 18.
mar, tiveram sua demolição deferida pela
Considerando a rede fortificada em terra e

A
Câmara Municipal de Belém.
mar estabelecida em Belém, havia um código

e
i s t ó r i c o
- A Bateria da Ilha dos Periquitos, de sinais entre os fortes do Castelo e São
montada com quatro canhões voltados Pedro Nolasco, o reduto de Santo Antônio e
para o rio, na ilha de caráter transitório

H
a Bateria de São José e, ainda, a Fortaleza da

a t r i m ô n i o
que se foi erodindo e da qual só uma Barra, que também vigoravam para o Fortim

Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa


pequena parte restava em 1839, depois e a bateria dos Periquitos (Vianna, 1905).
desaparecida junto com a bateria. Há Para a Barra, a transmissão dos anúncios de

P
informes da construção ali de um fortim

d o
aparição de navio eram feitas a partir da Vigia

e v i s t a
cuja obra não foi concluída e ficou sujeito da Ponta do Pinheiro, deste a partir da Ilha
à ação destruidora das marés. da Tatuoca e da Vigia do Chapéu Virado, a

R
- Fortim da Barra de Belém, estrutura que primeira pelo sistema de sinais a anunciar
aparece em desenho de 1724 em formato o aparecimento de qualquer embarcação
de estrela de cinco pontas contendo corpo (Baena, 2004).
da guarda e armazém, no qual se indica a No Pará, existem ainda outras estruturas
obra que se intentava fazer na edificação, fortificadas4 das quais são preservadas e em uso
diferenciando em risco preto a obra as de Óbidos e de Gurupá, enquanto as demais
“antiga e arruinada” e em linha pontilhada desapareceram. Todas são descritas a seguir. 131
“a que se pretendia fazer” (Norat & Costa, As remanescentes no Pará são:
2016b). Baena (2004) relata que, em - O Forte de Santo Antônio de Gurupá,
1738, tinha-se principiado a construção fundado no mesmo sítio do antigo Forte
de um fortim na ponta setentrional de Tucujus dos holandeses (1623), que ainda
uma ilha na forma de um paralelogramo tentaram reconquistá-lo em 1643, mas
que chegou a ter cinco peças, mas não foram expulsos por Sebastião de Lucena,
foi concluído. após combate. No ano de 1742 foi
- A Bateria de Val de Cães, da segunda reedificado sob a direção do engenheiro
metade do século 18 surgida para dar Domingos Sambucetti. Em 2018, o
apoio à Fortaleza da Barra pelo lado da Instituto do Patrimônio Histórico e
terra, sendo uma bateria de faxina com Artístico Nacional – Iphan concluiu sua
quatro obuses sobre a ponta do terreno da
fazenda de D. Maria de Mendonça. Após 4. Souza, 1885; Vianna, 1905; Garrido, 1940; Reis, 1956;
Ferreira, 1970; Alcântara & Alcântara, 1978; Nunes, 1983;
sua morte em 1685, a bateria foi herdada Nunes, 1985; Baena, 2004; Ferreira, 2004; Costa, 2015.
As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa


P
d o
e v i s t a
R

132

Vista do Forte de
Santo Antônio de
Gurupá (PA), s/d
Foto: Marcel Gautherot/
Acervo Iphan.

Planta do Forte de
Óbidos. Nanquim de
Antônio Alvares dos
Santos Souza
Acervo: Fundação
Biblioteca Nacional,
Brasil.
As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
recuperação, com o apoio do Museu e reconstruída em 1803, 1854 e 1867,

a t r i m ô n i o
Paraense Emílio Goeldi – MPEG e a sendo que em 1898 apenas seus alicerces

Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa


Universidade Federal do Pará – UFPA, eram referenciados.
sendo a prefeitura local responsável por - Forte do Paru em Almeirim: antigo

P
d o
seu funcionamento e manutenção. Forte do Desterro, edificado por Bento

e v i s t a
- Forte de Santo Antônio de Pauxis de Maciel em 1638 e reedificado às expensas
Óbidos, cuja primeira estrutura em taipa de Manoel da Mota Siqueira, era um

R
de pilão data de fins do século 17. Após forte de “pedra e barro”, assim como
começar a desabar a cortina do lado seus quartéis, na margem esquerda do
do rio, em 1854, mandou-se construir Amazonas, próximo à Serra do Paru. O
a atual, semicircular, guarnecida por
primitivo forte passou em 1745 por uma
dez canhões, acrescentado-se depois
reedificação completa. Em 1784 constata-
uma plataforma corrida em “cantaria de
se seu estado de arruinamento.
Lisboa” (Vianna, 1905). Posteriormente 133
construiu-se um fortim, conhecido - O Forte do Toheré, pequeno forte no rio

como Forte Gurjão, na “raiz” da Serra de mesmo nome, afluente da margem es-
da Escama, com três peças, mas sem o querda do rio Amazonas, nos domínios da
necessário espaço para seu recuo, nem capitania do Cabo Norte, que se estendia
para conter as respectivas guarnições. do Oiapoque até o rio Paru, doado pelo rei

E as desaparecidas no Pará são: Felipe IV, então rei da Espanha e de Portu-


gal, a Bento Maciel Parente, pelos serviços
- A Fortaleza de Tapajós, ou Santarém,
de conquista e colonização do Pará.
concluída em 1697, erguida na
confluência dos rios Tapajós e - A Casa Forte do Rio Guamá, no
Prospecto da
Amazonas, inicialmente em taipa de contexto da estrada que ligava Belém do Fortalezza de
Tapajos, com sua
pilão, posteriormente reconstruída Pará a São Luís do Maranhão, a partir do Aldea, de João
André Schwebel. À
por Domingos Sambucetti, desta feita rio Guamá, foi erguida em madeira de lei esquerda, a Fortaleza
de Tapajós ou
em pedra e cal, com boa “solidez e por Luiz de Moura, em 1725, dando mais Santarém, 1756
Acervo: Fundação
Biblioteca Nacional,
resistência” (Vianna, 1905), arruinadada tarde origem à vila de Ourém, em 1753. Brasil.
- O Forte de Nossa Senhora de Nazaré - O Forte de São João do Araguaia, surgi-
de Alcobaça, na atual cidade de Tucuruí, do em sequência ao abandono do acam-
no contexto de colonização e comércio pamento de Itaboca e mudança da colônia
134 do rio Tocantins, tendo por objetivo para a margem direita do Tocantins, “en-
evitar o extravio de ouro, impedir a tre o seco de Bacabal e a praia do Tição”,
fuga dos escravos de Cametá e afugentar de onde se teria a vista da foz do rio Ara-
os indígenas. Porém, buscando novos guaia (Vianna, 1905; Baena, 1969).
caminhos pelos rios Vermelho e Araguaia, - A Vigia da Ilha de Bragança, uma
a caminho do território do atual estado de bateria de faxina de duração efêmera e
Tocantins, foi autorizada sua demolição logo depois desartilhada e abandonada.
em 1797 (Vianna, 1905; Baena, 1969). No Amapá, a preocupação com os
- O Forte da Cachoeira de Itaboca, após a franceses exigia a atenção dos portugueses.
demolição do forte de Alcobaça, reunindo- O sítio de Macapá tinha um reduto desde
se os habitantes deste e do local chamado 1738, mas havia relatos de urgência de cuidar
São Bernardo da Pedreneira, comandado da região, então desamparada, pois a antiga
Praça interna da
por Felippa Maria Aranha, buscava Fortaleza Santo Antônio de Macapá estava em
Fortaleza de São José
de Macapá (AP), 2017
uma posição mais vantajosa junto a essa ruínas (Vianna, 1905). Sobre as fortificações
Foto: Fernando Mesquita/
Acervo Iphan. cachoeira (Vianna, 1905; Barretto, 2010). do Amapá, têm-se como remanescentes:
- A Fortaleza de São José de Macapá, - Forte de São José de Manaus (1669),

As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios


obra monumental erguida a partir de considerado de segunda ordem por aviso

a c i o n a l
1764 e inaugurada em 1782, encontra- de 14 de fevereiro de 1857 e depois
se preservada. Apesar de não concluída, abandonada, a partir do aviso datado de

N
configura-se como guarnecida por 22 de maio de 1875.

r t í s t i c o
baluartes e estruturas de defesa externa. - Forte de São José de Marabitanas (1773),
- As ruínas do Forte de Cumaú, na margem direita do rio Negro, construí-

A
posteriormente reconstruído pelos do para impedir a invasão dos castelhanos

e
i s t ó r i c o
portugueses como Forte Santo Antônio que haviam fortificado os pontos de São
de Macapá, em 1688 (Castro, 1999), foi Carlos e de São Fernando nas margens do
mesmo rio, acima de Cucuhy.

H
alvo de estudos empreendidos pelo Iphan

a t r i m ô n i o
e parceiros, como o Instituto de Pesquisas - Forte São Gabriel da Cachoeira (1773),

Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa


Científicas e Tecnológicas do Estado do situado sobre a “aba de um morro alcanti-
Amapá – Iepa, a Universidade Federal do lado” e executado com “parede de pedra e

P
d o
Amapá – Unifap e o MPEG. argila”, na margem esquerda do rio Negro.

e v i s t a
Já as desaparecidas são: - Forte São Francisco Xavier de Tabatinga,
na margem esquerda do Amazonas, junto

R
- A Vigia de Curiaú, na margem direita
do rio Curiaú, na confluência com o à foz do rio Javari (1776).
Amazonas, e a Casa Forte do rio Araguari, Em Rondônia, ainda presentes na paisagem:
Forte do Rio Araguari ou Forte do Rio - As ruínas do Forte Conceição, posterior-
Batabouto (1687), Casa Forte da Ilha de mente Bragança (1768), em Costa Marques,
Santana (1729?) e Forte do Araguari. Rondônia, às margens do rio Guaporé.
No Amazonas, estão desaparecidos - Real Forte Príncipe da Beira (1776- 135
(Souza, 1885; Costa, 2015): 1783), estrutura abaluartada monumental

Real Forte Príncipe da


Beira (vista aérea),
Costa Marques (RO),
2018
Foto: Sônia Rampim/
Acervo Iphan.
em cantaria executada a partir de crostas Na escolha do local, consideravam-se
As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios

lateríticas. Suas estruturas internas, embora as características topográficas do sítio, com


a c i o n a l

em ruínas, e as externas (paiol e forno) têm especial condição de visibilidade quanto à


despertado a mobilização de instituições entrada e saída de invasores. Em geral, eram
promontórios rochosos em solos firmes,
N

públicas, pesquisadores e do Exército, que


r t í s t i c o

lá mantém um batalhão de fronteira. aliando a vigilância das terras conquistadas,


Em Roraima, também ainda perceptíveis: o controle fiscal e a acessibilidade às possíveis
A

As ruínas do Forte de São Joaquim, fontes de matéria-prima para a construção.


e

Vellozo, em sua obra Arquitetura militar


i s t ó r i c o

construído pelo alemão Felipe Frederico


ou fortificação moderna de 1743, ao discorrer
Sturm, em 1775, no encontro dos rios Tacutu
sobre a qualidade dos sítios mais apropriados
e Uraricoera, que se juntam para formar o rio
H

para se fortificar, ensina que para uma praça


a t r i m ô n i o

Branco (Costa, 2015).


real e grande deve se optar por um sítio
Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa

Da atual configuração dos estados


moderadamente elevado sobre a campanha
nortistas, não apresentam fortificações apenas
P

rasa e tanto melhor se tiver algum rio


d o

o Acre, incorporado ao território brasileiro


próximo (Vellozo, 2005:45).
e v i s t a

apenas em 1904, e o Tocantins, no contexto da


Sobre a construção nas proximidades de
ocupação do Centro-Oeste pelos missionários
R

um grande rio, Vauban (1769) observa as


do Norte, bem como pelos bandeirantes
vantagens na utilização de suas águas como
paulistas durante a corrida do ouro. meio de transporte para o que fosse necessário
à obra, resultando em custos baixos, ou sobre
Técnicas e m at e r i a i s a terra abundante para reparar as construções e
construtivos em edificar os recintos, bem como a possibilidade
f o r t i f i c a ç õ e s m i l i ta r e s de construção de sistemas de comportas.
136
Situações comuns nos terrenos da Região
Os tratados de arquitetura, desde a Norte brasileira, dominada ambientalmente
Antiguidade, relatam técnicas e métodos pela Floresta Amazônica e seus rios, que
para as construções fortificadas, cujas requeria técnicas construtivas específicas.
tipologias moldaram-se em consonância aos Quanto às matérias-primas empregadas
avanços dos armamentos, em cada época, nas construções, Sousa (1885) destaca que
até a estética das chamadas fortificações os materiais usados nas obras defensivas
modernas (Vauban, 1769; Belidor, 1830; eram, isolada ou coletivamente, a madeira,
Vellozo, 2005; Vitrúvio, 2006). a terra solta ou revestida, o adobe, a taipa, o
Vitrúvio, no século I a.C., no Livro I de tijolo, a pedra saca, a alvenaria, a cantaria e
sua obra De Architectura trata, dentre outros mesmo o ferro e completa: “Na construcção
aspectos, da construção das muralhas, torres, de nossas obras de defesa, tem-se empregado
terraplenos e fossos, ressaltando o uso de quasi todos os materiais citados: as
matérias-primas disponíveis aos construtores primitivas erão de taipa, madeira; terra ou
(Vitrúvio, 2006). adobe; posteriormente fôrão erigidas com
pedra e cal, terra revestida ou com tijolos” Os construtores adaptavam-se aos
(ibid.:55). materiais locais, mas também podiam
Nas obras que chegaram aos dias atuais, utilizar produtos oriundos de outros sítios.
a pedra é o material construtivo mais Porém, a primeira opção fazia-se por vezes
recorrente, emprestando resistência e solidez. imprescindível, principalmente em locais
Vellozo (2005) descreve que deviam valer- longínquos como a Amazônia, em que as
se daquelas disponíveis dentro dos fossos, moléstias acometiam, sem parcimônia,
137
aproveitadas assim das escavações, poupando- comandantes e comandados.
se custos de transporte e ainda afirma: Assim, o uso das rochas para a
implantação de estruturas duradouras em
(...) porem he bom o sabellas accommodar alvenarias de pedra, seja em blocos irregulares
bem na obra, segundo sua qualidade, porque
ou em cantaria, aliadas ou não aos tijolos
hu’as são boas em hum lugar, outras em outro: as
cerâmicos maciços, foi a opção mais comum
pedras vivas mais duras e mayores se meterão nos
de material para erguer as muralhas. Prospecto da
alicerces, e lugares mais humidos; as pedras mortas, Fortaleza de
Os tijolos eram produzidos no próprio sítio S.Joaquim, situada
e que tem especie de saybro, ou barro se não porão na margem oriental
a face, mas servirão so para enchimento do groço
e proximidades a partir do barro removido dos da foz do rio Tacutú,
o qual deságua no
da parede, ja fora do alicerce, e donde não houver barrancos dos rios, ricos em argilas cauliníticas, Branco pela sua
margem oriental,
humidade, porque metendo-se de sorte que fiquem moldados e queimados em fornos do tipo na distância de
102 léguas da sua
ao ar principalmente em lugares que olhão para caieiras. As argamassas de cal com adição de foz. Aquarela de
Joaquim José Codina.
a marinha, ou lagos, ou para a parte do sul se solo (argila, saibro) e areia completam esse Expedição Científica
Alexandre Rodrigues
consomem, e desfazem pouco e pouco (Vellozo, cenário e somam-se às madeiras, aplicadas Ferreira (1783 a 1792)
Acervo: Fundação
Biblioteca Nacional,
2005:292). não apenas em coberturas e esquadrias, mas Brasil.
também em alicerces. Esses foram os principais Dos materiais rochosos da Amazônia, de-
As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios

materiais empregados nas construções, das stacam-se os lateríticos, como os arenitos ferru-
a c i o n a l

quais algumas resistiram ao intemperismo ginizados e as pedras de ferro. Mas há também


tropical, chegando até os dias atuais. ocorrências de outros tipos de rochas nas
construções fortificadas, tais como granitos,
N
r t í s t i c o

Os m at e r i a i s c o n s t r u t i v o s gnaisses, mármores e calcários, provenientes do


e os desafios de entorno geológico ou de áreas externas.
Amazônia
A

fortificar a Em relatório de 1854, J. M. de Oliveira


e

Figueiredo descreve as rochas da Fortaleza


i s t ó r i c o

As primeiras instalações para defesa, em de São José de Macapá em “cantaria escura


geral, eram construídas com materiais mais pe- habilmente trabalhada”. Dos alicerces do Forte
H

recíveis como madeira e paliçada. As madeiras, São Pedro Nolasco, aponta-se que eram feitos
a t r i m ô n i o

muitas de excelente qualidade, serviam bem a com pedra e cal, de forma retangular, com
Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa

essas estruturas iniciais, ou para a instalação de um dos lados maiores para o mar e o outro
P

vigias e até em alicerces de grande porte. apoiado em terra (Souza, 1885; Vianna, 1905).
d o

O reduto de São José em Belém (1771) é Também as muralhas podiam ser feitas
e v i s t a

descrito como um “reduto de faxina à borda de tijolos. Nesse caso, eram mais resistentes
R

d’água com a berma circuitada de paliçada” e do que as de terra crua e não estilhaçavam
“o terreno previamente estaqueado” (Vianna, tanto quanto a pedra, quando golpeadas por
1905:293). projéteis (Oliveira, 2004). Vellozo (2005:296)
Para construir nas proximidades do sítio recomenda as muralhas feitas de tijolo como
alagadiço e do lago, o traçado da Fortaleza de “as melhores de todas por não serem sugeytas
São José de Macapá foi adaptado ao terreno apli- a grandes ruínas, e porque sendo batidas da
cando-se a técnica que consistia na “elevação das artelheria fazem menos estilhaços que as de
138
muralhas sobre um engradado de madeira”, no alvenaria ou de cantaria”.
caso acapu, conforme se observa nos projetos e Oliveira (2004) exemplifica a Fortaleza
depois é confirmado em pesquisas arqueológicas de São José de Macapá como das mais
empreendidas nos anos de 2003 e 2004 (Albu- “elegantes, no Brasil, de construção de tijolos,
querque, 2008) e detalhado por Oliveira (2004). feita em larga escala” e indica dois possíveis
A madeira também era usada para o reparo motivos para sua utilização: a influência de
das peças de artilharia. Athayde Teive, ao soli- Manuel Azevedo Fortes no seu projeto e a
citar, em 1766, as primeiras peças de artilharia escassa qualidade da pedra no sítio escolhido
para os primeiros baluartes da Fortaleza de São para sua instalação, que, em contrapartida,
José de Macapá, alerta não serem necessários constituía uma zona rica em terrenos argilosos
os reparos e a palamenta, pois contava com sedimentados pelo Amazonas.
excelentes madeiras e bons carpinteiros. Assim, Porém, a envergadura dessas obras
os reparos feitos em Belém foram enviados monumentais tinha também como grande
com as peças montadas para Macapá (Vianna, desafio a falta de mão de obra qualificada para
1905:286). o ofício e a escassez de materiais, seja para as
construções de grande vulto ou mesmo para e a fuga despovoavam as pedreiras e as

As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios


seus reparos. Vianna (1905:269) relata: “(...) canoas”, até a produção da matéria-prima e

a c i o n a l
não existia no Pará um único pedreiro capaz seu transporte, no qual o contraponto era
de executar as obras das fortalezas. Assim, “o preto africano mais submisso ao cativeiro
tornou-se preciso contractar anos depois a que o índio e mais resistente aos maus tratos,

N
r t í s t i c o
Francisco Martins, que residia em Lisboa, má alimentação e intempéries” (Vianna,
para vir ao Pará fazer as fortificações, com o 1905:285).

A
salario de 800 réis por dia de trabalho”. Outros desafios a superar referem-se

e
No Forte São Joaquim (RR), optou-se por aos percalços oriundos da natureza, como

i s t ó r i c o
construí-lo em pedra e, na falta de cal para as correntezas, as chuvas abundantes e a
fazer a argamassa, utilizou-se barro na junção vegetação, que invade sem parcimônia mesmo

H
das pedras (Costa, 2015). Sobre a dificuldade a mais bem construída praça, assim como

a t r i m ô n i o
de acesso à cal observa-se, por exemplo, o aspectos estratégicos de controle de uma bacia

Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa


relato de que, em 1761, o engenheiro Gaspar hidrográfica extensa e repleta de caminhos

P
João Geraldo Gronfelds, enviado a Gurupá a capazes de driblar a vigilância.

d o
mando do governador Manoel Bernardo de A Vigia de Curiaú, executada em madeira

e v i s t a
Mello Castro para reconstruir o forte, lutava sobre um “banco de lodo e areia”, era ligada

R
contra a falta de cal para uma obra completa à margem por uma ponte. Tinha a função
(Vianna, 1905). de alertar sobre embarcações inimigas não
Em Macapá, a escassez do material e a vistas a partir de Macapá. Baena (2004),
“falta de braços” são percebidas nos índios porém, descreve que a ilha não tinha altura
Tapuyas, que sofriam com as moléstias e a que a isentasse “de a sobrepujarem os fluxos
disciplina militar, de forma que “a morte do mar”, além de ser cercada por outras ilhas

139

Sítio arqueológico
do antigo Forte
São Joaquim, nos
arredores de
Boa Vista (RR), 2018
Foto: Márcio Vianna/
Acervo Iphan.
As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa


P
d o

que dificultavam a visão de embarcações. M. Oliveira Figueiredo em 1854, ao indicar


e v i s t a

Afora isso, o inimigo poderia entrar pelo rio a necessidade de construir uma muralha que
R

Pedreira e descer à margem direita desse rio amparasse o terreno e evitasse que as águas do
sem ser visto. rio Amazonas e suas correntezas continuassem
O Forte Santo Antônio de Gurupá a “cavar a esplanada, e que minando-lhe
(PA) objetivava auxiliar a vigilância quanto os alicerces desabe a melhor fortaleza do
ao contrabando de especiarias, contudo, é Império” (Vianna, 1905:292).
criticado por sua “inutilidade estratégica” A suscetibilidade às marés e enchentes
decorrente da topografia cercada de ilhas, também foi problema enfrentado nos sítios
140
canais e igarapés que permitiam a passagem do Forte Conceição ou Bragança (RO) e no
de embarcações longe do alcance dos canhões Forte São Joaquim do Rio Branco (RR), os
(Souza, 1885; Vianna, 1905). Esse forte quais, além das precárias instalações, eram
padece ainda hoje com a erosão fluvial, a tal vulneráveis às águas do rio, que subiam de 60 a
ponto que recentemente foi construída uma 90 centímetros nas enchentes (Costa, 2015).
cortina de concreto para proteção da falésia. Somam-se a essas questões a suscetibilidade
A Fortaleza da Barra em Belém também ao intemperismo tropical, especialmente o
padecia com a correnteza das marés na baía bioquímico e físico, decorrente da invasão e
do Guajará, que, bastante forte naquele desenvolvimento da vegetação. Baena (2004)
ponto, estava desgastando seus alicerces, descreve que o Forte do Parú de Almeirim
somada às águas pluviais que “atravessavam (PA), em pedra e barro, já em ruínas, achava-se
a abóbada e alagavam a bateria inferior” “debaixo de árvores emaranhadas que a própria
(Vianna, 1905:250). terra brotou em si”.
A erosão fluvial também afetava a praça Em 1784, o governador Martinho de
de Macapá, como relatado pelo conselheiro J. Sousa e Albuquerque e o sargento-mor enge-
As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa


P
d o
nheiro e comandante de artilharia João Vasco compreensão de gestores e da sociedade

e v i s t a
Manoel de Braun constatam: “(...) ao desam- perante suas especificidades.

R
paro completo, foram-se desmoronando pou- Aos rigores climáticos, a floresta também
co a pouco as muralhas, as peças auxiliaram responde com madeiras de excelente qualida-
as intempéries na destruição dos reparos e o de e rochas cuja estabilidade decorre de sua
forte desappareceu sob o matto que acabou formação nas condições do intemperismo
invadindo-o” (Vianna, 1905:264). tropical, em que o cimento ferruginoso que
Como se vê, as circunstâncias adversas consolida esses corpos rochosos lhe empres-
não foram empecilho para a construção de tam coesão, durabilidade e resistência.
141
inúmeras e variadas estruturas de defesa na Mesmo as situações adversas, como a falta
Amazônia, porém, a falta de cuidados e de uso, de materiais, geraram adaptações impetradas
assim como o volume de recursos necessários pelos construtores e artífices na urgência de
para sua manutenção são os principais desafios soluções em locais que até hoje são de difícil
que perduram até os dias de hoje. acesso. Na ausência de cal, a ligação com o
material de solo também se prestou para tecer
Novos olhares: desafios as muralhas, aproveitando-se ao máximo
e p e r s p e c t i va s p o r u m a quando se tinha o ligante tradicional, seja de
memória da arquitetura pedra calcária ou de sernambis, em diversas
m i l i ta r a m a z ô n i c a composições de argamassas.
O maior desafio dessas estruturas, Prospecto da
Fortalezza de Pauxis,
A história construtiva das fortificações contudo, foi o abandono a que foram de João André
Schwebel, à direita
na Amazônia denota uma trajetória relegadas, esquecidas nos confins da região, o Forte de Santo
Antônio de Pauxis de
rica e de superação que merece atenção, sem utilidade. Muitas foram demolidas Óbidos (PA), 1756
Acervo: Fundação
Biblioteca Nacional,
reconhecimento e, ao mesmo tempo, a com autorização, para garantir avanços Brasil.
urbanísticos e substituições na paisagem. gastronomia particular e outros atributos que
As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios

Mas a maior parte realmente sucumbiu lhe imprimem identidade própria, mas ao mes-
a c i o n a l

silente aos avanços da floresta e/ou pelas mo tempo variada em sua vasta territorialidade.
forças das marés, reforçadas pelas chuvas Não se pode, portanto, pensar nessas forti-
intensas que terminam por transportar
N

ficações como estruturas isoladas ou estanques.


r t í s t i c o

de volta a terra, os materiais que outrora Trata-se de uma rede articulada que deve ser
compuseram monumentos que consolidaram percebida e tratada como tal, reconhecendo
A

a ocupação portuguesa na região. que o desafio talvez seja tão monumental


e

As estruturas remanescentes em boas quanto foram os enfrentados pelos precursores


i s t ó r i c o

condições localizam-se em cidades cujo acesso e empreendedores dessa ocupação.


pode ser realizado por via área, terrestre e/ Nada será de fato viável sem que haja um
H

ou fluvial. As capitais como Macapá (AP) e


a t r i m ô n i o

real compromisso estratégico de gestão pública


Belém (PA) são mais facilmente acessadas.
Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa

e privada, aliado ao estimulo à pesquisa e ciên-


Para se chegar, contudo, a Óbidos ou Gurupá cia e, principalmente, o envolvimento direto
P

no Pará ou a Costa Marques em Rondônia, das comunidades em que estejam inseridas.


d o

na fronteira com a Bolívia, esforço bem maior


e v i s t a

deve ser realizado. Por via terrestre, fluvial ou Referências


R

aérea, os custos de deslocamento são bastante


elevados, principalmente no último caso. ALBUQUERQUE, M. Arqueologia da Fortaleza de São
José de Macapá. Revista da Cultura, n. 14, v. 8, Rio de
A localização das fortificações do
Janeiro, p. 40-46, 2008.
ponto de vista paisagístico é sempre muito
ALBUQUERQUE, M.; LUCENA, V. “Arqueologia
interessante. São locais onde a natureza amazônica: o potencial arqueológico dos assentamentos
ao redor, mesmo nas áreas urbanas, é e fortificações de diferentes bandeiras”. In: PEREIRA,
E.; GUAPINDAIA, V. Arqueologia amazônica. Belém:
convidativa ao passeio e ao turismo.
142 MPEG/Iphan/Secult, 2010, p. 968-1019.
Porém, por mais que a economia do
ALCÂNTARA, D.; ALCÂNTARA, P. Relatório sobre a
turismo seja uma estratégia recorrente para Fortaleza de São José de Macapá. Macapá: Governo do
garantir a manutenção dessas fortificações em Território Federal do Amapá, 1978.

outras regiões do país, onde são naturalmente BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Compêndio das eras
da província do Pará. Belém: UFPA, 1969, 395 p.
acessíveis ou agregadoras de público, a
______. Ensaio corográfico sobre a província do Pará.
exemplo de muitos sítios localizados em Brasília: Edições Senado Federal/Conselho Editorial,
centros urbanos de cidades na costa atlântica, 2004, 432 p. Disponível em <http://www2.senado.leg.
br/bdsf/handle/id/1097>.
sabe-se que, ao menos no contexto atual, essa
BARRETO, A. Fortificações do Brasil. 2. ed. Rio de
estratégia por si só não garante a preservação
Janeiro: Biblioteca do Exército, 2010, 208 p.
das fortificações da Amazônia. ______. Fortificações no Brasil – Resumo histórico. Rio
Há que se reconhecer nas dificuldades, no de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1958, 368 p.
exotismo, no apelo da floresta e da paisagem, BELIDOR, B. F. La Science dês ingeniers – Dan La
os instrumentos de apoio à preservação dessas conduit dês travaux de fortification et d’Architecture
Civile. Paris: Chez Firmin Didot Frères, Libraires, 1830.
estruturas, aliados à diversidade cultural ama- Disponível em <http://books.google.com.br/books>.
zônida e sua riqueza material e imaterial, sua Acessado em dez.2013.
CASTRO A. H. F. “O fecho do Império: história das NUNES, A. L. P. As fortalezas de transição nos cartógrafos

As for tificações da Amazônia: novas fronteiras e desafios


fortificações do Cabo Norte ao Amapá de hoje”. In: do séc. XVI. Segundo Congresso sobre monumentos
GOMES, F.S. (org.). Nas terras do Cabo Norte: fronteiras, militares portugueses. Lisboa: Associação Portuguesa de

a c i o n a l
colonização e escravidão na Guiana Brasileira – Séculos Protecção e Desenvolvimento da Cultura, 1983.
XVIII/XIX. Belém: Editora Universitária/UFPA, 1999, NUNES, J. M. S. Real Forte Príncipe da Beira. Rio de Janeiro:
p.129-193. Fund. Emílio Odebrecht, Spala Editora, 1985, 375 p.

N
COSTA, Graciete Guerra da. Fortes portugueses na

r t í s t i c o
OLIVEIRA, M. M. As fortalezas e a defesa de Salvador.
Amazônia brasileira. Programa de Pesquisa e Pós- Brasília: Iphan/Programa Monumenta, 2008, p. 228.
Graduação no Instituto de Relações Internacionais, UnB.
______. As fortificações portuguesas de Salvador quando
Brasília, 2015, p. 142.

A
cabeça do Brasil. Salvador: Omar G.; Fundação Gregório

e
CRUXEN, E. A arquitetura militar portuguesa no de Mattos, v. 1, 2004, 264 p.

i s t ó r i c o
período de Expansão Ultramarina e suas origens
______. “Memória para intervenção na Bateria do
medievais. Aedos, n. 9, v. 3, 2011, p. 113-129.
Castelo”. In: SECULT-PA (org.). Feliz Lusitânia/Forte do
DERENJI, J. S. “As cidades da rede de defesa interna Presépio - Casa das Onze Janelas - Casario da Rua Padre

H
da Amazônia. Óbidos, Santarém e Manaus”. In: Anais Champagnat, v. 4. Belém: Secult, 2006, p. 71-99.

a t r i m ô n i o
do Colóquio Internacional Universo Urbanístico Português
REIS, A. C. F. O estado das fortificações da Amazônia

Roseane da Conceição Costa Norat, Marcondes Lima da Costa


1415-1822. Lisboa, 2001, p. 481-496.
na quinta década do século XVIII. Revista do Patrimônio
DUARTE, Artur; SILVA, Octavio. Carta geographica do Histórico e Artístico Nacional, n. 13, 1956, p. 241-353.

P
Brasil: com a localização de fortes e fortalezas (...), 1917. SANTIAGO, C. C.; OLIVEIRA, M. M. Comentários

d o
Arquivo Nacional. Documento BR_RJANRIO_F4_0_ sobre a Fortificação Portuguesa no Brasil, especialmente o

e v i s t a
MAP_0032_B_m000. caso de Salvador. Padrão, n. 3, v. 1, Salvador, Consulado
FERREIRA, A. M. M. Fortificações portuguesas no Brasil. Português, p. 11-15, 1994.

R
Lisboa: Elo-Publicidade, Artes Gráficas, SA, 2004, 144 p. SOUZA, A. F. de. Fortificações no Brazil. Revista do
FERREIRA, A. R. Viagem filosófica às capitanias do Grão- Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico do Brazil.
Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá, v.1. São Paulo: Tomo XLVIII, Parte II, Rio de Janeiro, Typographia
Gráficos Brunner Ltda, 1970, 73 p. Universal de Laemmert & C., 1885.
GARRIDO, C. M. Fortificações do Brasil. Separata do v. TEIXEIRA, M; VALLA, M. O urbanismo português:
III – Subsídios para a história marítima do Brasil. Rio de séculos XIII-XVIII, Portugal-Brasil. Lisboa: Livros
Janeiro: Imprensa Naval, 1940. Horizonte, 1999.
MAGALHÃES, M. P. Arqueologia na Fortaleza de TELLES, P. C. S. História da Engenharia no Brasil
São José de Macapá. Boletim do Museu Paraense Emílio (séculos XVI a XIX). Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
143
Goeldi, n3, v. 1, p. 33-59, 2006. Científicos, 1984.
MARQUES, F. L. T. “Investigação arqueológica na Feliz VAUBAN, S. P. Traité de la defense des places:
Lusitânia”. In: SECULT-PA (org.). Feliz Lusitânia/Forte do ouvrage original de M. Le Maréchal de
Presépio - Casa das Onze Janelas - Casario da Rua Padre Vauban. Paris, 1769. Disponível em <http://
Champagnat, v. 4. Belém: Secult, 2006, p. 147-187. books.google.com.br/books?id=YaFTrvy-
MEIRA FILHO, A. Evolução histórica de Belém do Grão- ZHEC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_
Pará: fundação e história 1616-1823. MEIRA, Márcio ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false>.
(org.). 2 ed. Belém: M2P Arquitetura e Engenharia, Acessado em jan.2014.
2015, 580 p. VELLOZO, D. S. Arquitetura militar ou fortificação
NORAT, Roseane da C. C.; COSTA, Marcondes moderna (on-line). Transcrição e comentário de Mário
Mendonça de Oliveira. Salvador: Edufba, 2005. 370 p.
Lima da. “A linha de defesa do rio-mar: perdas e
Disponível em <http://books.scielo.org>.
transformações da engenharia militar em Belém/
PA (Brasil)”. In: Anais do Congresso Ibero-Americano VIANNA, Arthur. “As fortificações da Amazônia”. In:
Patrimônio, suas matérias e imatérias. Lisboa, 2016a. VIANNA, A. (org.). Annaes da Bibliotheca Archivo Publico
do Pará, Tomo Quatro. Belém: Typ. e Encadernação do
NORAT, Roseane da C. C.; COSTA, Marcondes Lima
Instituto Lauro Sodré, 1905, p. 227-293.
da. Ilhas e fortes da Baía do Guajará: a Fortaleza de
Nossa Senhora das Mercês da Barra de Belém do Pará, VITRÚVIO. Vitrúvio: tratado de arquitectura. Tradução
Brasil. Boletim do Museu de Geociências da Amazônia – do latim: M. Justino Maciel, Ilustraçõe de Thomas N.
Bomgeam. Belém, p. 13-15, 2016b. Howe (Il). Lisboa: IST Press, 2006, 456 p.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

144
H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
Helena Pinto Lima, Cristiana Barreto, Camila Fernandes

a c i o n a l
M useus no século 21: ações pela salvaguarda e

N
socialização do acervo arqueológico do

r t í s t i c o
M useu G oeldi

A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Eis o poder devorador do museu. (...) nário dos museus na Região Norte do Brasil é
Essa capacidade inclusiva direta com de grande desafio, sobretudo para aqueles que
o seu poder de produzir metamorfoses de trabalham com o patrimônio cultural.

P
significados e funções, com a sua aptidão para Mas, antes, vamos conceituar brevemente

d o
e v i s t a
a adaptação aos condicionamentos históricos a ideia de museu. Dentro de uma visão conser-
e sociais e a sua vocação para a mediação vadora, um museu pode ser entendido como

R
cultural. Por essa vereda, pode-se considerar um espaço de memória que se apoia no objeto
o museu como ponte entre tempos, espaços, para revelar à sociedade a história da humani-
indivíduos, grupos sociais e culturas dade ou a composição da natureza. Entretanto,
diferentes (...). o papel do museu, e especialmente dos museus
Mário Chagas (2005:18) científicos, extrapola seus limites de repositório
da produção humana e se engaja como produ-
tor de ciência e socializador de conhecimentos, 145
Museus e pat r i m ô n i o visando à investigação científica, mas sem
c u lt u r a l n a Região abdicar de sua condição de museu. Museus
Norte do Brasil podem também constituir espaços para estru-
turar questões relativas à autodeterminação e
ao fortalecimento do poder de grupos locais,
Os superlativos são poucos para descrever
quer em contextos de disputas políticas e
o rico patrimônio biológico e sociocultural
Urna funerária
sociais internas, quer da comunidade como
da Amazônia. Tarefa igualmente superlativa é marajoara, estilo
Joanes Pintado.
um todo, perante órgãos ou poderes externos
catalogar, descrever, estudar, preservar tamanha Coletores Betty
Meggers e Clifford
(Fuller, 1992). Evans Jr., 1949.
sociobiodiversidade. Cabe aos museus essa Acervo Museu
De acordo com a clássica definição do Paraense Emílio
missão continuada de gerir, salvaguardar e di- Goeldi
Conselho Internacional de Museus – Icom1, Foto: César Barreto.
fundir coleções científicas e culturais oriundas
de uma longa trajetória de pesquisas na região.
1. International Council of Museums – Icom: Estatutos
Esses superlativos refletem também a enorme adaptados pela 16a Assembleia Geral do Icom (Haia, 1989) e
modificados pela 18 a Assembleia Geral do Icom (Noruega,
tarefa que se adianta para o futuro. Hoje o ce- 1995), conforme Primo, 1999.
o museu é um estabelecimento de caráter (Lima, 1988; Haas, 1996), onde a voz do
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o

permanente, administrado para interesse saber científico, no caso da arqueologia, fala


a c i o n a l

geral, com a finalidade de conservar, mais alto que outras formas de compreensão
estudar, valorizar de diversas maneiras um e percepção do passado, dos objetos e dos
conjunto de elementos de valor cultural: sítios arqueológicos. A ideia do colecionismo
N
r t í s t i c o

coleções de objetos artísticos, históricos, se faz dentro do campo da dominação


científicos e técnicos, jardins botânicos e colonial e geopolítica. Isso foi verdadeiro
A

zoológicos, aquários. Em uma visão mais para a formação de coleções arqueológicas


e

abrangente, as instituições museológicas de uma forma geral, públicas e particulares,


i s t ó r i c o

podem ser compreendidas como práticas no Brasil. Para a Amazônia, esse caráter
sociais colocadas a serviço da sociedade e de colonialista do colecionismo museológico é
H

seu desenvolvimento, comprometidas com duplo, pois, como apontam Sanjad (2005)
a t r i m ô n i o

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s

a gestão democrática e participativa (Demu/ e Ferreira (2009), para além de disseminar


Iphan/Minc, 2004). Em seu campo específico ideologias que desvalorizavam as culturas
P

de atuação, abordam a forma como “grupos indígenas, também servia como instrumentos
d o

sociais se relacionam com suas referências para a conquista e dominação de territórios


e v i s t a

patrimoniais em distintos contextos culturais periféricos aos órgãos governamentais.


R

e quais são os caminhos metodológicos que Contudo, essa não é a única forma de
os processos museológicos têm percorrido colecionismo vigente na Amazônia. Bezerra
na construção das interlocuções com as (2011:58) trata do colecionismo desde outra
sociedades” (Bruno, 2006:11). perspectiva: o praticado por comunidades
O surgimento e história dos museus de pequena escala, como no caso da Vila de
têm sido abordados em vasta bibliografia Joanes na Ilha do Marajó, trazendo reflexões
(ibid.). Marcados pelos ideais renascentistas, acerca das relações entre “pessoas e coisas”
146
remetem à prática colecionista, dos “gabinetes e para a gestão do patrimônio arqueológico
de curiosidade” e da ideia do exótico na região. Essa forma de colecionismo
(Barreto, 1999). Igualmente, a arqueologia, em comunidades na Amazônia tem sido
desde os seus primórdios no século 19 e reportada e discutida por diversos autores
durante a maior parte do século seguinte, em várias partes da região (por exemplo,
constituía uma ciência focada nos objetos, Lima & Moraes, 2013; Schaan, 2007,
que por excelência formariam os acervos entre outros).
das instituições museológicas (Pereira & Esse não é nosso foco aqui, mas essas
Figueiredo, 2005:23). É sabido também duas perspectivas salientadas com relação
que ao longo do desenvolvimento dessas à formação de acervos arqueológicos na
instituições e durante o século 20 prevaleceu Amazônia não devem ser necessariamente
o mesmo caráter “objetificador” e colonialista. excludentes. E talvez esse seja o desafio maior
Museus, quer sejam espaços fechados, museus para os grandes museus repensarem suas
abertos ou museus de sítio, pequenos ou políticas para o século 21, que devem, por
grandes, são espaços de ideologia e poder natureza, além de salvaguardar os acervos
acumulados historicamente, apoiar as do Arari2, a Fundação Casa da Cultura de
147
iniciativas de colecionismos em comunidades Marabá, no sul do Pará, e o Museu Paraense
de pequena escala, uma vez que elas cumprem Emílio Goeldi – MPEG, que é a mais antiga
o principal papel da ação museal, que é o de instituição de pesquisa da Região Norte do
criar e reativar memórias coletivas. Talvez Brasil e foco das nossas reflexões.
seja esse o caminho para superar a “violência Ao longo de seus mais de 150 anos,
epistêmica” das práticas científicas em ciências o Museu Goeldi vem se consolidando
humanas, especificamente da arqueologia, não somente nas pesquisas científicas
que marcaram a história da disciplina (concentradas nos sistemas naturais e
(Gnecco, 2009). socioculturais da Amazônia), mas também
No estado do Pará, há três instituições na divulgação de conhecimentos e acervos
Museu do Marajó,
museais formais que salvaguardam acervos relacionados à região, fornecendo respostas Cachoeira do Arari,
Ilha de Marajó (PA), 2014
arqueológicos: o Museu do Marajó, nascido para demandas de diferentes esferas do poder Foto: Eric Royer Stoner.

de modo informal em 1972, em Santa Cruz


do Arari, pelo empenho do Padre Giovanni
2. Disponível em <http://www.museudomarajo.com.br>.
Gallo, e formalizado em 1983, em Cachoeira Acessado em 24/8/2018.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

148
H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i

Fotográfica/MPEG.
de La Penha/Coleção
Foto: Arquivo Guilherme
Emílio Goeldi, s/d
Museu Paraense
Cultura Maracá.
arqueológicas da
com peças
Prancha impressa
público, da sociedade e de setores produtivos. patrimônio arqueológico e de seu conteúdo

d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
Assim, o Museu Goeldi pode ser conceituado e, por outro, promover condições que

a c i o n a l
como uma instituição (museu e instituto de permitam à comunidade a exploração desse
pesquisa) voltada para a preservação (coleta, patrimônio (ibid.).
gestão, documentação e conservação), a Por meio de metodologias participativas

N
r t í s t i c o
pesquisa (produção de conhecimento) e atendendo às demandas de povos indígenas
e a divulgação, por meio de exposições, e outras populações tradicionais contemporâ-

A
publicações, disponibilização de arquivos neas, as investigações de cunho arqueológico

e
virtuais de seus acervos científicos e culturais devem produzir conhecimentos que contri-

i s t ó r i c o
(APCN/PPGDS/MPEG)3. buam para o desenvolvimento sustentável,
Nesse sentido, o tripé ensino/ bem como para a formulação de políticas

H
pesquisa/extensão, que celebra as ações públicas ligadas à salvaguarda do patrimônio

a t r i m ô n i o

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s
das Universidades, pode ser expandido às cultural. Com base nessas premissas, as ações
ações museais que lidam com o patrimônio curatoriais da Reserva Técnica Mário Ferreira

P
cultural. Especificamente na área de Simões – RTMS têm visado não somente

d o
arqueologia, Carneiro (2009) argumenta a salvaguarda, mas também priorizado a

e v i s t a
que essa integração entre pesquisa, ensino e extroversão desse rico acervo cultural.
extensão é o caminho para a efetivação da No século 21, observa-se uma mudança

R
arqueologia dentro do ambiente de um museu, de perspectiva, ou um passo além nesse
permitindo que cumpra seu papel social sentido: sem perder de vista a devida
junto à população. A pesquisa arqueológica segurança e conservação dos acervos, agora
desenvolvida no âmbito dos museus tem, também se procuram formas de dinamizar
portanto, suas peculiaridades e envolve um as coleções. Para melhor entendermos os
estreito diálogo entre diferentes campos do desafios que se colocam com essas novas
conhecimento que perpassam a própria ciência metas, é importante caracterizarmos as 149

arqueológica, entre eles a arqueologia pública, coleções arqueológicas do MPEG e pontuar


a musealização da arqueologia e a educação algumas de suas particularidades para novas
patrimonial. Essas atividades são importantes práticas de extroversão.
vetores que possibilitam discutir com a Pretendemos mostrar neste artigo como
população as necessidades e possibilidades do instituições museais podem abordar o
manejo dos sítios e coleções arqueológicas. Os patrimônio cultural com ações criativas e
objetivos são, por um lado, garantir a própria de baixo custo, focadas em grupos sociais
integridade futura do patrimônio, uma vez específicos, e assim buscar a revitalização
que a população é a guardiã por excelência do desses patrimônios em paralelo a benefícios
econômicos e sociais para essas comunidades.
Nosso recorte é o Museu Goeldi e suas
3. Cf. APCN – Aplicativos de Propostas de Cursos Novos da
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível coleções arqueológicas. O estudo de caso
Superior. Disponível em <http://www.capes.gov.br>. Texto elabo-
rado pelos pesquisadores da Coordenação de Ciências Humanas – apresentado é o projeto “Replicando o
COCHS/MPEG, submetido à Capes para criação do Programa de
Pós-graduação em Diversidade Sociocultural, em 2018.
Passado: socialização do acervo arqueológico
do Museu Goeldi através do artesanato forma mais dinâmica no século 21, com ações
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o

cerâmico de Icoaraci”, uma colaboração voltadas para a salvaguarda e socialização dos


a c i o n a l

entre a curadoria da coleção arqueológica acervos. Há ainda muito a explorar do enorme


da RTMS, a COCHS/MPEG e os potencial de seus acervos para práticas mais
artesãos ceramistas de Icoaraci, um distrito inclusivas e colaborativas, em sintonia com as
N
r t í s t i c o

tradicionalmente ligado à produção de boas práticas museológicas contemporâneas


cerâmica em Belém (PA). que vêm sendo adotadas no Brasil4.
A

As coleções de arqueologia e etnografia


e

A coleção arqueológica do Museu Goeldi são tombadas pelo


i s t ó r i c o

doMuseu Paraense Emílio Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico


Goeldi: importância Nacional – Iphan como patrimônio cultural
H

do Brasil desde a década de 1940 e estão


a t r i m ô n i o

h i s t ó r i c a e pa r a o f u t u r o
H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s

entre as primeiras coleções arqueológicas


Atuante na região amazônica, o Museu tombadas no país. A sua formação se deu
P

Goeldi sempre foi destaque no campo da em meados do século 19, a partir de coletas
d o

Ciência e Tecnologia brasileiras em razão de realizadas por seu fundador, Domingos Soares
e v i s t a

seu rico e valioso acervo acumulado ao longo Ferreira Penna, às quais se acrescentaram
R

de sua existência, além dos avanços significati-


4. Segundo Wichers e Cândido (2016:17): “(...) no cenário
vos nos diversos ramos das Ciências Naturais e brasileiro contemporâneo, vivenciamos transformações de monta
Humanas. Um dos principais desafios do mu- no cenário museal, caracterizadas não apenas pela expansão do
fenômeno museu, como também pela crescente democratização
seu tem sido justamente transformar uma es- dos processos museológicos. A criação e o fortalecimento de uma
política museológica tem sido um vetor importante, destacando-se
trutura museológica do século 19 para atuar de a Lei nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, o Estatuto de Museus”.

150

Vaso cerâmico de
gargalo com apliques
zoomorfos da cultura
Santarém, Santarém
(PA). Restaurado/
Coleção Frederico
Barata, 1959. Acervo
Museu Paraense
Emílio Goeldi
Foto: César Barreto.
as vultosas contribuições de naturalistas e Além disso, o sistema de documentação

d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
arqueólogos, como Emílio Goeldi, Aureliano dos sítios e coleções arqueológicas

a c i o n a l
Lima Guedes, Protásio Frikel, Frederico implementado na reserva técnica (RTMS),
Barata, Curt Nimuendaju e Betty Meggers, desenvolvido por Mário Ferreira Simões e
dentre tantos que alavancaram a investigação adotado ao longo de toda a segunda metade

N
r t í s t i c o
arqueológica no Norte e extremo Norte do do século 20, serviu como base para a
país, descobrindo a existência de complexas formação de políticas públicas visando o

A
culturas pretéritas em sítios do litoral gerenciamento do patrimônio arqueológico

e
paraense, Ilha de Marajó, baixo Amazonas e do país pelo Serviço do Patrimônio Histórico

i s t ó r i c o
no então território do Amapá. e Artístico Nacional – Sphan, hoje Iphan
A consolidação das pesquisas arqueológicas (Simões, 1972).

H
com a direção de Mário Simões e a implanta- Contando com as escavações mais

a t r i m ô n i o

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s
ção do Programa de Pesquisas Arqueológicas recentes nessas mesmas áreas, e também
na Bacia Amazônica, a partir dos anos 1970, no baixo Amazonas e no sudeste paraense,

P
também ampliou a abrangência espacial da o acervo arqueológico do MPEG possui

d o
atuação do museu, resultando em uma coleção atualmente mais de 3 mil objetos inteiros

e v i s t a
com vestígios provenientes de toda a bacia ou semi-inteiros e milhões de fragmentos
amazônica, cobrindo uma enorme diversidade cerâmicos e líticos, além de uma considerável

R
cultural de seu passado, e de natureza variada. quantidade de material ósseo, botânico e
Além das cerâmicas que constituem a maioria malacológico. A RTMFS, que atualmente
dos vestígios, o acervo é formado por artefatos conta com uma área de 360 m² e em processo
líticos, restos humanos, zoológicos e botânicos, de ampliação de mais 180 m², é o local de
contando ainda com amostras de carvão para guarda desse acervo, reunido por projetos de
datação e amostras de solo. pesquisa arqueológica, aquisição e doações,
A formação dessa coleção arqueológica se além de peças de coleções depositadas em 151

confunde com o próprio desenvolvimento da regime de comodato.


arqueologia amazônica. Modelos da ocupação Não é exagero dizer que a Reserva
Tigela cerâmica
humana nesse ambiente tropical foram for- Técnica de Arqueologia do Museu Goeldi marajoara. Pintura
em preto e branco,
restaurada. Coletor
jados a partir de coleções do Museu Goeldi guarda vestígios preciosos de culturas e proveniência
desconhecidos.
e ainda hoje se encontram salvaguardadas na amazônicas, sendo esse patrimônio Acervo Museu
Paraense Emílio
Reserva Técnica Mário Ferreira Simões. Não importante não só para a cultura brasileira, Goeldi
Foto: César Barreto.
é à toa que a instituição recebe continuamen- mas também por fazer parte da extensa
te demandas de acesso ao acervo arqueológi- história da humanidade (Silveira
co, incluindo suas importantes coleções-tipo5. et al., 2017).
Hoje, os trabalhos
dos pesquisadores
5. Coleções-tipo foram formadas dentro da metodologia de
pesquisa implementada por Meggers & Evans (1970) e adotada da Coordenação de
por Mário Simões para documentar os elementos diagnósticos
das cerâmicas arqueológicas dentro do sistema de classificação Ciências Humanas
das diferentes fases e tradições (Chmyz, 2007; H. Lima, 2015;
Barreto, Lima & Betancourt, 2016).
e Sociais do MPEG
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s

junto à coleção arqueológica se alinham a equipe da curadoria. Tem por principal


principalmente à linha de pesquisa “Cultura tarefa, portanto, salvaguardar as coleções de
P
d o

e Patrimônio”, que se dedica aos estudos maneira adequada e controlada, em local


e v i s t a

em coleções culturais e científicas, e às com ambiente favorável à conservação dos


releituras e novas formas de colecionamento materiais, à pesquisa científica e colaborativa,
R

e patrimonialização que ocorrem nos bem como à divulgação do conhecimento


processos de musealização, agenciados pelos produzido a partir dessas coleções.
diversos sujeitos sociais neles envolvidos.
Seus principais objetivos são a análise de A socialização da
patrimônios culturais, seus valores e sentidos, coleção arqueológica
bem como da história do conhecimento do Museu Goeldi
152 científico sobre a região, dos espaços de
circulação e das redes de compartilhamento Já foi o tempo em que a ciência se dizia
de informação cultural/científica, conectando totalmente objetiva e alheia à subjetividade
coleções, pesquisas e publicações. Também do pesquisador, desde a coleta, análise e
são abordadas as formas de representação interpretação dos dados. De fato, não é só a
e tradução do conhecimento, a construção subjetividade do pesquisador que entra nesse
da memória social, as relações interculturais processo: a própria agência do colaborador,
e as identidades sociais em associação com ou dos colaboradores (daqueles que vivem
o colecionamento e o desenvolvimento de nos lócus da pesquisa), muitas vezes interfere
narrativas culturais e históricas (APCN/ nos dados (científicos) coletados. Hoje,
PPGDS/MPEG). é reconhecida a importância das ciências
Reserva Técnica
Organizar, gerenciar e conservar todo esse humanas – e das coleções culturais – para
Mário Ferreira
Simões,
acervo, proporcionando formas criativas e a proteção dos biomas brasileiros em longo
Museu Paraense
Emílio Goeldi, que dialoguem com as demandas do século prazo. Assim, em uma instituição como
Belém (PA), 2016
Foto: Camila Fernandes. 21, é o desafio diário enfrentado por toda o Museu Goeldi, também voltada para
a pesquisa, a missão é necessariamente acesso a toda a cadeia operatória de pesquisa

d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
ampliada para o fortalecimento do e curadoria da arqueologia no Museu Goeldi.

a c i o n a l
conhecimento sobre a diversidade cultural A visitação de grupos indígenas também tem
do país, presente e pretérita, atendendo às sido importante no sentido de discutir com a
demandas da comunidade científica, das curadoria questões éticas a respeito da exposi-

N
r t í s t i c o
comunidades tradicionais, incluindo povos ção de remanescentes humanos e das práticas
indígenas, quilombolas e ribeirinhos, dos museológicas em relação a objetos sagrados.

A
órgãos públicos, bem como da sociedade em Outro passo possível nesse movimen-

e
geral, no que concerne ao nosso patrimônio to de abertura e democratização do acesso

i s t ó r i c o
arqueológico, cultural e linguístico. aos acervos pode se dar de modo virtual. A
No passado, os museus desenvolviam democratização do uso da Internet e o de-

H
o inventário e a catalogação de seu acervo senvolvimento de novas tecnologias digitais

a t r i m ô n i o

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s
exclusivamente para uso interno. Muito se abrem a possibilidade de disponibilizar acesso
evoluiu no campo da conservação preventiva, universal às coleções, o que amplia de forma

P
promovendo dentro da reserva técnica um antes imprevista seu alcance pelo público.

d o
ambiente estável, com temperatura e umidade Assim, o desafio para a expansão das ações

e v i s t a
altamente controladas por meio de equi- de extroversão do patrimônio arqueológico

R
pamentos de medição e correção climática. salvaguardado no Museu Goeldi é a
Também se investiu na própria segurança disponibilização dos acervos e seus conteúdos
física das peças e materiais salvaguardados. na rede digital. Ainda há muito o que fazer
Além de primar e zelar por esses aspectos, para que este objetivo seja atingido, sendo
a RTMFS do Museu Goeldi, seguindo essa a diretriz da atual curadoria da RTMFS.
uma tendência mundial, tem envidado Para isso, o sistema de catalogação e a criação
grandes esforços no sentido de se abrir à de uma base de dados têm que ser con-
153
sociedade, como já referido. cebidos de forma flexível e interativa.
A transformação da reserva Nesse sentido, podemos
técnica em espaço visitável (in- aprender muito com experiências
cluindo armários/vitrine e painel de museus informatizados, dentro
explicativo) foi o primeiro passo e fora do Brasil. Dos meros
para que o acervo pudesse ser inventários on-line na década de
mostrado a pequenos grupos, de 1970 às interfaces temáticas, os
especialistas a estudantes. A museus virtuais passaram por
visitação da reserva também sua primeira mudança de
Estatueta cerâmica
tornou possível a participação paradigma ao contextualizar marajoara. Cerâmica.
Decoração em
pintura vermelha e
em programas como o Museu seus acervos de forma que preta sobre branco,
representação do
Portas Abertas, voltado para grupos pudessem ser visitados seguindo sexo feminino. Ilha
de Marajó (PA).
escolares, que agora passam uma relação narrativa Entrada no MPEG em
1900 (ca.). Acervo
a conhecer também os entre os objetos e Museu Paraense
Emílio Goeldi
laboratórios, tendo assim não mais a partir de Foto: César Barreto.
uma taxonomia descritiva ou funcional. A distâncias entre o passado e o presente, entre
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o

tradicional abordagem narrativa do museu sua cultura e as “culturas dos outros”.


a c i o n a l

virtual, que apresenta o acervo em uma Assim, o museu amazônico


estrutura hierárquica de telas, já foi bastante contemporâneo para o século 21 deve
contemplar a extraordinária diversidade das
N

criticada por privilegiar um tipo de leitura e


r t í s t i c o

interpretação temática sobre outras, limitando culturas da região e a dinâmica cultural que
o potencial interpretativo de coleções digitais possibilita todo tipo de intercâmbio, troca e
A

e as possíveis conexões. hibridização entre suas diversas manifestações


e

e linguagens expressivas. O museu não poderá


i s t ó r i c o

Já uma segunda geração de museus,


com coleções disponibilizadas na internet, ser apenas um lugar de memória, mas, acima
procurou se libertar das estruturas de tudo, um lugar de (re)criação de memórias
H

coletivas. Dessa perspectiva, não está em jogo


a t r i m ô n i o

hierárquicas de navegação, criando sistemas


H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s

de busca mais dinâmicos e categorias apenas o que o museu tem a oferecer aos seus
temáticas explícitas, o que permite a cada diferentes públicos de dentro para fora, mas
P

usuário reagrupar itens sob vários filtros de igualmente o que o público pode oferecer ao
d o

seleção, transformando-o, de certa forma, museu de fora para dentro, possibilitando


e v i s t a

em curador. Essa seria talvez a fórmula diálogos e trocas, numa via de duas mãos.
R

mais democrática encontrada até agora na Essa postura está sintonizada com as
interatividade dos museus virtuais com o propostas conceituais da “nova museologia”,
na qual o museu deixa de ser um lugar de
público, mas existe uma ampla gama de
memória para se tornar um lugar de criação
mecanismos de mediação que pode estimular
de memória, e está de acordo com o posicio-
uma participação mais ou menos dirigida. A
namento de que o museu não é apenas para
interatividade pode criar novos contextos para
as pessoas “consumirem” cultura, mas para se
154 os acervos museológicos; convidar o visitante
reconhecerem como produtores de cultura.
Aspectos do trabalho dos
a gerar novos recortes e reinterpretações das
artesãos participantes
tradições que carrega e, consequentemente,
do projeto Replicando
o Passado, do Museu O projeto Replicando o
engajar o visitante enquanto participante
Goeldi, com acesso direto
às peças originais, 2017 Passado
Foto: Cristiana Barreto. ativo na reformulação de percursos e

Numa perspectiva menos digital e mais


artesanal, e atendendo a demandas da comu-
nidade de ceramistas do Paracuri, uma comu-
nidade oleira de Icoaraci – distrito de Belém,
onde o Museu Goeldi tem duas de suas bases
físicas, incluindo o campus de pesquisa com as
coleções científicas e culturais –, foi desenvol-
vido o projeto Replicando o Passado: socializa-
ção do acervo arqueológico do Museu Goeldi
através do artesanato cerâmico de Icoaraci.
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s
P
d o
e v i s t a
R
O artesanato cerâmico do Paracuri mercados de artesanato de Belém, o turista
tem uma longa relação com as cerâmicas se depara com essa cerâmica, muitas vezes
arqueológicas da Amazônia. Embora tida como “cerâmica marajoara”, mas sem
inicialmente a produção tradicional das referências para entender os hibridismos ali
olarias consistisse em peças utilitárias, a embutidos (Barreto, 2003). 155

partir da segunda metade da década de 1960 Tratando da “cultura marajoara” (com


surgiram os estilos inspirados na cerâmica aspas, propositalmente), Schaan (2006:19)
arqueológica marajoara, utilizando-se das aponta três níveis de entendimento, que se
técnicas de baixo relevo tanto para motivos sobrepõem e muitas vezes se confundem:
decorativos geométricos como para a escrita uma cultura arqueológica; uma tradição
com letras, criando assim o estilo Paracuri. estética com inspiração nos artefatos da
Essa cerâmica com referências marajoaras deu primeira; e a cultura do habitante atual do
um grande impulso comercial e turístico ao Marajó. Em relação a esses entrelaçamentos
Paracuri, tornando-se um polo importante e confusões, interpreta como a invenção
de visitação turística. Mais tarde os artesãos de uma tradição, no sentido proposto por
passam a incorporar outros estilos de Hobsbawm (1984), o que decorre das Vaso de gargalo
Santarém. Coletor
cerâmica arqueológica, como as cerâmicas de interpretações diversas de informações Frederico Barata.
Acervo Museu
Santarém e do Amapá, utilizando-se também advindas das pesquisas arqueológicas na Paraense Emílio
Goeldi
de motivos de arte rupestre. Hoje, nos região. Assim, a tradição cultural marajoara Foto: César Barreto.
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s

tem facetas sobrepostas desses diferentes valorizar o legado das culturas indígenas do
P

níveis de entendimento. Nessa linha, a passado. Trata-se de um projeto colaborativo


d o

cerâmica do Paracuri representaria então uma com o duplo objetivo de aliar a divulgação
e v i s t a

“tradição inventada”, que usa as referências do acervo de cerâmicas arqueológicas do


R

do passado para trabalhar a coesão social de Museu Goeldi à revitalização do artesanato


uma comunidade oleira que expôs sua arte cerâmico da comunidade oleira do Paracuri,
ao mundo por meio dessa mesma tradição. em Icoaraci. Busca-se assim estabelecer
Linhares (2017) aponta que esses grafismos uma parceria entre o Museu Goeldi e
de inspiração arqueológica difundem-se artesãos de Icoaraci, para agregar valor
em muitos outros suportes, que inclusive cultural aos produtos artesanais com base
antecedem as cerâmicas de Icoaraci, pois já no conhecimento arqueológico produzido
156
eram conhecidos em âmbito nacional desde pelo museu. Tem também por meta produzir
fins do século 19, tornando-se naturalizados coleções didáticas e de referência, para o
em nosso cotidiano. A autora considera a Museu Goeldi e para a própria comunidade
Artesãos participam valorização do simbolismo marajoara como ceramista de Icoaraci.
do projeto Replicando
o Passado, do Museu elemento de construção de uma identidade Através da capacitação de artesãos para a
Goeldi, com acesso
direto às peças nacional brasileira. produção qualificada de réplicas e miniaturas
originais, 2017
Foto: Edithe Pereira.
O projeto Replicando o Passado visa de peças cerâmicas do acervo do Museu
explorar outra faceta dessa relação do Goeldi, o projeto foi inaugurado com o
Grupo de ceramistas
integrantes do projeto artesanato com as cerâmicas arqueológicas. acesso dos artesãos à Reserva Técnica Mário
Replicando o Passado
em estande de evento O projeto se estrutura em torno da Ferreira Simões e a realização de oficinas
com réplicas expostas
para a venda, 2018. experimentação com réplicas artesanais, tanto sobre réplicas e critérios de reprodução, de
como meio de extroversão dos acervos de forma a se estabelecer um grupo de artesãos
Vaso cerâmica
marajoara Arari cerâmicas arqueológicas do Museu Goeldi que atuam juntamente com a equipe
vermelho exciso.
Cachoeira do Arari, Ilha como também de reintroduzir as referências curatorial do museu na escolha das peças e
de Marajó (PA), 2017
Foto: Edithe Pereira. arqueológicas no artesanato, de modo a dos métodos para a sua reprodução.
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s
Nesse sentido, o projeto se enquadra preservação do patrimônio original, conforme

P
dentro da linha de pesquisa da chamada o amplo debate iniciado em 2010 no 27º

d o
arqueologia pública, de uma perspectiva Congresso do Icom, em Shangai, que segue

e v i s t a
que reconhece que a interface entre o em desenvolvimento com várias implicações

R
conhecimento científico e o público nos campos da museologia, dos estudos sobre
passa por processos complexos de ensino, patrimônio cultural e da arqueologia.
aprendizagem, troca de conhecimentos, O projeto tem se desenvolvido desde
tensões e conflitos de interesses e, 2017, com sessões de trabalho e discussões
sobretudo, diálogos e negociações. Aqui, sobre: 1) a definição dos usos de réplicas
entendemos os ceramistas de Icoaraci como em museus; 2) a seleção das peças a serem
criadores e replicadores de conhecimento replicadas, considerando a relevância
157
e, ao partilharmos e revermos com eles arqueológica e
o conhecimento arqueológico a respeito histórica da peça,
das peças originais, esse conhecimento é valor didático,
aprofundado e, de certa forma, repassado estético, dificuldade
aos próprios objetos/réplicas que estão de replicação,
produzindo. São os desafios técnicos e mercado etc.; 3) a
artísticos que os artesãos têm de enfrentar. definição de critérios
Portanto, o projeto também se alinha à para a produção das
arqueologia colaborativa, no sentido em que réplicas e miniaturas;
se busca mais a troca de conhecimentos do 4) a confecção das
que o repasse unilateral de conteúdos. peças e coleções
Do ponto de vista acadêmico, esse de referência com
projeto também se insere nas discussões observação direta
museológicas sobre a produção e uso de das peças originais
réplicas em museus para fins didáticos e de no Museu Goeldi;
4) a avaliação dessas peças em referência aos permanente, indicando não tratar-se de
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o

originais; e 5) o projeto de apresentação dos peça original, respeitando o que estabelece


a c i o n a l

produtos para a venda, incluindo embalagens o Código de Ética do Icom para Museus,
e etiquetas, definição de critérios para de 2006. Com esse intuito, criou-se um
comercialização etc. carimbo aplicado às peças expostas e/ou
N
r t í s t i c o

A produção das peças no museu, tendo comercializadas pelo projeto.


acesso direto aos originais, é um fator de A exposição e comercialização das peças
A

enorme impacto na motivação dos artesãos, produzidas são questões bastante complexas,
e

que logo perceberam o potencial para a que envolvem diferentes possibilidades


i s t ó r i c o

produção de réplicas de maior precisão. É de organização do grupo de artesãos e sua


preciso salientar que, em tempos passados, interface com o museu e requerem um
H

apenas alguns mestres artesãos tiveram acesso acompanhamento cuidadoso e continuado


a t r i m ô n i o

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s

à reserva técnica de arqueologia, com alguns das ações e de seus efeitos. Hoje os artesãos
poucos tendo se especializado nesse gênero de estão no processo de criação de uma
P

trabalho e se tornado mais populares, como associação a ser vinculada ao Museu Goeldi
d o

o conhecido Mestre Cardoso. Outro aspecto por meio de um acordo formal. Detalhes do
e v i s t a

importante, muito debatido no grupo, foi a processo têm sido discutidos com eles e com
ideia de que mesmo procurando-se replicar o setor jurídico da instituição.
R

cada peça com a maior precisão possível em Vale apontar aqui o sucesso de uma
termos dos volumes, cores e texturas das primeira experiência de exposição e venda de
cerâmicas, trata-se sempre de um trabalho peças em grande evento científico e cultural,
artesanal, onde cada peça traz a interpretação o Belém+306 ocorrido em agosto de 2018.
e gestos próprios de cada artesão. Ali foram testadas algumas formas de repasse
Diferenciam-se assim de réplicas científicas, de conhecimento juntamente com as peças,
158 hoje feitas em alguns museus através de através da exposição de painéis e confecção
tecnologias de escaneamento e impressão em de fôlder e etiquetas com textos específicos
Urna funerária 3D. De certa forma, a escolha por um partido sobre o projeto, sobre a arqueologia e a história
marajoara estilo
Joanes Pintado T de reproduções artesanais, e não científicas, das peças reproduzidas, sobre o artesanato
1598. Coletores Betty
Meggers e Clifford reafirma um dos principais objetivos do cerâmico de Icoaraci e sobre o Museu
Evans Jr., 1948. Acervo
Museu Paraense projeto, que é o de estimular o artesanato Goeldi. A notabilidade da experiência se deu
Emílio Goeldi
Foto: César Barreto. inspirado nas cerâmicas arqueológicas. na interface entre os ceramistas e o grande
Uma norma importante, público e entre o público e os objetos. Para
discutida e adotada também além da beleza, apreço estético e zelo técnico
logo no início do projeto, que caracterizam as peças, as informações
é que todas as atividades
devem respeitar a integridade
6. O Belém+30, realizado em Belém, conglomerou diferentes
da peça original e que todas eventos simultaneamente (XVI Congresso da Sociedade Interna-
cional de Etnobiologia, XII Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e
as reproduções devem Etnoecologia, I Feira Mundial da Sociobiodiversidade e a IX Feira
Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação), atraindo mais de
ser marcadas de forma 1,5 mil participantes inscritos, além de milhares de visitantes.
presentes, tanto no material gráfico produzido, Considerações

d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
finais
mas sobretudo repassadas oralmente pelos

a c i o n a l
artesãos sobre origem e procedência, coleta e O poder público e a sociedade são res-
relevância histórica, cronologia, etc. de cada ponsáveis pela salvaguarda do patrimônio
objeto e sua cultura, fizeram uma enorme

N
arqueológico no nosso país. As ações em anda-

r t í s t i c o
diferença. Ficou evidente que os ceramistas mento se prestam a esse objetivo essencial de
se apropriaram e recriaram as narrativas sobre sensibilizar a população para a importância do

A
o passado ameríndio e a diversidade dessas patrimônio cultural, arqueológico e da história

e
culturas advindas das pesquisas arqueológicas,

i s t ó r i c o
da Amazônia, por meio do seu rico acervo
apreendidas nas oficinas e na interação dentro arqueológico. Quando o patrimônio arqueo-
do ambiente do museu e então extrovertidas lógico passa a fazer parte da vida da população

H
ao grande público. Vários arqueólogos

a t r i m ô n i o
mais ativamente, são ativados sentimentos de

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s
visitaram a exposição e adquiriram réplicas, pertencimento e de afeto que são, a nosso ver,
muitas vezes movidos por esse interesse. A o melhor caminho para sua efetiva preservação.

P
prática foi avaliada de forma muito positiva O desenvolvimento das ações de curadoria

d o
por todos os envolvidos. Outras ações estão e socialização do patrimônio arqueológico

e v i s t a
em planejamento e espera-se que sejam tem se dado de forma participativa e aberta

R
aprimoradas para o futuro. e envolve pesquisadores e estudantes do
O que se pode adiantar é que o projeto Museu Goeldi e os artesãos de Icoaraci,
como um todo tem inaugurado uma nova conectando assim o museu com seu território,
prática colaborativa na extroversão do seu o de Icoaraci, o de Belém, o da Amazônia,
acervo, com impacto importante também região onde a cerâmica arqueológica é
na sua preservação, uma vez que as coleções tradicionalmente um elemento identitário.
didáticas produzidas permitem poupar o Para além dos ceramistas, o Museu
159
manuseio e deslocamento das peças originais. Goeldi mantém uma estreita relação com
Além disso, as réplicas são usadas em diversos povos tradicionais, sendo pioneiro
diferentes contextos didáticos, por vezes com em pesquisas e curadoria colaborativas,
vantagens de se poder explorar experiências exemplo dos povos indígenas junto à
sensoriais, por exemplo, permitindo ao coleção etnográfica da Reserva Técnica
público o manuseio das peças, recurso Curt Nimuendaju, em que povos indígenas
importante sobretudo em ações voltadas para possuem papel ativo nos trabalhos curatoriais.
os deficientes visuais. Assim, para o século 21, a proposta é
Experiências como essa podem ser integrar as três coleções culturais do MPEG
reproduzidas em outros museus e em (linguística, antropológica e arqueológica)
comunidades de pequeno porte em toda a em uma única base, promovendo uma
Amazônia, de forma a inibir a comercialização ampla estrutura digital para o estudo da
ilegal de bens arqueológicos, que ainda região amazônica em toda a sua diversidade
acontece nos dias atuais (T. Lima, 2015; Lima cultural e contribuindo para a salvaguarda
et al., 2013; Bezerra & Najjar, 2009). de muitos aspectos do seu patrimônio.
d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s
P
d o
e v i s t a

Além de dinamizar essas coleções pelo para que esses acervos se tornem heranças,
intercâmbio e diálogo com povos indígenas e memórias e tradições. Esse potencial
R

comunidades tradicionais, pretende-se criar pode ser canalizado para promover não só
novas formas digitais de interface entre os reconhecimento e autodeterminação dessas
laboratórios científicos, coleções culturais heranças, mas também a inclusão social de
e as comunidades tradicionais. Pois, as grupos minoritários, o respeito à diferença e a
epistemologias desses povos não tendem valorização da pluralidade.
para a segmentação do conhecimento,
160
operando de forma integrada a análise e a Referências
interpretação das coleções culturais, sejam elas
BARRETO, Cristiana. Arqueologia brasileira: uma
arqueológicas, etnográficas ou linguísticas.
perspectiva histórica e comparada. Revista do Museu de
Nesse sentido, a integração dos dados digitais Arqueologia e Etnologia, Suplemento 3, p. 201-212, 1999.
(audiovisuais e demais documentações) se ______. Corpo, comunicação e conhecimento: reflexões
para a socialização da herança arqueológica na Amazônia.
torna basilar para a pesquisa em ciências
Revista de Arqueologia, n. 1, v. 26, p. 112-118, 2003.
humanas no mundo contemporâneo.
BARRETO, Cristiana; LIMA, Helena Pinto;
Para além da pesquisa, o reconhecimento BETANCOURT, Carla Jaimes (orgs.). Cerâmicas
e a valorização da herança cultural de uma arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese.
Brasília: Iphan/Museu Paraense Emílio Goeldi, 2016.
sociedade formam cidadãos orgulhosos de
BEZERRA, Marcia. “As moedas dos índios”: um estudo
seu passado e empenhados na construção de caso sobre os significados do patrimônio arqueológico
de um futuro melhor para todos. Ao propor para os moradores da Vila de Joanes, Ilha de Marajó,
Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, n. 1, v.
formas criativas na extroversão dos acervos
Coleção etnográfica 1. Ciências Humanas, Belém, p. 57-70, 2011.
da Reserva Técnica
Curt Nimuendaju
arqueológicos e culturais à sociedade, abre- BEZERRA, Marcia; NAJJAR, Rosana. “Semióforos
Foto: André Vilaron/
Acervo Iphan, 2018. se também espaço, na vida das pessoas, da riqueza”: um ensaio sobre o tráfico de objetos
arqueológicos. Habitus, n. 1, v. 7, 2009. ______. Sobrevivência: a face sensível do tráfico de bens

d o a c e r vo a r q u e o l ó g i c o d o M u s e u G o e l d i
M u s e u s n o s é c u l o 2 1 : a ç õ e s p e l a s a l va g u a r d a e s o c i a l i z a ç ã o
BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Museologia e museus: arqueológicos. Clio. Série Arqueológica, UFPE, 2015.
os inevitáveis caminhos entrelaçados. Cadernos de LINHARES, Anna Maria Alves. Um grego agora nu:

a c i o n a l
Sociomuseologia, n. 25, 2006. índios Marajoara e identidade nacional brasileira.
CARNEIRO, Carla Gibertoni. Ações educacionais no Curitiba: Editora CRV, 2017.

N
contexto da arqueologia preventiva: uma proposta para a MEGGERS, Betty Jane; EVANS, Clifford. Como

r t í s t i c o
Amazônia. Tese de Doutorado. USP. São Paulo, 2009. interpretar a linguagem da cerâmica: manual para
CHAGAS, Mário de Souza. Museus: antropofagia da arqueólogos. Smithsonian Institution, 1970.
memória e do patrimônio. Revista do Patrimônio Histórico PEREIRA, Edithe; FIGUEIREDO, Silvio Lima.

A
e Artístico Nacional, n. 31, Iphan, Brasília, p.15-24, 2005. Arqueologia e turismo na Amazônia: Problemas

e
i s t ó r i c o
CHMYZ, Igor. Terminologia arqueológica brasileira para e perspectivas. Cadernos do LEPAARQ – Textos de
a cerâmica. Arqueologia, n. 1, v. 11, p. 1-34, 2007. Antropologia, Arqueologia e Patrimônio, n.3, v. II, Pelotas,
DEMU/IPHAN/MinC. “A imaginação museal: os Editora da UFPEL, jan-jul/2005.

H
caminhos da democracia”. Relatório. In: FÓRUM PRIMO, Judite. Museologia e patrimônio: documentos

a t r i m ô n i o
NACIONAL DE MUSEUS. Salvador, 2004. fundamentais. Cadernos de Sociomuseologia, n. 15, v. 15,

H e l e n a P i n t o L i m a , C r i s t i a n a B a r r e t o, C a m i l a Fe r n a n d e s
FERREIRA, Lúcio. “Ordenar o Caos”: Emílio Goeldi e a 1999.
arqueologia amazônica. Boletim do Museu Paraense Emílio HOBSBAWM, Eric. “Introdução: a invenção das
Goeldi, v. 4, n. 1. Ciências Humanas, Belém, p. 71-91,

P
tradições”. In: HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence

d o
jan-abr.2009. (orgs.). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra,

e v i s t a
FULLER, N. J. “The museum as a vehicle for 1984, p. 9-23.
community empowerment: the Ak-Chin Indian SANJAD, Nelson Rodrigues. A coruja de Minerva: O
community ecomuseum project”. In: KARP, Ivan;

R
Museu Paraense entre o Império e a República (1866-
LAVINE, S. (orgs.). Exhibiting cultures, p. 285-326. 1907). Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação
Washington, D.C.: Smithsonian Institution Press, 1992. em História das Ciências da Saúde, Fundação Oswaldo
GNECCO, C. Caminos de la Arqueología: de la Cruz. Rio de Janeiro, 2005.
violencia epistémica a la relacionalidad. Boletim Museu
SCHAAN, Denise Pahl. Arqueologia, público e
Paraense Emílio Goeldi, n.1, v. 4. Ciências Humanas,
comodificação da herança cultural: o caso da cultura
Belém, p. 15-26, 2009.
marajoara. Revista de Arqueologia Pública, n. 1, v. 1, p.
HAAS, Jonathan. Power, objects, and a voice for 19-30, 2006.
anthropology. Current Anthropology, v. 37, n. 1.
______. Múltiplas vozes, memórias e histórias: por uma 161
Supplement: Special Issue: Anthropology in Public, p.
gestão compartilhada do patrimônio arqueológico na
S1-S22, fev.1996.
Amazônia. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
LIMA, Helena Pinto. Análises cerâmicas na arqueologia Nacional – Patrimônio Arqueológico: O desafio da
amazônica: contribuições da Amazônia central a uma
preservação, n. 33, Iphan, Brasília, p. 109-136, 2007.
longa trajetória de discussões. Revista de Arqueologia, n.
1, v. 28, p. 3-29, 2015. ______. Cultura marajoara. Rio de Janeiro: Senac, 2009.

LIMA, Helena Pinto; MORAES, Bruno. Arqueologia SILVEIRA, M. I.; DE CASTRO DUTRA, V.; SILVA,
e comunidades tradicionais na Amazônia. Ciência e C. F. A., DE FARIAS FERREIRA, R. M.; JALLES,
Cultura, n. 2, v. 65, p. 39-42, 2013. C. “Coleções arqueológicas do Museu Paraense Emílio
Goeldi – Panorama da Reserva Técnica e os desafios da
LIMA, Helena Pinto; MORAES, Bruno Marcos;
conservação”. In: CAMPOS, G. N.; GRANATO, M.
PARENTE, Maria Tereza Vieira. “Tráfico” de material
(orgs.). Preservação do patrimônio arqueológico: desafios e
arqueológico, turismo e comunidades ribeirinhas:
estudos de caso. Rio de Janeiro: Mast, 2017.
experiências de uma arqueologia participativa em
Parintins, Amazonas. Revista de Arqueologia Pública – SIMÕES, Mário Ferreira. Índice das fases arqueológicas
Revista eletrônica do Laboratório de Arqueologia Pública da brasileiras, 1950–1971. Belém: MPEG,1972.
Unicamp, n. 8, p. 61-77, 2013. WICHERS, Camila A. de Moraes; CÂNDIDO,
LIMA, Tania Andrade. Patrimônio arqueológico, Manuelina Maria Duarte. Planejamento museológico
ideologia e poder. Revista de Arqueologia, n. 1, v. 5, p. participativo e intervenção social: o Museu do Alto Sertão
19-28, 1988. da Bahia. São Paulo: Editora CLA, 2016.
Els Lagrou dentes de cotia, coati, macaco, porco e

O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão


onça, coquinhos de tucumã e cinco tipos

a c i o n a l
de sementes (taboquinha, capim miçanga,
Gente-adorno: mucuna branca, tento preto e aracuti-do-
mato). Os pingentes empregam dentes de

N
os Pirahã e seus colares

r t í s t i c o
animais e enfeites de palha: caixinhas, bolas,
estrelas, trapezóides sanfonados e miniaturas
Neste ensaio fotográfico visito os

A
de esteiras, além de rosetas de penas de
Pirahã e seus colares numa viagem ao rio

e
tucano, arara, papagaio e mutum (Gonçalves,

i s t ó r i c o
Maici, afluente do rio Marmelos, estado do
2001:132).
Amazonas, em agosto de 2017. A viagem
Mas o que mais chama a atenção é a

H
se deu na companhia de Marco Antonio
presença maciça de ingredientes que vêm

a t r i m ô n i o
Gonçalves, autor de O significado do nome:
de longe. Primeiramente as miçangas de
cosmologia e nominação entre os Pirahã (1993)
todo tipo de cores e tamanhos, que vieram
e O mundo inacabado: ação e criação em uma

P
paulatinamente substituir as sementes. A

d o
sociedade amazônica (2001), e do artista
miçanga é de difícil acesso para os Pirahã,

e v i s t a
francês/nova-iorquino Julien Bismut, que
que vivem praticamente em isolamento
desenvolve projeto artístico com os mesmos.

R
voluntário e pouco viajam para além do rio
Agosto é época de praia no Amazonas e
Maici. A miçanga não é vendida nas cidades
nessa época os Pirahã deixam suas casas no
próximas e, desse modo, o antropólogo
alto do barranco para acampar nas praias de
pôde observar nos colares dos seus amigos a
areia branca e água cristalina do rio Maici.
história de sua relação com eles, de suas idas
Ficamos numa praia próxima ao Passabem, e vindas à terra Pirahã desde os anos 1980.
contemplando as idas e vindas das canoas As mulheres passam seu dia a fazer, desfazer
Pirahã, povo do rio e do peixe, que vinham 163
e refazer colares. Nesse processo, as miçangas
nos visitar, permaneciam por um tempo, para e outros itens que compõem os colares são
depois de alguns dias retornar rio acima para trocados e doados, tecendo e revelando a
seus lugares de moradia. densa rede de relações entre as pessoas e
Tendo trabalhado num projeto outros seres do cosmos.
comparativo sobre o uso da miçanga pelas Outro ingrediente predominante são os
populações indígenas no Brasil e além, que caramujos e as conchas do mar. Pouquíssimos
resultou na exposição No caminho da miçanga são os Pirahã que já viram o mar, mas
– um mundo que se faz de contas, no Museu eles pedem aos seus visitantes que tragam
do Índio do Rio de Janeiro, em 2015, logo essas conchas, que se tornaram presença
me chamaram a atenção os exuberantes e marcante nos seus colares hoje. Um Pirahã
complexos colares usados por todos, homens me explicou que as conchas do rio Maici
e mulheres, recém-nascidos e anciãos. são muito quebradiças, o que pude de fato
Esses colares heteróclitos combinam constatar ao encontrar algumas. A acidez da
ingredientes encontrados na região, como água preta produz conchas finas que logo
quebram. Além desses encontramos uma colocar uma boca com dentes pontudos,
heterogeneidade de itens, desde chaves a feitos de madeira muito resistente. Assim,
pedaços de plástico e moedas, constituindo as cobras(tsegaitsi) poderiam proteger-se dos
verdadeiros objetos biográficos que narram Pirahã, não permitindo que as usassem como
164
a dinâmica dos encontros e das relações que colares”(Gonçalves, 2001:135).
compõem a pessoa. O uso dos colares tem também a intenção
Colares são seres quase vivos, como revela de proteger os ibiisi, pessoas, contra possíveis
a história do Deus criador Igagai: “Certa ações dos abaisi, deuses. Assim como plantas
vez Igagai resolveu fabricar uns colares para cheirosas e tintas como o urucum, os dentes
seu próprio uso: fez de vários tamanhos e de de animais predadores protegem as pessoas
vários tipos. Com um tipo de terra existente contra ações predatórias de animais e abaisi
em seu patamar, moldou os colares; com que sistematicamente atentam contra suas
as tintas, pintou-os. Depois de prontos, vidas. “Quando as pessoas usam os dentes da
pensou que poderiam ser, em vez de adornos, onça em seus adornos, dizem que é para não
animais para povoar o patamar Pirahã e, morrerem. As onças... “pulam muito alto e,
assim, jogou-os para baixo. Antes, porém, quando caem lá de cima, não se machucam”.
achando que as pessoas poderiam usá-los Ao portarem, especificamente, os dentes da
como colares e, então, estragá-los, resolveu onça em seus colares, querem, de certa forma,
ficar “parecidas” com a onça, adquirir sua

O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão


característica de livrar-se de perigos e de não

a c i o n a l
se machucar” (Gonçalves, 2001:215).
O que seria então a razão da profusão da
miçanga e das conchas do mar nos colares

N
r t í s t i c o
contemporâneos dos Pirahã? Uma proteção
contra o mundo dos brancos querendo inva-

A
dir seu território, pois a região foi recém-des-

e
coberta como paraíso turístico? Ou a captura

i s t ó r i c o
de agências poderosas, como a capacidade
criadora de Igagai, que fazia miçanga de argila

H
de várias cores, ou a força da água do mar do

a t r i m ô n i o
qual as conchas marinhas são o índice? Fato
é que os colares heteróclitos e compostos

P
constituem a vestimenta mais importante

d o
dos Pirahã, a fazer corpos alegres e resistentes

e v i s t a
contra os ataques do mundo de fora.

R
165
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

166
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
167

O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão


R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

168
Milton Hatoum Estádios novos, misér ia antiga

Foto: Pierre Azevedo.


Ilha de Maiandeua,
Vila de Fortalezinha,

Maracanã (PA), 2018


Milton Hatoum

a c i o n a l
E stádios novos , miséria antiga

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
A arquibancada do Parque Amazonense
era um treme-treme, o esqueleto de madeira
podia desabar antes do primeiro gol,

P
mesmo assim eu não perdia uma partida

d o
do clássico Rio Negro x Nacional. Quando

e v i s t a
chovia ou ventava, mangas maduras caíam

R
na arquibancada e eram disputadas pelos
torcedores. Como não havia drenagem no
campo, a chuva torrencial transformava o
gramado num parque aquático, o jogo era
cancelado e aproveitávamos para brincar na
piscina formada pela natureza. O parque,
situado num bairro humilde e arborizado
169
de Manaus, era um dos destinos de quem
gostava de futebol.
No final dos anos 1960 foi construído
o estádio Vivaldo Lima, vulgo Tartarugão,
projetado por Severiano Mário Porto.
Formado no Rio, esse arquiteto mineiro
se mudou em 1966 para Manaus, onde
viveu por mais de trinta anos. O projeto do
Vivaldo Lima ganhou o Prêmio Nacional
de Arquitetura; outros projetos de Severiano
foram premiados no Brasil e na Argentina.
Ele fez dezenas de projetos que, a meu
ver, traduzem uma compreensão profunda de
Manaus e da região amazônica. As soluções
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

170
Milton Hatoum Estádios novos, misér ia antiga

Acervo Iphan.
Foto: Oscar Liberal/
Belém (PA), 2017
Carnes Francisco Bolonha,
Mercado Municipal de
técnicas para proteção do sol e da chuva, o a violência atinge níveis alarmantes. Depois

Estádios novos, misér ia antiga


uso consciencioso da madeira em estrutura, da Copa, o novo estádio será um monumento

a c i o n a l
janelas, portas, escadas e painéis, um sentido vazio, ou um desperdício monumental.
estético que integra a estrutura à fachada e ao Quem paga a fatura (ou a superfatura) são
os mais pobres, que necessitam de serviços

N
espaço interior, tudo isso fez dos projetos desse

r t í s t i c o
mineiro-carioca-amazonense um lugar para se públicos eficientes, e não de obras grandiosas.
viver e trabalhar com conforto. Isso vale para Manaus e para as outras

A
cidades que vão sediar os jogos da Copa.

Milton Hatoum
Inaugurado em abril de 1970, o

e
Tartarugão chegou a receber mais de 50 mil Vale para o Recife e o Rio, e também

i s t ó r i c o
torcedores em uma partida em 1980. Era um para São Paulo, cuja prefeitura optou pela
projeto grandioso, mas essa grandiosidade renúncia fiscal para ajudar a construir o

H
tinha fundamento: o arquiteto havia tal do Itaquerão. E isso numa cidade em

a t r i m ô n i o
previsto, para as próximas três décadas, um que faltam centenas de creches, mais de 1
crescimento demográfico incomum, explosivo milhão de habitantes sobrevivem em favelas

P
de Manaus. Para os jogos da Copa do Mundo e cortiços, milhões sofrem diariamente com a

d o
em 2014, o Tartarugão poderia ser restaurado precariedade e o caos do transporte público.

e v i s t a
e tornar-se um estádio perfeitamente Mas agora é tarde. Sim, implodam todos
adaptado aos torcedores amazonenses. Mas de os estádios! Construam obras colossais e

R
nada adiantou o olhar visionário de Severiano faturem montanhas de ouro! Superfaturem
Porto. O estádio foi demolido para dar lugar tudo: desde a demolição até a pintura dos
a uma obra gigantesca, caríssima, faraônica, camarotes da CBF e patrocinadores! Joguem
com capacidade para 47 mil torcedores. no entulho e nos esgotos a céu aberto a
Destruir um patrimônio da arquitetura dignidade e a esperança do povo brasileiro.
amazônica é um lance de extrema crueldade e Enterrem de uma vez por todas a promessa de
cidadania! Caprichem na maquiagem urbana 171
ignorância. O que há por trás dessa crueldade
e incultura? A ganância, a grana às pencas, e escondam (pela milésima vez) a miséria
o ouro sem mineração, sem esforço. O brasileira, bem mais antiga que o futebol.
Tribunal de Contas da União já descobriu um E quando a multidão enfurecida cobrar a
superfaturamento na demolição do Vivaldo dignidade que lhe foi roubada, digam com
Lima e em todas as etapas da construção do um cinismo vil que se trata de uma massa de
novo estádio. Aos 580 milhões de reais do baderneiros e terroristas.
orçamento previsto, será acrescido um valor Digam qualquer mentira, mas aí talvez
astronômico. Afora o superfaturamento e a seja tarde. Ou tarde demais.
demolição de uma obra premiada, há outra
questão, demasiadamente humana: Manaus é
uma das metrópoles brasileiras mais carentes
de infraestrutura. Os serviços públicos são
péssimos, na zona leste da cidade proliferam
habitações precárias (eufemismo de favelas),
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

172
António Miguel Lopes de Sousa E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
António Miguel Lopes de Sousa

a c i o n a l
E ntre a cidade ideal e a cidade real : desafios

à gestão da preservação . U ma

N
leitura sobre a

r t í s t i c o
elaboração da norma de preservação para Belém (PA)1

A
He
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Contexto e estratégias no sentido de configurar
alternativas efetivas para sua preservação.
O Iphan tem atuado na construção de Desde a Carta de Veneza (1964),

P
que trata os “sítios monumentais” como

d o
entendimentos e interpretações sobre as
desdobramento em escala dos monumentos

e v i s t a
melhores maneiras de se gerir a coisa tombada
e, no caso de bens tombados isoladamente isolados, os conjuntos são objeto de

R
ou em conjunto, tem utilizado como sucessivas reelaborações quanto à definição
instrumento as normas de preservação que, do seu caráter patrimonial, considerando os
na maioria das vezes, implicam a definição seus contextos de inserção.
de critérios para intervenções no patrimônio Ainda que com entendimentos
arquitetônico ou urbano. diferenciados quanto ao objetivo da
Tal constatação levou-nos a considerar, preservação dos denominados sítios históricos
como pressuposto inicial da presente análise, urbanos, a Carta de Washington (1986)2 e
173
a existência de diversas ações operando de a Carta de Petrópolis (1987)3 reconhecem a
forma simultânea na gestão da preservação, complexidade e a dinâmica a eles associada
sejam elas “batalhas judiciais”, “preservação
e políticas urbanas” ou “procedimentos 2. “(...) Para ser eficaz, a salvaguarda das cidades e bairros
e normas internas”, entre outras históricos deve ser parte essencial de uma política coerente
de desenvolvimento econômico e social, e ser considerada no
possiblidades de classificação dos processos e planejamento físico e territorial e nos planos urbanos em todos
os seus níveis (...). Os valores a preservar são o caráter histórico
acontecimentos associados à gestão. da cidade e conjunto de elementos materiais e espirituais que
expressam sua imagem, em particular: a forma urbana definida
Cabe ponderar que os conjuntos pelo traçado e pelo parcelamento; as relações entre os diversos
urbanos e arquitetônicos protegidos como espaços urbanos, espaços construídos, espaços abertos e espaços
verdes; a forma e o aspecto das edificações (interior e exterior)
patrimônio cultural têm, ao longo dos tais como são definidos por sua estrutura, volume, estilo, escala,
materiais, cor e decoração; as relações da cidade com seu entorno
últimos 50 anos de abrangente reflexão no natural ou criado pelo homem; as diversas vocações da cidade
adquiridas ao longo da história (...)”.
nível internacional, requerido abordagens
3. “(...) O objetivo último da preservação é a manutenção
e potencialização de quadros referenciais necessários para a
Catedral de Nossa Senhora
1. O artigo integra excertos que irão compor o texto do Guia de expressão e consolidação da cidadania. É nessa perspectiva de
das Mercês,
Referência da Normatização e Gestão do Território, da CGN/ reapropriação política do espaço urbano pelo cidadão que a Porto Nacional (TO), 2009
Depam/Iphan. preservação incrementa a qualidade de vida (...)”. Foto: Heitor Reali/Acervo Iphan.
e ressaltam a necessidade de ampliar os do patrimônio urbano como os do
mecanismos da sua gestão e de envolver de desenvolvimento socioeconômico.
forma alargada e integrada os agentes públicos Nos seus enunciados, as diversas cartas e
e a comunidade4. Mais recentemente, a declarações das organizações internacionais
174 Unesco (2011) tem apostado na abordagem de patrimônio têm destacado, por um
das Paisagens Urbanas Históricas (em inglês, lado, a necessidade de cada país construir
Historic Urban Landscape – HUL), que uma estrutura programática, jurídica e
integra tanto os objetivos da conservação normativa que dê efetividade à preservação
dos bens localmente reconhecidos e/ou
4. “A participação e o comprometimento dos habitantes da
cidade são indispensáveis ao êxito da salvaguarda e devem ser
protegidos como patrimônio cultural e, por
estimulados. Não se deve jamais esquecer que a salvaguarda da outro lado, a necessidade de estabelecer de
cidade e bairros históricos diz respeito primeiramente a seus
habitantes. As intervenções em um bairro ou em uma cidade forma integrada mecanismos de gestão dos
histórica devem realizar-se com prudência, sensibilidade,
método e rigor. Dever-se-ia evitar o dogmatismo, mas levar em conjuntos inseridos em contextos urbanos,
consideração os problemas específicos de cada caso particular
(...)” (Carta de Washington, 1986). considerando tanto as dinâmicas decorrentes
“(...) Na preservação do Sítio Histórico Urbano é fundamental a dos processos de crescimento e transformação
ação integrada dos órgãos federais, estaduais e municipais, bem
como a participação da comunidade interessada nas decisões
como a potencialidade do patrimônio para a
de planejamento, como uma das formas de pleno exercício da qualificação desses processos e sua relevância
cidadania. Nesse sentido, é imprescindível a viabilização e o
Praça das Bandeiras em
Natividade (TO), 2005
estímulo aos mecanismos institucionais que asseguram uma na configuração de aspectos particulares do
Foto: Wagner Araújo/ gestão democrática da cidade, pelo fortalecimento da participação
Acervo Iphan. das lideranças civis (...)” (Carta de Petrópolis, 1987). desenvolvimento econômico e social.
O Brasil, após a Constituição Federal na estruturação de fluxos de trabalho que

E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
de 1988, registra avanços relevantes no contemplem não apenas o cumprimento dos

a c i o n a l
campo das políticas urbanas e ampliação procedimentos administrativos da preserva-
da dimensão cultural enquanto partes ção, mas a qualidade das autorizações de in-
constituintes, não apenas da identidade como tervenção em bens tombados. Por outro lado,

N
r t í s t i c o
também dos direitos dos cidadãos brasileiros. ainda persistem indefinições dos papéis e
De fato, os princípios da função social da mecanismos de articulação dos entes federati-

A
propriedade e do direito à cultura foram vos na administração da conservação da coisa

e
assimilados na redação das leis orgânicas tombada, independentemente do nível de

i s t ó r i c o
municipais, planos diretores e marcos proteção (mundial, federal, estadual, distrital
legais de proteção do Iphan, bem como nas e municipal). Pode-se afirmar que se tem não

H
“normativas” elaboradas posteriormente apenas uma retórica da perda, o que muitas

a t r i m ô n i o
à promulgação da Constituição Federal, vezes legitima a proteção e a configuração de
prevendo-se sempre instrumentos legais que, mecanismos de preservação de forma unilate-

P
supostamente, garantiriam a sua consecução. ral, como também a sobreposição de marcos

d o

António Miguel Lopes de Sousa


Contudo, essa produção no campo nor- normativos e ausência de práticas de gestão da

e v i s t a
mativo, ainda que consistente do ponto de preservação integradas.

R
vista dos valores e direitos, revelou-se frágil Se persistem, ainda, fragilidades
ao não traduzir compromissos sociais amplos sistêmicas de articulação institucional – e
e duradouros, sendo, por vezes, contornada que são transversais na consolidação da
pela não continuidade de práticas de gestão política pública e do sistema político –,
participada e integrada, hiatos no financia- instalou-se, também, o pressuposto de
mento e até mudanças bruscas na concretiza- uma “incapacidade” por parte dos outros
ção dos princípios de direito à cidade, à mo- entes, nomeadamente os municípios, de
175
radia e à memória, por exemplo, no campo da implementar estratégias e ações convergentes,
gestão da conservação dos centros históricos priorizando, na gestão urbana e territorial,
protegidos. Outro agravante é a não imple- interesses econômicos e de protagonismo
mentação, na maioria dos casos, dos mecanis- político em detrimento da preservação do
mos regulatórios previstos no nível local. Isso patrimônio cultural como componente
ocorreu em diversos conjuntos urbanos tom- qualificador do urbano e da vida social.
bados pelo Iphan, que têm enfrentado desde a Nesse sentido, salvo entendimentos e
sua origem desafios não apenas de reconheci- práticas pontuais de articulação entre os entes
mento, mas também na gestão da preservação federativos, mas descontinuadas no tempo,
e conservação dos bens protegidos. o órgão federal do patrimônio inicia, nos
Pode-se atribuir essas lacunas na preser- anos de 1980, uma abordagem ostensiva da
vação dos bens, por um lado, à difícil e com- questão urbana, baseada no pressuposto de
plexa interpretação e objetivação dos valores que o planejamento e a gestão urbana não
de proteção em instrumentos normativos, contemplavam a proteção e conservação dos
tais como portarias e instruções normativas, seus centros históricos, e que os processos
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

176
António Miguel Lopes de Sousa E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )

Belém (PA), 2005


Foto: Walda Marques.
Batista Campos em
Vista aérea da Praça
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
177

António Miguel Lopes de Sousa E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.


U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
de transformação urbana não só ameaçavam tendência à transformação dos centros
E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )

a integridade e a autenticidade material do (leia-se adensamento e verticalização), o


a c i o n a l

legado histórico, mas também desvirtuavam controle das áreas de expansão (por efeito
e desqualificavam a sua ambiência e vivência. da delimitação das poligonais de entorno)
Os reflexos desse entendimento e postura e, ainda, a preservação do tecido urbano
N
r t í s t i c o

estratégica consubstanciaram-se em novos e das edificações históricas (por meio


tombamentos territorialmente abrangentes, de proibição de alterações na estrutura
A

na ampliação de tombamentos anteriores e fundiária, de condicionantes às adequações de


e

na utilização do estatuto do “entorno” como traçados e espaços públicos e de restrição de


i s t ó r i c o

mecanismo de controle urbano, ou seja, intervenções nos imóveis).


como mecanismo de controle da atuação Por razões que carecem ainda de análise
H

dos estados e municípios. Os dispositivos mais profunda, percebe-se a dificuldade


a t r i m ô n i o

normativos então produzidos, ainda que do Iphan em construir mecanismos de


imbuídos dos princípios, diretrizes e critérios articulação orientados à formulação de
P

expressos nas recomendações internacionais, uma política nacional de patrimônio, bem


d o

António Miguel Lopes de Sousa

adotaram caráter restritivo – proibindo mais como de plataformas metodológicas que


e v i s t a

do que estimulando intervenções inspiradas possibilitem aproximações locais consistentes


nos valores reconhecidos e protegidos – na e perenes que considerem as realidades postas
R

tentativa de inibir qualquer prática ou como insumo concreto para os desafios da


tendência transformadora. preservação, já amplamente enunciados
Na ausência de instâncias ou mecanismos nos mais diversos fóruns nacionais e
que assegurassem a interdependência de internacionais. De forma simplista,
instrumentos de planejamento e gestão podemos associar essa dificuldade à reduzida
capazes de articular tanto a dimensão apropriação do interesse à preservação
178 estratégica quanto a jurisdicional sobre o no âmbito dos projetos políticos e por
território – planos nacionais, regionais, parte dos gestores municipais e estaduais
estaduais e municipais –, gerou-se, no Iphan, (salvo envolvimentos pontuais em face de
a convicção (que se difundiu por diversos investimentos federais, como no caso do
órgãos do poder executivo, judiciário e de Programa Monumenta, dos Planos de Ação
controle) de que a declaração de proteção para as Cidades Históricas e, recentemente,
de bens culturais, a delimitação de áreas do Programa de Aceleração do Crescimento –
de entorno e a respectiva normatização Cidades Históricas – PAC-CH).
de intervenções resultariam, por força da Nesse contexto de dificuldade de
hierarquia dos dispositivos jurídicos (os entes inserção do patrimônio cultural na agenda
estaduais e municipais devem incorporar política do ordenamento e gestão do
as condicionantes do ente federal e/ou território, o Departamento de Patrimônio
prevalecem os mecanismos mais restritivos), Material e Fiscalização – Depam iniciou,
em um redirecionamento da gestão urbana. a partir de 2007, a configuração de uma
O esperado seria, então, a inversão da proposta metodológica para a formulação
de normativas dos sítios tombados tendo tombadas pelo IPHAN. Na maior parte das vezes,

E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
como base a estrutura de produção de ou não existem normas (maioria absoluta dos
casos), imperando as análises “caso a caso”, ou

a c i o n a l
conhecimento sobre os territórios, de
existem regras restritivas e desatualizadas, muitas
parametrização de análise e de sistematização
vezes fonte de problemas maiores do que os
de dados e informações, de delimitação

N
enfrentados nas áreas não normatizadas.

r t í s t i c o
de poligonais de tombamento e respectivo
Não pode ser à toa que nos setenta anos de
entorno e de setores de preservação. Tais existência e de convívio com as comunidades

A
normativas seriam trabalhadas de forma estabelecidas em áreas tombadas, praticamente não

e
sistemática no âmbito do Sistema Integrado haja casos exemplares a referenciar o debate em

i s t ó r i c o
de Conhecimento e Gestão – SICG, então torno das regras que deveriam explicitar valores,
em elaboração, que teve como experiências- defender qualidades e estabelecer procedimentos,

H
piloto a elaboração das normas para os sítios propiciando um convívio o mais harmônico

a t r i m ô n i o
possível com as populações residentes e seus
históricos de Areia (PB), Ouro Preto (MG) e
poderes constituídos – teoricamente os maiores
Corumbá de Goiás (GO).
beneficiários da preservação de seu patrimônio.

P
Com maior ou menor interferência nos
Refletindo sobre o problema, propomos

d o

António Miguel Lopes de Sousa


processos urbanos, o posicionamento mencio- um reconhecimento: é lícito supor, depois de

e v i s t a
nado, os instrumentos normativos implemen- tanto tempo e das muitas tentativas, que as
tados e respectivas práticas de gestão carecem,

R
dificuldades do presente correspondam, ao menos
ainda, de avaliação mais aprofundada que parcialmente, a fatores intrínsecos decorrentes da
permita aferir se os objetivos da preservação – maneira como o assunto vem sendo administrado
amplos ou restritos – foram alcançados. Entre- pelo IPHAN.
Será que conseguimos constituir tanto quanto,
tanto, a ausência de uma análise estruturada
por exemplo, no restauro de bens móveis e imóveis,
(problemas – soluções – resultados) sobre o
na arqueologia e no campo do imaterial, uma linha
histórico de atuação institucional não impe-
coerente de ação verdadeiramente urbanística?
diu, nos anos de 2010, a reiteração de pres- 179
Admitindo-se, como base de argumentação,
supostos e entendimentos no que concerne à que não criamos uma linha de entendimentos,
abrangência e efeitos dos instrumentos nor- ações e procedimentos especificamente urbana,
mativos elaborados pelo Iphan. Em coletânea abre-se um leque de indagações – e também
de artigos intitulada Textos de Trabalho (2011), de constatações.
Dalmo Vieira Filho – Diretor do Depam entre Afinal, é possível, do ponto de vista do
IPHAN, configurar uma linha de ação coerente,
2006 e 2011 – apresenta o seguinte contexto a
capaz de influir fortemente e talvez até reverter o
propósito de reflexão sobre a Questão da Nor-
atual quadro de desalento na qualidade ambiental
matização das Áreas Tombadas:
das cidades brasileiras (inclusive das tombadas) no
País de contrastes e de contradições, é limiar do século XXI?
comum encontrar no Brasil comportamentos que Somando as especificidades e fragilidades das
oscilam entre extremos: o “ou oito ou oitenta” da áreas tombadas com o ritmo de crescimento e
sabedoria popular. transformação das cidades brasileiras durante as
Tal parece ser o caso das decantadas últimas décadas, a ausência de ação urbanística
normativas urbanísticas e arquitetônicas em áreas de preservação do patrimônio definida e eficaz
E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o

António Miguel Lopes de Sousa


e v i s t a

constitui-se em verdadeira tragédia para a patrimônio por meio dos seus instrumentos
R

qualidade urbana no Brasil5. de atuação – de interferência na qualidade


urbana das cidades.
Ainda que partindo de abordagem
reflexiva e indagadora, persiste, naquele
posicionamento, uma tese política – que
Da cidade ideal e da
cidade real
se confunde entre as possibilidades do
patrimônio e as competências do órgão de
Poderíamos hoje, de forma breve e
180
leviana, apontar equívocos naquela equação
5. A propósito da questão “convém retomar os debates sobre do problema e, sobretudo, na configuração
a conveniência de estabelecer-se graus máximos e mínimos
de ingerência do IPHAN em parâmetros urbanos das áreas
da solução. Tratava-se, no entanto, da
tombadas e seus entornos em todo o país?”, Dalmo Vieira Filho expressão do enraizamento de mecanismos
expressa: “Parece-nos fora de dúvida. A tendência atualmente
estabelecida implica na obrigação de ocupar espaços e exalar de percepção, reconhecimento e valoração
exigências que, por lei, competem aos municípios. Mais do que
frequentemente, temos extrapolado os parâmetros diretamente de objetos que sustentam a noção de
relacionados com a preservação do patrimônio urbano. Esta
tendência não é gratuita: deriva da fragilidade e vulnerabilidade patrimônio e que, quando confrontados
da administração municipal no Brasil – sempre sensível às com o compromisso da sua preservação,
interferências na propriedade e na defesa dos interesses privados.
A questão neste campo é a de como estimular a ação local e geram constrangimento, angústia e até
não a de inibi-la. É desejável ampliar o debate conceitual (sem
perda de realismo) sobre os limites, as extrapolações e as áreas dúvidas quanto à coerência e efetividade,
eventualmente concorrentes (nem sempre negativamente) da ação
do IPHAN e dos municípios. Municipalismo, autodeterminação, remetendo, não raramente, as dificuldades
planejamento regional, qualidade urbana, identidade histórica,
justiça social, direito ao patrimônio e à cultura, são alguns
e as culpas para outros campos que não os
dos itens do debate que precisam integrar, em cada estudo de do patrimônio.
normatização, o rol das reflexões e das estratégias de aplicação.
Vila Serra do Navio (AP), É mais do que claro que, sem a reversão da atual tendência Estamos, assim, em face de um dilema
2006 de acumular responsabilidades, os municípios continuarão se
Foto: Octávio Cardoso. eximindo de muitas de suas obrigações”. de percepção, que decorre em paradoxo de
atuação, entre o que Argan designa de “cidade do uso cultural induzido por nossa sociedade,

E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
ideal” versus “cidade real”: em sentido reducionista. O índio subverte o uso
cultural vigente, em que o altar sacrificial de sua

a c i o n a l
[...] a forma urbana da cidade ideal aparece tribo, agora no museu, não mais pode ser utilizado
sempre como expressão representativa de valores, para sacrifícios. Nessa perspectiva, sua atitude

N
conceitos, atributos qualitativos, de uma ordem é anacrônica, pois adere a um sentido original,

r t í s t i c o
urbanística que reflete uma ordem social que se anterior àquele que a peça museológica cancela.
contrapõe à cidade real, explícita ou implicitamen- Por isso ele perturba a nova ordem e incorre

A
te criticada e recodificada. Por outro lado, a forma num comportamento marginal, ou, pelo menos,

e
urbana da cidade real é também uma expressão de

i s t ó r i c o
insólito, pois introduz a prática (no sentido mais
valores, conceitos, atributos etc., só que, dialetica- amplo e vital) num contexto em que essa prática
mente, as relações entre qualidade e quantidade, foi reciclada como representação cultural.

H
muito mais proporcionais e ajustadas no passado, Fica claro, pois, que os museus separam os

a t r i m ô n i o
são hoje, contemporaneamente, uma situação an- objetos daquelas práticas que lhes justificam sua
titética, na qual está a base de toda a problemática própria existência e que caracterizavam seu valor
urbanística ocidental (Argan,2005:74). de uso. Estas práticas são, assim, recicladas numa

P
d o
prática nova e rarefeita, em que os objetos se

António Miguel Lopes de Sousa


Trata-se, entretanto, de um artifício de

e v i s t a
tornam, obrigatoriamente, documentos. Nessa
semântica para sustentar a dicotomia do
recolocação de contextos e significações, drena-se
indivisível; a separação entre o passado e o

R
o valor de uso, em benefício do valor documental.
presente. Ainda, segundo Argan (ibid.:73): A escala é variável, conforme várias circunstâncias
e a natureza mesma dos objetos. O grau é máximo,
Todavia sempre existe uma cidade ideal dentro
por exemplo, nos objetos etnográficos, históricos
ou sob a cidade real, distinta desta como o mundo
ou tecnológicos, e mínimo nos objetos de arte,
do pensamento o é do mundo dos fatos. (...) A
mas o processo de documentalização operado pelo
ideia de cidade ideal está profundamente arraigada
museu é geral.
em todos os períodos históricos, sendo inerente ao
Está fora de dúvida que a função de 181
caráter sacro anexo à instituição e confirmado pela
documentar e o papel desempenhado pelos museus
contraposição recorrente entre cidade metafísica ou
são indispensáveis e de extraordinária relevância.
celeste e cidade terrena ou humana.
É, em suma, função indispensável não só para
Ulpiano Bezerra de Meneses registra que democratizar o acesso à experiência humana (pela
essa dicotomia pode desencadear contradições dilatação, além dos espaços e tempos restritos, dos

no entendimento sobre o atual papel dos bens contingentes de beneficiários), mas também na
medida em que, sem suportes de informação, não
culturais. Descrevendo uma ilustração, expressa:
é possível estabelecer as linhas de inteligibilidade
Trata-se de um desenho publicado há tempos da trajetória humana, seus valores, variáveis,
numa revista americana: num museu, que parece orientação, produtos etc. etc. – condições, enfim,
ser o Museu Americano de História Natural essenciais para alimentar a identidade social que
de Nova Iorque, um índio de tanga e adornos sustenta a cidadania. Todavia, pode-se perder o
cerimoniais, esbaforido, carregando um porquinho rumo se a energia cultural for desviada da trama
debaixo do braço, pergunta a um guia perplexo onde se gera a vida para se concentrar em espaços
onde ficam os altares sacrificiais da Polinésia. e tempos privilegiados de apropriação simbólica
Está clara a medida da ambiguidade e conflito (Meneses, 1992:111-112)
Festividades de A expectativa de que a fixação dos antítese demasiado evidente e, por vezes,
comemoração de 80
anos da imigração vestígios que nos chegam do passado é, por si inconveniente.
Japonesa na
Amazônia,
mesma, suficiente para documentar e induzir O presente, a cidade real, que é o campo
Tomé-Açu (PA), 2009
Foto: Miguel Chikaoka.
a práticas qualificadas de apropriação e de dos processos de preservação onde se opera
qualificação dos mecanismos de identidade o compromisso do ritual de transmissão
e memória, tem conduzido a processos do passado às gerações futuras, é, assim,
de percepção e interpretação redutores da esvaziado da sua complexidade, das suas
182
realidade. Por um lado, recorta-se a cidade próprias contradições éticas e políticas e,
real com recurso a lógicas de classificação portanto, da sua obrigação de transformação
responsável. Na ausência de uma narrativa
de acordo com os modelos da cidade ideal:
integradora e compreensiva dos valores e das
isola-se da cidade total a cidade colonial, a
representações sociais, emergem, segundo
cidade barroca, a cidade eclética, por vezes
Ulpiano de Meneses (ibid.: 116-117),
a cidade modernista e o resto da cidade,
respostas redutoras:
destituindo-as das relações funcionais e
sociais determinadas pelo processo histórico. Uma das respostas mais cômodas e ineficazes
Por outro lado, a cidade real, certamente a tal situação, principalmente no caso do
patrimônio ambiental urbano, é preservar os bens
mais ampla e que expressa o atual sentido
pela sua monumentalização. Isto equivale a lhes
e significância daqueles fragmentos, é,
tirar o sentido e legitimidade. Por outro lado, é
frequentemente, pouco documentada, não o caminho mais vulnerável diante da força do
rara e expressamente negada e, por vezes, novo sem responsabilidade social. No entanto,
ocultada na narrativa por se apresentar como o patrimônio existente, ainda que desprovido
de valores cognitivos, formais e afetivos (mas –, no pressuposto de que saberemos sempre

E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
por valores éticos, que deveriam permear todos responder à questão “proteger para quê?”.
os demais e desde que presentes os valores

a c i o n a l
Dentre esses mecanismos, a normatização
pragmáticos), teria sempre, em princípio, que ser
tem se estabelecido como protagonista da
preservado. Esta é que teria que ser a proposição
gestão da preservação, na perspectiva de que

N
primeira, a priori: não é a preservação, mas a

r t í s t i c o
deveria assumir o papel de responder àquelas
substituição que precisa ser justificada. Assim, a
substituição pelo novo socialmente responsável questões, determinando com clareza e objeti-

A
somente poderia ser aceita se preenchidas duas vidade as diretrizes, critérios e parâmetros que

e
condições definidoras dessas responsabilidades: assegurem a preservação daquilo que se deter-

i s t ó r i c o
a primeira é a verificação do esgotamento do minou proteger, minimizando a ocorrência de
potencial funcional do bem, a impossibilidade condições ou acontecimentos que interfiram

H
não só de maximizá-lo (o que, com as tecnologias ou desvirtuem as suas qualidades e desempe-

a t r i m ô n i o
modernas, torna-se mais e mais factível), mas
nho. Entretanto, a fragmentação da percep-
também de reciclá-lo ou simplesmente mantê-lo;
ção do objeto patrimonial – entre o ideal e o
a seguir, deve-se responder satisfatoriamente às

P
real – induz, inevitavelmente, à inversão do
suas questões fundamentais: a quem interessa o

d o

António Miguel Lopes de Sousa


novo? Quem responde pelo ônus? Esta postura, campo e foco de atuação: o ideal não é pro-

e v i s t a
de orientação explicitamente política, não implica blema a ser enfrentado e o real não tem valor,
encontra-se desqualificado e, portanto, passa

R
em rigidez ou imobilismo, não exclui o novo por
ser diverso, nem congela a história. Pelo contrário, a constituir-se como palco de atuação no
está aberta ao poder de fecundação, criação, sentido de qualificá-lo.
reconstrução do novo, não a suas formas de Não por acaso, reunidas na publicação
degradação e as estratégias de dominação. Como
Normatização de cidades históricas (Iphan,
conclusão geral, ressaltam duas considerações. A
2010), as “orientações para a elaboração de
primeira é que será suspeita e de duvidosa eficácia
diretrizes e normas de preservação para áreas
toda a ação, no campo do patrimônio cultural e,
urbanas tombadas” refletem as dicotomias 183
em particular, do patrimônio ambiental urbano,
que se preocupe com usos e funções culturais entre o ideal e o real, entre o passado e
redutores, à margem do cotidiano e do universo do o presente:
trabalho. A segunda é que fazer da cidade um bem
Analisando a questão, verifica-se que os
cultural (espaço da vida qualificada, e do cidadão
critérios até hoje adotados para a preservação
como sujeito pleno de direitos e obrigações) só
de áreas urbanas tombadas pelo IPHAN, seja
tem sentido num quadro de luta para obter formas
através da edição de Normas de Preservação ou
mais justas de relações entre os homens.
da autoaplicação do Decreto-Lei nº 25/37, não
O exercício da gestão da preservação não evitaram sua degradação.
Cercadas pela expansão da urbanização (tanto
deveria ser mais do que instituir mecanismos
vertical quanto horizontal), pela degradação das
que assegurem o compromisso da proteção
zonas centrais e favelização periférica, e asfixiadas
– e, portanto, caberia perguntar “proteger pela estrutura viária, as áreas reconhecidas
o quê?” e “proteger do quê?” (ou seja, quais como de valor cultural se tornaram menores
são os valores e quais são os problemas que proporcionalmente em relação ao todo urbano,
comprometem a preservação dos valores?) perdendo significância, apropriação e sentido
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

184
António Miguel Lopes de Sousa E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )

Belém (PA), 2005


Foto Walda Marques.
Praça Batista Campos,
social. E apesar de a maior parte estar situada em como pretexto para o exercício da autoridade e

E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
regiões centrais e de potencial valor econômico, não como desafio para a sua superação.
em função do intenso processo de degradação

a c i o n a l
No decorrer do tempo, tombamento após
sofrido na maioria das vezes são tratadas como
tombamento, experiência após experiência,
“áreas problemáticas”, menos por seus desafios
instala-se um desencanto sobre a efetividade

N
de conservação do que pelos estágios de

r t í s t i c o
do patrimônio e o Iphan parece não saber
marginalização que alcançaram.
Tentando reverter esse quadro consideramos
lidar com aquilo que acreditava ter sido, mas

A
que, além de atenuar impactos visuais, as já não é – a cidade ideal que não se percebe

e
naquela coerência anunciada e que, afinal,

i s t ó r i c o
normativas devem promover a qualificação das
áreas tombadas. Ou seja, precisariam, além de dar configura a cidade real que se quer negar.
parâmetros para as intervenções, se ocupar em De forma paradoxal, a mesma instituição

H
promover e reafirmar as funções de centralidade e que via no tombamento dos bens culturais o

a t r i m ô n i o
da apropriação social dessas áreas, correntemente enfrentamento às transformações do territó-
esvaziadas de suas atribuições e usos. Aspectos
rio, numa espécie de militância e alternativa
como a relação harmônica entre a paisagem natural

P
solitária contra a ordem política, econômica

d o
e a edificada, salubridade, equilíbrio de funções,

António Miguel Lopes de Sousa


e social aparentemente esvaziada de valores,

e v i s t a
acessibilidade, coerência ambiental e qualidade de
vida, dentre outros, são parâmetros e pressupostos convocando o passado para o reencontro e
resgate de memórias e práticas, percebe que

R
que devem ser garantidos pelas normatizações.
(...) Ou seja, as normativas precisam ser, não consegue assegurar esse compromisso
além de ferramentas de controle, instrumentos sozinha e, sobretudo, contra os outros.
de diálogo, relacionando parâmetros realistas de
preservação e qualidade de vida da população, e R e o r i e n ta n d o o s e s f o r ç o s
que idealmente sejam incorporados aos planos – abordagem aos
diretores das cidades, de forma a permitir a atuação
i n s t r u m e n t o s n o r m at i v o s
conjunta e articulada entre o IPHAN, prefeituras e 185
a pa r t i r d o t e r r i t ó r i o : a
associações locais.
experiência de belém ( PA )
Todavia, registra-se um hiato entre o con-
junto de problemas que a metodologia para a O texto justificativo do projeto de
elaboração de “normativas” pretenderia enfren- cooperação técnica internacional com a
tar – leia-se ausência ou conflitos normativos, Unesco, denominado Gestão Compartilhada
ausência de parcerias com órgãos e agentes que do Patrimônio Cultural Brasileiro, de outubro
atuam sobre as áreas protegidas, ausência de de 2015, expressa dilemas estratégicos
mecanismos de gestão partilhada – e a vontade e operacionais da gestão da preservação
de atuação na realidade, enveredando-se por praticada sob tutela do Iphan:
um caminho dogmático assente no aspecto
O Decreto-Lei nº 25 de 1937, que cria
jurisdicional, na hierarquia e separação das o instituto do tombamento e, dentre outros,
competências. Reitera-se, com isso, a histórica estabelece que o poder executivo fará acordos
fragmentação de instrumentos e de atuação, entre a União, Estados e Municípios para melhor
aceitando-se as contradições e os conflitos coordenar e desenvolver as atividades de proteção
do patrimônio, segue sendo a principal referência pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade
legal para a atuação do IPHAN. Outras disposições [...]. O seu parágrafo 2º estabelece a estrutura do
186 importantes estão contidas na Lei nº 3.924/1961, Sistema Nacional de Cultura a ser constituído por
que trata do patrimônio arqueológico, na Lei nº órgãos gestores da cultura; conselhos; conferências
4.845/1965, que proíbe a saída de obras de arte e comissões; planos de cultura; sistemas de
e ofícios produzidos no país até o fim do período financiamento; sistemas de informações e
monárquico, no Decreto nº 3.551/2000, que cria o indicadores culturais; programas de formação.
Registro de bens culturais de natureza imaterial, e na A legislação ambiental tem interface com a
Lei nº 11.483/2007, que transfere para o IPHAN preservação do patrimônio cultural, em especial
a proteção dos bens móveis e imóveis de valor as resoluções do CONAMA relativas ao Licencia-
artístico, histórico e cultural oriundos da RFFSA. mento Ambiental, as estratégias de criação e fun-
Como mencionado, a Emenda Constitucional cionamento do Sistema Nacional do Meio Am-
EMC 071/2012 acrescentou o artigo 216-A, que biente - SISNAMA e a Lei de Crimes Ambientais.
institui e regulamenta o Sistema Nacional de A legislação urbanística, em especial Planos
Cultura. [...] organizado em regime de colaboração, Diretores, Leis de Parcelamento, Uso e Ocupação
de forma descentralizada e participativa, institui um do Solo, além de objeto de interesse em razão da
Mercado Ver-o-Peso, processo de gestão e promoção conjunta de políticas necessária compatibilização quando incidentes
Belém (PA), 2005
Foto: Walda Marques. públicas de cultura, democráticas e permanentes, em áreas protegidas pelo Tombamento, pode
também, se bem utilizada, oferecer instrumentos conseguir honrar o compromisso da proteção

E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
de incentivo à preservação. do patrimônio, procurando, por um lado,
Por fim, além da legislação nacional aqui

a c i o n a l
legitimar as convicções do Iphan envolvendo
mencionada, a preservação de bens culturais
os parceiros institucionais nas suas lutas e,
é ainda orientada por cartas, declarações e
por outro lado, apresentando-se disponível a

N
convenções internacionais. Cabe destacar as

r t í s t i c o
dialogar com os agentes sociais.
Convenções da UNESCO, em especial da
Prevenção contra o Tráfico Ilícito de Bens
Nesse cenário de aparente

A
Culturais (1970) e respectivos protocolos; a do reconhecimento de uma realidade política e

e
social que se apresenta para além da feição

i s t ó r i c o
Patrimônio Mundial (1972) e da Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial (2003). das suas representações materializadas em um
Apenas no que se refere às responsabilidades território tomado a partir da fragmentação de

H
institucionais afetas ao patrimônio material, objeto competências e responsabilidades das tutelas

a t r i m ô n i o
desse Projeto, encontram-se sob proteção do administrativas, a Superintendência do Iphan
IPHAN monumentos tombados individualmente;
no Pará encontra a oportunidade de iniciar
cidades e conjuntos urbanos, que abrangem

P
um processo de gestão da preservação na

d o
milhares de imóveis; paisagens naturais e paisagens

António Miguel Lopes de Sousa


perspectiva da gestão compartilhada.

e v i s t a
culturais; sítios arqueológicos; bens móveis e
acervos documentais. O tombamento do Conjunto Arquitetô-

R
(...) O reconhecimento de que investimentos nico dos Bairros da Cidade Velha e Campina
financeiros na preservação de imóveis não e a delimitação da respectiva área de entorno,
são suficientes para reverter o quadro de em 2012, alterou a lógica de entendimento
baixa apropriação social e econômica do subjacente aos anteriores 23 tombamentos
patrimônio; a pouca vinculação das ações de isolados e dispersos pela cidade, relacionados
preservação com o desenvolvimento local e o a edifícios e a pequenos conjuntos arquite-
inexpressivo envolvimento dos entes federativos
tônicos. Esses tombamentos identificaram,
e do setor privado, gerando concentração de 187
reconheceram e sustentaram valores enquanto
responsabilidades no âmbito federal, estão, em
documentos dos diferentes momentos e pro-
síntese, na base das motivações para a formulação
do Projeto. cessos de formação da cidade, que de alguma
É essencial buscar mecanismos para ampliar forma se apresentavam como elementos de
a apropriação social dos bens protegidos – identidade daquele território e, portanto, das
sítios urbanos, monumentos, bens naturais e representações e da memória do lugar social.
paisagísticos, bens ferroviários, acervos de bens O tombamento do conjunto urbano, por
móveis e arqueológicos – entendendo-se por sua vez, elegeu dois bairros que representam
apropriação social, o acesso, o conhecimento, o
a matriz inicial da formação urbana da ci-
uso diversificado, a melhoria das condições de
dade de Belém. Neles, não só é perceptível
moradia e a vinculação desses bens a projetos de
a permanência dos objetos anteriormente
desenvolvimento local e regional.
tombados como outros ainda preservados,
A gestão compartilhada parece ser, que lhes servem de contextualização, mas,
naquele contexto, o apanágio para a gestão também, extensas áreas de edificado que
da preservação, uma saída para ainda transformaram de forma significativa a ma-
triz “estilística”, frequentemente a matriz dinâmicas sociais e políticas instaladas e dos
E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )

tipológica, restando, por força da resiliência mecanismos institucionais de gestão), abrindo


a c i o n a l

fundiária, a matriz morfológica, ou seja, o a oportunidade de releitura da cidade real,


traçado e a estrutura de lotes das quadras. tendo como plataforma de reflexão os agentes
Essa realidade foi interpretada no processo de institucionais e sociais que nela participam.
N
r t í s t i c o

tombamento como: Foram convocados, em uma primeira


fase, os representantes dos órgãos municipais
(...) integridade do conjunto; preservação
A

e estaduais relacionados ao planejamento


da escala do núcleo original; valor arquitetônico
e

e gestão urbana, à preservação e gestão


i s t ó r i c o

em imóveis específicos de uso institucional, de


grande porte e de referência na paisagem urbana; do patrimônio cultural e ambiental,
valor arquitetônico em conjuntos de casario/ representantes da universidade e outros
H

sobrados, constituintes da paisagem urbana agentes que habitualmente participam em


a t r i m ô n i o

enquanto volumetria do conjunto e alinhamento fóruns de reflexão e debate sobre a cidade


de fachadas; composição do conjunto urbano pelos de Belém. Estabeleceu-se, como desafio,
volumes edificados (casario e edifícios referenciais)
P

sobrepor todos os dispositivos normativos e


d o

e elementos naturais ou vegetados (praças, largos


António Miguel Lopes de Sousa

legais sobre um território de tutela comum,


e v i s t a

e baía); [tendo como objetivo expresso] salvar o


compreender as lógicas a eles subjacentes e,
significativo conjunto urbanístico/arquitetônico de
por fim, perceber se estavam adequados e
R

herança europeia e outros prédios ou conjuntos.


coerentes com seus propósitos e, sobretudo,
Na ausência de instrumentos próprios, se eram compreensíveis, aplicáveis e efetivos
entretanto, a gestão da preservação do nos seus resultados.
conjunto urbano optou por adotar os critérios Percebeu-se que a delimitação
e os parâmetros utilizados pelos órgãos da das áreas protegidas e os dispositivos
prefeitura para a área já tombada em nível normativos instituídos tinham coibido
188 municipal, acrescidos das diretrizes expressas transformações mais ostensivas – leia-
ou implícitas nos processos de tombamento, se, alterações morfológicas, tipológicas e
nos quais se misturavam, inevitavelmente, verticalização. Observou-se também que
motivações e propósitos de reconhecimento as continuadas e aparentemente singelas
de valor e de proteções diversas. intervenções (alteração de usos e substituição
A contratação da consultora Margareth de edificações), o abandono parcial ou
Matiko Uemura, em 2016, no âmbito total de edifícios e quadras, bem como o
do mencionado Projeto de Cooperação arruinamento de alguns, contribuíram para
Técnica Internacional com a Unesco, Gestão uma “perda” que interfere nos processos
Compartilhada do Patrimônio Cultural de percepção do lugar. Ou seja, a cidade
Brasileiro, correspondeu à manifesta ideal – a dos modelos de formação urbana
necessidade da Superintendência do Iphan de Belém – deixa de ser tão perceptível, não
de elaborar normas de preservação a partir apenas na integridade da sua materialidade,
de uma lógica de gestão mais próxima da mas, sobretudo, nas suas qualidades efetivas
realidade (do objeto patrimonializado, das de melhoria das vivências urbanas. A
E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o

António Miguel Lopes de Sousa


e v i s t a
R
dificuldade de formulação de uma narrativa dos primeiros exercícios foi o de entender
clara sobre os atributos e características o território e perceber como, hoje, ele
daquele conjunto que importaria é apreendido. Os discursos identitários
preservar – e que se colocasse para além sobre Belém – aquilo que se apresenta nas
da mera representatividade estilística e imagens e nas representações (iconográficas
da documentação histórica – fez emergir e sociais) – não são da Cidade Velha 189

as contradições e paradoxos que, ora se acrescida da Campina, ou da cidade


apresentam sob a forma de desencanto sobre colonial acrescida da cidade mercantil e,
a efetividade do patrimônio, ora despertam depois, da cidade burguesa do eclético. A
manifestações de militância acrítica a cidade real vai do Ver-o-Peso ao Círio de
uma doutrina patrimonialista, fundadas Nazaré, passa pelos conventos coloniais,
em éticas institucionais ou corporativas. pelas praças oitocentistas, pelos jardins
Não raramente, a invocação de que o românticos, percorre as avenidas à sombra
patrimônio impediu o avanço da cidade real das mangueiras, aprecia os azulejos das
legitima a conformação do seu papel à mera fachadas e frequenta as docas do porto
manutenção da “coisa”, ainda que não se contemplando a baía. Percebe-se, então, que
diga para o que ela serve, e, sobretudo, qual esses itinerários contêm qualidades; algumas
o seu papel na qualificação do real. perceptíveis e vividas, outras latentes,
No âmbito da abordagem e da aguardando sua apropriação, e outras, ainda,
Marujada de
metodologia proposta pela consultoria, um contextuais, próprias do lugar. Bragança (PA), 2011
Foto: Tamara Saré.
A cidade feita patrimônio, o centro fraturas entre uma suposta cidade ideal e a
E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )

histórico, percebeu-se, não é uma mera cidade real. Por um lado, anéis de gabarito
a c i o n a l

soma geográfica e expansiva da evolução – menor perto do centro, sucessivamente


histórica da cidade – mais histórica e genuína maior quanto mais distante – desvinculados
(porque mais antiga) no núcleo inicial, menos da “trama” urbana – onde se “tramam” os
N
r t í s t i c o

homogênea e diversa (porque mais recente) interesses, os conflitos, mas, também, as


nas sucessivas partes envolventes. Conexões, convivências – levaram à descontextualização
A

eixos funcionais e formais, praças, alterações da cidade ideal, onde sobre os seus “vestígios”
e

funcionais e práticas sociais e “projetos paira o questionamento do “sentido” da sua


i s t ó r i c o

civilizatórios” foram atualizando essas partes, manutenção (para que servem?). Por outro
reorganizando-as de acordo com uma lógica lado, as possibilidades de transformação
H

abrigam-se num compromisso do qual não se


a t r i m ô n i o

que, a cada momento, decorre em processos


específicos de apropriação do lugar que lhe vislumbra um ideal, um projeto de cidade.
dão sentido e propiciam a emergência de A “percepção inicial” do território no
P

narrativas identitárias. qual se insere o objeto reconhecido ou a


d o

António Miguel Lopes de Sousa

Perceber o que é, e não só o que foi, reconhecer como patrimônio estabeleceu-


e v i s t a

a cidade ideal no contexto da cidade real se, metodologicamente, como a chave que
R

permitiu compreender a inadequação permitiu superar a dicotomia entre a cidade


dos instrumentos normativos atualmente ideal e a cidade real e, assim, enfrentar o
incidentes e abrir caminho para a superação desafio da gestão da preservação.
do desencantamento, que mistura a sensação Superar os “problemas” da cidade real de
da perda daquilo que já foi (mas que, não Belém, onde frequentemente registramos as
deixando de ser, adquiriu outras qualidades) ameaças à cidade ideal, passa por decifrar as
com a incapacidade de assegurar a proteção. qualidades daquilo que se pretende preservar,
190 Urna funerária
marajoara policrômica, Os instrumentos normativos vigentes, não apenas pelas suas manifestações formais
estilo Joanes pintado
(argila/acordelamento) paradoxalmente, induziram uma lógica de e estilísticas, mas pelas necessidades que elas
Acervo: Museu do Forte
do Presépio/Secretaria de
Estado da Cultura do Pará. transformação incrementada, acentuando as suprem, pela fruição que proporcionam,
pelas vivências urbanas que geram. Aquilo
que nos chega, depois de longo processo
histórico, são resiliências à transformação
e à mudança e que detêm capacidade de
uso – não necessariamente pela estrita
materialidade da “coisa”, mas, muitas
vezes, por via da sua matriz tipológica e
morfológica. Dessa perspectiva, aquilo que é
de “interesse à preservação” não é um acervo
de documentos “para que conste”, mas para
ser usado em função do sentido e significado
do seu conteúdo.
A “percepção inicial” realizada no ensaio Não se trata, aliás, de uma reflexão isola-

E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
metodológico à elaboração das normas para da, muito menos inédita. Ulpiano T. Bezerra

a c i o n a l
Belém permitiu, ainda, verificar que a gestão de Meneses (2017:40-41), em seu texto
compartilhada não se resume a uma mera Repovoar o território ambiental urbano, dá
interlocução institucional, nem àquilo que se voz a uma crescente inquietação em relação

N
r t í s t i c o
se presumia ser a solução – a convergência de àquelas dicotomias que, de forma aguda,
parâmetros nos instrumentos normativos –, acentuam fraturas e desmobilizam as vontades

A
mas implica a pactuação de entendimentos de apreender a unidade entre o tangível e o

e
sobre o propósito daquilo que se definiu, em intangível, entre o patrimônio e o território:

i s t ó r i c o
momentos e por motivos diferentes, como
(...) chega-se a declarar que já é tempo de reco-
patrimônio. Essa reelaboração de olhares e nhecer que as pessoas e suas ações não podem mais

H
aproximações à cidade real, que contém, de

a t r i m ô n i o
ser consideradas uma perturbação e um perigo à
fato, a cidade ideal, fez com que diminuísse a conservação do patrimônio (...). Impõe-se, por-
tendência para a autorreferenciação das nar- tanto, repovoar o patrimônio urbano, nele reintro-
duzir o seu protagonista (...). Conviria agora dar

P
rativas ou para o deslocamento dos discursos.

d o
ao habitante, no universo do patrimônio cultural,

António Miguel Lopes de Sousa


Por um lado, percebeu-se que as qualidades

e v i s t a
uma presença menos etérea.
daquilo que se quer proteger e, portanto, se
pretende preservar, não é imanente, é sem-

R
Importa, nessa perspectiva, trazer os objetos
pre circunstancial, pode perdurar e, ainda, definidos como patrimônio – tidos como as ex-
reproduzir-se nas práticas dos novos sujeitos ceções à regra do real – para o cotidiano das vi-
produtores. Por outro lado, o deslocamento vências urbanas, emprestando-lhe as qualidades
do problema a ser enfrentado pela gestão da que portam, tornando inteligível e pragmática a
preservação do patrimônio para os campos da sua utilidade e, assim, devolvendo à cidade e aos
tutela do outro – planejamento urbano, or- cidadãos a sua permanência e continuidade.
denamento territorial, economia de mercado, 191
Trata-se, na experiência de Belém, de
habitação – isola o desígnio do patrimônio e procurar costurar os retalhos do patrimônio
torna retórica a ideia de participação no de- na manta territorial da cidade atual, para a
senvolvimento sustentável, pois transforma a qual as narrativas identitárias dos seus habi-
preservação em um fim, em vez de um meio tantes e visitantes já emprestam uma unidade
para a qualificação da cidade real. nem sempre apreendida pelos instrumentos
A abordagem aos instrumentos norma- e práticas de gestão da preservação. Trata-se,
tivos ensaiada em Belém, ainda em curso, enfim, de resgatar uma lógica que em outra
poderá passar o patrimônio do papel de “con- oportunidade defendi: “A possibilidade de
dição”, de status, para o papel de “devir”, no determinar o direito à cidade como direito à
qual já não se limita à conservação de uma vida dos indivíduos, como consagração e rea-
narrativa, mas à garantia da sua continuidade, lização de suas capacidades humanas, permite
permitindo-lhe, assim, sair da condição de considerar o direito da cidade a ser vivida, a
aparência para assumir a sua efetividade no ser habitada; o direito da cidade aos seus cida-
âmbito dos processos culturais. dãos” (Sousa, 2015:91).
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

192
António Miguel Lopes de Sousa E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
Referências SOUSA, A. M. L. Habitação e centros históricos: a

E n t r e a c i d a d e i d e a l e a c i d a d e r e a l : d e s a f i o s à g e s t ã o d a p r e s e r v a ç ã o.
U m a l e i t u r a s o b r e a e l a b o r a ç ã o d a n o r m a d e p r e s e r v a ç ã o p a r a B e l é m ( PA )
importância da política integrada para a reabilitação dos
centros urbanos. Os casos de Salvador e do Porto. Tese

a c i o n a l
ARGAN, Giulio Carlo (2005). “Cidade ideal e cidade de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Ciências
real”. In: História da arte como história da cidade. São Sociais – Sociologia, Linha de Pesquisa Dinâmica
Paulo: Martins Fontes, 2005, p.73-84. Urbano-regional, Planejamento e Políticas Públicas,

N
IPHAN. Normatização de cidades históricas. Textos de PUC-SP, 2015.

r t í s t i c o
Dalmo Vieira Filho, Anna Finger e Yole Medeiros. UNESCO. Recomendações sobre a paisagem histórica
Brasília: Iphan/MinC, 2010. urbana. 36ª Conferência Geral da Unesco. Paris, 2011.
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. “Repovoar Disponível em <http://psamlisboa.pt/wpcontent/

A
o território ambiental urbano”. Revista do Patrimônio uploads/2014/03/UNESCO_RECOMENDACAO.

e
i s t ó r i c o
Histórico e Artístico Nacional – Patrimônio: desafios e pdf>. Acessado em 1/10/2018.
perspectivas, n. 36, Brasília, Iphan, p. 39-51, 2017. VIEIRA FILHO, Dalmo. Textos de trabalho. Brasília:
______. “Cidade, práticas museológicas e qualificação Iphan, 2011.

H
cultural”. In: Anais do II Congresso latino-americano sobre

a t r i m ô n i o
cultura arquitetônica e urbanística. Porto Alegre, 1992.

Pd o

António Miguel Lopes de Sousa


Re v i s t a
193

Mercado Ver-o-Peso,
Belém (PA), 1875 (ca.)
Foto: Felipe Augusto Fidanza/
Acervo Coleção Gilberto
Ferrez/Instituto Moreira Salles.
Soares.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

194

n, Pará, 2005
A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
Ana Vilacy Galucio, Denny Moore, Hein van der Voor t

a c i o n a l
O patrimônio linguístico do B rasil : novas

N
perspectivas e abordagens no planejamento e

r t í s t i c o
gestão de uma política da diversidade linguística

A
H e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
Introdução ao início da colonização europeia. Hoje, a
maioria das línguas indígenas é falada no
Estima-se que aproximadamente Norte do país e está altamente ameaçada pelo

P
risco de desaparecer também.

d o
6 mil línguas sejam faladas no mundo.

e v i s t a
Destas, cerca de 180 são faladas no Brasil, Como cada língua é uma expressão única
incluindo as línguas oficiais, línguas de das capacidades cognitivas e neurológicas e

R
comunidades imigrantes e línguas indígenas1. das tradições culturais e trajetórias históricas
Com um número de quase 160, as línguas do ser humano, as línguas representam
indígenas constituem a vasta maioria e a um patrimônio imaterial essencial da
sua impressionante diversidade representa humanidade. Assim, constituem uma
uma herança de pelo menos 12 mil anos da grande conquista as medidas tomadas pelo
presença humana na região antes da chegada governo brasileiro para proteger a diversidade
dos europeus. No entanto, esse número linguística do país: em primeiro lugar, na
de línguas indígenas é o que restou depois Constituição de 1988 e, mais recentemente,
da extinção de aproximadamente 80% das por meio do Decreto nº 7.387, de 9 de
línguas durante os 500 anos que se seguiram dezembro de 2010, que institui o Inventário
Nacional da Diversidade Linguística – INDL,
1. Os autores agradecem a todos os povos indígenas de reconhecendo o valor dessa diversidade como
Rondônia que participaram do desenvolvimento do projeto do
levantamento das línguas de Rondônia; aos pesquisadores que patrimônio cultural imaterial da nação. Em
realizaram os levantamentos em campo; ao Departamento do
Patrimônio Imaterial do Iphan e à Superintendência do Iphan decorrência desse decreto, o Instituto do
em Rondônia, pela cooperação no desenvolvimento do projeto; à
Fundação Nacional do Indio – Funai, através de suas delegacias Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
regionais em Rondônia, e ao Sistema de Informação da Atenção
à Saúde Indígena – Siasi, pela cooperação técnica durante o – Iphan, órgão vinculado ao Ministério
desenvolvimento do projeto; a Dorotéa Lima, organizadora deste
número temático da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico da Cultura – MinC, foi encarregado de
Nacional, pelo convite para escrever o presente artigo; e a Jimena
Beltrão e aos editores da revista, pela leitura cuidadosa do
desenvolver o INDL, que visa coletar
manuscrito e sugestões de revisão. Quaisquer eventuais erros são informações abrangentes sobre todas as
de responsabilidade dos autores. Sobre a convenção de escrita, Escola do povo Kwazá
na Terra Indígena
informamos que neste artigo os nomes de línguas e povos estão línguas do Brasil para identificar a situação Kwazá do Rio São
grafados com inicial maiúscula, desde que não sejam usados Pedro (RO), 2015
como adjetivos. atual de cada uma delas. Com base nessas Foto: Hein van der Voort.
informações, será possível elaborar políticas poder, para o comércio e para o nivelamento
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e

públicas em favor do patrimônio linguístico intelectual, cultural e religioso da população.


a c i o n a l

e tomar medidas de apoio de acordo com a Como o linguista Nicholas Ostler mostrou
situação de cada língua individualmente. no seu impressionante e divertido livro Em-
O patrimônio linguístico do Brasil é pires of the word (2005), línguas imperiais
N
r t í s t i c o

muito grande e pouco conhecido. Não havia faladas por milhões de pessoas têm surgido e
experiência prévia com a organização de desaparecido pelo menos desde que a história
A

um inventário dessa natureza. A experiência humana começou a ser documentada por


e

com o Censo do IBGE de 2010 indicou escrito. Durante o “reinado” de uma língua
i s t ó r i c o

que a participação de linguistas profissionais majoritária, as línguas minoritárias podem ser


é essencial e os primeiros projetos-piloto desvalorizadas e, em decorrência, desaparecer
H

no âmbito do INDL sugeriram que uma ou se tornar invisíveis. Nos tempos atuais, o
a t r i m ô n i o

abordagem regional poderia ser o modo Português está entre as dez línguas mais fala-
A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t

mais eficiente. Como os linguistas do Museu das no mundo. No Brasil, nos últimos dois
P

Paraense Emílio Goeldi – MPEG têm séculos, o Português tem ocupado um status
d o

experiências e conhecimentos acumulados há tão elevado que uma grande parte da popu-
e v i s t a

mais de 40 anos na região e trabalhos com lação pensa que somente uma língua é falada
R

quase todas as línguas faladas no estado de no país, ou seja, o Brasil seria monolíngue.
Rondônia, a área de linguística da instituição Nada poderia ser mais longe da realidade.
foi convidada a organizar um levantamento Embora a maioria dos 200 milhões de
da diversidade linguística naquele estado. brasileiros seja monolíngue em Português, o
O levantamento foi realizado entre 2014 e Brasil possui um patrimônio impressionante
2017 e a produção dos dossiês sobre cada de línguas indígenas, além da Língua
língua está agora em fase final. No presente Brasileira de Sinais – Libras e de uma dúzia
196
artigo, abordamos a questão do INDL no de línguas de comunidades imigrantes. Há no
contexto da ciência linguística, relatamos mínimo duzentos municípios onde “maiorias”
nossas experiências no campo, no âmbito ou “grandes minorias” falam outras línguas
do levantamento regional, apresentamos os além do Português. Em Serafina Corrêa, na
desafios e sugerimos algumas soluções aos Serra Gaúcha, a língua Talian é a segunda
problemas encontrados. língua oficial da cidade. Em São Gabriel
da Cachoeira, no estado do Amazonas,
Contextualização da são faladas dezoito línguas, sendo oficiais,
questão além do Português, três línguas indígenas:
Nheengatu, Tukano e Baniwa. De acordo
É uma tendência característica de Es- com estimativas conservadoras, baseadas
tados-nação, sob governos centralizados, no critério de inteligibilidade mútua, no
promover o uso de uma única língua. O pre- Brasil são faladas entre 150 e 160 línguas
domínio de uma língua tem vantagens para indígenas diferentes. Esse número em si
a organização do Estado e a consolidação do não é necessariamente muito impressionante
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
P
d o
e v i s t a
R
quando comparado com o número de línguas troncos linguísticos, o que representa uma
em algumas outras partes do mundo, como diversidade muito grande. Infelizmente, a
Índia, Nigéria, Nova Guiné e Austrália. riqueza de línguas indígenas no Brasil é pouco
Porém, tomando em consideração a conhecida, tanto pela população quanto pelas 197
diversidade genealógica das línguas indígenas, autoridades. Grande parte dos linguistas
o patrimônio linguístico do Brasil é quase no país não se dá conta da existência desse
incomparável. Tal medida de diversidade não tesouro e muito menos do seu valor científico
conta o número absoluto de línguas diferentes, para a disciplina. Apesar do crescimento
mas, sim, o número de famílias de línguas. do interesse nas últimas décadas, são ainda
A diversidade genealógica das 150 a 160 relativamente poucos os linguistas, em poucas
línguas indígenas faladas no Brasil inclui seis instituições no país, envolvidos no estudo das
famílias muito grandes – Arawak, Karib, línguas indígenas.
Macro-Jê, Pano, Tukano e Tupi –, oito É fato que, no mundo todo, a grande
famílias menores – Arawá, Bora, Txapakura, maioria das línguas indígenas está ameaçada Escultura zoomorfa
(arraia), etnia
Tukuna, coletor Curt
Guaycuru, Katukina, Nadahup, Nambikwara de extinção, como mostra o Atlas das Nimuendaju, 1941.
Coleção Etnográfica
e Yanomami – e, ainda, sete línguas isoladas línguas do mundo em perigo, da Unesco Curt Nimuendaju/
Acervo Museu
– Aikanã, Iranxe/Mky, Kanoé, Kwaza, Pirahã, (Moseley, 2010), no qual 2,5 mil das cerca Paraense Emílio
Goeldi.
Tikuna e Trumai. O Brasil possui, assim, 21 de 6 mil línguas do mundo estão registradas Foto: Fábio Jacob.
Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes por Curt Nimuendaju, Belém, 1944.
Acervo Museu Nacional/UFRJ
Reprodução: Francisco Moreira da Costa/CNFCP/Iphan, novembro de 2016.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

200
A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística

Foto: Renato Soares, 2008.


São Paulo (SP)
América Latina,
Coleção do Memorial da
Máscara tikuna,
como sob ameaça de extinção no século muitas vezes, um marcador essencial

abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística


O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
atual. A extinção de línguas representa o da identidade étnica e social de uma

a c i o n a l
outro lado da moeda da emergência e da comunidade. Relacionado a isso, representa
diversificação de línguas. Durante toda a ainda uma estreita ligação com a história e
história da humanidade, línguas têm surgido a cultura de um povo, cujo conhecimento

N
r t í s t i c o
e desaparecido. Porém, desde o começo coletivo sobre os ecossistemas e as paisagens
da expansão colonial europeia, no século do ambiente em que vive está em certa

A
16, o processo de extinção de línguas foi medida conectado às formas e às estruturas

e
muito acelerado. Estima-se que, à época da língua. A perda de uma língua geralmente

i s t ó r i c o
da chegada dos portugueses, eram faladas faz parte da desintegração geral de um
mais de mil línguas no território que hoje povo e do seu hábitat. Isso é bem visível no

H
corresponde ao Brasil (Rodrigues, 1993). Brasil, onde o desaparecimento das línguas

a t r i m ô n i o
A maioria delas provavelmente desapareceu indígenas é acompanhado pela desagregação

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
com os seus falantes por causa de doenças das suas comunidades de falantes e da

P
contagiosas trazidas do Velho Mundo e em destruição das suas terras. No final, o

d o
razão de genocídio. Pode-se ainda apontar desaparecimento de uma língua é uma perda

e v i s t a
como causa importante da perda das línguas para o patrimônio intelectual e cultural da

R
o que os linguístas chamam de language shift humanidade em geral.
– substituição linguística. Nesse caso, uma Desde 1988 o Brasil possui uma
população abandona sua língua e adota outra, Constituição que fornece garantias explícitas
que, em geral, é uma língua majoritária, aos povos indígenas no que diz respeito às
economicamente mais vantajosa, na maioria suas terras, culturas e línguas. E por meio
das vezes reconhecida pelo governo e, por do Decreto nº 7.387, de 9 de dezembro
isso, também com mais prestígio. de 2010, que instituiu o INDL, o governo
201
É pensamento corrente que a diversidade brasileiro oficialmente reconheceu o valor
de línguas prejudica a convivência pacífica de todas as línguas faladas no país como
dos povos, atrapalha o chamado “progresso” patrimônio cultural imaterial do Brasil.
e que seria melhor se todos falassem a Esse tipo de reconhecimento é de grande
mesma língua. Porém, esse pensamento é importância para ajudar a proteger as
um mito, uma ideia que não tem base na línguas indígenas. Tentativas nesse sentido,
realidade. Além disso, quando uma língua no entanto, exigem o esforço de linguistas
desaparece, não é somente o seu valor profissionais capacitados no assunto.
científico para os linguistas que se perde. As Com respeito às línguas indígenas, além
diversas estruturas linguísticas que as línguas de existirem ainda grandes lacunas na
apresentam refletem maneiras distintas que sua documentação e descrição, faltam
o ser humano inventou para se expressar e, profissionais para estudá-las. No passado,
consequentemente, implicam também seus muitas línguas desapareceram sem qualquer
possíveis limites psicológicos, cognitivos e registro e várias línguas atualmente faladas
neurológicos. A língua também representa, ou lembradas correm o perigo de um destino
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
P
d o
e v i s t a
R

202

semelhante. A dimensão desse risco, no As línguas indígenas e o


entanto, ainda não é de todo conhecida. Inventário Nacional da
Discutiremos, a seguir, as iniciativas Diversidade Linguística
capitaneadas pelo Iphan com vistas ao
Festlicher zug der Tecunas
(Procissão festiva dos
planejamento e gestão de uma política da O Inventário Nacional da Diversidade
Tecunas). Litografia de
Johann Baptist von Spix. diversidade linguística nacional que tem Linguística é uma iniciativa em larga
In: Atlas zur Reise in
Brasilien, 1823 como principal aspecto a implementação escala, do Governo Federal, de gestão do
Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil. do INDL. patrimônio linguístico brasileiro, cuja
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
P
d o
e v i s t a
R
203

discussão teve início em 2006. O objetivo A fim de melhor contextualizar o INDL,


é implementá-la no país como uma ação é importante ter em vista as questões urgentes
de política pública voltada à identificação, e fundamentais para o país quanto ao plane-
reconhecimento e valorização da diversidade jamento de políticas linguísticas públicas. Em
linguística brasileira. Neste artigo, trataremos termos de políticas sobre diversidade linguís-
especialmente das questões envolvendo o tica, a etapa principal, especialmente em paí-
inventário das línguas indígenas, no âmbito ses com grande diversidade linguística, como
do INDL. o Brasil, é identificar, mapear e conhecer a
situação de todas as línguas. A segunda etapa Linguística do Brasil – GTDL2, formado em
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e

importante é assegurar as medidas necessárias 2006 para planejar as ações do levantamento


a c i o n a l

para aquelas línguas que requeiram ações e registro das línguas do Brasil. Esse banco de
mais urgentes. dados foi usado para alimentar o aplicativo
O conhecimento da real situação das
N

utilizado pelos recenseadores e minimizar a


r t í s t i c o

línguas do país é, portanto, um dos requisitos chance de erros de digitação. O recenseador


indispensáveis para o planejamento, execução teria que escolher de uma lista predefinida
A

e gestão de quaisquer medidas de política a língua informada pelo recenseado. Para


e

linguística, seja inventário, seja registro, sejam


i s t ó r i c o

uma descrição mais detalhada do processo


ações diretas de documentação e/ou (re) de preparação desse banco de dados, das
vitalização linguística. dificuldades encontradas pela equipe do
H

Uma iniciativa importante do governo


a t r i m ô n i o

IBGE e das soluções propostas pelo GTDL,


federal, que gerou a possibilidade de
A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t

remetemos o leitor ao artigo Perspectives for


identificação do número de línguas faladas the documentation of indigenous languages in
P

no país com uma certa precisão, foi o Censo Brazil, de Moore & Galucio (2016).
d o

Demográfico Nacional, realizado em 2010 Apesar da consultoria do GTDL, os


e v i s t a

pelo Instituto Brasileiro de Geografia e resultados do Censo 2010 apresentados


R

Estatística – IBGE. Nesse censo, foi incluída, à sociedade foram surpreendentemente


pela primeira vez, uma pergunta sobre as confusos e imprecisos no que diz respeito ao
línguas que cada pessoa recenseada fala. número de línguas indígenas faladas no país e
Considerando que o número de línguas ao número de falantes dessas línguas.
faladas no país ainda não está claramente
De acordo com o Censo demográfico
definido, a inclusão dessa pergunta no censo
2010 (IBGE, 2012), o número de línguas
nacional foi recebida com muito otimismo
204 indígenas faladas no país não correspondia
e seria útil para dimensionar tanto o status
nem ao total das 150 a 160 línguas estimado
das línguas indígenas quanto o das línguas
pelos especialistas, com base em informações
de imigração, como Pomerano, Talian,
de pesquisadores que atuam diretamente nas
Alemão, Japonês, Árabe e outras. Entretanto,
áreas indígenas, tampouco ao total de 180
por questões de custo, somente as pessoas
línguas que era considerado anteriormente.
que se identificaram como indígenas foram
O número de línguas indígenas, segundo
consultadas sobre as línguas faladas por
os dados levantados no Censo 2010, é
elas. Ainda assim, a informação seria útil,
274. Esse número, além de surpreendente
se seguisse um planejamento apropriado,
por si, é ainda mais intrigante por ser, na
e poderia ajudar a esclarecer o número de
realidade, bem maior que os 209 nomes
falantes das línguas indígenas.
étnicos, que correspondem às línguas de
Para subsidiar a equipe do IBGE,
identificação, autodeclarados pelos indígenas
um banco de dados com todas as línguas
indígenas conhecidas no país foi elaborado
2. Ver detalhes sobre a composição e função do GTDL no item
pelo Grupo de Trabalho da Diversidade seguinte.
que responderam ao censo. Analisando os TI Rio Branco). Outro dado intrigante é o
dados tabulados pelo IBGE, nota-se que a número de 2.886 falantes da língua Suruí de
diferença entre esses dois totais (274 línguas Rondônia, quando de fato a população total
e 209 nomes étnicos) deve-se especialmente dos Suruí nesse estado é de aproximadamente
à indicação de supostos falantes de línguas 1,3 mil pessoas, ou seja, menos da metade
há muito consideradas extintas. É o caso do número de falantes registrado no censo,
da língua Tupinambarana, considerada o que indica sério problema com a qualidade
extinta há cerca de dois séculos (Aikhenvald, da informação.
2012:39), mas que consta na tabela do censo As questões referentes aos dados do censo
com 251 autodeclarados falantes. ilustram as dificuldades existentes para a
O censo também produziu resultados produção de um conhecimento apropriado
não confiáveis sobre o número de falantes sobre a situação das línguas indígenas no país.
das línguas identificadas. Vamos mencionar O problema torna-se ainda mais premente
somente dois, de dezenas de exemplos por se tratar de dados que compõem o censo
possíveis. Segundo o Censo 2010, havia demográfico nacional, pois uma vez que são
189 falantes de Aruá, língua da família números oficiais, podem ser utilizados por
Mondé, falada em Rondônia, mas, com órgãos governamentais para planejamento de
Aldeia latundê, onde
base em levantamento in loco realizado por políticas linguísticas no país, o que poderia vivem falantes dessa
língua. Terra Indígena
Moore em 2010 e confirmado em 2016, há ter consequências bastante negativas, dada a Tubarão-Latundê (RO).
Sítio de Mané, 2012
somente cinco falantes dessa língua (quatro imprecisão da informação gerada. Foto: Hein van der Voort.

na Terra Indígena Rio Guaporé e um na


Um levantamento mais realista e objetivo Desde o início dos trabalhos do GTDL,
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e

sobre o número de línguas faladas no Brasil, ficou evidente que, no caso das línguas, o
a c i o n a l

quantos e quem são os seus falantes, além de levantamento é a ação mais importante, uma
outras informações necessárias para planejamen- vez que todas elas devem ser respeitadas,
to linguístico, é um dos objetivos que se espera protegidas e reconhecidas como parte
N
r t í s t i c o

alcançar com o INDL, como veremos a seguir. do patrimônio cultural brasileiro. Com
essa diretriz, a perspectiva era a de que o
Inventário Nacional da
A

levantamento nacional das línguas servisse


e

Diversidade Linguística: para identificar a real situação das línguas


i s t ó r i c o

breve histórico3 faladas no Brasil e fornecer a base para


As discussões que resultaram no direcionar as ações de documentação e
H

estabelecimento do INDL tiveram início revitalização. O conhecimento da situação


a t r i m ô n i o

em um seminário sobre o tema realizado das línguas é importante para a definição


A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t

na Câmara dos Deputados, em Brasília, de políticas públicas, como, por exemplo,


P

em março de 2006. No mesmo ano, políticas de educação em língua materna.


d o

foi instituído o Grupo de Trabalho da Em preparação ao levantamento nacional


e v i s t a

Diversidade Linguística do Brasil – GTDL, das línguas faladas no país, o GTDL


coordenado pelo Departamento do promoveu, em conjunto com o Iphan, a
R

Patrimônio Imaterial do Iphan e constituído realização de alguns projetos-piloto que


por representantes do Ministério da Cultura/ tinham a finalidade de testar conteúdo e
Iphan, Instituto Brasileiro de Geografia e estabelecer a metodologia do que viria a
Estatística, Ministério da Educação, Unesco, ser o Inventário Nacional da Diversidade
Associação Brasileira de Linguística – Abralin Linguística. Houve projetos-piloto
e mais três representantes da comunidade desenvolvidos com línguas indígenas, línguas
206 de linguistas atuantes no Brasil4. O objetivo de imigração, línguas de sinais, línguas ou
inicial do trabalho a cargo do GTDL era o de falares de origem afro-brasileira. No caso
planejar o levantamento e registro de todas as das línguas indígenas, foram apoiados cinco
línguas do Brasil como patrimônio cultural. projetos bastante distintos em abrangência
e custos. Os custos variaram de R$ 18/
pessoa a R$ 456/pessoa, pois alguns projetos,
com custos mais elevados, foram além do
3. O processo de discussão e estabelecimento do INDL foi
também apresentado, em inglês, em Moore & Galucio (2016), escopo inicialmente definido, que seria mais
no contexto da discussão sobre documentação e revitalização
linguística na América Latina.
adequado e eficaz para ser implementado
4. Dois dos autores deste artigo (Moore e Galucio) participaram visando à realização de um levantamento
dos trabalhos do GTDL em diversos momentos. Moore, como nacional, tanto em termos de tempo quanto
representante da comunidade de linguistas e, mais tarde, como
representante do atual Ministério da Ciência, Tecnologia, do investimento de recursos necessários.
Inovações e Comunicações. Galucio, como coordenadora de
um dos primeiros projetos-piloto organizados pelo GTDL para Em 2008, como resultado dos
testar metodologias, tendo em vista a realização do inventário.
Portanto, muitas das informações e perspectivas apresentadas trabalhos dos projetos-piloto que tiveram o
aqui são fruto de experiência direta no desenvolvimento e
planejamento inicial das ações do GTDL.
acompanhamento do GTDL, foi estabelecido
América Latina
Cestaria yanomami.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

Foto: Renato Soares, 2008.


Coleção do Memorial da
207

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e


abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
o conteúdo que deveria compor o INDL. em 2010, com a assinatura do Decreto nº
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e

Segundo o compromisso definido pelo grupo 7.387/2010 pelo então presidente Luís
a c i o n a l

de trabalho, o inventário deveria apresentar Inácio Lula da Silva. Esse decreto instituiu
as informações mais relevantes sobre cada o Inventário Nacional da Diversidade
língua, seguir uma metodologia padronizada Linguística, apresentado, no Artigo 1º,
N
r t í s t i c o

e, mais importante, cobrir todas as línguas como “instrumento de identificação,


do país em um curto espaço de tempo, documentação, reconhecimento e
A

considerando que muitas delas estão em valorização das línguas portadoras de


e

situação de vulnerabilidade. referência à identidade, à ação e à memória


i s t ó r i c o

Considerando essa definição, o conteúdo dos diferentes grupos formadores da


do INDL aprovado pelo GTDL incluía: sociedade brasileira”5. Assim definido, o
H

descrição da equipe, fases, métodos e INDL ficaria sob a gestão do Ministério


a t r i m ô n i o

resultados de pesquisa; identificação da da Cultura.


A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t

língua; número de falantes e semifalantes A fim de possibilitar a implementação


P

por faixa etária e grau de transmissão; do INDL no país, a Comissão Técnica


d o

distribuição geográfica e tamanho da do INDL, com base nos trabalhos do


e v i s t a

população; caracterização linguística e GTDL, definiu diretrizes. Estabeleceu-


histórica (filiação genética, contato com se, por exemplo, que a metodologia do
R

outras línguas etc); contexto de uso da levantamento poderia ser diferente para
língua; informações sobre escrita, grau de cada língua, mas que deveria contemplar as
alfabetização, questões ortográficas, uso informações definidas como importantes.
da língua na escola; informações sobre No caso das línguas indígenas, com o
ações de promoção e ações negativas objetivo de otimizar recursos financeiros
(organizações, eventos e programas de e diminuir o tempo necessário para a
208 revitalização, efeitos da atuação missionária execução do levantamento com abrangência
nas práticas tradicionais); literatura oral nacional, uma possibilidade que deveria
(narrativas tradicionais, música, festas), com ser avaliada era a de realização de pesquisas
informações sobre frequência e transmissão; regionais, em que todas as línguas faladas
literatura escrita; informações relativas a em uma determinada área geográfica fossem
pesquisas e estudos existentes sobre a língua; consideradas. Mais adiante discutiremos
exemplos da língua em uso (lista de palavras os resultados de um levantamento regional
padronizada, amostras independentes de desenvolvido em próxima cooperação entre
escrita, vídeos da língua falada de 3 a 5 o Iphan e o Museu Paraense Emilio Goeldi
minutos, com tradução). Essas informações – MPEG.
deveriam ser apresentadas em dossiês sobre
as línguas levantadas.
O trabalho realizado pelo GTDL,
5. O texto completo do Decreto nº 7.387/2010 pode ser
sob a coordenação do Departamento do encontrado no seguinte endereço eletrônico: <http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/
Patrimônio Imaterial do Iphan, culminou, D7387.htm>.
Guia módulo abrange um conjunto de temas.

abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística


O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
d e p e s q u i s a e d o c u m e n ta ç ã o

pa r a o INDL Embora todos os temas devam ser objeto de

a c i o n a l
Em 2016, o Iphan lançou o Guia de pesquisa e mobilização social nos dois tipos
Pesquisa e Documentação para o INDL, em de inventário, nem todos os itens de um tema
dois volumes (Iphan, 2016), e um Suplemento são necessários para os inventários básicos e

N
r t í s t i c o
Metodológico on-line (Iphan, 2016). A há itens que são objetos específicos somente
preparação de um guia com orientações do inventário amplo.

A
específicas que pudessem ser seguidas por Visando contribuir para a reflexão sobre

e
pessoas interessadas em cooperar com os temas abordados no Guia, especialmente

i s t ó r i c o
o levantamento das línguas foi uma das os dilemas para o fortalecimento da gestão,
determinações da Comissão Técnica do discutimos a seguir alguns tópicos que são

H
INDL. Não estão claros para nós os fatores relevantes para o sucesso de uma política

a t r i m ô n i o
que condicionaram o produto final, mas de diversidade linguística em termos de

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
várias diretrizes e orientações metodológicas inventário e registro, contrapondo-os com as

P
que haviam sido consideradas importantes orientações contempladas no guia.

d o
pela Comissão Técnica do INDL não foram Inicialmente, é importante destacar que

e v i s t a
incorporadas ao guia, ou foram colocadas a abrangência e o escopo do levantamento

R
como opcionais. devem ser os mais amplos. Todas as
O guia prevê a possibilidade de serem comunidades linguísticas precisam ser
realizados dois tipos de inventário: inventário alvo do levantamento e, no caso das
amplo e inventário básico. A produção de línguas indígenas, devem ser priorizados os
conhecimento sobre as línguas tem seu levantamentos regionais (por exemplo, em
escopo definido a partir de algumas temáticas áreas onde se encontram várias línguas, como
centrais para a metodologia do INDL. em Rondônia e no Xingu).
209
Essas temáticas estão sistematizadas num Um segundo ponto diz respeito ao
formulário específico, que é um dos produtos número e distribuição dos falantes e
dos inventários. O formulário é baseado semifalantes. Informações sobre o grau de
em questões padronizadas e tem como proficiência dos falantes e semifalantes por
objetivo sintetizar e organizar o trabalho faixa etária e por comunidade, incluindo
de pesquisa, possibilitando a construção o levantamento dos falantes indígenas fora
de um banco de conhecimentos sobre a das aldeias, são essenciais para o diagnóstico
diversidade linguística no Brasil. Ele está completo das línguas e para o planejamento
organizado em seis módulos: identificação de ações de políticas públicas, tais como
da pesquisa; caracterização territorial; programas de educação em língua materna,
identificação e caracterização da comunidade programas de (re)vitalização etc. O guia prevê
linguística; identificação e caracterização a coleta de informações sobre o número total
da língua de referência; diagnóstico de falantes, mas o número de semifalantes
sociolinguístico; avaliação da vitalidade é opcional, o que deixa a critério do
linguística, revitalização e promoção. Cada pesquisador informar ou não.
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
P
d o
e v i s t a
R

Outro ponto considerado essencial, mas Relacionado a essa questão da escrita,


que também figura como opcional no guia, é outro ponto a se considerar é o levantamento
o diagnóstico sobre a proficiência na escrita do grau de vitalidade e grau de transmissão da
210
e a eficácia da(s) ortografia(s) existente(s) língua, incluindo o grau de fluência por faixa
para uma dada língua. No entanto, para etária e por comunidades. Esse diagnóstico
o planejamento de ações de educação, é é importante para avaliar a necessidade de
importante não só um diagnóstico sobre o ações de valorização e promoção da língua.
grau de ensino nas escolas, como também Pode haver, por exemplo, entre comunidades
sobre a proficiência na escrita da língua falantes de uma mesma língua, diferenças que
por faixa etária e localização dos falantes, precisariam ser levadas em conta no planeja-
uma vez que muitos grupos indígenas têm mento de ações de educação e (re)vitalização.
problemas com ortografias inadequadas. Para finalizar, destacamos ainda que
Apenas à guisa de ilustração: os povos Suruí informações sobre patrimônio oral e sobre
Assistente makurap
transferindo dados
de Rondônia, Arara de Rondônia, Zoró, os fatores de promoção ou de inibição de
a respeito do
levantamento do Wari’, Gavião, Makurap e Aikanã enfrentam seu uso são importantes como diagnóstico
número de falantes
de sua língua para o problemas relacionados a sistemas de da situação e identificação de áreas para
banco de dados,
Terra Indígena escrita que não representam suas respectivas investimento em termos de políticas de
Rio Guaporé (RO), 2010
Foto: Denny Moore. realidades linguísticas. fomento e apoio.
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
P
d o
e v i s t a
R
Todos esses pontos devem, a nosso para cada tema sugerido. É fato que o Iphan
ver, fazer parte dos levantamentos tem buscado compreender melhor os desafios
sociolinguísticos no âmbito do INDL. para a implementação do INDL, em todo o
211
Para obter um diagnóstico real da situação país, bem como desenvolver um arcabouço de
linguística do país, esses pontos precisariam metodologias e experiências que possam ser
ser contemplados nos inventários de todas as compartilhadas, visando criar um referencial
línguas. Porém, em sua versão simplificada na gestão da política da diversidade linguística,
(inventário básico), o guia ou não contempla ampliar o número de diagnósticos das línguas
alguns desses pontos ou os contempla, mas faladas no país e, consequentemente, o núme-
permite que sua abordagem seja feita apenas ro de línguas reconhecidas como referência da
opcionalmente pelo pesquisador. cultura brasileira.
Em contraposição a esses questionamentos, Nesse contexto, considerando a experiên-
o Iphan tem comumente observado que o for- cia da área de linguística do Museu Paraense
mulário fornece um roteiro básico dos temas Emílio Goeldi, estabeleceu-se, em 2016, um
de pesquisa, mas não pretende ser exaustivo projeto de cooperação técnica entre essa insti- Jovens makurap
arquivando gravações
sobre os processos ou produtos de inventários. tuição e o Iphan para realizar o levantamento de várias línguas no
computador.
Como um roteiro, o formulário também não sociolinguístico em escala regional das línguas Terra Indígena
Rio Guaporé (RO), 2010
esgota as questões possíveis de investigação indígenas faladas em Rondônia. No próximo Foto: Denny Moore.
item, discutiremos os desafios enfrentados e grupos arredios que vivem no interior do
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e

os principais resultados desse projeto no âm- estado e evitam todo contato. A situação de
a c i o n a l

bito da política da diversidade linguística. muitas dessas línguas hoje é precaríssima,


Para qualquer iniciativa relativa às em decorrência do processo de colonização
línguas indígenas, o trabalho de campo nas descontrolado que ali se observa desde os
N
r t í s t i c o

comunidades é imprescindível. Essa é uma anos 1940. Dois terços das línguas indígenas
das especialidades da área de linguística do de Rondônia têm menos de cinquenta
A

MPEG, que tem se dedicado a trabalhos em falantes e um terço tem menos de dez
e

comunidades indígenas para coleta de dados e falantes. Como existe, entre os linguistas do
i s t ó r i c o

estudos sistemáticos das suas línguas desde os Museu Goeldi, uma tradição de pesquisas
anos 1960. Nos anos 1980, como expressão com as línguas de Rondônia, há muito
H

de uma visão à frente do seu tempo, a ins- conhecimento sobre quase todas elas. Isso
a t r i m ô n i o

tituição estabeleceu um acervo de gravações facilitou o desenvolvimento do projeto de


A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t

realizadas pelos seus funcionários, bolsistas e realizar o inventário completo do estado. O


P

pesquisadores visitantes, com o objetivo de objetivo estabelecido para esse projeto6 era
d o

incluir registros audiovisuais de todas as lín- o de efetuar o levantamento da situação das


e v i s t a

guas amazônicas. Além disso, a equipe de lin- línguas nativas de 26 povos indígenas de
guistas do Museu Goeldi e outros linguistas Rondônia, que somavam uma população de
R

associados à instituição vêm desenvolvendo 11.218 pessoas. O resultado do levantamento


pesquisas e projetos de documentação linguís- deverá servir como modelo para futuros
tica com as línguas indígenas de Rondônia levantamentos de campo no INDL, no que
desde a década de 1970. se refere à identificação, à documentação e ao
reconhecimento de mais de uma língua em
L e va n ta m e n t o e m e s c a l a contexto regional. Entre novembro de 2014
212 regional: um projeto do e novembro de 2017, foram realizados os
INDL e m R o n d ô n i a levantamentos sociolinguísticos, em campo,
das etnias Aikanã, Arikapu, Aruá, Cinta
O estado de Rondônia representa a Larga, Djeoromitxi, Gavião (Ikõlej), Kanoé,
região com a mais alta diversidade linguística Karipuna, Karitiana, Karo (Arara), Kujubim,
do Brasil. Em seu território são faladas 26 Kwazá, Latundê, Makurap, Oro Win, Suruí
línguas, um número relativamente grande. (Paiter), Puruborá, Sakurabiat (Mekens),
Além disso, essas línguas pertencem a oito Salamãi, Tupari, Kawahiba – Amondawa e
troncos linguísticos diferentes: quatro línguas Kawahiba - Uru-Eu-Wau-Wau, Wari’ (Pakaa
do tronco Txapakura, duas línguas Macro- Nova), Wayoro (Ajuru) e Zoró.
Jê, uma língua Nambikwara, uma língua No decorrer do projeto, procuramos
Pano, dezesseis línguas Tupi e três línguas realizar o inventário mais abrangente possível
isoladas (Aikanã, Kwazá e Kanoé), cada
uma representando um tronco linguístico. 6. Levantamento regional da situação sociolinguística de 26
etnias indígenas da região de Rondônia – Inventário Nacional da
Há ainda línguas desconhecidas faladas por Diversidade Linguística (INDL).
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
P
d o
e v i s t a
R
das línguas, como forma de avaliar as Metodologia: dificuldades

dificuldades e testar metodologias. O trabalho encontradas e soluções

de campo foi coordenado majoritariamente a d o ta d a s


213
por linguistas, mas também por antropólogos Apresentaremos a seguir alguns dos prin-
e, em um caso específico da língua dos cipais resultados do levantamento da situação
Cinta-Larga, por uma indigenista com larga das línguas indígenas de Rondônia, procu-
experiência com o grupo em questão. Note-se rando fazer a correlação entre as estratégias
que o conhecimento prévio do pesquisador de metodologias utilizadas no projeto e a
responsável foi útil para estabelecer a relevância para os grupos indígenas envolvi-
dinâmica de cooperação com órgãos dos, bem como para a gestão do INDL, tanto
governamentais da região e também com os em termos de procedimentos metodológicos
grupos indígenas. A equipe de pesquisadores quanto dos diagnósticos realizados.
responsável pelo levantamento e diagnóstico Acessibilidade: Entre os fatores proble-
Diadema vertical
teve oportunidade de verificar as situações e máticos envolvidos na realização do projeto, rotiforme da etnia
Karitiana, coletado
procedimentos que funcionam (e devem ser podemos destacar dificuldades na acessibilida- em 1995. Coleção
etnográfica da
encorajados) e os que não têm funcionado de aos locais, ou seja, às comunidades de fala, Reserva Técnica Curt
Nimuendaju/Museu
(e não devem ser encorajados), no âmbito e a falta de dados confiáveis que pudessem Paraense Emílio
Goeldi
do INDL. ser usados para otimizar o levantamento. Foto: Fábio Jacob.
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
P
d o
e v i s t a
R

Por exemplo, em várias áreas indígenas houve para estabelecer as relações interinstitucionais,
dificuldade em reunir pessoas em um mesmo uma vez que o projeto é uma ação de política
local por causa da distância entre aldeias, que pública do governo federal, coordenada pelo
214 frequentemente se encontram fora do alcance Iphan. Embora não houvesse sido prevista
do sistema telefônico. A solução encontrada inicialmente, concluímos que a carta de apre-
para superar esse obstáculo foi visitar as vá- sentação institucional é um item que deve ser
rias aldeias de uma etnia, em vez de chamar incluído nos projetos do INDL.
representantes da comunidade para ir a um Dados demográficos preexistentes: Uma
lugar central. Isso foi feito, por exemplo, com inovação metodológica foi o uso dos dados
os Wari’, os Tuparí e os Makurap, que vivem demográficos do Sistema de Informação da
distribuídos em várias aldeias. Atenção à Saúde Indígena – Siasi, vinculado
Relações interinstitucionais: A coope- ao Ministério da Saúde/Secretaria Especial
ração com os diversos órgãos representativos de Saúde Indígena – Sesai. Esses dados in-
do Estado, nas esferas federal e estadual, é cluem nome, idade, parentesco e aldeia de
Sueli Kanoé gravando
um fator importante, muito embora o nível cada indígena. O uso desses dados possibilita
uma lista de palavras
com seu avô, de cooperação seja definido caso a caso. No um levantamento mais preciso e completo e
Francisco Kanoé.
Terra Indígena Rio decorrer do projeto, observamos que uma reduz o tempo e o custo do levantamento. O
Guaporé (RO), 2010
Foto: Denny Moore. carta de apresentação do Iphan era necessária acesso a essas informações pode ser facilitado
pela carta de apresentação do Iphan, já men- que os grupos indígenas tendiam a ter

abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística


O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
cionada, e poderá ser útil em levantamentos mais interesse em ações práticas do que em

a c i o n a l
futuros, especialmente quando se tratar de reconhecimento da língua como referência
diagnósticos regionais e/ou com grupos po- cultural. Em alguns casos, isso pode provocar
pulacionais numerosos. É importante coletar uma resistência inicial em conceder a

N
r t í s t i c o
informações, na medida do possível, sobre o anuência para a condução do levantamento.
grau de fluência de todos os membros de um Uma estratégia encontrada pela equipe

A
grupo indígena, para obter uma visão com- envolvida no projeto e que é, de todo modo,

e
pleta da situação da língua e não restringir o crucial, é o esclarecimento da comunidade

i s t ó r i c o
levantamento a uma ou poucas aldeias (al- de fala sobre o INDL, sua função como
deias de referência, na terminologia do Guia diagnóstico, o valor de sua implementação,

H
do INDL). ações que podem ser oriundas do inventário

a t r i m ô n i o
Definição de fluência e verificação: Um etc. Deve-se informar, por exemplo, que o

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
procedimento metodológico que se mostrou levantamento das informações sobre uma

P
útil e eficaz foi o uso de quatro graus de comunidade de fala e os dados obtidos

d o
fluência para quantificar a variabilidade e poderão ajudar na formulação de projetos

e v i s t a
determinar, além do número de falantes, o práticos no futuro (educação, documentação,

R
número de semifalantes. A informação sobre (re)vitalização etc). Cumpre destacar, porém,
semifalantes é importante para o planejamen- que, ao apresentar os objetivos do INDL
to, uma vez que as pessoas nessa categoria e o que poderá ser feito com os resultados
podem recuperar a língua bem mais facilmen- do levantamento, é importante não gerar
te que pessoas que não falam nada da língua. expectativas de apoio direto e imediato, por
Com esse procedimento, os graus de fluência parte do Iphan ou de qualquer outro órgão
foram claramente definidos, de maneira inte- governamental, evitando-se o risco de criar
215
ligível aos indígenas, e as estimativas de fluên- uma demanda que não poderá ser cumprida.
cia foram verificadas independentemente.
Vale destacar a importância de usar medidas R e s u lta d o s obtidos: repercussão

cuidadosas para obter esse tipo de informa- junto às comunidades

ção, a fim de evitar erros nos levantamentos O projeto do levantamento de várias


e diagnósticos. A objetividade e a acuidade línguas de uma mesma região revelou
dos dados coletados são fundamentais para resultados interessantes, muitos dos quais
o sucesso do levantamento, pois só isso per- foram, inclusive, inesperados, considerando-
mitirá a construção de um banco de dados se o conhecimento existente sobre as línguas
correto sobre a situação das línguas. A equipe inventariadas pelo projeto. O processo de
responsável pela coleta de dados precisa estar realizar o levantamento da situação das
atenta para evitar informações incorretas línguas de modo abrangente, bem como
e/ou fraudulentas. a atenção dedicada ao assunto da língua
Informação sobre o INDL: Durante o tradicional e o seu reconhecimento como
desenvolvimento dos projetos, percebemos referência cultural do país tiveram um certo
efeito positivo, no sentido de aumentar utilizado com sucesso pela população do
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e

a consciência sobre a questão linguística. grupo. Os resultados variam em função da


a c i o n a l

O aspecto diagnóstico do levantamento qualidade do material de alfabetização e da


da situação da língua contribuiu para que instrução. A escrita pode ser um meio de
cada grupo refletisse a respeito da temática codificar a língua e lhe dar mais prestígio.
N
r t í s t i c o

e direcionasse esforços para medidas Infelizmente, o levantamento mostrou que


que podem melhorar a situação e evitar a situação geral da escrita, entre as línguas
A

outras cuja ineficiência foi comprovada. O faladas em Rondônia, é fraca, com indígenas
e

diagnóstico, além de ampliar o conhecimento escrevendo de maneira inconsistente e


i s t ó r i c o

da situação real das línguas, tem o efeito de reclamando do material didático confuso ou
detectar perigos e problemas que eram pouco inexistente. Os programas de alfabetização
H

reconhecidos, conforme veremos a seguir. que alcançaram os melhores resultados


a t r i m ô n i o

Número de falantes: As informações foram aqueles que contaram com um


A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t

coletadas, seguindo a metodologia do linguista profissional, que pesquisa a língua


P

inventário mais abrangente, revelaram-se a longo prazo. Os programas orientados


d o

acuradas e confiáveis, podendo ser usadas por leigos ou por linguistas temporários,
e v i s t a

para corrigir eventuais informações errôneas. com pouco estudo da língua, tiveram os
Segundo o censo nacional de 2010, havia piores resultados. Uma crença frequente
R

189 falantes da língua Aruá, porém, o é a de que os próprios indígenas devem


levantamento cuidadoso in loco apontou elaborar ortografias, sem necessidade de
somente cinco falantes plenos. Os resultados assessoria técnica. O diagnóstico realizado
do levantamento mostram muitos outros pelo projeto não identificou nenhum sucesso
fatos desconhecidos. Por exemplo, entre os nesses casos. Por exemplo, no material de
três grupos Kawahib de Rondônia (Uru-Eu- alfabetização (premiado pelo MEC) utilizado
216 Wau-Wau, Karipuna e Amondawa), a grande pelos Paiter (Suruí de Rondônia), que foi
maioria de jovens com menos de 20 anos é elaborado por um professor indígena de
somente falante passiva da língua indígena, forma independente, um terço das palavras
embora esses grupos tenham sido contatados foi transcrito inconsistentemente, o que
em anos relativamente recentes, na década de tornava praticamente impossível aos alunos
1980. Situação distinta foi observada entre os aprender a ler. Isso mostrou que a causa
Gavião de Rondônia: apesar do contato mais de certos problemas está na qualidade do
antigo, na década 1950, basicamente todos os material educacional. Com essa informação
678 indivíduos falam o idioma. gerada pelo diagnóstico, os grupos podem
Diagnóstico sobre escrita e buscar soluções adequadas para os problemas.
alfabetização na língua indígena: Esta é uma repercussão bastante positiva e
Empregando uma metodologia de amostras útil. Outras repercussões deverão ocorrer
independentes da mesma lista de palavras, a partir da divulgação dos resultados do
foi possível determinar rapidamente se o levantamento, o que poderá ter implicações,
sistema de escrita estava funcionando e sendo inclusive, para a política educacional.
Perda de cultura verbal: A situação da como metodologia em levantamentos

abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística


O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
manutenção de cultura verbal tradicional futuros. No caso das comunidades de

a c i o n a l
varia muito entre os grupos. Por exemplo, Rondônia, geralmente a primeira prioridade
em uma aldeia dos Paiter (Suruí de indicada foi a correção e padronização da
ortografia, entre os grupos cuja escrita é

N
Rondônia), o cacique lamentou ter sido

r t í s t i c o
proibido de cantar música antiga, senão problemática. Junto com essa prioridade, foi
seria acusado de trabalhar com o diabo . 7 manifestado o desejo de dispor de material

A
Em outra aldeia, a cultura indígena coexiste didático adequado. A segunda prioridade

e
é a documentação da língua e da cultura,

i s t ó r i c o
com uma igreja estabelecida na comunidade.
Entre os Zoró, rituais de pajelança e festas especialmente através de gravações de áudio
indígenas foram eliminados por efeito da e vídeo. Vinculado a essa prioridade está

H
o desejo de acesso a equipamentos para

a t r i m ô n i o
ação evangélica. A presença de religiões
gravar e mostrar as gravações. Projetos de

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
fundamentalistas entre vários grupos
indígenas e sua interferência direta na documentação têm estimulado o interesse

P
vitalidade de aspectos culturais tradicionais, nesse assunto.

d o
como a pajelança e o patrimônio cultural Mobilização regional: O levantamento

e v i s t a
oral tradicional (mitos, músicas, festas), têm de dados concretos sobre a situação da

R
levado à eliminação dos mesmos. Em alguns língua teve o efeito de estimular a reflexão
casos, as comunidades indígenas encontram- sobre o futuro da língua e as medidas
se divididas entre dois grupos, o dos que necessárias para garantir sua manutenção.

continuam no modo tradicional e o dos que Também permitiu às comunidades indígenas


verificar quais medidas eram produtivas
se converteram a essas religiões.
e quais eram improdutivas. Como parte
Prioridades dos grupos indígenas:
do projeto de levantamento, foi feito um
Os resultados dos levantamentos 217
contato com o nascente Museu da Memória
foram apresentados aos grupos
Rondoniense – Mero, com o objetivo de
indígenas, provocando muita reflexão e,
estabelecer um setor de documentação de
frequentemente, preocupação. Uma lista
línguas e culturas tradicionais. O Iphan, por
(portfólio) de várias medidas possíveis
meio de sua Superintendência em Rondônia
em relação à língua foi apresentada pela
e do Departamento de Patrimônio Imaterial,
equipe do projeto com base na realidade
ajudou nessa iniciativa, levando em conta
linguística observada. Os representantes da
seu potencial para as comunidades e para
comunidade indicaram as prioridades. Essa
a ciência. Se bem-sucedido, esse projeto
estratégia de apresentar uma lista de medidas
com o Mero pode ter um efeito forte na
possíveis foi utilizada com vários grupos e
documentação e revitalização das línguas do
facilitou a coleta de informações objetivas,
estado. Como o levantamento demonstrou,
o que nos faz sugerir que seja incorporada
a documentação para a manutenção da
língua é uma das prioridades frequentes
7. Uma obra relevante para conhecer mais sobre o assunto é o
documentário Ex-pajé, de Luiz Bolognesi (2018). dos grupos.
Conclusão Também, conforme resolução aprovada
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e

em assembleia geral da Associação Brasileira de


a c i o n a l

Conforme discutido neste artigo, o In- Linguística – Abralin, realizada em 27 de feve-


ventário Nacional da Diversidade Linguística reiro de 2015, os levantamentos devem incluir,
obrigatoriamente: 1) o número de falantes e
N

– INDL foi uma grande conquista em termos


r t í s t i c o

de possibilidade de definição e planejamento semifalantes de cada língua, por faixa etária;


de uma política da diversidade linguística no 2) o grau de transmissão de cada língua em
A

país. Dada a abrangência da demanda, consi- termos quantitativos; 3) o número de pessoas


e

alfabetizadas de fato na língua e o grau de ade-


i s t ó r i c o

derando o número de línguas faladas no país


e a situação em que se encontram, a gestão quação do(s) sistema(s) de escrita; 4) o grau de
dessa política se depara com inúmeros desafios manutenção do patrimônio verbal (narrativas,
H

músicas, festas, rituais etc.) e indicação das for-


a t r i m ô n i o

e precisa ainda ser otimizada, para que possa


ças que impedem ou promovem a manutenção
A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t

gerar os resultados esperados. No entanto,


defendemos que o INDL é viável e deve ser desse patrimônio.
P

fortalecido no âmbito dos órgãos competentes, O estabelecimento e a gestão adequada


d o

especialmente no Iphan. de políticas públicas são passos importantes


e v i s t a

Se objetivamente implementado, o INDL no processo de resgatar identidades linguísti-


R

pode levar à constituição de uma política cas oprimidas e silenciadas pela manutenção
efetiva para a salvaguarda da diversidade de uma identidade nacional monolíngue
linguística no Brasil. Para isso, sugerimos (Português). Nesse sentido, é uma conquista
o estabelecimento de um plano realista, importante o reconhecimento das línguas do
considerando a organização e a definição de país como parte do patrimônio cultural bra-
um padrão factível para todo o país, além sileiro, ou seja, como línguas de referência da
da eficiência em termos de investimento e cultura brasileira. Vinculado a esse reconheci-
218
tempo. Levando ainda em conta que inúmeras mento, é necessário também o planejamento
línguas estão em situação de vulnerabilidade de ações concretas, de acordo com as priorida-
e que não existem informações objetivas des definidas pelos povos falantes dessas lín-
sobre sua situação real, recomendamos, para guas, contribuindo para tirar do silêncio e dar
a implementação do inventário de todas as voz a essas línguas e a seus povos.
línguas do país, que algumas modificações nos A valorização das línguas indígenas é
atuais modelos de diagnóstico previstos no fundamental para que a língua ocupe espa-
Guia de Pesquisa e Documentação para o INDL ços na comunidade e também fora dela. Por
sejam consideradas pelos órgãos responsáveis exemplo, (re)aprender um pouco da língua
pela gestão dessa política. Para que o modelo dos ancestrais e ter a possibilidade de usar a
de diagnóstico seja mais adequado e eficiente, língua na escola tem sido um instrumento
as modificações devem minimizar partes do político-social importante na recuperação da
conteúdo do INDL que não são essenciais para identidade indígena do povo Puruborá, em
o diagnóstico de línguas e incorporar avanços Rondônia. Nessa mesma linha, existe ainda
metodológicos de eficiência demonstrada. uma demanda crescente, por parte dos grupos
indígenas, pela documentação de suas línguas Referências

abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística


O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
e culturas. Mas é necessário que haja inves-

a c i o n a l
timento na formação de pessoas com capa- AIKHENVALD, Alexandra Y. The languages of the
citação técnica para realizar documentação, Amazon. Oxford: Oxford University Press, 2012.
IBGE. Censo demográfico 2010. Características gerais
incluindo professores e técnicos indígenas.

N
dos indígenas: resultados do universo. Rio de Janeiro:

r t í s t i c o
Nesse contexto, os projetos de documenta- IBGE, 2012. Versão online: <http://www.ibge.gov.
ção e os arquivos digitais, como o Acervo de br/home/estatistica/populacao/censo2010/>; <http://
servicodados.ibge.gov.br/Download/Download.

A
Línguas e Culturas Indígenas do Museu do
ashx?http=1&u=biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/

e
Índio/Funai/MJ e o Acervo de Línguas e Cul-

i s t ó r i c o
periodicos/95/cd_2010_indigenas_universo.pdf>.
turas Indígenas do Museu Goeldi/MCTIC, IPHAN. Guia de pesquisa e documentação para o INDL, v.
têm papel importante a desempenhar, deven- 1: Patrimônio cultural e diversidade linguística. Pesquisa

H
e textos de Thiago Chacon et al., Brasília: Iphan, 2016.
do, para isso, garantir não somente a susten-

a t r i m ô n i o
Disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/
tabilidade e conservação dos acervos sob sua ckfinder/arquivos/INDL_Guia_vol1.pdf.

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t
guarda, mas também a disponibilização dos IPHAN. Guia de pesquisa e documentação para o INDL,
v. 2: Formulário e roteiro de pesquisa. Pesquisa e textos

P
mesmos para a sociedade, especialmente para de Marcus Vinícius Garcia et al. Brasília: Iphan, 2016.

d o
os atores do processo de documentação, ou Disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/

e v i s t a
seja, os falantes das línguas documentadas. ckfinder/arquivos/INDL_Guia_vol2.pdf .
IPHAN. Guia de pesquisa e documentação para o INDL:
Concluindo, reafirmamos que lutar contra

R
patrimônio cultural e diversidade linguística. Suplemento
a perda da diversidade linguística no Brasil, metodológico. Brasília: Iphan, 2016. Disponível em
contra o enfraquecimento e empobrecimento http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/
SUPL_MET_%20GUIA_INDL.zip.
dessa diversidade é também lutar pela demo-
MOORE, Denny; GALUCIO, Ana Vilacy. “Perspectives
cracia e defender o direito à vida com dignida- for the documentation of indigenous languages in
de dos povos que representam essa diversidade Brazil”. In: BÁEZ, Gabriela Pérez; ROGERS, Chris;
hoje no país. As línguas são essenciais para a LABRADA, Jorge Emilio Rosés (orgs.). Language
documentation and revitalization: Latin American
identidade das pessoas e dos povos. Assegurar 219
contexts. Berlim, Boston: De Gruyter, 2016, p. 29-58.
a sua manutenção e a sua vitalidade implica as- MOSELEY, Christopher (org.). Atlas of the world’s
segurar um futuro melhor para todos. Em um languages in danger. 3 ed. Paris: Unesco Publishing,
2010. Disponível em http://www.unesco.org/culture/en/
país de dimensões continentais como o Brasil Boca preta. Aquarela.
endangeredlanguages/atlas. Expedição Científica
e que apresenta grande diversidade linguística, OSTLER, Nicholas. Empires of the word: a language
Alexandre Rodrigues
Ferreira (1783 a 1792)
o conhecimento das diversas línguas e culturas history of the world. London: HarperCollins Publishers, Acervo: Fundação Biblioteca
Nacional, Brasil.

do país é fundamental. E é imprescindível, em 2005.


RODRIGUES, Aryon
termos de planejamento de políticas públicas,
Dall’Igna. Línguas indígenas:
saber a situação das línguas indígenas (nú- 500 anos de descobertas e
mero de línguas, número de falantes, grau de perdas. Ciência Hoje, n. 95, v.
16, p. 20-26, 1993.
transmissão, grau de ensino nas escolas etc.).
Por isso é importante identificar, mapear e
conhecer todas as línguas, o que requer a im-
plementação adequada do Inventário Nacional
da Diversidade Linguística.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

220
A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e
abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística

Iphan.
Belém (PA), 2004
Foto: Francisco Moreira
da Costa/Acervo CNFCP-
Mercado Ver-o-Peso,
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
221

A n a V i l a c y G a l u c i o , D e n n y M o o r e , H e i n v a n d e r Vo o r t O patr imônio linguístico do Brasil: novas per spectivas e


abordagens no planejamento e gestão de uma política da diver sidade linguística
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

222
M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
Marcelo Br ito, Sérgio Paz Magalhães

a c i o n a l
Os desafios do reconhecimento e da gestão do

R egião N orte e o caso

N
patrimônio cultural da

r t í s t i c o
da candidatura do C onjunto de F ortificações

A
B rasileiras a patrimônio mundial

He
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o
“O Brazil não conhece o Brasil”, Os sítios inscritos são em sua maioria
conforme afirmou Aldir Blanc em sua canção centros históricos do período colonial, de
Querelas do Brasil, defendida pela melodiosa origem lusitana e localizados ao longo da

P
voz de Elis Regina. De fato, desde as pri- imensa costa brasileira. Constituem um

d o
e v i s t a
meiras iniciativas de proteção ao patrimônio esforço institucional de proteção e valoração,
cultural do país, as dificuldades de acesso ao sem dúvida, mas revelam a necessidade

R
inexpugnável território encoberto pelo manto de um empenho continuado por ampliar
da floresta Amazônica, ocupado ao longo da esse universo, para permitir contar uma
história por empreendimentos dispersos, não história ainda não revelada para o mundo e,
favoreceram um desvelar imediato, passível de certamente, para os próprios brasileiros.
compartilhamento com o resto do país. Em resposta, o Iphan incorporou à sua
O patrimônio cultural existente no Lista Indicativa do Patrimônio Mundial
Norte do país segue exigindo um olhar bens como os Teatros da Amazônia, bem 223
atento e incisivo para percebê-lo em toda a seriado que reúne o Teatro Amazonas,
sua pujança. No campo da política nacional de Manaus, no estado do Amazonas, e o
voltada para o reconhecimento internacional Teatro da Paz, de Belém, no estado do
dos bens culturais do país, enfrentar o desafio Pará, construídos no final do século 19,
de promover a atualização da Lista Indicativa monumentos expressivos e símbolos do
brasileira do Patrimônio Mundial, promovida apogeu econômico do ciclo da borracha
desde 2008, colocou duas questões para o na região; os Geóglifos do Acre, elementos
Iphan: primeiro, reconhecer a necessidade de arqueológicos constituídos por estruturas
fazer o Brasil se mostrar para o mundo por de terra, valetas e muretas, representando
inteiro, por meio dos sítios culturais inscritos, figuras geométricas de diferentes formas,
e segundo, diversificar o conjunto de bens encontrados especialmente em áreas de
indicados, seja do ponto de vista de sua interflúvios, nascentes de igarapés e várzeas Porto em frente ao
Mercado Ver-o-Peso,
dimensão histórica, tipológica, antropológica na região do estado do Acre; o Ver-o-Peso, Belém (PA), 1954 (ca.)
Foto: Marcel Gautherot/
ou territorial (Brito, s.d.:82-85). em Belém, no estado do Pará, local que Instituto Moreira Salles.
alberga a maior feira livre da Amazônia, quais integram o Conjunto de Fortificações
constituindo-se em uma paisagem cultural do Brasil, bem seriado composto por
viva e dinâmica; e, finalmente, o Real Forte dezenove componentes que marcam o êxito
do Príncipe da Beira, em Costa Marques, de uma forma singular de ocupação de um
Geóglifos, Acre, 2018
no estado de Rondônia, e a Fortaleza de São território de dimensões continentais como o
Foto: Oscar Liberal/
Acervo Iphan. José de Macapá, no estado do Amapá, os Brasil (Iphan, 2015).
brasileira para o avanço na aplicação dos

Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte


e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
ditames da Convenção do Patrimônio

a c i o n a l
Mundial, em função dos enfrentamentos
que já estão sendo realizados diante do firme
posicionamento do Iphan em propiciar ao

N
r t í s t i c o
mundo uma compreensão mais abrangente do
processo civilizatório de nosso país.

A
Alguns pontos desafiadores merecem

e
destaque, tanto na perspectiva do

i s t ó r i c o
reconhecimento desses bens como de sua
decorrente gestão:

H
i) Identificação e acesso a esses

a t r i m ô n i o
bens: a região amazônica, por sua própria
dimensão e restrições em relação às vias de

P
comunicação em seu vasto território, expressa

d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s
e possui, de per se, uma condição de certa

e v i s t a
impenetrabilidade, no sentido de revelar-se

R
em toda a sua realidade;
ii) Leitura e compreensão dos elemen-
tos tangíveis e intangíveis que referenciam
culturalmente o modo de ser, viver e sentir
dos chamados “povos da floresta”, assim como
dos artefatos que contribuíram para compor
e marcar o domínio do território continental
225
chamado Brasil nessa região;
iii) Tutela e promoção dos bens
protegidos, diante das dificuldades operativas
de gerenciamento numa perspectiva
interfederativa, diante dos desafios presentes
no nível de institucionalidade do campo do
patrimônio, como do entendimento acerca do
seu valor e sentido, em especial, para a própria
sociedade, como agentes corresponsáveis pela
Certamente, o desafio de dar visibilidade a preservação desse patrimônio.
esses bens culturais em âmbito nacional é ainda Se no âmbito da gestão admitem-se as
transcendente, na perspectiva internacional, dificuldades de gerenciamento do patrimônio
na medida em que acreditamos que os casos cultural em todo o território nacional, elas
indicados e localizados na Região Norte, sem são ainda maiores no que se refere aos bens
dúvida, favorecerão uma especial contribuição que se encontram na Região Norte do país.
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s
e v i s t a
R

226
O c a s o d a c a n d i d at u r a pontos que serviram para definir as fronteiras
do Conjunto de marítimas e fluviais que configuraram o
Fortificações do Brasil: Brasil como o maior país da América Latina
– constitui-se, no momento, como o maior
as fortificações da Região
desafio de reconhecimento do patrimônio
Norte que o integram e os
cultural no país. Dessas dezenove, duas se
d e s a f i o s pa r a s u a g e s t ã o
encontram na Região Norte, quais sejam,
a Fortaleza de São José de Macapá e o Real
A iniciativa e o processo que envolve
Forte Príncipe da Beira.
a candidatura a patrimônio mundial do Como um bem seriado, torna-se uma
Conjunto de Fortificações do Brasil – ousada candidatura, na medida em que se
contemplando uma seleção de dezenove espraia pelo território nacional, ao reunir
monumentos da arquitetura militar, fortificações em dez estados da federação,
representativos das construções defensivas o que demanda um inexorável exercício de
implantadas no território brasileiro, nos extrapolar a visão local de cada um desses
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s
e v i s t a
R
227
elementos para uma visão em rede, que possa e discussões realizadas proporcionaram a
permitir uma leitura mais ampla do território, elaboração da Carta do Recife, assinada pelos
promovendo uma dinâmica dialógica entre ministros da Cultura, do Turismo e da Defe-
atores, para a compreensão da complexidade sa, fimando os compromissos e as diretrizes
do processo de reconhecimento e dos a serem observadas durante a candidatura do
compromissos decorrentes no campo da referido bem seriado.
gestão, tanto em escala local como regional, Entendendo que essa iniciativa depende
nacional e internacional. da articulação das pastas mencionadas na
O início desse processo foi deflagrado em construção de planos de trabalho integrados
abril de 2017, durante a realização do Semi- e considerando as fortificações como recursos
nário Internacional Fortificações Brasileiras – que compreendem bens culturais de valor
Marechal Cândido
Patrimônio Mundial: estudos para análise de histórico, arqueológico, arquitetônico, Rondon, o quarto da
esquerda para a direita,
modelos de gestão e valorização turístico-cul- paisagístico e ambiental, a Carta do Recife em visita da Comissão
Rondon ao Real Forte
tural, no Forte das Cinco Pontas, no Recife, destaca as seguintes diretrizes (MinC, MTur Príncipe da Beira,
Costa Marques (RO), s/d
Pernambuco. Nesse evento, as apresentações & MD, 2017): Foto: Acervo Iphan.
1. Promover o uso sustentável para nos respectivos âmbitos locais, atores gover-
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial

assegurar a preservação do bem, garantindo namentais federais, estaduais e municipais,


a c i o n a l

sua conservação e manutenção; bem como representantes não governamentais


2. Fomentar a gestão do conhecimento envolvidos com a questão. O elemento comum
para preservar a memória e estimular o de seus participantes é o fato de cada um deles
N
r t í s t i c o

turismo cultural; ser o detentor de algum recurso importante


3. Implementar estratégias de para o processo de candidatura e da vontade de
A

comunicação para a valorização e divulgação disponibilizá-lo para isso.


e

das fortificações; Desse modo, muito embora os convites


i s t ó r i c o

4. Promover a interpretação do iniciais para essas oficinas tenham sido feitos


patrimônio, para ampliar a compreensão para garantir a participação de agentes que
H

sobre o bem cultural e proporcionar meios de possuem recursos humanos, financeiros,


a t r i m ô n i o

qualificar a experiência da visita; materiais e aporte cognitivo, a participação


5. Estimular iniciativas de educação tem acontecido de modo diferenciado em
P

patrimonial que favoreçam a apropriação das cada localidade e muito correlacionado


d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s

fortificações a partir do conceito ampliado de aparentemente ao apego da população


e v i s t a

patrimônio cultural; local em relação ao monumento ou à sua


R

6. Promover a certificação das apropriação pelo uso que dele faz.


fortificações como destinos patrimoniais no Nesse ponto, importa chamar a atenção
desenvolvimento do turismo cultural no Brasil; quanto à pretensão desse amplo processo
7. Empreender iniciativas de qualificação de mobilização, pois ela, em princípio, não
para o turismo cultural, tomando como base garante o desejo de conferir iguais condições
de referência as fortificações; para os dezenove componentes, mas de buscar
8. Estimular a gestão compartilhada uma equalização entre as estruturas locais
228
das fortificações, de forma a propiciar a estabelecidas para a candidatura, de modo
participação da população nesse processo; que sejam funcionais e efetivas e não guardem
9. Identificar e promover formas grandes diferenças quanto aos respectivos
inovadoras de fomento entre entidades graus de organização e mobilização.
públicas e privadas na gestão das fortificações; À coordenação desse processo resta o
10. Promover a integração do “Conjunto desafio de promover uma atuação equilibrada,
de Fortificações do Brasil” e o respeito às no sentido de buscar seu aperfeiçoamento
especificidades de cada componente, de modo nas localidades mais organizadas e que têm
a estabelecer uma matriz de responsabilidades demonstrado maior compreensão do processo
para a sua governança. e maior comprometimento dos atores locais.
Diante dessas orientações, o prosseguimen- Trata-se de refletir e debater acerca das ações
to do desenvolvimento da candidatura em tela necessárias para a criação de uma plataforma
tem-se dado por meio da realização de oficinas comum entre as dezenove fortificações, por
em cada um dos dez estados brasileiros que meio de trocas de experiências e debates
abrigam as fortificações. Essas oficinas reúnem, sobre modelos de gestão que favoreçam os
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s
e v i s t a
R
229

usos sustentáveis dos bens, em especial, na processo de candidatura a patrimônio


perspectiva do turismo cultural. mundial; explicar os aspectos particulares da
Localização
Assim sendo, nessa primeira etapa de candidatura do bem seriado; compreender os dos dezenove
componentes da
candidatura do bem
trabalho, as oficinas desenvolvidas têm desafios colocados para a gestão de cada uma seriado Conjunto
de Fortificações
buscado atender a quatro objetivos mais das fortificações e sua inserção no conjunto; Brasileiras à Lista
Patrimônio Mundial
urgentes: apresentar aspectos gerais do e sensibilizar os atores quanto ao que se da Unesco.
faz necessário para esse processo e como ao mencionado Valor Universal Excepcional,
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial

disponibilizar os recursos locais da melhor podendo ser tanto materiais como imateriais.
a c i o n a l

maneira para obter as condições necessárias Assim, cabe identificar no bem em questão
para o desenvolvimento da candidatura quais atributos lhe transmitem esse valor e
e, consequentemente, para a gestão do destacá-los para sua adequada gestão. Tais atri-
N
r t í s t i c o

componente local. butos podem corresponder a forma e desenho,


Na Região Norte, particularmente, materiais e substância, uso e função, tradições,
A

pelos desafios já mencionados, reconhece-se técnicas e sistemas de gestão, localização e


e

a necessidade de uma sensibilização mais ambiente, espírito do lugar, entre outros.


i s t ó r i c o

intensa, para a participação na construção É para assegurar essa gestão dos atributos
de uma estrutura de governança local que que deve ser estabelecido um Plano de Gestão,
H

em que estejam definidas as medidas a serem


a t r i m ô n i o

responda de modo efetivo aos pilares que


devem ensejar qualquer candidatura, ou seja, adotadas ou aquelas que estão em curso e que
a proteção, a conservação e a gestão do bem. auxiliem na manutenção do Valor Universal
P

Cabe destacar que, para o Excepcional do bem, estabelecendo um siste-


d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s

desenvolvimento de uma candidatura de um ma de governança com uma matriz de respon-


e v i s t a

bem a patrimônio mundial deve-se contar sabilidades e um cronograma de execução.


R

com um sistema adequado de proteção No que se refere ao sistema de


e gestão para assegurar o Valor Universal governança, tendo em vista a realidade
Excepcional do bem a ser reconhecido . 1 brasileira em que a competência em matéria
Como previsto nas orientações técnicas para o de patrimônio cultural é concorrente,
desenvolvimento de uma candidatura, portanto, indistinta e comum entre os entes
federativos, considera-se fundamental, hoje,
(...) um dos principais focos da gestão de um
promover a gestão compartilhada dos bens
230 bem Patrimônio Mundial são os atributos e os
tutelados, o que demanda uma análise prévia
elementos que expressam ou estão associados ao
potencial Valor Universal Excepcional do bem.
da gestão dedicada ao bem.
O objetivo é garantir que o valor, a autenticidade Com o objetivo de conferir condições
e a integridade do bem sejam sustentados no para que os atores das oficinas de preparação
futuro por meio da gestão dos atributos. Assim, a da candidatura possam discutir o modelo
Declaração de Valor Universal Excepcional é uma de gestão das fortificações e o que se faz
referência basilar para a gestão . 2
necessário para possibilitar o melhor
aproveitamento de potencialidades e
Deve, portanto, incidir na gestão dos
oportunidades e dirimir ou minimizar
aspectos que expressam ou estão associados
problemas e fragilidades identificadas na
1. O Valor Universal Excepcional do bem é a razão por que o
gestão das fortificações, foram estabelecidas
bem é considerado tão significativo a ponto de justificar seu duas estruturas de análise. A primeira
reconhecimento na Lista do Patrimônio Mundial. É o valor que,
para o Comitê do Patrimônio Mundial, reflete por que um bem estrutura busca verificar qual o modelo de
deve ser considerado internacionalmente significativo (Unesco,
Iphan & CLC, 2013:17 e 58). governança ou de relação entre os atores locais
2. Ibid.:91. e qual o modelo orçamentário-financeiro
que ampara a gestão da fortificação. De Estrutura Governança

Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte


e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
de

modo esquemático, corresponderia a dois - Administração feita por órgão público.

a c i o n a l
eixos, onde o eixo horizontal expressa, a - Administração feita por um colegiado de
partir da origem da reta, o crescimento da órgãos públicos.
autonomia financeira do bem patrimonial, e

N
- Administração feita por órgãos públicos,

r t í s t i c o
o eixo vertical representa, também a partir da possuindo instância consultiva com entes da
origem, o crescimento da participação social sociedade civil e iniciativa privada.

A
na gestão da fortificação. A segunda estrutura - Administração por órgãos públicos com

e
analítica, também delineada em um plano

i s t ó r i c o
instância consultiva formal (sociedade civil e
cartesiano, trabalha a inclusão do bem na iniciativa privada).
Lista do Patrimônio Mundial, considerando - Instância consultiva e deliberativa com

H
no eixo vertical a eficácia durante o processo

a t r i m ô n i o
representantes públicos e privados.
de candidatura (condições de ser considerado - Administração privada e controle e
patrimônio mundial) e no eixo horizontal a planejamento público.

P
estabilidade (condições de se manter como - Administração privada e controle e planejamento

d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s
patrimônio mundial de modo consistente).

e v i s t a
público com participação da sociedade civil.
Essa primeira estrutura de análise
Considerando que o financiamento das

R
nasceu da necessidade de abordar
importantes e complexos aspectos, tais ações é condição básica e fundamental para
como potencialidades econômicas na o êxito da gestão do bem, foi, igualmente,
gestão dos bens patrimoniais e o nível destacado como importante observar:
de participação/comprometimento da
sociedade civil e da iniciativa privada na Autonomia Financeira
sua gestão, para uma plateia diversificada - Administração é feita exclusivamente por
231
de gestores de fortificações, na medida em recursos orçamentários, sendo que sua previsão
que elas apresentam diferentes níveis de orçamentária não é específica para o equipamento.
potencialidades econômicas e diferentes - Administração é feita por recursos orçamentários
estruturas de governança. cuja previsão orçamentária é específica para
Nesse sentido, foi construída a proposta o equipamento.
de análise abaixo, com elementos para - Administração é feita com recursos públicos e
possibilitar uma autoanálise rápida e há receita pequena e esporádica proveniente de
facilitada. Estes elementos estão estruturados exploração do potencial econômico do bem.
em um modelo de fácil compreensão da - Administração é feita com recursos públicos,
natureza das ações que se fazem necessárias mas há parcela considerável e segura de recursos
para a busca da obtenção dos resultados provenientes da exploração do potencial
desejados, tanto do ponto de vista da econômico do bem.
estrutura de governança mais adequada, - Administração é feita com recursos de origem
como da viabilização do potencial orçamentária, mas há contrato de gestão que prevê
econômico das fortificações: lucratividade da atividade.
- Administração é feita por meio de contratação Já a segunda estrutura de análise volta-se
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial

e a fonte de recursos provém da exploração do para a infraestrutura de gestão, caracterizada


a c i o n a l

potencial econômico do bem. a partir da necessidade de aditar às discussões,


no âmbito da oficina de candidatura
Realizadas essas análises, pode ser identifi-
do bem seriado, a compreensão do que
N

cada e classificada a gestão do bem em uma das


r t í s t i c o

significa o processo de candidatura e o que o


quatro possibilidades de enquadramento quan-
reconhecimento traz de desafios.
to ao nível de complexidade da governança e da
A

As profundas considerações trazidas,


sustentabilidade financeira, descritas a seguir.
e

nesse caso, forneceram a base desse modelo


i s t ó r i c o

i) Burocrática: quando a manutenção


de análise, por meio da consideração de três
e promoção do espaço depende do orçamento
elementos oriundos dos nove componentes
H

público e sua estrutura de governança é


que tipificam um sistema de Gestão do
a t r i m ô n i o

governamental;
Patrimônio Mundial (Unesco, Iphan &
ii) Negocial: quando a estrutura de
CLC, 2016).
governança é integralmente governamental,
P

Para cada um desses três elementos, foram


d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s

mas a receita advinda da exploração do


apresentadas variáveis a serem consideradas
e v i s t a

potencial econômico do bem atinge uma


em mais um processo de análise do gestor do
soma e previsibilidade que permite sua
R

bem patrimonial. São eles: estrutura legal,


inclusão na programação de manutenção e que define as razões para sua existência;
promoção do bem; estrutura institucional, que dá forma às
iii) Participativa: quando a estrutura de necessidades da organização e à sua tomada
governança possui participação de segmentos de decisões; e recursos, em sentido mais
da sociedade civil e/ou iniciativa privada, amplo, os meios de que se dispõe, além dos
mas há a integral dependência econômica apenas financeiros.
232 do orçamento público para a manutenção e A proposta feita a todos os participantes da
promoção do bem; e oficina de fortificações é descrever o status da
iv) Gestão Socioeconômica: quando a gestão da fortificação em cada uma das variá-
estrutura de governança possui participação veis constantes dos três elementos analisados.
de segmentos da sociedade civil e iniciativa Para tanto, são considerados dois critérios
privada que atuam na promoção do bem, de análise do processo de candidatura: a
cuja exploração do potencial econômico eficácia do processo de candidatura e a
permite a inclusão de recursos financeiros não sustentabilidade do reconhecimento. Nesse
governamentais na programação de suas ações. ponto, são explorados dois momentos
De acordo com o enquadramento do processo de candidatura. No primeiro
identificado, tem-se a opção de privilegiar instante, analisa-se a capacidade de obter o
uma trajetória que busque alcançar melhores reconhecimento como patrimônio mundial.
possibilidades de autonomia financeira, como Para isso, são necessárias várias medidas e
também maior participação de setores não são despendidos vários recursos, criada uma
governamentais na gestão do bem patrimonial. estrutura legal e institucional voltada para
essa finalidade. Todo esse processo pode ser Nesse caso, o processo de reconhecimento se

Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte


e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
feito de várias maneiras, culminando na deu em decorrência de esforços empreendidos

a c i o n a l
possibilidade ou não de reconhecimento. por uma unidade federada sobre o bem de
São necessários esforços concentrados para uma localidade que não detinha as condições
que seja possível reunir as condições de necessárias para o processo de reconhecimen-

N
r t í s t i c o
reconhecimento como patrimônio mundial to. Não havia, por exemplo, uma instituição
e não é sempre que isso é possível. Durante em nível local comprometida e apta para

A
a missão de avaliação do órgão consultivo alcançar essas condições, não havia a com-

e
da Convenção do Patrimônio Mundial, preensão por parte dos servidores públicos do

i s t ó r i c o
pode-se chegar à conclusão de que é possível que se faz necessário para a manutenção das
prosseguir com o processo de reconhecimento condições do reconhecimento e tampouco o

H
de candidatura ou de que vários elementos comprometimento da população com relação

a t r i m ô n i o
da candidatura devem ser revistos para que a esse processo.
seja possível prosseguir com o processo de Numa segunda situação, existem forças

P
candidatura; pode-se ainda constatar que o locais e forças exógenas sendo responsáveis

d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s
processo de candidatura não será exitoso, se pelo equilíbrio e manutenção dos atributos

e v i s t a
encaminhado para análise final do Comitê do bem. Apesar de ser aparentemente uma

R
do Patrimônio nas condições apresentadas. situação desejável, também aqui há uma
No entanto, havendo a compreensão de que instabilidade do ambiente em que se encontra
o processo de reconhecimento é plenamente o bem patrimonial, pois os esforços em
possível, avança-se para a análise da questão nível local são alocados e comprometidos
da sua sustentabilidade. Nesse caso, o que se apenas para que seja possível alcançar o
analisa são as condições existentes em nível reconhecimento. Equipes técnicas com
local para a manutenção do reconhecimento, servidores locais não são montadas e
233
ou seja, a manutenção e promoção dos estruturas representativas só foram criadas
atributos do bem. para atender à determinação da legislação,
Serão descritas a seguir três situações não havendo um real comprometimento da
acerca das condições mais ou menos elevadas população com o processo de candidatura e
de manutenção e promoção dos atributos do com os seus desdobramentos.
bem. Na primeira situação, o reconhecimento Na terceira situação, também é necessário
do bem se deve quase que exclusivamente a o esforço para a manutenção dos atributos
um processo exógeno (cujos recursos são to- do bem, entretanto, as instâncias de
dos de origem externa à unidade da federação participação são comprometidas, há um
que abriga o bem) que confere as condições instrumento legal que protege o bem, há uma
para tal manutenção. Entretanto, no mo- instituição voltada para a sua manutenção
mento em que esse esforço externo cessa, a e promoção e todo um corpo de servidores
tendência natural é de que o bem volte para com competência para geri-lo e há a inserção
uma condição em que não seria possível o seu do bem em propostas de desenvolvimento
reconhecimento como patrimônio mundial. econômico e social em nível local.
Em resumo, a análise da fortificação e de Esse exercício torna-se necessário porque
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial

seu entorno implica observar, entre outras, podem ser destacados alguns desafios para a
a c i o n a l

as condições de acesso; a conservação do gestão das fortificações, como a necessidade


bem; a sua localização, se insular, em área de dar ênfase ao reúso desses bens, pois a
rural ou urbana, e se com proximidade a maioria deixou de exercer a sua função ori-
N
r t í s t i c o

aglomerações subnormais; e a existência ou ginal; a elaboração de instrumentos técnicos,


não de áreas livres a serem exploradas nas propugnados pelo Iphan, que subsidiem e
A

imediações da fortificação. orientem a manutenção de suas estruturas


e

No caso do Projeto de Governo, se há físicas, como os estudos e pesquisas históricas


i s t ó r i c o

uma estratégia de desenvolvimento para a e arqueológicas para a geração de conheci-


região, estado ou município onde a fortifi- mento adicional ao disponível e os planos
H

cação se localiza e, ademais, como se insere de conservação para as intervenções a serem


a t r i m ô n i o

a microrregião em que o bem está localizado produzidas; o estabelecimento de um plano


em tal estratégia de desenvolvimento; como de negócios que favoreça a integração desses
P

nela se insere a cultura. Vale analisar também bens na região e localidades onde se assentam,
d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s

se existe a previsão de uma proposta para a a fim de conferir-lhes sustentabilidade e com-


e v i s t a

cultura, em geral, na microrregião, e para o petitividade enquanto atrativos turísticos; e


R

bem, em particular; e como se expressa essa o desenvolvimento de ações educativas para


estratégia de desenvolvimento no instrumen- (re)inseri-los e (re)incorporá-los ao conjunto
to de planejamento de médio prazo. simbólico de referências culturais da localida-
E, no âmbito da capacidade instalada, em de, região e país.
termos de Capacidade de Governo, se o tema Assim, a realização de uma análise do
da cultura possui uma unidade administrativa ambiente interno e externo é recomendada,
específica para o gerenciamento dessa política de modo que fique evidente, no contexto
234
pública; se há integração da cultura com específico de cada fortificação, o que se
outros temas da política pública no estado e/ modifica em cada modelo de gestão que
ou município (educação, turismo, urbanismo, venha a ser perseguido.
meio ambiente) e se essa integração se dá Esse exercício de enquadramento,
por meio de instrumentos de planejamento certamente, auxiliará quanto às possibilidades
que já fazem parte das diversas ações; se há e evidências de participação de modelos
discussões em estruturas formais organizadas essencialmente públicos, público-privados ou
em câmaras temáticas, fóruns por regiões de nitidamente privados, a serem fomentados
planejamento, reuniões técnicas informais e estimulados no desenvolvimento da
para solucionar problemas em áreas de candidatura e que poderá ser demarcado a
planejamento comuns, por uma atuação partir do gráfico esquemático ao lado.
em busca de soluções para casos concretos à Verifica-se, portanto, que, a partir das
medida que se apresentam ou por busca de descrições acima, o gráfico apresenta, no
articulação no momento em que ocorre o seu eixo vertical, a eficácia do processo
impacto no município.  de candidatura e, no seu eixo horizontal,
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s
e v i s t a
a sustentabilidade no reconhecimento, as condições mínimas para o reconhecimento
considerada a manutenção dos atributos do bem e sua manutenção. Caminhando pela

R
do bem. Com isso, há também quatro horizontal é possível alcançar outro gradiente,
localizações no gráfico representativas de que chamamos de “oportunidade” (represen-
situações possíveis, sendo que no caso tado por uma cor azul, cuja intensidade cresce
do processo de reconhecimento, em vez da origem para o fim do eixo horizontal),
de termos quadrantes estanques, temos pois, embora ainda não reúna todas as con-
gradientes em que é possível matizar a dições para o processo de reconhecimento,
situação identificada (as cores são mais fortes há uma série de variáveis que criam um am- 235
ou mais fracas de acordo com a maior ou biente saudável para o reconhecimento, como
menor intensidade dos fatores analisados, grande apropriação do bem pela população
denotando maiores ou menores possibilidades local, razoável produção de conhecimento
de garantir a manutenção e promoção dos sobre o bem patrimonial, corpo de servidores
atributos do bem). comprometidos com sua manutenção, feste-
O primeiro gradiente representa uma jos e outras manifestações locais que ocorrem
situação de baixa eficácia para o alcance do com plena utilização dos espaços do bem
reconhecimento do bem como patrimônio patrimonial. Enfim, há uma série de aspectos
mundial e um ambiente com baixa capaci- que poderão ser aproveitados para o processo
dade de sustentar condições favoráveis para de candidatura e constituem um ambiente
o êxito do esforço a ser empreendido. Essa bastante favorável para isso. Caminhando
situação, considerada como de “reconheci- pela vertical do gráfico, há baixas condições
mento improvável” (representada por um de sustentabilidade e elevada condição de que
vermelho uniforme) é aquela que não reúne o processo de candidatura seja bem-sucedido.
Podemos identificar essa situação, por exem- iii) Terceiro, em caso de busca de uma
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial

plo, em um caso hipotético em que todas as estrutura de governança mais participativa,


a c i o n a l

condições para o reconhecimento do bem a análise de possibilidades para a aplicação


foram obtidas por meio da forte atuação de de ações de educação patrimonial deverá
entes de outra unidade da federação diferente ser considerada.
N
r t í s t i c o

daquela que abriga o bem patrimonial. De- iv) Quarto, no caso de trabalhar o me-
vido às condições conferidas para o reconhe- lhor aproveitamento das potencialidades eco-
A

cimento serem altamente instáveis, essa si- nômicas da fortificação, será necessário que
e

tuação é considerada de “risco” (representada uma série de análises seja feita, partindo de
i s t ó r i c o

pela cor amarela, cuja intensidade cresce da duas linhas de verificação, a análise da fortifi-
origem para o fim do eixo vertical). Por fim, cação e seu entorno e a análise do Projeto de
H

o quarto gradiente é aquele em que se cons- Governo e de sua capacidade instalada.


a t r i m ô n i o

tata uma elevada reunião de condições para


o processo de candidatura, associado a um O c a s o d a F o r ta l e z a de
São José de Macapá
P

ambiente saudável para a sustentabilidade do


d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s

processo. Chamamos esse gradiente de “sus-


e v i s t a

tentável” (representado pela cor verde, tam- Inaugurada pelos portugueses em 19 de


R

bém em uma única intensidade, significando março de 1782, dia de São José, a Fortaleza
a possibilidade ampla de reconhecimento do de São José, localizada na cidade de Macapá,
bem como de sua manutenção como patri- capital do estado do Amapá, representa o
mônio mundial). marco da ocupação e delimitação do espaço de
Assim, no âmbito do desenvolvimento defesa da Amazônia, na foz do rio Amazonas,
da candidatura das fortificações brasileiras, em sua margem esquerda. Considerada uma
o exercício que está sendo produzido nessas das principais edificações militares do Brasil
236
oficinas vem permitindo uma análise com os e um dos mais importantes monumentos
atores envolvidos, a fim de: do século 18 do país, foi erguida diante da
i) Primeiro, fazer uma transposição perspectiva de uma invasão francesa.
para uma estrutura gráfica que apresentará Com um sistema que corresponde a um
as possibilidades de caracterização das duas quadrado com baluartes pentagonais nos
variáveis: governança e autonomia financeira. vértices, que receberam o nome de santos
Nesta caracterização será possível verificar católicos – Nossa Senhora da Conceição,
possibilidades de melhoria do posicionamento São José, São Pedro e Madre de Deus –,
da gestão da fortificação em si. alberga em seu interior uma praça rebaixada
ii) Segundo, verificar se as constituída de oito prédios, dispostos dois
possibilidades de melhoria encontram a dois, sendo um deles uma capela. Com
condições favoráveis para essa promoção um sistema de deságue das águas pluviais no
na estrutura de governança existente e/ou centro e nas laterais, possui do lado externo
no aproveitamento das possibilidades de um fosso seco que, no projeto original,
exploração econômica da fortificação. contornava a praça principal, e um revelim,
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
P
d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s
e v i s t a
R
construção avançada de forma angular com a É de se destacar, como aponta Castro
finalidade de defesa do conjunto amuralhado (2009:115), que a Fortaleza de São José
(Morim, 2014). de Macapá “tem uma característica que
Como historia Morim: a individualiza em nível nacional e, em
especial, no conjunto dos fortes amazônicos
Do período colonial ao Brasil Império, a 237
(...)” visto que “fortaleza, por definição, é
fortaleza foi ocupada por pelotões das guardas
portuguesa e imperial, mas com a proclamação da uma construção defensiva com obras externas
República, em novembro de 1889, a construção complementares. São José de Macapá é um
perde sua função principal e entra em uma caso clássico dentre essas poucas fortalezas,
situação de abandono total. O ostracismo durou pois foi instalada com uma série de posições
até 1946, quando lá se instalou o Comando da defensivas extramuros (...)”, tornando-a “a
Guarda Territorial no recém-criado Território mais defensável possível”.
Federal do Amapá. O local foi tombado pelo
Atualmente, de propriedade do governo
Instituto de Patrimônio Histórico Nacional –
federal e sob a gestão direta da Secretaria de
Iphan, em 22 de março de 1950. Nas décadas de
Estado da Cultura do Amapá, por meio da
1950 e 1960, suas instalações viraram estalagem
para famílias imigrantes que chegavam a Macapá, Fundação Museu Fortaleza de São José de
e, em outro momento, uma cadeia pública para os Macapá, criada para gerenciar e planejar a sua
presos sob vigilância da Guarda Territorial. Hoje, ocupação, é responsável pela administração
Vista aérea da
é um dos monumentos que definem a capital do da fortificação, que se constitui em espaço Fortaleza de São José,
Macapá (AP), s/d
Amapá (ibid.). de cultura e lazer para a cidade, e por sua Foto: Acervo Iphan.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

238
M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
preservação, decorrente do mencionado da Fecomercio, Exército, universidades
tombamento federal, como uma obra de e instituições da sociedade civil. Houve
arquitetura militar inscrita no Livro do considerável repercussão na imprensa local.
Tombo Histórico. A visita à fortificação, que antecedeu os
A oficina técnica referente à Fortaleza trabalhos da oficina, forneceu elementos para
de São José foi realizada em Macapá nos as discussões junto aos atores locais e permitiu
dias 11 e 12 de setembro de 2017 e resultou que o atual modelo de gestão desse bem Fortaleza de
São José,
de mobilização promovida com bastante protegido fosse consensualmente classificado Macapá (AP), 2017
Foto: Fernando Mesquita/
antecedência, inclusive com a realização de como burocrático. Acervo Iphan.

uma reunião preparatória para esclarecer os Com relação às discussões decorrentes


Planta do
atores locais quanto aos objetivos da oficina. da apresentação da estrutura analítica Forte de Macapá.
Henrique Antônio
Foram convidados representantes do poder do processo de candidatura, o equilíbrio Galluzzi, 1821
Acervo: Instituto Histórico
público municipal e estadual, representantes de pontos positivos e alguns problemas e Geográfico Brasileiro.
identificados levaram à consideração de que o - Seus espaços interiores podem ser mais
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial

estado atual da fortificação permite classificar bem explorados por meio de concessão
a c i o n a l

suas possibilidades em uma área localizada de uso;


entre oportunidade e risco, pois apresenta
- É possível programar eventos culturais
N

condições favoráveis para a candidatura, mas


nos amplos espaços internos da
r t í s t i c o

ainda faltam os elementos que permitiriam


fortificação, o que pode facilitar ainda
maior estabilidade ao processo.
mais a aproximação da população com
A

Das discussões em grupo, foram


relação à fortificação;
e
i s t ó r i c o

destacados os seguintes pontos negativos:


- O entorno da fortificação possui áreas
- O orçamento não exclusivo para a
para caminhadas na orla do rio Amazonas,
fortificação impede que se saiba quanto
H

um uso bastante favorável à preservação


a t r i m ô n i o

será investido na fortificação durante o


dos seus espaços; e
exercício;
- A fortificação é reconhecida como um
P

- A administração feita por uma única


d o

símbolo da cidade de Macapá e do estado


M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s

secretaria não favorece a criação de uma


e v i s t a

do Amapá.
estrutura intersetorial;
R

- Não há a previsão de se constituir uma Dos principais encaminhamentos


instância participativa para a gestão do definidos, destacam-se:
espaço da fortificação; e - Deve-se trabalhar para obter uma

- Alguns aspectos da fortificação fonte de recurso que permita o melhor

necessitam de maior atenção, tais como a planejamento e a melhor gestão

iluminação, a fiação aérea muito próxima, da fortificação;


240 a profusão de placas no comércio das - Buscar uma ação conjunta com outras
vizinhanças, falta de policiamento da área secretarias de governo pode ser o caminho
do bem e de seu entorno e de um plano para possibilitar uma atuação intersetorial
de acesso e atração do turista. para a gestão da fortificação;

Quanto aos pontos favoráveis e - Embora não tenha sido constituída


potencialidades para a gestão da fortificação, nenhuma estrutura durante a oficina, é
foram identificados: provável que o andamento das discussões
- Sua localização é extremamente leve à necessidade dessa constituição, até
adequada à visitação do turista que porque houve a compreensão de que ela é
se encontra em Macapá, pois situa- uma estrutura necessária para o processo
se no centro da cidade e à beira do de reconhecimento; e
rio Amazonas;
- Solucionar, junto às respectivas
- Seu estado de conservação é instâncias competentes, cada um desses
bastante razoável; pontos destacados.
O caso do Real Forte 1º Pelotão Especial da Fronteira – PEF,

Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte


e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
Príncipe da Beira formado pelos “Sentinelas do Guaporé”,

a c i o n a l
tendo sido, desde 2009, objeto de prospecção
Considerada a maior edificação militar arqueológica, por iniciativa do Iphan,
com vistas à requalificá-lo para visitação

N
portuguesa construída fora da Europa, no

r t í s t i c o
Brasil colonial, e fruto da política pombalina turística. Mais recentemente, o Instituto vem
de estabelecer limites com a Coroa espanhola empreendendo esforços com o objetivo de

A
na América do Sul, o Real Forte de Príncipe criar condições para favorecer a melhoria do

e
estado de conservação desse bem protegido

i s t ó r i c o
da Beira, em Costa Marques, no estado
de Rondônia, foi erguido em função dos desde 1950.
tratados firmados entre as duas coroas, entre A oficina técnica referente ao Real Forte

H
Príncipe da Beira foi realizada em Porto

a t r i m ô n i o
1750 e 1777. Inaugurado em 20 de agosto
de 1783 para consolidar a ocupação na região Velho nos dias 11 e 12 de julho de 2018,
disputada com os espanhóis, a fortificação é precedida de visita à fortificação, graças ao

P
atualmente ocupada pelas Forças Armadas, voo proporcionado pelo governo do estado.

d o

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s
A visita à fortificação permitiu verificar

e v i s t a
embora tenha ficado mais de 40 anos em
suas preocupantes condições de manutenção,
estado de completo abandono. Localizada às

R
o que certamente exigirá um trabalho intenso
margens do rio Guaporé, corresponde a um
de mobilização e investimento, a fim de
feito singular do engenho luso-brasileiro.
enfrentar os problemas existentes.
É importante destacar que, “no épico
O diálogo estabelecido com a equipe
trabalho de integração pelas fronteiras do
do pelotão do Exército sediado próximo à
Brasil, o Marechal Cândido Mariano Rondon
fortificação foi fundamental para conhecer
redescobriu o Forte Príncipe da Beira” e o fez
o amplo espectro de atividades que realiza
emergir da selva e reviver a “singular jornada 241
naquela área de fronteira.
dos bandeirantes nos confins do oeste, (...)
Para a realização da oficina com vistas à
eloquente testemunho de suas lutas pela posse
candidatura do componente do bem seriado,
da terra” (Nunes, 1985:300-301). Conforme
houve uma ampla ação de mobilização dos
expressa o autor,
atores locais. Na oficina foram apresentados
(...) o Forte Príncipe da Beira, no silêncio os conceitos relativos ao processo de
dos seus dias, revela a grandiosa lição de fé, de candidatura ao reconhecimento como
coragem moral, de inequívoca determinação e patrimônio mundial, as particularidades
de admirável amor à terra natal que legaram às
do processo de candidatura do bem seriado
presentes gerações seus intrépidos construtores.
Fortificações Brasileiras, os desafios da
Reminiscência de pedra, marco do passado, o
gestão da fortificação, em explanação
Forte Príncipe da Beira expressa a mensagem
feita pelo representante do Exército,
histórica de nossa formação nacional (ibid.:343).
a quem cabe sua gestão, seguida por
Hoje, sob a administração do Exército, apresentação sobre aspectos históricos e
o forte encontra-se em área do quartel do descritivos da fortificação, bem como sobre
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

242
M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial

Foto: Acervo Iphan.


da Beira, Costa Marques (RO), s/d
Vista aérea do Real Forte Príncipe
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
243

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte


e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
as ações a serem empreendidas visando - a construção do canteiro modelo em
Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte
e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial

sua conservação, mediante a instalação uma parceria Iphan com a Diretoria


a c i o n a l

do canteiro modelo, equipamento a ser de Patrimônio Histórico e Cultural do


instalado no local com o objetivo de ser Exército – DPHCEx.
utilizado como espaço multiuso.
N

Restaram definidos os principais


r t í s t i c o

Os trabalhos prosseguiram com as encaminhamentos:


apresentações dos dois modelos esquemáticos - Dar prosseguimento para a formalização
A

que tratam da gestão de fortificações, do Comitê Técnico;


e

destacando, no caso, o enquadramento da


i s t ó r i c o

- Planejar ações de educação patrimonial


sua gestão dentro do modelo burocrático e
nas escolas da proximidade da fortificação
ressaltando a inexistência de ações específicas
e do município de Costa Marques;
H

nos orçamentos dos governos estadual e


a t r i m ô n i o

- Identificar as potencialidades de
municipal para aplicação na fortificação.
turismo do município e das proximidades
Com relação ao esquema analítico do
da fortificação, para diversificar as
P

processo de candidatura, em decorrência das


d o

possibilidades de exploração;
M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s

condições de conservação da fortificação,


e v i s t a

houve uma tendência a classificá-la como - Buscar a aproximação com universidades


de Rondônia, em especial suas pró-reito-
R

dentro da área de fronteira entre risco e


oportunidade, apesar de considerar fatores rias de extensão ou unidades equivalentes,
positivos, como sua localização no interior para fomentar iniciativas de capacitação
da selva amazônica, sua beleza cênica e para a população do distrito de Príncipe
conservação do entorno da fortificação, livre da Beira e do município de Costa Mar-
de obstáculos construídos pelo homem, a ques, com a intenção de proporcionar
grandeza da construção (a maior fortificação possibilidades de melhor atendimento aos
244
dentre as dezenove) ou a importância que turistas que cheguem à região;

pode tomar em uma proposta de busca de - Buscar recursos a serem utilizados na


desenvolvimento para a região, notadamente gestão e conservação da fortificação, por
isolada e com predominância de população meio de parcerias e do estabelecimento
de baixa renda. de rubricas específicas nos orçamentos do
Diante das discussões realizadas estado e do município.
sobre as ações previstas e em curso para a
preparação, acondicionamento e apresentação E x p e c tat i va s pa r a a
do componente local do bem seriado, gestão em torno desse
cabe assinalar: reconhecimento
- A promoção de ações de educação
patrimonial para a melhor compreensão A ousada candidatura do bem seriado
e apropriação da fortificação por parte da Conjunto de Fortificações do Brasil, que
população local do município de Costa inclui duas na Região Norte do país,
Marques; e destaca-se no atual contexto institucional
do Iphan como um desafio sem precedentes, À coordenação desse processo, impõe-se

Os desafios do reconhecimento e da gestão do patrimônio cultural da Região Norte


e o caso da candidatura do Conjunto de Fortificações Brasileiras a patrimônio mundial
qual seja, o de promover, no processo de uma atuação audaciosa, com vistas a buscar

a c i o n a l
reconhecimento de bens culturais como as alternativas mais viáveis para fomentar
patrimônio mundial, a construção de
ou aperfeiçoar em cada local os mecanismos
um ideário interfederativo, de cogestão

N
e instrumentos de gestão que melhor

r t í s t i c o
entre agentes de diversos entes federativos
irmanados em função de um interesse atendam às necessidades particulares de cada

A
comum. O patrimônio serve, portanto, fortificação e do conjunto em si.

e
como elemento de união em torno de um

i s t ó r i c o
O desafio está posto. O tempo dirá!
mesmo objetivo, de uma compreensão
construída a partir da um somatório de
Referências

H
visões e elementos que devem dialogar e

a t r i m ô n i o
favorecer a dinamização socioeconômica
BRITO, Marcelo. Lista Indicativa brasileira do
e cultural das localidades onde se situam.
Patrimônio Mundial. Conceitos, critérios e desafios.

P
Como um bem seriado, deve expressar

d o
In: UNESCO; MINC; IPHAN. Patrimônio Mundial.

M a r c e l o B r i t o, S é rg i o Pa z M a ga l h ã e s
conexões culturais, sociais ou funcionais que

e v i s t a
Edição Especial. Patrimônio Mundial no Brasil. Paris, p.
ao longo do tempo podem ser identificadas, 82-85.

R
em que “cada componente deve contribuir CASTRO, Adler Homero F. Muralhas de pedra, canhões
para o Valor Universal Excepcional do de bronze, homens de ferro: fortificações do Brasil de 1504
bem como uma premissa cientificamente a 2006. Rio de Janeiro, Fundação Cultural do Exército
demonstrada, irretocável e compreensível, Brasileiro, 2009, p. 115.

podendo incluir, entre outras características, IPHAN. Lista Indicativa brasileira 2015. Patrimônio

atributos imateriais. O Valor Universal Cultural Mundial – Unesco. Brasília, 2015.

Excepcional identificado deve ser fácil de MINC; MTur; MD. Carta do Recife. Seminário
Internacional Fortificações Brasileiras – Patrimônio 245
compreender e comunicar” (Unesco, Iphan
Mundial. Recife, Forte das Cinco Pontas, 7 de abril de
& CLC, 2013:48), e há que evidenciar
2017.
total coerência e administrabilidade geral,
MORIM, Júlia. Fortaleza de São José de Macapá. Pesquisa
ainda que a proteção, conservação e gestão
escolar on-line, Fundação Joaquim Nabuco, Recife,
sejam mais complexas, porque diferentes
2014. Disponível em <http://basilio.fundaj.gov.br/
mecanismos podem se aplicar a cada
pesquisaescolar/>. Acessado em 4 ago.2018.
componente distinto, exigindo, portanto,
NUNES, José Maria de Souza. Real Forte Príncipe da
uma gestão coordenada dos componentes
Beira. Rio de Janeiro: Spala Editora/Fundação Emílio
que o integram. Odebrecht, 1985, p. 300-301.
O exercício que ora se realiza busca
UNESCO; IPHAN; CLC. Preparação de Candidaturas
uma equalização entre as estruturas locais para o Patrimônio Mundial. Série Manual de Referência
estabelecidas para a candidatura, a fim de que do Patrimônio Mundial. Brasília, 2013, p. 17, 48 e 58.
sejam funcionais e efetivas e não guardem UNESCO; IPHAN; CLC. Gestão do Patrimônio Mundial
grandes diferenças quanto aos respectivos Cultural. Série Manuais de Referência para o Patrimônio
graus de organização. da Humanidade. Brasília, 2016.
Mariana Petry Cabral, Daiane Pereira, Marcia Bezerra

a c i o n a l
P atrimônio arqueológico da A mazônia :
a pesquisa , a gestão e as pessoas *

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Introdução do Estado, ainda que tenhamos uma ampla
capacidade de escolhas e definições no
Neste artigo, nós partimos da análise de desenrolar dos projetos.

P
O que temos observado nas últimas

d o
dados atualizados do Instituto do Patrimônio

e v i s t a
Histórico e Artístico Nacional – Iphan, décadas é um contínuo aprimoramento, por
referentes ao patrimônio arqueológico na parte do Estado Nacional, dos instrumentos

R
Região Norte do país, para refletir sobre os de fiscalização, controle e proteção do
desafios de pensarmos a pesquisa e a gestão patrimônio arqueológico. De maneira
de modo conjunto. Nós estamos entendendo, complementar, também observamos o
portanto, que ambas são complementares fortalecimento profissional da arqueologia,
e estão profundamente entrelaçadas. Neste que ampliou seus quadros de modo muito
sentido, não podemos pensar gestão sem significativo, seja por meio de cursos de
pesquisa, nem tampouco pesquisa sem gestão. graduação e pós-graduação, seja pelo 247
Para entendermos as possibilidades aumento de setores de pesquisa arqueológica
deste entrelaçamento, vamos primeiramente em instituições públicas e privadas por todo
mapear os elementos oficiais que guiam
o país. As reflexões sobre esse crescimento
nossas atividades como arqueólogas. Desde
acelerado da arqueologia no Brasil têm se
a promulgação da Lei Federal nº 3.924,
voltado tanto para o ensino (por exemplo,
de 26 de julho de 1961, a chamada Lei da
Bezerra, 2008; Viana, Bezerra & Eremites de
Arqueologia, vigora no Brasil uma posição
Oliveira 2014), quanto para outros aspectos
muito explícita sobre o lugar central que
da nossa prática profissional, com ênfase Na Amazônia, as
o Poder Público ocupa em relação a todo coleções cerâmicas
na arqueologia preventiva (por exemplo, têm muitos vasos
e qualquer vestígio arqueológico do país, inteiros, criando
Zanettini, 2009; Wichers, 2010; Zarankin & desafios específicos
cabendo a ele sua guarda e proteção. A para a salvaguarda
Pellini, 2012). e a comunicação.
pesquisa arqueológica no território nacional, Reserva Técnica
do Laboratório de
portanto, é regida por essa relação de tutela Para desenvolver as reflexões que Arqueologia Peter
Hilbert, IEPA,
apresentamos neste artigo, tomamos como Macapá (AP)
Foto: Daiane Pereira,
*Texto editado e revisado pelas autoras. base um conjunto de dados disponibilizados 2008.
pelo Iphan, abarcando o Cadastro Nacional nossas pesquisas e seus entornos, tornando os
Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas

de Sítios Arqueológicos – CNSA, a lista movimentos de socialização e aproximação


a c i o n a l

de instituições de guarda da Região Norte etapas fundamentais das pesquisas. Neste


registradas no Cadastro Nacional das sentido, propomos pensar neste artigo os
desafios que essas relações trazem para a
N

Instituições de Guarda e Pesquisa – CNIGP,


r t í s t i c o

e as autorizações de pesquisa arqueológica pesquisa e para a gestão, o que tem mobilizado


na Região Norte concedidas no período de nossas pesquisas e práticas na Amazônia.
A

1997 a 2017. Buscamos analisar esses dados Para estruturar essa discussão, buscamos
e

identificar, por meio da análise de dados do


i s t ó r i c o

em conexão com nossas próprias experiências


M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a

de pesquisa na Amazônia, assim como em Iphan, tendências de mudança que a pesquisa


diálogo com debates contemporâneos de e a gestão arqueológicas na Região Norte
H

têm seguido nas últimas duas décadas (1997-


a t r i m ô n i o

colegas envolvidos com a arqueologia na


Região Norte. Nosso intuito é refletir sobre 2017). Ao nos debruçarmos sobre esses dados,
desafios que se colocam não apenas para a procuramos contextualizá-los historicamente,
P

preservação do patrimônio arqueológico relacionando-os a transformações e


d o

dessa imensa região, mas também para a desenvolvimentos nas políticas públicas. De
e v i s t a

construção de narrativas sobre o passado, que modo complementar, buscamos usar esses
R

envolvem diretamente nossas percepções de dados para pensar alguns dos desafios que se
presente e de futuro1 para a Amazônia e para colocam no contemporâneo.
as populações que residem na região. O que Entendendo as coleções arqueológicas

almejamos com isso é expressar inquietações como elemento central de pesquisa e gestão
desse patrimônio, esboçamos algumas reflexões
que têm acompanhado nossas trajetórias de
sobre os caminhos que estão sendo percorridos
pesquisa e que apontam para a diversidade de
no debate contemporâneo sobre acervos
248 possibilidades que o patrimônio arqueológico
arqueológicos no Brasil e as particularidades
da Amazônia têm como materialidade no
que a Região Norte traz para essa discussão.
presente. Essa materialidade atinge não apenas
Complementarmente, avançamos em reflexões
pessoas diretamente ligadas à pesquisa, mas
sobre a aproximação de diversos coletivos
também os diversos coletivos humanos que
com o “arqueológico”, o que necessariamente
se entrelaçam com os materiais que nós nos
nos leva a rever não apenas nossas práticas,
acostumamos a chamar de “arqueológicos”
mas também os instrumentos legais e formais
(Bezerra, 2017; Cabral, 2013). De certo
que orientam nossa atuação. Essas reflexões
modo, temos entendido que um dos
apontam para uma série de descompassos, por
elementos pulsantes da arqueologia na Região
exemplo: entre pesquisadores e gestores; entre
Norte do Brasil, especialmente na Amazônia,
cientistas e outros interessados; entre a prática
é seu potencial de interação e diálogo com
e a legislação. Encarar tais descompassos e
os múltiplos coletivos humanos que povoam
construir pontes entre múltiplas perspectivas,
buscando ampliar e diversificar a arena de
1. Ver Holtorf (2012) e Harrison (2016) sobre discussões a
respeito da construção de futuros e a prática arqueológica. conversas, é um grande desafio. Este artigo
não pretende resolvê-lo, mas busca evidenciá- começaram a se fortalecer e ganhar mais

Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:


a pesquisa, a gestão e as pessoas
lo, como um modo de contribuir para que o espaço, servindo como instituições de apoio

a c i o n a l
patrimônio arqueológico da Amazônia se torne nas Portarias de Pesquisa do Iphan. Até então,
de fato um bem cultural compartilhado pelas o Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG
pessoas – muitas e diversas – da Amazônia. era a única instituição de guarda da Amazônia

Nr t í s t i c o
listada como Apoio Institucional, situação
Um pa n o r a m a d a que nos mostra um dos desafios no processo
Região

A
arqueologia na de aproximação das pessoas da Amazônia com

e
N o r t e a pa r t i r d o s d a d o s o patrimônio arqueológico: muitas coleções já

i s t ó r i c o
do Iphan (1997–2017)

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
não estão na região.
Seguindo os dados do Iphan referentes

H
A Amazônia atrai a atenção da pesquisa às autorizações de pesquisa nos últimos vinte

a t r i m ô n i o
em arqueologia desde o final do século 19, anos (1997-2017), é possível vislumbrar a
com uma série de expedições científicas ocorrência de algumas mudanças recentes.

P
e o início da construção de acervos Observamos que no período em questão

d o
institucionais (Barreto, 1999-2000). No foram emitidas 747 portarias, as quais

e v i s t a
entanto, é interessante observar que apenas receberam Apoio Institucional de quarenta

R
recentemente, a partir de 2002, instituições instituições sediadas na Região Norte e
de guarda sediadas na Região Norte de 35 instituições sediadas em estados das

249

Pavilhão Domingos
Soares Ferreira
Penna, denominado
“Rocinha”, no Parque
Zoobotânico do
Museu Paraense
Emílio Goeldi.
Neg. vidro, 1905
Foto: Arquivo Guilherme
de La Penha/ Coleção
Fotográfica/MPEG.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

250
M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
251

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:

Foto: Maurício de Paiva.


Macapá (AP), 2010
Campus da Unifap,
Arqueológico AP-MA-05:
Equipe do Iepa escava Sítio
patrimônio arqueológico.
entendimentos sobre o
têm ampliado nossos
Escavações arqueológicas
a pesquisa, a gestão e as pessoas
Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

outras quatro regiões do país (Centro-Oeste, Outro elemento que chamou nossa
Nordeste, Sudeste e Sul). Destas portarias, atenção na análise dos dados relativos
cerca de 75% (574) receberam apoio de às portarias do Iphan, e que pode ser
instituições da Região Norte, o que mostra contrastado com dados do CNSA para o
252 um fortalecimento das organizações locais. mesmo período, se refere às pessoas que
Ao observar esses dados na distribuição
estão à frente das pesquisas na Região Norte.
anual, nota-se um contínuo aumento da
Os dados sobre as portarias mostram 160
participação de instituições do Norte a
arqueólogos e arqueólogas coordenadores de
partir de 2003, ainda que instituições de
projetos, sendo cerca de 57% com nomes
outras regiões continuem atuando até o
masculinos2. Para o mesmo período, temos
presente. Considerando que a pesquisa e a
112 pessoas listadas como responsáveis
gestão do patrimônio têm relação estreita
com os acervos arqueológicos gerados, e
2. Os dados disponibilizados pelo Iphan não apresentam
Laboratório no prédio que o fortalecimento de relações entre este identificação de gênero, mas de modo exploratório optamos por
hoje denominado fazer uma distinção a partir dos nomes das pessoas, ainda que
Emília Snetlhage, no patrimônio e a sociedade tem nas coleções cientes das falhas que tal divisão possa acarretar. Estamos também
Parque Zoobotânico
cientes das limitações que a divisão binária de gênero produz,
do Museu Paraense um espaço privilegiado de atuação, o fato mas optamos explorar estes dados a fim de incentivar reflexões
Emílio Goeldi, onde
atualmente funciona de portarias de pesquisa continuarem a ser neste caminho. Sugerimos que análises mais cuidadosas com um
a Diretoria do MPEG. viés de gênero têm um forte potencial para gerar reflexões sobre
Neg. vidro, [1904?]
Foto: Arquivo Guilherme
emitidas para outras regiões do país deve ser esses dados, seguindo discussões recentes que voltaram a florescer
de La Penha/ Coleção na arqueologia brasileira (Ribeiro et al, 2017; Ribeiro, 2017;
Fotográfica/MPEG. olhado com cautela. Caromano et al, 2017; Sene et al, 2018).
pelo registro de sítios arqueológico no enfoque da distribuição sexual do trabalho

Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:


a pesquisa, a gestão e as pessoas
CNSA, sendo 58% com nomes masculinos, (Gero, 1994), em que a atuação feminina

a c i o n a l
resultado muito similar ao das portarias. fica mais evidente em atividades de gabinete
Esses dados também podem ser analisados ou laboratório. No entanto, esta é uma
considerando a quantidade de portarias e possibilidade que requer um refinamento

Nr t í s t i c o
de sítios arqueológicos listados para cada nas análises, inclusive com o cruzamento dos
pessoa, já que uma pessoa pode ter muitas nomes de responsáveis pela coordenação de

A
portarias em seu nome ou ser responsável projeto e de responsáveis pelo registro dos

e
pelo registro de diversos sítios arqueológicos. sítios. Uma comparação rápida que fizemos

i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
É interessante observar que, no que se entre as dez pessoas com maior quantidade
refere à quantidade de sítios arqueológicos de portarias e de registros de sítios mostra

H
registrados por pessoa, há um pequeno que apenas cinco pessoas aparecem nas duas

a t r i m ô n i o
aumento da participação das pessoas com listas, um possível indício de que a tarefa de
nomes femininos, responsáveis por quase registro dos sítios nem sempre é realizada

P
metade do total de sítios registrados. por quem coordena o projeto.

d o
Na tabela a seguir, apresentamos esses Outro aspecto que pudemos observar

e v i s t a
dados sintetizados.3 nos dados do Iphan diz respeito ao espaço
Como um exercício exploratório na ocupado hoje pela arqueologia preventiva na

R
perspectiva de gênero, esses dados nos Região Norte. Das 747 portarias emitidas
ajudam a compor uma cena já explorada por no período de estudo, 647 (quase 90%)
outras pesquisadoras, na qual se destaca a estão vinculadas a projetos de arqueologia
forte presença de mulheres na arqueologia preventiva, refletindo uma tendência que
brasileira (Ribeiro et al 2017; Caromano vemos ocorrer em todo o país (Zanettini,
et al, 2017). A alteração observada na 2009; Zarankin & Pellini, 2012). Ainda
participação das pessoas com nomes assim, vale salientar que 11% das portarias 253

femininos no registro de sítios arqueológicos referem-se a projetos acadêmicos, um número


(com um aumento beirando 50% dos animador considerando-se um contexto
registros) poderia ser pensada a partir de um em que a arqueologia preventiva parecia

Distribuição percentual de
Responsável pela Responsável pelo Quantidade Quantidade portarias e registros de
coordenação de registro de sítio de portarias de sítios sítios arqueológicos de
acordo com o nome de
projeto arqueológico emitidas registrados responsáveis.
Base: dados do Iphan/2018.
Pessoas 57% 58% 60% 51,5%
com nomes
masculinos
Pessoas 43% 42% 40% 48,5%
com nomes
femininos
Total 160 pessoas 112 pessoas 747 portarias 2.828 sítios

3. Observe a nota anterior.


Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

254
Natureza do Projeto
1% 1%

Os megalitos de Calçoene
(AP): expressão da
11%
diversidade cultural
indígena desde a
Antiguidade. Sítio
Arqueológico AP-CA-18: Arqueologia
Rego Grande 1,
Calçoene (AP), 2010 Preventiva
Foto: Mariana Cabral/Iepa.

Arqueologia
Acadêmica

Gráfico 1: Distribuição das Intervenção em bem


portarias de autorização do 87% protegido
Iphan segundo a natureza
do projeto.
Base: dados do Iphan/2018. N.A.
dominar todo espectro de pesquisa. No houve também a criação ou fortalecimento

Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:


a pesquisa, a gestão e as pessoas
gráfico ao lado, apresentamos estes dados. de instituições com área de pesquisa em

a c i o n a l
Vale salientar que, no período em arqueologia, como é o caso do Instituto
análise, a Amazônia teve um significativo de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do
aumento no número de arqueólogos e Estado do Amapá – Iepa, em que duas de

N
r t í s t i c o
arqueólogas residentes, fortalecendo, nós atuamos por vários anos, e que provocou
portanto, instituições e grupos de pesquisa. mudanças substantivas na dinâmica da

A
Faz parte desse movimento a criação de pesquisa arqueológica no estado do Amapá

e
cursos de graduação ou pós-graduação nos (Saldanha & Cabral, 2012).

i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
estados do Pará (Universidade Federal do A ampliação da pesquisa arqueológica
Pará – UFPA e Universidade Federal do na Região Norte pode ser observada

H
Oeste do Pará – UFOPA), do Amazonas não apenas no aumento de portarias

a t r i m ô n i o
(Universidade do Estado do Amazonas de pesquisa emitidas pelo Iphan, mas
– UEA) e de Rondônia (Universidade também no aumento do número de sítios

P
Federal de Rondônia – UNIR), ampliando arqueológicos registrados. Nos gráficos a

d o
– potencialmente – as oportunidades de seguir, apresentamos esses dois conjuntos

e v i s t a
pesquisa acadêmica. Associado a isso, de dados.

R
255

Jovens professores Tiriyó


conversam sobre as
gravuras rupestres no seu
território, mostrando que o
conhecimento sobre sítios
arqueológicos é partilhado
por diferentes coletivos na
Amazônia. Terra Indígena
Parque do Tumucumaque (PA),
2009
Foto: Mariana Cabral.
Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a
R

256

Gráficos 2 e 3: Relação Nos gráficos podemos ver que, enquanto pode estar relacionado com a realização
quantitativa de portarias
emitidas4 e sítios o número de portarias apresenta uma de projetos em grandes áreas. Além disso,
arqueológicos registrados
anualmente. tendência mais homogênea de crescimento temos que considerar que o Iphan buscou
Base: dados do Iphan/2018.

(formando uma curva mais contínua), o aprimorar seus instrumentos de controle e


registro de sítios arqueológicos tem um fiscalização ao longo dos anos, especialmente
movimento um pouco diferente: ainda para a pesquisa ligada ao licenciamento
4. A emissão de portarias
está registrada de acordo que aponte para um crescimento de 2004 ambiental. Com isso, projetos que antes
com a Superintendência
em que o processo foi
a 2013, há um contínuo decréscimo de poderiam ser realizados através de uma
registrado. É importante registros a partir de 2014. É interessante única portaria de autorização hoje requerem
observar que, na Região
Norte, até 2004, só havia observar que certo boom no registro de diferentes etapas de controle, resultando
Superintendência do
Iphan nos estados do sítios arqueológicos ocorrido na virada em um aumento de portarias emitidas.
Amazonas (1987) e Pará
(1992). A partir de 2009, para o século 21 não é acompanhado por É óbvio, no entanto, que o aumento
todos estados da região
passaram a sediá-las. uma maior quantidade de portarias, o que explosivo de emissão de portarias de
pesquisa, especialmente a partir de 2008, Coleções

Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:


a pesquisa, a gestão e as pessoas
arqueológicas
tem relação direta com o aumento real de e os desafios da gestão

a c i o n a l
empreendimentos no país, impulsionando
a arqueologia preventiva. Vale lembrar que Nas últimas décadas, a confluência de
2007 é o ano de lançamento do Programa

N
diversos processos modificou a forma como a

r t í s t i c o
de Aceleração de Crescimento – PAC do disciplina arqueológica e os vestígios materiais
Governo Federal, com financiamento de adquirem significância no presente (Salerno,

A
empreendimentos em todo país. 2012:192). O patrimônio arqueológico

e
A partir de um olhar ainda bastante

i s t ó r i c o
deixou de ser exclusivamente uma fonte de

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
focado nos dados quantitativos, há outro estudo das sociedades, para ser também um
aspecto singular no comparativo entre os aprofundamento da nossa compreensão sobre

H
dois conjuntos de dados representados nos

a t r i m ô n i o
a relação destes patrimônios na atualidade.
gráficos. Nos últimos anos, em especial a Nessa relação, as coleções arqueológicas
partir de 2015, parece haver uma inversão correspondem à acumulação da materialidade

P
entre o número de portarias emitidas (Brefe,1998: 286), e os desafios de sua gestão

d o
e a quantidade de sítios arqueológicos ultrapassam a nossa responsabilidade com

e v i s t a
registrados. Seria isto um reflexo da mudança sua conservação física e informacional e

R
mais recente dos trâmites no Iphan para o vão em direção a um conjunto de ações e
licenciamento ambiental, com a emissão da posicionamentos relativos ao que acreditamos
Instrução Normativa nº 001, de 25 de março ser o papel social da arqueologia.
de 2015, que refinou etapas de pesquisa e O amplo conjunto de ações que integram
tipos de empreendimento? Mesmo que essa a gestão das coleções arqueológicas compõe
seja uma possibilidade, ela não explica o a cadeia operatória da museologia e a cadeia
motivo da evidente queda na quantidade de produtiva da arqueologia (Wichers, 2010).
257
sítios registrados. Um dos seus principais desafios é congregar
Estes dados nos mostram que devemos diferentes campos do conhecimento, saberes
ser cuidadosas ao estabelecer qualquer tradicionais, coletivos humanos e profissionais
relação direta entre a quantidade de portarias aos quais as coleções arqueológicas envolvem.
emitidas e seus resultados práticos na Diante de tais desafios, a inserção dessa
identificação do patrimônio arqueológico, temática associada à análise de um panorama
pois nem sempre esses dois mecanismos estão geral do patrimônio arqueológico da Região
associados. Neste sentido, para pensarmos os Norte, aqui apresentada, é um movimento de
desafios da preservação desse patrimônio é valorização da gestão das coleções enquanto
preciso avançarmos também em observações área de pesquisa no âmbito da arqueologia,
qualitativas, fazendo uso de nossas e uma oportunidade para refletirmos sobre
experiências na Amazônia para seguir nesse características e pautas comuns da região.
apontamento de caminhos possíveis para Um caminho que acreditamos essencial
pesquisa e gestão do patrimônio arqueológico para avançarmos nos processos de gestões
na Região Norte. colaborativas dos patrimônios arqueológicos.
Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
H
a t r i m ô n i o
P
d o

Acompanhando o ritmo da arqueologia O mesmo ocorreu na Região Norte, uma


e v i s t a

brasileira, as coleções arqueológicas das pioneiras nos estudos arqueológicos e


apresentaram nas últimas décadas um na guarda de coleções arqueológicas no país,
R

crescimento acentuado (Bruno & Zanettini, com a criação do Museu Paraense em 1866.
2007:02). A quantidade de material Embora pesquisas arqueológicas estivessem
arqueológico armazenado nas instituições de sendo realizadas desde o século 19 na
guarda e pesquisa aumenta em grande escala, Amazônia brasileira, são escassos os registros
em um descompasso com os investimentos de como e onde os acervos gerados estavam
em melhorias estruturais, capacitação de sendo guardados, talvez com a única exceção
258
recursos humanos, pesquisas especializadas e do Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG.
comunicação das coleções. Vemos documentadas ações preambulares
A aceleração do crescimento das coleções de salvaguarda das coleções arqueológicas
evidenciou a desvalorização e as lacunas apenas a partir de 1956, com a criação de um
da gestão das coleções arqueológicas, “depósito das coleções” no MPEG, separado
fenômeno mundial conhecido como das áreas expositivas (Barreto, 1992: 234). O
“crise dos acervos” (Voss, 2012:145). que podemos afirmar é que, de modo geral,
Ao analisar a trajetória da disciplina essas coleções estavam se constituindo na
arqueológica no país e de suas coleções, é forma de enciclopédia classificatória, com
possível perceber como se consolidou uma materiais oriundos em grande parte de coletas
concepção antiquarista sobre as coleções e assistemáticas, sem uma maior reflexão sobre
espaços de guarda, com a predominância sua utilização social (Bruno, 1999: 82).
de características depositárias e de uma Para melhor contextualizarmos as coleções
institucionalização dos acervos voltada para arqueológicas salvaguardadas na Região
os pares arqueológicos. Norte, precisamos lembrar que se trata da
Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas
N
Aa c i o n a l
r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
H
Pa t r i m ô n i o
d o
maior região do país, ocupando cerca de de 2002 outras instituições da região iriam

e v i s t a
45% do território nacional. Mesmo com sua aparecer como instituição de apoio nas
ampla extensão e potencial arqueológico, portarias do Iphan.

R
até duas décadas atrás ainda eram poucas A partir da primeira década do século
as instituições de pesquisa e formação de 21, em correspondência com o aumento
profissionais de arqueologia na região. A das pesquisas arqueológicas ligadas ao
grande distância entre os locais de origem licenciamento ambiental, vemos mais
dos vestígios e os de guarda, muitas vezes instituições de guarda da Região Norte
fora da Região Norte, impunha dificuldades aparecerem na relação de autorizações.
259
para a gestão das coleções no que tange às Analisando as portarias de autorização de
salvaguardas e comunicações. pesquisa no período de estudos, quarenta
Durante quase todo o século 20, instituições de guarda da Região Norte são
coleções arqueológicas foram levadas para identificadas. Todavia, podemos perceber que
fora da Região Norte, sendo guardadas em há uma ausência de padronização: nomes
instituições de outras regiões por profissionais distintos são dados à mesma instituição,
que desenvolviam pesquisas na Amazônia o que pode ter ocorrido pela alteração
Reserva Técnica
brasileira, mas estavam vinculados a entidades dos nomes no decorrer dos anos ou pela do Laboratório de
Arqueologia Peter
acadêmicas e científicas de diferentes lugares existência de subdivisões de departamentos Hilbert, Iepa, Macapá
(AP). No Núcleo de
do país. Segundo os dados fornecidos pelo em uma mesma instituição. Pesquisa Arqueológica
do Iepa, em Macapá,
Iphan sobre as portarias de autorização de Atualmente, com políticas nacionais de a reserva técnica
de arqueologia foi
projetada para ser
pesquisa de 1997 a 2017, até 2001 a única patrimônio cultural e arqueológico mais visível para visitantes,
através de uma ampla
instituição de guarda da Região Norte a consolidadas, e com o fortalecimento da parede de vidro,
ampliando o contato
figurar como Apoio Institucional foi o própria disciplina arqueológica no país, o com o patrimônio
arqueológico sob guarda
MPEG. Como já destacado, apenas a partir panorama é distinto. Foto: Daniel Nec/Iepa, 2012.
A partir de 2014, com a criação quinze como aptas em processo de fiscalização
Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas

do Programa de Fiscalização do Iphan, e nove como aptas. Deste conjunto,


a c i o n a l

foi instituído o Cadastro Nacional das nos estados do Acre e de Roraima todas
Instituições de Guarda e Pesquisa (CNIGP). instituições estão inaptas, o que nos serve
Estabelecido pela Portaria Iphan nº 196, como um alerta sobre as condições de
N
r t í s t i c o

de 18 de maio de 2016, o cadastro é ampliação de acervos. Também é importante


composto pelas instituições que concederam ressaltar que mais da metade das instituições
A

endossos de pesquisa e por aquelas que cadastradas (54%) está ainda em processo
e

pretendem fazê-lo. As instituições devem de fiscalização, o que pode alterar as


i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a

passar por um processo de fiscalização condições de guarda na Região Norte nos


pelas Superintendências do Iphan, que as próximos anos. Como este é um processo em
H

classificam como aptas ou inaptas, de acordo implementação, ele está sendo alimentado e
a t r i m ô n i o

com os critérios estabelecidos na Portaria alterado com grande velocidade, de acordo


Iphan nº 196/2016 para a conservação de com os acompanhamentos do Iphan.
P

bens arqueológicos móveis. As fiscalizações Embora seja um movimento recente e


d o

devem ser realizadas periodicamente pelo em processo de efetivação, os avanços nas


e v i s t a

Iphan, com o objetivo de avaliar as condições políticas públicas direcionadas à guarda


de guarda dos bens arqueológicos. do patrimônio arqueológico estimulam
R

Até o momento, 28 instituições de guarda a discussão sobre a gestão dos acervos


da Região Norte constam no CNIGP. arqueológicos em outros âmbitos. Um deles
O gráfico a seguir mostra a distribuição dessas é o da consolidação da gestão das coleções
instituições por estado. como campo de pesquisa e a especialização de
De acordo com o CNIGP, das 28 profissionais nessa área.
instituições registradas na Região Norte, Como desafio, enfrentamos a decalagem
260 quatro estão classificadas como inaptas, entre os direcionamentos teóricos atuais da

Gráfico 4: Instituições de
guarda da Região Norte
de acordo com o Cadastro
Nacional das Instituições de
Guarda e Pesquisa – CNIGP.
Base: dados do Iphan/2018.
arqueologia e as práticas museológico-curato- A gestão das coleções arqueológicas no

Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:


a pesquisa, a gestão e as pessoas
riais predominantes. Aos critérios estabeleci- Norte do país denota a compreensão da

a c i o n a l
dos pelas políticas públicas para a conservação região e de suas singularidades. A Amazônia
do patrimônio arqueológico salvaguardado possui contextos arqueológicos vastos, com
é necessário somar um amadurecimento de enorme quantidade de vestígios, muitas vezes

N
r t í s t i c o
profissionais e instituições de guarda, de de grandes dimensões. Além da diversidade
modo que os anseios atuais da sociedade rela- da materialidade, da amplitude territorial,

A
tivos ao patrimônio possam ser atendidos. A a região possui uma rica multiplicidade

e
constatação desse descompasso precisa gerar cultural, com grupos indígenas, quilombolas

i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
uma reflexão capaz de motivar alterações e ribeirinhos que possuem diferentes relações
profundas no modo como entendemos, inte- com o patrimônio arqueológico, incluindo

H
gramos e realizamos a gestão do patrimônio práticas coletivas e pessoais de formação de

a t r i m ô n i o
arqueológico passível de salvaguarda. coleções (por exemplo, Bezerra, 2012; Rocha
Historicamente, a salvaguarda das et al, 2014).

P
coleções arqueológicas vem recebendo Ao propormos uma reflexão sobre a

d o
atenção diminuta ou de caráter desconexo gestão das coleções arqueológicas no nível

e v i s t a
com as demais discussões da disciplina. O regional, nosso objetivo é nos aproximarmos

R
fortalecimento das pesquisas sobre a gestão e avançarmos na compreensão de suas
dos acervos em outros campos (Ladkin, 2004) singularidades, e não a uniformização
e a diversidade de percepções e anseios atuais de práticas. A disciplina arqueológica
sobre o patrimônio arqueológico brasileiro frequentemente se apoia em uma narrativa
impulsionam a busca de novos caminhos de tecnológica e linear, reproduzindo um
interpretações e práticas. campo científico que emergiu de antigas
Quando pensamos esses desafios no nível práticas de antiquário (Hamilakis &
261
regional, as peculiaridades apontam também Anagnostopoulos, 2009: 71). Na gestão dos
para um movimento que perceba criticamen- acervos, considerando a retirada da cultura
te a roteirização das ações museológicas-cu- material de comunidades e a inacessibilidade
ratoriais dos acervos, respeitando seus con- da população ao patrimônio sob guarda das
textos, biografias, relações e potencialidades. instituições, temos que nos indagar como
Segundo Alejandro Haber (2011), é preciso essas ações estão sendo realizadas, e se de
desmistificar a objetividade dos objetos e alguma forma não estamos intensificando e
considerá-los sujeitos com biografias distintas, reproduzindo violências epistêmicas contra
entendendo que interpretar objetos, sujeitos e sociedades e suas formas de contar suas
paisagens é refletir sobre suas relações fluidas próprias histórias (Gnecco, 2009) e gerir seus
e heterogêneas no tempo. Desse ponto de patrimônios arqueológicos. Nesse sentido, os
vista, a gestão padronizada das coleções, por locais de salvaguarda das coleções, por serem
meio de procedimentos estagnados e homo- espaços e mecanismos essenciais na gestão
gêneos, deve ser questionada por nós, profis- do patrimônio arqueológico (Pereira, 2015),
sionais da arqueologia. tornam-se elementos cruciais na reflexão
Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas
acerca do trato dos coletivos humanos com da Sociedade de Arqueologia Brasileira – GT
as coleções arqueológicas, assim como dos Acervos da SAB. Entre essas ações, podemos
a c i o n a l

desafios da prática e gestão arqueológica. destacar a realização do I Encontro de Ingres-


Como a realidade mostra, a guarda dos so de Acervos Arqueológicos em Instituições
N

acervos em instituições não garante que de Guarda (2016), I Fórum de Arqueologia


r t í s t i c o

as coleções passem pelas ações necessárias da SAB Acervos Arqueológicos (2017),


para sua preservação. Compreendemos Fórum Remaae & GT Acervos da SAB
A

preservação no sentido amplo do termo, (2018), além de simpósios e reuniões que


e

como um conjunto de ações necessárias vêm acontecendo nos eventos de arqueologia


i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a

para a preservação não somente física dos e museologia tanto nacionais como regionais.
objetos, mas também informacional e social Essa mobilização já trouxe como resultado
H

(Desvallées & Mairesse, 2013: 79; Wichers, o fortalecimento das discussões e ações,
a t r i m ô n i o

2010: 30). sintetizadas em três documentos: Carta de


Ainda enfrentamos reservas técnicas Recomendações de Ouro Preto (I Fórum de
P

saturadas, ausência de políticas de acervos Arqueologia da SAB Acervos Arqueológicos);


d o

e de recursos humanos especializados, Moções e Recomendações Remaae (VII


e v i s t a

estruturas físicas inadequadas, Fórum Nacional de Museus); Carta de


R

enclausuramento dos acervos, com coleções Prioridades para Ações Articuladas sobre
malconservadas e com precária documentação Acervos Arqueológicos (Fórum Remaae &
(Ribeiro, 2012:16). Essa situação é reflexo GT Acervos da SAB).
de anos de normatização e continuidade de A Região Norte tem participado
práticas depositárias e irrefletidas ligadas às desse movimento, com representantes
coleções arqueológicas. Embora ainda haja de instituições de guarda e profissionais,
um longo caminho a percorrer, estamos levando as pautas específicas para os
262
avançando na construção de mecanismos que coletivos. Representantes regionais foram
visam superar os atuais desafios da gestão das eleitos dentro dos coletivos para facilitar
coleções arqueológicas, com o fortalecimento a comunicação e, como resultado, foi
de coletivos, o desenvolvimento de pesquisas organizado o I Fórum Gestão de Acervos
direcionadas, a formação de profissionais e Arqueológicos da Região Norte, como parte
a ampliação dos espaços de discussão e das da programação da III Reunião da Sociedade
políticas públicas. de Arqueologia Brasileira Regional Norte,
Nos últimos anos, profissionais da ar- realizada em 2016, em Porto Velho, capital
queologia, museologia e conservação estão do estado de Rondônia.
se organizando para diminuir descompassos O Fórum contou com a participação de
e ultrapassar desafios da gestão das coleções profissionais de instituições de guarda da Re-
arqueológicas por meio de discussões e ações, gião Norte, além de representações do Iphan e
conduzidas principalmente pela Rede de da SAB. Nos relatos das instituições de guar-
Museu e Acervos de Arqueologia e Etnologia da, foram apontados os desafios e possíveis
– Remaae e pelo Grupo de Trabalho Acervos caminhos a serem construídos regionalmente.
Com base nas discussões, algumas indicações acondicionar, conservar e documentar as

Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:


a pesquisa, a gestão e as pessoas
foram pontuadas: a) incluir disciplinas es- coleções preservando seu caráter físico e

a c i o n a l
pecíficas sobre gestão de acervos nos cursos documental, mas reconhecer seu papel
de graduação e pós-graduação; b) discutir social, possibilitando diferentes abordagens
regionalmente peculiaridades sobre o controle de socialização das coleções salvaguardadas

N
r t í s t i c o
ambiental em contextos tropicais; c) determi- (Pereira, 2015 e 2017).
nar verbas para gestão das coleções advindas Ações como exposições temporárias e iti-

A
de endossos institucionais; d) criar políticas nerantes, projetos colaborativos de gestão do

e
de acervos nas instituições atentas às peculia- patrimônio arqueológico com comunidades

i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
ridades do contexto amazônico; e) incentivar tradicionais e adoção de um modelo de reser-
as instituições de guarda a participar dos co- va técnica visível têm auxiliado a repensar as

H
letivos de discussão sobre gestão de coleções; práticas curatoriais desenvolvidas no NuPArq/

a t r i m ô n i o
f ) criar possibilidades de gestão das coleções Iepa a partir das discussões atuais da discipli-
que respeitem as demandas das comunidades na arqueológica, fortalecendo as relações entre

P
relacionadas às pesquisas arqueológicas. as práticas de pesquisa e de gestão (Cabral,

d o
Os desafios são muitos, diante da falta de Saldanha & Pereira, 2012). Uma conquista

e v i s t a
recursos financeiros, estruturais e profissionais que está em reconhecer o caráter dinâmico

R
especializados, realidade enfrentada pela das coleções arqueológicas salvaguardadas e
maioria das instituições. Discussões entre da necessidade de uma gestão engajada com
gestores das coleções arqueológicas têm sido as múltiplas formas de apropriação social do
em tom militante na busca por melhorias, patrimônio arqueológico.
que vão desde os itens básicos, como Embora recentes, esses avanços coletivos
medidores ambientais, até as intervenções sobre a gestão das coleções arqueológicas
estruturais, necessárias em muitas instituições. salvaguardadas na Região Norte apontam
263
Mesmo com dificuldades, vemos possibilidades otimistas no horizonte, com
pesquisas dentro da área de gestão do a equiparação das funções de salvaguarda
patrimônio arqueológico salvaguardado se (conservação e documentação) e comunicação
multiplicarem pela Amazônia. No Núcleo (exposição, extroversão e ações educativas/
de Pesquisa Arqueológica – NuPArq, culturais). Uma mudança estrutural, e ao
pertencente ao Instituto de Pesquisas mesmo tempo inacabada e heterogênea, na
Científicas e Tecnológicas do Estado do forma como percebemos e realizamos a gestão
Amapá – Iepa, uma de nós desenvolve desde dos acervos arqueológicos salvaguardados
2010 o projeto de pesquisa “Curadoria, precisa ser construída com base em reflexões
Conservação e Socialização da Reserva que contemplem os anseios atuais do
Técnica do Laboratório de Arqueologia patrimônio arqueológico e das pessoas da
Peter Hilbert”, que desenvolve a gestão das Amazônia. Uma transformação que não toma
coleções arqueológicas como uma linha de como definitivas e estáticas as definições da
pesquisa do NuPArq. Com isso, almejamos própria disciplina, mas que caminha junto
não somente ser capazes de sistematizar, com o fazer arqueológico colaborativo.
Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
H
a t r i m ô n i o
P
d o
e v i s t a

As pessoas e os desafios Esses problemas atingem também as


demais regiões do país, mas na Amazônia
R

d a g e s t ã o d o pat r i m ô n i o
arqueológico eles são singulares e superlativos. Há uma
intensa proximidade das pessoas com o ma-
Gerenciar o patrimônio arqueológico terial arqueológico. As coisas do passado, que
na Amazônia, hoje, é uma tarefa bastante “brotam” do chão após as chuvas, invadem as
desafiadora, que requer lidarmos com uma casas, os quintais, as roças, a vida das pessoas
expressiva ocorrência de sítios, somada que há séculos elaboram, explicam, interpre-
264 tam lâminas de machado, urnas, fragmentos
ao crescente número de pesquisas em
desenvolvimento e ao extraordinário volume de louça e os próprios sítios arqueológicos
dos acervos gerados por elas (especialmente (Bezerra, 2017). Essa materialidade figura
os estudos realizados no âmbito do nas narrativas em níveis que vão da funcio-
licenciamento ambiental, como já apontado). nalidade (o aproveitamento da terra preta no
Entre os problemas a enfrentar, destacam-se plantio, o uso de urnas para armazenamento
o turismo informal (Pereira & Figueiredo, de água e farinha) ao imaginário (a agência
2005), a venda de material arqueológico das coisas e lugares sobre as pessoas por meio
(Lima, Moraes & Parente, 2013), a destruição de visagens), passando também pelo afeto
Urna Aristé, município
de Calçoene de sítios causada por razões diversas (Schaan, (artefatos guardados como recordação de
(AP). As urnas
cerâmicas ricamente 2009), o impacto provocado pelos projetos de infância) (Bezerra 2017). É muito comum
decoradas são um
dos elementos
mais conhecidos
desenvolvimento (Cabral & Saldanha, 2009) encontrar nas casas coleções de artefatos
do patrimônio
arqueológico da
e a insuficiente infraestrutura para a curadoria reunidos por moradores, assim como é recor-
Amazônia. Iepa,
Macapá (AP) e guarda das coleções arqueológicas (Silveira rente o assentamento das moradias sobre os
Foto: Maurício de Paiva,
2009. et al, 2017). sítios arqueológicos da região. Esse grau de
“intimidade material” com o passado faz com percepções das pessoas que moram no

Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:


a pesquisa, a gestão e as pessoas
que as relações entre as pessoas e o patrimô- entorno de sítios arqueológicos na Amazônia

a c i o n a l
nio arqueológico amazônico tenham que ser (Ravagnani, 2011; Moraes, 2012; Troufflard,
compreendidas em seus próprios termos. 2012; Gomes, Costa & Santos, 2014; Leite,
De acordo com a legislação que dispõe 2014; Rocha et al, 2014; Cabral, 2016;

N
r t í s t i c o
sobre os bens arqueológicos no Brasil5, os Silva, 2016, entre outros).
artefatos e sítios arqueológicos são bens da Por que, então, criminalizar essas

A
União e, assim sendo, não podem circular relações? Não estaríamos mais preocupados

e
em domínios privados. Ou seja, não é com a preservação das coisas, ou melhor,

i s t ó r i c o

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
permitida a sua posse por parte de pessoa com a conservação física das coisas do que
física, apenas instituições autorizadas têm com as pessoas e os sentidos que atribuem ao

H
o direito de salvaguardar coleções. Quanto mundo material? Será que o conhecimento

a t r i m ô n i o
aos sítios arqueológicos, os direitos inerentes das pessoas sobre a materialidade
à propriedade privada não incidem sobre arqueológica não é parte integrante dessa

P
o subsolo e nem sobre a sua superfície, o materialidade? Podemos pensar em uma

d o
que tornaria passíveis de punição os atos preservação descolonizante6?

e v i s t a
praticados, cotidianamente, por diversos Holtorf (2012) tem, exaustivamente,
coletivos humanos da região. Aqui há argumentado que temos uma “obsessão”

R
um problema quanto à classificação do com a ideia de preservação. Segundo o autor,
engajamento das pessoas com o que não é possível conservar tudo e, indo além,
denominamos patrimônio. diz que a destruição faz parte do processo
Lima, Moraes e Parente (2013) já de preservação. É nesse sentido, sem a
criticaram, por exemplo, a aplicação sombra da “obsessão” com a preservação,
do termo “tráfico” para o contexto da que propomos o entendimento das relações
comunidade de Valéria, em Parintins, estado referidas anteriormente. Não queremos 265

do Amazonas. Para os autores, uma vez dizer com isso que não se deva pensar em
que os moradores não estão conscientes da preservação. Sugerimos que a experiência
ilegalidade do ato, a situação não deveria ser material das pessoas que moram nos
tratada como tal. Bezerra (2012) também arredores de sítios arqueológicos, ou em
propõe que o hábito de colecionar artefatos cima dos próprios sítios, não seja embaçada
na Vila de Joanes, no Marajó, estado do por uma legislação criada em contextos
Pará, está conectado a um processo de distantes, tanto do ponto de vista temporal,
fruição com o passado, não podendo ser como conceitual.
entendido como ato de destruição. Há Na conferência de abertura do congresso
incontáveis exemplos que demonstram da Association of Critical Heritage Studies
as nuances que constituem as atitudes e – ACHS, realizado na China, em 2018,

5. Constituição de 1988 (Capítulos II e III), Lei nº 3.924/61,


Portaria nº 07/88, Instrução Normativa nº 001/15. Disponíveis 6. Para uma reflexão sobre conservação descolonizante, ver Sully
em <http://www.iphan.gov.br>. Acessado em jul.2018. (2008).
Michael Herzfeld7, ao falar sobre a relação assumido por todos aqueles que estão envol-
Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas

entre conservação e destruição, afirmou, vidos com o campo do patrimônio: gestores,


a c i o n a l

como Holtorf, que não é possível evitar a pesquisadores e as pessoas que moram em
destruição. De acordo com o conferencista, localidades onde há evidências arqueológicas.
nós, pesquisadores, temos o compromisso É preciso que haja uma política de fomento
N
r t í s t i c o

de dar um passo atrás e questionar as à realização de pesquisas colaborativas sobre


consequências de nossos atos ao interferirmos as relações entre as pessoas e o patrimônio
arqueológico na Amazônia. Esses estudos
A

na vida de coletivos humanos com os quais


e

trabalhamos. Ele se diz a favor da prática de poderão contribuir para o mapeamento dessas
i s t ó r i c o

relações em distintas localidades. Os resulta-


M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a

uma “antropologia engajada” como forma de


avaliar as situações com as quais convivemos dos dessas investigações podem ser discutidos
H

em nosso exercício profissional. em fóruns que reúnam os seus participantes


a t r i m ô n i o

para tratar de temáticas específicas, como


Pesquisa, gestão e turismo, “tráfico”, coleta, entre outros.
A compreensão da singularidade
pessoas: desafiando
P

os
d o

dessas relações, aliada à participação dos


desafios
e v i s t a

coletivos que convivem com o patrimônio


arqueológico, permitirá que os sentidos
R

Talvez possamos pensar em uma “gestão


conferidos às coisas do passado por aqueles
engajada” que reconheça os diferentes modos
que, há muitas gerações, lidam com essa
de conceber o patrimônio e que, a partir daí,
materialidade, passem a integrar, de alguma
crie mecanismos capazes de promover a pre-
forma, esse patrimônio. Na Amazônia,
servação sem, no entanto, interferir na dinâ-
a experiência das pessoas com o nosso
mica da vida social de coletivos que há séculos
“arqueológico” é cotidiana, rotineira.
convivem com as coisas do passado na Ama-
266 Apagar essa relação, ou não refletir sobre
zônia. Há uma história de ocupação de longa
ela, é esquecer que um dos sentidos de
duração na região, assim como há uma his-
pensar patrimônio cultural é estabelecer
tória de longa duração de cotidianidade das trocas, compartilhar, fazer junto. Só assim
pessoas com artefatos e sítios arqueológicos poderemos vislumbrar uma política de
e um conhecimento gerado por ela. Ignorar preservação que seja participativa, simétrica e
isso leva a um achatamento dessas relações e descolonizante na Amazônia.
denota uma atitude assimétrica entre agentes PS: No momento em que estamos encer-
do patrimônio e as populações para quem os rando a escrita deste texto, no dia 2 de setem-
esforços de preservação são apregoados. bro de 2018, o Museu Nacional do Rio de
Entendemos que a tarefa de desenvolver Janeiro, um patrimônio brasileiro, está sendo
uma gestão sensível deva ser um compromisso destruído pelas chamas. Com ele desaparecem
coleções arqueológicas de incalculável valor.
7. Critique as Heritage: The Cultural Significance and Its
Implications for Heritage Research é o título da conferência
Uma tragédia que aponta a urgência de uma
proferida por Michael Herzfeld na abertura da 4th Biennial reflexão sobre o estado em que se encontra o
Conference of the Association of Critical Heritage Studies,
Hangzhou, China, 2018. patrimônio cultural no Brasil.
Referências Vigano; PEREIRA, Ester Ribeiro; LIMA, Marjorie

Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:


a pesquisa, a gestão e as pessoas
do Nascimento; LIMA, Jaqueline Carou Felix de.
Nem todas são Betty ou Anna: o lugar das arqueólogas

a c i o n a l
BARRETO, Cristiana. A construção de um passado no discurso da Arqueologia Amazônica. Revista de
pré-colonial: uma breve história da arqueologia no Brasil. Arqueologia, n. 2, v. 30, p. 115-129, 2017.
Revista USP, n. 44, São Paulo, p. 32-51, dez.1999-
DESVALLÉES, A.; MAIRESSE, F. (orgs.) Conceitos-

N
fev.2000.
chave de museologia. São Paulo: Icom, 2013, 98p.

r t í s t i c o
BARRETO, Mauro V. História da pesquisa arqueológica
GERO, Joan M. Excavations bias and the Woman At
no Museu Paraense Emílio Goeldi. Boletim do Museu
Home Ideology. Archaeological Papers of the American
Paraense Emílio Goeldi, n. 2, v. 8. Série Antropologia,

A
Anthropological Association, n. 1, v. 5, p. 37-42, 1994.
Belém, p. 203-294, 1992.

e
GNECCO, C. Caminos de la Arqueología: de la

i s t ó r i c o
BEZERRA, Marcia - Bicho de nove cabeças: os cursos de
violencia epistémica a la relacionalidad. Boletim Museu

M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a
graduação e a formação de arqueólogos no Brasil. Revista
Paraense Emílio Goeldi, n.1, v. 4. Ciências Humanas,
de Arqueologia, n. 2, v. 21, p. 139-154, 2008.
Belém, p. 15-26, 2009.

H
______. Signifying heritage in Amazon: a public
GOMES, J.; COSTA, R. B.; SANTOS, B. L. S. da

a t r i m ô n i o
archaeology project at Vila de Joanes, Marajó Island,
Costa. Arqueologia comunitária na Reserva Amanã:
Brazil. Chungara, n. 3, v. 44, p. 363-373, 2012.
história, alteridade e patrimônio arqueológico. Amazônica
______. Teto e afeto: sobre as pessoas, as coisas e a – Revista de Antropologia, n. 2, v. 6. Dossiê: Arqueólogos

P
arqueologia na Amazônia. Belém: GK Noronha, 2017. e Comunidades Locais na Amazônia, organizado por M.

d o
BREFE, Ana Claudia F. Os primórdios do museu: Bezerra e M. Cabral, p. 385-417, 2014.

e v i s t a
da elaboração conceitual à instituição pública. Projeto HABER, Alejandro. La casa, las cosas, los dioses:
História, v. 17, São Paulo, p. 28-315, 1998. arquitectura doméstica, paisaje campesino y teoría local.

R
BRUNO, Maria Cristina O. Musealização da Córdoba: Encuentro Grupo Editor, 2011, 200p.
arqueologia: um estudo de modelos para o projeto HAMILAKIS, Yannis.; ANAGNOSTOPOULOS, Aris.
Paranapanema. Cadernos de Sociomuseologia, n. 17, v. What is archaeological ethnography? Public Archaeology,
17, Centro de Estudos de Sociomuseologia, 225 p., Archaeological Ethnographies, n. 2-3, v. 8, p. 65-87,
jun.1999. 2009.
BRUNO, Maria Cristina O.; ZANETTINI, P. HARRISON, Rodney. Archaeologies of Emergent
Relatório do simpósio O Futuro dos Acervos. In: XIV Presents and Futures. Historical Archaeology, n. 3, v. 50,
ENCONTRO NACIONAL DA SOCIEDADE DE p. 165-180, 2016.
ARQUEOLOGIA BRASILEIRA. Florianópolis: UFSC,
HOLTORF, Cornelius. The Heritage of Heritage.
2007, p. 1-15. 267
Heritage & Society, n. 2, v. 5, p. 153-174, 2012.
CABRAL, Mariana Petry. “E se todos fossem
LADKIN, N. “Gestão do acervo”. In: BOYLAN, Patrick
arqueólogos?”: experiências na Terra Indígena Wajãpi. J. (org.). Como gerir um museu: Manual Prático. Icom,
Anuário Antropológico, n. 2, v. 39, Brasília, p. 115-132, 2004, p. 17-31.
2013.
LEITE, Lúcio F. S. Pedaços de pote, bonecos de barro e
______. Entre passado e presente: arqueologia e coletivos encantados em Laranjal do Maracá, Mazagão, Amapá:
humanos na Amazônia. Teoria & Sociedade, v. 24, p. perspectivas para uma arqueologia pública na Amazônia.
76-91, 2016. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em
CABRAL, Mariana P.; SALDANHA, João Darcy de M. Antropologia, UFPA. Belém, 2014.
Sobre a fluidez do concreto: refletindo sobre pessoas e LIMA, H. P.; MORAES, B. M.; PARENTE, M.
objetos em alguns projetos de arqueologia no estado do T. V. “Tráfico” de material arqueológico, turismo
Amapá, Brasil. MÉTIS: história & cultura, n. 16, v. 8, p. e comunidades ribeirinhas: experiências de uma
217-228, jul.-dez.2009. arqueologia participativa em Parintins, Amazonas. Revista
CABRAL, Mariana P.; SALDANHA João Darcy de Arqueologia Pública, n. 8, p. 61-77, 2013.
M.; PEREIRA, Daiane. Arqueologia e Socialização na MORAES, Irislane P. Do tempo dos pretos d’antes aos povos
implantação de um centro de pesquisa no Amapá. Dossiê do Aproaga: patrimônio arqueológico e territorialidade
laureado com o Prêmio Rodrigo Melo Franco de quilombola no vale do rio Capim (PA). Dissertação de
Andrade. Macapá: Iepa, 2012. Mestrado. Programa de Pós-graduação em Antropologia,
CAROMANO, Caroline Fernandes; GASPAR, Meliam UFPA. Belém, 2012.
PEREIRA, Daiane. Reserva Técnica Viva: Extroversão do Marlene C. Ossami (orgs.). Gênero em arqueologia e
Patr imônio arqueológ ico da Amazônia:
a pesquisa, a gestão e as pessoas

Patrimônio Arqueológico no Laboratório de Arqueologia antropologia. Volume temático da revista Habitus, n. 1,


Peter Hilbert. Dissertação de Mestrado. UFS. São v. 16, 2018.
a c i o n a l

Cristóvão, 2015, 160 p.


SILVA, Deyse F. Sobre as “pedras famosas de Calçoene”:
______. Extroversão do patrimônio arqueológico
reflexões a partir da arqueologia etnográfica na
salvaguardado: reserva técnica do Laboratório de
N

Arqueologia Peter Hilbert. Revista de Arqueologia Pública, Amazônia. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
r t í s t i c o

n. 2, v. 11, p. 66-82, 2017. graduação em Antropologia, UFPA. Belém, 2016.


PEREIRA, E.; FIGUEIREDO, S. L. Arqueologia e SILVEIRA, Maura Imázio; DUTRA,Vanessa de Castro;
A

turismo na Amazônia: problemas e perspectivas. Cadernos SILVA, Camila Fernandes Alencar; FERREIRA, Regina
e

do Lepaarq. Textos de Antropologia, Arqueologia e


Maria de Farias; JALLES, Cíntia. Coleções arqueológicas
i s t ó r i c o

Patrimônio, n. 3, v.2, p. 21-36, 2005.


M a r i a n a P e t r y C a b r a l , D a i a n e Pe r e i r a , M a r c i a B e z e r r a

do Museu Paraense Emílio Goeldi. Panorama da reserva


RAVAGNANI, L. R. O passado, o sítio e a escola: as
técnica e os desafios da conservação. In Preservação do
relações entre a comunidade escolar e o sítio histórico de
H

patrimônio arqueológico: desafios e estudos de caso, Editado


Joanes (PA-JO-46). Monografia/TCC. Bacharelado em
a t r i m ô n i o

Ciências Sociais. Faculdade de Ciências Sociais, UFPA. por G. N. Campos & M. Granato. Rio de Janeiro,
Belém, 2011. Museu de Astronomia e Ciências Afins, 2017.
RIBEIRO, D. L. A musealização da arqueologia: um SULLY, D. (org.). Decolonising conservation: caring for
P

estudo dos museus de arqueologia do Xingó e do Maori Meeting Houses outside New Zealand. Routledge,
d o

sambaqui de Joinville. Tese de Doutorado. Programa de 2008.


e v i s t a

Pós-graduação em Arqueologia. USP. São Paulo, 2012,


376p. TROUFFLARD, J. “O que nos dizem as coleções
da relação entre moradores e vestígios arqueológicos
R

RIBEIRO, Loredana (org.). Dossiê: Arqueologia e a


crítica feminista no Brasil. Volume temático da Revista de na região de Santarém, Pará?”. In: SCHAAN, D. P.
Arqueologia, n. 2, v. 30, 2017. (org.). Arqueologia, patrimônio e multiculturalismo na
RIBEIRO, Loredana; FORMADO, Bruno Sanches beira da estrada: pesquisando ao longo das rodovias
Ranzani da Silva; SCHIMIDT Sarah; PASSOS, Lara. Transamazônica e Santarém-Cuiabá. Belém: GK
A saia justa da arqueologia brasileira: mulheres e Noronha, 2012, p. 59-73.
feminismos em apuro bibliográfico. Estudos Feministas, n.
VIANA, Sibeli A., BEZERRA, Marcia; EREMITES DE
3, v. 25, p. 1093-1110, 2017.
OLIVEIRA, Jorge (orgs.). Múltiplas perspectivas sobre
ROCHA, B. C.; BELETTI, J.; PY-DANIEL, A. R.;
268 o ensino de arqueologia no Brasil. Volume temático da
MORAES, C. P.; OLIVEIRA, V. H. Na margem
e à margem: arqueologia amazônica em territórios revista Habitus, n. 2, v. 12, 2014.
tradicionalmente ocupados. Amazônica – Revista VOSS, B. L. Curation as research. A case study in
de Antropologia, n. 2, v. 6. Dossiê: Arqueólogos e orphaned and underreported archaeological collections.
comunidades locais na Amazônia, organizado por M.
Archaeological Dialogues, n. 2, v. 19, p. 145-169, 2012.
Bezerra e M. Cabral, p. 358-384, 2014.
WICHERS, C. A. M. Museus e antropofagia do
SALDANHA, João Darcy de Moura; CABRAL, Mariana
Petry. “Núcleo de Pesquisas Arqueológicas do Iepa: um patrimônio arqueológico: (des) caminhos da prática
balanço da sua contribuição ao estado do Amapá nos brasileira. Tese de Doutorado em Museologia.
seus sete anos de existência”. In: OLIVEIRA, Augusto; Universidade Lusófona. Lisboa, 2010, 460 p.
GAZEL, Larissa (orgs). Iepa – Contribuições para o
ZANETTINI, Paulo. Projetar o futuro para a
desenvolvimento sustentável no Amapá. Macapá: GEA/
arqueologia brasileira: desafio de todos. Revista de
Iepa, 2012.
Arqueologia Americana, v. 27, p. 71-84, 2009.
SALERNO, V. M. Pensar la arqueología desde el sur.
Complutum, n. 2, v. 23, p. 191-203, 2012. ZARANKIN, Andres; PELLINI, José Roberto.
SCHAAN, Denise Pahl. Marajó: arqueologia, Arqueologia e companhia: reflexões sobre a introdução
Incêndio que destruiu o iconografia, história e patrimônio. Textos selecionados. de uma lógica de mercado na prática arqueológica
Museu Nacional/UFRJ,
Rio de Janeiro (RJ), 2018 Erechim: Habilis, 2009. brasileira. Revista de Arqueologia, n. 2, v. 25, p. 44-80,
Foto: Oscar Liberal/
Acervo Iphan. SENE, Glaucia Malerba; VIANA, Sibeli A.; MOURA, dez.2012.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

270
Márcio Couto Henrique Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré
Márcio Couto Henr ique

a c i o n a l
P articipação e exclusão popular

C írio N azaré 1

N
no de

r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Gestão democrática do dinamizar a economia local, ele determinou
Círio de Nazaré que se realizasse uma feira para exposição
e comercialização de produtos agrícolas e

P
d o
Reza a lenda que, por volta de 1700, extrativistas de todos os cantos da província,

e v i s t a
em Belém do Pará, um homem de cor marcando para tal exatamente o mês de
parda ou “um mulato velho” (“Noites de outubro, quando os devotos costumavam

R
Nazaré”, O Liberal do Pará, 25 out.1877, p. fazer seus festejos em honra da santa. Souza
1) chamado Plácido encontrou na floresta Coutinho determinou, ainda, que no sábado
uma imagem de Nossa Senhora de Nazaré, a imagem da santa fosse conduzida ao palácio
que ele recolheu em sua cabana. Diz Arthur do governo, sendo reconduzida em procissão
Vianna (1904:233): “não tardou que os
à sua igreja na manhã seguinte. Nascia assim,
milagres da santa a tornassem popular e
no dia 8 de setembro de 1793, a procissão do
atraíssem ao humilde albergue uma forte 271
Círio de Nazaré (Baena, 1969:227).
corrente de devotos”. Depois que Plácido
Segundo Arthur Vianna:
morreu, a imagem ficou sob os cuidados do
devoto Antonio Agostinho, que construiu Dos longínquos sertões do Estado, de toda
uma ermida maior, inaugurada em 1774, mas a vasta bacia do Amazonas, correram índios de
ainda bastante simples, de taipa e coberta todas as raças, mestiços de todos os cruzamentos,
de palha, com um altar de madeira. Para a extasiar-se nas ruas da capital, para eles um belo
construí-la, contou com as esmolas ofertadas centro de agradáveis atrativos; o largo cobriu-
pelos devotos da santa. se de barracas de palha, onde o comerciante da

A agitação de devotos em torno da cidade encontrou o excelente cacau, a perfumosa


baunilha, o guaraná refrigerante; o magnífico
igreja de Nazaré chamou a atenção do
arroz; o anil e o urucú, manipulados no Estado,
governador Francisco de Souza Coutinho,
os belos utensílios da cerâmica indígena, o forte
português de origem. Preocupado em
tabaco, as primorosas redes de fio e de maqueira, Procissão do
Círio de Nazaré,
o pirarucu salgado, o peixe boi em mixira, etc. Belém (PA), 1954 (ca.)
1. Agradeço a leitura e sugestões de Débora Rodrigues de Oliveira Foto: Marcel Gautherot/Acervo
Serra e Maria Dorotéa de Lima. (1904:235). Instituto Moreira Salles.
Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Márcio Couto Henrique


P
d o
e v i s t a
R

Note-se que a festa de Nazaré já nasce mes- procissões: a primeira se chama Trasladação,
272 tiça, com a participação de “índios de todas as quando a imagem da santa é conduzida do
raças” e “mestiços de todos os cruzamentos” . 2 Colégio Gentil, situado próximo à Basílica
Nasce, também, articulando sagrado e profano, Santuário de Nazaré, até a Catedral da Sé.
com ritos religiosos em homenagem à santa e A Trasladação se faz na noite do sábado que
“agradáveis atrativos” na feira que se estabele- antecede a procissão principal. No domingo

ceu no arraial de Nazaré. Outro aspecto que ocorre a Procissão Principal do Círio, quando
a imagem é conduzida de volta em uma
cabe destacar é a reunião de moradores de toda
berlinda (espécie de coche), da catedral até
a província do Pará, fazendo da capital, Belém,
a Basílica Santuário. A berlinda é atrelada a
o ponto de encontro e de trocas de experiên-
uma corda (atualmente com cerca de 400
Entrada do Círio no cias entre diferentes sujeitos.
Arraial de Nazaré. metros), muito disputada pelos devotos para
Óleo sobre tela de
Os momentos mais expressivos do
Carlos Azevedo, 1905
Acervo: Museu de Arte
o pagamento de promessas.
de Belém. Círio são constituídos por duas grandes
Desde o início, o Círio de Nazaré expressa
fortes marcas do catolicismo popular. Faço
2. A respeito da mestiçagem cultural entre elementos indígenas e
cristãos, conferir Gruzinski, 2001. uso da expressão catolicismo popular aqui no
sentido utilizado por Heraldo Maués: “aquele assim dizer, fundou o Círio de Nazaré. De

Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré


conjunto de crenças e práticas socialmente acordo com Eidorfe Moreira, a celebração

a c i o n a l
reconhecidas como católicas, de que
(...) representa assim o predomínio de uma
partilham sobretudo os não especialistas do
romaria de origem popular sobre as fórmulas

N
sagrado, quer pertençam às classes subalternas tradicionais de origem artificial, as procissões ou

r t í s t i c o
ou às classes dominantes” (1995:17). Além festas reais, impostas por lei. Ao contrário destas,
disso, a participação popular, entendida que se firmaram em consequência do prestígio

A
aqui como referência às “classes subalternas” oficial que as cercava, o Círio se impôs por si

e
indicadas por Maués, sempre foi uma das mesmo, em virtude de sua própria popularidade. A

i s t ó r i c o
principais marcas do Círio de Nazaré. Era, sua oficialização foi decorrência dessa popularidade

também, uma devoção popular porque surgiu (1971:2).

H
a t r i m ô n i o
e cresceu espontaneamente, sem a presença

Márcio Couto Henrique


Opinião semelhante tem Geraldo
inicial do clero católico.
Mártires Coelho, ao afirmar que “o Círio
A rigor, Plácido seria o “dono da santa”.
de D. Francisco de Souza Coutinho (...)

P
Segundo Heraldo Maués,

d o
resultaria de uma intervenção elitizada na

e v i s t a
(...) além do culto particular aos santos, que cultura popular, de modo a reproduzir, aqui,
se faz nas residências, existe o culto público, que um elemento-chave da identidade da devoção

R
muitas vezes começa – como no caso de Nossa a Nossa Senhora de Nazaré em Portugal”
Senhora de Nazaré, já referido – a partir do culto (1998:154).
a santos “de dono”, que aos poucos vão ganhando
No início, a Festa de Nazaré era
dimensão pública, a ponto de se tornarem
organizada pela Irmandade de Nossa Senhora
padroeiros de uma determinada localidade, vila ou
de Nazaré do Desterro, constituída por leigos
cidade ou até de regiões inteiras (2005:269).
de ambos os sexos. Eram eles que faziam toda
Foi o que aconteceu com o Círio de a programação, divulgação e execução da 273

Nazaré, devoção que teve como base o festa. Dias antes do Círio, os confrades faziam
achamento de uma imagem por Plácido, o chamadas nos jornais solicitando apoio
“dono da santa”, e depois alcançou a condição financeiro dos devotos. Também angariavam-
de maior festa dos paraenses, patrimônio se recursos com o aluguel de terrenos em
cultural imaterial brasileiro (Iphan, 2006; frente à igreja para os que quisessem montar
Henrique, 2011), e integra, desde 2013, barracas no arraial e com a venda de bilhetes
a lista do patrimônio da humanidade da de loteria. No decorrer da festa, organizavam-
Organização das Nações Unidas para a se leilões com as oferendas dos devotos, além
Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco. de bailes na “barraca da santa”.
Desse modo, o Círio de Nazaré surgiu a Em 1840, o procurador da Irmandade
partir da apropriação que Estado e Igreja fi- de Nazaré, observando “o sossego e
zeram de uma devoção popular que já existia. satisfação de que goza o povo paraense”, fez
A procissão instituída por Souza Coutinho, publicar no jornal uma nota convidando a
em 1793, institucionalizou a devoção e, por população da província para a “magnífica
festa” do Círio de Nazaré: “sairá a Imagem ao referir-se à instituição do Círio por Souza

Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré


da Milagrosa Senhora de Nazaré da casa da Coutinho, em 1793, matéria publicada no

a c i o n a l
Srª D. Páscoa Maria de Loureiro, lugar onde jornal O Liberal do Pará diz que: “desde então
se acha depositada a cuidado desta devota e ficou estabelecido o Círio, como tem tido
será conduzida em uma rica berlinda pelo lugar há 86 anos sem uma só interrupção”

Nr t í s t i c o
Capelão do Governo (...)” (Treze de Maio, (18 out.1879, p. 1).
Belém, 19 set.1840, p. 183). A observação Em tempos de aflição coletiva, os devotos

A
do procurador quanto à tranquilidade recorriam à imagem de Nossa Senhora de

e
da província foi feita no contexto da Nazaré. Assim, por exemplo, diziam os

i s t ó r i c o
Cabanagem, revolução popular que agitou diretores da Festa de Nazaré, em 1854: “(...)
toda a região entre 1835 e 1840, reunindo, ainda não está muito longe o dia em que o

H
inclusive, milhares de devotos da santa na luta povo desta cidade correu à Ermida de Nazaré

a t r i m ô n i o

Márcio Couto Henrique


por melhores condições de vida (Ricci, 2006; e trouxe em procissão pelas ruas públicas essa
Harris, 2010). MILAGROSA IMAGEM, de quem também

P
Note-se que, nesse momento de forte se lembraram, em sua aflição, os mesmos

d o
tensão ocasionada pela Cabanagem, a imagem náufragos do Brigue São João Batista” (Treze

e v i s t a
de Nossa Senhora de Nazaré encontrava-se de Maio, 5 out.1854, p. 2).
sob os cuidados da devota Páscoa Maria de A referência aos náufragos do Brigue São

R
Loureiro, em sua própria casa. Destaque- João Batista diz respeito a um dos milagres
se, também, que mesmo com as inúmeras mais famosos atribuídos a Nossa Senhora
batalhas nas ruas de Belém durante o conflito de Nazaré. Em viagem para Lisboa, essa
e com a depredação de muitos prédios, embarcação naufragou próximo de Caiena e
especialmente pertencentes a pessoas brancas, os doze sobreviventes foram resgatados pelo
a imagem de Nazaré foi preservada. mesmo escaler que transportara, 60 anos
Considerando que a maioria dos cabanos antes, a imagem de Nossa Senhora de Nazaré 275

eram índios (referidos genericamente como para o brigue que a conduziu a Lisboa, a
“tapuios”), merece destaque o fato de que a fim de ser encarnada. Por isso, o escaler foi
imagem e seu local de culto foram preservados conduzido até Belém, ficando pendurado na
ao longo do conflito, o que demonstra que a varanda lateral da ermida. Em 1855, passou
população mestiça da região não via no culto a fazer parte da procissão do Círio, carregado
a Maria um símbolo da dominação associada ao ombro por marujos ou pescadores. Com o
aos brancos europeus. Ao contrário, tratava- passar dos anos, surgiu o costume de encher
se de uma devoção incorporada ao universo o escaler de pessoas vestidas à maruja e os
simbólico dessa população. carregadores executavam vaivéns, imitando
Segundo Heraldo Maués (2005:221), o movimento das ondas, de modo a lembrar
“ao longo de sua história, o Círio de Nazaré do naufrágio e salvação por Nossa Senhora
sofreu somente uma interrupção, no ano (Dubois, 1953:72). Até o início do século 20,
Procissão do
de 1835, ocasionada pela invasão de Belém os devotos vestidos de marujos se destacavam Círio de Nazaré,
Belém (PA), 1954 (ca.)
pelos insurretos cabanos (...)”. Entretanto, entre os promesseiros. Foto: Marcel Gautherot/Acervo
Instituto Moreira Salles.
Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Márcio Couto Henrique


P
d o
e v i s t a
R

No auge da epidemia de febre amarela, nas dificuldades enfrentadas na navegação,


em 1850, matéria publicada no jornal seja nos rios da região ou nas viagens que
Treze de Maio (Belém, 11 mai.1850, p. 4), atravessavam o Atlântico. Como Geraldo
276 informava: Mártires Coelho (1998:109) observou
com relação a tal devoção em Portugal,
A Venerada Imagem Senhora de Nazaré do
também no Pará o maravilhoso do milagre
Desterro que por causa da fatal epidemia tinha
vindo em procissão para a igreja da Santíssima situava nossa Senhora de Nazaré no plano
Trindade, já se acha recolhida a sua ermida no dos homens, atuando e servindo em seu
Arraial de Nazaré, o que se previne aos devotos, cotidiano, constituindo-se como parte da
da mesma Milagrosa Mãe Santíssima a fim de só humana realidade das angústias e incertezas
aí depositarem as suas esmolas ou em casa dos Srs. do dia a dia dos devotos espalhados por toda
Diretores da festividade (...) a província do Pará3.
Na diretoria da Festa de Nazaré, havia os
Assim, a devoção a Nossa Senhora de
cargos de juízes e diretores. Em 1854, foram
Nazaré foi crescendo e se consolidando entre
homens e mulheres da Amazônia, referida
sempre como “milagrosa”, “poderosa”,
3. Em seu Ensaio Corographico sobre a Província do Pará (escrito
protetora contra doenças do cotidiano, em 1832), Antonio Baena indicava a existência da devoção a
Círio, Vigia (PA), 1988 Nazaré na vila de Viseu, em Vigia, anterior à de Belém e no lugar
Foto: Elza Lima. mas também em tempos de epidemias e de Senhora de Nazareth do Curiana (Baena, 2004:334).
juízes Manoel Antonio Pimenta Bueno e Ora, se a intenção era divertir o povo, os

Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré


Theodolina Amália de Freitas Bulhões. Na entretenimentos também seriam populares.

a c i o n a l
condição de diretores, estavam José Ó de Assim, pode-se ver nos programas da Festa
Almeida, Dr. Antonio Gonçalves Nunes e de Nazaré até o início do século 20 uma série

N
João Gonçalves Ledo (“Grande Festa”, Treze de diversões populares: paticídio (morte do

r t í s t i c o
de Maio, 5 out.1854, p. 1). Observe-se a pato), porquicídio (morte do porco), porco

presença de uma mulher na condição de juíza, ensebado, mastro de cocagne (pau de sebo),

A
danças de grupos africanos, de índios, de anãos
cargo máximo da organização. A programação

e
e muitos fogos de artifício. A Festa de Nazaré

i s t ó r i c o
da Festa de Nazaré incluía sempre, além dos
possuía “um aspecto cômico popular e público,
atos religiosos, atividades lúdicas no arraial
consagrado também pela tradição” (Bakhtin,

H
de Nazaré, geralmente anunciadas como

a t r i m ô n i o
1996:4). Além disso, havia a exibição de ima-

Márcio Couto Henrique


“entretenimentos”, “regozijos públicos”,
gens em poliorama, apresentações teatrais e
“inocentes divertimentos”. Segundo matéria
orquestras com música clássica. Esses elemen-

P
publicada em 1873, tos da programação eram vistos como neces-

d o
sários para a educação do “povo miúdo”. Mas,

e v i s t a
(...) é sabida a origem dos divertimentos pelo
tempo das festividades ali feitas, pois sendo aquela os atrativos da festa eram acessíveis a todos, no

R
Ermida nos arrabaldes da cidade, e tendo o povo mesmo espaço do arraial, espaço de circulari-
de fazer um longo caminho, houveram os festeiros dade em que negros, índios e brancos serviam-
de proporcionar ao povo que vai ali desobrigar sua -se da festa como espaço comum de trocas.
alma ante os pés da Virgem Mãe entretenimentos Em 1876, dizia-se que “a legendária
para que não lhes parecesse tão penosa a jornada festa popular de Nazaré, para a qual o Pará
(O Liberal do Pará, 23 nov.1873, p. 2). inteiro concorre, teve ontem o seu esplêndido

277
Círio de Nazaré,
Belém (PA), 2017
Foto: Walter Firmo.
começo: o Círio. Todas as classes, idades e o horário da realização da procissão para o
Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré

sexos concorreram pressurosos e cheios de período da manhã, em função das chuvas


a c i o n a l

júbilo (...)” (A Constituição, 16 out.1876, constantes em Belém no período da tarde,


p. 2). Sempre esteve, também, associada os diretores da época publicaram nos jornais
à ideia de multidão e, principalmente, de
N

uma nota em que anunciavam a possível mu-


r t í s t i c o

festa popular. Em 1872, já se falava desse dança, mas diziam:


evento como “a mais popular e no seu
Contudo, reconhecendo a Diretoria que a
A

gênero a mais importante que celebra-se


Festa de Nazaré, sendo de todos, deve ser feita a
e

(sic) em todo o Brasil” (O Liberal do Pará, 5


i s t ó r i c o

aprazimento do povo e não só seu, fazendo ma-


nov.1872, p. 2) ou que o “tradicional Círio” nifestação do desejo desta renovação, tem por fim
é “a festa por excelência da nossa futurosa fazer apelo ao espírito público, porque segundo ele
H

capital, onde o luzimento do festival católico


a t r i m ô n i o

é que a Diretoria fará ou não a indicada inovação


Márcio Couto Henrique

ascende a grandes proporções de entusiasmo, (“Festa de Nazaré”, Treze de Maio, 5 set.1854, p. 4,


indescritível quase, de toda a populosidade grifos meus).
P

paraense” (O Democrata, 15 out.1893, p. 1).


d o

De algum modo, a Irmandade de Nazaré


A multidão presente no Círio servia de
e v i s t a

procurava criar mecanismos de participação


elemento de comparação em situações em
popular, não apenas na execução, mas também
R

que se pretendia evidenciar a quantidade de


pessoas em determinados eventos. Assim, na organização do Círio. Afinal, a diretoria
ao se referir à Romaria de São Sebastião, no tinha consciência de seu papel de organizadora
lugar chamado Pinheiro (atual Icoaraci), em de uma festa que era “de todos”, que deveria,
1892, dizia-se que “foi tal a multidão de povo portanto, ser realizada “a aprazimento do
que acompanhou a romaria, que só pode ser povo” e não apenas dos diretores. Seria, então,
comparada a do Círio de Nazaré” (Correio a partir da consideração desse “espírito públi-
278 co” que a diretoria efetuaria ou não a mudança
Paraense, 4 out.1892, p. 2).
Concluída a programação da Festa de do horário da procissão, fato que acabou acon-
Nazaré, eram os diretores que convidavam as tecendo. Em outras situações, algumas mu-
autoridades para participar das atividades. Ofí- danças sugeridas não foram bem-vindas, como
cios eram enviados ao governador ou presiden- quando os comerciantes de Belém solicitaram
te da província a fim de garantir a participação a transferência do Círio para um domingo
dos soldados durante a procissão. Outros eram posterior ao que estava programado. Dizia a
enviados às autoridades religiosas. nota do jornal que “sendo de interesse geral o
A Diretoria de Nazaré fazia uso dos jor- pedido dos distintos comerciantes, cremos que
nais para informar os devotos sobre a progra- a respectiva diretoria atendê-lo-á.” (A Repúbli-
mação e para fazer consultas sobre possíveis ca, 20 out.1900, p. 1).
alterações. Cabe destacar aqui a atitude da A mudança para a data sugerida pelos
diretoria de 1854, que resultou em uma das comerciantes não ocorreu, o que indica que o
principais mudanças na programação do referido pedido não foi considerado de “inte-
Círio de Nazaré. Quando pensou em mudar resse geral”. Exemplos assim evidenciam que,
até o século 19, havia um diálogo entre os Além das meretrizes, era comum os jornais

Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré


organizadores da Festa de Nazaré e os devotos noticiarem a presença de capoeiras, negros

a c i o n a l
da santa, dada a consciência de que a festa escravizados e libertos, índios, pais de santo e
tem vários donos (Schwarcz, 2003). “macumbeiros” (Alves, 1980) nos eventos que
Em 1877, o jornal O Liberal do Pará pu-

N
constituíam o Círio de Nazaré4.

r t í s t i c o
blicou um “Pedido justo” dirigido à diretoria: Até meados do século 19, a posse da
igreja de Nazaré era motivo de conflito entre
“(...) que a bem da moral pública não consinta

A
que no corrente ano seja o Círio da mesma Senho- a Irmandade de Nazaré e o bispado. Em 11

e
i s t ó r i c o
ra acompanhado a carro pelas meretrizes, como de dezembro de 1877, depois de uma grande
tem acontecido em alguns anos anteriores, que até reforma, a irmandade enviou ofício ao presi-
escravas acompanharam, fazendo deste modo que dente da província argumentando que a obra

H
a t r i m ô n i o
as famílias não pudessem acompanhar. contou não apenas com dinheiro da Assem-

Márcio Couto Henrique


Não há dúvida que ao pé de Deus todos somos bleia Legislativa, mas também com doações
iguais, mas a sociedade estabeleceu diversas classes
de moradores da capital e do interior da pro-

P
e por isso dizemos – cada macaco no seu galho
víncia do Pará. Dizia, ainda, o ofício: “Julga,

d o
(...)” (O Liberal do Pará, 3 out.1877, p. 2).

e v i s t a
ainda, esta mesa, dever chamar a atenção de
No ano seguinte, ao rebater a crítica de V. Exc. para o fato de ter sido construída a

R
Dom Macedo Costa de que “mulheres de nova Igreja de Nazaré em terreno de proprie-
triste vida ostentavam com todo o desgarre a dade desta Irmandade, que o cedeu gratuita-
insolência do seu luxo”, matéria no jornal O mente para o alargamento do respectivo ar-
Liberal do Pará (26 nov.1878, p. 1) respondia raial”. A irmandade concluía reivindicando a
dizendo que posse da nova igreja: “fundado, portanto, em
tão valiosos motivos vem esta mesa regedora
“(...) em primeiro lugar, não nos recordamos
de ter visto essas mulheres no Círio, pelo
requerer a V. Exc. se digne mandar entregar, 279

contrário, vimos, como é de costume a longos com as formalidades da lei, à Irmandade de


anos, grande número das melhores famílias do Pará Nossa Senhora de Nazaré do Desterro a nova
acompanhando o Círio. Mas, se algumas dessas igreja (...)” (Ofício..., Pará, 11 dez.1877). Os
mulheres também o acompanhou, como pô-las membros da irmandade se sentiam donos do
fora? Não tinha a diretoria autoridade para isso”. prédio da igreja e dos seus paramentos, ofere-
Ora, se “ao pé de Deus todos somos cendo-os aos padres como empréstimo para a
iguais” e sendo o Círio de todos, a Diretoria prática dos atos religiosos, fato que o bispo do
da Festa de Nazaré parecia não compartilhar Pará não aceitava.
da ideia de colocar “cada macaco no seu
4. Nos últimos anos, a Diretoria de Nazaré tem pressionado os
galho”. Todos deveriam ter respeitado seu órgãos públicos no sentido de extinguir a Festa da Chiquita, que
ocorre no sábado da Trasladação nas redondezas do Teatro da Paz,
direito de acompanhar a procissão onde qui- na Praça da República, ponto de passagem da Trasladação. A Festa
sessem. Não passava pela cabeça dos diretores da Chiquita, realizada desde 1978, é organizada por grupos homos-
sexuais de Belém que atribuem ao evento caráter de contestação ao
excluir as meretrizes da festa ou colocá-las preconceito, de busca de espaço e reconhecimento social. Do ponto
de vista da Diretoria de Nazaré trata-se de uma prática profana,
num lugar separado dos demais devotos. ofensiva, sem relação alguma com o Círio de Nazaré.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

280
Márcio Couto Henrique Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré

Foto: Hannah Pontes.


Belém (PA), 2017
afro-brasileira,
religiosidade
a presença da
de Nazaré, com
Auto do Círio
G e s t ã o t e c n o c r ata bispos romanizadores procuravam diminuir

Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré


do
Círio de Nazaré a autonomia dos devotos, reforçando a

a c i o n a l
autoridade da Igreja brasileira e sintonizando
No século 19, o Círio de “festas profanas a ação da instituição com as diretrizes vindas

N
e alegrias ruidosas” (Montarroyos, 1992), da Igreja romana, daí o termo romanização.

r t í s t i c o
começou a receber fortes críticas de religiosos Em 1910 foi instituída a Diretoria da
e intelectuais. Em 1877, os devotos exibiram Festa, que substituiu a Irmandade de Nazaré

A
no arraial quadros em que apareciam na organização do Círio. Atualmente,

e
ela é constituída por trinta diretores,

i s t ó r i c o
imagens de mulheres nuas (A Boa Nova, 31
out.1877, p. 2). Indignado, Dom Macedo todos voluntários, dos quais cinco são
Costa proibiu a continuidade das orações beneméritos. Quem preside a Diretoria

H
a t r i m ô n i o
na igreja de Nazaré. Por sua vez, o povo da Festa é sempre o pároco da Basílica

Márcio Couto Henrique


arrombou a porta da igreja e continuou as Santuário de Nazaré. Abaixo dele está o
rezas, mesmo sem a presença dos padres. O diretor-coordenador, leigo, que possui

P
conflito permaneceu em 1878 e 1879, anos mandato de 2 anos. Essa organização,

d o
em que ocorreram os chamados “círios civis”, hierarquicamente submissa ao arcebispo

e v i s t a
ou seja, o Círio foi realizado apenas pelos (presidente do Conselho Consultivo) e ao

R
devotos conduzindo a imagem da santa, sem pároco de Nazaré (diretor da festa), revela
a presença de membros da igreja. Em 1878, como a igreja local conseguiu obter o
o jornal O Liberal do Pará (26 nov.1878, p. controle de uma devoção de origem popular.
1) publicou matéria em que dizia que “estas Oficialmente, apenas homens católicos
figuras não são mais do que a reprodução podem fazer parte da Diretoria da Festa,
daquelas que o mundo inteiro vê nos museus muito embora os diretores reconheçam que,
e até no próprio Vaticano, já representando na prática, o trabalho das mulheres é essencial 281
personagens mitológicas, já os chefes da obra para a realização da festa. Ao relatar sua
de celebrados artistas”. experiência como esposa de diretor, Mízar
Muito provavelmente, tratava-se de Bonna (1992:111) fez referências a essa
reproduções do tema de Vênus, como característica da diretoria:
no quadro “As três graças”, pintado por
Rubens, em que três mulheres aparecem nuas 1965. Marido na Diretoria... a mulher... na
cozinha da Barraca da Santa.
(Simson, 1996). Somente depois de muitas
1966. Marido na Diretoria... a mulher... já
negociações o Círio de 1880 contou com o
na Presidência da Confraria de Nossa Senhora de
retorno dos padres, encerrando a chamada
Nazaré, fui me intrometendo aos poucos no que
“Questão nazarena”. A ação de Dom Macedo
chamava brincando de Clube do Bolinha.
Costa fazia parte do processo de romanização
que, a partir de meados do século 19, Note-se que a distribuição de tarefas na
marcou as relações entre Igreja e Estado, diretoria reproduzia a hierarquização social
bem como as relações entre Igreja e adeptos entre homens e mulheres presente nos demais
do catolicismo popular (Neves, 2009). Os setores da sociedade: homens assumindo cargos
de direção, enquanto as mulheres estavam na Nazaré, as mulheres dos diretores precisam se
cozinha. Em outras palavras, homens diretores “intrometer” no “Clube do Bolinha”.
e mulheres tidas como “ajudantes”. Reservando Em O carnaval devoto, Isidoro Alves
para si o poder exclusivo de organização do argumentou que o Círio de Nazaré depende
282 Círio, os homens relegaram às mulheres a de um equilíbrio entre o aspecto popular
presidência da Irmandade de Nazaré, agora da festa e o aspecto racionalizador ou
destituída da função administrativa que exercia disciplinador da organização formal do
desde a instituição do Círio, em 1793. Por evento. A partir de pesquisa de campo feita
isso, mesmo sendo presidente da irmandade, em 1974–1975, o autor apontava para um
Mízar Bonna afirma: “fui me intrometendo “modelo de gestão tecnocrata” que pretendia
aos poucos”, estratégia feminina de ir minando controlar e disciplinar o aspecto popular
os espaços de poder masculinos. Em tom do evento. O predomínio de qualquer um
de “brincadeira”, Mízar Bonna toca num dos lados trará “um desequilíbrio para a
ponto controverso da organização do Círio de festa” (1980:33). De qualquer modo, o
Nazaré: num evento que homenageia Maria, Círio “perderá em eficácia, visto que isto
mulher, mãe de Jesus Cristo, considerada a depende do equilíbrio em suas diferentes

Série Círio-Corda-
“Rainha da Amazônia”, as mulheres ficam de manifestações” (ibid.). Ora, o que se percebe
Corpo (1985-2014).
Negativos 35mm fora da composição oficial da Diretoria da na história do Círio é um progressivo
digitalizados
Fotos: Patrick Pardini. Festa. Para ter voz na organização da Festa de esvaziamento de sua dimensão popular.
Além da Diretoria da Festa, outra décadas de 1960 e 1980, a Diretoria de
instância de controle e disciplina dos devotos Nazaré distribuía crachás para determinadas
é a Guarda de Nazaré, instituída em 1974 e pessoas acompanharem o Círio no espaço da
constituída por voluntários do sexo masculino corda. Assim dizia o jornal Diário do Pará
que, desarmados, são responsáveis pela em 5 de outubro de 1984:
283
“garantia da ordem” e proteção da berlinda Serão distribuídos mil crachás para o Círio
que conduz a imagem da santa. Assim, se de Nossa Senhora de Nazaré. Como acontece
no século 19 a Diretoria da Irmandade não todos os anos, eles serão expedidos somente para
se sentia autorizada a excluir quem quer as autoridades, clero e diretoria da festa, que
que fosse do Círio, as coisas mudam com a acompanham a procissão na corda das autoridades,

instituição desse aparelho disciplinador. cujo espaço ocupam atrás da berlinda da Santa.

Com a inserção da corda para puxar Dessa forma, criava-se um espaço de


a berlinda, o espaço ao longo dela passou distinção onde pessoas privilegiadas poderiam
a ser um dos mais disputados para o acompanhar o Círio, exatamente na área
pagamento de promessas. A partir de 1974, mais disputada pelos devotos, aos quais era
coube à Guarda de Nazaré o papel de negado o mesmo privilégio. Com as críticas
proteger a berlinda e, de certa forma, afastar constantes, os crachás foram abolidos.
determinados grupos, como os chamados Muitas vezes a disputa pela possibilidade
“macumbeiros’’ (Alves, 1980). Entre as de segurar a corda é resolvida com empurrões
e força física, o que faz desse espaço uma área licença a alguém para documentar um ato público,
284
de tensão permanente. Assim, a Guarda de no meio da rua e nas praças. 
Nazaré precisa, igualmente, de muita força
Na seção de comentário dos leitores do
física para controlar os devotos e proteger a
blog, surgiram relatos de diversos casos de ações
berlinda. Todos os anos surgem denúncias,
especialmente de jornalistas, que acusam a violentas atribuídas tanto à Guarda de Nazaré
Guarda da Santa de agir com “truculência”. quanto a policiais envolvidos na segurança
Veja-se, como exemplo, o que disse o durante o Círio. Em outubro de 2015, outra
jornalista Manuel Dutra em seu blog (“Quem denúncia (“Guarda da santa...”) dizia:
manda no Círio...”), em outubro de 2013: Tão “tradicional” quanto o Círio e suas
(...) a quem pertence o Círio? Ao povo manifestações é a eterna luta entre os que se
católico e cristão em geral, ou às “autoridades”, acham “donos” dessa grande festa religiosa e os
notadamente as autoridades policiais? Quem lhes profissionais de imprensa que fazem a cobertura
deu o poder de escolher quem deve ou não deve dela, seja os de imagem, seja os de texto.
fotografar e filmar uma manifestação pública como Todos nós que já cobrimos as procissões,
o Círio? (...). Nunca me passou pela cabeça pedir especialmente a do Círio, já tivemos problemas
de ser agredidos, ora pela “Guarda da Santa”, ora teriam livre acesso à imagem da santa,
285
pelos militares que ajudam na procissão. enquanto jornalistas passam por um crivo
É hora de se perguntar, afinal, de quem é a
mais rigoroso.
Festa de Nazaré?
Um ex-integrante da Guarda de Nazaré,
A publicação gerou um acirrado debate que chamarei aqui de Nazareno de Maria5, fez
na página do blog, com opiniões favoráveis e o seguinte relato:
contrárias ao conteúdo. Além das críticas à
No meu primeiro Círio como Guarda vi de
suposta truculência dos guardas de Nazaré,
perto a guarda formada para proteger a Diretoria,
os jornalistas chamam atenção para o fato
não para proteger a Santa que eles falam! E sem
de se tratar de uma “festa pública”, um pudor, respeito e elegância vão afastando cada
“momento de todos” e questionam o direito vez mais o povo, com atitudes truculentas! A
que a diretoria se porte como “dona da Guarda precisa se livrar de seus atuais donos, que
festa”. Outros criticam supostos privilégios desprezam o povo. Série Círio-Corda-
Corpo (1985-2014).
concedidos a determinado grupo de pessoas Negativos 35mm
digitalizados
do clero ou representantes do Estado, que 5. Entrevista concedida em 17 de junho de 2018. Fotos: Patrick Pardini.
Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Márcio Couto Henrique


P
d o
e v i s t a
R

Além de apontar para o afastamento alegou a respeito de outros aspectos da de-


do povo, o entrevistado repete a crítica voção popular ao longo do tempo. Eis mais
feita pelos jornalistas, no sentido de que a um exemplo de mudança de rumo no Círio
Guarda de Nazaré e o Círio possuem “donos” que passou muito longe da participação
distanciados do povo e que, ao mesmo popular no que diz respeito à tomada de
tempo, operam o afastamento entre povo e decisões. É preciso lembrar que toda festa é,
286
imagem de Nossa Senhora de Nazaré. também, um ato político e, portanto, está
Outro exemplo indicativo da “gestão associada a determinado discurso de poder
tecnocrata” do Círio de Nazaré é a intro- (Foucault, 1982). As festividades consti-
dução da Romaria Fluvial, em 1986, por tuem local privilegiado da produção de
Maquete da Procissão,
artesanato de miriti iniciativa da Companhia de Turismo do memória, posto que são “um dever religioso
de Amadeu Gonçalves
Sarges (Amadeu), Estado do Pará – Paratur, estando, por- e um ato político” (Pantel, 1998).
representando a
procissão com a tanto, diretamente ligada a interesses da
imagem de Nossa
Senhora de Nazaré da indústria cultural ou do turismo6. Depreen- Ao povo o que é do povo
Basílica até a Catedral
da Sé, em Belém (PA), de-se, portanto, que os organizadores não
premiado na Mostra
Miriti das Águas, 2003. consideram tal iniciativa uma contradição Sendo o Círio uma “festa de todos”,
Acervo: Museu do Círio/
Secretaria de Estado ao espírito religioso do Círio ou como uma originada a partir de uma devoção popular
da Cultura do Pará
Foto: André Vilaron/
Acervo Iphan, 2018. profanação da festa, como tantas vezes se e que carrega ao longo de seus 225 anos de
existência a participação popular como sua
6. Procissão fluvial, acompanhada por centenas de embarcações, marca principal, seria interessante a criação
em que a imagem de Nossa Senhora de Nazaré é transportada em
navio da Marinha pela baía do Guajará. de mecanismos de participação do povo na
Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Márcio Couto Henrique


P
d o
e v i s t a
R
organização da Festa de Nazaré. Se no século A abertura de canais de comunicação Círio de Nazaré,
Belém (PA), 2009
19 os diretores utilizavam os jornais para se entre a Diretoria de Nazaré e o povo Foto: Walter Firmo.

comunicar com os devotos, hoje os recursos permitiria, também, ouvir as vozes


são muito mais variados e efetivos. dissonantes entre os cidadãos de Belém,
Nesse sentido, a Diretoria de Nazaré sufocadas pelo discurso da unanimidade em
poderia abrir canais de comunicação para que torno do Círio de Nazaré. Muitos habitantes
287
os devotos e cidadãos em geral apresentem de Belém reclamam, por exemplo, do grande
suas críticas e sugestões. Algumas medidas número de romarias, onze atualmente
simples poderiam ser tomadas utilizando reconhecidas como oficiais pela Diretoria da
os recursos virtuais da internet. A escolha Festa. A espetacularização (Debord, 1997) do
do manto que veste a imagem da santa, por Círio faz com que a cada ano surjam novas
exemplo, poderia ser mais democrática, aberta, homenagens não oficiais a Nossa Senhora de
inclusive, para a participação dos devotos e Nazaré, com os mesmos impactos causados
ou/artistas. A escolha final caberia ao povo, pelas homenagens oficiais. Urge, portanto,
em eleição nas paróquias ou por meio de voto refletir sobre a quantidade de homenagens,
digital. Outro elemento muito valorizado sejam elas oficiais ou não, de modo a
pelos devotos é o cartaz do Círio, que também diminuir os impactos no cotidiano dos
poderia ser objeto de concurso público, aberto moradores (Henrique, 2016).
à participação de todos, sem que se perdesse A fim de eliminar os casos de
a orientação atual de fazer o cartaz de acordo desentendimentos e agressões físicas durante
com o tema do Círio de cada ano. a Festa de Nazaré, cursos de formação
poderiam ser feitos com as instituições devolver a organização do Círio à irmandade
Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré

responsáveis pela segurança do Círio de ou de desmerecer o árduo e eficiente trabalho


a c i o n a l

Nazaré, especialmente os agentes da Guarda da atual diretoria. A questão é a preservação


de Nazaré e dos demais órgãos que prestam da vitalidade da Festa de Nazaré naquilo
apoio durante as procissões. O diálogo e a que ela tem de original, a participação
N
r t í s t i c o

sensibilização quanto à definição dos espaços popular. Ampliar as formas de participação


e das atribuições de cada um ajudariam, no popular permitiria estender os “efeitos de
A

sentido de evitar cenas que comprometem consagração” (Bourdieu, 1974) dessa grande
e

a ideia de uma festa religiosa que celebra festa. Em se tratando de uma “festa de todos”,
i s t ó r i c o

a tolerância. de uma “festa popular”, a participação do


Como vimos anteriormente, no século povo não pode ser apenas contemplativa.
H

19 era permitida a presença de mulheres Afinal, a história está aí para nos mostrar que
a t r i m ô n i o

Márcio Couto Henrique

na condição de juízas da Festa de Nazaré, o Círio de Nazaré já ocorreu algumas vezes


cargo máximo da organização. Com a sem o clero. Mas, sem o povo, nunca.
P

criação da Diretoria de Nazaré, a tarefa de


d o

organizar o Círio se tornou uma exclusividade Referências


e v i s t a

masculina. Num tempo em que a igualdade


ALVES, Isidoro. O carnaval devoto. Petrópolis: Vozes,
R

de gênero constitui uma pauta fundamental


1980.
das mulheres, nada justifica o privilégio
BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Compêndio das eras
concedido aos homens na Diretoria e na da província do Pará. Belém: UFPA, 1969.
Guarda de Nazaré. A presença feminina ______. Ensaio corográfico sobre a Província do Pará. 2 ed.
nesses espaços seria um importante Brasília: Senado Federal, 2004.

reconhecimento da importância das BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e


no Renascimento. O contexto de François Rabelais. São
mulheres na preservação e renovação do Paulo: Hucitec; Brasília: UNB, 1996 [1977].
288
Círio de Nazaré. BONNA, Mízar Klautau. Círio: painel de vida. 2 ed.
O número de palanques ao longo Belém: Secult, 1992.

do trajeto do Círio de Nazaré precisa ser BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São
Paulo: Perspectiva, 1974.
limitado. Construídos geralmente para
COELHO, Geraldo Mártires. Uma crônica do
satisfazer os turistas, eles acabam ocupando maravilhoso: legenda, tempo e memória no culto da
os espaços tradicionalmente utilizados pelos Virgem de Nazaré. Belém: Imprensa Oficial do Estado,
1998.
devotos, que ficam espremidos durante a
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de
passagem da imagem da santa. Da mesma
Janeiro: Contraponto, 1997.
forma, a expansão das arquibancadas pagas DUBOIS, Pe. Florêncio. A devoção à Virgem de Nazaré.
diminui o espaço de quem não tem como Belém: Imprensa Oficial, 1953.
Dia a dia do Artesão,
artesanato de miriti,
pagar ou de quem prefere assistir a passagem FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de
de Raildo Morais de janeiro: Graal, 1982.
Peixoto (Gordinho),
da procissão nas calçadas da Avenida
2003. Acervo Museu GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo:
do Círio/Secretaria
Presidente Vargas.
Companhia das Letras, 2001.
de Estado da Cultura
do Pará Não se trata de devolver a posse da igreja HARRIS, Mark. Rebelion on the Amazon: the cabanagem,
Foto: André Vilaron/
Acervo Iphan, 2018. de Nazaré ou da imagem da santa ao povo, de race and popular culture in the North of Brazil, 1798-
1840. Nova York: Cambridge University Press, 2010. manda-no-cirio-censura-religiosa.html, acessado em 11

Par ticipação e exclusão popular no Cír io de Nazaré


HENRIQUE, Márcio Couto. Do ponto de vista do de junho de 2018.
pesquisador: o processo de registro do Círio de Nazaré https://jornalistasdopara.blogspot.com/2015/10/guarda-

a c i o n a l
como patrimônio cultural brasileiro. Amazônica – Revista da-santa-e-militares-agridem.html, acessado em 11 de
de Antropologia (on-line), v. 3, Belém, p. 324-346, 2011. junho de 2018.

N
______. “Círio de Nazaré: entre a fé e o espetáculo”. In:
Manuscritos

r t í s t i c o
FREITAS, Ricardo Ferreira; LINS, Flávio; SANTOS,
Ofício da Irmandade de Nazaré para Dr. João Capistrano
Maria Helena Carmo dos (orgs.). Megaeventos,
Bandeira de Mello Filho, presidente da província do Pará.
comunicação e cidade. Curitiba: CRV, 2016, p. 289-318.
Pará, 11 de dezembro de 1877, Arquivo Público do Pará,

A
IPHAN. Círio de Nazaré. Dossiê Iphan. Rio de Janeiro: Fundo: Secretaria da Presidência da Província, série: 13,

e
Iphan, 2006. Ofícios, caixa 349, Ofícios das autoridades eclesiásticas,

i s t ó r i c o
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, pajés, santos e doc. 133.
festas: catolicismo popular e controle eclesiástico. Belém:
Jornais
Cejup, 1995.

H
A Boa Nova, Belém, 31 out.1877, p. 2.

a t r i m ô n i o
______. Um aspecto da diversidade cultural do caboclo

Márcio Couto Henrique


A Constituição, Belém, 16 out.1876, p. 2.
amazônico: a religião. Estudos Avançados, n. 53, v.19,p.
259-274, 2005. A República, Belém, 20 out.1900, p. 1.

MONTARROYOS, Heraldo. Festas profanas e alegrias Correio Paraense, Belém, 4 out.1892, p. 2.

P
ruidosas. Belém: Falângola, 1992. Diário do Pará, Belém, 5 out.1984, p. 7.

d o
MOREIRA, Eidorfe. Visão geo-social do Círio. Belém: “Festa de Nazaré”. Treze de Maio, Belém, 5 set.1854, p. 4.

e v i s t a
Imprensa Universitária, 1971. “Grande Festa”, Belém, Treze de Maio, 5 out.1854, p. 1.
NEVES, Fernando Arthur de. Solidariedade e conflito:

R
“Noites de Nazaré”, O Liberal do Pará, Belém, 25
estado liberal e nação católica no Pará sob o pastorado de out.1877, p. 1.
Dom Macedo Costa (1862-1889). Tese de Doutorado.
O Democrata, Belém, 15 out.1893, p. 1.
Programa de Pós-graduação em História da PUC-SP,
2009. O Liberal do Pará, Belém, 5 nov.1872, p. 2

PANTEL, Pauline Schmitt. “As refeições gregas, um O Liberal do Pará, Belém, 23 nov.1873, p. 2.
ritual cívico”. In: FLANDRIN, J. L.; MONTANARI, O Liberal do Pará, Belém, 3 out.1877, p. 2.
M. (orgs.). História da alimentação. São Paulo: Estação O Liberal do Pará, Belém, 26 nov.1878, p. 1.
Liberdade, 1998, p. 155-169.
O Liberal do Pará, Belém, 18 out.1879, p. 1.
RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania e identidade 289
Treze de Maio, Belém, 19 set.1840, p. 183
revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia
entre 1835 e 1840. Tempo, v. 11, Rio de Janeiro, p. 15- Treze de Maio, Belém, 11 mai.1850, p. 4.
40, 2006. Treze de Maio, Belém, 5 out.1854, p. 2.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador:
D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003 [1998].
SIMSON, Otto von. Peter Paul Rubens 1577-1640:
humanist, maler und diplomat. Mainz: Philip
vonZabern, 1996.
VIANNA, Arthur. “Festas populares do Pará: I - A Festa
de Nazareth”. In: Annaes da Bibliotheca e Archivo Publico
do Pará, v. 3. Belém, 1904, p. 225-241.

E n t r e v i s ta s
Nazareno de Maria. Entrevista concedida em 17 de
junho de 2018.

Fontes eletrônicas
http://blogmanueldutra.blogspot.com/2013/10/quem-
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

290
Cristian Pio Ávila Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas
Cr istian Pio Ávila

a c i o n a l
P atrimônio imaterial – estabilidade , crise e seus
trânsitos . M ás e boas contribuições do A mazonas

N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o
Patrimônio imaterial é uma expressão do denominado patrimônio imaterial
que vem se popularizando entre os amazonense. Trabalhos como o de resgate
amazonenses. No entanto, isso não levou a da memória oral de mestres de ofícios, de

P
um esclarecimento mais preciso da população celebrações, o incentivo à produção artesanal

d o
acerca da noção de patrimônio imaterial ou

e v i s t a
tradicional e os planos de salvaguarda às
de quais bens culturais se adequariam aos expressões em vias de desaparecimento têm

R
paradigmas normativos que praticamente se sido desde então as diretivas desse órgão.
repetem nas normas estaduais que advieram Em 2007, a Assessoria de Patrimônio
ao Decreto nº 3.551, de 20001. Cultural Imaterial se tornou a Gerência de
Da mesma forma, ainda há um Patrimônio Cultural Imaterial, ligada agora ao
desconhecimento generalizado a respeito Departamento de Patrimônio Histórico e ainda
das formas de intervenção pública sobre os sob a égide da Secretaria de Estado de Cultura.
bens a serem protegidos, das etapas para a Todos os trabalhos produzidos por 291
consecução de um registro ou dos efeitos sua equipe, formada por antropólogos e
gerados por ele.
historiadores, têm seguido as orientações
No estado do Amazonas, foi criada em
promulgadas pela Unesco na Convenção
2004, no âmbito da Secretaria de Estado
para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
de Cultura – SEC-AM, a Assessoria de
Imaterial de 2003 e na Convenção sobre a
Patrimônio Cultural Imaterial, responsável
Proteção e Promoção da Diversidade das
por indicar as ações públicas voltadas à
Expressões Culturais de 2005. Além dessas,
promoção das culturas populares e indígenas.
serviram como inspiração o próprio Decreto
Desde então a assessoria se ocupou
nº 3.551, a regulamentação desse decreto e as
dos planos de identificação e salvaguarda
políticas de inventário propostas pelo Iphan.

1. O relatório de Cavalcanti & Fonseca Patrimônio Imaterial no


Adotando esses modelos, a Gerência
Brasil... (Brasília: Unesco, Educarte, 2008) nos apresenta um de Patrimônio Cultural Imaterial, junto
panorama da legislação e políticas estaduais implantadas no país Procissão fluvial da
festa de São Pedro,
acerca do tema. Demonstra que o Decreto nº 3.551/2000 foi o ao Secretário de Estado de Cultura do lago do Janauari,
modelo seguido pela quase totalidade das legislações estaduais e Iranduba (AM), 2014
municipais no Brasil. Amazonas Robério Braga, elaborou um Foto: Chico Lima.
Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Cristian Pio Ávila


P
d o
e v i s t a
R

projeto que resultou na edição do Decreto recriado pelos diversos grupos sociais em função
nº 29.544, de 14 de janeiro de 2010, que do meio em que vivem, e traduzam o sentimento
292
instituiu as políticas de registro e salvaguarda de identidade, contribuindo para a manutenção e
dos bens culturais de natureza imaterial promoção do respeito pela diversidade cultural e

no Amazonas. O decreto estabelece quais criatividade presente no Amazonas.


características os bens devem apresentar para
Esses bens podem ser inscritos em
serem considerados patrimônio imaterial do
qualquer dos cinco Livros de Registro:
estado, bem como regulamenta a instrução do
Celebrações, Modos de Fazer e Saber,
processo de registro.
Lugares, Formas de Expressão e Línguas.
Lago do Espelho da No decreto estadual, entendem-se como
Lua, rio Nhamundá,
Além disso, estabelece como premissa bá-
Amazonas, 2001 bens do patrimônio cultural imaterial:
Foto: Elza Lima.
sica do registro a sua continuidade histórica e
(...) as práticas representações, expressões,
relevância para o sentimento de pertencimen-
No Sistema Agrícola conhecimentos, aptidões, objetos, artefatos e
Tradicional do to, memória social, identidade, formação e
Alto Rio Negro, o espaços culturais que lhes estão associados e
uso da mandioca
que as comunidades, ou grupos e os indivíduos promoção cultural da sociedade amazonense.
representa um dos
pilares da cultura dos
povos da região reconheçam como integrantes do seu acervo Tal decreto dispõe ainda que qualquer
Foto: Carla Dias/
Acervo Iphan, 2009. cultural, transmitido de geração a geração e cidadão do Amazonas, bem como instituições
de ensino e pesquisa, secretarias de estado e por simples força de votação legislativa,

Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.


Más e boas contribuições do Amazonas
municipais, sociedades organizadas em torno patrimônio do estado.

a c i o n a l
do bem em questão, Ministério Público do Foi nesse sentido que a PGE-AM, em
Estado do Amazonas – MP-AM, Procurado- janeiro de 2018, pronunciou-se contra a
ria Geral do Estado do Amazonas – PGE-AM aprovação de lei que tramitava na Assembleia

N
r t í s t i c o
e Conselho do Patrimônio Histórico e Artísti- Legislativa para a aprovação do registro de um
co do Estado, pode requerer a instauração do bem imaterial. Em seu parecer a procuradoria

A
processo de registro. A proposta do registro identificou vício de constitucionalidade e ju-

e
deve vir fundamentada, com identificação do risdição no projeto, já que, por conta dos efei-

i s t ó r i c o
proponente, justificativa do pedido, descrição tos que um registro deve produzir, somente o
detalhada do bem, indicação dos grupos so- Executivo tem competência para aprová-lo e

H
ciais envolvidos, local e tempo da ocorrência, de acordo com os procedimentos já referidos.

a t r i m ô n i o
informações históricas e documentação au- Ora, uma lei que institua um bem

Cristian Pio Ávila


diovisual e bibliográfica do bem. sem inventário não produz nenhum dos

P
Tal proposta deve ser encaminhada à SE- efeitos que a legislação buscou gerar.

d o
C-AM, que complementará as informações Como salvaguardar uma expressão sem as

e v i s t a
através da elaboração de inventário que dê informações mínimas da temporalidade, da
significação simbólica do bem para os grupos

R
conta da coleta pormenorizada dos dados
referentes ao universo simbólico e represen- sociais envolvidos, elementos, afinal, a que
tações associadas ao bem, como também dos devem ser dirigidos os recursos para sua
planos de salvaguarda pertinentes. valorização, promoção e salvaguarda?
Em seguida, depois de concluída a etapa
de pesquisa e identificação, condensam-se os
dados em um dossiê ou relatório de instrução
293
que deve ser encaminhado para a deliberação
do Conselho do Patrimônio Histórico
e Artístico do Estado. Este apresentará
manifestação a respeito da pertinência ou não
do pedido em 45 dias.
Entretanto, os ritos do processo há algum
tempo têm sido ignorados no estado, apesar
das insistentes comunicações da Secretaria
de Estado de Cultura e de outros grupos de
defesa do patrimônio à Assembleia Legislativa
e ao próprio gabinete do governador.
A praxe tem sido a proposição de leis
por deputados e vereadores, acompanhadas
de justificativas sumárias, mas nenhuma
descrição do bem, pretendendo torná-lo,
Em Manaus, em 2014, foi reconhecido que não está registrada como patrimônio
Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas

pela Fundação Palmares o segundo quilombo ou como epicentro de uma manifestação


a c i o n a l

urbano do Brasil, o Quilombo de São patrimonializada?


Benedito (ou do Barranco), no bairro Praça Dessa maneira, a lei estadual não
XIV, instalado naquele local desde o século tem efeito.
N
r t í s t i c o

19. A Secretaria de Estado de Cultura, a O exemplo citado trata de um bem


pedido da própria comunidade, começou que inegavelmente contém todos os
A

os trabalhos de inventário, tendo inclusive elementos necessários ao reconhecimento


e

produzido um extenso material audiovisual como patrimônio imaterial segundo o


i s t ó r i c o

para embasar o processo. decreto estadual. Porém, uma lista de bens


Entretanto, e sem aviso algum, nem sancionados nos últimos anos por simples
H

mesmo à própria comunidade, em 2015 a decisão legislativa pode demonstrar a série


a t r i m ô n i o

assembleia decreta o registro desse Quilombo de equívocos cometidos no Amazonas


Cristian Pio Ávila

como patrimônio imaterial do Amazonas. O quanto aos registros. Para exemplificar,


P

texto legal sequer menciona qual o território, temos um único bonequeiro e ventríloquo
d o

os grupos envolvidos ou as manifestações como patrimônio do estado (e não o “fazer”


e v i s t a

associadas. O projeto de lei nem mesmo do bonequeiro propriamente dito), um


R

conta com uma justificativa. personagem de história em quadrinhos de


Apenas meio ano depois, a casa e o jornal, um livro de crônicas esportivas, uma
terreno, que são definidos pela comunidade rádio privada, a Marcha para Jesus, a toada
como o epicentro da sua vida religiosa e de boi (já tendo sido o boi-bumbá registrado
de suas manifestações culturais, sede de como patrimônio), entre outras “pérolas”.
sua festa – por manter o assentamento Mesmo diante da instrução da PGE e a
do santo e a imagem de São Benedito –, formalidade de consulta dos projetos de lei à
294
fica sub judice. Com o falecimento dos SEC (todos indicados ao veto), os registros
proprietários do lugar, que asseguravam a continuam a ser submetidos pela assembleia à
continuidade das tradições, o novo dono da sanção do governador, que as aprova.
propriedade, filho de criação deles, proíbe os Muitas críticas ao papel do Estado na
ritos de acontecerem ali, por ter-se tornado gestão dos patrimônios recaem sobre o
evangélico. As novenas e as visitas ao santo, exercício de sua função enquanto agência
o hasteamento do mastro votivo, entre de poder. O Estado que, reafirmando
outras celebrações, são afastados dali ou identidades, exerce o controle sobre a
simplesmente proibidos. sociedade, seus indivíduos e seus limites
Sem o devido inventário para embasar culturais através de ações orientadas
ações de salvaguarda dos elementos centrais à produção de formas específicas de
dessa celebração e lugar, não há nada que autoconsciência individual e coletiva.
dê ao estado sustentação legal para intervir Entretanto, nas atividades legislativas do
nessa situação. Que razões poderiam estado do Amazonas, a ação política inerente
justificar a desapropriação de uma casa à patrimonialização, considerando-se o perfil
dos bens registrados, parece configurar-se Categoria essa instrumental, constituída

Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.


Más e boas contribuições do Amazonas
mais como moeda de apoio politico, ou por revisões históricas de desenvolvimento,

a c i o n a l
mesmo de reafirmação das alianças entre democratização da cultura e representações
facções e seus grupos de apoiadores, do que que servem a propósitos, nem sempre claros e
definidos, de inclusão de diferentes camadas

N
necessariamente como uma ação coordenada

r t í s t i c o
de produção de consciência e narrativas e grupos sociais em um ideal multifacetado,
de identidade. porém, integrador, de nação. Além disso, de

A
Além disso, outros problemas são ampliação da participação desses mesmos gru-

e
evidentes: a escassa comunicação entre pos em políticas governamentais de preserva-

i s t ó r i c o
as entidades promotoras de cultura e a ção e valorização do “autêntico” nacional – o
Assembleia Legislativa, a inexistência de um que quer que, no momento, seja isso.

H
Cremos que esse discurso, atrelado ao da

a t r i m ô n i o
Conselho de Patrimônio Histórico há pelo
menos cinco anos e, no centro disso, disputas construção de um ideal de nação, obedece a

Cristian Pio Ávila


que envolvem omissões, ressignificações campos específicos de interesse, conduzidos

P
e transgressões nas representações do pelos agentes públicos do patrimônio

d o
patrimônio imaterial enquanto categoria. (funcionários do Iphan, secretários de cultura,

e v i s t a
dirigentes culturais, Conselho Consultivo
do Iphan, membros do Centro Nacional

R
P at r i m ô n i o enquanto
r e p r e s e n ta ç ã o e de Folclore e Cultura Popular – CNFCP,
c at e g o r i a p o l í t i c a antropólogos, historiadores, consultores,
funcionários de departamentos e de
José Reginaldo Santos Gonçalves, em fundações de patrimônio etc.). Utilizando
narrativas cristalizadas sob a tutela de leis,
seu já clássico estudo sobre a constituição da
decretos, cartas2 e outros dispositivos, eles
noção de patrimônio no Brasil, prefacia: 295
produzem representações às vezes divergentes
Interpreto esses discursos (sobre patrimônio) sobre identidade, memória nacional,
como narrativas nacionais, isto é, modalidades autenticidade e tradição.
discursivas cujo propósito fundamental é a
Assim, patrimônio é uma forma
construção de uma memória e de uma identidade
específica de discurso, ou, como apontado
nacionais. (…) Enquanto construções discursivas,
por Gonçalves (1996:11), uma forma
essas definições podem ser pensadas como atos
de invenção discursiva que no Brasil é
(Gonçalves, 1996:11).
geralmente associada a intelectuais ligados
Percebemos “patrimônio imaterial” à implementação e formulação de políticas
como uma categoria discursiva basicamente institucionais de patrimônio cultural, desde a
ocidental e, em seu sentido estrito, década de 1930 até os dias de hoje.
pragmática. Ela existe como uma construção
narrativa que historicamente se consolidou 2. Para uma ideia mais abrangente da quantidade de leis e
decretos produzidos no Brasil sobre o tema a partir de 2000, ver
através da atuação política e simbólica do Cavalcanti & Fonseca, 2008. As autoras nos fazem acompanhar
uma série de dispositivos que constituem uma gramática do
Estado moderno e por meio dele se realiza. patrimônio.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

296
Cristian Pio Ávila Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

Foto: Andreas Valentin.


“Belezão”, 2001
chamada de
boi, carinhosamente
alegoria do próprio
trazido por uma
do bumbódromo
entra na arena
O boi Garantido
297

Cristian Pio Ávila Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas
Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas
a c i o n a l
N
r t í s t i c o
A
e
i s t ó r i c o
H
a t r i m ô n i o

Cristian Pio Ávila


P
d o
e v i s t a
R

Esses discursos fazem parte de um amplo sejam os de um governo, sejam os de uma


espectro de narrativas, cujo propósito é o de nação definida em conformidade com códigos
298 construir uma identidade e uma memória socioculturais desses mesmos agentes. Desse
nacional a partir de diversos pontos de vista. modo, originária de um discurso “único”,
Consideramos, entretanto, ainda hegemônico a nação, seu passado e cultura são assim
o que uma determinada categoria – aqui, apresentados como coerentes e contínuos,
no caso, a dos intelectuais do patrimônio – ainda que essa coerência seja menos um dado
define como nação. ontológico do que o efeito de estratégias
A “nação inventada” pode ser definida narrativas predominantes.
por discursos multímodos, enquanto língua No Amazonas, o Executivo, depois de um
nacional, raça, folclore, religião, conjunto de período de protagonismo na promoção e produ-
leis, por uma literatura nacional e ainda, como ção de políticas de patrimônio instruídas pelos
no caso em que me deparo esses anos todos, paradigmas internacionais, acaba por ver-se
por políticas culturais objetivando a defesa e a assomado pela multiplicidade de leis de registro
valorização de um patrimônio cultural. que respondem a díspares interesses de bancadas
Esses atos discursivos são pragmáticos representantes de grupos sociais diversos, com
e têm propósitos políticos bem definidos – representações de mundo muitas vezes opostas.
Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas
N
A
Ha c i o n a l
r t í s t i c o
e
i s t ó r i c o
a t r i m ô n i o

Cristian Pio Ávila


P
Rd o
e v i s t a
Além disso, a falta de conhecimento cultural, incluindo nele todas as formas de
sobre o funcionamento dos complexos expressão relacionadas ao brincar de boi
culturais dispersos por vários sítios, amplos – seus ciclos rituais, seus saberes e fazeres, 299

e interrelacionados, produz registros que seus atores, suas músicas e danças. Dessa
decompõem um único bem em diversos maneira, registrar o Complexo Cultural dos
registros. Por exemplo, mesmo depois do Bois-bumbás contempla todas as expressões
Complexo dos Bois-bumbás de Paritins a ele relacionadas, tornando redundante a
ter se tornado patrimônio do estado em patrimonialização a partir da decomposição
2012, a assembléia passou a promulgar dos seus elementos.
leis que tornavam a toada (a música de Outro exemplo são as festas de carnaval
boi), a Alvorada do Boi Garantido e o Boi da capital amazonense. Patrimonializadas
de Rua do Caprichoso (ritos que abrem bairro a bairro, acabam por excluir da
os festejos de boi), também, patrimônios expressão “Carnaval de Manaus” o seu
Barco Caprichoso
do Amazonas. caráter complexo e interrelacionado, em e barco Garantido.
Torcedores do
Caprichoso e do
No caso dos bois, o inventário que deu que ocorre o trânsito de foliões, artistas, Garantido chegam a
Parintins para o Festival
origem ao registro se compunha de uma comerciantes e da música, apresentando Folclórico
Fotos: Andreas Valentin,
descrição bastante exaustiva do complexo uma folia comum à cidade como um todo. 1999, 1998.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

300
Cristian Pio Ávila Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas

Foto: Andreas Valentin.


Parintins, 1999
arena do Bumbódromo de
Boi Caprichoso evolui na
do tripa Marquinhos, o
Sob o comando
Os equívocos da práxis legislativa têm pro- Enquanto categoria de pensamento,

Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.


Más e boas contribuições do Amazonas
duzido efeitos adversos na população quanto ela ultrapassa as formas estatais de

a c i o n a l
ao entendimento da categoria patrimônio. classificação e pode se converter em um
Não são poucos os pedidos que chegam poderoso instrumento para a autodefinição,
até nós de registro, como patrimônio

N
mobilização e reprodução social do

r t í s t i c o
imaterial do Amazonas, de bares, restaurantes, reconhecimento entre os grupos populares.
festas comerciais, exposições de produtos Nesse sentido, o que nos interessa, mais

A
agrícolas e grupos de música estrangeira. do que descobrir como as identidades estão

e
O registro passa a ser classificado não com sendo “recriadas” ou “defendidas” pelo poder

i s t ó r i c o
“uma função social e simbólica de mediação público, é reconhecer as formas de apreensão
entre o passado, o presente e o futuro do e disseminação da noção de patrimônio e

H
grupo, assegurando a sua continuidade

a t r i m ô n i o
suas diferentes construções semânticas em
no tempo e sua integridade no espaço” grupos diversos.

Cristian Pio Ávila


(Gonçalves, 2007:28), mas como um prêmio, O debate sobre os patrimônios não

P
uma placa de reconhecimento a ser colocada deve, portanto, do ponto de vista analítico,

d o
na parede. Patrimônio passa a ser distinção limitar-se às tarefas de descobrir, defender

e v i s t a
outorgada pelo estado. e preservar “identidades” supostamente

R
Concordamos com Gonçalves (2007), recriadas.
quando apresenta patrimônio como uma Há aí, nos parece, dois movimentos.
categoria classificatória, que exerce funções O primeiro, um trânsito da classificação
de mediação entre ideias, valores e identidade ocidental de patrimônio para grupos não
de grupos e categorias sociais. Assim, através ocidentais, que atualizam a categoria
da produção de identidades, ela é capaz de através de sua concepção nativa, para
organizar a percepção que as pessoas têm de si reconstruí-la sob sua própria perspectiva.
301
e de seu mundo. Nesse movimento, se reconhece a ação do
Esses “objetos patrimoniais” são, portanto, Estado e dos profissionais de patrimônio,
“objetos de agência”, aptos a modificar as per- que introduzem ao grupo uma noção de
cepções da realidade. A classificação de conjun- patrimônio com efeitos políticos.
tos de objetos como patrimônio cultural tem
a capacidade de nos inventar, ao materializar Vale assinalar, no entanto, que essa
consciência da “identidade” não é inteiramente
“uma teia de categorias de pensamento por
estranha à sua experiência e pode também ser
meio das quais nos percebemos individual e
partilhada por eles em diversas situações sociais.
coletivamente” (Gonçalves, 2007:29).
Isso acontece quando eles se apropriam dos
Ainda que sua narrativa mais abrangente
modernos discursos e políticas de patrimônio
tenha se construído e consolidado dentro do e se organizam em movimentos sociais para
Estado e de suas formas de atuação ideológica defender o que chamam de sua “cultura”,
e política, a categoria patrimônio pode ser quando se organizam para construir museus que
encontrada de formas diferenciadas em outras expressariam a sua “identidade” e sua “memória”
sociedades e agrupamentos. (Gonçalves, 2015:214).
Carneiro da Cunha (2009) analisa o bate sobre patrimônio. Primeiro, percebendo
Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas

movimento de “ida-e-volta” da categoria a importação das categorias utilizadas por


a c i o n a l

analítica “cultura”, exportada das regiões nós e seu processo de transformação e apro-
intelectuais “centrais” para a “periferia”, priação pelos grupos indígenas e ribeirinhos.
bem como seu retorno, com novas forças e
N

Segundo, identificando quais categorias,


r t í s t i c o

novos significados, da periferia para o centro. expressões ou elementos esses grupos põem
O termo “cultura” passou a ser adotado e em atividade a fim de reproduzir, proteger
A

renovado na periferia, tornando-se argumento ou atualizar suas culturas.


e

central, não só nas reivindicações de terras


i s t ó r i c o

Empreender essa reflexão, abrir as portas


como em todas as demais, por esses grupos desse diálogo, pode levar os profissionais
periféricos. Esse movimento, portanto, seria o do patrimônio a se aproximar, de fato,
H

do próprio processo de ajuste e transformação


a t r i m ô n i o

das questões necessárias à salvaguarda e


de categorias, antes sob o domínio do Estado
valorização das culturas populares.
Cristian Pio Ávila

e seus agentes, ao serem importadas pelos


P

povos ditos periféricos.


Mestres e gambás
d o

O segundo movimento trata de reconhecer


e v i s t a

quais concepções nativas podem ser correlatas


Durante nove anos, aproximadamente, a
ao patrimônio, nos termos em que o
R

Gerência de Patrimônio Cultural Imaterial


concebemos, na tentativa de estabelecer pontes
da SEC-AM tem se dedicado a trabalhos de
de diálogo e correspondência entre sociedades
inventário e salvaguarda de uma manifestação
diversas, a fim de elucidarmos formas distintas
performática bastante popular entre as
de “mediação entre passado, presente e futuro”
comunidades ribeirinhas da região do baixo
entre grupos não ocidentais.
Amazonas, na fronteira entre os estados
302
Trata-se, antes, da forma como esses povos e do Amazonas e do Pará, mas praticamente
grupos se situam em suas relações com a ordem
desconhecida nas áreas urbanas: o Gambá.
cosmológica, natural e social, preocupados em
Durante esse período, tivemos contato
interagir com as diversas entidades do universo: os
com grupos de gambás de diversos
deuses, os mortos, os antepassados, os parentes, os
vizinhos, os animais, as plantas etc. Do ponto de municípios: Aveiros (PA), Borba (AM),
vista de suas cosmologias, eles existem individual Barreirinha (AM), Novo Aripuanã (AM),
e coletivamente na medida em que fazem parte Humaitá (AM), Manaus (AM) e, mais
dessa extensa rede de relações de troca (Gonçalves, estreitamente, com o Grupo Pingo de Luz de
2015:214). Maués (AM)3.

Uma das experiências mais ricas que a


3. Maués é um município amazonense de aproximadamente
gestão de patrimônio imaterial da Secretaria 60 mil habitantes, localizado na região conhecida por baixo
Amazonas, na fronteira com o estado do Pará. Tem uma área
de Estado de Cultura teve no Amazonas nos total correspondente a 39.675 km2 e seu perímetro urbano é de
apenas 12 mil metros, o que demonstra a disparidade entre o
levou a perceber esses dois movimentos. É tamanho da zona rural e o da urbana. Isso é bastante comum
justamente aí que nos parece que uma expe- nos municípios amazônicos. A cidade é conhecida como “terra
do guaraná”, graças à expressiva produção da fruta que ali se
riência amazônica pode contribuir com o de- popularizou, através do grupo indígena Saterê Mawé.
O Gambá é constituído por um grupo de Luz, que, uma vez por ano, entre os meses Mestre Iracito
e o gambá.
de três vocalistas, acompanhados por três de maio e julho, sai de canoa em romaria Maués (AM), 2012
Foto: Cristian Pio Ávila.

diferentes instrumentos percussivos. São dois pelos rios Marau, Urupadi, Maués-Açu,
membranofones de altura indeterminada, Limão, Limãozinho, Pupunhal, Manjuru
um deles justamente chamado de gambá, e Quinim.
percutido com as mãos, e o tamborinho, Tentaremos mostrar, através desse
percutido por meio de baquetas4. O terceiro exemplo, as estratégias de consolidação
é o caracaxá, instrumento rítmico de fricção, e reprodução de uma “tradição”, de um
confeccionado em toras de bambu.
“patrimônio ribeirinho”, por meio de
O Gambá funciona principalmente
tecnologias de transmissão de símbolos
como um sistema de comunicação, não só
e significados e, com isso, demonstrar
com o espectador, mas um sistema cheio
que a categoria patrimônio pode encerrar
de códigos precisos entre os que tocam. Por
significados diferentes dos que lhe atribui
isso, é do conjunto do grupo que emana a
a nossa sociedade, exigindo novos métodos
autenticidade e valor de sua tradição. E sua
de reconhecimento.
transmissão depende de uma contextualização
específica, preferencialmente ritual. Reunindo devotos católicos, a comitiva
Aqui trataremos especialmente da carrega a imagem de São Pedro por mais de
comitiva de santo formada pelo Grupo Pingo sessenta comunidades ribeirinhas, batendo
gambás para recolher os donativos que
4. Segundo o sistema de Hornbostel-Sachs. servirão à festa do santo na comunidade
Comitiva de Nossa Senhora Aparecida do Igarapé do círio fluvial em frente ao povoado ribeirinho
com a imagem de
São Pedro.
Maués (AM), 2012
Pedreiro, situada no rio Urupadi, entre os dias em que irão parar), entrada na igreja (com
Foto: Cristian Pio Ávila.
28 e 30 de junho. É na comitiva que se dá o cânticos em latim que marcam a chegada do
ponto alto e mais contínuo da execução do santo e a entrada dos foliões na comunidade),
Gambá, enquanto manifestação popular de rezas do nascer e do pôr do sol, ladainha de
grande importância. Nossa Senhora e São Pedro (cantos em latim
Durante o período da comitiva do que evocam uma espécie de missa católica
santo, trocam visitas as comunidades Saterê informal realizada nas igrejinhas comunitárias),
Mawé e as “civilizadas” – que é como se fornada de gambá (o momento profano da
autodenominam as não indígenas na região. comitiva, em que todos se reúnem em torno
A cada parada os foliões, isto é, os que dos ritmos e cantos dançantes), alvorada e
participam da comitiva do santo, realizam uma despedida, no dia seguinte pela manhã, com
série de ritos, acompanhados de perto pelos o recolhimento de donativos dos devotos e
moradores: canoa de entrada (uma espécie de promesseiros do santo.
Durante o período em que os foliões estão manutenção do que identificamos como uma

Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.


Más e boas contribuições do Amazonas
alojados em uma comunidade, uma série de comunhão de pensamento e sentimento entre

a c i o n a l
prestações e contraprestações é observada os habitantes da região. Carregam consigo
nesse dia altamente ritualizado. Enquanto a elementos de reprodução da coesão social em
troca de víveres para a festa do santo parece torno de identidades, pertenças e símbolos

N
r t í s t i c o
ser o leitmotiv da comitiva, há intensas comuns, elementos do habitus ribeirinho e de
trocas simbólicas entres os foliões e os da seu éthos, tanto em forma corporal quanto

A
comunidade, que os consideram guardiões discursiva.

e
da sabedoria local, com suas lendas, mitos, Segundo algumas indicações propostas

i s t ó r i c o
formas de falar, rezar, agir e cantar. tanto por Cohen (1985) como, em menor
Ao fim da peregrinação, no dia do medida, por Anderson (2008), podemos

H
santo, há uma expansão do círculo de troca pensar em grupos cujos membros partilham

a t r i m ô n i o
durante a festa oferecida pela comunidade entre si construtos simbólicos e narrativos,

Cristian Pio Ávila


dos gambazeiros às comunidades que eles mantidos por um discurso comum, com

P
visitaram. É nesse momento que todos, grande capacidade de mobilização interna,

d o
visitantes e moradores, consomem em graças às especificidades performáticas e

e v i s t a
enormes banquetes tudo o que foi arrecadado percepção da realidade, reguladas por suas

R
pela comitiva e mais o que a comunidade fronteiras sociais, étnicas e familiares.
responsável pela festa oferece. Entretanto, como podemos levar a crer,
Quanto melhor, maior e mais farta for esse conjunto simbólico não é homogêneo
uma festa, maior o prestígio acumulado pela ao nível dos membros. “A society mask a
comunidade que a ofereceu. A comunidade differentiation within itself by using or imposing
configura-se aqui, aproximadamente, com o a common set of symbols” (Cohen, 1985:73).
que conhecemos como família extensa. Daí a importância do trânsito das
305
Os foliões buscam donativos nas comitivas. Elas atualizam um sentimento de
comunidades que visitam, mas, em troca, pertença e identidade entre as comunidades.
oferecem, através de toda a linguagem e Ao mesmo tempo, lançam para seus membros
imagens presentes em suas performances o debate sobre a perpetuação das tradições e
narrativas, musicais, religiosas e corporais, reativam as memórias coletivas.
um rico acervo simbólico, comum a muitos Podemos pensar as técnicas de reprodução
grupos do baixo Amazonas. de tal comunhão de pensamento como “ações
Cada um dos momentos dos ritos exige patrimoniais” que ativam os conjuntos de
diferentes performances que condensam uma símbolos (interpretados e interpretáveis)
série de elementos formadores da cultura utilizados por essas comunidaes para se
ribeirinha: “causos sobrenaturais” da região, decodificar, se unir e diferenciar, bem como
fofocas, piadas, rezas, cantos, contos morais, produzem os mecanismos de implantação,
danças, entre tantos outros. circulação e troca desses símbolos.
Essas representações postas em trânsito Para acessar essas “ações patrimoniais
pelos foliões auxiliam na produção e nativas”, é preciso tentar entender as
pantomimas que constroem a máscara pela conjuntura histórico-social do lugar,
Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas

pública dessas comunidades, para saber em incluindo-se no rol de preocupações e do


a c i o n a l

que medida esses grupos operam através das empenho do grupo em geral. Agem dessa
interpretações de si mesmos, seja naquilo forma não em oposição às estruturas de que
que os une, seja nas idiossincrasias de seus participam, mas principalmente em relação
N
r t í s t i c o

membros, isto é, interessa saber qual é a íntima com elas.


máscara privada de cada um, de complexa Os rituais e as performances dos
mestres e dos grupos assumem aí um
A

interpretação simbólica.
e

Essas trocas ritualizadas, perpetradas pela papel fundamental. Performances essas


i s t ó r i c o

comitiva, ligam as pessoas, grupos sociais e o produzidas tanto para o “outro” (no caso nós,
cosmo em totalidades integrativas que partem agentes públicos), quanto para as próprias
H

de sistemas heterogêneos, porém, articulados comunidades como tecnologia de transmissão


a t r i m ô n i o

e coerentes. e salvaguarda de seu patrimônio.


Uma das primeiras coisas que devemos
Cristian Pio Ávila

Ora, nessa busca de relacionar as cate-


gorias ocidentais de patrimônio e as nativas, notar é que para nós, antropólogos,
P
d o

precisamos perceber que elementos entram historiadores e agentes do Estado, os mestres


e v i s t a

em jogo na construção do pensamento com- se utilizam de estratégias de essencialização


partilhado entre esses grupos ribeirinhos – da diferença (formatada na performance)
R

não só os elementos imagéticos, mas o rico articuladas aos seus projetos políticos, que
universo de significados que essas imagens garantem, através de lutas de contínuas, o
produzem “a partir de” e “nos homens”. respeito às suas especificidades culturais.
Entram aí as concepções mais diversas Nesse encontro (entre nós e eles) nenhum
sobre natureza e o sobrenatural, sobre cultura, movimento é, de fato, aleatório. Envolve
tradição, arte, estética, vida, morte, corpo, uma tentativa de compreensão mútua que
espírito, sexo, romance, religiosidade, sistema tateia as expectativas a partir da reflexão, da
306
moral e organização social. localização dos sujeitos e, por fim, do diálogo.
Como exemplo, as comitivas de santo Faz parte da sobrevivência do gambá
lideradas pelos mestres de Gambá distribuem e de sua reputação como mestre que o
discursos performáticos que, a partir de seus comportamento restaurado5 (Schechner,
microcosmos, possibilitam a interpretação 1985, apud Silva, 2005), no momento da
das categorias nativas e auxiliam a reprodução interlocução com os seus conterrâneos ou
dos significados internos ao grupo. A eficácia mesmo com o Estado, seja dotado de maestria
desses mestres provém da sua posição como em reproduzir as marcas de identificação
ser social constituinte da totalidade, ou, mais simbólica e estética na realização dos
precisamente, da encarnação da coletividade momentos rituais e dramáticos da tradição.
em suas pessoas particulares.
Ora, se os mestres que divulgam essa
manifestação parecem ter uma influência 5. “O ‘comportamento restaurado’, diz Schechner, consiste em
‘sequências de comportamento [que] não são processos em si,
poderosa sobre seus espectadores é porque mas coisas, itens, ‘material’, que correspondem concretamente
a ‘sequências organizadas de acontecimentos, roteiro de ações,
a própria performance se potencializa textos conhecidos, movimentos codificados (…)’”.
Assim, o processo de enunciação de Eles restituem, para quem os assiste, um

Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.


Más e boas contribuições do Amazonas
um homem, tanto pela fala, como pelos projeto, um modelo imaginado do que seria

a c i o n a l
movimentos do corpo, atualiza temporal e a vida do homem do interior – restauram
espacialmente não só o sujeito, mas também para nós aquilo supomos, bem como o que
seu interlocutor, no discurso performático. os gambazeiros têm como representação

N
r t í s t i c o
Esse comportamento, que serve como de seu modo de ser e da vida cotidiana
uma espécie de prescrição – um modelo que levam. Essa performance não exige

A
de gambazeiro (advindo de sua própria somente as técnicas do canto e do tambor,

e
simbolização do que seja o gambá) e um mas mobilizam os recursos simbólicos de

i s t ó r i c o
modelo para ser visto (atualizado na prática comunicação e expressão cênica – no que se
e nas situações dialógicas) —, forma um dos refere à postura corporal, sotaque, vestimenta,

H
princípios das apresentações. estoque de “causos” e piadas, cenário etc. –

a t r i m ô n i o
Envolvem dois movimentos: o de como estratégias de socialização do ator e dos

Cristian Pio Ávila


uma negação do sujeito – posto que espectadores, ao restaurar suas memórias,

P
hiperinterpreta a si mesmo, isto é, constrói reflexões e experiências anteriores.

d o
um personagem baseado na intensificação É um constante jogo mimético,

e v i s t a
superexposta das representações que tem de estabelecido através das experiências da

R
si –, e, ao mesmo tempo, o da superação ou alteridade e do aprendizado com as interações
reconstrução do sujeito – em que recria a si sociais, tanto por parte do performer quanto
próprio na conjunção de seu fazer-se com o do espectador.
diálogo performatizado com o outro, em que Os gambazeiros, não querem ser o
apresenta uma recriação de si mesmo a partir outro, imitar o outro, mas imitar, o melhor
do olhar do outro. possível, a si próprios, a sua gente. Imitar e
Assim, esses performers ocupam posição representar a tal ponto esse modelo do que
307
central na divulgação das imagens, das acreditam ser o ribeirinho, que seus próprios
representações, das marcas e prescrições da pares o reconheçam e tomem por referência,
dialogia que serão estabelecidas, tanto entre assim como nós (os outros), graças a essa
esses grupos quanto entre eles e os de fora performance reproduzida centenas de vezes
– “o pessoal de Maués”, “gente da capital”, diante das comunidades e das câmeras, em
“gringos” etc... vídeos, fotografias e livros.
A apresentação exige dos mestres Essa competência narrativa, performática
habilidade para cantar e tocar, no caso do e estética é importantíssima também na fixa-
Gambá, mas também para representar os ção da experiência social e simbólica no baixo
elementos que caracterizam, para os de fora, Amazonas, enfim, na transmissão dos elemen-
o “ser ribeirinho”: estar de pés descalços tos culturais nativos entre seus pares. As nar-
em uma praia, viajar de canoa batendo os rativas nos cantos, falas e corpos dos mestres
tambores, soltar foguete, pescar, assar um de gambá ancoram princípios, valores e poé-
peixe na raiz da árvore, comê-lo servido em ticas essenciais à coesão simbólica das comu-
um remo, fumar um palheiro... nidades dessa região, através da instituição da
Entrega das Ofertas. comitiva dos santos. Os mestres e a comitiva, A comitiva, enfim, traça, remarca e reforça
Maués (AM), 2012
Foto: Cristian Pio Ávila. a partir de diversas estratégias e tecnologias tanto as fronteiras físicas quanto as fronteiras
sociais, constituem assim alguns dos princi- simbólicas do lugar, há pelo menos um
pais articuladores de sua coesão social. século, por meio de um ciclo ritual de festas,
Por isso o Pingo de Luz é tão importante devoções e performances.
para a região de Maués, principalmente para O ciclo da comitiva pode ser pensado
o interior mais profundo. Ele se constrói como um conjunto de tecnologias de
e por meio de sua performance, reconstrói coesão social capaz de produzir sujeitos
também seus iguais, principalmente a partir com sentidos culturais e visões de mundo
das romarias (onde carregam os santos em compartilhadas, além, é claro, de reproduzir
esmolagem) e de suas apresentações musicais. uma série de outros traços, que partem tanto
São um espelho de referência para o homem de caracteres genotípicos/fenotípicos comuns
ribeirinho, que os enxerga como o próprio (por meio das alianças matrimoniais que
ribeirinho também deveria se enxergar. seu ciclo festivo promove) até uma mesma
As comitivas de santo formadas por eles cultura material e modo de produção do
costumam marcar territórios, que são fixados espaço, formando então uma comunidade
por seus antepassados e que estabelecem de pensamento (e ação).
alianças também seculares entre os moradores Pelas rotas das comitivas, viajam uma série
da região, garantindo uma continuidade de símbolos, fixados em elementos de caráter
familiar, étnica, geográfica e cultural. religioso, mítico, narrativo e performático.
Mais do que bens materiais, o que está em Cada uma das etapas dos ritos concentra,

Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.


Más e boas contribuições do Amazonas
jogo nas trocas são as oportunidades da através de suas atividades – cantar, rezar,

a c i o n a l
relação direta com o santo, o reforço das contar piadas, navegar –, os modelos “do
afinidades entre famílias e comunidades, pensar” e do “para pensar”, que permitem
o prestígio, a manutenção das tradições e tanto a leitura de certo habitus como sua

N
r t í s t i c o
a reprodução de um imaginário nativo. A atualização por parte dos envolvidos nessas
dádiva não está personificada aqui em bens relações. Habitus no sentido dado por Sahlins

A
materiais, mas principalmente em bens e Bourdieu: “esquemas de pensamento e

e
espirituais e comunicativos. expressão que são a base da invenção não

i s t ó r i c o
As prestações promovidas pela Comitiva intencional e da improvisação regulada”.
baseiam-se principalmente em trocas comuni- Os mestres do Pingo de Luz e muitos

H
cativas e sobre elas são fundadas. A comuni- dos ribeirinhos com quem tivemos contato

a t r i m ô n i o
cação e transmissão dos símbolos é seu mote têm plena consciência dos motivos e da

Cristian Pio Ávila


principal: comunicação com o divino, entre importância desses ritos na manutenção de

P
indivíduos, entre comunidades. Essa contri- uma vida coletiva.

d o
buição gera prestígio, alianças, afinidades e A fé abnegada, o “desapego das coisas

e v i s t a
a manutenção dos sistemas simbólicos. As materiais” e a persistência de manterem-se

R
comitivas são um poderoso instrumento de juntos durante dois, três meses dentro de uma
transmissão de significados culturais. canoa na comitiva credenciam os mestres
A manutenção dessas redes comunicativas aos olhos das comunidades. A comitiva é
é essencial para a reprodução do sistema considerada uma missão, seja pelos foliões,
moral e cultural dos grupos ribeirinhos seja por quem os recebe.
amazônicos, de seus patrimônios, enfim. Os mestres são considerados pessoas
Pelos gambazeiros viajam narrativas e mitos especiais, pois trazem consigo uma “força
309
que condensam um sistema de prescrições invisível” – a chamada “voz dos santos”. São
do seu modo de ser e ver o mundo, o convite intermediários entre a vontade do santo e
para as festas e com isso a abertura para o a dos homens. A crença subjacente é que
estabelecimento das trocas matrimoniais e a através das ladainhas e do Gambá os mestres
sustentação da religiosidade. sejam espécie de “portais” entre esse mundo
Assim, as performances, associadas ao ciclo e o céu. Um nexo entre os homens e as
de ritos que emergem em torno da comitiva, divindades, ao mesmo tempo em que são
funcionam como forma importante de trans- o elo entre o passado e o presente, entre as
missão de significados culturais. Se a cultura tradições e o “caboclo de hoje”.
pode ser pensada como o uso do passado his- A possibilidade de encarnar essa conexão
tórico e meio de produzir o presente, o ciclo está baseada principalmente na “missão” – o
das comitivas e os foliões podem ser pensados sacrifício e a abnegação a que esses mestres se
como figuras centrais de reprodução cultural, submetem pelos santos e pela comunidade,
já que são mantenedores ímpares da relação sempre dispostos a viver e sacrificar-se por ela,
desses grupos com seu passado. em uma crítica velada ao individualismo.
Se os foliões se vestem dos ideais das pró- O gambá e as comitivas carregam
Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.
Más e boas contribuições do Amazonas

prias comunidades – o apego à tradição e à consigo descrições e prescrições sobre os


a c i o n a l

herança familiar, a negação do acúmulo e da modos de vida nativos. Seus foliões são
usura, a cristalização do tempo de seus antepas- aqueles que, idealmente, refletem a tradição
sados, a possibilidade de troca e de manuten- e a nostalgia de dias melhores – com maior
N
r t í s t i c o

ção da coesão social –, de certa forma, também coesão, solidariedade e “animação” entre
eles são valorizados como “homens santos”. as comunidades.
A

Se pudermos extrapolar essas concepções, As bases de uma comunidade de


e

podemos ser tentados a acreditar que pensamento e seu tecido conectivo (os
i s t ó r i c o

santificados são os ideais holistas dos grupos elementos que reconhecem como seu
que vêm modificar, aos poucos, modos de patrimônio) podem ser buscadas, nesse caso,
H

vida mais integrados. Se os mestres são a voz nos esquemas conceituais e simbólicos que
a t r i m ô n i o

da tradição, dos valores mais fundamentais são colocados em trânsito dentro da canoa da
Cristian Pio Ávila

dessa sociedade, eles podem falar e agir pelos Comitiva do Glorioso São Pedro.
P

santos, que representam as ideias de coesão As comitivas servem como metáforas do


d o

dessas tradições. compartilhamento dos valores e princípios


e v i s t a

Assim, a categoria patrimônio se reveste que regem a sociabilidade ribeirinha e


R

da homologia entre o ideal da vida comuni- que formam certa unidade a partir da
tária, um éthos ribeirinho, tradições perfor- costura que os mestres estabelecem entre
mativas e o sagrado ordenador do mundo. várias comunidades de uma mesma região.
Os mestres são, nessa concepção, Elas contribuem para a continuidade e
patrimônios personificados. Não é como na reprodução de uma forma específica de
concepção ocidental, revelada por Gonçalves ser e de sociabilização. Por isso, o cuidado
(op.cit.), do patrimônio produzido a partir que os foliões têm com suas performances,
310
da objetificação dos elementos culturais, mas que servem para reproduzir o imaginário
de um patrimônio corporificado e, por isso, ribeirinho e sua moral. Assumem a própria
homem santificado. palavra corporificada. São as palavras que
Pensar a atuação dos mestres em termos fazem seus corpos – esse corpo que tem de
da performance nos ajudou a compreender o ser reconhecido, identificado pelos seus pares,
fenômeno do Gambá e das comitivas através para que continue a existir tal como o é.
de suas dimensões comunicativas, ritualísticas Depreende-se daí a importância de que,
e artísticas. Decompor essas dimensões no diante das dificuldades da administração
jeito de falar, de sentar, de narrar histórias, pública para a plena gestão do patrimônio,
de cantar e dançar mostra o quão esses seus agentes se voltem, de fato, ao que é mais
gambazeiros são verdadeiros mestres em importante – as práticas dos grupos que
O Boi Caprichoso
é trazido à arena
elaborar e transmitir imagens que dialoguem dependem dessas políticas –, aos modos como
do bumbódromo
nas mãos de uma com os sentidos de seus pares e daqueles que codificam a categoria patrimônio e como
grande alegoria
representando a lenda se interessam em conhecê-los e, nisso, a cada agem no sentido de perpetuar os elementos
do boto tucuxi, 2001
Foto: Andreas Valentin. ano se aperfeiçoam. que dela fazem parte.
Nesse sentido, importa abrir os olhos aos Referências

Patr imônio imater ial – estabilidade, cr ise e seus trânsitos.


Más e boas contribuições do Amazonas
comportamentos, discursos, mitos e represen-

a c i o n a l
tações, que temos chamado de tecnologias de ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São
Paulo: Cia. das Letras, 2008.
coesão – ou seja, instrumentos sociais que ser-
ÁVILA, Cristian Pio. Os argonautas do baixo Amazonas.
vem a produzir sentimentos de continuidade

N
(Tese de Doutorado). Programa de Pós-graduação em

r t í s t i c o
entre os grupos, ao mesmo tempo que consti- Antropologia Social. Manaus: UFMA, 2016.
tuem parâmetros às fronteiras entre os mesmos CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Cultura com aspas.
São Paulo: Cosac Naify, 2009.

A
e os outros. Adentrar, ainda que minimamen-

e
CAVALCANTI, Maria Laura V. De Castro;FONSECA,
te, nos processos de produção e reprodução da

i s t ó r i c o
Maria Cecília Londres. Patrimônio imaterial no Brasil:
realidade perpetrada por esses grupos – tecno- legislação e políticas estaduais. Brasília: Unesco,
logias do simbólico que fabricam nos corpos e Educarte, 2008.

H
COHEN, Anthony P. Symbolic construction of
espíritos sensibilidades, óticas, representações e

a t r i m ô n i o
community. Londres: Routledge, 1985.
orientações para o mundo e do mundo.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas.

Cristian Pio Ávila


Hoje, como dissemos, está em curso um Rio de Janeiro: Nau, 2004.

P
processo de banalização da categoria patrimônio GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da

d o
no estado por meio de seus legisladores, o que perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio

e v i s t a
de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996.
denuncia, inclusive, a redução de seu conhe-
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos
cimento da história ao da sociedade ocidental.

R
objetos: coleções, museus e patrimônios. Brasília: Iphan,
Porém, o Amazonas, com sua riqueza etnológica 2007.

ímpar e os múltiplos universos simbólicos que GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O mal-estar no
patrimônio: identidade, tempo e destruição. Estudos
encerra em seu território, oferece muitos ele- Históricos, n. 55, v. 28, Rio de Janeiro, jan-jun.2015.
mentos novos para repensarmos a relação que os SCHECHNER, Richard. Performance theory. Nova York:
homens mantêm com seus projetos de futuro, Routledge, 1988.

suas identidades e seu ser histórico. SILVA, Rubens Alves da. Entre “artes” e “ciências”: a
noção de performance e drama no campo das ciências 311
Ainda que a ação do Estado seja sociais. Horizontes Antropológicos, n. 24, v. 11, Porto
aparentemente desoladora, uma mudança Alegre, jul-dez.2005.
de viés e perspectiva sugere um inesgotável
manancial de conhecimentos e de novas
formas de se pensar o nosso patrimônio.
N o ta s B i o g r á f i c a s
Notas Biográficas
a c i o n a l

ANA VILACY GALUCIO Atualmente desenvolve projeto de pesquisa


Doutora em Linguística pela Universidade sobre a representação do corpo nas cerâmicas
N

de Chicago (2001), pesquisadora titular da Amazônia pré-colonial. Trabalha na


r t í s t i c o

do Museu Paraense Emilio Goeldi, Coordenação de Ciências Humanas do


MCTIC, onde também ocupa o cargo de Museu Paraense Emílio Goeldi, na área de
A

coordenadora de Pesquisa e Pós-graduação. Arqueologia/Curadoria da Reserva Técnica


e
i s t ó r i c o

Atua na área de estudos e documentação Mário Ferreira Simões – RTMFS.


de línguas indígenas amazônicas, com
DAIANE PEREIRA
H

experiência na coordenação de projetos de


a t r i m ô n i o

pesquisa e documentação linguística. Doutoranda do Programa de Pós-graduação


em Antropologia da UFMG. Tem mestrado
ANTÓNIO MIGUEL LOPES DE em Arqueologia pela UFS (2015) e
P

SOUSA aperfeiçoamento em Gestão de Acervos


d o

Arquiteto pela Faculdade de Arquitetura Bibliográficos, Arquivísticos e Museológicos


e v i s t a

da Universidade do Porto, Portugal, com pela Fundação Joaquim Nabuco, em parceria


R

diploma revalidado e registrado pela FAU/ com a UFPE (2016). É pesquisadora


USP, é mestre e doutorando em Ciências associada do Núcleo de Pesquisa Arqueológica
Sociais – Sociologia Urbana pela PUC-SP. do Instituto de Pesquisas Científicas e
Tecnológicas do Estado do Amapá e membro
CAMILA FERNANDES do Grupo de Trabalho Acervos da Sociedade
Coordenação de Ciências Humanas – de Arqueologia Brasileira. 
COCHS/Museu Paraense Emílio Goeldi,
312
Belém (PA). DENNY MOORE
Doutor em Antropologia pela City University
CRISTIAN PIO ÁVILA
of New York (1984), possui treinamento e
Doutor em Antropologia Social pela UFAM.
capacitação em Linguística e Antropologia,
Mestre em Antropologia Social pela UFRGS.
trabalha no Museu Goeldi desde 1986. É
Atua há 12 anos à frente da Gerência de
autor de vários artigos sobre a situação das
Patrimônio Cultural Imaterial da Secretaria
línguas indígenas do Brasil e coordenador de
de Estado de Cultura do Amazonas.
vários projetos de documentação das línguas
e culturas indígenas.
CRISTIANA BARRETO
Bacharel em História, mestre em ELIANE CRISTINA PINTO MOREIRA
Antropologia Social e doutora em Doutora em Desenvolvimento Sustentável do
Arqueologia pela USP, cursou o programa de Trópico Úmido pela UFPA (2006), Pós-dou-
doutorado no Departamento de Antropologia tora pela UFSC, mestre em Direito da PUC-
da Universidade de Pittsburgh (EUA). -SP, promotora de justiça do estado do Pará.
Notas Biográficas
a c i o n a l
E L I S A B E T H C O S TA Paraense Emílio Goeldi, MCTIC. Realizou
Psicóloga e mestre em Psicolinguística pelo vários projetos e publicações sobre línguas

N
Instituto de Psicologia da UFRJ. Doutora indígenas do Brasil desde 1994.

r t í s t i c o
em Antropologia Cultural pelo IFCS/UFRJ,
chefe da Divisão de Pesquisa do Centro HELENA PINTO LIMA

A
Nacional de Folclore e Cultura Popular – Coordenadora de Ciências Humanas e

e
i s t ó r i c o
CNFCP/Iphan desde 2010. Curadora da Coleção Arqueológica da
Reserva Técnica Mário Ferreira Simões –
FERNANDA DE O. MARTINS RTMFS, do Museu Paraense Emílio Goeldi.

H
a t r i m ô n i o
Designer, diretora da Mapinguari Design. Arqueóloga e professora de Licenciatura
Doutora em História do Design na ESDI/ Indígena, Políticas Educacionais e
UERJ. Formada em Artes Plásticas pela Escola Desenvolvimento Sustentável, da UFAM.

P
de Comunicações e Artes da USP. Master em Doutora pelo Museu de Arqueologia e

d o
e v i s t a
Design Gráfico e Tipografia na Basel Kunst- Etnologia da USP.
gewerbeschule - Escola de Design da Basiléia,

R
Suíça. Especialista em Semiótica e Cultura H U G H E S D E VA R I N E

Visual, UFPA. É professora universitária, Considerado uma das principais referências


ministra oficinas e palestras. Representante internacionais em atividade na área da
Nacional do Design no Conselho Nacional de Museologia, o escritor francês é especialista
Políticas Culturais do Ministério da Cultura em patrimônio e desenvolvimento local e atua
(2013–2015) e Conselho Nacional de Incenti- como consultor em vários países. Formado
vo à Cultura (2005–2010). pela Universidade de Paris, com pós-graduação
313
em História e Arqueologia, foi diretor do
FERNANDO CANTO Icom e despontou como um dos principais
Graduado em Ciências Sociais pela UFPA, teóricos da chamada Nova Museologia, que
com mestrado em Desenvolvimento Regional deu outra dimensão à função social dos
pela Unifap e doutorado em Sociologia museus, dando o tom da Mesa de Santiago
pela UFC. É músico, escritor e atua como em 1972. Criador do conceito de “ecomuseu”,
sociólogo no Núcleo de Estudos Afro- é autor de A cultura dos outros (1976), A
brasileiros – Neab, da  Unifap. Também iniciativa comunitária (1992), Cidade, cultura
é membro do Conselho Municipal do e desenvolvimento (1995) e As raízes do
Patrimônio Histórico e Cultural do futuro (2002).
Município de Macapá.
LUCIANO MOURA MACIEL
H E I N VA N D E R V O O R T Advogado, doutorando em Direitos
Doutor em Linguística pela Universidade de Humanos pela Universidade Federal do Pará,
Leiden (2000), pesquisador titular do Museu mestre em Direito pela UEA (2012).
MARCELO BRITO pelo IG-USP (2001). Membro titular da
Notas Biográficas

Diretor do Departamento de Cooperação Academia Brasileira de Ciências – ABC e


a c i o n a l

e Fomento – Decof, do Iphan. Arquiteto e curador do Museu de Geociências da UFPA.


urbanista, desde 2008 vem coordenando,
como ponto focal para os sítios culturais M A R I A N A P E T RY C A B R A L
N
r t í s t i c o

brasileiros junto à Unesco, as atividades Arqueóloga, professora adjunta do


relacionadas à aplicação da Convenção Departamento de Antropologia e Arqueologia
da UFMG, é também pesquisadora do
A

do Patrimônio Mundial, em especial nos


e

processos de reconhecimento e gestão Museu de História Natural e Jardim


i s t ó r i c o

dos bens culturais inscritos na Lista do Botânico dessa Universidade. De 2005 a


Patrimônio Mundial. 2016, foi pesquisadora do Iepa, em Macapá,
H

contribuindo para a formação do Núcleo


a t r i m ô n i o

MARCIA BEZERRA de Pesquisa Arqueológica, que recebeu o


Mestre em História Antiga e Medieval pela Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade em
P

UFRJ e doutora em Arqueologia pela USP. 2012. Tem interesse em práticas de pesquisa
d o

Professora associada de Arqueologia do colaborativa e arqueologias etnográficas, com


e v i s t a

Programa de Pós-graduação em Antropologia especial atenção à Amazônia.


R

da UFPA e associada ao Departamento de


M I LT O N H AT O U M
Antropologia da Indiana University (EUA).
Escritor, tradutor e professor. Nascido em
Membro efetivo da Associação Brasileira de
Manaus (AM), é descendente de libaneses.
Antropologia e da Association of Critical
Ensinou Literatura Francesa na UFAM e
Heritage Studies, é coordenadora adjunta da
na Universidade da Califórnia, em Berkeley
área de Antropologia/Arqueologia da Capes.
(EUA). Doutor em Teoria Literária pela USP.
314 Entre os diversos romances que escreveu,
MÁRCIO COUTO HENRIQUE
Historiador e antropólogo, professor da estão: Relato de um certo Oriente (1989), Dois
Faculdade História e do Programa de Pós- irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005), todos
graduação em História da UFPA. Participou três ganhadores do Prêmio Jabuti de melhor
da pesquisa que resultou no registro do Círio romance e este último, do Prêmio Portugal
de Nazaré como patrimônio cultural imaterial Telecom de Literatura em 2006. Em 2013,
brasileiro junto ao Iphan. teve suas crônicas reunidas em Um solitário à
espreita. É colunista dos jornais O Estado de S.
M A R C O N D E S L I M A D A C O S TA Paulo e O Globo.
Graduado em Geologia (1975) e mestre em
Geologia e Geoquímica pela UFPA (1980). S É R G I O PA Z M A G A L H Ã E S  
Doutor em Mineralogia e Geoquímica pela Coordenador-geral de Cooperação Nacional
Universität Erlangen-Nürnberg (Friedrich- do Departamento de Cooperação e
Alexander), na Alemanha (1982), com Fomento – Decof, do Iphan. Especialista em
pós-doutorado em Mineralogia-geoquímica Políticas Públicas e Gestor Governamental,
vem coordenando o desenvolvimento da mestre em Ciências da Arquitetura

Notas Biográficas
candidatura do Conjunto de Fortificações (UFRJ/2007) e especialista em Restauração

a c i o n a l
do Brasil e tem no rol de suas atividades e Preservação do Patrimônio Arquitetônico
a reflexão e o desenvolvimento de estudos (UFPA, 1996). Professora da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo/UFPA,

N
voltados para subsidiar o processo de

r t í s t i c o
construção do Sistema Nacional de Coordenadora de Extensão do Laboratório
Patrimônio Cultural. de Conservação, Restauração e Reabilitação

A
– Lacore/UFPA. Membro do Conselho

e
R O S E A N E C O S TA N O R AT Internacional de Monumentos e Sítios

i s t ó r i c o
Arquiteta e urbanista (UFPA/1992), – Icomos e do International Scientific
doutora em Ciências na área de Geoquímica Committee on Fortifications and Military

H
e Petrologia (PPGG/UFPA/2017), Heritage – Icofort.

P
Ra t r i m ô n i o
d o
e v i s t a
315

Mulher Opik i theri,


1976-1977
Foto: Claudia Andujar.
Sem título, da série
A Casa, 1974-1976
Foto: Claudia Andujar.

Retratos 1, da série
Maturacá, 1970-1971
Foto: Claudia Andujar.
Ciclo da vida, da série
Maturacá, 1970-1971
Foto: Claudia Andujar.

Sem título, da série


Reahu, 1974-1976
Foto: Claudia Andujar.
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l

318
O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão

A Casa, 1976
Foto: Claudia Andujar.
Sem título, da série
R e v i s t a d o P a t r i m ô n i o H i s t ó r i c o e A r t í s t i c o N a c i o n a l
319

O patrimônio do Nor te: outros olhares para a gestão


no acesso à biodiver sidade
Protocolos comunitários: resistência e autodeterminação
a c i o n a l
N
r t í s t i c o

A publicação da Revista do Patrimônio não seria possível sem a inestimável colaboração das instituições
representadas por seus dirigentes e servidores que, com dedicação e profissionalismo, nos permitem acessar
A

seus acervos e utilizar documentos e imagens para o enriquecimento das matérias veiculadas. Queremos
e

agradecer a esses profissionais e instituições que lidam diretamente com os acervos.


i s t ó r i c o

Associação de Amigos do Paço Imperial - AAPI


H

Associação dos Povos Indígenas da Terra São Marcos (RR)


a t r i m ô n i o

Comissão Pastoral da Terra – CPT


Fundação Biblioteca Nacional (RJ)
Eliane Cr istina Pinto Moreira, Luciano Moura Maciel

Fundação Chico Mendes (AC)


P

Fundação Elias Mansour (AC)


d o

Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil (AC)


e v i s t a

Fundação Pierre Verger (BA)


Galeria Vermelho (SP)
R

Instituto de Antropologia da Universidade Federal de Roraima – Inan/UFRR


Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB/USP
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB
Instituto Moreira Salles
Instituto Socioambiental – ISA
Kamara Kó Galeria (PA)
Museu da Universidade Federal do Pará – Mufpa (PA)
320
Museu de Arte de Belém – Mabe (PA)
Museu de Arte Sacra do Pará – MAS (PA)
Museu do Círio (PA)
Museu do Índio (RJ)
Museu do Forte do Presépio (PA)
Museu Nacional (RJ)
Museu Paraense Emílio Goeldi – MPEG (PA)
Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia, Turismo e Cultura do Estado do Tocantins
Sistema Integrado de Museus e Memoriais/Secretaria de Estado de Cultura do Pará
Teatro Amazonas/Secretaria de Estado de Cultura do Amazonas
Theatro da Paz / Secretaria de Estado de Cultura do Pará

Você também pode gostar