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IMAGENS DA AMAZÔNIA NA ARTE BRASILEIRA: DO TERRITÓRIO

A CONQUISTAR AO TERRITÓRIO A RESISTIR


Images of the Amazonia in Brazilian art: from the territory to conquer to the territory to resist
Imágenes de la Amazonía en el arte brasileño: del territorio para conquistar al territorio para
resistir
Gil Vieira Costa [Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Brasil]*

RESUMO Este trabalho busca discutir sobre as imagens da Amazônia em obras de artistas visuais do campo
artístico especializado no Brasil, desde o início do século 20 aos dias atuais. A base teórico-metodológica
transita entre a história social da arte e a antropologia da imagem. As imagens e obras são mostradas em seus
vínculos com ideologias políticas e estéticas sobre a Amazônia, desde a formulação do discurso de “conquista
da região”, passando pelas várias formulações de “identidades amazônicas” baseadas nas paisagens naturais
e humanas, até a construção do discurso da necessidade de resistência cultural e política à ocidentalização.
PALAVRAS-CHAVE Amazônia, arte brasileira, imagem

ABSTRACT This work seeks to discuss the images of the Amazonia in works by visual artists from the specialized
artistic field in Brazil, from the beginning of the 20th century to the present. The theoretical-methodological basis
moves between the social history of art and the anthropology of image. The images and works are shown in their
links with political and aesthetic ideologies about the Amazon, from the formulation of the “conquest of the region”
discourse, through the various formulations of “amazonic identities” based on natural and human landscapes, to
the construction of the discourse of the need for cultural and political resistance against westernization.
KEYWORDS Amazonia, Brazilian art, image

* Gil Vieira Costa é Doutor em História pela Universidade Federal do Pará e professor da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Sul e
Sudeste do Pará [Unifesspa]. E-mail: gilvieiracosta@unifesspa.edu.br

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Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 44-63, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.45673]
RESUMEN Este trabajo busca discutir las imágenes de la Amazonía en obras de artistas visuales del campo
artístico especializado en Brasil, desde principios del siglo 20 hasta la actualidad. La base teórico-metodológica
se mueve entre la historia social del arte y la antropología de la imagen. Las imágenes y obras se muestran en
sus vínculos con ideologías políticas y estéticas sobre la Amazonía, desde la formulación del discurso de la “con-
quista de la región”, pasando por las diversas formulaciones de la “identidad amazónica” a partir de paisajes
naturales y humanos, hasta la construcción del discurso sobre la necesidad de resistencia cultural y política a la
occidentalización.
PALABRAS CLAVE Amazonía, arte brasileño, imagen

(Submetido: 31/8/2020;
Aceito: 7/1/2021;
Publicado: 7/7/2021)

Citação recomendada:
COSTA, Gil Vieira.
Imagens da Amazônia
na arte brasileira: do
território a conquis-
tar ao território a
resistir. Revista Poiésis,
Niterói, v. 22, n. 38,
p. 44-63, jul./dez.
2021. [https://doi.
org/10.22409/poie-
sis.v22i38.45673 ]
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Gil Vieira Costa

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Gil Vieira Costa, Imagens da Amazônia na arte brasileira: do território a conquistar ao território a resistir
1. AMAZÔNIA EM IMAGENS NA ARTE utilizados e projetados sobre o novo território que a
O bioma conhecido como Amazônia tem sido um eles se descortinava, como indicam os estudos de
foco permanente da atenção internacional, seja Neide Gondim [1994], Ana Pizarro [2012] e, ainda,
por seus recursos naturais e biodiversidade, seja Serge Gruzinski [2014]. Desde então, as ideias de
por suas questões sociais de difícil resolução. Mas, Amazônia têm passado por variadas mutações,
antes de ser uma região geográfica, a Amazônia é têm colidido entre si ao serem manejadas por gru-
uma ideia – ou um conjunto de ideias que variam e pos divergentes e têm se tornado mais ou menos
se desenvolvem no decorrer dos processos históri- hegemônicas em determinadas sociedades.
cos. Alguns elementos que compuseram a ideia de Em muitos momentos, as ideias vigentes de Amazônia
Amazônia eram mesmo anteriores à expansão ma- influíram na produção artística especializada. Neste
rítima europeia do século 16. Os elementos desse artigo, busco exemplos que abarcam desde a pri-
ideário dos colonizadores europeus foram por eles meira década do século 20 até a segunda década do

Fig. 1 - Antônio Parreiras, A conquista do Amazonas, 1907, óleo sobre tela, 400cm x 800cm. Fonte: Acervo do Museu do Estado do Pará.

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século 21 – um período de pouco mais de cem anos, em obras de contextos muito diferentes. Essas
que certamente não poderei analisar em detalhes e imagens apontam para a Amazônia como uma
com profundidade. A questão que quero discutir aqui grande floresta despovoada, ou, no limite, habitada
diz respeito a como a representação da Amazônia nas apenas por populações tradicionais, supostamente
artes visuais especializadas se transformou histori- estacionadas em um tempo a-histórico. As obras
camente, indicando que o campo artístico brasileiro aqui referidas foram informadas pelas ideologias de
é uma plataforma social de disputas ideológicas,
políticas e estéticas sobre a região. É, portanto, um lu-
gar privilegiado para investigar as relações entre arte,
política e resistência, pois suas obras servem como
testemunho das imagens e imaginários articulados
em certo momento por um ou mais grupos sociais.

As “imagens da Amazônia” não estão exatamente


nas obras de arte que estudo aqui, como se fossem
um dado físico adicionado aos objetos e que existis-
se neles indefinidamente. As imagens estão antes
na relação de grupos sociais com esses objetos
– elas dependem das obras e, ao mesmo tempo,
existem “fora” delas, pois existem sobretudo em
nós. Na terminologia da antropologia da imagem
de Hans Belting [2014], podemos tratar das obras
de arte como “meios imaginais”, que produzem ou
modificam nossas próprias “imagens mentais”.

2. AMAZÔNIAS A CONQUISTAR
É possível distinguir um primeiro conjunto de ima-
Fig. 2 - Joaquim Fernandes Machado, Posse da

gens ideologicamente próximas, que aparecem


Amazônia, 1924, óleo sobre tela, 222cm x 132cm.
Fonte: Acervo do Museu Paulista da Universidade
de São Paulo.

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colonização da Amazônia, gestadas desde o perío- 1639, ela tinha a intenção de assegurar o domínio
do do “descobrimento” do Rio Amazonas na metade da região para o Reino de Portugal, pouco antes do
do século 16, sempre a partir de uma perspectiva fim da União Ibérica. Essa expedição consolidou
estrangeira. Para essas ideologias, a “conquista” da Pedro Teixeira como importante vulto histórico na
região significa a chegada do progresso civilizatório colonização da Amazônia [ao menos na parte que
– que nada mais é que um eufemismo para a sub- viria a ser a brasileira].
jugação da Amazônia a uma estrutura de coloniali-
A conquista do Amazonas foi encomendada pelo
dade, que permite a exploração de seus recursos e
Governador do Pará, Au-
promove a ocidentalização
gusto Montenegro; Posse
de suas populações.
da Amazônia foi encomen-
Um primeiro exemplo pode dada pelo Diretor do Museu
ser encontrado em A con- Paulista [também conheci-
quista do Amazonas [1907, do como Museu do Ipiran-
Fig. 1], pintura de gênero ga], Affonso Taunay. Elas
histórico de grandes di- representam a ocupação e
mensões, feita pelo artista invasão do território ama-
fluminense Antônio Parrei- zônico a partir do ponto de
ras. Um segundo exemplo é vista do colonizador estran-
Posse da Amazônia [1924, geiro [o conquistador], den-
Fig. 2], também uma pintu- tro do contexto das elites
ra de gênero histórico, de em Belém e em São Paulo,
outro fluminense, Joaquim ansiosas por fabricar uma
Fernandes Machado. Am- identidade brasileira, envol-
bas tratam de um mesmo vidas em ideologias como o
tema: a expedição do mili- republicanismo e o bandei-
tar português Pedro Teixeira rantismo. Tais pinturas ma-
no Rio Amazonas. Reali- Fig. 3 - Benedicto Mello, A conquista da Amazônia, 1968, nejam de forma consciente
zada entre os anos de 1637 e certa ideia e algumas imagens
óleo sobre tela.Fonte: Acervo da Secretaria de Transportes
do Estado do Pará.

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sobre a Amazônia. Elas oferecem um monumento Transamazônica] sendo um dos grandes símbolos
ao passado e à história da região – ainda que esse desse movimento.
passado seja entendido como a “história contada
A questão também é evidente no caso do painel As
pelos vencedores”, em que, à contrapelo, os grupos
Forças Armadas e a Integração da Amazônia [1972,
sociais amazônicos e o próprio bioma representa-
Fig. 4], do português radicado no Amazonas Álvaro
riam os vencidos.
Páscoa, no Colégio Militar de Manaus. Guardadas
Em um contexto distinto devem ser observados a as devidas proporções, a ideologia de fundo nes-
pintura A conquista da Amazônia [1968, Fig. 3] e o sas obras é próxima da que aparece nas pinturas
mural sem título na Secretaria de Transportes do históricas com o tema da expedição de Pedro
Estado do Pará [1977], ambas obras do artista para- Teixeira. É necessário conquistar, ocupar e civilizar
ense Benedicto Mello. Esses essa região inóspita e de-
dois trabalhos colocam sabitada, porém rica. Não
em destaque a abertura mais por meio da malha de
de estradas e o persona- rios, mas agora sulcando a
gem técnico e anônimo da floresta para dar passagem
agrimensura. Não tenho à indústria automobilística
informações em como se e à vida ocidentalizada que
deu a encomenda por parte a acompanha.
do então Departamento de
Na mesma época, temos a
Estradas e Rodagens, hoje
exposição Hileia Amazônica
Secretaria de Transportes
[1972-1973] no Museu de
do Estado do Pará. Mas é
Arte de São Paulo, que pre-
certo afirmar que o Estado
tendeu um caráter didático,
brasileiro naquele período
e trouxe um conjunto sig-
intensificou as políticas
nificativo de fotografias de
de integração econômica
Claudia Andujar e George
da Amazônia, com a aber-
Love, ela suíça e ele estadu-
Fig. 4 - Álvaro Páscoa, As Forças Armadas e a Integração da Ama-

tura de estradas [como a


nidense. Parte do material
zônia, 1972, cerâmica colorida, 819cm x 728cm.
Fonte: Luciane Páscoa [2011, p. 265].

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dos fotógrafos já havia sido utilizada na edição n. 67 Hileia Amazônica como um todo pode ser vista como
da revista Realidade, de outubro de 1971, e ainda se- mais uma manifestação ideológica da “Amazônia a
ria editada no foto-livro Amazônia (1978), da autoria conquistar” no campo artístico brasileiro.
de ambos. Na exposição Hileia Amazônica, essas fo-
Essas diferentes imagens aparecem e reapa-
tografias adquirem um caráter ambíguo, que roça no
recem não somente nas obras de artes visuais,
apoio ao projeto desenvolvimentista dos governos
mas também na propaganda governamental, nas
militares brasileiros para a Amazônia. No caso de
reportagens jornalísticas, no cinema e em tantos
George Love, as vistas aéreas da floresta garantem
outros produtos circulando no mercado de trocas
uma imagem de imensidão ainda intocada (Fig. 5);
simbólicas. Elas disputaram os significados da
no caso de Andujar, os retratos de indígenas apre-
Amazônia no tecido social brasileiro, como uma
sentam imagens de um povo igualmente isolado.
região “virgem” que precisava ser introduzida no
Depois, Andujar explicita em seu projeto fotográfico
tempo presente.
um comprometimento político com as populações
indígenas, especialmente ianomâmis, então já afe-
tados pela “marcha do progresso”. Mas a exposição 3. IDENTIDADES AMAZÔNICAS
Outro grupo de obras pode ser formulado
a partir de uma questão que tem inte-
ressado a muitos artistas: se existem, e
quais seriam, os elementos identitários
amazônicos. Dada a complexidade da
questão, além do recorte temporal largo
deste artigo, é inevitável que estejamos
aqui a tratar de obras muito diferentes
entre si. Porém, há duas posturas que
podem servir para reunir, diferencian-
do, esses múltiplos esforços de reflexão
sobre identidade local. A primeira postura
Fig. 5 - George Love, Amazônia, 1973, fotografia, 30cm x 40cm. Fonte: Acervo do
Museu de Arte de São Paulo.

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é fenomenológica, e diz respeito a artistas interes- Os primeiros a fazê-lo de maneira consciente den-
sados em observar a natureza da Amazônia como tro da arte visual especializada foram os artistas
um fenômeno perceptivo específico, com cor, luz, das décadas de transição entre os séculos 19 e 20.
temporalidades e visualidades peculiares. A se- Formados, em geral, dentro do quadro intelectual
gunda postura é antropológica, e trata de artistas das academias de arte [europeias e brasileira], es-
interessados em refletir sobre os grupos humanos ses artistas tiveram contato com esquemas compo-
na Amazônia, em especial os grupos entendidos sitivos acadêmicos e com correntes artísticas como
como tradicionais. Essas duas posturas, separadas o realismo e o impressionismo, interessadas na
ou simultâneas, perpassam boa parte da produção observação direta ou indireta da realidade. Na pri-
artística brasileira que formulou discursos sobre meira metade do século 20, vários artistas produ-
uma identidade amazônica. zindo a partir de cidades amazônicas elaboraram
práticas de observação direta e registro da paisa-
gem natural e humana da região. A ideia de paisa-
gem amazônica não raro é tema ou mesmo título
de trabalhos, como os do paraense Arthur Frazão e,
depois, do amazonense Moacir Andrade [Fig. 6].

Na segunda metade do século 20, a Amazônia serve


de tema para algumas experimentações no campo
da arte não figurativa, como a série Amazônica [Fig.
7] do fluminense Ivan Serpa, em 1968, desdobrando
sua produção concreta e incorporando elementos
mais sinuosos, além de recorrer a contrastes entre
verdes e vermelhos intensos. Nos anos 1980, surge
em Belém e Manaus uma produção muito interessa-
da no debate sobre “visualidade amazônica”, resul-
tando em produções como a dos paraenses Dina
Oliveira [Fig. 8] e Osmar Pinheiro naquela década, ou
dos amazonenses Jair Jacqmont e Sérgio Cardoso.
Fig. 6 - Moacir Andrade, Paisagem amazônica, 1987,
óleo sobre tela, 108cm x 79cm.
Fonte: Acervo da Pinacoteca do Estado do Amazonas.

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Quanto ao ser humano amazônico, enquanto caboclo ou ribeirinho – lidos como amazônicos. Há
representação de uma identidade local, ele se desde o interesse por personagens do cotidiano
torna tema de muitos projetos surgidos durante urbano e popular, como vendedores e vendedoras
todo o século 20. Além da influência das correntes de produtos regionais variados [açaí, caranguejo,
artísticas europeias, desde a segunda metade do “cheiro”, tacacá etc.], até a atenção às cosmogo-
século 19 houve um forte impulso da arte brasileira nias e culturas visuais indígenas e ribeirinhas.
na direção da representação étnica, racial e social.
O pintor paraense Theodoro Braga manifestou inte-
Formularam-se muitas obras que retratavam os
resse por populações indígenas amazônicas ainda
tipos sociais brasileiros, às vezes a partir de recor-
na primeira década do século 20, seja no uso de
tes geográficos regionais. Dentro desse espírito,
referências da iconografia marajoara em projetos
podemos situar trabalhos debruçados sobre a
de arte decorativa, seja na representação realista
figuração do indígena, do afrodescendente e do
de etnias locais na pintura, ou mesmo quando

Fig. 7 - Ivan Serpa, Série Amazônica nº 8, 1968, óleo sobre tela,


92cm x 92cm. Fonte: Coleção particular. Disponível na exposição
Ivan Serpa: a expressão do concreto, curadoria de Hélio Ferreira Fig. 8 - Dina Oliveira, Amazônia, 1985, óleo sobre tela, 120cm x
e Marcus Lontra, CCBB Rio de Janeiro, 2020. 100cm. Fonte: Galeria Paulo Prado [1985, sem número de página].

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começou a trabalhar com os mitos de origem in- tografia, são inúmeros os artistas que registraram
dígena. Discípulos de Braga, como o amazonense diversos aspectos da paisagem e da sociedade
Manoel Santiago e o paraense Manoel Pastana, na Amazônia brasileira. A obra mais conhecida,
também exploraram a temática indígena de um pon- nesse sentido, talvez seja a do artista paraense
to de vista amazônico, assim como inúmeros artistas Luiz Braga, ou, ainda, a temática amazônica na
daquele período. Talvez o exemplo de maior projeção produção do mineiro Sebastião Salgado.
internacional tenha sido o da mineira Maria Martins,
As paisagens natural e humana da Amazônia apa-
radicada em Nova Iorque nos anos 1940, realizan-
recem em obras de muitos artistas durante todo o
do esculturas surrealistas que partiam de mitos de
século 20. Elas oscilam entre projetos estéticos mais
origem indígena amazônica [Fig. 9].
conservadores e mais progressistas, indo da tradi-
Alguns artistas começam a atuar como cronistas cional pintura para formas mais arrojadas, como as
da vida na Amazônia, colo- recentes instalações do pa-
cando em imagens visuais raense Bené Fonteles [Ágora:
suas experiências biográfi- OcaTaperaTerreiro, 2016],
cas ou o registro da vida de hoje radicado em Brasília, e do
terceiros. O goiano-paraense fluminense Ernesto Neto [Um
Augusto Morbach desenvol- lugar sagrado, 2017], respecti-
veu, a partir do final dos anos vamente na 32ª Bienal de São
1930, obras que registram Paulo e na 57ª Bienal de Vene-
suas experiências como za, que mobilizaram inclusive a
castanheiro e com a vida no presença de indígenas.
sudeste do Pará. Da mesma
É difícil fazer alguma afirmação
maneira, o amazonense-a-
quanto ao caráter político e
creano Hélio Melo realizou,
ideológico sobre a Amazônia,
desde o final dos anos 1970,
nessas obras, dada a sua gran-
um trabalho artístico basea-
de heterogeneidade e diferença
do em suas vivências como
de contexto, em um período de
seringueiro. No campo da fo-
mais de cem anos em diversas
Fig. 9 - Maria Martins, Amazônia, 1942, bronze, 53cm x
51cm x 40cm. Fonte: Verônica Stigger [2013, p. 71].

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cidades brasileiras e estrangeiras. Mas, resumindo em Vicente do Rego Monteiro, o paraense Emmanuel
termos gerais, é possível verificar uma linha conser- Nassar, o maranhense-paraense Marcone Moreira, os
vadora, que encontra na construção da identidade mato-grossenses Adir Sodré e João Sebastião, entre
amazônica o eco das ideologias que afirmam a região muitos outros. Essa linha progressista que aparece
como fonte e repositório primitivista, em um tempo no debate identitário alimenta o surgimento de obras
aquém do nosso. No limite, esse discurso evidencia com outro tipo de compromisso com a Amazônia.
uma Amazônia “atrasada”, posto que ainda intocada
pela modernidade ocidental. Também entra nessa
linha conservadora a manutenção de estereótipos 4. AMAZÔNIAS
amazônicos mais ou menos consolidados. PROBLEMÁTICAS

Por outro lado, é possível O campo artístico brasileiro


observar também uma linha também é palco para ima-
progressista, que usa a cons- gens de ideologias críticas
trução identitária para afirmar sobre as questões amazôni-
um projeto político de Ama- cas. Imagens que dialogam
zônia em que as camadas com as interpretações dos
populares [formadas por indí- vários ativismos políticos
genas, mestiços, ribeirinhos, sobre a região, que serão
suburbanos etc.] e a própria tratados adiante, por exem-
natureza são colocadas em plo: ambientalismo, defesa
cena como protagonistas da dos direitos das populações
história amazônica. Assim, a locais, resistência antico-
visualidade das populações lonialista – esta última hoje
amazônicas subalterniza- entendida nos termos de um
das vai servir como herança desprendimento da condi-
cultural, paralela à herança ção de colonialidade [políti-
da arte europeia, na obra de Fig. 10 - Paulo Bruscky, Amazonas, 1973, gravura ca, econômica, do conheci-
artistas como o pernambucano mento, da subjetividade].
em metal, 40cm x 30cm. Fonte: Base7 [2008, sem
número de página].

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Contra as imagens governamentais de uma realista, que exploram a desgastada temática india-
“Amazônia a conquistar”, o pernambucano Paulo nista a partir de um ponto de vista original e crítico.
Bruscky realizou Amazonas [1973, Fig. 10], gravura Uma obra da época é Amazônia Legal [1975, Fig. 11],
que retrata a pegada de uma possível bota militar, em que o artista coloca um indígena na posição de
na qual está inscrita a palavra Amazonas. Com- professor ou chefe em uma típica sala de reuniões, fa-
pare-se esse trabalho com as pinturas de Bene- lando para um conjunto de homens de terno tomando
dicto Mello, com o painel de Álvaro Páscoa ou com notas. O trabalho aponta para um Brasil utópico em
as fotografias de George Love, todas do mesmo que o Estado se adequa aos indígenas e ao seu pen-
período, para entender como a gravura de Bruscky samento. Por outro lado, também discute a Amazônia
apresenta imagens críticas sobre a Amazônia, do ponto de vista jurídico, político e governamental,
explicitamente opostas à propaganda do desen- em que a região ainda é alvo de uma vista aérea e
volvimentismo militar para a região. cartográfica, como território a conquistar, mas que
passa a ser disputada por suas populações nativas,
Em 1975, o artista mato-grossense Clóvis Irigaray ini-
tornadas visíveis na utopia indianista de Irigaray.
ciou a série Xinguana, desenhos a cores, com técnica
O mineiro Clécio Penedo, radicado no Rio
de Janeiro, foi outro artista a explorar o
indianismo de maneira crítica e satírica,
em séries como És Tupi do Brasil [1979-
1980], Jary [1981] e outras obras da época,
como Ama [1980, Fig. 12]. Esse trabalho
condensa uma série de signos da Ama-
zônia, não apenas seus símbolos mais
estereotipados [populações nativas], mas
também índices da problemática social
na região [a expansão do latifúndio agro-
pecuarista], aludindo a um fato recente.
Os governos militares ofereceram gran-
des incentivos à presença de multina-
Fig. 11 - Clóvis Irigaray, Amazônia Legal, 1975, desenho sobre papel.
Fonte: Aline Figueiredo [1990, p. 28].

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cionais na região, como a alemã Volkswagen, que exposição O belo e o macabro [1979], em Belém.
nos anos de 1974 e 1975 promoveu um incêndio de Nela, Rego se dedica a temas de sua atualidade,
proporções monumentais no seu latifúndio ama- recorrendo a uma crítica ferina à integração econô-
zônico [“o maior incêndio do planeta”], culminando mica e cultural da região, conferindo representação
na denúncia e mobilização por parte de cientistas visual às suas consequências sociais. São temas,
e ecologistas de vários países. Clécio Penedo ainda por exemplo: a exploração econômica da indústria
articulou esses signos a elementos da religiosida- do palmito na Amazônia [Palmito do lucro x açaí da
de cristã e da arte brasileira, como um detalhe da fome, 1979], o extermínio indígena empreendido
pintura Primeira Missa no Brasil [1860, Victor Meirel- nos anos 1970 dos governos militares [Genocídio,
les] e o título Ama, a partir de fragmento da palavra 1979] e a violência como resposta anticolonial,
Amazônia, transformada em imperativo cristão. longe do mito da mistura cordial de raças [Conflito
Em Ama, como em outras obras, Clécio Penedo dá cabano, 1979]. Rego, trabalhando com uma pintura
um passo importante na direção de uma produção de feição naif, em diálogo com a pintura popular
artística que ma- de Belém, ofereceu
neja imagens de imagens de uma
uma Amazônia real, Amazônia lida criti-
comprometida com camente. Uma obra
as questões sociais exemplar é Águas
do presente, tradu- amazônicas [1978,
zidas em indícios Fig. 13] que, mes-
de fatos históricos. mo recorrendo às
imagens tradicio-
O artista paraense
nais das mitologias
José de Moraes
locais, o faz a partir
Rego também
da ideia de uma
realizou uma opera-
Amazônia violenta
ção semelhante,
e reativa. A amazo-
especialmente na
nense Rita Loureiro
série Macabra e na
Fig. 12 - Clécio Penedo, Ama, 1980, desenho e colagem sobre papel, 50cm x 70cm
Fonte: André Couto e Luiza Silva [2001, p. 51].

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é outra artista que também manejou os elementos berto Espíndola desenvolveu seu trabalho a partir
identitários locais para construir, nos anos 1980, da temática da pecuária, nas séries chamadas de
uma pintura que tinha um componente de denúncia Bovinocultura, que refletem sobre a “marcha para
sobre as questões sociais da região. o Oeste” no Brasil, e que incluem a pintura Devas-
tação da Amazônia [1980, Fig. 14]. O polonês Frans
Talvez o amazonense Roberto Evangelista tenha
Krajcberg, radicado no Brasil, desde o final dos
sido o primeiro artista a tratar da Amazônia a partir
anos 1970 realizou obras que envolviam a temática
de formas de arte menos tradicionais – como a arte
ecológica relacionada à Amazônia, tendo publi-
conceitual, a instalação artística e a videoarte. Sua
cado em 1978 o Manifesto do Naturalismo Integral
instalação Mater Dolorosa: in memorian I [1976],
[ou Manifesto do Rio Negro], junto com o iugoslavo
apresentada na Mostra Comemorativa dos 10 Anos
Sepp Baendereck e o francês Pierre Restany. No
da Zona Franca de Manaus, consistia em um cubo
plano institucional, houve até mesmo o projeto
acrílico incolor, com cerca de um metro em cada uma
Arte Amazonas [1992], realizado em várias cidades
de suas dimensões, contendo carvão vegetal preto,
brasileiras simultaneamente, com nítido acento
repousado sobre um pequeno monte de areia branca,
ambientalista – mesmo que as obras reunidas no
como uma cova improvisada. A obra contrastava, so-
projeto tivessem diferentes aspectos sobre o tema
bretudo, com os objetos industriais presentes na mes-
Amazônia.
ma mostra, e trazia
um tom de denúncia É evidente que a
ambientalista. partir dos anos 1970
começaram a apa-
O tema ecológico
recer, na arte bra-
foi tratado em mui-
sileira, imagens de
tos outros trabalhos
ideologias críticas
naquele período e
sobre a Amazônia,
vem sendo des-
distintas daquelas
dobrado até hoje.
que eram mane-
Desde o final dos
jadas na primeira
anos 1960, o mato-
metade daquele
-grossense Hum-
Fig. 13 - José Pires Rego, Águas amazônicas, 1978, acrílica sobre tela, 103cm x 202cm.
Fonte: Acervo do Espaço Cultural Casa das Onze Janelas.

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Gil Vieira Costa, Imagens da Amazônia na arte brasileira: do território a conquistar ao território a resistir
século 20 e nos anteriores. Essa mudança pode um novo imaginário e contribuir para o surgimen-
ser explicada a partir de um conjunto significativo to de novas ideologias políticas para a região. As
de transformações na estrutura social. A primeira imagens participam do tecido social e, de alguma
delas diz respeito às formulações de uma virada maneira, também moldam o mundo, antecipando
epistêmica global [CHAGAS, 2018], na segunda me- ideias e lhes conferindo existência material. É ne-
tade dos anos 1960, questionando fronteiras entre cessário apostar na arte especializada como mais
cultura erudita e popular, entre política e estética, um elemento capaz de influir e modificar a mentali-
somadas às profundas mudanças comportamen- dade da sociedade em um dado momento.
tais e tecnológicas experimentadas internacio-
A introdução de imagens críticas da Amazônia na
nalmente. Depois, a consolidação e legitimação
arte brasileira abriu caminho para uma mudança
das práticas artísticas ditas pós-modernas, de
nas representações da região na produção artís-
engajamento com a realidade social e histórica,
tica especializada. Cada vez mais, os artistas têm
desmaterialização, conceitualismos e princípios
deixado de tentar representar a Amazônia [essa
semelhantes. Além de tudo, havia ainda as
transformações sociais e políticas no país,
que envolviam o recrudescimento do gover-
no militar e, em especial, as ofensivas de
integração econômica da Amazônia, região
que foi cada vez mais o alvo de discursos,
ações e políticas públicas, nacionais e
internacionais, de grande impacto.

5. AMAZÔNIAS A RESISTIR
Até aqui, falei de como as ideologias po-
líticas conseguiram pautar imagens da
Amazônia nas artes visuais. Mas é neces-
sário também falar de como as imagens
da Amazônia na arte são capazes de pautar 130cm x 170cm. Fonte: Aline Figueiredo [1990, p. 58].
Fig. 14 - Humberto Espíndola, Devastação da Amazônia, 1980, óleo sobre tela,

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imagem ficcional que nos acompanha desde a A segunda questão é a indígena. Pelo fato de a
chegada do invasor europeu], abandonando os colonização da América do Sul ter se dado a partir
estereótipos e uma visão genérica, e têm buscado dos litorais, a Amazônia se tornou o atual refúgio de
formular imagens comprometidas com Amazônias muitos povos indígenas, que já estavam estabeleci-
reais – os problemas específicos de locais dentro dos por lá antes da invasão colonial ou que para lá
do local, de regiões dentro do regional. Perce- migraram, empurrados pelo “contato”. Assim como a
bo que a questão da Amazônia é atravessada e Amazônia é sinônimo de pauta ambiental, também é
se funde com, ao menos, três outras questões sinônimo de povos indígenas. Há desde o fato de que
cruciais para nossa época, e que esse fato tem as culturas tradicionais indígenas já integram defini-
alimentado novos trabalhos artísticos. tivamente o campo de interesses da ciência brasilei-
ra, até o fato de que essas mesmas comunidades es-
A primeira dessas questões é a ambiental. Esse
tão sob permanente ataque do Brasil ocidentalizado,
é um problema incontornável para nosso sécu-
que promove genocídios e epistemicídios dos grupos
lo, e quiçá seja o mais importante. A escala de
sociais indígenas. Acrescente-se, ainda, a questão
alteração das condições ambientais provocada
das populações afrodescendentes e mestiças, como
pela ação humana é sem precedentes. E, consi-
quilombolas e ribeirinhos.
derando que a lógica do capitalismo de consumo
necessita explorar os recursos naturais sem des- Por fim, a terceira questão imbricada no assunto
canso, é plausível considerar que a vida humana Amazônia é a decolonial. A condição de colonia-
esteja às vésperas de uma crise que pode ser lidade tem sido teorizada como algo que inclui e
irreversível e mesmo fatal – para nossa espécie, vai além da colonização política. Ela permanece
sobretudo. A floresta tropical e a bacia hidrográ- atuante, mesmo com a liberação política das
fica da Amazônia participam da regulação das colônias. As Amazônias da maioria dos países
condições climáticas do planeta e são uma das sul-americanos parecem partilhar uma condição
últimas grandes extensões naturais ainda não similar de colonialidade, já que esses Estados
totalmente afetadas pelo capitalismo moderno. possuem histórias paralelas de invasão e saque
De certa maneira, discutir a Amazônia é discutir a colonial nos últimos quinhentos anos. Além dis-
vida humana na Terra – algo que os ambientalis- so, as Amazônias compartilham uma situação de
tas vêm apontando desde os anos 1970. periferização dentro dos próprios países, que se

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Gil Vieira Costa, Imagens da Amazônia na arte brasileira: do território a conquistar ao território a resistir
desenvolveram, enquanto nações modernas, de No que diz respeito a obras que formulam respos-
costas para a região, interessados, quando muito, tas para uma ou mais das questões apresentadas
apenas na exploração de sua matéria-prima e [ambiental, indígena, decolonial], a partir de Amazô-
demais recursos naturais. A pauta decolonial é co- nias concretas e específicas, é possível mencionar
locada desde o sistema científico e os movimentos alguns nomes. Depois do genocídio indígena ser um
sociais, no mundo todo, indicando a necessidade tema mais ou menos explícito em trabalhos como
de combater e se desprender das estruturas da Sal sem carne [1975] e Zero Cruzeiro [1974-1978], do
colonialidade ainda vigente [MIGNOLO, 2010]. fluminense Cildo Meireles, e na produção de Clau-
dia Andujar até os anos 1980, ele ganha um fôlego
As questões ambiental, indígena e decolonial são, é
diferente com a exposição Hoximu [1994], do artista
claro, entremeadas. É a colonialidade que ameaça
paraense Klinger Carvalho. A exposição consistiu em
tanto o meio ambiente quanto as formas de vida al-
uma grande instalação de caráter escultórico, usan-
ternativas ao capitalismo global e à ocidentalização.
do madeira, cuias, velas, barro, entre outros mate-
Na arte brasileira interessada pela Amazônia, essas
riais, e fez alusão direta ao massacre de ianomâmis
questões têm reverberado há algum tempo, habitan-
em 1993, por brasileiros e venezuelanos interessa-
do os interesses de muitos artistas e curadores. Essa
dos em explorar os recursos do território indígena.
arte pode falar sobre tais temas a partir de um lugar
privilegiado, que é essa encruzilhada de problemas Outra reflexão potente sobre as questões ambiental
impreteríveis para a contemporaneidade. e da colonialidade está na ação Desculpem o trans-
torno, estamos em obras [2002], do amapaense
Assim, no lugar de imagens explícitas sobre a Ama-
Grupo Urucum, realizada nas dependências da Fu-
zônia, surgem imagens com diferentes graus de
narte, no Rio de Janeiro. O grupo coletou um grande
“amazonidade”, que partem da experiência com si-
conjunto de árvores derrubadas pela própria natu-
tuações concretas e da reflexão sobre as questões
reza no Amapá, o transportou para a instituição e
sociais dessa região. Exposições como Amazônia,
promoveu o ato de retalhar continuamente esses
a arte [2010, curadoria de Orlando Maneschy] e
troncos, pouco a pouco, pedaço a pedaço, até que
Amazônia, ciclos de modernidade [2012, curadoria
sobrasse apenas serragem e resíduos. Esse trans-
de Paulo Herkenhoff], seguidas de outros projetos,
torno intencional, que emula os crimes contra o
apresentam um discurso já bastante ampliado
território amazônico, parece também construir uma
sobre a relação “arte e Amazônia”.

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crítica à colonialidade no campo artístico brasileiro imagens de muitas das questões sociais que os
e em suas instituições. diferentes povos indígenas experimentam na Ama-
zônia brasileira, como a poluição dos rios, a caça
O artista paraense Armando Queiroz vem desde os
e pesca predatórias e desreguladas, a introdução
anos 1990 realizando obras de forte teor crítico, muitas
de drogas e doenças como o alcoolismo, grilagem
vezes a partir de questões amazônicas do presente.
de terras, tráfico de animais silvestres, entre outros
Pode-se destacar a série Reduções [2006], o vídeo
assuntos. O fato de Jaider Esbell ser um artista con-
Ymá Nhandehetama [2009] e a instalação Cântico
temporâneo de projeção nacional, somado a outros
Guarani [2010], trabalhos que colocam a questão
artistas indígenas como a baiana Arissana Pataxó e
indígena em cena, ou os objetos Ouro de tolo [2009]
o amazonense Denilson Baniwa, indica que o cam-
e a vídeo-performance Midas [2009], que trabalham
po artístico brasileiro pode se tornar uma platafor-
com a memória do garimpo de Serra Pelada, um dos
ma para imagens ainda mais comprometidas com
episódios mais conhecidos e dramáticos da minera-
projetos políticos de
ção no Brasil atual.
Amazônia voltadas
Para ficar em
para as questões
apenas mais um
ambiental, indígena
nome, temos o
e decolonial.
artista roraimen-
Os exemplos po-
se Jaider Esbell,
deriam ser multipli-
indígena macuxi,
cados à exaustão,
com a exposição
trazendo artistas
It was Amazon /
que trabalham ou
Era uma vez Ama-
trabalharam com
zônia [2016, Fig.
questões como a
15], constituída
negritude na Ama-
por desenhos em
zônia, o impacto
branco sobre preto.
dos grandes pro-
As obras de Jaider
Fig. 15 - Jader Esbell, obra da série It was Amazon / Era uma vez Amazônia, 2016.

jetos econômicos
Esbell manejam
Fonte: Site Jaider Esbell. Disponível em http://www.jaideresbell.com.br/
site/2016/07/01/it-was-amazon/. Acesso em 10 /7/2020.

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Gil Vieira Costa, Imagens da Amazônia na arte brasileira: do território a conquistar ao território a resistir
para a região, a [des]construção de uma identidade resses velados. Ter clareza sobre isso pode ajudar
cultural amazônica, entre tantas outras. Decerto a a aperfeiçoarmos os objetivos de nossos próprios
Amazônia não é mostrada somente de um ponto projetos políticos e estéticos para a Amazônia
de vista crítico a respeito de suas questões sociais, dentro da arte brasileira. Devemos participar da
mas também a partir de visadas afetivas e biográ- desconstrução de um imaginário defasado e, das
ficas igualmente interessantes. O campo de arte suas ruínas, fazer emergir imagens de uma Amazô-
especializada também tem apresentado uma aber- nia nova e condizente com as aspirações de nosso
tura cada vez maior para a presença de manifesta- tempo? Apostar na fabricação e manutenção de
ções artísticas não especializadas, como as cultu- imagens da Amazônia na arte, hoje, pode signifi-
ras tradicionais e as linguagens híbridas vindas de car a opção por um engajamento com os grupos
outros circuitos. Tudo isso é bastante positivo no sociais afetados pela modernidade, por um com-
sentido de uma reinvenção das imagens da Amazô- prometimento com a manutenção do meio ambien-
nia, vistas desde as artes visuais. te e por uma tentativa de superação da estrutura
de colonialidade moldada nos últimos quinhentos
As ideologias políticas e estéticas diversas, que
anos. São algumas das questões que o nosso tem-
disputam historicamente o significado e os usos das
po tem colocado para a Amazônia e para os artistas
imagens da Amazônia, coexistem. A região ainda
interessados em refletir sobre ela.
hoje é encarada como fora da história, isolada do
mundo contemporâneo, inferno verde ou eldorado
paradisíaco pleno de recursos naturais – Amazônia
a conquistar. No entanto, outras vozes, imagens e
imaginários vêm se fazendo presentes no debate
público e construindo novos projetos para a região,
desde então entendida como palco de uma resistên-
cia cultural e política.

Precisamos distinguir as características dos muitos


projetos de Amazônia concorrentes, em especial
porque há décadas ela se tornou objeto da atenção
internacionalista, atravessada por diversos inte-

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Revista Poiésis, Niterói, v. 22, n. 38, p. 44-63, jul./dez. 2021 [https://doi.org/10.22409/poiesis.v22i38.45673]
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Gil Vieira Costa, Imagens da Amazônia na arte brasileira: do território a conquistar ao território a resistir

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