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Traduçao e Prólogo de LUIS WASHINGTON VITA

Primeira edição em espanhol, 1939


Quarta edição em espanhol, 1961

Nas duas primeiras edições figurou o ensaio Ensiniesm-amento e


alteração, que hoje integra o volume O homem e a gente (trad,
bras. LIAL, 1960, págs. 51-76).
Primeira edição em português, 1963

A edição original desta obra foi registrada pela


Revista de Occidente S. A.: Madrid, com o título:
Meditación de la técnica
Direitos reservados em língua portuguêsa
Copyright by Livro Ibero-Americano Ltda.
Rua do Rosário, 99, Rio de Janeiro, GB, Brasil.

Impresso e feito no Brasil

Printed and made in Brazil


ÍNDICE

prólogo (Luís Washington Vita):


1. O problema.................................................... IX
2. Conceito de técnica ..................................... XIII
3Í Técnica e sociedade ..................................... XVI
4. Técnica e economia .................................. XXVI
5. Antitécnica .............................................. XXVIII
6. Técnica e natureza................................... XXXIII
7. Técnica e filosofia ................................... XXXVI
8.. A solução ................................................. XXXIX

PREFÁCIO (José Ortega y Gasset) ................................ 3


I — Primeira> escaramuça com o tema 5
II — O estar e o bem-estar. — A “ne­
cessidade” da embriaguez. — O
supérfluo como necessário. — Re­
latividade da técnica .................... 17
III — O esforço para poupar esforço é
esforço. — O problema do esforço
poupado. — A vida inventada ... 27
IV — Excursões ao subsolo da técnica .. 35
V — A vida como fabricação de si mes­
ma. — Técnica e desejos.......... 43
VI — O destino extranatural do homem.
— Programas de ser que dirigiram
ao homem. — A origem do Estado
tibetano ................................................ 51
VII — O tipo “gentleman”. — Suas exi­
gências técnicas. — O “gentleman”
e o “hidalgo”............................ 59
VI PRÓLOGO

VIII — As coisas e seu “ser”. — A pré-


-coisa. — O homem, o animal e os
instrumentos. — A evolução da
técnica .................................... 65
IX — Os estádios da técnica........................... 73
X — A técnica como artesanato. — A
técnica do técnico ........................ 79
XI — Relação em que o homem e sua
técnica se encontram hoje. — O
técnico antigo ............................ 87
XII — O tecnicismo moderno. — Os reló­
gios de Carlos V. — Ciência e
oficina. — O prodígio do presente 93

APÊNDICES:

Vicissitudes nas ciências ................................... 101


Cacofonia na física:
I — Uma polêmica na região mais pací­
fica ......................................................... 109
II — Propaganda do bom-humor. — Fí­
sica e guarda-roupa. — Ou fisósofo
ou sonâmbulo ......................................... 116
III — Conversão da física em geometria.
— Observação ou invenção. — Gré­
cia ou Egito ............................................ 122
IV — ................................................................. 129
PRÓLOGO

Luís Washington Vita


1. O PROBLEMA

Não obstante Ortega y Gasset ter afirma­


do que os livros que lera sobre a técnica —
“todos indignos, por certo, de seu enorme tema”,
admitindo apenas uma exceção, o de Gotl-Li-
lienfeld, “insuficiente também no que se refere
ao problema geral da técnica”, em verdade o
enorme tema fora disputado com alguma digni­
dade antes de 1933, quando o criador da Escola
de Madrid o meditara no seu curso levado a efei­
to na Universidade de Verão de Santander. No
início da belle époque, 1877, quando os feéricos
proscênios dos álacres can-cans eram iluminados
com bico-de-gás e os atropelamentos das ruas
causados por sonolentos cocheiros de tílburis, E.
Kapp publicava sua Philosophie der Techrúk; e
precisamente no término da Idade Festiva, 1914,
Eberhard Zschimmer publicava outra Philoso­
phie der Technik. Em verdade, o problema é tão
antigo quanto a própria filosofia e se inexiste
explicitamente nos pré-socráticos, está flagrante
em Aristóteles quando afirmara que a técnica é
alguma coisa característica do homem, alguma
coisa superior à experiência, mas inferior ao ra­
ciocínio, ao saber, que é justamente aquilo que
a técnica faz possível ao propiciar ao homem o
atendimento de seus desejos mais veementes.
Daí afirmar Spengle — num livro que é ante­
X PRÓLOGO

rior à Meditação orteguiana, pois Der Mensch


und die Technik é de 1931 — que a técnica é
a tática da vida. Conseqüentemente, uma teoria
da técnica exige uma teoria da vida humana, sem
a qual o fato da técnica resulta incompreensível.
Isto porque, no fundo, a técnica é um recurso;
portanto, não somente o emprego dos meios que
a vida encontra diante de si sem nenhum esfor­
ço, como também, e de modo todo especial, a
direção destes meios, a produção e administra­
ção dos artifícios que possam conduzir a uma
realização dos fins essenciais de cada existência
e da vida humana em geral. Na vida do homem
a técnica é uma presença ubíqua, submergente,
avassaladora, não se limitando apenas à produ­
ção e emprêgo dos recursos para a subsistência
material da vida, mas atinge a cada uma das
ações humanas. Assim sendo, é preciso reconhe­
cer que existe além de uma técnica da produção
de benefícios materiais, uma técnica da arte, uma
técnica do saber, uma técnica da salvação. Nessa
linha de pensamento se insere a Meditação da
técnica de Ortega y Gasset sendo então, o pre­
sente ensaio que estamos prologando, alguma
coisa muito mais do que exprime seu título. Em
resumidas palavras, é uma extensão de seu pen­
samento filosófico sôbre o ser e a vida do homem
a propósito da técnica.
Com efeito, parte Ortega da idéia corrente
de que o objeto da técnica é satisfazer as “ne­
cessidades humanas”, mas por intermédio de uma
análise dêste conceito chega à conclusão de que
o homem é “o ser para o qual o supérfluo é ne­
cessário”, e a técnica, “a criação de possibilida­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XI

des sempre novas que não existem na natureza


do homem”. O homem inventa suas necessida­
des, seu programa vital, e daí a diferença de pro­
gramas vitais e de técnicas para cumpri-los que
ocorreram na história e que Ortega descreve jun­
tamente com os estádios da evolução da técnica,
até chegar à atual, a técnica da técnica, na qual
esta se fêz independente, convertendo-se na téc­
nica pura da invenção como tal. Consoante Or­
tega y Gasset, é preciso distinguir na evolução
histórica da técnica três estádios bem diferencia­
dos: a) a técnica do acaso, própria do homem
ágrafo, acessível a todos os membros da comu­
nidade e quase confundida com o repertório dos
atos naturais; Z>) a técnica do artesão, própria
da Antiguidade e da Idade Média, patrimônio de
certas comunidades como um modo de fazer di­
ferente dos demais; c) a técnica do técnico, tal
como se oferece em nossa época, com interven­
ção da máquina e uma grande diferença não so­
mente entre o técnico e o não-técnico, mas entre
o técnico, o artesão e o operário. Neste último
estádio priva a própria técnica sôbre as técnicas
especiais, a invenção sôbre o conjunto de atos
necessários para realizar uma determinada fina­
lidade. Na busca de uma resposta à pergunta —
que é a técnica? — Ortega, quase à maneira de
Platão nos diálogos “socráticos”, constrói sua es­
cada cujos degraus ou pisos são os conceitos. O
primeiro dêles é que os atos técnicos são espe­
cíficos do homem sendo seu conjunto a técnica,
definida como a reforma que o homem impõe
à natureza em vista da satisfação de suas neces­
sidades, que por sua vez são impostas pela na­
XII 'PRÓLOGO

tureza ao homem e este responde impondo-lhe


uma mudança. A técnica, porém, não é o que o
homem faz para satisfazer suas necessidades, é
a reforma da natureza feita através dos atos téc­
nicos que não são aquêles em que fazemos es­
forços para satisfazer diretamente nossas neces­
sidades, mas aquêles em que dedicamos o esfor­
ço, primeiro, para inventar e, depois, para exe­
cutar um plano de atividades que nos permita:
a) assegurar a satisfação das necessidades, in­
clusive elementares; b) obter essa satisfação com
o mínimo esforço; c) criar-nos possibilidades
completamente novas produzindo objetos que
não existem na natureza do homem (navegar,
voar, falar com o antípoda mediante o telégra­
fo ou a radiocomunicação, etc.). Portanto, a re­
forma da natureza ou técnica, como toda mu­
dança ou mutação, é um movimento com seus
dois têrmos, a quo ead quem. O têrmo a quo é
a natureza conforme está aí; para modificá-la é
preciso fixar o outro têrmo, para o qual confor-
mar-se-á. Êste têrmo ad quem é o programa vital
do homem. Contudo, a tendência que afirma exis­
tir apenas uma técnica — a atual euroamerica-
na — é por demais pretenciosa, já que essa téc­
nica é mais uma entre outras do panorama vas­
tíssimo e multiforme das humanas técnicas e já
que a cada projeto e módulo de humanidade cor­
responde a sua técnica. Daí poder-se periodi-
zar a evolução da técnica tendo em vista sua re­
lação com o homem, ou seja, considerando a
idéia que o homem foi tendo de sua técnica, não
desta ou de outra determinada, mas da função
técnica em geral. Partindo dêste princípio são
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XIII

distinguidos os três enormes estádios na sua evo­


lução: a) técnica do acaso; b) técnica do arte­
são; e c) técnica do técnico, a primeira ocorren­
do no homem ainda como natureza, a segunda
em conseqüência do reconhecimento de que exis­
tem homens que possuem um repertório peculiar
de atividades que não são, sem mais nem menos,
as gerais e naturais em todo homem; são os ar­
tesãos, e a terceira é o momento em que o ho­
mem adquire a consciência suficientemente cla­
ra de que possui uma certa capacidade por com­
pleto distinta das rígidas, imutáveis, que inte­
gram sua porção natural ou animal e vê que a
técnica não é um acaso, como no estádio primi­
tivo, nem um certo tipo dado e limitado de ho­
mem — o artesão; que a técnica não é esta
técnica nem aquela determinada e, portanto, fi­
xas, mas precisamente um manancial de ativi­
dades humanas, em princípio ilimitadas. Não
há dúvida quanto à quase ilimitação de possi­
bilidades na técnica material contemporânea.
Mas a vida humana não é somente luta com a
matéria, é também luta do homem com sua alma.
Será possível vislumbrar no mundo ocidental um
claro repertório de técnicas da alma? Com essa
pergunta encerra Ortega sua meditação.

2. CONCEITO DE TÉCNICA

A conclusão orteguiana é problemática e


sua meditação, preliminar. Nem poderia ser di­
ferente, se o pensador madrilenho quisesse per­
manecer, como egrègiamente permanece, numa
atmosfera filosófica, problematicística, pois a
XIV ' PRÓLÔ GO

missão principal da filosofia, para não dizer a


única, é a problematização de tudo o que se lhe
apresenta, seja da realidade, seja das proposi­
ções sobre ela, isto é, a única coisa que pode fa­
zer a filosofia é ver os problemas como proble­
mas, ou seja, examinar a significação de todos os
problemas e de todo o problemático. E não há
nada mais problemático do que qualquer das
dimensões do humano, uma das quais é a técni­
ca, cujo sentido, vantagens, danos e limites fo­
ram o tema de Ortega em suas preleções de 1933,
antes da utilização da energia nuclear, da astro­
náutica, da automação, da psicologia experimen­
tal . Claro está que problema não é apenas uma
incógnita a determinar, mas a necessidade na
qual encontra o nosso pensamento explicação de
um objeto qualquer (real, ideal, axiológico, me­
tafísico) . E o primeiro problema filosófico da
técnica está na idéia de “criação” ensejada pelo
aparecimento de novas matérias (petroquímica,
fibras sintéticas), alterando a própria vivência
imediata que o homem tem do que é substância
ou coisa. E isto de modo especial quando nos
ocorre que esta noção de substância surgiu na
Grécia, há mais de vinte séculos, nos exorcismos
das primeiras “técnicas” significativas dos hele­
nos. Com efeito, a pedra ou a madeira apare­
cem como alguma coisa dotada de propriedades
determinadas, de um ser fixo e constante — de
uma consistência invariável e peculiar — que
por isso pode servir para certos fins: construir
uma casa, cruzar o mar flutuando, aquecer me­
diante combustão; a isto é que os gregos chama­
ram substância. Ora, as “substâncias” produzi­
MÉDITAÇÂÓ DA TÉCNICA XV

das pela técnica atual são exatamente o inver­


so: longe de ter propriedades fixas e inerentes,
que permitem certa aplicação, se “inventam” para
satisfazer determinadas necessidades que o ho­
mem sente, e logo aparecem relativizadas, refe­
ridas a uma função humana, que é o que lhes
confere sua substantividade. Por isso, na designa­
ção destes produtos, costuma intervir um “para”,
que revela sua índole funcional.
Reconhecida a problematicidade filosófica
de nosso tema, vejamos o que se deve entender
por técnica. O têrmo grego, oriundo da raiz sâns-
crita Tvaksh (fazer, aparelhar), designava para
os helenos tôda atividade forjadora, como habili­
dade de manipulação e produção de objetos ma- I
teriais, habilidade de factura, implicando capa- i
cidade específica de execução, industriosidade,
antes que verdadeira e lídima atividade criadora.
Dêste modo, “técnica” significa originàriamente '
“arte”, isto é, arte ou maneira de fazer uma coisa;
procedimento. Contudo, a técnica se distingue f
tanto da arte, no sentido genuíno da palavra,
como do método, com o qual é freqüentemente
confundida, já que a técnica de uma ciência é a
arte de executar as operações manuais que seus
métodos exigem; e o método, ao contrário, é um
conjunto de operações lógicas. Evidentemente,
técnica não é apenas o conhecimento enquanto
serve de base à ação prática, ou seja, o conhe­
cimento aplicado (e, neste caso, seria uma espé­
cie de praxiologia'), mas é, em sentido geral, a
própria ação ou atividade prática, enquanto apli­
cação de um conhecimento; e, em sentido espe­
cífico, é a atividade prática enquanto utiliza uma
XVI PRÓLOGO

ou mais leis naturais, de modo que a verificação


destas valha como resultado da própria ativida­
de. Portanto, a técnica é o conjunto das habili­
dades cujo auxílio permite aos homens o’apro-^
veitamento da natureza para fins humanos; como
tal, é uma autêntica característica do homem e
só do homem, nascendo com êle graças ao seu
espírito inventivo. Por isso a técnica progride
e tem uma história, o que não ocorre com os ani­
mais “construtores”, que não inventam e não pro­
gridem, e sua “técnica” não é inventiva nem sus­
cetível de desenvolvimento. Consoante Spen­
gler, “o tipo abelha desde que existe tem cons-,
truído seus favos como o faz agora, e há-de con­
tinuar a construí-los assim até a sua extinção.
Os favos pertencem à abelha como a forma de
suas asas e a cor de seu corpo” (1). É com o ho­
mem que as técnicas se desenvolvem completa­
mente, pois o homem, pela forma de seu corpo
e pela aptidão de seu cérebro, não é um simples
repetidor de processos industriais da vida, mas
um inovador, um prodigioso inventor de meca­
nismos novos, diferentes daqueles que a nature­
za, por instinto, associou à própria forma do cor­
po do animal e ao seu ritmo (2).

3. TÉCNICA E SOCIEDADE

Entendida a técnica, em sentido largo, como


o emprego de instrumentos e de procedimentos
específicos para a melhor e mais eficiente exe-
(1) Oswald Spengler, O homem e a técnica, trad, bras.,
Porto Alegre, 1941, pág. 51.
(2) P. Ducassé, Histoire des techniqces, Paris, 1948, pág. 6.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA ' XVÍI

, cução de uma obra ou tarefa humana, é eviden-


te que ela nasce com a própria história do homem
a partir do momento em que êle consegue obter
r da natureza aquilo que deseja, fabricando os pri-

meiros instrumentos. Mas, qual teria sido o ins­


trumento matriz, origem dos restantes, cujo pon­
to culminante viriam a ser as chamadas máqui-
nas-ferramentas, as máquinas que fabricam má­
quinas? A resposta só pode ser uma: a mão hu-
- mana. Com efeito, a máquina nada mais é que
o prolongamento do utensílio que, por sua vez,
prolonga a mão do homem. Assim, a técnica
■ não nasceu na Idade Moderna, com a aplicação
das máquinas na produção industrial, pois essa
produção tecnológica é a culminância de um pro­
cesso cujas raízes partem do mais recôndito da
história do homem. Êste processo começou quan­
do o homem, pela primeira, utilizou-se de uma
pedra como arma de defesa e ataque, ou como
instrumento. Entre aquela pedra e a máquina
mais complexa da indústria moderna há uma di­
ferença de grau, não de qualidade.
Com efeito, a atitude erecta libertou as
mãos do homem primevo e as primeiras ferra­
mentas foram apenas o prolongamento destas
mãos. O desenvolvimento cerebral dispensou o
homem da especialização morfológica, e a sua
mão, “exteriorização ativa” dêste cérebro, serviu
para a defesa, para o ataque e para tôdas as ne­
cessidades práticas ditadas pelo interêsse vital.
Desta interpretação resultaria uma confirmação
da teoria da projeção espontânea de L. Weber,
consoante a qual o instrumento primitivo foi ape­
nas o prolongamento, a imitação do órgão . Por
XVIII PRÓLOGO

isso a máquina é uma projeção, não mais das


partes terminais dos membros, mas da própria
articulação que une êstes membros entre si e o
tronco, permitindo-lhes executar, em conexão
uns com os outros, movimentos determinados,
com exclusão dos outros. Ê precisamente aí que
parece revelar-se a intenção do agente. Portan­
to, há uma mecânica e uma física nestas ener­
gias musculares e suas extensões: é a técnica,
O homo faber se antecede ao homo sapiens, exis­
tindo assim uma evolução que vai das proprieda­
des superficiais às propriedades profundas das
coisas, e onde, pouco a pouco, a “arte” e a “ciên­
cia” se destacam da técnica. Delgado de Car­
valho resume a gênese da técnica nestes têrmos:
na primeira fase de seu desenvolvimento, as in­
venções aumentam o poder das mãos; é criada
a “ferramenta”, simples projeção do órgão; na
segunda fase, é visado um efeito defensivo sob
o impulso da fôrça humana, é aumentado o poder
de nossos sentidos: é criado o “instrumento”; na
terceira fase, há uma combinação do engenho hu­
mano, é facilitado o deslocamento no espaço, o
efeito é. mecânico: é criada a “máquina”. Nesta
fase é que mais se desenvolve a utilização das
forças naturais (3).
Todavia o homo faber, apenas e só, seria
um absurdo sem sua outra dimensão: o homo
loquens. O ato da mão só adquire sentido com
a linguagem. O homem só veio a ser homem com
a gênese da mão, essa arma ímpar no mundo da

(3) Cf. Delgado de Cakvalho, Sociologia, Rio de Janeiro,


1931, pág. 237.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XIX

vida móvel, surgindo com ela a marcha, a postu­


ra erecta — e o instrumento, pois a mão inerme,
por si só, não tem utilidade. Exige uma arma
para se transformar, ela mesma, em arma. Assim
como os instrumentos foram modelados de acor­
do com a forma da mão, a mão tomou também a
configuração do instrumento. Mas, tendo em vis­
ta a divisão da história numa série de “atos” se­
parados e bem ordenados e de “enredos” que se
desenvolvem paralelamente uns aos outros, Spen­
gler é de opinião que para esse processo coletivo
a condição prévia indispensável era um meio —
a linguagem (4). Dêste modo, o homem, como
faber, apropria-se das coisas exteriores para delas
se servir e manifesta a sua iniciativa modelando
a natureza, para seu próprio uso; como loquens,
compreende e transmite os símbolos da lingua­
gem articulada, já que, mediante a linguagem, o
homem pode ligar o passado ao presente. A mão
e a linguagem, eis a humanidade, porquanto o que
marca o fim da história zoológica e o princípio da
história humana é, por assim dizer, a invenção
da mão e da linguagem. A longa incerteza, po­
rém, e a descontinuidade do progresso humano
testemunham, como já foi observado, os esforços
que foram necessários ao homem para reconhe­
cer o demonstrável e o verificável, isto é, para
conquistar a objetividade. É que, reduzido so­
mente à sua destreza, o homo faber, sem meios
de comunicar, justificar e perpetuar seguramen­
te suas iniciativas, não teria conhecido senão su­
cessos sem continuidade e teria visto abortar o

(4) O. Spengler, o. c., pág. 60 e pág. 78.


XX PRÓLOGO

seu esforço numa cega rotina. O homo loquens,


por sua vez, confinado no seu gênio lingüístico,
ter-se-ia construído um mundo todo verbal, onde,
libertado da pressão do real, senão da autorida­
de das representações coletivas, sua imaginação
teria divagado a seu capricho. As palavras não
têm somente o privilégio de significar o seu
objeto, mas também de criá-lo, quando aconte­
ce não existir. Assim, as palavras, os sentidos que
o homem lhes forjou, as compatibilidades e as
incompatibilidades imaginadas entre os sêres, as
coisas e as propriedades, de que passam por sím­
bolos, enquadram muitos pseudo-problemas, dos
quais alguns sobrecarregam ainda, com seu pêso
inútil, não somente a filosofia, mas também a
ciência. Isolados, abandonados a si mesmos e a
seus próprios recursos, nem o homo faber, nem
o homo loquènst tetiam podido atingir o conheci­
mento . Para dar o homo sapiens, foi necessária
a sua íntima e estreita colaboração, que não se
estabeleceu senão muito lentamente e através de
muitos obstáculos e compromissos. Só a pala­
vra permitia à atividade técnica transmitir e as­
segurar o seu progresso; só o progresso das téc­
nicas constrangem a palavra a abandonar as suas
ilusões e a limitar o mundo verbal a êste papel
de substituto, de equivalente manejável do mun­
do real, no qual é indispensável ao livre e pleno
exercício do pensamento (5). Resumidamente,
temos: se o homem, na luta contra as forças de
destruição, ultrapassou os animais mais próximos
na escala zoológica, é que: a) é capaz de não sò-
(5) Fernando de Azevedo, Princípios de sociologia, São
Paulo, 1935.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XXI

mente se adaptar às coisas, mas de adaptar as


coisas a êle, transformando-as; b) consegue pela
linguagem, nascida da vida social, transmitir a
sua experiência à geração seguinte, acumulando,
assim, meios não só de sobrevivência mas de so­
brevivência em maior conforto. Ou, nas pala­
vras de Ciro Tassara de Pádua, “para o homem
a técnica é um veículo que lhe facilita viver me­
lhor” <6).
Caracterizando-se a técnica como autêntico
processo civilizatório, confere ela ao homem um
crescente domínio sôbre a natureza ao organizar
o saber técnico. Daí dizer Ayala: “O que carac­
teriza êste tipo de saber situado na base do pro­
cesso civilizatório é sua índole instrumental, em
virtude da qual as aquisições a que dá lugar são
puramente objetivas, no sentido de impessoais
e, portanto, neutras e- essencialmente transmis­
síveis. A êste seu fundamental caráter se deve,
exatamente, a unidade do processo integrado sô­
bre tais aquisições que, em verdade, surgiram no
seio de complexos culturais alheios entre si. En-
laçam-se, não obstante, por sua instrumentabili-
dade; unificam-se em sua condição de meios para
fins, e em tal condição reside seu universalismo.
Se reconhecemos como um elemento do processo
civilizatório a acha de sílex encontrada nas es­
cavações arqueológicas, é porque podemos per­
ceber nela, de modo direto e imediato, seu cará­
ter de utensílio: revela-se-nos como um instru­
mento, produzido dentro da racionalidade que

(6) Ciro Tassara de Pádua, O homem e a técnica, Curi­


tiba, 1942, pág. 9.
XXII PRÓLOGO

une meios e fins. É possível, e até parece certo,


que à forma dêsse utensílio vinculara o homem
primitivo que o elaborou determinadas proprie­
dades mágicas, que a nós nos fogem, às quais,
talvez, poderemos chegar pelo caminho de infe­
rências intelectuais desviadas; mas seu caráter
de instrumento se nos apresenta de modo ime­
diato, declarando nossa fundamental identidade
com o remoto ser humano que, mediante essa
acha, nos revela a presença da inteligência do
fundo dos milênios. Estamos unidos a ela pela
cadeia do progresso técnico, da qual êsse tosco
instrumento constitui um importante elo. No
outro extremo, o automóvel ou o fusil automá­
tico, construídos pelo homem da civilização oci­
dental, é utilizado sem nenhuma inibição pelo
homem primitivo ‘colonizado’, sem necessidade
de fazer prévio abandono de sua própria atitude
cultural; e, em têrmos gerais, a experiência mos­
trou com quanta agilidade podem os membros
de uma cultura adquirir as técnicas desenvolvi­
das noutras e sôbre pressupostos espirituais di­
versos. Por complicado que seja um artefato, a
racionalidade instrumental a que corresponde o
faz acessível a qualquer compreensão humana,
em raro contraste com as próprias atitudes cultu­
rais que, não obstante os empenhados esforços,
não são jamais compreendidas integralmente de
fora” (7). Esta essencial transmissibilidade do sa­
ber técnico é, ao mesmo tempo, a condição que
lhe permite organizar-se num processo único,
dando-lhe o reconhecido caráter acumulativo que
(7) F. Ayala, Tr&fado de sociologia, vol. II, Buenos Aires,
J.949, págs. 200-1.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XXIII

dêle se costuma apregoar. A objetividade do ren­


dimento pleno, que está à disposição de toda gen­
te e que repousa na racionalidade funcional, per­
mite que, sôbre os elos dos já adquiridos e incor­
porados, se possa prosseguir, adquirindo e' incor­
porando indefinidamente, numa colaboração de
tôda a espécie humana ao longo do tempo. Por
isso, quando Ogburn formula a questão acerca
das causas que determinam um novo invento,
afirma com razão que não basta, para explicá-lo,
a necessidade social do mesmo, nem que, em todo
caso, seria suficiente se faltassem os elos técnicos
imediatamente anteriores, que o fazem possível.
Porque a invenção técnica — diz Ducassé —
“como a invenção artística, supõe sempre um ato
de audácia e de liberdade, uma ruptura, pelo me­
nos relativa, no curso de uma tradição” (8).
Contudo, se a necessidade social não é su­
ficiente para explicar um novo invento, em úl­
tima instância ela dá utilidade à coisa feita num
primeiro momento desinteressadamente. O exem­
plo da bomba atômica é o mais frisante e, ao mes­
mo tempo, o mais dramático. Nascida em labo­
ratórios e gabinetes de pesquisas puras, sua uti­
lização foi forçada pelas circunstâncias da guerra.
O invento pode ser gratuito, pode ser mesmo lú­
dico, como o caso do éter, mas sua utilização efe­
tiva é sempre ensejada por uma necessidade so­
cial . Como se vê, a questão é muito controverti­
da. Para Malinowski a técnica moderna surgiu
como um imperativo das necessidades, das quais
o homem não podia fugir. A isto, acrescenta Tas-

(8) P. DUCASSÉ/ p. c., pág. 8.


XXIV PRÓLOGO

sara de Pádua; “A técnica é uma criação provo­


cada pelas necessidades humanas; logo, só pode­
mos estudá-la se a entrosarmos dentro da vida
social, com o conseqüente estudo da interação
social e dos efeitos de uma sôbre a outra” (9). Co­
locada a técnica nestes têrmos é óbvio que ela
exige uma distinção de suas duas conhecidas eta­
pas ou momentos: invento e aplicação. A pri­
meira corresponde à idéia tecnológica, ao inven­
to nôvo, ao descobrimento, ao aperfeiçoamento.
A segunda corresponde à sua aplicação na indús­
tria. Entre ambas há um longo caminho a per­
correr. Por vêzes o caminho é tão grande que
o. invento permanece no reino das idéias, por sua
prematuridade, como no exemplo famoso de
Denis Papin que descobriu o vapor no século
XVII, o qual, entretanto, só no século XIX foi
pela primeira vez aplicado pelo engenheiro Ful­
ton . Isto porque, em última instância, a esfera
do invento não está determinada pelo pensamen­
to científico abstrato, mas pelas necessidades da
vida. De resto, a história revela que há períodos
mais favoráveis aos inventos do que outros, o
que confirmaria a teoria de L. Weber sôbre as
alternativas dos períodos de progresso técnico.
Ensejado pela necessidade, o progresso técnico,
por sua vez, cria novas necessidades, imprimin­
do-se assim uma aceleração constante.. Aliás,
essa acerelação constante do processo técnico é
perfeitamente visível no seu aspecto de técnica
material. Neste terreno, a mudança se inicia na
pré-história com passos muito distanciados entre

(9) Ç, T. DE PÁPVAj °-c-> pág. 13.


MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XXV

si, como o demonstra a permanência dos mesmos


implementos de pedra com suas formas inalte­
ráveis durante lapsos não menores a 30 000 anos.
Destes lapsos não se pode falar ainda como de
vida histórica, e só em medida muito escassa de
verdadeira humanidade. Daí reconhecer Franz
Boas que a repetição do mesmo ato sem mudan­
ça, geração após geração, deixa a impressão de
um instinto biologicamente determinado, impres­
são essa corrigida pelo próprio antropólogo ale­
mão ao observar que tais atos são transmitidos
por aprendizado, “de maneira análoga ao que
praticam também os animais mediante o exem­
plo e a imitação”. De então para cá a técnica
introduziu seus progressos com aceleração cons­
tante e crescente, por efeito da acumulação e,
com ela, do estímulo cada vez maior oferecido
pela situação técnica a novos descobrimentos, até
entrar na fase vertiginosa que se inicia na primei­
ra metade do século XIX, que não deixou de au­
mentar sua velocidade até aos nossos dias. O me­
canismo aqui é análogo ao da lei dos juros com­
postos, comportando-se a invenção como proces­
so acumulativo: um passou depois do outro. O
progresso técnico, portanto, se apresenta como
acumulação de aquisições materiais e conheci­
mentos objetivos no quadro de uma cultura.
Essa acumulação tem um caráter lógico e irre­
versível. Cada fase se baseia nas experiências
anteriores. As invenções de alimentos, vestimen­
tas, ferramentas e instrumentos, habitações, ar­
mas, práticas mágicas, ídolos, instrumentos de
música e jogos, formam correntes cujos elos cons­
tituem fases na evolução de cada objeto. Essas
XXVI PRÓLOGO

fases são irreversíveis o arado supoe a invenção


da estaca de cavar; o uso de animais de tração
repousa sôbre as experiências combinadas de ca­
çadores e agricultores. Por isso pôde concluir
Thurnwald: “O processo social corresponde ao
progresso material, onde estruturas sociais se li­
gam, funcionalmente, ao progresso técnico” (10) 11 12.
Participando da controvérsia e, ao que parece,
superando-a, escreve Max Scheier: “A técnica
é antes a que tira ativamente de si, desperta e
provoca as necessidades industriais de novos
meios de produção, como claramente prova, por
exemplo, o processo inteiro da moderna indús­
tria elétrica. Sob hipótese alguma a especial téc­
nica científica do experimento e da medida caiu
do céu para produzir a ciência, como parece opi­
nar Labriola. Êstes instrumentos são apenas teo­
ria transposta na matéria, teoria corporalizada,
por assim dizer” (n).

4. TÉCNICA E ECONOMIA

Consoante Werner Sombart, o conceito de


economia abrange três aspectos: a) a mentali­
dade econômica; b) a ordem econômica; c) a
técnica. Ou seja, um sistema econômico é um
modo de exercer atividades econômicas, deter­
minado por uma mentalidade específica, uma or­
dem ou uma organização e uma técnica (23), in­
(10) R. Thurnwald, Die menschliche Gesellschaf, in ihre
etho-soziologischen Grundlagen, vol. IV, Berlin, 1931-35, pág. 268.
(11) Max Scheler, Scciologia del saber, trad, esp., Ma­
drid, 1935, págs. 140-1.
(12) Werner Sombart, Witschaff, in “Handworterbuch der
Soziologie”, Stuttgart, 1931, pág. 654.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XXVII

terdependentes. É óbvio que mentalidade, or­


dem ou organização e técnica correspondem a
determinadas estruturas sociais, porquanto é di­
fícil imaginar-se a mentalidade do lucro numa
sociedade comunitária. Por outro lado, a técnica
será revolucionária em sociedades classistas, mas
no regime de castas sujeito ao princípio do
dharma, os métodos aplicados no processo de pro­
dução serão, provàvelmente, estacionários. Assim,
enquanto a emprêsa medieval visava apenas o
sustento dos que nela trabalhavam — tendo sua
extensão reduzida devido à ordem econômica
normativa — e a divisão técnica do trabalho
permanecia rudimentar, já a fábrica moderna,
que visa o lucro, é expansionista, racional, indi­
vidualista quanto à mentalidade, livre e diferen­
ciada quanto à organização, e científica e revolu­
cionária quanto à técnica. Precisamente a orga­
nização racional do trabalho foi o impulso que
deslocou a técnica do artesão para a técnica do
técnico, consoante a terminologia orteguiana, e
essa deslocação foi possível graças à “racionali­
zação” que tornou mais produtivo o próprio tra­
balho, reduzindo êste a um mínimo em sua con­
tribuição específica na produção de utilidades.
Os exemplos e cifras trazidos por Ortega y Gas­
set em sua Meditação são suficientes para com­
provar a assertiva. Contudo, contra essa racio­
nalização voltam-se alguns espíritos, como Ber-
diaev, por exemplo, quando escreve: “A técnica
representa enorme papel na racionalização. É a
técnica que empresta a força que racionaliza a
vida da sociedade. Ora, a técnica é, ela também,
uma fôrça irracional; ela é desprovida de alma e
XXVIII PRÓLOGO

indiferente ao homem. Por exemplo, a tecniciza-


ção e racionalização da indústria criam um fe­
nômeno inumano e irracional: o desemprêgo. A
racionalização pode prejudicar o homem e se tor­
nar irracional. Esta contradição é uma con­
sequência da perda do centro espiritual da vi­
da” (13). É, esta posição, ilustrativa da luta anti-
técnica dos espíritos nostálgicos de uma Idade de
Ouro irremediàvelmente perdida. . .

5. ANTITÉCNICA

A romântica e lírica luta antitécnica se apre­


senta sob três aspectos distintos, consubstancian­
do a mesma delação. A técnica é acusada: a)
como anti-social; b) como antiespiritual; c)
como antinatural. É lesiva ao homem e à so­
ciedade, ao espírito e à natureza. Com efeito,
o contraste entre o homem e a técnica é o tema
preferido do utopismo e messianismo hodiernos.
Os autores das mais célebres diagnoses e progno­
ses sobre a “crise” contemporânea, os profetas da
decadência e da morte da civilização mecânica
do Ocidente, os defensores da espiritualidade
pura, estão todos de acordo no definirem a má­
quina como o pior inimigo do homem e no apon­
tá-la como a causa direta ou indireta da sua de­
cadência espiritual. O mundo no qual domina
a máquina é um 'mundo sem alma, nivelador,
mortificador; é um mundo no qual a quantidade
tomou o lugar da qualidade definitivamente e no
(13) N. Berdiàev, L’homme dans la civilization technique,
in “Progrès technique et prcgrès moral”, Neuchâtel, 1948, págs.
88-9.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XXIX

qual o culto dos valores do espírito foi substituí­


do pelo culto dos valores instrumentais e utilitá­
rios . Essa luta antitécnica começou primeiro en­
tre os porta-vozes dos socialistas utópicos do
século XIX, com êles cerrando fileiras os mar­
xistas que viam nas máquinas as grandes “fura-
doras” de greves. Fourier, por sua vez, critica
com violência os excessos do industrialismo. Fi­
nalmente, Proudhon, ao estudar a divisão do tra­
balho, notara que “mais se divide a mão-de-obra,
mas aumenta o poder do trabalho, porém, ao
mesmo tempo, mais o trabalho se reduz progres­
sivamente a um mecanismo embrutecedor da in­
teligência” (14), pois a seu ver “as máquinas nos
prometiam um aumento, de riqueza; e o que re­
cebemos foi um aumento de miséria. Elas nos
prometiam a liberdade; eu irei provar que elas
nos trouxeram a escravidão” (15). Nos nossos dias
outros economistas e sociólogos insistem na mes­
ma tecla. Para F. Zweig “o progresso tecnoló­
gico não conduz necessàriamente a uma distribui­
ção mais equitativa das rendas; ou, em outras
palavras, o progresso social não avança a par do
progresso tecnológico” (16). Onde, porém, a de­
lação contra a máquina atinge seu climax é com
Lewis Munford, que afirma que “a máquina apa-
? receu em nossa civilização não para salvar ao ho­
mem da servidão ou de formas ignóbeis de tra­

(14) J. P. PROUDHON, Systhème des contradictions écono-


miques ou Philosophic de la misère, Paris, 1923, pág. 140.

(15) J. P. Proudhon, o. c., págs. 188-9.

(16) F. Zweig, Economia y tecnologia, trad, esp., México,


1944, pág. 32.
PRÓLOGO

balho, mas para adaptar, no possível, a servidão


a “standards” ignóbeis de consumo, formados en­
tre as aristocracias militares”. A vitória do indus-
trialismo é a mais profunda ruptura com o pas­
sado, autêntica “nova barbárie”, onde o interesse
dos homens se transladou dos valores da vida
para os valores pecuniários. Era do carvão e
dos produtos têxteis: por isso mesmo quem mais
sofre é o mineiro e o tecelão: “Viviam e mor­
riam à vista do poço de carvão ou da tecelagem
de algodão, nos quais passavam de 14 a 16 ho­
ras por dia; viviam e morriam sem memória nem
esperança, contentando-se com as migalhas que
os mantinham vivos ou com o breve consolo de
poder sonhar quando caíam de sono” (17).
No plano espiritual a crítica é ainda mais
dramática contra a técnica. Quem inaugura essa
cruzada e a alimenta até ao fim de seus dias é
Berdiaev. Para êle, a tecnização destrói a bele­
za da antiga cultura, a individualização, a origi-
nalidde; tudo se torna uniformemente coletivo,
tôdas as coisas são fabricadas sob um mesmo es­
tilo, perdendo assim a marca da personalidade.
A civilização mecano-técnica é fatal à alma: “O
coração suporta mal o contato gelado do me­
tal” (18). “O mundo se desumaniza, e a máquina
não é senão uma projeção dêsse processo” (19).
“A técnica substitui o elemento orgânico irracio­

(17) LEWIS Munford, Técnica y civilización, trad, esp.,


vol. I, Buenos Aires, 1945, pág. 205.
(18) N. BERDIAEV, L’homme et la machine, trad, franc.,
Paris, 1933, pág. 36.
(19) N. Berdiaev, o. c., pág. 50.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XXXÍ

nal pelo elemento racional organizado. Mas dis­


to resultam novos fenômenos irracionais na vida
social. É por isso que a racionalização da indús­
tria engendra o desemprêgo, essa calamidade de
nossa época” (20). Spengler, por sua vez, diz que
“com razão foi a máquina considerada como dia­
bólica . Para um crente significa o destronamen-
to de Deus. Entrega ao homem a sagrada cau­
salidade, e o homem a põe em movimento silenr
ciosamente, irresistivelmente, com uma espécie
de previdente onisciência”<21). Em O Homem
e a técnica, escreve: “A criatura se está erguendo
contra o seu criador. Assim como dantes o Ho­
mem do microcosmos se alçava contra a Nature­
za, agora a Máquina do microcosmos se revolta
contra o Homem Nórdico. O senhor do Mundo
se está transformando no escravo da Máquina,
que o está forçando — forçando a todos nós, quer
percebamos isto, quer não — a seguir o seu cur­
so. Os cavalos arrastam para a morte o vitorio­
so cujo corpo se despedaça” (22). Para Otto Veit,
que via na Idade da Técnica uma tragédia, apon­
ta na máquina a raiz de todos os males: “a épo­
ca da técnica sofre exatamente graças à técnica.
E aqui começa o verdadeiro problema: de um
lado sabemos que tôda a nossa civilização está
baseada na técnica, e de outro não conseguimos
nos libertar da desagradável sensação de que a

(20) N. Berdiaev, o. c.» pág. 19.

(21) O. Spengler, La decadência de occidente, trad, esp.,


vol. IV, Madrid, 1945, pág. 349.

(22) O. Spengler, O homem e a técnica, o. c., págs. 124-5.


XXXII PRÓLOGO

técnica sepulta a nossa civilização” (23). Isto por­


que “no terreno empírico o homem não é livre.
Não é livre num mundo governado pela diabóli­
ca potência da máquina” (24). Como se safará o
mundo de tão terríveis maldições técnicas? Para
Berdiaev “a atitude do espírito para com o mun­
do em geral e, em particular para com a técnica
que reina no mundo, deve ser tôda outra. A técni­
ca deve ser subordinada ao espírito, a máquina
deve ser um instrumento obediente ao homem,
um meio. Isto significa a humanização da técnica
que tende a se tornar inumana” (25).
O principal advogado de acusação da téc-
-nica como antinatural e estranha à natureza é
Spengler, para quem o homo technicus possui
uma “alma que avança cada vez mais, num sem­
pre crescente alheamento de tôda a Natureza.
As armas dos animais de rapina são naturais,
mas o punho armado do homem com a sua arma
-artificialmente feita, meditada e escolhida, não
é natural. Aqui começa a ‘Arte’ como conceito
contraposto à ‘Natureza’. Cada obra do homem
é artificial, antinatural, desde a produção do fogo
até as criações que, nas Culturas superiores, são
especificamente consideradas ‘artísticas’. O Ho­
mem arrebatou à Natureza o privilégio da cria­
ção. A ‘ vontade livre’ é em si nada menos que
um ato de rebeldia. O homem criador se liber­

(23) OTTO VEIT, Die Tragjk des Technischen Zeitalters,


Berlin, 1937, pág. 13.
(24) Otto Veit, o.c., pág. 253.
(25) N. Berdiaev,. L’homme dans la civilization technique,
o. c., pág. 87.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XXXIII

tou dos laços da Natureza e com cada criação


nova se afasta cada vez mais dela, torna-se cada
vez mais seu inimigo. Zsso é ‘História Universal’,
a história de uma dimensão fatal que se ergue,
incoercível, sempre crescente, entre o mundo do
homem e o universo — a história de um rebel­
de que cresce para erguer a mão contra a pró­
pria mãe”<26>.

6. TÉCNICA E NATUREZA

Evidentemente, tais e tantas críticas são


exageradas, apaixonadas e, mais do que tudo,
unilaterais. Só vêem uma face da moeda, omitin­
do a outra. No entanto, no próprio século XIX
tiveram os antitécnicos contra si também um
espírito de escol, Reuleaux, o grande morfólogo
das ferramentas. Por outro lado, Dessauer, filó­
sofo católico, vê na técnica uma mensagem
divina que “libertou os homens de uma parte
das atribuições que não eram dignas do homem,
que empregava só as forças mais baixas do ho­
mem com tal prepotência, que impediam às
outras de se desenvolver. Mas não lhe bastou
libertar o homem e chamá-lo para atividades
mais dignas: aumentou de maneira gigantesca
a medida do trabalho possível” 26 (27). Para Des­
sauer há de fato na técnica “a virtude criativa
de Deus, que enriquece o mundo por meio do
espírito do homem” (28). Lewis Munford, menos

(26) O. SPENGLER, O homem e a técnica, o. c., pág. 132.


(27) F. DESSAUER, Filosofia delia técnica, trad, ital., Bres­
cia, 1945, págs. 113-4.
(28) F. Dessauer, o. c., pág. 41.
XXXIV PRÓLOGO

comprometido com a teologia, diz que “as fer­


ramentas e utensílios usados durante grande
parte da história do homem eram, no fundamen­
tal, extensões de seu próprio organismo. Não
tinham — e, o que é ainda mais importante, não
pareciam ter — uma existência independente.
Mas, ainda que constituíssem uma parte íntima
do trabalhador, reagiam sôbre suas capacidades,
aguçando seus olhos, apurando sua habilidade e
ensinando-lhe a respeitar a natureza do material
com o qual estava trabalhando. Graças à ferra­
menta o homem encontrou-se em harmonia mais
íntima com seu ambiente, não so porque o capa­
citou para modificá-lo, mas porque ao mesmo
tempo fez-lhe reconhecer os limites de suas capa­
cidades . Quando sonhava era todo-poderoso,
mas quando se encontrava no domínio da reali­
dade via-se obrigado a reconhecer o pêso da
pedra, fracionando as demasiadamente pesadas
para que fôsse possível o seu transporte. Tanto
o carpinteiro como o ferreiro, o oleiro e o cam­
ponês escreveram, ainda que não as assinando,
muitas páginas no livro da sabedoria. E nesse
sentido a técnica foi sempre um instrumento de
disciplina e de educação. Um cavernícola sobre­
vivente podia, aqui e ali, desafogar sua cólera
quebrando as rodas de seu carro que emperrou
na lama, assim como podia chicotear o animal
que relutava em andar. Mas a grande maioria
da humanidade aprendeu, pelo menos durante
o período do documento escrito, que não é pos­
sível intimidar ou convencer com afagos certas
partes do ambiente. Para dominá-las é necessá­
rio aprender as leis de seu comportamento em
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XXXV

lugar de querer, com não pouca petulância,


impor os desejos de cada um. E, assim, a erudi­
ção e a tradição da técnica, por empírica que
fôsse, mostrava certa tendência a configurar uma
realidade objetiva” (29).
Longe está a técnica, portanto, de ser uma
violência contra a natureza. Submete-se às leis
de seu comportamento, sem nada impor. De
resto, a invenção, na sua própria essência, é des­
coberta, no sentido pleno desta palavra. Todos
os novos fatos, relações, elementos, são novos
somente como descoberta; êles já existiam na
natureza, limitando o inventor tão apenas a tor­
ná-los conhecidos, descobrindo-os, já que na
imensa maioria de nossos atos entramos sem
perceber nos moldes preestabelecidos. Daí não
se poder conceber a técnica em desacordo com
as leis da natureza. Uma obra técnica se define
pela reunião de três critérios num único: a)
conformidade com a natureza; b) elaboração; c)
ordenação para um fim. O pressuposto de toda
criação técnica é o conhecimento das leis natu­
rais, isto é, consoante Dessauer: “O técnico
procura obter a síntese entre as leis naturais,
que particularmente se apresentam nos materiais
empregados e nos fins a que tendem. A adapta­
ção daqueles nestes é quase sempre trabalhosa,
às vêzes extremamente difícil. Para atingir uma
certa perfeição na construção da locomotiva,
centenas de homens estão trabalhando há um
século em tôrno de problemas sintéticos dêste

(29) L. Munford, o. c., vol. II, págs. 99-100.


XXXVI PRÓLOGO

gênero e passaram pouco a pouco da solução


menos perfeita a outras melhores” (30) 31 *. A luz
maior, porém, projetada sôbre a antinomia ho-
mem-técnica, iluminando-a, vem dos holofotes da
filosofia existencialista. Para Abbagnano, por
exemplo, “a técnica é indispensável ao homem,
mas não concerne pròpiiamente ao homem.
Todo objetivo humano, de paz ou de guerra,
exige instrumentos e máquinas; mas instrumen­
tos e máquinas nada valem sem homens que
saibam e queiram utilizá-los. E a natureza dês-
tes homens não é problema de técnica cientí­
fica’^31) . Portanto, homem e máquina se con­
jugam .

7. TÉCNICA E FILOSOFIA

Filosoficamente, a técnica surge como obra


da inteligência que pretende preordenar e pre­
determinar abstratamente tôdas as coisas e re­
duzir não só o trabalho mas a própria vida a
uma regularidade que exclui a novidade e a
imprevisto e que substitui a espontaneidade da
vida pela ação uniforme de um mecanismo. Em
suma, diz Abbagnano, “a técnica orienta o ho­
mem para tudo o que é quantidade, massa, ex­
tensão, e com isto o vincula à exterioridade da
matéria e concentra em tal exterioridade tôdas
as suas energias, impedindo-o de olhar a si mes­
mo e de responder ao dístico agostiniano do in te

(30) F. Dessauer, o. c.} pág. 24.


(31) Nicola Abbagnano, Introduzione all’esisienzialismo,
Torino, 1947, pág. 184.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XXXVII

ipsum redi. Portanto, pela direção mesma que


imprime à vida humana, ela é diretamente con­
trária ao princípio daquela espiritualidade que é
para o homem a verdadeira natureza” (32). Daí
V. Egenlhardt estudar, no seu ensaio Weltans­
chauung und Technik, como se refletem na téc­
nica as diversas tendências da filosofia moderna,
constantando a necessidade de “moralizar a téc­
nica” e sustentando que é preciso criar, na esfera
psíquica da evolução da técnica, certas corres­
pondentes categorias morais. Porque, diz, “no
espírito da técnica se encontram elementos irra­
cionais que, por seu conteúdo, são éticos. A
técnica deságua na ética. Esta é a última conse-
qüência de uma longa série de evoluções” (33).
Por isso pôde afirmar Max Scheier que “a téc­
nica não é, de maneira alguma, tão apenas uma
“aplicação” posterior de uma ciência puramente
contemplativa e teorética que esteja determinada
exclusivamente pela idéia da verdade, da obser­
vação, da lógica pura e da matemática pura; mas
é antes a vontade de domínio e derivação exis­
tente mais forte ou mais fraca em cada caso e
dirigida a êste ou àquele setor da existência
(deuses, almas, sociedade, natureza orgânica e
inorgânica, etc.), a qual contribui para determi­
nar não apenas os métodos de pensar e intuir,
mas também os fins do pensar científico; contri­
bui para determinar pelas costas da consciência
dos indivíduos, digamos assim, pelo que é intei­
ramente indiferente indagar os mutáveis motivos

(32) N. Abbagnano, Filosofia, religione, scienza, Torino,


1947, págs. 186-7.
(33) Apud O. Veit, o.c., págs. 223-4.
XXXVIII PRÓLOGO

pessoais dêstes indivíduos” (34) 35. Mas, está claro,


o homem não se limita a suprir com sua técnica
o deficitário de certas situações, comparadas com
outras pretéricas; vai mais longe ao se lançar
projetivamente a imaginar situações irreais e
leva a cabo certas ações técnicas para obter que
estas se realizem; isto é, compara a situação em
que se encontra com outra “interior”, que êle
mesmo “inventou” ou imaginou. Tanto num
caso como noutro — esclarece Julián Marias,
que estamos resumindo — “a técnica supõe dois
momentos conexos e estritamente humanos: um,
a suspensão da atividade a que precisamente
tende; para poder fazer alguma coisa, o homem
se põe a fazer outra coisa, cuja conseqüência será
a consecução do fim primordial; a técnica é o
fazer mediato por excelência, porque está orien­
tada para os meios como tais; falando com pro­
priedade, o que o homem executa em sua função
técnica é isso que em castelhano se chama, com
gráfica expressão, hacer un poder; isto é, o que
faz o construtor de uma casa ou de um automó­
vel, o agricultor ou o inventor do telefone. O
outro momento é o que poderiamos chamar a
entrada em si mesmo; a técnica supõe que o ho­
mem exerça uma peculiar atividade, que con­
siste em desprezar a situação presente para
atirar-se aos mundos interiores: a memória, no
caso mais simples, a imaginação, nas formas téc­
nicas superiores” (33).

(34) Max Scheler, o. c., págs. 98-9.


(35) Julián Marías, Introduction a la filosofia, Madrid,
1947, págs. 265-6.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA XXXIX

8. A SOLUÇÃO

É preciso concluir à base das premissas


oferecidas por Ortega y Gasset, problemáticas
sem dúvida, mas turgidas da solução almejada.
É preciso desencantar o mito da técnica através
de seu logos, unindo sua razão e seu sentimento.
Para tanto, socorremo-nos — porque êste tema
é soçobrante — de Paul Tillich, com o qual con­
cordamos, para concluir: “A técnica tem poder
libertador da pressão terrível da dor corporal,
da pressão surda ensejada pelos males cotodianos
do processo da natureza, da falta de defesa do
homem primitivo perante a natureza. O que
para nós é evidente, nos tempos pretéritos era
um milagre inconcebível. A técnica está em
condições de romper os grilhões do espaço e do
tempo que inibem a comunidade humana. Sem
ela jamais poder-se-ia efetivar a grande espe­
rança final, o pensamento de uma humanidade.
É ela a libertadora do misterioso, do demoníaco
das coisas, de sua intocabilidade: tudo o que é
produzido tecnicamente é desdemonizado. Mas,
evidentemente, é também esvaziado. Perdem
alguma coisa de sua plenitude vital. É domi­
nado, e por isto a fôrça substituiu-se ao Éros,
que une essência a essência. É a violência da
racionalidade, à qual as coisas devem obediência.
Nós sempre buscamos o nôvo e o processo da
técnica nos ultrapassa, e ninguém sabe para
aonde nos arrastar. Por isso muitos querem
voltar atraz, ao tempo em que não havia estas
possibilidades. . . querem inverter as coisas.
Êste, porém, não é o caminho do espírito. Êle
XL PROLOGO

progride. A técnica transformou o mundo, e êste


mundo transformado é o nosso mundo, e não
outro. Nêle devemos construir e inserir a téc­
nica no sentido último da vida, sabendo contudo
que ela é divina, libertadora e criadora, e é tam­
bém demoníaca, escravisadora e destruidora.
É ela dupla, como tudo que existe. . . Também
ela, a libertadora, deve ser libertada; também o
seu mito deve desaguar no grande mito de an­
seios de tôda criatura e seu afã de um nôvo ser,
no qual a natureza e o espírito sejam reconci­
liados” (36).

(36) PAUL Tillich, Logos und Mythos der Technik in


“logos”, 1927, Vol. XVI, pág. 356 (Conferência pronunciada por
ocasião do 99.° aniversário da “Technische Hochschule”, de
Dresden).
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA
PREFÁCIO

Com o nome de Meditação ‘da técnica, ofe­


reço ao público um curso desenvolvido no ano
de 1933 na Universidade de Verão de Santan­
der, que então foi inaugurada. Êste curso, como
observará em seguida o leitor, não foi, propria­
mente, escrito, pois consiste em anotações feitas
às pressas para o uso da cátedra. Não se busque
nelas nem mesmo, talvez, asseada correção gra­
matical. Tal e qual foram pronunciadas estas
lições apareceram em La Nación, de Buenos
Aires, segmentadas mecanicamente em artigos
dominicais.

Não devia publicá-las em volume, pois nem


sua forma nem seu conteúdo são trabalho con­
cluso. Mas em La Nación jaz trabalho meu
deste gênero, e igualmente imaturo, para encher
muitos volumes. Nesse trabalho eu acredito que
existem, toscas ainda ou balbuciantes, idéias que
podem ser de importância. Eu esperava, para
publicá-las, a hora de dar-lhes figura mais nobre
e mais depurada entranha. Mas vejo que os edi-
4 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

tôres fraudulentos do Chile recortavam de La


Nación estas informais prosas minhas e forma­
vam com elas volumes. Em vista do que decidi
fazer concorrência a êsses piratas do Pacífico e
cometer a fraude de publicar eu estes livros seus,
que são meus.

José Ortega y Gasset

Buenos Aires, 27 de outubro de 1939.


I

PRIMEIRA ESCARAMUÇA COM O TEMA

Um dos temas que nos próximos anos será


debatido com maior brio é o do sentido, vanta­
gens, danos e limites da técnica. Sempre con­
siderei que a missão do escritor é prever com
ampla antecipação o que será problema, anos
mais tarde, para seus leitores e proporcionar-lhes
a tempo, isto é, antes de que o debate surja, idéias
claras sôbre a questão, de modo que entrem no
fragor da contenda com o ânimo sereno de quem,
em princípio, já a tem resolvida. On ne doit écríte
que pour faire connaitre la vérité — dizia Male-
branche, voltando as costas à literatura. Há
muito tempo, dando-se ou não conta disso, o
homem ocidental não espera nada da literatura
e volta a sentir fome e sêde de idéias claras e
distintas sôbre as coisas importantes.
Assim sendo, agora me atrevo a remeter a
La Nación as notas, nada literárias, de um curso
universitário dado há dois anos, em que se pro­
curava responder a esta pergunta: Que é a téc­
nica?
Intentemos um primeiro ataque, ainda tosco
e de longe, a essa interrogação.
Acontece que, quando chega o inverno, o
homem sente frio. Êste “sentir frio o homem”
6 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

é um fenômeno em que aparecem unidas duas


coisas bem distintas. Uma, o fato de que o ho­
mem encontra em tôrno de si essa realidade cha­
mada frio. Outra, que essa realidade lhe agride,
que se apresenta diante dêle com um caráter
negativo. Que quer dizer aqui negativo? Algu­
ma coisa bem clara. Tomemos o caso extremo.
O frio é tal que o homem se sente que morre,
isto é, sente que o frio o mata, o aniquila, o nega.
Pois bem, o homem não quer morrer, ao contrá­
rio, normalmente anela sobreviver. Estamos tão
habituados a experimentar nos demais e em nós
êste desejo de viver, de afirmar-nos diante de
tôda circunstância negativa, que nos custa um
pouco tomar consciência do extranho que é, e
nos parece absurda ou talvez ingênua a pergun­
ta: Por que o homem prefere viver a deixar de
ser? E, contudo, trata-se de uma das perguntas
mais justificadas e discretas que possamos fa­
zer-nos. Nestes casos costuma-se falar em ins­
tinto de conservação. Mas acontece: l.°, que
a idéia de instinto é em si mesma bastante obs­
cura e nada esclarecedora; 2.°, que ainda que
fôsse clara a idéia, é coisa notória que no homem
os instintos estão quase apagados, pois o homem
não vive, em definitivo, de seus instintos, já que
se governa mediante outras faculdades como a
reflexão e a vontade, que reatuam sôbre os ins­
tintos . A prova disso é que alguns homens pre­
ferem morrer a viver, e, seja lá por que motivo,
anulam em si êsse suposto instinto de conserva­
ção.
É, portanto, falha a explicação pelo instin­
to. Com êle ou sem êle concluímos sempre que
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 7

o homem sobrevive porque quer e isto é o que


despertava em nós uma curiosidade talvez im­
pertinente. Por que normalmente quer o ho­
mem viver? Por que não lhe é indiferente de­
saparecer? Que empenho tem em estar no
mundo?
Vamos agora entrever a resposta. Basta­
mos, ao menos por hoje, com partir do fato
bruto: que o homem quer viver e, porque quer
viver, quando o frio ameaça com destruí-lo, o
homem sente a necessidade de evitar o frio e
proporcionar-se calor. O relâmpago da tempes­
tade invernal acende um ponto do bosque: o ho­
mem então se aproxima ao fogo benéfico que o
acaso lhe porporcionou para esquentar-se. Es-
quentar-se é um ato pelo qual o homem atende a
sua necesidade de evitar o frio, aproveitando sem
mais o fogo que encontra pela frente. Digo isto
com o sobressalto com que se diz sempre um
truísmo. Contudo, nos convém — logo os se­
nhores irão ver — esta humildade inicial que
nos identifica com Calino. O importante é que
não resulte que além de dizer truísmos os dize­
mos sem entendê-los. Isso seria o cúmulo, um
cúmulo que com grande freqüência praticamos.
Anote-se, pois, que esquentar-se é a operação
com a qual procuramos receber sôbre nós um
calor que já está aí, que encontramos — e que
essa operação se reduz a exercer uma atividade
com que o homem se encontra dotado eviden­
temente: a de poder caminhar e assim aproxi­
mar-se ao fogo que aquece. Outras vezes o calor
não provém de um incêndio, porquanto o ho-
8 JOSE ORTEGA Y GASSET

mem, transido de frio, se refugia numa caverna


que encontra em sua paisagem.
Outra necessidade do homem é alimentar-
-se, e alimentar-se é colhêr o fruto da árvore e
comê-lo, ou então a raiz mastigável ou ainda o
animal que cai sob sua mão. Outra necessidade
é beber, etc.
Ora, a satisfação destas necessidades costu­
ma impor outra necessidade: a de deslocar-se,
caminhar, isto é, suprimir as distâncias, e como
às vezes importa que esta supressão se faça em
bem pouco tempo, necessita o homem suprimir
tempo, encurtá-lo, ganhá-lo. O inverso aconte­
ce quando um inimigo — a fera ou outro ho­
mem — põe em perigo sua vida. Necessita fu­
gir, isto é, lograr no menor tempo a maior dis­
tância. Seguindo por êste modo chegaríamos,
com um pouco de paciência, a definir um sis­
tema de necessidades com o qual o homem se
encontra. Esquentar-se, alimentar-se, caminhar,
etc., são um repertório de atividades que o ho­
mem possui, evidentemente, com o qual se en­
contra da mesma forma como se encontra com
as necessidades delas decorrentes.
Com ser tudo isto tão óbvio que — repito
— encabula um pouco enunciá-lo, convém re­
parar na significação que aqui tem o têrmo ne­
cessidade. Que quer dizer que o esquentar-se,
alimentar-se, caminhar são necessidades do ho­
mem? Sem dúvida que são elas condições natu­
ralmente necessárias para viver. O homem re­
conhece esta necessidade material ou objetiva e
porque a reconhece a sente subjetivamente como
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 9

necessidade. Mas note-se que esta sua necessi­


dade é puramente condicional. A pedra sôlta no
ar cai necessàriamente, com necessidade' categó­
rica ou incondicional. Mas o homem pode per-
feitamente não alimentar-se, como agora o
mahátma Gandhi. Não é, pois, o alimentar-se
necessário por si, é necessário para viver. Terá,
pois, tanto de necessidade quanto seja necessá­
rio viver se se há-de viver. Êste viver é, pois,
a necessidade originária de que tôdas as demais
são meras conseqüências. Ora, já indicamos que
o homem vive porque quer. A necessidade de
viver não lhe é imposta à força, como lhe é im­
posto à matéria não poder aniquilar-se. A vida
— necessidade das necessidades — é necessária
apenas num sentido subjetivo; simplesmente
porque o homem decide autocràticamente viver.
É a necessidade criada por um ato de vontade,
ato cujo sentido e origem prosseguiremos olhan­
do de viés e de que partimos como de um fato
bruto. Seja lá por que razão, acontece que o ho­
mem costuma ter um grande empenho em so­
breviver, em estar no mundo, apesar de ser o
único ente conhecido que tem a faculdade —
ontológica ou metafisicamente tão estranha, tão
paradoxal, tão conturbada — de poder aniqui­
lar-se e deixar de estar aí, no mundo.
E, pelo visto, esse empenho é tão grande
que quando o homem não pode satisfazer as ne­
cessidades inerentes a sua vida, porque a natu­
reza ao derredor não lhe propicia os meios inex-
cusáveis, o homem não se resigna. Se, por falta
de incêndio ou de caverna, não pode exercer a
atividade ou fazer de esquentar-se, ou por falta
10 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

de frutos, raízes, animais, a de alimentar-se, o


homem põe em movimento uma segunda linha
de atividades: faz fogo, faz um edifício, faz
agricultura ou caçada. É o caso que aquele re­
pertório de necessidades e o de atividades que
as satisfazem diretamente, aproveitando os meios
que estão já aí quando estão, são comuns ao
homem e ao animal. A única coisa da qual não
podemos estar certos é de se o animal tem o mes­
mo empenho que o homem em viver. Dir-se-á
que é imprudente e até injusta esta dúvida. Por
que o animal há-de ter menos apêgo à vida que
o homem? O que ocorre é que não tem os dotes
intelectuais do homem para defender sua vida.
Tudo isto é provàvelmente bastante discreto,
mas uma consideração um pouco cautelosa, que
se atém aos fatos, encontra-se irrefragàvelmen-
te com que o animal, quando não pode exercer a
atividade de seu repertório elemental para satis­
fazer uma necessidade — por exemplo, quando
não há fogo nem caverna — não faz nada mais
e se deixa morrer. O homem, ao contrário, dis­
para um nôvo tipo de fazer que consiste em pro­
duzir o que não estava aí na natureza, seja por­
que em absoluto não esteja, seja porque não está
quando faz falta. Natureza não significa aqui
senão o que rodeia ao homem, a circunstância.
Assim faz fogo quando não há fogo, faz uma
caverna, isto é, um edifício, quando não existe
na paisagem, monta um cavalo ou fabrica um
automóvel para suprimir espaço e tempo. Ora,
note-se que fazer fogo é um fazer bem diverso
de esquentar-se, que cultivar um campo é um
fazer bem diverso de alimentar-se, e que fazer
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 11

um automóvel não é correr. Agora começa a ver-


-se por que tivemos que insistir na truística de­
finição de esquentar-se, alimentar-se e deslo­
car-se .
Aquecimento, agricultura e fabricação de
carros ou automóveis não são, pois, atos em que
satisfazemos nossas necessidades, já que, ao con­
trário, implicam uma supressão daquele reper­
tório primitivo de fazeres em que diretamente
procuramos satisfazê-las. Em suma, a esta satis­
fação e não a outra coisa se encaminha êste se­
gundo repertório, mas — ei-lo! — supõe êle uma
capacidade que é precisamente o que falta ao
animal. Não é tanto inteligência o que lhe fal­
ta — sôbre isto falaremos um pouco, se houver
tempo — como o ser capaz de desprender-se
transitoriamente dessas urgências vitais, des­
grudar-se delas e ficar disponível para ocupar-se
em atividades que, por si, não são satisfação de
necessidades. O animal, pelo contrário, está
sempre e indefectivelmente prêso a elas. Sua
existência não é mais que o sistema dessas ne­
cessidades elementares que chamamos orgânicas
ou biológicas e o sistema de atos que as satisfa­
zem. O ser do animal coincide com êsse duplo
sistema ou, dito em outras palavras, o animal
não é mais que isso. Vida, no sentido biológico
ou orgânico da palavra, é isso. E eu pergunto:
tem sentido, referindo-se a um tal ser, falar de
necessidades? Porque, lembro aos senhores, que,
referido êste conceito de necessidade ao homem,
consistia nas condições sine quibus non com que
o homem se encontra para viver. Elas, pois, não
são sua vida ou, dito ao contrário, sua vida não
12 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

coincide, pelo menos totalmente, com o perfil de


suas necessidades orgânicas. Se coincidisse, como
acontece no animal, se seu ser consistisse estri­
tamente e só em comer, beber, esquentar-se,
etc., não as sentiria como necessidades, isto
é, como imposições que, de fora, chegam a
seu autêntico ser, com que êste não tem ou­
tro remédio senão contar, mas que não o cons­
tituem. Carece, pois, de bom-senso supor que
o animal tem necessidades no sentido subjetivo
que a êste têrmo corresponde referido ao ho­
mem. O animal sente fome, mas como não tem
outra coisa que fazer senão sentir fome e tratar
de comer, não pode sentir tudo isto como uma
necessidade, como alguma coisa com que é pre­
ciso contar, que não há outro remédio senão fa­
zer e que lhe é imposto. Ao contrário, se o ho­
mem conseguisse não ter essas necessidades e,
conseqüentemente, não ter que ocupar-se em
satisfazê-las, ainda lhe restaria muito que fazer,
muito âmbito de vida, precisamente as tarefas
[ quehaceres ] e a vida que êle considera como o
mais seu. Precisamente porque não sente o es­
quentar-se e o comer como o seu, como aquilo
em que sua verdadeira vida consiste e de outro
lado não tem outro remédio senão aceitá-lo, é
pelo que se lhe apresenta com o caráter especí­
fico de necessidade, de inevitabilidade. E isso,
inesperadamente, nos descobre a constituição es­
tranhíssima do homem: enquanto todos os de­
mais sêres coincidem com suas condições obje­
tivas — com a natureza ou circunstância — o
homem não coincide com esta, já que é alguma
coisa alheia e distinta de sua circunstância; mas
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 13

não tendo outro remédio, se quer ser e estar nela,


tem que aceitar as condições que esta lhe impõe.
Daí que se lhe apresentem com um aspecto
negativo, forçado e penoso.
Por outro lado, isto esclarece um pouco que
o homem possa desentender-se provisoriamente
dessas necessidades, as suspenda ou contenha e,
distanciado delas, possa transladar-se para ou­
tras ocupações que não são sua imediata satis­
fação .
O animal não pode retirar-se de seu reper­
tório de atos naturais, da natureza, porque não é
senão ela e não teria, ao distanciar-se dela, onde
meter-se. Mas o homem, pelo visto, não é sua
circunstância, já que está somente submerso nela
e pode em alguns momentos sair dela e pôr-se
em si, recolher-se, ensimesmar-se, e só consegue
ocupar-se em coisas que não são direta e imedia­
tamente atender aos imperativos ou necessida­
des de sua circunstância. Nestes momentos ex­
tra ou sobrenaturais de ensimesmamento e re­
tração em si inventa e executa êsse segundo re­
pertório de atos: faz fogo, faz uma casa, cultiva
o campo e monta o automóvel.
Notemos que todos êstes atos têm uma es-
trutra comum. Todos êles pressupõem e levam
em si a invenção de um procedimento que nos
permite, dentro de certos limites, obter com se­
gurança, a nosso ver e conveniências, o que não
existe na natureza, mas que necessitamos. Não
importa, pois, que na circunstância, aqui e agora,
não haja fogo. Fazêmo-lo, isto é, executamos
aqui e agora um certo esquema de atos que prè-
14 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

viamente havíamos inventado de uma vez para


sempre. Êste procedimento consiste amiúde na
criação de um obj’eto cujo simples funcionamento
nos proporciona isso que carecemos, o instru­
mento ou aparelho. Tais são os dois palitos e
a isca com que o homem primitivo faz fogo ou
a casa que levanta e o separa do extremo frio
ambiente.
De onde resulta que estes atos modificam
ou reformam a circunstância ou natureza, con­
seguindo que nela haja o que não há — seja
que não existe aqui e agora quando se necessita,
seja que em absoluto não existe. Pois bem, êstes
são os atos técnicos, específicos do homem. O
conjunto dêles é a técnica, que podemos, desde
logo, definir como a reforma que o homem im­
põe à natureza em vista da satisfação de suas
necessidades. Estas, vimos, eram imposições da
natureza ao homem. O homem responde impon­
do por sua vez uma mudança à natureza. É,
pois, a técnica, a reação enérgica contra a natu­
reza ou circunstância que leva a criar entre esta
e o homem uma nova natureza posta sôbre aque­
la, uma sobrenatureza. Anote-se, portanto: a
técnica não é o que o homem faz para satisfa­
zer suas necessidades. Esta expressão é equívoca
e valería também para o repertório biológico dos
atos animais. A técnica é a reforma da nature­
za, dessa natureza que nos faz necessitados e
indigentes, reforma em sentido tal que as ne­
cessidades ficam, a ser possível, anuladas por
deixar de ser problema sua satisfação. Se sem­
pre que sentimos frio a natureza automàticamen-
te pusesse à nossa disposição fogo, é evidente que
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 15

não sentiriamos a necessidade de esquentar-nos,


como normalmente não sentimos a necessidade
de respirar, já que simplesmente respiramos sem
ser-nos isso problema algum. Pois isso faz a téc­
nica, precisamente isso: pôr-no& o calor junto à
sensação de frio e anular pràticamente esta en­
quanto necessidade, indigência, negação, proble­
ma e angústia.
Fica aqui esta primeira e tôsca aproximação
à pergunta: Que é a técnica? Mas, agora, uma
vez obtida essa aproximação, é quando começam
a complicar-se as coisas e a comportar-se um
tanto divertidas, como veremos nas próximas li­
ções .
II

O ESTAR E O BEM-ESTAR. — A
“NECESSIDADE” DA EMBRIAGUEZ.
— O SUPÉRFLUO COMO NECESSÁ­
RIO. — RELATIVIDADE DA TÉCNICA.

Reatemo-nos com a lição anterior.

Atos técnicos — dizíamos — não são aquê-


les em que o homem procura satisfazer direta­
mente as necessidades que a circunstância ou
natureza as faz sentir, mas precisamente aquê-
les que levam a reformar essas circunstâncias
eliminando no possível dela essas necessidades,
suprimindo ou minguando o acaso e o esforço
que exige satisfazê-las. Enquanto o animal, por
ser atécnico, tem que se ajustar ao que encontra
dado aí e fastidiar-se ou morrer quando não en­
contra o que necessita, o homem, graças a seu
dom técnico, faz que se encontre sempre em seu
derredor o que é preciso — cria, pois, uma cir­
cunstância nova mais favorável, segrega, por as­
sim dizer, uma sobrenatureza adaptando a natu­
reza a suas necessidades. A técnica é o contrário
da adaptação do sujeito ao meio, pôsto que é a
adaptação do meio ao sujeito. Isto já bastaria
para fazer-nos suspeitar que se trata de um mo­
vimento em direção inversa a todos os biológicos.
18 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Esta reação contra seu contorno, êste não re­


signar-se contentando-se com o que o mundo é, é
o específico do homem. Por isso, mesmo estu­
dado zoologicamente, reconhece-se sua presença
quando se encontra a natureza deformada; por
exemplo, quando se encontram pedras lavradas,
com polimento ou sem êle, isto é, utensílios.
Um homem sem técnica, isto é, sem reação con­
tra o meio, não é um homem.
Mas, até agora, apresentava-se-nos a técni­
ca como uma reação às necessidades orgânicas
ou biológicas. Lembram os senhores que insisti
em precisar o sentido do têrmo “necessidade”.
Alimentar-se era necessidade pois era condição
sine qua non da vida, isto é, do poder estar no
mundo. E o homem tem, pelo visto, um grande
empenho em estar no mundo. Viver, perdurar,
era a necessidade das necessidades.
Mas é o caso que a técnica não se reduz a
facilitar a satisfação de necessidades dêste gêne­
ro. Tão antigos como os inventos de utensílios
e procedimentos para esquentar-se, alimentar-se,
etc., são muitos outros cuja finalidade consiste
em proporcionar ao homem coisas e situações
desnecessárias nesse sentido. Por exemplo, tão
velho e tão difundido como o fazer fogo é o em­
briagar-se — quero dizer, o uso de procedimen­
tos ou substâncias que põem o homem em esta­
do psicofisiológico de exaltação deliciosa ou en­
tão de delicioso estupor. A droga, o estupefa­
ciente é um invento tão primitivo quanto o mais
antigo. Tanto, que não é coisa clara, por exem­
plo, se o fogo se inventou primeiro para evitar
o frio — necessidade orgânica e condição sine
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 19

qua non — ou antes para embriagar-se. Os po­


vos mais primitivos usam as covas para acender
nelas fogo e pôr-se a suar em forma tal que entre
o fumo e o excesso de temperatura caem em
transe de quase embriaguez. É o que se chamou
as “casas de suar”. Resulta inacabável a lista de
procedimentos hipnóticos, fantásticos, isto é, pro­
dutores de imagens deliciosas, de excitantes que
dão prazer ao praticar um esforço. Assim, entre
êstes últimos, o “Kat” do Yemen e Etiópia, que
faz grato o andar quanto mais se anda pelos efei­
tos daquela substância na próstata. Entre o
“fantástico” recorda-se a coca do Peru, o mei-
mendro, o estramônío ou daturína, etc. Pareci-
damente discutem os etnólogos se é o arco de
caça e guerra ou o arco musical a forma primi-
gênia do arco. A solução do debate não é coisa
que agora nos importe. O simples fato de que
pode ser discutido demonstra que, seja ou não o
musical o arco originário, aparece entre os ins­
trumentos mais primitivos. E isto nos basta.
Porque isso nos revela que o primitivo não
sentia menos como necessidade o proporcionar-
-se certos estados prazeirosos que o satisfazer
suas necessidades mínimas para não morrer; por­
tanto, que desde o princípio o conceito de “ne­
cessidade humana” inclui indiferentemente o ob­
jetivamente necessário e o supérfluo. Se nós nos
comprometéssemos a distinguir quais dentre nos­
sas necessidades são rigorosamente necessárias,
inevitáveis, e quais supérfluas, nos veriamos na
maior dificuldade. Pois encontrar-nos-íamos:
l.°) Com que diante das necessidades que pen­
sando a priori parecem mais elementares e ine­
20 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

vitáveis — alimento, calor, por exemplo — tem


o homem uma elasticidade incrível. Não somen­
te por força, mas até por gôsto reduz a limites in­
críveis a quantidade de alimento e se adestra
para sofrer frios de uma intensidade superlati­
va. 2.°) Ao contrário, custa-lhe muito ou, sim­
plesmente, não consegue prescindir de certas coi­
sas supérfluas e quando lhe faltam prefere mor­
rer. 3.°) De onde se deduz que o empenho do
homem por viver, por estar no mundo, é inse­
parável de seu empenho de estar bem. Mais
ainda: que vida significa para êle não simples
estar, mas bem-estar, e que somente sente como
necessidades as condições objetivas do estar, por­
que êste, por sua vez, é suposto do bem-estar.
O homem que se convence a fundo e por com­
pleto de que não pode obter o que êle chama
bem-estar, pelo menos uma aproximação a isso,
e que teria que contentar-se com o simples e nu
estar, suicida-se. O bem-estar e não o estar é a
necessidade fundamental para o homem, a ne­
cessidade das necessidades. Com o que chega­
mos a um conceito de necessidades humanas
completamente distinto do que no artigo ante­
rior topamos, e de resto oposto ao que, por insu­
ficiente análise e descuidada meditação, costu­
ma-se adotar. Os livros sobre técnica que li —
todos indignos por certo, de seu enorme tema ( * )
— começam por não levar em conta que o con­
ceito de “necessidades humanas” é o mais im­
portante para esclarecer o que é a técnica. To­

(*) O único livro que, insuficiente também no que se re­


fere ao problema geral da técnica, pude aproveitar num ou dois
pontos é "o de Gotl-Lilienfeld,. Virtschait und Technik.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 21

dos êsses livros, como não podia menos de ser,


fazem uso da idéia dessas necessidades, mas
como não vêem sua decisiva importância, o to­
mam consoante está na tópica ambiente.
Precisemos, antes de prosseguir, a situação
a que chegamos: na lição anterior considerava­
mos o esquentar-se e o alimentar-se como neces­
sidades humanas, por ser condições objetivas do
viver, no sentido de mero existir e simples estar
no mundo. São, pois, necessárias na medida em
que seja ao homem necessário viver. E notá-
vamos que, com efeito, o homem mostrava um
raro e obstinado empenho em viver. Mas esta
expressão, agora o percebemos, era equívoca. O
homem não tem empenho algum por estar no
mundo. No que tem empenho é em estar bem.
Somente isto lhe parece necessário e todo o resto
é necessidade somente na medida em que faça
possível o bem-estar. Portanto, para o homem
somente é necessário o objetivamente supérfluo.
Isto se julgará paradoxal, mas é a pura verdade.
As necessidades biologicamente objetivas não
são, por si, necessidades para êle. Quando se
encontra prêso a elas se nega a satisfazê-las e
prefere sucumbir. Somente se convertem em
necessidades quando aparecem como condições
do “estar no mundo”, que por sua vez somente
é necessário em forma subjetiva; a saber, porque
faz possível o “bem-estar no mundo” e a super-
fluidade. De onde resulta que até o que é obje­
tivamente necessário somente o é para o homem
quando é referido à superfluidade. Não tem dú­
vida: o homem é um animal para o qual sòmen-
1

22 JOSÉ ORTÈGA Y GASSET

te o supérfluo é necessário. Aparentemente pa­


recerá aos senhores isto um pouco estranho e sem
mais valor que o de uma frase, mas se os senhores
reconsideram a questão verão como por si mes­
mos, inevitàvelmente, chegam a ela. E isto é es­
sencial para entender a técnica. A técnica é a
produção do supérfluo: hoje e na época paleolíti-
ca. É, certamente, o meio para satisfazer as ne­
cessidades humanas. Agora podemos aceitar esta
fórmula que ontem repelíamos, porque agora sa­
bemos que as necessidades humanas são objeti­
vamente supérfluas e que somente se convertem
em necessidades para quem necessita o bem-estar
e para quem viver é essencialmente viver bem.
, Eis aqui por que o animal é atécnico: contenta-se
com viver e com o objetivamente necessário
para o simples existir. Do ponto de vista do
simples existir o animal é insuperável e não ne­
cessita a técnica. Mas o homem é homem por­
que para êle existir significa desde logo e sempre
bem-estar; por isso é a natividade técnico criador
do supérfluo. Homem, técnica e bem-estar são, í
em última instância, sinônimos. Outra coisa leva
a desconhecer o tremendo sentido da técnica:
sua significação como fato absoluto no universo.
Se a técnica consistisse somente numa de suas
partes — em resolver mais cômodamente as
mesmas necessidades que integram a vida do
animal e no mesmo sentido que possam sê-lo
para êste — teríamos um entrefino estranho no
universo: teríamos dois sistemas de atos — os
instintivos do animal e os técnicos do homem —
que sendo tão heterogêneos serviríam, não obs­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 2$

tante, à mesma finalidade: sustentar no mundo


ao ser orgânico. Porque o caso é que o animal
se arranja perfeitamente com seu sistema, isto é,
que não se trata de um sistema defeituoso, em
princípio. Não é nem mais nem menos defei­
tuoso que o do homem.
Tudo se esclarece, ao contrário, se se ad­
verte que as finalidades são distintas: de um
lado servir à vida orgânica, que é adaptação do
sujeito ao meio, simples estar na natureza. De
outro, servir à boa vida, ao bem-estar, que im­
plica adaptação do meio à vontade do sujeito.
Fiquemos, pois, em que as necessidades hu­
manas o são somente em função do bem-estar.
Somente poderemos então averiguar quais são
aquelas se averiguamos que é o que o homem
entende por seu bem-estar. E isto complica for-
midàvelmente as coisas. Porque. . . vão os se-
,nhores saber tudo o que o homem entendeu,
entende ou entenderá por bem-estar, por neces­
sidade das necessidades, pela única coisa neces­
sária de que falava Jesus a Marta e Maria (Ma­
ria, a verdadeira técnica para Jesus) .
Para Pompeu não era necessário viver, mas
era necessário navegar, com o que renovava o
lema da sociedade milésia dos aeinautai — os
eternos navegantes — aos quais Tales perten­
ceu, criadores de um nôvo comércio audaz, uma
nova política audaz, um nôvo conhecimento au­
daz — a ciência ocidental.
Existe o faquir, o asceta, de um lado; o
sensual, o glutão, de outro.
24 JOSE ORTEGA Y GASSET

Temos, pois, que enquanto o simples viver,


o viver em sentido biológico, é uma grandeza fixa
que para cada espécie está definida de uma vez
para sempre, isso que o homem chama viver, o
bom viver ou bem-estar é um têrmo sempre
móvel, ilimitadamente variável. E como o re­
pertório de necessidades humanas é função dele,
resultam estas não menos variáveis, e como a
técnica é o repertório de atos provocados, sus­
citados pelo e inspirados no sistema dessas ne­
cessidades, será também uma realidade protei-
forme, em constante mutação. Daí ser inútil
querer estudar a técnica como uma entidade in­
dependente ou como se estivesse dirigida por um
vector único e de antemão conhecido. A idéia
do progresso, funesta em tôdas as ordens, quan­
do se a empregou sem críticas, foi aqui também
fatal. Supõe ela que o homem quis, quer e que­
rerá sempre o mesmo, que os anelos vitais foram
sempre idênticos e a única variação através dos
tempos consistiu no avanço progressivo para a
obtenção daquele único desideratum. Mas a ver­
dade é exatamente o contrário: a idéia da vida,
o perfil do bem-estar se transformou inumerá­
veis vêzes, em ocasiões tão radicalmente, que os
chamados progressos técnicos eram abandonados
e seu rastro perdido. Outras vêzes — registre-
-se — e é quase o mais freqüente na história,
o inventor e a invenção eram perseguidos como
se se tratasse de um crime. O fato de que hoje
sintamos em forma extrema o prurido oposto,
o afã de invenções, não deve fazer-nos supor que
sempre foi assim. Ao contrário, a humanidade
sempre sentiu um misterioso terror cósmico para
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 25

com os descobrimentos, como se nestes, ao lado


de seus benefícios, ocultasse um terrível perigo.
E em meio de nosso entusiasmo pelos inventos
técnicos, não começamos a sentir algo parecido?
Seria de enorme e dramático ensinamento fazer
uma história das técnicas que, uma vez obtidas
e parecendo “aquisições eternas” — ktesis eis
aéi — se volatizaram, se perderam por completo.
Ill

O ESFÔRÇO PARA POUPAR ESFÔRÇO É


ESFORÇO — O PROBLEMA DO ESFÔRÇO
POUPADO — A VIDA INVENTADA

Meu livro A rebelião das massas (*) está


inspirado, entre outras coisas, pela espantosa sus­
peita que sinceramente sentia então — ali por
1927 e 1928; notem-no os senhores, as datas da
prosperity — de que a magnífica, a fabulosa téc­
nica atual corria perigo e perfeitamente podia
ocorrer que se nos escorresse por entre os dedos
e desaparecesse em muito menos tempo de quan­
to se pode imaginar. Hoje, cinco anos depois,
minha suspeita não fêz senão aumentar pavoro­
samente . Vejam, pois, os engenheiros como para
ser engenheiro não basta com ser engenheiro.
Enquanto se estão ocupando em sua faina par­
ticular, a história lhes retira o solo debaixo dos
pés.
É preciso estar alerta e sair do próprio ofí­
cio: explorar bem a paisagem da vida, que é
sempre total. A faculdade suprema para viver
não a dá nenhum ofício, nem nenhuma ciência:
é a sinopse de todos os ofícios e tôdas as ciên­
cias e, de resto, muitas outras coisas. É a inte­

(*) Traduzido em português por LIAL, Rio de Janeiro,


1959. 2.a ed., 1962.
28 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

gral cautela. A vida humana e tudo nela é um


constante e absoluto risco. Todo o quociente se
vai pelo ponto menos previsível: uma cultura
se esvazia inteira pelo mais imperceptível ralo.
Mas deixando de lado estas, que são, ainda que
iminentes, meras possibilidades, recapacite o téc­
nico simplesmente comparando sua situação de
ontem com a que faz presumir o amanhã.
Uma coisa é, pelo menos, claríssima: que
as condições de tôda ordem, sociais, econômicas,
políticas, em que trabalhará amanhã são suma­
mente distintas daquelas em que trabalhou até
hoje.
Não se fale, pois, da técnica como da única
coisa positiva, da única realidade incomovível do
homem. Isso é uma estupidez, e quanto mais ce­
gos estejam por ela os técnicos, mais provável
é que a técnica atual acabe por ruir e periclitar.
Basta com que mude um pouco substancial­
mente o perfil do bem-estar que se esboça dian­
te do homem, que sofra uma mutação de algum
vulto a idéia da vida, da qual, a partir da qual
e para a qual faz o homem tudo o que faz, para
que a técnica tradicional se abale, se desconjun­
te e tome outros rumos.
Há quem acredite que a técnica atual está
mais firme na história que outras porque ela
mesma, como tal técnica, possui ingredientes que
a diferenciam de tôdas as outras, por exemplo,
seu embasamento nas ciências. Esta presumi­
da segurança é ilusória. A indiscutível superio­
ridade da técnica presente, como tal técnica, é,
por outro lado, seu fator de maior fraqueza. Se
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 29

se baseia na exatidão da ciência, quer dizer-se


que se apóia em mais supostos e condições que
as outras, ao fim e ao cabo mais independentes
e espontâneas.
Tôdas estas seguranças são as que precisa­
mente estão fazendo perigar a cultura européia.
O progressismo, ao acreditar que já se havia che­
gado a um nível histórico em que não cabia
substantivo retrocesso, senão que mecânicamen­
te se avançaria até ao infinito, afrouxou as ca­
vilhas da cautela humana e deu lugar a que ir­
rompa de nôvo a barbárie no mundo.
Mas deixemos isto, já que não é matéria
em que possamos entrar agora sèriamente. Re­
sumamos, ao contrário, quanto eu disse até
agora:
1. °) Não há homem sem técnica.
2. °) Essa técnica varia em máximo grau e
é sobremaneira inestável, dependendo qual e
quanta seja em cada momento da idéia de bem-
-estar que o homem tenha então. Ao tempo de
Platão, a técnica dos chineses, em não poucos se­
tores, era incomparàvelmente superior à dos gre­
gos . Existem certas obras da técnica egípcia que
são superiores a quanto hoje faz o europeu; por
exemplo, o lago Meris, de que fala Heródoto, que
um tempo se acreditou fabuloso e cujo resíduo
foi depois descoberto. Nesta gigantesca obra hi­
dráulica se armazenavam 3 430 000 000 de me­
tros cúbicos, e graças a isso a região do Delta,
que hoje é um deserto, era superlativamente fér­
til . O mesmo acontece com os focara do deser­
to saárico.
30 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

3.°) Outra questão é se não há em todas as


técnicas passadas um torso comum em que foi
acumulando seus descobrimentos, mesmo através
de não poucos desaparecimentos, retrocessos e
perdas. Em tal caso, poder-se-ia falar de um
absoluto progresso da técnica. Mas sempre se
correrá o risco de definir êste absoluto progres­
so do ponto de vista técnico peculiar àquele que
fala, e êsse ponto de vista não é o absoluto, evi­
dentemente . Enquanto êle o está afirmando com
fé louca, a humanidade começa a abandoná-lo.
Logo mais falaremos um pouco dos diver­
sos tipos de técnica, de suas vicissitudes, de suas
vantagens e suas limitações; mas agora nos con­
vém não perder de vista a idéia fundamental do
que é a técnica, porque ela encerra os maiores
segredos.
Atos técnicos — dizíamos — não são aquê-
les em que fazemos esforços para satisfazer dire­
tamente nossas necessidades, sejam estas elemen­
tares ou francamente supérfluas, mas aquêles em
que dedicamos o esforço, primeiro, para inventar
e, depois, para executar um plano de atividade
que nos permita:
1. ° Assegurar a satisfação das necessidades,
evidentemente, elementares.
2. ° Conseguir essa satisfação com o mínimo
esforço. '
3. ° Criar-nos possibilidades completamen­
te novas produzindo objetos que não existem na
natureza do homem. Assim, o navegar, o voar,
o falar com o antípoda mediante o telégrafo ou
a radiocomunicação.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 31

Deixando por ora o terceiro ponto, note­


mos os dois traços salientes de tôda técnica: que
diminui, às vêzes quase elimina, o esforço impos­
to pela circunstância e que o consegue reforman­
do esta, reagindo contra ela e obrigando-a a ado­
tar formas novas que favorecem ao homem.
Na poupança de esforço que a técnica pro­
porciona podemos incluir, como um de seus com­
ponentes, a segurança. A precaução, a angústia,
o terror que a insegurança provoca são formas
do esforço, da imposição por parte da natureza
sôbre o homem.
Temos, pois, que a técnica é, assim, o es­
forço para poupar esforço ou, em outras palavras,
é o que fazemos para evitar por completo, ou em
parte, as canceiras que a circunstância primária­
mente nos impõe. Nisto se acha tôda gente de
acordo; mas é curioso que somente se entende
por uma de suas faces, a menos interessante, o
anverso, e não se percebe o enigma que seu re­
verso representa.
Não se cai na conta do surpreendente que é
que o homem se esforce precisamente em poupar-
se esforço? Dir-se-á que a técnica é um esforço
menor com que evitamos um esforço muito maior
e, portanto, uma coisa perfeitamente clara e ra­
zoável . Certo; mas isso não é o enigmático, se­
não êste outro: Onde parará êsse esforço pou­
pado e que fica disponível? A coisa ressalta mais
se empregamos outros vocábulos e dizemos: se
com o fazer técnico o homem fica isento das can­
ceiras impostas pela natureza, que é o que fará,
que canceiras ocuparão sua vida? Porque não fa-
32 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

zer nada é esvaziar a vida, é não viver; é incom­


patível com o homem. A questão, longe de ser
fantástica, tem hoje já um comêço de realidade.
Até uma pessoa aguda, certamente, mas que é
somente economista — Keynes — se formulava
esta questão: dentro de pouco — se não houyer
retrocesso, entende-se — a técnica permitirá que
o homem não tenha que trabalhar mais que uma
ou duas horas por dia. Pois bem: que fará o res­
to das vinte e quatro? De fato, em não escassa
medida, essa situação é já a de hoje: o operário
trabalha hoje oito horas, e, em alguns países, so­
mente cinco dias — e, ao que parece, êste será
o porvir imediato geral: trabalhar somente qua­
tro dias semanais; que faz êsse operário do
resto enorme de seu tempo, do âmbito oco que
fica em sua vida?
Mas o fato de a técnica atual apresentar
tão às claras esta questão não quer dizer que
não preexista desde sempre em toda técnica, pôs-
to que tôda ela leva a uma poupança de cancei-
ra e não acidentalmente ou como resultado que
sobrevêm ao ato técnico, senão que êsse afã de
poupar esforço é o que inspira a técnica. A ques­
tão, pois, não é adjacente, senão que pertence à
própria essência da técnica, e esta não se enten­
de se nos contentamos com confirmar que poupa
esforço e não nos perguntamos em que se em­
prega o esforço disponível.
E eis aqui como a meditação sôbre a técni­
ca nos faz topar dentro dela, como com o caroço
num fruto, com o raro mistério do ser do homem.
Porque é êste um ente forçado, se quer existir,
a existir na natureza, submerso nela; é um ani­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 33

mal. Zoologicamente, vida significa tudo o que é


preciso fazer para sustentar-se na natureza. Mas
o homem ordena-as para reduzir ao mínimo essa
vida, para não ter que fazer o que tem que fa­
zer o animal. No vão que a superação de sua
vida animal deixa, dedica-se o homem a uma sé­
rie de tarefas não biológicas, que não lhe são im­
postas pela natureza, que êle se inventa para si
mesmo. E precisamente a essa vida inventada,
inventada como se inventa um romance ou uma
peça de teatro, é ao que o homem chama vida
humana, bem-estar. A vida humana, pois, trans­
cende da realidade natural, não lhe é dada como
lhe é dado à pedra cair e ao animal o repertó­
rio rígido de seus atos orgânicos — comer, fugir,
nidificar, etc. — Senão que o homem a faz, e êste
fazer a própria vida começa por ser a invenção
dela. Como? A vida humana seria então em sua
dimensão específica. . . uma obra de imagina­
ção? Seria o homem uma espécie de romancista
de si mesmo que forja a figura fantástica de um
personagem com seu tipo irreal de ocupações e
que para conseguir realizá-lo faz tudo o que faz,
ou seja, é técnico?
IV

EXCURSÕES AO SUBSOLO DA TÉCNICA

As respostas que se deram à pergunta —


que é a técnica? — são de uma pavorosa super­
ficialidade. E o pior do caso é que não se pode
atribuir ao acaso. Essa superficialidade é com-
partida por quase tôdas as questões que se refe­
rem verdadeiramente ao humano no homem. E
não será possível pôr alguma clareza nelas se não
nos resolvemos a tomá-las no estrato profundo
onde surge todo o propriamente humano. En­
quanto prosseguirmos, ao falar de assuntos que
nos dizem respeito, dando por suposto que sabe­
mos bem o que é o humano, somente conseguire­
mos deixar sempre de lado a verdadeira questão.
E isto acontece com a técnica. Convém levar em
conta todo o radicalismo que deve inspirar nossa
interrogação. Como é que no universo existe essa
coisa tão estranha, êsse fato absoluto que é a téc­
nica, o fazer técnica o homem? Se intentamos,
com seriedade, aproximar-nos a uma resposta,
temos que resolver-nos a submergir-nos em cer­
tas inevitáveis funduras.
E então nos encontramos com que no uni­
verso acontece o seguinte fato: um ente, o ho­
mem, se vê obrigado, se quer existir, a estar em
outro ente, o mundo ou a natureza. Ora, êsse
36 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

estar um no outro — o homem no mundo — po­


dia adotar um dêstes três aspectos:
1. °) Que a natureza oferecesse ao homem
para sua permanência nela puras facilidades.
Isto queria dizer que o ser do homem e do mun­
do coincidiam plenamente ou, o que é igual, que
o homem era um ser natural. Assim acontece
com a pedra, com a planta, provàve Imente com
o animal. Se assim fôsse, o homem carecería de
necessidades, não notaria falta de nada, não se­
ria indigente. Seus desejos não se diferenciariam
da satisfação dêsses mesmos desejos. Não dese­
jaria senão o que existe no mundo tal e como
existe, ou vice-versa, o que êle desejasse te-lo-ia,
como na estória da varinha mágica. Um ente
assim não podería sentir o mundo como alguma
coisa diferente dêle, pôsto que não lhe oferece-
ria resistência. Andar pelo mundo seria o mesmo
que andar por dentro de si mesmo.
2. °) Mas podería ocorrer o inverso. Que
o mundo não oferecesse ao homem senão puras
dificuldades ou, o que é igual, que o ser do ho­
mem e do mundo fôssem totalmente antagôni­
cos . Neste caso, o homem não podería alojar-se
no mundo, não podería estar nêle nem uma fra­
ção de segundo. Isso que chamamos vida huma­
na não existiría e, portanto, tampouco a técnica.
3. °) A terceira possibilidade é a que efe­
tivamente ocorre: que o homem, ao ter que estar
no mundo, se encontra com que êste é em torno
de si mesmo uma intrincada rêde, tanto de fa­
cilidades como de dificuldades. Quase não há
coisas nêle que não sejam em potência um ou ou­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 37

tro. A terra é algo que o sustenta com sua soli­


dez e lhe permite estirar-se para descansar ou
correr quando tem que fugir. Aquele que nau­
fraga ou cai de um telhado se dá perfeitamente
conta do favorável que é essa coisa tão humilde
pelo habitual que é a solidez da terra. Mas a
terra é também distância; infelizmente muita ter­
ra o separa da fonte quando está sedento, e às
vezes a terra se empina; é uma ravina penosa
que é preciso subir. Êste fenômeno fundamen­
tal, talvez o mais fundamental de todos — isto é,
que nosso existir consiste em estar rodeado tanto
de facilidades como de dificuldades — dá seu es­
pecial caráter ontológico à realidade que chama­
mos vida humana, ao ser do homem.
Porque se não encontrasse facilidade algu­
ma, estar no mundo lhe seria impossível, isto é,
que o homem não existiría e não faria questão.
Como encontra facilidades em que apoiar-se, re­
sulta que lhe é possível existir. Mas como acha
também dificuldades, essa possibilidade é cons­
tantemente embaraçada, negada, posta em peri­
go. Daí a existência do homem, seu estar no
mundo, não ser um passivo estar, pois tem, à for­
ça e constantemente, que lutar contra as difi­
culdades que se opõem a que seu ser se aloje
nêle. Note-se bem: à pedra lhe é dada feita sua
existência, não tem que lutar para ser o que é:
pedra na paisagem. Mas para o homem existir
é ter que combater incessantemente com as difi­
culdades que o contorno lhe oferece; portanto, é
ter que fazer-se em cada momento sua própria
existência. Diriamos, pois, que ao homem lhe é
dada a abstrata possibilidade de existir, mas não
38 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

lhe é dada a realidade. Esta tem que conquistá-


-la êle, minuto após minuto: o homem não ape­
nas economicamente, mas metafisicamente, tem
que ganhar a vida por si mesmo.
E tudo isto — por quê? Evidentemente —
não é senão dizer o mesmo com outras pala­
vras — porque o ser do homem e o ser da na­
tureza não coincidem plenamente. Pelo visto,
o ser do homem tem a estranha condição de que
em parte resulta afim com a natureza, mas em
outra parte não, que é ao mesmo tempo natural
e extranatural, uma espécie de centauro ontoló-
gico, que meia porção dele está imersa, eviden­
temente, na natureza, mas a outra parte trans­
cende dela. Dante diria que está nela como as
barcas arrimadas à beira-mar, com meia quilha
na praia e a outra meia na costa. O que tem de
natural se realiza por si mesmo: não lhe é pro­
blema . Mas, por isso, não o sente como seu au­
têntico ser. Ao contrário, sua porção extranatu-
ral não é, evidentemente, e sem mais, realizada,
já que consiste, como se sabe, numa mera pre­
tensão de ser, num projeto de vida. É isto o que
sentimos como nosso verdadeiro ser, o que cha­
mamos nossa personalidade, nosso eu. Não há-de
interpretar-se essa porção extranatural e antina-
tural de nosso ser no sentido do velho espiritua-
lismo. Não me interessam agora os anjinhos,
nem sequer isso que se chamou espírito, idéia
confusa túrgida de mágicos reflexos.
Se os senhores refletirem um pouco acha­
rão que isso que chamam sua vida não é senão
o afã de realizar um determinado projeto ou pro­
grama de existência. E seu “eu”, o de cada qual,
Meditação da TécniCa 39

não é senão êsse programa imaginário. Tudo o


que fazem os senhores o fazem a serviço dêsse
programa. E se estão os senhores agora ouvindo-
me é porque acreditam, de um ou de outro modo,
que fazer isso lhes serve para chegar a ser, ínti­
ma e socialmente, êsse eu que cada um dos senho­
res sente que deve ser, que quer ser. O homem
é, pois, antes de mais nada, alguma coisa que não
tem realidade nem corporal nem espiritual; é um
programa como tal: portanto, o que ainda não
é, mas que aspira a ser. Dir-se-á que não pode
haver programa se alguém não o pensa, se não x
há, portanto, idéia, mente, alma ou como se lhe
queira chamar. Eu não posso discutir isto a fun­
do pois teria que embarcar-me num curso de fi­
losofia. Somente posso fazer esta observação:
ainda que o programa ou projeto de ser um gran­
de financista tem que ser pensado numa idéia,
“ser” êsse projeto não é ser essa “idéia”. Eu pen­
so sem dificuldade essa idéia e, contudo, estou
bem longe de ser êsse projeto.
Eis aqui a tremenda e ímpar condição do
ser humano, o que faz dêle alguma coisa única
no universo. Advirta-se o aspecto estranho e tris­
te do caso. Um ente cujo ser consiste, não no
que já é, mas no que ainda não é, um ser que
consiste em ainda não ser. Todo o resto do uni­
verso consiste no que já é. O astro é o que já
é, nem mais nem menos. Todo aquêle cujo modo
de ser consiste em ser o que já é e no qual, por­
tanto, coincide, evidentemente, sua potencialida­
de com sua realidade, o que pode ser com o que,
com efeito, já é, chamamos coisa. A coisa tem
seu ser já dado e obtido.
40 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Neste sentido, o homem não é uma coisa


mas uma pretensão, a pretensão de ser isto ou
aquilo. Cada época, cada povo, cada indivíduo
modula de diverso modo a pretensão geral hu­
mana .
Agora, penso, compreendem-se bem todos
os têrmos do fenômeno fundamental que é nossa
vida. Existir é para nós achar-nos de pronto ten­
do que realizar a pretensão que somos numa de­
terminada circunstância. Não se nos permite ele­
ger de antemão o mundo ou circunstância em
que temos que viver, já que nos encontramos,
sem nossa anuência prévia, submersos num con­
torno, num mundo que é o de aqui e agora.
Êsse mundo ou circunstância em que me encon­
tro submerso não é somente a paisagem que me
rodeia, mas também meu corpo e também minha
alma. Eu não sou meu corpo; encontro-me com
êle e com êle tenho que viver, seja são seja doen­
te, mas também não sou minha alma: encontro-
-me com ela e tenho que usar dela para viver,
ainda que às vêzes me sirva mal porque tem
pouca vontade ou nenhuma memória. Corpo e
alma são coisas, e eu não sou uma coisa, mas
um drama, uma luta para chegar a ser o que te­
nho que ser. A pretensão ou programa que so­
mos oprime com seu peculiar perfil êsse mundo
em torno, e êste responde a essa pressão acei­
tando-a ou resistindo-a, isto é, facilitando nossa
pretensão em alguns pontos e dificultando em
outros. •
Agora posso dizer o que antes não se teria
entendido bem. Isso que chamamos natureza,
circunstância ou mundo não é originàriamente
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 41

senão o puro sistema de facilidades e dificulda­


des com que o homem-programático se encontra.
Aquêles três nomes — natureza, mundo, circuns­
tância — são já interpretações que o homem dá
ao que primàriamente encontra, que é somente
um conjunto de facilidades e dificuldades. So­
bretudo, “natureza” e “mundo” tão dois concei­
tos que qualificam aquilo a que se referem como
alguma coisa que está aí, que existe por si, inde­
pendentemente do homem. O mesmo acontece
com o conceito “coisa”, o qual significa algo que
tem um ser determinado e fixo e que o tem sepa­
rado do homem e por si. Mas, repito, tudo isto
já é reação intelectual interpretativa ao que pri­
mitivamente achamos em tôrno do nosso eu. E
isso que primitivamente achamos não tem um
ser aparte e independente de nós, porquanto es­
gota sua consistência em ser facilidade ou difi­
culdade, portanto, no que é com referência à
nossa pretensão. Somente em função desta é al­
guma coisa facilidade ou dificuldade. E consoan­
te seja a pretensão que nos informa, assim serão
estas ou as outras, maiores ou menores, as faci­
lidades e dificuldades que integram o puro e ra­
dical contorno. Assim se explica que o mundo
seja para cada época, e mesmo para cada homem,
alguma coisa diversa. Ao perfil de nosso pessoal
programa, perfil dinâmico que oprime a circuns­
tância, responde esta com outro perfil determi­
nado composto de facilidades e dificuldades pe­
culiares . Evidentemente, não é o mesmo o mun­
do para um comerciante que para um poeta:
onde êste tropeça aquêle nada com satisfação; o
que a êste repugna àquele lhe regozija. Está
42 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

claro que o mundo de ambos terá muitos elemen­


tos comuns: os que respondem à pretensão ge­
nérica que é o homem enquanto espécie. Mas
precisamente porque o ser do homem não lhe é
dado, já que é, como vimos, pura possibilidade
imaginária, a espécie humana é de uma inesta-
bilidade e variabilidade incomparáveis com as es­
pécies animais. Em suma, que os homens são
enormemente desiguais, contra o que afirmam os
igualitários dos dois últimos séculos e continuam
afirmando os arcaicos do presente.
V

A VIDA COMO FABRICAÇÃO DE SI


MESMA. TÉCNICA E DESEJOS

Sob esta perspectiva, a vida humana, a exis­


tência do homem aparece consistindo formal­
mente, essencialmente num problema. Para os
demais entes do universo existir não é proble­
ma — porque existência quer dizer efetividade,
realização de uma essência; por exemplo, que
“o ser touro” se verifique, aconteça. Ora, o tou­
ro, se existe, existe já sendo touro. Ao contrário,
para o homem existir não é já, sem mais nem
menos, existir como o homem que é, senão me­
ramente possibilidade disso e esforço para con­
segui-lo. Quem dos senhores é, efetivamente, o
que sente que teria que ser, que deveria ser, que
anela ser? Diferentemente, pois, de todo o resto,
o homem, ao existir, tem que fazer-se sua existên­
cia, tem que resolver o problema prático de rea­
lizar o programa em que, verdadeiramente, con­
siste. Daí nossa vida ser pura tarefa e inexorá­
vel ocupação. A vida de cada um de nós é algu­
ma coisa que não nos é dada feita, presenteada,
mas alguma coisa que é preciso fazer. A vida
dá muito que fazer; mas, de resto, não é senão
essa tarefa que dá a cada um, e uma tarefa, re­
pito, não é uma coisa, senão algo ativo, num sen­
44 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

tido que transcende todos os demais. Porque


no caso dos demais sêres se supõe que alguém ou
alguma coisa que já é, atua; mas aqui se trata de
que precisamente para ser é preciso atuar, que
não se é senão essa atuação. O homem, queira
ou não, tem que fazer-se a si mesmo, autofabri-
car-se. Esta última expressão não é de todo ino­
portuna . Ela sublinha que o homem, na própria
raiz de sua essência, encontra-se, antes que em
qualquer outra, na situação do técnico. Para o
homem viver é, evidentemente e antes de qual­
quer coisa, esforçar-se em que tenha o que ainda
não tem; isto é, êle, êle mesmo, aproveitando para
isso o que tem; em suma, é produção. Com isto
quero dizer que a vida não é fundamentalmente
como tantos séculos acreditaram: contemplação,
pensamento, teoria. Não; é produção, fabrica­
ção, e somente porque estas o exigem, portanto,
depois, e não antes, é pensamento, teoria, ciên­
cia. Viver. . ., isto é, achar os meios para rea­
lizar o programa que se é. O mundo, a circuns­
tância, se apresenta evidentemente como primei­
ra matéria e como possível máquina. Já que para
existir tem que estar no mundo, e êste não reali­
za por si e sem mais o ser do homem, já que lhe
põe dificuldades, o homem se resolve a buscar
nêle a máquina oculta que encerra para servir ao
homem. A história do pensamento humano se
reduz à série de observações que o homem fêz
para expor à luz, para descobrir essa possibilida­
de de máquina que o mundo leva latente em sua
matéria. Daí o invento técnico ser chamado tam­
bém descobrimento. E não é, como veremos,
uma causalidade que a técnica por antonomásia,
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 45

a plena maturidade da técnica, se iniciasse na


altura de 1600; justamente quando em seu pen­
samento teórico do mundo chegou o homem a
entendê-lo como u’a máquina. A técnica mo­
derna enlaça-se com Galilei, Descartes, Huygens;
em suma, com os criadores da interpretação me­
cânica do universo. Antes se acreditava que o
mundo corporal era um ente amecânico cujo ser
último estava constituído por podêres espirituais
mais ou menos voluntários e incoercíveis. O mun­
do, como puro mecanismo, é, ao contrário, a má­
quina das máquinas.
Ê; pois, um êrro fundamental acreditar que
o homem não é senão um animal causalmente
dotado com talento técnico ou, em outras pala­
vras, que se a um animal lhe agregássemos mà-
gicamente o dom técnico, teríamos sem mais o
homem. A verdade é o contrário, porque o ho­
mem tem uma tarefa bem diversa que a do ani­
mal, uma tarefa extranatural, não pode dedicar
suas energias como aquêle para satisfazer suas
necessidades elementares, já que, evidentemen­
te. tem que apagá-las nessa ordem para poder
prover-se com elas na improvável faina de rea­
lizar seu ser no mundo.
Eis aqui por que o homem começa quando
começa a técnica. A largura, menor ou maior,
que esta lhe abre na natureza é o alvéolo onde
pode alojar seu excêntrico ser. Por isso insistia
ontem em que o sentido e a causa da técnica es­
tão fora dela; isto é: no emprêgo que dá o ho­
mem a suas energias disponíveis, libertadas por
aquela. A missão inicial da técnica é essa: dar
46 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

franquia ao homem para poder dedicar-se a ser


êle mesmo.
Os antigos dividiam a vida em duas zonas:
uma, que chamavam otium, o ócio, que não é a
negação do fazer, mas ocupar-se em ser o huma­
no do homem, que êles interpretavam como man­
do, organização, trato social, ciências, artes. A
outra zona, cheia de esforço para satisfazer as
necessidades elementares, tudo o que fazia pos­
sível aquêle otium, chamavam-no nec-otium, as­
sinalando perfeitamente o caráter negativo que
tem para o homem.
Ao invés de viver ao acaso e dissipar seu
esforço, necessita êste atuar de acordo com plano
para obter segurança em seu choque com as exi­
gências naturais e dominá-las com um máximo
de rendimento. É isto seu fazer técnico diante
do fazer como Deus queira do animal, do pássa­
ro do bom Deus, por exemplo.
Tôdas as atividades humanas que especial­
mente receberam ou merecem o nome de técni­
cas não são senão especificações, concreções dêsse
caráter geral de autofabricação próprio de nosso
viver.
Se nossa existência não fôsse já desde um
princípio a forçosidade de construir com o ma­
terial da natureza a pretensão extranatural que
é o homem, nenhuma dessas técnicas existiría.
O fato absoluto, o puro fenômeno do universo
que é a técnica, somente pode dar-se nessa es­
tranha, patética, dramática combinação metafí­
sica de que dois entes heterogêneos — o homem
e o mundo — se vejam obrigados a unificar-se,
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 47

de modo que um dêles, o homem, consiga inserir


í seu ser extramundano no outro, que é precisa-
I mente o mundo. Êsse problema, quase de enge-
1 nheiro, é a existência humana.
E, contudo, ou por isso mesmo, a técnica
não é em rigor o primeiro. Ela se engenha e exe­
cuta a tarefa, que é a vida; consegue, claro está,
numa ou noutra limitada medida, fazer que o
programa humano se realize. Ela, porém, por si
não define o programa; quero dizer que à téc­
nica lhe é prefixada a finalidade que ela deve
conseguir. O programa vital é pré-técnico. O
técnico ou a capacidade técnica do homem tem
como missão inventar os procedimentos mais sim­
ples e seguros para conseguir as necessidades do
homem. Mas estas, como vimos, são também
uma invenção; são o que em cada época, povo
ou pessoa o homem pretende ser; há, pois, uma
primeira invenção pré-técnica, a invenção por ex­
celência, que é o desejo original.
Não se creia que é desejar faina tão fácil.
Observem os senhores a específica angústia que
experimenta o nôvo rico. Tem nas mãos a pos­
sibilidade de obter a efetivação de seus desejos.
Em seu íntimo sente que não deseja nada, que
por si mesmo é incapaz de orientar seu apetite
e decidi-lo entre as inumeráveis coisas que o con­
torno lhe oferece. Por isso busca um interme­
diário para que lhe oriente, e o encontra nos de­
sejos predominantes dos demais. Eis aqui a ra­
zão pela qual o primeiro que o nôvo rico com­
pra para si é um automóvel, uma pianola e um
fonógrafo. Encarregou aos outros que desejem
por êle. Como há o tópico do pensamento, o
48 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

qual consiste na idéia que não é pensada origi-


nàriamente pelo que a pensa, mas tão-sòmente
por ele repetida, cegamente, maquinalmente rei­
terada, há também um desejo tópico, que é antes
a ficção e o mero gesto de desejar.
Isto acontece, pois, mesmo na órbita do de­
sejar que se refere ao que já há aí, às coisas que
já temos em nosso horizonte antes de desejá-las.
Imagine-se até que ponto será difícil o desejo
propriamente criador, o que postula o inexisten­
te, o que antecipa o que ainda é irreal. Em suma,
os desejos referentes a coisas se movem sempre
dentro do perfil do homem que desejamos ser.
É este, portanto, o desejo fundamental, fonte de
todos os demais. E quando alguém é incapaz de
desejar-se a si mesmo, porque não tem claro um
“si mesmo” que realizar, é evidente que não tem
senão pseudo-desejos, espectros de apetites sem
sinceridade nem vigor.
Talvez a doença básica de nosso tempo seja
uma crise dos desejos e por isso tôda a fabulosa
potencialidade de nossa técnica parece como se
não nos servisse de nada. Hoje a coisa começa
a fazer-se grave fato: “A Europa padece de uma
extenuação em sua faculdade de desejar” (Espa­
nha invertebrada') . E essa obnubilação do pro­
grama vital trará consigo uma detenção ou re­
trocesso da técnica que não saberá bem a quem,
a que servir. Porque esta é a incrível situação
a que chegamos e que confirma a interpretação
aqui sustentada: a herdade, isto é, o repertório
com que hoje conta o homem para viver, não so­
mente é incomparavelmente superior ao que
punça gozou, (as forças criadas na técnica equi­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 49

valem a 2 500 milhões de escravos, isto é, dois


servidores para cada civilizado), já que temos
a clara consciência de que são superabundantes,
e, contudo, a mágua é enorme, e é que o homem
atual não sabe o que ser, falta-lhe imaginação
para inventar o argumento de sua própria vida.
Por quê? Ah!, isso não pertence a êste en­
saio. Somente nos perguntaremos: Que é o ho­
mem, ou que espécie de homens são os especia­
listas do programa vital? O poeta, o filósofo, o
fundador de religião, o político, o descobridor de
valores? Não o decidamos; baste com advertir
que o técnico os supõe e que isto explica uma
diferença de posição que sempre houve e contra
a qual é inútil protestar.
Talvez tenha que ver com isto o estranhís­
simo fato de que a técnica é quase sempre anô­
nima, ou pelo menos os criadores dela não gozem
da fama nominativa que acompanhou sempre
àqueles outros homens. Um dos inventos mais
formidáveis dos últimos sessenta anos foi o mo­
tor de explosão. Pois bem, quantos dos senho­
res, que não sejam por seu ofício técnicos, lem­
bram neste momento a lista de nomes egrégios
que levaram seus inventores?
Daí também a enorme improbabilidade de
que se constitua uma “tecnocracia”. Por defini­
ção, o técnico não pode mandar, dirigir em últi­
ma instância. Seu papel é magnífico, venerável,
mas irremediàvelmente de segundo plano.
Resumamos:
A reforma da natureza ou técnica, como
toda mudança ou mutação, é um movimento com
50 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

seus dois têrmos, a quo e ad quem. O têrmo a


quo é a natureza conforme está aí. Para modifi­
cá-la é preciso fixar o outro têrmo, no qual se
conformará. Êste têrmo ad quem é o programa
vital do homem; Como chamaríamos a obtenção
plena dêste? Evidentemente, bem-estar do ho­
mem, felicidade. Eis aqui que com isso fecha­
mos o circuito de todas as considerações feitas
nas anteriores lições.
VI

O DESTINO EXTRANATURAL DO HO­


MEM. — PROGRAMAS DE SER QUE DIRI­
GIRAM AO HOMEM. — A ORIGEM DO ES­
TADO TIBET ANO

Nas lições anteriores procurei sugerir quais


são os supostos que têm que dar-se no universo
para que nêle apareça isso que chamamos técni­
ca . Dito em outra forma, a técnica implica tudo
isso que enunciamos: que há um ente cujo ser
consiste, antes de tudo, no que ainda não é, num
mero projeto, pretensão ou programa de ser; que,
portanto, êsse ente tem que desgastar-se na rea­
lização de si mesmo. Não pode obtê-la senão
com elementos reais, como o artista não pode rea­
lizar a estátua imaginada se não tem uma sóli­
da matéria em que plasmá-la. A matéria, o ele­
mento real onde e com o qual o homem “pode”
chegar a ser de fato o que é em projeto, é o mun­
do. Êste lhe oferece a possibilidade de existir
e, ao mesmo tempo, grandes dificuldades para
isso. Em tal disposição dos têrmos a vida aparece
constituída como um problema quase de enge­
nharia: aproveitar as facilidades que o mundo
oferece para vencer as dificuldades que se opõem
à realidade de nosso programa, Nesta condição
52 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

fundamental de nossa vida é onde se insere o


fato da técnica.
Dito assim, em fórmula abstrata, resulta
talvez difícil de compreender. Porque êsse pro­
grama extranatural que afirmamos ser o homem,
e para servir ao qual se desdobra a técnica, soa
a alguma coisa mística e inconcretável. Alguma
clareza, todavia, trouxe ao assunto a rápida enu­
meração que fiz de alguns entre os muitos pro­
gramas vitais em que o homem historicamente
concretou seu ser: o bodhisatva hindu, o homem
agonal da Grécia aristocrática do século VI, o
bom republicano de Roma e o estóico da época
do Império, o asceta medieval, o hidalgo do sé­
culo XVI, o homme de bonne compagnie de
França do século XVII, a schõne Seele dos fins
do século XVIII na Alemanha ou o Dichter und
Denker dos princípios do século XIX, o gentle­
man de 1850 na Inglaterra, etc.
Não é lícito deixar-me levar ao sugestivo
trabalho de ir descrevendo o perfil pressionador
do mundo que é cada um dêstes modos de ser
do homem,
rÜnicamente farei notar alguma coisa que
me parece de tôda evidência. O povo no qual
predomina a idéia de que o verdadeiro ser do
homem é ser bodhisatva não pode criar uma téc­
nica igual àquele outro no qual se aspira a ser
gentleman. Ser bodhisatva é, evidentemente,
crer que existir neste mundo de meras aparên­
cias é precisamente não existir de verdade. A
verdadeira existência consiste para êle em não
ser indivíduo, pedaço particular do universo, mas
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 53

fundir-se no Todo e desaparecer nele. O bodhi­


satva, pois, aspira a não viver ou a viver o menos
possível. Reduzirá sua alimentação ao mínimo;
pior para a técnica da alimentação! Procurará a
imobilidade máxima, para recolher-se na medita­
ção, único veículo que permite ao homem chegar
ao êxtase, isto é, a pôr-se em vida fora dêste mun­
do. Não é verossímil que invente o automóvel
êste homem que não quer mover-se. Ao contrá­
rio, suscitará todas essas técnicas tão alheias a
nós europeus como são as dos faquires e iogas,
técnicas do êxtase, técnicas que não produzem
reformas na natureza material, mas no corpo e na
psique do homem. Por exemplo, a técnica da in­
sensibilidade e a catalepsia, da concentração, etc.
Isto me chama a atenção de que a técnica é fun­
ção do variável programa humano. Por outro
lado, esclarece-nos também de tudo aquilo que
o homem, numa de suas dimensões, tem um ser
extranatural e que antes não conseguíamos intun.
É evidente que existir como meditador e
como extático, viver precisamente como não vi-
vente, em constante intuito de anular o mundo
e a própria potência, não é um modo natural de
existir. Ser bodhisatva é, em princípio, não co­
mer, não mover-se, não sexualizar, não sentir
prazer nem dor; ser, em conseqüência, a negação
vivente da natureza. Por isso é um exemplo drás­
tico da extranaturalidade do ser humano e do di­
fícil que é sua realização na natureza. Isso re­
quer uma pré-adaptação desta que deixe espaço
para uma qualidade de ser que tão radicalmente
a contradiz. Mas a explicação naturalista do hu­
mano saltará aqui sustentando que a relação en­
54 JOSÉ ÓRTEGA Y GASSET

tre o projeto de ser e a técnica é inversa da que


eu proponho, a saber: que é o projeto quem sus­
cita a técnica, a qual, por sua vez, reforma a na­
tureza. Exatamente o contrário, dir-se-á: na
índia o clima e o solo facilitam tão enormemente
a vida que o homem quase não necessita mover-
se nem alimentar-se. É, pois, o clima e o solo os
fatores que preformam êsse tipo de vida búdi-
ca. Com isto, pela primeira vez, quem sabe, lhes
soará agradàvelmente, neste ensaio, aos homens
de ciência que me ouvem.
Mas agora não posso deixar de confundir ao
naturalista imaginário que me objeta ainda aque­
la pequeníssima satisfação. Não: existe, sem
dúvida, uma relação entre clima e solo de um
lado e programa de humanidade de outro, mas
é bem distinta da que a anterior explicação su­
põe. Não irei expor agora qual é, a meu ver; pela
primeira vez irei excusar-me de raciocinar e, em
seu lugar, irei opor ao pretendido fato que o pre­
sumível objetante apresentou, simplesmente, ou­
tro fato positivo que atira aos trastes aquela ex­
plicação .
Se são o clima e a terra da índia os fatores
que explicam o budismo da índia, não se com­
preende porque hoje a região budista por exce­
lência é o Tibet. Porque seu clima e sua terra
são a antítese da região do Ganges ou do Ceilão.
Os altiplanos atrás do Himalaia são um dos luga­
res mais ásperos e crus do planeta. Ferozes ven­
davais dominam aquelas planícies imensas, aquê-
les amplíssimos vales. Tormentas de gelos os
castigam durante grande parte do ano. Por isso
não havia ali senão hordas trasumantes, inquie­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 55

tas e revoltadas, em contínua agressão umas com


as outras. Guarneciam-se em suas tendas, feitas
com a pele dos grandes ovinos altáicos. Nunca
se pôde ali constituir um Estado. Eis aqui que
um belo dia transpuseram os sublimes portos do
Himalaia alguns missionários budistas e conver­
teram à sua religião algumas daquelas hordas.
Mas o budismo é, mais essencialmente que ne­
nhuma outra religião, faina de meditação. No
budismo não há um deus que se encarregue de
salvar ao homem. É o homem que tem que sal­
var-se a si mesmo por meio da meditação, da ora­
ção. Como meditar na crudelíssima tempérie ti-
betana? Foi preciso construir conventos de pedra
e cal, os primeiros edifícios que surgiram por ali.
Não, pois, para simplesmente viver surge no Ti­
bet a casa, mas para orar. Mas ocorreu que nas
contendas tradicionais daquele país as hordas
budistas se refugiaram nos conventos, que adqui­
riram assim um papel guerreiro, proporcionando
a seus possuidores superioridade sobre os não
budistas. Em suma, que o convento, fazendo de
castelo, criou o Estado tibetano. Aqui não é o
clima e a terra os fatores que engendram o bu­
dismo, mas, ao contrário, o budismo como neces­
sidade humana, isto é, desnecessária, quem modi­
fica o clima e terra mediante a técnica da cons­
trução .
Sirva o caso narrado como um bom exem­
plo da solidariedade que existe entre as técnicas;
quero dizer da facilidade com que um artefato
ideado para servir uma determinada finalidade
se desloca para outras utilizações. Mais acima
vimos como o arco primitivo, provavelmente mu­
5Ó JOSÉ ORTEGA Y GASSET

sical, se converte em arma de caça e luta. Pare­


cido é o caso de Tirteu, aquêle ridículo general
que os atenienses emprestaram aos espartanos.
Velho e coxo, era, ainda, pelo estilo antiquado de
suas elegias, o boboca da juventude vanguardis-
ta na Ática. Mas chega a Esparta e a partir de
então os desmoralizados lacedemônios começam
a ganhar todas as batalhas. Por quê? Pois por
uma simples razão técnica de tática. As elegias
de Tirteu estavam compostas num ritmo arcaico,
que, por ser bastante claro e pronunciado, facili­
tava a unidade de marcha e movimento na falan­
ge . Eis aqui uma técnica poética que se transfor­
ma em ingrediente criador dentro da técnica mi­
litar .
Mas não nos transviemos. Procurávamos
brevemente confrontar a situação do homem
quando é, como projeto, bodhisatva, com a do
homem quando se propõe ser ^eníZeman. A opo­
sição é radical. Basta para percebê-lo que insi­
nuemos alguns traços constituintes do genf/eman.
Convém antes notar que o gentleman não é o
aristocrata. Sem dúvida foram os aristocratas in-
glêses os que principalmente idearam êste modo
de ser homem, mas inspirados pelo que diferen­
cia o aristocrata inglês de todas as demais classes
de nobres. Enquanto as demais são fechadas
como classes, e inclusive fechadas quanto ao tipo
de ocupações a que se dignavam dedicar-se —
guerra, política, diplomacia, desporto e alta dire­
ção da economia agrícola — o aristocrata inglês,
desde o século XVI, aceita a luta no terreno eco­
nômico do comércio, da indústria e das carreiras
liberais. Como a história consistiría desde então
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 57

principalmente nestas fainas, foi a única que se


salvou, mantendo-se no jôgo com plena eficiên­
cia . Daí que ao chegar o século XIX cria-se um
protótipo de existência — o gentleman — que
vale para todo o mundo. O burguês e o operário
podem, em certa medida, ser gentleman', e mais,
aconteça o que acontecer no futuro, talvez ime­
diato, restará como uma das maravilhas da his­
tória o fato de que hoje até o operário mais mo­
desto da Inglaterra é, em sua órbita, um gentle­
man. Êsse modo de ser homem não implica, pois,
aristocratismo. O aristocrata continental dos últi­
mos quatro séculos é, antes de tudo, herdeiro: o*
homem que herdou grandes meios de vida, mas
não teve que lutar nesta para conquistá-los. O
gentleman como tal não é o herdeiro; ao contrá­
rio, supõe que o homem tem que lutar na vida,
que exercer todas as profissões e ofícios, sobretu­
do os práticos (o gentleman não é intelectual), e
precisamente nessa luta tem que ser gentleman.
O pólo oposto ao gentleman é o gentilhomme de
Versailles ou o Junker alemão.
VII

O TIPO “GENTLEMAN”. — SUAS EXI­


GÊNCIAS TÉCNICAS. — O “GENTLEMAN”
E O “HIDALGO”

Mas, que é ser gentleman? O caminho mais


rápido para compreendê-lo — já que necessita­
mos poupar ao extremo o número de palavras
— se nos oferece se, exagerando as coisas, dize­
mos: o comportamento que o homem costuma
adotar durante os breves momentos em que as
trabalheiras e apertos da vida deixam de afligi-
-lo e se dedica, para distrair-se, a um jogo apli­
cado ao resto da vida, isto é, ao sério, ao penoso
da vida; isso é o ^ení/eman. Aqui se vê também
em forma cortante, pelo paradoxal, em que sen­
tido o programa vital é extranatural. Porque os
jogos e os modos de comportamento que nêles
regem são pura invenção diante do tipo de vida
que a natureza dá por si. Aqui, ainda dentro da
própria vida humana, invertem-se os têrmos e se
propõe que o homem seja em sua existência for­
çada, de luta com o meio, conforme se encontra
no recanto irreal e puramente inventado de seus
jogos e desportos.
Ora, quando o homem se dedica a brincar
costuma ser porque se sente seguro no que con­
cerne às urgências elementares do viver. O jogo
60 JOSÉ ORTEGA tf GASSET

é um luxo vital e supõe prévio domínio sôbre as


zonas inferiores da existência, que estas não opri­
mem, que o ânimo, sentindo-se supérfluo de
meios, se mova em tão ampla margem de sereni­
dade, de calma, sem o atordoamento e feio atro­
pelar-se a que leva uma vida escassa, em que
tudo é terrível problema. Um ânimo assim se
compraz em sua própria elasticidade e se dá o
luxo de jogar limpo, o fair play de ser justo, de
defender seus direitos, mas respeitando os do pró­
ximo, de não mentir. Mentir no jôgo é falsificar
o jôgo, e, portanto, não jogar. Mesmo assim, o
jôgo é um esforço, mas que não sendo provocado
pelo premente utilitarismo que inspira o esforço
imposto por uma circunstância do trabalho, vai
repousando em si mesmo sem êsse desassossêgo
que infiltra no trabalho a necessidade de conse­
guir a todo custo seu fim.
Daí as maneiras de gentleman'. seu espírito
de justiça, sua veracidade, o pleno domínio de si
fundado no prévio domínio do que lhe rodeia, a
clara consciência do que é seu direito pessoal
diante dos demais e dos demais diante dêle; isto
é, de seus deveres. Para êle não tem sentido a
trapaça. O que se faz é preciso fazê-lo bem e
não preocupar-se demais. O produto industrial
inglês se caracteriza por estas qualidades: é tudo
nêle bom, sólido, acabado, a matéria-prima e a
mão-de-obra. Não está feito para vendê-lo de
qualquer jeito, é o contrário da pacotilha. É sa­
bido que o fabricante inglês não se amoldava,
como depois o alemão, aos gostos e caprichosas
exigências dos clientes, mas, ao contrário, espe­
rava com grande pachorra a que o cliente se aco­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 61

modasse a seu produto. Não fazia quase pro­


paganda, que é sempre falsidade, jôgo sujo e
retórica. O bom pano na arca se vende. E o
mesmo em política: nada de frases, farsas, pro­
vocação vil de contágios demagógicos — nada
de intolerância — poucas leis, porque a lei uma
vez escrita se converte no império de puras pa­
lavras, que, como não se podem literalmente
cumprir, obriga à indecência governamental que
falseia sua própria lei. Um povo de ^enf/eman
não necessita constituição; por isso, em rigor, a
Inglaterra vem se comportando perfeitamente
bem sem ela, etc.
Como se vê, o gentleman, em oposição ao
bodhisatva, quer viver com intensidade neste
mundo e ser o mais indivíduo que possa, centrar-
-se em si mesmo e nutrir-se de uma sensação de
independência diante de tudo e de todos. No
céu não tem sentido ser gentleman, porque ali
a própria existência seria efetivamente a delícia
de um jôgo, e o gentleman ao que aspira é ser
um bom jogador na aspereza mundanal, no mais
rude da rude realidade. Daí que o elemento
principal e, por assim dizer, a atmosfera do ser
gentleman reside numa sensação básica de vital
folgança, de domínio superabundante sôbre a
circunstância. Se esta afoga, não é possível edu­
car-se para a gentlemanerie. Por isto, êste ho­
mem que aspira a fazer da existência um jôgo
e um desporto é o contrário de um iluso; pre­
cisamente porque quer isso sabe que a vida é
coisa dura, séria e difícil. Por isso se ocupará a
fundo em assegurar-se êsse domínio sôbre a cir­
cunstância — domínio sôbre a matéria — e sô-
62 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

bre os homens. Daí ter sido o grande técnico e


o grande político. Seu afã de ser indivíduo e
de dar a seu destino mundanal a graça de um
jôgo lhe fêz sentir a necessidade de separar-se
até fisicamente dos demais e das coisas e atender
ao cuidado de seu corpo enobrecendo suas fun­
ções mais humildes.
O asseio, a mudança de camisa, o banho —
desde os romanos, no Ocidente, ninguém se la­
vava — serão coisas que o gentleman pratica
com grande formalidade. Seja-me perdoado
lembrar que o water-closet nos vem da Inglater­
ra . Um homem de módulo bastante intelectual
jamais teria ideado o water-closet, pois despreza­
va seu corpo. O ^enífeman, repito, não é intelec­
tual . Busca o decorum em tôda sua vida: alma
limpa e corpo limpo.
Mas, está claro, tudo isto supõe riqueza; o
ideal do gentleman levou, com efeito, a criar uma
enorme riqueza e, ao mesmo tempo, a supôs.
Suas virtudes somente podem respirar e abrir
suas asas numa ampla margem de poderio eco­
nômico. E, efetivamente, não se conseguiu de
fato o tipo de ^ení/eman até meados do século
último, quando o inglês gozava de uma riqueza
formidável. O operário inglês pode, em alguma
medida, ser ^entfeman porque ganha mais que o
burguês médio de outros países.
Seria de grande interêsse que alguém bem
dotado e que de antigo possua intimidade com
as coisas inglêsas se ocupasse de estudar qual é
o estado em que hoje se encontra o sistema de
normas vitais que chamamos ^enf/eman. Nos
últimos vinte anos a situação econômica do ho-
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 63

mem inglês mudou: hoje é muito menos rico


que no comêço do século. Cabe ser pobre e, “não
obstante”, ser inglês? Podem subsistir suas vir­
tudes características num âmbito de escassez?
Ouvi que precisamente nas classes superio­
res inglêsas se nota a decadência do tipo gen­
tleman, coincidindo com o descenso das técnicas
específicas do homem britânico e com a atroz
míngua das fortunas aristocráticas. Mas não ga­
ranto ao leitor a exatidão destas notícias. A in­
capacidade para perceber com precisão os fe­
nômenos sociais que padecem ainda as pessoas
na aparência mais inteligentes é incalculável.
Seja como fôr, é preciso ir pensando num
tipo exemplar de vida que conserve o melhor do
gentleman e seja, ao mesmo tempo, compatível
com a pobreza que inexoravelmente ameaça a
nosso planêta. Nos ensaios mentais que para
construir essa nova figura execute o leitor surgi­
rá inevitavelmente, como têrmo de comparação,
outro perfil histórico, em alguns traços o mais
próximo ao gentleman e que, não obstante, leva
em si a condição de florescer em terra de pobre­
za. Refiro-me ao “hidalgo”. Sua diferença mais
grave do gentleman consiste em que o hidalgo
não trabalha, reduz ao extremo suas necessidades
materiais e, em conseqüência, não cria técnicas.
Vive alojado na miséria como essas plantas do
deserto que sabem vegetar sem umidade. Mas
é não menos indiscutível que soube dar a essas
terríveis condições de existência uma solução dig­
na. Pela dimensão de dignidade se enlaça com
o gentleman, seu irmão mais afortunado,
VIII

AS COISAS E SEU “SER”. — A PRÉ-COISA.


— O HOMEM, O ANIMAL E OS INSTRU­
MENTOS. — A EVOLUÇÃO DA TÉCNICA

Gastei xêste pouco de tempo em desenvol­


ver, ainda que brevissimamente, os anteriores
exemplos, movido pelo desejo de que não ficas­
se abstrato e confuso na mente dos senhores o
que seja êsse programa, êsse ser extranatural do
homem, em realizar o que consiste nossa vida e,
por outro lado, mostrar, ainda que seja bastante
vagamente, certa funcionalidade entre o volume
ou direção da técnica e o modo de ser homem
que se escolheu. Claro está que todo êste pro­
blema da vida, do ser do homem, tem uma úl­
tima dimensão estritamente fisolófica, que eu
procurei evitar neste ensaio. Urgia-me nêle su­
blinhar aquêles supostos ou implicações que o
fato da técnica contém e que costumam passar
desapercebidos, não obstante constituir o mais
essencial na essência da técnica. Porque uma
coisa é, antes de tudo, a série de condições que
a fazem possível — Kant dizia “condições de
sua possibilidade” e, mais sóbria e claramente,
Leibniz seus “ingredientes”, seus “requisitos”. E
é curioso observar que de ordinário êsses mais
66 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

autênticos ingredientes ou requisitos de uma


coisa são os que nos passam inadvertidos, os que
deixamos de lado, como se não fôssem o que são:
o ser mais profundo da coisa. Com quase tôda
segurança alguns dos senhores, que pertencem
a um tipo de ouvintes cuja psicologia não quero
fazer agora, para os quais ouvir é ir buscar o que
êles já sabem, seja pormenorizadamente, seja
em vaga aproximação, ao invés de, ao contrá­
rio, já que decidiram ouvir, abrir-se sem mais ao
que venha, quanto mais imprevisto, melhor; es­
ses, digo, terão pensado: Bem, mas isso não é a
técnica, eu não vejo aí a técnica em' sua realida­
de, que é funcionando. Não se adverte que, com
efeito, para responder à pergunta: Que é tal
coisa?, o que fazemos é desfazê-la, precisamente
recorrer de sua forma, tal e como está aí funcio­
nando, a seus ingredientes, que procuramos isolar
e definir. E está claro que, solto, cada um dos
ingredientes não é a coisa: esta é o resultado de
seus ingredientes, e para que esteja aí funcio­
nando é preciso que os ingredientes desapareçam
de nossa vista como tais e soltos. Para que ve­
jamos água é preciso que desapareçam diante de
nós o hidrogênio e o oxigênio. A definição de
uma coisa, ao inumerar seus ingredientes, seus
supostos, o que ela implica se há-de ser, se con­
verte, portanto, em alguma coisa assim como a
pré-coisa. Pois essa pré-coisa é o ser da coisa,
e é o que é preciso buscar, porque esta já está
aí: não é preciso buscá-la. Ao contrário, o ser
e a definição, a pré-coisa, nos mostra a coisa em
statu nascendi, e somente se conhece bem o que,
num e noutro sentido, se vê nascer.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 67

Os supostos por mim sublinhados até aqui


não são, certamente, os únicos, mas são os mais
fundamentais; e por isso mesmo os mais ocultos
e, em conseqüência, os que costumam passar
mais desapercebidos.
Ao contrário, a tôda gente lhe ocorre per­
ceber que se o homem não tivesse inteligência
capaz de descobrir novas relações entre as coisas
que o rodeiam, não inventaria instrumentos nem
métodos vantajosos para satisfazer suas necessi­
dades. Pelo fato disto ser óbvio, não urgia di-
zê-lo. É tão óbvio que se passa por êle e se
chega a um êrro: em acreditar que quando um
ente possui uma certa espécie de atividade basta
o fato de que a possui para explicar que a exer­
cite . Apesar de que com bastante freqüência ob­
servamos homens que têm olhos para ver e que,
não obstante, não vêem o que lhes passa pela
frente, graças, simplesmente, a que estão absor­
tos meditando alguma coisa. Ainda que possam
ver, não vêem; não exercem esta atividade, pois
não lhes interessa o que acontece diante dêles e,
ao contrário, interessa-lhes o que ocorre em seu
íntimo. Existem aquêles que têm talento para
matemáticas, mas não o exercem porque não lhes
interessa.
Não basta, pois, poder fazer alguma coisa
para que o façamos, nem basta que o homem
possua inteligência técnica para que a técnica
exista. A inteligência técnica é uma capacida­
de, mas a técnica é o exercício efetivo dessa ca­
pacidade, que perfeitamente podia ficar em dis­
ponibilidade. E a questão importante não é
apontar se o homem tem tal ou qual atitude para
ó8 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

a técnica, senão por que se dá o fato desta, e isso


somente se faz inteligível quando se descobre que
o homem, queira ou não, tem que ser técnico, se­
jam melhores ou piores seus dotes para isso. E
isso é o que procurei fazer nas lições anteriores.
É bastante óbvio, repito, falar da inteligên­
cia enquanto se fala da técnica, e com excessiva
celeridade atribuir àquela a distância entre o ho­
mem e o animal. Não se pode hoje com a mes­
ma tranqüila convicção que há um século definir
ao homem como faz Franklin, chamando-o ani­
mal instr umentificum, animal tools making. Não
somente nos famosos estudos de Kõhler sobre os
chimpanzés, mas em outras muitas províncias
da psicologia animal aparece mais ou menos pro-
blemàticamente a capacidade do animal para
produzir instrumentos elementares. O importan­
te em tôdas estas observações é notar que a in­
teligência estritamente requerida para a inven­
ção do instrumento parece existir nêle. A insu­
ficiência, o que com efeito faz impossível ao ani­
mal chegar com eficaz plenitude à posse do ins­
trumento não está, pois, na inteligência sensu
stricto, mas em outro lado de sua condição. As­
sim Kõhler mostra que o essencialmente defei­
tuoso do chimpanzé é a memória, sua incapaci­
dade de conservar o que pouco antes lhe ocorre­
ra e, conseqüentemente, a escassíssima matéria
que oferece à sua inteligência para a combinação
criadora.
Contudo, a diferença decisiva entre o ani­
mal e o homem não está tanto na primária que
se encontra comparando seus mecanismos psí­
quicos, mas nos resultados que esta diferença pri­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 69

mária traz consigo e que dão à existência animal


uma estrutura completamente distinta da hu­
mana. Se o animal tem pouca imaginação será
incapaz de formar-se um projeto de vida distin­
to da mera reiteração do que fêz até o momen­
to. Basta isto para diferenciar radicalmente a
realidade vital de um e de outro ente. Mas se a
vida não é realização de um projeto, a inteligên­
cia se converte numa função puramente mecâ­
nica, sem disciplina nem orientação. Olvida-se
demasiado que a inteligência, por mais vigorosa
que seja, não pode tirar de si mesma sua própria
direção; não pode, portanto, chegar a verdadei­
ros descobrimentos técnicos. Ela, por si, não sabe
quais, entre as infinitas coisas que se podem “in­
ventar”, convém preferir, e se perde em suas in­
finitas possibilidades. Somente numa entidade
onde a inteligência funciona a serviço de uma
imaginação, não técnica, mas criadora de proje­
tos vitais, pode constituir-se a capacidade téc­
nica .
O dito até aqui, entre suas múltiplas inten­
ções, levava uma: a de reagir contra uma ten­
dência, tão espontânea como excessiva, reinante
em nosso tempo, em crer que, afinal de contas,
não há verdadeiramente senão uma técnica, a
atual euro-norte-americana, e que todo o resto
foi somente torpe rudimento e balbuciação para
ela. Eu necessitava contra-restar esta tendência
e submergir a técnica atual como uma de tantas
no panorama vastíssimo e multiforme das huma­
nas técnicas, relativizando assim seu sentido e
mostrando como a cada projeto e módulo de hu­
manidade corresponde a sua. Mas, uma vez fei­
7o JÓSÉ ORTEGA Y GASSET

to isto, está claro que necessito destacar o que a


técnica atual tem de peculiar, o que nela dá lugar
precisamente a essa miragem que, com algum
viso de verdade, no-la apresenta como a técnica
por antonomásia. Por muitas razões, com efei­
to, a técnica chegou hoje a uma colocação no sis­
tema de fatores integrantes da vida humana que
jamais tivera. A importância que sempre lhe
correspondeu, mesmo aparte dos raciocínios em
que procurei demonstrá-la, transparecería sem
mais no simples fato de que, quando o historia­
dor toma ante seus olhos vastos âmbitos de tem­
po, encontra-se com que não pode dominá-los
se não é aludindo à peculiaridade de sua técnica.
A idade mais primitiva da humanidade, que in­
certamente, como entre duas luzes, consegue en­
trever-se, se chama a idade aurorai da pedra ou
eolítica — depois é a idade da pedra velha e im­
poluta, paleolítica, a idade do bronze, etc. Pois
bem, não seria fora de propósito situar nessa lis­
ta nosso tempo, qualificando-o como a idade, não
desta ou de outra técnica, mas simplesmente da
“técnica” como tal. Que aconteceu na evolução
da capacidade técnica do homem para que che­
gue a uma época em que, apesar de ter sido êle
sempre técnico, mereça com alguma congruên­
cia ser fichada formalmente pela técnica? Evi­
dentemente, isto não pôde acontecer senão por­
que a relação entre o homem e a técnica se ele­
vou a uma potência peculiaríssima que convém
precisar, e essa elevação, por sua vez, somente
pôde produzir-se porque a própria função téc­
nica se tenha modificado em algum sentido bas­
tante substancial.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 71

Para aquilatarmos, pois, o que é nossa téc­


nica, convém de plano destacar sua peculiar si­
lhueta sôbre o fundo de todo o passado técnico
do homem; em suma, convém desenhar, ainda
que seja sumarissimamente, as grandes mudan­
ças que a própria função técnica sofreu ou, dito
ainda com outras palavras, seria oportuno defi­
nir os grandes estádios na evolução da técnica.
Dêste modo, fazendo alguns cortes no passado
ou pulando alguns elos, êsse pretérito confuso
adquirirá perspectiva e movimento; deixar-nos-á
ver de onde, de que formas veio vindo e para
onde, a que formas foi chegando a técnica.
IX

OS ESTÁDIOS DA TÉCNICA

O assunto é difícil e eu vacilei não pouco


antes de decidir-me por um ou outro princípio
seguindo ao qual pudéssemos distinguir êsses es­
tádios. Evidentemente é preciso rejeitar o que
fora mais óbvio: segmentar a evolução fundan­
do-se no aparecimento de tal ou qual invento
que se considera muito importante e caracterís­
tico. Tudo o que venho dizendo neste ensaio
conspira à correção do êrro tópico que acredita
que o importante na técnica é êste ou aquêle
invento. Qual é o de maior calibre que se pos­
sa citar em comparação com a mole enorme da
técnica tôda numa época? O que esta seja em
seu modo geral é o verdadeiramente importante,
o que pode significar uma mudança ou avanço
substantivos. Não existe nenhum invento que
seja, em última instância, medido com as dimen­
sões gigantes da evolução integral. Ademais já
vimos como técnicas magníficas se perdem de­
pois de obtidas ou desaparecem definitivamente
— entende-se, até agora — ou tiveram que ser
redescobertas. De resto, não basta que se inven­
te alguma coisa em certa data e lugar para que
o invento represente sua verdadeira significação
técnica. A pólvora e a imprensa, dois dos deco-
74 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

brimentos que parecem mais importantes, exis­


tiam na China séculos antes sem que servissem
para nada apreciável. Somente no século XV e
na Europa, provàvelmente na Lombardia, se faz
da pólvora uma potência histórica, e na Alema­
nha, pela mesma época, a imprensa. Em vista
disso, quando diremos que se inventaram ambas
as técnicas? Evidentemente, somente integradas
no corpo geral da técnica fim-medieval e inspi­
radas pelo programa vital do tempo transpõem
o limiar da eficiência histórica. A pólvora como
arma de fogo e a imprensa são autênticamente
contemporâneas da bússula e do compasso: os
quatro, como logo se percebe, de um mesmo es­
tilo, bem característico desta hora entre gótica
e renascentista que culminará em Copérnico.
Notem os senhores que êsses quatro inventos
obtêm a união do homem com o distante — são
a técnica da actio in distants, que é o subsolo da
técnica atual. O canhão põe em contato ime­
diato aos inimigos longínquos; a bússola e o com­
passo, ao homem com o astro e os pontos car-
diais; a imprensa ao indivíduo solitário, ensimes-
mado, com essa periferia infinita — em espaço
e tempo — infinita no sentido de não finito —
que é a humanidade de possíveis leitores.
A meu entender, um princípio fundamental
para periodizar a evolução da técnica é atender
a própria relação entre o homem e sua técnica
ou, em outras palavras, à idéia que o homem foi
tendo de sua técnica, não desta ou doutra deter­
minadas, mas da função técnica em geral. Ve­
remos como êste princípio não somente esclare­
ce o passado, senão que de um golpe ilumina as
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 75

duas questões enunciadas por mim: a mudança


substantiva que engendrou nossa técnica atual
e por que ocupa esta na vida humana um papel
ímpar ao representado em nenhum outro tempo.
Partindo dêste princípio podemos distin­
guir três enormes estádios na evolução da téc­
nica:
1. ° A técnica do acaso.
2.° A técnica do artesão.
3. ° A técnica do técnico.
A técnica que chamo do acaso, porque o
acaso é nela o técnico, o que proporciona o in­
vento, é a técnica primitiva do homem pré e pro-
to-histórico e do atual selvagem — entende-se,
dos grupos menos avançados — como os Vedas
do Ceilão, os Semang de Borneo, os pigmeus de
Nova Guiné e do centro africano, os australianos,
etc.
Como se apresenta a técnica à mente dêste
homem primitivo? A resposta pode ser aqui so­
bremaneira taxativa: o homem primitivo ignora
sua própria técnica como tal técnica; não se
apercebe que entre suas capacidades existe uma
especialíssima que lhe permite reformar a natu­
reza no sentido de seus desejos.
Com efeito:
l.° O repertório de atos técnicos que usa
e desfruta o primitivo é sumamente escasso e não
chega a formar um corpo suficientemente volu­
moso para que possa destacar e diferenciar-se do
repertório de atos naturais que é em sua vida in-
comparàvelmente maior que aquêle. Isto equi­
76 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

vale a dizer que o primitivo é minimamente ho­


mem e quase todo ele puro animal. Os atos téc­
nicos, pois, se dispersam e submergem no con­
junto de seus atos naturais e se apresentam à
sua mente como pertencendo à sua vida não
técnica. O primitivo acha que pode fazer fogo
da mesma forma que acha que pode andar,
nadar, esmurrar, etc. E como os atos naturais
são um repertório fixo e dado de uma vez para
sempre, assim também seus atos técnicos. Des­
conhece por completo o caráter essencial da téc­
nica, que consiste em ser ela uma capacidade de
mudança e progresso, em princípio, ilimitados.
2. ° A singeleza e escassez dessa técnica
primigênia trazem consigo que sejam exercidos
seus atos por todos os membros da coletividade.
Todos fazem fogo, elaboram arcos e flechas, etc.
Isto é, que a técnica não parece destacada nem
sequer pelo fato que constituirá a segunda etapa
na evolução, ou seja, que somente certos homens
— os artesãos — sabem fazer determinadas coi­
sas . A única diferenciação que se produz bem
cedo estriba em que as mulheres se ocupam em
certas fainas técnicas e os varões em outras. Mas
isto não basta para isolar o fato técnico como
alguma coisa peculiar aos olhos do primitivo,
porque também o repertório de atos naturais é
um pouco diferente na mulher e no varão. Que
a mulher cultive o campo — foi a mulher a in-
ventora da técnica agrícola — lhe parece tão
natural como que de quando em quando se ocupe
em parir.
3. ° Mas também não adquire consciência
da técnica em seu momento mais característico
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 77

e delator — na invenção. O primitivo não sabe


que pode inventar, e porque não o sabe, seu in­
ventar não é um prévio e deliberado buscar so­
luções . Como antes sugeri, é antes a solução que
o busca, e não o contrário. No manejo constan­
te e indeliberado das coisas circundantes se pro­
duz de imediato, por puro acaso, uma situação
que dá um resultado nôvo e útil. Por exemplo,
atritando por diversão ou prurido um pau com
outro nasce o fogo. Então o primitivo tem uma
súbita visão de um nôvo nexo entre as coisas. O
pau, que era alguma coisa para brigar, para
apoiar-se, aparece como alguma coisa nova, como
o que produz fogo. O primitivo, assim temos que
imaginá-lo, fica aniquilado, porque sente como se
a natureza de improviso houvesse feito penetrar
nêle um de seus mistérios. Porque o fogo era
para êle um poder divinóide do mundo e lhe sus­
citava emoções religiosas. O nôvo fato, o pau que
faz fogo, se intumesce por uma e outra razão de
sentido mágico. Todas as técnicas primitivas têm
originàriamente um halo mágico e somente são
técnicas para aquêle homem pelo que têm de ma­
gia . Mais adiante veremos como a magia é, com
efeito, uma técnica, ainda que falhada e ilusória.
Êste homem, pois, não se sabe a si mesmo
como inventor de seus inventos. A invenção lhe
aparece como uma dimensão mais da natureza —
o poder que esta tem de proporcionar-lhe, ela a
êle, e não ao contrário, certos podêres. A pro­
dução de utensílios não lhe parece provir dêle,
como não provêem dêle suas mãos e suas pernas.
Não se sente homo faber. Encontra-se, portanto,
numa situação bastante parecida à que Kõhler
78 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

descreve quando o chimpanzé cai subitamente


em si de que um pau que tem. na mão pode ser­
vir para um certo fim antes insuspeitado. Kõhler
chama-a “impressão do isso!”, já que esta é a
expressão do homem quando de pronto se lhe faz
patente uma nova relação possível entre as coi­
sas. Tratar-se-ia, pois, da lei biológica chamada
trial and error, tentativa e êrro, aplicada à ordem
consciente. O infusório “tenta” inumeráveis pos­
turas e encontra uma delas que lhe produz efeitos
favoráveis. Então a fixa como hábito.
Mas voltemos à técnica primitiva. Dá-se,
pois, no homem ainda como natureza. A expres­
são mais própria dela seria dizer que verossimil-
mente as invenções do homem aurorai, produto
do puro acaso, obedecem ao cálculo de probabi­
lidades; isto é, que dado o número de combina­
ções espontâneas que são possíveis entre as coi­
sas corresponde a elas uma cifra de probabilida­
de para que se lhe apresentem um dia em forma
tal que êle veja nelas preformado um instru­
mento. ... . ;
X

A TÉCNICA COMO ARTESANATO. —


A TÉCNICA DO TÉCNICO

Passemos ao segundo estádio: a técnica do


artesão. É a técnica da velha Grécia, é a técnica
da Roma pré-imperial e da Idade Média. Eis
aqui em rapidíssima enumeração, alguns de seus
caracteres:
l.° O repertório de atos técnicos cresceu
enormemente. Não tanto, contudo, — é impor­
tante notá-lo — para que o súbito desapareci­
mento, crise ou obstáculo das técnicas principais
fizesse materialmente impossível a vida das cole­
tividades. Mais claro ainda: a diferença entre
a vida que leva o homem neste estádio com to­
das suas técnicas e a que levaria sem elas, não
é tão radical que impedisse, falhadas ou suspen­
sas aquelas, retrotrair-se a uma vida primitiva
ou quase primitiva. Mesmo a proporção entre o
não técnico e o técnico não é tal que o técnico se
tenha feito a base absoluta de sustentação .Não:
mesmo a base sôbre que o homem se apóia é o
natural — pelo menos, e isto é o importante,
assim o sente êle — e por isso, quando começam
as crises técnicas, não se apercebe que estas im­
possibilitarão a vida que leva; por isso não reage
a tempo e energicamente ante aquelas crises.
80 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Mas feita esta ressalva e comparando a


nova situação técnica que êste segundo estádio
representa com a primitiva, convém sublinhar o
contrário: o enorme crescimento dos atos técni­
cos . Não poucos dêstes se fizeram tão complica­
dos que não pode exercê-lo tôda e qualquer pes­
soa . É preciso que certos homens se encarre­
guem a fundo deles, dediquem a êles sua vida:
são os artesãos. Mas isto acarreta que o homem
adquira então uma consciência da técnica como
algo especial e aparte. Vê a atuação do artesão
— sapateiro, ferreiro, pedreiro, seleiro, etc. —
e entende a técnica sob a espécie ou figura dos
técnicos que são os artesãos; quero dizer: ainda
não sabe que existe técnica, mas já sabe que
existem técnicos-homens que possuem um reper­
tório peculiar de atividades que não são, sem
mais nem menos, as gerais e naturais em todo
homem. A luta tão moderna de Sócrates com
as pessoas de seu tempo começa por querer con­
vencê-las de que a técnica não é o técnico, mas
uma capacidade sui generis, abstrata, peculiarís-
sima, que não se confunde com êste homem de­
terminado ou com aquêle outro. Para êles, ao
contrário, a sapataria não é senão uma destreza
que possuem certos homens chamados sapatei­
ros . Essa destreza podería ser maior ou menor e
sofrer algumas pequenas variações, exatamente
como acontece com as destrezas naturais, o cor­
rer e o nadar, por exemplo; melhor ainda, como
o voar do pássaro e o correr do touro. Bem en­
tendido, êles sabem que a sapataria não é natu­
ral — quero dizer, não é animal — mas algu­
ma coisa exclusiva do homem, mas que o pos­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 81

sui como um dote fixo e dado de uma vez para


sempre. O que tem de somente humano é o que
tem de extranatural, mas o que tem de fixo e
limitado lhe dá um caráter de natureza — per­
tence, pois, a técnica à natureza do homem —
é um tesouro definido e sem ampliações subs­
tantivas possíveis. Assim como o homem se
encontra ao viver instalado no sistema rígido dos
movimentos de seu corpo, também se encontra
instalado, ademais, no sistema fixo das artes, que
é como se chamam em povos e épocas dêste es­
tádio as técnicas. O sentido próprio de techne,
em grego, é êsse.
2.° Tampouco o modo de aquisição das
técnicas favorece a clara consciência desta como
função genérica e ilimitada. Neste estádio se dá
ainda menos que no primitivo — ainda que de
pronto se pensaria o contrário — ocasião para
que o fato de inventar faça surgir na memória
a idéia clara, isolada, isenta, do que é a técnica
em verdade. Ao fim e ao cabo, os loucos inven­
tos primitivos, tão fundamentais, precisaram des­
tacar-se melodramàticamente sobre a cotidianei-
dade dos hábitos animais. Mas no artesanato
não se concebe a consciência do invento. O ar­
tesão tem que aprender em longo aprendizado —
é a época dos mestres e aprendizes — técnicas
que já estão elaboradas e vêm de uma insondá-
vel tradição. O artesão é inspirado pela norma
de encaixar-se nessa tradição como tal: está
voltado ao passado e não aberto a possíveis no­
vidades . Segue o uso constituído. Produzem-se,
contudo, modificações, melhoras, em virtude de
um deslocamento contínuo e por isso mesmo im-
82 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

perceptível; modificações, melhoras, que se apre­


sentam com o caráter não de inovações substan­
tivas, mas, antes, como variações de estilo nas
destrezas. Êstes estilos de tal ou qual mestre
se transmitem em forma de escolas; portanto,
com o caráter formal de tradição.
3.° Outra razão existe, e decisiva, para que
a idéia da técnica não se desprenda e se isole da
idéia do homem que a exerce, e é que contudo
o inventor somente chegou a produzir instru­
mentos e não máquinas. Esta distinção é essen-
Icial. A primeira máquina propriamente tal, e
com isso antecipo o terceiro estádio, é o tear de
Robert criado em 1825. É a primeira máquina,
porque é o primeiro instrumento que atua por si
mesmo e por si mesmo produz o objeto. Por isso
se chamou self-actor, e daí self atinas [fiação, fia-
dura] . A técnica deixa de ser o que até então
havia sido, manipulação, manobra, e se converte
sensu stricto em fabricação. No artesanato o
utensílio ou ferramenta é somente suplemento
do homem. Êste, portanto o homem com seus
atos “naturais”, continua sendo o ator principal.
Na máquina, ao contrário, passa o instrumento
para o primeiro plano e não é êle quem ajuda ao
homem, mas ao contrário: o homem é quem sim-'
plesmente ajuda e suplementa a máquina. Por
isso ela, ao trabalhar por si e desprender-se do
homem, fêz a êste cair intuitivamente em si de
que a técnica é uma função aparte do homem na­
tural, muito independente dêste e não prêsa aos
limites dêste. O que um homem com suas ativi­
dades fixas de animal pode fager, sabemo-lo de
antemão: seu horizonte éj limitado. Mas o que
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 83
r

| podem fazer as máquinas que o homem é capaz


[ de inventar é, em princípio, ilimitado.
f 4.° Mas ainda resta um traço do artesanato
que contribui profundamente para impedir a
consciência adequada da técnica e, como os tra­
ços anteriores, oculta o fato técnico em sua pu­
reza. E é que tôda técnica consiste em duas
coisas: uma, invenção de um plano de atividade,
de um método, procedimento — mechané, di­
ziam os gregos — e outra, execução dêsse plano.
Aquela é em estrito sentido a técnica; esta é so­
mente a operação e o agir. Em suma: existe o
: técnico e existe o operário que exercem na uni­
dade da faina técnica duas funções bem distin­
tas. Pois bem, o artesão é, ao mesmo tempo e
indivisamente, o técnico e o operário. E o que
mais se vê dêle é sua manobra e o que menos
se vê é sua “técnica” propriamente tal. A disso­
ciação do artesão em seus dois ingredientes, a
' separação básica entre o operário e o técnico, é
um dos sintomas principais do terceiro estádio.
Antecipamos alguns de seus caracteres. De­
nominamos-lhes “a técnica do técnico”. O homem
adquire a consciência suficientemente clara de
que possui uma certa capacidade por completo
distinta das rígidas, imutáveis, que integram sua
porção natural ou animal . Vê que a técnica não
é um acaso, como no estádio primitivo, nem um
certo tipo dado e limitado de homem — o ar­
tesão; que a técnica não é esta técnica nem
' aquela determinada e, portanto fixas, mas pre­
cisamente um manancial de atividades humanas,
em princípio, ilimitadas. Esta nova consciência
da técnica como tal coloca ao homem, pela pri­
84 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

meira vez, numa situação radicalmente distinta


da que jamais experimentou; de certo modo, anti-
tética. Porque até ela havia predominado na
idéia que o homem tinha de sua vida a cons­
ciência de tudo o que não podia fazer, do que
era incapaz de fazer; em suma, de sua debilida­
de e de sua limitação. Mas a idéia que hoje te­
mos da técnica — reavive agora cada um dos
senhores essa idéia que tem — nos coloca na
situação trágico-cômica — isto é, cômica, mas
também trágica — de que quando somos brin­
dados com a coisa mais extravagante nos sur­
preendemos atordoados porque em nossa última
sinceridade não nos atrevemos a assegurar que
essa extravagância — a viagem aos astros, por
exemplo — é impossível de realizar. Temos que,
assim, no momento de dizer isso chegasse um
jornal e nos comunicasse que, tendo-se conse­
guido proporcionar a um projétil uma velocidade
de saída superior à fôrça de gravidade, se havia
colocado um objeto terrestre nas imediações da
Lua. Isto é, que o homem está hoje, em seu
âmago, atordoado precisamente pela consciência
de sua principal ilimitação. * E talvez isso con­
tribui para que já não se saiba quem é — porque
ao achar-se, em princípio, capaz de ser tudo o
que é imaginável, já não sabe que é o que efe­
tivamente é. E para que não me esqueça ou não
venha a ter tempo de dizê-lo, mesmo quando per­
tence a outro capítulo, aproveito o conexo para
fazer observar aos senhores que a técnica, ao

(*) [Com os foguetes teleguiados da moderna astronáutica


parece que o “atordoamento” orteguiano se transformou em au­
têntica euforia. NT].
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 85

aparecer por um lado como capacidade, em prin­


cípio ilimitada, faz que ao homem, posto a viver
de fé na técnica e somente nela, fique com sua
vida vazia. Porque ser técnico e somente técnico
é poder ser tudo e, conseqüentemente, não ser
nada determinado. Com ser plenitude de possi­
bilidades, a técnica é mera forma ôca — como
a lógica mais formalista; é incapaz de deter­
minar o conteúdo da vida. Por isso estes anos em
que vivemos, os mais intensamente técnicos que
houve na história humana, são dos mais vazios.
XI

RELAÇÃO EM QUE O HOMEM E SUA


TÉCNICA SE ENCONTRAM HOJE. —
O TÉCNICO ANTIGO

Vimos como o estádio de evolução técnica


em que hoje nos achamos se caracteriza: l.°
Pelo fabuloso crescimento de atos e resultados
técnicos que integram a vida atual. Enquanto
na Idade Média, na época do artesão, a técnica
e a naturalidade do homem pareciam compen­
sar-se e a equação de condições em que a exis­
tência se apoiava lhe permitia beneficiar-se do
dom humano para adaptar o mundo ao homem,
mas sem que isso levasse a desnaturalizar-lhe,
hoje os supostos técnicos da vida superam gra­
vemente os naturais, de sorte tal que material­
mente o homem não pode viver sem a técnica a
que chegou. Isto não é um modo de dizer, mas
significa uma verdade literal. Num de meus
livros destaquei, como um dos dados que o ho­
mem contemporâneo deve manter mais vivazes
em sua mente, o fato seguinte: a Europa, desde
o século V até 1800 — portanto, em treze sé­
culos — não consegue chegar a mais de 180
milhões de habitantes. Pois bem, de 1800 à
hora presente [1933] portanto em pouco mais
de um século, atingiu a cifra de uns 500 milhões
88 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

de homens, sem contar os milhões que centrifu­


gou a emigração. Em um só século cresceu, pois,
três vêzes e meia. E é evidente que quaisquer
que sejam as causas adjacentes de tão prodigio­
so fenômeno — o fato de que hoje possam viver
bem três vêzes e meia mais de homens no mes­
mo espaço em que antes mal viviam três vêzes
e meia menos — a causa imediata e o suposto
menos eludível é a perfeição da técnica. Se es­
ta retrocedesse subitamente, centenas de milhões
de homens deixariam de existir.
A proliferação sem par da planta humana
acontecida nesse século é provàvelmente a ori­
gem de não poucos conflitos atuais. Fato tal so­
mente pedia acontecer quando o homem havia
chegado a interpor entre a natureza e êle uma
zona de pura criação técnica tão espêssa e pro­
funda que acabou por constituir uma sobrena-
tureza. O homem de hoje — não me refiro ao
indivíduo, mas à totalidade dos homens — não
pode escolher entre viver na natureza ou bene­
ficiar essa sobrenatureza. Está já irremediável­
mente prêso a esta e colocado nela como o ho­
mem primitivo em seu contorno natural. E isto
tem um risco dentre outros: como ao abrir os
olhos à existência se encontra o homem rodeado
de uma quantidade fabulosa de objetos e proce­
dimentos criados pela técnica que formam uma
primeira paisagem artifical tão espêssa que ocul­
ta a natureza primária atrás dêle, tenderá a acre­
ditar que, como esta, tudo aquilo está aí por si
mesmo: que o automóvel e a aspirina não são
coisas que é preciso fabricar, mas coisas, como
a pedra e a planta, que são dadas ao homem sem
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 89

prévio esforço dêste. Isto é, que pode chegar a


perder a consciência da técnica e das condições,
por exemplo, morais em que esta se produz, vol­
tando, como o primitivo, a não ver nelas senão
dons naturais que se têm desde logo e não re­
clamam esforçada manutenção. De modo que a
expansão prodigiosa da técnica a fêz primeiro
destacar-se sôbre o sóbrio repertório de nossas
atividades naturais e nos permitiu adquirir plena
consciência dela, mas depois, ao prosseguir nes­
ta fantástica progressão, seu crescimento amea­
ça com obnubilar essa consciência.

2. ° O outro traço que leva ao homem a


descobrir o caráter genuíno de sua própria téc­
nica foi, dissemos, o trânsito do mero instrumen­
to à máquina, isto é, ao mecanismo que atua por
si mesmo. A máquina abandona em última ins­
tância o homem, o artesão. Não é já o utensílio
que auxilia ao homem, mas ao contrário: o ho­
mem fica reduzido a auxiliar da máquina. Uma
fábrica é hoje um artefato independente ao qual
ajudam em alguns momentos uns poucos ho­
mens, cujo papel resulta modestíssimo.

3. ° Conseqüência disso foi que o técnico e


o operário, unidos no artesão, se separassem, e
ao ficar isolados se convertesse o técnico como
tal na expressão pura, vivente, da técnica como
tal: em suma, o engenheiro.
Hoje está a técnica diante de nossos olhos,
tal e como é, eximida, aparte e sem confundir-se
e ocultar-se no que não é ela. Por isso se dedi­
cam concretamente a ela certos homens, os téc­
90 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

nicos. Na Idade paleolítica ou na Idade Média,


o inventar não podia constituir um ofício porque
o homem ignorava seu próprio poder de inven­
ção . Hoje, pelo contrário, o técnico se dedica,
como à atividade mais normal e preestabelecida,
à faina de inventar. Ao contrário do primitivo,
antes de inventar sabe que pode inventar; isto
equivale a que antes de ter uma técnica tem a
técnica. Até êste ponto e mesmo no sentido qua­
se material é certo o que venho sustentando:
que as técnicas são somente concreções a poste­
riori da função geral técnica do homem. O téc­
nico não tem que esperar os acasos e submeter-
-se a cifras evanescentes de probabilidade, já que,
em princípio, está certo de chegar a descobrimen­
tos. Por quê?
Isto nos obriga a falar um pouco do tecni­
cismo da técnica.
Para alguns isso e somente isso é a técnica.
E, sem dúvida, não existe técnica sem tecnicis­
mo, mas não é somente isso. O tecnicismo é so­
mente o método intelectual que opera na criação
técnica. Sem êle não existe técnica, mas apenas
com êle também não existe. Já vimos que não
basta possuir uma faculdade para que, sem mais,
a exerçamos.
Eu desejaria falar demorada e amplamente
sobre o tecnicismo da técnica, tanto da atual
como da pretérita. É talvez o tema que pessoal­
mente me interessa mais. Mas teria sido um
êrro, a meu ver, fazer gravitar para êle todo êste
ensaio. Agora, em sua agonia, tenho de reduzir-
-me a dedicar-lhe uma brevíssima consideração:
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 91'

brevíssima, mas, segundo espero, suficientemente


clara.
É indiscutível que nem a técnica teria con­
seguido tão fabulosa expansão nestes últimos sé­
culos, nem ao instrumento houvera sucedido a
máquina, nem, conseqüentemente, o técnico ter-
-se-ia separado do operário se o tecnicismo não
houvesse prèviamente sofrido uma fundamental
transformação.
Com efeito, o tecnicismo moderno é com­
pletamente distinto daquele que atuou em tôdas
as técnicas pretéritas. Como exprimir em poucas
palavras a fundamental diferença? Talvez fazen­
do-nos esta outra pergunta: o técnico do passado,
quando o era propriamente, isto é, quando o in­
vento não surgia por puro acaso, porquanto era
deliberadamente buscado, que é o que fazia?
Ponhamos um exemplo esquemático, portanto,
exagerado, ainda que se trata de um fato histó­
rico e não imaginário. O arquiteto nilota neces­
sitava elevar os silhares de pedra às partes mais
altas da pirâmide de Cheops. O técnico egípcio
parte, evidentemente, do resultado que se pro­
põe: elevar o silhar. Para isso busca meios.
Para isso, eu disse; ou seja, busca meios para o
resultado — que a pedra fique no alto — to­
mando em bloco êsse resultado. Sua mente está
prisioneira da finalidade proposta tal e como é
proposta em sua integridade última e perfeita.
Tenderá, pois, a não buscar como meios senão
aquêles atos ou procedimentos que, em ser pos­
sível, produzam de um só golpe, com uma só
operação breve ou prolongada, mas de tipo único,
o resultado total. A unidade indiferenciada do
92 i JOSÉ ORTEGA Y GASSET

fim incita a buscar um método também único e


indiferenciado. Isto leva nos inícios da técnica
a que meio pelo qual se faz a coisa se pareça
muito à própria coisa que se faz. Assim na pirâ­
mide: para subir a pedra ao alto se adova à
pirâmide terra em forma de pirâmide; com base
mais larga e menor declive sôbre o qual se arras­
tam para a cúspide os silhares. Como êste prin­
cípio de similitude — similia sitnilibus — não é
aplicável em muitos casos, o técnico fica sem re­
gra alguma, sem método para passar mental­
mente do fim proposto ao meio adequado, e se
dedica empiricamente a provar isto e aquilo e o
acolá que vagamente se ofereça como congruen­
te ao propósito. Dentro, pois, do círculo que se
refere a êste propósito, recai na mesma atitude
do “inventor primitivo”.
XII

O TECNICISMO MODERNO. — OS
RELÓGIOS DE CARLOS V. — CIÊNCIA
E OFICINA. — O PRODÍGIO
DO PRESENTE

O tecnicismo da técnica moderna se dife­


rencia fundamentalmente daquele que inspirou
tôdas as anteriores. Surge nas mesmas datas que
a ciência física e é filho da mesma matriz histó­
rica. Vimos como até aqui o técnico, obcecado
pelo resultado final que é o apetecido, não se
sente livre diante dêle e busca meios que de um
golpe e em totalidade consiga produzi-lo. O
meio, eu disse, imita a sua finalidade.
No século XVI chega à maturidade um
nôvo modo de funcionar as cabeças que se ma­
nifesta ao mesmo tempo na técnica e na mais
pura teoria. Mais ainda, é característico desta
nova maneira de pensar que não possa dizer-se
onde começa, se na solução de problemas prá­
ticos ou na construção de meras idéias. Vinci foi
em ambas as ordens o precursor. É homem de
oficina, não somente e nem sequer principalmen­
te de oficina de pintura, mas de oficina mecâ­
nica . Passa a vida inventando “artifícios”.
Na carta onde solicita emprêgo de Ludovico
Moro adianta uma longa lista de invenções bé-
94 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

licas e hidráulicas. O mesmo que na época he-


lenística os grandes poliorcetas deram ensejo aos
grandes avanços da mecânica que terminam pro­
digiosamente no prodigioso Arquimedes, nestas
guerras de fins do século XV e começos do XVI
se prepara o crescimento decisivo do nôvo tec­
nicismo . Nota bene: umas e outras guerras eram
guerras falsas, quero dizer, não eram guerras de
povos, guerras férvidas, pelejas de sentimentos
inimigos, mas guerras de militares contra milita­
res, guerras frígidas, guerras de cabeça e punho,
não de víscera cordial. Por isso, guerras. . .
técnicas.
Isso que ocorria em 1540 era a moda no
mundo das “mecânicas”. Esta palavra, registre-
-se, não significa então a ciência que hoje absor­
veu êsse têrmo que ainda não existia; significa
as máquinas e a arte delas. Tal é o sentido que
tem ainda em 1600 para Galilei, pai da ciência
mecânica. Tôda gente quer ter aparelhos, gran­
des e pequenos, úteis ou simplesmente diverti­
dos . Nosso enorme Carlos, o V, o de Mühlberg,
quando se retira para Yuste, na mais ilustre
maré-baixa que registra a história, leva, consigo
em sua formidável ressaca para o nada somente
êstes dois elementos do mundo que abandona:
relógios e Juanelo Turriano. Êste era um fla­
mengo, verdadeiro mago dos inventos mecânicos,
aquêle que constrói tanto o artifício para subir
águas a Toledo — do qual ainda restam traços
— quanto um pássaro semovente que voa com
suas asas de metal pelo vasto espaço da estân­
cia onde Carlos, ausente da vida, repousa.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 95

Importa muito sublinhar êste fato de pri­


meira ordem: que a maravilha máxima da men­
te humana, a ciência física, nasce na técnica.
Galilei jovem não está na Universidade, mas nos
arsenais de Veneza, entre gruas e cabrestantes.
Ali se forma sua mente.
O nôvo tecnicismo; com efeito, procede exa­
tamente como procederá a nuova scienza. Não
vai, sem mais, da imagem do resultado que se
quer obter à busca de meios que o consigam.
Não. Detem-se diante do propósito e age sôbre
êle. Analisa-o. Isto é, decompõe o resultado to­
tal — que é o único primeiramente desejado —
nos resultados parciais de que surge, no processo
de sua gênese. Portanto, em suas “causas” ou fe­
nômenos ingredientes.
Exatamente isto é o que fará em sua ciên­
cia Galilei, que foi ao mesmo tempo, como se
sabe, um gigantesco “inventor”. O aristotélico
não decompunha o fenômeno natural, já que para
seu conjunto buscava-lhe uma causa também
conjunta, à modorra que produz a infusão de
amapolas uma virtus dormitiva. Galilei, quando
vê mover-se um corpo, faz exatamente o contrá­
rio: pergunta-se de que movimentos elementa­
res e, portanto, gerais, se compõe aquêle movi­
mento concreto. É isto o nôvo modo de operar
com o intelecto: “análise da natureza”.
Tal é a união inicial — e de raiz — entre
o nôvo tecnicismo e a ciência. União como se
vê nada externa, mas de idêntico método intelec­
tual. Isto dá à técnica moderna independência
e plena segurança em si mesma. Não é uma ins­
piração como mágica nem puro acaso, mas “mé­
96 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

todo”, caminho preestabelecido, firme, conscien­


te de seus fundamentos.
Grande lição! Convém que o intelectual
maneje as coisas, que esteja próximo delas; das
coisas materiais se é físico, das coisas humanas
se é historiador. Se os historiadores alemães do
século XIX houvessem sido mais homens polí­
ticos, ou mesmo mais “homens de mundo”, tal­
vez a história fôsse hoje já uma ciência e junto
a ela existisse uma técnica realmente eficaz para
atuar sôbre os grandes fenômenos coletivos, dian­
te dos quais, seja dito com vergonha, o atual ho­
mem se encontra como o paleolítico diante do
raio.
O chamado “espírito” é uma potência dema­
siado etérea que se perde no labirinto de si mes­
ma, de suas próprias infinitas possibilidades. É
demasiado fácil pensar! A mente em seu vôo qua­
se não encontra resistência. Por isso é tão im­
portante para o intelectual palpar objetos mate­
riais e aprender em seu trato com êles uma disci­
plina de contenção. Os corpos foram os mestres
do espírito, como o centauro Quirão foi o mestre
dos gregos. Sem as coisas que se vêem e se to­
cam, o presunçoso “espírito” não seria mais que
demência. O corpo é o agente policial e o jpeda-
gogo do espírito.
Daí a exemplaridade do pensamento físico
diante de todos os demais usos intelectuais. A
física, como notou Nicolai Hartmann, deve sua
ímpar virtude em ser, até agora, a única ciência
onde a verdade se estabelece mediante o acordo
de duas instâncias independentes que não se dei­
xam subornar yma pela outra. O puro pensar a
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 97

priori da mecânica racional e o puro olhar as coi­


sas com os olhos do rosto: análise e experimento.
Todos os criadores da nova ciência se de­
ram conta de sua consubstancialidade com a téc­
nica . Tanto Bacon como Galilei, Gilbert quanto
Descartes, Huygens quanto Hook ou Newton.
Desde então para cá o desenvolvimento —
em somente três séculos — foi fabuloso: tanto o
da teoria quanto o da técnica. Veja o leitor, no
livrinho de Allen Raymond, i>Qué es la tecno-
cracia?, traduzido nas edições da “Revista de
Occidente”, alguns dados sôbre o que hoje pode
fazer aquêle técnico. Por exemplo:
“O motor humano, numa jornada de oito
horas, é capaz de render trabalho, aproximada­
mente, na proporção de um décimo de cavalo.
Hoje em dia possuímos máquinas que trabalham
com 300 000 cavalos de potência, capazes de
funcionar durante vinte e quatro horas do dia
por muito tempo.
“A primeira máquina de conversão de ener­
gia distinta do mecanismo humano foi a toséa
máquina de vapor atmosférico de Newcomen, em
1712.A primeira máquina dessa marca desen­
volve 5,5 cavalos de fôrça, calculada pela
quantidade de água que eleva num tempo deter­
minado. Esta máquina atingiu seu máximo ta­
manho em 1780, com gigantescos cilindros e 16
a 20 percurso de êmbolo por minuto. Tinha uma
potência de 50 cavalos, ou seja, 500 vêzes a do
motor humano. Mas a eficiência da máquina
Newcomen era um décimo da máquina humana
e requeria 15,8 libras de carvão por cavalo. Tinha
98 JOSÉ ORTEGA Y GASSET I

outros defeitos, tanto em energia como na parte


mecânica, que impediram sua adoção geral.
“A introdução da turbina trouxe um nôvo
tipo de conversão de energia. Enquanto as pri­
meiras turbinas construídas possuíam menos de
700 cavalos e a primeira turbina que se instalou
numa estação central era de 5.000 cavalos, as
turbinas modernas chegam a atingir 300.000 ca­
valos, ou seja, 3.000.000 de vêzes o rendimento
de um ser humano em jornada de oito horas.
Calculada sobre a base de vinte e quatro horas
de funcionamento, a turbina tem nove milhões de
vêzes o rendimento do corpo humano. "
“A primeira turbina montada numa estação
central consumia 6,88 libras de carvão por qui- j
lowatt-hora em 1903 . E í
“Houve uma queda no consumo de carvão
de 6,88 libras para 0,84 libras num período de
30 anos, o que indica a variação do rendimento
ao efetuar o trabalho humano por meio das má­
quinas.
“O rendimento máximo de civilização no
antigo Egito nunca excedeu de 150.000 cavalos
em jornada de oito horas, supondo-lhe 3.000.000
de habitantes. Grécia, Roma, os pequenos Estados
e Impérios da Idade Média e as nações modernas 1
tiveram o mesmo índice de rendimento até a
época de James Watt. Mudanças cada vez mais
r rápidas ocorreram desde então. O progresso so- 4
> cíal, desconhecido até agora, avançou lentamente
/ no princípio, depois deu uma corrida, tomou vôo
^e avançou com a rapidez de um foguete. Série
após série de desenvolvimentos técnicos varreram
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 99

os processos industriais de cada década, desde


1800, para deixá-los reduzidos a métodos anti­
quados do passado.
“A primeira máquina, a de Newcomen, não
sobreviveu a seu século. A segunda mudança na
conversão de energia, a máquina de Watt, não
sobreviveu um século para ser deslocada por
uma nova máquina de maior rendimento. Dos
9.000.000 de vêzes pelas quais multiplicamos a
energia do corpo humano para obter as unida­
des modernas de energia mecânica atingidas, um
aumento de 8.766.000 vêzes ocorreu nos últimos
vinte e cinco anos.
“Sôbre diminuição de horas de trabalho hu­
mano desde 1840, notemos que, em aço, o grau
de diminuição foi o inverso da quarta potência
do tempo; em automóveis, ainda maior; em pro­
dução de lingotes de ferro, uma hora de trabalho
humano consegue hoje em dia o que seiscentas
horas do mesmo trabalho há cem anos. Em agri­
cultura, somente 1/3 000 de horas de trabalho
humano por unidade de produto se necessitam
comparadas com 1840. Na fabricação de lâm­
padas incandescentes, uma hora de trabalho hu­
mano realiza tanto como nove mil horas do mes­
mo trabalho em 1914.
“O grau de diminuição em horas de traba­
lho humano por unidade de produção, tomadas
em conjunto, é, pois, aproximadamente 1/3 000.
“Os fabricantes de tijolos, durante mais de
cinco mil anos, jamais conseguiram, em média,
mais de 450 tijolos por dia e por indivíduo, em
jornada de mais de dez horas.
100 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

p “Uma fábrica moderna de fabricação contí­


nua de tijolos produzirá 400 000 por dia e por
homem. ”
Não respondo pela exatidão destas cifras.
Os “tecnocratas” dos quais procedem são dema­
gogos e, portanto, gente sem exatidão, pouco es­
crupulosa e apressada. Mas, aquêle que tenha
êsse quadro numérico de caricatura e exagêro, não
faz senão pôr de manifesto um fundo verdadeiro
e inquestionável — a quase ilimitação de possi­
bilidades na técnica material contemporânea.
Mas a vida humana não é somente luta com
a matéria, é também luta do homem com sua
alma. Que qüadro pode a Euramérica opor a
êsse como repertório de técnicos da alma? Não
foi, nesta ordem, bem superior a Ásia profunda?
Desde há anos sonho com um possível curso em
que se mostrem frente a frente as técnicas do Oci­
dente e as técnicas da Ásia.
APÊNDICE I

VICISSITUDES NAS CIÊNCIAS


É interessante estudar a história das ciên­
cias sob a imagem de que cada uma delas fôsse
uma pessoa, ou, melhor, uma série de pessoas
que se sucedem no tempo, representando as ge­
rações. Sob êste suposto, aparece cada ciência
comportando-se como um indivíduo, dotada de
determinado caráter reagindo ante os demais
acontecimentos humanos, soberba e agressiva
num momento, humilde em outros. Vemo-la,
como o herói de uma biografia, atravessar vicis­
situdes inumeráveis, gozar de horas triunfantes,
sofrer desdens, ser rainha (refina scientiarum)
ou cair em situação ancilar (ancilla theologiae foi
a filosofia na Idade Média) . Cada ciência tem
seu individual destino, como se fôsse um homem.
Mas o mais curioso que cada história das ciências
nos mostraria é que também, como os homens,
apesar de ter cada uma seu destino individual,
dentro de cada época se comportam em certas or­
dens com perfeita homogeneidade. Por mais que
os contemporâneos discrepemos uns de outros,
parecemo-nos em muito mais coisas.
Assim, durante o século XIX, tôdas as ciên­
cias exerceram o mais atrevido imperialismo. Era
êste o modo vital que inspirou a tôda essa época
em tôdas as ordens. E como um povo pugnava
por imperar aos demais e uma arte às outras ar-
1Ó2 JÕSÉ ORTEGA Y GASSET

tes e uma classe social às restantes, quase não


houve ciência que não fizesse sua campanha im­
perialista, obstinando-se em capitanear as demais,
talvez reformá-las radicalmente. Durante uma
temporada tudo quis ser física; depois tudo quis
ser história; mais tarde tudo se converteu em
biologia; em seguida tôdas as ciências aspiraram a
ser matemáticas e gozar os benefícios do axioma-
tismo. As épocas de imperialismo são amadure­
cimentos de ambição e de inveja; o forte se faz
ambicioso e o fraco pratica essa forma rentrée e
estrangulada da ambição que é a inveja. Por
mais diferentes que essas duas paixões humanas
sejam, parecem-se numa coisa: sob seu impulso
o homem não vive absorto e submerso em seu
próprio destino, já que olha com uma pupila aos
alheios. Se sou ambicioso, não me contento com
ser o que sou, pois sinto a urgência de dominar
aos próximos; vivo, pois, em função dêles, preo­
cupado em ser mais que êles. Ao mesmo tempo
que vivo minha vida vivo a alheia; isto é, ves-
gueio. Parecidamente, o invejoso vive sofrendo
não ser o outro melhor dotado, e é, portanto, um
modo vesgo de existir. O século XIX foi o gran­
de século vesgo. E assim, cada ciência, ou para
dominar ou para invejar, andava fora de si, preo­
cupada das outras. A filosofia sentia desdouro
por não ser física, e o mesmo a biologia. A mate­
mática se envergonhava de não ser lógica, de
não poder constituir-se em pura dedução concei­
tuai, mas estar acorrentada como um humilde cão
à intuição. A teologia, ciência do divino, anelava
com voluptuoso afã ser manejada como as ciên­
cias humanas; queria ser racional e raciocinável.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 10$

como aqueles misteriosos filhos de Deus que apa­


recem no Gênese seduzidos pelas encantadoras
filhas dos homens. O mais característico do sé­
culo passado foi que nêle cada qual vivia empe­
nhado em ser outro do qual era. Ninguém acei­
tava seu destino. A idade do “fora de si”.
Nos trinta anos que correram do século XX,
as ciências se comportaram de modo bem diver­
so. Em muitas ocasiões já fiz notar o estranho
fenômeno. Sem pôr-se de acordo, e, mais ainda,
sem perceber umas e outras, tôdas foram coinci­
dindo numa resolução oposta à que obedeciam há
cinqüenta anos. Consiste esta simplesmente em
que cada ciência decidiu não preocupar-se das de­
mais nem para bem nem para mal. Sem propó­
sito de imperar sôbre as outras, sem desconten­
tamento de não possuir uma das vantagens, cada
qual se encaixou em si mesma e aceitou seu des­
tino; pelo menos se enlaçou sem reserva à sua
própria limitação, ao que meio século antes sentia
como seu defeito congênito.
Por exemplo, a física não pode chegar a
construir seus objetos por métodos puros, como
a matemática; sua exatidão não é de ordem pri-s
mária, já que é somente exatidão de aproxima­
ção; é a inexatidão dentro de certos limites. A
razão disso está em que entre a física e as coisas
que procura conhecer se interpõe inevitàvelmen-
te a necessidade da medida. O matemático cap­
tura seu objeto — o espaço, o número — ou
com o puro conceito, consoante uns, ou com a
intuição, consoante outros. Mas ambos os meios
de captura são imediatos ao conhecimento mate­
mático. O triângulo está, segundo êle é, íntegro
104 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

na definição axiomática ou intuitiva que o mate­


mático dá dêle. Mas o físico não tem a realida­
de dos astros nem das mudanças da matéria ime­
diatamente em sua intuição. As coisas da física
têm que ser capturadas com a mensuração. A
medida é para o físico o que a intuição (ou a
axiomática) é para o matemático.
Mas a medida é, por sua própria essência,
relatividade. Não há medida sem metro, e o me­
tro, como tal, não é uma coisa cósmica, não é
uma realidade, mas uma arbitrariedade. É uma
coisa humaníssima. Quando Protágoras dizia que
o homem é a medida de tôdas as coisas, dizia
algo superfetatório. Porque ser medida já é ser
algo humano. Deus não mede. Porque, afinal de
contas, nenhum ser faz nada que não tenha sen­
tido para êle, que não o faça para alguma coisa,
que, portanto, não lhe seja necessário. O homem
mede as coisas materiais porque não as possui,
porque não as tem em sua inteligência. Tem que
sair de si mesmo para conhecê-las. Por si mes­
mo é indigente, não contém em iseu interior men­
tal nem um ponto de realidade cósmica. Vai em
busca das coisas; mas estas se lhe escapam, são
incompenetráveis com sua mente. Em vista'de
que não pode apresar as coisas, se contenta com
tomar-lhe as medidas, que são os esquemas e fan­
tasmas daquelas. Sua mente — mens — é me­
dida — mensura (calembour do cardeal Cusa-
no), Deus não mede. Não há um deus dos pesos
e medidas. Deus é desmensurado (exuperantis-
simus) .
Em Galilei, fundador da física, se oculta
uma contradição. Por um lado define maravilho­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 105

samente a nova ciência que entre as mãos lhe


nasce: “Consiste — diz — em medir tudo o que
se pode medir e em conseguir que se possa medir
o que não se pode medir.” (Exemplo dêste último,
o calor. A física do calor consiste em inventar
o termômetro) . Hoje mais do que nunca a física
confirma essa definição batismal de Galilei e se
apercebe que não é senão cosmometria. Mas, por
outro lado, Galilei acredita que a física é mate­
mática; isto é, que os fenômenos naturais se com­
portam matemàticamente. Em todos êles inter-
vêem como ingredientes o espaço e o tempo. Ga­
lilei acredita de pés juntos que a especialidade
e a temporalidade das coisas são o espaço e o
tempo matemáticos, não o espaço e o tempo mé­
tricos .
Ora, esta é uma crença errônea, e é impor­
tante advertir que a essa crença errônea se deve
a instauração da física. Um exemplo curioso da
providencialidade do êrro. O homem, para acer­
tar, necessita pôr tudo, até sua ilustre capacidade
de equivocar-se. Como o caso é, em verdade,
exemplar, permita-se-me expô-lo.
A ciência física, que começa no século XVI,
não se deve a que certos homens, abandonando
os raciocínios puros, a especulação dos filósofos,
tivessem resolvido a observar os fatos — como
se os antigos e medievais, que não tiveram física, 3
não houvessem observado com den03cTa nature­
za e não a houvessem submetido a experiências.
Nem por um momento se apresenta Galilei como
o homem do experimento diante dos escolásticos.
Exatamente o contrário. Contra sua lei de inér­
cia são os escolásticos que fazem constar a expe­
106 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

riência. Galilei não pode demonstrar sua lei ,pelo


experimento. Acreditar que o característico das
ciências físicas é a observação ou experiência,
neste vulgar sentido do têrmo, é um padecimen-
to que hoje sofre somente algum Sr. Homais, far­
macêutico do êrmo provinciano.
Não a observação produziu a física, mas a
exigência da observação exata. E_gs&tidão e um
vocábulo que somente tem sentido próprio, au­
têntico, na matematicaTiynovo da nuova scienza
de Galilei foi a introdução formal da matemática
na observação, a quantificação radical dos fenô­
menos por sua radical mensuração; portanto, a
experiência matemática.
Mas esta aplicação que Galilei faz das leis
matemáticas aos fenômenos físicos houvera sido
impossível se Galilei não houvesse padecido o
preconceito de que os fenômenos físicos obede­
cem, sem dúvida alguma, às leis matemáticas;
por exemplo, se não houvesse acreditado de an­
temão e prèviamente a tôda experiência que na
natureza existem ângulos retos e que num triân­
gulo corporal a soma de seus ângulos é igual a
dois retos. Para a física, a questão era averiguar
a que outras leis especiais obedeciam os fenôme­
nos, além de obedecer, isto para êle era indiscutí­
vel, às leis geométricas. Por isso diz: “A verda­
de está escrita na natureza com letras matemá­
ticas.” A física procura ler as palavras, mas nem
sequer discute o abecedário. Por isso Galilei não
se ocupa de fazer experimentos com o fim de
demonstrar fisicamente se existe na natureza
ângulos retos. Quer isto dizer que para a física,
até há uns cinqüenta anos, era uma coisa indis­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 107

cutível e evidente que as leis geométricas por si


e a priori, são leis físicas; que os corpos obedecem
docilmente àquelas. A física, pois, começa não
por experimentar, mas, ao contrário, por não ex­
perimentar, por pre julgar a docilidade geométri­
ca da matéria.
Imagine-se, agora, que um físico se dissesse
radicalmente: “Para mim, como físico, não há
mais realidade que o resultado de minhas medi­
das.” Com isso não faria senão insistir na von­
tade de Galilei; mais conseqüente que êle, po­
rém, cairía em si de que então a realidade não
coincide com a matemática; ou melhor, que ne­
nhuma matemática rege, dá leis à realidade.
Nenhum dos espaços construídos pelas puras ge-
ometrías é o espaço real da física. A inércia não
é uma lei física, porque supõe o corpo destituído
de influxos dinâmicos, de variações apreciáveis
com a medição e, contudo, pretende dizer o que
ocorrerá a êsse corpo. Em Galilei, a retilineida-
de, que é um caráter puramente matemático, se
comporta como uma fôrça física, e isto não é
menor magia que o afã de mover-se circularmen-
te, suposto nos corpos por Aristóteles. A maté­
ria não tem preferências geométricas.
Tal atitude num físico indica que por um
lado não aceita o império da matemática sobre
sua ciência. Declara-a independente, autônoma.
Física é medir. Aceita o físico êste destino de
mundimensor. Contenta-se com êle. Encerra-se
com êle. Por outro lado, não pretende que êsse
destino seu reatue sobre a matemática; isto é,
não nega — como tentou Helmholtz e o posi­
tivismo — a independência métrica da matemá­
108 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

tica, não diz que as leis matemáticas não valham


para seus objetos imaginários. Ao contrário,
quanto mais irreal, menos experimental seja a
geometria, melhor lhe serve para sua faina: ser­
ve-lhe para ordenar suas medidas. A realidade
não se compõe de letras matemáticas — tal foi
o êrro de Galilei. O que ocorre é que o físico usa
a matemática como um instrumento mais para
sistematizar suas observações.
Esta é a atitude de Einstein. Do que re­
sulta que hoje, quando mais matemática é mais
complicada se emprega em física, é quando a
matemática tem menos intervenção substantiva
por si na física. De ser em rigor um princípio
da “realidade” física, passou a ser um nôvo ins­
trumento da “teoria” física, como o nômius e a
balança. Não manda, já que obedece.
A instauração da física se deve, pois, a um
êrro. Se Galilei houvesse contado com meios
métricos mais precisos e se houvesse encontrado
com que a matéria não é euclideana, a física não
houvesse podido nascer, porque o homem de
então não contava com u’a matemática à altura
de tais precisões de mensuração. Respeitemos
estas cegueiras, que permitem ao homem ver al­
guma coisa. Tudo o que somos positivamente o
somos graças a alguma limitação. E êste ser li­
mitados, êste ser carentes, é o que se chama des­
tino, vida. O que nos falta e nos oprime é o que
nos constitui e nos sustém. Portanto, aceitemos
o destino.

El Sol, de Madrid, 9 de março de 1930.


APÊNDICE II

CACOFONIA NA FÍSICA

I — Uma polêmica na região mais pacífica

O planêta se pôs nervoso e quase não há


países, grupos, homens que conservem plena se­
renidade . Isto revela, está claro, que a serenida­
de anterior não era profunda nem sólida. E isso
convida a que se vá pensando a sério sôbre quais
são as condições que permitiríam ao homem, pelo
menos ao homem do Ocidente, constituir-se uma
serenidade mais robusta e de mais firme emba­
samento. Porque a serenidade é o atributo pri­
mário do homem. Todos seus demais dons ou
não são especificamente humanos ou são fruto
nascido na gleba nobre de sua serenidade. Quan­
do o homem a perde dizemos que está “fora de
si”. E então rebrota nêle o animal. Porque “es­
tar fora de si”, escravo da inquietação de seu con­
torno, em perpétuo sobressalto e nervosismo, é
a característica do animal. Conseguir libertar-se
dêsse servilismo, deixar de ser um autômato que
o contorno mobiliza mecanicamente, desprender-
-se do que está ao redor e pôr-se em si mesmo,
ensimesmar-se, é o privilégio e a honra de nossa
espécie. Façamos, pois, propaganda da serenida­
de, supremo específico.
Porque cada dia a irritação aumenta e,
como uma viva maré, chega a alturas que pare-
110 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

ciam inatingíveis. “Em todo cimo há calma”, di­


zia Goethe. Pois bem, não há dúvida que um
dos cimos de nossa vida ocidental era a ciência
física e o grupo de homens que a cultivam, sobre­
tudo na Inglaterra. Mas eis aqui que também
os físicos inglêses se põem um pouco nervosos.
Desde há gerações, talvez o lugar mais tran-
qüilo da terra era o semanário científico que se
publica nas Ilhas Britânicas sob o título Nature.
Não é sintomático o fato de que também nesse
calmo periódico de naturalistas tenha havido ar­
ruaça?
No número de 8 de maio, o Dr. Herbert
Dingier publica um artigo encimado pelo título
“Nôvo aristotelismo”, Modern Aristotelianism.
O artigo é breve, breve como uma chicotada. O
autor o açoita sôbre os lombos dos maiores físi­
cos inglêses atuais, que são, talvez, afora Einstein,
os maiores do mundo. Eddington, Milne, Dirac,
todos recebem seu vobiscum. A resolução e o
laconismo com que em matéria tão grave, tão
complicada e. . . tão discutível procede o Dr.
Dingier deixam ver, apesar de todo o selí-control
britânico, que o inspirou o mau-humor. Entre
as linhas nos parece ver a cara do autor, a quem
não conhecemos, a cara de um homem que está
farto de coisas que lhe são antipáticas e contra
as quais arremete simplesmente porque lhe são
antipáticas. O Dr. Dingier chega a disparar, ao
que parece contra aquêles grandes físicos, a
acusação de “traidores”. Traidores a quem ou a
quê? É isto que veremos.
O artigo do irrascível Sr. Dingier atraiu
sôbre a revista um dilúvio de cartas. Tantas que
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA ill

o diretor achou-se na obrigação de dedicar no


número de 12 de junho um suplemento a esta
polêmica.
Desde há anos se publicam com progressi­
va freqüência livros de questões físicas que per­
tencem a um nôvo tipo de produção intelectual.
Nestes livros se determina a estrutura do “uni­
verso” e isto se faz a priori, em pura dedução ma­
temática . Partindo de certas hipóteses mínimas
a que se dá forma de puros axiomas, constitui-se
um corpo de doutrinas estritamente racional, na
qual aparecem as leis físicas conhecidas como
teoremas derivados daqueles axiomas e, o que é
mais supreendente ainda, obtém-se, por simples
inferência da lógica matemática, novas leis. O
experimento, a indução não aparecem em parte
alguma.
Ao Sr. Dingier lhe fazem mal as orações
dêste nôvo uso intelectual. Que é isso de falar
do “universo”? A ciência física nasce com Galilei
quando a ciência renuncia a falar do universo e
se limita a dizer-nos como são os “fenômenos
manifestos”. Para isso procura ater-se à obser­
vação sensível e evita confundir as leis com as
hipóteses de trabalho. Em suma, Galilei e as
gerações que levantaram o edifício da física clás­
sica abstiveram-se de raciocínios a priori. Partiam
dos fatos perceptíveis e depurando-os, generali­
zando a descrição dêles, chegavam aos “fatos ge­
rais” que são as leis físico-matemáticas. Falar
do “universo” e falar a priori eram, precisamente,
as duas feias coisas que vinham fazendo desde
séculos os aristotélicos contra os quais lutou tão
denodadamente Galilei. O aristotélico — ente
112 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

vago que, sem maiores precisões, conjura aqui o •.


Dr. Dingier — acredita que analisando e bara- I
lhando, sem outro instrumento que a lógica, l
nossos conceitos, isto é, as idéias que encontra­
mos em nossa mente, podemos averiguar o que
absolutamente ocorre no mundo, que, tomado
assim, como alguma coisa absoluta, teria direito
ao nome de universo. Isto vem a ser tirar-se o
mundo da cabeça. O aristotélico se comportava
assim porque pensava por antecipado, isto é,
acreditava que o mundo obedece às mesmas re­
gras que os pensamentos humanos. Consoante
o Dr. Dingier, o aristotelismo consiste em presu­
mir que o homem é a medida das coisas.
Ao contrário, Galilei apercebeu-se que a na­
tureza é independente do homem. Êste não tem
prèviamente garantia alguma de como se com­
porta a natureza. E, por isso, se quer averiguar
alguma coisa dela não tem outro remédio senão
observá-la e tem que contentar-se com o que esta
observação lhe descubra. Êste ofício de observar
com precisão os fatos sensíveis é a disciplina fí­
sica que já tem três séculos de ilustre exercício.
Como lema de seu artigo copia o Sr. Dingier
uma frase da primeira Charta fundacional —
1662 — da Sociedade Real de Londres, “cujos
estudos destinar-se-ão em promover o conheci­
mento das coisas naturais e as artes úteis por
meio de experimentos”. E em continuação, como
segundo lema de combate, cita estas palavras de
Galilei: “A natureza não se preocupa de se suas
abstrusas razões e métodos de operar são ou não
acessíveis à capacidade do homem.” Pois bem,
consoante nossp atrabiliário articulista, os físicos
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 113

atuais traíram a esta tricentenária consigna. De­


sertaram de sob a bandeira galileiana e passaram-
-se ao inimigo.
Nota-se que o Dr. Dingier é um inglês cem
por cento. Cômodamente instalado no empiris-
mo tradicional de sua nação, não pode suportar
que outro da mesma tribo e clã, outro britânico,
outro físico, Eddington, tenha a insolência de es­
crever coisas como estas: “Em todo o sistema das
leis físicas não há nenhuma que não possa ser
inequivocamente deduzida de considerações epis-
temológicas. Uma inteligência que não soubesse
qual é o sistema intelectual mediante o qual a
mente humana se interpreta a si mesma o con­
teúdo de sua experiência sensível, seria capaz de
adquirir todo o conhecimento físico que nós
adquirimos a fôrça de experimentos. ”
A impertinência contra o método experi­
mental não pode ser de mais alentado tomo.
Para saber o que, consoante nossa ciência, ocorre
neste mundo, não faz falta nem sequer ter esta­
do nêle; menos ainda, nem sequer ter ouvido falar
dêle. Basta com ter notícia da matemática e do
princípio de economia do pensamento, que é um
princípio doméstico, intra-humano e, por que não
dizê-lo, filosófico.
Para o Dr. Dingier tudo isto é puro aristo-
letismo, têrmo que sob sua pena se carrega de
uma significação quente e abafadiça como o des­
sas palavras confinadas nos bairros periféricos do
dicionário e que não se podem pronunciar em so­
ciedade. Aristotelismo é “a doutrina consoante
a qual a natureza é a manifestação visível de
114 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

princípios gerais que a mente humana conhece


sem necessidade da percepção sensível”.
Não podemos reprimir um leve movimento
de surprêsa ao ler isto, porque é de sobra conhe­
cido que Aristóteles e seus sequazes não admitem
nada no intelecto que não tenha estado antes nos
sentidos. Por outro lado, o fundador do pensa­
mento moderno, Descartes, luta acirradamente
com Aristóteles e com o escolasticismo porque são
sensualistas. A cruzada cartesiana vai contra o
conhecimento sensível, quer libertar o homem de
sua escravidão sensorial. E contudo há mais.
“Não é fácil — prossegue o Sr. Dingier —
enunciar numa frase a idéia que, pela primeira
vez no século XVII, produziu a 'ciência experi­
mental’ chamada hoje ciência, mas não cremos
cometer êrro apreciável se afirmarmos que o pri­
meiro passo no estudo da natureza deve ser a
observação e que não se devem admitir princí­
pios gerais que não sejam derivados da indução
a que se submete o observado.”
O caso é que desde há trezentos anos se
discute precisamente isso que o Sr. Dingier dá
como coisa livre de possível êrro. Discute-se,
desde os tempos do próprio Galilei, se a ciência
é observação ou alguma coisa mais. Porque as
objeções mais fortes que os aristotélicos opu­
nham a Galilei consistiam em satirizar-lhe por
não ajustar-se estritamente ao que se observa,
no experimento.
Pois fôra oportuno recordar ao articulista
que os aristotélicos, diante dos quais se achava
Galilei, eram predominantemente nominalistas,
gentes que não acreditavam — fazia já dois sé­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 115

culos — que a natureza fosse racional e que, por


isso mesmo, somente cabia dela um conhecimen­
to empírico, de observação, que se contentasse
com formar teorias onde “se salvassem as apa­
rências”, onde os “fenômenos manifestos” fôssem
de algum modo ordenados. E por isso em Paris
e em Pádua se faziam experimentos cem anos
antes que em Pádua estudasse Galilei.
Como se vê, basta com recolher nossas pri­
meiras reações ao artigo do Sr. Dingier para fa­
zer-nos pensar que êste enérgico paladino anda
um pouco aos trompaços com a história da ciên­
cia e propende a crer que as coisas são menos de­
sesperadamente complicadas e problemáticas do
que são. Pois com surpreendente ingenuidade e
como dando o dilema por resolvido de antemão,
procura cingir a questão para não deixar-nos fu­
gir, nesta fórmula: “A questão que agora está
diante de nós é se o íundamento da ciência deve
ser a observação ou a invenção. ”
Trezentos anos, Sr. Dingier, trezentos anos
faz que as pessoas da Europa ruminam essa ques­
tão para o senhor resolvida, está claro!
E, no entanto, não há um pouco de razão
ou, pelo menos, de compreensível motivo nesta
quixotesca saída do apaixonado doutor? Não há
alguma coisa na física atual que inquieta, que
preocupa pelo porvir desta ciência? Ninguém du­
vida de que êstes últimos vinte e cinco anos fo­
ram uma das grandes épocas da física e de que
esta é uma das grandes coisas que até agora pariu
a humanidade, uma das grandes etapas da his­
tória humana. E, contudo... La Nación, de
Buenos Aires, 19 de setembro de 1937.
116 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

II — Propaganda do born-humor. — Física


e guarda-roupa. — Ou filósofo ou sonâm­
bulo !

Não creio que a polêmica suscitada pelo Dr.


Herbert Dingier no semanário ingles Nature con- '
tribua para esclarecer as coisas. Inspirou-a o |
mau-humor. E o mau-humor é estéril. Todas j
as grandes épocas souberam sustentar-se sôbre
o abismo de miséria que é a existência, graças ao
esforço desportivo do sorriso. Por isso os gregos
pensavam que o ofício principal dos deuses era
sorrir e até rir. O rumor olímpico é, por excelên­
cia, a gargalhada. Se um povo nôvo como a Ar­
gentina resolvesse fazer do bom-humor uma ins­
tituição nacional a que toda a gente se subme­
tesse, seu triunfo na história estaria assegurado.
Mas não é fácil que o consiga. Porque tôdas as
potências do mal estão bastante interessadas em
instaurar por toda parte o mau-humor. Sabem
que um povo onde o mau-humor se estabeleça
é um povo destruído, agitado ao vento, pulveri­
zado. (Entre parênteses: que estupendo mo­
mento para os pensadores de um povo jovem!
Livres de todo preconceito, poder escumar os mi­
lênios da experiência humana e ensinar a seu
povo os mandamentos da alta higiene histórica!
São tão evidentes, tão simples de ver, tão claros
de dizer! O mal é que os povos não podem aten­
der êsses evidentes imperativos senão num certo
e preciso momento, passado o qual se tornam ir-
remediàvelmente surdos. Pois bem, para a Ar­
gentina o momento é êste, êste de agora! Mas
eu não tenho por que meter-me em assuntos tais.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 117

A azáfama cotidiana me espanta; tenho que pros­


seguir dando voltas em tôrno dela, hoje como
ontem, amanhã como hoje. Sorrimos um artigo
mais!). í
É indubitável, dizia eu, que o mesentério da
física necessita uma boa limpeza. O esforço gi­
gantesco que fêz no último quarto de século dei­
xou a máquina um pouco afrouxada. O cresci­
mento de seu império cósmico foi — em preci­
são e em extensão — fabuloso. Por isso convém
um alto na caminhada e um tratamento de sere­
nidade .
Desde há anos, nas revistas mais técnicas
desta ciência, aparecem com freqüência artigos
em que se manifesta a mais justificada inquieta­
ção. Começa a não ver-se clara a relação entre
a doutrina a que se chegou e a realidade. De um
lado estão os grandes fatos observados, de outro
o aparato hipertênue das teorias, teias de aranha
sutilíssimas, como espectrais, reduzidas quase a
puras abstrações de simbolismo matemático. A
correspondência entre estas teorias e aquêles
fatos, entre o corpo das observações e o corpo
dos conceitos ou doutrinas se fêz equívoca. Há,
sem dúvida, correspondência, mas não se sabe
bem em que consiste. Às vêzes parece como se
o que a teoria física atual diz não tivesse nada
que ver com as “coisas”.
Para que o leitor profano se represente de
algum modo a questão, imagine que alguém lhe
apresenta num papel uma série de operações
aritméticas. Nesse papel não há senão números
e signos matemáticos. Ali não se diz se se trata
de contar libras esterlinas ou cadeiras ou cisnes.
118 JOSÉ ORTÉGA Y GASSET

Suponhamos que o leitor entende essas contas


no que têm de puras contas. Mas eis que, aqui
mesmo, então, alguém acrescenta: isso que acaba
o senhor de entender é a realidade das coisas, a
natureza, o mundo, o “universo”. Quanto melhor
haja entendido aquêles cálculos aritméticos, me­
nos poderá entender que eles sejam a realidade,
isto é, que de algum modo a representem, a des­
cubram, a enunciem ou declarem. Sua impres­
são era precisamente que ali, naquele papel, não
se falava absolutamente de coisas reais. Sentirá,
pois, estranheza, a mesma que, em nossa adoles­
cência, sentíamos quando pela primeira vez ou­
víamos falar dos pitagóricos, de uns homens es­
tranhos, consoante os quais as coisas são núme­
ros . Os espectadores deixam no guarda-roupa do
teatro seus sobretudos e recebem, em troca, fichas
onde estão inscritos números. A cada ficha cor­
responde um sobretudo e um lugar do' guarda-
roupa; ao conjunto das fichas corresponde o con­
junto ordenado dos sobretudos e de seus lugares.
Graças a isso pode qualquer um com nossa ficha
encontrar nosso sobretudo, ainda que jamais o te­
nha visto. Isto é, que as fichas nos fazem saber
não pouco acêrca dos sobretudos. E, contudo,
uma ficha não se parece em coisa alguma a um
sobretudo. Eis aqui como pode haver correspon­
dência sem haver semelhança. O conjunto das
fichas é a teoria física; o conjunto dos sobretudos
é a natureza. Com uma diferença: as fichas são,
ao fim e ao cabo, coisas tangíveis e visíveis como
os sobretudos. Suprimam-se as fichas, ficam so­
mente os entes ideais que são os números e suas
combinações, e isto é o que constitui a teoria fí­
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 119

sica. Portanto, alguma coisa que se parece à na­


tureza muito menos que uma ficha a um sobre­
tudo e que os cavalos às ostras.
A esta situação chegou a física atual. Uma
situação bastante paradoxal sem ser irritante. É
ela para o homem ocidental a ciência por exce­
lência, o orgulho de tôda sua civilização. Mas
ciência parece querer dizer conhecimento, e co­
nhecimento parece significar presença em nossa
mente do que as coisas são. Mas a ciência física
não nos põe na cabeça senão fichas menos ainda,
números. Das próprias coisas não passa nada ou
passa pouco mais que nada para nossa mente.
Justifica-se prosseguir chamando a isso conheci­
mento? Não se poderia, com igual fundamento,
chamar-lhe guarda-roupa?
Não vou eu dirimir a questão. Mas é o caso
que os próprios físicos não puderam sequer per­
ceber o estranho caráter que, enquanto conheci­
mento, oferece sua ciência. E alguns dêles re­
solveram declarar que a física é um “conhecimen­
to simbólico”, o que tem dos sobretudos quem
jamais os viu, mas possui o conjunto das fichas
e sabe que a cada uma destas corresponde um da­
queles e o lugar do cabide em que está pendura­
do. Ao que não se resolveram nem êstes nem
os outros físicos é a refletir enèrgicamente sôbre
se um conhecimento simbólico é, a sério, conhe­
cimento. Por que há-de ser a física um conhe­
cimento? Porventura é o conhecimento uma
coisa tão clara que pareça justificado o empenho
das “ciências” em ser tidas por conhecimento?
Por que não há-de ser a física, e em geral as
“ciências”, outra coisa: por exemplo, técnica e
120 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

nada mais, técnica e nada menos? Depois de tudo,


se alguém dissesse que o conhecimento foi so­
mente uma tentativa e uma ilusão dos homens
da Grécia, que terminou em glorioso fracasso,
diria alguma coisa menos extravagante e muito
mais profunda do que parece, ainda que talvez
não seja' afinal de contas verdadeira.
Veja-se, pois, como na questão formulada
pelo Dr. Dingier fermentam outras muito mais
graves e mais radicais. Mas o Dr. Dingier e a
maioria de suas vítimas mantêm a polêmica
dentro da órbita gremial. Não querem embarcar-
se em problemas filosóficos. Fazem bem, que
diabo! A física serve para muitas coisas, enquan­
to a filosofia não serve para nada. Já o disse,
registre-se, um filósofo, o padrão dos filósofos,
Aristóteles. Precisamente por isso sou eu filó­
sofo: porque não serve para nada sê-lo. A no­
tória “inutilidade” da filosofia é talvez o sintoma
mais favorável para que vejamos nela o verda­
deiro conhecimento. Uma coisa que serve é uma
coisa que serve para outra, e nessa medida é ser­
vil. A filosofia, que é a vida autêntica, a vida
possuindo-se a si mesma, não é útil para nada
alheio a ela própria. Nela, o homem é somente
servo de si mesmo, o que quer dizer que somente
nela o homem é senhor de si mesmo. Mas, claro
está, a coisa não tem importância. Fica o leitor
em inteira liberdade de escolher entre estas duas
coisas: ou ser filósofo ou ser sonâmbulo. Os fí­
sicos, em geral, comportam-se nictòbatamente
dentro de sua física, que é o sonho egrégio, a mo-
dorra genial do Ocidente.
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 121

Contudo, alguns dêstes homens formidáveis


que irritaram o excelente Dr. Dingier, homens
como Eddington, como Milne, Wittrow, Wheele,
Robertson, isto é, a extrema vanguarda da físi­
ca no dia em que escrevo, encontraram-se com
a física que estavam amassando com suas pulcras
mãos matemáticas se lhes fermentava e se lhes
convertia em alguma coisa assim como filosofia.
Lembrem-se as palavras da resposta que dá
Eddington a seu agressor e que citei no artigo
anterior: “Não há nada em todo o sistema das
leis físicas que não possa ser deduzido inequivo­
camente de considerações epistemológicas.” É
esta uma das coisas que puseram mais frenético
ao Dr. Dingier. Considerações epistemológicas!
Mas, isso é filosofia! Eddington e congêneres en­
tregam, manietada, a física à filosofia! Traição!
Porque, como disse eu, soaram palavras
fortes nesta rixa de cientistas. Dingier usa lite­
ralmente a palavra “traidores”. Logo veremos
com que gentil graça Milne quase chama a Din­
gier “cigano”.
Prossigamos assistindo à pendência com
bom-humor, mas ao mesmo tempo com sincero
fervor. Não pode ser-nos indiferente o que acon­
tece à física. Seja ou não conhecimento, seja-o
num ou noutro sentido, o indiscutível é que cons­
titui a maravilha do Ocidente. Se é ela questio­
nável, o é até a raiz de tôda a cultura ocidental.
Sem a rigorosa disciplina secularmente depurada
e sustentada pelo pensamento físico, a mente
européia perdería todas suas arestas específicas
e retrogradaria ao confuso e aflitivo pensar do
asiático ou do africano. A própria filosofia, que
122 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

necessita tão poucas coisas, carece, sem remissão,


da física para poder ser o contrário dela, que é
sua missão.

La Nación, de Buenos Aires, 10 de outubro


de 1937.

III — Conversão da física em geometria. —


Observação ou invenção — Grécia ou Egito

Trata-se, aqui, de uma questão importan­


te: a física, nossa ciência exemplar, encontra-se
a ponto de mudar subitamente de aspecto e de
caráter. O leitor, por mais distanciado que es­
teja dos estudos científicos, tem obrigação de es­
forçar-se em conhecer pelo menos suas grandes
vicissitudes. Está claro que o “leitor”, acostuma­
do como está a que se dirijam a êle demagogos
— boa porção dos que hoje escrevem o são numa
ou noutra medida — acredita que somente têm
direitos, que êle não está obrigado a nada. Mas,
convém que vá mudando de opinião, e sobretu­
do de comportamento, sob pena de passar bem
mal nos anos porvindouros sôbre nossa espécie.
Milne é o físico contra o qual o Dr. Dingier
dirigiu seu mais violento ataque. Havia aquêle
dito que “se o universo efetivo não segue os por­
menores da construção matemática, a coisa não
tem importância”. Isto sublevou o Dr. Dingier.
De que falam então êstes novos físicos — per-
gunta-se o Sr. Dingier — se pouco se importam
que as coisas coincidam ou não com suas elo-
cubrações? A estas extravagâncias leva o “aprio-
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 123

rismo”, o aristotelismo. Galilei representa dian­


te de Aristóteles a não crença em que a razão
da natureza seja a mesma do homem, e a forço-
sidade conseqüente em que êste se acha de bus­
car nas “observações sensíveis” os princípios que
aquela deixa entrever. “A história — prossegue
Dingier com certa solenidade patética — mostra
poucos exemplos de lealdade a um legado com­
parável com a das gerações de trabalhadores cien­
tíficos que seguiram.” Por faltar a essa lealdade
cai agora a física numa estranha “combinação de
paralisia da razão com intoxicação da fantasia”.
Vejamos o que há de verdade em tudo isto.
Milne, com uma admirável serenidade de jovem
atleta matemático, responde num artigo escrito
como somente sabem escrever os matemáticos.
Os demais escritores podemos, com esforço, che­
gar a uma clareza plástica, quase tangível. Mas
há outra clareza mais essencial e oposta a essa,
uma clareza feita de diafanidade e transparência,
como ultraterrena, em que as próprias coisas de­
saparecem e fica somente no ar limpo, alciônico,
sua pura voz. Parece-nos, lendo a êstes autores,
que as coisas, sem intermediário, sem turgimão,
se declaram por si mesmas, dizem-se-nos.
Milne se propõe orientar-nos sôbre o uso
intelectual, o procedimento que em suas inves­
tigações seguiu.
A física padece uma dualidade que é irracio­
nal . De um lado nos diz que é o que existe, cons­
trói uma realidade pura — chame-se-a átomo
ou como se queira. Depois, e à parte, investiga
experimentalmente como se comporta essa reali­
124 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

dade. É evidente que a física não será uma disci­


plina suficientemente racional enquanto estas
duas partes dela não se unam; isto é, enquanto
não se consegue derivar racionalmente o com­
portamento das coisas de sua realidade ou es­
trutura .
É isto o que procuraram, e em boa parte
conseguiram, fazer Milne, e com êle Wittrow,
Wheele, Robertson, etc.
Milne se propõe aplicar da maneira mais
radical possível o princípio da economia do pen­
samento, que é um princípio filosófico, pelo
menos epistemológico e não físico. A êste fim
tentará derivar tôdas as leis físicas de um mini­
mum de admissões consistentes na descrição mí­
nima do que existe. Estas admissões são duas:
a homogeneidade do. Universo — em distribui­
ção e movimento — e a existência de alguém
que perceba a relação de antes e depois; em
suma, o movimento. Estas admissões ou supos­
tos são constituídos em axiomas, no sentido ri­
goroso que êste têrmo tem hoje na matemática
pura. Desses axiomas Milne deriva teoremas
sem empregar notícia alguma experimental, eli­
minando tôdas as leis quantitativas (obtidas por
observação) da física. A teoria da relatividade
lhe induziu a esta tentativa. Pois bem, diz
Milne: “É uma coisa surpreendente que a elimi­
nação de todo auxílio empírico, incluindo todo
apoio em leis quantitativas da física, possa ser
levada tão longe como, com efeito, acontece, não
obstante a imperfeição do estado presente da te­
oria.” Ninguém pôde surpreender-se mais que o
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 125

presente escritor. Não se trata, pois de uma fé


a priori que convide à burla, mas que é preciso
reconhecer como um fato de experiência que
quando eliminamos todos êsses apoios empíricos
emergem diante de nós regularidades (como
conseqüências lógicas das hipóteses), as quais
têm o mesmo papel que as autênticas leis da
natureza, cuja vigência está garantida pela obser­
vação. Ora, estas regularidades têm a dignida­
de de teoremas, e a estrutura ou corpo lógico re­
sultante tem a dignidade (ou te-la-ia se tivesse
chegado à perfeição) de uma abstrada geometria
baseada em axiomas. Nela derivamos racional­
mente do que existe as leis de seu comportamen­
to. Graças a isso deixam estas de ser, como até
aqui, costumes contingentes que observamos nas
coisas e se convertem em conseqüências inexorá­
veis de sua própria constituição ou estrutura.
Agora são de verdade leis da natureza e não ca­
prichos dela.
Ou seja — e é isto a grandeza do fato —
que a física está a ponto de converter-se numa
geometria que entre seus vários axiomas inclui
um onde se antecipa a noção de movimento. O
qual — passando agora novamente de clareza
matemática à clareza plástica — significa que
um homem encerrado em sua casa, sem apare-
Ihamento, sem matérias observáveis, por simples
combinação de idéias, pode em poucas semanas
redescobrir o que exigiu empregar trezentos anos
e trinta mil laboratórios. Com êste agravante:
que não há razão para que esta nova física-geo-
metria não prossiga suas deduções e verifique
inumeráveis leis novas.
126 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

A dignidade ou caráter matemático desta* in­


vestigação não permite, está claro, garantir que as
coisas se comportam consoante esses teoremas.
A observação será quem decida se, com efeito, é
assim. Mas é evidente que o papel desta fica,
em princípio, invertido. Consoante Dingier, so­
mente a observação nos permite descobrir as leis
da natureza. Consoante Milne, pode-se chegar
a elas a priori e a observação reduz seu papel a
confirmá-las.

Daí que, mesmo no caso de que os teoremas


achados por êsse método não encontrassem cum­
primento dos fenômenos observáveis, o corpo de
doutrina obtido prosseguirá tendo seu valor in­
dependente como o têm as geometrias de espa­
ços inobserváveis. Houvera sido um crime de
lesa-ciência esmagar as tentativas de criar geo­
metrias não-euclideanas com o pretêxto de que
os meios experimentais de há setenta anos não
permitiam decidir se eram aplicáveis ou não. A
teoria da relatividade, auxiliada por meios de ob­
servação mais precisos, mostrou que o corpo de
puros teoremas chamado geometria euclideana
não se cumpre nos fenômenos da natureza e que,
ao contrário, se cumprem os teoremas da geome­
tria de Riemann. O mesmo acontecerá agora. É
preciso criar uma série de puras físicas-geometrias
partindo de axiomáticas diferentes.
Recorde-se que uma das coisas que con­
traíam o diafragma do Dr. Dingier era ouvir a
êstes novos físicos falar do “universo”. O físico
não pode falar senão da porção de realidade que
está ao alcance de sua observação. O têrmo
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 127

“universo” implica que transcendemos os limites


do observável e que nos permitimos supor dog-
màticamente como é a porção de realidade inob-
servável. É isto o que faz Milne e com êle tôda
física-geometria ao antecipar, em forma axiomá-
tica, que o “universo” é homogêneo e isótropo.
Do ponto de vista da física tradicional tem
razão o Dr. Dingier neste extremo. Mas Milne
responderá a isto com insuperável clareza: em
primeiro lugar, o Universo de que eu falo não é
é o Universo real, mas o definido por mim no
conjunto de meus axiomas. A êle me atenho e
de suas características imaginárias deduzo meus
teoremas. Depois comparo êstes com as leis da
física experimental, que ela, sim, fala do real, e
vejo que coincidem. Somente então, e agora sim,
adquire meu Universo o caráter de real, e não
imaginário. Em segundo lugar, eu parto axio-
màticamente da homogeneidade do Universo pa­
ra construir um corpo de conseqüências lógicas,
isto é, para ver a que resultados racionais, a que
série de puros teoremas leva essa suposição. Em
minha teoria, a homogeneidade do Universo re­
presenta exatamente o mesmo papel que o axio­
ma do plano na geometria de Euclides. Mas nem
que dizer tem que não somente podem, senão
que devem construir-se outras físicas-geometrias
partindo de outros supostos. Eu acreditei que
devia começar pelo caso mais simples: o de um
Universo homogêneo. Mas depois conviría ten­
tar, por exemplo, êste outro: um Universo em
que ao redor de um núcleo homogêneo existarn
aros de heterogensidade crescente.
128 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Como se vê, a mudança é profunda. Agora


se trata de chegar aos fatos, não por meio da ob­
servação, mas ao contrário, por meio de constru­
ções imaginárias. Dito em outros têrmos: a física
consistiría na criação de um repertório de mun­
dos ideais, puramente inventados. Cada um dês-
ses mundos, tomado em sua totalidade, é o que é
preciso comparar com o conjunto dos fatos ob­
servados. Aquêle mundo ideal deverá ser con­
siderado como o real, em que êstes fatos obser­
vados encontram melhor acomodação.
Que responderemos, pois, ao dilema em que
o Sr. Dingier coloca a questão, ao dilema de se
o fundamento da ciência deve ser a observação
ou a invenção?

Responderemos, como já fizemos, que isso


é o que se discute, não agora, mas desde há tre­
zentos anos; que êsse dilema não é, como preten­
de ser, uma formulação inequívoca do proble­
ma . A mera observação não funda a ciência. O
Dr. Dingier tem uma idéia bastante ridícula da
história do pensamento se acredita que os ho­
mens não observaram antes de Galilei e se acre­
dita que a inovação genial dêste foi observar.
A observação, a de Galilei como a do homem
paleolítico, é impossível sem invenção prévia.
Os fatos não nos dizem nada espontâneamente.
Esperam que nós lhes dirijamos perguntas dês­
te tipo: Sois A ou sois B? Mas A e B são imagi­
nações nossas, invenções.

Depois de tudo, ocorre à física o mesmo que


já âçpnteceu à geometria. Os egípcios tinham
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 129

uma geometria que era empírica. Os gregos fi­


zeram dessa geometria empírica uma disciplina
racional. Na física há também um aspecto gre­
go e um aspecto egípcio. O Sr. Dingier fica com
o aspecto egyptian, que em inglês soa a alguma
coisa parecida com “cigano”.

La Nación, de Buenos Aires, 26 de outubro


de 1937.

IV

Destas considerações sobre a polêmica


aberta na Inglaterra em tôrno das investigações
físicas mais características da hora atual se de­
preende, pelo menos, que esta grande ciência
atravessa uma etapa perigosa. Perigosa porque
caminha sem clareza suficiente sôbre si mesma.
Não se sabe bem qual é o caráter de conheci­
mento próprio à física. Não se sabe bem qual é
o papel da experiência e o do puro raciocínio na
faina de sua edificação. E nem sequer se sabe
bem o que seus grandes iniciadores dos séculos
XVI e XVII — Kepler, Galilei, Newton — pre­
tenderam fazer.
Porque dar como coisa patente e indiscutí­
vel, consoante intenta o Dr. Dingier, que a obra
de Galilei consiste em desprezar os raciocínios
a priori, como fundamento da física, e partir, sem
mais, da observação, é uma arbitrariedade do
enérgico doutor.
Conceda-me o leitor a satisfação de ler
agora o que, em 1927, escrevia eu como nota a
130 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

meu ensaio “La filosofia de la historia de Hegel


y la historiologia” ( * ):
“Nada houvera surpreendido tanto a Ga­
lilei, Descartes e demais instauradores da nuova
scienza como saber que três séculos mais tarde
seriam considerados como os descobridores e en­
tusiastas do ‘experimento’. Ao estatuir Galilei
a lei do plano inclinado, foram os escolásticos
aqueles que se faziam fortes no experimento
contra aquela lei. Porque, com efeito, os fenô­
menos contradizem a fórmula de Galilei. Ê êste
um bom exemplo para entender o que significa
a ‘análise da natureza’ diante da simples obser­
vação dos fenômenos. O que observamos no pla­
no inclinado é sempre um desvio da lei da que­
da dos corpos, não somente no sentido de que
nossas medidas dão apenas valores aproximados
àquela, senão que o fato tal e como se apresenta
não é uma queda. Ao interpretá-lo como uma
queda, Galilei começa por negar o dado sensível,
se volta contra o fenômeno e opõe a êle um 'fato
imaginário’, que é a lei: o puro cair no puro
vazio de um corpo sôbre outro. Isto lhe permite
decompor (analisar) o fenômeno, medir o des­
vio entre êste e o comportamento ideal de dois
corpos imaginários. Esta parte do fenômeno,
que é desvio da lei da queda, é, por sua vez, in­
terpretada imaginàriamente como choque com
o vento e roçar do corpo sôbre o plano inclinado,
que são outros dois fatos imaginários, outras duas
leis. Depois pode recompor-se o fenômeno, o

(*) Veja-se o livro Goethe desde dentro, Madrid, 1933.


[Tomo IV das Obras Completas],
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 131

fato sensível como intersecção dessas várias leis,


como combinação de vários fatos imaginários.
“O que interessa a Galilei não é, pois, adap­
tar suas idéias aos fenômenos, mas, ao contrá­
rio, adaptar os fenômenos mediante uma inter­
pretação a certas idéias rigorosas e, a priori, in­
dependentes do experimento; em suma, a for­
mas matemáticas. Esta era sua inovação; portan­
to, tudo o contrário do que vulgarmente se acre­
ditava há cinqüenta anos. Não observar, mas
construir a priori, matemàticamente, é o especí­
fico do galileismo. Por isso dizia para diferen­
ciar seu método: 'Giudicare, signore Rocco, qual
dei due modi di filosofare cammini piu a segno,
o il vostro fisico puro e simplice bene, o il mio
condito con qualche spruzzo di matematica’
(Opere, II, 329) .
“Com clareza quase ofensiva aparece êste
espírito num lugar de Toscanelli: ‘Che i prin-
cipii delia dottrina de motu siano veri o falsi a
me importa poquíssimo. Poichè se non son veri,
fingasi che sian veri conforme habbiamo suppos-
to, e poi prendasi tutte le altre specolazioni de-
rivate da essi principii non come cosi miste, ma
pure geometrich. Io fingo o suppongo que qual-
ch corpo o punto se mouova all (ingiú de all’insu
con la nota proporzione e horizontalmente con
moto equabile. Quando questo sia io dico che
seguirá tutto quello che ha detto il Galilei, ed
io anchora. Se poi le palie di piombo, di ferro,
di pietra, non osservano quella supposta propor­
zione, suo danno, noi diremmo che non parliamo
di esse’ (Opere, ed. Faenza, 1919, vol. Ill, 357).
132 JOSÉ ORTEGA Y GASSET

“De modo que se os fenômenos — as bolas


de chumbo, de ferro e de pedra — não se com­
portam consoante nossa construção, pior para
elas, suo danno.
“Claro está que a física atual se diferencia
muito da de Galilei e Toscanelli, não somente
por seu conteúdo, mas por seu método. Mas esta
diferença metódica não é contraposição, senão
ao contrário, continuação e aperfeiçoamento, de­
puração e enriquecimento daquela tática intelec­
tual descoberta pelos gigantes do post-renasci-
mento. ”
Dez anos se passaram e, ao que pôde ver o
leitor, tôda a vanguarda da física vem a coincidir
da maneira mais literal com aquela caracteriza­
ção minha, incluindo nela as frases dos clássicos
que eu adotava, uma das quais, a mais audaz,
a de Toscanelli, era bem pouco conhecida. Como
Milne diz, provocando a zanga de Dingier: “Não
importa que as coisas não coincidam com o por­
menor da construção matemática” (Milne fala
propriamente da extrapolação), o grande Tos­
canelli diz que se as coisas não se comportam
como a teoria, “pior para elas”. Ora, Toscanelli
é o máximo discípulo de Galilei e é o chefe da
geração imediata a êste. Que resta da patética
afirmação do Dr. Dingier sôbre a fidelidade sem
par ao programa galileiano das gerações subse-
qüentes? Claro que, no fundo, tem razão, contra
sua vontade. Toscanelli é fiel a Galilei, porque
o programa de Galilei não é o que o Dr. Dingier
supõe.
Quando, na altura de 1920 ou 1921 Eins­
tein visitou Madrid me ocorreu dizer-lhe: “Aca-
8

~ ’A
MEDITAÇÃO DA TÉCNICA 133

bará o senhor fazendo da física uma geometria!”


t Não são para serem enunciadas aqui as razões
que me moviam já naquela época a pensar assim,
porque sua compreensão requer inexcusàvel-
mente certo, ainda que bem modesto, tecnicis­
mo . (Para o leitor matemático me basta referir-
-me à evidente tendência que manifestava desde
logo a mecânica relativista em absorver a dinâ­
mica na cinemática.) Os que assim são para di­
zer são os espantos que fêz Einstein, os olhos es­
tupefactos que pôs. Era tôda a cenografia e o jogo
pantomímico com que se costuma enfrentar a au­
dição de uma gigantesca estupidez, uma dessas
cretinices sem tratamento nem ortopedia possí­
veis . Estou tão convencido de que vimos a êste
mundo para não entender-nos uns aos outros,
somos na mútua incompreensão tão geniais e
empregamos tal refinamento, que se tornou para
mim em regosijante diversão estudar esta arte
de não entender-nos, analisar suas diferentes for­
mas e reconstruir em cada caso seu mecanismo.
A diversão chega ao superlativo quando o mal-
-entendido sou eu e diante de mim vejo uma pes­
soa convencida plenamente de que sou um im­
becil. Neste alvoroço entre o altruísmo muito
mais do que se suspeita, porque na maioria das
ocasiões eu sei que o outro necessita acreditar
que sou um imbecil, convém-lhe convencer-se
disso para nutrir a fé em si mesmo que leva fe­
rida ou claudicante. Faço-lhe, pois, um grande
favor sendo eu um mentecapto. Não era êste,
está claro, o caso de Einstein, pelo menos naque­
le momento. Poucos homens tiveram tanto di­
reito como êle em acreditar em si mesmos, pôsto
1

134 JÒSé ÓRTEGA Y GASSET 4

que vinham a adular-lhe até as próprias conste­


lações . Precisamente sua cerração — que é enor- j

me — provém do mecanismo inverso. Para


compreender temos que estar bastante alerta,
isto é, bem prevenidos de que não vamos com- '
preender. Ora, é isto muito difícil quando o Zo­
díaco veio a dar-nos de golpe a razão e passea­
mos pelo planeta, levando como balangandãs, de-
pendurados na corrente do relógio, o próprio Sa­
gitário e o Leão, a Balança e a Virgem. Por isso
Einstein se crê com certo direito a não dizer mais
que parvoíces quando fala de assuntos alheios à
física.
E mesmo neste assunto que pertencia à
física podia ter-se poupado os espantos. E, com
efeito, um fato que hoje Milne chama com to­
das suas letras geometria à física que se está fa­
zendo e que declara ter sido levado a esta di­
reção pela teoria da relatividade.
Mas não olvidemos, antes de tudo, e de­
pois de tudo, o principal ensinamento que des­
ta cacofonia na física devemos reter: a falta de
clareza em que esta ciência se acha hoje com
referência a si mesma como ciência. Porque es­
ta conversão da física em geometria que a van- '•
guarda da física está executando não é mais,
como o próprio Milne diz, que um “fato surpre­
endente”, isto é, um fenômeno surgido na vida
do pensamento, mas cujo sentido e cujos funda-,
mentos não conhecemos. ,
E esta falta de clareza na ciência mais
exemplar procede da mesma causa que a falta
de clareza reinante hoje nas demais ordens da
meditação da técnica 155

vida; por exemplo, na política, a saber: da resis­


tência anárquica a submeter tôda disciplina a
uma filosofia que o seja de verdade, portanto,
que seja uma arquitetura radical de nossas
idéias. Como uma coletividade numerosa não
pode viver sem um poder público e sua política,
a exuberante civilização européia não pode exis­
tir sem a instância última de uma filosofia. Nem
sequer durante a Idade Média foi isto possível,
apesar de que a Religião conservava tôda sua vi­
gência sôbre as almas. O escolasticismo foi du­
rante muitos séculos o agente policial das idéias
ocidentais, inclusive das idéias teológicas.

La Nación, de Buenos Aires, 7 de novembro


de 1937.

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