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Antonio Carlos Queiroz Filho

C o r p o r e m a
por uma Geografia Bailarina

1a Edição
por uma geografia bailarina
corpo

que é poema

que é mapa
corpo

que é poema corpo-afeto


que é mapa

corpo-afeto

que conta uma história que conta uma história

de quem viveu os lugares de quem viveu os lugares


como a si mesmo
como a si mesmo
por isso

corpo como primeira Geografia

corpo-grafia por isso

que é corpo como


sobretudo
primeira
vida
Geografia

corpo-grafia

que é

sobretudo

vida
CORPOREMA
por uma geografia bailarina
Antonio Carlos Queiroz Filho

CORPOREMA
por uma geografia bailarina

2018
1a Edição
E-book, 378 páginas
Abril, 2018
Vitória-ES, Brasil
ISBN: 978-85-924688-0-4

© Antonio Carlos Queiroz Filho

TÍTULO
Corporema: por uma Geografia Bailarina.

AUTOR
Antonio Carlos Queiroz Filho.

EDIÇÃO
Antonio Carlos Queiroz Filho.

CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Marandola Jr., Manoel Fernandes. Rafael Borges, Igor Robaina

A presente publicação encontra-se disponível gratuitamente em:


- Site AcademiaEdu de Carlos Queiroz;
- Site do Grupo de Pesquisa RASURAS;
“Me dê um gole de vida”
(Criolo)

“Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara”


(Caetano Veloso)
SUMÁRIO
Agradecimentos; p. 10

Prefácio; p. 13

Dizer, Dizeres; p. 20
Gesto, Gestos; p. 31

Saber, Saberes; p. 36
Palavra, Palavras; p. 39

Grafia, Grafias; p. 48
Dança, Alguém Dança; p. 72

Afetar, Ser Afetado; p. 84

Corpo que Sente; p. 117


A Fabricação do Corpo-Montagem; p. 139

Corpo-Grafia; p. 169
Habitar (de) um Corpo Triste; p. 175

Espasmos de um Corpo Poético; p. 251

Redescoberta Do Corpo; p. 260

“O Corpo é a nossa Primeira Geografia”; p. 307


O que pode a Geografia
como Corpo que Dança?; p. 323

Braga, Te Amo; p. 347

Nota Final; p. 352

Posfácio; p. 353
Referências; p. 355

Anexos; p. 362

Sobre o autor; p. 378


Que a leitura deste livro

Possa fazer suscitar

Descomeços

E desaprendizagens.
AGRADECIMENTOS

- À querida e especial Mônica Tenore, pelo acolhimento afetivo e por me


permitir fazer de sua escola minha segunda casa. Sem isso, este livro não teria
acontecido;

- À querida Profa. Dra. Ana Francisca de Azevedo, supervisora da minha


pesquisa de pós-doutoramento na Universidade do Minho (Portugal), pela
generosidade e estímulo intelectual;

- À Maria Vicente e Dona Conceição pelos sorrisos perenes;

- Ao querido amigo Ricardo Martins e sua companheira Vânia da Silva pela


amizade e acolhimento;

- Aos colegas de aula de dança e respectivos professores das escolas de dança


em Portugal, a saber, Backstage, Ent’Artes, Apolo Braga e An-Dança, pela
partilha desses momentos tão intensos e especiais;

- Às bailarinas Margarida Carvalho, Lara Machado, Diana Faria e Carolina Costa


e aos bailarinos João Pedro e Afonso Ferreira, pelo brilhantismo e simplicidade
que inspira e contagia;

- À minha amiga de longa data, Marília Colares, pela presteza nos momentos
mais necessários;

- Ao mestre Luizinho, professor de dança de salão em Pontevedra (Espanha),


pela alegria e acolhimento;

- À professora de dança criativa, Cristina Novo, pelo incentivo poético;

- À grande amiga Thay Bettini, pelas longas horas de companhia e afago, mesmo
estando do outro lado do oceano;

- Aos estimados colegas de turma, ensaios e espetáculo da Escola de Dança


Mônica Tenore, pelo amor à dança, algo que me inspirou e motivou
intensamente, em especial, aos bailarinos George Falcão, Rodrigo Rithelly,

10
Marcos Saleme e Rick Alves, bem como, as bailarinas Layli Rosado, Aline
Canavese, Alana Moreira, Beatriz Afonso, Paloma Rigamonte e Rebeca Freitas;

- À querida bailarina e profa. Gabriela Camargo, pelos devaneios poéticos e


diálogos atenciosos;

- À minha querida profa. de dança contemporânea, Maitê Bumachar, por me


ensinar a “ter um corpo que dança”;

- À querida Carla Pirola, minha profa. de Ballet Clássico, pelo carinho e


dedicação em ensinar;

- Aos meus queridos alunos do RASURAS, em especial, Rafael Borges e Lorena


Aranha, pela partilha de ideias;

- Ao querido amigo Igor Robaina, pelo estímulo e acolhimento intelectual;

- Aos queridos amigos e professores Eduardo Marandola Jr. e Manoel


Fernandes, pela leitura cuidadosa e interlocução sempre criativa;

- Às instituições que, de algum modo, contribuíram com a pesquisa que resultou

neste livro:

- Portugal:

Universidade do Minho

Escola de Dança Backstage

Escola de Dança Apolo Braga

Ent'Artes Escola de Dança

Conservatório de dança An-Dança

Quorum Ballet

Los INnato Cia de Dança (Costa Rica)

11
- Itália:

Il Filo di Paglia (Centro de Formação e Produção em Dança

Contemporânea, Cinema e Vídeo)

- Espanha:

LJ Studio de Dança

- Brasil:

Universidade Federal do Espírito Santo

RASURAS Grupo de Pesquisa

Escola de Dança Mônica Tenore

12
PREFÁCIO em Pas de Deux,

- por Eduardo Marandola Jr.... e Manoel Fernandes e...

13
- Quatro versos despisados

Você acabou de ler, leitor(a), mas peço que leia de novo:

Que a leitura deste livro

Possa fazer suscitar

Descomeços

E desaprendizagens.

Agradeço a gentileza, pois estes quatro versos são o mote que me

permitem iniciar este pequeno texto.

O primeiro descomeço já aconteceu, nesta repetição. O segundo

aconteceu primeiro, que foi quando fiquei desconsertado com a tarefa de

escrever um texto com a alcunha de prefacio para um livro que se pretende

descaminho. Devo confessar que me sinto confortável com a tarefa de pensar

edifícios conceituais, foi assim desde a graduação. Os descomeços e

desaprendizagens exigem mais.

Não deixa de ser curioso, já que tantos acusam tais perspectivas de

propor caminhos fáceis e pouco rigorosos para o conhecimento e o

pensamento. Mas acho difícil desconsiderar a dificuldade para um acadêmico

assumir a incompletude de seu fazer, a tortuosidade de seu pensamento, as

possibilidades abertas de seu esforço e trabalho.

Mas é exatamente o que este belo livro de Antonio Carlos Queiroz

Filho se propõe. Corporema: por uma geografia bailarina apresenta-se do início

ao fim como descomeço, como provocação, como enlevo para a alma.

O livro todo é um convite para um pensar e um sentir amalgamados

que não procura tanto as edificações quanto as degenerescências. Floresce no

14
movimento corpóreo-sensível que eriça nossas geografias. Corpo que é mapa,

que é poema, que vive lugares em devir, dançando.

Não é uma proposta epistemológica, mas é uma epistemologia (ou

várias), como proposta de composição de um pensamento que transpassa o

corpo, vivifica-o enquanto geografia.

Queiroz Filho, poeta-geógrafo, lutador-geógrafo, geógrafo-

fotógrafo, geógrafo-dançarino, entrelaça estas possibilidades em um livro que

transpira sensibilidade. Toma a abertura nietzschiana da reabilitação da

carnalidade do pensamento e transmuta tudo em poesia. O corpo de lutador-

dançarino (entre eles o geógrafo) deriva em busca de experiências, na casa, na

rua, no pensamento.

A geografia bailarina, que não é campo nem subcampo, mas

experiência, é o verdadeiro desaprendizado, renovado a cada dança, a cada

movimento, a cada esforço de oscilação vacilante de conceitos.

Experiência geográfica, entre Brasil e Portugal, entre lugares, viagens

e na solidão do apartamento. Descomeços em expectativas frustradas,

geografias interrompidas, bifurcadas.

Confesso que o geógrafo que pediu que o autor fizesse uma

construção epistemológica de seu livro é este que agora tenta não encetar o

pensamento aqui posto em vigor. Mas confesso que o autor dificultou ao

máximo, mesmo que não tenha tido a intenção, de que qualquer um lhe coloque

alguma alcunha: seu Corporema é prenhe de possibilidades, de linhas de fuga,

de reticências e passagens ocultas.

Quem vê claramente Deleuze e Guattari deveria também enxergar

Bachelard, que se assombreia em Manoel de Barros. Rancière e Gonçalo M.

Tavares, Pellejero e Massey, Oliveira Jr. e Gil, Agamben e Augé são outros dos

vários diálogos entremeios, que são compostos entre política, estética, poética

15
e epistemologia, pois Queiroz Filho não se esquiva da questão do

conhecimento. Sua estético-política tem pretensões epistemológicas,

comprometida com outras formas de pensar, fazer e ser geografias.

Talvez por isso seja inútil delimitar que geografia seja esta. Com a

força colocada no sensível, potencializa a corporeidade, a arte e a linguagem

pela sensibilidade, o que dialoga de tantas formas com esforços e buscas das

mais diversas no pensamento e na ciência contemporâneas. Este livro é, antes

de mais nada, um movimento para fazer suscitar desaprendizagens e

descomeços.

Desta feita, caro leitor(a), do despisado dos versos iniciais, resta

agora apenas a sua leitura.

Eduardo Marandola Jr.


Fevereiro de 2018

16
- Desapresentando Corporema

Por Manoel Fernandes de Sousa Neto


Poeta-Docente

A escrita é uma maravilhosa invenção e, ao mesmo tempo, a expressão

de um universo de apropriações que separa leitores e não-leitores, sociedades

letradas das comunidades ágrafas, oralidades múltiplas de escrevinhações

formatadas.

O mundo mágico que nasce com as letras e se impõe na racionalidade

das leis, desdobra-se como um código que qualifica as sociedades como

civilizadas a partir do ato de representar a tudo por gramáticas normatizadas.

A esse projeto de humanidade, de certa humanidade inscrita em língua-

linguagem-literagem única, se insurgiram cotidianamente muitas culturas

lastreadas em suas polifônicas memórias orais, pictóricas, gestuais, rituais,

mantendo para bem além de comportados pés-de-página ou lembranças

sutilmente indexadas, a capacidade humana de continuar dizendo o que foi

interdito, maldito, desdito, indizibilizado.

A lição parece ser a de que a natureza pelos humanos nomeada, reside

na humanidade para além de suas representações inventadas. É impossível dizer

tudo, improvável dizer todas as coisas apenas com palavras ou ainda alcançar

os limites da própria realização desse tal de animalhumano.

Aqui não estamos a sugerir que os vocábulos deveriam desinscrever-se,

apagar-se em sua própria tinta. É adorável brincar com as palavras, criá-las,

grafá-las e muito difícil pensar sem a existência delas. Mas as nomeações como

norma de humanidade, aquelas nomeações que visam desqualificar as

17
inimagináveis potências humanas, não podem servir a um projeto de

emancipação demasiadamente humano.

É talvez por isso que o livro, esse objeto com um corpo, tenha mudado

ao longo da história e agregado milhares de referentes e referências, para

guardar e deixar soar vozes e sons e imagens que o habitam, para explodir com

as palavras do sagrado e as mais eróticas figurações do profano. E eis, que

diante de nossos olhos, está agora o livro de um geógrafo-bailarino (ou seria um

bailarino-geógrafo?), propondo uma geografia que dança e faz do corpo o

território de todas as primaveras geógrafas – o território do corpo-sentido

seria/é/viraria-a-ser para Carlos Queiroz a matriz de todas as geografias

possíveis.

Ao ler o e-book Corporema, baralharam nos nossos alumbramentos,

imagens-movimento várias, como as do experimento-documentário-filme

Baraka dirigido por Ron Fricke; a figura do jovem chinês que fez, com seu balé,

dançarem tanques em plena Praça da Paz Celestial naquela Pequim de mil

novecentos e oitenta e nove; a pequena vietnamita queimada a correr - menina

do napalm - com seu corpo frágil desse campo de concentração estatudinense

a céu aberto do imperialismo.

O corpo para o amor e para a morfina, enfim, lugar de todas as

possibilidades de recordar à humanidade, em sua própria pele, as epistemes da

existência, dessa res-extensa que pensa, das resistências, das re-existências. O

livro-virtus-virtual, em Corpo-Dança-Poema desse filho também de um outro

Queiroz, levanta exatamente a necessidade de dizer que dançar é também um

modo de pensar-sentindo/sentir-pensando os diversos conatus do mundo, esse

esforço do humano em realizar suas potências, em suas tristes ou alegres

paixões. Afinal o corpo só se encontra por afetos.

18
Afetos afeitos a amar a cidade de Braga, os miúdos de Portugal que

indagam sobre haverem ainda aprendizes-bailarinos de idade distante das

primeiras letras, supervisoras de pós-doctor criticas de muitos ocularcentrismos

como Ana Azevedo, tatuagens na epiderme dos suores musculares das palavras.

O livro de Carlos Queiroz me lembrou infâncias, desde jogos de lego a

traçados com gravetos escritos na terra nua como grandes fronteiras

imaginárias. Lembrou como é bom dançar até que as pernas não saibam mais

de si. Relembrou nossas leituras eventuais ou sistemáticas de muitos/as

autores/as – nenhum/a deles/as referenciados/as formalmente aqui por obra,

página, ano, tradução – que vão de Deleuzes Foucaultiados a Masseys

Haesbaertianas.

O jogo epistêmico da obra que leitores vão paginar com mouses in/or

touche pads, propõe que não se está propondo ou defendendo nada além do

direito de humanar-emanar-irmanar ao proclamar que não há fronteiras ou

margens para o conhecimento entre formas não divinais de ciência e arte,

linguagem, linguaviagens.

O prazer de termos lido este livro-dança é de sentidos que não podemos

expressar dizendo, porque tudo enfim falharia caso se prestasse a ser uma

apresentação. Des-apresentamos a si estas trezentas e lá vai de páginas sem

saber o que dizer enfim, além de um conselho só, leia Corporema na des-ordem

que achar melhor.

19
DIZER, dizeres

- E tem sido libertador reconhecer a escrita, a linguagem e o fazer científico


como “um produto direto do coração”.

20
Um querido amigo professor disse-me, na ocasião da leitura de uma

versão ainda bastante preliminar deste livro: você precisa balizar, de pronto, que

Geografia é essa que você está tentando fazer. E aqui estou eu, como um

menino tímido que se aproxima de sua primeira paixão adolescente, buscando,

de algum modo, colocar em palavras algo que considero ser da ordem do gesto,

do movimento intensivo e processual.

Portanto, não sei se consigo ou, inclusive, não sei se devo tentar dizer,

em dois ou três parágrafos, sobre qual seria essa Geografia que estou

“tentando” fazer. Talvez porque desde 1998, ano em que entrei no curso de

Licenciatura em Geografia da Universidade Estadual do Ceará, até o ano de

escrita e publicação deste livro, fui atravessado por muitas “geografias”. No

entanto, percebo em mim que há algum tipo de permanência.

Há algo que tem ficado para fora, como uma aresta que nunca se

apara e que eu até poderia tentar qualificá-la como definidora dessa geo-grafia.

Como uma emoção que transborda, penso em três termos: a sensibilidade,

poética e a experiência. Essas são palavras que comunicam um modo de pensar,

um modo de grafar. E lembro que foi na ocasião do meu curso de doutoramento

(2005 – 2009) que verdadeiramente comecei a tentar, pelos estudos do cinema,

uma Geografia que para mim se constituía como uma articulação desses três

elementos:

Por estar numa perspectiva em que as teorias, conceitos, em que o método,


muitas vezes, aparentava ter mais “força” do que seu fazedor, fui cultivando silenciosamente
a sensação de estar perdido, como que embrenhado num mundo de estranhezas e
alheamentos, mergulhado num mar revolto de “quases”, floresta de eternidades esfaceladas,
despedaços de mim mesmo. Como pude ficar assim, semivivo, por tanto tempo? Eu não queria
mais ser o “homem do subsolo”. O que passou a existir em mim durante esse período foi uma

21
espécie de incompletude perenizada pela minha nostalgia de algo que não havia acontecido.
Hoje percebo que esse movimento fez com que eu deixasse de reconhecer a mim mesmo
enquanto ser – fazedor de uma geografia – tal que, meu estranhamento tornou-se tamanho,
a ponto de negá-la. Olhava para ela e não me sentia acolhido, seguro. Adormecido por este
sentimento de desamparo, fui seguindo, como se estivesse com os pés nus sobre um chão
duro, batido por outros tantos pés que já haviam por ali passado”
(Trecho da tese de doutorado, intitulada: Vila-Floresta-Cidade: território
e territorialidades no espaço fílmico, 2009).

Por isso, se fosse para dar algum tipo de “baliza”, arriscaria dizer que

Geografia para mim é mesmo como um gesto que partilha de tais artifícios. É

um modo de se colocar em cena, um modo de se colocar diante de e no mundo.

E são esses gestos que a “definem”. Qual seu gesto? Esta é a questão que

realmente importa, porque esta será “a” Geografia, dito de outro modo, esta

será a sua Geografia. No meu caso, reconheço um sentimento que é perene: o

de que essa minha Geografia será sempre a tentativa de um dizer mais

“humano”. Por isso, retomo algo que escrevi sobre a política dos afetos como

constituinte daquilo que considero efetivamente um “dizer humano”.

- Dizer-Humano

Talvez um dos princípios daquilo que considero um dizer-humano

esteja contido na ideia de um humano que não se contenta, um humano

perenizado pela inquietude, a exemplo do que fala Gonçalo Tavares em diálogo

com Bachelard, quando diz que:

22
Descer ao porão é sonhar

Devemos olhar para a linguagem

Como se olha para um objecto – para uma mesa, por

exemplo

E ver, por vezes, a linguagem de baixo para cima

[…]

Observar depois um perfil da palavra

Depois outro;

Ver os sapatos da palavra e o seu chapéu

A sua nuca e o seu rosto.

Porque pensar

Também é mudar de posição relativamente

À própria linguagem.

Não olhar sempre da mesma maneira para as palavras.

(Gonçalo Tavares, 2013)

Interessa-me, portanto, aquilo que escapa, que se configura como um

duplo, aquilo que é e não é, que pode e não pode, ao mesmo tempo. É uma

aposta no dizer-sensível, a exemplo daquele contido na poética de Manoel de

Barros quando diz que:

tudo aquilo que não nos leva a coisa nenhuma

serve para a poesia.

tudo aquilo que a nossa civilização rejeita

pisa e mija em cima

serve para poesia

(do livro “Matéria de Poesia”)

23
Esse, talvez, seja nosso maior desafio, principalmente se pensarmos

num contexto de mundo que nos coloca diante de palavras e imagens que

povoam os muitos horizontes que nos cercam, “informando” mais e “entoando”

menos. O fato é que talvez estejamos nós obedientes demais a elas, palavras e

imagens que autorizam, sedutoramente, “o que podemos” e “como podemos”.

É o tal do “lirismo bem comportado” de que fala Manoel Bandeira (Poética).

Por isso aposto numa “gramática-desobediente”, que busca

promover rasuras e rupturas nos entendimentos de mundo já consolidados. Ela

nos “autoriza” a inventar, a ficcionar cosmologias e imaginações de toda a

ordem. E o modo como resolvi fazer isso tem amparo conceitual e imaginativo,

e seria importante compartilhar aqui:

• Primeiro, em Jacques Rancière (2009), quando ele diz que

“Escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar

sentido a essa ocupação”.

• Segundo, em Clarice Lispector (1998a), quando diz que:

“Bem atrás do pensamento tem um fundo musical. Mas,

ainda mais atrás, há o coração batendo Assim o mais

profundo pensamento É um coração batendo”. Entre o

coração batendo e um sensível como campo de

possibilidade, ou seja, campo político, acalenta-me também

a perspectiva de Bachelard, quando fala que a imaginação é

a “potência maior da natureza humana” (Bachelard, 1993, p.

18).

24
E se, para ele, o ato poético é a “chama do ser na imaginação”, então

me vem a questão: o que temos apagado, o que temos silenciado, o que temos

negligenciado diante do nosso “dizer o mundo”? Ainda com Bachelard, temos

que a imaginação é “[…] uma dádiva da consciência ingênua. Em sua expressão,

é linguagem criança” (Bachelard, 1993, p. 4). Parafraseando (Bachelard), seria o

mesmo que dizer assim:

Tornar imprevisível a palavra,


o pensamento, a linguagem,
(a Geografia, a Comunicação, a Ciência)
não seria um ato de liberdade?
Que encanto a imaginação poética
Encontra para zombar de censuras!
Antigamente, codificavam licenças.
Mas a poesia
Ao colocar a liberdade
no próprio corpo da linguagem
Passa então a se constituir
como um fenômeno de liberdade.
(Adaptado de Bachelard, 1993)

E tem sido libertador reconhecer a escrita, a linguagem e o fazer

científico como “um produto direto do coração” (Bachelard, 1993, p. 2), que se

assume como uma imaginação criadora: Bachelard diz que “não há poesia se

não houver criação” (Bachelard, 1993, p. 15) e porque não dizer: não há

Geografia, Ciência, Arte, Vida, Humano, se não houver criação. Gostaria de

ressaltar que essa aposta não é a instituição de um marcador de poder, um ato

25
normativo, mas, sim, o delineamento de um horizonte, ainda que anuviado, de

possibilidades.

Dizer-Poesia...

O que pode o humano?

O que pode um humano?

O que pode um

Dois

Três

E o que não pode um,

Pode três?

Pode dizer com afeto?

Pode fazer, corpo ereto?

Pode querer, meio incerto?

Mas

Quem pode?

Quem diz?

Quem faz?

Quem quer?

Quem quer o que?

Um dizer outro

Atravessado, provocado:

– Pelo rasgo do verbo

– Pelo choro do substantivo

– Pelo silêncio do adjetivo

– Pelo ensejo da palavra quando hesita

E se precipita:

26
– Num hífen, numa vírgula, num ponto:

Fora do lugar

Ali nasce o fazer-sentido

Quando compreendido como o

Fazer-sentir

Um fazer-sentir inventivo

Comprometido com

A potência criativa

Que está no efetivamente aberto

No rascunho

No fragmento

Na rasura

No que “jogamos fora”

Considero importante evidenciar que tem sido cada vez mais difícil

pensar em linguagem dissociado de experiência. Do mesmo modo, a quase

impossibilidade de tomar, nesse sentido, linguagem-experiência que não seja

entendida nos termos da “desobediência” (Skliar, 2014; Larrosa, 2015). Para

Carlos Skliar, a linguagem desobedece quando:

Já não há o que dizer e se anuncia aos

ventos o nome do mundo, um mundo desvairado que se move

e se enreda no próprio som de sua falácia, até cair exausto;

quando o ar é pouco e a palavra que descreve o ar é mais nula

ainda (Skliar, 2014, p. 15).

Mas tão importante quanto a sua própria desobediência, é o fato da

linguagem, enquanto uma forma estabelecida de estética-política, se permitir

27
ser desobedecida. Talvez nem seja uma permissão e sim uma tomada de poder

daqueles que fazem dela seu lugar de liberdade e emancipação. Daqueles que

ora desconfiam, ora desconhecem e, por isso mesmo, fazem atuar o indefinido

como efetiva abertura do possível, dos possíveis.

Se a língua (os dizeres e suas grafias) não desobedecesse e não fosse

desobedecida, enfatiza Skliar (2014, 17), “não haveria filosofia, nem arte, nem

amor, nem silêncio, nem mundo, nem nada”. Do mesmo modo, Jorge Larrosa

(2015) fala de como ele tem se engajado diante do desafio de pensar em “como

deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferente do que vimos

sendo” (Larrosa, 2015, p. 5).

Ao fazer isso, o autor coloca “a experiência e não a verdade” (Larrosa,

2015, p. 5) como aquilo que dá sentido aos nossos atos estético-políticos. Em

suas palavras, a vida, como experiência, é relação: com o mundo, com a

linguagem, com o pensamento, com os outros, com nós mesmos, com o que se

diz e o que se pensa, com o que dizemos e o que pensamos, com que somos e

o que fazemos, com o que já estamos deixando de ser.

A vida é a experiência da vida (Larrosa, 2015, p. 74). Nestes termos,

problematizar o humano, penso, passa necessariamente pelo problematizar a

vida enquanto atributo do dizer, enquanto atributo da conexão linguagem-

experiência. Disso nasce minha grafia, minha Geografia.

28
Dizer-Vida...

Que cala e sente


Que fica e vai
Que faz e deixa fazer
Que inventa e cria
Que nasce e faz nascer
Como?
É possível?
São perguntas recorrentes. Elas me chegam a todo o momento por meio
daqueles que tem a certeza como sua cartilha.
Como?
É possível?
Por muito tempo pensei no sim como resposta. Nem havia percebido que
ao fazer isso, ao dar essa resposta, estava criando outro tipo de
aprisionamento, outro caminho a ser seguido. Não quero isso. De modo
algum.
Como?
É possível?
A resposta eu tirei de Larrosa: não e talvez…
A pergunta “de que outro modo”
Não pode ser outra coisa que uma abertura.
Para o que não sabemos.
Para o que não depende de nosso saber
Nem de nosso poder
Nem de nossa vontade.
Para o que só pode se indeterminar
Com um quem sabe,
Como um talvez.

29
Geografia Minha...

Que é partilha
Que é
Senão
Talvez
Plural
Incompleta
Pedaço de pedaço
Fragmento
Instante
Momento
Contexto
Processo
Sensível
Pensamento
Poética
Política
Dos afetos
Das palavras
Dos gestos
Dos movimentos
Dos corpos
Das pessoas
Geo-grafia
Escrita da terra
Linguagem da terra
Terra que é gente
Gente que é
Por isso:
- geografias

30
GESTO, gestos

- Meu compromisso não é com a verdade, para fazer jus à poética manoelesca,
referência à Manoel de Barros, poeta das coisas pequenas e dos horizontes
esticados.

31
Este livro...

um

fr a g m e n t o

Como tal, foi escrito, por vezes, num tom ensaístico, outras, num tom

mais poético. Feito de relatos, problematizações conceituais e estéticas,

poesias propriamente ditas, como também, há nele momentos apenas de

descrição, quase como crônicas.

Na verdade, este livro é poética do fragmento

Mistura de Gonçalo Tavares, e sua ideia do fragmento como uma

máquina de produzir inícios, com estética da dobra, de Josina Nunes Drumond:

As poéticas classicistas tendem à valorização do

cânone, ao passo que as poéticas mais recentes, tais como as

vanguardas do século XX valorizam a fuga à norma e ao dogma.

A poética da produção e da recepção do fragmento rompe com

o “inteiro” sem se preocupar com sua reconstrução. A

preferência anticlassicista valoriza o pormenor, o fragmento, a

quebra da continuidade e da integridade e, ao mesmo tempo,

privilegia a fruição das partes autônomas da obra. Na totalidade

de uma obra fragmentária revelam-se a irregularidade e a falta

de sistematicidade. Surge uma nova estética da recepção. Não

32
se busca mais o ponto de partida, nem o de chegada, e sim a

fruição da caminhada (Drumond, 2008, p. 271).

Então,

Este livro...

É isso:

Livro-percurso, fruição de gestos. Fonte de resquício, rastro, poeira.

Que indica

“encontros de trajetórias até aqui”.

Por isso: gestos.

Gestos que revelam seu caráter de eventualidade (para citar a

geógrafa Doreen Massey)

Por isso: é aberto e inacabado (estou ainda com Massey)

Por isso: entra-se nele por onde se queira:

- Sussurro:

33
rizoma

É uma estrutura de passagens disposta em uma tal confusão métrica que se


torna obscuro qual elemento ou lugar do labirinto irá levar ao próximo. É um
sistema de atalhos e desvios, mas jamais em vias diretas ou retas (...) Nenhum
começo e nenhum fim. Nenhum fio de Ariadne, sem centro e sem periferia.
(Joseph Vogl8)

________________________________________________________

Entra-se por qualquer lado, nenhum vale mais do que outro, nenhuma entrada
tem qualquer privilégio (...) Poder-se-á apenas procurar com que pontos se
liga aquele pode onde se entrar (...) qual é o mapa do rizoma e como é que este,
de repente, se modifica esse entrar por qualquer outro ponto. O princípio das
entradas múltiplas só impede a entrada do inimigo, o Significante, e as
tentativas para interpretar uma obra que, de facto, só propõe a experimentação
(Gilles Deleuze e Félix Guattari9)

8
https://www.youtube.com/watch?v=2k-wWziPk-g
9
2002, p. 19

34
Porque

É grafia feita de rabiscos, traços tortos.

É grafia titubeante, duvidosa, hesitante

É como um alento, um modo carinhoso de dizer “eu escuto a

sua história”:

— Filho?
— Sim, pai.
— Lembra-se que eu lhe dizia para inventar histórias?
Pois invente uma agora.
—Não tenho força.
— Tente.
— Pior que não saber contar histórias, pai,
…é não ter ninguém a quem
as contar.
— Eu escuto a sua história
(Mia Couto, 2013)

Porque não tenho interesse nenhum com a escrita academicista, no

sentido daquela que se veste de toga autoritária. Meu compromisso não é com

a verdade, para fazer jus à poética manoelesca, referência à Manoel de Barros,

poeta das coisas pequenas e dos horizontes esticados. Com ele aprendi a fazer

da palavra um brinquedo feito pelas mãos cheias de terra, encravando

devaneios pueris nas unhas daquela criança que ainda acredita na sua própria

imaginação. Escrita feita de paixão e liberdade.

E isso basta.

35
SABER, saberes

- Então, este livro tem, assumidamente, um quê larrosiano, porque acabou por
se tornar, parafraseando o autor: cantos gestos, movimentos de experiência.

36
Preciso dizer que as palavras aqui gestadas, em sua parte mais

“importante”, consistem num conjunto de relatos de experiências vividas em

Portugal e no Brasil, a partir do momento em que iniciei minha pesquisa de pós-

doutoramento, precisamente, em janeiro de 2017. Elas são, portanto, fruto de

um sujeito da experiência e de seu saber da experiência:

O saber da experiência é um saber que não pode

separar-se do indivíduo concreto em que encarna. Não está

como conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem

sentido no modo como configuramos uma personalidade, um

caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana

singular de estar no mundo, que é, por sua vez, uma ética (um

modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo) (Larrosa, 2015,

p. 32)

Dois destaques:

• Importância:

Aqui é tida no mesmo sentido que cita o poeta Manoel de Barros:

“que não se mede com fita métrica”. É, pois, da ordem do intensivo e

“intransitivo”, para fazer referência à Bataille em diálogo com Larrosa sobre a

experiência como um conceito.

• Experiência:

Algo da ordem do “selvagem, autotélico e não regulado”:

37
A experiência, diz Bataille, não nos faz melhores, ao

menos no sentido da moral dogmática, não nos faz mais sábios,

ao menos no sentido do saber científico e, sobretudo, não nos

faz mais ricos, ao menos a partir desse enriquecimento que

prometeria o atual mercado de experiências que entendo o

sujeito como consumidor. (Larrosa, 2015, p. 14)

Então, este livro tem, assumidamente, um quê larrosiano, porque

acabou por se tornar, parafraseando o autor: cantos gestos, movimentos de

experiência.

Há cantos gestos, movimentos de experiência:

• “apaixonados, intensos, prementes, emocionados e

emocionantes”

• “de protesto, de rebeldia, cantos de guerra ou de luta contra

as formas dominantes de linguagem, de pensamento e de

subjetividade (...)”

• “de dor, lamento, cantos que expressam a queixa de uma vida

subjugada, violentada, de uma potência de vida enjaulada, de

uma possibilidade presa ou acorrentada”

Larrosa fez seus “cantos de experiência” tendo como tema a

educação, a leitura, linguagem e a prática pedagógica. Já os meus, buscaram

nas grafias do e pelo corpo um exercício perene de liberdade, portanto, de vida

(pensamento, linguagem, afeto) efetivamente emancipada.

38
PALAVRA, palavras

- Ocupar a casa, ocupar a vida, ocupar as palavras, mesmo que elas não sejam
as nossas. Mas então, elas já não são de ninguém. Porque fazer ecoar é tornar
indiscernível.

39
Por vezes, quando não conseguimos dizer, ouvimos. Por vezes,

quando ouvimos, aprendemos. Por vezes, quando aprendemos, falamos. E falar

é o mesmo que se mexer. Pelo menos para Gonçalo Tavares.

E por mais que este livro seja um exercício perene para fala

“autêntica”, no sentido de autoral, ele não deixa de ser, também, reverberação

de todas as vozes que tomei emprestado para conseguir fazer do silêncio, eco.

E talvez seja isso que esteja em questão. Ocupar a casa, ocupar a vida, ocupar

as palavras, mesmo que elas não sejam as nossas. Mas então, elas já não são de

ninguém. Porque fazer ecoar é tornar indiscernível. É fazer da palavra, não um

palavrório – eco larrosiano – mas sim, oferecer um sentido, ocupando-a.

Pensei inicialmente em fazer desse momento uma indicação dos

principais autores com os quais eu busco amparo e acolhimento para pensar.

Sinto dúvida sobre isso. A verdade é que não acredito que seja algo necessário,

principalmente se eu quiser manter certa coerência com a perspectiva com a

qual estou lidando. Não quero incorrer no gesto de fechamento que os

conceitos muitas vezes podem causar.

Do mesmo modo, não estou aqui falando com as vozes de outros. O

eco é algo bem diferente do ventriloquismo. Então, farei referências a esses

autores como quem murmura no fundo da casa vazia. Quando os ouvir, eles

serão, sobretudo, ressonâncias.

40
O rio que fazia uma volta atrás da nossa casa
era a imagem de um vidro mole...
Passou um homem e disse:
Essa volta que o rio faz... se chama enseada...
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
que fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.
(Manoel de Barros)

41
O resultado desse anuviado teórico-poético evidencia-se em alguns

aspectos, a saber:

• a escolha pelo corpo como “primeira geografia”;

• a escolha pela dança como dispositivo que produz esse corpo

experiencial;

• a escolha pelo saber contingente, oriundo das narrativas de experiência

citadinas, em detrimento do formalismo das generalizações

epistemológicas;

• a escolha pela grafia que toma a sensibilidade, a imaginação e a poética

como sua baliza;

• a escolha pelo habitar a cidade como lugar dessa e para essa grafia;

• a escolha pela grafia que diz:

por uma geografia bailarina

Digo isso porque esse processo constituiu-se tanto do exercício de se

pensar numa geograficidade constituída por aquilo que a dança promove,

como também, a defesa de um modo específico de se colocar no mundo.

Especificidade essa que se inicia na assertiva de que o termo “dança” aqui não

opera um entendimento uníssono.

42
A dança aqui, nesse sentido, não poderia ser outra coisa, senão,

“dispositivo”, para usar palavras de Agamben quando faz considerações acerca

do termo. Para além do entendimento foucaultiano, Agamben diz:

Generalizando posteriormente a já amplíssima classe

dos dispositivos foucaultianos, chamarei literalmente de

dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a

capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar,

modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as

opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente,

portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as

confissões, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc,

cuja conexão com o poder e em um certo sentido evidente, mas

também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a

agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os

telefones celulares e – porque não - a linguagem mesma, que é

talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e

milhares de anos um primata - provavelmente sem dar-se conta

das consequências que se seguiriam - teve a inconsciência de se

deixar capturar (Agamben, 2005, p. 13)10.

Nesse mesmo sentido, penso ser possível dizer que a dança é

também um modo de agenciamento, em específico, agenciamento de um corpo

produtor de narrativas de experiência. Estou, claramente, perfazendo

articulações deleuzianas a larrosianas. Talvez por isso, preferi começar a pensar

menos na dança – como uma generalidade e uma abstração, como um conceito

10
Cf.: https://periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/view/12576/11743

43
no seu sentido restrito – e mais naquilo que acontece com/quando alguém que

dança.

Por isso decidi mudar o curso daquilo que me propus escrever. De

uma geografia da dança, como havia pensado de antemão, veio uma geografia

bailarina, afinal de contas, foi a partir da minha experiência como aprendiz de

bailarino que nasceram os apontamentos aqui colocados.

O termo “Bailarina” define aquilo que é resultado da experiência, no

sentido larrosiano do termo, bem como, na perspectiva de Laurence Louppe

quando enuncia que:

Ser bailarino
É escolher o corpo
E o movimento do corpo
Como campo de relação com o mundo,
Como instrumento de saber,
De pensamento e de expressão.
(Louppe, 2012, p. 69)

Corpo de experiência, essa que se dá num certo contexto, num certo

tempo, num certo lugar. Corpo que desacostuma o sensível e faz do si mesmo

uma cartografia a ser, simultaneamente, descoberta e inventada. Disso surgiu

uma carto-corpo-coreo-grafia feita por essa Geografia Bailarina.

Como incorreu-se em outros tantos “por” que a Geografia lançou

mão, meu “por” não é manifesto. Ele não está aqui como algo que possa ser

lido como “em defesa de”. Não pede chancela, nem quer servir de modelo

analítico, seja ele conceitual ou metodológico. Senão vejamos:

44
- “Por”, como preposição:

Palavra que estabelece uma ligação, que qualifica. É invariável. Como

tal, é possível encontrar cerca de 28 definições para seu uso11. Como enuncia

alguma dessas definições, “por uma geografia bailarina” pode sim ser

compreendida como:

através de, sobre, em, ao longo de uma geografia bailarina


perto de, ao lado de (lugar) uma geografia bailarina
por causa de uma geografia bailarina
na condição de, como uma geografia bailarina
na dependência de uma geografia bailarina
com a utilização de, mediante uma geografia bailarina
durante o espaço de tempo de, no período de uma geografia bailarina
em correspondência a uma geografia bailarina
da maneira (tal) uma geografia bailarina
como se fosse uma geografia bailarina
na categoria de; como uma geografia bailarina
com base em uma geografia bailarina
em busca de uma geografia bailarina
em favor de, em nome de uma geografia bailarina
para, uma geografia bailarina
em relação a uma geografia bailarina
ao redor de, perto de uma geografia bailarina
em nome de uma geografia bailarina
no que toca a uma geografia bailarina

11
Origem ⊙ ETIM lat. tar. por < prep. lat. pro 'diante de, em frente etc.' pôr. Fonte: Dicionário Google.

45
- “Por”, como verbo:

Há 42 modos diferentes que indicam ação, processo ou estado12. As

que me apetecem:

fazer um relato, uma descrição de; detalhar, narrar uma geografia bailarina
fazer figurar; incluir uma geografia bailarina
fazer tocar uma geografia bailarina
dar (nome) a; denominar uma geografia bailarina
aceitar como hipótese; admitir, supor uma geografia bailarina
empreender a construção de, edificar uma geografia bailarina
adotar determinada postura ou estado de uma geografia bailarina

De fato, dentre tantas possibilidades, considero quase como um tipo

de negligência ler “por uma geografia bailarina” de modo tão uníssono. Quero

sim, “fazer tocar”. Porque minha Geografia é partilha poética, revelada na

constituição da própria “respiração do mundo”. E eu, como eco, digo:

12
Origem ⊙ ETIM lat. pono, is, posŭi, posĭtum, pon ĕre 'pôr, colocar, postar, fixar etc.' Fonte: Dicionário
Google.

46
Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo
Clarice Lispector (Paixão segundo G.H.)

47
GRAFIA, grafias

- Falo a partir do corpo de alguém que dança, que vive intensivamente a dança.
Falo a partir dessa experiência: a de ter sido tomado inteiramente por essa forma
de arte.

48
O mapa da cidade
é o mapa do corpo.
(Mário Quintana)

Inspiração nomeadamente marioquintanesca13, que me responde de

certa forma a questão feita por Michel Agier no seu livro “Antropologia da

Cidade”:

“o que faz a cidade?”

Para mim, são as narrativas do corpo. Mas não qualquer corpo. Pelo

menos não me interessa tal generalização. Falo a partir do corpo de alguém

que dança, que vive intensivamente a dança. Falo a partir dessa experiência: a

de ter sido tomado inteiramente por essa forma de arte. Porque o corpo que

dança é, sobretudo, um corpo como poética.

Por isso,

Por meio disso,

Com isso,

Fazer da cidade uma leitura-poética-dança tem sido um grande

desafio.

13
Referência ao poeta brasileiro Mário Quintana.

49
Cidade-poesia

Cidade-Sensibilidade

Cidade-Palavra

Cidade-Grafia

Cidade-Linguagem

Cidade-Gesto

Cidade-Movimento

Cidade-Dança

Fazer-Cidade

Sentir-Cidade

Devir-Cidade

Diver-Cidade

50
- A cidade como sensibilidade

A questão posta aqui é, portanto, sobre os modos já consolidados e

outros tantos possíveis do dizer e ver a cidade, que por sua vez, coloca-nos

diante da complexa questão sobre como isso afeta a vida urbana

contemporânea. Imaginação e Poética funcionam, assim, como balizas desse

processo.

O sentido de imaginação a que me refiro é exatamente aquele que

entende o imaginar como um processo que provoca variações no automatismo

da sensibilidade, da nossa capacidade de agir e de pensar. Dela, interessa

produzir outras. A pergunta que cabe agora é: essa “outra” imaginação, seria

feita de que? Entra em cena então a poética. Em espacial aquela de que trata

Manoel de Barros. Ele nos ensina o que é matéria de poesia:

As coisas jogadas fora


Têm grande importância
- como um homem jogado fora.
(Manoel de Barros, Matéria de Poesia)

Esse “homem jogado fora” é o que escreve com palavras tortas, é o

próprio devir de um pensamento/imaginação tortos. Se para o poeta Manoel, a

“poesia é a loucura das palavras”, o que se poderia dizer de uma Geografia

Poética? Ou de uma poética da cidade? De uma imaginação espacial feita de

corpo e poesia, ou melhor, feita de corpo como poesia? Se a loucura das

palavras é a sensatez dos homens que não têm o compromisso com a gramática,

a loucura dessa Geografia talvez esteja exatamente naquilo que ela (e outras

tantas grafias de mundo) “jogou fora”.

51
...antes uma anunciação
Enunciados como que constantivos
Manchas. Nódoas de imagens
Festejos de linguagem
(Manoel de Barros, O Livro de Pré-Coisas)

Se pensarmos a Geografia como uma imagem-fábrica, ou seja, aquela

que é lugar da produção em série e do automatismo, e se pensarmos que a

promoção de “atos estéticos como configuração da experiência, que ensejam

novos modos de sentir e induzem a novas formas da subjetividade política”

(Rancière, 2009, p. 11), então, o que estamos desejando, no fim das contas, é

dar a essa “imagem” novos usos, novos sentidos, novas políticas, em resumo,

novas capacidades de agir.

Servindo para a imagem-fábrica, mas também, para a imagem-cidade,

principalmente se considerarmos aquilo que fala Jorge Larrosa quando aponta

para a necessidade de reconhecermos um contexto de mundo “caracterizado

pelo caráter plural da verdade, pelo caráter construído da realidade e pelo

caráter poético e político da linguagem” (Larrosa, 2010, p. 164).

E nesse pensar a cidade, o que aconteceria com nossas imaginações

se:

• primeiro: se pensássemos a cidade como se ela fosse um texto, um


poema, uma música, uma obra de arte?

52
• o que imediatamente nos leva a uma segunda questão: qualquer texto,

poema, música ou obra de arte? (como se fossem arquétipos ou modelos


solucionadores dessas questões).

Notadamente, tenho real interesse por aqueles que atuam na tensão

entre o “poder das constantes” e a “potência da variação” (Deleuze; Guattari,

1995, p. 50), entre a imaginação reativa e a criativa. É na intimidade da

linguagem e no enviesamento da sensibilidade que surge uma “cidade como

potência menor”, cidade intensiva, que faz proliferar a vida enquanto encontro

de palavras, imagens e afetos, enquanto esperança e resistência. Uma cidade-

personagem, feita de encontros: cidade-texto, cidade-poesia, cidade-música,

cidade-arte, todas misturadas, dobradas entre si, uma dizendo da outra, sendo

todas, a mesma. Cidade inventada para não mais caber no gesto repetido de

um modo único de dizer-cidade.

- sobre o dizer-cidade: experiência e sensibilidade

Um nordestino de nome Jesus


Procurado noite e dia em São Paulo
Turcos na Alemanha
Um Palestino servindo café em Israel
Afro-asiáticos nas ruas de Seatle
E mesmo assim ainda é difícil
Vê um beijo multiracial em Hollywood
O mundo migra e dá de cara com fronteiras
As chaves são as mesmas
Samuel L. Jackson e Charton Haston

53
Tem a mesma cor da violência
Os dois acreditam em armas
Os dois abrem portas com dólares e euros
Um beijo na pátria amada
Ao lado de uma bandeira queimada
Braço, é braço, braço de terra negada
Braços pulando os muros do mundo
Do futuro por emprego, braços de refugiados
Apesar de tudo, por um instante
Pousam num estado de aleluia
Sem religião desterro, ah, desterro
Desterro (Marisa Monte, part. F.U.R.T.O)

A música da cantora brasileira Marisa Monte, dá melodia aos muitos

clichês reducionistas que têm sido questionados diante de um dizer-cidade

pautado pela contemporaneidade ou, se preferirmos, pela sobre-modernidade,

que consagra, no seu escopo, “uma superabundância de causas que complica a

análise dos efeitos” (Augé, 2010, p. 15).

Em especial, o que intensifica esse desafio diz respeito a um conjunto

irresoluto de paradoxos que se põem diante de nós. A própria música citada

revela isto: ao mesmo tempo em que ocorre uma intensificação da circulação e

do fluxo, verificado pela intensificação da multiplicidade e do hibridismo como

potencialidade, há uma força diametralmente oposta gerando estigmatizações

e estandardizações dessas mesmas relações, criando pontos de vista únicos e

modos de ver e dizer sobre-determinados.

Há, porém, assumidamente um esforço de tentar lidar com um cenário

que reconhece, tal qual nos aponta o filósofo italiano Gianni Vattimo, a

perspectiva de que estamos diante de um contexto de “pluralização irresistível,

54
e que torna impossível conceber o mundo e a história segundo pontos de vista

unitários” (Vattimo, 1992, p. 12). Num diálogo direto com o filósofo francês, Jean

François Lyotard (1993), ele argumenta sobre a diluição do ponto de vista

supremo e das grandes narrativas e enfatiza que:

Derrubada a ideia de uma realidade central da

história, o mundo da comunicação generalizada explode como

uma multiplicidade de racionalidades “locais” que tomam a

palavra, finalmente já não silenciadas e reprimidas pela ideia de

que só exista uma única forma de verdadeira humanidade.

(Vattimo, 1992, p. 15)

Essa multiplicidade discursiva, essa comunicação generalizada, essa

tomada de vozes antes silenciadas ou desconsideradas – a libertação das

diferenças – constituíram uma sensação de que o mundo está em permanente

mudança, ao mesmo tempo em que surgem forças conservadoras que buscam

reconfigurá-lo a partir da “nostalgia de uma realidade sólida, unitária, estável”

(Vattimo, 1992, p. 14).

Nesse embate, a chamada “emancipação” tem tido uma

denominação, que também não deixa de ser paradoxal: a de que estamos diante

de um paradigma que advoga em prol de “um mundo onde podemos

teoricamente tudo fazer sem deslocarmo-nos”, ou, nos termos de Zygmunt

Bauman, em prol da “liberdade dos movimentos” (Bauman, 1999, p. 08). Ao

mesmo tempo, esse mesmo mundo vê-se “cheio de ‘abcessos de fixação’, sejam

eles “territoriais ou ideológicos” (Augé, 2010, p. 16).

É em Bauman que vemos uma saída explicativa para esse contexto

paradoxal. Ele argumenta que a mobilidade, sendo um valor “cobiçado”, uma

55
“mercadoria sempre escassa e distribuída de forma desigual, logo se torna o

principal fator estratificador de nossos tardios tempos modernos ou pós-

modernos” (Bauman, 1999, p. 08). Isso nos faz pensar, portanto, em duas

instâncias: na mobilidade como alegoria do pensamento/imaginação espacial,

bem como, fenômeno agenciador da experiência citadina contemporânea. É,

portanto, na relação desses dois aspectos que podemos pensar sobre um “dizer-

cidade” e problematizar, efetivamente, o denominado “paradigma da

mobilidade” (Urry, 2007) como algo efetivamente emancipador:

A mobilities paradigm is not just substantively

different, in that it remedies the neglect and omissions of various

movement of people, ideas and so on. But it is transformative of

social science, authorizing an alternative theoretical and

methodological landscape (Urry, 2007, p. 18).14

Quando a Geografia mudou o nome da disciplina de “Geografia da

circulação e dos transportes” para “Geografia de Redes e Fluxos” e,

posteriormente, para “Geografia da Mobilidade”, não foi apenas uma questão

semântica. Houve, claramente, um entendimento epistemológico desse campo

disciplinar de tentar acompanhar as mudanças e transformações que vêm

ocorrendo no mundo, em suas diferentes escalas.

Tanto Augé (2010), quanto Urry (2007) consideram um aspecto

contextualmente novo na constituição desse horizonte que ora se configura: a

profusão das informações e das imagens. Na cidade contemporânea estamos, a

todo momento, sendo bombardeados por elas. Como consequência disso,

14
Tradução livre: “Um paradigma das mobilidades não é apenas substantivamente diferente, pois remedia
a negligência e as omissões de vários movimentos de pessoas, ideias e assim por diante. Mas é
transformador das ciências sociais, autorizando uma paisagem teórica e metodológica ao exterior”.

56
podemos destacar duas questões fundamentais quando pensamos na

emancipação a partir da perspectiva de Vattimo (1992) e Rancière (2014). Temos

então dois processos sendo comprometidos:

a) a experiência:

A inundação dada pelas informações e imagens tem nos confundido,

nos fazendo pensar que estar informado é ter conhecimento. Vattimo alerta que

“a própria lógica do ‘mercado’ da informação exige uma contínua dilatação

deste mercado, e exige consequentemente que ‘tudo’, de qualquer maneira,

torne-se objecto de comunicação” (Vattimo, 1992, p. 12). Talvez por isso nos

faça bastante sentido a incisiva afirmação feita por Larrosa, de que “A

informação não é experiência” (Larrosa, 2015, p. 18). Atualmente, de forma

equivocada, informação, conhecimento e aprendizagem tornaram-se sinônimos,

“como se aprender não fosse outra coisa que não adquirir e processar

informação”. (Larrosa, 2015, p. 19)

b) o sensível:

Já o comprometimento do sensível refere-se à perspectiva da

“fabricação do sensível” e da “partilha do sensível”, do filósofo francês, Jacques

Rancière. Ao refletir sobre as relações existentes entre estética e política, ele

explica que “os atos estéticos configuram experiências” (Rancière, 2009) e, por

isso, podemos, em face do comprometimento da experiência, reconhecer que

estamos diante de uma “estilização da vida” (Pellejero, 2009, p. 15).

Vivemos uma época na qual o automatismo, o individualismo, a

impessoalidade, a pressa, a insegurança e a velocidade são as grandes marcas

57
do viver citadino contemporâneo. A experiência do habitar urbano está

perdendo a capacidade “negociar sentido” (Bauman, 1999, p. 08). Nesse

contexto, qual seria o ideal de emancipação que nos resta? Vattimo defende a

“oscilação, a pluralidade e, por fim, o próprio ‘princípio de realidade’” (Vattimo,

1992, p. 13) enquanto Rancière (2014) argumenta que é necessário

compreender que “olhar é também uma ação que confirma ou transforma”

aquilo que ele vai chamar de “a distribuição das posições”. Ele afirma que:

A emancipação, por sua vez, começa quando se

questiona a oposição entre o olhar e agir, quando se

compreende que as evidências que assim estruturam as relações

do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação

e da sujeição. (Rancière, 2014, p. 17)

Retomo então a questão do que significaria pensar num dizer-cidade

emancipatório. O antropólogo Massimo Canevacci propõe um modo de estar

no mundo que se alinha às questões com as quais estamos lidando. Para ele, é

necessário “estranhar toda a familiaridade possível com a cidade e, ao mesmo

tempo, familiarizar-se com suas múltiplas diferenças” (Canevacci, 2004, p. 30),

tornando-nos deste modo, estrangeiros no lugar, aventurando-nos a percorrer

outros caminhos, a olhar por variados ângulos, destacando as multiplicidades e

nos deixando contagiar pelas estranhezas que nos cercam, ou ainda, nas

palavras do autor, “olhar obliquamente o superconhecido” (Canevacci, 2004, p.

31).

Podemos também dialogar com outra perspectiva, apresentada pelo

Antropólogo francês Michel Agier (2011), em seu livro Antropologia da Cidade.

58
O autor propõe uma mudança na seguinte questão: ao invés de dizermos: “o

que é a cidade?”, o que aconteceria se perguntássemos: “o que faz a cidade?”.

Talvez assim possamos assumir uma orientação que tome a cidade não

mais como “‘uma coisa’ que eu possa ver, nem ‘um objeto’ que eu possa

apreender como totalidade” (Agier, 2011, p. 38), não mais como “uma

abstração teórica, generalizadora” (Agier, 2011, p. 20) e sim, como algo

relacional e situacional, pois, “o próprio ser da cidade surge, então, não como

um dado, mas como um processo, humano e vivo, cuja complexidade é a própria

matéria da observação, das interpretações e das práticas do ‘fazer a cidade’”

(Agier, 2011, p. 39).

Encontro reverberação das reflexões de Agier, quando lido com a ideia

de “cidade polifônica”, de Massimo Canevacci. Nas palavras do autor, a

polifonia:

Designa uma determinada escolha metodológica de

“dar voz a muitas vozes”, experimentando assim um enfoque

polifônico com o qual se pode representar o mesmo objeto –

justamente a comunicação urbana. A polifonia está no objeto e

no método. (Canevacci, 2004, p. 17-18)

Ao falar que a polifonia está no objeto e no método, Canevacci faz coro

com Urry (2007) e nos aponta para a necessidade metodológica e conceitual de

ver, no sentido de reconhecer, e de como dar a ver a uma multiplicidade que

surge, tanto no plano material, quanto no plano discursivo; tanto no plano da

experiência, como no plano do sensível, que são, por assim dizer, a “recitação

de movimentos” (Tavares, 2013, p. 170) de um pensar e sentir a cidade e suas

muitas grafias possíveis.

59
Tavares fala dessa “recitação de movimentos, talvez da mesma

maneira como nos referimos à recitação de poemas” (Tavares, 2013, p. 170).

Podemos pensar, então, numa poética do habitar a cidade contemporânea, não

como fato verificável, mas como uma potencialidade combativa diante de fluxo

de passividade, automatismo e repetição, ou seja, contra a mera reprodução de

uma experiência do viver metropolitano mecanizado, que toma de assalto os

lugares e converte nossa relação com eles em um mero princípio mercadoria-

consumo. Poética do habitar é, por assim dizer, aquela em que existe porque

abdicas de ser completamente individual. Decide entender-se com outros.

(Tavares, 2013, p. 172)

Em face disso, reconhecemos o quanto “somos, da cidade, parte

indissociável. Somos vozes, olhos, bocas, palavras, desejos, pensamentos...”

(Queiroz Filho; Damiani; Borges, 2013, p. 72). E, com isso, autorizo-me a fazer

coro com aqueles que reivindicam um urbanismo lento, uma estética do

caminhar, uma postura diante do mundo que se faz na observação minuciosa,

na problematização daquilo que se põe diante de nós. Coloco-me à disposição

de um “dizer-ver-cidade” como pluralidade e à um pensar a cidade, ver a cidade

e sentir a cidade como um corpo pulsante.

- sobre o fazer-cidade: é possível?

Contra o ortodoxo, é como poderíamos intitular o livro “Morte e Vida

de Grandes Cidades”, da escritora norte-americana, Jane Jacobs. Suas palavras,

mais que apenas teoria científica, são alimento para um fazer-cidade na

perspectiva de um “ataque aos fundamentos do planejamento urbano” (Jacobs,

2011, p. 01) e conclui seu raciocínio dizendo: “escreverei sobre o funcionamento

das cidades na prática (Jacobs, 2011, p. 01).

60
Ainda que essa prática seja, para Jacobs, uma forma de olhar para as

cidades como um “grande laboratório”, lugar de “teste” onde se coloca à prova

as teorias do planejamento urbano (Jacobs, 2011, p. 05) – o que podemos

considerar como uma perspectiva utilitarista – ela faz reverberar a ideia de

pensar o mundo a partir do contato direto com o fluxo da vida e, o que exige

de nós, dentre tantas coisas, uma mudança de escala: olhar mais “de perto” e

menos “de cima”. É possível?

Quando li Massey (2008) afirmar que, para ela, “a teoria surge da vida”,

aquilo me soou de uma forma, que poderia dizer, transformadora. Esse era uma

espécie de “estado de espírito” que me acompanhava silenciosamente. Mesmo

quando a escritora e poetiza Clarice Lispector (1998a, p. 64) já tendo dito:

“Alimento-me delicadamente do cotidiano trivial”, foi com Doreen Massey que

pude dar voz a uma perspectiva conceitual e metodológica de investigar o

mundo – fazer cidade – a partir daquilo que muitos consideram banal,

colocando-os sempre na condição de indigência investigativa, qualificando-os,

muitas vezes, como indignos de se tornar objeto de preocupação científica.

Contrariamente, isso é o que me interessa: sermos habitados pela “harmonia

secreta da desarmonia”, ou aquilo que “não o que está feito mas o que

tortuosamente ainda se faz” (Lispector, 1998a, p. 12). É possível?

Como te explicar? Vou tentar. É que estou

percebendo uma realidade enviesada. Vista por um corte

oblíquo. Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via

através de cortes retos e paralelos. (...) A vida oblíqua é muito

íntima. (Lispector, 1998a, p. 62-63)

61
Nessa perspectiva, a intimidade, ou seja, o caráter proximal da vida

urbana tem me interessado de um modo peculiar e a “obliquidade” (Canevacci,

2004) tem se tornado um desafio perene, assim como foi instigante para

Massimo Canevacci quando ele saiu de Roma e se deparou com a imensidão da

cidade de São Paulo, a “Cidade patchwork” (Canevacci, 2004, p. 10). Partilho

dessa “descoberta do olhar” em que olhar “obliquamente o superconhecido” é

premissa quase que inalienável à captura da polifonia como uma possibilidade

de fato. É possível?

Tanto com o poeta Manoel de Barros, como com o escritor português

Gonçalo M. Tavares, tenho aprendido a combater as formulações de um fazer-

cidade pré-fabricado e a reconhecer como método, o “errar, circular, hesitar em

redor do que não tem solução” (Tavares, 2013, p. 28), bem como, a “escovar as

palavras” até elas virarem “desobjeto” (Barros, 2010).

Eis então um fazer-cidade-poema. Ele diz respeito a uma não captura

pela “palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar” (Barros, 2010,

p. 43), nem serve de invólucro para as grandes teorias explicativas e suas

“gavetas”, que são, nas palavras de Tavares, “organizadores verbais” (Tavares,

2013, p. 28):

Pensamos, de facto, por conceitos, mas as

gavetas com comunicação múltipla entre si, com buracos,

com declives, com passagens óbvias e outras mais secretas

são divertidas; gavetas que segurem não materiais sólidos,

mas líquidos, materiais cuja essência seja o movimento,

materiais que não estão num sítio: circulam entre sítios

(Tavares, 2013, p. 29).

62
Do mesmo modo, como docemente nos diz Manoel de Barros: “O

tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as

coisas” (Barros, 2010, p. 67). É possível?

Canevacci ainda não tinha intimidade com São Paulo quando a viu pela

primeira vez. Como pôde ele então se dispor à polifonia? Porque era ele. Ser

privilegiado? Não. Ser oblíquo, entregue à disposição de se lançar ao

desconhecido. Ele se permitiu perder-se. Em desapego, lançou-se ao “fluir das

emoções” (Canevacci, 2004, p. 14).

Estou convencido de que é possível elaborar

uma metodologia da comunicação urbana mais ou menos

precisa, com a seguinte condição: a de querer perder-se¬,

de ter prazer nisso, de aceitar ser estrangeiro,

desenraizado e isolado... (Canevacci, 2004, p. 15)

Essa era a sua intimidade e a sua circularidade: sim, é possível.

- sobre o sentir-cidade: espaço-poema

Retomo o diálogo com Doreen Massey. Na verdade, quero fazer um

paralelo entre a primeira parte de seu livro – Pelo Espaço (2008) e a bela obra

de Ítalo Calvino, As Cidades Invisíveis (1990). Ambos tratam a cidade como

imaginação espacial. Massey primeiro nos explica sobre o papel fundamental

dos relatos nas “viagens de descoberta”.

Nessa prática discursiva aparentemente inocente, alerta Massey ao

analisar o caso dos Astecas, os habitantes a serem conquistados foram

“desprovidos de história”, como se estivessem “imobilizados” aguardando a

63
chegada de seus conquistadores. O resultado político de discursos como esse é

o de perpetuar uma imaginação que toma o espaço como superfície. Fazendo

isso:

Tal espaço torna mais difícil ver, em nossa imaginação, as histórias que

os astecas também estavam vivendo e produzindo. O que poderia significar

reorientar essa imaginação, questionar o hábito de pensar o espaço como uma

superfície? (Massey, 2008, p. 23)

Para Calvino (1990), as cidades percorridas nas viagens de Marco Polo,

a mando do Imperador Kublai Khan, não subsistiam a um discurso que se

fundava num espaço como superfície – que seria o espaço-Zora – aquele “que

tem a propriedade de permanecer na memória”, pelos simples motivo: todos a

conheciam de cor, pois ela havia sido “obrigada a permanecer imóvel e imutável

para facilitar a memorização” ou o espaço-Tamara, feito de “figuras de coisas

que significam outras coisas”, como “o torquês que indica a casa do tira-

dentes”. Símbolos nos ensinando que o olhar percorre as ruas como se fossem

páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o

discurso, e, enquanto você acredita estar visitando Tamara, não faz nada além

de registrar os nomes com os quais ela define a si própria e todas as suas partes.

Há, sem dúvida, outras formas de se imaginar o espaço, como

reivindica Doreen Massey. Em Calvino, há o exemplo do espaço-Dorotéia, dito

tanto pela descrição detalhada de suas formas, objetos e dados

matematicamente calculados, quanto pelo mapa-memória do cameleiro que

guiou Polo. O espaço-Zaíra, que comunica sua história pelos “ângulos das ruas”,

“grades das janelas”, ou seja, “pela medida de seu espaço e os acontecimentos

do passado”, a exemplo:

64
dos rasgos nas redes de pesca e os três velhos
remendando as redes que, sentados no molhe, contam pela
milésima vez a história da canhoneira do usurpador, que dizem
ser o filho ilegítimo da rainha, abanado de cueiro ali sobre o
molhe.

E o passado da imaginação e da poesia contida nessa história dos três

velhos, e nas demais aqui referidas como outras formas de se imaginar o espaço,

presentifica-se no instante em que palavra e imagem fundem-se numa memória,

que se pode dizer, poeticamente, é uma “memória inventada” (Barros, 2010).

Feita de desprezo, pedaços de madeira velha, alguns insetos rasteiros, terra

molhada e um olhar ingenuamente curioso que coloca tudo aquilo numa caixa

de inutilidades e os mistura. Depois disso, já não se pode mais distinguir o ver,

dizer, fazer e sentir: tudo passa a ser.

- da fabricação do sensível: diver-cidade

Diferente da memória-inventada de Manoel de Barros, a imaginação

pré-fabricada corresponderia ao termo “falso”, da expressão “tudo que não

invento é falso”. É aquela que impede ou diminui potencialmente a nossa

capacidade poético-criadora e se constitui como a experiência em si mesma. O

urbanista americano Kevin Lynch chama atenção para o ato de olhar as cidades.

Por mais corriqueira e repetida que possa ser nossa prática cotidiana, Lynch nos

diz que “Nada é vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação aos seus

arredores, às sequências de elementos que a ele conduzem, à lembrança de

experiências passadas” (Lynch, 2010, p. 01).

65
As paisagens urbanas pré-fabricadas tiram-nos dessa possibilidade,

múltipla e inventiva. Parafraseando Lynch (2010), não devemos levar em

consideração as paisagens urbanas (as cidades) como coisas em si mesmas, mas

o modo como elas são experienciadas e produzidas, afinal de contas, “Uma

paisagem na qual cada pedra conta uma história pode dificultar a criação de

novas histórias” (Lynch, 2010, p. 07).

E há paisagem mais pré-fabricada que aquelas dos grandes

condomínios de luxo? O urbanista e historiador americano Mike Davis (2009) os

denomina de “lugares esterilizados”, de “domicílios verdejantes”, partícipes de

uma lógica que, segundo o autor:

Evoca muito da evolução anterior das casas pré-

fabricadas do Sul da Califórnia. Mas os empreendedores não

estão somente reempacotando o mito (a boa vida nos

subúrbios) para a próxima geração; estão também se

aproveitando de um novo medo crescente da cidade. (Davis,

2009, p. 40)

A produção do medo também tem sua fórmula pronta, a exemplo da

análise feita pelo referido Mike Davis no livro “A Cidade de Quartzo”, quando

fala do modo como o “mito do santuário no deserto” foi desfeito por meio de

uma série de atos de violência ocorridos a partir da virada do ano novo de 1990

(Davis, 2009). Mas há uma outra forma de pré-moldado que Davis trata muito

bem: a imagem da cidade. Ele relata que:

Um de meus novos campañeros de Llano disse que

LA já estava em toda parte. Eles assistiam todas as noites em

66
San Salvador, em infinitas reprises dubladas de Eu amo Lucy e

de Starky and Hutch, uma cidade onde todos eram jovens e

ricos, dirigiam carros novos e se viam na televisão. (Davis, 2009,

p. 47)

Tais imagens espetaculares de LA eram a grande imaginação espacial

mobilizadora, não apenas dos sonhos de muitos que se dirigiam até lá, como os

migrantes ilegais que se arriscavam na aventura de cruzar as fronteiras

“superprotegidas” ou os astros do cinema hollywoodiano e suas ações de

refúgio e auto-reclusão. Essa prática discursiva é o que legitimava uma condição

de cidade feita imagem, produzida no intervalo entre existência e devir, que é o

mesmo daquele entre da Clarice Lispector quando ela diz: “quero uma verdade

inventada” (Lispector, 1998a, p. 13).

E assim nascem as reflexões que assumem a poética como suas

constituintes. Elas propõem-se pensar a cidade no contexto da mobilidade

sobremoderna, para além da perspectiva funcionalista e mecanicista. As

principais marcas do viver citadino contemporâneo e os principais paradoxos do

paradigma da mobilidade passam a servir como “matéria de poesia”. Essa é a

premissa da poesia de Manoel de Barros. Ela não tem o compromisso com a

“verdade”, nem ao menos pretende explicar qualquer coisa. Como ele mesmo

diz: a poesia serve para aumentar o mundo”.

E não seria diferente com uma Geografia que vislumbra “aumentar o

mundo”. Da experiência capturada pelas imagens clichês, esgarça-se a

paisagem consolidada de forma instantânea e automática em nossas memórias.

Aumentamos nossos horizontes imaginativos e assim provocamos a gramática

da imagem a dizer de outro modo.

67
Então, analisar a cidade contemporânea é também compreender o

papel que as imagens e o corpo têm desenvolvido sobre a vida urbana atual,

dado um contexto de mundo dominado pelas narrativas e discursos da

visualidade. Nas palavras de Marc Augé, esse contexto corresponde ao que ele

chama de “ideologia do sistema da globalização, uma ideologia da aparência,

da evidência e do presente” (Augé, 2010, p. 16).

Esse aspecto de produção e circulação das imagens tem modificado a

própria forma em que diversas áreas do conhecimento têm buscado pensar a

cidade como uma categoria que está para além dos aspectos materiais

concretos. É o que ressalta John Urry quando diz que:

I thus seek to bring into vision how social life

presupposes many issues of movement and non-movement, of

forced movement and of chosen fixity, of people, images, ideas

and objects. (Urry, 2007, p. 17 – grifos meus)15

Ao enfatizar imagens, corporalidades e ideias como partícipes

fundamentais do contexto contemporâneo, toma-se como ponto de partida um

cenário de mundo em que os mais variados meios, (cinema, televisão, fotografia,

internet, etc.), participam, sem precedentes, do nosso modo de pensar-agir

(Almeida, 1999; Oliveira Jr.., 2009):

A estética como artifício de fabricação da nossa

sensibilidade se transformou numa mercadoria por excelência,

objeto de produção, circulação e consumo, realizando de forma

15
Tradução livre: “Procuro, assim, vislumbrar como a vida social pressupõe muitas questões de
movimento e não movimento, de movimento forçado e de fixidade escolhida, de pessoas, imagens, ideias
e objetos”.

68
fantástica o velho axioma: cria-se não apenas uma mercadoria

para o sujeito, mas criam-se, também, sujeitos para a

mercadoria. É este hoje o estatuto da imagem. (Novaes, 2005,

p. 10)

Assumo, portanto, a compreensão do espaço inventado pelas câmeras

fotográficas e pelas narrativas de tevê como parte necessária para um

aprofundamento em questões que passam tanto pela “venda” de uma

imaginação espacial pelos produtos, que se desdobra em práticas espaciais e

discursivas cada vez mais atreladas à constituição de novos entendimentos na

relação Cidade-Imagem como lugar-mercadoria / paisagem-produto de uma

retórica de um capitalismo global.

Vende-se um estilo, um conceito, uma simbologia,

uma forma de pensar e de agir no mundo, que está sempre

ligado ao consumo de um determinado produto e que este

consumo está ligado uma coletividade que é mundial. A

funcionalidade perde foco e o que passa a contar, de fato, é o

que ou quem o indivíduo se torna para o mundo ao consumir

uma dada funcionalidade. (Queiroz Filho, 2010, p. 06)

Milton José de Almeida argumenta que os programas de tevê

“expressam em imagens e palavras, valores e mensagens diversas e participam,

de diferentes maneiras, da grande construção mítica da sociedade

contemporânea” (Almeida, 1999, p. 04) e fazem isso promovendo aquilo que

ele denomina de “catecismo visual”, dado o papel atribuído às imagens

69
televisivas como sendo verdadeiras “celebrações visuais de modos de ver e

estar no mundo” (Almeida, 1999, p. 05).

Assim, ao olharmos para a produção e circulação de imagens como

grandes paisagens e territórios narrativos, estamos na esteira do argumento de

Oliveira Jr. quando fala de uma “paisagem única” que se dá, em grande medida,

“pela lógica da mercadoria, tornando o mundo um amontoado de lugares a

serem consumidos” (Oliveira Jr., 2008, p. 02).

Estamos diante do desafio, portanto, de tentar compreender qual

“paisagem única” está sendo construída e qual a lógica da imaginação espacial

e seus desdobramentos na imaginação do político (Massey, 2008) sobre os

índices do principal paradigma que têm pautado a produção da cidade

contemporânea, a saber, a mobilidade sobremoderna.

Esse imaginar espacial, nas palavras da própria Massey, não está

descolado do imaginar político, “afeta o modo como entendemos a

globalização, como abordamos as cidades e desenvolvemos e praticamos um

sentido de lugar” (Massey, 2008, p. 15). O esforço de investigação que tenho

empreendido diz respeito à tentativa de se buscar entender os desdobramentos

dessas políticas da visualidade e da corporalidade, que ora se constituem

naquilo que têm sido considerados como as “novas políticas da espacialidade”

(Massey, 2008), o que implica, necessariamente, em novas configurações

materiais e simbólicas para o próprio fazer geográfico.

É como se estivéssemos diante de uma grande paisagem conceitual

que tem se colocado em movimento ou, ainda, assumido o movimento como

sua maior potência. Isso implica dizer, em grande medida, que sua força motriz,

de maneira mais intensa, tem se colocado diante de outras miradas, outros

pontos de vista. Isso seria, nos termos do poeta Manoel de Barros (2010b), fazer

da Geografia Contemporânea um “esticador de horizontes”, portanto, uma

70
Geografia que toma o mundo como uma potência criadora e criativa para suas

– muitas – grafias.

71
DANÇA, alguém dança

- Nomear aquilo que é resultado do viver a dança, resultado do processo de


fazer do corpo um corpo que dança. Nomeação como gesto imersivo,
transbordante, fruto da suspensão da opinião, do juízo e de qualquer outro tipo
de “automatismo da ação”.

72
Não há dança sem um sujeito que dança. Não há sujeito que dança

sem corpo. Não há corpo que dança sem experiência. Assertivas alinhavadas

num entendimento que me permite pensar na dança enquanto “fluxo de

impressões sensíveis”, porque, como explica Gallina, a “Experiência é o

conjunto daquilo que aparece e, enquanto tal, puro movimento, puro

devir”. (2007, p. 129):

Ora, nesse sentido, as impressões não são mais

propriedades exteriores àquele que as experimenta, mas

também interiores, ou melhor, elas se constituem na relação, no

intermédio, como algo do qual o sujeito que percebe, de

alguma forma participa para o seu surgimento, ou, nas palavras

de Deleuze, constrói, cria (Gallina, 2007, p. 130).

Dança é, portanto, construção, criação, algo da ordem da ação e

também, do diálogo, aqui entendido como o processo do sujeito que “reflete e

se reflete”, para continuar com Gallina. Ela explica que:

daquilo que o afeta em geral, ele extrai um poder

independente do exercício atual, isto é, uma função pura, e ele

ultrapassa sua parcialidade própria. Por isso tornam-se possíveis

o artifício e a invenção. O sujeito inventa, ele é artificioso. É esta

a dupla potência da subjetividade: crer e inventar (Gallina, 2007,

p. 131);

É, pois, sobre essa égide, a do “sujeito que inventa”, que me apego

toda vez que alguém questiona o modo como tenho me envolvido com a dança.

73
É preciso explicitar que a importância de se nomear tais processos, esses

mesmos recolhidos no mergulho intensivo da experiência de aprendiz de

bailarino, consiste na premissa de que é isto que permite ao sujeito inventivo

fazer de suas percepções um produto da imaginação. É o que diz Gallina quando

explica que “A relação que existe entre duas percepções não depende das

percepções, depende apenas da imaginação” (2007, p. 131).

Nomear é, portanto, gesto de criação. Gesto esse que passa, muitas

vezes, pelo sentar num canto da sala de aula e se por passivamente diante de

tudo aquilo que estava “acontecendo”, para fazer jus ao sentido larrosiano de

experiência. Gesto esse que é o da observação lenta e ativa. Esse é o sentido

do intensivo que aqui coloco. Corpo intensivo. Disso fala Lourence Louppe no

livro “poética da dança contemporânea”. Ela diz que:

Só compreendemos a arte do movimento se

integrarmos os seus saberes e, geralmente, se nos envolvermos

nessa atividade, nesse poiein em que os processos de

elaboração já se encontram repletos de toda a complexidade

artística que revelam (...) É, mais ou menos, o único caminho

para alcançar o pensamento de uma arte: observar não somente

o produto acabado, mas a produção em acção dentro da obra.

Depois de Paul Valéry, Henri Meschonnic recorda que “só existe

teoria na e pela prática”. (Louppe, 2012, p. 30-31).

É importante pontuar algo que trata do “saber da experiência” numa

pesquisa sobre dança, realizada por alguém que não é um profissional da área.

Em Braga, por exemplo, onde o bailarino é tido como um atleta, o adulto “não

tem vez”. Lembro claramente da feição de espanto das mamães todas as vezes

74
que eu saia da sala ao fim das muitas horas de aulas e ensaios. Certo dia cheguei

inclusive a ouvi-las cochichando em tom especulativo sobre minha idade.

Nesse mesmo dia, várias crianças vieram me perguntar quantos anos

eu tinha. Respondi para uma delas, em tom de brincadeira, que tinha a idade de

ser o pai dela. Gostaria de ter registrado em foto aquele semblante. Ela,

demonstrando uma completa confusão, afirmou que era impossível eu ser seu

pai, pois o mesmo jamais conseguiria fazer uma aula de ballet. E o fato de estar

ali, junto com ela, colocava minha afirmação num lugar de confusão e absurdo.

Confesso: fiquei feliz e triste ao mesmo tempo.

Já no Brasil, vivenciei, inúmeras vezes, o outro extremo da situação.

Perdi a conta de quantas vezes ouvi, em tom de deboche, que dançar é apenas

um passatempo. Uma colega mesmo do ballet chegou a afirmar, nesse sentido,

que um dia gostaria de ter “essa vida”, de passar o dia todo dançando, como

se estivesse dizendo assim: gostaria de passar o dia todo sem fazer nada ou o

dia todo realizando uma atividade de lazer. Como se, de algum modo, o único

matiz sensível que um corpo mobilizasse ao dançar, fosse a de prazer no seu

sentido mais abobalhado.

Nem preciso entrar no mérito da questão daqueles que são

profissionais da dança para problematizar como esse tipo de pensamento é

equivocado. Mas quero sim enfatizar a importância do estudo teórico numa arte

qualificada como efêmera. Refiro-me ao entendimento do “nomear” como algo

que está longe de ser uma questão terminológica apenas, como ressalta Larrosa.

Ele diz que:

As palavras com que nomeamos o que somos, o que

fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que

sentimos são mais do que simplesmente palavras. E, por isso, as

75
lutas pelas palavras, pelo significado e pelo controle das

palavras, pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento

ou desativação de outras são lutas em que se joga algo mais do

que simplesmente palavras, algo mais que somente palavras

(Larrosa, 2015, p. 18).

Jogo duplo, esse: nomear aquilo que é resultado do viver a dança,

resultado do processo de fazer do corpo um corpo que dança. Nomeação como

gesto imersivo, transbordante, fruto da suspensão da opinião, do juízo e de

qualquer outro tipo de “automatismo da ação” (Larrosa, 2015).

Uma geografia bailarina é, portanto, uma geografia da experiência,

essa de que fala Larrosa. Nesse sentido, uma geografia que aprendeu a:

Parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar,

pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais

devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos

detalhes (...) cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e

os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão,

escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter

paciência e dar-se tempo e espaço (Larrosa, 2015, p. 25)

Por esse motivo, considero aquilo que escrevo como um mapa de

afetos. Porque, se a experiência é uma paixão, como afirma Larrosa, meus

relatos não poderiam indicar outras coisas, senão, deslocamentos, impasses,

aberturas, fragmentos, pausas, espantos, gozos, silêncios. Eis uma cartografia,

no sentido deleuziano do termo. Ela realiza, portanto, uma partilha daquilo que

tem agenciado em mim, planos imanentes que alinhavam uma geografia

bailarina, que se realiza, dentre muitas coisas, na potência das emoções:

76
Uma emoção não seria uma e-moção, quer dizer, uma

moção, um movimento que consiste em pôr para fora (e-, ex) de

nós mesmos? Mas se a emoção é um movimento, ela é, portanto,

uma ação: algo como um gesto ao mesmo tempo exterior e

interior. (Didi-Huberman, 2016, p. 26)

Já faz certo tempo que as emoções deixaram de ser consideradas

como um ato primitivo, pelo menos pelas ciências humanas. Posso afirmar,

amparado em autores como Didi-Huberman e Jacques Rancière, que a

sensibilidade é uma das formas de inteligência mais refinadas, exercendo,

portanto, papel político fundamental em tempos de velocidade, aparência e

instantaneidade.

Didi-Huberman, por exemplo, explica como Hegel, Nietzsche,

Merleau-Ponty e Gilles Deleuze argumentam sobre o papel das emoções como

algo que passa longe de ser impassividade, subjugo, inferioridade ou qualquer

coisa nesses termos. Todos eles, de algum modo, demonstram que a emoção

“é um modo de conhecimento sensível e de transformação ativa de nosso

mundo” (Didi-Huberman, 2016, p. 26) e, principalmente, que:

A emoção não diz “eu”: primeiro porque, em mim, o

inconsciente é bem maior, bem mais profundo e mais transversal

do que meu pobre e pequeno “eu”. Depois porque, ao meu

redor, a sociedade, a comunidade dos homens, também é muito

maior, mais profunda e mais transversal do que cada pequeno

“eu” individual (Didi-Huberman, 2016, p. 30)

77
Não interessa aqui, portanto, pautar o debate na perspectiva que

antagoniza fisiologia e psicologia. Interessa pensar emoção como movimento e

partilha, como tomada de posição, realização de significado, constituição de

mundo. Tomo emprestado, para me assegurar dessa assertiva, aquilo que

Jacques Rancière (1995) diz sobre o ato da escrita como um ato político. Para o

autor: “escrever é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a essa

ocupação” (p. 07) que, por sua vez, constitui “uma relação entre os modos de

fazer, os modos de ser e os do dizer” (p. 08).

Uma geografia de emoções, como uma escrita, contempla um modo

de ocupação dos corpos que se põem a discutir o fazer geográfico no contexto

de uma ciência menos sujeita de si, portanto, menos tautológica, uma ciência

menos matter of fact, para citar Bruno Latour (in: Nunes; Roque, 2008) e mais

articulada e propositiva:

Habituei-me a usar o termo proposições para descrever

aquilo que é articulado. Este termo conjuga três elementos

fundamentais: a) denota uma obstinação (posição), que b) não

tem autoridade definida (é apenas uma pro-posição) e c) pode

aceitar negociar-se a si própria para formar uma com-posição sem

perder a solidez (Latour in: Nunes; Roque, 2008, p. 45).

Nesse sentido, assumo aqui o desejo de produzir uma Geografia que

considera e defende a perspectiva de que ciência e arte estão no mesmo

patamar, possuem a mesma “autoridade”, ou como melhor diz Deleuze e

Guattari (2010), “são igualmente criadoras” (p. 11). Colocá-las à revelia uma da

outra é uma recusa que faço, do mesmo modo como também faz o “nativo

relativo” (2002) apresentado por Eduardo Viveiros de Castro.

78
Nesse texto, o autor trata do modo como os discursos do antropólogo

e do nativo transformam um ao outro reciprocamente. Isso porque toda

transformação, nesses termos, implica no reconhecimento de uma constituição

relacional, que não é de identidade, nem hierárquica, ressalta o autor. O que

Viveiros de Castro propõe é uma “igualdade ativa” entre os discursos. Essa

tomada de posição remete a uma proposição, referida na concepção de outrem.

Assim, o autor explica que:

Outrem não é, portanto, um ponto de vista particular,

relativo ao sujeito (o “ponto de vista do outro” em relação ao meu

ponto de vista ou vice-versa), mas a possibilidade de que haja

ponto de vista - ou seja, é o conceito de ponto de vista. Ele é o

ponto de vista que permite que Eu e o Outro acedam a um ponto

de vista (...) Outrem é a expressão de um mundo possível (Castro,

2002, p. 118)

Ciência e arte estabelecem, portanto, uma variação relacional que

opera nas e pelas diferenças. O que fazer com elas é ponto interessante. Para

Viveiros de Castro, a questão passa pelo fato de que, ao enunciar sobre o

discurso do nativo, o antropólogo enuncia sobre si mesmo. Apresenta, portanto,

sua esteira epistêmica. E se pensarmos o mesmo sobre ciência e arte? E se

levarmos à última consequência, como aponta o autor, a ideia de internalizamos

aquilo que é considerado disparidade entre esses dois mundos e

potencializarmos os atravessamentos?

O fato é que minhas verdadeiras preocupações de pesquisa, por ora,

nem chegam nesse patamar de reflexão, mas de certo modo, elas são um pano

de fundo necessário de ser reconhecido, principalmente se considerarmos uma

79
“ciência” que assumiu para si, uma “arte” como sua fonte “epistêmica”. Sim,

para que isso seja dito é necessário, de fato, muitas aspas.

Viveiros de Castro está lá preocupado com sua Antropologia enquanto

“confraefetuação de conceitos”16. Afirma ele em “metafísicas canibais” que:

Aceitar a oportunidade e a relevância desta tarefa de

“penser autrement” (Foucault) o pensamento - de pensar

“outramente”, pensar outra mente, pensar com outras mentes - é

comprometer-se com o projeto de elaboração de uma teoria

antropológica da imaginação conceitual, sensível à criatividade e

a reflexividade inerentes à vida de todo coletivo, humano e não-

humano (Castro, 2015, p. 25).

Fazer juntar esses “outros” me fez lembrar Carlos Skliar ao comentar

um trecho o livro "La expulsión de lo distinto” (a expulsão do diferente), do

escritor sul-coreano Byung-Chul Han.

16
Eduardo Yuji Yamamoto explica que “Efetuar e Contraefetuar constituem duas atividades opostas,
porém necessárias e complementares para a prática filosófica: produzir conceitos. Efetuar significa
conceituar, delimitar a potência semântica das coisas, aprisionar (totalizar ou saturar semanticamente) o
Ser. Contra- efetuar, ao contrário, significa liberar o Ser desta prisão ontológica (des-ontologizar), criar
linhas de fuga (um sentido) para o devir. A contraefetuação, neste caso, libera o Ser para as forças em si,
sem mediação das formas (como o fazem as filosofias abstratas e transcendentes). Conceituar, neste caso,
constitui uma atividade incessante de aprisionamento e libertação do sentido” (YAMAMOTO, 2012, p.
116).

80
Los tiempos em los que existía el otro se han ido. El
otro como misterio, el otro como seducción, el otro como eros,
el otro como deseo, el otro como infierno, el otro como dolor va
desaparecendo. Hoy, la negatividade del otro deja paso a la

positividad de lo igual. La proliferación de lo igual es lo que

constituye las alteraciones patológicas de las que está aquejado

el cuerpo social17 (Han, 2017, p. 09 – grifos meus)

Skliar conclui que “toda semelhança com a realidade é verdadeira

coincidência”. É, pois, diante desse desafio que me vem outra questão, que

versa sobre o que se quer dizer e como se quer fazer esse “juntar”. Minha

escolha se dá, nesse sentido, na esteira daquilo explica Luciano Bedin da Costa

no texto “O Ritornelo em Deleuze-Guattari e as três éticas possíveis”18.

Segundo o autor, há em Deleuze e Guattari, uma ética da

experimentação, com seus artefatos de risco e força; uma ética da prudência

necessária, que trata da metamorfose e do escape como um jogo que se joga

pelo simples prazer de jogar; bem como, uma ética do improviso, algo da ordem

do aberto e do transitório.

Junção, portanto, pela ética-estética-política deleuze-guattariana, na

esteira de sua filosofia das impressões sensíveis. Por isso me faz tanto sentido a

proposição de “não explicar, nem interpretar: multiplicar, e experimentar”

(Castro, 2002). Por isso tenho cada vez menos me preocupado em escrever num

17
Tradução livre: “Os tempos em que existia o outro foram-se. O outro como mistério, o outro como
sedução, o outro como eros, o outro como desejo, o outro como o inferno, o outro como dor vai
desaparecendo. Hoje, a negatividade do outro deixa passar para a positividade do mesmo. A proliferação
da mesma forma é o que constitui as alterações patológicas de que o corpo social sofre”.
18
Cf.: http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/005e2.pdf

81
tom explicativo e tautológico e muito mais, lidar com a perspectiva da partilha

das articulações que tenho tentado fazer.

Por ora, é o corpo que dança em contato com a cidade-poesia meu

cenário de interesse. Eu poderia dizer que realizar tais articulações tem se

constituído como um desafio, mas não. Tem se constituído, de fato, como

emoção, portanto, como movimento que realiza passagens, que realiza

transformações, nos termos que argumenta Viveiros de Castro quando diz que:

O que toda experiência de uma outra cultura nos

oferece é a ocasião para se fazer uma experiência sobre nossa

própria cultura; muito mais que uma variação imaginária -

introdução de novas variáveis ou conteúdos em nossa imaginação

- é a própria forma, melhor dizendo, a estrutura da nossa

imaginação conceitual deve entrar em regime de variação,

assumir-se como variante, versão, transformação (Castro, 2015, p.

21-22).

É o que estou buscando: fazer da geografia uma ciência que diz: “Que

emoção! Que emoção?” (Didi-Huberman, 2016)19. E é nesse contexto que surge

meu mapa de afetos. Ele partilha os gestos e movimentos que tenho tentado

realizar nesse percurso que já chamei de Geografias da Dança e hoje prefiro

dizer que ele é “por” um Geografia Bailarina.

E foi na articulação entre o processo de constituição de um sujeito da

experiência dada pela minha condição de aprendiz de bailarino que me coloquei

a pensar sobre esse processo de aquisição de um corpo que dança, que seria,

19
Didi-Huberman (2016) explica que a exclamação indica a intensidade da experiência, já a interrogação,
o esforço de reflexão.

82
dentre outras coisas, a descoberta de si mesmo diante da realização de algo que

faz de nós um dispositivo de reverberar afetos.

83
AFETAR, ser afetado

- Se aprender a ter um corpo implica em aprender a ser afetado. Ser afetado,


então, é marca definidora daquilo que nos constitui como “território de
passagem”, corpo vibrátil, superfície sensível.

84
O ensinar a dançar é, dentre tantas coisas, ensinar a ter um corpo,

que seria, nos termos de Bruno Latour, “aquilo que deixa uma trajectória

dinâmica através da qual aprendemos a registar e a ser sensíveis àquilo de que

é feito o mundo”. Disso fala o autor no texto “Como falar do corpo”, onde o

mesmo explica sobre o processo de aquisição de narizes, dado pela indústria de

perfumes. Ele explica que:

pelo treino, aprendeu a ter um nariz que lhe permite

habitar um mundo odorífico amplamente diferenciado. As

partes do corpo, portanto, são adquiridas progressivamente ao

mesmo tempo em que as “contrapartidas do mundo” vão sendo

registadas de nova forma. Adquirir um corpo é um

empreendimento progressivo que produz simultaneamente um

meio sensorial e um mundo sensível (Latour, In: Nunes; Roque,

2008, p. 40).

É com esse processo que me permito pensar a dança como uma

experiência geográfica. Porque, se aprender a ter um corpo implica em aprender

a ser afetado. Ser afetado, então, é marca definidora daquilo que nos constitui

como “território de passagem”, corpo vibrátil, superfície sensível.

Ao adquirirmos um corpo que dança, ocorre uma dupla

transformação. Do mesmo modo que o “olhar geográfico” se transforma num

“corpo geográfico”, esse mesmo corpo, que diz respeito aquele que dança,

passa a lidar e a produzir uma geografia outra, resultado desse processo de

aquisição, não de novas formas de saber das coisas, para lembrar o que diz

Larrosa sobre o saber da experiência, mas sim, de novas formas de sensibilidade,

por conseguinte, de experienciar o mundo.

85
Uma geografia bailarina, portanto, reivindica para si modos de ocupar

o sensível e os reconfigura na medida mesma em que aprende a ter um corpo

que dança. Então, posso afirmar, de início, que o principal gesto de uma

geografia bailarina é a de se constituir como um “esticador de horizontes”, para

lembrar do belo poema de Manoel de Barros. Geografia “bernardina”:

Bernardo é quase árvore.


Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios – e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa
fica bem estendida.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com sua incompletude?)
(Manoel de Barros, O livro das Ignorãnças)

86
Portanto, uma geografia bailarina é, parafraseando Jacques Rancière,

uma maneira de fazer que intervém “na distribuição geral das maneiras de

fazer". Isso pode ser compreendido de diversas formas, mas foi a partir de uma

série de registros fotográficos realizados na ocasião dos ensaios para o

espetáculo de encerramento do ano de 2017 da Escola de Dança Mônica Tenore

que fiz alguns apontamentos.

É importante dizer que penso sempre nesse processo – da

observação lenta e ativa, do ato fotográfico e do pensar sobre aquilo que foi

fotografado – como algo que carrega em si as marcas da experiência daquele

que a realiza. Portanto, não há, nesse gesto, intenção de escondê-las.

87
88
O plano fechado mostra, detalhadamente, o suor cobrindo quase que

completamente a pele da bailarina. Disso escrevi:

Pele que é mapa


Porque tua Geografia é o corpo
E disso sabem
Aqueles que dançam

O que me interessa pensar quando digo que pele é mapa e que

Geografia é o corpo? A acepção mais óbvia seria aquela ligada a questão da

escala, ou seja, aquela que problematiza a ideia do mapa como produto de uma

visão privilegiada, portanto, como a linguagem geográfica por excelência, por

que, por meio dela, se alcança, de fato, o real. Não pretendo adensar essa

discussão. Não é a cartografia minha seara acadêmica. Prefiro fazer referência

aos queridos professores Wencesláo Machado de Oliveira Jr, Gisele Girardi e

Jörn Seemann.

Quero sim, pensar noutra questão. Primeiro: não digo que pele “é”

mapa e sim, pele “que é” mapa, portando, pele “tornada” mapa, pele “tida

como” mapa. Pele que ocupa as funções de um mapa, pele em devir-mapa. Mas

que pele é essa que está aí na imagem? Estou falando de qualquer pele?

Não. Estou falando daquela pele. E ela fala de um corpo. O que me

leva a perguntar: que corpo é esse? Não é um corpo bem posicionado,

eloquente, digamos assim. Não é um corpo límpido, transparente, esterilizado.

É um corpo suado, cansado, marcado pela repetição exaustiva de uma

sequência de movimentos coreografados.

89
Então, é esse corpo que está aí, desse jeito, que é mapa. É um corpo

que dança, que é mapa. O que me leva a pensar junto com Deleuze em Crítica

e Clínica:

O trajeto se confunde não só com a subjetividade

dos que percorrem um meio, mas com a subjetividade do

próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que o

percorrem. O mapa exprime a identidade entre o percurso e o

percorrido. Confunde-se com seu objeto quando o próprio

objeto é movimento. (...) Não se trata da busca de uma origem,

mas de uma avaliação dos deslocamentos. Cada mapa é uma

redistribuição de impasses e aberturas, de limiares e clausuras.

(Deleuze, 1997, p. 73-74)

Então, se é com esse sentido de mapa que estou lidando, posso

concluir então que o corpo é isso mesmo, um mapa de distribuição de lugares,

mas que está, a todo momento, sendo atravessado por subjetividades outras na

medida em que vai sendo remapeado.

Apesar de não se referir diretamente aos mapas, há nesse mesmo

processo, o de “distribuição dos lugares”, um entendimento dado por Rancière

que o nomeia como “política da ficção”. Ele explica (Rancière, 2009, P. 17):

• FICÇÃO: “é, antes de tudo, uma questão de distribuição dos

lugares”;

• POLÍTICA: “ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer

sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e

90
qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos

possíveis do tempo”

É, portanto, com essa perspectiva, que me coloco para pensar nesse

corpo que é mapa, por que é, senão, política da ficção. Isso me permite, de

pronto, refletir sobre um conjunto de entendimentos para certo modo de arranjo

desse corpo, a saber, aquele "fabricado" pela dança. Fabricação é um termo

que Rancière cita para dizer sobre um determinado tipo de regime estético. Mais

precisamente, ele fala de uma “fábrica do sensível”, que seria o lugar de

produção de novos modos do sentir.

A fabricação do corpo pela dança promove, por assim dizer, a

possibilidade efetiva de se realizar uma outra cartografia do sensível. Isso porque

o gesto do bailarino, como explica José Gil, é oriundo da intimidade que ele

define como pauta da relação indiscernível entre habitar o próprio corpo e o

espaço que surge com seu próprio movimento. Então, essa cartografia se faz

outra exatamente porque ela se faz sempre na repetição do movimento daquele

corpo que dança.

Então, o corpo que dança gesta no seu próprio interior uma potência

de variação que se dá, paradoxalmente, pela repetição incessante dos

movimentos que se busca, por exemplo, coreografar e, com isso, ocorre, num

certo sentido, a diferença, que seria, no limite, o gesto de autonomia desse

mesmo corpo. Dito de outra forma, é como o verso de Manoel de Barros:

“repetir, repetir, até ficar diferente”. Então, por que paradoxo? Porque é aquilo

que indica quando algo é e não é ao mesmo tempo. Ou ainda, que indica os

muitos “és” de algo:

91
Um corpo que se abra e se fecha, que se conecta

sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo

que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma e

pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um

corpo humano porque pode devir animal, devir mineral, vegetal,

devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento. Em

suma, um corpo paradoxal (Gil, 2001, p. 68)

Paradoxal porque dançar não é conjugação, normativo, mas

gagueira, para citar Deleuze. Ao se referir as palavras e a língua, me ponho a

pensar o corpo que dança, por que ele é exatamente da ordem do dizer-fazer:

Quando dizer é fazer... É o que acontece quando a

gagueira já não incide sobre palavras preexistentes, mas ela

própria introduz as palavras que ela afeta; estas já não existem

separadas da gagueira que as seleciona e as liga por conta

própria. Não é mais o personagem que é gago de fala, é o

escritor que se torna gago da língua: ele faz gaguejar a língua

enquanto tal. Uma língua afetiva, intensiva, e não mais uma

afecção daquele que fala (Deleuze, 1997, p. 122).

Por isso me chama tanta atenção o gesto. Porque ele é detalhe. Ele

é, de algum modo, o traço mais autoral que consigo identificar. Então, é no

pormenor do movimento que, no meu entendimento, ocorre a diferenciação

daquilo que José Gil vai considerar como a diferença entre executar passos e,

efetivamente, dançar.

E foi assim que pude compreender quando o coreógrafo Maurice

Béjart afirma que “Vocês viram Cescaya fazendo um arabesque, vocês viram

92
Susanne Farrell fazendo um arabesque, vocês viram Barychnikov fazendo um

arabesque. Mas um arabesque, não” (In: Gadelha, 2010). Pensar nisso me fez

observar algumas das fotografias que ficam dispostas nas paredes da sala de

aula. Elas, de certo modo, dizem desse momento em que o corpo que está

sendo fabricado vislumbra um horizonte possível para o seu acontecer:

93
94
Corpo como paisagem, mas não qualquer paisagem.

horizonte possível

Porque dançar não é verbo, é poesia.

É, por assim dizer, “descomeço”, “o delírio do verbo”:

No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo,
Ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
(Manoel de Barros)

95
É horizonte possível,

Porque dançar é rima inacabada, grafia do poeta.

Disso escrevi:

O poeta sabe bem

Colocar as palavras em desarranjo

Cada coisa fora do lugar

Simetria descompassada

Que chega a desenhar horizontes calmos

Na mais inquieta das gramáticas

E que não me venha o verbo

Querer cantar de galo

Onde a prosa preguiçosa das reticências

Faz acento e só

Porque

Consoante é o verso

Não pela harmonia mentirosa

Nem pela aridez de sua mordedura (!)

Conta aquela vírgula-rateira

Mas talvez

Pela medida mesma

De sua

Inacabada rima

96
Paisagem que revela, pelo gesto, um estado de alma

Faz do teu gesto uma paixão


Porque és o corpo como estado de alma
E tua dança
Uma paisagem a ser contemplada

97
Este é um exercício de posse e de abandono, não do texto em si, a

exemplo daquele mesmo feito por Agamben acerca do termo “dispositivo” e

sua acepção nietzschiana, mas de um certo sentido atribuído hegemonicamente

à paisagem. Nas palavras de Agamben:

Quando interpretamos e desenvolvemos neste

sentido o texto de um autor, chega o momento em que

começamos a nos dar conta de não poder ir adiante sem

transgredir as regras mais elementares da hermenêutica. Isto

significa que o desenvolvimento do texto em questão alcançou

um ponto de indecidibilidade no qual se torna impossível

distinguir entre o autor e o interprete. Embora este seja para o

interprete um momento particularmente feliz, ele sabe que é o

momento de abandonar o texto que está analisando e de

proceder por conta própria (Agamben, 2005, p. 13).

Na fotografia e no poema em questão, contempla-se o gesto, o

pequeno gesto, nem tanto aquele do grande horizonte, identificação mais clichê

do que seria paisagem. Portanto, sugere-se também outro sentido para o

contemplar. Não mais como uma mirada passiva, aquela que garante acesso

direto ao divino ou ao encontro consigo mesmo. Não é um contemplar para

religar. Contempla-se, sim, um corpo como paixão, como estado de afecções,

para citar Deleuze (2002), que se revela, sobretudo num corpo virado de costas

e que dança, portanto, um corpo como vestígio. É uma contemplação ativa,

portanto, como potência.

98
“Conhecemos um corpo pela sombra que fazem sobre nós,

e é por nossa sombra que nos conhecemos, a nós mesmos e a nosso corpo.”

(Gilles Deleuze, Crítica e Clínica)

E ainda há muito o que se pode ser dito sobre esse corpo que dança,

menos, a direção do seu movimento, portanto, sobre aquilo que captura sua

mirada como código usualmente revelador de seu estado de alma. E é

exatamente isso que me interessa nessa fotografia: a paisagem é um corpo que

dança virado de costas. Isso me faz pensar na desorganização desse corpo

acostumado a dizer sempre o mesmo, com o mesmo.

Por isso, no limite, até posso afirmar que ainda há um rosto que diz,

mas ele é a mão. Essa mesma, disposta num fragmento de tempo-espaço que

é o da hesitação e, paradoxalmente, da excitação. Corpo metamorfoseado. Por

isso, brinco:

Faz do teu gesto uma paisagem


Porque és o corpo como uma paixão
E tua alma
Um estado de dança a ser contemplado

99
Corpo de palavras que é, também, corpo como pensamento. Corpo

como paisagem que é, senão, um constante afetar e ser afetado. Paisagem,

portanto, que não quer mais ser “apenas o que é possível abarcar com a visão”20.

É, pois, em face dessas questões que me pus a pensar esse “apenas que é

possível abarcar com a visão”: como pensar a ideia de um sujeito que olha e de

um objeto que é olhado quando consideramos, por exemplo, a sonoridade

como elemento constituinte da nossa percepção e experiência?

E quando consideramos o deficiente visual, ele não teria direito à

“paisagem”? Somente esses dois aspectos já tensionam o conceito como algo

que é resultado de uma passividade, de uma contemplação, de um olhar que

recebe uma exterioridade pronta. Milton Santos parecia estar lidando com uma

concepção do olho como simples aparelho receptor, a exemplo do que explica

Miranda:

Aprendemos (e, portanto, fomos educados) a pensar

o olho como um órgão, como um aparelho. Tal percepção do

olho legitima os aparelhos tecnológicos como extensão,

aprimoramento, correção e ampliação do nosso sistema visual.

Talvez, ao contrário do que fizemos inicialmente neste artigo, a

forma como pensamos o olho (que, volto a dizer, nos é educada)

não pode estar separada da forma como pensamos o olhar, pois

a compreensão do corpo e de seus “movimentos” permite-nos

compreender a alma e de seus movimentos, conforme nos

ensinou Descartes. (Miranda, 2001, p. 30)

20
Explicada como “Sistema material, relativamente imutável”, como um “Conjunto de objetos materiais
concretos”, “Conjunto de formas”, “distribuição de formas-objetos”, “história congelada”, “testemunha”,
“a-dialético” e talvez, a mais conhecida das acepções, como “apenas o que é possível abarcar com a visão”.
Esses são termos do ilustre e renomado geógrafo Milton Santos e estão no livro, A Natureza do Espaço
(2004).

100
Há uma questão fundamental que tem sido discutida, inclusive é essa

mesma questão que nos faz considerar os dois aspectos citados anteriormente

como sendo paisagens possíveis. Estou me referindo à própria ideia de visão.

Diria ainda, do real como resultado da visão ou, dito de outro modo, o processo

de “produção industrial das imagens”, que, em grande medida, tem sido o

principal responsável pela intensa:

desvalorização dos sentidos na produção de

conhecimento e re-valoriza o pensamento “cartesiano”,

educando o olho a ver o homem e o mundo conforme as

possibilidades e os limites destas formas de representação da

realidade (Miranda, 2001, p. 28)

Gilles Deleuze, em suas reflexões sobre a pintura de Francis Bacon

colocados no livro subtitulado lógica da sensação, encampa o projeto de

escape/combate ao representacional. Ainda que inicialmente o autor coloque a

paisagem como “correlata da figura” (Deleuze, 2007, p. 14), na sequência, ele

nos permite pensar a constituição da paisagem como algo para além desse

figural/representacional.

Poderíamos dizer, inicialmente, de uma paisagem como linguagem.

Isso posto nos termos do próprio Deleuze quando argumenta sobre “o que

torna a linguagem possível”. Para o autor, linguagem é liberdade em exercício,

liberdade da função expressiva dos corpos (Deleuze, 2011). Isso configura,

portanto, uma paisagem desapegada do olhar normativo e identificador,

produtor de consensos visuais, de passagens guiadas por um ir-e-vir experiencial

único.

101
Isso é, sem dúvida, o que tem me suscitado pensar o conceito e

querer falar de outras paisagens. Elas me parecem um pouco mais interessantes

quando pensadas como uma “experimentação”. Deleuze e Guattari (2002)

propõem um “princípio das entradas múltiplas” – rizoma – ao se referirem a obra

kafkaniana. Essa seria uma forma, segundo eles, de impedir a entrada do

“inimigo” que, nas suas palavras, seria o “Significante”.

Dito de outro modo, é a própria armadilha do representacional como

constituinte de uma imaginação única: a de que existe uma interpretação correta

a ser feita. Os autores afirmam: “Só acreditamos numa experimentação de

Kafka, sem interpretação nem significância, mas apenas protocolos de

experiência” (Deleuze; Guattari, 2002, p. 26).

Também proponho uma experimentação, que passa, primeiramente,

pela compreensão da paisagem como uma grafia do “estado de alma” (Pessoa,

2002, 2006; Tuan, 2005), ou nos termos deleuze-guattarianos, paisagem como

“pura matéria sonora”, “corpo saturante”, “esboroamento da máquina”, enfim,

como “desejo” (Deleuze; Guattari, 2002).

O sentido da experimentação que proponho diz respeito ao contexto

atual da produção das imagens e o modo como a paisagem-como-resultado-

do-olhar se dá. Deleuze e Guattari (2002) falam que “o desejo não é forma, mas

procedimento, processo” (p. 27). Talvez seja importante reconhecer o quão

desafiador que é essa busca, principalmente, se pensarmos no contexto em que:

As paisagens tornaram-se um produto como

qualquer outro e se empilham umas sobre as outras nos

catálogos ou nos painéis das agências turísticas (...) A ideia da

viagem está, ela mesma, arruinada, mas essa ruina, longe de

evocar um tempo qualquer ‘puro’, nos reenvia à nossa história

102
contemporânea, que não acredita mais no tempo. (nos

tornamos consumidores de lugares e paisagens) Hoje não pode

mais haver ruínas e nada do que morre deixará rastros, mas

registros, imagens ou imitações (Augé, 2010, p. 70-71)

Amparado por Augé, pensei em algumas questões norteadoras:

• É possível pensar a paisagem para além do representacional?

• É possível pensar numa experiência sensível com os lugares para


além do consumo?

• É possível pensar numa paisagem para além do olhar capturado,


do pensamento repetido, do automatismo, do consumo bulímico
dos lugares e uma sincronia dos corpos?

Em 2010 abordei esse tema ao propor a ideia de que o turismo realiza

uma "edição dos lugares", que consiste na produção de uma "memória" que é

dada, em grande medida, pelas imagens (fotografias) que produzimos. Esse

processo implica, dentre outras coisas, numa relação de empobrecimento da

experiência:

As fotos que tiramos quando em viagem, servirão de

comprovação de que realmente estivemos no lugar, justamente

porque escolheremos tirar fotos de tudo aquilo que já nos foi

mostrado antes por outras imagens, tornando quase impossível,

realizar qualquer outro movimento visual e corpóreo diferente

103
daquele já consolidado nos sites e encartes (Queiroz Filho, 2010,

p. 37).

Não é por mero acaso que todos querem tirar "a mesma foto". O

mosaico a seguir traz quatro imagens que configuram claramente as questões

acima. Nas duas imagens de cima, observamos os turistas atestando sua viagem

a partir da fotografia. Na imagem do canto inferior esquerdo, o indicativo de

onde se deve fotografar. Por fim, a imagem de uma intervenção artística que

critica essa postura diante dos lugares: a da experiência repetida.

Essas são algumas questões inerentes ao contexto contemporâneo

da cultura visual na qual estamos inseridos. Há uma outra, que eu poderia dizer

que é uma consequência dessa primeira, que diz respeito ao mosaico que irei

mostrar a seguir:

104
105
106
Propositalmente, não identifiquei a figura, pois gostaria que o leitor

tentasse imaginar de que lugar seriam as imagens do mosaico. A questão aqui

não é a de adivinhar a “localização geográfica”, mas identificar/perceber a

manutenção de um dado ponto de vista e uma dada estética que, por sua vez,

partilham uma política e ética do ver (Sontag, 2004):

Embora o estacionamento seja tão grande quanto o

parque e os ursos estejam fuçando entre embalagens do Mc

Donald’s, ainda imaginamos Yosemite como Albert Bierstadt o

pintou ou Carleton Watkins e Ansel Adams o fotografaram: sem

nenhum vestígio da presença humana (Schama, 1996, p. 17 –

grifos meus).

Constatações de Simon Schama em Paisagem e Memória. Até aqui,

já é possível notar o tamanho do desafio. Mas se pesquisarmos por quais

imagens estão associadas ao termo “paisagem”, qual seria o resultado dessa

busca? Vejamos:

107
108
Dito de outro modo, esse é o resultado do processo de educação

visual – cultural, estética e política que o mundo contemporâneo tem produzido.

O que podemos constatar é o quanto nós aprendemos a “gramática visual” que

nos tem sido ensinado. No livro “sobre fotografia”, de Susan Sontag, há um

capitulo chamado “o mundo-imagem” onde a autora afirma que: as fotos fazem

mais do que redefinir a natureza da experiência comum (gente, coisas, fatos,

tudo o que vemos)... A realidade, como tal, é redefinida – como uma peça para

exposição. (Sontag, 2004, p. 172-173)

Confesso que esse contexto, exemplificado pelos mosaicos

anteriormente apresentados, me causa certa angústia. A mesma sentida pelo

próprio Simon Schama (1996) quando ele constata:

Seria difícil para mim, no entanto, partilhar a

ominosa visão de que Marlow tinha do antigo Tâmisa, com

procônsules de toga tremendo na terrível umidade, no próprio

fim do mundo: ‘um dos lugares escuros da terra’. Eu estava por

demais ocupado olhando os navios, que partiam resolutamente

para o mar, para todos aqueles lugares que apareciam em cor-

de-rosa no mapa pendurado na parede de nossa escola

(Schama, 1996, p. 15 – grifos meus).

Retornando com Sontag e dialogando com Schama, eu proponho

uma brincadeira de troca de palavras. Sontag (2004) diz assim: “a única pergunta

é se a função do mundo-imagem criado por câmeras poderia ser diferente do

que é” (p. 194). Trocando por “paisagem”, ficaria:

109
“a única pergunta é

se a função da paisagem

poderia ser diferente do que é”

A substituição implica numa questão para pensarmos juntos: e se nós

mudássemos o entendimento da ideia de paisagem, nós conseguiríamos mudar

o mundo-imagem criado pela câmera? Duas pistas conceituais...

• Eric Dardel em O Homem e a Terra:

Para o autor, a paisagem é “ponte”, é conexão, é conjunto,

convergência, impressão, união de elementos, é momento vivido, é escape,

movimento, impulso. É uma inscrição da própria concepção do homem: “a

paisagem não é um círculo fechado, mas um desdobramento. Ela não é

verdadeiramente geográfica a não ser pelo fundo, real ou imaginário, que o

espaço abre além do olhar” (Dardel, 2011, p. 31). E finaliza nos apontando um

entendimento sobre o que seria a realidade geográfica:

A realidade geográfica é para o homem o lugar onde

ele está... mas essa realidade não toma forma senão em uma

irrealidade que a ultrapassa e a simboliza. Sua ‘objetividade’ se

estabelece em uma subjetividade, que não é pura fantasia. Que

a denominemos sonho ou devoção, um elemento que

impulsiona a realidade concreta do ambiente para além dele

mesmo, para além do real, e, então, o saber se resigna sem

culpa a um ‘não saber’, a um mistério. (p. 34)

110
• Jean-Marc Besse em Ver a Terra:

Que sistematiza reflexões realizadas por diversos autores, tais como

Goethe, Petrarca, Humboldt, Vidal de La Blache, etc. Todos, a seu modo,

compartilham de uma questão só: “Não são esses autores que colocam

questões à paisagem, ao contrário, eles próprios são interrogados, postos em

movimento, afetados pela paisagem” (Besse, 2006, p. VII). O que poderíamos

concluir é que, para esse autor, paisagem é experiência sensível e que suscita a

grande questão resumida por Besse: “como é possível habitar o espaço”? (p.

IX).

A paisagem que me interessa é, portanto, uma identidade visual que

nos dar a ver um algo, o que irei chamar aqui de um estado da alma, e como tal,

impossível de ser traduzido, senão, na sua tensão, no limite entre o ser e o não

ser. Paisagem que nos interessa é, portanto, um devir imaginativo, uma política

visual, uma memória pretendida, uma “realidade” desejada.

Sobre esse aspecto, trouxe dois autores que me dão palavras. O

primeiro é o poeta Fernando Pessoa que na nota preliminar de O Cancioneiro

diz o seguinte (grifos meus):

1 - Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo

fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência dum estado

de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão

virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem,

para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num

determinado momento da nossa percepção.

111
2 - Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é

não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem.

Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim

uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso

espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma

paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode

representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos",

ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.

3 - Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso

espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo

consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-

se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da

paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar

tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do

nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso,

coisas como que "na ausência da amada o sol não brilha", e outras coisas assim.

De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar

através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem

exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Tem

de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado

de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado

de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]

A floresta do Inferno de Dante Alighieri (1998) não era apenas um

ambiente exterior, mas sua própria condição como ser. Como uma alegoria de

um dado estado de alma, atravessar a floresta significava uma travessia de si

mesmo (Queiroz Filho, 2009).

112
113
Há outras obras, principalmente filmes, que realizam esse mesmo

movimento. Em “A Vila” (2004), quando a personagem Ivy atravessa a floresta

para salvar seu amor e, consequentemente, a condição de manutenção de um

dado modo de vida (Queiroz Filho, 2011). Em “Apocalipse Now” (1979), em que

a subida pelo Rio e o adentrar na floresta era também um mergulho no próprio

ser. É o que nos aponta Oliveira Jr. Quando diz que:

O mergulho que fazemos no filme é total. Tempo-

espaço-homem. Tudo que é material se desmaterializa, se assim

o quisermos. O rio pode ser estrada, a guerra pode ser angústia,

a floresta pode ser treva... e podem ser também, e ao mesmo

tempo, tão somente um rio, uma guerra, uma floresta... (Oliveira

Jr., 2002, p. 04)

Podemos perceber que é até mais comum do que imaginamos o

cinema utilizar lugares e paisagens inventadas e converter isso numa alegoria de

nossas travessias e transformações. Mas esse modo de “entrada” no filme é

potencializado quando compreendemos a paisagem, por exemplo, como

aponta Yi-Fu Tuan, no seu livro sobre “Paisagens do Medo”. Categoricamente,

ele afirma: “Paisagem é uma construção da mente, assim como uma entidade

física mensurável. Diz respeito tanto aos estados psicológicos como ao meio

ambiente real” (Tuan, 2005, p. 12).

E é sobre essa diluição das oposições binárias que a paisagem como

estado de alma tensiona. Talvez a Geografia, ao se olhar refletida, tal como

Narciso (de Caravaggio), reconheça a potência da sensibilidade como “potência

de criação” e se “libere” do seu sentido “reativo”.

114
115
Sobre essa “potência de liberação”, trago os apontamentos feitos

pelo filósofo Luiz Fuganti, da Escola Nômade de Filosofia:

“Então, a questão essencial para nossa época é encontrar


exatamente esse foco aonde a gente se desfoca. E talvez isso seja
encontrado no uso que a gente faz da linguagem e o uso que a gente faz da
sensibilidade. Linguagem e sensibilidade são, digamos, fonte de fixação ou
fonte de liberação. Elas não são, nem boas, nem más. Elas podem ser
usadas num sentido ou noutro. Num sentido reativo ou num sentido ativo.
Então, o essencial seria encontrar as razões pelas quais o homem investe
no sentido reativo, que o separa da própria natureza e, além dessa captura,
reencontrar a motivação essencial que o libera do medo das suas próprias
forças e o liga novamente ao que ele pode”21

21
In: https://www.youtube.com/watch?v=_yjnGDIqcyY

116
CORPO que sente,

- Então é isso que estou tentando compartilhar com vocês: o meu lugar de
atuação, que é no plano do pensamento e da linguagem, que é onde tenho
encontrado esperanças de, efetivamente, produzir, promover, agenciamentos
criativos e emancipatórios.

117
Tenho me preocupado, cada vez mais, com aquilo que pode se

chamar de teoria do sentido. Em especial, nas premissas de que:

• Modos de sentir são modos de saber;

• Modos de saber são modos de dizer.

Dito de outro modo, tenho compreendido o dar sentido como algo

que passa necessariamente por um fazer sentir. É no campo da sensibilidade e

da poética que tenho encontrado abrigo conceitual e imaginativo para a

dimensão espacial de nossas grafias de mundo contemporâneas. Esse é,

portanto, o cenário que tem me capturado. Como em um filme, atuam nessa cena

“atores” como Jacques Rancière e Gilles Deleuze. O primeiro, por lidar com

estética e política como algo indissociável, e o segundo, essencialmente, por

discutir a linguagem e o pensamento como potência criativa.

Rancière está preocupado em tratar dos atos estéticos não como uma

configuração do sublime ou do belo, à lá Kant. Ele preocupa-se sim, com os

“efeitos sobre a sensibilidade” (o que estou chamando de “modos de sentir”).

Em suas palavras, estética é: “um modo de articulação entre maneiras de fazer,

formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de

suas relações, implicando uma determinada ideia da efetividade do

pensamento” (Rancière, 2009, p. 13), ou seja, modos de sentir, modos de saber.

Há uma particularidade dita em Rancière e que me interessa em

especial. Diz respeito às “formas de visibilidade” e aqui a ressalva importante a

ser feita refere-se a uma armadilha muito comum de acontecer. Explico: em

2007, quando ainda estava no doutorado, escrevi um texto chamado

118
“Saboreando o Espaço, Inventando Paisagens”. Na ocasião, propus-me a

pensar duas questões:

1) o conhecimento de mundo como resultado de uma experiência

de corpo inteiro;

2) e as imagens como um modo de olhar e sentir. O saborear, naquela

ocasião, era um modo que eu havia encontrado para fazer uma provocação ao

paradigma representacional, que, resumidamente:

• toma a visualidade como o próprio real;

• e toma o olhar como forma privilegiada de produzir esse real.

Retornando então: qual seria a armadilha que mencionei a pouco?

A de se entender “as formas de visibilidade” apenas como uma expressão ou a

forma visual do ato comunicativo. Sendo assim, colocando-nos diante da crítica

ao representacional, estaríamos por dar à imagem um sentido contrário. Ela

perderia a sua condição de mimese e passaria a ser atributo de uma espécie de

subjetivismo espontâneo e absoluto, que seria também, quase como uma

oposição à crítica feita pelo pós-estruturalismo à noção de metanarrativa ou

narrativa única.

Rancière então chama nossa atenção para o cuidado que temos que

ter com isso quando ele não separa o modo de sentir do modo de saber. Ou

seja, a questão não é apenas de comunicação ou de expressão da imagem (ou

dos atos estéticos como ele mesmo se refere), mas daquilo que esses atos

119
estéticos configuram, agenciam. Por isso falo de “estética-política” como uma

coisa só, ou, como Rancière denomina, uma “partilha do sensível”.

E aqui eu gostaria de fazer uma ressalva e uma aproximação. A

ressalva é quando Rancière vai explicar sobre a partilha do sensível e fala de

formas, a priori, que determinam o que se dá a sentir. Eu, particularmente,

incomodo-me com essa ideia do a priori, porque isso implica em aceitar que

existe uma essência ou uma verdade única e possível de ser alcançada. Então

eu prefiro pensar na ideia de agenciamento deleuziana, a qual eu falarei mais

adiante, que seria algo mais próximo da ideia de uma memória pretendida, de

uma memória desejada.

Há também reflexões extremamente importantes nessa ideia da

memória pretendida dada, por exemplo, pela educação visual da memória. No

livro “Paisagem e Memória”, do Simon Schama, é interessante pensar sobre sua

angústia quando ele fala que não consegue ver o Tâmisa da literatura e só

consegue ver o Tâmisa da cartografia que ele aprendeu na escola.

Então, sem ressalvas, volto com Rancière, quando ele diz que a

estética é um sistema de formas – tiramos o a priori – que determina o que se

dá a sentir, que é:

• Um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra

• e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo

napolítica como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que

se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e

qualidade para dizer (RACIÈRE, 2009, p. 17 – grifos meus).

120
Então, agora já não estamos mais falando apenas de – modo de

sentir, modo de saber – mas também, de modos de saber e modos de dizer. E

é aí que chego na aproximação – uma aproximação conceitual - que fui instigado

a fazer, que seria:

- a de pensar a política como a produção de uma memória

pretendida, e que hoje é dada, especialmente, pelas formas de visualidade. E a

isso eu estou chamando de política das imagens.

Para compreender melhor essa questão, vamos ver o que o filósofo

italiano Giorgio Agamben fala sobre a “ideia da política”: ele nos explica que

“segundo a teologia, o castigo em que pode incorrer uma criatura, aquele

contra o qual não há mesmo mais nada a fazer, não é a cólera de Deus, mas o

seu esquecimento” (2012, p. 68). Agamben nos propõe a pensar na seguinte

questão: “como será possível pensar aquilo de que a própria onisciência divina

já não sabe nada, aquilo que foi apagado para todo o sempre da memória de

Deus?” (2012, p. 68), ou seja, “nem absolvido, nem condenado, note-se, mas

perdido” (2012, p. 68).

Logo, a partir dessa questão sobre o esquecimento, o exercício que

proponho aqui para a aproximação conceitual que estou tentando fazer, é o

mesmo que fiz na ressalva, ou seja, a retirada de um termo para deslocar o

sentido daquele pensamento para outro lugar. Então ficaria assim:

- o que significa pensar a estética como uma política do

esquecimento? Digo, a memória como uma edição, uma seleção intencional do

que deve ser lembrado...

121
É, nesse sentido, que podemos pensar a estética como uma memória,

pois estamos lidando com a política como uma partilha do sensível, ou seja,

como uma produção política do esquecimento, que passa, necessariamente,

pelos modos de: dizer, sentir e fazer.

O que me acalenta é que não estou sozinho nessa empreitada. Em

2010 escrevi um texto chamado “A Edição dos Lugares”, em que buscava

discutir o rebatimento das imagens de um dado lugar turístico na experiência e,

para isso, lancei mão da fotografia como ato estético e político que configura

essa tal “edição”, isto é, pela fotografia, ocorre a seleção daquilo que

Berdoulay (2009) chama de memória dos lugares e lugares da memória22, que

resulta em um processo que ele denomina de “redução narrativa”.

Além de Berdoulay e do já citado Simon Schama, cito também Susan

Sontag (2004) com seus estudos sobre o ato fotográfico. É extremamente

importante o deslocamento que ela nos convoca a fazer quando diz que,

Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos

modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar

e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma

gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver (Sontag,

2004, p.13).

E sobre isso, Rancière é muito claro quando analisa a escrita, o teatro,

a pintura e até mesmo a oratória como “éticas do ver”, como formas de promover

a “boa forma”, “a maneira correta” do que seria o bom orador, o bom escritor,

o bom pintor, o bom ator, a boa escrita, a boa cena e nos termos do paradigma

representacional, a boa mimese.

22
Sobre a problemática “memória e lugar”, ver mais em Nora (1993) e Le Goff (2003).

122
Rancière está lidando com a política como sendo um modo de

subjetivação instituído e legitimado e que coreografa uma experiência

normativa comum, espécie de princípio mimético-representativo que ele faz

questão de diferenciar do regime “estético”. Assim, para ele, há esses dois

regimes: o estético e o representativo. Enquanto o representativo lida com a

mimese, o estético dá-se no plano de um “modo de ser sensível” que é,

sobretudo, “estranho a si mesmo”. Rancière explica que:

Esse sensível, subtraído de suas conexões

ordinárias, é habitado por uma potência heterogênea, a

potência de um pensamento que se tornou ele próprio

estranho a si mesmo: produto idêntico ao não-produto, saber

transformado em não-saber, logos idêntico a um pathos,

intenção do inintencional, etc. (Rancière, 2009, p. 32).

O cuidado que temos que ter aqui é de não tomar esse

estranhamento como um opositor ao já estabelecido, já que Rancière fala, a

todo o momento, da “coisa” e sua correspondente “não-coisa”. E atento a isso,

remeto imediatamente às reflexões levantadas por Deleuze e Guattari no livro

Kafka: para uma literatura menor. Foi com esse texto que compreendi melhor

a questão do escritor, a questão do fazedor de dizeres, que de certa forma, é

o que todos nós, de um modo ou de outro, somos: fazedores de dizeres.

Compreendi também o modo de sentir e o modo de fazer como fuga e devir:

123
• “fuga na intensidade”;

• e devir como “captura, posse, mais-valia; nunca é reprodução ou

imitação”. (Deleuze e Guattari, 2002)

Dessa forma, o fazedor de dizeres é “um homem ser experimental”

que promove “fluxos de desterritorialização”, “linhas de fuga”, as quais nos

permitem escapar da submissão. E há muitas formas de submissão. Há muitas

formas de captura. É, por demais sedutor, o valor mercantil da alienação. Basta

lembrar da cena em que o Agente Smith oferece um jantar para o Cypher, no

filme Matrix (1999). Ele, ao saborear um suculento bife, profere as seguintes

palavras: “a ignorância é maravilhosa!”.

Contudo a submissão que me interessa discutir aqui se refere ao

esquecimento, que falei a pouco (que é resultado da edição, da seleção

intencional). Dito em outras palavras, a submissão seria aceitar com naturalidade

a constituição de uma Geografia Maior (estabelecida, normatizada, outorgada e

que é também, normatizadora, outorgante). Uma Geografia Maior fazedora de

sentidos que passam a ser reconhecidos como a “boa Geografia” ou, pior,

como “A” Geografia. Então, ao pensar nessas questões, penso também nos

modos de escapar dessa Geografia Maior, ou melhor dizendo, de sua captura.

Voltemos assim em Deleuze e Guattari quando eles vão definir o que

seria uma “Literatura Menor” e pensemos a Geografia nesses mesmos termos.

Para os autores, uma literatura (e aqui vamos rasurar e colocar: geografia)

menor é entendida da seguinte forma:

124
• é afetada por um forte coeficiente de desterritorialização;

• nelas tudo é político;

• não há sujeito, só há agenciamentos coletivos de enunciação.

É, portanto, nesses campos – dos agenciamentos desterritorializantes

em face das experimentações no/do sensível – que tenho tentado atuar.

Experimentar o sentido, experimentar a linguagem. Desobedecer o sentido,

“desobedecer a linguagem” (Skliar, 2014). É importante dizer que há também

muitas formas de desobediência ao normativo. Deleuze fala do Devir-Louco. Eu,

particularmente, prefiro o devir-poeta em devir-criança.

Para mim, é no devir-criança que me encontro. É por meio dele que

tomo a gramática – marcador de poder – como meu brinquedo. Manoel de

Barros diz no seu livro, “Exercícios de ser criança” assim:

125
No aeroporto o menino perguntou:

- E se o avião tropicar num passarinho?

O pai ficou torto e não respondeu.

O menino perguntou de novo:

- E se o avião tropicar num passarinho triste?

A mãe teve ternuras e pensou:

Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia?

Será que os despropósitos não são mais


carregados de poesia do que o bom senso?

Ao sair do sufoco o pai refletiu:

Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças.

E ficou sendo.
Manoel de Barros, Exercícios de Ser Criança
(in: Poesia Completa, 2013, p. 453)

126
Logo, eu poderia dizer que a peraltice em face do sentido bem

comportado tem me mobilizado mais. Ele me possibilita: “Escapar do mito

informativo para avaliar o sistema hierárquico e imperativo da linguagem como

transmissão de ordens, exercício do poder ou resistência a esse exercício”

(Deleuze; Guattari, 2002, p. 50), implica em tornar a palavra alimento dela

mesma, fazendo-a, assim, habitar outros sensíveis e, portanto, possibilitar o que

Deleuze, a exemplo de Manoel, também chama de “absurdo” (Deleuze, 2011,

p. 15), que não é nem verdadeiro, nem falso, nem causa e efeito, mas é o puro

devir e o paradoxo:

1. o puro devir produz um certo tipo de sentido, que seria o,

“neutro”, indiferente por completo tanto ao particular como ao geral, ao

singular como ao universal, ao pessoal e ao impessoal. Ele seria de uma outra

natureza (Deleuze, 2011, p. 20 – Grifos Meus).

Essa outra natureza, tem sido para mim, a aposta que tenho feito nos

modos de saborear a linguagem a partir dos encontros, agenciamentos dados

no plano do devir-menor de que falam Deleuze e Guattari, que não se

configura como uma abstração, um bloco coerente e sólido, mas que são,

segundo eles, um modo que se constitui em:

a) Servir-se do polilinguismo na sua própria língua, fazer desta um

uso menor ou intensivo, opor a característica oprimida desta

língua à sua característica opressora, encontrar pontos de não-

cultura e de subdesenvolvimento, zonas linguísticas de terceiro

mundo por onde uma língua escapa, por onde um animal se

enxerta, ou um agenciamento se conecta (...) Ter o sonho

127
contrário: saber criar um devir-menor (Deleuze; Guattari, 2002, p.

56)

b) Eles explicam que:

A Literatura menor ou revolucionária começa por

enunciar, não vê, e só concebe depois (“As palavras não a vejo,

invento-a”). A expressão tem de quebrar as formas, tem de

marcar as rupturas e as novas derivações. Uma forma quebrada

tem de reconstruir o conteúdo que estará necessariamente em

ruptura (Deleuze e Guattari, 2002, p. 57)

2. o paradoxo

– que é a afirmação de dois sentidos ao mesmo tempo, o jogo duplo

– que é a asfixia do limite, da sobre codificação e do próprio marcador

de poder.

E a aposta no paradoxo como potência ocorre porque ele, como

explica Deleuze, “é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como

sentido único, e, em seguida, o que destrói o senso comum como designação

de identidades fixas” (2011, p. 03).

É ele – o paradoxo – que nos retira da ilusão da profundidade e nos

coloca diante da “exibição dos acontecimentos na superfície”, que é o

“desdobramento da linguagem” (p. 09):

128
O acontecimento é coextensivo ao devir e o devir,

por sua vez, é coextensivo à linguagem; (...) Tudo se passa na

fronteira entre as coisas e as proposições (...) o mais profundo é o

imediato; por outro, o imediato está na linguagem (Deleuze,

2011, p. 09)

Estou entendendo esse “profundo” como essência, ou se preferirem,

o dueto essência-aparência. Portanto, o que Deleuze está nos apontando é

que não existe essência, apenas “superfície”, que para ele, seria a linguagem.

Ele explica que “não há causas e efeitos entre os corpos: todos os corpos são

causas, uns com relação aos outros, uns para os outros (2011, p. 05). Sem entrar

no mérito da questão, que é por demais densa, e nem tenho essa pretensão, o

que me interessa, nesse sentido, é lidar com essa instância dos efeitos dos

corpos que, segundo Deleuze, “não são coisas ou estados de coisas, mas

acontecimentos (...) não são agentes nem pacientes, mas resultados de ações e

paixões” (2011, p. 05-06)

Paixões...

Eu queria me demorar um pouco mais nesse termo, porque, quando

Deleuze diz “com os adjetivos podemos fazer o que quiser, mas não com os

verbos” (p. 26) e, ao mesmo tempo quando ele diz que “o atributo”, ou seja, o

“resultado”, a expressão do verbo, nos dá a ver, não um ser, mas uma “maneira

de ser”, então me vem a seguinte questão: o que significaria mudar a “maneira

de ser” se mudássemos exatamente aquilo que opera, segundo Deleuze, como

limite, ou seja, aquilo que não pode ser mudado? O que significaria, nesse

129
sentido, desobedecer a linguagem, desobedecer a gramática? E se

mudássemos o verbo16?

O fato é que eu jamais conseguiria pensar nessa questão se não fosse

pela poesia de Manoel de Barros: Interessa ao poeta atuar nas “Nódoas de

imagem”... Interessa a ele fazer “festejos de linguagem” (p. 183). Manoel

acredita que “o poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina” (p.

235); e categoricamente, Manoel é um sujeito que “não gosta de palavra

acostumada” (p. 323). Enfim, Manoel nos ensina um pensar, um fazer e um sentir

bem assim:

O sentido normal das palavras não faz bem aos poemas

Há que se dar um gosto incasto aos termos

Haver com eles um relacionamento voluptuoso

Talvez corrompê-los até quimera

Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los

Não existir mais rei nem regências

Uma certa liberdade com a luxúria convém (p. 243)

***

Para voltar à infância, os poetas precisariam também

Reaprender a errar a língua (p. 243)

16
Ver p. 187 e 188 (Deleuze, 2011)

130
O delírio do verbo está no começo, lá onde a criança diz:

Eu escuto a cor dos passarinhos

A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor,

mas para som

Então a criança muda a função de um verbo, ele delira

E pois

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer nascimentos

O verbo tem que pegar delírio (p. 276-277)

Então é isso que estou tentando compartilhar com vocês: o meu lugar

de atuação, que é no plano do pensamento e da linguagem, que é onde tenho

encontrado esperanças de, efetivamente, produzir, promover, agenciamentos

criativos e emancipatórios17. Nesse sentido, quando Deleuze diz que “É próprio

da linguagem, simultaneamente, estabelecer limites e ultrapassar os limites

estabelecidos” (Deleuze, 2011, p. 09), talvez fique mais fácil compreender

Manoel de Barros quando ele fala que prefere viajar mais pelas palavras que de

trem (Barros, 2013, p. 332) e talvez, por isso, Deleuze, em Devir-Manoel, tenha

falado de um “comer as palavras”, uma “comestibilidade das coisas” (p. 26-

27) como um desafio à linguagem, ao corpo-linguagem não como dualidade,

mas como fronteira, como articulação da diferença, dos sentidos, e,

principalmente, das paixões e do desejo.

17
“A emancipação, por sua vez, começa quando se questiona a oposição entre olhar e agir, quando se
compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à
estrutura da dominação e da sujeição. Começa quando se compreende que olhar é também uma ação que
confirma ou transforma essa distribuição das posições” (Rancière, 2014, p. 17).

131
- Modos de encontrar, modos de buscar

Começo esse meu segundo movimento explicando o sentido de

desejo com o qual estou lidando. De modo geral, seria aquilo que opera:

1) a possibilidade do encontro;

2) a possibilidade como encontro.

Notem a sutileza na mudança dos termos. Encontro como processo e

o processo como método. Por isso faz todo sentido o alerta de Deleuze e

Guattari quando chamam atenção para o fato de que “O desejo não é forma,

mas procedimento, processo” (Deleuze; Guattari, 2002, p. 27). Sobre essa

questão lembro da cena do filme “Dirigido por Tarkovski” em que o, cineasta

russo, diz a seguinte frase:

(Voz Off, 18”)

À procura como processo, e não há outro modo

de considerá-la, tem como obra completa a mesma relação

que existe entre a procura de cogumelos na floresta e a

cesta cheia depois que eles foram encontrados. Só depois

que o cesto estiver cheio ele será considerado um trabalho

de arte. O conteúdo é real e incontestável, ao passo que a

busca na floresta continua sendo a experiência pessoal de

alguém que gosta de caminhar e de ar fresco.

132
Tarkovski está dizendo, de outro modo, que o desejo, ou seja, a

procura, como processo, é constituído tanto pela experiência pessoal, quanto

pelo produto dessa experiência. Então, o que significaria, portanto, pensar a

potência do dizer como atributo do desejo? A resposta a essa questão já está

praticamente dada se concordarmos com Tarkovski e com Deleuze e

entendermos o dizer como uma busca processual, como experiência e como

devir.

O primeiro ato trata da possibilidade do encontro, portanto, refere-se

ao processo, ao ato em si, à ação. É nesse sentido que Deleuze define o desejo.

Diz ele:

Sabem como é simples, um desejo? Dormir é um

desejo. Passear é um desejo. Ouvir música, ou fazer música, ou

escrever, são desejos. Uma Primavera, um Inverno, são desejos.

A velhice também é um desejo. Mesmo a morte (Deleuze e Parnet,

1998, p. 77)

A ação, portanto, é constitutiva, o que nos remete imediatamente à

possibilidade como encontro (segundo ato), ou o que poderíamos chamar

de método, que seria a predisposição a algo, a vivenciar, experienciar, e, com

isso, suscitar novos agenciamentos.

Porém não é qualquer ação que me interessa. Não é qualquer busca,

nem qualquer processo, nem qualquer sono, passeio, música, escrita, enfim.

Não é qualquer ato constitutivo que me interessa. É por isso que me faz

bastante sentido quando Gonçalo Tavares, no seu livro Atlas do Corpo e da

Imaginação, fala que existe o desejo fraco e o desejo forte. Novamente:

entendendo desejo como potência do dizer, ficaria assim, parafraseando:

133
* E um desejo (dizer18) forte (é aquele) que não visa o prazer, mas sim

a acção, o movimento, um certo fazer no mundo (Tavares, 2013, p. 154).

* O desejo (dizer) forte é o desejo que aumenta a capacidade de

agir, nunca a diminui (Tavares, 2013, p. 157).

* Desejo (dizer), portanto, é capacidade de ligação19 (Tavares, 2013,

p. 158-159)

E é essa capacidade que irá possibilitar a constituição de uma outra

coisa, um outro sentido20. É por isso que Gonçalo Tavares fala do desejo e das

palavras como movimento: “Eu sou autor dos meus movimentos porque em

certo sentido não apenas os faço, como também os digo” (Tavares, 2013, p. 170).

Eis aí, novamente, o ato narrativo como constitutivo de uma experiência, ou

seja, o dizer como sentir e fazer. E é genial quando Tavares diz que “sim, as

palavras pensam” (p. 174). E mais, quando afirma que as palavras “também

fazem da experiência um sítio capaz de ser ocupado”21.

E fico me perguntando:

- o que está faltando para ocuparmos nossa experiência com outras palavras, outros
dizeres, outros desejos, outras paixões?

18
Que seria o “nomear”, o ato constitutivo que gera, que produz, que mobiliza a imaginação.
19
“A ligação é uma força, não uma contemplação; qualquer ligação é um ir daqui para onde está o Outro,
a outra coisa” (Tavares, 2013, p. 156).
20
Ver Tavares (2013, p. 160)
21
Ver Tavares (2013, p 175-178)

134
Talvez nós estejamos habitados ou habitando demais aquilo que

Deleuze chama de “figuração”. No seu livro Francis Bacon: a lógica da

sensação, ao analisar a pintura de Cézanne, ele explica a sensação como aquilo

que escapa do lugar-comum, do clichê, mas também, do sensacional, do

espetacular, do espontâneo, do automático. Deleuze fala ainda que a sensação

não possui lados (sujeito-objeto): “Ela é as duas coisas indissoluvelmente, é ser-

no-mundo, como dizem os fenomenólogos: ao mesmo tempo eu me torno na

sensação e alguma coisa acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro”

(Deleuze, 2007, p.42). e, por esse motivo, argumenta que “a sensação é mestra

de deformações, agente de deformações do corpo” (Deleuze, 2007, p.43).

De igual modo, Gonçalo Tavares também faz uma dura crítica à

linguagem comum22. Em que o referido autor alerta que “escolher palavras é

escolher pontos de vista” (Tavares, 2013, p. 179), portanto, promover a

linguagem comum é promover o lugar comum da experiência, promover, nos

seus termos, “vivências medíocres e vulgares” (Tavares, 2013, p. 179). Ele conclui

dizendo que: “Procurar outros caminhos é então procurar outros lugares –

lugares insólitos, lugares raros, lugares individuais” (Tavares, 2013, p. 179).

Bachelard, no livro A Terra e os Devaneios da Vontade (2013)

considera que há um enorme desafio em pensar uma imaginação efetivamente

criadora quando consideramos o contexto, que é exatamente o que estamos

vivendo hoje, que ele vai chamar de “experiências estéticas” produtoras de

“imaginações reprodutoras”. Ele aposta nas “pulsões inconscientes”, nas

“forças oníricas”, no trabalho sutil e minucioso de tentar fazer da imagem uma

22
“escrita esta - a comum -, que quer comunicar de imediato, que quer ser de imediato entendida, e por
isso, desleixa-se, simplifica-se até o ponto em que se transforma numa linha, interpretação. Frases que
ganham multidões, mas perdem indivíduos (Tavares, 2013, p. 180).

135
aventura, aventura essa que se disponha diante da “função do irreal” como

modo de “reanimar uma linguagem criando novas imagens”.

Então, retomando a primeira questão:

- o que significaria pensar o “dizer” sendo ele pautado pelas ligações que
possibilitem o movimento, o fluxo dos afetos como potência ativa?

Uma pista talvez esteja na questão desenvolvida por Deleuze e

Parnet (1998) sobre Espinosa (p. 49): o que pode um corpo? Então eu incluí a

essa questão outro elemento:

- o que pode um corpo em que o aroma está no tato?

É importante considerar:

1) a afetividade como fundamento do/para o corpo vivo, vide Tavares:

“A ligação primeira do corpo ao mundo é o alimento, é o primeiro afecto, e a

primeira proteção que se recebe – o alimento que se come (p. 156)

2) quando escuto essa expressão – o aroma está no tato – eu não

consigo pensar de forma literal, mas sim, como uma provocação à nossa

sensibilidade amesmada, que nos provoca a pensar e a vislumbrar um mundo

que considere as experiências comprometidas com um corpo que se dispõe ao

sabor e ao saborear como agenciamento do desejo.

136
Isso nos leva a outras duas questões: o que alimenta esse corpo –

esse corpo que “confunde” sensações? E que afetos se dão nesse encontro –

do aroma com o tato? Sobre os afetos, eu continuo com Gonçalo Tavares,

quando ele diz que:

Os afectos não são sensações paradas, são

sensações que se movem, aliás, são movimentos que sentem”,

pois há os movimentos que não sentem, segundo Tavares, que

seriam os “movimentos funcionais, técnicos (Tavares, 2013, p.

156-157).

E o escritor diz mais. Ele afirma que:

simplicidade ou complexidade de um ser vivo

depende da capacidade do seu desejo, da potencia do seu

desejo. Quantas coisas deseja? Quantas coisas pode desejar?

(Tavares, 2013, p. 159).

E sobre o desejo, e para fechar essa segunda parte, eu quero

compartilhar alguns “afetos” que encontrei na fala do filósofo Luis Fuganti, da

Escola Nômade de Filosofia23. No seu curso sobre micropolítica e o uso dos

afetos a partir do Mil Platôs24 ele diz o seguinte:

1) Desejo: em Lacan é o que Espinosa chama de “tirania de uma

paixão”, um estigma; Nietzsche chama de “ressentimento”, aquilo que não se

23
Cf.: http://escolanomade.com
24
Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=xP3ERarnm_s

137
digere e nem se expele; isso é uma fixação afetiva, que inicia um desejo

sedentário (6”), um desejo fraco, desejo sem movimento em Deleuze.

2) O mau uso dos afetos: é o princípio da estrutura. A estrutura

depende de um eixo, que é quando o desejo perde a superfície ou quando a

potência perde um horizonte extremo, meio onde ela se atualiza (8”)

3) Desejo estruturalista (desejo como falta): lançado em um buraco

(perda da capacidade ativa de se atualizar, se atualiza de modo passivo,

determinado de fora, então se fica à mercê do que se determina de fora,

portanto, o caos. Passa-se a desejar, assim, situações estáveis, controláveis.

Vou preferir o ser ao devir, a extensão à intensidade (9”)

4) Profundidade: não é a profundidade da duração, da espessura do

tempo, é uma profundidade de uma separação de si, do que pode. O muro

como alegoria da opacidade, portanto, ausência de horizonte, que seria o

campo das possibilidades (11”)

O que estou querendo aqui é exatamente pensar esse campo das

possibilidades da imaginação e da linguagem a partir das experiências estéticas

que temos tido atualmente. Me coloquei a pensar a relação corpo-movimento-

pensamento-sensibilidade numa tentativa, ainda bastante insegura e errática até,

de compreender os interstícios oriundos da ponte linguagem-experiência.

138
A FABRICAÇÃO DO corpo-montagem,

- Como palavras, somos arranjados de modo a promover, pela conjugação de


nós mesmos, poesia dançada. Para isso, ensaio, ensaio, ensaio. Para isso,
repetição, repetição, repetição.

139
E o que nosso corpo pode?
Eis uma questão que está diretamente relacionada com outra
etapa importante desse processo de aprendizagem do corpo:
A montagem coreográfica.
E, sinceramente, como é mágico o que os professores e
professoras fazem com nossos corpos.
Como palavras, somos arranjados de modo a promover, pela
conjugação de nós mesmos, poesia dançada.
Para isso, ensaio, ensaio, ensaio.
Para isso, repetição, repetição, repetição.

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Chegado o dia da apresentação:

Marcação de palco, concentração, alongamento, aquecimento;

Coxia;

- primeiro sinal...
Abraço coletivo;

- segundo sinal...
O corpo vibra;

- terceiro sinal...
Blackout

- e...

Eis a constituição máxima daquilo que se poderia dizer de um

Território, mais precisamente, um “território de espera”: verdadeira poética


dos corpos. Nas palavras de Laurent Vidal, Alain Musset e Dominique Vidal

(2011):

Deste ponto de vista, dar conta da espera, em outras

palavras, do que acontece quando nada acontece (ou quando

nada é suposto acontecer), é endossar uma atitude poética,

dado que a poética ambiciona precisamente a compreensão

global, conjunta e instantânea de uma situação.

Não cabe aqui, portanto, a ideia de território como dimensão jurídica,

tampouco, como uma superfície material onde determinadas relações

158
acontecem. Interessa-me, sim, o território como local de cruzamentos e

passagens, como campo de forças. E quais seriam essas forças? Aquelas

mesmas que, ao entrar em cena, fazem condensar três ou quatro meses em três

ou quatro minutos. É, por assim dizer, o território da cena!

Findo,
Vem a reverência,
Seguida de aplausos.
O corpo, novamente, vibra.
A cortina fecha
E a luz principal se apaga.
Pelas frestas,
Vê-se apenas uma pequena parte do linóleo25.
Como um mapa antigo,
Ele nos indica, apenas em traços,
Vestígios dos corpos suados,
Cabelos caídos
E o silencioso eco
Das inúmeras vezes que ouvimos a marcação do tempo:
Carto-corpo-coreo-grafia
De mundo
Disposta num pequeno pedaço
De tempo-espaço.

25
Nome dado ao tipo de tapete que cobre o piso da sala de dança ou palco.

159
160
161
162
163
O ato coreográfico é, maravilhosamente, uma cartografia de emoções.

Descobri isso quando da minha primeira experiência como bailarino. Estava eu

lá, observando atentamente, o imediato do processo criativo da coreógrafa

responsável por fazer daquele monte de corpos, uma alquimia do gesto

dançado. À frente, ela escrevia cada frase musical e, atrás, “copiávamos”. Até

ali, todos os bailarinos diziam a mesma coisa.

Uma das coreografias que dancei fazia alusão ao animal marinho “água

viva”. Sem camisa e de saia. Não havia homem ou mulher, apenas corpos e cada

um deles corria numa fruição de afetos para dizer daquele ser. Não estávamos

imitando. Nem mesmo aquilo se constituía como uma espécie de posse da

forma-objeto. O processo, necessário para a constituição daquele projeto de

movimentação, compreendia numa captura de gestos. Era preciso fazer com

que todos se tornassem uma extensão, pelo movimento, da matéria criativa que

alimenta o corpo como lugar de ser afetado.

Somente depois disso, aliás, com isso, as frases de movimento

começam a ser reescritas. Do procedimento supostamente mimético, a dança

como poesia foi, aos poucos, tomando forma. Plano de desejos passou a se

confundir com o plano de imanências. Essa é a cartografia que me interessa.

Aquela que produz agenciamentos a partir do corpo:

Ora, o que é um gesto dançado senão um

agenciamento particular do corpo? Todo gesto é, por si, um

agenciamento (...) Neste sentido, dançar é experimentar,

trabalhar os agenciamentos possíveis do corpo. Dançar é

portanto agenciar os agenciamentos do corpo (Gil, 2001, p. 71 -

grifos meus).

164
Essa era a nossa “epistemologia política”, para usar dos termos de

Bruno Latour. O que significa dizer que, pelo treino - laboratório de

agenciamentos possíveis - aprendemos a ter braços, pernas, cabeça, respiração,

pausas, olhares e um sem número de outras aquisições. Pelo treino - ensaios -

nosso corpo ia sendo constituído, a exemplo do que acontece com nariz quando

treinado pela indústria de perfumes. Latour explica que

Antes do treino, os odores atingiam os alunos mas não

os faziam agir, não os faziam falar, não os tornavam atentos, não

os excitavam de forma precisas; qualquer grupo de odores

produziam nos alunos o mesmo efeito ou afecto geral e

indiferenciado (Latour, in: Nunes; Roque, 2008, p. 41).

Pelo treino, portanto, saímos de um estado de inarticulação e

incorporalidade, para um estado de articulação e proposição: experimentações

que geram fluxos de energia. Disso fala Gil:

Que é experimentar, “ensaiar”? É chegar a um ponto

de “coordenações físicas” tais que a “energia” passa

“naturalmente”. Trata-se de fluxos de movimento mais que de

formas ou de figuras (como no ballet). Ensaiando a sequência de

movimentos e verificando que a energia passa, o bailarino

encontra-se diante de múltiplas possibilidades de outros

movimentos. Ensaia de novo, e escolhe, e assim sucessivamente,

criando um fluxo de energia (Gil, 2001, p. 83).

Surge um corpo como mediação:

165
Quanto mais mediações melhor para adquirir um

corpo, ou seja, para tornar-se sensível aos efeitos de mais

entidades diferentes. Quanto mais controvérsias articulamos,

mais vasto se torna o mundo (Latour, in: Nunes; Roque, 2008, p.

45).

166
E foi exatamente isso que aconteceu. A cada nova frase de movimento

aprendida, a cada novo compasso coreográfico adquirido, sentia como se um

novo horizonte de possíveis fosse estabelecendo em mim um novo modo de

habitar o mundo. Ele sendo outro, eu sendo outro, como num plano de

composição.

A dança quando, por exemplo, deserotiza o corpo, é porque conseguiu

fazer dos seus movimentos e gestos agenciamento do desejo de imanência,

portanto, desestruturação do corpo-organismo que se resume ao erótico (Gil,

2001): “Se a bailarina do ballet apagava todo o traço dos seus órgãos genitais,

a nudez contemporânea não faz paradoxalmente mais que sublinhar a

continuidade da superfície única da pele” (p. 79).

Fruição e imanência que coloca meu corpo, portanto, horizonte de

mundo, em variação contínua. Aumentar o mundo é proliferar multiplicidade.

Por isso mesmo, ela – a dança – não me serve como síntese ou revelação de

uma suposta corpografia. Ela me é mais como agenciamento do desejo, corpo

nu, que é a pele tornada espaço intensivo, espaço de emoções. Essa é a grafia

pelo corpo que me interessa.

Lembro que, numa conversa com amigos sobre a experiência que tive

com a dança em Portugal, alguém me perguntou se eu achava que em todo

lugar lá era daquela forma. Logo expliquei que eu não tinha a pretensão, na

verdade, não tinha a ingenuidade, de querer produzir uma definição do que

seria Portugal ou, até mesmo, Braga, cidade em que residi por quase 5 meses.

Mas sim, pensar nessa relação corpo-lugar a partir daquilo que vivi. Por isso,

uma geografia bailarina é sempre contextual e, paradoxalmente, singular. Não

porque trata de uma essência ou fundamento, mas porque é “finita, imanente,

contingente” (Larrosa, 2015).

167
Quando encerra a luz
Todos os corpos
Que antes faziam balanço
Misturam-se num só tom
Eis a melodia cromática
De que fala o poeta das flores
É dela que nasce o gesto
Como um modo particular de dizer
- Sim, eu danço!
Então…
Dancemos!
Para fazer desse ato repetido
Nossa calma
Dancemos!
Para fazer desse ato criativo
Nossa alma
- Dancemos…

168
CORPO-grafia,

- É como se meu corpo, caído no chão, estivesse sentindo dificuldade em fazer


daquela superfície uma possibilidade para o movimento e para o gesto.

169
Observação
Ande de ônibus
Olhe pela janela
Olhe para dentro
Olhe as pessoas no ponto em dia de chuva
Qual cheiro te invade?
Cigarro e roupas velhas?
Na Itália era perfume de grife

Há conversas?
Sobre o que?
És olhado? Por quem?
Quanto tempo dura o olhar?
Quem senta e quem levanta?
Quem dorme e quem sonha?
Quem viaja e quem chega?
Quem sorri?

170
Não descreva
Escreva
Faça as palavras dançarem
Vá a uma padaria ou cafeteria pela manhã.
Ponha-se a escutar
Não ouvir, escutar
Se puder, sente perto da porta ou do caixa
Quem chega?
O que dizem?
Os estranhos iniciam algum tipo de conversa?
Há televisão?
Música?
Jornais e revistas?
Há "bom dia"?
Há quem chegue de forma tão silenciosa que nem a percebemos?
Há uma coreografia dos corpos apaixonados?
Cidade-dança?

171
Há uma geografia do corpo delineada pela geografia do lugar?

Quando ou até que ponto essas grafias se misturam? Ao retornar para o Brasil,

fiquei alguns longos dias em estado de pausa. Louppe explica que “Toda

investigação sobre o corpo requer este silêncio meditativo e concentrado”

(2012, p. 70). Precisei desse tempo para depurar aquilo que havia vivenciado e,

por conseguinte, provocado em mim esse estado de suspensão.

Se posso pensar a partir de algumas dessas experiências o faço como

alegoria do meu processo de aprendizado na dança. É como se meu corpo,

caído no chão, estivesse sentindo dificuldade em fazer daquela superfície uma

possibilidade para o movimento e para o gesto. Dificuldade essa oriunda de

uma paisagem corporal por demais atravessada pelas linhas duras que

compuseram meus atravessamentos com esse lugar chamado Braga (Portugal).

Sei o quão generalizante pode soar ao tentar dizer sobre o modo

como as experiências vividas numa dada cidade configuram aquilo que define

esse mesmo lugar. Na verdade, o exercício aqui é outro. Há, ressalto, uma

legítima parcialidade e contextualidade naquilo que descrevo. Portanto, o que

vem a seguir são escritos produzidos na esteira de um corpo que sente e

transforma esse sentir em palavras-pensamentos-sensações. Um corpo que se

pôs em cruzamentos com inúmeras trajetórias simultâneas:

Se o espaço é, sem dúvida, uma simultaneidade de

estórias-até-então, lugares são, portanto, coleções dessas

estórias, articulações dentro das mais amplas geometrias de

poder do espaço. Seu caráter será um produto dessas

intersecções, dentro desse cenário mais amplo, e aquilo que

delas é feito. Mas também dos não encontros, das desconexões,

172
das relações não estabelecidas, das exclusões. Tudo isso

contribui para a especificidade do lugar (Massey, 2008, p. 190)

Utilizei, nesse sentido, meu corpo como um dispositivo imanente,

que tinha por função realizar, nos termos de José Gil (2010), um “mapeamento

das relações espácio-temporais do corpo com o mundo” (p. 50), portanto, um

mapeamento que se faz por “intensidades” e por “localidade”, para fazer

referência à socióloga holandesa Saskia Sassen:

Hoje, é mais importante que nunca, provavelmente,

recuperar a importância da localidade. A importância das pessoas

fazendo seu bairro, sua localidade dentro da cidade26

Esse processo resulta numa série de escritos e registros fotográficos,

que no seu conjunto estou denominando de “narrativas poéticas”. Elas estão

organizadas em duas grandes “localidades” e carregam em si, suas respectivas

“intensidades”. Primeiro, as corpografias como construto de narrativas que

tratam da experiência de um corpo reativo e seus normativos como algo que

agenciam uma potência de agir ancorada na ética do que ele deve e não do

que ele pode. A maior parte de minhas vivências em Portugal foram dessa

ordem. Já no Brasil, as narrativas apontam para uma corpografia criativa,

poética. Elas foram as que efetivamente provocaram em mim uma redescoberta

do corpo pela dança.

26
Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=xWuZR0wcYOk

173
Então, o que vem a seguir revela, não o caráter do lugar, como se

isso fosse algo possível, mas sim, a de uma experiência com um lugar, num dado

momento e num dado contexto.

174
HABITAR (de) um corpo triste,

- Não foi o frio, nem os longos dias chuvosos que enuviaram meu semblante.
Disso os agasalhos, vinhos e chocolates deram conta tranquilamente.

175
De início, pensei que poderia escrever algo que articulasse

epistemologias e poéticas, numa tentativa ingênua de buscar fundamentos e

teorizações para um fazer geográfico outro, que teria nos conceitos deleuzianos

de diferença e minoridade seu principal artefato metodológico.

No entanto, a vida, muitas vezes, nos provoca de modo nada sedutor.

“A teoria surge da vida”, afirma a geógrafa inglesa Doreem Massey. E este livro

não poderia ter sido escrito de outro modo, senão, como gesto marcado com

toda a intensidade dessa tessitura. Ele é produto da vida de um ser-migrante

que, em eco com Eleonora Duse, aprendeu, à duras penas, dizer: “onde não

puderes amar, não te demores”.

Foi o que me ocorreu logo nos primeiros meses em que estive como

residente em Braga, pequena cidade no norte de Portugal. Precisamente, foram

quase cinco meses de inquietações, daquelas que nos desassossegam por

inteiro. Não foi o frio, nem os longos dias chuvosos que enuviaram meu

semblante. Disso os agasalhos, vinhos e chocolates deram conta

tranquilamente.

No fundo, talvez tenha esquecido de colocar na mala um pouco de

Clarice Lispector. Tivesse feito, poderia não ter demorado tanto para perceber,

como ela mesma, que tocar o mundo é, antes, tocar a si próprio. Sem rodeios,

digo ainda em estado de reverberação, o quanto esse contexto provocou

paralisia em minhas leituras, reflexões e escritos.

Ressalto isso porque foi da experiência com Braga que saíram os

apontamentos sobre corpo e cidade no seu sentido mais normativo e reativo.

De lá saíram meus escritos de solidão. Eles são como mapas dessa experiência

de habitar a cidade, fruto de um contexto específico: o do esvaziamento

anímico, arruinamento de todo e qualquer significado que justificasse continuar

morando naquele lugar.

176
Com Braga, cheguei ao ponto de que a única coisa que ouvia era o

sussurrado “apesar de”, como o que Ulisses disse para Lóri:

apesar de, se deve comer

apesar de, se deve amar

apesar de, se deve morrer.

Inclusive, muitas vezes

é o próprio apesar de

que nos empurra para a frente27.

E assim, pouco a pouco meu corpo foi silenciando.

É importante destacar que, ao dizer com Braga e não em Braga,

quero reforçar o aspecto relacional da vivido. Portanto, ao não entender

Experiência e Lugar como suporte, me refiro a eles como termos que se

conjugam sempre no com.


Ironicamente, foi justamente em Portugal que pude “comprovar”, se

é que isso é possível, aquilo que Fernando Pessoa escreveu sobre paisagem

como estado de alma. Porque era como se a conjunção de vogais e consoantes

que constituem meu nome configurassem em mim um pouco do inverno

parisiense de Lóri, especialmente quando ela diz:

“trevas geladas que são as minhas”.

27
Personagens do livro “Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres” de Clarice Lispector (1998b).

177
Fiquei pensando então e constatei que Braga teria sido facilmente

pintada por Hopper. Apesar de já ter afirmado que sua pintura não se resumia

a isso, é o cotidiano solitário que figura em suas telas. Por que digo “facilmente”

então? Porque, como ele mesmo responde ao ser questionado sobre o fato de

suas pinturas refletirem o isolamento da vida moderna: “acho que sou eu” (in:

Laing, 2017, p. 23).

E esse “eu sozinho” foi ganhando forma logo nos primeiros dias.

Durante muito tempo me pus a perguntar:

- quando a morada não se faz casa?

Nas páginas a seguir estão todos os poemas, relatos, apontamentos

e registros fotográficos dessa corpografia bracarense. Eles são fruto daquilo que

vivi nos meus trajetos pela cidade e nas minhas aulas de dança. Portanto, falam

desse habitar o lugar que é, sobretudo, um habitar o corpo.

178
Ora bem, será possível viver
sem um lugar? Será possível habitar onde
não existem lugares? O habitar não tem
lugar lá onde se dorme e, por vezes, se
come, onde se vê televisão e se diverte
com o computador de casa; o lugar do
habitar não é mero alojamento. Só uma
cidade pode ser habitada; mas não é
possível habitar a cidade se ela não se
dispuser a ser habitada, ou seja, se não
“der” lugares. O lugar é o sítio onde
paramos: é pausa – é análogo ao silêncio
de uma partitura. Não há música sem
silêncio.

179
- relatos e poesias
(ou uma cartografia dos afetos)

180
QUANDO A MORADA NÃO SE FAZ CASA?
Sobre o meu primeiro local de morada em Braga (Portugal)

De que serve ter o mapa


Se o fim está traçado?
De que serve a terra à vista
Se o barco está parado?
De que serve ter a chave
Se a porta está aberta?
E para que servem as palavras
Se a casa está deserta?
(Pedro Abrunhosa)

181
• Quando seu lugar de intimidade é a sala de estar ou a

mala posta num canto qualquer.

• Quando seu cheiro não consegue fazer abrigo no lençol

que repousa sobre o sofá, porque nele há um cheiro mais

forte, o de urina de cachorro.

• Quando o cheiro de café e ovos mexidos se confunde

com o cheiro de cigarro envelhecido vindo do quarto ou

da varanda.

• Quando a rotina de leituras e escritos é impedida de

acontecer pela rotina da faxina da casa, que no fundo era

uma faxina da alma. No entanto, era uma limpeza sempre

esporádica e incompleta, como aquelas que assistimos

em novelas ou filmes, onde se joga tudo no fundo do

armário ou debaixo do tapete. Quando isso ocorre, não

precisa de muito esforço para que toda a bagunça e

sujeira reconfigure aquele cenário tão artificialmente

limpo.

• Quando o por do sol, o chocolate e o vinho, apesar de

clichê, foram se tornando, pouco a pouco, minhas únicas

fontes de prazer e, do mesmo modo, de entorpecimento.

Corpo tonalizado pela tristeza vestida de cotidiano

estrangeiro.

182
TODOS OS DIAS
Sobre o meu segundo local de morada em Braga (Portugal)

Passado o primeiro mês, mudei de residência. Nova morada, novos

ares, nova vizinhança. Novos odores, novas memórias. Um novo, nada novo.

Mais do mesmo, que não era o mesmo. Repetido cotidiano, travestido de

novidade.

Todos os dias...

Casarão antigo, feito de pedra e madeira. Num primeiro momento,

cheguei a me sentir num cenário de filme antigo. Passando alguns dias, as

particularidades começaram a configurar uma rotina de incômodo, como na

hora do banho, que a água quente sempre esfriava e cortina grudava no meu

corpo devido ao espaço ser minúsculo. Ou nas duas primeiras semanas sem a

botija de gás para poder cozinhar ou ligar o aquecedor.

Mas o pior foi quando “ganhei” de estimação a

companhia desagradável de um tipo de bicho que não

sabia inicialmente o que era. Foi que um dia a dona da casa

me informou, na maior tranquilidade do mundo, que era

uma centopeia. Fui pesquisar e descobri que seu nome

científico era scorpaena scrofa, um tipo de artrópode de

veneno leve, bastante comum em Portugal. Perdi as contas

de quantas noites acordei com esses bichos caindo na

cama ou na cortina do banheiro. Foram meses com essa

sensação horrível.

Todos os dias...

183
COTIDIANO

Fora de casa, os caminhos eram outros.

Por estar no mesmo bairro da universidade, a cidade agora se fazia

essencialmente a pé.

Cedo, depois de tomar café, ia para a biblioteca ou para uma

pequena livraria que ficava dentro do campus.

Depois, seguia para o restaurante universitário e, após almoçar,

voltava para a biblioteca ou para umas mesas de estudos que ficavam nos

blocos de aula.

Gostava de experimentar sentar sempre em locais diferentes.

Isso amenizava o incômodo gerado pela falta de interlocução e

diálogo.

Mais para o fim da tarde voltava em casa para fazer uma refeição

leve e ir para o ginásio praticar exercícios de fortalecimento muscular.

De lá seguia, de ônibus, para a dança.

Essa era minha rotina.

184
O MOÇO DO RESTAURANTE

Lembro de um episódio curioso. Estava na fila do restaurante

universitário quando observei um rapaz chegando de modo bastante sorridente.

Estranhei. Aquele não era um hábito comum. Ele cutucou meu ombro e

começou a conversar. Fiquei novamente espantado, mas dei continuidade a

conversa. Quando fomos sentar, eu perguntei se ele gostaria de sentar comigo.

Foi então que me veio a surpresa. Ele disse que gostava de almoçar sozinho.

Colocou os fones de ouvido e foi embora. E nunca mais nos falamos.

185
A MOÇA DO RESTAURANTE

Certo dia, após almoçar num dos restaurantes que ficava nas

proximidades da Universidade, deixei uma gorjeta para a pessoa que me

atendeu. Sempre gostei de retribuir de alguma forma o bom atendimento. No

dia seguinte, ao chegar para almoçar, a mesma pessoa, que me viu ao chegar,

passou o restante do tempo em que lá estive evitando de, inclusive, me olhar.

186
NOVO HORIZONTE

Por muito tempo, inclusive, tive receio de falar em voz alta, devido a

questão do preconceito. Isso contribuiu mais ainda para meu isolamento social.

Poucos foram os lugares em que senti que minha origem não era um possível

problema. Inclusive, sempre fazia questão de deixar claro para as pessoas que

minha passagem por Braga era rápida. Inclusive, geralmente esse era o tema da

primeira pergunta que me faziam: o que eu estava fazendo ali. Minha resposta,

quase como um gesto de defesa, era o de deixar claro que eu não estava ali

como um migrante “desesperado” a procura de um novo horizonte.

187
PEDAGOGIA DO GRITO

Passado algum tempo, agora posso falar sobre uma das experiências

mais intensivas que vivi nesses cinco meses de Portugal: o método de aula nas

escolas de dança que participei. Penso que há um apego exagerado naquilo

que é técnico e, por consequente, há, na mesma medida, o esquecimento de

que o professor ou a professora ensina mais que isso. Somos medida de

exemplo, principalmente para as crianças. Então, se eu uso da agressividade, da

humilhação e do escracho como método, ocorre algo que jamais deveria

acontecer no horizonte de formação de qualquer pessoa: elas passam a se

acostumar com aquilo que inicialmente lhes era espantoso e passam a entender

como "normal" esse tipo de postura, em virtude do êxito técnico alcançado.

Em Braga, fiz aulas de ballet clássico, dança contemporânea, dança

de salão, danças africanas e danças latino-americanas. Frequentei 3 escolas

diferentes. Em todas elas, fui inicialmente muito bem acolhido. Seria injusto de

minha parte não deixar isso claro.

Mas o passar dos dias, ao entrar em contato de modo mais frequente

com o “método” de ensino estabelecido pela escola, algo foi começando a me

incomodar. Chegava cedo para minha aula de contemporâneo e ainda estava

acontecendo a aula de hip-hop para crianças. Da entrada da escola ouviam-se

os gritos que vinham da sala ao fundo. Aquilo causou-me, de início, espanto,

para em seguida, passar a me causar agonia e repúdio. Passei a evitar chegar

cedo, afim de não presenciar mais aquilo que considero, no meu entendimento,

uma prática abusiva. Foi então que os gritos aconteceram comigo.

Numa das aulas de flexibilidade, eu não estava conseguindo realizar

o exercício de acordo como a professora estava mostrando. Não por desatenção

188
ou qualquer coisa do gênero, mas por se tratar de um movimento bastante

avançado para um iniciante digamos assim. Acontece que a professora gostava

de repreender seus alunos com gritos como se eles, quando não conseguiam

realizar determinada atividade, era por descaso, falta de compromisso ou algo

assim. Talvez não passasse pela cabeça dela que todos possuem dificuldades e

que os avanços precisam de tempo e dedicação.

O fato é que receber aquele tipo de tratamento me fez procurar uma

outra escola. Saí em silêncio, sem me explicar. Passado algum tempo, enviei um

email para a professora explicando o motivo de minha saída. Pensei que talvez

ela pudesse refletir um pouco sobre sua prática docente. Afinal de contas, ouvi

de várias pessoas que eu não havia sido o primeiro e nem seria o último a sair

de lá por esse motivo. Inclusive na nova escola havia uma ex-aluna dela que

chegou a dizer que saiu de lá porque, com ela, havia perdido a alegria de

dançar. Do email enviado nunca tive resposta.

Olá Profa., aproveito esse dia tão especial para, enfim, dizer

algumas palavras após minha saída da escola sem ao menos dizer

algo. Primeiro, quero agradecer pela acolhida que tive por você e

toda sua equipe. Sou grato por isso. Então, o que me fez sair da

escola que estava sendo, até então, minha segunda casa? Sendo

bastante franco: os gritos. O modo rude como fui tratado. Sou

professor universitário há muitos anos, já fui militar, já fui atleta de

competição, portanto, sei como funciona a "pedagogia do grito".

Mas também sei quando devemos ser professores e quando

devemos ser "técnicos". Infelizmente, não estou na dança para

competições e minha dedicação e paixão devem respeitar o limite

de um corpo de quase 37 anos, inexperiente (pois comecei a

189
realizar danças artísticas há menos de 1 ano) e que havia feito uma

cirurgia há pouco tempo. Mesmo assim, eu estava ali todos os dias,

treinando, tentando me superar a cada dia. Então dançar para mim

é isso: uma paixão e uma superação. Mas também, é uma alegria.

E os gritos não funcionam comigo no sentido de estímulo. Minha

pedagogia é outra. É claro que reconheço e admiro a paixão que

você demonstra ter pela dança e o seu esforço em tornar cada um

de seus alunos, bailarinos de alto nível. Sei disso e seria infantil de

minha parte não reconhecer. Eu apenas não consigo me sentir

estimulado dessa forma. Não há o certo, nem o errado. Então

quero que saiba que saí com muita tristeza. Adorava as aulas.

Reencontrei algumas pessoas na aula aberta do ballet que teve na

quinta e já bateu aquela saudade enorme. Hoje fui assisti-los e saí

de lá com lágrimas nos olhos. Acho que, no fundo, a dança é para

isso: nos emocionar!

- Eco:

Acho que, no fundo,


a dança é para isso:
nos emocionar!

190
TOCA

Já na segunda escola onde fiz aulas, me senti em casa. Fui tratado

com muito carinho e respeito por todos. O que me fez sair de lá foi o fato da

escola ter um foco na dança social e eu sentia a necessidade mesmo de estar

inserido noutro contexto. Lá não tinha aula de ballet (tinha apenas para crianças

bem pequenas) e as aulas de contemporâneo ocorriam apenas uma vez por

semana. Então, sobre minhas vivências nessa segunda escola tenho apenas dois

poemas, escritos a partir de duas situações experienciadas nas aulas de danças

latino-americanas. Ambos falam da questão do contato. O primeiro deles,

“afago”, diz desse corpo que recebe o toque como ato poético, portanto,

transformador e libertário. O segundo, “corpo que é”, fala exatamente do

contrário disso, pois foi escrito a partir da repulsa do toque, dito por uma aluna

com a mão firme travando meu ombro: “não encosta”.

191
“Afago”

Meu corpo é pele

E também é gesto que se desfaz

Num abraço de palavras e sorrisos

Eis que nasce a grafia dos sentidos primeiros

Feita do contato entre nossas liberdades

Onde cala o movimento

Para fazer daquela pausa silenciosa

Uma respiração feita de versos

Porque

1, 2, 3...

Toca!

192
“Corpo que é”

Que nunca acabe a poesia

Onde há de sobra, simetria

Que nunca falte encantos

Onde cala a boca, em prantos

Que nunca seja tarde o prazer

Onde faz sempre e mais, sem querer

Que nunca volte mais cedo o pudor

Onde goza a mentira, sem amor

Porque meu corpo transborda

Pele, afeto e suor.

Nele

A palavra não se cabe

Ela vibra

Nele

O desejo não se sabe

Ele é

Apenas é

193
UM POUCO DE POESIA

Já na terceira escola, comecei a vivenciar a dança de modo mais

intensivo e, com isso, comecei a perceber a importância desse movimento de

mergulho e saturação do corpo. Saturar o corpo é fazê-lo vibrar de tal forma que

ele começa a ganhar novas formas movimento e gesto, portanto, novas formas

de aprender, apreender e dizer.

Muitas e longas horas de aulas e ensaios. Preparação para o

espetáculo. A admiração dos colegas de turma era crescente. Todos

empenhados em realizar o sonho de serem bailarinos profissionais. Muitos, com

tão pouca idade, já carregavam no peito um sem número de prêmios. Eram

atletas da dança. Diferente de mim, que estava ali “apenas” como um aprendiz.

O ápice desse estado de alegria ocorreu na ocasião de um curso de

formação em dança contemporânea, ministrado por Daniel Cardoso, diretor do

Quorum Ballet (Lisboa), cujo título era “improbabilidades criativas”. Durante

dois dias tive a oportunidade de ter como parceira de aula uma das mais

experientes bailarinas da escola. Da observação de seu modo de dançar e da

forma como nossos exercícios suscitaram pensamentos poéticos em mim,

escrevi uma série de 05 poemas, descritos a seguir:

194
“Mexe-te Margarida”

Porque o corpo

Nem começa

Nem termina

Nem mesmo "é"

Apenas faz rizoma de afetos

Brinquedo de poesia dançante

Há, nele, os pés

Que são o mesmo que uma fotografia velha

Esquecida no fundo da gaveta de guardar tralhas

Pés que são rastros

Resquícios de uma memória grafada no mais profundo

Que não é a alma, mas os ossos

Há também um rosto pueril

Contido por uma expressividade marcada pelo teu contexto

Ele me diz, em confidência

Teu nome e tuas dores

E leio-te como uma criança

Que ainda gagueja ao tentar juntar vogais e sonhos

E há, por fim, o bailado secreto

Que é revelado pela entrega do teu abraço

Acolhimento de silêncio e pausa

Escrita de

Gesto

Movimento

E poesia...

Seu principal verso, diz:

"Mexe-te, Margarida, mexe-te".

195
“Géstica”

Somos movidos por nossos afetos

Então dançar é um pouco isso:

Gestos apaixonados

196
“Corpo Vibrátil”

Meu corpo fez eco

Pura matéria sonora

Que reverberou toda poesia

Escondida no abraço trêmulo que recebia

Meu corpo fez eco

Relicário imaginado

Numa verdade dançada em sintonia

Com os pedaços de chão que sentia

Meu corpo fez eco

Verbo de sensações

E conjugando movimento com alegria

Fez de cada respiração, fantasia

Por isso que, ao dançar, existimos

Porque criamos, com nossos gestos, um mundo de possíveis

197
“Meia Ponta”

Com teus saltos e piruetas

Meu desejo faz meia ponta e cai feito menino bobo

Mas é com teu olhar e teu sorriso

Que meu coração pede silêncio

Desliza pelo chão

E se esconde atrás da coxia

Porque és, senão

O grand jete de todo poeta

E eu, que mal consigo bailar sem gaguejar as pernas

Ficaria horas

Apenas olhando o modo delicado com que escreves no ar

Afinal

Anjos não voam, dançam

198
“Poesia para uma Bailarina”

Teu nome

É nome de flor e de mulher

É palavra

Que tem cheiro

E que faz molhar

Relva menina

Que faz o sol esquecer do seu cheiro

É pétala com sabor de poema

Caindo suavemente

No horizonte colorido em delicadeza

É, portanto

Paisagem-bailarina

Pas de deux de verso e sonho

Que desenha no semblante de qualquer coração

O sorriso encantado pela sua sincera beleza

199
NÃO (ME) É NORMAL

Mas a poesia foi interrompida. Novamente, a angústia veio fazer

morada em mim. Quando começou a montagem da coreografia para o

espetáculo, percebi uma outra face da professora que nos ensinava: arrogância

e grosseria. Tentei lidar com aquilo da melhor forma possível. Então, certo dia,

numa sequencia da coreografia, a pessoa que estava na minha frente deveria ter

se movimentado numa dada contagem e não o fez. Naquele momento eu

assumi a responsabilidade pelo ocorrido, mesmo sem ter, para evitar que o

outro aluno – uma criança – ouvisse algum tipo de abuso por parte da

professora.

Foi então que, para meu espanto, ouvi um sonoro “cala-te”. Ela não

era portuguesa. Falava um espanhol muito rápido. Na maioria das vezes não

compreendia o que estava sendo dito. Ela, tampouco, se importava. Meu

aprendizado ocorria, essencialmente, por imitação. Estava sempre em alerta,

atento. Falava pouco, apenas para tirar dúvidas sobre movimento. Então, ela ter

afirmado que eu ficava conversando durante as aulas e que, por isso, havia

errado a coreografia, foi algo que me entristeceu profundamente. Depois disso,

passei a tomar nota daquilo que via e ouvia em aula e que eu, ainda hoje,

considero um absurdo.

Quando um professor diz em sala de aula, em tom agressivo, que vai

"jogar uma granada" em todo mundo porque ninguém está acertando a

coreografia, instala-se aí uma política do medo e do terror. Que tipo de adulto

será essa criança que cresce ouvindo tais palavreados e lidando com tais gestos?

Não devemos nos acostumar. E foi isso que ouvi de alguns: nós nos

acostumamos.

200
Puxão pelo braço: não é normal.

Humilhações e ironias: não é normal.

Atender o telefone no ensaio e ficar de papo: não é normal.

Não ensinar ou tirar duvida: não é normal.

Não se esforçar para falar a língua e quando alguém fala que não

entende a pessoa diz para outra dar um jeito de entender: não é

normal.

Reclamar dos alunos que perguntam e recriminar os que não

entendem: não é normal.

Quando o aluno erra, falar que vai matar, ridicularizar, ameaçar tirar

da coreografia: não é normal.

Dizer na frente de todos que não suporta a mãe de uma aluna: não é

normal.

A lista segue... infelizmente.

Por isso minhas lágrimas não vieram no fim do espetáculo que dancei,

como um suspiro de desabafo. Elas vieram, por muitas vezes, nas longas

caminhada voltando para casa após as aulas. Passos que eram medida de tempo

e reflexão sobre uma angústia perenizada pelo equívoco: a destreza técnica

jamais pode valer mais que a destreza humana, digamos assim. Dessa angústia

perene escrevi “corpo cansado” e “cala-te”:

201
“Corpo cansado”

Corpo cansado de ouvir

Faz sintonia com o silêncio

Daquela voz opaca

Porque dela só há a pronúncia torta

Eco de um soluço gago

Intensidade mesma

Descabida como forma

Inconcebida como conteúdo

Mostra tua dor, disse-me

Num olhar despido

Foi então que notei

O detalhe como gesto

E o movimento delicado daquele

Que escolheu o som repetido

Como sua verdadeira paisagem

Por isso ela nunca lhe emoldurou o horizonte entristecido

Ou seria entardecido?

Fez-se.

202
“Cala-te”

Há um calar que é imanente

E há, paradoxalmente

Um calar que é a mais pura forma de violência

Este é o “Cala-te”

Conjunto tônico que produz uma peculiar paisagem sonora

Esta mesma que esquadrinha corporalidades numa ordem que é

Ensimesmada

Portanto, inconcebível

Porque em todo “Cala-te”

Há um vazio anímico

Porque em todo “Cala-te”

Há a morte da poesia como forma de vida ativa

Então

Por ora

Calo-me

Porque

Em todo “Calo-me”

Há um verso que espera

Oportunamente

Ser abrigo para aqueles que sonham com outros horizontes possíveis

203
Após algum tempo, me peguei lendo Jorge Larrosa. Suas palavras

me são como uma prece. Em Pedagogias Profanas ele diz:

"Talvez tenhamos que aprender a nos apresentar em sala de aula com uma cara
mais humana, isto é, palpitante e expressiva, que não se endureça na autoridade. Talvez tenhamos
que aprender a pronunciar na sala de aula uma palavra mais humana, isto é, insegura e
balbuciante, que não solidifique na verdade. Talvez tenhamos que descobrir o segredo de uma
relação pedagógica mais humana, isto é, frágil e atenta, que não passe pela propriedade".

O debate sobre esse fato girou em torno de duas questões: a primeira

delas, sobre o papel do professor como formador/educador. Para alguns

(muitos?), não temos como responsabilidade educar as crianças para além do

conteúdo curricular concernente à disciplina pela qual somos responsáveis.

Quem tem responsabilidade por “educar” são os pais, dizem.

Eis uma clara referência que não compreende que toda relação

educa. Talvez seja ingênuo o professor que acha que apenas tem por função ser

janela, porta, rodapé, telhado ou seja lá o que for do “conhecimento”. Ao lidar

com essa perspectiva, ele agencia uma série de maquinações formativas

correspondentes aos “valores” (utilitaristas) daquilo que pode configurar o “ser-

professor”, assim mesmo, junto. Diferente do “ser professor”, separado.

Mesmo não querendo, educamos. Mesmo quando achamos que

nossa função é apenas técnica, estamos educando. A novela educa, o cinema

educa, a literatura educa, a dança educa, a cidade educa, a família educa e,

adivinhem só: o professor também. Então, o mínimo que posso desejar é que

sejamos mais humanos nesse processo. Ensinar nunca fica apenas na esteira do

conteúdo.

204
VOYEUR

Rotineiramente, saia para observar e fotografar. E quando comecei a

fazer isso, me pus a observar as pessoas nos ônibus, nas praças e nos cafés. Era

uma experiência citadina apenas de observação, sem trocas, sem diálogo. Um

voyeurismo urbano causado pela invisibilidade como regra. Disso foram escritos

“indiferença sem pudor”, “todos os velhos são tarados?” e “roupas velhas”

205
“Indiferença sem Pudor”

Que relações são essas que brincam com as formas e, ao mesmo

tempo, alimentam gestos de recusa ao outro. Sociabilidade contestada sem

pudor algum. Foi assim que, ao embarcar no comboio em direção à Lisboa,

saindo do Porto, me veio à memória o curta “Tuileries”, do filme do “Paris, te

amo” (2006). A cena nos apresenta de modo esplêndido exatamente aquilo que

Marc Augé fala no seu livro sobre os paradigmas da mobilidade sobremoderna:

superficialidade, que por vezes pode vir configurada como indiferença e

individualismo. O inusitado fica por conta da cena apresentada no filme onde

uma pessoa lê algum tipo de “manual turístico” enquanto aguarda o metrô.

Paris, segundo o referido manual é um lugar definido como “cidade

luz, cidade da cultura, da gastronomia e da arquitetura, dos amantes da arte, da

história e dos amantes, do amor”, mas que se deve “evitar o contato visual com

os demais”. O metro é “rápido, limpo e seguro”, mas “tome cuidado com os

batedores de carteira”. O filme segue sua trama a partir disso. Não é à toa que

foi exatamente no metrô de Paris que a figura icônica do sujeito indiferente

àquilo que acontece ao seu redor também me veio à memória.

Trata de uma intervenção artística promovida pelo Naturally 7,

conhecidos mundialmente por serem um grupo de “vocal play”. Na ocasião,

eles estão dentro de um dos vagões do metrô e começam a cantar à capela.

Aos poucos os passageiros começam a se envolver com aquela intervenção a

passam, inclusive, a cantar juntos. Há, no entanto, um sujeito que parece fazer

questão de demonstrar indiferença àquilo tudo. Ele fica permanece de costas,

com seus fones de ouvido ligados e, por uma ou duas vezes, dirige aquele olhar

arrogante aos membros do Naturally 7.

206
Há duas questões que me vêm à tona a partir dessas duas cenas e

que gostaria de coloca-las antes de compartilhar a que presenciei no comboio

Porto-Lisboa e que me fez lembrar exatamente dessas duas cenas: uma, sobre

a questão da comunicação em transportes coletivos e outra, sobre a questão do

lugar da arte. A questão que me chama atenção é exatamente o fato desse

grupo também se apresentar em concertos em teatros famosos28.

Já a outra questão que me veio é a seguinte: o que diria Janice

Caiafa, estudiosa das etnografias e comunicações urbanas, ao presenciar a

mesma cena que eu? Caiafa constata que no Rio de Janeiro as pessoas

conversam em viagens de ônibus. Ela também pondera sobre o silêncio entre

os desconhecidos como um modo de comunicação e afirma que, “para não se

ter contato (...) é preciso ativamente evitá-lo” (Caiafa, 2005, 126). Pois bem, o

que presenciei foi exatamente isso. As cadeiras do comboio são dispostas umas

de frente para as outras. Ou seja, há ali uma configuração espacial que coloca

as pessoas em contato, mesmo que apenas visual.

E que tempos são esses em que vivemos que já não basta mais ficar

calado nas viagens? Que tempos são esses que fazem com que uma pessoa que

esteja sentada numa cadeira junte suas coisas sem nenhum tipo de

constrangimento e faz questão de deixar claro que está saindo dali para sentar

em outro lugar porque outra pessoa sentou à sua frente? Se, nas palavras de

Caiafa, “a conversação é a mãe da polidez”, esse gesto seria o que então?

Arrisco em dizer: a plena perda daquilo que Caiafa chama de “força da

28
Sobre essa segunda questão, houve um experimento realizado pelo Washington Post e que foi bastante
divulgado na rede mundial de computadores. O renomado violinista Joshua Bell ficou por quase 1h
tocando no metrô no mesmo dia em que iria se apresentar no principal teatro da cidade. O que ele
arrecadou no metrô durante esse período foi quase 1/3 do valor equivalente a apenas um assento de seu
show no teatro. Cf.: https://goo.gl/rDGvGp

207
alteridade das cidades”, tendo em vista que ela mesma define o habitar a cidade

como o ato de “experimentar de alguma forma a vizinhança de estranhos”

(Caiafa, 2009, p. 91).

Doreen Massey afirmou em seu livro "Pelo Espaço", que, ao

avistarmos pela janela do trem alguém que está fora, para nós, é como se sua

história começasse e terminasse naquele instante. Como uma cena de cinema

que nos toma de relance. Mas todos sabemos que a tal pessoa vista, continua

sua trajetória, a despeito da minha. É nesse sentido que Massey vai

problematizar a categoria geográfica de lugar, propondo que lugar seja

compreendido como eventualidade e encontro de trajetórias.

Queria muito perguntar para Massey o que ela teria para dizer sobre

esses mesmos "encontros" quando ocorrem dentro, por exemplo, do trem.

Voltando de Porto para Braga me pus a observar e a pensar sobre isso. Talvez

Massey me respondesse, a exemplo de Bauman, que nossa maior eventualidade

seja o desencontro como marca de um corpo social cada vez mais delineado

pelo avistamento da passagem do outro como outro. Passagem essa que é

distante e fugaz. Então fiquei pensando: Se alguém senta ao nosso lado, o que

posso levar dessa pessoa para que ela não se configure como a mulher da janela

que Massey descreveu?

Primeiro, penso ser importante dizer que esse outro não me é como

um souvenir que o turista faz questão de levar para casa depois de suas

"viagens". Sobre isso sugiro a leitura de Alain de Bottom, em especial, seu livro

“A arte de viajar”. O fato é que componho um cenário que é tanto resultado de

minha observação minuciosa, quanto daquilo que me escapa ou, melhor

dizendo, me invade. Nesse sentido, os lugares me parecem ser, por exemplo,

como o cheiro daqueles que cruzam nossos caminhos. Há o cheiro da roupa

velha, do perfume de grife, do cigarro, do café. Então é isso: lugar é cheiro.

208
“Todos os Velhos são Tarados”

Em Lisboa, no metrô, sou abordado por um senhor. O assunto:

futebol.

Odeio futebol.

Fora que não entendia absolutamente nada do que ele falava.

Sorri, acenei com a cabeça. Entramos no vagão. Vagou uma cadeira

e eu ofereci para que ele se sentasse. Atrás de mim uma moça em pé, com seu

namorado, trajando roupas curtas. O senhor, o mesmo do futebol, me pergunta

algo do tipo: - sabes por que o verão é bom? Eu novamente sorrio. E ele

comentou algo que não entendi muito bem e apontou para a moça semi-

desnuda.

Então pensei: todo velho aqui é tarado?

E quando ocorre de um senhor parar em frente a uma mulher e cercá-

la com sua postura invasiva? Isso me diz que todo velho aqui é tarado? E quando

um senhor sussurra algo para uma garota que passa por ele na calçada? Todo

velho aqui é tarado?

Não sei.

Mas talvez esse tipo de situação possa explicar muitas coisas.

209
“Roupas Velhas”

Hoje vi uma senhora vasculhando o lixo

Ela sentia vergonha

Tentava disfarçar

Algumas pessoas, de longe, tornavam aquela cena um resquício de dignidade

De quem?

Dos que olham?

Dos que são olhados?

Hoje vi uma senhora vasculhando o lixo

Era um lixo de roupas

Serventia para quem não tinha

Até que veio o ônibus

Nele embarcaram:

A senhora, os espectadores e a velha dignidade amassada

E as roupas?

Continuaram sem serventia

Pois a vergonha despiu aquele corpo alheio

Com toda violência que um gesto repetido pode conter.

210
MORTE DE SI

Memórias surgidas na ocasião do falecimento de um ente

querido de uma querida amiga portuguesa. De sua vovozinha, vieram as

lembranças de meu pai. Do pranto solidário e do abraço demorado como

um dos gestos mais sinceros que podemos oferecer em momentos como

esses, vieram as palavras que seguem:

211
“Pele-Paisagem”

A pele que revela o gesto já não se importa mais.

Fluxo de pura matéria sonora que, naquele instante,

Resolveu silenciar minha voz incontida.

Foram dias de luto.

A matiz do teu sorriso,

Emoldurando aquelas histórias de infância e glória,

Já não delineiam o que poderia ser a viagem de dois distintos homens.

Aos cinquenta e dois anos, seu coração, que já nem era seu, parou.

Então, é isso.

O que pode o corpo?

- Morrer.

Desfazer-se em mistura de terra e bichos.

Folhas secas e um escurecer de janelas outras.

Os que ficam, seguem com seus corpos em pleno funcionamento.

Corpo máquina: todos os dias repete-se o protocolo de ser igual.

(Engana-se o poeta).

Talvez por acreditar

Na métrica dos pássaros que ainda estão aprendendo a voar.

Esquece-se, no entanto,

Que é no bater de asas que as flores caem

E o pólen vai florescer outras paisagens.

212
ENCANTAMENTOS

Foi na experiência de um “educar” sensível que escrevi sobre quatro

momentos em que senti no dançar um gesto para além do normatismo da

competição, do “atletismo afectivo”, para citar Gonçalo Tavares (2013) quando

explica o modo como a relação corpo-sentimento é atravessado pela técnica,

pelo treinamento, no seu sentido mais material, mais normativo, mais utilitarista.

Do mesmo modo, foi dessas quatro experiências que também pude

sentir um habitar a cidade como algo que reverbera um habitar o corpo. O fato

é que sempre me interessei mais, para continuar com Gonçalo Tavares, pelas

“anatomias afetivas”, pelos “movimentos emocionais”, e nesse caso, pelas

dobras entre dança-corpo-cidade como manifestação de liberdade, de alegria

e de autonomia:

• Luis Claudio Miguel Pereira

Mais conhecido como Luizinho Astral, Luis Miguel é um brasileiro que

vive na Espanha há mais de 20 anos. Inicialmente, não sabia que era um

conterrâneo, pois o mesmo falava em espanhol. Mas foi num workshop de zouk

ministrado por ele num congresso de danças afro-latinas ocorrido em Braga que

o conheci. Ele identificou, através da minha corporalidade, que eu já possuía

algum conhecido naquele ritmo. E ao conversar comigo e saber que eu era

brasileiro, começou a falar com seu sotaque genuinamente carioca. Como um

bom brasileiro, Luizinho logo abriu as portas de sua residência em Pontevedra

(Espanha). Duas semanas depois estava na sua cidade. Com esse gesto, pude

sentir, por alguns dias, como uma morada se faz casa. Dessa experiência,

213
escrevi:

“Bailados en Pontevedra”

A cidade habitada por corpos dançantes

É uma cidade sem os pormenores de uma vida esterilizada

Cidade viva

Forjada pelo calor de corpos felizes

Cidade plena

Que faz questão de dizer:

"Encantada"

"Mi gusto mucho bailar contigo"

Elogios ao corpo livre

À vida livre

Porque

"Dançar é ser livre", disse o mestre Luizinho

Em Pontevedra

Pude novamente sentir

O calor de uma vida alegre

Ao receber

No fim de cada bailado

O gesto sincero contido

Em cada sorriso

Em cada abraço

Encantados

214
• Maria Carpaneto e Cristina Novo Faro Teixeira

Por alguns dias pude vivenciar novamente momentos de acolhimento

afetivo diante da minha inquietude em relação ao viver em Braga.

Acompanhado de minha querida amiga de longa data, Marília Colares, junto

com outros três colegas, viajamos para Milão por cinco dias. Nos preparativos,

procurei pela internet algum local para que eu pudesse realizar alguma atividade

com a dança. Inclusive, houve num dado momento a ideia de visitar algumas

cidades da Europa e realizar o mesmo tipo de atividade. No entanto, desisti

dessa empreitada. Pelo menos por agora.

O fato é que minha busca me levou a conhecer Maria Carpaneto,

diretora do Il Filo di Paglia, um centro de formação e produção em dança

contemporânea, cinema e vídeo. Com ela, tive a oportunidade de ter uma longa

conversa, bem como, realizar um masterclass sobre sua técnica em dança,

intitulada PMD – Presenza Mobilità, Danza:

Una presenza per esserci, presenza come

qualità indispensabile. Mobilità per essere più disponibili

possibili verso lo spazio, la relazione, il contesto, il qui e ora

e finalmente poter danzare: scoprire il próprio limite come

unicità e potenza, non come difetto.

Já no Porto, tive a oportunidade de fazer um workshop sobre

“movimento livre criativo”. Dessas duas experiências, escrevi:

215
“Passos Descabidos”

Meu balé é feito de palavras caídas

Daquelas que não servem mais ao compasso das formas perfeitas

As piruetas são interrogações de um corpo insosso

Destempero de terra seca

E chão

Esse que me abraça como ninguém

Porque ele é objeto de destrezas outras

Me afaga os pés carinhosamente

Dele

Eu quero tudo

Inclusive

A súbita leveza de ser o que é

E é o quê?

216
“Toda poesia”

Porque toda poesia

É uma lágrima contida

Um suspiro esquecido

Uma alma calada

Porque toda poesia

É rio seco de afeto

Maré alta que molha carência

Meia vida batida nas coxas do incerto

Porque toda poesia

É bebida

Copo quebrado

Resto de desejo

Por isso

Todo poeta

Morre

Cada vez que ele dobra a esquina

De uma vida que transborda vazios

Porque toda poesia

Nem é

Mas um dia vai ser

E disso

Sabe-se bem

217
PAISAGEM SONORA DE UM CORPO TRISTE

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

Pai, afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga

Tragar a dor, engolir a labuta

Mesmo calada a boca, resta o peito

Silêncio na cidade não se escuta

De que me vale ser filho da santa

Melhor seria ser filho da outra

Outra realidade menos morta

Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado

Se na calada da noite eu me dano

Quero lançar um grito desumano

Que é uma maneira de ser escutado

Esse silêncio todo me atordoa

Atordoado eu permaneço atento

Na arquibancada pra a qualquer momento

Ver emergir o monstro da lagoa

De muito gorda a porca já não anda

De muito usada a faca já não corta

Como é difícil, pai, abrir a porta

Essa palavra presa na garganta

Esse pileque homérico no mundo

De que adianta ter boa vontade

Mesmo calado o peito, resta a cuca

Dos bêbados do centro da cidade

(Gilberto Gil/Chico Buarque)

218
Estas foram minhas corpografias bracarenses.

Tristes, indiferentes, solitárias.

Isso não significa dizer, em absoluto, que estou qualificando o lugar

em si. De fato, penso que isso não existe. Considero essas narrativas

corpográficas importantes porque elas me são como um eco ao sentido de

comum como qualidade de arte defendida por Warhol quando diz: “se todo

mundo não é uma beleza, então ninguém é” (in: Laing, 2017, p. 63). Talvez por

isso o verso “does she know that we bleed the same”29, da música “where is my

love”30 foi, por quase todo o período que lá estive, a paisagem sonora de minha

experiência.

Em se tratando do pensar a cidade como esse lugar da indiferença

ao invés do convívio efetivo da diferença, isso seria, por assim dizer, uma de

nossas maiores “feiuras” como gesto humano. Talvez, por esse motivo, poderei

por diversas vezes quando cheguei a conversar com amigos sobre minha

infelicidade e os mesmos me sugeriam mudar de cidade.

O fato é que eu não queria, a exemplo do que observei, ir para o

Porto ou Lisboa, por exemplo, e fazer da minha experiência com aquele lugar

uma experiência do gueto e não a do convívio efetivo com a diferença. Dito de

outro modo, não queria ser um brasileiro no meio de brasileiros. Ter, por assim

dizer, minha rotina ancorada no convívio com aquilo que me seria, mais

provavelmente, semelhante.

29
Tradução livre: “ela sabe que nós sangramos o mesmo?”.
30
Tradução livre: “Onde está o meu amor’.

219
Eu queria mesmo era a troca efetiva, a partilha, a interlocução

igualitária. Infelizmente, na medida da intensidade eu gostaria e do tempo que

tive, isso não foi possível.

Sim, todos nós sangramos igual. Foi nesse sentido que a melodia de

Syml31 me trouxe uma série de outras canções. Todas elas, de algum modo, me

falavam desse sentimento que foi ficando cada vez mais forte: o de voltar para

casa. Estou me referindo, por exemplo, à “Não existe amor em SP”, de Criolo,

em especial quando a canção diz:

Devolva minha vida e morra


Afogada em seu próprio mar de fel
Aqui ninguém vai pro céu
- Me dê um gole de vida

Dela nasceu o poema “mais amor por favor” e “o amor é

importante... Porra!”, onde descrevo a minha Braga, fruto das minhas andanças

e observâncias:

31
De seu estúdio de gravação no porão na pequena cidade de Issaquah, WA, fora de Seattle, Brian Fennell
escreveu e gravou uma coleção de músicas sob o nome Syml, o que significa simples em galês. Adotado e
não sabendo sua história ou conexão com suas raízes galês, muitas dessas músicas foram influenciadas
pelos sentimentos complexos que vêm de linhagem desconhecida”. Fonte: http://www.symlmusic.com

220
“Mais amor, por favor”

Há um pouco de SP

No bêbado sentado no banco da praça

E ele chora.

Há um pouco de SP

Na cadeira vazia

E no sujeito que fica em pé no busão

Que nem está lotado.

(Ninguém quer uma companhia na cadeira do lado)

Há um pouco de SP

Onde há pouco

Menos ainda que o sorriso disfarçado

Sozinhos perdemos tal capacidade

“Mais amor”, diz o poeta

(Em vão?)

Há um pouco de SP

No corpo extraviado

Abandonado

No chão e no palavrão

Escondidos em cada perna entreaberta

Há um pouco de SP

No tom amargo da boca que não sente fome

Porque saciados estão aqueles que vomitam ego

Enquanto isso, eco:

221
“O amor é importante... Porra!”

Em tempos de insensatez

Indiferença

Hipocrisia

Em tempos de falsa nudez

Tanto talvez

Tanta apatia

Que se faça agora

O que já não é tarde

- Devir

Inesperada hora

Sem muito alarde

- Sentir

Porque

Em tempos como esses

Tempos modais

Tempos cabais

Em tempos como esses

Tempos dos quais

Não se quer mais

Grito aos que ainda aqui estão

Faço do gesto

Tua força e vontade

E diga sem medo

Do amor, que seja

Nossa verdade

222
Eco também no verso “não quero passar agosto esperando

setembro”, da música “Bandeira”, de Zeca Baleiro. Inspirações para a escrita do

poema:

“cotidiano insosso”:

Tchau!

Despedidas são necessárias

Porque alguns ciclos são estéreis demais

E não há nada mais eloquente

Que o cotidiano acostumado

Sabe aquele bom dia insosso?

Aqui tem sim senhor!

Sabe aquela prosa boa? De horas a fio?

Sem nem o que é

Pois então, o que me resta é o resto

E disso estou farto

O bucho já por acolá

De tanto vazio sonoro que engoli

Naquela conversa que nunca aconteceu

Por quê?

Aqui, se perguntar, vão te dizer:

Porque sim!

E mudo, escuto

Baleiro:

223
“Não quero medir a altura do tombo

Nem passar agosto esperando setembro

Se bem me lembro

O melhor futuro, este hoje escuro

O maior desejo da boca é o beijo

Eu não quero ter o Tejo me escorrendo das mãos

Quero a Guanabara, quero o rio Nilo,

Quero tudo ter estrela, flor, estilo

Tua língua em meu mamilo, água e sal

Nada tenho, vez em quando tudo

Tudo quero mais ou menos quanto

Vida, vida noves fora zero

Quero viver, quero ouvir, quero ver

(se é assim, quero sim... acho que vim pra te ver)”

(Zeca Baleiro)

224
- série fotográfica
a morada e a rua

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244
Quais seriam os desdobramentos dessas experimentações epistêmico-

poéticas? Fiquei me perguntando se poderia mesmo chamar assim. Prefiro

“relatos”, quiçá, “relatos poéticos”. Talvez...

O fato é que, cada questão ou cada proposição contida nessa

experiência de isolamento e observação silenciosa, como num grande

espetáculo, entram em cena no ato de pensar a cidade. Isso, por sua vez, implica

num exercício constante de experimentações conceituais e modos de

observação outros que apontam para uma geografia atenta aos gestos dos

corpos que habitam, portanto, fazem a cidade. Escala intensiva e híbrida.

Aprendi que o gesto só existe no contato, na afetação, na relação outrem.

A exemplo da antropologia da cidade, de Agier (2011), recuso

qualquer tipo de constrangimento institucional que arbitre normatizações e

homogeneizações colonizadoras de métodos e conceitos que convertem a

cidade numa coisa exterior e universal. A cidade, proponho, é antes de tudo,

devir.

Uma cidade como devir implica, de pronto, escapar do binarismo e das

relações de identificação:

Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação,

Mimese), mas encontrar uma zona de vizinhança, de

indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja

possível distinguir-se (...) o devir está sempre “entre” ou “no

meio” (Deleuze, 2011, p. 11-12).

O que desejo instaurar como zona de vizinhança da cidade como

devir? Agenciamentos de sua função fabuladora. Cidade como ficção de si

mesma. Rascunho que nunca ganha papel de autoridade. O que aproximo? O

245
corpo, uma grafia pelo corpo, no corpo. Corpo-lugar, a exemplo do que

questiona Ciacciari quando diz: “Se somos lugar, como podemos não buscar

lugares” (2009, p. 45). Nesse sentido, gostaria de fazer um breve pas de deux32

com Paola Berenstein Jacques (2008). Ela propõe:

Através do estudo dos movimentos e gestos do corpo

(padrões corporais de ação) poderíamos decifrar suas

corpografias e, a partir destas, a própria experiência urbana que

as resultou. Neste sentido, a compreensão de corpografias pode

servir para a reflexão sobre o urbanismo, através do

desenvolvimento de outras formas, corporais ou incorporadas, de

se apreender o espaço urbano para, posteriormente, se propor

outras formas de intervenção nas cidades33.

Contrariamente do que afirma a autora quando busca delimitar aquilo

que constitui a coreografia, a cartografia e a corpografia, penso na

possibilidade, por exemplo, do que significaria aos estudos sobre a cidade

pensarmos uma corpografia urbana como ato coreográfico. Essa proposição

implica, necessariamente, numa reflexão sobre qual o sentido de corpo, de

mapa e de dança que qualifica os atos estéticos em questão.

A despeito do que diz Paola Berenstein Jacques sobre a corpografia

como uma cartografia daquilo que revela o corpo como inscrição de uma

experiência, vejo como potência exatamente o que ela tenta separar: aquilo que

ocorre em qualquer projeto de movimentação corporal - coreografia - ou seja,

a atualização do projeto pelo corpo do bailarino. Essa tomada de posse corporal

32
Termo do ballet clássico que, em francês significa "Passo de dois". É o trecho do ballet dançado por um
bailarino e uma bailarina.
33
CF.: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165

246
é exatamente a linha de fuga que encontro diante do experimentador científico,

para novamente usar dos termos de Rancière. Um contraponto ao viés

teleológico apontado por Jacques (2008):

Essas corpografias podem ser cartografadas, mapeadas,

representadas ou ilustradas. Alguns artistas já fizeram esse tipo de

representação mas são as próprias corpografias, já inscritas nos

corpos como corporalidade, que nos interessam e estas não

precisam ser representadas para se tornarem visíveis. Os gestos e

movimentos do corpo que fez a experiência urbana já revelam

suas corpografias34.

Prefiro pensar que corpografia jamais é síntese ou revelação. Isso

porque não lido, por exemplo, com a concepção de mapa como algo que indica

localizações, onde nós, de posse de tal mapa, podemos repetir o movimento

de retorno às origens da experiência urbana que resultou tal corpo. Não adianta

falar de corpos errantes e atravessá-los com uma perspectiva representacional

do próprio ato cartográfico.

Pas de trois35:

Os mapas, ao contrário, se superpõem de tal maneira

que cada um encontra no seguinte um remanejamento, em vez

de encontrar nos precedentes uma origem: de um mapa a outro

não se trata da busca de uma origem, mas de uma avaliação dos

deslocamentos. Cada mapa é uma redistribuição de impasses e

aberturas, de limiares e clausuras (...) Os mapas não devem ser

34
CF.: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165
35
Dança de ballet entre três pessoas.

247
compreendidos só em extensão, em relação a um espaço

constituído por trajetos. Existem também mapas de intensidade,

de densidade, que dizem respeito ao que preenchem o espaço,

ao que subtende o projeto (Deleuze, 2011, p. 86-87)

Nem mesmo o corpo aceita ser síntese ou revelação, suporte ou

organismo. Lido com uma concepção de corpo que é inteiro e desorganizado,

no sentido que propõe Deleuze e Guattari (1996) ao tratar do “corpo sem

órgãos” (CsO). É o que busquei problematizar no capítulo “O que pode uma

geografia como corpo que dança”. De todo modo, se ter um corpo é aprender

a ser afetado, esse corpo - superfície de afetos múltiplos - quando dança, torna-

se, nas palavras de Gonçalo Tavares, “a perfeita duração do espaço”, o que é,

por sua vez, matéria prima para a constituição do ato coreográfico.

Uma corpografia da cidade, portanto, me chega de modo muito mais

instigante quando penso nos processos de investigação e de criação

desprendidos pela coreógrafa alemã, Pina Bausch. Em especial, nas suas obras

intituladas “Residências”, onde sua companhia se estabelecia por um ou dois

anos numa determinada cidade para estudá-la e, ao fim, apresentar um

espetáculo. O objetivo não é “representar”, explica Solange Pimentel Caldeira

no seu texto sobre as construções poéticas da coreógrafa e seu olhar sobre as

cidades, “mas sim, captar as sensações do lugar. Trata-se de sempre tentar ´ver´

de uma outra maneira, de outros ângulos, de contaminar-se por algo que está

fora do habitat quotidiano” (Caldeira, 2009, p. 139).

Conclui a autora que Pina realiza uma cartografia do imaginário, onde

o corpo é sua matéria prima:

248
As obras residenciais de Pina Bausch nos presenteiam

não com a comodidade das metáforas indicadoras de realidades

familiares, mas com virtualidade de ações, narrativas incompletas,

desassossegos produtores de mundos possíveis ou impossíveis,

que têm o corpo da cidade como fundamento singular (Caldeira,

2009, P. 144).

Como um rizoma, suas obras realizam mapas intensivos de

multiplicidade e experimentação. Elas nos oferecem, portanto, aquilo que

Deleuze e Guattari chamam de “protocolos de experiência” (Deleuze; Guattari,

2002), que seria artifício de como se entra nos lugares e de como esse lugar

“muda” dependendo exatamente dessa “entrada” (Queiroz Filho, 2012).

Seria necessário escrever outro texto apenas para lidar com a

perspectiva da Pina Bausch como “geógrafa”. Por ora, me contento em partilhar

o sorriso que afagou minhas perenes inquietações ao encontrar mais uma

possibilidade de interlocução. Antes de tratar do ato coreográfico, deixo aquilo

que talvez seja para mim o gesto intensivo mais significativo da coreógrafa sobre

o pensar a cidade. Ela diz: “Cidades são como pessoas, é preciso se apaixonar

para descobri-las” (Bausch, in: Katz, 1997, p. 13)

Diante de tudo isso, meu retorno ao Brasil teve como máxima uma

assertiva definidora daquilo que meu corpo assumiu para si como afeto que lhe

é constituinte: “onde não puderes amar, não te demores“. Com isso, enchi

minha mala de livros, roupas sujas, alguns versos amarrotados e voltei. Porque

foi pela poesia que consegui vislumbrar algum sentido naquela experiência,

afinal de contas, é “a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido”, afirmam

Jorge Larrosa e Walter Kohan na apresentação do belo livro “Tremores: escritos

sobre experiência”. E sem dúvida, minha geo-grafia é isso.

249
Não quero ter
A terrível limitação
De quem vive apenas
Do que é passível de fazer sentido.
Eu não:
Quero uma verdade inventada
(Clarice Lispector)

250
ESPAMOS de um corpo poético

- Dos relatos – palavras do corpo inteiro.

251
- Grafias de mundo, com “g” minúsculo e no

plural: geografias

- Verdade e Representação: duas palavras que mais têm sido evitadas por

diversas áreas do conhecimento. As escrevi em maiúsculo, pois elas chegam

neste texto como ponto de partida para as reflexões que desejo evidenciar.

Durante muito tempo, foram as balizadoras daquilo que se considerava como

Conhecimento, também em maiúsculo: grafia de autoridade, de autoafirmação,

do nome que é próprio, grafia capital, que aspira poder, uma Grafia Maior.

- Na esteira das reflexões pós-estruturalistas, me ponho a sobre os encalços produzidos por

essas grafias maiores, por essas hegemonias de pensamento, interpretações dominantes.

Reguladoras de nossas práticas sociais e discursivas, esses modelos paradigmáticos fazem

convergir todas as múltiplas narrativas, linguagens, discursos e intenções para um lugar na fila

da nossa História Única, em maiúsculo. E “como é minúsculo o olhar de quem vive no escuro”,

canta o músico capixaba Sergio Sampaio. É essa grafia, feita no escuro e em minúsculo que nos

interessa.

- O que me interessa aqui é entender como esses procedimentos são possíveis

para uma ciência que é fortemente assentada nos paradigmas da representação.

Prima pobre das humanidades, a Geografia ainda insiste em realizar um

movimento por demais empobrecedor: o da autoafirmação como ciência. É

empobrecedor, pois ela toma como referência aquilo que definia o fazer

científico no século da razão, o que a impede de sair desse divã egóico na qual

ela está deitada até os dias de hoje.

252
- Se Édipo é valor mercantil da neurose, positivá-lo

seria “desterritorializar Édipo no mundo”, no sentido

de aumentá-lo, sair da submissão, abrir o impasse,

desbloqueá-lo (Deleuze; Guattari, 2002, p. 30).

Desterritorializar: tirar do lugar comum. Outra marca

do pensamento menor. Como tirar (sair) a Geografia

do seu lugar comum?

[...] (uma saída não é “a liberdade”), a saída, pelo contrário, não consiste de

maneira nenhuma em fugir. Todavia, por um lado, a fuga só é recusada como

movimento inútil no espaço, movimento ilusório da liberdade; esta é, em

contrapartida, afirmada como fuga no mesmo sítio, fuga em intensidade

(Deleuze; Guattari, 2002, p. 35, grifo do autor).

- Em vez de querer representar o mundo, a geografia poderia devir o mundo.

“O devir é captura, posse, mais valia; nunca é reprodução ou imitação”

(Deleuze; Guattari, 2002, p. 35). E os devires geográficos certamente só são

possíveis não pela negação e, sim, pela rasura daquilo que a própria Geografia

desqualifica, deslegitima. Não para encontrar nelas uma Geografia atestada e

verificada nas folhas e telas, mas para desterritorializar. Nesse sentido, não nos

interessa a busca da fidelidade atribuída ao olho e continuada nos traços de um

mapa ou imagem digitalizada; como uma reprodução de uma “cartilha visual”

253
(Queiroz Filho, 2010), daquilo que Susan Sontag (2004) chama de “gramática

do ver”.

- Para Manoel de Barros, não interessa o olhar capturado pelo óbvio,

assim como para Kafka, não interessava a música organizada – a

forma musical ou a música “semioticamente formada”, “mas a pura

matéria sonora intensa”, “som musical desterritorializado” (Deleuze;

Guattari, 2002, p. 22-23). Para a geografia, com “g” minúsculo, não

interessa, por exemplo, o mapa fiel do lugar – um mapa de ruas, de

localização, de caminhos já percorridos a serem percorridos por

outros.

- Deleuze e Guattari perguntam: como entrar na obra de Kafka? E nos perguntamos: como

“entrar” num lugar? E continuamos: como sair de um lugar? Deleuze e Guattari (2002, p. 19)

comentam: “qual o mapa do rizoma, e como imediatamente ele se modificaria se entrássemos

por um outro ponto [...]”. E nós: qual mapa [geografias] do lugar... Como entrar e sair de um

lugar? Deleuze responde: por meio de protocolos de experiência, por meio da experimentação.

- Rasurar a ideia de relato como cópia, descrição, representação. Assumir a

própria viagem como exploração e descoberta, antes e depois de sua produção,

assim como são as crianças quando chegam ao parque de diversões. Quando

olham para a roda-gigante. Corpos que se agitam no clique da trava. Começa a

jornada.

254
- A criança explora... o desejo e, ao mesmo tempo, o medo do que será

descoberto quando seus olhos chegarem ao topo. Viajamos como “o menino

que carregava água na peneira” (Barros, 2010):

Tenho um livro sobre águas e meninos.


Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
[...]
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.
[...]
Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.
[...]
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto-final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
[...]

255
- Relatos feitos de memórias, rastros, pegadas, derivas, numa geografia do

corpo que percorreu por um determinado lugar e nele se intensificou: memória

e corpo como constituintes das geografias que fazemos dos lugares. Essa

intensidade é o que o relato, nessa perspectiva, busca dar visibilidade.

- Tomar a produção de relatos de viagem a partir da

aproximação entre Geografia e Arte. Aproximar também os

métodos de produção do conhecimento geográfico, suas

respectivas “grafias”. Dobrar uma sobre a outra.

- Reforçar a ideia de autoria com a qual lidamos nestas reflexões e em nossa

atividade. Como não estávamos em busca da verdade sobre o lugar para o qual

viajamos, verdade essa comumente vendida pelos encartes e sites turísticos,

autoria diz respeito ao movimento realizado por aquele que produz qualquer

obra na e pela linguagem, de dar a ver os traços de sua grafia, o peso de sua

mão, os impulsos, os suspiros, as escolhas e intencionalidades que mediam todo

e qualquer processo de produção de pensamento.

- Não quero a ocultação daquele que fala, como nos chama atenção Jorge Larrosa

quando discute sobre o poder da verdade e a verdade do poder (Larrosa, 2010). O

propósito não era o de reproduzir o “efeito-realidade” de que fala Larrosa, e sim de

proporcionar aquilo que o autor qualifica como “pluralização da realidade” (Larrosa,

2010, p. 154).

- O que os relatos estão por fazer, no limite, é colocar em dúvida o poder da realidade

representacional traduzida, por exemplo, pelas imagens fotográficas. Eles estão

256
evidenciando o “caráter plural da verdade, [...] o caráter construído da realidade, [...] o

caráter poético e político da linguagem” (Larrosa, 2010, p. 164).

- Nos “perder”, no sentido benjaminiano do termo. Afinal de contas, não busco

definir o lugar, mas, de alguma forma, compreendê-lo em sua polifonia e

policromia de significados possíveis, como nos aponta o antropólogo italiano

Massimo Canevacci. Para o autor, “compreender uma cidade significa colher

fragmentos. E lançar entre eles estranhas pontes, por intermédio das quais seja

possível encontrar uma pluralidade de significados” (Canevacci, 2004, p. 35).

- E assim fomos a busca dessa pluralidade,

sendo plurais.

- O intensivo e o extensivo se contaminaram. Dobrar um sobre o

outro, produzir um novo território existencial, um novo lugar

conceitual, um novo espaço sensível. Deixar de lado a linguagem

geográfica representativa para “tender para os extremos ou limites”

(Deleuze; Guattari, 2002, p. 49) dessa própria linguagem:

desterritorializar o pensamento geográfico estabelecido.

- Dos relatos – palavras do corpo inteiro

257
- Há paisagem num olhar entristecido? Há fronteira num sorriso contido? Há território num

abraço apertado? Há lugar num suspiro de prazer? Qual seria a escala contida num corpo nu?

Qual seria a escala para uma geografia que saboreia o mundo? Saborear o mundo significa

reconhecer, em grande medida, que o espaço contém cheiros, gostos, sensações, esbarrões,

piscadelas, náuseas, enfim. Experienciamos o mundo de corpo inteiro, com o estômago, com a

boca, com as mãos, com o nariz, e também com os olhos (Queiroz Filho, 2007). Os dois relatos

a seguir são assim, para saborear.

- Parafraseando Deleuze e Guattari: o mesmo será dizer que “menor” já não

qualifica certas geografias, mas as condições revolucionárias de qualquer

geografia no seio daquela que se chama grande. Por isso nossos relatos são

menores: eles foram feitos de multiplicidades, de imagens que nos apontaram,

ao mesmo tempo, para as hegemonias e intencionalidades já estabelecidas, mas

também para possibilidades outras de produção de conhecimento e de

(a)fetividade política. Relatos feitos com uma grafia constituída de aproximações

e experimentações. Relatos feitos com uma grafia escrita com “g” minúsculo e

no plural: geografias.

258
Palavras,
Desejos,
E um pedaço de chão
...
Um não: todos!
Lugar-Ausência
Que cabe numa mochila
Daqueles que passam
Mesmo estando
Lugar-Silêncio
Revestido pelo mar
Que teima em anunciar suas ondas
Numa sinto(cro)nia elegantemente repetida
Lugar-Fronteira
Comarca de forasteiros
Onde o juízo é a ponta da faca
Ou o barulho do pipoco.
Lugar-Preguiça
Assumido por alguns
Entendido por poucos
Lugar-Intensivo
Remissivo
Alusivo
Lugar-Memória
Grafado nos pés
E no coração que cansou de bater
Continuadas
No Lugar-Geografias
De cada um.

259
REDESCOBERTA do corpo,

- Foi, no Brasil, que pude compreender o corpo como mapa intensivo. Mapa
como marca, gesto, movimento. Mapear, portanto, como ato político-poético
que utiliza como fonte aquilo que foi absorvido ou repelido, tal como um tecido
vibrátil, que reverbera sensações e afetos dos mais diversos, afinal de contas,
como enuncia Bruno Latour, “ter um corpo é aprender a ser afetado”.

260
A partir das palavras de alguns amigos, onde as mesmas me puseram

a fazer da solidão um exercício de criação com tudo aquilo tudo aquilo que via

e sentia. Busquei, a partir disso, tornar-me um observador ativo. Foi assim que

pude permitir que inspirações outras compusessem o sentido e o tom da minha

escrita aqui disposta. E isso era algo que não poderia ser negligenciado por uma

escrita feita na tessitura com o lugar, que é do corpo, mas que é também, da

experiência, da memória, enfim, lugar da linguagem.

Desse gesto, surgiu o reconhecimento da necessidade de um ajuste

no processo de pesquisa e, portanto, na própria escrita deste livro. O fato é que

Portugal me proporcionou, essencialmente, uma corpografia de afetos tristes e

eu precisava falar de outras corpografias. Retornar, portanto, constitui-se não

apenas como uma necessidade, mas como último gesto para fazer sobreviver o

trabalho de pesquisa e de escrita a qual me propus a fazer.

Foi, no Brasil, que pude compreender, efetivamente, como a

redescoberta do corpo promove, por intensidade, uma captação mais afinada

com o lugar e os diversos percursos diários que por ele fazemos.

Foi, no Brasil, que pude compreender que “A cadeira é cadeira e o

quadro é quadro porque te participam”, como versa a Conjugação do Ausente,

de Vinicius de Moraes, escrito em 1954. Foi nesse tom que a rua passou a ser

rua, a casa a ser casa, a cidade ser cidade e as pessoas serem pessoas.

Foi, no Brasil, que pude compreender o corpo como mapa intensivo.

Mapa como marca, gesto, movimento. Mapear, portanto, como ato político-

poético que utiliza como fonte aquilo que foi absorvido ou repelido, tal como

um tecido vibrátil, que reverbera sensações e afetos dos mais diversos, afinal de

contas, como enuncia Bruno Latour, “ter um corpo é aprender a ser afetado”.

A partir desse momento que surgiu como percurso possível a ideia

de fazer reverberar vivências do cotidiano a partir da perspectiva do corpo como

261
mapa, criando assim, uma espécie de carto-corpo-grafia da experiência. E assim

este livro foi escrito, como fluxo, trajetória, como “uma valsa que não faz pose”,

a exemplo do que explica Maitê Bumachar, bailarina e professora de dança

contemporânea quando diz que a trajetória do movimento é tão ou até mais

importante quanto seu ponto de partida e de chegada. É preciso, em suas

palavras, saber verdadeiramente usar os momentos de pausa, respiração e

passagem. É, portanto, pelo agenciamento corpóreo que a sua dança

contemporânea me oferece que vislumbro, efetivamente, o “esticar dos

horizontes” de que fala Manoel de Barros.

Talvez seja por isso que hoje compreendo a importância do “estica o

pé”, “estica o joelho”, “meia ponta alta”, “linha do pé”, “tronco ereto”, dentre

tantas outras “posturas” que são tão eloquentemente demandadas pelo ballet

clássico. Essas “palavras de ordem”, bem como suas “desaprendizagens” não

são apenas formas de colocar o corpo, são formas de se colocar no mundo. Ou

seja, quando Gabriela Camargo, bailarina e professora de ballet clássico, nos diz

que para dançar é preciso “ocupar o espaço da música”, hoje percebo como,

de fato, isso quer dizer mais sobre um ocupar a si mesmo.

Dito de outro modo, tanto as “palavras de ordem” do ballet clássico,

como as “desaprendizagens” da dança contemporânea, são, nada mais, que

um descortinar de novos possíveis, alinhavados por uma métrica que acolhe a

criação de si mesmo como um devir do cotidiano.

Engana-se, portanto, quem pensa que o agenciamento do ballet não

é poético, afinal, Manoel de Barros está aí para nos lembrar a importância do

“repetir, repetir, até ficar diferente”. Ficar diferente, penso, trata de uma

aprendizagem que combate nossa indiferenciação em relação ao mundo. Ficar

diferente é não ser indiferente em relação aos afetos que, de algum modo, nos

atravessam.

262
Ficar diferente é produzir um “sujeito articulado”, nos temos de

Bruno Latour, que seria “Alguém que aprende a ser afectado pelos outros – não

por si próprio”. Por isso, uma vida citadina que tem indiferença a marca de suas

relações diminui consideravelmente a possibilidade de compreendermos a

cidade como lugar de afetamentos, portanto, de diferença. Parafraseando

Latour, a cidade ou a vida citadina por si próprio:

não tem nada de interessante, profundo ou válido.

Este é o limite de uma definição de comum. Um sujeito (digo: a

cidade ou a vida citadina) só se torna interessante, profundo e

válido quando ressoa com os outros, quando é efectuado,

influenciado, posto em movimento por novas entidades cujas

diferenças são registadas de formas novas e inesperadas

(Latour, in: Nunes; Roque, 2008, p. 43).

Talvez não tenha sido à toa que os registros fotográficos que fiz em

Portugal foram quase que exclusivamente fotografias de rua, de paisagem e de

arquitetura. Já no Brasil, a experiência do retrato36 em situação de aula de dança

e de ensaios coreográficos foi o que pautou meus registros, que no seu conjunto

intitulei de “Corporema”. Em ambos os casos, os registros tiveram

essencialmente dois objetivos:

36
Gosto do entendimento do fotógrafo Ronaldo Carvalho sobre a ideia de “retrato”. Ele explica que
retratos são fotografias em que a pessoa sabe que está sendo fotografada, independente do lugar. Cf.:
https://goo.gl/dRHqsf

263
• Observação atenta, minuciosa

A realização desse exercício mesmo de observação, que está longe

de ser algo passivo e sim, algo como a “escuta analítica ou poética” de que fala

Louppe. Por isso, essas fotos são algo mais como uma “hermenêutica da

dança”, no sentido que propõe Sally Gardner, citado por Louppe, a saber, como

um diálogo que é:

Variável, flutuante e profundamente circunstancial,

ligado a uma experiência dificilmente generalizável, passa por

um tecido conjuntivo de relações sensoriais entre a dança e sua

testemunha (Louppe, 2012, p. 32)

Quanto mais se aprende a ter um corpo pela dança, melhor se

aprende a ouvir: “A escuta analítica ou poética não é radioscopia. Participa em

todo o corpo” (Louppe, 2012, p. 31).

• Estímulo Sensível

Servir de disparador daquilo que pode ser dito pelo que se é visto

A fotografia como pretexto

O que importa mesmo é que vai ser dito no “enquanto”

Portanto, instante como duração

Olhar como mapeamento silencioso

De um corpo que é

De um corpo que faz

Corpo-palavra

264
Olho-dizer

Pés e pensamentos

Corpo sem feição, sem identidade

Eco:

Corpo

Que é poema, que é mapa

Corpo-afeto

Que conta uma história

De quem viveu os lugares

Como a si mesmo

Por isso

Corpo como primeira Geografia

Corpo-grafia
Que é
Sobretudo
Vida
Por isso
Corporema

265
- série fotográfica
“corporema”

266
- corpo como território (Descrever? Descrever!)

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281
282
283
Descrição pormenorizada

Aproximar o movimento daquilo que é CHEIRO


Movimento com aroma.
Ser subtil no limite.
Tornar indistintos, o lado esquerdo e o lado direito.
O lado esquerdo do som.
O lado esquerdo do Aroma.
Intensificar o Aroma do lado direito.
É 1 bailarino. Acrobata dos Aromas, dizes.
Dança (isto é: cheira bonito do espaço).
Consigo tocar o Aroma de cima com o de baixo. Assim.
Flexibilidade do Invisível.
Pobreza no Excesso.
Transbordar de Mínimos.

(Gonçalo Tavares, Livro da Dança)

284
- corpo como paisagem (Estética? Estética!)

285
286
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288
289
290
291
Estética do átomo

a estética do átomo.
a arte do átomo.
Que importa a beleza daquilo que se pode ser belo?
Importante a beleza do Impossível.
a ciência encontrou muito, não encontro nada, a ciência
não encontrou nada. encontrou nomes.
a estética do átomo.
a arte do átomo.
a deusa do interior foi mudar a cor do cabelo e cá fora os
atentos elogiam a brusca mudança brusca mas acertada
do cabelo da Mudança do cabelo, a deusa interior da
anatomia exterior está de parabéns porque mudou a
estética e a arte para azul claro, claro mas FUNDO.
(Preocupações estéticas com o átomo
Preocupar-se com a estética do átomo)

(Gonçalo Tavares, Livro da Dança)

292
- corpo como espacialidade (Metodologia? Metodologia!)

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305
Metodologia

Tornar o chão Louco.


a importância da ATMOSFERA é a Psicanálise perante
o deitado (o chão).
Tornar o chão Louco para que a ATMOSFERA possa dar conselhos.
Depois, a seguir, tornar a atmosfera louca.

(Gonçalo Tavares, Livro da Dança)

306
“O CORPO é a nossa primeira geografia”,

- Provocações dessa natureza servem para criar inícios. Fazer mover


pensamentos “a partir de”. Serve para instigar uma jornada.

307
308
Tatuagem (Chico Buarque e Ruy Guerra)37

Quero ficar no teu corpo feito tatuagem


Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar em tua escrava
Que você pega, esfrega, nega
Mas não lava
Quero brincar no teu corpo feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta
Morta de cansaço
Quero pesar feito cruz nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva
Marcada a frio, a ferro e fogo
Em carne viva
Corações de mãe
Arpões, sereias e serpentes
Que te rabiscam o corpo todo
Mas não sentes

37
1972 © Cara Nova Editora Musical Ltda.

309
Foi numa das primeiras aulas da disciplina de Estudos Culturais

(ICS/UMinho) que ouvi essa frase: “o corpo é a nossa primeira Geografia”. Na

ocasião, a Profa. Ana Francisca de Azevedo, ao proferi-la, estava fazendo

menção aos estudos do corpo realizados pela ciência geográfica e que

configuraram o livro por ela organizado, intitulado Geografias do Corpo: ensaios

de Geografia Cultural. Fiquei com aquela frase entranhada.

Porque se “o corpo é a nossa primeira geografia”, sinto a

necessidade de pensar para além da pergunta espinosana “o que pode o

corpo?”. A questão que me abraça agora versa, em conjunto com essa primeira,

sobre o sentido de corpo que estou lidando. Quando tatuei essa frase em meu

braço e publiquei uma foto na minha rede social, foi engraçado ler alguns

comentários que tentavam adjetivar, teorizar ou até mesmo definir o sentido da

palavra corpo ou da palavra geografia grafada em mim. Destaco duas assertivas,

pois quero me demorar um pouco nelas:

- “acredito no que você acredita, tanto que virou marca na pele”

Corpo como registro, revelação de uma dada forma de acreditar?

Duas questões: primeiro, a ideia do corpo como tela, como superfície, como

“imagem”, como signo representativo (redundância?); segundo: a

superficialidade da palavra crença, que habita, penso, os mesmos lugares das

opiniões. Apontamento claramente larrosiano. Jorge Larrosa, filósofo espanhol,

trata de diferenciar aquilo que é da ordem da informação/opinião e aquilo que

é da ordem do conhecimento/experiência. Meu corpo, meu gesto de grafia no

meu corpo, é um ato lorrosiano, por assim dizer. Explico:

310
As palavras produzem sentido, isso diz não apenas Larrosa. Ficamos

assim. Portanto, dizer “acredito no que você acredita” não é a mesma coisa de

dizer, por exemplo, “estou de acordo com o que você pensa”. Pensar aqui não

pode ter seu sentido reduzido à crença ou opinião. Pensar é dar sentido, criar

sentido, argumenta Larrosa:

As palavras com que nomeamos o que somos, o que

fazemos, o que pensamos, o que percebemos ou o que

sentimos são mais que simplesmente palavras. E, por isso, a luta

pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras,

pela imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou

desativação de outras palavras são lutas em que se joga algo

mais do que simplesmente palavras, algo mais que somente

palavras.

Então, quando digo “o corpo é nossa primeira geografia”,

precisamos nos demorar um pouco mais nos detalhes do modo como isso é

“dito”. No limite, está aí uma provocação conceitual. Na verdade, uma série

delas. Provocações dessa natureza servem para criar inícios. Fazer mover

pensamentos “a partir de”. Serve para instigar uma jornada. A crença, no

entanto, é ponto de paragem, lugar de calmaria, por assim dizer. Abrigo e

celeiro da quietude. Estou longe disso.

O fato é que, para fazer pensar, é preciso lidar com esta frase de

modo mais curioso. Como uma criança que interroga tudo aquilo que vê,

pergunto: qual sentido de corpo? É físico? É superfície? É simbólico? Há algum

outro sentido que eu desconheça e que pode transformar esse suposto sentido

inicial que atribuí? Continuo: primeira geografia? Por que primeira e não

311
segunda? Quando ocorre a primeira e quando vem a seguinte? Qual seria essa

seguinte? E esse “g” minúsculo? Foi intencional?

A grafia em minúsculo é uma marca das “passagens subterrâneas do

pensamento”38. Portanto, uma geografia escrita assim, indica um

atravessamento por diversas formas de inteligência, todas elas configurando-se

“atalhos e desvios, mas jamais em vias diretas” (Joseph Vogl39). Por isso

interessa mais estudar os modos como ocorrem os movimentos num sistema de

passagens, uma “etologia” do movimento, explica Vogl. A isso estou chamando

de geografias, com “g” minúsculo e no plural.

E o corpo? Esse seria o próprio lugar dos encontros imprevistos, um

rizoma:

Rizoma (lugar dos encontros imprevistos):


1) Nenhum começo, nenhum fim;

2) Nem centro, nem periferia;

3) Sistema de passagens

Sua condição primeira não é tanto de linearidade, nem sequencia,

mas de “localidade”. Um mapa do rizoma é sempre primeiro, porque ele nunca

é suficiente, no sentido de “inteiro”. Não há generalidade nessa cartografia do

corpo, mas traços que indicam aproximações.

Portanto, o “g” minúsculo é indicativo de uma forma de inteligência:

a capacidade de encontrar começos cada superfície de contato, é um estudo

dos “múltiplos processos de troca”: “qual é o mapa do rizoma e como é que

38
Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=2k-wWziPk-g
39
Idem.

312
este, de repente, se modifica se se entrar por qualquer outro ponto?” (Deleuze;

Guattari, 2002, p. 19).

Joseph Vogl trata do conceito de Entwendung para explicar o

método de escrita filosófica em Deleuze e Guattari. Segundo o autor, eles

cometiam, a todo instante, “furto sem aquisição”. Por isso, corpo como primeira

geografia jamais será um ato de propriedade, mas um ato de “apropriação

produtiva”, de “extração temporária de um contexto e inserção num outro a

propósito de testar: assim ele ganhará nova capacidade criativa”.

Portanto, a “marca na pele” não é um atestado, um carimbo, um selo

de autenticidade, um protocolo jurídico. Ela é, sobretudo, uma experiência: “A

experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que

se passa, não o que acontece, ou o que toca” (Larrosa, 2015, p. 18). É, portanto,

atemporal, do ponto de vista da cronologia, e temporal, do ponto de vista do

instante. É aquilo que Rosa Gadelha, na sua tese intitulada “Corpografias em

dança contemporânea”, define como uma “parada súbita entre dois

movimentos” (Gadelha, 2010, p. 17).

O que significaria então pensar nossa relação com os lugares nesses

termos? O que significaria dizer “corpo geográfico” ao invés de “olhar

geográfico”? Laurence Louppe fala da “invenção de um corpo singular

irredutível” (Louppe, 2012) quando explica o modo pelo qual cada coreógrafo

ou cada estilo cria um corpo-dançante diferente. Essa diferença, no entanto,

ocorre não apenas por uma questão da forma ou do movimento em si, mas de

seus agenciamentos, ou seja, de sua “captura de forças” (Deleuze, 1969, p. 57).

Portanto, um “corpo geográfico” é feito disso: pele-experiência,

mapa de mobilizações e de transgressões. Marca protocolos de experiências e

experimentações (Deleuze; Guattari, 2002). Sugere uma atitude desviante,

313
configuradas num constante exercício de ser criança, a exemplo do poeta

Manoel de Barros, e suas “peraltagens com as palavras”.

Há paisagem num olhar entristecido? Há fronteira

num sorriso contido? Há território num abraço apertado? Há

lugar num suspiro de prazer? Qual seria a escala contida num

corpo nu? Qual seria a escala para uma geografia que saboreia

o mundo? (Queiroz Filho, 2012, 114).

Saborear o mundo significa reconhecer, em grande

medida, que o espaço contém cheiros, gostos, sensações,

esbarrões, piscadelas, náuseas, enfim. Experienciamos o mundo

de corpo inteiro, com o estômago, com a boca, com as mãos,

com o nariz, e também com os olhos (Queiroz Filho, 2007, p.

02).

E essa criança, cansou de brincar na segurança de seu confortável

quarto, imaginando castelos e estradas, epopeias e romances. Vai escondida

para o terreno baldio. Ela deseja brincar “outramente”, que seria, noutras

palavras, um gesto de desobediência. Tal atitude está longe de configurar uma

teimosia, mas de resistência ao gesto amesmado, repetido.

A repetição aqui está no sentido do automatismo e, nem tanto, na

ideia do burilamento e aperfeiçoamento obtido pela constância de determinada

atitude. Nesse sentido, não cabe alimentar também um certo sentido de que o

gesto repetido que gera automatismo deve ser eliminado, por assim dizer.

Deve-se traçar “linhas de fuga”, como apontam Deleuze (1997).

Portanto, um corpo geográfico, nesses termos, não é aquele que

tenta expelir de si aquilo que considera um ente estranho. Tenta, sim, criar

314
“novas potências gramaticais ou sintáticas” (Deleuze, 1997, p. 09), ou seja, tenta

não apenas criar novos gestos, mas configurar dizeres outros a partir de seus

“sulcos costumeiros”. Parafraseando Deleuze, quando se cria um corpo no

interior do corpo, seus gestos e movimentos tendem “para um limite

‘assintático’, ‘agramatical’, ou que se comunica com seu próprio fora” (Deleuze,

1997, p. 09). Eis que me deparo então com esse corpo geográfico que se põe

experimental e delirante. E ele me fascina.

- “corpo como uma simbologia espelhada no/pelo espaço”

Espelho semântico? Corpo que revela o quê? E esconde o quê?

Absolutamente nada! Porque meu corpo não serve como simbologia, nem

reflexo. Não há ritual de passagem, nem cerimônia de comemoração em face

de exercícios de transmutação de algo que era e não é mais. Com algumas

ressalvas, fiquei pensando sobre o “significante flutuante” em José Gil:

Ele designa sempre uma energia, uma força que

é impossível ver significadas em códigos, visto que estes

falam das coisas e das suas relações e não do que as torna

possíveis, enquanto o significante flutuante é também,

para o pensamento indígena, um princípio de explicação.

Denota, além disso, as franjas de desordem semântica...

(Gil, 1997, p. 19)

Gil explica que o Xamane, ao criar uma espécie de gramática que

permite aquele que está doente, expressar sua dor e, com isso, se curar. Gil

315
chama esse processo de “tradução”, onde ocorre a transição, em suas palavras,

de um sistema de códigos para outro. Nessa perspectiva, o corpo é tido como

um suporte, uma caixa vazia a ser preenchida, um “permutador de códigos” que

“sozinho não significa, nada diz”.

Minha aposta conceitual tende a ponderar esse entendimento. Na

esteira dos estudos deleuze-guattarianos sobre o corpo, me sinto mais acolhido

quando leio algo no sentido do “corpo sem órgãos”:

Como consistência, o Corpo sem Órgãos é o

intensivo que vibra nas imantações passageiras de umas linhas

pelas outras por ocasião de encontros; passageiras imantações,

repito, mas o suficiente para que se possa determinar qual é a

singularidade do CsO2 que está me pegando aqui e agora. Por

isso é que eu posso até certo ponto interferir na criação de

corpos sem órgãos para mim (Orlandi, 2004, p. 11).

Portanto, me interesso mais pelo debate sobre as potências do

corpo, a exemplo do que faz Kátia Kasper no seu texto que fala sobre os

processos de “desorganização do corpo” realizados Grupo de Pesquisa LUME

(Unicamp), intitulado “Encontro para estudo e iniciação do clown pessoal”:

Não se trata de representar, mas de fazer; e aparece,

na ação, se está ou não acontecendo. A esse jogo foram se

juntando outros, oferecendo mais elementos de

desorganização. Tratava-se de um trabalho muito intenso de

produção de deslocamentos. Deslocamentos quanto à postura

corporal, deslocamentos em relação às atitudes costumeiras, à

percepção, às formas habituais de ação e reação, aos modos de

316
sentir, de agir, etc. Uma aprendizagem também no sentido de

abrir outras conexões possíveis entre cada participante e tudo o

que estava em volta. Podemos pensar que encontramos aí

experimentações que fazem do corpo uma potência que não se

reduz ao organismo — um conjunto de funções — e do

pensamento uma potência que não se reduz à consciência.

(Kasper, 2009, p. 204).

A esse processo, a autora chama de “Gestos em fuga”. Que seria,

penso, algo semelhante do que fala Gil sobre o “desbloqueamento dos

sentidos”. O autor fala das circunstâncias pelas quais podem isso pode ocorrer,

que seria pela “confusão levada ao extremo, dos códigos e línguas que tinha

por emblema o corpo (...) irrupção progressiva do corpo” (Gil, 1997, p. 24).

Então, se “para fazer um clown é preciso fazer um corpo”, do mesmo modo,

para fazer uma geografia é preciso fazer um corpo, aquele disponível ao outro

e ao mesmo: contágio, experimentação, metamorfose.

Por vezes Gil fala desse processo como algo que decorre de um

esvaziar para tornar-se novamente cheio. O “corpo novo”, como diz, o é porque

foi, “de novo codificado”. Não é bem nesses termos que gostaria de tratar. Nem

primitivo, nem transcendente. Aquilo que Gil aponta como uma “dificuldade”,

quando afirma que o corpo por si só é apenas expressão (Gil, 2001), vejo como

uma potencialidade, no sentido daquilo que pode o corpo.

Ao dizer que “o corpo não fala, faz falar”, Gil está lidando com a

concepção de linguagem na esteira da semiótica, que entende a língua como

um sistema de signos. Disso resulta seu entendimento de que é extremamente

difícil criar uma gramática do corpo que dança, ou seja, uma “língua específica”,

e conclui dizendo que a dança não é uma linguagem).

317
Por isso, “desorganizar o corpo” em Gil não é o mesmo que, por

exemplo, em Deleuze. Corpo aqui é emaranhado, intensidade. Corpo aqui é

rizoma, que escapa dos artifícios do plano representacional para compor, de

fato, um plano de corpos:

Com efeito, o plano de representação fixa e

organiza o corpo. Já o plano do corpo é um plano de

consistência que ignora as diferenças de níveis. Ignora toda

diferença entre artificial e natural. Ignora a distinção de

conteúdos e de expressões. O plano dos corpos é imanente,

é constituído de relações de movimento, repouso, rapidez,

lentidão entre os elementos formados. É um plano não

estruturado e organizado, supõe o próprio plano em devir,

portanto um plano dançarino, um plano de proliferação, de

povoamento, de contágio – onde se reencontram as

multiplicidades intensivas que produzem essas mesmas

relações de movimento/repouso, de rápido/lento... (Gadelha,

2010, p. 15-16)

Não há, nesse sentido, corpo puro, proliferador de signos. Não há,

tampouco, função “natural” do corpo. Há composição, fluxos e intensidades.

Desorganizar o corpo é, portanto, criar um “corpo sem órgãos”:

O corpo sem órgãos não é o testemunho de um

nada original nem o resto de uma totalidade perdida. Mas

sobretudo o que ele não é, de modo algum, é uma projecção:

não tem nada a ver com o corpo de cada um nem com uma

imagem do corpo. É o corpo sem imagem. (p. 13-14)

318
Ao invés do corpo semiótico, há o corpo paranoico, esquizofrênico,

discutido por Deleuze:

O esquizo dispõe de modos muito próprios de

referência, pois dispõe de um código de registo particular que

não coincide com o código social ou que só coincide com ele

para o parodiar. O código delirante ou desejante apresenta uma

fluidez extraordinária. Dir-se-ia que o esquizofrénico passa de

um código a outro, que baralha todos os códigos, num deslizar

veloz, conforme as questões que lhe são postas, não dando

nunca duas vezes seguidas a mesma explicação, não invocando

nunca a mesma genealogia, não registando nunca do mesmo

modo o mesmo acontecimento, e aceitando até, quando lhe

impõem e não está irritado, o banal código edipiano, pronto a

re-entulhá-Io com todas as disjunções de cuja exclusão se

encarrega esse código. (2004, p. 20)

No entanto, prefiro a poética oriunda do devir-criança. Precisamente,

porque a “criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer: explorar os meios,

por trajetos dinâmicos, e traçar o mapa correspondente” (Deleuze, 1997, p. 73).

Nesse sentido, o corpo que me interessa é esse: mapa intensivo. Nem

instrumento, nem espelho, apenas “uma lista de afectos ou constelação”

(Deleuze, 1997, p. 77). Corpo-linguagem, devir minoritário.

Corpo-criança, corpo-criança-brincante: gesto delicado que

transforma lama em bolo de chocolate, enfeitado por uma flor. Criança que

brinca de fazer paisagem com aquilo que dispõe no limiar de seus trajetos mais

corriqueiros. Ela “flexiona”, pelos seus gestos, o modo como as coisas estão

dispostas no mundo pelos adultos. É, pois, brincando, que a criança cria um

319
corpo sem órgãos, “último resíduo de um socius desterritorializado” (Deleuze;

Guattari, 2004, p. 36).

Então posso dizer que essa mobilização de fluxos afetivos que a

criança potencializa constitui aquilo que a cineasta Renata Meirelles intitula

como “território do brincar”. Ao se sentir incomodada com a recorrente

afirmação proferida por adultos de que “as crianças não brincam mais”, Renata

passou dois anos viajando por diversos estados brasileiros, coletando cenas de

crianças no seu contexto cotidiano. Em suas palavras, “nós estávamos querendo

registrar o lado potente da infância (...) o nosso foco era olhar o gesto”40. O seu

trabalho nos mostra como o gesto livre da criança brincante jamais imitação do

adulto, porque ele é linguagem:

Se a linguagem imita os corpos, isso não é devido

às onomatopeias mas à flexão. E se os corpos imitam a

linguagem, não é pelos órgãos, mas pelas flexões. Há toda

uma pantomima interior à linguagem, como há um discurso,

uma narrativa interior aos corpos. Se os gestos falam é porque,

antes de mais, as palavras mimam os gestos. (Deleuze, 2001,

p. 20).

Mimar é dar à semente do Tucumã um feitio de brincadeira, que

começa no embrenhar-se na mata e termina na devolução da forma-semente ao

seu estado-floresta41. Gesto poético manoelesco, daqueles que figuram a não

serventia das coisas pequeninas e, por isso mesmo, alimentam a poética como

enunciação do corpo que pode.

40
Palestra proferida no TEDx São Paulo em 2016.
Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=nWbcLVzmj7E
41
Idem.

320
Ao recolher a semente-brinquedo do chão e tentar devolver à criança,

Renata ouviu um sonoro “a brincadeira acabou” e concluiu que: “Para este

menino o brinquedo só faz sentido quando a brincadeira está viva. Caçar

semente, construir o pião, jogar, é tudo parte do mesmo ciclo. Depois, aquela

semente volta a ser floresta”. Naquele instante, a cineasta compreendeu que

brincar é agenciamento e o brinquedo é devir:

Devir não e atingir uma forma (identificação,

imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de

indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não seja

possível distinguir-se (...) 0 devir esta sempre "entre" ou "no

meio" (Deleuze, 1997, p. 11)

E é como uma criança que brinca de dançar que me pego fascinado

pelas corpografias que esse gesto agencia. Por isso que não existe movimento

puro, como o símbolo que que reflete, desviando de si as impurezas do que é

refletido. O corpo que dança, nesse sentido, não aceita ser símbolo de

absolutamente nada.

Em “Dancer” (2016), documentário sobre a vida daquele que se

tornou o primeiro bailarino mais jovem de uma das principais Companhia de

Ballet do mundo, a Royal Ballet, podemos observar algo nesse sentido. Sergei

Polunin senta num canto, cabeça inclinada, a câmera enquadra sua perna. É

como um diálogo de um corpo-mapa. Olho para o corpo-mapa do bailarino e

vejo aquilo que talvez seja seu momento mais sublime.

Ali, a dança me chega como poesia, como liberdade de fato. Do

esquadrinhamento que arrebata o corpo para ser um modelo de perfeição e

virtuosismo, há um suspiro silencioso, uma pausa poética, um desmonte da

321
estrutura que agencia seu corpo para ser belo, leve, altivo. Há, portanto, no

bailarino, fluxos de desterritorialização que são sempre em função de um dado

território. O “novo horizonte” existe em função de disposições outras em face

daquilo que é o mesmo.

A dança é, sobretudo, agenciamento de fluxos e forças. Ela sempre

será resultado das inúmeras negociações que se realiza na constituição do

agenciamento. Pode ser “libertária”, se entendermos essa “liberdade” como

uma resistência a sobrederteminação provocada pela dança clássica. Ela,

portanto, desterritiorializa os normativos dessa forma de agenciamento e

provoca outros. Essa libertação, portanto, é sempre em relação a algo, à um

certo modo de fazer acontecer e funcionar.

322
O QUE PODE UMA GEOGRAFIA como corpo que dança?,

- Então, essa é a experiência que me interessa. Aquela que toma a palavra como
corpo que dança, que faz dançar, que brinca com os ritmos e silêncios, que afeta
e é afetado.

323
“O que pode uma Geografia como corpo que dança?” é, para além

de uma pergunta, um convite, uma proposição: por uma Geografia bailarina.

- fragmento: nowhere – a escrita como gesto

“o fragmento é uma máquina de produzir inícios,


uma máquina da linguagem,
das formas de utilizar linguagem,
que produz começos”
(Gonçalo Tavares)

Entendo todo texto como um gesto. Na verdade, uma mistura deles.

As palavras que aqui articulo são, se assim quiserem, como a apresentação feita

por Dimitris Papaioannou, em homenagem à diretora e coreografa alemã, Pina

Bausch42:

42
Intitulada “Nowhere”, foi realizada em 2009, na ocasião da reinauguração do Greek National Theatre.
Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=aXDNoB5q9ik

324
NOWHERE explores the nature of the theatrical

stage itself, a spatial mechanism continually transformed

and redefined by the human presence to denote any place,

and yet designed to be a non-place. 26 performers

measure and mark out the space using their bodies, pitting

themselves against its dimensions and technical

capabilities in a site-specific performance that can be

presented nowhere else.

Pensado em outros termos, tomo a escrita, portanto, como o palco

de Dimitris: um lugar de não-lugares. Por ser assim, peço que o ocupem com

suas desmedidas, que façam dele outra coisa, que usem seus corpos semânticos

para dizê-lo em performance, em movimento, em nudez. Peço que dancem com

minhas palavras. Façam delas seu abraço. Deixem-nas deslizarem lentamente

por seus pensamentos duvidosos e permitam que o lugar de ser sensível

conduza, em improviso, cada toque, como uma variação contínua do possível:

e que ele possa ser outro.

Antes de continuar, abro aqui dois breves parênteses: um para dizer

sobre o sentido de não-lugar que estou me apropriando e outro para pontuar

algumas coisas sobre que quero dizer com improviso.

• (Não-Lugar)

Quando Marc Augé (1994) propôs este termo, ele o fez na perspectiva

de tentar explicar “lugares” a-significantes. Para o autor:

325
O não-lugar é diametralmente oposto ao lar, à

residência, ao espaço personalizado. É representado pelos

espaços públicos de rápida circulação - como aeroportos,

estações de metrô e pelas grandes cadeias de hotéis e

supermercados. Só, mas junto com outros, o habitante do não-

lugar mantém com este uma relação contratual representada

por símbolos da supermodernidade; cartões de crédito, cartão

telefônico, passaporte, carteira de motorista, enfim, por

símbolos que permitem o acesso, comprovam a identidade,

autorizam deslocamentos impessoais (Augé, 1994, s/p).

Os não-lugares seriam, portanto, aqueles que contemplassem

adjetivações do tipo: lugares de passagem, de impessoalidade, de

indiferença, de solidão, não relacional, a-histórico, dentro outros. Há,

porém, dois autores que problematizam, não especificamente essa

questão, mas aquilo que, de certa forma, me parece ser pano de fundo.

Prefiro pensar, por exemplo, como Rogério Haesbaert, que amparado

por Deleuze e Guattari, fala de um território constituído “no interior da

própria mobilidade”, na “repetição do movimento” (Haesbaert, 2007,

p. 236). Nesse sentido, um personagem tradicionalmente caracterizado

como aquele que usufrui de fluxos impessoais, dada sua perene

“mobilidade”, seria, nos termos de Augé, um sujeito que permanece

mais tempo em contato com não-lugares. Porém, Haesbaert pondera e

diz que:

A elite dos grandes businessmen que aparentemente circulam

livremente pelos quatro cantos do planeta parece ser o exemplo

mais evidente de que constante ou frequente mobilidade física

326
não implica, obrigatoriamente, desterritorialização, podendo

representar mesmo uma reterritorialização através da

mobilidade (Haesbaert, 2007, P. 253).

Também me soa de modo muito mais acolhedor a ideia do lugar como

eventualidade espaço-temporal, de Doreen Massey. Ela diz que os

lugares não são “como pontos ou áreas em mapas, mas como

integrações de espaço e tempo” (Massey, 2008, p. 191). Nesse sentido,

penso que o não-lugar de Dimitri está mais para esse lugar de encontros

que ainda não ocorreram. Não-lugar como um aqui e agora, como um

instante espaço-temporal que nos convida a ocupá-lo com nossos

movimentos intensivos. Portanto, é algo que funciona mais como

potência e devir, que fechamento e estase. Não-lugar como condição,

como positivação do vir-a-ser.

• (Improviso)

O que você entende quando digo que este texto é improviso? Para

Marina Elias, improviso é um modo como o movimento acontece e que

só pode ser definido na medida em que está acontecendo (Elias, 2011).

Nesse sentido, minha escrita está muito próxima daquilo que a autora

define como o “território de criação do improvisador”, que seria

composto por cinco forças, a saber, pensamento, memória, imaginação,

movimento e técnica. Escrita, portanto, como fluxo de forças que faz

circular intensidades, na medida em que acontece.

***

327
Retorno com uma questão: o que implica um gesto como esse ser-

outro-da-escrita que mencionei antes? A resposta a essa pergunta pode ser a

mesma que o filósofo José Gil dá quando indaga: “Como constrói o bailarino o

seu gesto”? A escrita como dança e o escritor como bailarino passa,

primeiramente, pela diferenciação do gesto comum. Gil explica que:

No gesto comum, o braço entra em movimento no

espaço porque a acção impõe do exterior uma deslocação ao

corpo; pelo contrário, no gesto dançado, o movimento, vindo

do interior, leva consigo o braço (Gil, 2001, p. 14).

Essa é a escrita como gesto que me interessa. Como tal, ela tem início

num “impulso interior” e se finda numa abertura ao infinito como possibilidade

concreta (Gil, 2001). Então, escrever é como dançar. Por isso me apego ao que

diz Marina Elias sobre o movimento improvisado na dança e no teatro:

O movimento espontâneo e improvisado acontece

somente enquanto está acontecendo. E neste contexto,

interessa menos o movimento, do que quem (ou o quê) motiva

o movimento, menos a técnica mecânica do que a possibilidade

de um movimento expressivo (Elias, 2011, p. 25-26).

Escrita expressiva que é, nesse sentido, um perene estado de

latência, um não-lugar, nos termos apontados nos parênteses. Repouso e

equilíbrio dos fluxos intensivos que criam, verdadeiramente, as condições de

sua existência. Penso que seria algo mais próximo daquilo que Deleuze define

328
como plano de imanência. Ao diferenciá-lo do plano de transcendência, ele

afirma que:
Um plano de imanência não dispõe de uma

dimensão suplementar: o processo de composição deve ser

captado por si mesmo, mediante aquilo que ele dá, naquilo que

ele dá. É um plano de composição, e não de organização nem

de desenvolvimento (...) Não há mais sujeito, mas apenas

estados afetivos individuantes da força anônima (Deleuze, 2002,

p. 132).

A escrita como composição é, portanto, o meio pelo qual eu habito

com intimidade o mundo. Gesto expressivo e intensivo com o qual meu corpo

desliza pelo mundo faz dessa experiência de contato e movimento uma dança,

onde palavras são lugares e lugares são palavras. Talvez, por isso, Gil afirme que

“o espaço do corpo é o corpo tornado espaço” (2001, p. 19): ambos são, por

assim dizer, estados afetivos.

- fragmento: o que pode – formas de utilizar a linguagem

A palavra “pode”, flexão do verbo “poder”, está aqui não como

forma imperativa do exercício de autoridade de algo/alguém sobre

algo/alguém. Interesso-me mais pelo poder como potência, como capacidade.

Na matemática, esse conceito foi criado por Arquimedes (3 a.C), que

correspondia ao número de vezes que o número (base, diferente de zero) deve

ser multiplicado por ele mesmo (exponenciação). Já na física, potência é a

grandeza que mede a velocidade com que o trabalho é realizado ou uma

329
energia é transformada. Portanto, em ambas, potência é capacidade de

transformação.

Então, se fizermos a pergunta: o que pode a linguagem enquanto

experiência? A resposta estaria mais no sentido daquilo que a torna capaz, ou

seja, estaria mais na capacidade de transformação, de ampliação, de

proliferação dos afetos. “O que pode” encontra resposta quando compreende

o encontro como potência, o que pressupõe, pelo menos, duas partes. Não há

encontros no isolamento, diz Tavares (2013 p. 156).

Porém, Tavares diz que sem linguagem, a experiência seria algo

“impartilhável”, “puramente individual”, “fora do mundo” (Tavares, 2013, p.

174). Ao pensar numa condição inseparável entre linguagem e experiência, ele

nos alerta para um certo tipo de perigo que podemos incorrer, que seria o de

lidar com uma espécie de correspondência direta entre ambas. Seria um

equívoco, por exemplo, pensar que “palavras raras” são a garantia de uma

“experiência rara” ou, como se uma vida entediante não pudesse produzir

pensamento excitante. Por esse motivo,

Quando um corpo “encontra” um corpo, uma idéia

outra idéia, tanto acontece que as duas relações se compõem

para formar um todo mais potente, quanto que um decompõe

o outro e destrói a coesão de suas partes. Eis o que é prodigioso

tanto no corpo como no espírito (Deleuze, 2002, p. 25)

Mas o que substantiva isso que está se chamando de experiência? Se

para Jorge Larrosa a experiência é algo que nos acontece, para Fernando

Savater, experiência “é a capacidade de recusar e escolher que se vai forjando

em cada um, apesar das rotinas impostas” (In: Tavares, 2013, p. 174). No fim

330
das contas, Tavares conclui que experiência é a capacidade que temos para

dizer sim ou não e, poderíamos completar, capacidade de dizer sim ou não, em

face daquilo que nos acontece. Por esse motivo, o que de fato importa é, nem

tanto naquilo que nos acontece, que nos afeta, mas sim, na nossa capacidade,

ou melhor, nossa “força ou potência de agir” ao invés de uma “potência de

sofrer”, como explica Deleuze:

Chamamos de potência de sofrer o poder de ser

afetado, enquanto estiver atualmente preenchido por afecções

passivas. A potência de sofrer do corpo tem como equivalente

na alma a potência de imaginar e experimentar sentimentos

passivos (...) Se conseguirmos produzir afecções ativas, nossas

afecções passivas diminuirão na mesma proporção. Enquanto

permanecermos em afecções passivas, nossa potência de agir é

“impedida” na mesma proporção (Deleuze, s/d, p. 150).

Dito de outro modo, o que de fato interessa é o que pode quando

aquilo que nos acontece é “afecção ativa”: agir adequadamente.

Uma ideia adequada em nós seria definida

formalmente como sendo uma ideia da qual seríamos causa; ela

seria causa material e eficiente de um sentimento; nós seríamos

causa adequada desse próprio sentimento; ora, um sentimento

do qual somos causa adequada é uma ação (Deleuze, s/d, p.

150).

É por isso que sempre falamos a partir daquilo que nos afeta e

daquilo que nos é afeto. A questão é: afetos ativos ou passivos? E eu não

331
poderia falar a linguagem da experiência e a experiência da linguagem43 – de

outro modo, senão a partir daquilo que tem configurado, em mim, uma afecção

ativa: a dança.

- fragmento: movimento e afeto – a dança como encontro

Quando Tavares diz que “Experimentar palavras, experimentar frases

é como experimentar correr a determinada velocidade, é como experimentar

saltar”, quando ele diz que “falar e escrever são atos físicos” e que “a linguagem

é uma experiência física”, então, finalmente, posso dizer que fui tirado para

dançar. Nessa dança, Tavares me ensinou que a palavra tem peso e contrapeso,

ritmo e musicalidade. Sim, fui seduzido por ele.

Por isso, aprendi, por assim dizer, que a palavra é um corpo em

movimento que provoca a experiência com e no mundo, com e no outro:

experiência com e no contato. Dela surge a cena, o frame. Surge a matéria

sonora, a musicalidade como uma maneira de vi-ver em ritmo: “Cada língua

pode ser entendida como sendo determinada por um ritmo corporal, uma

inteligência física. O som também faz pensar, promove associações, ligações,

etc” (Tavares, 2013, p. 40).

Não é apenas uma questão de música, mas de

maneira de viver: é pela velocidade e lentidão que a gente

desliza entre as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa:

a gente nunca começa, nunca se recomeça tudo novamente, a

43
Título da mesa de abertura do I Seminário Rasuras – imagem, linguagem e sensibilidade no contexto
contemporâneo. Cf.: http://seminariorasuras2016.weebly.com/

332
gente desliza por entre, se introduz no meio, abraça-se ou se

impõe ritmos (Deleuze, 2002, p. 128).

Então, essa é a experiência que me interessa. Aquela que toma a

palavra como corpo que dança, que faz dançar, que brinca com os ritmos e

silêncios, que afeta e é afetado. Por esse motivo, seja o corpo ou o corpus, deles

exijo algo para além da execução de passos. Explicando: no corpo há duas

formas de ligação: aquela que diminui a capacidade de agir; e aquela de que

resulta em alegria – aumento da capacidade de agir (Tavares, 2013, p.157). Não

me interessa, portanto, pensar num corpo como anatomia, por exemplo, mas

sim, pensar no sentido da pergunta espinosana sobre corpo e que eu coloco

nesse contexto:

- O que pode um corpo que dança?

Deleuze esclarece que “Cada leitor de Espinosa sabe que os corpos

e as almas não são para ele nem substâncias nem sujeitos, mas modos”

(Deleuze, 2002, p. 128-129). Ser um modo implica em fazer movimentar afetos.

Isso porque “os corpos não se definem por seu gênero ou sua espécie, por seus

órgãos e suas funções, mas por aquilo que podem, pelos afetos dos quais são

capazes, tanto na paixão quanto na ação” (Deleuze; Parnet, 1998, p. 49).

Um corpo que dança é, portanto, capaz, em paixão e em ação, de

promover encontros criativos, de fluir na imanência, como aponta Gil (2001).

Então, o que estamos tentando fazer encontrar, nesses termos, seria Linguagem

e Experiência, produzindo assim, aquilo que Tavares (2013) chama de “energia

criativa”. Ele explica que na Teoria dos Passos, de Balzac, a imaginação, a

333
energia criativa, ou seja, algo da ordem do interno, “necessita ocupar espaço,

necessita se exteriorizar” (p. 208).

É exatamente sobre o sentido dessa ocupação, ou melhor, o modo

como ela ocorre, que o movimento dançado convida a Geografia para ser seu

par. Ao explicar sobre os processos de criação do coreógrafo norte americano

Merce Cunningham, Gil (2011) aponta para aquilo que se denomina como o

combate ao mimetismo dos gestos e das figuras, a saber, o espaço cênico como

reprodução simbólica do espaço exterior e reprodução mimética das emoções,

do seu espaço interior. Portanto, ocupar o espaço reverbera também em qual a

concepção de espaço com a qual se está lidando:

Cunningham (in: Gil, 2001, p. 32)

Ballet clássico “mantinha a forma linear do espaço”


“raízes no expressionismo alemão”; “quebrou o
Dança moderna espaço em vários pedaços”; “divisão da cena, sem
americana qualquer relação com o espaço mais vasto da área
cénica”

O espaço cunningheano objetivava problematizar essas concepções

tradicionais. Em face dessa teleologia representacional do corpo enquanto

espaço, foi na introdução do acaso como método coreográfico que aconteceu

a efetiva libertação dos códigos que operavam sobre as possibilidades de

movimentação do corpo. Desconexão e desencaixe passam a compor novos

gestos, que seriam a escrita de um corpo-espaço verdadeiramente livre: corpo

de pensamento, corpo múltiplo, corpo virtual.

Resumamos: virtual, a unidade de movimento

(“metrainfralinguística”) é o que resta como “movimento puro”

334
quando se retiram do corpo as motivações emocionais,

representativas e expressivas (...) permite também reognização

dos movimentos corporais sem ter de recorrer a elementos

exteriores: porque os movimentos actuais do corpo do bailarino

têm a sua origem no plano virtual e nas tensões que aí nascem

(...) O plano virtual do movimento é o plano de imanência (Gil,

2001, p. 49).

Eis então o processo de composição de uma Geografia que dança.

Parafraseando Gil (2001), não é uma Geografia emotiva, nem perceptiva. Sendo

o mundo um grande palco, ela é, por assim dizer, experimentação e

agenciamento de possíveis. Esse plano de possíveis, ao ser pensado como

plano de desejo, provoca uma abertura naquilo que Massey (2008) intitula como

sendo nossas cosmologias estruturantes. Segundo ela, o pensamento espacial

realiza uma espécie de “modulação” sobre nossos “entendimentos de mundo”,

que seriam, por sua vez, “nossa política”, ou seja, nosso modo de pensar implica

em nosso modo de agir.

Ao argumentar sobre essa indissociabilidade, vi, tanto em Massey,

quanto em Cunningham, concepções de espaço muito semelhantes. A

perspectiva cunningheana sobre o acaso do movimento dançado pode ser lida

em diálogo direto com a proposta de espaço de que fala Massey:

Imaginar o espaço como sempre em processo,

nunca como um sistema fechado, implica insistência constante,

cada vez maior dentro dos discursos políticos, sobre a genuína

abertura do futuro. É uma insistência baseada em tentativa de

escapar da inexorabilidade que, tão freqüentemente,

caracteriza as grandes narrativas da modernidade (...) Apenas se

335
o futuro for aberto haverá campo para uma política que possa

fazer a diferença (Massey, 2008, p. 31-32).

Dito de outro modo, temos no termo plano de possíveis a ideia de

uma efetiva abertura a outros entendimentos sobre a relação corpo-espaço.

Azevedo (2009) afirma como a Geografia fez exatamente o contrário disso. Ela

explica que o conhecimento geográfico escolhe se descorporizar na medida em

que incorpora, ou seja, traz para dentro de seu corpus, um regime de verdade

centrado em duas bases: primeiro, na ideia de um olho que tudo vê, que por

sua vez, alimenta a ideologia do ver para crer. Um regime de verdade que

produz um regime de poder:

Corpo do território, corpo do sujeito e corpo do

conhecimento viram-se unidos por uma peculiar construção de

espaço, a qual opera sob o efeito mediador de uma superfície

de visualização disposta como modo de acender “com

distância” à experiência de lugar” (Azevedo, 2009, p. 34).

Por esse motivo, a proposição de uma Geografia como um corpo que

dança passa, necessariamente, pelo vislumbre de um corpo que é, ao mesmo

tempo, inteiro e desorganizado. Dito de outro modo, inteiro, no sentido de

reconhecer que a centralidade do olhar é uma produção político-ideológica que

tem suas implicações diretas no modo como se constituem certas

espacialidades contemporâneas, vide Azevedo (2009) e Massey (2008).

Desorganizado, no sentido que propõe Deleuze e Guattari (1996) ao tratar do

“corpo sem órgãos” (CsO):

336
Assim, o corpo sem órgãos nunca é o seu, o meu...

É sempre um corpo. Ele não é mais projetivo do que regressivo.

É uma involução, mas uma involução criativa e sempre

contemporânea. Os órgãos se distribuem sobre o CsO; mas,

justamente, eles se distribuem nele independentemente da

forma do organismo; as formas tornam-se contingentes, os

órgãos não são mais do que intensidades produzidas, fluxos,

limiares e gradientes. "Um" ventre, "um" olho, "uma" boca: Ao

artigo indefinido nada falta, ele não é indeterminado ou

indiferenciado, mas exprime a pura determinação de

intensidade, a diferença intensiva. O artigo indefinido é o

condutor do desejo. Não se trata absolutamente de um corpo

despedaçado, esfacelado, ou de órgãos sem corpos (OsC). O

CsO é exatamente o contrário. Não há órgãos despedaçados

em relação a uma unidade perdida, nem retorno ao

indiferenciado em relação a uma totalidade diferenciável.

Existe, isto sim, distribuição das razões intensivas de órgãos,

com seus artigos positivos indefinidos, no interior de um

coletivo ou de uma multiplicidade, num agenciamento e

segundo conexões maquínicas operando sobre um CsO.

(Deleuze; Guattari, 1996, s/p).

Assumir isso é, imediatamente, lança-se à uma questão que passa por

aquilo que talvez possamos chamar de ganho de autonomia e, também, de

método.

337
- O que fazer com os afetos de que somos capazes?

Existe uma diferença entre dançar e executar passos, como apontei

anteriormente e talvez reconheçamos no movimento dançado aquilo que para

Balzac considera é “a acção mais pura do ser humano” (p. 207), um

“pensamento que age” (p. 209).

Essa ideia de um pensamento que age também está no método

desenvolvido por Pina Bausch. Tavares explica que Pina desenvolveu uma

“géstica do pensamento”, ou seja, ao fazer uma pergunta aos seus bailarinos, a

resposta deveria se dar com gestos diferentes. Portanto, “a criatividade da

pergunta é avaliada pela criatividade das respostas”, conclui o autor. (Tavares,

2013, p. 277):

Ora, este método de composição joga com dois

elementos essenciais (outros são-no também – a música, os

cenários os adereções – que aqui não podemos analisar): a fala

e o gesto (...) A “hipótese” só se tornará uma ideia (de

movimento) quando se desenvolver em associações de sentido,

quando se ligar a gestos, quando os gestos e o movimento se

exprimirem desde o começo em emoções (Gil, 2001, p. 216-

217)

Portanto, estamos diante daquilo que nos acontece, não como

passividade, mas como ação deliberadamente trabalhada por um método. É

isso que irá garantir capacidade de decisão sobre o que fazer com os afetos de

que somos capazes. Encontro “abraço” em Pina e em Balzac, em Azevedo,

Massey e Cunnigham, em Gil e Deleuze. Eles convertem pensamento em afeto

338
que se movimenta (movimento-afeto), que seria aquele, posso dizer, que escapa

da “linguagem comum” e, portanto, do “lugar comum da experiência” (Tavares,

2013, p. 179) e promove a “ligação como força, como encontro”, como

sensação (Tavares, 2013, 156): “Os afectos não são sensações paradas, são

sensações que se movem, aliás, são movimentos que sentem; movimentos: isto

é, alterações corporais, modificações do corpo no espaço” (Tavares, 2013, 156).

O termo afeto (affectus) exprime a transição

(transitio) de um estado a outro, tanto no corpo afetado, como

no corpo afetante. Essa transição pode ser benéfica ou maléfica

para o corpo afetado, o que se define pelo aumento, no

primeiro caso, ou diminuição, no segundo, da potência de agir

do corpo (Marques, 2012, p. 15).

É importante dizer o quanto essas alterações corporais, essas

transições de potência, passam longe de serem formalizações, normatizações.

Elas estão mais para uma grafia de mundo que é “pura matéria sonora”, “corpo

saturante” (Deleuze; Guattari, 2002), causa-efeito daquilo que Elias (2011)

chama de “buscação”, que seria o processo rizomático de treinamento do

improvisador. Em suas palavras, “treinar não é adestrar, e sim, potencializar” (p.

24).

Do mesmo modo, Deleuze levanta uma questão importante ao

pensar nas proposições de Espinosa sobre o corpo. Na verdade, ele faz um

alerta sobre a necessidade de não ficarmos apenas no âmbito teórico da

questão e propõe um corpo e pensamento como potência de afetar e ser

afetado. Nesse sentido, faço coro com os gritos espinosanos: “Eis porque

Espinosa lança verdadeiros gritos: não sabeis do que sois capazes, no bom

339
como no mau, não sabeis antecipadamente o que pode um corpo ou alma, num

encontro, num agenciamento, numa combinação” (Deleuze, 2002, p. 130).

Sabemos, pois, em e no movimento. Por esse motivo, para além da

teorização, compreendo a fala do filósofo Luiz Fuganti44 como um bom estímulo

para nos ajudar a compreender que o decidir (géstica do pensamento) que falei

a pouco, passa pelo reconhecimento do modo como um aqui e um agora tem

se desenvolvido. Em suas palavras, Fuganti diz que:

Agora, porque:

- Fuganti: “A nossa realidade perde energia na medida em que o tempo

passa. Na medida em que o tempo se move em nós, nós nos tornamos

mais decadentes, mais impotentes, mais pesados”.

E como estava num evento de dança, disse:

- Fuganti: “nós perdemos o dançarino em nós”.

Aqui, porque:

- Fuganti: “Só dança quem tem pista ou quem tem superfície”

E qualifica isso quando continua:

44
Festival Contemporâneo de Dança (São Paulo, 2011).
Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=lIwxWe_Tvo4

340
- Fuganti: “Quem desliza, quem tá em movimento, em devir, quem tá em

fluxo, quem tá em acontecimento”

- fragmento: grafias de mundo – geografias em devir

Retomo à escrita como gesto. Precisamente, aquele que faz deslizar,

faz movimentar fluxos e potências, faz variar, faz...

Uma palavra vem sempre rodeada de emoções não-

definidas, de tecidos esfiapados de afectos, de esboços de

movimentos corporais, de vibrações mudas de espaço. Forma-

se uma atmosfera não verbal que rodeia toda a linguagem (Gil,

2001, p. 218).

De algum modo, a coreografia feita com a música Slip (Eliot Moss,

2013) provocou isso. Interpretada por Phillip Chbeeb (PacMan) e Renee Kester45,

essa dança mobilizou em mim afetos como aqueles da “cartografia do

improviso” (pensamento, imaginação, movimento, técnica). Slip quer dizer,

dentre outras coisas, deslizar, escorregar. Foi isso que aconteceu com cada uma

dessas forças/afetos. Elas escorregaram para uma “zona de indiscernibilidade”.

Instauraram, umas com as outras, “zonas de vizinhança” e, com isso, grafaram

(escreveram) em devir: “Escrever não é certamente impor uma forma (de

expressão) a uma matéria vivida (...) Escrever é um caso de devir, sempre

inacabado”. (Deleuze, 2011, p. 11). Inacabado não por pertencer à um futuro

45
Cf.: https://www.youtube.com/watch?v=qk00gbDwGqM

341
incerto, mas por ser “processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o

vivível e o vivido” (Deleuze, 2011, p. 11).

No vídeo, há o Homem, “ forma de expressão dominante que

pretende impor-se a toda matéria” (Deleuze, 2011, p. 11) e há o devir-mulher,

“componente de fuga que se furta à sua própria formalização” (Deleuze, 2011,

p. 11). Há a força estabilizadora, que tenta a todo instante capturar, criar

impedimento ou modular os movimentos intensivos e afetivos dos corpos que

ali estão em movimento e contato. A cada passo, a cada pulsar, criam-se meios

e modos de ser-outro, fluidos, diluídos, moventes: fluxo de estabilização que

separa, e fluxo de derivação que mistura, que desfaz a forma, a identificação, a

singularização.

342
Descrição do Vídeo46

Everyone will tell you it is hard to let go of pain... and it is.


Since we are children we have been told to embrace the best of our
experiences & disregard the worst...
But what happens when the most beautiful memories
from our past end up doing the most damage to our future?

46
Tradução Livre: “Todo mundo vai dizer que é difícil deixar a dor ir ... E é. Uma vez que somos crianças,
temos dito para abraçar o melhor de nossas experiências e desconsiderar o pior. Mas o que acontece
quando as mais belas memórias do nosso passado acabam fazendo o maior dano para o nosso futuro”?

343
Apesar da descrição do vídeo apontar para uma espécie de

ressentimento, não é com essa perspectiva que eu me aproprio dele. O prefiro

como “revelação da vida”, nos termos deleuzianos, em especial, quando diz

que “escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores,

e lutos, sonhos e fantasmas” (Deleuze, 2011, p. 12) e quando argumenta que:

A língua tem de alcançar desvios femininos, animais,

moleculares, e todo desvio é um devir mortal. Não há linha reta,

nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto de

desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas

coisas. (Deleuze, 2011, p. 12)

Portanto, aqui e agora são essa sintaxe, conjunto de desvios

necessários, o frame matching47 perfeito para pensarmos na seguinte questão:

- Fuganti: “O uso que fazemos com aquilo que nos acontece

pode ser um peso ou uma impulsão, uma fonte de criação”

- Fuganti: “Aqui se decide se investimos no poder ou na

potencia, no eu (corpo organizado) ou na diferença/pensamento que cria

e de um corpo que é um corpo de intensidade”.

Se preferirmos: é no aqui e no agora que decidimos se queremos ou

não dançar, se queremos ou não – com nossas grafias, nossos gestos – realizar

movimentos intensivos, imaginativos, desadestrados. E só poderemos

47
Teoria que pontua a relação de forças que conectam os dois parceiros de uma dança. Ela é definida pela
relação entre “posture, tone, tension, energy, and the direction”. Ver mais em:
http://www.joeandnelle.com/assets/frame_matching_and_pted_by_joe_demers.pdf

344
responder isso quando conseguirmos responder à outra pergunta fundamental.

No aqui e no agora:

- Fuganti: “onde nosso desejo está”?

Incorporo essa questão no seio da geografia (grafia de mundo, gesto)

que me proponho a fazer e penso: O que pode uma geografia como corpo que

dança?

(Suspiro, Pausa, Respiração... Tempo)


Um corpo pode ser qualquer coisa,
pode ser um animal,
pode ser um corpo sonoro,
pode ser uma alma ou uma idéia,
pode ser um corpus linguístico,
pode ser um corpo social, uma coletividade
(Deleuze, 2002, p. 132).

Corpo como acontecimento, como algo da ordem do indiscernível,

como cruzamento linguagem-experiência. Corpo que dança. Gestos

(Geografias) do imprevisível e do criativo. Que então se decida investir numa

Geografia que é, também, corpo de intensidades. Onde meu desejo está?

345
Numa Geografia fabuladora, criadora de devires e potências
Numa grafia (geografia) desviante
Que hesita, que se lança ao chão
E faz dele um novo começo
Que se abre intensivamente ao infinito
Geografia aberta e processual
Aquela que faz do seu corpo (corpus) um movimento dançado
Uma geografia bailarina,
Que faz do impulso interior sua força vital

346
BRAGA, te amo

- Não há Geografia dos lugares sem a Geografia das pessoas.

347
Eis então que, ao reler tais apontamentos e anotações, me chega de

mansinho outra canção. A partir dela, encontro a calma e a paz necessária para

fazer do horizonte bracarense um lugar possível para minhas miradas poéticas e

sensíveis. Com os versos de “Sampa”, de Caetano Veloso revivi, a exemplo de

Braga, circunstâncias tão intensivamente tristes que tive em outros lugares que

foram, por certo tempo, apenas morada.

Foi assim quando saí de Fortaleza, região nordeste do Brasil, e fui

morar a mais de 2 mil quilômetros de distância, em Campinas, região sudeste.

Não muito diferente quando, de Campinas, mudei para Vitória, capital do

Espírito Santo, um pequeno estado, ainda na região sudeste do Brasil. O que

há de comum na minha experiência com esses 03 lugares? Talvez a

compreensão de que não há Geografia dos lugares sem a Geografia das

pessoas. Talvez a compreensão de que as relações e os entendimentos surgidos

a partir do nosso contato com novos lugares, novas experiências, são sempre

mediadas pelas circunstâncias e pela potência do instante.

Por isso, relatos e narrativas interessam. Não porque eles podem ser

considerados mais ou menos verdadeiros, mais ou menos legítimos. De fato,

nada disso importa. Importa mesmo, é a condição de entrecruzamento e

eventualidade revelada em tais relatos e narrativas:

Espaço e tempo, juntos, resultado desse múltiplo devir.


Então, o “aqui” é nada mais (e nada menos)
do que o nosso encontro e o que é feito dele.
É, irremediavelmente, aqui e agora.
Não será o mesmo “aqui” quando não for mais agora.

(Doreen Massey, Pelo Espaço)

348
Em todas essas memórias revisitadas encontrei a permanência de um

modo específico de habitar que tonaliza essa relação corpo-lugar, a saber, esse

corpo-migrante que busca sempre a travessia afetiva no contato verdadeiro com

esse lugar-que-é-do-outro. E a verdade, nesse caso, é sem dúvida, da ordem do

acolhimento da diferença.

Por isso, meus relatos e narrativas ganham um novo tom. Finalizam

este livro com um novo “aqui e agora”. Daquela corpografia triste, surge uma

grafia do avesso, a exemplo do que relata Caetano Veloso em sua bela canção:

Sampa.

Alguma coisa acontece no meu coração


Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
(...)
Quando eu te encarei frente a frente e não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”
(Caetano Veloso)

E como um eco saudoso, escrevi “Braga, te amo” e “...Saudades!”:

349
“Braga, te amo”

Cidade festiva
Feita de ruas e praças floridas
Esquinas que apontam para um horizonte iluminado
Destes senhores e senhoras, gajos e raparigas
Que estão a nos oferecer, sempre
Seus semblantes discretos e corteses
Cortesia também presente no por do sol
Que é dos mais bonitos
E até quando há chuva (e muita há)
Faz-se poesia
Porque, de longe
Avistam-se os montes que vigiam e protegem seus habitantes
E assim, aos poucos e bem devagar
Ama-se Braga
Porque ela é, genuinamente
Um bailado eloquente
Que vai
A cada dia
Nos convencendo:
- Não adianta ser reticente
Importa mesmo
Simpatia e um pouco de coragem
Porque
No fim das contas
Sempre há tempo para que se diga
Amo-te
Ou melhor:
Sempre há tempo para que se diga
Braga, te amo!

350
“...Saudades!”

Saudade é como uma cartografia dos sentidos


Tem cheiro
Tem nome de rua
Tem silêncio
Tem lembrança
Saudade é
Como um bom vinho,
Na companhia de chocolates e queijos
E só
Saudade faz eco:
- “Ovos mexidos” (escute com sotaque)
Saudade é a pausa para enxugar as lágrimas
Que ainda se confundem com o barulho da chuva
E como chove em Braga...
Saudade é lugar de poesia rabiscada num papel amassado
Daqueles que
Incompletos
Olhamos duas ou três vezes antes de jogarmos fora
Por isso que o “apesar de” clariceano
Já não importa
Por isso que o “não te demores”
Já não importa
Porque o mapa dos afetos está em constante movimento
E quando é a saudade que orienta nosso percurso
Narciso deixa de achar feio o que não é espelho
Por isso
Com isso
Digo:
...
Saudades!

351
NOTA FINAL48

Há muito o que poderia ser dito

E não foi.

(Silêncio)

E o que se fez,

Já está.

(Eco)

48
Este livro é parte substancial dos resultados da pesquisa de pós-doutoramento realizada na
Universidade do Minho (Portugal), 2017/2018. Alguns textos de minha autoria publicados anteriormente
em periódicos, pelo fato de tratarem especificamente de aspectos importantes sobre o sentido de cidade,
de linguagem, narrativa e de dança, foram incorporados parcialmente neste livro, mediante revisão e
ajustes. Todas as fotografias que identificam o rosto da pessoa fotografada foram previamente
autorizadas pelas mesmas.

352
PÓSFÁCIO, sobre a experiência desta leitura

Um grande amigo ao ler meus textos e escritos sempre me disse:

"você não vai poder estar ao lado de todo mundo que estiver lendo seu

trabalho para explicar o que quis dizer em cada parte. Ela estará sozinha e o

texto tem que ser o suficiente para ela entender suas ideias e argumentos".

Pois bem, solidão foi uma das poucas sensações que não senti

enquanto passeava entre as frases deste livro. Durante a leitura, aconteceu algo

novo para mim, parecia que você estava ao meu lado, me contando sobre tudo

isso. Com uma fala calma, sensível, delicada, poética, daquelas conversas que

começamos, passam-se horas e horas e ela não cessa nem enjoa, não cansa,

nem adormece. Me senti um ouvinte de alguém doido para conversar.

Nesta conversa nada ficava solto, não precisava esboçar

desentendimento, pois quem a estava contando foi minucioso para que tudo

se encaixasse perfeitamente, num sincronismo delicioso de se deleitar. Hora

parágrafos, hora poesias, hora poema, hora pausas (minhas para ir longe), hora

fotos, hora desabafo, horas que se passaram.

Vi o resultado de algo que por muito tempo foi amadurecendo, que

ao longo do tempo foi se formando, que o tempo foi inscrevendo em você.

Consegui ver o Queiroz extremamente estudioso que conheço, o Queiroz que

escreve como ninguém, capaz de ziguezaguear por vários temas e assuntos,

mas, tendo o fio condutor a sempre tão amada geografia.

Vi o Queiroz menino pantaneiro, o poeta, o fotógrafo, o professor, o

acadêmico, o Queiroz humano que chora, se alegra, que se apaixona, que se

entristece, mas que utiliza tudo isso como matéria de poesia. Aliás, nesse livro

353
as emoções são passagens, nunca paradas ou fiéis companheiras ao longo de

todo percurso.

Um livro que eu facilmente seria acometido pela sensação de

saber quem o escreveu, mesmo sem saber o autor. É nítido que esse livro foi

você que escreveu, é fato que essa é a sua geografia e que por tanto tempo

vem imaginando, mas que tínhamos apenas partes, artigos, pequenos escritos

de tudo que se passava em seu corpo.

Este livro de fato é uma reunião de fragmentos. Conseguimos

perceber todos os seus artigos contidos ali, todos os Queiroz, todas as suas

descobertas e alegrias de poder contar com os fiéis companheiros escritores

que te acompanharam ao longo de todo esse tempo. Pude sentir todo o frio,

angustia, incertezas, momentos de Portugal, assim como a felicidade e a certeza

da volta. Este será um daqueles meus livros de cabeceira, sabe que você tanto

fala, que devem ficar ali e sempre irmos e virmos dentro dele, termos o contato

constante.

Sabe aquela sensação ao final de um grande espetáculo assistido,

ficamos extasiado na cadeira, palmas intermináveis, aquele sentimento de

incredulidade sobre aquilo que acabamos de ver? assim "terminei" seu livro.

Percebeu que não falei da dança em momento nenhum? isso por que ela esteve

em tudo, no movimento e fluidez do texto, na sua caminhada, em cada palavra.

A dança neste livro não é para ser dita e sim sentida, vivenciada,

experienciada, a cada palavra, a cada frase, a cada página. Tiramos nossos

pensamentos e imaginações para dançar, damos giros, saltos e piruetas.

Parafraseando aquela frase do filme “Só 10% é mentira”: a dança é assim, se

dançou, dançou, se não dançou, esquece.

Do seu grande amigo,


Rafael Fafá Borges

354
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361
ANEXOS

362
GEOGRAFIA E DANÇA
sistematização da produção bibliográfica (1998 – 2016)

- SISTEMATIZAÇÃO QUANTITATIVA

A primeira etapa da pesquisa consistiu em sistematizar todo tipo de


produção bibliográfica disponível na rede mundial de computadores. Nesse sentido, foi
utilizado o buscador Google como fonte de dado, cuja metodologia consistiu na busca
pelas seguintes palavras-chave:

- geografia, dança: para pesquisa em língua portuguesa;


- geography, dance: para pesquisa em língua inglesa;
- geographie, danse; para pesquisa em língua francesa;
- geografia, danza: para pesquisa em língua espanhola;

Como resultados iniciais, constatou-se que foram produzidos entre os anos


de 1998 a 2016, cerca de 21 textos, tipificados em artigos e dossiês publicados em
periódicos científicos, capítulos de livros, livros autorais e organizados, trabalhos de
conclusão de curso de graduação e dissertações de mestrado, resumos e trabalhos
completos em congressos acadêmicos, dentre outros, assim enumerados:

- Resumo em congresso acadêmico: 01


- Trabalho completo em congresso acadêmico: 03
- Trabalho de conclusão de curso de graduação: 02
- Dissertação de mestrado: 01
- Artigo publicado em periódico científico: 10
- Dossiê publicado em periódico científico: 01
- Livro: 02
- Capítulo de livro: 03
- Outro (entrevista): 01

363
Observa-se ainda, no aspecto do tipo de produção, a seguinte relação no
quesito localidade/tipo de produção:
-PT: Portugal
-UK: Reino Unido
-FR: França
-US: Estados Unidos
-CH: Chile
-BR: Brasil

PT

RESUMO
50% 50%
ARTIGO

UK

33%

ARTIGO
CAP LIVRO

67%

364
FR

20% 20%

DOSSIE
ARTIGO
CAP LIVRO

60%

US

33%

LIVRO
ARTIGO

67%

365
CH

ENTREVISTA

100%

BR

12%
25%
DISSERTAÇÃO
ARTIGO
TCC
38%
TRABALHO COMPLETO
25%

366
Nota-se que a produção bibliográfica em artigos é aquela que compõe a
maior porcentagem nos seus respectivos lugares de produção. No entanto, quando
analisamos do ponto de vista da distribuição, percebemos que a produção em livro é
responsável pelo maior volume de conteúdo produzido. Para chegarmos a essa
informação, foi utilizado a métrica da quantidade páginas como medida referência para
mapear de forma equivalente a distribuição espacial e temporal das produções
encontradas. Disso resultaram os seguintes gráficos:

PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA EM GEOGRAFIA E DANÇA


PT
CH 3% FR
0% 18%

UK
5%
BR
US
CH
PT
US BR
54% FR
20%
UK

PRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA EM GEOGRAFIA E DANÇA

700 US
646
600

500

400
BR FR
300 233 209

200 PT UK
CH 42 55
100 4

0
BR US CH PT FR UK

PÁGINAS

367
LINHA DO TEMPO

332
300

152

100
8 21 4 18 29 14 12 31 1 17 13 11 41 3 41 18 16

FR UK CH US BR UK FR US FR BR US PT BR BR BR BR BR PT BR UK FR
1998 1999 2002 2003 2006 2007 2008 2008 2009 2013 2013 2014 2015 2015 2015 2015 2015 2015 2016 2016 2016

Um dado fundamental a ser identificado trata da questão do acesso à


referida produção bibliográfica encontrada. Por esse motivo, produziu-se também um
Mapa de Acesso, onde identificou-se que lugares partilham gratuitamente sua
produção. Sendo assim, tem-se:

GARANTIA DE ACESSO DA PRODUÇÃO


BIBLIOGRÁFICA

0 0 2 0 0 0 2 1 0 1 2 0 1 1 0 0

BR PT UK US FR CH

LIVRE CONDICIONADO PAGO

368
BR: 08 produções – 08 de acesso livre: 100%
PT: 02 produções – 02 de acesso livre: 100%
UK: 03 produções – 00 de acesso livre – acesso pago: 01 – acesso pago, mas garantido pela universidade: 02
US: 03 produções – 00 de acesso livre – acesso pago: 02 – acesso pago, mas garantido pela universidade: 01
FR: 05 produções – 04 de acesso livre – acesso pago: 01
CH: 01 produções – 01 de acesso livre: 100%

- SISTEMATIZAÇÃO QUALITATIVA

Esta etapa da pesquisa consistiu no processo de análise por meio da


tipificação, categorização e sistematização qualitativa dos principais temas, horizontes
conceituais e metodológicos tratados na bibliografia coletada. O principal objetivo foi
identificar o sentido de Geografia que está sendo tratado em cada texto, bem como, o
modo como se dá a articulação com a dança, gerando uma tabela de categorização com
base na matriz epistemológica ancorada na História do Pensamento Geográfico
sistematizada por Correia (2007, 2011). Os textos analisados foram divididos em 4 tipos:
língua portuguesa, língua inglesa, língua francesa e língua espanhola.

#Textos em língua portuguesa

Corpo Geográfico: reflexões sobre comunicação do corpo e dança afro peruana, de Joana Fernandez.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Estudos culturais, Observação, Espaço físico, Fenomenologia,
cotidiano, identidade, descrição; superfície, localidade, Geografia Humanista
poética, comunicação espaço poético, casa, Cultural, Geografia.
(como troca de Comunicação entre Física Tradicional
informação), corpo, indivíduo e lugar; (clima, vegetação,
espaço, espacialidade, relevo), Geografia
genética, símbolo, Crítica (Milton Santos);
linguagem, dança;

369
O que pode uma Geografia como corpo que dança? Linguagem-experiência `gesto-movimento `
(fragmentos), de Antonio Carlos Queiroz Filho.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Corpo, linguagem, Experimentação Gesto, linguagem, Nova Geografia
experiência, gesto, devir, conceitual; sensibilidade, grafia Cultural, Geografia
potência, não-lugar, poética; contemporânea,
improviso, pós- Geografia criativa,
estruturalismo, afeto; Doreen Massey;

Geografia Cultural: Música e Dança Folclórica Gaúcha, Construindo Identidades nos Departamentos
Tradicionalistas Culturais Estudantis De Santa Maria – RS, de Deise Lorensi e Meri Bezzi.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Identidade cultural, Conversas informais, Manifestação cultural, Fenomenologia,
dança, folclore, cultura, observação do localidade; Geografia Cultural
patrimônio, cotidiano, cotidiano, descrição; tradicional;
pertencimento, música,
teatralidade, gênero,
símbolo, percepção,
experiência;

Paisagem e Dança. Geografias de Coprodução, de Ana Francisca Azevedo.


Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Arte, representação, Análise do processo Conhecimento de Geografia Cultural
Contemporânea, Nova
performance, dança, de criação de um mundo;
Geografia Cultural;
experiência, corpo, lugar, espetáculo de dança
afeto, paisagem, espaço e de sua
público, corporeidade; apresentação;

370
Eu-Corpo: Geografia, Dança, Lugar, de Carolina Pereira.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Lugar, percepção, Explorações teórico- Espaço simbólico, Geografia Humanista,
sensação, movimento, práticas, diário de mundo vivido; Nova Geografia
corpo, dança, imaginação; bordo, Cultural;
fenomenologia;

Espaço: entre a Dança e a Geografia, de Gimeny de Brito.


Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Espaço, corpo, Relato de Superfície, Geografia crítica
movimento, arte, ciência, experiência, materialidade, espaço (Milton Santos),
multicultural, estudo observação (como orientação, Geografia Humanista
coreológico de Laban; participante, totalidade física); (Merleau-Ponty);
entrevistas;

Uma nova Geografia de Ideias: diversidade de ações comunicativas para a dança, de Giancarlo
Martins.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Corpomídia, Análise sistêmica de Localização, Geografia Cultural;
evolucionismo, estudos dados, entrevistas, superfície, circulação,
culturais, política cultural; estudo de caso; relações de poder,
ambiente
sociocultural;

A Capoeira em uma perspectiva Geográfica, de Sergio Cezário et all.


Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Identidade, resistência, Vivências; Localidade, cultura, Geografia Cultural;
capoeira; relações de poder;

Súcia: uma dança de manifestação cultural e religiosidade em Monte do Carmo – TO, de Marciléia
Bispo.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Festa, religiosidade, Entrevistas, Localidade, espaço Geografia cultural;
cultura, identidade, observação, simbólico
cotidiano, tradição; narrativas;

371
#Textos em língua inglesa

Using folk dance and geography to teach interdisciplinary, multicultural subject matter: a school-
based study, de Inez Roveno e Madeleine Gregg.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Educação, cultura, nativo Teoria de Cornelius Disciplina, localidade; Geografia cultural;
americano, índios, sobre ensino de
cotidiano, pluralidade; cultura, pesquisa
qualitativa;

Geographies for Moving Bodies: Thinking, Dancing, Spaces, de Derek McCorkack.


Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Corpo, movimento, Experimentação Disciplina, Nova Geografia
espaço, experiência, conceitual; Espacialidade; cultural, Geografia
afetividade; Contemporânea;

The Cultural Geography of the Summer Dance Pavilions of Ostrobothnia, Finland, de Pentti Yli-Jokipii.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Cultura, paisagem Pesquisa Localidade; Geografia cultural;
cultural, comunidade, etnográfica;
identidade, relações
sociais, migração, cultura
popular;

Dance, de Derek McCorkack.


Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Corpo, espaço, media, Estado da arte, Localidade, superfície, Geografia Cultural,
movimento, revisão teórica; pensamento; Nova Geografia
representação, não- Cultural;
representacional,
tecnologia, imagem,
internet, performance;

372
#Textos em língua francesa

Géographie exotique et imaginaire de la danse: la révélation de la danse espagnole dans 'De Paris à
Cadix' d’Alexandre Dumas, de Bénédicte Jarrasse.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Narrativa, viagem, dança, Revisão teórica, Localidade, superfície; Geografia cultural;
imaginário, estudo literário;
representação,
antropologia, estética,
signo;

Danse exotique, danse érotique. Perspectives géographiques sur la mise en scène du corps de l’Autre
(XVIIIe-XXIe siècles), de Jean-François Staszak.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Gênero, dança, pós- Estudo descritivo Localidade, superfície; Nova geografia
colonial; histórico, estudo de cultural;
caso;

Espaces et lieux du tango: la geographie d'une danse, entre mythe et réalité, de Apprill C. e Dorier
Apprill.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Identidade, lugar; Estudo de caso; Localidade, superfície; Geografia cultural;
estudo descritivo
histórico;

Géographie de la danse et du bal, de Joëlle Dalègre, Maurice Garden et Pascal Dibie, Bénédicte
Tratnjek.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Paisagem, território; Estudo de caso; Localidade, superfície; Geografia cultural;
estudo descritivo
histórico;

373
Quand le corps donne chair à la géographie.
Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Corpo, espaço, fronteira. Fenomenologia, Pensamento, Nova geografia
Espaço público, gênero, experimentação; espacialidade, cultural, geografia
relações sociais e de geograficidade; humanista;
poder;

#Textos em língua espanhola

Geografia de la danza y musica folklórica de Chile, de Fernando Schmidt.


Temas e Conceitos Aspectos Concepção de Matriz HPG
metodológicos Geografia
Folclore, Região, Religião, Descritivo; Localidade, superfície; Geografia cultural;
território, Cultura;
Observações: Discurso do embaixador do Chile.

Também como resultado deste sistematização, gerou-se uma tabela


de categorização com base na matriz epistemológica anteriormente referida:

374
PORTUGUÊS

8%

15% 31% Geografia Humanista Cultural


Nova Geografia Cultural
Geografia Cultural
Geografia Crítica
Geografia Física
31% 15%

INGLÊS

40%
Geografia Cultural
Nova Geografia Cultural
60%

375
FRANCÊS

17%

Geografia Cultural
50% Nova Geografia Cultural
Geografia Humanista Cultural
33%

ESPANHOL

Geografia Cultural

100%

376
Conforme os gráficos, nota-se que a maior parte desse material,

condizia com estudos mais clássicos da Geografia Cultural, especialmente

aqueles que lidam com pesquisas e estudos sobre localidade a partir da

perspectiva da identidade territorial, da manifestação cultural e do espaço

simbólico. No entanto, o foco da pesquisa estava mais centrado noutra esteira

epistemológica. Por esse motivo, foi necessário realizar um ajuste no

desenvolvimento da pesquisa.

Da ideia inicial, que assumia como desafio a proposta de pensar em

epistemologias e metodologias para um subcampo temático dentro da

Geografia Cultural Contemporânea, buscou-se a partir da perspectiva dos

estudos pós-estruturalista, realizar uma pesquisa que parte da de localidade

como algo que se dá na relação do corpo com a experiência, produzindo, com

isso, narrativas poéticas, cujo propósito não mais se assenta na ideia de

“problematizar”, em seu sentido científico tradicional, mas sim, de “dar a ver”

espaço, paisagem e o habitar urbano por meio de um horizonte investigativo

de fundo criativo-sensível-poético;

377
SOBRE O AUTOR

Antonio Carlos Queiroz Filho é professor efetivo da Universidade Federal do

Espírito Santo-UFES (Brasil). Atua junto ao Departamento de Geografia e nos

Programas de Pós-Graduação em Geografia (Mestrado e Doutorado) - PPGG e

Arquitetura e Urbanismo – PPGAU. É líder do Grupo de Pesquisa RASURAS -

Geografias Marginais (Linguagem, Poética, Movimento) e do GRAFIAS -

Laboratório de Geografia Criativa. Desenvolve pesquisas em Epistemologia da

Geografia Humana Contemporânea e da Nova Geografia Cultural, com ênfase

nos estudos sobre a Geografia da Diferença (Estudos Deleuzianos e pós-

estruturalismo) e seus desdobramentos nos temas: Imaginação Espacial e

Política das Imagens; Paisagem na relação linguagem-experiência-sensibilidade

a partir do cinema, literatura e dança; Imagem da Cidade, Videografias,

Geoetnografias e Corpografias Urbanas, onde aborda o papel do pensamento

e do humanismo na produção das cidades e na compreensão de seus fluxos.

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