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EDULE

Gêneros literários:
a narrativa
SUB
U RBLLLLL

Bíblia, como um livro que é também de natureza humana, resguarda


algumas características típicas do modo como o povo para o qual
foi
escrita se comunicava, e, tendo em vista a diversidade de públicos para
os quais é direcionada, abordagens literárias distintas foram
escolhidas pelos autores bíblicos a fim de comunicarem a mensagem
divina de forma mais apropriada e eficaz.
Na verdade, em dependência do conteúdo da mensagem e do
propósito que ela visava a atingir, a verdade divina tomava uma
roupagem literária espe cífica. Se, por exemplo, esse conteúdo era
direcionado a um tempo futuro, com implicações de juízo e bênçãos
ou maldições divinas por causa da conduta do povo, a profecia era o
meio escolhido. Se, por outro lado, o texto visava a expressar os mais
profundos sentimentos da alma humana que se expressava e se derramava
diante do soberano Senhor, a forma poética era a preferida.
A análise dessa diversidade literária, ou dos gêneros, é
chamada de hermenêutica específica ou especial, campo de
estudo que será objeto de nossa reflexão neste e nos três próximos
capítulos.

O GÊNERO NARRATIVO

Uma definição apropriada de narrativa, que também


pode ser aplicada às narrativas bíblicas, é esta de Fiorin e Savioli:
HERMENEUTICA
1442

Texto narrativo é aquele que relata as mudanças progressivas de estado que


vão ocorrendo com as pessoas e as coisas através do tempo. Nesse
tipo de texto, os episódios e os relatos estão organizados numa disposição tal
que entre eles existe sempre uma relação de anterioridade ou de
posterioridade. Essa relação de anterioridade ou posterioridade é sempre pertinente
num texto narrativo, mesmo quando ela venha alterada na sua sequência linear
por uma razão ou por outra.1

Note algumas palavras e expressões-chave que aparecem nessa


definição e que nos permitem compreender a essência da narrativa
como gênero literário:

• Mudanças progressivas de estado. As narrativas são


dinâmicas, pois
retratam situações em movimento, em
progresso.
• Vão ocorrendo com as pessoas e as coisas através do tempo. O
enredo
de uma narrativa é composto de pessoas, situações, diálogos, ações e
reações. Os episódios e os relatos estão organizados numa
disposição tal que... Dada a seletividade das narrativas, os
detalhes que constam nelas foram organizados de forma a retratar a
situação narrada para, então, cumprirem os propósitos do autor. O
arranjo dos detalhes e
sequências da narrativa seguem os interesses do
autor.
• Existe sempre uma relação de anterioridade ou de
posterioridade. Essa
relação de anterioridade e posterioridade é o que expressa o enredo da
história, pontuando seu começo, meio e fim. Além disso, é essa
relação que dá fluidez à narrativa.

O gênero narrativo é encontrado na maior parte da Bíblia, pois não


apenas as histórias do Antigo Testamento como também longas
porções dos Evangelhos e o livro de Atos foram escritos nesse estilo
de composição. Ao contar uma história carregada de detalhes e
ênfases, o autor bíblico não apenas narrava fatos, mas também
expressava as ações e reações de Deus e do povo bem como os
resultados provenientes de tais ações e reações. Acrescente-se a
isso a potencialidade que tais narrativas tinham de ficar gravadas na
mente e no coração dos leitores.
Pelo fato de as narrativas envolverem pessoas comuns que foram
separadas por Deus para cumprir seus desígnios e que tiveram de
lidar com situações desafiadoras de vitória e derrota, alegria e tristeza,
pecado ou san tidade, o leitor não apenas se identificaria sem muita
dificuldade com tais

José Luiz Fiorin; Francisco Platão Savioli, Para entender o texto: leitura e redação, 16. ed.
(São Paulo: Atica, s.d.), p. 289.
GÊNEROS LITERÁRIOS: A NARRATIVA
e 3145
histórias, mas também aprenderia a história do povo de Deus.
Assim saberia conduzir sua própria vida no tempo presente e no
futuro.
O que as narrativas bíblicas não são:

1. Apenas histórias de pessoas que viveram em tempos antigos,


seja no
período do Antigo Testamento, seja no período do Novo Testamento.
Se admitíssemos isso, elas não teriam, portanto, relevância
ou aplicabilidade para nossos dias, exceto se fossem
alegoricamente
interpretadas e aplicadas. 2. Alegorias ou histórias com significados
ocultos, cujo foco central não
está em relatos reais ou críveis. Por desconsiderarem a
veracidade das histórias, muitos caem na tentação de ficar
caçando princípios nas entrelinhas ou verdades ocultas por
detrás do texto. Creio que, embora as narrativas não
comuniquem esses princípios de forma direta ou explícita como
as epístolas, elas oferecem claramente ensinamentos práticos
para a vida dos filhos de Deus. A diferença, no entanto, é que tais
princípios foram narrados e ilustrados por histórias, não sendo,
portanto, afirmados em máximas ou compac
tados em aforismos. 3. Mitos, fábulas, estórias ou qualquer outra
coisa que não seja considerada
fato histórico ocorrido e devidamente registrado. As narrativas
bíblicas contam histórias de pessoas e fatos históricos verídicos. Temos
que partir do pressuposto de sua historicidade e veracidade, caso
contrário cairemos em um profundo ceticismo ou
incredulidade para com o relato bíblico, erro este em que muitos,
como Rudolph
Bultman (com sua hermenêutica da demitização), têm caído. 4.
Histórias ou situações específicas que têm de possuir obrigatoriamente
um princípio moral ou mandamento a ser praticado. Precisamos
ter cuidado para não fragmentar uma narrativa em porções ou
versos menores, como se cada declaração, evento,
personagem ou deta lhe, independentemente dos demais,
contivesse uma mensagem espiritual e especial para o leitor
contemporâneo. Mais adiante, distinguirei o que chamo de
macronarrativas e micronarrativas, o que nos auxiliará na
compreensão dessa questão.

Aspectos temporais das narrativas bíblicas


Entendo que o salmo 78 nos revela o significado, o propósito e a
natureza temporal dos relatos bíblicos. Por isso ele pode ser visto como
uma chave hermenêutica para as narrativas das Escrituras. Eis o
que diz o salmo dos versos 1 a 8:
HERMENÊUTICA
146

Meu povo, escutai meu ensino, inclinai os ouvidos às palavras da


minha boca. Abrirei minha boca em parábolas; proporei enigmas da
antiguidade, o que temos ouvido e aprendido, e nossos pais nos
têm contado. Não os encobri remos aos seus filhos, contaremos às
gerações vindouras sobre os louvores do SENHOR, seu poder e as
maravilhas que tem feito. Porque ele estabeleceu um testemunho em
Jacó e instituiu uma lei em Israel, ordenando aos nossos pais que os
ensinassem a seus filhos; para que a futura geração os conhe
cesse, para que os filhos que nasceriam se levantassem e os contassem a
seus filhos, a fim de que pusessem sua confiança em Deus e não se
esquecessem das suas obras, mas guardassem seus mandamentos; e que não
fossem como seus pais, geração teimosa e rebelde, geração inconstante, cujo
espírito não foi fiel para com Deus.
O que vemos nesse salmo é que as narrativas retratam a história do
relacionamento entre Deus e seu povo (significado). Tal história serve
como testemunho da verdade divina às gerações futuras (propósito) e se
expressa em três momentos históricos distintos (aspectos temporais da
narrativa).
O objetivo desses aspectos temporais é tanto pontuar a relevância
da narrativa para os leitores originais quanto estabelecer os
propósitos subja centes a ela quando fosse contada para a nova
geração.

1. Aspectos ou fatos passados (SI 78.1-3). O autor da narrativa


narra
eventos passados ocorridos com pessoas específicas que enfrenta ram
desafios pertinentes ao cumprimento da vontade divina para
seu tempo. Esse autor, em geral, não viveu no período
retratado, embora, em alguns casos, ele seja um dos
protagonistas da história, como Lucas em Atos dos
Apóstolos. .
Por isso, em sua grande maioria, a narrativa é o relato de uma
história passada ou de uma história em progresso, que já
teria ocorrido quando seu primeiro leitor tomasse
conhecimento dela pela primeira vez.

2. Aspectos presentes ou lições para o presente (SI 78.4,5). Como


espec
tador da história e mensageiro de Deus, o autor, que poderíamos
chamar de narrador ou diretor (se a narrativa fosse um drama),
olha para trás e, ao identificar alguns paralelos entre sua gera
ção e a passada, relata a história a fim de estabelecer pontos de
contato — sejam eles positivos ou negativos, de aprovação
ou reprovação — que produzam reflexão sobre seu tempo
presente ou que possam transformar sua realidade.
Ao direcionar a verdade divina ao público atual, o narrador
esta belece os pontos de contato entre a geração
antiga e a presente geração
GÊNEROS LITERÁRIOS: A NARRATIVA

ou época, apresentando o princípio espiritual que perpassa a


narrativa e que precisa ser conhecido e praticado por seus
destinatários.
A narrativa, nesse sentido, visava a produzir identificação entre o
passado e o presente, para que o povo ao qual era direcionada
aprendesse assim com as experiências passadas ou fosse ainda
transformado por elas. Por isso, a partir do momento em que
a geração do presente entendesse esses pontos de contato,
ela refletiria e buscaria mudanças compatíveis com as
expectativas de Deus ao inspirar o autor bíblico para escrever a
história.

3. Aspectos futuros ou desafios para o futuro (SI


78.6-8). Olhando para
a trajetória do povo, o autor bíblico traça desafios futuros muito
claros para seus leitores com o intuito de fazer com que os prin
cípios dados por Deus fossem cumpridos. Apenas assim o povo
poderia vislumbrar um futuro glorioso e ter a garantia da
bênção e do cuidado de Deus.
Esses desafios eram vistos pela comunidade como algo que
certamente haveria de acontecer, tendo em vista que já tinham
como experiência a manifestação histórica do agir de Deus.
Em sua graça soberana e fidelidade sem par, Deus continuaria a sustentar
todos quantos andassem em conformidade com suas prescrições
passadas. Assim como tinha intervindo na realidade passada, o
Senhor interviria sem dúvida no presente, apontando
para um futuro assegurado e abençoado por ele.
Nesse sentido, as histórias passadas serviam como
testemunho do que poderia ou não acontecer com o povo no
futuro, caso se assemelhasse à geração que vivenciara
experiências parecidas no passado, fosse ele recente ou
remoto, e passasse a praticar o que fora mais característico
dessa geração.
la

Em resumo, as narrativas bíblicas são histórias do passado, que,


no contexto bíblico, foram contadas ou relatadas para transmitir uma
mensagem para as gerações presentes e/ou futuras, as quais, de
alguma forma, poderiam ser influenciadas ou instruídas por esses
acontecimentos. Quanto aos aspec tos temporais, a narrativa resgata
o passado, extrai lições para o presente e direciona o futuro do povo.
Além disso, a narrativa dá ao povo a garantia de que a vida com Deus
sempre trará frutos benéficos, pois o Deus que atuou no passado é
o mesmo que atua no presente e garante o futuro.

Propósito didático-teológico das narrativas


A partir do salmo 78 e da análise de várias narrativas,
percebe mos que elas serviam a um propósito maior, que é a
comunicação dos
TRAT
HERMENEUTICA
2S

ensinamentos de Deus ao povo. Elas não apenas contavam ou


apresenta vam fatos ocorridos, mas visavam a ensinar como proceder, em que crer e como
crer. Nessas narrativas, podemos identificar tanto o propósito didático
quanto o teológico.

1. Didático. Por serem basicamente constituídas de


descrições e
ilustrações, as narrativas eram atraentes e despertavam a
atenção e a imaginação de seus leitores, como a história de Abraão e
Isaque (Gn 22.1-13), por exemplo. Consequentemente, a
memo rização da história, ou pelo menos do escopo geral da
narrativa, tornava-se mais fácil. Por promoverem grande identificação
entre a história e quem as lia, as narrativas naturalmente
produziam reflexão, desafiando e confrontando os leitores, já que
retratavam experiências de vida que não eram fictícias, antes
faziam parte da
realidade deles. 2. Teológico. Transcendendo o aspecto narrativo,
essas histórias bíblicas
são, em essência, a história do povo de Deus e da intervenção divina no
cumprimento de seus desígnios, retratada em fatos e
eventos, pessoas e coisas. Por causa disso, discordo dos que
dizem que as narrativas não podem ser tomadas como embasamento
doutrinário por não comportarem um rigor teológico estrito. De
fato, elas não são tratados doutrinários como as epístolas ou
mesmo como a lei mosaica ou os Profetas. No entanto, no
desenrolar das narrati vas, princípios e verdades espirituais são
ensinados por meio das ações e reações de seus
protagonistas. Esses princípios e verdades expressam-se
principalmente no modo como Deus conduz toda a história,
aprovando ou reprovando, abençoando ou disciplinando seu
povo. É por meio de muitas narrativas que entendemos o
amor de Deus benévolo e incondicional, sua provisão
em meio à desgraça e ruína, bem como outras
verdades teológicas.

Micronarrativas e macronarrativas
Um dos problemas mais frequentes na leitura e interpretação de
narrativas é que seus leitores costumam ver/ler cada evento ou como um fim
em si mesmo ou como o todo da narrativa. É o que acaba
acontecendo quando o tempo que se tem disponível para o
estudo é escasso ou quando há interesses homiléticos particulares
envolvidos. Um exemplo disso ocorre quando, por exemplo, o leitor
seleciona a história de Sadraque, Mesaque e Abednego, relatada em
Daniel 3, e a considera como se fosse o todo da his tória do livro do
profeta. No entanto, se esse episódio está incluído em uma narrativa
maior e foi propositadamente registrado em um ponto
determinado
GÊNEROS LITERÁRIOS: A NARRATIVA

da narrativa, entende-se que ele é parte da narrativa. Essa porção é


o que chamo de micronarrativa.
Toda narrativa, relatada ao longo de muitos versículos
ou capítulos de um livro bíblico, está dividida em eventos menores
que, na sua somatória, compõem toda a história. A essa composição ou
formatação final da his tória chamo de macronarrativa. Toda
macronarrativa é composta, portanto, de várias micronarrativas. No
caso de relatos menores, tal fragmentação não acontece.
Se fossemos ensinar algo da vida de José ou de Josué,
poderíamos destacar um ponto ou outro da história maior de cada um deles?
Sim, com certeza. No entanto, precisaríamos saber pontuar em que
parte o evento escolhido para ser ensinado se encaixa na história
maior dessas personagens, pois existem questões ou detalhes na
narrativa que, quando tratados apenas como parte da história, não
fazem sentido, visto que não podem abranger a história como um
todo.
Nesse sentido, percebo ainda outro problema: pessoas que
tentam descobrir, caçar ou impor um princípio espiritual em cada
história bíblica acabam desfigurando o propósito maior do autor bíblico
que compôs a história do modo como ela se encontra em sua redação
final. Não creio que cada micronarrativa tenha necessariamente um princípio espiritual a ser
praticado ou que cada vírgula ou detalhe da narrativa deva ser
interpretado em termos práticos para o ouvinte contemporâneo.
Narrativas, como já disse algumas vezes e volto a repetir, não são
como as epístolas. Digo isso porque não vejo o destinatário original
lendo a narrativa da mesma maneira que muitas vezes a lemos, qual
seja, de forma tão fragmentada que acabamos perdendo a noção
do quadro maior.
A ilustração que costumo usar é a do quebra-cabeça: a figura
final é a somatória das peças individuais, arranjadas em seus
devidos lugares. Uma peça, ainda que contendo uma forma e figura
definidas, não é a imagem toda. E uma parte. Por isso, compreender as
micronarrativas e sua função na macronarrativa é importantíssimo.
Entendo que, nesse ponto da hermenêutica, a compreensão da teo logia
bíblica do livro seja fundamental. O livro bíblico não é uma colcha de
retalhos literários ou textuais, que foi composto sem um propósito
definido. Tendo em vida o propósito autoral, cada palavra, frase ou evento de forma
individual e coletiva para a teologia maior do livro. Sem a correta
compreensão disso, podemos cair no erro de produzir um estudo herme
nêutico simplista ou reducionista, incapaz de perceber a relevância de
uma micronarrativa para o todo do livro e a maneira como o todo foi composto
por suas partes. A existência de uma teologia maior aponta para a
existência de um propósito que serve de fio condutor para cada fato e
evento relatados.
HERMENEUTICA

150

Partindo desses pressupostos, entendo que, para compreendermos o


princípio de uma narrativa, teremos de ler a história toda — e por
várias vezes — para então conseguirmos notar as ênfases e o
desenvolvimento da narrativa, bem como as demonstrações da
intervenção de Deus e as possíveis conexões com ordenanças
passadas.
Quando entendermos o princípio principal (sei que pode soar estranho,
mas é isso mesmo) da macronarrativa, teremos condições de notar esse
princípio principal refletido ou manifesto nas micronarrativas, haja vista que o
estudo de cada novo evento nos trará o conhecimento de uma das partes
que compõem esse princípio e já apontará para o desfecho da história.
Por essa causa, boa parte dos pastores ou estudantes de teologia não
escolhe narrativas como texto-base para suas pregações ou não dá a ênfase
devida àquela que deve ter sido a pretendida pelo autor bíblico na
narrativa. Muitos, pela dificuldade de interpretação da narrativa,
preferem não ensiná-las.
Temos de aprender a respeitar a fluência da narrativa, deixando de ser
aficionados pela busca de princípios que gostaríamos de ver presentes
nela. Pelo fato de esses relatos serem muito descritivos — afinal, eram os
detalhes que davam mais vivacidade à narrativa e poder de identificação
com a realidade do leitor/ouvinte -, devo compreender de que forma
tais deta lhes auxiliam na compreensão da verdade subentendida na
narrativa maior. Por isso, embora eu não creia que devamos
interpretar cada detalhe como portador de uma verdade oculta, creio
que também não devemos rejeitar esses detalhes, visto que, dada a
seletividade do gênero narrativo, são muito importantes para a
compreensão da narrativa.
Tipos de narrativas
Segundo Zuck,2 as narrativas bíblicas podem ser categorizadas
nos seguintes tipos:
1. Tragédia. História da decadência de um indivíduo, do apogeu ao
desastre. Exemplos: Sansão, Saul e Salomão. 2. Épico. Narrativa
que contém uma série de episódios centrados em
uma pessoa ou grupo de pessoas. Esse tipo de narrativa retrata
um período específico da vida dessa pessoa ou desse
grupo. Exemplo: peregrinação dos israelitas no deserto.

2Adaptado de: Roy B. Zuck, A interpretação bíblica: meios de descobrir a verdade da Bíblia
(São Paulo: Vida Nova, 1994), p. 150-1.
GÊNEROS LITERÁRIOS: A NARRATIVA

3. Romance. Narrativa que aborda a relação romântica entre


um
homem e uma mulher. Exemplos: Rute e Cântico dos cânticos.
4. Heroico. História construída em torno da vida e dos feitos
de um
herói ou de um protagonista, o qual, por vezes, representa outras
pessoas ou é um exemplo para os demais. Exemplos: Abraão,
Gideão, Davi, Daniel e Paulo. 5. Sátira. Exposição da loucura ou
das falhas humanas por meio da
ridicularização ou da crítica. Exemplo: Jonas. 6. Polêmica.
Narrativa que ataca agressivamente ou contesta as
ideias de terceiros. Exemplos: Elias com os 450 profetas de
Baal (1Rs 18.16-46) e as dez pragas contra os deuses e
deusas do Egito (Êx 7.19—12.36).

Estrutura das narrativas5


Analisando várias narrativas, podemos perceber a existência
de uma estrutura básica e recorrente nelas. Pelo fato de uma narrativa
ser uma trama, alguns pontos comuns de composição podem ser encontrados
nessas histórias, como se segue:

3Embora o livro de Cântico dos Cânticos pertença ao gênero poético, ele também
narra uma história amorosa entre Salomão e a Sulamita.
“Para Zuck, o livro de Jonas é escrito no estilo satírico pelos seguintes motivos:
“Jonas é uma sátira, visto que Jonas, na qualidade de representante de Israel, é ridicula
rizado por rejeitar o amor universal de Deus. Ironicamente, ele estava mais
preocupado com uma planta do que com os pagãos de Ninive. Outra ironia é que
Deus se compadeceu do profeta, embora este não tivesse se compadecido dos
ninivitas. Muitos dos que leem o livro de Jonas reparam que a história termina de maneira
abrupta, aparentemente sem que o problema da ira do profeta tivesse sido resolvido. O
motivo está justamente no fato de que é assim que as sátiras geralmente terminam. A
humilhação de Jonas é um bom final para uma sátira, e os israelitas teriam de
enxergar no comportamento do profeta um reflexo de si mesmos e de sua atitude
para com as nações pagās. Obs.: O fato de o livro de Jonas ter sido escrito em tom
de sátira não anula de forma alguma sua historicidade” (Roy B. Zuck, op. cit., p. 151).
SEmbora eu tenha me baseado no gráfico do Zuck (Roy B. Zuck, op. cit.,
p.150), a proposta da estruturação de uma narrativa aqui apresentada é diferente em alguns
aspectos, bem como apresenta explicações ausentes em Zuck. Nesse gráfico, em
comparação com o de Zuck, a resolução é desmembrada da nova normalidade.
HERMENÊUTICA
ESTRUTURA DAS NARRATIVAS

Problema
Climax
Resolução

Normalidade
Nova normalidade

1. Normalidade (ou ponto de partida). É o ponto de partida ou


am
bientação da narrativa. É o início da história ou de onde ela surge ou
passa a ser contada. E aquela primeira informação que contex
tualiza o leitor quanto ao que está acontecendo. Embora o
termo normalidade seja empregado, ele significa apenas o
estado inicial, ou normal, a partir do qual a narrativa se
desencadeia. Algumas narrativas apresentam como
normalidade uma situação de tensão ou ruína, que pode ou
não ter sido provocada pelo pecado de alguém ou de um povo,
como por exemplo o início da história de Rute ou
Problema. O problema
de várias histórias relatadas em Juízes. 2.
compreende algum evento que muda a
dinâmica da história, promovendo uma quebra da normalidade e
apontando para outra direção. Nesse sentido, é um ponto de
tensão ou mudança. No relato narrativo, esse problema evolui e, à
medida que a história acontece, o autor acrescenta cada vez mais
detalhes ou informações até chegar a um ponto insustentável,
ao
ápice da história. 3. Clímax. Servindo como ápice ou auge, o clímax é o
ponto a partir
do qual a história não tem mais para onde caminhar do ponto de vista
das complicações ou tensões, a não ser para uma resolução
ou término abrupto. É o momento que, na perspectiva
humana, o problema não tem como ser solucionado sem a
intervenção
de Deus.
PETER
GÊNEROS LITERÁRIOS: A NARRATIVA
* 153

4. Resolução. Esse é o ponto da narrativa em que se verifica uma


so
lução, uma conclusão, um desfecho ou pelo menos uma proposta
de resolução. Com isso, a narrativa tanto tende a diminuir em
sua intensidade quanto começa a se desdobrar na
resolução do proble ma original, caminhando para uma nova
normalidade ou para sua conclusão. Essa resolução geralmente
aponta para a manifestação do caráter de Deus ou para a
conformação dos protagonistas aos
desígnios do Senhor. 5. Nova normalidade (ou novo ponto de
partida). É o início de uma
nova micronarrativa, que se insere na sequência da história.
Essa nova normalidade, na progressão da narrativa, dá origem a
uma nova situação, da qual o autor parte para fornecer novos
detalhes e desdobramentos. Em uma macronarrativa, essas
novas normalidades estabelecem as conexões entre as
histórias menores relatadas.
Sobre essa estrutura, atentemos para duas últimas
observações:

1. Como já foi dito, trata-se de um padrão, e não de algo estático


ou inflexível. Por vezes, é possível que você não encontre um ou outro
desses elementos na narrativa, como é o caso, por exemplo, do
livro de Jonas, em que a história não termina no capítulo 4. Há
um fim repentino. 2. Embora essa estrutura possa ser recorrente,
muitos outros eventos
ou diálogos acontecem durante a transição de cada ponto e costu mam
não ser situações pontuais ou eventos únicos.

está
Em termos hermenêuticos, a importância da análise dessa estrutura
na identificação do problema e da sua resolução, pois ambos
devem ser provavelmente os pontos de contato que o autor queria
estabelecer entre a história passada e a realidade da geração para
a qual o livro foi escrito.
Nesse esquema, as narrativas obedecem a uma mesma
sequência: após a ambientação, acontece um problema, que muda a
dinâmica do estado inicial da narrativa e traz complicações cada vez
maiores. A medida que o problema evolui, o suspense aumenta, e as
dificuldades e os relacio namentos ficam mais complicados, até se
chegar a um clímax dramático. Daí em diante, a narrativa segue em
direção a uma solução e termina com o problema resolvido.
HERMENÊUTICA

Para exemplificar, teríamos a seguinte estruturação em Jonas


1:

Elemento
Versículos
Normalidade
1,2

Problema

Capítulo 1
Clímax
4-10

11-15a
Resolução Nova normalidade
16,17

Na história maior do livro de Jonas, o capítulo 1 é uma


micronarrativa pertencente à macronarrativa que se prolonga até o final
do capítulo 4.

Elementos de uma narrativa


Quando se trata de uma história ou um drama, a narrativa costuma
apresentar alguns elementos que expressam a dinâmica da encenação.
Os principais elementos são:

Contexto
Contexto é o ambiente no qual e a partir do qual a narrativa se
desenvolve. É a situação que está sendo retratada. Por isso cada
detalhe dele é importante.
Não é fácil encaixar a narrativa em determinado contexto, pois cos tumamos
entendê-la como um desdobramento de um contexto já existente. O
contexto, no caso da narrativa, é histórico, teológico, espiritual, religioso,
social, político e econômico, entre outros. Analisar o contexto é saber
situar a porção da história no todo ou na história que vai além do próprio
livro, como, por exemplo, a História universal.

Cenário
Envolve não apenas o ambiente físico em que a narrativa progride,
mas também o ambiente emocional em torno do qual os acontecimentos se
desenrolam. É o acontecimento visto em determinado lugar, tempo e
ambiente. No cenário, situam-se os detalhes que compõem a cena
narrada e os elementos que a identificam ou a distinguem das demais. É
a visuali zação do quadro maior. Se tirássemos uma foto da situação, o
cenário seria a descrição detalhada do que vemos e percebemos na
foto.

Personagens (elenco)
As personagens, via de regra, acabam sendo o foco das narrativas. Por
isso, devemos dar-lhes uma atenção muito especial. Nelas, com elas e
GÊNEROS LITERÁRIOS: A NARRATIVA
155

por meio delas é que uma narrativa acontece. Elas costumam ser o centro
das atenções, em torno de quem e para quem as narrativas convergem.
A personagem pode ser protagonista ou antagonista. Ambos
estão sujeitos a transformações de caráter (como Saulo → Paulo),
passam por diversas experiências e podem servir de exemplo,
de vida, negativa ou positiva, que é
fornecendo-nos uma lição
fruto de alguma prova pela qual passaram.

Eventos (enredo)
Como em uma peça teatral, a narrativa é dividida em cenas.
Essas cenas, que em movimento compõem os eventos, demonstram a
trama da história. O evento é a ação em si, a maneira como a história é
construída, incluindo desafios e crises que as personagens enfrentam no
desenrolar dos acontecimentos.
dos
O enredo, por outro lado, engloba tanto o desdobramento da história,
eventos e das várias cenas quanto a maneira como tais eventos
estão interligados. Quando identificamos o enredo, temos mais
condições de enxergar não só as micronarrativas, mas também as
macronarrativas.
Em termos homiléticos, devemos ter o cuidado de não isolar
parte de uma história em movimento, pois, no enredo, a conexão
entre as partes é tão profunda que, sem a informação seguinte,
a anterior não faz sentido.

Diálogos
Os diálogos são conversas desenvolvidas pelas personagens
ao longo das narrativas que nos revelam emoções,
questionamentos, disposições, ações e reações delas diante do que
está acontecendo ou do que virá a acontecer.
Às vezes os diálogos já apontam para alguns detalhes
interpretativos da narrativa, pois, por meio deles, as personagens
emitem suas opiniões do que acontece ou do que deveria
acontecer.

Hermenêutica das narrativas


Eis alguns princípios norteadores para uma correta
interpretação das narrativas bíblicas:

1. Analise o contexto imediato da narrativa. É importante


observar
tanto o que vem antes quanto o que vem depois dela. 2. Atente para
a unidade do livro, entendendo como os episódios estão in
terligados. O uso de um esboço do livro ou do argumento
exegético feito por você ou extraído de um bom comentário bíblico
pode ser de grande valia, pois esse esboço apresenta a
estruturação do conteúdo do livro.
EFF
E
HERMENEUTICA
156
3. Situe a narrativa no propósito autoral do livro. Isso nos ajuda
a
bem como nos auxilia a
enquadrar a narrativa no contexto e no propósito maior do livro,

demonstrar a existência de uma unidade de autoria. Em


outras palavras, leva-nos a identificar o propósito
do autor quando posicionou um texto ao lado do outro. 4. Identifique quais
são os propósitos didáticos e teológicos da narrativa.
Em tese, é encontrar o que a narrativa quer ensinar sobre o caráter e
a conduta do filho de Deus diante da situação retratada, bem
como sobre os atributos ou feitos de Deus que se manifestaram no
decorrer da história.

Analise possíveis recursos literários empregados,


tais como:

• figuras de linguagem,
• repetições (Js 1.1-9),
• contrastes (Js 1.1-9; Jn 1.1-3),
• justaposições (Jó e os diálogos com seus
amigos),
• ambiguidades.

Práticas a ser evitadas na interpretação de histórias bíblicas:

• Abandonar o estudo e o ensino das narrativas!


• Ignorar o propósito do autor e as circunstâncias de seus destina
tários originais.
• Isolar a história de seu contexto maior.
• Alegorizar ou espiritualizar o conteúdo todo ou
detalhes da narrativa.
• Simplesmente recontar a história, sem
interpretá-la.
• Ignorar a contribuição do texto para a teologia bíblica e
sistemática.
• Forçar uma estrutura “ocidental” no texto e em seu fluxo
narrativo.
• Extrapolar o texto, imaginando além daquilo que
está relatado.
• Deixar de aplicar adequadamente o texto bíblico à
realidade presente.

A contextualização e a aplicação das narrativas serão elementos analisados no capí


tulo 11, “O desafio da aplicação prática das Escrituras", mais especificamente nos
tópicos “Aplicações a partir de narrativas bíblicas" e "Aplicações a partir de exemplos
de personagens".

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