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O MEDO DO DESCONHECIDO:
Um diálogo entre o terror psicológico em “The Fall of the House of Usher”, de Edgar A.
Poe, e o horror cósmico em “The Outsider”, de H. P. Lovecraft
ASSU/RN
2018
JEFFERSON FELIPHE DA COSTA CABRAL
O MEDO DO DESCONHECIDO:
Um diálogo entre o terror psicológico em “The Fall of the House of Usher”, de Edgar A.
Poe, e o horror cósmico em “The Outsider”, de H. P. Lovecraft
ASSU/RN
2018
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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
C117m
Cabral, Jefferson Feliphe da Costa
O medo do desconhecido: um diálogo entre o terror psicológico em The
Fall of the House of Usher, de Edgar A. Poe e o horror cósmico em The
Outsider, de H. P. Lovecraft. / Jefferson Feliphe da Costa Cabral. - Assú,
2018.
40p.
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JEFFERSON FELIPHE DA COSTA CABRAL
O MEDO DO DESCONHECIDO:
Um diálogo entre o terror psicológico em “The Fall of the House of Usher”, de Edgar A.
Poe, e o horror cósmico em “The Outsider”, de H. P. Lovecraft
_____________________________________________________________
Prof. Letícia Fernandes Malloy Diniz (UERN)
Presidente
______________________________________________________
Prof. Francisco José Costa dos Santos
Examinador
______________________________________________________
Profa. Lilian de Oliveira Rodrigues (UERN)
Examinadora
ASSU/RN
2018
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DEDICATÓRIA
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AGRADECIMENTOS
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“Nossos pensamentos são as sombras de nossos sentimentos, sempre
mais obscuros, mais vazios, mais simples que estes.”
Friedrich Nietzsche
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SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................ 8
CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................... 10
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Resumo
O horror permeia obras literárias até os dias atuais e tem sido definido de acordo com a ênfase
na exploração da estética do medo e a relação entre realidade e fantasia. O horror foi
mundialmente difundido pela obra de Edgar Allan Poe (1809 - 1849), mas foi posteriormente
com Howard Phillips Lovecraft (1890 – 1937) que o gênero ganhou contornos mais definidos,
pois, além de ter produzido uma grande quantidade de contos góticos, criando seu próprio
subgênero, o chamado Horror Cósmico, ambos os autores teorizaram sobre a literatura de
horror, publicando sua perspectiva nos ensaios “A Filosofia da Composição de (1846) e
“Horror Sobrenatural na Literatura” (1927). Entre os contos góticos escritos por Poe e
Lovecraft estão “A Queda da Casa de Usher” (1839), e “O Forasteiro” (1926), os quais este
presente trabalho se propõe a analisar a constituição gótica dessas referidas obras dos autores
americanos. Fazendo uso de uma metodologia comparativista e bibliográfico-interpretativista
com base em discussões teóricas sobre a literatura gótica, a pesquisa destacou, nos contos em
análise, considerações sobre efeitos de medo e horror e sobre os temas da loucura e da morte,
além da condição trágica de isolamento dos protagonistas de ambos os contos e seu caráter
duplo, a simbologia presente na narrativa, entre outros aspectos.
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Abstract
The Horror permeates literary works to this day and has been defined according to the
emphasis on the exploration of the aesthetics of fear and the relationship between reality and
fantasy. The horror was spread worldwide by Poe’s work (1809 - 1849), but was later by
Lovecraft’s (1890 – 1937) that the genre gained more defined contours, because besides
having produced a large amount of Gothic tales, creating a particular subgenre, called Cosmic
Horror, both of the authors theorized about horror literature, publishing their perspective in
the essays “The Philosophy of Composition” (1846) and “Supernatural Horror in Literature”
(1927). Among the Gothic tales written by Poe and Lovecraft are “The Fall of the House of
Usher” (1839) and “The Outsider” (1926), which this research proposes to analyze the Gothic
constitution of these works of the American authors. Using a comparative and bibliographic-
interpretative methodology based on theoretical discussions about Gothic literature, the
research highlighted, in the chosen tales for the analysis, considerations about the effects of
fear, madness and death beyond the tragic condition of isolation of the protagonists of both
tales and its dual character, the present symbology in the narrative, among other aspects.
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Considerações iniciais
Este estudo propõe um diálogo entre as obras de Edgar Allan Poe e Howard Phillips
Lovecraft, levando em consideração os elementos e fenômenos que caracterizam o horror
ficcional nas obras dos dois autores. Para isso, tomam-se por foco os contos “The Fall of the
House of Usher” (1839), de Poe, e “The Outsider” (1926), de Lovecraft, por se tratarem de
textos representativos das concepções de horror nas obras dos dois autores.
Um dos principais objetivos desta pesquisa é oferecer contribuições para a fortuna
crítica de Lovecraft no Brasil e, para isso, busca-se apontar diálogos entre as perspectivas
deste e de Poe, seu predecessor, a respeito do terror. Atualmente, após mais de cem anos de
seu nascimento, as histórias de Lovecraft estão disponíveis em edições com texto revisado.
Seus ensaios, poemas e cartas circulam amplamente, e muitos estudiosos de países anglófonos
têm analisado a complexidade de sua obra e de seu pensamento. Porém, os estudos no Brasil
sobre a obra de Lovecraft ainda não são expressivos. Lovecraft possui o mérito de ocupar um
espaço no cânone da literatura norte-americana, e sua obra merece maior atenção por parte de
docentes e discentes de cursos de Letras – Língua Inglesa no Brasil.
Desse modo, esta pesquisa é voltada a estudantes e pesquisadores das literaturas de
língua inglesa, assim como a leitores interessados na estética gótica, e foi estimulada pela
relevância do tema, frequentemente revisitado – mas não esgotado –, em especial, na fortuna
crítica de Edgar Allan Poe.
Ao propor a análise de textos literários, esta pesquisa se desenvolve a partir da
abordagem interpretativista e bibliográfica. A análise ora desenvolvida adota, também, a
perspectiva comparatista, uma vez que objetiva estabelecer cotejos entre textos de Poe e
Lovecraft. Dentre esses textos, escolheram-se “The Fall of the House of Usher” e “A filosofia
da composição”, de Poe, e “The Outsider” e “O Horror Sobrenatural na Literatura”, de
Lovecraft.
A primeira parte deste estudo monográfico investiga características da ficção gótica no
projeto composicional de Poe, incluindo os temas e os componentes mais proeminentes que
formam a atmosfera de terror em sua obra. Poe é conhecido por seu trabalho com a linguagem
e pelo objetivo de criar um efeito singular em seus textos. O efeito de uma história de terror
deve ser o medo, por isso, concentrei minha atenção nas estratégias que encorajam essa
reação no leitor.
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Assim como a anterior, a segunda parte da monografia aborda as características do
estilo narrativo de Lovecraft. Mais precisamente, este capítulo diz respeito aos componentes
do estilo narrativo que ele adotou em seu universo cósmico-literário, sendo o seu efeito de
horror sobrenatural o principal dos componentes de seu projeto literário. Tal efeito amplifica
enormemente o potencial da atmosfera, pois influencia o leitor, e guia-o para a história e,
assim, aumenta consideravelmente a imersão do leitor na narrativa, porque dessa forma ele
tende a experimentar mais vividamente os incidentes do conto.
A última parte dessa pesquisa detalha o espaço narrativo dos contos que estão sendo
explorados; as descrições do ambiente em ambos os contos estudados; a simbologia por trás
de elementos da narrativa como a casa e o castelo; e ainda uma análise dos contos
selecionados, sob uma perspectiva comparativista.
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1. Edgar Allan Poe e o conto de horror
Nesta seção, investigaremos o modo de composição literária proposto por Poe como
ponto de ignição para construir uma boa narrativa. No ensaio “A Filosofia da Composição”
(1846), Poe afirma que a construção de uma narrativa deve se orientar pelo raciocínio lógico.
O escritor deve começar a elaborar seu texto considerando um determinado efeito a ser
alcançado junto ao leitor – e.g., medo, tristeza – Uma vez escolhido o efeito, o escritor deve
organizar os incidentes na narrativa de modo a alcançá-lo.
Ainda de acordo com “A Filosofia da Composição”,
Com isso, Poe dá a entender que nem todo autor deseja refazer e divulgar o percurso
que o conduziu aos objetivos alcançados. Ao contrário de autores que critica, Poe disseca seu
processo composicional em “A filosofia da composição”. Neste ensaio, o autor tece
considerações sobre o processo de escrita de “O corvo”1 (1845), um de seus mais famosos
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Vale lembrar que o célebre poema “O corvo” foi traduzido para o português por autores como Machado de
Assis, em 1883, e Fernando Pessoa, em 1924. Assim como os contos aqui analisados, “O Corvo” está repleto de
elementos que remetem à morte, à obscuridade, à loucura, à perda e ao luto.
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poemas, e ali expõe diretrizes de composição que também se aplicam a seus contos. Como
relata Diniz:
Se uma obra é demasiada extensa para ser lida de uma vez só, deve-se
dispensar de bom grado o importantíssimo efeito gerado pela unidade de
impressão – pois, se tiver de ser lida em dois momentos distintos, os
assuntos mundanos interferem no texto e seu senso de totalidade é
destruído. (POE, 2017, p. 343)
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escolhido por Poe é a tristeza, já que para ele não há tom poético mais legítimo. O autor afirma
que o efeito melancólico é tão intenso que é capaz de levar até os menos sensíveis às lágrimas.
Portanto, o processo de composição parte da consideração da extensão, da esfera, e por
último, do tom. Determinados esses elementos, Poe segue em busca de um estimulo artístico
que possa servir à composição do poema, uma base sólida que sustente toda a obra.Na
composição de “O corvo”, o autor afirma não ter dificuldades para rapidamente perceber que
um recurso que poderia ser utilizado para o alcance do efeito de beleza e do tom de tristeza
seria o refrão.
Tendo em vista esse recurso, Poe opta pelo uso de uma única palavra única como
refrão. Essa palavra deveria ser curta, pois uma frase longa iria dificultar o uso de variações no
refrão. Dessa forma, quanto mais breve fosse o refrão, mais fácil seria usar variações.
Delimitada a palavra, Poe passa a refletir sobre o som do refrão mais apropriado a seus
propósitos, dentre os quais estava a manutenção da melancolia. A expressão que lhe ocorre é
“nevermore” – nunca mais –, sendo necessário um gatilho para usá-la continuamente.
Uma das dificuldades expressas por Poe reside em atribuir a expressão, repetidamente,
a um ser humano, algo que se tornaria monótono e incoerente à capacidade de raciocínio do
indivíduo que haveria de repeti-la. O autor atribuir o enunciado, então, à uma criatura
irracional que fosse capaz de articular palavras. De início, Poe pensou em um papagaio, mas
depois lhe ocorreu a figura de um corvo, um animal que também é dotado de tal capacidade e
que se afinaria muito mais ao tom de tristeza que Poe havia conferido ao poema.
Tendo em vista essa dinâmica de estruturação feita por Poe, Diniz comenta:
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Dessa forma, podemos identificar a organização dos elementos que compõem a
estruturação da narrativa de Poe, que neste caso exemplifica-se por meio de um poema. Após
escolher os procedimentos principais da composição, Poe fez com antecedência uma relação
conjunta dos itens escolhidos. O tom selecionado para o poema foi a melancolia, o tema mais
melancólico de todos para Poe é a morte e o efeito é o de beleza, que seria obtido pela
apresentação da morte de uma bela mulher.
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Ao invés da beleza, que foi escolhida para o poema O Corvo, em “A queda da Casa de
Usher” temos como esfera do conto a província da insanidade, que permeia Roderick Usher
em seus últimos momentos de existência.
Outro aspecto relevante da composição de Poe neste conto é notado na passagem em
que o narrador, que está imerso naquele ambiente desconhecido e tenebroso, ajuda Roderick a
enterrar Madeline Usher – irmã de Roderick – após sua aparente morte.
Tem-se explorado, aqui, o aspecto da dupla personalidade, que caracteriza a relação
entre Roderick e Madeline. Poe filosoficamente experimenta uma divisão entre mente e corpo
associando Roderick exclusivamente ao primeiro e Madeline exclusivamente ao segundo.
Esse efeito de duplicidade, também conhecido por “doppelgänger” ressalta a separação entre
corpo e mente. Esse efeito duplo também é sugerido a partir da rachadura da casa, já que a
fenda simboliza a separação de dois pedaços, pedaços estes que podemos associar aos gêmeos
Usher.
O conto aborda o duplo gótico de três maneiras diferentes. Primeiro, o leitor identifica
Roderick como o personagem principal e sua irmã como seu duplo. Além de serem gêmeos,
Roderick e Madeline sofrem de doenças desconhecidas, que acabam por levá-los à morte.
Em segundo lugar, o duplo assume a forma do tipo de personalidade dividida, pois os
gêmeos representam o medo filosófico da divisão entre o corpo e a mente, sendo Roderick a
expressão da mente e Madeline a do corpo. Enquanto o contraste constante entre os gêmeos se
intensifica, o terror e o fato de que suas vidas dependem tanto uma da outra sugerem que uma
divisão completa entre o corpo e a mente é impossível. Assim, a história sublinha a
necessidade de um indivíduo chegar a um acordo entre o corpo e a mente para completar sua
individualidade.
Finalmente, em terceiro lugar, Poe faz uso do duplo maligno também. Em "A Queda
da Casa de Usher", a própria casa funciona como o alter ego demoníaco de Roderick e
Madeline. A casa é apresentada como uma entidade viva do mal, que também é um símbolo
para a família Usher. Sendo parte da identidade e do passado dos gêmeos, a casa pode ser lida
como um “eu” obscuro dos irmãos, com os quais eles não se identificam. Sua incapacidade de
chegar a um acordo com seu próprio lado sombrio leva-os a suas mortes sociais e físicas.
Assim, a história sublinha a necessidade de aceitar o próprio ser escuro ou o próprio passado
como um componente vital na socialização de alguém. Portanto, Poe de fato conseguiu
internalizar o terror gótico usando o tema doppelgänger de três maneiras diferentes.
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Ainda sobre o duplo na obra de Poe, em "A Queda da Casa de Usher", o autor usa o
duplo significado do título (a destruição da família Usher, juntamente com a queda de sua
moradia) em toda a extensão. Ele também usa o simbolismo quase alegórico para elevar o
significado da narrativa, descrevendo a casa como tendo "janelas parecidas com os olhos
vazios" (POE 2017, p. 54) e outras características faciais. Nesta e em muitas outras histórias
de terror, Poe usa linguagem descritiva e recursos visuais arrepiantes para dar às histórias um
senso gráfico e realista de terror.
O conto aborda a íntima conexão entre corpo e mente pela apresentação dos gêmeos
biológicos Roderick e Madeline. Sugere, além disso, que o relacionamento entre gêmeos
envolve não apenas a semelhança física, mas também a comunicação psicológica ou
sobrenatural. Nota-se que quando a doença afeta um deles, ela se espalha contagiosamente
para o outro. Tendo em vista essas atribuições, percebemos que Poe explora essas ligações
misteriosas entre as personagens, ligações estas que transcendem as definições do real que
conhecemos e que dão um tom sobrenatural à narrativa.
Outro detalhe importante que está presente no conto de horror de Poe é a criação da
atmosfera sombria para a narrativa, e seu efeito no leitor. Primeiramente, o leitor deve ser
atraído para a história para que o potencial desta seja totalmente explorado. Assim, a
descrição minuciosa de um lugar tem o papel de influenciar o leitor, preparar sua imaginação
para os acontecimentos do conto, potencializando o impacto da atmosfera. Isso torna mais
fácil para o autor provocar o efeito que ele ou deseja com o uso de uma configuração
apropriada.
Contudo, Poe nem sempre faz uso dessa estratégia. Ele é capaz de criar uma atmosfera
densa sem precisar detalhar sua localização. E segurar a atenção do leitor dessa forma é uma
tarefa bastante exigente, mas que Poe faz com maestria.
Portanto, é importante equilibrar o real e o sobrenatural. Poe lida com isso de forma
admirável. Embora às vezes ele use aspectos que parecem inacreditáveis, eles não são
artificiais e não perturbam a realidade ostensiva do conto. Assim, as histórias de Poe estão
sempre próximas o suficiente da realidade, permitindo ao leitor acreditar e fantasiar o
suficiente para que seja tomado pelo medo.
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1.3 O gótico no projeto estético de Poe
A ficção gótica no projeto estético de Edgar Allan Poe compreende uma variedade de
temas e motivos. Entre os elementos do gótico verificáveis nos textos de Poe estão os temas
da morte e da decadência, que são elementos centrais nesse tipo de narrativa. Outros
elementos característicos do gótico que se fazem presentes na narrativa de Poe são a loucura,
a insanidade, o caos interno, o sobrenatural em todas as suas formas e os locais assombrados
ou assustadores. Boa parte dos poemas e contos de Poe explora esses elementos.
Um dos temas mais proeminentes na ficção gótica de Edgar Allan Poe é a morte,
antecedida do processo de decadência do indivíduo. Na maior parte de seus contos, um dos
personagens morreu ou está se lamentando, e isso define o tom sombrio encontrado nas obras
de Poe. Outra característica notável na narrativa de Poe é que o processo de decadência do
indivíduo está atrelado a acontecimentos sobrenaturais. Isso é claramente observado em “A
Queda da Casa de Usher”, em que a casa decai à medida que o mesmo ocorre com seu
proprietário.
No conto de Poe, a morte é uma sombra que se estende por toda a história,
especialmente porque parece que a casa e Roderick também estão se encaminhando ao fim
inevitável. Em meio a tanta obscuridade, é possível notar uma mescla entre real e
sobrenatural, o que se associa às alucinações sofridas por Roderick Usher. Esses dispositivos
do enredo convidam o leitor a associar a morte ao sobrenatural e ao grotesco. Em geral, a
morte e o processo de decadência são temas centrais na narrativa de Poe e não estão ali
simplesmente como elementos de fundo. Ao invés disso, funcionam como elementos-chave
em muitos de seus contos.
A loucura é outro elemento presente na ficção gótica de Poe e verificado em alguns de
seus contos mais conhecidos, como “O Barril de Amontillado”, “Ligeia” e “O Coração
Delator”. Em “Ligeia”, por exemplo, a loucura está associada à doença mental de Rowena,
que faz com que ela se comporte e fale de forma irregular. No final da história, quando o
narrador remove os envolvimentos para encontrar sua amante falecida, o leitor deve
questionar a sanidade da pessoa que conta a história. Assim, a loucura acrescenta um
elemento do desconhecido que é diferente das ocorrências sobrenaturais. Em “A Queda da
Casa de Usher”, a loucura também é claramente percebida, já que um dos personagens
principais, Roderick, está perdendo a razão. Como o narrador relata, o comportamento de
Roderick é estranho e sua aparência possui “[...] uma pele cadavérica, um olho grande, líquido
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e luminoso além de comparação; lábios um tanto finos e muito pálidos.” (POE, 2017, p. 57)
Desse modo, acrescenta-se o tema da loucura em um texto no qual já se encontram os temas
da morte e do sobrenatural.
Geralmente, os personagens de Poe não possuem vínculos. Na maioria das vezes, não
vemos famílias, nem pais nem filhos. Seus narradores são sempre masculinos, e em sua
maioria não têm laços afetivos, sendo dessa forma espiritualmente e emocionalmente
separados do resto da sociedade. Pode-se dizer que a obra de Poe é bastante fria quanto a
questões de afeto em família. E complementando essa sugestão:
Por meio de toda essa aparente frieza na obra de Poe, existe um sentimento bastante
humano que envolve o texto e o leitor, e ter o conhecimento disso é suficiente para encher o
leitor não apenas com o horror, mas com empatia.
Para muitos, “O corvo” pode carregar certo mau presságio, mas o sentimento
permanece o mesmo: por trás das da narrativa gótica, ou mesmo do humor negro, há uma
genuína sensação de perda e arrependimento, de coisas belas desperdiçadas, sejam elas o
amor de uma bela dama, sejam grandes aventuras que terminam em tragédia.
Outra característica gótica na ficção de Poe é que quase sempre há locais remotos ou
assombrados nos quais a ação ocorre. Geralmente, esses locais assombrados se entremeiam à
morte e à loucura e aumentam o tom sobrenatural dos contos. Dessa forma, o gótico contribui
para a construção das narrativas de horror de Poe, e assim o faz a partir do espaço narrativo e
da ambientação. Um dos melhores exemplos é justamente o trabalhado neste estudo
monográfico. Em “A Queda da Casa de Usher”, a morte, a loucura, o espaço e a ambientação
estão interligados.
A casa, por exemplo, é descrita como um espaço em forma de cabeça, com uma
rachadura, e se associa ao estado mental de Roderick: a casa é sua cabeça, sua mente, sua
sanidade. A rachadura é a insanidade que levará a linhagem dos Usher à ruína. Assim, a casa
ecoa o estado mental do morador e, quando ela vem abaixo, o sujeito também cai.
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A amada é sempre descrita em termos muito gerais e convencionais. Ela é sempre uma donzela de beleza mais
rara ou uma garota apenas amadurecendo até a feminilidade. Mesmo quando fala por si mesma – o que
raramente acontece – ela permanece um clichê, um arquétipo; ela não tem personalidade, nenhum papel além de
expressar a intenção do autor.
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A marca de ficção gótica de Poe difere muito da de outros autores que também
empregam elementos do sobrenatural. Alguns autores do gênero, como Mary Shelley, buscam
explorar os perigos da modernidade, como a ciência, a reanimação, enquanto Poe parece mais
interessado em contar um conto por si só. Embora morte, decadência e reanimação façam
parte de algumas das histórias de Poe, elas se relacionam mais ao amor, à loucura e à afeição
pelo obscuro. Como em “A Queda da Casa de Usher”, que é um conto sobre doença, loucura,
incesto e o perigo da criatividade irrestrita.
O conto é uma das histórias de horror mais populares e analisadas pela fortuna crítica
de Poe. Seus contos estão repletos de medo, angústia, loucura, dor e escuridão. Poe ainda
oferece aos seus leitores uma visão íntima da psique do personagem e fornece uma camada
adicional de vividez às suas histórias, assim fazendo com que o leitor sinta-se mais imerso e,
portanto, com mais medo. Há quem diga que são tão obscuros quanto às trevas do mais
sombrio pesadelo.
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2. Howard Phillips Lovecraft e o conto de horror
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2.2 A ficção gótica e sobrenatural no projeto estético de Lovecraft
Tratando de temas semelhantes aos de Poe, tais como a morte e a loucura, Lovecraft
ainda aborda em suas obras a temática sideral, apresentando entidades cósmicas, inomináveis
e tão antigas quanto o universo. Segundo Guillermo Del Toro, “Lovecraft fala do tamanho do
homem no universo cósmico, e quem melhor articula a indiferença dos deuses antigos para
com o homem. Ele toma isso para sua obra e aposta alto no cosmos.” (WOODWARD, 2009)
O termo “Cthulhu” criado por Lovecraft deu origem à narrativa “O Chamado de
Cthulhu” (1926) e à expressão “Mitos de Cthulhu”, que se tornou um cânone de trama
brilhante e influente para suas criações literárias e passou a designar o conjunto de narrativas
que têm como referência especifica as antigas e inomináveis entidades Azathoth,
Nyarlathotep, Dagon, Shub-Niggurath, ou o universo desconhecido no qual as criaturas têm
origem. Tais criaturas possuem forma diferente de tudo que já contemplamos: proporções
gigantescas, cabeças polpudas, múltiplos tentáculos, corpo grotesco e escamoso, às vezes com
asas, quando vindos do espaço e outras vezes com guelras e membranas quando emergidos
das profundezas do oceano.
Neil Gaiman afirma o seguinte: “Não acho que Lovecraft resolveu de início: “Vou
criar um grande mito”. Acredito que apenas começou, e ao longo tudo foi se encaixando.”
(WOODWARD, 2009) Quem conhece a obra de Lovecraft sabe que sua mitologia parte de
uma combinação bastante complexa e centrada na ideia de que certas coisas, mais antigas que
a humanidade e até mesmo mais antigas que a Terra, estão nos observando com indiferença e
crueldade.
Uma questão que singulariza a ficção gótica e sobrenatural no projeto estético de
Lovecraft é que ao invés de demônios vindos do inferno, Lovecraft utiliza em sua ficção essas
criaturas de forma estranha e tentacular, sendo são oriundas de outros mundos distantes e
desconhecidos. Por alguma razão foram banidas de suas terras e vieram reivindicar ou até
mesmo colonizar o planeta dos homens.
Lovecraft proporciona ao leitor a sensação de que o cosmos é tão vasto e tomado por
poderes superiores incontroláveis que está além da compreensão humana. Antes de Lovecraft,
liam-se histórias de horror e de fantasmas com uma visão de um mundo, digamos,
hospitaleiro: “Deus cuida das pessoas boas”. E essas pessoas boas sempre sobreviviam
naquelas histórias de terror. Lovecraft redefiniu conceitos, afastando-se desse tipo de história,
propondo um mundo aterrorizado e cercado por coisas monstruosas e malignas, que tentam
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dominar e não se importam com a humanidade – sejam boas ou más pessoas – todos estão
sujeitos ao mesmo risco de punição.
Os contos de Lovecraft possuem um ar de desolação e desespero, sejam essas
características mencionadas de forma direta pelo narrador, ou indireta pela descrição do
ambiente/atmosfera onde se passa a trama. Sua escrita se assemelha bastante à de Poe, pelo
uso exagerado de superlativos e adjetivos para enfatizar o efeito desejado, que na maioria das
vezes era o horror.
Um breve exemplo disso encontra-se em seu primeiro conto publicado, intitulado
“Dagon” (1917): “O sol ardia em um céu que aparentava quase negro em sua crueldade
límpida; como se a refletir o palude escuro como nanquim sob os meus pés.” (LOVECRAFT,
1917, p. 18) A narrativa trata de um marinheiro prisioneiro de piratas alemães que consegue
escapar, mas fica preso numa extensão de solo marinho elevada à superfície por uma erupção
vulcânica. “Dagon” e outros contos desse período estabeleceram o modelo lovecraftiano:
estudiosos que descobrem violações da lei natural e são conduzidos à loucura ou à morte.
Além disso, essas narrativas apresentam descrições barrocas e exploram a subjetividade.
Outra característica do seu projeto estético é a tendência a apresentar um narrador em
primeira pessoa. O modelo lovecraftiano basicamente consiste na caracterização de alguém
enlouquecendo enquanto escreve e algo se aproxima, como se o narrador, por exemplo,
estivesse escrevendo no quarto enquanto alguma coisa sobe os degraus em direção ao seu
recinto e instantes depois arranha a porta com seus tentáculos. Então, ao contemplar a
criatura, tudo acaba em reticências. Como disse Del Toro: “Lovecraft fazia e refazia inúmeras
vezes, até que as combinações ficassem ao seu gosto, que para alguns pode parecer tolice,
mas era um equilíbrio perfeito.” (WOODWARD, 2009)
Além de Poe, outra coisa que influenciou o estilo rebuscado de Lovecraft foi seu
fascínio com a obra de Lord Dunsany. Este possuía um estilo clássico influenciado pela Bíblia
do Rei James. O biógrafo e autor S.T. Joshi, afirmou numa entrevista para o documentário
“Fear of the Unknown”:
Lovecraft ficou tocado pelo panteão mitológico de deuses de
Dunsany, e eventualmente admitiu que foi de onde tirou a
ideia dos Mitos de Cthulhu. Tomou os deuses de Dunsany que
viviam em um mundo fantástico, e os colocou no mundo real
de forma caótica, criando sua própria mitologia cósmica.
(WOODWARD, 2009)
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Pode-se distinguir claramente o projeto estético de Lovecraft se comparado ao de Poe
nesse aspecto sobrenatural e cósmico. Poe inclina-se mais para o lado do terror psicológico,
enquanto que Lovecraft mergulha fundo nas profundezas abissais do horror cósmico.
Além do tempo e geralmente além da individualidade, os personagens de Lovecraft
têm poucas distrações. Não há detalhes, objetivos, propósito, amigos, desvios, nada para se
medir. Em uma vida tão desimpedida quanto a do protagonista do conto “O Forasteiro”, o
tédio pode tornar-se aterrorizante à medida que horas, dias e meses e até mesmo décadas se
estendem para trás e para trás, numa paisagem estéril de semelhança imutável. Como
resultado, os personagens de Lovecraft são paradoxalmente atraídos para fora de si mesmos.
Há possivelmente um desejo ligado à tristeza existencial dos personagens.
Assim, as assombrosas entidades ilustradas com uma linguagem arcaica e sombria,
que brincam com o limiar da sanidade humana, são uma metáfora para a frágil posição
ocupada pelo homem; e, se o autor busca infundir o medo em seus leitores, isso se dá não por
entretenimento, mas pela intuição de que a vida é um sinônimo para o medo, já que tudo é
desconhecido e destruidor.
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história se volta essencialmente para uma enganação inteligente: o leitor é levado a
identificar-se com uma criatura deformada que se revela um cadáver, zumbi, carniceiro ou
algo do tipo, um fato que não é revelado até o final da história. Assim, o leitor sensível
provavelmente se comove e se irrita com a história. Essa reação mista é característica de
muitas das histórias de Lovecraft, e qualquer tentativa de análise deve, de alguma forma, levar
isso em consideração.
Apesar de sua popularidade, “The Outsider” não sugere toda a gama de poderes do
autor. Na melhor das hipóteses, é uma história com mais ressonância do que substância, e
podemos ver uma notável influência de Poe, já que Lovecraft também faz uso do espaço
isolado para a instauração do horrível e do sobrenatural. Ambos permitem que a ambientação
dialogue com o comportamento das personagens.
Para apreciar os contos de Lovecraft, é preciso levar em conta algo erroneamente
chamado “Cthulhu Mythos” (Mitos de Cthulhu). O termo foi cunhado por August Derleth,
mas Cthulhu não é realmente a principal figura na rica obra do escritor. Os Mitos de Cthulhu
não brotaram completamente da cabeça de Lovecraft, mas emergiram em pedaços. Em
“Nyarlathotep”, um fragmento, Lovecraft apresentou a primeira figura importante em seu
panteão. “The Nameless City” introduziu o “árabe louco, Abdul Alhazrad”, autor do
Necronomicon, um texto fictício de feitiços mágicos e conhecimento arcano que se tornou a
bíblia dos Mitos de Cthulhu. O livro em si foi trazido para “The Hound” e “The Festival”,
sendo que a última história tem o espaço narrativo disposto na região de “Arkham,
Massachusetts”, local da maioria dos contos dos Mitos. Não foi até 1926, no entanto, que
Lovecraft realmente consolidou suas ideias e as apresentou em uma única história, “The Call
of Cthulhu”.
O Necronomicon tornou-se muito influente em outras vertentes da arte, como no
cinema, tendo sido adotado por Sam Raimi no filme The Evil Dead (1981), o próprio filme
Dagon, de Stuart Gordon (2001), e também na música em que a banda natalense “Sanctifier”
fundada em 1989, apresenta temática lírica e estética influenciada pelas obras Lovecraftianas,
ainda possui vários álbuns e músicas que fazem referência ao arsenal de Lovecraft, dentre elas
as músicas: Necronomicon – The Book of the Damned; Cthulhu The Unspeakable; The Old
Ones Are, The Old Ones Shall Be; Shoggoths Lullaby.
A suposição artística dos Mitos de Cthulhu é que, na década de 1920, as habituais
ameaças da ficção de horror como Satanás, demônios, lobisomens e vampiros haviam se
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tornado obsoletas. Lovecraft precisava de um novo tipo de ameaça, uma de acordo com as
visões contemporâneas dos humanos e seu lugar no universo.
O metafísico por trás dos Mitos de Cthulhu é afirmado no famoso primeiro parágrafo
do “The Call of Cthulhu”:
A coisa mais misericordiosa do mundo é, segundo penso, é a incapacidade
da mente humana de correlacionar todos os seus conteúdos. Vivemos em
uma ilha plácida de ignorância no meio dos mares negros do infinito, e isso
não significa que devemos viajar para longe. As ciências, cada uma
esforçando-se em sua própria direção, até agora nos prejudicaram pouco;
mas, algum dia, a junção do conhecimento dissociado abrirá visões
aterrorizantes da realidade e de nossa assustadora posição, de que ou
enlouqueceremos da revelação ou fugiremos da luz mortífera para a paz e a
segurança de uma nova era das trevas. (LOVECRAFT, 2014, p.64)
Nos Mitos de Cthulhu, essa “realidade aterrorizante” consiste em uma ordem de seres,
vastos, assombrosos, poderosos e imortais, que pairam nas bordas da consciência dos
humanos, posicionados para entrar em seu mundo e varrê-los como se fossem criaturas débeis
e inúteis. E seguindo a ideia fantástica de todos esses adjetivos utilizados acima, é correto
afirmar que o conto de horror se ramifica em vários outros subgêneros, e nessa grande gama
serão encontrados todos os diferentes graus do horror: psicológico, social, alegórico, gótico,
ficção científica, fantasia, entre muitas outras subdivisões, os quais possuem como função
principal causar o sentimento tão frequentemente explorado por Lovecraft: o medo.
Uma das dúvidas mais frequentes entre os leitores do gênero horror/terror é distinguir
a diferença entre ambos. Se fôssemos categorizar esses dois gêneros poderíamos dizer que o
horror trataria do medo em seu estado mais interno e psicológico; o horror íntimo do homem,
o medo de olhar embaixo da cama, ou ir à cozinha durante a madrugada, ou, ainda, o medo de
um estranho na rua ou de um assassino em série, por exemplo. O terror, por outro lado, trata
de levar o leitor ao mundo das anomalias naturais e sobrenaturais, explorando o medo visceral
do ser humano, do inevitável, de criaturas monstruosas, daquilo que foge do seu
conhecimento mundano.
Como afirmou o autor Ramsey Campbell no documentário “Lovecraft: Fear of the
Unknown”, “Qualquer tipo de horror sobrenatural que se pensar é quase certo que em algum
momento de sua carreira, Lovecraft o tenha desenvolvido. E quando o fazia direito, o que era
frequente, era inigualável!” (WOODWARD, 2009) Com isso Campbell reforçou a grande
influência que Lovecraft exerceu e continua exercendo no gênero horror. Seja na literatura, no
cinema, na música ou em qualquer outra vertente que remeta ao gênero.
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Podemos complementar que Lovecraft fez uso desses gêneros de forma única,
sobretudo quando se trata do terror. O autor criou todo um universo cósmico repleto de
criaturas monstruosas, inomináveis e desconhecidas pela humanidade. Neil Gaiman
acrescenta: “Lovecraft definiu os temas e obsessões de horror do século XX, e ao entrarmos
no século XXI ele se mantém presente.” (WOODWARD, 2009)
Uma transgressão inicialmente proposta por Poe e posteriormente adotada por
Lovecraft foi a extinção de convenções literárias como o final feliz, a virtude recompensada e
a didática moral vazia generalizada, a aceitação dos valores e padrões populares e os esforços
empregados pelo autor para infiltrar suas próprias emoções na narrativa e postar-se ao lado
dos partidários das ideias superficiais da maioria.
É fato que Lovecraft faz uso do obscuro, e isso se mostra em contrapartida à maioria
das narrativas mitológicas tradicionais nas quais o suposto herói adentra num mundo
maravilhoso de onde emerge realizado. Os protagonistas de Lovecraft lançam-se às
profundezas do horror e do desespero apenas para emergir com o conhecimento de que a
humanidade não tem importância alguma na vastidão do cosmos.
Portanto, se é possível extrair uma reflexão filosófica das obras literárias de Lovecraft,
ela exprime a condição de que o universo não foi criado por uma inteligência divina que
prescreveu aos homens um propósito. O conto de horror de Lovecraft mostra o cosmos como
algo imperiosamente indiferente aos homens, e estes se debatem em suas próprias limitações
fisiológicas na busca de sentido para – segundo o autor – as suas existências insignificantes.
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3. Análise dos contos
A casa de Usher possui bem mais que o sentido de uma edificação ou moradia. Ela
pode simbolizar o ser ou a família que a habita. A casa é uma referência a refúgio e abrigo,
como um símbolo materno de proteção, um escudo que possa proteger aqueles que nela
habitam dos infortúnios do mundo exterior. Desse modo, pode-se afirmar que a casa é a
realização concreta dos seus habitantes. Cada cômodo da edificação pode ter um significado
mais amplo, como o interior do ser que a habita e seus segredos mais íntimos. Pode-se dizer
que a casa e seu morador são uma única coisa, devido à imensa cumplicidade que há entre
ambos.
Outro aspecto importante que foi notado nos contos analisados é que o espaço físico e
a atmosfera em que as personagens estão situadas estão profundamente associados às suas
personalidades, dessa forma moldando todos os seus atos ao longo da narrativa.
Tanto o ambiente interno quanto o externo, dependem de outros fatores para serem
identificados na narrativa. É sabido que o ambiente é a localização, o cenário que se situa no
espaço. É onde os fatos narrados acontecem, o meio, onde reina o clima no qual se desenvolve
a ação. Segundo Wellek e Warren (1976, p.275): “O ambiente é o meio circundante; e este,
especialmente o interior doméstico, pode ser concebido como expressão metonímica ou
metafórica da personagem. A casa em que um homem vive é um prolongamento deste.
Descrevê-la é descrever o seu ocupante”.
É através dele que se pode ter uma noção de espaço na trama. O ambiente é toda a
geografia da narrativa, é o lugar onde agem as personagens, e estes podem ser percebidos por
vários elementos como cor, som etc. Ambiente e casa são elementos muito importantes no
conto. A paisagem e o ambiente ao redor dela são essenciais para sentir-se imerso na
atmosfera da obra. Nesses dois contos trabalhados, a descrição do ambiente é parte
fundamental para descrever o horror que há no cenário e nos personagens.
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A imagem pode ser visual, auditiva ou inteiramente psicológica. Em
escritores como Poe, podemos ver que o ambiente (um sistema de adereços
de cena) é frequentemente uma metáfora ou um símbolo; o mar
encapelado, a tempestade, a duna selvática, o castelo em ruínas sobre o
lago frio e escuro. (WELLEK e WARREN, 1967, p. 232)
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existe lá fora e do conhecimento mundano. O título do conto deixa bem claro: “The Outsider”,
que traduzido remete a algo como “o forasteiro”, “o lado de fora”.
Em ambos os contos as descrições do cenário causam a impressão de horror, como a
casa de Usher que tristemente é refletida em um lago. Da mesma forma que no conto de
Lovecraft, o castelo é descrito envolto por árvores grotescas com galhos retorcidos. Dessa
forma, chegamos à conclusão de que não só a casa ou castelo, mas os elementos existentes ao
seu redor podem transmitir impressões e reações não só para as personagens, mas
principalmente para o leitor. Esses dois contos em específico são permeados de imagens
assustadoras que dão um clima de suspense e terror na narrativa.
Há quem conheça Poe e nunca tenha ouvido falar em H.P. Lovecraft, mas pouco
provavelmente o contrário. Um dos objetivos desse trabalho é dar maior divulgação à obra de
Lovecraft no Brasil e trazer aos leitores desse estudo os aspectos semelhantes entre esses
autores e algumas de suas principais obras. Para isso, foram selecionados os contos “A queda
da Casa de Usher”, de Poe e “The Outsider”, de Lovecraft, para fazer uma comparação entre
diversos efeitos similares que permeiam esses textos.
Nesse diálogo, faz-se uma comparação entre as características gerais das obras
selecionadas, levando-se em consideração a perspectiva de Osman Lins sobre o estudo do
espaço na narrativa:
O estudo de uma determinada personagem será sempre incompleto se
também não for investigada a sua caracterização. Isto é: os meios, os
processos, a técnica empregada pelo ficcionista no sentido de dar
existência à personagem. Pode-se dizer, a grosso modo, que a personagem
existe no plano da história e a caracterização no plano do discurso. A
personagem diz respeito ao objeto em si; a caracterização, à sua execução.
Esta a distância que subsiste entre espaço e ambientação. Por ambientação,
entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis,
destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente.
Para a aferição do espaço, levamos a nossa experiência do mundo; para
ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos do
autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa. (LINS, 1976 p.
78)
Nesta seção, dá-se continuidade à análise dos contos. É evidente que “A queda da casa
de Usher” possui fortes características do conto de horror: uma casa mal-assombrada, uma
paisagem mórbida, uma doença misteriosa e uma personalidade dupla. Porém, apesar de todos
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os seus elementos góticos serem facilmente identificáveis, parte do terror desta história está
em sua imprecisão, já que não podemos afirmar precisamente em qual lugar a narrativa e ano
se passa (percebe-se apenas que se trata de um ambiente europeu ou norte-americano do final
do século XVIII ou início do século XIX). Em vez de marcadores narrativos precisos de lugar
e tempo, Poe usa elementos góticos tradicionais, como mau tempo e uma paisagem árida.
Neste conto estamos sozinhos com o narrador neste espaço assombrado, e nem o leitor nem o
narrador sabem o motivo.
Embora o narrador seja um íntimo amigo de infância de Roderick, ele aparentemente
não sabe muito sobre Mr. Usher, como o fato básico de que Roderick tem uma irmã gêmea.
Poe sugere ao leitor o questionamento dos motivos da decisão de Roderick de contatar o
narrador em um momento de necessidade. Enquanto Poe fornece os blocos de construção
reconhecíveis do conto gótico tradicional, ele contrasta essa forma-padrão com um enredo que
é inexplicável, súbito e cheio de interrupções inesperadas, tornando-a bem característica. A
história começa sem qualquer explicação completa dos motivos do narrador para chegar a
casa de Usher, e é justamente essa ambiguidade que enfatiza o tom para uma trama que
continuamente funde o real e o sobrenatural.
Poe adota uma sensação claustrofóbica nesta obra. O narrador é misteriosamente preso
pela atração de Roderick, e ele não pode escapar até que a casa de Usher desmorone
completamente. Os personagens não podem se mover e agir livremente na casa por causa de
sua estrutura instável, que assume um caráter monstruoso próprio. A edificação se torna uma
espécie de mentor sombrio que controla o destino de seus ocupantes.
Poe cria uma mescla entre os seres vivos e os objetos inanimados, fundindo a casa
física de Usher à linhagem genética familiar da família Usher, à qual ele se refere como a casa
de Usher. O autor emprega a palavra “casa” metaforicamente, mas ele também descreve uma
casa real. Não só o narrador fica preso dentro da mansão, mas também se percebe que esse
confinamento descreve o destino biológico da família Usher. A família não tem ramos
duradouros, portanto toda a transmissão genética ocorreu por meio de atos incestuosos nos
domínios da casa.
O efeito de claustrofobia na casa de Usher afeta as relações entre os personagens. O
narrador, por exemplo, percebe quase no final da narrativa que Roderick e Madeline são
irmãos gêmeos, e essa percepção ocorre quando os dois homens se preparam para sepultar a
madame Usher.
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A configuração asfixiante e confinada da catacumba onde é colocado o corpo de
Madeline se espalha metaforicamente na caracterização dos personagens. Os gêmeos são tão
semelhantes que não podem se desenvolver como indivíduos livres. Retomando-se o sentido
de duplicidade e ligação mencionado anteriormente, Madeline Usher está sepultada, mas não
morta, porque sua semelhança com Roderick é como um caixão que mantém sua identidade.
Ela também é submetida a generalizações típicas, relacionadas a mulheres na literatura do
século XIX. Ela investe toda a sua identidade em seu corpo, enquanto Roderick é dotado das
habilidades intelectuais. Apesar dessa desvantagem, Madeline possui o poder na história,
quase sobrenatural às vezes, como quando ela sai de seu túmulo. Assim, ela neutraliza a
disposição fraca, nervosa e imóvel que pertence a Roderick.
A irmã gêmea de Roderick é fundamental para a lógica simétrica e claustrofóbica do
conto. Madeline sufoca Roderick impedindo-o de se ver essencialmente diferente dela. Ela
completa esse ataque quando seu irmão morre ao final da narrativa, levando consigo para o
túmulo qualquer resquício da linhagem dos Usher.
Tendo em vista os aspectos relatados nos parágrafos acima, analisa-se agora a obra “O
Forasteiro”. Nesse conto, Lovecraft relata um episódio da vida de um personagem misterioso.
Sabemos pouquíssimo acerca de sua personalidade e origem no início do conto. O que se sabe
é que ele nasceu em um castelo muito antigo e isso é provavelmente toda informação de que
dispõe o personagem das suas origens.
Sua identidade permanece desconhecida até mesmo para o próprio sujeito, que nunca
viu sequer sua própria silhueta. A narrativa é dirigida em forma de relato e em primeira
pessoa, o que confere maior credibilidade à obra. A primeira impressão percebida no conto é a
ambientação e sua relação direta com a condição de reclusão do personagem. Trata-se
basicamente de um castelo com características góticas e arquitetura antiga, torres, fossos e
passagens subterrâneas. Conhecemos a estrutura do castelo a partir da descrição do sujeito, o
que possibilita ao leitor relacionar a ambientação do conto à personalidade do indivíduo.
Assim como a casa de Usher, esse castelo possui características sombrias e macabras.
O protagonista estabelece um diálogo entre a ambientação do conto e sua própria condição
física e psicológica, reforçando-a enquanto a justifica por meio do castelo, por exemplo,
quando afirma logo no início do conto que “Infeliz daquele que recorda as horas solitárias em
salas vastas e sombrias” (LOVECRAFT, 2005, p. 124) Ele reconhece sua condição grotesca,
de isolado, e transfere a razão dessa condição para o castelo, que o acolhe enquanto
representação da sua solidão incondicional.
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Esse diálogo estrutura-se em sua relação com o escuro, construída durante o conto, em
que a busca pela luz simboliza a esperança do personagem, como na passagem a seguir:
“Estava sempre escuro e eu costumava acender velas e olhar fixamente para elas em busca de
consolo” (LOVECRAFT, 2005, p. 125) A contemplação da luz da vela, oposto da escuridão,
remete seu desejo de sair do castelo. Outra representação da luz da vela é que ela tem duração
finita e logo ele estará novamente no escuro.
O conflito interno do protagonista e a negação de sua condição de intruso guiam sua
busca interior por identidade e origem. A sua condição de prisioneiro está relacionada tanto às
paredes quanto à escuridão do castelo. “O sol não brilhava no lado de fora do castelo devido
aquelas árvores terríveis elevando-se para além da mais alta torre acessível” (LOVECRAFT,
2005, p. 124) A escuridão é um elemento bastante representativo na obra, e ela atua
retardando o desenvolvimento do personagem e fazendo com que o protagonista busque cada
vez mais a luz.
No conto de Poe, o narrador por algum motivo entrou na edificação, enquanto que no
conto de Lovecraft o protagonista almeja com todas as suas forças sair da edificação. Neste
conto também são notados efeitos claustrofóbicos e insanos, quando observada a descrição do
espaço narrativo. Outra característica semelhante à obra de Poe é a da indecisão, já que da
mesma forma que em “A Queda da Casa de Usher”, o leitor não sabe onde se localiza o
espaço e nem em que momento exato se passa a trama de “O Forasteiro”.
No decorrer do conto, após o protagonista enfrentar muitas dificuldades, ele consegue
enfim escapar dos confins do castelo. É interessante mostrar como Lovecraft caracteriza a
ascensão do personagem até a superfície do outro ambiente. Após várias tentativas, ele
consegue subir em uma das torres, onde abre uma espécie de alçapão. Ao chegar ao topo, ele
é recompensado por um vislumbre instantâneo da tão adorada Lua3, quando relata:
[...] fui tomado pelo mais puro êxtase que já conhecera, pois, brilhando
mansamente através de uma grade de ferro trabalhado e um curto lance de
degraus de pedra descendente, lá estava a Lua, cheia e radiante, que eu
jamais vira, exceto em sonhos e em nebulosas visões. (LOVECRAFT,
2005, p. 128).
O personagem finalmente contempla coisas jamais vistas por ele anteriormente, como
o vislumbre do luar e das árvores, e isso representa sua condição de liberdade. Após vagar
sem rumo, ele então se depara com um castelo onde está havendo uma festa. Ao entrar no
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Lovecraft escreve a palavra Lua com letra maiúscula para aumentar seu efeito para o personagem, assim
personificando-a para que exerça uma influência maior no indivíduo.
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local, os convidados correm gritando em desespero. Ele então supõe que há uma presença
horrível à espreita perto dele e fica assustado. Avistando a fera, ele supera seus medos e se
aproxima dela, finalmente tocando a “pata estendida” apodrecida da coisa. Aterrorizado, ele
foge de volta para o alçapão, mas o encontra bloqueado. Assim, ele é forçado a permanecer
nas margens do mundo exterior, alienado de todo contato com seus habitantes. Na última
frase da narrativa, o protagonista revela que o que ele tocou e o assustou tanto foi uma
superfície fria e inflexível de vidro polido, um espelho.
Ribeiro e Júnior também afirmam que “Propondo uma descrição estrutural do conto, é
possível dividi-lo em dois aspectos principais: (a) aquilo que acontece dentro do primeiro
castelo, em que o personagem se desenvolveu, e (b) aquilo que acontece no segundo castelo,
encontrado por ele após deixar o primeiro.” (RIBEIRO e JUNIOR, 2014, p. 11)
O efeito dessa história sobre o leitor é terrível, mesmo que o enredo, quando analisado,
pareça absurdo. Lovecraft consegue construir uma identificação simpática do leitor com o
narrador, de modo que a revelação de seu ser monstruoso é um choque. E embora Lovecraft
se assemelhe a Poe em certos aspectos relacionados à composição literária, cada um desses
autores possui suas próprias singularidades, que foram vistas no decorrer desse estudo
comparativo.
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Considerações finais
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Referências
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DUARTE, Bruno Marques. H.P. Lovecraft na história da literatura fantástica dos EUA. In:
Anais do X Seminário Internacional de História da Literatura. Porto Alegre, 2013.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
LOVECRAFT, Howard Phillips. The Outsider. In: S. T. Joshi (ed.). The Dunwich Horror
and Others. Sauk City, WI: Arkhan House, 1984.
______. O Forasteiro. In: H. P. LOVECRAFT. Dagon. São Paulo: Iluminuras, 2005. 123-
134.
LOVECRAFT: Fear of the Unknown . Direção de Frank H. Woodward. United States: Open
Culture, 2009. 1 DVD. (90 min), son., color.
POE, Edgar Allan. A Filosofia da Composição. In: Medo clássico. Rio de Janeiro: Darkside
books, 2017.p. 341-353.
______. A Queda da Casa de Usher. In: Medo clássico. Rio de Janeiro: Darkside books,
2017.p. 53-72.
RIBEIRO, Emílio Soares; JUNIOR, Jorge Witt de Mendonça. O Intruso, de H.P. Lovecraft:
uma análise do gótico. In: Colineares. vol. 1.jan/jun.Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte, 2014.
WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. 3. ed. São Paulo: Biblioteca
Universitária, 1976.
TELEGRAPH REPORTERS. Edgar Allan Poe: the master of horror writing. In: The
Telegraph. 20 abr. 2016. Disponível em: <https://www.telegraph.co.uk/books/authors/edgar-
allan-poe-the-master-of-horror-writing/> Acesso em: 28/06/18